Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos Drummond de Andrade em...

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Sergiano Alcântara da Silva Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos Drummond de Andrade em perspectiva única (1920-1930) Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio. Orientador: Prof. Antônio Edmilson Martins Rodrigues Rio de Janeiro Agosto de 2013

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Sergiano Alcântara da Silva

Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos Drummond de Andrade em perspectiva única

(1920-1930)

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Antônio Edmilson Martins Rodrigues

Rio de Janeiro Agosto de 2013

Sergiano Alcântara da Silva

Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos Drummond de Andrade em perspectiva única

(1920-1930)

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues Orientador

Departamento de História – PUC-Rio

Prof. Daniel Pinha Silva Departamento de História – PUC-Rio

Profª Amanda Danelli Costa

Departamento de Turismo – IGEOG -UERJ

Profª Mônica Herz Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2013

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total

ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do

orientador e da universidade.

Sergiano Alcântara da Silva Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará

em 2010. Tem experiência na área de História

Contemporânea, com ênfase nos temas, História e Literatura,

modernismo, Carlos Drummond de Andrade.

Ficha Catalográfica

CDD: 900

Silva, Sergiano Alcântara da

Modernismo da vanguarda e tradição literária

brasileira: Carlos Drummond de Andrade em perspectiva

única (1920-1930) / Sergiano Alcântara da Silva;

orientador: Rodrigues, Antonio Edmilson Martins – 2013.

245 f.; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História,

2013.

Inclui bibliografia

1. História – Teses. 2. Modernismo. 3. Tradição. 4.

Nacionalismo. 5. Andrade, Carlos Drummond de. I.

Rodrigues, Antonio Edmilson Martins. II. Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento

de História. III. Título.

A Flaviano, pelas noites de rádio AM e sofá,

e Aila, por Ser.

Agradecimentos

A Flávio, Fabiana, Flaviano, Aila e João, experiências em mim;

A Dorenildo Matos, mestre que me criou a Crítica;

A Francisco Antônio, mestre que me despertou à História;

A Robson Alves, Victor Pereira, Ribamar Júnior, Filipe Canuto, Camila Queiroz,

Kátia Adriano e Josenildo Ferreira pela família que se permite acontecer;

A Juracy Pinheiro, para quem, sendo um pouco de azul, tornei-me além;

Ao professor Antonio Edmílson Martins Rodrigues, pelas descobertas em

maravilhosas aulas;

A Edna Maria, professora Maria Elisa, Evilásio Oliveira e Wilson, pela enorme

ajuda medida em detalhes;

A Carlo Romani e Gerson Galo Ledezma Meneses, pelo apoio de primeira ordem;

A Carlos Paiva e Jê Nicodemos, pela recepção carioca e ajuda amiga;

A CAPES, pelo auxílio e suporte dessa pesquisa.

Resumo

Silva, Sergiano Alcântara; Rodrigues, Antônio Edmilson Martins.

Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos

Drummond de Andrade em perspectiva única (1920-1930). Rio de

Janeiro, 2013. 245 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História,

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A presente dissertação discute as dinâmicas históricas do modernismo

brasileiro dentro das especificidades de uma tradição que persiste na inteligência

local, a saber, a de que a construção da nossa literatura se daria apenas no

tratamento de temas nacionais, expressados pela cor e realidade nativas. Assim,

discute-se os combates intelectuais envolvidos no tema tradição literária que tem

como mote central um projeto de literatura essencialmente brasileira no intuito de

inserir o Brasil no concerto das nações modernas, como queria Mário de Andrade.

Neste sentido, o modernismo recuou qualitativamente quando se reportou ao

nacionalismo, abandonando a pesquisa estética de vanguarda em consonância com

a vida técnica da modernidade, em nome de um ideal mais geral que o aproximou

da tradição literária brasilista. A figura de Carlos Drummond de Andrade põe tal

condição em uma situação crítica na medida em que estabelece uma relação cética

tanto com o primeiro modernismo experimental quanto com o segundo

modernismo nacionalista, daí que o poeta mineiro se torna uma expressão

dialética do movimento, no sentido hegeliano do termo, ou seja, ele conserva,

suprime e eleva a outro nível as conquistas do modernismo.

Palavras-chave

Modernismo; tradição; nacionalismo; Carlos Drummond de Andrade.

Abstract

Silva, Sergiano Alcântara; Rodrigues, Antônio Edmilson Martins. The

avant-garde modernism and Brazilian literary tradition: Carlos

Drummond de Andrade in sole perspective (1920-1930). Rio de Janeiro,

2013. 245 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História,

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The present dissertation discusses the historical dynamics of Brazilian

modernism inside the specificities of a tradition that persists in local intelligence,

namely, the one which points out that the construction of our literature would be

made only on the treatment of national themes, expressed by native color and

reality. Thus, it is discussed the intellectual arguments involved in literary

tradition theme which have, as a central motif, a project of literature essentially

Brazilian aiming to insert Brazil into the concert of modern nations, like Mário de

Andrade wanted. In this sense, modernism retreated qualitatively when it reported

for nationalism, abandoning the avant-garde aesthetic research in agreement with

the technical life of modernity, in the name of a general ideal that approached

modernism with Brazilian literary tradition. The figure of Carlos Drummond de

Andrade puts such condition into a critical situation as he establishes a skeptic

relation not only with the first experimental modernism but also with the second

nationalist one, this way, the poet is himself a dialectical expression of the

movement, on the Hegelian sense of the term, since he conserves, suppresses and

elevates to another level the accomplishments of modernism.

Keywords

Modernism; tradition; nationalism; Carlos Drummond de Andrade.

Sumário

1. Introdução: Periferia da periferia ou o esquecido do esquecido.

Cânone e história literária nacional .......................................................... 10

2. Tradição à modernidade....................................................................... 22

2.1. Tradição moderna .......................................................................... 23

2.2. Moderna tradição brasileira ............................................................ 30

3. Da crítica imanente ao golpe de estado literário .................................. 53

4. Primeiro modernismo ........................................................................... 85

4.1. O cosmopolitismo dos pobres ........................................................ 86

4.2. Modernismo modernicizante: a tradição esquecida ....................... 94

5. Segundo modernismo: o golpe de estado literário ............................. 119

6. Drummond como experiência limite do modernismo .......................... 169

6.1. Drummond em estado bruto: 1922-1924...................................... 170

6.2. O eterno do moderno:

Drummond e as tensões da tradição brasileira: 1925-1930 ................ 200

6.2.1. Abrindo portas abertas .......................................................... 201

6.2.2. No labirinto o fio ..................................................................... 204

6.2.3. O roçar dos mantos ............................................................... 212

6.2.4. O mesmo assunto .................................................................. 217

6.3. O gauche retomado ..................................................................... 223

7. Considerações finais .......................................................................... 229

8. Referências bibliográficas .................................................................. 234

I

Oximoros do Brasil:

O Brasil é um país em que a independência ante Portugal foi

proclamada por um português,

a República foi proclamada por um monarquista,

a Revolução Burguesa foi feita por oligarquias,

o mais ilustre gesto de um presidente foi um suicídio,

a redemocratização foi presidida por um homem da própria

ditadura

a maior privatização foi feita pelo príncipe da sociologia

terceiromundista e esquerdizante,

numa praça Tiradentes não há uma estátua de Tiradentes,

mas de D. Pedro I, neto da Dona Maria que ordenara a

morte do alferes.

(Idelber Avelar)

II

Como eu gostava da nossa igreja, como a revejo bem agora!

O velho pórtico pelo qual entrávamos, negro, bexigoso como

uma espumadeira, estava desviado e como que cavado

profundamente nos ângulos (assim como a pia de água benta

para onde nos lavava), como se o ligeiro roçar dos mantos

das camponesas entrando na igreja, e de seus dedos tímidos

tomando a água benta, pudessem, repetindo-se através dos

séculos, adquirir uma força destrutiva, recurvar a pedra e

entalhá-la de sulcos como os traça a roda das carroças no

marco onde bate todos os dias.

(Marcel Proust)

1 Introdução Periferia da periferia ou o esquecido do esquecido. Cânone e história literária nacional

Existe um problema no modernismo. E este consiste na própria

especificação do termo. Desde a década de 1980 pesquisas têm demonstrado a

complexa ambiguidade do modernismo bem como as implicações de pensar tal

movimento como um mar de opiniões unívocas e homogêneas. Por esta

constatação, não existe apenas um modernismo, e isto é irrefutável. Do mesmo

modo, o modernismo não foi uma ruptura tão grande assim como antes se

pensava, como se ele inaugurasse uma revolução do que antes era apenas uma

tabula rasa. Nem ruptura nem um só movimento. Então o que é este processo

cultural e literário que iremos estudar nas próximas páginas? Existiram outros

modernismos? O que faz este modernismo que estudaremos ser diferente do que

ocorria e do que era produzido antes de sua aparição? Reforma ou revolução? Por

que hoje existe uma consagração tão grande de poucos nomes, de poucas obras,

de poucos lugares onde se desenvolveu? Seria o modernismo uma “escola de

obras falhas”, como queria Wilson Martins? (Martins, 2002, p. 52). Como Carlos

Drummond de Andrade, hoje o maior poeta brasileiro, se insere nesse ambiente e

nesses dilemas? Essas são questões que serão debatidas ao longo dessa

dissertação. Começamos por algumas implicações e explicações.

Em 7 de abril de 1929 era lançado nas páginas do jornal O povo, de

Fortaleza, um suplemento literário intitulado Maracajá. Era o primeiro e o

penúltimo. O número seguinte, de 26 de maio, findaria a curta passagem dessa

publicação que poderia ter sido esquecida, e quase fora. Em suas páginas

figuraram personalidades literárias como as de Jáder de Carvalho, Demócrito

Rocha, Raquel de Queiroz, Paulo Sarasate, Mário de Andrade do Norte, Franklin

Nascimento, sem falar da participação “especial” de Raul Bopp. Essas

publicações são consideradas como as primeiras manifestações modernistas em

terras cearenses. Delas falou um crítico: “O Ceará, como se vê, manteve sua

tradição de antecipar ou mesmo acompanhar com pequeno atraso as modificações

culturais dos centros hegemônicos.” (Marques, 2010, p. 68). O que espanta neste

tipo de comentário não é o tom de comiseração, nem mesmo a modéstia travestida

de grandiloquência, mas o fato do autor repetir o que ele mesmo comenta sobre o

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comportamento dos modernistas cearenses, pois esses procuravam “se afirmar

diante dos sulistas”. É o que vemos, por exemplo, neste texto de Mário de

Andrade do Norte, intitulado “Turf”:

Há um Mário de Andrade no sul. De São Paulo. Outro no norte. No Ceará. Mário

de Andrade do sul é poeta modernista. O daqui também é poeta modernista. Pode

ser que se confundam os nomes. Mas o de lá não tem obrigação de mudar o nome.

Nem o daqui tem a obrigação de mudar o nome. Continuam como estavam. Faz de

conta que são cavalos de corrida. Estão no mesmo lugar. Vamos ver quem alcança

mais depressa o maior nome. — Larga! (Andrade do Norte, 1929, p. 10)

O tom de gracejo não esconde a teima de rivalidade regional que o nortista

imprimia nesta corrida em nome da posteridade. Se houve ou não uma vitória do

sulista cabe ao leitor averiguar. Mas o que nos interessa é como a “província” se

via e se aglutinava com o que ela entendia como os “centros hegemônicos”,

mesmo em termos diacrônicos, posto que quase cem anos depois o tom de quem

avalia o panorama literário (mesmo a partir de um olhar “científico”) parece ser o

mesmo, como podemos observar nos comentários do crítico contemporâneo

supracitado. É interessante notar também que tal texto-piada de Mário de Andrade

do Norte publicado no Maracajá seria impresso na Revista de Antropofagia

alguns meses depois. Inclusa no contexto das discussões entre Mário de Andrade,

do sul, e Oswald de Andrade, podemos perceber que a publicação do texto do

cearense fora apenas um meio estratégico e particular deste último dentro de uma

política literária litigiosa, tanto é que não há mais nenhuma outra participação do

nortista na revista paulista. Ou seja, a queixa original acabou sendo esvaziada.

Seria, então, tanto esse modernismo de província quanto sua historiografia

marcados apenas por um sentimento de “bairrismo e revanchismo”? Existe um

modernismo de província? É possível para um crítico constatar o nível de

modernismo de determinada manifestação literária ou seria possível afirmar,

como o faz Lígia Chiappini, que “houve e não houve modernismo” (Chiappini

apud Marques, 2011, p. 25) em determinado meio, seja ele no Rio Grande do Sul,

em Goiás, no Ceará etc.? O que nos importa aqui, como foi dito, é perceber como

determinados movimentos culturais são tratados pela história literária ou, mais

especificamente, como eles se erigem dentro de um cânone nacional, dentro de

um sistema literário brasileiro. Não que tenhamos a expectativa de encontrar, de

“resgatar” (este um termo tão cruel e paternalista) qualquer “igrejó regional”

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surgido em qualquer esquina das capitais e interiores, mas de pensar como a

lembrança de uns pressupõe o esquecimento de outros ou, no máximo, uma visão

exótica, marginalizadora, excepcionalista desses esquecidos dos esquecidos.

Como falaremos mais adiante, a formação de um sistema literário nacional

pressupõe a exclusão não apenas das consideradas “manifestações literárias”,

como também exige o esquecimento até dessas formações grupais que não

chegaram a solidificar qualquer status para a história literária. É por isso que um

“complexo de Mário de Andrade do Norte” se instaura: como uma unidade

literária permite a produção de um texto tão realista quanto sarcástico, ao mesmo

tempo que angustiante? Porque é da sua consciência o fato de que o sulista está na

dianteira justamente porque está dentro do “centro hegemônico”. Então lutar

contra esse panorama seria “bairrismo”, como o quer Ivan Marques (2011)? Bem,

poderíamos pensar como o crítico mineiro e afirmar que “é a verificação das obras

que permite medir a modernidade de um artista, e não a leitura de manifestos e

artigos de ocasião, quase sempre carregados de retórica de compromisso.”

(Marques, 2011, p. 24). Há muito tempo atrás o próprio Mário de Andrade do

Norte poderia ter respondido a tal comentário:

Vocês do sul desculpem os tipógrafos do Ceará. Eles não podem fazer uma revista

melhor. Se tivessem mais recurso material, mostrariam como o cearense sabe tirar

dois couros de um bode só. (Andrade do Norte apud Marques, 2012, p. 69).

Mário poderia estar “fora da modernidade”, mas estava dentro de uma

sociedade excludente e marginalizadora que produzia desigualdades tanto

econômicas como, bem vemos, culturais; desigualdade esta que é a razão de ser

mesma da modernidade brasileira, como se essa exclusão da modernidade fosse

funcional à mesma modernidade “periférica”.

Não que haja revanchismo nesta forma de ver as coisas. É preciso crer que

toda a nova historiografia que releu o período que vai do final do século XIX à

década de 1920 tem o que falar, e muito, e seria ridículo dizer que ela é apenas um

movimento de ressentimento. Aquele período que antes se entendia como “pré-

modernismo” teve que ser redescoberto justamente pelo eclipse que o

modernismo paulista impôs sobre estes anos, por um lado, taxando-o como um

momento não muito interessante no modo de fazer literatura (críticas dos

modernistas) e, por outro, como um tempo importante para a consolidação

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literária que viria depois (velha historiografia). Porém, um livro que pretendia

marcar por inteiro a história do movimento modernista, História do modernismo

brasileiro, de Mário da Silva Brito, lançado na década de 1970, já diluía um

pouco a sensação do ineditismo ou pelo menos de ruptura radical do grupo

paulista ao explicitar uma demanda de acontecimentos e de realizações culturais

que vinham se articulando muito antes da “Semana de 22”: a Primeira Guerra, a

imigração, os movimentos sociais, as primeiras polêmicas datadas de 1917,

grupos como o Grupo Zumbi etc. Nem por isso ele deixou de colocar a Semana

como um divisor de águas e tampouco livrou certos nomes da mesma crítica que

os modernistas faziam, principalmente quanto aos parnasianos.

Não é difícil então constatar como o modernismo está inserido numa

discussão tão grande quanto a que envolve a história literária e seus cânones. Daí

surgirem perguntas como: de qual modernismo você está falando? A partir de que

perspectiva você entende o modernismo? Isto não é reproduzir o cânone oficial?

Muito bem. Podemos dizer que esta dissertação seguirá o rumo da crítica de um

modernismo, o modernismo de vanguarda e não o modernismo “antigo”. Que isso

quer dizer? Destacaremos apenas um determinado modernismo que, apesar das

infindáveis fraturas internas que se desembocarão em diversas outras correntes,

teve como princípio e lógica os argumentos das vanguardas históricas europeias.

Neste sentido, ao ler “modernismo” nas próximas páginas o leitor deverá atentar

para esse tipo de modernismo influenciado pelas vanguardas, e não o modernismo

anterior.

Francisco Foot Hardman, em seu artigo “Antigos modernistas”, ao criticar a

historiografia que impunha interpretações com as lentes do movimento de 22

aponta três efeitos nocivos dessa perspectiva:

a) Exclusão de amplo e multifacetado universo sociocultural, político, regional que

não se enquadrava nos cânones de 1922, em se tratando, embora, de processos

intrínsecos aos avatares da modernidade; b) redução das relações internacionais na

cultura brasileira a eventuais contatos entre artistas brasileiros e movimentos

estéticos europeus, quando, na verdade, o internacionalismo e o simultaneísmo

espacial-temporal já se tinham configurado como experiências arraigadas na vida

cotidiana do país; c) definição esteticista para o sentido próprio de modernismo,

abandonando-se, com isso, outras, dimensões políticas, sociais, filosóficas e

culturais decisivas à percepção das temporalidades em choque que põem em

movimento e fazem alterar os significados da oposição antigo/moderno muito antes

de 1922. (Hardman, 1992, p. 290)

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Seria difícil negar a modernidade do Brasil e de seus intelectuais que desde

o romantismo se articulam para pensar o país inserido no seu presente, no que está

no mundo e no que isto poderia lhe trazer de melhor para alcançar aquilo que eles

entendiam como a modernidade-modelo europeia. Não apenas na questão da

técnica, mas também nos moldes da política institucional e da economia de

mercado que, já na virada do século XIX para o XX, se internacionalizava

deixando o país como um membro crucial dentro da divisão internacional de

trabalho, no que tange mormente à exportação de café. Não foram os modernistas

que inventaram um país cujo panorama social e urbano se integrava às tecnologias

então em ascensão, por isso seria difícil afirmar que o modernismo monopolizou

um aspecto cotidiano tão comum à época em que a experiência da técnica chegava

com um impacto tão grande no modo de viver dos cidadãos. Eles não foram os

primeiros a incorporarem e a discutirem em termos literários o que a técnica

poderia causar na sensibilidade tanto do homem comum quanto no do literato.

Eles foram, sim, como veremos, aqueles que souberam organizar coerente e

organicamente um movimento em grupo que tinha como pressuposto a

interferência, a experiência, a inovação técnica como modus operandi, sem o qual

ele não se distinguiria do que eles mesmos identificavam como “os meios

passadistas” de fazer literatura.

A objeção para essa perspectiva de um modernismo vanguardista seria a de

que se poderia estar novamente repetindo os mesmo gestos da velha

historiografia, principalmente quanto ao fato de relegar esse mesmo modernismo

à simples cópia, imitação, mimese do estrangeiro. Não. O mesmo Foot Hardman,

em outra ocasião, refuta a ideia de que os contatos com a vanguarda foram

determinantes, argumentando que

como resultado dessa visão, o Modernismo parece situar-se na seguinte

contradição: os seus aspectos inovadores, sejam temáticos ou estilísticos, são frutos

da importação de propostas estéticas de vanguarda (...); seus aspectos retrógrados e

passadistas, embebidos de nacionalismo conservador, resultam de determinações

internas, isto é, da dominação oligárquico-burguesa. (idem, 1984, p. 114).

O autor pega justamente o nosso ponto de partida. Vamos aos pontos.

Em primeiro lugar, a relação entre os modernistas e os vanguardistas

históricos europeus foi sim decisiva para esse modernismo. Para nós é o que os

torna essencialmente distintos do que Foot Hardman chama de “antigos

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modernistas”. É que seria difícil não tomar esses modernistas “de 22” passíveis de

influência do futurismo com o qual o movimento terá momentos de amor e ódio.

Seria também complicado não reportar as relações entre Oswald e o cubismo,

mesmo no que diz respeito à fase nacionalista, como veremos mais adiante. A

simpatia de um Manuel Bandeira pelo modernismo se deu justamente depois de

Mário de Andrade ler seu Paulicéia desvairada no Rio de Janeiro, sendo que

antes já tomara contato com os futuristas italianos passando a gostar de

“Palazzeschi, cuja Fontana Malata sabia de cor, de Soffici, Govoni, Ungaretti.”

(Bandeira, 1996, p. 61). Este mesmo afirmara que “o impulso inicial do

movimento modernista veio das artes plásticas” por meio de Anita Malfatti1 e do

seu expressionismo alemão. (idem, p. 606). Enfim, os exemplos seriam muitos. O

que importa salientar é que esse aspecto não será tratado como algo positivo,

progressista, como o critica Hardman2, mas sim como um dado importante para a

consolidação grupal do movimento, algo que o exclui do panorama literário da

época, mesmo que este já estivesse entregue às inovações técnicas e abordasse os

limites e possibilidades da modernidade brasileira, atuando em nomes tão

distintos como Olavo Bilac ou João do Rio, como nos demonstra Flora Süssekind

(1987).

Em segundo lugar, Hardman aponta uma divisão que estará presente nesta

dissertação, a saber, de um momento particularmente cosmopolita e

universalizante, ao mesmo tempo que tecnicista e urbanista, e outro marcado pelo

nacionalismo, pelo populismo e folclorismo, enfim, de preocupação com fatores

culturais internos. No entanto, ao contrário do que pensa o crítico, neste segundo

momento a vanguarda ainda permanecerá como horizonte problemático. Embora

os modernistas fossem aos poucos perdendo seu caráter de experimentação, de

formalização e sínteses estéticas, características do primeiro momento, as

1 Mesmo Mário de Andrade atribuiria a sua introdução ao modernismo em parte à Anita Malfatti,

como nesta carta direcionada a Augusto Meyer, datada de 20 de Maio de 1928: “Carece notar que

desde 1915 Anita Malfatti modernista, italiana de mãe, germanizada na cultura, inglesada também

(...) Talvez a influência dessa companheiragem nova provocou o enjoo [da estética parnasiana]...

Sei não. Em todo caso essa amizade conto como importantíssima na minha formação. Fez a

exposição dela que toda a gente a rrenegou e eu fiquei apaixonado sem saber direito porque.”

ANDRADE, Mário. Mário de Andrade escreve cartas a Alceu, Meyer e outros. Coligidas e

anotadas por Lygia Fernandes. Rio de Janeiro: Editora do autor, 1968, p. 50. 2 Não trataremos as questões como positivas ou negativas, mas como possibilidades perdidas

quando abertas por um horizonte de liberdade que não tenha como finalidade a brasilidade. O

próprio Hardman, mesmo criticando as visões dualistas, emprega a mesma concepção quando trata

em outro momento os “antigos modernistas” em contaste com os “modernistas”.

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vanguardas ainda não seriam esquecidas como fatores mediativos do modernismo

internacional. Fatores tanto externos quanto internos ajudariam neste declive de

princípios que tornariam o modernismo vanguardista brasileiro mais brasileiro —

ou moderno à brasileira — que vanguardista. Ainda assim, seria difícil não

perceber que um livro como Macunaíma, apesar de extremamente findado no teor

folclorista-nacionalizante, não tivesse uma estrutura narrativa influenciada pelas

conquistas estéticas das vanguardas. Acontece que essas mesmas inovações vão

diluindo-se aos poucos em nome de um teor programático que não punha tanto

crédito em fatores formais de expressão, posto que o nacionalismo militante

implicava uma linguagem mais acessível, mais didática.

A experiência modernista de vanguarda conseguiu, no entanto, fazer algo

inédito: deixou para a posteridade a sensação de que saíram do nada, de que

sobrevieram de um vazio cultural. A própria crítica paulista contribuiu para esse

panorama injusto de relegar ao modernismo uma revolução fundadora. Como

estratégia de grupo, de consolidação, para surgirem como a novidade, o original, a

inventividade, os modernistas vanguardistas usaram da polêmica contra tudo o

que era produzido no cenário literário brasileiro, o que é natural para quem

pretende conquistar terreno dentro de um meio dominado por determinados

homens e estéticas hegemônicas. Para isso elegeram o parnasianismo, o

simbolismo e o regionalismo como inimigos a serem combatidos e ao mesmo

tempo insuflaram a ideia de que a literatura brasileira daquele momento era feita

apenas por essas escolas “passadistas”. Com isso deixaram de atentar a uma

produção literária que, assim como eles, realizava um

diálogo entre forma literária e imagens técnicas, registros sonoros, movimentos

mecânicos, novos processos de impressão. Diálogo em várias versões entre as

letras e os media que talvez defina a produção literária brasileira do período de

modo mais substantivo do que os muito neo (parnasianismo, regionalismo,

classicismo, romantismo), pós (naturalismo) e pré (modernismo) com que se

costuma etiquetá-la. (Sussekind, 1987, p. 18)

Defendendo a ideia de uma “cultura do modernismo”, Antonio Edmilson

Martins Rodrigues afirma que, por essa perspectiva que esvazia as produções

culturais da belle époque, caímos no erro de pensar uma modernidade sem

modernismo, chegando ao ponto de pensar situações-limites em que Machado de

Assis se torna um tradicionalista, um modernizante conservador. Desse modo,

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a violência do choque das novas ideias, a autoconsciência do presente, a

capacidade de perceber a cidade como espaço privilegiado do novo e a

preocupação com a recepção do que era produzido nos vários campos do

conhecimento foram colocadas num plano secundário. (Rodrigues, 2012).

Essa constatação corrobora com a ideia de um modernismo já existente

antes dos modernistas “de 22”, um modernismo que atualizava e renomeava novas

formas de apreender o fazer literário, de implicar meios diversos para a crítica

social, seja no humor ou na vida boêmia, o que Hardman chamaria de “antigo

modernismo”. Ao mesmo tempo, dá vazão para o nosso argumento de que o

modernismo que estudaremos tem um teor diferencial porque influenciados e

revitalizados pelas vanguardas europeias.

Flora Süssekind (1987), no seu grande estudo sobre as relações entre

literatura e técnica do período que vai do fim do século XIX à década de 1920, ao

confirmar que a fotografia, o telégrafo, o gramofone, o cinematógrafo, instituíram

um olhar novo cuja sensibilidade fora um divisor de águas para a subjetividade

tanto das pessoas comuns quanto dos literatos, também nos dá a entender que o

período realizara aquilo que o modernismo irá sistematizar de forma mais

“automática”, com “relacionamento mais crítico” (Süssekind, 1987, p. 86). Ela

indica como ocorre o processo no qual a técnica se relaciona com o fazer literário

dos autores da época, sendo que uns o articulam como meio de “imitação”, outros,

reativos, como motivo para “estilização”, e também para formas subjetivas de

“deslocamento” (idem, p. 90-91). Descobrimos, então, que o ornamentalismo de

um Bilac se dava de forma crítica em relação à técnica que condenaria o escritor

ao mero profissionalismo. Enquanto que nas suas crônicas e nas suas gazetas

rimadas, existe o fascínio pelo histórico e vulgar, na sua literatura “oficial”, nos

poemas, ele “tenta revigorar a eternidade como coordenada temporal não só para

uma produção literária que se quer clássica, como também para a vivência

citadina.” (idem, p. 99). Desse modo o ornamentalismo parnasiano tão criticado

pelos modernistas seria uma estratégia literária em face de um momento em que a

técnica diminuía e pulverizava a arte artesanal da poesia e da literatura.

No entanto, nos casos em que Flora cita momentos criativos cujos recursos

técnicos parecem interpelar o meio de produção literário, as inovações em muito

diferem do que os modernistas fariam mais tarde. Ela mesma, ao analisar um

18

poema de Adolfo Werneck no qual se tematiza a fotografia, afirma que o autor

cita os recursos fotográficos “meio gratuitamente, sem que isso afete sua própria

técnica poética”, coisa que, segundo ela mesma, acontece com poemas de Oswald

e Mário de Andrade. (idem, p. 126). Na maioria dos casos por ela citado, parece

haver o mesmo fenômeno em que a forma literária ainda não extravasa moldes

clássicos mesmo tendo temáticas tecnicistas ou, quando cita casos assim, como no

do poema “Telefone”, a forma modernista de vanguarda já está presente

latentemente, como no caso do seu autor, Guilherme de Almeida. Mesmo quanto

a Olavo Bilac e o parnasianismo de modo geral, seria difícil crer que todo o

movimento classicista se fez a partir de uma rejeição da técnica, do fazer

jornalístico, da padronização da escrita, em prol de um “falar bonito” (idem, p.77)

já que a escola não se limita ao príncipe dos poetas nem tão menos ao

“ornamentalismo”, sendo que a crítica dos modernistas ao parnasianismo e a

Bilac, neste sentido, parece ter mais um argumento “a favor” do que uma

refutação. Não há nenhuma premissa estética para que o parnasianismo seja

considerado como uma resistência à ciência e à racionalidade técnica, como se

fosse um romantismo, mas não com a fuga e a crítica revolucionária à

modernidade deste.

Por outro lado, é certo que a autora tem em mente que há uma diferença

entre esses modernistas e os modernistas vanguardistas, patente na sua ânsia de

comparar aqueles autores com estes, principalmente na pessoa de Oswald de

Andrade. Não é incomum ao longo do seu trabalho encontrar referências que

deixam crer nas divergências entre ambos, pois os antigos modernistas parecem

mais “descontínuos” (idem, p. 26), “hesitantes” (idem, p. 39), espantados e

encantados (idem, p. 86) com sua relação de “mera citação” (idem, p. 136),

enquanto os modernistas vanguardistas aparecem com os “sustos incorporados”

(idem, p. 48), nos quais realmente se encontra uma “literatura de corte” (idem, p.

48) porque estes “automatizaram os sustos” (idem, p. 100), são “mais articulados”

(idem, p. 134) com suas “elaborações críticas” (idem, p. 136) e com “uma sintaxe

e uma lógica particulares” (idem, p. 136). É como se os modernistas vanguardistas

tivessem sistematizado em teorias, manifestos e obras o que ocorria bem antes

deles de forma mais difusa, como se ocorresse nas décadas anteriores um

acumulação primitiva do que iria irromper com aquele modernismo. Diz-nos a

autora:

19

Montagens e cortes passariam a invadir, de fato, a técnica literária com a prosa

modernista. A ficção brasileira só ‘perdeu a sintaxe do coração e as calças’ em

textos como Memórias sentimentais de João Miramar (1924); o próprio Serafim,

de Oswald de Andrade. Macunaíma (1928), de Mário de Andrade; e Pathé Baby,

de Alcântara Machado. Aí sim se encontra uma literatura-de-corte, em sintonia

com uma concepção também diversa do cinema, e pouco preocupada em parecer

com as fitas, em falar de biógrafos e cinematógrafos. Uma literatura na qual, já

incorporado os sustos, dialoga-se maliciosamente com as novas técnicas e formas

de percepção. E que não cita a todo momento o cinema. Mas se apropria e redefine,

via escrita, o que lhe interessa. (idem, 1987, p. 48. Grifos meus)

Portanto, o fato de que o que se produzia antes do surgimento do movimento

modernista era também modernista, no sentido anteriormente exposto não exclui a

constatação de que eles tinham uma maneira específica de abordar a modernidade.

Mas agora era Marinetti, e não Baudelaire. Visão de mundo próxima das

vanguardas históricas e diretamente influenciada por elas. Como dito

anteriormente, isto também não significa que eles atentaram ao mero copismo,

mas que, à luz das discussões daquelas, os modernistas expressaram uma nova

maneira de produzir e experimentar literatura, traduzida num clima de

modernidade técnica extremamente vertiginosa que as primeiras décadas do

século XX também testemunharam a seu modo. Por isso que a tese de Foot

Hardman, de que o

cosmopolitismo modernista não se viabilizaria, portanto, a partir de uma

‘dependência externa’, mas das fissuras que a presença crescente de uma força de

trabalho internacional, tão numerosa quanto anônima, já vinha produzindo na

ordem dominante (Hardman, 1984, p.116)

parece-nos ineficaz, posto que o modernismo, mesmo o do primeiro tempo, não se

caracterizou apenas pelo cosmopolitismo; por outro lado, seria contraditório

refutar a tese de uma “dependência externa” afirmando que uma classe que, à

época, tinha uma presença marcante de estrangeiros, fosse, com sua simples

“presença”, “um aspecto determinante de todas as tensões, contradições e

mudanças vividas pela produção literária ‘pré-moderna’” e, como o autor atreve-

se a dizer, do próprio modernismo. Se critica a tese da dependência do

modernismo em relação às vanguardas, acaba afirmando uma outra “dependência

externa”, agora quanto à imigração e sua “força de trabalho internacional”. Mas o

próprio Hardman entenderá, em outra ocasião, que o modernismo antigo dava a

20

introdução do problema: “Entre projeções futuristas e revalorizações do passado,

escritores do Brasil na passagem do século tentavam fazer o que o modernismo,

depois, adotaria como programa: redescobrir o Brasil.” (idem, 1992, p. 289. Grifo

meu). Como se vê, o que diferencia os antigos modernistas do modernismo de

vanguarda é o caráter de programa, de movimento, de grupo deste último.

Embora o texto a seguir trabalhe com os “cânones” do modernismo

vanguardista, o autor entende que a historiografia sobre esses nomes e tendências

não é a única, tampouco a representante legítima desse período. No entanto,

apesar da defesa de um ponto de vista, não houve em nenhum momento certo

paternalismo e identificação com o objeto, fato que muitas vezes põe antolhos à

crítica, posto que, em nome da mesma defesa de uma tese, muitos críticos

incorrem à parcialidade e à injustiça para com outras visões, sendo um passo para

a ortodoxia. Por outro lado, é evidente que nem sempre uma historiografia que

tenta “resgatar” alguns esquecidos tente também esquecer outros esquecidos. Fica

sempre uma hierarquia da memória, pois enquanto uns são lembrados, outros

ainda esperam uma chance para serem ouvidos. A discussão sobre a tradição ao

longo dessas páginas tenta, então, dar uma resposta de como deve ser o primeiro

passo para a tal canonização literária.

Mas pensemos no nosso Mário de Andrade do Norte e sua corrida. A

“periferia” da “periferia”, a marginalização dentre os marginalizados. A

historiografia (como a tradição e o cânone) sempre pressupõe um discurso de

poder cruel. É porque ela ainda detém um ranço envergonhado da desigualdade

social, da desigualdade política e econômica, pois, lembrando a “falta de

condições” denunciada pelo Mário nortista, como não pensar que grandes homens

não esmoreceram sua literatura devido à falta de “condições materiais de

existência”? Modernismo no Rio, modernismo em Goiás, modernismo no Ceará,

modernismo no Piauí. Visões novas da historiografia. Mas qual delas

“sobreviverá” mais? Qual será editada? Qual terá impacto no nosso “sistema

literário”? A hierarquia, a desvantagem, a injustiça, os “centros hegemônicos”, os

“descompassos”, nos dizeres de Hardman, permanecem. No máximo, um

modernismo cearense ou goiano seria visto como uma nota de rodapé, uma

exceção dentro da historiografia, um trabalho “local”, ou mesmo, como nos diz o

pesquisador daquele movimento cearense, um “modernismo encarado sob uma

perspectiva periférica.” (Marques, 2010, p. 25). Este mesmo pesquisador acha tal

21

perspectiva “diferente” e por isso original, tal é o estado de mal estar que tanto ele

sente e como também o sentira Mário de Andrade do Norte. E isso é valido para

qualquer historiografia, não apenas a literária. Que os terrenos banidos da história

não sejam avaliados como uma “perspectiva periférica”. Que seja a totalidade,

sem nenhum preconceito ou arrivismo. Neste sentido, aqui é preciso pensar como

Foot Hardman:

Modernismo, qual? Dos artistas de 1922 ou de 1900? Da geração de 1930 ou de

1870? Dos comunistas de 1922 ou do movimento operário socialista e libertário

das décadas precedentes? Dos arquitetos acadêmicos ou dos engenheiros de obras

públicas? Dos ‘tenentes’ dos anos 20 ou dos abolicionistas e republicanos de meio

século antes? Dos poetas metropolitanos ou dos seringueiros do Acre? Dos fios

telegráficos da Comissão Rondon o dos índios rebeldes? De Mário e Oswald de

Andrade ou de Mário Pedrosa e Lívio Chavier? Da revolução ‘técnica’ ou da

revolução ‘social’? Dos nacional-integralistas ou dos bolchevistas? Do manifesto

Antropófago ou do Primeiro de Maio? (Hardman, 1992, p. 303)

Aqui se optou pelos de 22 e por Oswald e Mário de Andrade, do sul.

Editoras, bibliotecas, livros didáticos, todo um sistema literário hegemônico me

ajudou a chegar a esta pesquisa. Se não optei pelo Mário nortista, aqui tento

explicar os buracos daquele sistema e analisar por que o sulista acabará por vencer

a angustiante corrida. Por meio da tradição moderna brasileira.

2 Tradição à modernidade

(...) com os suspiros de uma geração é que se amassam as

esperanças da outra.3

(Machado de Assis)

Tudo o que sobrevive ao tempo tem sua dívida para com os contemporâneos

que o testemunharam. As tradições não nos expõem apenas os “mortos”, mas

também a oscilação dupla de duas mãos: uma que tapa a boca da sua atualidade

originária e outra que dá o testemunho de seus murmúrios. Estes murmúrios são

tudo aquilo que ficou, aqueles documentos de barbárie que Walter Benjamin tão

bem soube interpretar. Somente com estes sussurros, com estes documentos, é que

podemos manter nosso diálogo. E ainda assim, só a alguns lamentos será

permitido abrir nossas portas. Entendemos aí que as tradições trazem dentro de si

a tradução de uma recepção, quase sempre injusta e cruel, pois ela não se afasta

de um “acobertamento” da mudez de cada tempo.

Mas sendo um diálogo, podemos ir mais longe e transformar a assertiva de

Machado de Assis num questionamento: os suspiros de uma geração podem

amassar as esperanças da outra? Reviravolta. Ao contrário do que pensávamos, o

passado — mesmo aquele que escolhemos ver e ouvir, pressupondo vozes e

imagens inocentes de quem, embora não enterrado no esquecimento, persiste na

imobilidade da cadaverização perpétua e por isso cômoda à nossa consciência —

nos interroga. Quando este dilema acontece e as duas perguntas, a de lá e a de cá,

ficam sem resposta, surge uma perturbação do presente. Uma ruptura suspendeu

a suposta harmonia monótona, a empatia historicista do presente para com o

passado — o bocejo dá lugar ao espanto. Quando esta distensão é contínua, a

modernidade se manifesta como estética ou visão de mundo porque este é o seu

destino e sua condição de existência, i.e., a ruptura4. Quando é apenas uma fratura

exposta num corpo aparentemente “saudável”, ela se torna uma perturbação mais

perturbadora porque única, “inexplicável”, “particular” ou, como poderia dizer

alguns autores, “periférica”. Desta visão “periférica” surgirão alguns mestres

3 ASSIS, Machado. Teoria do medalhão In Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1973.

V. II, p. 288. 4 “(...) a consciência de modernidade nasce do sentimento de ruptura com o passado.” LE GOFF,

Jacques. História e memória. Trad: Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges. São

Paulo: Editora Unicamp, 2003, p. 175.

23

como Machado de Assis... O que isso quer dizer, especificamente? É o que

tentaremos apontar adiante.

2.1. Tradição moderna

O dilema acima mencionado é moderno porque encerra dentro de si a

característica crítica por excelência: ela é autofágica, separa-se continuamente,

consome-se e dilui-se na acidez de seu próprio veneno: “O que distingue a

modernidade é a crítica: o novo se opõe ao antigo e essa oposição é a

continuidade da tradição.” (Paz, 1976, p. 134). Para Octávio Paz a modernidade é

movimento, sempre para fora de si, transformando-se num outro, para daí partir-se

em mil pedaços que irão semear novos movimentos destinados também ao

estardalhaço. A tradição da ruptura identificada pelo autor mexicano cria outras

tradições porque “modernidade é sempre outra nunca ela mesma” (idem, 1984, p.

18), disforme, mal criada, etérea, algo que, como Deus, todo mundo pensa sentir,

mas não pode tocar. Pensar e sentir: a modernidade é ao mesmo tempo crítica e

paixão, força de sentimento e energia intelectual, afeição por aquilo que nega,

arrebatamento pelo objeto que, quando conquistado e decifrado e tornado parte de

si, não mais servirá porque o que vale é sempre o outro, algo exterior a nós.

Alteridade e heterogeneidade, sempre uma visão a distinguir um outro e um

diferente.

A tradição moderna é uma consciência histórica que não é uma tradição

porque também é mudança e por ser mudança e somente mudança é uma tradição.

A modernidade não permite a tautologia, a identidade, a unidade, o repouso, a

harmonia, a permanência. Apenas a crítica. E com a crítica a alteridade, e com a

alteridade a contradição. Com a contradição nasce a tradição da negação. A

modernidade então está condenada a negar-se, e negando a si, ela se torna ainda

mais moderna como negação da negação. Como exemplo desta condição e

pensamento moderno, é interessante notar então que, como condição formal da

modernidade o capitalismo, segundo Karl Marx, criaria os seus próprios coveiros,

encarnados no proletariado, realizando a maior ruptura que superaria a fase pré-

histórica da humanidade, pois como explica no primeiro livro de O capital: “a

24

produção capitalista produz, com a inexorabilidade5 de um processo natural, sua

própria negação. É a negação da negação.” (Marx, 1984, p. 294). O fato é que essa

negação tem se tornado uma tradição, pois os movimentos contestatórios ao par

modernidade/capitalismo, junto com as crises deste, tem-se demonstrado algo

contínuo, em ondas de influxo e refluxo, quebras e restaurações.

As rupturas vertiginosas da modernidade, seu caráter fugidio e transitório

parecem ter aspectos definidores, como podemos ver nessas palavras de David

Harvey:

Se a vida moderna está de fato tão permeada pelo sentido do fugidio, do efêmero,

do fragmentário e do contingente, há algumas profundas consequências. Para

começar, a modernidade não pode respeitar sequer o seu próprio passado, para não

falar de qualquer ordem social pré-moderna. A transitoriedade das coisas dificulta a

preservação de todo sentido de continuidade histórica. Se há algum sentido na

história, há que descobri-lo e defini-lo a partir do turbilhão da mudança, um

turbilhão que afeta tanto os termos da discussão como o que está sendo discutido.

A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma implacável ruptura com

todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um

interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes. (Harvey,

1992, p. 22)

Mas se, neste ponto de vista, a modernidade desrespeita todas as realizações

precedentes, toda a sua pré-história, como então, para Octávio Paz, elas se

constituem numa continuidade, numa tradição moderna? A validade da questão é

perspicaz se nos dermos conta de que o homem moderno teve que se “adaptar” a

uma nova relação com o tempo numa sociedade cujos movimentos inalcançáveis

e vertiginosos só puderam ser superficialmente capturados na cronologia marcada

a compassos do relógio ou do calendário. Sendo ilusão ou não a aceleração do

tempo histórico, se as transformações na cultura e na sociedade ainda eram lentas,

todos estavam certos de que a noção de tempo havia mudado, o transcorrer, a

passagem em ritmo incessante, a história parecia “marchar”, e sempre adiante.

Quanto mais rápidos, mais longe do que éramos, então será seguro olhar para trás:

“mudando nossa ideia do tempo, tivemos consciência da tradição.” (Paz, 1984, p.

25). Neste sentido, o modernismo, com sua sede frenética pela velocidade,

5 Sobre essa passagem determinista, vale citar a crítica de E. P. Thompson: “Mas isso não pode

desculpar as referências de Marx, como no seu primeiro prefácio a O capital, às ‘leis naturais da

produção capitalista (...) tendências que funcionam com necessidade férrea no sentido de

resultados inevitáveis.’ Como é possível aos ‘eruditos’ marxistas acusar então a Engels de

‘positivismo’ e exonerar Marx de toda a culpa?” THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Trad.:

Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 225 (nota).

25

conseguiu levar ao extremo a paixão moderna pela transitoriedade e mutabilidade

que o cotidiano e as máquinas da Segunda Revolução Industrial conseguiram

elaborar, coisa que o primeiro momento modernista soube expressar a partir de

uma linguagem ultra-arriscada de experimentação e ao mesmo tempo de crítica e

consciência de uma tradição a ser negada.

A modernidade baseia-se em conflito, na tensão que nasce de uma

dubiedade entre construção de uma sociedade a um ritmo nunca antes visto, tendo

como horizonte a intensa necessidade que o capitalismo demanda de suas forças

de produções incessantemente ativas, e a destruição de outra, de arcaísmos e

primitivismos que devem ser varridos ou vilipendiados à força para que aquela

sociedade imponha-se como ordem totalizadora, com a compulsória instalação e

conquista de mercados em locais ainda “não modernizados”. Essa dualidade é o

que faz da modernidade um antro de sistema, como se diria, desigual e

combinado, tanto a nível local como global. É certo então que ela se constitui a

partir de constantes oscilações, de ambiguidades, de confrontações e lutas que

expressam, segundo Marshall Berman, uma “experiência vital” porque a

modernidade une toda a humanidade, mas

trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos arroja num

redemoinho de perpétua desintegração e renovação, de luta e contradição, de

ambiguidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como

disse Marx, ‘tudo o que é sólido desmancha no ar’. (Berman, 1986, p. 15).

Essa desunidade é o que provoca rupturas e sem essas rupturas a

modernidade não existiria, posto que, como escreveu Jacques LeGoff, “o moderno

tende a se negar e destruir.” (Le Goff, 2003, p. 203). Negação da negação. É como

se a modernidade, como experiência crítica em que a sociedade ocidental põe a si

mesma à prova, não sobrevivesse a ela mesma, sendo que a necessidade de auto-

negar-se fora a justificação do discurso em que ela veio ao mundo contra outra

idade em que a humanidade estava estagnada nas lições de um tempo e de uma

sociedade rigidamente estancada. Mas esses preconceitos burgueses impunham

uma marcha em que a própria classe revolucionária — a mesma burguesia — teria

que administrar, recuando assim o próprio projeto de modernidade, pelo menos a

nível social, já que economicamente podemos dizer que a modernidade é mais

moderna do que em outros níveis, i.e., ali o processo de ruptura interna é mais

26

estrutural do que neste. Esses declives atestam como a tradição moderna, como

escreve Antoine Compagnon, “trai a si mesma e trai a verdadeira modernidade,

que se tornou o saldo dessa tradição moderna.” (Compagnon, 2010, p. 12).

Os paradoxos da modernidade podem ser interpretados tanto como a própria

condição de crítica da modernidade quanto sua força de destruição e criação. Se

fôssemos entender o quão crucial essa relação é para o próprio conceito de

civilização, poderíamos pensar como Sigmund Freud e perceber o Ocidente como

uma grande doença (tal qual a definição de Goethe para o Romantismo, o

movimento tão moderno porque anti-moderno) em que predomina o mal-estar

proveniente da iminente catástrofe da autodestruição completa, reacendendo um

complexo processo de culpabilização e repressão do instinto de morte:

Se a civilização constitui o caminho necessário de desenvolvimento, da família à

humanidade como um todo, então, em resultado do conflito inato surgido da

ambivalência, da eterna luta entre as tendências de amor e de morte, acha-se a ele

inextricavelmente ligado um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja

alturas que o indivíduo considere difíceis de tolerar. (Freud, 1974, p. 157)

Eros e Thanatos em Freud, eterno e transitório em Baudelaire6. A

modernidade admite em si o todo porque a totalidade e a reflexão7 são sua

máscara enquanto o progresso é a sua verdadeira face, embora ambos possam ser

discerníveis. E não é a toa que é neste mesmo progresso que o poeta de As flores

do mal temeu o mau sinal. Escreve-nos Baudelaire:

Há um erro muito em voga e do qual eu fujo como do inferno. Refiro-me à ideia de

progresso. Esse fanal obscuro, invenção do filosofismo atual, atestado sem garantia

da natureza ou da Divindade, essa lanterna moderna lança suas trevas sobre todos

os objetos do conhecimento; a liberdade se desfaz, o castigo desaparece. Quem

quiser ver a história com clareza deve apagar esse pérfido fanal. (Baudelaire apud

Compagnon, 2010, p. 11)

O “padrinho” da modernidade recusava aquele que vinha como motor

propulsor da própria modernidade, o progresso, porque, como bem assinalou

6 Como diz a passagem já clássica: “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a

metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.” BAUDELAIRE, Charles. Sobre a

modernidade: o pintor da vida moderna. Apres. e sel; Teixeira Coelho. Trad.:Suely Cassal. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 10. 7 “A modernidade difere do modernismo, tal como um conceito em via de formulação, na

sociedade, difere dos fenômenos sociais, tal como uma reflexão difere dos fatos (...) A primeira

tendência — certeza e arrogância — corresponde ao Modernismo; a segunda — interrogação e

reflexão —, à Modernidade.”. LEFEBVRE, Henri apud LE GOFF, Jacques. Op. cit. p. 195.

27

Walter Benjamin, para o poeta era preciso “fundar o conceito de progresso na

ideia de catástrofe.” (Benjamin, 1994, p. 174). E era justamente à iminência dessa

catástrofe que Baudelaire dedicava seu culto melancólico pela modernidade, ou

seja, ele já antecipava o “remorso” e o mal-estar que sublinhariam o futuro dessa

civilização. O entusiasmo da vida moderna não deixa de lado a acedia

involuntária e persistente de uma felicidade inalcançável que o progresso técnico

insiste falsamente em nos fazer crer. Essas discordâncias ilustram bem a

“ambivalência da modernidade baudelairiana e de toda verdadeira modernidade

que é igualmente resistência à modernidade, ou, pelo menos, à modernização.”

(Compagnon, 2010, p. 27)

Neste sentido, também não é à toa que Karl Marx constatara que o

Romantismo, o maior movimento crítico contra a modernidade e ao mesmo tempo

fruto da modernização, acompanharia o capitalismo até o seu fim caos (Löwy,

2002, p. 83). Se, segundo David Harvey, o Iluminismo fora uma resposta

filosófica ao do “eterno e imutável” da modernidade, ratificando uma ideologia do

progresso da humanidade baseada no conhecimento, na dominação da natureza e

da racionalidade científica contra o mito, a superstição e o poder absoluto, o

Romantismo conseguira denunciar o resultado de tal ideologia quando manuseada

em prol de uma sociedade industrial-capitalista tendo como resultados o

desencantamento, a quantificação e a mecanização do mundo, a dissolução dos

vínculos sociais e a abstração racionalista (Cf. Löwy & Sayre, 1995, p. 51-70).

Mas o caráter ambivalente da modernidade é tão inexorável que não podemos

deixar de considerar a lógica também burguesa dessa crítica romântica, pois “o

fato de um tão grande número de representantes do romantismo ser de nobre

estirpe não altera o caráter burguês do movimento mais do que a atitude

antifilistéia de sua política cultural.” (Hauser, 1998, p. 676). Assim o projeto do

Iluminismo e seu antípoda, o Romantismo, fazem parte de uma dialética —

negação, conservação e supressão — que domina o pensamento sobre a

modernidade8 desde o século XIX, provando que ela está fadada à modernofagia

que a torna mais moderna do que nunca.

Daí que voltamos ao caráter expressamente revolucionário da modernidade

— a ruptura sadomasoquista de si mesma. A tradição da ruptura, desde o

8 É o que afirma Dante Moreira Leite também quanto ao pensamento brasileiro.

28

romantismo, só admite a originalidade, a invenção, a novidade, ou seja, “a

modernidade é filha do tempo retilíneo: o presente não repete o passado e cada

instante é único, diferente e autossuficiente.” (Paz, 1976, p. 135-136). Embora

para Octávio Paz não se possa confundir modernidade e progresso, ele mesmo

aponta a similaridade de ambos no que diz respeito a uma visão retilínea do

tempo; neste sentido, todas as conquistas consideradas modernas também foram

apreendidas como parte de um processo contínuo de “aperfeiçoamento”, de

progressão temporal. Como aponta Reinhard Koselleck, mesmo noutra ótica,

o progresso reunia, pois, experiências e expectativas afetadas por um coeficiente de

variação temporal. Um grupo, um país, uma classe social tinham de estar à frente

dos outros, ou então procuravam alcançar os outros ou ultrapassá-los. Aqueles

dotados de uma superioridade técnica olhavam de cima para baixo o grau de

desenvolvimento dos outros povos, e quem possuísse um nível superior de

civilização julgava-se no direito de dirigir esses povos. (Koselleck, 2006, p. 317)

Sem esse coeficiente não poderíamos entender o que foi o colonialismo e o

imperialismo capitalista. Como nos explica Eric Hobsbawm:

A novidade [do imperialismo] no século XIX era que os não-europeus e suas

sociedades eram crescente e geralmente tratados como inferiores, indesejáveis,

fracos e atrasados, ou mesmo infantis.” (Hobsbawm, 1988, p. 118).

Do mesmo modo não poderíamos entender a condição moderna brasileira,

como uma ex-colônia, marcada pela ideologia da consciência e ideologia do

atraso em relação a um modelo de modernidade que parecia apenas vingar em

solo europeu ou, quando muito, norte-americano. Seria essa a consciência que

marcaria o pensamento social, cultural e econômico brasileiro, pois parecia que a

originalidade, a invenção e a novidade brasileiras perderam o horário do trem da

modernidade. Essa peculiaridade estaria presente tanto naquilo que Antonio

Candido chamou de “consciência amena de atraso”, mesmo que eufórica, quanto

na “consciência do subdesenvolvimento” do pós-Segunda Guerra. (Mello e Souza,

1979, p. 355).

Como uma espécie de desejo da negatividade, a modernidade brasileira será

então pensada em termos de falta, de insuficiência, como algo a ser construído,

mas como uma construção sempre “atrasada”, ultrapassada, que ocupa apenas

brechas dentro do processo de modernização. Sílvio Romero já apontava o fato de

29

que a modernidade aqui chegara pelas velas dos Grandes Descobrimentos, mas

seria difícil não pensar como Caio Prado Júnior que viu na Colônia apenas uma

grande empresa para servir de produtor de matérias primas para a Metrópole.

Portanto, a modernidade (colonial) brasileira seria apenas um dos processos de

acumulação primitiva de capital pela qual a burguesia europeia fundaria o

capitalismo industrial, como atesta Karl Marx, n’O Capital:

A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a

escravização e o enfurnamento da população nativa nas Minas, o comércio da

conquista e pilhagem das índias Orientais, a transformação da África em um

cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era da produção

capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais para a acumulação

primitiva. (Marx, 1984, p. 285)

Tal processo marcará aquilo que Francisco de Oliveira chama, no contexto

do subdesenvolvimento, de “produção da dependência”, em que essa

“singularidade histórica” constituía a “forma do desenvolvimento capitalista nas

ex-colônias transformadas em periferia, cuja função histórica era fornecer

elementos para a acumulação de capital no centro.” (Oliveira, 2003, p 126).

A história da modernidade brasileira então contorce com a ambivalência da

ambivalência, a modernidade da modernidade. Porque estaríamos à parte da

modernidade como modelo europeu de uma sociedade capitalista, o nosso

problema moderno seria mais angustiante dado as “singularidades históricas”: um

passado colonial, de economia agrária baseada em trabalho escravo produzindo

para o mercado externo. Como então pensar nessa modernidade líquida às custas

de um processo que marcou profundamente e ainda marca a sociedade, a

economia e a cultura do país? O caso brasileiro, como o da América Latina, tem

uma especialidade incomum: o escancaramento da aberração de um sistema de

produção baseado na desigualdade levada ao extremo, de uma modernidade falsa

porque reguladora, de uma democracia e uma justiça indiferentes porque

condizentes com a perseguição e o genocídio, a exclusão e a marginalização,

capazes de gerar termos tais como “modernização conservadora”. É que tudo o

que no “centro” do capitalismo existe de problemático, de perturbador e ao

mesmo tempo esclarecedor do que corre como ideologia, na “periferia” pode ser

posta à prova porque aqui qualquer corrente de ideias será duplamente

30

contraditória e paradoxal porque relegada e amalgamada com uma condição de

desigualdade interna e dependência externa herdadas do passado.

2.2. Moderna tradição brasileira

A busca e a continuidade se relacionam porque os modernos, assim que

negam um passado não-moderno têm como condição as tradições, o “eterno”

baudelaireano. Num e noutro encontramos a atualização de um presente na

relação entre nós que olhamos um esqueleto e eles, “imutáveis”, que a cada manhã

nos olham recém-nascidos. Esse encontro com o presente que se interpõe na

necessidade do passado fez parte do romantismo brasileiro, o que já em si nos

denuncia que o debate moderno, a disputa e busca do presente, não nos é alheio.

Pelo contrário.

A modernidade brasileira, ao buscar um sentido comum, a unidade, a

identidade, o sentimento particular e a crítica feita em nome de uma só verdade —

o Brasil na sua identidade —, variável nas perguntas mas imutável em uma

resposta, criou para si uma tradição que, pela ótica de Octávio Paz, é moderna

pelo sentimento apaixonado e pela crítica, mas que “não o é” pelo mesmo

sentimento e pela mesma crítica, ambas escancaradas ou disfarçadamente envoltas

em um único problema, um espectro que ronda a inteligência, o seu aroma

espiritual, atitudes e premissas modernas para uma finalidade brasileira, do

romantismo ao modernismo: o problema da identidade nacional brasileira.9 É o

que Abel Baptista chamou de Lei nacional:

A lei, lei nacional ou da nacionalidade literária, impõe-se com o movimento

romântico, mas sobrevive-lhe; atravessa-o, mas não se esgota nele, nem nos seus

princípios, nem no seu programa, nem na sua retórica: instala a questão nacional

como centro de gravidade da reflexão literária, torna ilegítima toda a tendência

para encarar a possibilidade de uma literatura resistir ao Brasil; por outro lado,

integra o fio de uma tradição única e contínua às sucessivas e diversas

interpretações do Brasil. Assim, não há projeto fora dessa conjunção, já o vimos,

mas a lei ameaça que é a própria literatura brasileira que desaparece se perde a

referência ao seu fundamento e à garantia de sua existência: porque deixa de se

distinguir, e só se distingue ostentando uma harmonia com a realidade brasileira, a

identidade brasileira ou o caráter nacional brasileiro, como se lhe queira chamar.

(Baptista, 2003, p. 31)

9 Não que “não seja moderno”, porque, como veremos, ele é mais que isso, mais moderno que a

modernidade.

31

De certo modo essa constatação não é tão nova assim.10

Muitos autores já

atentaram para a ideia de que a literatura brasileira só é brasileira enquanto

remeter à sua realidade, à uma presumível alma, pois sem isso não há literatura e,

por extensão, não haverá modernidade. A “identidade brasileira” é então um

espectro que ronda nossa inteligência. A tradição para a ruptura moderna tornou-

se tradição para a unidade brasileira, mas isto não nos faz menos modernos. Ser o

ou não ser moderno, tupi or not tupi, a lei Modernidade, ou lei Brasil, porque ser

brasileiro é ser moderno, mistura-se à tradição; no entanto, a modernidade está

condenada a se anular para manter-se moderna, o Brasil, em nome daquela mesma

modernidade, não. O brasileiro, como o moderno, interroga o passado, mas diante

de um jogo de espelhos em que vê a própria imagem e ouve a própria voz num só

eco. Uma mesma voz ecoa sobre todas as gerações da crítica e da literatura.

Octavio Paz vê um “mesmo princípio” derramado sobre a modernidade europeia,

a corrosiva “paixão crítica”; o caso brasileiro também vê o mesmo princípio, mas

este é por si o mesmo princípio, a tautologia é inescapável. Brasil modernidade e

Brasil mito: olhamos para trás e de certo modo nos petrificamos ou nos

extasiamos apaixonados por nós mesmos, porque na tradição e no passado estão

nossa própria voz e imagem, apenas paixão e não crítica destruidora, mas também

crítica, porque resposta para um presente, e não-paixão, não-arrebatadora ou

imoderada. Por trás de problemas distintos, a mesma busca, um país exigindo

alma, cor, sentimento; um “sentimento íntimo” de modernidade/brasilidade.

Seria de se perguntar se essa lei, se essa necessidade de realidade local

como forma única de legitimação de uma literatura nacional tem relação com o

caráter de dependência de uma ex-colônia. É uma questão sintomática quando a

literatura se encarcera num projeto de construção de identidade nacional porque

esse mesmo ideal é fruto de uma inquietação moderna e modernizante da cultura

brasileira. Como então aliar essa dicotomia de ver nascerem flores locais com

sementes alienígenas (a ideia de modernidade)? De determinar uma ideia local de

cultura com o intuito de assemelhar-se mais e mais com a cultura estrangeira, com

um modelo externo de sociedade? Ser brasileiro para ser como um europeu?

Antonio Candido já afirmara a formação da literatura brasileira como uma

“síntese de tendências universalistas e particularistas.” (Melo e Souza, 2007, p.

10

Basta ver o número de trabalhos acadêmicos que discutem a identidade nacional, dos quais até

mesmo este pode ser incluído.

32

25), mas como não pensar que o particularismo fora o grande mote das duas

maiores correntes literárias e culturais do país, o Romantismo e o Modernismo?

Como não pensar que o satanismo daquele — vide a pujança de Macário, de

Álvares de Azevedo — e o humorismo do vanguardismo foram obliterados pela

obsessão da identidade nacional, enfim, pela lei Brasil de que nos fala Abel

Baptista? O próprio Candido dá a pista, quase óbvia, quando fala do Romantismo

ao afirmar que este “recalcou as tendências satânicas tão características do meado

do século, selecionando as do sentimentalismo e do nacionalismo, mais

comunicáveis (...)” (idem, 2000, p. 143). É mais comunicável, é mais apelativo, é

mais legítimo e, acima de tudo, é mais “populista” insistir numa alma brasileira e

no nacionalismo. Como veremos, no caso do modernismo esse argumento será

válido.

No entanto, seria ridículo e injusto resumir o romantismo nestas poucas

palavras. Na verdade, ele foi e continua a ser a baliza para a lei ou a tradição

Brasil, i. e., os românticos nacionalistas conseguiram ressoar seu projeto no

passado e no futuro. Quer dizer, foi com ele que realmente passou a se constituir

uma tradição moderna brasileira ou tradição brasileira. É que primeiro eles

releram alguns dos mais importantes tratados e parnasos anteriormente escritos

sobre o país e sua singularidade histórica como meio de atingir uma literatura

específica.

Assim foi, por exemplo, com a releitura das teses de Ferdinand Denis. Em

1826, no clima da Independência, escrevia ele no seu Resumo da história literária

do Brasil:

Se os poetas dessas regiões fitarem a natureza, se se penetrarem da grandeza que

ela oferece, dentro de poucos anos serão iguais a nós, talvez nossos mestres (...)

Lamente as nações exterminadas, excite uma piedade tardia, mas favorável aos

restos das tribos indígenas; e que este povo exilado, diferente na cor e nos

costumes, não seja nunca esquecido pelos cantos do poeta; adote uma nova pátria e

cante-a ele mesmo. (Denis, 1978, p. 37-38)

Denis separa uma literatura brasileira de uma portuguesa apontando o

processo de diferenciação entre ambas, a tendência à nacionalização e a busca do

caráter nacional para a literatura brasileira em seus costumes; a riqueza natural é

antes de tudo um grande particular para essa diferenciação, devendo ela ser

33

cantada junto com o índio e suas “nações exterminadas”11

. Não é preciso muito

para ver as similaridades com o nacionalismo romântico, por isso que Antonio

Candido acreditou que o movimento do século XIX apenas retomou as posições

de Denis.

A expressão de uma literatura que punha na imaginação um caráter de

elaboração e descrição de costumes, de crenças, de maneiras de ver o mundo, que

assim realizados, dariam em si o resultado de uma literatura específica porque

retratando uma especificidade local, também foi argumento de Santiago Nunes

Ribeiro, que em 1843 escrevia no seu Da nacionalidade da literatura brasileira:

Este princípio literário e artístico é o resultado das influências, do sentimento, das

crenças, dos costumes e hábitos peculiares a um certo número de homens, que

estão em certas e determinadas relações, e que podem ser muito diferentes entre

alguns povos, embora falem a mesma língua. As condições sociais e o clima do

Novo Mundo necessariamente devem modificar as obras nele escritas nesta ou

naquela língua da velha Europa. (...) A literatura é e expressão da índole, do

caráter, da inteligência social de um povo ou de uma época. (...) Ora, se os

brasileiros têm seu caráter nacional, também devem possuir uma literatura pátria.

(Ribeiro, 1980, p. 46-48)

É mais ou menos nessa concepção de literatura nacional, como condizente

de uma leitura de um mundo particular também nacional, fazendo de uma nação

recém-independente não menos forte no sentido cultural porque ela é, comparada

à antiga metrópole, um outro mundo, com outros costumes e modos, embora com

a mesma língua, que um José de Alencar irá ditar um questionamento-lei básico

no prefácio ao Sonhos D’Ouro:

A literatura brasileira que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou

para o solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana

11

O indianismo romântico praticamente ignorou a realidade indígena contemporânea de seus

projetos e escritos, e nisso reside seu caráter mais especificamente ideológico, segundo Dante

Moreira Leite: “(...) o índio foi, no Romantismo, uma imagem do passado e, portanto, não

apresentava qualquer ameaça à ordem vigente, sobretudo à escravidão. Os escritores, políticos e

leitores identificavam-se com esse índio do passado, ao qual atribuíam virtudes e grandezas; o

índio contemporâneo que, no século XIX como agora, se arrastava na miséria e na semiescravidão

não constituía um tema literário.” LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São

Paulo: Ática, 1992, p. 172. Neste sentido, e apesar dos cacoetes economicistas, Nelson Werneck

Sodré explica a “escolha” do índio e não do negro como temática: “Oriundos de uma classe que

condicionava a posição do negro à uma inferioridade irremissível, os escritores do tempo não

podiam fazer dele o suporte natural de um movimento nativista no plano literário.” SODRÉ,

Nelson Werneck, História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p.

278. Assim, a idealização à europeia (pois Antonio Candido já escrevera que esse índio tinha

“alma” de europeu cavalheiresco) é duplamente falseada e, por isso, a modernidade brasileira é

duplamente “paradoxal”.

34

desta terra que lhe serviu de regaço; e a cada dia se enriquece ao contato de outros

povos e ao influxo da civilização? (Alencar, 1980, p. 132)

Nada mais ilustrativo da ambivalência brasileira que Antonio Candido

asseverava: cosmopolitismo-localismo. Certo? Talvez. O que exista em palavras

não conseguira ser realizado de modo tão sincrônico. O mesmo Antonio Candido

escreveu que os caracteres de uma literatura romântica foram indicados mas

“nunca seriamente investigados nem mesmo debatidos.” O que sobrou foi a mola-

mestra do apelo nacional que ainda assim, numa figura como a do romancista

cearense, tem um caráter menos prosaico como o de outros românticos, dado seu

objetivo de assumir uma “missão” e não ceder apenas a modismos. Neste sentido

é que a polêmica entre Alencar e Gonçalves de Magalhães pode ser vista como

uma disputa onde o caráter moderno, e por isso brasileiro, da literatura estava em

jogo, daí as pesadas críticas daquele contra o estilo épico e maquiado de A

Confederação dos Tamoios, em prol do romance, porque este tinha maior apelo ao

público leitor, então crescente, e mais do que isso, porque também era um gênero

essencialmente moderno. Escreveu Alencar:

A forma com que Homero cantou os gregos não serve para cantar os índios; o

verso que disse as desgraças de Troia e os combates mitológicos, não pode

exprimir as tristes endechas do Guanabara e as tradições da América. (idem, p. 98).

Cultivar outro gênero literário moderno era também uma forma de

introduzir o país na linguagem da modernidade, como se Alencar quisera ser,

neste sentido, um Cervantes brasileiro. Aqui novamente voltamos à mesma

questão. Sentimos o quanto a modernidade e as mediações da nacionalidade e da

literatura nacional são o cerne de questões que parecem estar longe da nossa

problemática. A modernidade deveria ser realizada a partir de diversos flancos.

Como escreve Abel Baptista:

Acresce, por outro lado, que essa era também a época em que a ideia de literatura,

noção moderna articulando uma dimensão estética e uma dimensão institucional e

social, acabava de se impor na cultura europeia, e sem essa condição, como se

compreende, a ideia de nacionalidade perderia a consistência indispensável para

fundamentar todo um projeto. (Baptista, 2003, p. 24)

É neste espírito que o modernismo citará o romantismo, como momento de

extrema precaução quanto à possibilidade moderna do Brasil no que tange à

35

literatura e, por extensão, à cultura nacional. E assim, as particularidades de

ambos já são bem conhecidas. Octávio Paz já assinalava que as vanguardas do

século XX “sabiam que a sua negação do romantismo era um ato romântico que

se inscrevia na tradição inaugural do romantismo: a tradição que nega a si mesma

para continuar-se, a tradição da ruptura.” (Paz, 1984, p. 133). José Aderaldo

Castelo lançara a questão de o modernismo ser na verdade um neo-romantismo. O

fato de que ambos empunharam um projeto nacional contribuiu para que

marcassem intensamente a história da cultura no país12

. Por outro lado, existiu

certo indianismo no modernismo que fora o mote principal das analogias. Mas

Antonio Candido afirmara certas diferenças:

Em nossos dias, o Neo-indianismo dos modernos de 1922 (precedido por meio

século de etnografia sistemática) iria acentuar aspectos autênticos do índio,

encarando-o, não como gentio-homem embrionário, mas como primitivo, cujo

interesse residia no que trouxesse de diferente, contraditório em relação à cultura

europeia. (Mello e Souza, 2007, p. 337).

Já os românticos praticamente transferiram uma ideia de cavalheirismo do

homem europeu para o nativo no intuito de ombreá-los, equiparando-os ao

conquistador. Embora Benedito Nunes não acredite que a segunda fase

modernista fosse um neo-indianismo, ele crê, quanto à Antropofagia, que esta

“converge porém com o romantismo no aspecto da rebeldia, do espírito refratário

à ordem.” (Nunes, 1990, p. 27). Tudo bem, mas seria difícil tratar o espírito

romântico anti-moderno, revolucionário de certo modo, e o espírito romântico

pró-moderno do caso brasileiro, angustiado por uma tradição, por um quinhão de

participação dentro do presente, da modernidade. Novamente o peso da

ambiguidade cosmopolitismo-localismo; mas já sabemos qual lado irá pesar mais.

Ainda assim, entre o romantismo e o modernismo, a melhor característica fora

dada por Mário de Andrade:

Nós tivemos no Brasil um movimento espiritual (não falo apenas escola de arte)

que foi absolutamente “necessário”, o Romantismo. (...) Me refiro ao “espírito”

romântico, ao espírito revolucionário romântico, que está na Inconfidência, no

12

“Na literatura brasileira, há dois momentos decisivos que mudaram toda a inteligência: o

Romantismo, no século XIX (1836-1870) e o ainda chamado Modernismo, no presente século

(1922-1945). Ambos representam fases culminantes de particularismo literário na dialética do

local e do cosmopolita; ambos se inspiram, não obstante, no exemplo europeu.” MELLO E

SOUZA, Antonio Candido. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 103. Os

momentos decisivos foram extremamente particularistas.

36

Basílio da Gama do “Uruguai”, nas liras de Gonzaga como nas “Cartas chilenas”

de quem os senhores quiserem. Este espírito preparou o estado revolucionário de

que resultou a independência política, e teve como padrão bem briguento a

primeira tentativa de língua brasileira. O espírito revolucionário modernista, tão

necessário como o romântico, preparou o estado revolucionário de 30 em diante, e

também teve como padrão barulhento a segunda tentativa de nacionalização da

linguagem. A similaridade é muito forte. (Andrade, 1978, p. 250)

Essa relação política é ainda mais interessante. O preparo de terreno de um

espírito romântico que, para Mário de Andrade, é anterior ao romantismo e ainda

posterior a ele, resultou no espírito de emancipação de 182213

. Incrível quando ele

tenta assimilar tal espírito puxando uma tradição preestabelecida para legitimar o

modernismo como fonte de criação socialmente ativa, o que, na ocasião, era o que

mais importava para o poeta de Paulicéia desvairada, pois a necessidade de uma

avaliação criadora e participativa do “movimento de 1922” é a razão de ser de tal

proximidade entre modernismo e romantismo, como bem poderemos ver mais

adiante. Importa saber como ele consegue tradicionalizar (o termo é dele mesmo)

toda a história literária brasileira, reportando até os poetas árcades um espírito de

independência que marcaria tanto o lado político quanto o literário. Se existiu uma

disputa quanto à ocorrência de uma literatura nacional ou nativista tendo como

balizas ou o Arcadismo, como no caso de Antonio Candido (2007), ou a literatura

colonial que “começou no primeiro século com a obra anchietiana”, como quer

Afrânio Coutinho (Coutinho, 1968, p. 170), Mário de Andrade dá o recado de que

o que importa é o espírito revolucionário que regeu o passado brasileiro e que

desembocou em duas revoluções políticas, a Independência e a Revolução de

1930.

É bem interessante pensar como essa tradição progressista, retilínea, meta-

histórica, teleológica ou, como diria Coutinho, esse “esforço plurissecular”,

“evolutivo”, que “expressou-se na literatura por intermédio de uma série de

tradições que foram sendo adaptadas ao espírito nacional” (idem, p. 179), teve um

caráter marcadamente e quase que intrinsecamente político, acompanhando, por

um lado, uma passagem da condição de colônia à de nação independente, e, por

outro, de virada institucional dentro da organização política do país, dando início

13

Escreve Mário sobre na ocasião do Centenário do Romantismo: “O verdadeiro Romantismo no

Brasil talvez se deva datar de 1500; e quanto ao chamado Romantismo de escola só veio mais

tarde em 1830.” ANDRADE, Mário. Centenário do Romantismo In Taxi e crônicas no Diário

Nacional. São Paulo: Duas Cidades, 1976, p. 195.

37

àquilo que se chamaria de “modernização conservadora”, com o governo Vargas.

Esse espírito revolucionário, de todos os modos, não passaria de uma

reformulação de acampamentos políticos das elites brasileiras, marcadas pela

injustiça social, autoritarismo e ditadura, além de perseguições em ambos os

momentos.

A modernidade em si é ditada por esse viés em que a nacionalidade e um

modelo específico de crescimento e de desenvolvimento não admitem a inclusão

da maioria da população, e tanto a literatura quanto a política, quando

ferrenhamente entrosadas num projeto de nacionalização, não conseguiram e

ainda não conseguem mostrar um caminho que não se coadune com a ideologia

das classes dominantes. Quanto a isso o Romantismo ou o Modernismo, dois

dinossauros da cultura no Brasil, não se eximem dessa responsabilidade. Como

escreve Octavio Ianni: “os prenúncios do Brasil moderno esbarram em pesadas

heranças de escravismo, autoritarismo, coronelismo, clientelismo. (...) O povo,

enquanto coletividade de cidadãos, continuava a ser uma ficção política. (Ianni,

1992, p. 33). Não queremos dizer, no entanto, que o nacionalismo fosse em si

venal, uma “ideologia” per si, mas os ditames dessa ideia de base “imaginada”14

serviu e serve antes para a cegueira de ortodoxias do que para a crítica

emancipadora, seja social ou mesmo teórica. Acontece que é preciso compor o

esquema do capitalismo colonial e imperialista para atentarmos para o

nacionalismo defensivo daqueles países de herança colonial, embora esse

nacionalismo seja também um subproduto alienígena, na medida em que escorrem

ideias também europeias. De modo que ocorre uma situação peculiar digna da

modernidade dos trópicos: o fato de que as benesses do capitalismo, sua

civilização e cultura, sejam por um lado um modelo a ser seguido e, por outro, a

constatação de que essa modernidade seja marcada aqui sob a condição do grilhão

da espoliação por nações estrangeiras, i.e., uma ambiguidade ou paradoxo duplo

novamente afeta a consciência de ver-se subjugado para entrar no “concerto das

14

Referência ao conceito de Benedict Anderson: “(...) proponho a seguinte definição de nação:

uma comunidade política imaginada — e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao

mesmo tempo, soberana.” ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Trad. Denise

Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 32. Não vamos nos ater aqui às discussões

sobre o conceito de nação a partir da visão de determinados autores, que são muitos, diga-se de

passagem. Foi preferível apontar como a nacionalidade era vista instrumentalmente a partir de

alguns autores e, depois, na mente dos modernistas; maneira mais “prática” do que a cansativa

especulação acadêmica do conceito de nação.

38

nações” desenvolvidas15

. Mais do que isso, enquanto marca da modernidade

brasileira, o nacionalismo e sua lei atravancaram em muito a criação livre que em

si mesma poderia ser porta de entrada para uma literatura brasileira e universal,

como é o caso de um Machado de Assis ou de um Guimarães Rosa, como explica

Dante Moreira Leite, pois neles se observam a superação da dicotomia particular-

universal revelando uma literatura aberta, pois suas “obras revelam, abaixo das

peculiaridades da situação brasileira, os conflitos humanos subjacentes em

qualquer literatura.” (Leite, 1992, p. 322). Como veremos, esse será também o

destino da literatura drummondiana, quando ele abandona o direcionismo

nacionalista marioandradiano em prol de uma liberdade de expressão pessoal,

social e humana.

Essa ponderação serve para que tenhamos em mente uma condição dessa

lei: ao tentar retratar uma ideia de Brasil, o dito pensamento brasileiro rendeu-se

às teorias racistas, psicologicistas, evolucionistas, segregadoras, e acima de tudo,

elitistas. Cabe pensarmos que a modernização brasileira deu-se pela “brasilização”

do Brasil, i.e., pela conferência de um pensamento que tivesse como teor as

possibilidades de efetivação de uma nação essencialmente moderna e, para isso,

entrou fundo na teorização da alma brasileira, do seu modo de se comportar, de

suas maneiras e valores, enfim, do caráter brasileiro. É aqui que as antigas teses

de um Ribeiro Nunes ou de um Ferdinand Denis e seus derivados entram, porque,

na tentativa de elucidar o modo de ser do brasileiro e assim especificar um modo

de fazer literatura nacional, essas ideias deram vazão aos estudos de caráter do

brasileiro. Escreve Afrânio Coutinho sobre os “traços” brasileiros e suas “formas

sociais de caráter”:

Esses traços é que a literatura traduz, consciente e inconscientemente, através dos

personagens, dos episódios, das cenas, dos conflitos, dos enredos, das descrições de

usos, e costumes, das reações psicológicas dos tipos, do comportamento e atitudes

dos indivíduos, das reações psicológicas. (Coutinho, 1968, p. 180).

Sob o questionamento: “como fixar a literatura brasileira sem saber como é

o caráter nacional brasileiro?”, Coutinho dá a entender que a literatura nacional

requer a conceituação de um caráter nacional. É neste momento que a lei Brasil

15

Cf. AHMAD, Aijaz. Cultura, nacionalismo e papel dos intelectuais In Linguagens do presente.

São Paulo: Boitempo, 2002.

39

pode entrar no campo mais perigoso da ideologia do nacionalismo; ela não apenas

expõe personagens e situações mas teoriza uma psicologia do brasileiro, algo que

estaria dentro de si e é quase impermeável às mudanças, portanto anti-históricas e

deterministas; daí, então, que surgirão os tipos: o brasileiro como preguiçoso,

luxurioso, sentimental, triste, saudosista, desorganizado etc.

No entanto, segundo Dante Moreira Leite, há uma diferença entre a

descrição de um hipotético caráter do brasileiro e da ideologia desse pretenso

caráter essencial. Explica ele que, “a indicação de traços parece menos

significativa que a tentativa de explicação, pois é nesta que o ideólogo se revela.”

(Leite, 1992, p. 142). É isso que separa alguns autores citados anteriormente de

um Euclides da Cunha ou de um Sílvio Romero. Enquanto estes tentam explicar

determinados caracteres nacionais do povo por eles esboçados, atentando às mais

variadas condições, desde o clima à miscigenação, aqueles que estudaremos

apenas se reportam a um caráter dado sem uma apresentação sistemática ou

coerente de uma resposta para tal ou qual traço. Porém, ainda se revelam no

campo do nacionalismo e da ideia de um caráter intransponível da gente brasileira.

Quando esse caráter é teorizado, resultando numa segunda ideologia, abrem-se as

portas entreabertas que o nacionalismo deixara. Nem sempre a “ideologia do

caráter nacional” e o “caráter nacional” provindo do nacionalismo se encontram,

pois embora esse seja praticamente uma lei, aquela é um perigo iminente que

acompanha apenas determinados momentos da nossa história16

. Veremos então

quando isso ocorre.

Entre o fim do século XIX e início do XX irá existir um pensamento de

tendência “antropológica” e social que problematizará o problema do caráter

brasileiro aliado às condições da modernização do país, formando um verdadeiro

“lençol ideológico”, se formos pegar emprestado os termos de Afrânio Coutinho.

Surge uma crítica que pensa a literatura em termos de nacionalidade; ela alia-se

então à já estabelecida literatura pedinte de realidade local, de natureza tropical e

de psicologia brasileira. Talvez o intelectual que soube melhor responder essas

questões fora Sílvio Romero, da Escola de Recife. Suas influências — dentre

16

Como explica Dante Moreira Leite: “A situação seria um pouco diferente se pretendesse estudar

o nacionalismo na vida intelectual brasileira, pois é provável que o nacionalismo — em seus vários

aspectos e em suas várias fases — constitua uma corrente capaz de ligar, de maneira coerente, uma

grande parte da vida intelectual brasileira. Dentro dessa história, as ideologias do caráter nacional

ficarão como um aspecto decisivo em determinada época, praticamente inexistente em outras.”

LEITE, Dante Moreira. Op. Cit. p. 148.

40

outros: Buckle, Molleschott, Spencer, Darwin, Haeckel, Büchner, Vogt e Huxley

— são de teóricos ou autores marcados pelo evolucionismo. Sua figura é a mais

controversa e intrigante, pelo seu jeito pessoal de debater as questões tratadas,

gerando polêmicas com grandes nomes nacionais; ele é mesmo a grande figura do

que se chamou “A geração de 1870”, ou o que José Veríssimo chamou de época

do modernismo:

O movimento de ideias que antes de acabada a primeira metade do século XIX se

começara a operar na Europa com o positivismo comtista, o transformismo

darwinista, o evolucionismo spenceriano, o intelectualismo de Taine e Renan e

quejandas correntes de pensamento, que, influindo na literatura, deviam pôr termo

ao domínio exclusivo do romantismo, só se entrou a sentir no Brasil, pelo menos,

vinte anos depois de verificada a sua influência ali. Sucessos de ordem política e

social, e ainda de ordem geral, determinaram-lhe a manifestação aqui (...) estes

diferentes sucessos produziram um salutar alvoroço, do qual evidentemente se

ressentiu o nosso pensamento e a nossa expressão literária. Às ideias, nem sempre

coerentes, às vezes mesmo desencontradas daquele movimento, fautoras também

nos acontecimentos sociais e políticos apontados, chamamos aqui de modernas;

expressamente de ‘pensamento moderno’. (Veríssimo, 1966, p. 249-250)

Romero ilustra bem o vínculo entre o localismo e o cosmopolitismo, só que

mais ou menos filtrado, daí sua originalidade. Por um lado, espera que a sociedade

brasileira atinja a europeia, tendo por base as teorias evolucionistas, integrando

assim o país à civilização ocidental; por outro, defende a cultura popular e suas

influências no folclore, tendo por base a etnografia. Como isso seria possível?

José Veríssimo já nos deu a resposta: o ecletismo (não a filosofia eclética). A

mistura de diversos teóricos, dava um sabor contraditório ao bando de ideias que

assolavam o país em meados do século17

; essa constatação causava um incômodo,

segundo Octavio Ianni:

A realidade social, econômica, política e cultural com a qual se defrontavam

intelectuais, escritores, políticos e governantes, profissionais liberais e setores

populares não se ajustava facilmente às ideias e aos conceitos, aos temas e às

explicações emprestados às pressas de sistemas de pensamento elaborados em

países da Europa. (Ianni, 1992, p. 17).

17

“Ocorre, no entanto, que no Brasil — pelo menos até a década de 1940 ou 1950 — não podemos

ser muito rigorosos ao exigir coerência ou um mínimo de organização teórica. A ausência de

universidades, ou, pelo menos, de uma tradição de estudos superiores realizados em nível

comparável ao de outros países, fez com que nossos escritores tenham sido literalmente

desorientados em matéria de teorias filosóficas, sociológicas ou psicológicas.” LEITE, Dante

Moreira. Op. Cit. p. 143.

41

Esse incômodo marca o pensamento brasileiro, principalmente nesta época

em que diversos acontecimentos punham na ordem do dia a elaboração de

respostas para problemas que tal “modernidade” não poderia mais ignorar, como a

abolição da escravatura, o desgaste da monarquia e o crescente movimento

republicano. Nem por isso se pode dizer que essas ideias estavam, de certo modo,

“fora de lugar”, ou eram “emprestadas” à toa, pois elas foram especialmente

selecionadas para pensar o país, revelando mais um teor ideológico. Flora

Süssekind nos explica:

Prefere-se Zola a Flaubert, como entre Marx, Comte e Spencer, escolhem-se os

dois últimos. Não é muito difícil perceber o que se repete nas escolhas. Não se trata

de ‘plágio’ ou ‘imitação’ indiscriminados. A preferência é sempre por qualquer

pensamento que ajude a estabelecer um conjunto de identidades. (Süssekind, 1984,

p. 53).

O incômodo previa a sutileza porque

é também apenas parcialmente certo dizer-se que eles não entenderam o pleno

sentido das ideias que colheram na Europa, pois, como eles os compreenderam,

aqueles conceitos correspondiam exatamente ao que estavam procurando.” (Grahan

apud Ianni, 1992, p. 17-18).

Dentre tantos “bandos de ideias” que surgiam no Velho Mundo, apenas

algumas seriam interessantes para pensar o Brasil, aquelas que mais se alinhavam

à ideia de uma evolução em direção à europeização. Nos diz então Hobsbawm:

O que o imperialismo trouxe às elites efetivas ou potenciais do mundo dependente

foi, portanto, essencialmente a ‘ocidentalização’. Esse processo já estava, sem

dúvida, em curso há muito tempo. Por várias décadas fora claro, para todos os

governos e elites confrontados à dependência ou à conquista, que eles tinham que

se ocidentalizar, caso contrário desapareceriam. E, de fato, as ideologias que

inspiram essas elites na era do imperialismo datavam dos anos entre a Revolução

Francesa e meados do século XIX, como quando revestiram a forma do

positivismo de August Comte, doutrina modernizadora que inspirou os governos

do Brasil, do México e do início da Revolução Turca. (Hobsbawm, 1988, p. 115)18

18

Da tara da ocidentalização nascerá um processo ambíguo de desvalorização e explicação da

“inferioridade” brasileira em termos não econômicos e estruturais do capitalismo, o que Nelson

Werneck Sodré chamará de ideologia do colonialismo: “Através da ideologia do colonialismo, a

camada culta dos povos oriundos da fase colonial estrita é ganha — preparada que está pela sua

condição de classe — para aceitar a subordinação econômica, atribuindo-a a fatores não materiais:

superioridade de raça, superioridade de clima, superioridade de situação geográfica, que

predestinam as novas metrópoles. É, em suma, a preparação do imperialismo (...)” SODRÉ,

Nelson Werneck. A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Petrópolis:

Vozes, 1984, p. 8.

42

O paradoxo dessa modernidade é tanto que, mesmo em prol de uma

literatura que deva se “encostar ao gênio, ao espírito popular nas suas

eminências”, Romero temia o poder de transformação social desse mesmo espírito

popular, como explica Antonio Candido: “Fica patente a sua ideologia de cunho

progressista e, ao mesmo tempo, o seu receio em face das mudanças bruscas e

profundas, já demonstrado quando se opôs à extinção imediata da escravidão (...)”

(Mello e Souza, 1978, p. 164). Apesar de concluir que o “povo brasileiro

representa uma fusão; é um povo mestiçado” e de pensar que a história do Brasil é

a história

da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que

predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas

ideias. Os operários deste fato inicial tem sido: português, o negro, o índio, o meio

físico e a imitação estrangeira. (Romero, 1980, p. 54)

o autor de Estudos sobre a poesia popular no Brasil afirma, categoricamente, que

“o elemento branco tende em todo o caso a predominar com a internação e o

desaparecimento progressivo do índio com a extinção do tráfico dos africanos e

com a imigração europeia” (idem, p. 121), dando razões para questionarmos como

o caráter essencialmente mestiço que define o brasileiro tende assim a se acabar

junto com o embranquecimento do país, como se o brasileiro em essência

tendesse a desaparecer para dar lugar a outro “tipo”, branco, europeizado. Seria

preciso antes nos perguntarmos como essa modernidade sobreviveria sem nenhum

caractere brasileiro, como é o caso da tara desses intelectuais ansiados pela

descoberta do modus operandi da psique nacional, para assim tentar resolver seu

“problema”. A ambiguidade dupla, a negação da negação, continua sendo uma lei

nessa modernidade. A questão principal é de que, em nome da realidade local e de

uma ideia de representação da realidade brasileira que lhe impulsionassem em

direção à modernidade, as diferenças seriam amenizadas, os conflitos das ideias

ver-se-iam irmãos de propósitos, tudo para cunhar um pensamento que coroasse

uma resposta para a diversidade e as diferenças brasileiras. Como nos escreve

Coutinho:

Destarte, herdando do romantismo a ideia da valorização da ‘cor local’, o realismo

emprestou-lhe um traço peculiar graças à doutrina positivista do ambientalismo, ao

43

mesologismo de Buckle e à filosofia determinista de Taine quanto à origem da

literatura nos fatores do meio, raça e momento, ampliando-a na teoria do localismo

regionalista, de que participou toda a geração de 1870 na busca do caráter nacional

para a literatura. (Coutinho, 1968, p. 128)

Roque Spencer de Barros acreditava que, enquanto o romantismo buscava a

peculiaridade, no típico e no insólito, a geração de 1870 pensaria o contrário, pois

ela desejava a integração do país junto à civilização ocidental e

compreender que nossas diferenças em relação com os países mais adiantados do

Ocidente não como uma ‘diferença de natureza’ mas como uma diferença de fase

histórica, entendida segundo o modelo de uma filosofia progressista. (BARROS,

1967, p. 14).

Apesar das disparidades entre as teorias cientificistas da geração de 1870 e o

Romantismo, não é difícil julgar que permaneceu a mesma preocupação quanto à

questão nacional: a necessidade de explicar o problema da possibilidade de uma

modernidade brasileira, como finalidade última, com a diferença de que aquela

geração agia sob a proteção tutelar de sistemas teóricos os mais diversos que

dariam mais legitimidade e autoridade às analises científicas contra os “doces,

enganosos e encantadores cismares” do romantismo. Como explica Lúcia Lippi

Oliveira:

Entender o Brasil, construir o Brasil, era uma meta fundamental para esses homens

que julgavam que o país deveria repetir, de forma acelerada, a experiência do

Ocidente. Neste contexto, a construção de um sentimento brasileiro tinha uma

importância fundamental, sendo a nacionalidade o critério básico de avaliação dos

produtos literários. (Oliveira, 1990, p.85)

É neste sentido que Sílvio Romero afirmará que “tudo quanto há contribuído

para a diferenciação nacional, deve ser estudado, e a medida do mérito dos

escritores é este critério novo.” (Romero, 1980, p. 54). Apesar de se identificar

como cientificista e anti-romântico, Romero

não encontra um outro critério de avaliação, a não ser aquilo mesmo que combate

(...) usa o critério popular e étnico para explicar o caráter nacional e, ao mesmo

tempo, o ‘critério positivo e evolucionista’ ao tratar das ‘relações do Brasil com a

humanidade em geral.’ (Leite, 1992, p. 185)19

.

19

Cruz Costa tem outra visão: “Não nos parece, pois, que Sílvio Romero tenha sido em filosofia

uma espécie de ‘barco sem leme nem bússola.’ (...) A bússola do filósofo é o conjunto das

condições que a própria vida histórica traça. É certo que Sílvio Romero oscilou — e oscilou

44

Com essa aparente contradição, Romero é um dos exemplos mais

interessantes de casos em que a teoria espanta-se com a realidade, obrigando-se a

rearticular novas maneiras, concepções e tentativas de hipóteses que não punham

em risco o vigor do pensamento mediante a acidez corrosiva do mundo empírico,

e é por isso que daí decorrerá uma visão de mundo por vezes até mesmo coerente

ou por outra meramente ornamentada pela autoridade científica, mas que nada

prova ao acerto de contas do real. Ele não foi o primeiro nem o último, pois em

homens que sofreram sua influência, como Euclides da Cunha ou Oliveira Viana,

e outros intelectuais de sua época,

Há sempre algum ou muito exorcismo. Trata-se de explicar as lutas sociais

[Canudos, Abolição, Imigração, República] em termos raciais. Querem descobrir

as raízes do atraso, barbárie, fetichismo, fanatismo das coletividades, multidões.

Em lugar de compreender as condições econômicas e políticas das desigualdades

sociais, buscam explicações geográficas, raciais, evolucionistas, darwinistas,

disfarçadas de antropologia científica, em geral a antropologia formulada no

âmbito do colonialismo e imperialismo da Inglaterra, França, Alemanha, Estados

Unidos e outros países. (Ianni, 1992, p. 137)

O apelo à caracterização racial para a descortinação do problema nacional

chega a paroxismos tais e inebriantes que podemos perceber tantas ambiguidades

nesse exorcismo a ponto de revelar-nos respostas por cima de outras respostas,

ideologias por cima de ideologias. Assim é que Sílvio Romero disserta em seu

livro contra Machado de Assis, por razão do anglofilismo desse e de seus vários

aspectos “alienígenas”:

(...) uma pequena elite intelectual separou-se notavelmente do grosso da população

e, ao passo que esta permanece quase inteiramente inculta, aquela (...) atirou-se a

copiar na política e nas letras (...) é este o mal de nossa habilidade ilusória e falha

de mestiços e meridionais, apaixonados, fantasistas, capazes de imitar, porém

organicamente impróprios para criar (...) (Romero, 1897, p.122)20

.

Aqui a explicação racial é mesclada pela diferenciação de classe, fonte dos

problemas díspares de visão de mundo que assolam os dois lados da nação, pois

bastante mesmo — como oscilam aqueles que são bafejados pelo salutar espírito de dúvida, todos

os que sentem a importância da inquietação que é sinal de vida. Interessado na vida prática, Sílvio

Romero não se consumiu na pesquisa de abstrações. Se assim tivesse feito, não nos teria deixado

essa grande obra que é a sua.” CRUZ COSTA, João. Contribuição à história das ideias no Brasil.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967 p. 301. 20

Cf. SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração In Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra,

2009, p. 123-127.

45

Romero entende que é a elite, tanto a política quanto a ilustrada, que tem o

problema da cópia e imitação, razão do seu interesse pelo folclore e poesia

popular. A advertência é, de certo modo, quase um lugar-comum à crítica destes

pensadores e, embora usassem como métodos e teorias elaborações estrangeiras,

pareciam eles entender que o próprio pensamento sobre a modernidade brasileira

e, consequentemente, de sua viabilidade “antropológica” ou psicológica — pois a

resposta estaria no dessecamento do caráter e da moral do seu povo — só seria

vigoroso se inspirado num ideário legítimo e confiável, sendo que isso dependeria

de cada época. A crítica que uma geração fará à sua anterior cumprirá o mesmo

ritual ilusório de lançar mãos de um “caudal de ideias do moderno” para dar nome

a um monstro de contradições que é o país, ao mesmo tempo em que repudia a

“macaqueação”, o “mimetismo”, o “copismo” nu e cru dos antecessores. É assim

que tais exorcismos, dos quais nos fala Octávio Ianni, não se esgotam na própria

ideologia do caráter racialista e psicologista, como nos mostra essa passagem de

Romero, pois seria muito tomá-los como ingênuos, ignorantes da realidade a que

tanto diziam se dedicar, e é justamente pelas disparidades, nem sempre passíveis

de aclimatação, que as brechas dessa modernidade duplamente ambígua mostra

suas brechas. Mas uma hora ou outra a cicatriz de Ulisses tem que aparecer.

Essa cicatriz, novamente infeccionando e jorrando sangue, por certa época

chamou-se Canudos. A partir dela Euclides da Cunha tem que confessar:

Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na

penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente.

Iludidos por uma civilização de empréstimo; respingando, em faina cega de

copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações,

tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências

da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver

e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da

Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos (...) (Cunha,

1966, p. 231)

Sob diferenças de classe e diferenças regionais, como explicar e, mais do

que isso, reconhecer um futuro para tal nação? Euclides da Cunha é outro

exemplar de cientista cuja teoria não se adequava à realidade que se pretendia

objeto de pesquisa pré-conceituado. É neste sentido que se podem encontrar

diversas ambiguidades no seu Os sertões, como Dante Moreira Leite procurou

demonstrar, pois ao mesmo tempo o autor esboça duas teorias incompatíveis: uma

46

delas afirma que a civilização21

esmagaria as “sub-raças sertanejas” obedecendo

às determinações evolucionistas da sobrevivência dos mais fortes22

, mas, por seu

lado, a outra afirma que o sertanejo seria a raça forte, em comparação com a

litorânea, capaz assim de constituir a futura raça brasileira. (Leite, 1992, p. 211).

Se o sertanejo é uma rocha viva, então, como mestiço fadado à extinção, poderia

ser ele o construtor de uma civilização brasileira? Se existe um declive de classe

ou de raça ou de cultura, então como pensar numa unidade brasileira capaz de

amortecer tais disparidades enormes e tão enraizadas (três séculos) na história do

país?

A verdade é que, lendo a contrapelo, tanto Euclides quanto Romero

demonstraram que a “civilização” não se fazia através da entrada compulsória na

modernidade — e Canudos mesmo demonstrara que a realidade é tão fugidia e

impermeável de teorizações abstratas e estranhas ao solo dos problemas nacionais,

díspares dos problemas modernos europeus. É interessante então compreender

como essa modernidade exigia exclusões e marginalizações em troca da inclusão

dentro de um sistema cruel de hierarquização da divisão de trabalho capitalista —

exclusões também reproduzidas a nível cultural, como vimos na introdução deste

trabalho. Os paradoxos da modernidade aqui se revelam críticos devido a esses

declives e dilemas de um país que para crescer, segundo um paradigma baseado

em desigualdades assimétricas, deve arcar com o preço de vidas humanas e de

outras organizações alternativas em nome de uma sublocação tão periférica e

marginal quanto à daquelas mesmas multidões dizimadas em Canudos. A

gradação dessa desigualdade, desde a hierarquia entre países coloniais e ex-

colônias até o abismo que separa os pobres e “rudes patrícios” de Euclides e a

“pequena elite intelectual” de Romero, faz parte assim de um sistema

estruturalmente vicioso, que exige a desigualdade e a dominação econômica como

seu motor de produção e reprodução.

21

Escrevera Euclides da Cunha em 2 de dezembro de 1888, no auge da crise pós-Abolição do

Império: “Desiluda-se o governo. A civilização é o corolário mais próximo da atividade humana

sobre o mundo; emanada imediatamente de um fato, que assume hoje, o caráter positivo de uma lei

— a evolução —, o seu curso, como está, é fatal, inexorável, não há tradição que lhe demore (...)

CUNHA, Euclides. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, v. I, p. 544. 22

Apesar da “retratação”, a sua posteridade não teve um bom uso, pois, como explica Gilberto

Freyre, “não há dúvida de que, como Nina Rodrigues, e como, em certas fases de sua vida, o

contraditório Sílvio Romero, Euclides padeceu daqueles preconceitos cientificistas contra mulatos

e cafuzos, concorrendo, talvez, para o ‘arianismo’ dos Oliveira Viana: seus sucessores imediatos

nos estudos de homens e populações brasileiras.” FREYRE In CUNHA. Op. Cit., p. 29.

47

No entanto, entre aquelas sequelas da modernidade que envolviam o “fator

humano” e a modernidade baseada num “caudal de ideias”, talvez o que mais

ficou de interesse para a inteligência brasileira em Os Sertões, antes da “denúncia

de um assassinato”, fora o grito por uma reforma da inteligência, pois, como

afirma Cruz Costa,

não é como filósofo que ele [Euclides] tem saliente lugar na história das ideias do

Brasil no século XX. É porque com ele se inicia a reação contra o sebaritismo

intelectual, contra a faina cega dos copistas dos pensadores de empréstimo.

(COSTA, 1967, p. 335)

Apesar disso, só podemos encará-lo a partir daquele “exorcismo”, embora,

no caso de Euclides, um exorcismo angustiado meio “retratação do tributo

republicano”, meio “retratação do seu determinismo geográfico e racial”, como o

quer José Guilherme Merquior23

(Merquior, 1996, p. 264).

É essa civilização “inexorável” de Euclides que, em outro sentido, Graça

Aranha irá chamar de Todo Infinito. Só que aqui ela não se apresenta como algo

determinado como o único destino a ser seguido: era a alma brasileira que deveria

se integrar no Cosmos, daí ser sua filosofia chamada de integracionista —

resultado escasso do monismo de seu mestre Tobias Barreto. Graça Aranha é

derradeiro pupilo da Escola de Recife e será o homem que tentará fazer a ligação

viável entre o século XIX e suas teorias filosófico-cientificistas e as vanguardas

do século XX; não precisaríamos de muita imaginação para saber o quanto essa

aproximação seria infrutífera. Mas o que vale em Graça Aranha aqui é a sua

leitura e visão cosmológica, metafísica e intuitiva do Brasil, cheia de filosofices e

de um discurso caricato que deixa a desejar se formos comparar com os grandes

nomes formados na Faculdade de Direito de Recife, como Sílvio Romero e Tobias

Barreto, Farias Brito e Capistrano de Abreu. A riqueza documental e empírica de

uns desses e mesmo a longevidade filosófica de outros demonstram o quanto,

naquele momento, o auge do pensamento tão cultuado por Romero como modelar

para o país já estava decadente e testemunhava seus últimos suspiros.

No mesmo ano de publicação de Os sertões, 1902, Graça publica Canaã,

espécie de romance-debate sobre os embates resultantes de um novo Brasil que se

23

As decepções e os fantasmas de tais exorcismos foram uma constante em sua vida logo após a

República. Cf SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras,

2003, p. 186-187.

48

aflorava sobre o trabalho da mão-de-obra estrangeira e das prerrogativas agrárias

no desenvolvimento do país. Nele há momentos que fariam rejubilar os olhos de

um Sílvio Romero com sua ideia de embranquecimento e de europeização, com

atesta o imigrante Lentz:

Nós renovaremos a Nação, nos espalharemos sobre ela, a cobriremos com nossos

corpos brancos e engrandeceremos para a eternidade. (...) Falando-lhe com melhor

franqueza, a civilização desta terra está na imigração de europeus, mas é preciso

que cada um de nós traga a vontade de governar e dirigir. (Aranha, 1981, p. 49).

Nesta curta passagem reside todo o paradoxo antes avaliado por nós sobre a

europeização marcada pela exploração de capitais e instituições estrangeiras24

.

Segundo Cruz Costa, a obra “espelha ainda, cremos, as contradições do

europeísmo dos letrados brasileiros, embora ali apareçam indícios de uma

tentativa de superação dessa situação.” (Costa, 1967, p. 388). Com efeito, a

questão que fica no romance é: devemos aceitar o embranquecimento, mesmo

vindo a partir da guerra e violência, como prega o personagem alemão e filho de

general, sendo que essa manobra seria o começo de uma recolonização do país?

Como aceitar a modernidade se ela, para os povos “atrasados” na medida dessa

mesma modernidade, só seria viável através da dependência e exploração? Pelo

impasse, a nacionalidade então não contribuiria para a modernidade nem a

recíproca seria a mesma.

Mas será mais tarde, com os livros A estética da vida e O espírito moderno,

que a tentativa de um pensamento filosófico moderno sobre a experiência

brasileira desembocaria numa série de contradições de um pensamento pouco

confiável e vigoroso para os seus contemporâneos. N’A estética da vida (1921)

Graça traça uma espécie de “psicologia profunda da coletividade” para tentar

explicar o estado da alma brasileira, que se encontra na fase do terror, fonte da

separação do espírito humano numa dualidade que separa o eu do mundo, e só a

partir dessa superação, apoiando-se no monismo filosófico, é que o brasileiro,

24

Manuel Bonfim, no seu A América Latina, dá uma ideia dessa relação: “Levada à prática, a

teoria do racismo científico deu o seguinte resultado: vão os ‘superiores’ aos países onde existem

esses ‘povos inferiores’, organizam-lhe a vida conforme as suas tradições — deles superiores;

instituem-se em classes dirigentes, e obrigam os inferiores a trabalhar para sustentá-los; e se estes

o não quiserem, então que os matem e eliminem de qualquer forma, a fim de ficar a terra para os

superiores (...) tal é, em síntese, a teoria das raças inferiores.” BONFIM, Manuel apud

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990

p. 117.

49

segundo Eduardo Jardim de Moraes, recuperaria o estado inicial “de inconsciência

e integração no todo que abandonamos no momento em que, moídos pelo terror

inicial, fizemo-nos consciência, diferente e distanciada do todo, tentando

interpretar a realidade.” (Moraes, 1978, p. 24). Para entender como se resolveria

tal problema, Graça dá uma hipótese: “No Brasil, o traço característico coletivo é

a imaginação.” Ele então lança mão de uma explicação: “As raízes longínquas

dessa imaginação acham-se na alma das raças diferentes, que se encontraram no

prodígio de nossa natureza tropical. Cada povo aí trouxe a sua melancolia.”

(Aranha, 1921, p. 86). Para chegar à união cósmica, Graça propõe uma ética da

estética da vida, cuidando de três trabalhos morais: “Deve vencer a ‘natureza’, que

apavora e esmaga, a ‘metafísica’, que lhe vem dessa natureza e da alma das raças

selvagens geradoras do seu espírito, a ‘inteligência’, que é a faculdade de

compreender o universo e no Brasil é estranhamente perturbada.” (idem. p.99).

Essas elaborações complicadas a que nos permitimos a digressão dão conta

do aparato filosófico, tanto quanto o “etnológico”, folclórico ou sociológico, do

qual essa geração e seus frutos incorreram para pensar a questão nacional. Não

resta dúvida que esse é também o derradeiro momento de um pensamento

deslocado de uma nova realidade, que se via indisposto, à época, num mundo

onde uma Guerra Mundial já havia espantado todos os fantasmas que o século

XIX criara, pelo menos seus fantasmas mais situados historicamente num

contexto de expansão e imperialismo capitalista. Assim é que,

apesar do interesse que poderiam ter despertado as suas curiosas fantasias sobre a

metafísica brasileira, cremos que nenhuma influência efetiva, permanente, exerceu

Graça Aranha (...) Ninguém o considerou filósofo e, pelos modos, ninguém se

preocupou muito com o seu terror cósmico, fundamento de sua metafísica...25

(COSTA, 1967, p. 391-392).

A questão nacional então chega a um momento crucial no começo do século

XX. Nos seus primeiros momentos o nacionalismo literário não se erguerá de

forma orgânica, não será prerrogativa de nenhuma “escola” ou de nenhum grupo

que tenha certo número de objetos conjunturais. É apenas com o modernismo que

25

Assim descreveu Alceu Amoroso Lima: “A ‘concepção espetacular do mundo’ seria a

justificação de todos os frívolos, de todos os cínicos, de todos os cabotinos, de todos os ‘príncipes’

da existência. Seria a dissolução da personalidade, quando a cultura e a civilização só se justificam

como concentração e a apuração dessa personalidade.” LIMA, Alceu Amoroso. Estudos literários.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 437 v.I.

50

esse nacionalismo terá tal faceta a nível grupal, como veremos. No entanto, ele

não chega a se esgotar. A problemática da modernidade brasileira ainda terá em

nomes de antropólogos, pesquisadores e cientistas uma explicação que não

hesitará lançar mãos daquelas teorias as quais já citamos. Por outro lado, no

território especificamente literário, o nacionalismo não se sistematizará. Na pós-

Proclamação da República, como explica Lúcia Lippi, “os ‘mosqueteiros-

intelectuais’[Sevcenko], tipos característicos da geração de 1870, acabaram

afastados do prestígio público pela atuação das oligarquias que passaram a

dominar a vida republicana e pela ausência de um publico leitor que os

prestigiasse26

. Outros intelectuais passaram a ‘ornamentar’ em seu lugar o

pensamento nacional.” (Oliveira, 1990, p. 87). Apenas no contexto da Primeira

Guerra veremos um Olavo Bilac percorrendo o país em nome de sua campanha

pela militarização do povo, pela obrigatoriedade do alistamento, pela educação

primária. Mais uma vez, num dos discursos de Bilac podemos encontrar aquela

brecha vista em Romero, de uma questão de classe se travestindo e se ocultando.

Diz no discurso na Faculdade de São Paulo, em 1915, intitulada “Em marcha!”:

Que é o serviço militar generalizado? É o triunfo completo da democracia; o

nivelamento das classes. A escola da ordem, da disciplina, da coesão; o laboratório

da dignidade própria e do patriotismo. É a instrução primária obrigatória; é o asseio

obrigatório, a higiene obrigatória, a regeneração muscular e física obrigatória. As

cidades estão cheias de ociosos descalços, maltrapilhos, inimigos da carta de abc e

do banho — animais brutos que de homens tem apenas a aparência e a maldade.

Para esses rebotalhos da sociedade a caverna seria a salvação. (Bilac, 1996, p. 914)

Apesar de não se considerar militarista, Bilac usa de sofismas para conceber

uma sociedade em que todo o povo seria o exército para que assim “cada

brasileiro se ufane do título de cidadão-soldado.” (idem, p. 939). Só assim ele

conceberia uma democracia que sabia não ser a realidade daquele momento; do

mesmo modo, as desigualdades de classe se dissolveriam nessa espécie de cidade-

estado espartana, onde a beleza estética e física, resultante da prática de esportes,

26

João do Rio traça um retrato dessa nova era: “Os tempos mudaram, meu caro. Há vinte anos um

sujeito para fingir de pensador começava por ter a barba por fazer e o fato cheio de nódoas. Hoje,

um tipo nessas condições seria posto fora até mesmo das confeitarias que são e sempre foram as

colmeias dos ociosos. Depois, há a concorrência, a tremenda concorrência de trabalho que proíbe

os românticos, o sentimentalismo, as noites passadas em claro e essa coisa abjeta que os imbecis

divinizam chamada boêmia, isto é, a falta de dinheiro, o saque eventual das algibeiras alheias e a

gargalhada de troça aos outros com a camisa por lavar e o estômago vazio.” RIO, João. (Paulo

Barreto) apud MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da República das Letras. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 1973, p.95.

51

que à época era uma moda, seria prerrogativa dos cidadãos, higienicamente

capazes de exercer sua cidadania em tal pólis, pois, como podemos ver, o discurso

cientificista ainda permanecia atuante, reelaborado agora nas políticas públicas de

higienização e no discurso biopolítico sobre o corpo. No entanto, para o clamor

das contradições, ou seja, da modernidade, a “democracia da força bruta”

desrespeita os desqualificados, pobres e marginalizados, como se esses fossem

obrigados a “serem iguais”, cidadãos compulsórios; com isso o autor de “Via-

Láctea” acaba revelando nesta passagem o seu teor excludente e mesmo

antidemocrático dessa contradição disfarçada de discurso de libertação nacional.

Neste sentido, Bilac, como quase todos os intelectuais vistos aqui, não consegue

forjar um pensamento ausente da marca de sua visão de mundo estrita, porque,

mesmo reconhecendo diferenças, injustiças, desigualdades, eles se entregam ao

preconceito vil e degradante, sendo que é neles que tal situação de penúria acaba

se reproduzindo ao nível ideológico que justifica aquela situação.

Ainda assim, o nacionalismo de defesa nacional de Bilac não se redimira do

velho “cancro” da modernidade brasileira, entregando-se às ideias de raça e

caráter, como fica bem exposto num soneto clássico intitulado “Música

brasileira”:

Mas sobre essa volúpia erra a tristeza

Dos desertos, das matas e do oceano:

Bárbara poracé, banzo africano,

E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, xiba e fado, cujos

Acordes são desejos e orfandades

De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,

Lasciva dor, beijo de três saudades,

Flor amorosa de três raças tristes.

(idem, p. 241)

Por esta visão de mundo, de um povo formado por “três raças tristes”,

marcado pelo pauperismo intelectual e material, irá surgir o fenômeno do

regionalismo que predominou durante esta época, principalmente em nomes como

os de Monteiro Lobato, Coelho Neto, Afonso Arinos, e, talvez o mais citado à

época, Catulo da Paixão Cearense. O regionalismo e, principalmente Lobato e seu

Jeca Tatu, será muito atacado pelos modernistas de primeira hora porque, segundo

52

Mário da Silva Brito, “o intelectual deslumbrado com a metrópole cosmopolita

não encontra justificativa para a literatura de iaiás e ioiôs, para as letras caipiras.”

(Brito, 1978, p. 201). Já Menotti Del Picchia afirmaria que

não era ele o derivante do nosso meio, senão um artifício quase cabotinamente

jacobino, destinado a dedilhar as atrofiadas cordas sentimentais de uma raça que se

transforma dia a dia, numa estirpe decidida e máscula, americanizada — ou melhor

— abrasileirada.” (Picchia apud Brito, 1978, p. 202).

Mas este que escreve fora o autor de Juca Mulato, uma obra regionalista de

aspiração sentimental e idealista, uma contra-personagem frente ao realismo

impiedoso de Jeca Tatu. É verdade então que neste momento o modernismo

ligava-se ao tecnicismo e ao urbanismo e não admitia ver a imagem da literatura

reclusa nos sertões e no homem do campo, daí que esse regionalismo não se

coadunava com o otimismo progressista desses modernistas. Por fim das contas,

admitimos que tal

Regionalismo seria, em última análise, um movimento contrário ao nacionalismo,

pois tenderia a salientar diferenças, e não semelhanças, entre brasileiros de várias

regiões. Aparentemente, só no momento em que houve maior segurança quanto à

unidade nacional seria possível acentuar aspectos regionais divergentes. (Leite,

1992, p. 203)

Sobre o regionalismo escreve Mário de Andrade em carta a Luís da Câmara

Cascudo, já em 1925:

Em tese sou contrário ao regionalismo. Acho desintegrante da ideia da nação e

sobre este ponto muito prejudicial pro Brasil já tão separado. Além disso

fatalmente o regionalismo insiste sobre as diferenciações e as curiosidades

salientando não propriamente o caráter individual psicológico duma raça porém

seus dados exóticos. Pode-se dizer que exóticos até dentro do próprio país, não

acha? (Andrade, 2010, p. 64)

Como veremos mais adiante, é justamente num momento em que o país

passa por crises institucionais e sociais que o nacionalismo baterá na porta dos

modernistas, deixando de lado o seu aspecto cosmopolita e tecnicista da primeira

fase e recuperando a linha da tradição brasileira em modernidade, da lei Brasil.

3 Da crítica imanente ao golpe de estado literário

Tendo em consideração a Lei Brasil, o modernismo — sendo visto como um

projeto maior do que o próprio modernismo, i.e., como fato literário e cultural,

além de uma tentativa de sanar todas as disparidades da condição de nação

dependente — admitia para si uma situação que não era apenas dele, mas de toda

a história cultural do Brasil. Nele podemos encarar o problema das possibilidades

de uma cultura organicamente brasileira ou da “civilização brasileira”; é nesse

sentido que o historiador, ao tratar do modernismo, deve proceder numa dialética

constante com todo o complexo da cultura nacional referindo-o, social e

historicamente, a uma “entidade tensamente moderna” ou, especificamente, a uma

tradição brasileira marcada pela dialética modernidade-brasilidade. O

desequilíbrio tectônico que o modernismo causou na literatura, na medida em que

ousou, nos seus primórdios revolucionários do primeiro momento, desvincular-se

desta tradição, comportou a maior audácia que a inteligência moderna tentou

empreender contra a cultura estabelecida, quando toda a harmonia e o bocejo de

uma literatura travestida de um sorriso amarelo da sociedade já gerava o

desconforto de testemunhar os impasses pelos quais o Brasil, ao modernizar-se

sobre as fontes de arcaísmos, já não podia disfarçar. Entretanto, num determinado

momento, os modernistas deixaram de pensar a literatura como expressão de uma

sensibilidade nova, que se entendia com a fluidez moderna, desvirgulando-se

tanto nas ruas quanto nos versos livres, apreendendo, como bem podemos ver nos

primeiros escritos dos moços, a cidade cotidiana numa linguagem que deveria

condizer com o novo ambiente. A partir de 1924, então, o movimento volta a

pensar no Brasil como uma entidade que só será moderna a partir da mediação da

nacionalidade.

Este trabalho seguirá a divisão temática empreendida por Eduardo Jardim de

Moraes ao analisar dois momentos do modernismo:

Uma primeira fase, iniciada em 1917, caracteriza-se como a da polêmica do

modernismo com o passadismo. Esta é a fase de atualização — modernização em

que se sente fortemente a absorção das conquistas das vanguardas europeias do

momento e que perdura até o ano de 24. Uma segunda fase — que nos interessa

analisar com mais vagar —, que se inicia no ano crucial de 1924, quando o

54

modernismo passa a adotar como primordial a questão da elaboração de uma

cultura nacional, e que prossegue até o ano de 1929. (Moraes, 1978, p. 49)

No entanto, seguiremos um argumento divergente com relação ao do

filósofo. Eduardo Jardim crê que a brasilidade modernista fora fruto do diálogo da

juventude modernista com a obra de Graça Aranha, principalmente no que este

escreve em A estética da vida. Cremos, ao contrário, e como vimos no primeiro

capítulo, que a brasilidade desse segundo momento fora uma manobra de

estabilidade na qual os modernistas vanguardistas se viram na condição de

manter-se hegemonicamente. Para isso eles reviveram uma tradição brasileira, i.e.,

eles se aliaram à Lei Brasil, corroborando o argumento de que essa lei/tradição se

arregimenta como pré-condição para a entrada do modernismo no sistema

literário, no cânone nacional.

O “recuo” do modernismo ao problema nacionalista incluiu o modernismo

no velho sistema brasileiro. Não apenas num sistema que tenha como processo a

culminância de uma literatura nacional acabada, como o tratou Antonio Candido,

e sim, neste caso, que tenha como condição a permeabilidade crítica capaz de

sustentar um discurso de legitimação — enfim, uma visibilidade histórica baseada

numa continuidade. Essas mãos dadas com o pensamento e a literatura já

produzidas no passado e no presente estabelece uma integração total que repõe a

crítica modernista dentro de um campo já existente, a despeito de qualquer

negação da qual fora seu fator de sobrevivência no primeiro modernismo.

Acontece então, nesta continuidade, um movimento de tradicionalização, o qual

veremos mais adiante quando tratarmos do segundo modernismo. Aqui é

importante notar que Candido pensa o seu sistema atrelado a esta continuidade.

Ele entende a tradição, junto ao seu sistema, como a:

(...) transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos,

formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos

quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem essa tradição não

há literatura, como fenômeno de civilização. (Mello e Sousa, 2007, p. 26)

Fica claro que a elaboração de um sistema, apanhando certas características

homólogas e homogêneas de cada parte, tenha como consequência a

marginalização de outras manifestações, consideradas então como “excêntricas”,

“desiguais”, “menores”, “inadequadas” a um dado teórico-metodológico, e o

55

próprio Antonio Candido entende essas manifestações literárias como “esboços”,

deformações em comparação àquela massa uniforme da formação maior, mais

importante, a da literatura brasileira27

. Neste sentido, mesmo uma história literária

que tente se afastar de um mero alistamento de escolas também recai em algumas

dificuldades porque esta lança mãos de uma seleção pré-estabelecida. Cabe

concluir, portanto, que todas as produções culturais empenharam-se num trabalho

contínuo de seleção daquilo que afirmam e do que negam. O complexo sistema

brasileiro exige exclusão. O modernismo, em seu movimento de tradicionalização,

também vai dar-se a esse trabalho. E, como vimos, quase tudo o que acontecera

culturalmente no começo do século XX acabou sendo renegado pela historiografia

posterior.

O modernismo então, no seu chamado segundo momento, aloja-se na

tradição do sistema da literatura brasileira já formada. Pensa-se que tal tradição foi

uma escolha consciente num dado momento da história brasileira, mas também

não se pode deixar de lado que a tradição que se preocupa com a necessidade de

retratar o Brasil como ele é, com sua cor local, seu ambiente, costumes e natureza,

apesar de ser um imperativo categórico na inteligência brasileira, é uma dentre as

demais tradições literárias. É certo afirmar, nesta esteira, que sem tradição não há

civilização brasileira, mas a tradição da ontologia nacional é uma questão tolerada

sempre como legítima — dentre outras tradições literárias, ela terá o maior

privilégio; pô-la em questão é ato malvisto, mal-dito, insano, alienatório, fora de

lugar, e os artistas e literatos que ousaram fugir dessa linha ainda hoje pagam com

a pecha de autores excêntricos, menores, desgarrados (Cf. Sussekind, 1984). A

tradição desse modo pode excluir o sistema, a não ser que se tenha justamente a

necessidade de adotar este num sentido, numa meta final, o que, segundo Abel

Baptista, Antonio Candido fez, ao pensá-lo como um processo formativo de uma

literatura nacional (Baptista, 2007, 41-72). É tanto que, aos tempos do

modernismo, poderíamos questionar o sentido de uma literatura de cor local se

ela, como sistema, já estava concretizada, armada sobre fortes sentimentos

nacionais. Em outras palavras: por que ocorreu uma volta ao nacionalismo no

segundo modernismo se a literatura brasileira, nacionalmente estabilizada estética

e sistematicamente, já estava formada?

27

É certo então que a própria obra do crítico paulista concorre àquela tradição, no quesito

problema e crítica e não na relação formativa.

56

Dessa linha contínua podemos dizer, então, que o modernismo foi sua

consciência-limite, e por isso sua crise. Mas foi sua culminação por dois motivos:

1) Comparado ao primeiro modernismo estetizante, o problema da cultura

brasileira no segundo modernismo foi um “recuo”. Naquela primeira fase

artistas e críticos se reuniram em torno da elaboração contínua de uma

estética que se aprouvesse livremente de todos os ganhos formais e

temáticos que os novos tempos pareciam exigir. A destruição das

fórmulas, dos artifícios moles e boçais em que a poesia dominante

envergonhadamente se encaramujava, a evacuação do que seria o belo na

obra de arte, os impulsos primitivos do inconsciente — todas as

experiências eram possíveis tendo a liberdade estética como princípio e

esse foi o maior ganho que os modernistas puderam produzir nas letras

brasileiras de todos os tempos, algo nunca mais alcançado por sua

condição histórica mesma.

2) O movimento modernista, como um todo, exigia, para a elaboração mais

concreta de suas fórmulas, que a estética em si parecia condizer, uma

abordagem da cultura que, se antes pensava na arte como uma expressão

um momento tipicamente moderno, da vida urbana, das massas, do vulgar,

depois passou a exibir um elemento formativo que condensasse essa nova

perspectiva social num âmbito mais geral possível, afinal, a partir de 1924,

eles perceberam o quanto o modernismo já era nacionalmente sintomático

— daí que sua volta ao problema brasileiro se tornava concebível. E eles o

fizeram como nenhum outro movimento havia feito em nível grupal e

sistemático, resultado principalmente do polemicismo, seu moto-contínuo,

seu veículo de propaganda.

Enquanto crítica e enquanto adequação ao sistema, o modernismo conseguiu

esvaziar qualquer nova reformulação estética, ou seja, ele manteve e superou a si

mesmo, fazendo com que qualquer tentativa literária posterior tivesse nele um

modelo, seja revolucionário, seja conservador. Até hoje sofremos dessa doença

modernista.

Assim, desde 1924, o modernismo retrilhou o caminho em direção à

experiência brasileira, na mesma medida em que ela voltara as costas contras essa

mesma experiência nacional. Ele estava de volta à tradição. Mas foi uma

tradicionalização consciente. É que os modernistas foram intelectuais que sabiam

57

bem os interesses e os predicados que sua época apontava, num momento em que

a história do país passaria por mudanças drásticas, por conturbações e

movimentos que poderiam colocar a unidade do Brasil em risco28

. Eles viram que

o momento era outro, todas as esferas da sociedade já denunciavam essa

precariedade de ânimos que a República Velha, tão débil e carrancuda, não podia

suportar mais. Com isso, podemos afirmar que não é à toa que as discussões

gestadas pelo movimento de 1922 repercutiram nos eventos que se sucederam a

1930. Em 1942, Mário de Andrade apostava nesta conexão, embora suas reflexões

neste sentido escapassem do caráter previamente autoritário do governo Vargas

mesmo antes do Estado Novo, talvez acreditando que o modernismo estivesse

desde sempre prevenido de qualquer resquício de reacionarismo, mesmo aquela

ala que lhe fora, a ele, Mário, antagônica (Andrade, 1972, p. 255).

É a partir deste sentido histórico, naquele momento dos fins da década de

1910 e começo da década de 1920, conhecido como primeiro modernismo, que

podemos formular uma assertiva: o movimento de renovação artística, enquanto

trabalho de pesquisa e reestruturação estética, pôde apreender o passado como sua

pré-história, um “de antes”, e ao mesmo tempo conseguiu codificar objetivamente

as necessidades que o tempo então presente propunha para uma nova

compreensão artística.

Neste ponto podemos fazer um paralelo ao trabalho que Peter Bürguer

empreendeu para sustentar seu livro Teoria da vanguarda. Bürguer fez uma

análise histórico-genética da condição da arte na sociedade burguesa, esclareceu

como foi possível o desenvolvimento de uma crítica que se erguesse

artisticamente contra a própria negação da arte, como o fora as vanguardas

europeias. Para isso, ele lança mão de uma concepção mais solta e maleável de

ideologia, indo de encontro às concepções de Georg Lukács e Theodor Adorno.

Quer dizer, para ele a análise crítico-ideológica pressupõe uma construção

histórica do problema. Então, para entender as vanguardas, Bürguer encontra no

jovem Marx, a partir de sua crítica das formações sociais passadas bem como de

seus subsistemas, o conceito de autocrítica do presente, formulando a par deste

28

É interessante notar que quase um século antes, em 1836, durante os conflitos do Brasil

regencial, a preocupação com a possível fragmentação do país, como acontecera com a América

Espanhola, fez Gonçalves de Magalhães, no prefácio do seus Suspiros poéticos e saudade,

lamentar o “turbilhão em que se debate nossa Pátria” MAGALHÃES, Gonçalves. Prefácio a

Suspiros poéticos e saudade In COUTINHO, Afrânio (org.) Caminhos do pensamento crítico. Rio

de Janeiro: Pallas, 1980 v.1, p. 41.

58

outro conceito, o de crítica imanente. Esta tem como característica a crítica de

uma instituição social em nome de outra formação que, no entanto, ainda se

encontra dentro da própria instituição, como por exemplo, a crítica de uma

religião em nome de outra religião. Por autocrítica do presente, Bürguer entende o

afastamento objetivo do sujeito diante de seu próprio presente para que ele possa

“superá-lo” criticamente em sua autoconsciência histórica, vendo-se como

produto de um processo. Essa será sua resposta para entender as vanguardas

históricas porque com elas, o subsistema social da arte entra no estágio da

autocrítica:

(...) com os movimentos históricos de vanguarda, o subsistema social da arte entra

no estágio da autocrítica. O dadaísmo (...) não exerce mais uma crítica às

tendências artísticas precedentes, mas à instituição arte e aos rumos tomados pelo

seu desenvolvimento na sociedade burguesa. Com o conceito de instituição arte

deverão ser designados tanto o aparelho produtor e distribuidor de arte quanto as

ideias sobre arte predominantes num certo período, e que, essencialmente,

determinam a recepção das obras. As vanguardas se voltam contra ambos, ao qual

está submetida a obra de arte, e contra o status de arte na sociedade burguesa,

descrito como autônoma. (Bürguer, 2008, p. 57-58)

Cabe notar aqui que a adesão irrestrita a tais conceitos e elaborações não é

imprescindível — dada as disparidades claras de conteúdo e de condições

específicas analisadas pelo autor, e sua noção de identificar uma historicidade nas

vanguardas, usando do termo vanguardas históricas —, portanto pontuais, revela

bem o quanto ali seu desenvolvimento tinha algumas particularidades que no

Brasil não houvera. No entanto, vamos entender aos poucos o que o primeiro

modernismo brasileiro conquistou. Ele soube relativamente reunir ambos os

aspectos da teoria da vanguarda. Apesar das disparidades, podemos dizer que:

a) A luta contra o passadismo característico das primeiras polêmicas dos

modernistas contra a arte acadêmica, principalmente o caso do esteticismo

parnasiano, caracteriza-se como crítica imanente.

b) A criação de uma nova estética criativa que se interpunha em contraste

com uma literatura “velha” e em concordância com os novos tempos

modernos foi sua resposta prática, sua autocrítica parcial.

Mais adiante explicaremos o fato de a autocrítica da vanguarda no Brasil

poder ser considerada apenas parcialmente. Por ora cabe inferir o modernismo

como um processo histórico peculiar naquilo que Bürger entende como inclusão

59

da arte na vida moderna, i.e., na práxis vital. A completa imersão do artista e de

sua arte na comunidade e no cotidiano como uma reação ao retraimento da

estética para dentro de si mesma está vinculada à vitória total da burguesia, posto

que a politização e o engajamento da arte, depois de ganho o poder, seria perigoso

para uma recente classe dominante que ainda deve manter o poder em suas mãos.

A arte pela arte então é necessária. Ela se torna completamente autônoma. Contra

essa situação as vanguardas históricas “contrapõem não uma arte consequente

dentro da sociedade estabelecida, mas justamente o princípio de superação da arte

na práxis vital.” (Bürger, 2008, p. 108). O artista deve incluir sua arte na vida a tal

ponto de destruir a própria arte como instituição autônoma, desvinculada da

realidade, falsa e politicamente perigosa. Sua autocrítica realiza-se na medida em

que compreende objetivamente a realidade da arte na esfera social, desmascarando

o caráter ideológico da arte pela arte burguesa. A superação é feita.

Essa noção participante das vanguardas, não tanto no sentido político, mas

que irmana de uma crítica que desembocaria nela, interessa-nos porque mostra

como a arte não se separa de uma totalidade maior que ela e da qual sua função

tem forte concorrência. É tanto que, como nota Antonio Candido, é possível fazer

uma história a partir dessa ligação orgânica entre produção literária e vida social.

Tendo em conta essa baliza, o crítico paulista afirma que o modernismo se

caracteriza pelo desprendimento do grupo de artistas diante da comunidade. Um

agrupamento criador “(...) não mais justaposto à comunidade, todavia, mas

formado a partir dela, oriundo da sua dinâmica, diferenciando-se de dentro para

fora — por assim dizer.” (Mello e Souza, 2000, p. 144). Ao contrário do período

anterior (1890-1910) em que “a literatura se torna social, no sentido mundano da

palavra” e no qual o entisicamento da qualidade literária, superficialmente

refinada, entregue à oratória Parnasiana e ao “falso” regionalismo, o modernismo,

em sua busca por definição e renovação literária, entrega-se às polêmicas e

discussões jornalísticas culminando na Semana de 22, que os afastavam mais e

mais da aprovação da comunidade, isolando-se. Interessa notar que esse

movimento de “blindagem” do grupo, caracterizado até na sua linguagem

ininteligível, acompanha também a relação dos modernistas com os salões

burgueses. Candido compreende isso como uma assimilação, um aparelhamento

das vozes divergente por parte da aristocracia burguesa paulista, daí a dificuldade

60

de eles fazerem uma autocrítica completa. Na medida em que, nesse momento, os

modernistas se afastam da comunidade, eles se enclausuram na classe burguesa.

Mas então, o que foi o modernismo nestes dois sentidos? Exclusão

(Candido) ou inclusão (Bürguer) na comunidade e na sua práxis vital? Podemos

afirmar que, no esforço por criar uma literatura que expressasse o moderno, os

modernistas acabaram, pelo menos em seu primeiro tempo, tendo que se excluir,

algo natural para um grupo que se pretendia diferente do que pairava no ar das

letras nacionais. Isso implica o fato de que o moderno (o que acontecia na

realidade e na comunidade) parecia não aceitar o modernismo (como literatura e

sua visão de mundo artística). Isto é, se a indústria, o automóvel, o telégrafo, o

cinema, o maquinal cotidiano etc. eram uma realidade social visível, estavam nas

ruas, então por que não aceitar uma literatura que se inspirasse e tivesse nestas

conquistas modernas seu tema e sua composição num momento em que, segundo

Oswald de Andrade, tornava-se “lógico que o estilo dos escritores acompanhe a

evolução emocional dos surtos humanos” (Andrade, 1990, p. 43) e Mário de

Andrade, do mesmo modo, entendia a nova linguagem como resultado inevitável

da época, como “consequência da eletricidade, telégrafo, cabo submarino, T. S. F.,

caminho de ferro, transatlântico, automóvel, aeroplano” (Andrade, 1980, p. 252)?

Por que a sociedade não aceitou o grupo que falava de coisas que faziam parte do

cotidiano de todos? Não deveria haver uma empatia? Neste sentido, podemos

fazer um contraponto à Flora Süssekind. É certo que já havia uma literatura

preocupada com a técnica e que fazia questão até de mimetizá-la como o faria os

primeiros modernistas. No entanto, por que estes não receberam a aprovação do

público de antemão, já que aquilo era, em certos termos, “não tão novo assim”?

Pelo que discutimos na introdução, podemos pensar que o fato de os modernistas

irem além do que os “antigos modernistas” foram acabou sendo um peso

preponderante na avaliação social daqueles, pois eles se revelaram radicais em

demasia. Mas importa nota notar que essa reclamação de uma estética em sintonia

com a “segunda natureza”, como vimos anteriormente, já vinha de alguns anos,

como podemos ver nestas palavras de João do Rio, em 1909:

Uma estética nova surge, a estética do milagre animador. A natureza é outra,

utilizada pelo homem, vista na corrida dos automóveis. (...) A paisagem com a

vegetação dos canos de usinas, as sombras fugitivas dos aeroplanos e a disparada

dos automóveis, os oceanos sulcados rapidamente, desventrados pelos submarinos,

61

os dramas que esses ambientes novos dão às cidades cortadas de aço, cachoeirando,

por cima, por baixo em borbotões, as multidões apressadas, a exibição do luxo, a

nevrose do reclamo em iluminação mágica, os negócios, o caráter, as paixões, os

costumes, em que o sentimento das distâncias desaparece, o crescente

esmagamento do inútil, a flora formidável do parasitismo e do vício, o amor, a vida

dos nervos centuplicada, obrigam o artista a sentir e ver doutro feitio, amar doutra

forma, reproduzir doutra maneira. (Rio apud Martins, 2002, p. 48)

Claro que existe um precedente histórico que faz das vanguardas históricas

uma reação a um esteticismo burguês, da mesma forma que no Brasil as

composições reivindicativas dos modernistas tinham um alcance específico em

que pese o teor histórico da República Velha e da estagnada literatura dominante e

“improdutiva” em suas fórmulas. Existe um caráter social peculiar quando os

modernistas veem-se apoiados por uma classe em plena ascensão e isso também

influi no seu deslocamento diante da sociedade, chegando a adotar uma “posição

orgulhosa, isolacionista, em relação ao meio cultural dominante, acentuando haver

uma distância entre eles e os outros.” (Brito, 1978, p. 136). Um grupo que se atira

inconsequentemente em atos de puro “heroísmo”, como diria Mário de Andrade,

com apenas um programa de demolição do que existia, sem o apoio ou mesmo o

conhecimento da maioria da população, pronto a dar a vida por uma luta — assim

o modernismo era visto. Também podemos descrever dessa forma a revolta dos

Dezoito do Forte de Copacabana, de 1922. O completo despreparo, um desejo

romântico untado com seus exageros, a incompreensão emotiva, foram essas as

marcas do que ficou conhecido como movimento tenentista. Uma descrição clara

do movimento militar:

Os tenentes, que inegavelmente lideraram os acontecimentos, não têm ainda um

projeto para a sociedade, mas agem ainda num momento de despertar da

consciência, como membros de uma instituição ofendida, que veem como a

responsável pela República e, o que é fundamental, começam de forma vaga e

imprecisa a enxergá-la como representante dos interesses da nacionalidade. Tanto

não têm ainda um projeto para a sociedade que não se propõem a formular e definir

quais seriam esses interesses. (Forjaz, 1976 p. 68)

E as palavras de Sérgio Milliet sobre 1922: “Nós fomos assim: irrefletidos e

primários. Salvou-nos o lirismo, redimiu-nos o trabalho destrutivo que então

efetuamos.” (Milliet apud Mota, 2002, p. 99). As similaridades entre os

espontaneísmo, voluntarismo e indefinição ideológica de ambos os lados é

patente. O consequente isolamento, estruturado num vanguardismo forçado,

62

também são claros nestes movimentos deslocados de qualquer participação

popular, que reclamavam para si um discurso de defesa de interesses nacionais,

seja no âmbito político ou no literário, mas que, nos seus exageros heroicos, não

propunham nada que se fundamentasse na “sociedade total”. E assim como as

revoltas tenentistas prenunciavam a quartelada que encabeçaria o movimento de

1930, Mário de Andrade, como vimos, concebia o modernismo como um

preparador das ulteriores mudanças políticas e sociais da década seguinte,

inaugurando um “estado de espírito revolucionário”. Vale a pena citar novamente:

“O espírito revolucionário modernista, tão necessário como o romântico, preparou

o estado revolucionário de 30 em diante, e também teve como padrão barulhento a

segunda tentativa de nacionalização da linguagem” (Andrade, 1972 p. 250). As

tensões sociais que convulsionavam a República Velha tinham seus similares no

movimento espiritual qualificado dos modernistas, base de uma crítica a uma

cultura falsa que mais tarde os próprios iriam encarnar. Do mesmo modo o caráter

vanguardista, elitista e idealista de ambos29

explica o distanciamento social e

comunitário que tanto Antonio Candido quanto Maria Forjaz imprimem aos

acontecimentos artísticos quanto aos políticos e sociais no caso do tenentismo. É

neste sentido que nos fala Wilson Martins:

(...) é que, não só o Modernismo como todas as revoltas militares e institucionais,

até 1932, foram revoluções burguesas, não só porque foi afinal a burguesia que

delas se beneficiou, mas, ainda, porque se originaram numa ideologia burguesa e

desejavam a consolidação dos ideais burgueses de vida. São, por consequência,

revoltas, mais do que revoluções, contudo, são revoltas que se inscrevem, sem

querer e sem saber, num processo geral revolucionário. (Martins, 2002, p. 146)

Quando Antonio Candido aponta o modernismo como uma reação contra o

caráter de classe de uma literatura em nome de outra que se fundasse no bem

comum e popular, ele não tinha em mente os diversos momentos do modernismo.

A preocupação folclorista vem apenas quando o brasileirismo se torna uma

questão primeira e não quando a necessidade da modernidade técnica, fator

crucial do primeiro modernismo, era o seu carro chefe — aquilo que Ronald de

Carvalho chamou de Modernolatria. Neste sentido, assim é que podemos

compreender o modernismo historicamente como o desenvolvimento de uma

29

Seria uma injustiça enorme se confundíssemos os eventos sociais citados com o que foram as

greves operárias da década de 1910, cujo poder popular fora incontestável. Aí incluímos apenas as

revoltas tenentistas e seus congêneres como a revolução de 1924.

63

ideologia construtivista, de onde transparece que a modernidade, naquilo que se

chama de ideologia da cultura brasileira, só é possível no Brasil se ela vier

acompanhada de uma tradição que se ergue no discurso da construção de uma

identidade nacional, de uma tradição chamada Brasil. Acontece que o

modernismo apenas foi o maior vencedor, digamos, dessa tradição, quando na

década de 1930 o seu discurso torna-se programa de governo.

Essa evolução de um grupo dentro da comunidade ultrapassa a teoria da

vanguarda de Bürguer porque, ali onde um dadaísmo ou um expressionismo viam

a dilaceração de uma comunidade e do homem, diga-se mesmo, europeia ou

germânica, em que o burguês imperialista mostrava sua verdadeira face numa

guerra de caráter mundial, aqui a expectativa era de uma dinâmica que se inserisse

no progresso que o capitalismo pré-guerra poderia dispor — ainda mais agora

diante da decadência do Velho Mundo somado ao surto industrial brasileiro

durante o conflito — e ainda a necessidade política de conjurar a experiência

republicana, de mantê-la viável perante as alianças oligárquicas. Toda essa

conjuntura necessitava de um discurso que trabalhasse a cultura brasileira num

todo orgânico, algo que somente o Modernismo conseguiu ao ser o criador de um

estado de espírito nacional, como afirma Mário de Andrade:

A transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes

impérios, com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos

transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento

da consciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da

educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e

mesmo a remodelação da Inteligência nacional. (Andrade, 1972, p. 231)

As vanguardas históricas margeavam a ruptura total dentro das estruturas

sociais e éticas burguesas. No entanto, para sobreviver, os modernistas brasileiros

necessitavam da união geral, da criação de um sentimento orgânico de

nacionalidade, daí o nacionalismo do segundo modernismo. Com tudo isso,

podemos afirmar que, diante das perspectivas encontradas naquele momento no

país, era inevitável a vitória nacional e oficial do modernismo. Seu nacionalismo

só acelerou o movimento de integração dentro dessa conjuntura, e como essa

virada parecia lógica a um grupo deslocado que quisesse ganhar terreno — e o

modernismo não teria sobrevivido caso insistisse na literatura formal e moderna

do primeiro tempo nem mesmo com suas polêmicas e exageros —, efetivando sua

64

legitimação porque a ideologia da cor local era o fator de estabilidade e

sobrevivência da literatura brasileira, o que se viu na década de 1930 pareceu ser

um resultado natural. Toda uma tradição brasileira anterior exigia a necessidade

de a literatura retratar e apreender o país, tê-lo como única fonte de inspiração,

mas somente o modernismo conseguiu erigir esses discursos desfocados,

insuficientes e mesmo individuais num projeto de governo inspirado na mesma

organicidade que os modernistas conseguiram. Não está em questão aqui afirmar

uma possível cooptação por parte do Estado Novo, apenas queremos compreender

que os modernistas, em 1924, por assim dizer, deram um golpe de estado literário

antes daquele (a nível político), quando colocou em pauta, a nível espiritual, a

lógica popular e nacional, como nenhuma outro grupo intelectual ou governo

fizeram antes. O que eles conseguiram majoritariamente no discurso e na

pesquisa, os governos, tanto estaduais como o de Vargas, fizeram na prática.

Tanto é que o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional está para o

século XX e os modernistas como o IHGB está para o XIX e os românticos.

Aquilo que Antonio Candido chamou de “ida ao povo” do movimento

modernista (Mello e Souza, 2000, p.114), naquele contexto, não prescindiria de

uma “ida ao Estado”. Novamente, não está em jogo o caráter desse Estado, o

modernismo, quando torna-se nacionalista, e mesmo antes, pretendia alcançar a

totalidade do território brasileiro, e uma política pública também nacional que

acompanhasse essa elevação era necessária. É nesta perspectiva que o

totalitarismo do Estado Novo fez um crítico como Wilson Martins, afirmar a

tendência do modernismo para uma “vocação política totalitária”:

Há, pois, a partir de 1924, uma tendência (que se torna cada vez mais vaga) para

qualquer tipo de totalitarismo, racionalizada, a principio, sob a forma do descrédito

de todo regime de governo democrático e que, por isso mesmo acaba se

resolvendo, quase indiferentemente (do ponto de vista da distribuição dos nomes),

na bifurcação direita-esquerda. (MARTINS, 2002, p. 142).

Seria injustiça histórica pensar que a tendência do movimento, nesta nova

diretriz, era a associação com o totalitarismo de Estado, mesmo porque gente

como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade mantiveram relações

conturbadas com o Estado Novo, sendo que o primeiro fora afastado de seu cargo

público devido ao golpe e o segundo resolvera demitir-se do ministério onde

65

trabalhava (Cançado, 1993, p. 208). Martins, para confirmar suas suspeitas, cita

apenas críticos do modernismo, daí suas insuficiências.

O movimento de cultura totalizante ou orgânico, como quer Mário de

Andrade, não implicaria a centralização política de um Estado para que suas

pesquisas pudessem tornar-se efetivas. Mesmo Wilson Martins não dispõe de

nenhuma citação de modernistas — pelo menos daqueles não atrelados ao que

seria o verdamarelismo — que “desmoralizassem” as ideias liberais e mesmo

quando Oswald de Andrade, sob a encarnação paródica-realista de Machado

Penumbra, escrevesse que “Poincaré, Arthur Bernardes, Lenine, Mussoline e

Kermal Pachá ensaiam diretivas inéditas no código portentoso dos povos, perante

a falência idealista de Wilson e o último estertor rubro do sindicalismo” (Andrade,

1990, p. 43), ele está constatando mudanças políticas bruscas dos novos tempos e

não comemorando-as, como faz supor Martins. Há de lembrar as reivindicações

de Mário de Andrade contra as perseguições a intelectuais na França, no caso de

Louis Aragon, ou nos Estados Unidos, no julgamento de Sacco e Vanzetti

(Andrade, 1976, p.p. 515-520); também que o mesmo Mário impunha severas

críticas à Marinetti e sua ligação com os fascistas, desde 1919, quando de sua

polêmica sobre o artigo de Oswald, e ainda o fez durante a visita do italiano ao

Brasil, em 1926, quando recusou-se a ir às suas conferencias e ainda o acusou de

ser “delegado do fascismo”. A polêmica sobre o futurismo como a escola

modernista brasileira, compõe justamente essas divergências. Graça Aranha

tentava identificá-las:

(...) Marinetti renovou a vida italiana e determinou o fascismo, sua expressão

política. O futurismo russo de Maiakovski colaborou com o comunismo e com esse

se identificou. A mesma causa, futurismo, produziu resultados opostos, fascismo e

comunismo. Em ambas as conclusões impera a lei da realidade. Na Itália o

futurismo é ocidental e por isso patriota, nacionalista, militarista e imperialista. Na

Rússia é oriental, comunista, universalista, místico, pacifista e terrorista. No Brasil

será nem fascista, nem comunista. Será coisa nossa, uma fórmula que corresponda

à nossa espiritualidade liberta de todos os terrores, e à nossa suprema realidade.

(Aranha apud Martins, 2002, p. 143)

Simplesmente não foi nada. As insistências com que Graça Aranha impunha

a associação do modernismo com o futurismo revelavam que o maranhense não

conseguia entender que, em pleno ano de 1926, quando escreveu estas palavras, o

movimento já era outro. É de se questionar se o futurismo marinettiano, que desde

66

1914 vinha se aproximando do fascismo, foi um fator impulsionador para a

tendência nacionalizante do modernismo brasileiro. Mesmo quando Mário de

Andrade critica Marinetti em termos estéticos, como o faz em seu A Escrava que

não é Isaura, não há como negar sua consciência do que estava se passando com o

poeta italiano.

Cabe notar também como o progressismo técnico da primeira fase do

modernismo brasileiro pudesse relacionar o futurismo, tanto o italiano como o

russo, a fatores de mecanização do próprio homem e, deste modo, da facilidade de

ser manipulado numa sociedade de massificação crescente. É o que se nota no

romance Velocidade, de Renato Almeida, citado pelo próprio Wilson Martins:

A velocidade maquinista torceu e retorceu tanto o problema sociopolítico que

desmoronou toda a ideologia democrática, cujos fundamentos não suportaram mais

a edificação nova (...) O fenômeno sociopolítico se alterou com o império das

máquinas. (Almeida apud Martins, 2001, p. 146).

Macunaíma seria o canto melancólico dessa condição ambígua, “sem

caráter” algum. Poderíamos então questionar se todos os fenômenos

característicos de uma sociedade capitalista crescente — como o surgimento de

um proletariado, greves gerais, conflitos sociais, migrações do campo para cidade,

urbanização desenfreada —, que aconteceram nas décadas de 1910-1920,

revelaram mais do que a arte modernista como “máquina de produzir comoções”

poderia suportar, como se, agora, o seu modernismo não conseguisse suportar a

modernidade. O otimismo progressista do modernismo, aqui, confirmaria a

afirmação de João Luiz Lafetá de que serviu apenas como ideologia burguesa

(Lafetá, 2000, p. 14). Mas não há como confirmarmos se tal consciência de que o

maquinismo poderia ter seu lado nefasto existiu realmente e fosse um dos fatores

para a virada nacionalista (também otimista, pelo menos até Macunaíma).

Portanto, o pintor da vida moderna não necessariamente torna-se o bardo da

burguesia. Seria ridículo ver grandes similaridades entre a Rússia comunista e a

Itália fascista, muito menos no caso de seus respectivos progressismos. O

“Cadillac azul” de Oswald de Andrade e a Paulicéia desvairada de Mário de

Andrade não poderiam prever nada do que seria o Estado Novo.

Um caso pontual diz respeito ao grupo mineiro reunido em torno de A

Revista. O editorial do seu segundo número, de agosto de 1925, intitulado “Para

67

os espíritos criadores”, escrito por Martins de Almeida, traz um tom seco de

denúncia política, apoiado num nacionalismo acerbo — lembramos que os

mineiros também se encontravam na fase do brasileirismo —, no seu teor mais

raso e perigoso, como as denúncias contra o cosmopolitismo e suas

“transplantações exóticas”, propondo assim uma “geografia interior”; não durou

para que tradicionalistas como Gilberto Freyre aplaudissem tal posição de

enclausuramento e rigidez política e de tradicionalismo (Marques, 2011, p. 39).

Profundamente aristocrático, Almeida escreve:

Dissemos que éramos um órgão político. Nas relações internas, a nossa relação está

definida no sentido da centralização do poder. Tanto na política como nas letras,

ameaçam-nos perigosos elementos de dissolução. Anda por ai, em explosões

isoladas, um nefasto espírito de revolta sem organização nem idealismo, que tenta

enfraquecer o nosso organismo social. (...) No momento atual, o Brasil não

comporta a socialização das massas populares. Só uma personalidade inflexível

dirigida por uma boa compreensão das nossas necessidades pode resolver o

problema máximo da nacionalidade. (Almeida, 1925, p. 12-13)

As particularidades mineiras podem explicar esse acesso de autoritarismo

nas páginas de uma revista modernista que pregava a liberdade de criação estética.

Por um lado, não há como compará-lo com o falso discurso futurista que fazia o

mesmo quanto à estética, mas que politicamente acabou aproximando-se do

fascismo. Não se encontra nas palavras de Martins de Almeida nenhuma

homenagem ao progresso da sociedade moderna e suas técnicas, pelo contrário,

existe apenas uma mistura de nacionalismo aliado a um primitivismo mal

entendido, já que não atenta às raízes populares de tal manifestação como

percebiam outros modernistas. Não há um otimismo burguês nem um pessimismo

crítico, apenas um malfadado e nostálgico discurso em prol de uma ordem que

mistura provincianismo e modernização conservadora simbolizada na planejada e

recém-fundada cidade de Belo Horizonte.

Por outro lado, a falta de um projeto e de um objetivo concretos também

foram fatores cruciais para essa perspectiva do grupo mineiro. Eles aderiram ao

nacionalismo parvo, mesmo que tenham sido praticamente guiados pela mente de

Mário de Andrade. Não conseguiram decifrar as intempéries do momento,

decidiram pelo nacionalismo sem notar as consequências políticas que já então

assolavam a República Velha, ou, se não foram tão ingênuos, acabaram ainda

assim deslocados daquelas necessidades de que falava Martins de Almeida, não

68

percebendo a conjuntura que as “explosões isoladas” representavam, até porque

nem populares elas eram. Sem nenhuma projeção política verdadeira tais palavras

ficaram no vácuo; a fragmentação dentro do grupo mineiro, indo cada um cuidar

de seus afazeres profissionais, abandonando alguns até mesmo a carreira literária,

mostra bem o despreparo e a debilidade que o grupo de A Revista tinha. Sobrou

para Carlos Drummond responder anos mais tarde os despautérios de Almeida:

“Os ‘perigosíssimos elementos de dissolução’ que nos ameaçavam ‘tanto na

política como nas letras’ revelaram-se mais saudáveis do que nefastos. Quem

cortou a evolução política e social do país, nos últimos tempos, foi precisamente o

uso e abuso de poder centralizado.” (Andrade apud Marques, 2011, p. 42)

Vendo o modernismo assim em bloco podemos compreender a significância

de sua dinâmica ao comprovar ser ele o que poderíamos chamar, como o fez

Walter Benjamin a respeito do Surrealismo, o último instante da inteligência

brasileira. É neste período que as contradições da ideologia da cultura brasileira

mais se abastecem das dissonâncias que uma inteligência que se sente deslocada

pode proporcionar se ela tenta pensar a si mesma para além de uma viabilidade

estética. Insistir no posicionamento que estabelece a livre iniciativa das

expressões imaginativas parece ser um luxo quando todo o resto da tradição

literária brasileira apontava soluções para resolver um problema que nascia junto

com o Brasil, i.e., sua modernidade particular. Não que isso fosse o pressuposto

do golpe de estado modernista, sendo que eles anteriormente entendiam a

modernidade como apenas uma linguagem necessária porque era o atual, e assim

estavam apenas seguindo o “espírito do tempo”, como afirmava Mário de

Andrade. Os motivos foram outros. Mas é essa recorrência de exprimir os ditames

da voz natural que impede-nos de, seguindo Bürguer, lançar os modernistas como

autocríticos de seu próprio presente, de pressupor um distanciamento crítico

diante da corrente da literatura brasileira, acabando por superá-la. Eles nunca

negaram cegamente as literaturas anteriores, apenas tinham consciência que

naquele momento elas eram um peso nas costas da atualidade, por isso que

insistiam em repelir suas fórmulas, taxando-as de passadista. Mas quando a práxis

vital moderna é descartada, quando deixam de ser pintores da vida moderna, o

modernismo rompe a si mesmo.

69

Entretanto, essa reviravolta não é mecânica nem cabe ser passível de uma

abordagem estanque. As diversas “fases” do modernismo dialogam-se. É neste

sentido que o movimento encerrou todas as possibilidades de problemas que a

inteligência brasileira poderia alçar. Mas foi além. Sua própria fase de pesquisa

estética, de elaboração de uma linguagem que impelisse o país numa expressão

qualitativamente moderna, dá conta de que o que aqueles moços loucos fizeram

deve ser, antes de qualquer análise, respeitada. Ali, eles, em geral, fugiram do

essencialismo e do folclorismo que toda imposição estética brasileirista pode

carregar em si, abrindo-se com suas ideias em liberdade total. Essas polaridades,

esse vaivém, essas contradições, foram superadas no modernismo, naquele sentido

hegeliano do termo, de permanência e transformação. Mas em cada momento uma

tendência prevalecia. Este novo, de nacionalismo exigente, não há dúvida que fez

recuar muito as conquistas da linguagem nova que o primeiro tempo modernista

conseguiu propor e pelas quais sofreu todas as injúrias possíveis da crítica. Já

afirmava um crítico, dissertando sobre o auge do projeto político-ideológico

modernista na década de 1930:

(...) na fase de conscientização política, de literatura participante e de combate, o

projeto ideológico colore o projeto estético imprimindo-lhe novos matizes que, se

por um lado possibilitam realizações felizes como as já citadas, por outro lado

desciam o conjunto da produção literária da linha de intensa experimentação que

vinha seguindo e acabam por destruir-lhe o sentido mais íntimo de modernidade.

(Lafetá, 2000, p. 34)

João Luís Lafetá incorpora essa mediação compreensiva de que aquilo que

ele entende como projeto estético e como projeto político do modernismo não

teve suas fronteiras rigidamente delineadas, nem tampouco se distanciavam numa

contradição aparente. Seu argumento é de que a linguagem revela sempre uma

proposição de visão de mundo, i.e., uma ideologia, pelo menos potencialmente.

Então, o modernismo de proposição estética dos anos 1920 também tinha sua

posição ideológica dentro do campo de atuação de uma transformação da

linguagem tradutora das novidades modernas. Isto é certo. Quando as primeiras

manifestações modernistas exigiam uma visão estética que não admitisse os

antolhos que os impediam de expressar as mudanças sociais ocorridas até então,

não os liberam de concorrer por uma visão de mundo possível e aberta às novas

experiências. Neste sentido, eles estabeleceram uma ideologia do novo atrelada às

70

manifestações da vida moderna. No entanto, Lafetá esquece que as ideologias não

são opacas, que elas têm seu conteúdo específico. O que predominava nas obras e

críticas modernistas a partir de 1924, se era realmente ideológica, diferia

enormemente dos tratamentos técnico-urbanicistas e modernólatras dos primeiros

tempos. Lafetá não encontra a diferença entre os supracitados tempos modernistas

ao afirmar, sobre o primeiro destes, o projeto estético, que

inserindo-se dentro de um processo de conhecimento e interpretação da realidade

nacional — característica da nossa literatura — não ficou apenas no

desmascaramento da estética passadista, mas procurou abalar toda uma visão do

país que subjazia à produção cultural anterior à sua atividade. (idem, p. 21)

A retrógrada visão do país que as outras estéticas teimavam em manter,

desviando seu olhar às novas intempéries da vida moderna de modo sistemático

ou “automático” como diria Flora Süssekind, é, de certo modo, um dado real,

como vimos. Expressar a vida cotidiana, a língua vulgar, coloquial, rejeitar os

desmandos sintáticos e métricos, acompanhar o que há de novo e não isolar-se

num tempo que não existe mais — tudo isso os modernistas conseguiram elevar

ao nível estético nos seus primeiros anos. Mas é difícil concordar que já neste

tempo existia uma caracterização ideológica a qual Lafetá irá aludir como a

“consciência do país, desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter

de classe de suas atitudes e produções.” (idem, p. 21). Essa ideologia já é outra

não a mesma que se encontra na “estética do novo” da primeira época. Os

prenúncios da ênfase do projeto político que Lafetá incorpora no modernismo de

1930 acompanham mesmo todo o seu desenvolvimento. Podemos encontrar, por

exemplo, Oswald de Andrade, em pleno ano de 1915, a defender uma arte plástica

nacional (Andrade, 1992, p. 141), mas essa política é praticamente superficial

compara com o que foi promulgado e propagado pelo modernismo técnico de

primeira fase, i.e., o nacionalismo aí não se desenvolveu de modo programático-

estético como será a partir de 1924, nem mesmo como o ideológico-político em

1930.

Lafetá, no entanto, tenta não esgotar o debate sobre o modernismo apenas

na sua dicotomia. Sabe que existe uma dialética entre os projetos de cada época.

Ele só não conseguiu discernir, assim como Antonio Candido, os meneios que a

década de 1920 imprimiu dentro do movimento. A pesquisa estética praticamente

71

morre depois da publicação de A escrava que não é Isaura e de Memórias

sentimentais de João Miramar30

. Desde então, o impulso por uma temática

específica pinta de verde e amarelo as obras dos nossos modernistas. É certo,

entretanto, que a euforia aumenta, talvez mais do que antes, porque agora, no

momento nacionalista, eles se sentem num porto seguro, porque era um rumo

tomado, um objetivo deliberadamente escolhido e firmado, diante do qual as

portas do passado já estavam abertas. Então a convicção de que tínhamos uma

saída porque o Velho Mundo e sua guerra haviam demonstrado sua decadência e a

América simbolizava o novo em todo o seu esplendor, tornava-se quase óbvia:

tratava-se de afirmar que, diferentemente da Europa, nós tínhamos nosso caráter

renovador, em plena ascensão porque nos criamos da matéria lírico-civilizatória

que empreenderia uma nova era em cuja participação concorreríamos com obras

dignamente universais. Como escreve Mário de Andrade em carta a Sérgio

Milliet: “Agora livres, pelo exemplo dos europeus, vamos seguir o nosso caminho

que é todo diverso do da Europa desinteressante.” (Andrade, 1985, p. 300).

Portanto, a década de 1930 desarma as tentativas de um projeto que encarasse o

Brasil na via do progressismo anterior, desligado que era da conjuntura nacional.

Nesta perspectiva, podemos então entender o modernismo nestas três dimensões,

no que tange à sua ideologia:

1) Ideologia do novo. De 1917 até 1924. (Modernidade)

2) Ideologia cultural-nacionalista. De 1924 até 1930. (Nação)

3) Ideologia sociopolítica. Década de 1930. (Estado)

O movimento é claramente de ascensão naquilo que chamamos, corrigindo

Antonio Candido, de evolução dentro da comunidade. Durante a fase de literatura

moderna em que a estética do novo é o imperativo e a renovação expressional tem

30

Serafim Ponte Grande, publicado em 1933, fora fruto de longos anos de elaboração entre 1925 e

1929. Segundo Haroldo de Campos, ele é mais revolucionário do que Miramar, pois o cubismo

daquele é aplicado na “própria estrutura geral da obra, na macroestrutura portanto.”, um “grande

livro de fragmentos de livro” CAMPOS, Haroldo. Serafim: um grande não livro. In ANDRADE,

Oswald. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo, 2007, p. 17 e 20. Serafim é o que podemos

chamar de grande exceção que confirma a regra do nacionalismo do segundo modernismo na

medida em que seu lançamento fora postergado de certo modo pelo clima de brasileirismo do qual

dissociava; se fosse lançado ainda nos anos 1920, seria uma obra-ilha cercada de nacionalismo por

todos os lados, daí vir a lume apenas na década de 1930, num outro momento do modernismo.

Ainda assim a obra nascera “abortada” porque fora fruto de um período em que Oswald digladiava

em outra trincheira, o que explica o fato de o autor listá-la como “obra renegada” dentro do mesmo

livro. Por outro lado, Serafim ainda pode ser visto como um último golpe do modernismo dentro

do modernismo porque, se nascera numa época de literatura social e “neo-naturalista”, ela pode ser

vista como mais revolucionária ainda, dado seu radicalismo formal se comparado ao que vinha

acontecendo na nova fase modernista. Negações de negações à brasileira.

72

seu caráter de urgência, os modernistas conseguiram dar-se por reconhecidos,

mediante as polêmicas e atuações nos jornais patrocinados pela burguesia rural

que os apoiavam em seus salões. Eles então estavam dissociados do resto da

comunidade, fechados em si por meios estratégicos, praticamente lutando contra o

resto da sociedade que não aceitava as inovações ininteligíveis. A modernidade

era seu fundamento, as ruas, o cotidiano, a máquina, a velocidade, o vulgar, o

inconsciente explosivo; a literatura se construía baseada nos mesmo meios

tecnológicos, daí a eliminação de pontuações, o simultaneísmo, o verso livre, a

montagem, a narrativa não linear, o fluxo da consciência. O período é dominado

pela pesquisa estética e formal, pois, como atesta Sérgio Milliet, “é dessa

comunhão do poeta com a vida [práxis vital, diria Bürger], que provém a

multiplicidade e a simultaneidade da inspiração moderna.” (Milliet, 1972, p. 241).

Não existe nenhuma preocupação temática, a liberdade de temas é a regra. Apenas

combate-se o passadismo, os mestres do passado, o academismo, a retórica

bacharelesca, a seriedade esnobe. A literatura existe para a literatura no sentido de

que ela deve compor a vida moderna, identificar-se física e moralmente com ela.

Críticos do modernismo então atentaram ao possível formalismo do movimento. É

o que afirma Jorge Amado:

(...) a causa fundamental das contradições do modernismo: este era um movimento

brutalmente inconformista na forma e que era inteiramente conformista no

conteúdo. Digo ‘quase’ devido à ‘antropofagia’, pequena ala dentro do enorme

movimento, ala que fazia poesia e uma prosa que não se preocupava apenas com

quebrar rimas e abandonar vírgulas, que renovava também ideias. Dessa

contradição, inconformismo na forma, conservadorismo no conteúdo, vieram todas

as limitações do modernismo; daí veio mesmo a castração do poder criador dos

seus artistas. (Amado apud Martins, 2002, p. 147)

Seria uma crítica pobre afirmar que o modernismo foi um novo esteticismo.

O que mais o diferia de outras “escolas” era justamente o caráter de pesquisa

estética, a renovação constante, a busca por novos meios de expressão e formas

que impregnassem as dinâmicas da matéria moderna da vida. Seria esquecer

justamente o fator liberdade deste grupo, i.e., a completa abertura para as

experiências promovedoras do espírito novo. Ao contrário do esteticismo

parnasiano, por exemplo, que ficou preso nas mesmas formas, cantando os

mesmos temas, acabando por se enferrujar nas dissonâncias de um ornamentismo

frio, uma espécie de roupagem que vestia a moda dos poetas improdutivos, o

73

modernismo dessa época não se estagnaria na “conformidade de expressões, essa

oficialização de técnica”, como o pensou Plínio Salgado (Salgado, 1978, p. 286).

Seria também negar aquela que foi uma das três conquistas do modernismo,

segundo Mário de Andrade: direito permanente de pesquisa estética. (Andrade,

1972, p. 249)31

. É verdade que essa “permanência” é questionável, mas a

discutiremos mais tarde. O fato é que neste primeiro momento ela existiu.

A literatura-nação, ou o segundo tempo modernista, é a fase mais acirrada

do movimento, quando ele se fragmenta em direção à politização intensa. A

estética da ruptura formal expressiva alocada nos conteúdos da sociedade

moderna cede espaço à velha tradição brasileira de pensar a literatura como

provedora e promovedora de uma cultura nacional ainda por construir, que se

encontra ainda limitada e frágil, diante dos novos desafios que uma sociedade

moderna colocava em xeque. O mergulho na fonte brasileira, nas manifestações

populares, no folclore, na natureza nua e em contato com a civilização,

acompanhava-se de uma postura crítica em relação ao primeiro modernismo, cujo

cosmopolitismo e a pesquisa estética impregnavam uma ideologia da novidade,

progressista em suas formas, mas que para eles parecia vazia de sentido. Como

notamos, podemos retratar essa “volta à tradição nacional” como uma forma de

fuga quando os modernistas percebem a outra face da modernidade, agora

conteudisticamente, com suas tensões sociais e políticas, quando o país vê-se nas

conturbações que realmente o colocavam dentro do século XX; percebia-se que a

modernidade brasileira era apenas exterior, ainda não estava formada, digamos,

espiritualmente. As conquistas materiais e o avanço econômico do Brasil na

década de 1910 não acompanharam os avanços na política, ainda marcadamente

situada nas expressões rurais de clientelismo, ligando todo o território nacional

através da política dos governadores.

Como resultado dessa “ida ao povo”, pela primeira vez no Brasil a

intelectualidade vê nas manifestações e produções populares, na vida e no dia-a-

dia das massas que enchem o interior e as cidades do país, não mais um motivo de

degeneração, de inferioridade racial e cultural, nem mesmo o constrangimento que

31

Segundo Mário de Andrade: “O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista

impôs, é, ao meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa

estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência

criadora nacional.” ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins;

Brasília: INL,1972. p. 242.

74

se resolvia aqui-acolá com idealizações tacanhas como as do regionalismo de um

Catulo da Paixão ou de um Cornélio Pires, mas sim uma valorização dessa cultura

de origem primitiva, tanto ameríndia como africana. Segundo Antonio Candido, a

libertação desses recalques históricos (Mello e Souza, 2000, p. 110) foi a

conquista essencial do modernismo, pois o que antes era considerado nossas

deficiências agora são reinterpretadas como superioridades. Mais que isso, tal

inclinação parecia muito mais natural a um povo em que “as culturas primitivas se

misturam à vida cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado

recente” (idem, p. 111), tanto que o primitivismo dos cubistas ou dos dadaístas

pareciam artificiais, tendo que importar caracteres que para os brasileiros estavam

nas próprias fundações da nossa história.

A nação, nos termos de Sérgio Milliet, passou a ser uma “obsessão”. Ela era

o meio mais eficaz de substancializar a modernidade que aqui parecia oca, frágil e

ainda exótica, posto sua mera exterioridade. A máquina, a velocidade, a indústria

não têm “nacionalidade” e não precisam de um adjetivo, de uma alma ou

identidade pois elas têm pretensão de universalidade, como a burguesia, mas,

assim como essa classe, precisa de um território para fazerem seu quintal natural

de comércio, os modernistas tentaram nacionalizar a modernidade, ainda que não

na máquina fria e insensível, mas na estrutura viva e pulsante do povo e da

cultura. A literatura então concorria para essa obra comum, julgada na sua mais

pura origem nacional, nas cores e nas pessoas. Se a modernidade reservava um

canto para que cada nação desse seu cadinho de riqueza cultural, tornando-se esta

universal, então o particularismo seria o imperativo básico.

Mas esse movimento de brasileirismo acompanhava um fenômeno social e

político que estava em plena articulação. As convulsões sociais da década de 1920

não poderiam ser ignoradas. O risco de fragmentação política, cuja iminência

parecia certa devido às disputas entre as oligarquias e dentro delas mesmas, sendo

que as alianças já não pareciam resolver o problema, e ainda as mobilizações dos

campos civis e militares pressionando por mudanças efetivas — esse contexto

necessitava de um discurso e, mais que isso, de um movimento de caráter

nacional, que reiterasse a organicidade coletiva e a unidade política e cultural do

país. O modernismo, por fim das contas, acabou vindo atender essa demanda: a

literatura-nação é então inaugurada. Mais adiante tentaremos verificar tais

75

proposições aliadas a outros fatores internos dentro dos grupos modernistas que

foram então se formando.

O modernismo da década de 1930, por fim, foi o ponto alto da alavancada

em direção a oficialização das propostas nacional-populistas dos modernistas,

quando se configura e se estabelece sua tendência de “ida ao Estado”. Essa fase

não está dentro de nosso corte temporal e problemático. No entanto, cabe algumas

palavras gerais, como é a proposta dessa parte do trabalho porque, quando se diz

que o modernismo desenvolveu os trabalhos de um Sílvio Romero, de um

Euclides da Cunha ou de uma Nina Rodrigues (Mello e Souza, 2000, p. 113), e

que, neste sentido, foi a década de 1930 que teve sua importância maior, devemos

enfrentar o fato de que realmente eles estavam reavivando uma matéria

identificada a um pensamento interpretativo das condições brasileiras de

implementação da modernidade.

Não dá para entender a relação entre modernistas e Estado sem ocupar-se de

suas posições políticas. Parecia inevitável que o debate nacionalista desembocasse

em nacionalismo político, acompanhado das intempéries sociais que a década de

1930 faria ressoar em todo o mundo. Essa tendência estava tão arraigada nas

necessidades do tempo que mesmo os nacionalismos anteriores não se

impregnaram do teor extremista das facções então em formação. Nem a Liga

Nacionalista ou os discursos militaristas de Olavo Bilac propondo o “tempo de

protestar e reagir contra esse fermento de anarquia e essa tendência para o

desmembramento” (Bilac, 1996, p. 946) na década de 1910 infligiram nas mentes

dos intelectuais mais armados de retórica a disposição de um engajamento que

fosse além da literatura ou da participação isolada. Abguar de Bastos tenta

explicar a guinada modernista afirmando que

(...) o que não se evita é que o movimento literário iniciado em 22 se transformasse

em movimento político (...) Depois de 24 os rapazes e velhos do modernismo

entraram a se dividir. Porque uma coisa era o ‘nacionalismo’, o todo ‘nacional’, e

outra era a ‘brasilidade’, a síntese ‘brasileira’. (Bastos apud Martins, 2002, p. 141).

No entanto, as divisões que desde 1924 fragmentavam o movimento ainda

não tinham um caráter de partidarismo político como o deve acontecer em meados

da década. Os debates pautavam-se pela estética mais eficazmente brasileira,

aquele que poderia determinar exatamente o espírito e a cultura nacional, seja pelo

76

integracionismo de Graça Aranha, seja pela cultura não-douta de Oswald de

Andrade, seja pela pesquisa analítica de Mário de Andrade. O “Manifesto da

poesia pau-brasil”, por exemplo, não insinuava uma dinamização que implicasse a

sua leitura como um manifesto partidário, de disputa institucional ou mesmo uma

doutrina política32

. Se já existia certa empatia com o correligionarismo partidário,

este não entrava no palco da literatura, nem mesmo se tornava um tema central,

misturando programa partidário e criação imaginativa. É neste sentido que

podemos ver Mário de Andrade e Rubens Borba Alves de Morais assinando, em

1924, a fundação de uma sociedade secreta de ação política que será o núcleo do

ulterior Partido Democrático, incluindo agora neste nomes como os de Luís

Aranha, Prudente de Moraes Neto, Paulo Duarte, Sério Milliet etc. (Miceli, 2001,

p. 251).

A consciência de que o nacionalismo literário era incipiente diante de todo o

complexo cultural que eles mesmos se defrontaram foi crescendo aos poucos. Isso

faz crer o quanto o modernismo, mesmo quando se esfacelava em diversas

“visões”, ainda se enrolava em suas próprias desconexões com o Brasil de que

tanto falavam. A politização, neste sentido, foi outra tomada de perspectiva diante

do atraso em sua forma de ler o país e suas conjunturas. Para algumas mentes,

esse desfalque foi tratado de modo ambíguo fazendo com que Mário de Andrade,

em entrevista no ano de 1944, se confessasse: “Sempre fui contra a arte

desinteressada. Para mim, a arte tem de servir.” (Andrade, 1983, p. 104), sendo

que dois anos antes lamentara o seu absenteísmo diante das necessidades do

momento. Mas em outra entrevista, Mário de Andrade dá o tom dos novos tempos

ao tencionar até mesmo retrair as conquistas estéticas do modernismo em prol de

um motivo maior, o alcance das massas:

(...) preocupado em participar mais diretamente dos problemas políticos do nosso

tempo, não hesitando mesmo em reconhecer que o meu conceito de arte interessada

e a minha atitude artística sempre dirigida por um utilitarismo qualquer, me

propunham uma poesia de combate e uma arte de circunstância, o verso medido e a

própria rima se impuseram à minha poética por serem processos dinâmicos de

maior alcance social. (Andrade apud Martins, 2002, p. 136)

32

Mesmo que Paulo Prado visse no manifesto uma força disciplinadora. PRADO, Paulo. Prefácio

In ANDRADE, Oswald. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias completas). São Paulo:

Círculo do Livro, s/d, p. 61.

77

A incoerência e as contradições de Mário de Andrade provam o quão

angustiante fora para ele manter-se distante e independente do resto das

tendências modernistas que surgiram no momento, vendo que, mesmo não

aceitando de início os desvios à esquerda e à direita de seus colegas, era patente

uma tomada de posição se ele não quisesse correr o risco mesmo de atrasar-se

perante as vitórias do próprio modernismo, já que o mesmo afirmara em 1942 que

o movimento estético precedeu o político de 1930. Apesar disso ele não conseguiu

realizar tal linguagem solta, limpa, “de maior alcance social”, pois suas produções

da década de 1930, mesmo as que eram politicamente interessadas, continham

uma linguagem hermética, ainda difícil, e de “tensões profundas,” como são os

casos de A costela do grão cão, Livro azul e O carro da miséria. (Lafetá, 2000, p.

205).

Segundo Wilson Martins, pode-se datar de 1926 (com o aparecimento do

grupo Verde Amarelo) o começo das disposições políticas dentro do modernismo,

puxando para a direita Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e

Cândido Mota Filho, enquanto que Oswald de Andrade declina à esquerda como

Jorge Amado mais tarde o fará. (Martins, 2002, 139). Mas o fato é que no começo

as rupturas não tinham por medida a dicotomia direita-esquerda. Segundo Sérgio

Miceli as divergências estéticas entre Oswald de Andrade e Mário de Andrade e

Paulo Prado, por exemplo, explicam-se por razões políticas, posto que o primeiro

estava de acordo o grupo dominante de São Paulo, reunido no Partido

Republicano Paulista, do qual ele seria um preposto (como diria Antonio

Gramsci) dentro do órgão oficial do partido, o jornal Correio Paulistano. É

interessante se ater nestas questões.

Em seu clássico livro Intelectuais e classes dirigentes no Brasil, Sérgio

Miceli faz uma análise biográfica, familiar e econômica dos artistas e intelectuais

que tiveram relações diretas com o Estado varguista. Seguindo a linha de Pierre

Bourdieu, Miceli concebe as produções do campo simbólico com uma implicação

das condições materiais de sua existência, ou melhor, de quem o produz. Neste

sentido, ele avalia o perfil econômico das elites brasileiras, mais especificamente

da decadência da aristocracia do antigo regime republicano pré-golpe; situa como

se dá a absorção e inclusão dos filhos destas famílias no bojo do aparelho estatal,

vendo este processo como uma forma de sobrevivência em face da modernização

das estruturas econômicas e políticas. Este fenômeno é acompanhado da formação

78

de um mercado cultural (típica da capitalização da economia), que abre novas

fileiras não de ascensão, mas de visibilidade social de uma classe com então parco

prestígio. Assim, as transformações típicas da modernização do Estado e da

economia acabaram formando um campo de absorção de uma elite em vias de

extinção, aquela arcaica e clientelista — o Estado, nos termos de Miceli,

“cooptava” daquela aristocracia falida apenas o que mais poderia lhe servir como

quadros, os intelectuais. Duas mãos aí se encontram: a da decadência econômica

da velha elite e a do Estado patrimonialista varguista, já que neste, pela primeira

vez, a cultura era tratada como um “negócio oficial”. Já vimos que aqui não

importa a característica do Estado em questão, pois acreditamos, com Antonio

Candido, que o serviço público não significa necessariamente adesão à ordem

estabelecida (Mello e Souza, 2001, p. 196), mas importa evidenciar algumas

questões propostas.

Cabe notar as injunções que Miceli faz ao diferenciar os “primos pobres”, as

oligarquias decaídas, e os “homens sem profissão”, quer dizer, as famílias que

detinham o poder dominante havia muito tempo. Relacionados aos grupos,

podemos encontrar, dentre os primeiros, Mário de Andrade, Paulo Duarte,

Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Fernando de Azevedo; no grupo dos

abastados sem profissão: Oswald de Andrade, Cândido Mota Filho, Guilherme de

Almeida, Alcântara Machado. O sociólogo afirma então que as disputas e cisões

dentro do movimento modernista devem-se às razões políticas, posto que estes

últimos estavam vinculados ao perrepismo e admitiam a interferência do

nacionalismo e do programa partidário na esfera de suas produções estéticas,

enquanto que o grupo dos “democráticos”, i.e., majoritariamente os intelectuais

“primos pobres”, não acomodavam a tomada de posição política em suas criações:

Enquanto os escritores vinculados ao perrepismo buscaram colocar suas obras a

serviço de uma ideologia ‘nacionalista’ da qual poderiam utilizar os grupos

dirigentes (...), o grupo de intelectuais ‘democráticos’ sob liderança de Mário de

Andrade se empenhou em não deixar que suas tomadas de posição no terreno

político-partidário pudessem comprometer o conteúdo de sua produção literária e

estética. (Miceli, 2001, p. 103).

Assim, para Miceli, vê-se que as origens familiares e a necessidade de

manutenção econômica resvalaram suas querelas e implicâncias políticas dentro

do movimento modernista.

79

Porém, é difícil compreender que, para um “membro da classe dominante”,

Oswald de Andrade tenha começado a propagar a ideologia nacionalista tão tarde,

ou seja, em 1924, sendo que há quase uma década ele já se empenhava na carreira

de jornalista, dentro não só do mesmo Correio paulistano, mas também do Jornal

do Comércio, como do Correio da Manhã, este último onde ele publicou pela

primeira vez seu “Manifesto da poesia pau-brasil”. Ainda mais, seguindo as

mesmas indicações críticas de Antonio Candido quanto à cooptação pelo Estado,

pensamos que, pelo menos quanto a alguns modernistas, o fato de os “homens

sem profissão” trabalharem no jornal situacionista não implicaria a completa

adesão ao programa partidário pelo qual o periódico diz representar. A mesma

situação acontecia com os modernistas mineiros que se espalhavam na redação do

Diário de Minas, órgão do Partido Republicano Mineiro, onde Carlos Drummond

de Andrade chegou a ser chefe de redação sem no entanto expelir qualquer

opinião política (Cf. Cury, 1998). Não há como afirmar, portanto, que Oswald de

Andrade colocasse algum partido na frente de suas criações literárias, muito

menos dizer que ele indicava a interferência de tal agremiação. Sua reclamação

por uma visão democrática da cultura, rejeitando a douta, bacharelesca e

acadêmica, não condiz em nada com o fundamento de uma oligarquia que, pelo

contrário, devia expelir qualquer forma de participação popular, seja política ou

culturalmente. É certo, no entanto, que a ideologia por trás da ambição do Pau-

Brasil não se esquivava de uma oratória vã, como o notou Mário de Andrade

(Andrade, 1972, p. 231), mas essa é uma questão outra.

Ainda que Miceli confunda alguns autores e suas respectivas tendências

(como assinalar Cassiano Ricardo como “democrático” por ser “primo pobre” e ao

mesmo tempo notá-lo como perrepista), não existe uma explicação coerente do

que seria o racha interno do PRP depois da publicação do “Manifesto da poesia

pau-brasil”, posto que o autor afirma que a divergência entre Oswald de Andrade

e o grupo Verde-amarelo teve por motivo o mesmo esteticismo que os

“democratas” proclamavam. É que as divergências surgidas entre os grupos,

naquele momento, não iam além de uma preocupação estética, e só um pouco

mais tarde, em 1926, justamente com o surgimento dos verdeamarelos, é que as

implicações políticas vão aparecer. Cassiano Ricardo confirma que, desde a

origem, o seu grupo teve tais questões:

80

“Foi então que o nosso grupo se opôs ao cubismo, futurismo, dadaísmo,

expressionismo, surrealismo e inventou o ‘verdamarelismo’. Como a própria

denominação o diz, tomava a campanha o seu verdadeiro caminho. Adquiria um

sentido brasileiro (reunindo primitivismo ao moderno) e um sentido social e

político.” (Ricardo, 1939, s/p).

Portanto, para Miceli as injunções e facções políticas entre direita e

esquerda dentro do modernismo tiveram um antecedente. Eles já se dissociavam

como “democráticos” e como “perrepistas” desde que se conheciam como

intelectuais. A explicação que o autor dá para as reviravoltas extremistas é a de

que foi a Revolução de 1930, ao solapar tanto os “primos pobres” quanto os

“homens sem profissão” de dentro de seus respectivos nichos políticos e culturais,

“quando verificam o bloqueio que suas carreiras sofreriam com o desmonte do

antigo esquema situacionista” (Miceli, 2001, p. 252), que fê-los erguer-se

radicalmente contra o poder central, que, depois de 1932 e a derrota de São Paulo

na Revolução Constitucionalista, passaram a rever suas formas de participação e

de formação de quadros para a elite nacional, enquanto que o paulistismo se

arraigava ainda mais. A criação da Escola de Sociologia e Política, a Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras e o Departamento Municipal de Cultura fazem parte

deste contexto33

.

Nestas circunstâncias é que o modernismo se esgota em algum sentido. A

politização dos objetivos acompanha os agouros pelos quais passava a pesquisa

estética de vanguarda. É na década de 1930 que o recuo modernista dá seu último

passo, estagnando-se em fórmulas, aceitando outras necessidades extra-literárias,

normalizando suas inovações; o que na década de 1920 ocorria com estardalhaço,

com polêmicas em torno de livros e manifestos, agora se faz apenas como

atualização das conquistas: a “rotinização” foi o preço a pagar pelos meios

imediatos que as manifestações formalmente nacionalistas e as práticas políticas

exigiam. Agora o modernismo pecava pelo extremo oposto ao “formalismo”,

aproveitando-se mais das temáticas de conteúdo que das preocupações formais

que recuava tanto diante dos escritores de direita quanto dos de esquerda. Tornou-

se urgente a elaboração de conteúdos “problemáticos”, no romance (social) ou na

poesia (espiritual, psicológica), tanto que já era possível falar de um neo-

naturalismo na prosa, com o chamado romance nordestino — Graciliano Ramos,

33

MILLIET, Sérgio apud MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo:

Ática, 2002, p. 26.

81

em cuja obra não há nenhum apelo formal criativo mas que é um documento de

denúncia social, exemplifica bem este novo momento. (Mello e Souza, 1986, p.

182).

É justamente na década de 1930 que existe uma conjunção de fatores

socioculturais que irão ajudar a afundar o modernismo no marasmo do mesmismo

em termos estéticos vanguardistas. A fundação de escolas superiores, de formação

de quadros técnicos e administrativos, como aquelas mesmas criadas pelos

paulistas, contribuiu para uma crescente divisão do trabalho intelectual,

principalmente nas ciências da cultura que admitem um conhecimento mais

especializado sem o discursismo que imperava na inteligência brasileira (Mello e

Souza, 2000, p. 124); outrora a literatura era considerada o fenômeno central da

vida do espírito, por meio dela fazia-se pesquisa antropológica, sociologia,

história, economia, filosofia etc. Na falta de técnicos e especialistas nestas

diversas áreas, a literatura contribuía para dar forma e ornamento discursivo às

pesquisas, deixando de lado a descrição científica e a interpretação racional.

Quando em 1930 acontece o surto das ciências humanas, a literatura começa a

passar por um processo de depuração, voltando-se sobre si mesma. Ela vai

perdendo o seu caráter de pesquisa tanto formal quanto nacionalista; apenas alude

a um populismo que pouco intervém na criação literária, apenas na pesquisa, por

exemplo, de um solitário Mário de Andrade. Ao notar que foi o modernismo

facilitador do desenvolvimento da sociologia, da história social, da etnografia, do

folclore, da teoria educacional e da teoria política (idem, p. 122), enclausurando

tais ciências nas universidades e nas demais escolas superiores, só podemos

afirmar que o movimento ajudou a criar seu próprio fim. Na verdade, esse

processo se configura como uma “desestetização” do modernismo, quando a

pesquisa estética dá lugar à pesquisa científica, mesmo porque ela fora

incentivada por parte de alguns modernistas. É o que percebemos no caso da

fundação da Revista Nova, no ano de 1931, em que a poesia estava em segundo

plano, como assevera Mário de Andrade nesta carta de pedido de colaboração de

Augusto Meyer em que afirma que ela “é uma revista séria, de 150 páginas no

mínimo, trimestral, publicando pouca literatura, pelo menos literatura gratuita.

Muita crítica e muitos estudos de qualquer que tenham imediata correlação com o

Brasil.” (Andrade, 1968, p. 83).

82

O que se seguiu na década seguinte, com a geração de 1945, quando ocorre

o completo recuo da literatura pela literatura, sem pesquisa formal mas apenas um

esteticismo, foi a coroação de um processo que vinha desde 1924. E, segundo

Vagner Camilo, essa conjuntura também teve impacto na poesia “classicizante”

no Carlos Drummond de Andrade de Claro Enigma (Camilo, 2001, p. 54).

Portanto, na medida em que quase tudo que os modernistas punham em pauta

estava se tornando realidade, eles perdiam sua razão de ser. Do mesmo modo isso

se realizava no âmbito político, quando o Estado passa a adotar o discurso

populista. O povo começou a ser senão ouvido, pelo menos fazer parte da imagem

de um governo que dizia atender às suas necessidades. As massas urbanas

apossaram-se de uma cultura também urbana e que estava longe das canções

populares que Mário de Andrade coletava nos interiores do país, nem fazia parte

da Revolução Caraíba de Oswald de Andrade, muito menos se impregnavam do

Curupira e do Carão de Plínio Salgado e companhia.

É este o sentido que Lafetá chamou de passagem do estético (década de

1920) ao ideológico (década de 1930), como discutimos anteriormente. A

passagem marca o problema-limite do modernismo, quando as ideologias que lhe

afetam saturam a pesquisa estética e alijam os temas na superficialidade dos

problemas, principalmente quanto à poesia espiritualista, espécie de cancro que

sempre rondou o modernismo, ao mesmo tempo em que, positivamente, dispõe os

temas sociais ativando a consciência da literatura como função de denúncia e

politização, embora justamente os extremismos dessas elaborações tenham

transformado as obras em meros documentos neo-naturalistas. (Lafetá, 2000, p.

35-36). A participação então acarretará obras que se erigiam em espécies de

romance-tese, indo em direção a um sectarismo purista que será outro fator de

dissolução estética e literária da qual a década seguinte, de 1940, será testemunha.

As reformas educacionais, o trabalhismo, o populismo, o patrimonialismo

da cultura, o desrecalque do povo como programa de governo — todos esses

acontecimentos da década de 1930 revelam a estatização das discussões literárias

modernistas. A “ida ao Estado” efetiva-se; a adoção das problemáticas

modernistas, no entanto, aconteceria mesmo se a maioria deles não atuasse dentro

das funções estatais, i.e., mesmo que não fossem “cooptados”, nos temos de

Sérgio Miceli. É neste sentido que a maior vitória do modernismo foi o golpe final

83

naquilo que foi sua própria razão de ser, mesmo estética e ideologicamente

falando.

O nacionalismo modernista da década de 1920 encontra o estatismo da

década de 1930. Cabe então fazer uma breve comparação com o que aconteceu no

Romantismo do século XIX. Este, em sua primeira fase, quando a Independência

testemunhava a fragilidade do Estado, erguia o monumento épico chamado A

Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, no qual o Estado

Imperial era glorificado e legitimado; para a unidade da nação, os românticos

desse momento apelavam para o estatismo, sendo que todos eram altos

funcionários do Império, como os fundadores da revista Niterói, que em 1836

inauguraram o movimento. Como crítica a esse modo de construir a nação, e já

chegando a público com uma polêmica contra o próprio Gonçalves de Magalhães,

José de Alencar aposta num nacionalismo literário que criasse condições

emocionais, subjetivas; ou, nos termos de Mário de Andrade: ele nos apresentou

uma identidade “que permitiu muito maior colaboração entre o ser psicológico e

sua expressão verbal.” (Andrade, 1972, p. 244), ao contrário do verso duro e sem

rima de Magalhães (Mello e Souza, 2004, p. 45). O objetivismo do estatismo não

deve ignorar a comunidade imaginada do subjetivismo nacionalista.

Com o modernismo a relação foi contrária. O nacionalismo de 1924 pode

ser interpretado como uma resposta aos conflitos oligárquicos que, em nome de

disputas dentro do aparelho estatal e em nome deste, punham em risco o próprio

sentido unitário da nação. Como escreve Maria Efigênia Lage de Resende sobre o

período:

Se o federalismo possibilita a emergência de oligarquias e coronéis em seus

respectivos campos de atuação, a preponderância de interesses individuais impede

que os temas da nação e da cidadania adquiram posição de centralidade na agenda

política dos constituintes. (Resende, 2010, p. 98).

A “ida ao estado” da década de 1930 representou uma nova tomada de

consciência quando surgiu a oportunidade de efetivação oficial das pesquisas

populistas modernistas. O recrudescimento e o inchaço do Estado dentro dos

vários setores sociais contribuíram para que houvesse coincidências de objetivos.

O Varguismo com seu populismo massificado não poderia dispensar a única

criação inventiva que a intelectualidade brasileira produzia desde meados da

84

década de 1910, não haveria mesmo outros quadros intelectuais e mesmo

administrativas que já não estivessem impregnados da mágica modernista, que

como afirma Antonio Candido, já então estava normalizado, tornado habitual,

comunizado, no sentido de que já abandonara de vez a estética do novo (Candido,

1986, p. 185).

4 Primeiro modernismo

É preciso entender como se processou essa fase do modernismo brasileiro.

Mais precisamente, precisa-se ter em mente as realizações e empecilhos históricos

que o Brasil recentemente republicano testemunhou. As estruturas imperiais ainda

insistiam em permanecer arraigadas dentro das principais fontes sociais,

econômicas e políticas devido às próprias intempéries do processo de

Proclamação da Repúlica. Reformas então foram feitas para que a economia se

dinamizasse de vez: a constituição de 1891 institucionalizou o federalismo de que

os liberais tanto falavam, dando espaço para um complexo emaranhado

oligopolítico; reformas urbanas implementaram uma cultura de cosmopolitismo

antes maquiladora do elitismo do que inclusiva e democrática, jogando a

população indesejada para fora dos centros das cidades, com suas avenidas

linearmente racionalizadas e seus casarões que revelavam a imponência, feios

pelo mau gosto do exagero, das novas elites, dos novos homens agentes da

plutocracia que se inaugurou. No campo da política social houve mesmo um

retrocesso, mediante essa mesma manobra de exclusão social das populações mais

pobres, mormente os de homens e mulheres libertos após o 13 de Maio; o

montante de imigrantes que permaneceu nas cidades veio agravar as condições de

vida urbana, aumentando o contingente populacional e a democratização da

carestia e da fome, da exploração nas fábricas e do desemprego.

A atmosfera de civilização, de cosmopolitismo e mundanismo, foi

característico na Primeira República — que tem dois momentos distintos, um que

vai de 1900 a 1914 e outro que abrange o pós-guerra até a onda nacionalista na

década de 1920, no qual militares, intelectuais, setores das oligarquias

democráticas e camadas médias urbanas, reivindicam o saneamento das

instituições brasileiras. O cosmopolitismo também irá marcar a primeira geração

modernista quando eles mesmos se apropriam da necessidade de civilização

entendida como modernização meramente visual da cidade e suas estruturas e

funcionalidades; buscamos entender um pouco esse processo de íntima relação

histórica com o advento mais estável do Brasil dentro de uma divisão

internacional do trabalho. A ascensão à civilização pela própria civilização, o que,

segundo as críticas dos modernistas, a chamada belle époque entendia como a

86

imitação da Europa, impregnará também as primeiras reivindicações daqueles,

não agora no sentido de “imitação dos modelos”, mas no de proceder na criação

de uma literatura que imprimisse, formal e problematicamente, a modernidade que

se vivia dentro das próprias cidades brasileiras. A fonte de inspiração era as

conquistas materiais que uma economia capitalista urbana e fabril em plena

expansão poderia conceber, antes um cosmopolitismo de criação do que o anterior

cosmopolitismo de importação. A modernidade se dava pela modernidade, i.e.,

aquilo que eles entendiam como a cidade e seu cotidiano urbano, externamente

manifesto no maquinário e nas inovações técnicas. Na década seguinte, de 1920, o

problema mudará de foco, apontando a entrada da modernidade por meio da

nacionalidade, o cadinho nacional será visto como contributo para civilização,

como escrevia Mário de Andrade em carta a Joaquim Inojosa:

Significa só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das

nações que hoje em dia dirigem a civilização da Terra, tem de concorrer pra esse

concerto com sua parte pessoal, com o que singulariza e individualiza, parte essa

única que poderá enriquecer e alargar a Civilização. (ANDRADE apud MORAES,

1978, p. 120).

4.1. O cosmopolitismo dos pobres

O republicanismo, vitorioso do movimento de 1889, trouxe consigo uma

confusão de anseios por novas mudanças estruturais e sociais no país. É verdade

que o 15 de novembro foi o resultado de um processo de enfraquecimento das

instituições imperiais, bastante danificadas em sua morna estabilidade depois da

abolição de 1888; dentre tantos momentos podemos enumerar: a publicação do

“Manifesto Republicano”, em 1870 no jornal A República; o vira-casaca geral dos

fazendeiro do vale do Paraíba, os adesistas ou “republicanos de 13 de maio”,

descontentes com a abolição sem nenhuma indenização, além também de suas

críticas à insuficiência do processo de modernização do império; o

descontentamento por parte dos militares, disposto à intervenção política mediante

seus esforços e sua ampla popularidade logo após a guerra contra o Paraguai; as

contendas com a Igreja Católica; a saúde incerta de D. Pedro II, que, mediante

falta de herdeiro homem, poderia legar o Império a um estrangeiro, Conde D’Eu,

marido da Princesa Isabel; e também a publicidade das propostas republicanas

87

relativamente bem vistas, principalmente quanto ao federalismo (Neves, 2010, p.

28-29). Esses fatores político-econômicos internos, somados ao contexto de

solução capitalista num de seus períodos áureos, impulsionarão o século XX

brasileiro a uma nova característica dúbia quanto às profundas mudanças que se

pretendia.

A simples mudança de “roupa”, como Lima Barreto assinalaria sobre esses

não tão novos tempos, fizera parte de um processo de reconstituição e

restabelecimento de uma ordem social que não fosse alterada pela incompetência

política do Império. É neste sentido que a República não inaugurou uma fase

prosperamente política, mas, ao contrário, viu-se desde o começo sob a égide de

conturbadas crises em 1889, 1891, 1893, 1897 e 1904. Contribuía para isso certo

sentimento de improviso pela sensação de que a República fora o resultado de

uma decisão afobada quando, aderindo em última hora e marchando em direção

ao golpe, Deodoro da Fonseca, ao invés de derrubar o gabinete de Ouro Preto,

cujas reformas desagradaram tanto aos militares quanto aos cafeicultores

paulistas, acabou instaurando o novo regime. Então as crises políticas e sociais

serão o fantasma dessa República de dois gumes, na qual a economia especulativa

não liberal que dará ânimo a uma verdadeira plutocracia encontrava-se ao lado de

um regimento político e social tenso em que mesmo as alianças relativamente

estáveis escondiam os interesses específicos regionais acirrados por aquela mesma

economia desigual, colocando em risco a união político-institucional do país.

O cosmopolitismo desse período é o resultado de uma condição limítrofe

pela qual o país passava, tentando arregimentar uma estrutura política e

econômica que trouxesse as condições de uma inclusão dentro das civilizações

mais avançadas do mundo. Neste contexto, o Brasil terá seu papel estabilizado

dentro de uma divisão do trabalho capitalista que o marcará durante todo o século

XX. Cabe afirmar aqui a peculiaridade desse processo de expansão e ao mesmo

tempo a limitação da modernidade do país, pois é nestas circunstancias que

seguiremos a leitura modernista de uma “modernidade exogâmica”, advindo tanto

da influência das vanguardas europeias quanto à dependência da linguagem

associada à tecnicidade urbana. É que, para os modernistas em geral, a

modernidade na chamada belle époque era sinônimo de cópia, de imitação dos

trejeitos, maneiras, modos, costumes, pensamentos, todos advindos da Europa,

i.e., a modernidade tinha que vir de fora na medida em que, neste momento, os

88

padrões europeus tornaram-se o meio único de implementação da modernidade, da

civilização, fato em parte explicável pelo contexto do imperialismo e do boom

econômico que o velho continente testemunha entre 1900 e 191434

. Os

modernistas da primeira fase, apesar das críticas à triste imitação de padrões

estéticos do passadismo, serão influenciados por esse clima de euforia espetacular,

embora somente no pós-guerra, quando o país vive um crescimento relativamente

mais independente. É por isso que esse período de cosmopolitismo exacerbado

merece nossa atenção, pois nele a modernidade, como diria Graça Aranha, se dá

pela inclusão ativa do Todo, numa introjeção dentro da civilização pela

civilização, ao contrário do que acontecerá nos anos 1920, quando a modernidade

deverá passar necessariamente pela nacionalidade, num processo de civilização

pela nação. (Moraes, 1978, p. 97).

O Encilhamento fez parte do primeiro processo de inclusão do país dentro

do modelo da burguesia argentária. A criação de bancos responsáveis pela

emissão desenfreada de papel moeda gera uma onda de criação de empresas,

bancos, companhias industriais entregando-se à pura especulação, já que a maioria

só existia mesmo no papel, e apenas emitia ações para despejá-las no mercado de

títulos para a sua valorização. Como nos explica Caio Prado Júnior:

Em fins de 1891 estoura a crise e rui o castelo de cartas levantado pela

especulação. De um momento para o outro desvanece-se o valor da enxurrada de

títulos que abarrotava a bolsa e o mercado financeiro. A déblâcle arrastará muitas

instituições de bases sólidas mas que não resistirão à crise; e as falências se

multiplicam. O ano de 1892 será de liquidação; conseguir-se-á amainar a

tempestade, mas ficará a herança desastrosa legada por dois anos de jogatina e

loucura: a massa imensa de papel inconversível em circulação. (Prado Jr., 1987, p.

220)

As especulações, no entanto, continuam, mas agora em torno das oscilações

cambiais das quais as medidas dos governos contribuirão para manter essa cultura

de cupidez material da República Velha. Ainda assim, nota-se que houve um

34

Embora existam sim os exageros modernistas no intuito de difamar toda a literatura que lhes

seja anterior ou contemporânea, o contexto de um cosmopolitismo e de um imperialismo se torna

inegável. No entanto, temos consciência de que, como escreve Antonio Edmílson Martins

Rodrigues, “esse quadro fez com que o período da belle époque fosse visto de forma negativa,

transformando-o em pré-modernismo, em vazio cultural, ou como se a produção desse período

tivesse deixado de ter uma olhar crítico.” RODRIGUES, Antonio Edmílson Martins. “Que 22 que

nada” In Revista Brasileira de História. Disponível em:

<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/que-22-que-nada>. Acesso em: 12 de

dezembro de 2012.

89

crescimento industrial nesse meio tempo devido à reforma financeira e bancária

do governo provisório além do que, é nesse momento que se percebe a nova cara

dos donos do poder que perdurarão durante o período: “Era a consagração

olímpica do arrivismo agressivo sob pretexto da democracia e o triunfo da

corrupção destemperada em nome da igualdade de oportunidades.” (Sevcenko,

2003, p. 37-38).

O ano de 1893 vive uma crise que atinge a Europa e os Estado Unidos,

interferindo também nos negócios de café do Brasil, agora indisposto a exportar

as enormes quantidades de sacas que já então revelavam uma crise de

superprodução. Sem exportação não há divisas, ocasionando queda também nas

importações de capital constante e interferindo também no pagamento da dívida

externa, desencadeando assim uma crise interna. Em 1897, o primeiro funding

loan salva as contas internas com o auxílio de empréstimos estrangeiros, dando

credibilidade ao país diante dos credores internacionais. A política deflacionária

de Campos Sales amplia as exportações e sana as contas do tesouro e as

importações de bens e de capital. No entanto, à medida que tais políticas

econômicas visam a valorização das exportações, principalmente do café paulista,

aumentando o lucro e as fortunas, a carestia e o custo de vida eram os problemas

comuns que a população mais pobre, longe das benesses desse sistema de

exclusivismo, tinha que enfrentar praticamente durante todo o período, supondo

que o custo de vida, entre 1889 e 1912 tenha crescido em 221% (Neto, 2010, p.

215).

O processo de constantes empréstimos, o crescimento das exportações de

matérias primárias para o exterior, o investimento em meios de transporte,

principalmente das estradas de ferro interligando regiões produtoras aos locais de

escoamento, e neste sentido, a melhoria dos portos do Rio de Janeiro e de Santos,

o investimento de capitais externos, maciçamente ingleses, o aumento das

importações — esse processo todo é caracterizado por um momento de

prosperidade pelo qual o capitalismo imperialista passa. As exportações de

capitais europeus em direção às suas colônias ou às regiões de domínio indireto,

como a América Latina, destinavam-se aos empréstimos governamentais e à

instalação de infraestrutura que propiciasse a evacuação rápida de matérias-

primas. Resultado de demanda ocasionada pelo enorme crescimento dos países

centrais, que desde meados de 1870, com a chamada Segunda Revolução

90

Industrial, exigiam uma capacidade de consumo que fosse análoga ao da produção

crescente, a compulsão por novos mercados consumidores e produtores de

produtos primários exigirá a expansão para outras áreas do globo bem como a

invasão, violenta indireta ou diretamente, desses espaços de consumo e de

fornecimento, inaugurando um neo-colonialismo nefasto, social e politicamente.

É nesse esquema que os governos republicanos brasileiros enfrentariam

crises e meneios para resolução paulatina, mas ineficaz, de diversas tensões

sociais. O deslocamento econômico causado pelo fim da escravidão no sentido de

implementação do trabalho livre que exigiu do Brasil a necessidade de políticas de

incorporação nesse novo modelo econômico tentacular que cobre todo o globo,

tendo como resultado as levas de imigrantes, proporcionou um aumento

populacional exorbitante, principalmente nas grandes cidades do Rio de Janeiro e

São Paulo. O desenvolvimento urbano deu-se junto ao crescimento populacional e

ao alargamento das cidades com seus novos bairros proletários para onde era

escorraçada toda uma população que era “inadequada” à pretensa imagem de uma

cidade limpa e ordeira. Os descontentamentos dessa população marginalizada

vieram na forma de vários motins urbanos que ocorreram no período, tendo como

ponto máximo a Revolta da Vacina e as greves operárias. O desemprego devido à

grande oferta de mão-de-obra, a insalubridade das moradias, ocasionando crises e

epidemias generalizadas, o alto custo de vida, a carência de gêneros alimentícios,

a repressão arbitrária das polícias urbanas dava substância às revoltas, a maioria

espontâneas, como a Revolta do Selo ou o “quebra lampiões” (Sevcenko, 2003, p.

75).

A sede de civilização dos governos e das elites econômicas e políticas foi,

portanto, imposta de cima para baixo por um cosmopolitismo desenfreado e

artificial, articulado com o desenvolvimento de uma divisão do trabalho mundial.

Daí que resultam as reformas urbanas que tinham como intuito dar nova cara à

cidade, limpa e organizada, salubre e racionalizada, longe da mendicância, das

doenças, dos pardieiros, de qualquer resquício de manifestação popular ou de

hábitos tipicamente “retrógrados” ou “fora de moda”, seja nas vestimentas, nos

rituais religiosos, nas gírias e maneiras de se comportar. Integrar-se no progresso

implicava o esquecimento e a irrelevância de todos os “tipos” nacionais que, para

usar a expressão de Antonio Candido, são recalcados tanto pela grande parte da

inteligência quanto pelos políticos.

91

Esta tentação de estabilidade e de ordem levou os homens de letras também

a identificar a literatura como mero “sorriso da sociedade”, aplicada na forma de

entretenimento e diversão, como mais uma manifestação de bem-estar social,

literatura limpa e arejada nos quais homens como Coelho Neto, Afrânio Peixoto,

Mário de Alencar, Arthur Azevedo dão o nó na gravata dos bons moços. Um

diletantismo e amadorismo tomam conta dos escritos mais amenos e disformes no

intuito de apresentar ao seu público hábitos urbanos, misturando um mundanismo

mais estético do que realista porque depositário do viés parisiense, naquilo que

Sérgio Miceli chamou de escritores “anatolianos”, e uma literatura associada ao

jornalismo de crônica social; o boêmio cede lugar ao “dândi”, e às reuniões nos

salões “onde a literatura se tinha assimilado ao mundanismo da metrópole

cosmopolita e civilizada em que o Rio timbrava por transformar-se.” (Machado

Neto, 1973, p. 74).

Com a eclosão da guerra, em 1914, o cosmopolitismo toma outra cara.

Surge um movimento de preocupação nacional, ligado primeiramente ao de defesa

da nação devido aos ataques aos navios brasileiros feitos pelos alemães. Em 1917

a guerra contra a Alemanha é declarada. Mas mesmo assim ela se dá em termos de

defesa da civilização (Europa) contra a barbárie (Alemanha). No âmbito do

nacionalismo político crescente, funda-se a Revista do Brasil, em 1916, que dizia

em seu primeiro editorial sobre “o desejo, a deliberação, a vontade firme de

constituir um núcleo de propaganda nacionalista.” (Oliveira, 1990, p. 119). No

entanto, a revista não criou um clima de renovação estética e mesmo nacionalista

no âmbito cultural; somente em 1923, quando Paulo Prado assume a sua direção,

que o modernismo poderá, a seu modo, realizar tal intuito. Por outro lado, ainda

na década de 1910, a criação da Liga de Defesa Nacional, tendo em Olavo Bilac o

maior propagandista e expoente, defendia o serviço militar obrigatório como

forma de salvaguardar a nação. Mesmo em seus discursos proferidos pelos Brasil,

Olavo Bilac, ao apontar a necessidade de educação para o povo, não se desprendia

do elitismo estreito ao acentuar o papel dos intelectuais como messias da

sociedade, aquele que levará a salvação ensinando o amor à pátria porque são,

segundo suas palavras, “legítimos depositários da civilização.” (Veloso, 1993, p.

90).

No pós-guerra a industrialização, então mais ou menos afetada pela guerra

no que tange às importações de capitais estáveis, como maquinário, terá um

92

aumento crucial para acender o otimismo do progressismo que dará as caras no

primeiro modernismo. Nesta curva encontramos o maior desenvolvimento urbano

e técnico de São Paulo. Se em 1907 São Paulo tem 326 empresas e cerca de

24.186 operários, em 1920 esses números passam para 4.145 e 83.998,

respectivamente (Silva apud Neto, 2010, p. 221). Quanto ao nível populacional,

no início do século ela abrigava 270 mil moradores, passando para 578 mil em

1920 (Sevcenko, 1992, 109). Como vimos com Hardman, o cosmopolitismo era

vivenciado também pelo número de imigrantes que se fixavam na cidade,

entreposto entre a chegada destes e seu destino final ou mesmo residindo na

capital do estado, abarrotando ainda mais as fileiras das fábricas nas quais 75% ou

85% dos operários eram estrangeiros (Morse, 1970, p. 238). É neste sentido que

Ronald de Carvalho afirmará: “O italiano, o alemão, o eslavo, o saxão trouxeram

a máquina para a nossa economia. A vida tornou-se mais ativa, mais vertiginosa,

mais cosmopolita, menos conservadora, enfim.” (Carvalho apud Brito, p. 27).

Apesar disso, não tão menos conservadora assim, pois, assim como qualquer

desenvolvimento que tenha como modelo a produção capitalista, em São Paulo, as

condições da classe operária, assim como de outros trabalhadores, como os ex-

escravos libertos e impulsionados para as margens da “cidade civilizada”, eram

tão precárias quanto às que vimos no Rio de Janeiro. Do mesmo modo, quando

houve a tentativa de manifestação política contra os desmandos dos empresários e

da polícia, como na greve de 1917, a repressão por parte do governo fora

inflexível e inumana.

Confirmando o fim de um século, o pós-guerra já nasce de certo modo

modernista ou pelo menos deixava no ar um ambiente de renovação e de desejo de

recomeço. É o que comenta Tristão de Athaíde sobre esse momento, ao assinalar

“o fim do naturalismo no romance, com Aluísio Azevedo ou Adolfo Caminha; o

fim do ornamentalismo na prosa, com Coelho Neto; o fim do parnasianismo na

poesia, com a tríade gloriosa Raimundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de

Oliveira.” (Lima apud Brito, 1978, p. 135). Ele ainda escreve, noutra ocasião:

Hoje, a mesma lei de história, que tem encontrado entre nós, como veremos,

confirmação plena nos autoriza a prever que o futuro movimento intelectual do

Brasil vai irradiar de S. Paulo. Vivendo em pleno germinar de ideia regionalista,

desfrutando metade da fortuna nacional, possuindo uma aristocracia da terra, tendo

herdado os seus filhos a altivez e o bom senso dos ‘paulistas’ de Piratininga,

prepara-se S. Paulo para a realeza da República. (...) O século XVI pertenceu a

93

Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII à Minas Gerais, o XIX ao Rio de Janeiro, o

século XX é o século de S. Paulo. (Lima apud Martins, 2002, p. 57)

Apesar do clima de otimismo e euforia pelo desenvolvimento, o campo

literário hegemônico, segundo a crítica modernista, ainda estava estagnado na

repetição de fórmulas e numa literatura regionalista que não alcançava nenhuma

inventividade capaz de organizar um verdadeiro movimento aglutinador de

renovação. Existe, claro, escritores profícuos como Lima Barreto, Euclides da

Cunha e Monteiro Lobato; mas, por forças circunstanciais ou mesmo pelo

movimento que então encabeçaria a inteligência nacional, o modernismo, eles

foram relativa ou drasticamente postos de lado também por razões de

hegemonia35

.

O crescimento urbano da cidade revelava a paisagem-tema que os

modernistas precisavam para descrever a modernidade na perspectiva

vanguardista. Os operários, os imigrantes, a burguesia, as festas urbanas, as

passeatas e comemorações, o trabalho nas ruas, os automóveis, os cinemas, as

danças, os bailes, o cotidiano da cidade era impresso nas notas soltas dos poemas

e no aspecto telegráfico do romance oswaldiano. Este já dizia de sua São Paulo:

É a cidade que, nas suas gargantas confusas, nos seus desdobramentos infindáveis

de bairros nascentes, na ambição improvisada das suas feiras e na vitória dos seus

mercados, ulula uma desconhecida harmonia de violências humanas, de ascensões

e desastres, de lutas, ódios e amores, a propor, às receptividades de escola, o

riquíssimo material das suas sugestões e a persuasão imperativa de suas cores e

linhas. São Paulo é a cidade que pede romancistas e poetas que impõe pasmosos

problemas humanos e agita, no seu tumulto discreto, egoísta e inteligente, as

profundas revoluções criadoras de imortalidades. (Andrade, 1992, p. 27)

O cosmopolitismo de São Paulo vai ser assumido pela inteligência então em

formação direta com a vanguarda europeia. Já em 1912, Oswald de Andrade faz

sua primeira viagem à Europa trazendo na bagagem o Manifesto Futurista de

1909; em 1917 ocorre a grande polêmica em torno de Anita Malfatti que irá

agrupar todos os modernistas paulistas numa direção única: dissipar as hostes

passadistas na literatura. As derrubadas, o bota abaixo, tanto de São Paulo quanto

35

Cabe, neste sentido, citarmos ainda este apelo, resposta de Mário de Andrade ao escritor de Os

Brunzundangas, publicado no número 4 da revista Klaxon: “Sr. Lima Barreto (...) amigavelmente

tomamos a liberdade de lhe dar conselho (...) Não deixe também que as obras de Apollinaire,

Cendrars, Epstein, que a Livraria Leite Ribeiro de há alguns tempos para cá (dezembro, não é?)

começou a receber, sejam adquiridas por dinheiros paulistas. Compre esses livros, Sr. Lima,

compre esses livros!” In KLAXON, n. 4. 15 de agosto de 1922, p. 17.

94

do Rio de Janeiro, visavam colocar a cidade dentro de uma imagem moderna,

repudiando os vestígios do passado; o modernismo se encobrirá nessa capa

moderna para cantar as mesmas cidades e suas máquinas alienadoras.

4.2. Modernismo modernicizante: a tradição esquecida

A consciência de que um movimento novo era necessário, dada a

supersaturação da produção contemporânea, aguçou a experiência histórica dos

modernistas. Eles foram os primeiros a sistematizar a crítica à “escola” literária

anterior num nível jamais visto antes na história das nossas polêmicas culturais,

fato que pesou na concepção de um momento “pré-modernista”, no qual a crítica

modernista, com seus preconceitos, varreu de vez tudo o que fora produzido

anteriormente. Brigaram, arguiram, discutiram tanto que ninguém poderia duvidar

que eles apresentavam realmente algo de novo, gostando ou não. O próprio

modernismo só surgiu como movimento, uma formação de um grupo com

determinados objetivos, depois que um “passadista” resolveu denunciar aquelas

“deformações da natureza”, como foi o caso da polêmica de Monteiro Lobato com

relação à exposição de Anita Malfatti. O termo passadismo era por eles tão

propalado e repetido que a alcunha de futuristas, para além das confusões com as

manifestações de Marinetti e da carga pejorativa, condizia muito para essas

pessoas aparentemente tão ariscas com o que vinha do passado/presente, i.e., se

para eles o que existia em literatura era “passadista”, não é a toa que eles seriam

taxados de “futuristas”, no sentido apenas temporal do termo. O resultado foi pôr

a crítica modernista em pauta. A crítica imanente ao subsistema arte ganhava

terreno.

No entanto, a nova estética não punha em questão a arte num estágio de

autocrítica radical. No Brasil, a arte, como subsistema social, nunca esteve no

cadafalso da crítica nem do artista. Explica-se: a literatura, o lugar-comum da

cultura brasileira, era sinônimo de status num país onde, se pegarmos a época do

auge modernista, a década de 1920, mais de 16 milhões de pessoas padeciam na

sombra do analfabetismo36

. Mais que isso, a atividade intelectual era a forma mais

36

Representando cerca de 69,1 % da população total. Fonte I. B. G. E In MACHADO NETO, A.

L. Estrutura social da república das letras (Sociologia da vida intelectual brasileira — 1870-

1930). Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, 1973. p. 253.

95

imediata de legitimação social para uma cultura bacharelesca em que deter um

diploma de direito ou de medicina, dentro do campo da elite, era quase um dever;

daí que o exercício imaginativo foi o instrumento correlato pelo qual nossa visão

de mundo germinava. É neste sentido que a arte, como instituição, não correu

perigo, nem mesmo neste momento em que o debate estético e funcional da arte

fora a forma mais radical que um movimento cultural alcançou no Brasil.

Portanto, nem mesmo poderia ser mais que isso, posto que, segundo Bürger, um

dado real para a expressa crítica à instituição artística diz respeito ao seu status

dentro da sociedade (Bürger, 2008, p. 58)

Se os modernistas não ousaram arcar com o sacrifício da arte como crítica à

sociedade, no entanto a “compreensão objetiva” de que eles viviam um momento

de declínio deu-lhes um caráter de autocrítica parcial. Eles souberam decodificar

os imperativos de uma nova estética ao mesmo tempo em que tentaram constatar

o fim de outra, mas não colocaram a arte em xeque, posto o valor social que a

literatura alcança em nossa sociedade. Não podemos por isso aceitar

absolutamente as teses de Bürger no que tange às vanguardas históricas em

relação ao modernismo brasileiro; como escreveu certa vez Mário de Andrade

comparando as vanguardas europeias e as brasileiras: “não podemos ter o mesmo

ideal porque suas necessidades eram outras.” (Andrade apud Moraes, 1978, p.

232). Entretanto, as assertivas do crítico marxista servem para pensarmos

problemas de ordem social e estética que colocaram as vanguardas europeias e

que os nossos artistas tomaram como parte de seus pensamentos.

Peter Bürguer adianta o fato de que a autonomia fora o caráter essencial

pelo qual a sociedade burguesa pensava a arte. Esse desejo quase nunca era

alcançado devido aos conteúdos políticos que insistiam em fazer da arte, palco de

denúncias e questionamentos. Nem mesmo a estética de Shiller e de Kant,

advogando o desenvolvimento da arte desligada da práxis vital, conseguiram

excluir o problema da vida e da opinião dentro da arte, quer dizer, a arte como

instituição já existe, mas a opinião predominava dentro dela, como atesta o caso

de Voltaire, por isso ela ainda não era inteiramente autônoma. Como vimos,

apenas quando a burguesia ganha o poder político é que as obras perdem essa

tensão entre o caráter autônomo da arte e seus conteúdos políticos. Ergue-se o

esteticismo, quando a arte tem como conteúdo ela mesma. Com a carência de

função social em que a arte se entrega, a autocrítica torna-se necessária. É neste

96

sentido que “os movimentos europeus de vanguarda podem ser definidos como

um ataque ao status da arte na sociedade burguesa.” (Bürger, 2008, p. 105). As

vanguardas europeias implicavam portanto a revolução social.

A arte no Brasil e a literatura mais especificamente, desde a independência,

praticamente exigem como arte verdadeira aquela que alcançasse o máximo de

frescor estético junto à cor local. Conclui-se que a autonomia da arte no país seria

um verdadeiro praguejo contra uma literatura “incipiente” como a brasileira, que

acreditava abrasileirar a literatura somente na medida em que se alimentava “de

assuntos que lhe oferece a sua região”, como escreveu Machado de Assis no seu

famoso ensaio “Notícias da atual literatura brasileira”. O ponto alto do esteticismo

vazio no Brasil foi sem dúvida o Parnasianismo com sua “máquina de fazer

versos” milimetricamente medidos e rimados esmeradamente. Fatura e temas

parnasianos entregando-se aos deuses e lugares longínquos foram o alvo principal

dos ataques modernistas, articulados inteiramente numa arte que traduzisse em

símbolos as enormes modificações sociais pelas quais passavam São Paulo, com

seus imigrantes, seu café tipo exportação, suas indústrias e o crescente

proletariado. É neste sentido que podemos afirmar que o parnasianismo foi sim

um inimigo-comum que favoreceu uma crítica geral à uma arte oficial que,

segundo os modernistas, há muito não se interessava pelos acontecimentos e pela

vida comum. Mesmo na fase modernista nacionalista pós-1924, ele poderia ser

visto como um alienante típico de um pensamento europeísta, como quer Mário

de Andrade nesta carta a Augusto Meyer, datada de 20 de maio de 1928: “Minha

formação foi inteiramente francesa por assim dizer. Depois foi parnasiana do

Brasil, o que quer dizer que continuou inteiramente desnacionalizada.” (Andrade,

1968, p. 49).

O parnasianismo então foi o mais massacrado possível. De todas as

manifestações literárias do período entre o “pós-naturalismo” até a década de

1920, a escola de Bilac & Co. se tornou um alvo crucial devido à sua hegemonia e

ao seu ar oficialesco durante a República Velha. O parnasianismo exemplifica

bem aquilo que Bürguer diz ser a condição necessária para haver uma

“compreensão objetiva” de uma época passada, i.e., apreensão “do processo geral

na medida em que, no presente do individuo, este processo tenha chegado a uma

conclusão — ainda que provisória.” (Bürger, 2008, p. 57). O Parnaso brasileiro

estava mais do que senil, estava carrancudo, débil, inútil, em colapso; os

97

modernistas não precisariam de muito para enterrá-lo. A querela contra o

passadismo revela-se, deste modo, como a crítica imanente e deixa como

consequência um espaço aberto para novas experiências modernistas. Isso não

quer dizer que desde então os modernistas se empenhavam por dar uma cor

nacionalista à necessidade de uma arte mais condizente com a realidade da época.

É inteiramente possível adotar o presente de uma época sem lançar mãos de

especulações figurativistas do que seria a essência de um povo. O ataque

antiparnasiano formou um bloco homogêneo que tinha também outros objetivos

em comum, mas se não fosse a condição em que os modernistas se encontravam,

de perceberem, segundo eles mesmos, que o que se fazia em arte estava

totalmente desconectado com os novos tempos, o movimento não se coadunaria

tanto em sua luta por uma nova estética: para erguer o novo é preciso saber que

existe um (possível) velho. É razoável concluir então que esse foi o ponto-chave

para uma autocrítica da arte, sendo que o parnasianismo elevava o esteticismo

purista a um nível em que a práxis vital, a vida cotidiana, era dispensada do fazer

artístico, abrindo portas para que o modernismo se insurgisse na tentativa de unir

a arte e a modernidade da vida.

É neste sentido que seguiremos as propostas de Eduardo Jardim de Moraes

ao esquematizar o primeiro tempo modernista em quatro elementos fundamentais:

a polêmica contra o passadismo, o aporte das vanguardas europeias, o papel novo

das artes plásticas e a necessidades de elaboração de uma linguagem de acordo

com a nova realidade moderna (Moraes, 1978, p.53). Estas linhas de frente, sem

dúvida, coadunaram os diversos escritores que empreenderam e trabalharam numa

nova estética, numa atitude literária de enfrentamento, de conquistas, de posições

e opiniões dentro da sociedade; quer dizer, realmente aí se pode dizer que o

modernismo se erigia como movimento, sendo que anteriormente as

manifestações ocasionais e pontuais não infligiram nenhuma consciência geral,

mesmo que dentro das hostes intelectuais, do que seria a vanguarda brasileira.

É verdade que a literatura que vinha sendo praticada no Brasil gerava um

desconforto já bem antes da década de 1920. E não precisava ter um “espírito de

vanguarda” para notar esse estado de miséria intelectual. Em 1893, Capistrano de

Abreu comentava: “A nova geração continua a fazer literatura por simples

diletantismo, sem ideal definitivo e civilizador, reproduzindo no mais das vezes,

em estilo pobre e defeituoso, autores estrangeiros.” (Abreu, apud Brito, 1978, p.

98

16). As criações do espírito enferrujavam-se mediante a reprodução de fórmulas e

apetrechos formais que, antes de denotarem o mínimo de experimentação, serviam

apenas de ornamento, uma falsa capa cobrindo a superficialidade de ideias e de

sensibilidade poética. A má consciência afetava até os grandes da época, se

lermos os termos de Raimundo Correia:

A época atual é, com efeito, dura e penosa para a vida do espírito. Que vemos nós

em torno? O patriotismo, a abnegação heroica e as mais nobres virtudes deixam de

ser uma realidade, evaporando-se em frases ocas... O aspecto sob a qual todas as

coisas são encaradas presentemente por uma literatura doentia e ‘fin du siècle’,

traduz com triste exatidão esse mal-estar que nos oprime e asfixia. (CORREIA,

apud BRITO, 1978, p. 17).

Interessante notar que, ao contrário do que acontece no primeiro

modernismo, nessa época que vai desde 1890 até 1920 ocorre justamente aquilo

que Antonio Candido chama de absorção da literatura na comunidade. Se antes a

literatura era feita por estudantes ou intelectuais e ficava concentrada apenas neste

meio, naquele momento, na medida em que a população cresce, ela deixa de ser

manifestação de um só grupo e passa a ser produzida e consumida por outros

setores sociais, esboçando a profissionalização da atividade de escritor. A

literatura vai se socializando no sentido de que está mais presente em jornais,

revistas, nas atividades dos profissionais liberais e nos salões (Mello e Sousa,

2000, p. 142). Isto quer dizer que a literatura vai se tornar cada vez mais um status

de apreciação/apresentação social, no qual debutantes copiam e decoram as

fórmulas literárias no desejo de terem visão social37

: “E se um poeta fazia

alexandrinos exatos, com cesura e tudo, era um bom poeta, poderia estar

descansado.” (Dantas, apud Brito, p. 32). Essas palavras de Pedro Dantas dão a

entender como fora natural, dentro do palco principal da literatura, a escassez de

inventividade geral naquela época e explica o mal-estar aludido por algumas

mentes de então.

Se o modernismo veio contra a provável concentração desse clima de vazio

e escassez criativa, há de se notar que, nas primeiras décadas do século, uma

figura se destacava como expoente literário: Monteiro Lobato. É o que nota

37

É a partir dessa mera repetição de formas que o Parnasianismo ou o Simbolismo se

enfraquecerá, dando condições para a crítica modernista contra essa literatura pouco inventiva e

imóvel, ao contrário dos seus grandes mestres como Olavo Bilac ou Alphonsus de Guimaraens.

99

Wilson Martins, no seu livro A ideia modernista, ao afirmar que, até 1921, a

vanguarda literária esteve nas mãos do criador de Jeca Tatu (Martins, 2002, p.

26). De fato, Lobato era mais um que lamentava o panorama literário do país no

mesmo sentido dos que citamos anteriormente, só que com uma agudeza mais

proporcional e ativa de que é testemunha suas obras. Sobre o fator poesia como

elemento sinalizador de status e de fraqueza substancial dos novos escritores, ele

afirma, em 1918, no prefácio ao livro de Borges Netto: “Estrear virou sinônimo de

vir a público com uma ‘plaquette’ de sonetos na mão. Ou por preguiça (...) ou por

arrastamento promovido pela fulguração de Bilac, o caso foi que a prosa decaiu

como coisa de somenos.” E continua, agora denunciando a forma aguada da prosa

contemporânea:

Frouxa, enxundiosa, molenga, espapaçada, sem osso nem nervo, sem predomínio

das riquíssimas qualidades que fazem da prosa de Camilo a maravilha da língua

portuguesa, a nossa prosa, no principiante, é uma geleia. O adjetivo erigido a

funções de maria-mole em tiguera, copioso, excessivo, afogando o desenho no

empastamento da cor; o verbo composto amolentador da ação — ia andando,

estava fazendo — usado e abusado com o fim expresso de amanciar o período; o

descritivo naturalista, pegando como bexiga de Zola, e preposto, parece enfadar o

leitor (...) (Lobato apud Martins, 2002, p. 28)

Verdade que é difícil encontrar em algum modernista uma crítica

constituída de uma visão tão detalhada e implacável contra a literatura praticada

em seu tempo, mas não sabemos se é certo exemplificar Monteiro Lobato como

uma figura vanguardista tampouco protomodernista. A crítica, ou pelo menos a

consciência passiva, de uma situação de intenso tédio criativo, como vimos, não

era tão “nova” assim, muito menos ainda estava reservada aos “novos”, como era

o caso de Lobato, “moço àquela época embora velho de sensibilidade”, como

escreveu Sérgio Milliet (Milliet apud Brito, 1978, p.56). Entre 1918 e 1923

Urupês teve nove edições, cerca de oito mil exemplares vendidos só em 1920; já

Cidades mortas e Ideias de Jeca Tatu, no mesmo período, tiveram quatro edições,

Onda verde, duas. Ele era um fenômeno editorial então nunca antes visto. Apesar

das renovações estilísticas, da ruptura dentro daquele meio no qual predominavam

autores de “simples papel carbono de decalque”, além de sua campanha contra o

falso regionalismo idealista e manipulador, a popularidade de Lobato não o

transformou num fenômeno literário capaz de fazer eco como crítica e como

exemplo de criatividade e inventividade reformadora, i.e., ele não criou ou

100

vivificou um movimento criativo que extrapolasse suas próprias obras; sua

literatura foi revolucionária até certo ponto porque não teve um impacto que

produzisse o choque de uma transformação que alcançasse intensidade

proporcional à sua notoriedade. Ele foi, igualmente, o paradoxo de uma novidade

em literatura que não despertou uma literatura nova como movimento, e mesmo

nessa situação, não teve influência à futura visão coroada do modernismo que o

tingiu com as cores do passadismo conservador. Em quase uma década de

produção, de 1915 a 1923, ele não causou o debate nacional que o movimento

paulista proporcionou, como se ele tivesse ficado ilhado em sua fama. Apesar dos

exageros da versão oficial do modernismo, o caso Anita Malfatti revelou apenas

que as rupturas que Lobato trouxe na literatura tinham uma limitação forte: um

conservadorismo em relação aos extremos que a forma pode experimentar. Ele

queria mudar para deixar tudo como está, e não estaríamos errados se

afirmássemos que aquelas outras mentes preocupadas com a literatura tísica

brasileira também não aguentariam ver as “mistificações” vanguardistas,

demasiadas radicais. Oswald de Andrade, a respeito disso, comentava na sua

“Carta a Monteiro Lobato”:

Mas você Lobato, foi o culpado de não ter a merecida parte de leão nas

transformações tumultuosas, mas definitivas, que vieram se desdobrando desde a

Semana de Arte de 22. Você foi o Gandhi do modernismo. Jejuou e produziu,

quem sabe, nesse e noutros setores, a mais eficaz resistência passiva de que se

possa orgulhar uma vocação patriótica. (Andrade, 1971, p.4)

É neste sentido que Wilson Martins afirmou que não é Anita mas Lobato o

verdadeiro “protomártir do modernismo”, ignorado e combatido pelas novas

gerações, obsedado do papel de líder de um movimento de renovação, fadado à

exclusão da “resistência passiva”, de que fala Oswald de Andrade. Podemos

comparar, no entanto, o papel de Monteiro Lobato na década de 1910 e o

aparecimento de Lasar Segall, em sua exposição moderna datada de 1913; ao

mesmo tempo há de se confirmar o que notamos antes sobre o “teor de

vanguarda” que regia a recepção das raras aparições inovadoras, tanto na literatura

como nas artes plásticas. Primeiro, percebemos que, já no começo da década de

1910 a arte não-acadêmica existia em alguns focos e, ao contrário do que

aconteceria com Anita Malfatti, ela não era descrita em termos de “paranoia e

mistificação”. Tanto é que tal exposição de Segall foi bem recebida pelo

101

conservador O Estado de São Paulo de 1º de março de 1913: “Todos os seus

trabalhos, de uma técnica moderna e às vezes ousada, têm uma nota de

sinceridade que impressiona muito favoravelmente e que os torna dignos de

atenção do público.” (apud Brito, 1978, p. 68). Tal exposição, no entanto, não

reacendeu o debate sobre inovações técnicas vanguardistas nas artes plásticas

brasileira, foi apenas um foco novo mas fraco na modorra cultural. Mário de

Andrade se espantaria com a disparidade de contraste entre as recepções de Segall

e Anita: “A inconsistência brasileira era tamanha que, pelo contrário, Lasar Segall

conseguiu o aplauso dos jornais e, o que é assombroso, o elogio de Nestor Pestana

pelo O Estado de São Paulo.” (Andrade, apud Brito, 1978, p. 67). É Nestor

Pestana, segundo Mário da Silva Brito, o “idealizador” da crítica de Monteiro

Lobato à pintora de A estudante russa. Importa assinalar aqui que mesmo ideias

novas consideradas apenas excepcionais como o caso de Segall em 1913, como as

consideradas como fenômeno popular no caso de Lobato, não conseguiam reagir

em conjunto e com força bastante para empreender uma nova dinâmica cultural ao

país.

Em segundo lugar, os casos de Monteiro Lobato e de Lasar Segall

exemplificam não apenas o conservadorismo reinante mas também as limitações

do que era considerado como moderno ou, pelo menos, “novo”. Segall de longe

passava do que Lobato considerava, no famoso artigo, como “arte caricatural”: “É

a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura

da cor, caricatura da forma — caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar

uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador.” (Lobato, 1978,

p. 53). A arte nova de um Lasar Segall, como a do próprio Lobato, não

comportaria os extremos de experimentação formal que deturpasse um

naturalismo seco, ou o mínimo de inteligibilidade conceitual ao qual a arte

acadêmica era o modelo. É o que comenta Oswald de Andrade, único a defender

publicamente, ainda que de modo sensabor, a pintora expressionista: “A suas telas

chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as

nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da

oleografia.”38

(Andrade apud Brito, 1978, p. 61).

38

Oswald de Andrade afirmaria no seu Serafim Ponte Grande sobre o naturalismo pictórico:

“Transponho a vida. Não copio igualzinho. Nisso residiu o mestre equívoco naturalista. A verdade

de uma casa transposta na tela é outra que a verdade na natureza. Pode ser até oposta. Tudo em

102

Essas considerações confirmam o fato de que existia um modernismo

latente, nas reclamações ou em realizações pontuais, mas as suas expectativas

talvez não fossem as que predominavam nas vanguardas europeias das quais os

brasileiros beberiam, muito menos num nível geral com o qual o modernismo

ulterior sonhou e conseguiu. Ainda assim, essas vozes, as mais cultas e vorazes,

passariam por um silenciamento que o modernismo acabou por tornar-se

cúmplice, como no caso de um João do Rio, de um Gonzaga Duque ou de um

Lima Barreto — este um herdeiro de uma ironia que os novos não poderiam

entender.

O caso Anita Malfatti acabou sendo a vitória modernista: trouxe-os à tona

como grupo. Isto tanto a crítica quanto os próprios modernistas confirmam.

Coadunaram então as “pré-consciências” (quem diz é Mário de Andrade), a

exigência de criação de um espírito novo em resposta a um panorama específico.

O “passadismo” é o rebento das discórdias de 1917: daí em diante, qualquer

afronta aos novos em nome de uma arte morta e estanque seria rebatida com gritos

e palavras de animosidade; do mesmo modo que os modernistas transformaram a

literatura contemporânea num único bloco homogêneo, as “araras” do passadismo

ajudaram a aglutinar a arte nova vanguardista num único grupo, carrancudo e

disposto a tudo para concorrer à inteligência nacional: “Foi ela [Anita], foram

seus quadros que nos deram uma primeira consciência de revolta e de coletividade

em luta pela modernização das artes brasileiras. Pelo menos a mim.”, é o que

afirma Mário de Andrade (Andrade apud Brito, 1978, p. 71), apesar de que, em

sua opinião, a arregimentação em torno desse problema comum foi instintiva e

automática, sem nenhum debate mais claro em torno da pintura de vanguarda pois

eles mesmos não tinham uma educação plástica de vanguarda:

Com efeito: educados na plástica “histórica”, sabendo quando muito da existência

dos impressionistas principais, ignorando Cézanne, o que nos levou a aderir

incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, que em plena guerra vinha nos

mostrar quadros expressionistas e cubistas? (ANDRADE, 1972,. p. 232).

Foi o que fez Mário de Andrade ao dar gargalhadas numa visita à

famigerada segunda exposição de Anita Malfatti, mais tarde, dando-lhe de

arte é descoberta e transposição.” ANDRADE, Oswald. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo,

2007, p. 48.

103

presente um soneto parnasiano. Essa ambiguidade é latente nas formas de reação

dos modernistas que se preocuparam mais em atacar Monteiro Lobato e as hostes

“passadistas” do que em defender a pintura de Anita. Só Oswald de Andrade o

fez. Mário de Andrade enfrentou o desafio bem mais tarde. Como parte desse

clima de euforia desgarrada, Menotti Del Picchia confessava, em novembro de

1920, que também havia abominado as pinturas vanguardistas de Malfatti porque

“essa arte, por sugestão e por mal conhecê-la, eu também, como muitos,

berramente a neguei.” (Picchia, apud Brito, 1978, p. 67). A confissão de

“penitência”, como ele mesmo afirma, não tinha o mesmo tom agressivo que faria

inveja a Lobato, quatro meses antes, na Revista do Brasil, na qual Del Picchia

negava qualquer arte de vanguarda:

Daí aparecer na arte uma criação doentia, que se chamou cubismo, uma escola

enigmática e doida, que se chamou futurismo. (...) Por um decadentismo que se

acentua ignominiosamente após a guerra, na loucura crescente de se reformar a

face do mundo, os artistas hodiernos escarnecem desse passado e, por uma ironia

irritante, engendram uma arte pueril, absurda e efêmera, que divinizam sob a égide

do primitivismo e da ingenuidade. Artistas admiráveis, contagiados por essa

corrente cultuam essa arte doentia, que amanhã pela reação sensata dos artistas

menos radicais, apenas será uma ridícula memória na história da arte. (Picchia

apud Martins, 2002, p. 37)

Menotti Del Picchia aderira tardiamente ao modernismo, mas já antes de

1922 angariava fama e prestígio junto ao grupo de renovadores que tinha em

Monteiro Lobato o chefe; o Juca Mulato daquele era criativamente o “primo

pobre” do Jeca Tatu deste. Visto com desconfiança, de que Oswald de Andrade

fazia profissão de fé, Menotti Del Picchia, segundo Wilson Martins, debandou

para o lado da juventude modernista apenas pelo anseio de tornar-se chefe de um

grupo; assim se fez. Fato que poderia ter acontecido com o próprio Monteiro

Lobato, muitas vezes sondado pelos modernistas devido à sua popularidade e

respeito nacional. É neste sentido que, segundo Tadeu Chiarelli, a ambiguidade

desse tempo se fazia por estratégias delicadas. Os ataques a Lobato deviam-se ao

fato de ele não ter aceito tais investidas. Chiarelli também afirma que Anita

Malfatti, já em 1917, recuara em suas experiências vanguardistas, que os quadros

expostos na exposição deste ano eram de suas primeiras experiências, mais

radicais, e que entre 1916 e 1917 a pintora punha em questão a arte moderna,

recuando seu vanguardismo. Nestas circunstâncias, a não adesão de Lobato aos

104

modernistas fora grande fator para atribui-lhe o recuo vanguardista de Malfatti

(Chiarelli, 1995, p. 24-26). Se Lobato permaneceu em sua “sinceridade” (o termo

foi usado por Wilson Martins), Menotti foi a escolha aceita pelos novos

modernistas, posto que, à época, era já um nome feito na literatura. Assim, uma

estratégia de hegemonia ganhava maiores contornos.

Já em janeiro de 1921, Menotti Del Picchia, convertido ao futurismo do

qual, segundo ele mesmo, foi “um encruado perseguidor” pois “só ao ouvir o

nome de Marinetti sentia a ânsia de estrangulamento e minhas mãos crispavam

tenazes” (Brito, 1978, p. 168), lançava o artigo “Na maré das reformas”,

verdadeiro manifesto contra o passadismo e a favor de uma linguagem que

atualizasse a literatura à modernização crescente do meio, diga-se, de São Paulo39

:

O pensamento nas suas fórmulas objetivas deve acompanhar passo a passo a

mutação protéica da luta humana; Casimiro de Abreu não pode, com seu lirismo

romântico, cantar a agitação das greves (...) Colocando o problema da reforma

estética entre nós, pouco se salva do passado.(...) a vida século XX, com fábricas e

bolchevismo, com o sangue ainda quente derramado pelo holocausto da grade

guerra, pede outra técnica para a sua representação, outra expressão verbal para a

sua extrinsecação artística. (Picchia apud Brito, 1978, p. 188-190).

Nota-se que existiu entre os modernistas a mesma sensação que a República

causava no país. Os ventos de mudança que vieram desde fins do século engordar

o otimismo de novos rumos na política e na situação social do país revelaram-se

superficiais, senão mistificadores, ao passo em que se percebia que o novo regime

manteria as mesmas estruturas marginalizadoras vividas durante o Império.

Mesmo as conquistas econômicas das quais parte do país testemunhava, na

medida em que a imigração crescia ano após ano, o trabalho assalariado e os

níveis sociais e culturais não eram acompanhados pelos crescimento industrial nos

anos pós-guerra, nos quais também predominava uma literatura de expressão

burguesa, que ousava experienciar aqui-ali o sabor idealizado de um Brasil

arcaico no sertanismo da literatura ao mesmo tempo que se saboreava no

europeismo diletante da República Velha, em que as oligarquias cercavam-se

39

É importante ressaltar o quanto o seu paulistanismo à essa época já era gritante: “Rinchem de

inveja as outras ‘capitanias do país’, entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo

continua e continuará com a batuta da liderança.” PICCHIA, Menotti Del In BRITO, Mário da

Silva. História do modernismo brasileiro - Antecedentes da Semana de Arte moderna. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 171.

105

dentro de seus sítios políticos, e onde o parnasianismo e o simbolismo se

arranhavam nas goelas roucas dos poetas e na prosa emaranhada do naturalismo.

A guerra, no entanto, trazia a mesma sensação de que algo deveria mudar

radicalmente, cedo ou tarde. Até Alberto de Oliveira o sentia, em 1916, em pleno

discurso na Academia Brasileira de Letras: “Assim como por vossas mãos vieram

até nós antigas formas literárias, virão amanhã as novas ideias de um novo

período social, de uma nova e talvez melhor humanidade que a dura lição da

guerra prepara.” O parnasiano ainda questiona: “Falta um ideal superior que a

todos irmane e congregue. Político? Moral? Religioso? Religioso, moral e

político, e, no que nos toca, artístico e literário. Trá-lo-á o dia de amanhã finda a

calamidade da guerra?” (Oliveira apud Brito, 1978, p. 38). Ao modernismo coube

a resposta positiva. A guerra abre caminho para o Novo Mundo, é o que diz o

primeiro número de Papel e Tinta, em que Oswald de Andrade é um dos

idealizadores:

As consequências sociais da guerra refletiram-se singularmente na vida do nosso

povo. Por esse instinto de progresso, que vigia na alma das nacionalidades, o

Brasil, em cinco anos, sofreu uma transformação visceral. Todas as suas forças

econômicas, políticas, intelectuais, tiveram uma eclosão notável. (Andrade apud

Brito, 1978, p. 144).

Assim, a grande metrópole era a condição da poesia moderna, como afirma

Alfredo Bosi:

A combinação de uma nova perspectiva, o novo espaço-tempo da cidade grande do

pós-guerra, com uma bateria de estímulos artísticos europeus tornou possível,

historicamente, a Semana de Arte Moderna de 1922 (...) Não bastou que

aparecessem os talentos modernistas. Era necessário que esses talentos se

movessem no solo sólido de uma cidade moderna, capital do Estado mais

“desenvolvido” do Brasil. Então, as imagens novas da indústria, da maquinaria, da

metrópole, do burguês, do proletário e do imigrante, e sinal de relevo, do

intelectual sofrido e irônico, puderam surgir na poesia de Mário de Andrade e no

mosaico futurista de Oswald de Andrade. (Bosi, 2003, p. 210)

Como salienta Eduardo Jardim de Moraes, é justamente esse clima

dinâmico de modernidade que a vanguarda brasileira pretende apreender

consumando o que eles chamavam de atualização do ambiente artístico brasileiro,

elemento e objetivo central no primeiro modernismo. Uma nova técnica e uma

nova linguagem eram necessárias para que pudessem adquirir uma visão de

106

mundo comum às conquistas materiais modernas, aos novos preceitos morais e à

dinâmica de um cotidiano estranho aos antigos processos e matérias que a

literatura e a arte insistiam em manter. A modernização da vida, a ligação com a

práxis vital, deflagraria uma revolução nos modos de expressar, uma revolução

necessária e urgente que personificasse a própria velocidade e dinamismo que a

cidade e os aparelhos técnicos da modernidade insuflavam nos espíritos. Como

vimos anteriormente, essa revolução já estava acontecendo, e mesmo a nível

literário ela só precisava ser formalmente elaborada, como fizera os modernistas

vanguardistas, quando, enfim, como ressalta Fora Süssekind, a técnica já se torna

um “hábito” necessário (Süssekind, 1987, p. 147).

Se o ato de atravessar a rua exigia dos transeuntes da cidade a experiência

física e matemática de calcular a velocidade do automóvel, educando a retina,

repositórios do espaço-tempo, assim como outros sentidos como audição e o

olfato, tudo isso para um exercício simples e cotidiano — aquelas experiências

eram vividas todas as vezes que saiam de suas casas — então por que não senti-

las na forma e na consistência de um poema ou na construção telegráfica de um

romance? Guilherme de Almeida dá bem a síntese do que era esse sentimento,

esse espírito: “É o Fiat universal. Movimento = Realidade. Tudo quanto existe é

movimento: movimento que se realiza e se realiza no tempo e no espaço. Assim,

nada realmente existe, tudo acontece.” (Almeida apud Ulrich, 2007, p. 49). É o

que ele esboça em seu poema “Velocidade”, título e termo tão comum dentre as

produções modernistas:

Não se lembram do gigante das botas de sete léguas?

Lá vai ele: vai varando, no seu voo de asas cegas,

as distancias...

e dispara,

nunca para,

nem repara

para os lados,

para frente,

para trás...

vai como um pária...

(...)

(Almeida apud Martins, 2002, p. 49)

A mecânica do tempo (assim como da forma, da pele e corpo do poema) se

distorce, ela não tem mais as similitudes e exatidões limítrofes que o positivismo

107

lhe impunha organizando-a em blocos lineares. O que está ao redor, sua

movimentação, seus gostos, suas cores e ritmos, preenche o estado interno da

consciência de tal modo que, neste contexto em que a vida cotidiana se vê afetada

por novas perspectivas, as percepções subjetivas são profundamente marcadas

pela imensidão de experiências novas. Essa mobilização da consciência salta à

obra de arte, e, para que a sensibilidade se torne mais pura e livre, a ação e a

inteligência são rejeitadas para que a intuição ganhe espaço, a partir de um

movimento de desatenção, ocasional (como Marcel Proust entendia) ou derivado

das “palavras em liberdade” do automatismo futurista40

; como escreve Henri

Bergson: “Com efeito, é da alma inteira que emana a decisão livre; e o ato será

tanto mais livre quanto mais a série dinâmica a que se liga tender para se

identificar com o eu real.” O inconsciente a céu aberto (nos termos de Sigmund

Freud) é o que procuram esses vanguardistas para exprimirem de imediato a

relação do eu profundo com os dados externos que o cotidiano nos oferece, é o

“eu de baixo que sobe à superfície. É a crosta superior que estala cedendo a um

irresistível impulso.” (Bergson, 1988, p. 117-118). Vemos o que Mário de

Andrade sistematizou no seu “Discurso sobre algumas tendências da poesia

modernista”: “A impulsão lírica é livre, independe de nós, independe de nossa

inteligência. Pode nascer de uma réstia de cebolas como de um amor perdido (...)

O que realmente existe é o subconsciente enviando à inteligência telegramas e

mais telegramas (...)”. Continua ele:

Substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente. Esse um dos pontos

mais incompreendidos pelos passadistas. (...) Na verdade: tal substituição duma

ordem por outra tem perigos formidáveis. O mais importante é o hermeticismo

absolutamente cego (...). Erro gravíssimo. E falta de lógica. O poeta não fotografa

o inconsciente. (...) Assim, na poesia modernista, ao se dá, na maioria das vezes

concatenação de ideias mas associação de imagens e principalmente:

SUPERPOSIÇÃO DE IDEIAS E IMAGES. (Andrade, 1980, p. 242-245)

Vamos encontrar então um paralelismo muito forte com as perspectivas

freudianas no seu A interpretação dos sonhos. Ao notar em seus pacientes que o

40

Escreve Marinetti sobre as palavras em liberdade: “Desconsiderando todas as definições

estúpidas e todos os verbalismos confusos dos professores, eu lhes declaro que o lirismo é

simplesmente a faculdade raríssima de inebriar-se da vida e de inebriá-la de nós mesmos.” Apud

CALBUCI, Eduardo. Marinetti e Mário: desconexões entre o Manifesto Técnico da literatura

Futurista e o “Prefácio interessantíssimo”. In Revista USP. São Paulo. N. 79. Set/nov. 2008, p.

207.

108

ato de reflexão, no qual há o exercício da faculdade crítica, inibe algumas ideias

de tal modo que elas nunca se tornariam conscientes mas suprimidas antes de

serem percebidas, Freud aponta a necessidade da auto-observação porque

O auto-observador, por outro lado, só precisa dar-se o trabalho de suprimir sua

faculdade crítica. Se tiver êxito nisso, virão à sua consciência inúmeras ideias que,

de outro modo, ele jamais conseguiria captar (...) À medida que emergem, as

representações involuntárias transformam-se em imagens visuais e acústicas.

(Freud, 2001, p. 103-104. Grifos meus)

As imagens aliteradas são apresentadas “ocasionalmente” ao ponto de se

tornarem ordeiras em seu próprio caos, como no poema “Noturno”, do mesmo

Mário de Andrade:

Gingam os bondes como um fogo de artifício,

Sapateando nos trilhos,

Cuspindo um orifício na treva cor de sal...

Num perfume de heliotrópios e de poças gira uma flor-do-mal... Veio do

Turquestão;

E traz olheiras que escurecem almas...

Fundiu esterlinas entre as unhas roxas

Nas oscilantes de Ribeirão Preto...

- Batat’asst’ô furnn!...

Luzes do Cambuci pelas noites de crime!

Calor... E as nuvens baixas muito grossas,

Feitas de corpos de mariposas,

Rumorejando na epiderme das árvores...

(Andrade, s/d, p. 53)

A deformidade, ou melhor, a simultaneidade de sentidos é que gera a

sensação de distorção, superposição, dissolução de que testemunham a arte

vanguardista, daí que para uma sensibilidade educada na apreciação da arte

figurativa e naturalista, estas realizações possam parecer “caricaturais”, como o

escrevera Monteiro Lobato. Como no poema, as sensações proporcionam raios

luminosos que exemplificam a variabilidade de perspectiva que a noite

proporciona no poeta, como se sua emoção comunicativa se debelasse apenas no

balbuciamento solto e cadente de sua subjetividade formando assim mosaico

acabado41

.

41

É o que nos diz o simultaneísmo, do qual nos fala Soffici, no seu Estética futurista: “Posto o

artista como centro móvel do universo vivente, todas as sensações e emoções, sem perspectiva de

109

Mário de Andrade afirma que existe uma certa ordem naquele aparente

caos de que se taxava de feio; para ele, no entanto, na arte moderna, não existe

nem o feio nem o belo, pois são ambos relativos. É o mesmo que pensava Carlos

Drummond ao notar que “arte e beleza são, afinal, categorias independentes.”

(Andrade apud Cury, 1988, p. 215). A mistura de sentidos que produzia tal arte,

era apenas uma elaboração pulsante, um movimento e uma dinâmica análoga ao

que se passava no exterior, i.e., a impulsão lírica é uma forma de dizermos que, tal

qual a combustão de um automóvel, nosso eu profundo também é uma máquina,

uma máquina criadora volúvel. Como escreveu Rubens Borba de Moraes:

As invenções modernas transformaram nossos sentidos. O homem não tem mais 5

sentidos, tem centenas, milhares. A velocidade da vida moderna obriga o artista a

realizar depressa o que ele sentiu depressa, antes da inteligência intervir. Desse

estado de coisas nasceu a sistematização da arte moderna. O tempo!... Além da

sintetização cinematográfica, a vertigem da vida moderna cria também, no artista,

uma facilidade de análise, produzida pela multiplicidade de fatos diferentes que se

realizam em pequeno espaço de tempo. (Moraes apud Martins, 2002, p. 42)

Existe a necessidade de se adequar a certo espírito que pairava no ar: o

espírito moderno. Difícil não encontrar nos escritos desses modernistas o termo

espírito acompanhado de palavras que apontam a necessidade de ir ao seu

encontro, de estar de acordo com os tempos novos ao nível “superestrutural” da

estética e da cultura, de um processo de autoconhecimento, de autoconsciência

mesma. A similaridade entre tempo e cultura não prescindia de conteúdos já

expressos nos meios de vida e condição do homem moderno, faltava apenas uma

medida expressional que assimilasse tais conteúdos coerentemente, mimética e

sistematicamente, de modo que a forma estética passou a ser o ponto de partida e

o de chegada imprimindo até mesmo as formas da vida nas características

epidérmicas das obras, como bem fez Guilhaume Apollinaire em seu Caligramas.

Tal espírito, portanto, tinha sua capacidade de produção aliada às condições

materiais de uma sociedade em completo desenvolvimento técnico, mas, sendo

que as atividades do espírito não acompanham as materiais, ainda mais numa

estrutura capitalista na qual a revolução permanente das estruturas econômicas é a

lei geral, onde tudo que é sólido desmancha no ar, as inovações espirituais espaço ou de tempo, atraídas e fundidas num ato criativo poético. Simultaneidade de estados de

espíritos polarizados por vias análogas de recordações e de outros tempos, como luzes de astros

errantes concentrados num espelho” citado por CAMPOS, Haroldo. Miramar na mira In

ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 1990. p. 12.

110

padecem de “atraso” quanto às materiais. A decadência da Europa pós-guerra

animou então as mentes desses intelectuais que viram, tanto na insuficiência e

decadência do Velho Mundo quanto nas conquistas econômicas brasileiras, a

chance de acertar as contas junto ao que Antonio Candido chamou de recalque

brasileiro. O otimismo da década de 1920 era o produto das contradições

explícitas pelas quais uma intelectualidade de vanguarda assume as inovações de

uma sociedade que admite para si as conquistas de um mundo desigual no qual a

riqueza se produzia sobre os cacos de um mundo-modelo então mergulhado no

caos social e econômico.

Mas o entusiasmo instintual na adesão ao caso Anita Malfatti, velando certa

ignorância do que era a vanguarda, também permanece neste momento no qual,

em pleno 1926, escrevendo em Terra roxa e outras terras, Paulo Prado ainda não

sabe bem o que era tal espírito moderno: “Os trabalhos publicados obedecerão a

uma linha geral chamada espírito moderno, que não sabemos bem o que seja, mas

que está patentemente delineada pelas suas exclusões.” (Prado, 1926, p. 1). As

exclusões aí dizem respeito tanto às dissidências dentro do modernismo à época

quanto aos passadistas atrasados que ainda teimavam em ir contra o “espírito do

tempo”. Guilherme de Almeida confirma o tal quadro:

Sente-se agora na humanidade, uma alteração inexprimível, uma preocupação

estranha e fala-se muito em ‘espírito moderno’. Ninguém saberá definir esse

espírito, localizá-lo, analisá-lo; sente-se que ele existe de fato — e nada mais. E

seria mesmo imprudência, até tolice, querer explicá-lo, situá-lo. Sabemos que tal

quadro, tal poema, tal música ‘são modernos’ ou ‘não são modernos’. Por quê?

Impossível responder. São porque são, não são porque não são. (Almeida, 1939,

s/p)

Plínio Salgado, em artigo publicado em 1928 na revista Festa, comentando

o primeiro modernismo, via, do mesmo modo, um espírito rondando a inteligência

brasileira: “Essa conformidade de expressões, essa oficialização de técnica

revelam, por certo, ‘um estado de espírito’, mas é um estado de espírito cultural,

que não corresponde a uma realidade nacional, e tem mesmo muita porção de

Europa.” (Salgado, 1978, p. 286). Se fôssemos contar o número de vezes em que

o termo se repete na famosa conferência de Mário de Andrade sobre o movimento

modernista, ficaríamos espantados com o gosto que se tinha em empregá-la vinte

e seis vezes. Graça Aranha acreditava ser passadismo tentar definir o que quer que

111

fosse chamado de “espírito moderno” justamente pelas características do seu

próprio tempo no qual “tudo é móvel, tudo se esvai e tudo se transforma”,

concluindo que o “espírito moderno é uma abstração. O momento em que o

definimos e o captamos, entrou no passado.” No entanto, mais adiante, ele admite

o fato de que o espírito moderno detém, ao contrário do subjetivismo passivo ou

dinâmico de outras épocas, o objetivo dinâmico, em que “a arte exprime o

movimento das coisas, que agem pelas suas próprias forças, independentes do eu.”

(Aranha, 1925, p. 24-25).

Ora, a experiência-movimento se expressa de forma pura no cinema, onde

diversas imagens fotográficas apresentadas velozmente dão a aparência de

movimento, sendo essa montagem de imagens o elemento técnico fundamental

que dá vida à sétima arte. Assim, o cinema vai ser o exemplo mais pertinente no

sentido de elaboração técnica de uma arte que tenha como princípio o movimento,

a dinâmica do tempo transcorrido tanto material quanto abstratamente. Essa lição

o primeiro editorial da revista Klaxon já entendia:

KLAXON sabe que o cinematógrafo existe. Perola White é preferível à Sarah

Bernhardt. Sarah é tragédia, romantismo sentimental e técnico. Pérola é raciocínio,

esporte, rapidez, alegria, vida. Sarah Bernhardt = século XIX. Pérola White =

século XX. A cinematografia é a criação artística mais representativa da nossa

época. É preciso observar-lhe a lição. (Klaxon, 1922, p. 2).

O ambiente social então já se encontrava familiarizado — “automatizado”,

se formos pegar emprestado a expressão de Flora Süssekind — com essa

experiência, visto, principalmente depois da guerra, como a maior influência entre

a juventude da época. É o momento em que a indústria cinematográfica americana

tem uma próspera alavancada, devido mesmo às circunstancias que a guerra

impôs ao cinema europeu, mais afeito aos procedimentos de vanguarda e

experimentalismo formal dos quais, à vista daquele, procuravam apenas uma

diversão mais convencional e emotiva; soma-se a isso o aparelho propagandístico

e o sistema de distribuição que enchiam as salas de cinema de astros americanos,

verdadeiros deuses novos de um nicho mercadológico no qual colaboravam a

indústria de magazines, pôsteres, fofocas, fotografias etc. (Sevcenko, 1992, p. 92-

93). Por seus aspectos técnicos o modernismo então não deixou de lado a

presunção vanguardista que o cinema trazia em si. Mário de Andrade assim

comenta:

112

A OBRA DE ARTE É UMA MÁQUINA DE PRODUZIR EMOÇÕES. E só

conseguimos descobrir essa verdade porque Malherbe chegou. O Malherbe da

história moderna das artes é a cinematografia. Realizando as feições plásticas e as

das palavras (e note-se que a cinematografia é ainda uma arte infante, não sabemos

a que apuro atingirá), realizando a vida como nenhuma arte ainda o conseguira, foi

ela o Eureka! das artes puras. (Andrade, 1980, p.258)

Realizar a vida moderna é uma tarefa que, na arte, adequa a experiência da

velocidade e da dinâmica coletiva entregue aos impulsos gerados pela

simultaneidade de sensações que o cotidiano moderno nos oferece. Esses

impulsos primários são aqueles mesmos que Mário de Andrade tenta teorizar em

seu A escrava que não é Isaura, abstendo das inocorrências ativas da consciência,

da inteligência, para a emanação purista das fontes mais profundas com as quais o

lirismo de caráter modernista acompanha os distúrbios e polifonias que a vida

numa cidade moderna causa em qualquer um que tenha a experiência de sair à rua.

A procura por uma origem perdida no inconsciente, primitiva e ao mesmo

tempo ocasional, é não apenas uma reinvidicação das diversas correntes

modernistas e de vanguarda, mas também uma carência de qualquer ser comum

exposto ao bombardeio de novas sensibilidades, como escreve Nicolau Sevcenko:

As dimensões oníricas profundas da mente, que compartilham da força desse

impulso primordial, são por isso guias mais legítimos que as superfícies

encrostadas da consciência, esterilizadas pelo longo empenho histórico da

imposição de padrões de ordem e estabilidade. (SEVCENKO, 1992, p. 155).

É essa relação entre os condicionantes de uma vida explosiva em termos

materiais e dinâmicos e as intempéries desse impacto nas mentes das pessoas,

reinventando suas formas de conceber e de estar-no-mundo, que irá derivar o

primitivismo interno tão alardeado pelas vanguardas. Não se pode dizer que existe

desde aí um irracionalismo sistemático e dogmático que a primeira guerra dará

como rebento às instituições políticas e à filosofia, mas antes uma tentativa de

explicar e de conceber, a nível estético e histórico, a complexidade de uma

sociedade que não parece ter raízes profundas, de certo modo, esvaziada não em

sua aparência externa mas na de capacidade de integração de seus próprios

produtores. As raízes dos impulsos instituais dos homens e mulheres da sociedade

moderna, que Sigmund Freud fora buscar historicamente nas criações das

interdições em seu Totem e tabu, de 1919, alardeando nossa genética social

primitivista, fora para os modernistas o modo de comunicação com uma realidade

113

fragmentária mas deslumbrante. Quando então Freud afirma que a arte “funcionou

originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos”

(Freud, 1974, p. 114), as vanguardas já haviam experimentado todos os

desregramentos do subconsciente, tentando resgatá-los. A impulsão lírica é o

precedente da arte livre dos cacoetes acadêmicos, a nau desgovernada que

descobre o novo mundo. Mário de Andrade, em seu A Escrava não é Isaura,

escreve:

(...) os poetas modernistas consultando a liberdade das impulsões líricas puseram-

se a cantar tudo: os materiais, as descobertas científicas e os esportes. O automóvel

de Marinetti, o telégrafo de La Rochelle, as assembleias constituintes para o russo

Alexander Blox, o cabaré para o espanhol De Torres, Ivan Goll alsaciano trata de

Carlito, Leonhard alemão se inspira em Liebknecht enquanto e Eliot americano

aplica em poemas as teorias de Einstein, eminentemente líricas. E tudo, tudo o que

pertence à natureza e à vida nos interessa. (Andrade, 1980, p.217)

O primitivismo “interno” enriquecido pelas conquistas freudianas ou pela

psicologia das massas de um Gustave Le Bon acompanha as descobertas das

culturas “primitivas”. Como nos conta Eric Hobsbawm no seu A era dos impérios:

No campo da arte, e especialmente das artes visuais, as vanguardas ocidentais

trataram as culturas não-ocidentais em total pé de igualdade. Na verdade,

inspiraram-se preponderantemente nelas nesse período. (...) Seu ‘primitivismo’ era,

sem dúvida, sua principal atração, mas é inegável que as gerações de vanguarda no

início do século XX ensinaram os europeus a ver essas obras como arte — muitas

vezes grande arte — em verdadeira grandeza, independente de sua origem.

(Hobsbawm, 1988, p. 120-121)

O imperialismo europeu deu ênfase à exoticização de manifestações

culturais de povos por ele dominados, trazendo para as metrópoles todo um

aparato de objetos como roupas, máscaras, fantasias, penugens, amuletos, além de

danças, músicas, teatro e jogos; daí que surgiu o foco de desenvolvimento de

pesquisas etnográficas, antropológicas e históricas. Nas Exposições Universais

pavilhões dedicados a essas culturas não-europeias vislumbravam os visitantes,

tornado populares essas “curiosidades” de povos “esquisitos” mas ao mesmo

tempo interessantes, demonstrando assim um acordo implícito com a violência

neo-colonialista. É nesta onda de primitivismo que danças exóticas que tinham

forte intensidade rítmica são popularizadas, como as chamadas danças e músicas

negras, como o jazz, do qual Scott Fitzgerald diria que “está associada a um

114

estado de estimulação nervosa, não diferente daquelas das grandes cidades por

trás das linhas de guerra.” (apud Sevcenko, 1992 p. 172 e 181).

É importante frisar essa relação intrínseca entre os diversos movimentos de

vanguarda e suas associações com um progressismo que por muitas vezes não

admitia uma visão mais global do desenvolvimento do capitalismo. Os

modernistas brasileiros tentaram adequar sua linguagem às inovações tecnológicas

e urbanísticas da sociedade sem reconhecer as vicissitudes que esse

desenvolvimento causava àquela época em que cidades brasileiras passavam por

crises sociais que eram maquiadas para não estragarem a imagem de um progresso

em conformidade com a ordem burguesa. Já comentamos o fato de que, neste

sentido, eles concorreram para o falso discurso burguês de imposição a uma

lógica ornamentalmente tecnicista, tudo porque eles desejavam a inclusão dentro

do modelo europeu de desenvolvimento a par do reconhecimento estético. Tal

comportamento pode ser facilmente explicado pelo contexto do pós-guerra que,

tornando-se um marco divisório de dois mundos (ou dois séculos como quer Eric

Hobsbawm), fez com que as auguras sofridas no continente europeu

conscientizassem as alas vanguardistas europeias em direção a um ceticismo com

relação à sua democracia liberal que se alimentava dos crimes do imperialismo,

esse mesmo fator de combustão da guerra, ao mesmo tempo em que,

contrariamente, no Brasil, o desenvolvimento técnico e urbano (não o social e

político) era agraciado porque revelava a entrada do Brasil na modernidade ou,

mais especificamente, a entrada da modernidade no Brasil, o canto maior desse

primeiro modernismo. É neste sentido que o nosso argumento de que a crítica

modernista era parcial parece mais acertada.

A própria crítica ao passadismo e à tradição canônica literária não

ultrapassava o campo da arte. É só lembrarmo-nos da famosa polêmica entre

Mário de Andrade e Oswald de Andrade sobre o mal-entendido surgido logo após

o autor de Os condenados lançar em artigo uma apresentação do poeta futurista

autor de Paulicéia desvairada. Ao ver seus poemas aliados à corrente futurista

italiana, personificada em Marinetti, Mário fez questão de refutar qualquer

concordância entre os dois. Dentre os argumentos de independência com relação a

qualquer escola modernista, ele erguia-se em defesa da tradição religiosa, sem

sequer mencionar a proximidade que então ocorria entre o marinettismo e o

fascismo, mesmo que ele tivesse consciência disso. Sua recusa falou apenas isso:

115

Algumas ideias dele pude bem compreender ou distinguir; mas estas horrorizam: o

banimento completo da lembrança de Deus, o desrespeito absoluto pelo meigo

idioma, também gentil, e o abandono da noção de pátria e principalmente de

tradição. (Andrade, 1978, p. 237).

Apesar de que nem todos os modernistas tinham um catolicismo tão

arraigado como o de Mário de Andrade, é raro percebermos alguma palavra crítica

com relação à religiosidade ou ao catolicismo, mesmo que, no contexto de

expansão da reação católica baseada no Centro D. Vital de Jackson de Figueiredo,

eles criticassem a interferência tanto do que seria posteriormente denominado pelo

próprio Mário de novo condoreirismo que se interpunha tanto na literatura

espiritualista como na crítica de teor ortodoxo católico, como no caso de Tristão

de Athayde. É preciso reconsiderar, portanto, os limites do modernismo como

uma renovação geral da cultura brasileira. A modernidade tão propalada era

específica, pois era preciso, como na política, uma revolução dentro da ordem. Da

ordem apenas estética.

A modernidade entendida como o automóvel, o avião, o telefone, a vitrola,

o cinema, o transatlântico, a lâmpada elétrica etc. não era homóloga, aqui, àquela

que os ideólogos liberais do capitalismo propunham, a democracia fundada na

ampla participação de todos e no direito de manifestação. Nem mesmo a

organização política de uma República que se baseava na constituição americana

se empenharia em resolver as distorções capilares dos acordos oligárquicos, que

iam desde os pequenos distritos nos interiores do país até o Palácio do Catete, de

uma política falsamente liberal marcada pelas constantes arregimentações estatais

em todos os campos da sociedade. A modernidade assim, na aparência vulgar de

mera roupagem, falseava as tensões intestinas na política e as desigualdades

sociais além das revoltas levadas a cabo pela população e pelos movimentos

operários. Daí que a virada modernista em direção à nacionalidade contém em sua

substância também essa consciência de que existe não apenas um problema a ser

resolvido internamente mas, antes de tudo, a necessidade de união e de descoberta

dos profundos da nação, repercutindo nas diversas correntes pós-1924. Como se

vê, a reação foi a pior possível pois, no lugar de discutirem as implementações e

as consequências do que seria aquela modernidade, eles “recuam” a uma

estratégia em que a nacionalidade e o populismo aliados encobriram ou mesmo

116

ignoraram os verdadeiros problemas sociais presentes naquele momento. Sobraria

então, a nível político, para o Vargas e sua resposta... antiliberal. Retrocesso do

retrocesso. Negação da negação.

Entretanto, a modernidade modernicizante do primeiro modernismo pode

ser descrita como caso único na história modernista. Somente nesse momento que

a revolução na estética aproxima-se de uma modernidade revolucionária, ainda

que vista exteriormente. Somente nela houve uma liberdade de criação nunca

antes experimentada, pesquisas estéticas inéditas, polêmicas intelectuais

generalizadas, e , acima de tudo, houve um completo afastamento da necessidade

de descobrir a ontologia brasileira, de descrever suas paisagens e tipos, de pintar a

obra de arte de verde e amarelo. Se fosse julgado apenas por isso, poderíamos

considerá-lo uma “revolução”. A arte e a vida finalmente tentam encontrar-se em

suas similitudes, a vida moderna exigia o pintor da vida moderna. Menotti Del

Picchia na sua conferência na Semana de Arte Moderna, diz de seus elementos:

Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos,

motores, chaminés de fabricas, sangue, velocidade, sonho , na nossa arte! E que o

rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o ultimo deus

homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e a sonhar, na era do jazz-band e

do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena.

(Picchia apud Moraes, 1978, p. 65)

Ou Carlos Drummond de Andrade, em 1923:

E pensando nisso já os meus sentidos se volvem para a rua, a grande rua com seus

alegres rumores, e logo a vertigem me invade, nesse cenário de vida perturbadora...

A vida! A vida! Sempre a vida! E o trabalho, os gritos, os espantos, das tragédias...

(Andrade apud Cury, 1998, p. 59).

Aqui os modernistas brasileiros se aproximariam das vanguardas históricas,

no sentido de maior proximidade entre a vida cotidiana, nova, moderna, e a arte.

Não há crítica à instituição arte, mas a um estilo e uma forma de fazer literatura. A

crítica é, em primeiro lugar, imanente ao sistema, quer dizer não vai além da

instituição arte pois preocupa-se com a arte em sua dimensão apenas simbólica,

mesmo que dentro dessa crítica esteja em jogo a necessidade de exprimir o

“espírito de uma época”, como Mário de Andrade justificava o seu modernismo

em carta a Manuel Bandeira. Não existe uma relação que desvendasse uma falha

117

ou uma distorção em que a arte implicasse na concepção que a sociedade fazia de

si e da função daquela em disfarçar ou recalcar verdadeiros problemas sociais,

como as desigualdades socioeconômicas, regionais, culturais e raciais que o país

abrigava. Quando o modernismo se enveredou na trama política e cultural, como

um projeto ideológico mesmo, o seu tema e suas presunções ainda estavam longe

de um expediente que realmente “sanasse o Brasil”, termos tantas vezes repetidos

pelo autor de Paulicéia devairada.

Em segundo lugar, ela também é autocrítica da arte. Autocrítica parcial,

como podemos entender, devido ao seu caráter limitado de não poder implodir a

função da arte nesta sociedade, como vimos acima. Entretanto, ela constituiu-se,

ainda no sentido apenas estético, numa autocrítica na medida em que pensou a

arte nas suas necessidades modernas, no seu desejo de atualização, mediante

certas transformações urbano-técnicas pelas quais passavam certas cidades

brasileiras. Ainda assim, a formalidade estética modernista era mais interessante

que a matéria da vida moderna, do que o simples arrolamento arbitrário do

cotidiano. Escreve Mário no seu “Prefácio Interessantíssimo”:

Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no

que tem de exterior: automóvel, cinema, asfalto. Si estas palavras frequentam-me o

livro não é porque pense com elas escrever o moderno, mas porque sendo o meu

livro moderno elas têm nele sua razão de ser. (ANDRADE, s/d, p. 32).

A livre forma modernista é que prevalece comparada à livre temática do

assunto, embora esta não fosse passível de recuo. Não adianta descrever a

modernidade se você não sente no espírito moderno, e Mário de Andrade já havia

dado a “poética” sobre a literatura modernista em seu A escrava que não é Isaura,

no qual encontra no subjetivismo desenfreado a fonte de tal poesia. Só mais tarde

Oswald de Andrade e o grupo reunido no verde-amarelismo vão dar suas

contribuições sobre a intuição modernista. Essas elaborações demonstram o

quanto esse primeiro modernismo tentou se desvincular de toda uma formação

literária que não implicava um reconhecimento histórico da modernidade pautada

na tradição brasileira e que se pudesse sentir tanto na linguagem quanto nos seus

temas, aproximando-se assim da práxis vital moderna.

No entanto, como dissemos, o primeiro tempo modernista foi um período

nunca antes experimentado nas nossas letras. Sua maior lição foi, paradoxalmente,

118

ter ido além dos questionamentos que a tradição brasileirista da cor local exigia. E

esta é sua maior conquista. O período de experimentação formal, de destruição

dos cânones, da liberdade de temas e artifícios, da polemica, da blague crianceira,

o período heroico, como o chama Mário de Andrade, do “escândalo publico

permanente”, se serviu não como exemplo mas lição, a “revolta era justíssima”,

como se dizia na apresentação da Klaxon. (Klaxon, 1922, p. 3). Mais tarde até

Mário de Andrade iria lamentar que o “pragmatismo das pesquisas sempre

enfraqueceu a liberdade de criação.” (Andrade, 1972, p. 240). O importante a

ressaltar é que tanto sua crítica imanente quanto sua parcial autocrítica revelaram

a radicalidade que um movimento artístico de inspiração na pura liberdade total

pode proporcionar de conquistas para uma cultura literária.

5 Segundo modernismo: o golpe de estado literário

O caráter único da primeira época modernista sobreviveu às influências

nacionalizantes porque o desejo maior era de distanciamento crítico para que os

novos pudessem dedicar-se à pesquisa estética, e se eles realmente queriam ser

reconhecidos, a evocação da polêmica e da provocação não seria efetiva se o seu

comportamento fosse o de “mocinhos educados”. Adotando aquilo que Bürguer

chamou de “estética do choque”, eles provocariam uma nova educação estética no

público, mesmo que essa reação fosse negativa. Assim, foram tratados como

loucos e “negados e negadores”, nos dizeres de Oswald de Andrade (Andrade,

1992, p. 26). Encarando o momento como realmente de luta e aglutinação de

objetivos, conseguiram lançar para si os holofotes das contendas literárias,

podendo ser ouvidos, entrevistados, publicados, e por alguns, reconhecidos.

Se entre 1917 e 1924 o modernismo conseguiu unir a crítica imanente à

parcial autocrítica, durante o ano do “Manifesto Pau-Brasil” as coisas mudariam

radicalmente de rumo. A brasilidade tornar-se-á a problemática mais comum em

todos os grupos modernistas que, desde então, aos poucos foram se formando.

Aliás, é interessante notar que, quando eles refinam a necessidade de criação de

uma literatura brasileiristica, ao invés de unirem-se em torno de tal projeto, os

ânimos acirram-se, fragmentando mais e mais um grupo antes relativamente

homogêneo. Já que a luta contra o passadismo parecia ganha e que eles estavam

nacionalmente reconhecidos, o terreno estava pronto para que as conquistas e

pesquisas estéticas tivessem mais liberdade ou, no mínimo, menos preconceitos.

Ao invés disso, houve um recuo à velha tradição de pensar o Brasil em termos

esteticamente nacionais.

Em um dos vários artigos de Machado de Assis em que se dão notícias da

“atual literatura brasileira”, podemos ver o que ele chama de golpe de estado

literário, ao reinvidicar uma política para certas manifestações artísticas ainda

incipientes no país42

. Pedimos emprestada a definição de Machado para dar noção

42

Opinando sobre a montanha de traduções do teatro francês que impedia o afloramento de um

teatro nacional, Machado exclama: “Haverá remédio para a situação? Cremos que sim. Uma

reforma dramática não é difícil neste caso. Há um meio fácil e engenhoso: recorra-se às operações

políticas. A questão é de pura diplomacia; e um golpe de estado literário não é mais difícil que

uma parcela de orçamento. Em termos claros, um tratado sobre direitos de representação

reservados, com o apêndice de um imposto sobre as traduções dramáticas, vem muito a pelo, e

120

ao que aconteceu durante essa segunda fase modernista. A audácia, a sutileza e

certa originalidade, com as quais os modernistas passaram a pensar novas formas

de erguer uma literatura que alcançasse a seiva brasileira, ocasionaram uma

ruptura brusca aos modos de encarar a literatura em comparação à época do

primeiro modernismo. A posterior coroação de seus projetos de defesa do

patrimônio, na atuação no Ministério da Saúde e Educação, na Secretaria de

Cultura, na elaboração de projetos de leis, na expressão artística em locais e

repartições públicas — tudo isso foi resultado de sua ambição por uma cultura

“sistematicamente” brasileira.

O que mais chama a atenção é justamente o fato de que a aglutinação

orgânica em torno de uma noção unificadora da cultura fosse capaz de criar um

“estado de espírito nacional”, como diria Mário de Andrade em sua conferência de

1942. Criar uma sociedade orgânica que se nutriria dessa cultura em todos os seus

níveis, desde o seu produtor até a cadeia de distribuição e sua recepção, sem

contar o conteúdo de ideias sobre ela mesma, criou um estado tal que o próprio

“nacional” tornou-se uma instituição estética. Em todas as conquistas feitas pelo

modernismo citadas por Mário de Andrade na conferência acima citada, o caráter

“coletivo” e “orgânico” era o que tornava o modernismo distinto dentre outros

movimentos brasileiros.

Já é tempo de observar, não o que um Augusto Meyer, um Tasso da Silveira e um

Carlos Drummond de Andrade têm de diferente, mas o que têm de igual e o que

nos igualava, por cima dos nossos despautérios individualistas, era justamente a

organicidade de um espírito atualizado, que pesquisava já irrestritamente radicado

à sua entidade coletiva nacional. (Andrade, 1972, p. 243. Grifos meus)

Para Mário de Andrade, o Brasil finalmente sistematizava a arte e seu

conteúdo de uma forma que o coletivo da nação poderia ver-se e sentir-se dentro

de um ideal comum, num “todo orgânico da consciência coletiva” (idem, p.242),

sintonizado no objetivo de atualização constante do espírito. Vejamos os

resultados desta organicidade efetuada pelo modernismo a nível nacional: em

Manaus, tínhamos Abguar Bastos com o seu manifesto “Flaminaçu”; no Pará, o

grupo de Lúcidio Freitas, Tito Franco, Dejard de Mendonça, Alves de Souza e

Peregrino Júnior; no Maranhão, as vozes de Manuel Bittencourt; no Ceará, o

convém perfeitamente às necessidades.” ASSIS, Machado. O passado, o presente e o futuro da

literatura In Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1974, v. III, p. 787.

121

grupo modernista integrado por Aldo Prado, Carlos Demétrio, Leite Maranhão,

Júlio Maciel, Pereira Júnior e Lúcio Várzea; no Recife, o modernismo e o

regionalismo que reuniam Joaquim Inojosa, João Vasconcelos, Ascenso Ferreira,

Valdemar de Oliveira, Gilberto Freyre, Olívio Montenegro e Sílvio Rabelo; em

Maceió, temos Jorge de Lima, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aurélio

Buarque de Holanda e Valdemar Cavalcanti; em Minas, Carlos Drummond de

Andrade, João Alphonsus, Martins de Almeida, Rosário Fusco, Emílio Moura; no

Rio Grande, Augusto Meyer, Raul Bopp, Rui Cirne Lima, Pedro Vergara, Roque

Calage, Paulo Arinos, João Pinto da Silva, Carlos Dante de Morais, dentre outros.

Essa organicidade nacionalmente constituída que o modernismo modelou foi,

segundo o conferencista Mário de Andrade, a maior conquista geral que nenhuma

outra manifestação literária e cultural conseguiu alcançar. A repercussão coletiva

era o que os diferenciavam de um Gregório de Matos ou de um Castro Alves e

suas respectivas matérias literárias. O debate nacional só foi viável devido à esta

conquista que punha todos eles radicados em sua realidade.

No entanto, não é dispendioso reafirmar que esta organicidade estava

fechada apenas às hostes intelectuais do país, quer dizer, a uma minoria ínfima da

população. Apesar de notar a ampliação da participação no âmbito cultural,

Antonio Candido, avaliando as conquistas da década de 1920 que repercutiriam na

seguinte é categórico ao afirmar:

Não se pode, é claro, falar em socialização ou coletivização da cultura artística e

intelectual, porque no Brasil as suas manifestações em nível erudito são tão

restritas quantitativamente que vão pouco além da pequena minoria que as pode

fruir. (Mello e Souza, 1986, p. 182).

Talvez Mário de Andrade nem tenha intuído de tal coletivização uma

socialização democrática das ideias, já que o tom ácido na análise do movimento

em 1942 tenha se centrado no déficit de participação política dentro do contexto

de encerramento das liberdades do Estado Novo, não incluindo assim a

participação popular dentro mesmo do debate modernista e apenas questionando a

escassez de interesse políticos por parte dos intelectuais.

Todo o trabalho que pregava a autonomia como grande necessidade de uma

arte que, se desejasse sobreviver em meio às volatilidades da modernidade,

deveria também acompanhar o caos de sensibilidade proporcionado pela vida

122

moderna, tirando daí sua “máxima expressão”, como queria o próprio Mário de

Andrade no seu A Escrava que não é Isaura, estacou na deliberada aliança com

uma temática que impunha a realização clara das expressões nacionais. A

finalidade dessa nova arte modernista não era a de representar uma classe, uma

região, uma raça, a modernidade radicada na atualidade dos temas e da pesquisa

estética, mas de resgatar o que ele entendia como um recalque da sociedade

brasileira, empenhando-se em valorizar as culturas primitivas e edênicas que a

cultura de elite reprimira como manifestação da cultura brasileira.

Como já foi reiterado, o ano de 1924 é tido como um marco divisório dessa

inclinação, quando a estética do novo dá lugar à ideologia cultural-nacionalista. O

que em 1924 se dava no âmbito de expressão literária, na presença de uma cor

brasileira nas obras de poesia e prosa, balizadas por pesquisas linguísticas e

folclóricas, na década de 1930 estabelecer-se-á no nível das políticas estatais de

cultura, configurando a vitória final do movimento, assim como sua concomitante

“derrota”. Mas o ano de 1924 guarda em si o problema de se saber como de fato

ocorreu tal virada e por quais razões. Eduardo Jardim de Moraes estabelece duas

correntes interpretativas que até hoje podem ser consideradas nas leituras sobre o

modernismo. A primeira diz respeito àquela interpretação que ele chama de

idealista, por tratar as mudanças no âmbito literário apenas dentro da própria

dinâmica literária sem nenhuma ligação com fatores extra-literários. Inclui nesta

perspectiva a obra de Wilson Martins por nós aqui já conhecida, indicando-a

como dotada de uma ótica autonomista da literatura, como se esta tivesse uma

“vontade literária” (Moraes, 1978, p. 74), como parece quando o crítico fala da

nova “escolha de rumo determinado” no ano de 1924. Acreditamos que não é bem

certo apontar tais características à leitura empreendida por Martins, na medida em

que ele também situa o modernismo e todas as suas características a contextos que

não se vinculam apenas ao nível imaginativo. Em seu A ideia modernista, Wilson

Martins organiza a delimitação do modernismo entre o início em 1916 e 1945 e

tem como determinantes alguns fatos externos: a promulgação do Código Civil

naquele ano e o fim da Segunda Guerra Mundial neste último. Apesar de alguns

exageros de Wilson Martins, exageros que tomam ar de diretivas contradições,

123

não há como negar a importância do seu trabalho na diversificação de propostas

interpretativas sobre o modernismo em geral43

.

Outra proposta interpretativa daquela virada nacionalista que Eduardo

Jardim aponta é a dita “socializante,” tendo em Antônio Candido e sua cria

intelectual, João Luiz Lafetá, como representantes principais. Teoricamente, ela

traria encargos históricos e sociais em demasia, aviltando as próprias indicações

autonomistas que a literatura e seus criadores pudessem ter. No entanto, seguimos

a perspectiva de Lafetá quando afirma que para compreender o modernismo “é

preciso pensar na sua correlação com outras áreas da vida social brasileira, em

especial na sua correlação com o movimento da economia capitalista.” (Lafetá,

2003, p. 26). Ele está tentando entender como as modernidades de um capitalismo

industrial incipiente nas décadas de 1910 e 1920 poderiam inferir nas decisões

estéticas que se apoiavam justamente nas inovações modernas da sociedade

urbana, coisa que foi a própria razão de ser do primeiro modernismo. É certo,

também, que essas dimensões não são totalizadas enquanto se tem em conta que

as mudanças sociais no Brasil não são apreendidas de forma tão mecanizadas

assim. Existem interesses conflitivos que se esboçam e se acirram nas tonalidades

das manifestações literárias; e num país tão conturbado como o Brasil do período

pós-republicano, as decisões e discussões pela melhor maneira de retratar a

dinâmica desse torvelinho deviam ser enfrentadas além de uma ingenuidade

criadora mas como propostas de visões de mundo interventoras da realidade. É o

que podemos perceber nestas palavras de Mário de Andrade em carta a Sérgio

Milliet datada de 11 de agosto de 1924, no qual se percebe que o clima pesado da

revolução de 1924 fazia-o pensar sobre o futuro do país:

Tua carta me encheu de relativa alegria. Relativa porque estes dias de pós-

revolução não permitem alegria total. A gente começa a pensar sobre o Brasil, os

destinos do Brasil, o horror da aventura passada e não há como livrar-se de ideias

acabrunhadoras. (Andrade, 1985, p. 298).

Não há como negar que, como vimos, o primeiro modernismo vinha como

uma iniciativa estética repositiva de mudanças estruturais pelas quais o país vinha

43

Wilson Martins tenta fazer uma releitura dos marcos e obras modernistas, sendo talvez um dos

primeiros a empreender certa revisão crítica do movimento, e por isso é considerado um autor

conservador, segundo críticos seus como Haroldo de Campos. É interessante notar que a edição de

que dispomos fora coeditada pela Academia Brasileira de Letras, como se fosse uma espécie de

revide desta às críticas sofridas e amargas que os modernistas lhe faziam.

124

passando, sendo que seria completa falta de consciência se eles cantassem uma

cidade, suas máquinas e convulsões cotidianas sem que essas realmente

existissem em suas realidades próprias.

Para Eduardo Jardim, autores como Aracy Amaral, Benedito Nunes e Alceu

Amoroso Lima, por seu lado, investiram na leitura do modernismo pós-1924

como uma apreensão do primitivismo das vanguardas europeias, principalmente

do expressionismo e do cubismo. Sobre a perspectiva Pau-Brasil, escreveu Nunes

ligando-a ao cubismo: “Ela é sintética como a do cubismo; a invenção de formas

assegura-lhe a originalidade, e a surpresa, o choque subverte o comum, mesmo à

custa de parecer trivial.” (Nunes, 1995, p. 11). Já Alceu Amoroso Lima aponta em

seu famoso artigo intitulado “Literatura suicida” sobre a Poesia Pau-Brasil:

A sua poesia é tão importada como as demais. A única diferença é a seguinte: é que

ele importa mercadoria deteriorada — automóveis em segunda mão, máquinas já

usadas e enferrujadas, etc. Toda a originalidade novinha do Sr. Oswald de

Andrade, toda a sua literatura mandioca, aborígene, precabralina, precolombiana,

premongólica, toda ela é bebidinha, direta e indiretamente, em duas fontes

europeias muito recentes e muito conhecidas: o dadaísmo francês e o

expressionismo alemão. (Lima, 1966, p. 917)

Do mesmo modo Aracy Amaral, no seu livro Blaise Cendrars no Brasil e os

modernistas, recorre às relações pessoais e influências estéticas do poeta cubista

Blaise Cendrars sobre os modernistas paulistas, fazendo-os descobrirem o Brasil

por meio do primitivismo da vanguarda europeia. É claro que houve uma

influência das vanguardas históricas, no que pese mais ao primeiro momento

modernista, quando o cosmopolitismo era a tônica do momento, reinterpretando

as condicionantes técnicas e urbanísticas que os europeus então problematizavam

aliados ao primitivismo interno do inconsciente, fazendo desleixar, usando os

termos de Jardim de Moraes, uma dialética extra-literária e intra-literária. Já

vimos, no entanto, como essa recepção das vanguardas tinha questionamentos

vários, como os de Mário de Andrade sobre o futurismo. Ainda assim, não há de

ignorar a completa influência de autores como Paul Dermée, Marinetti, Jean

Cocteau, Max Jacob, Guillaume Apollinaire, Verhaeren, Epstein etc. para os

modernistas de primeira fase. E também vimos que o primitivismo europeu tinha

suas relações com a “descoberta” de culturas extra-européias localizadas nos

países sob domínio do imperialismo daquele continente; danças, religiões, cultos,

125

artes, objetos de todo tipo eram trazidos para a Europa onde faziam sucesso pelo

exotismo de culturas vistas como atrasadas mas interessantes. Como vimos, as

ligações entre os movimentos políticos e econômicos também influíam nas

diversas elaborações e revoluções estéticas que parecem não ter nenhuma relação;

esse fator deve levar-nos a considerar a dinamização e globalização das

consequências predatórias do capitalismo, interferindo e ligando culturas e

sociedades a níveis nunca antes visto.

No entanto, Eduardo Jardim abandona a proposta de lidar a virada de 1924

como uma leitura dos modernistas de A estética da vida, de Graça Aranha, no

sentido de “estabelecer uma relação entre o nacionalismo emergente de 24 e o

material ideológico já presente na cultura nacional” (Moraes, 1978, p. 82) para

mais tarde propor que a brasilidade modernista fora a mediação para o ingresso na

civilização porque o contraste do primeiro modernismo, com sua modernidade

compulsória, consistia apenas na repetição do desenvolvimento das nações

europeias:

Ao situar de forma imediatista o processo de incorporação na ordem da

modernidade, aos modernistas restava lamentar a precariedade da posição em que

se encontravam. Cada vez mais parecia que a eficácia da ótica imediatista

fracassara e que seria necessário investir nos dispositivos mediadores para garantir

a incorporação pretendida. (idem, 1988, p. 230).

Daí que a nacionalidade seria o fator mediativo que incorporaria o Brasil no

concerto das nações cultas. Neste sentido, segundo Moraes, a brasilidade veio

como intermédio de compatibilização entre o novo, a modernidade, e o antigo, a

tradição verdadeiramente brasileira, popular e não douta.

Essas leituras interpretativas têm em comum justamente o fato de reportar

ao ano de 1924 quando o modernismo toma realmente um caminho mais objetivo,

o que, para Wilson Martins, é o ano em que se constitui a verdadeira “estética

modernista”, iniciada após a confusão e a indecisão do primeiro modernismo

(Martins, 2002, p. 81). No entanto, em meados de 1923 já podemos perceber

alguns sintomas de uma virada de ótica em que a preocupação por uma síntese do

que seria a literatura e ainda mais a leitura de uma literatura em que se perceba a

alma brasileira. É o que vemos, por exemplo, em janeiro de 1923 no artigo de

126

Cândido Mota Filho para o número oito da Klaxon, em homenagem justamente a

Graça Aranha:

No desenvolvimento lógico que segue a literatura nacional, firmando-se,

personalizando-se, com múltiplas correntes, com múltiplas influências, vieram aos

poucos surgindo os verdadeiros intérpretes do sentimento nacional, os escritores

genuinamente da terra e da raça (...) A literatura mostra-se nessa luta, onde se

percebe a alma da terra gritando, implorando por um artista que a cante, que a

compreenda. (Filho, 1923, p. 5)

O ano de 1923 já começa, portanto, com o diagnóstico da necessidade de

um esforço intelectual brasileiro para garantir através da literatura um modo de

compreender a alma brasileira, fito que começará pouco a pouco a tomar o lugar

de destaque para a própria noção de modernidade à brasileira.

A experiência da falta de correspondência entre uma literatura que se

pretendia nova, modernista, e os caracteres da terra e de seu povo passará a ser

vista como um sério desfalque, até mesmo um atraso em relação ao que a partir de

então se entenderá como modernidade. É de se atentar a essa circunstância de

consideração de um novo atraso cultural e não econômico. Os modernistas de

primeira fase se vangloriavam das inovações urbanas e tecnológicas pelas quais o

país fora pouco a pouco se aproximando das associações de um desenvolvimento

moderno por si só espontâneo na medida em que se urbanizava e se

industrializava mais e mais. O acesso a essas inovações, o clima cosmopolita que

as ruas, com seus carros e imigrantes de diversos países, pareciam oferecer à

mente de intelectuais que só poderiam interpretar aquilo como uma europeização

do próprio meio, europeização esta com efeitos civilizatórios, só vinha corroborar

com a sensação de que o país finalmente estava a par das nações desenvolvidas e

ricas. A partir de agora, no entanto, a percepção parecia ser outra. Não adiantava

termos uma modernidade de capa, externa, aparente, visual, era também

necessário adaptar ou, mais especificamente, dar um nome a essa modernidade,

situá-la nalguma localidade, substancializá-la antes que o universalismo e a

própria modernidade destruidora, como a própria guerra havia mostrado,

colocassem o movimento todo a se perder num externalismo e num

cosmopolitismo sem alma, e, como a própria economia dava a entender, sem

raízes. Como vimos, assim como uma burguesia cosmopolita necessitava

gerenciar seu quintal de mercado, associando-se à ideologia nacionalista, os

127

modernistas compreendiam que o mesmo internacionalismo que as vanguardas

ensinavam deveria ser contrabalanceado por um nacionalismo puro, que desse ao

movimento as guardas das fronteiras de uma literatura que até então, para eles,

parecia estar em risco. Daí a sensação de atraso quanto à questão cultural de

apreender a verdadeira modernidade: a tradição brasileira.

Também é em 1923 que Oswald de Andrade pronuncia sua conferência “O

esforço intelectual do Brasil contemporâneo” na qual já fazia um retrospecto dos

autores canônicos que remontavam à uma alma brasileira:

Verdade é que o sentimento brasileiro se anunciava já nos cantos coloniais de

Basílio da Gama, no instinto indianista do nosso poeta Gonçalves Dias e na língua

pitoresca de José de Alencar. Havia mesmo nos romances deste último o esboço de

tipos que poderiam servir anda hoje de base psíquica à nossa literatura.

(ANDRADE, 1992, p. 31).

O esboço de um quadro histórico que anunciaria uma tradição

especificamente brasileira e, mais ainda, bem estruturada e dinâmica num único

esforço, faz parte dessas iniciativas de retradução de uma perspectiva literária

propriamente estratégica (a palestra é feita em Paris, para estrangeiros), ainda que

mais tarde o próprio Oswald renegue alguns autores por ele aí citados. Mas os

sentidos de diferenciação literária que faria do Brasil um país produtor de uma

literatura forte e arraigada num conjunto nacional em torno de um problema seria

quase impensável naqueles moços de anos antes, loucos que estavam por negar os

cânones. Assim, essa nova conceituação da modernidade se faz, segundo Eduardo

Jardim de Moraes, através do

esforço de compatibilização do antigo e do novo. Só desta forma, através da

adoção desta solução que busca fundar a cultura nacional nova em registro da

temporalidade próprio, nacional, onde também se abriga o passado, é que se poderá

pensar o ingresso da produção cultural do país no concerto das nações cultas.

(Moraes, 1988, p. 231).

Logo após a conferência de Oswald de Andrade, Sérgio Milliet escreve a

Rubens Borba de Moraes relatando o interesse dos parisienses em relação ao

modernismo brasileiro; Rubens escreve então para Joaquim Inojosa:

Ivan Goll, que publicou o ano passado uma antologia mundial onde todos os

modernos dos ‘Cinco Continentes’ (é o título do vol.) estão reunidos, vai

128

acrescentar um apêndice consagrado à poesia brasileira moderna. (Moraes apud

Moraes, 1988, p. 228).

Não é de graça que tais resultados tenham incentivado os modernistas de

primeira hora a sustentar que uma literatura especificamente nacional, de cor

local, fosse a porta de entrada para o conhecimento internacional da literatura

brasileira e modernista.

O ano de 1923 então guarda esse repositório de transição entre as duas

tendências modernistas. A fase de construção de uma literatura, que tantas vezes

eles teimavam em anunciar nos meses pós-Semana de Arte Moderna, foi aos

poucos a fase de reconciliação com a literatura brasileira, embora peneirada ao

gosto de cada corrente que vinha surgindo aos poucos. O primeiro resultado dessa

construção teria sido a própria Klaxon, como dita seu primeiro número. Sua

“Significação” já abre fazendo uma releitura da Semana de 22: “Houve erros

proclamados em voz alta. Pregaram-se ideias inadmissíveis. É preciso refletir. É

preciso esclarecer. É preciso construir. Daí KLAXON.” Aproveita então para

redefinir o anti-passadismo em termos mais amenos, admitindo que a literatura

nova não se faz a partir do zero: “Não se reconstruirá o que ruir. Antes aproveitará

o terrenos para sólidos, higiênicos, altivos edifícios de cimento armado.” (Klaxon,

1922, p. 1-2). É o desejo de reconstrução que anima os espíritos desde o ano de

1922. Em artigo para a Revista do Brasil, no ano de 1923, escrevia Mário de

Andrade:

Há também as convalescenças espirituais. O incidente futurista no Brasil... Esse

período terrível que vem desde meados de 1920 até à Semana de Arte Moderna,

fevereiro, ainda março de 1922, não foi senão uma doença grave, gravíssima, que

alguns espíritos moços brasileiros sofreram. E que febre! Delírios! Houve

exageros? Houve. Depois veio a convalescença. (Andrade apud Martins, 2002, p.

84)

A releitura da Semana de Arte Moderna vem superar a consciência de que

esse período fora apenas de distúrbios “gratuitos” da mocidade, repletos que

estavam da euforia aventureira, como o próprio Mário via em retrospecto a partir

de 1942. Mas essas circunstâncias, da década de 1940, eram outras: política,

participativa. As de 1923 visavam o reencontro com uma base sólida na qual uma

literatura nova poderia aflorar suas conquistas estéticas devido à aparência cada

129

vez mais verdadeira de que eles não conquistaram nada concretamente, além dos

holofotes públicos e dos inimigos de primeira mão.

O sentimento de que o modernismo, desde o início, trazia em si um vácuo

de propostas de construção e de renovação literária, no entanto, foi um fantasma

que acompanhou todo o período da década de 1920, vindo a ser

incontestavelmente aceito por Mário de Andrade na sua famosa conferência de

1942. João Luiz Lafetá corroborava com a

suspeita de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito grande de cacoetes,

de ‘atitudes’ literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e bem

realizada. (...) mas, na medida em que foi exagerado (...) afastou das obras então

produzidas grande parte da radicalidade da nova estética. (Lafetá, 2003, p. 35).

As próprias conquistas formais do primeiro modernismo são postas aí em

xeque; mas não é admissível que a onda de reconstrução pós-22 tenha dado algum

rumo mais objetivo aos grupos modernistas. Não há nenhuma menção a

construção de uma literatura eminentemente nacional nos número da revista

Klaxon, principal revista modernista na qual, ainda, quase todos os modernistas

que se desmembrariam em várias correntes atuavam conjuntamente, como Graça

Aranha, Guilherme de Almeida, Luís Aranha, Renato Almeida, Menotti Del

Picchia, Carlos Alberto de Araújo, Ronald de Carvalho, Couto de Barros, Rubens

de Moraes e Camargo Aranha. Apenas Paulicéia desvairada, publicado em 1922,

veio coroar o ano da Semana mas, de certo modo, atrasada em relação ao novo

momento de construção, sendo que o livro fora marcada pelo espírito dos

desvarios e do esteticismo do primeiro modernismo, além dos exageros próprios

daquele momento. É o que Mário de Andrade, em 1924, noutro momento de

releitura, confessa:

Paulicéia manifesta um estado de espírito eminentemente transitório: cólera cega

que se vinga, revolta que não se esconde, confiança infantil no senso comum dos

homens. Estes sentimentos duram pouco. A cólera esfria. A revolta perde sua razão

de ser. A confiança desilude-se num segundo. (Andrade, 1978, p. 71).

A Semana é então posta na queima dos próprios modernistas que

perceberam o vácuo que o momento de euforia ocultava. De certo modo, o

experimentalismo formal e estético impunha para eles as desvantagens de pensar a

literatura como forma de sustentação pública, aceitável naquilo que ela mesma

130

poderia ter de novidade. As reações que eles chamavam de passadistas só vieram

para dar-lhes um lugar de visibilidade dentro da sociedade, mas não os colocavam

como verdadeiros produtores de uma literatura que desse substância ao que eles

tanto falavam: a novidade em si. Mais que isso, parece haver agora, com o

nacionalismo, a ocasião de conquista de um público antes pela literatura que pela

literatice da retórica polemicista. 1922 fora um ano crucial para pensar a

possibilidade de renovação da literatura nacional, não apenas pelo fato do

Centenário da Independência mas também pela lógica que punha em risco o

próprio vetor de possibilidade de uma literatura representativa de uma época de

crise. Eles vieram e se sentiram vitoriosos pelo grito, mas sua estética ainda

permeava a ilogicidade de meros moços afeitos a esquemas que o país, quer dizer,

a intelectualidade em geral e um público de literatura específico, não

compreendia. O nacionalismo da década de 1920 veio arregimentar então esses

espíritos que não conseguiam encontrar um aporte que conjurasse todos os

despautérios e ataques que sofreram; ainda assim eles não se livrariam fácil da

crítica que ainda não via uma obra literária modernista de vigor e que fosse

representativa não do modernismo mas da literatura brasileira mesma; é que eles

vieram, arrastaram e criticaram toda a literatura e cânones existentes e, quando se

deparam que os “passadistas” realmente já não existiam ou foram dessacralizados,

e uma nova literatura que deveria tomar lugar destes simplesmente não existia,

então se deram conta do atraso em que estavam. A construção então era necessária

e por isso se fazia por condições de atraso. Eram nestes termos que o modernismo

alcançava a autocrítica.

Como vimos Antonio Candido já asseverava que, na década de 1930, o

movimento modernista passou pelo momento de “surgimento de condições para

realizar, difundir e ‘normalizar’ uma série de aspirações, inovações,

pressentimentos gerados no decênio de 1920.” (Mello e Souza, 1989, p. 182). Mas

já na década de 1920 podemos vislumbrar o decaimento do processo de pesquisa

estética ou pelo menos o retraimento nas fórmulas nem tão novas e mesmo em

certa academização dos processos. É o que critica Plínio Salgado, em 1928 na

revista Festa:

Criávamos, ao mesmo tempo, novos jugos, com a ‘sistematização da revolução

literária’, que veio, pouco a pouco, ‘uniformizando os escritores e poetas’. (...)

131

Consideramos, além do mais, que ‘há muita técnica’ na arte nova, o que a torna,

em sentido e inteligência, ‘identificada com a arte velha’. (Salgado, 1978, p. 286-

287).

E mesmo outras tendências do modernismo compreendiam o momento,

como aprova Sérgio Milliet, em 1925: “Hoje vivemos felizes e sossegados, na paz

dos justos. Já não se discute mais o modernismo. Apenas se combate esta ou

aquela tendência.” (Milliet, 1978, p. 241). É neste processo de quase refluxo do

movimento modernista que os anos seguintes de 1922 até 1924 tentarão responder

por uma nova atitude participativa dentro da conjuntura produtiva da literatura

nacional. Quando finalmente conseguem se integrar dentro das hostes da literatura

nacional, a canonização e a rotinização se tornam inevitáveis, como lamentará

Carlos Drummond de Andrade, anos mais tarde:

Bem, não adianta insistir nisto, agora que o modernismo, de tão integrado na

evolução literária, foi reconhecido oficialmente, adotado nas escolas, sacralizado...

Não gosto muito disto, não. Era melhor quando nos apontavam como párias, os

marginais da literatura. Tínhamos bom humor suficiente para nos divertir com os

xingamentos, as pedradas. (...) Era tão gostoso brincar de modernismo.... (Andrade,

2003, p.. 1227)

Mas antes o processo de abrasileiramento do modernismo fora uma forma

de identificação com uma modernidade que se inteirasse com o que há de

moderno nas condições brasileiras de pensar essa integração dentro da civilização.

Para Wilson Martins, em 1924, os modernistas passam de futuristas a modernos.

A queima que viu sobre a Semana de Arte Moderna foi alongada às matérias

futuristas que, apesar dos não-ditos, predominavam quer queira quer não entre os

diversos escritores. Na verdade, o ponto crítico era Marinetti e não o próprio

futurismo, posto que aquele já vinha a um bom tempo se aliando ao fascismo

mussolinista. O futurismo agora já é passadismo, como o queria Ronald de

Carvalho em carta a Jackson de Figueiredo, publicada na Revista do Brasil, em

fevereiro de 1924:

Abaixo, pois, o virtuosismo, o sádemirandismo, o dicionarismo e mais abantesmas

que desfibram as nossas energias, reduzindo-as a um jogo caprichoso e tolo. O

futurismo é também passadismo. morra o futurismo! (Carvalho apud Martins,

2002, p. 86).

132

Abguar Bastos fazia a mesma diferenciação: “O ‘modernismo’ apareceu

fantasiado de futurismo. Entretanto o futurismo era coisa de antes da grande

guerra, era coisa por assim dizer passadista.”44

(Bastos apud Martins, 2002, p. 86).

A lição mesma do movimento italiano, aos olhos de Mário de Andrade em

entrevista no ano de 1925, foi de que serviu para dar novo olhar às necessidades

do momento, de construção e objetivação:

Veja O Futurismo Italiano. Fez Um Chinfrim Danado, Destruiu, Destruiu,

Encasquetou De Matar O Chiaro Di Luna E Outras Bobagens, Matou? Matou

Nada. E Vai, O Futurismo Ficou Matando O Luar Até Agora E Não Achou Saída

Humanamente Artística. (Andrade, 1983, P. 17).

Wilson Martins, ao diferenciar modernismo de futurismo, colocou os dois

Andrades em confrontação, sendo que Oswald de Andrade não abandonara sua

filiação às estéticas vanguardistas, ao contrário do rumo que vai tomar Mário de

Andrade. No entanto, é dado a Oswald de Andrade o título de introdutor do

nacionalismo modernista quando publica o “Manifesto da poesia pau-brasil”, em

1924. É interessante então notar essas disparidades. Elas não dizem respeito

apenas às leituras canônicas sobre o movimento mas também às representações

que cada um reclamava para si na tentativa de recuperar o Brasil dentro de uma

perspectiva modernista, inovadora ao ponto de suplantar e destruir a unidade do

próprio movimento. Essas configurações paradoxais que fazem do poeta mais

vanguardista inaugurar a tendência mais conservadora45

, dão certa noção do quão

complexo e diluente é o momento no qual várias fórmulas e estratégias são

implementadas no intuito de dar uma resposta às novas necessidades de

construção. Quando Mário de Andrade esperneia para livrar o futurismo dentro

das perspectivas de construção do movimento, ele, segundo Martins, dá o tiro de

misericórdia no período experimentalista do primeiro momento e inaugura de

certo modo a fase do modernismo brasileiro e não vanguardista, estrangeiro,

44

Sobre essa questão, escreve Mário de Andrade em carta a Manuel Bandeira: “O que eu faço, e

talvez já reparaste nisso, é uma distinção entre modernos e modernistas. (...) Toda reação traz

exageros. Eu tive porque fui reacionário contra o simbolismo. Hoje não sou. Não sou mais

modernista. Mas sou moderno, como você. Hoje já posso dizer que sou também um descendente

do simbolismo. O moderno evoluciona. Está certo nisso. O que também não impede que os

modernistas tenham descoberto suas coisas e que se não fossem eles muito moderno de hoje

estaria bom e rijo passadista.” ANDRADE, Mário. Cartas a Manuel bandeira. Rio de Janeiro:

Ediouro, s/d p. 40. 45

Lembremos que é conservadora aqui no sentido de volta a uma tradição pré-existente.

133

cosmopolita; daí até o brasileirismo é um passo; daí até o retrocesso, idem, como

atesta Martins:

Esse ponto é importante, porque nele se encontra a fonte de todo o ‘brasileirismo’

modernista, nessa fase e nas suas ulteriores: pode-se imaginar (embora tal espécie

de cogitações seja desprovida de sentido em perspectivas históricas) que o romance

modernista teria enveredado pelo cosmopolitismo esteticista, terá digamos, adotado

Cocteau por mestre, se, a meio da sua primeira década, as linhas de força da escola

não houvessem sofrido o impacto antifuturista que estudamos. (Martins, 2002, p.

92)

Nestas dimensões o modernismo de 1924 teria as melhores condições de

aflorar sua brasilidade, sem nenhum obstáculo, e, mais importante, sem nenhuma

obstrução interna de um público mais ou menos afeito ao que era o movimento.

Existem dois momentos importantes para que o ano de 1924 se encaminhe como o

ano da virada, um ao nível mais da crítica e outra, em relação a um acontecimento

específico.

Sendo mais cronológico, as novas discussões sobre a interpretação brasileira

dentro do movimento se dão mesmo em meados de 1923; como vimos, ela já

aparece num dos últimos números da revista Klaxon. Em agosto de 1923

encontramos o artigo que Mário de Andrade escreveu para a Revista do Brasil em

que diz:

Repor-nos-emos assim dentro do tradicionalismo, sem o qual ninguém vive.

Tradicionalismo brasileiro? Também. Por que não? Pela penetração panteísta da

terra, pela compreensão histórica da raça e pelo servir-se duma língua, evolutiva

sem dúvida, mas sem exageradas deformações. Nosso tradicionalismo, porém, será

principalmente humano e universal. A guerra esgotou nos peitos modernos a fonte

das rivalidades. (...) Nós, os modernistas, quebramos a natural evolução. Saltamos

os lustros de atraso. Apagamos a sombra. Mas somos hoje a voz brasileira do coro

‘1923’, em que entram todas as nações. Poderia documentá-lo. E por isso a solução

de continuidade na tradição artística brasileira. (ANDRADE apud MARTINS,

2002, p. 84-85)

A “solução de continuidade na tradição artística brasileira” seria o epitáfio

do primeiro modernismo. Daí por diante era inevitável a reintegração dentro dos

limites de uma literatura construtiva em torno da nacionalidade para a qual a

universalidade ou a civilização seriam o fim necessário que constituiria a missão

crucial dos modernistas que pensavam dar uma nova atmosfera real para o

movimento. A preocupação com a escalada natural pela qual o país deveria passar

134

é assim posta como critério, sediada numa complexidade teleológica da nação

brasileira; é que seria preciso marcar o passo para a devida entrada do país dentro

da universalidade literária, algo que os desvarios e delírios do primeiro momento

pareciam não deixar entrever. Vimos que as perspectivas temporais dentro dos

marcos de um desenvolvimento econômico e urbano desalinhavam o que seria as

verdadeiras necessidades e aparatos conjunturais do país para que ele recebesse

tais revoluções técnicas. A vertigem, termo bastante usado para caracterizar as

novidades revolucionárias da época, a vertigem temporal deixa escapar as bases

espaciais nas quais ela mesma possa se situar, dando a sensação de que o tempo

urbano se estreita mais rápido do que o espaço que ocupamos. O tempo é, assim

como uma mercadoria, um produto a ser elaborado em tão pouco tempo quanto

seu consumo, para que se valorize, marcando tanto as horas de trabalho quanto as

de lazer e, claro, do próprio consumo (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 112). Essa

sensação de que não há como deter as demandas de tempo que o ser humano, na

medida em que se torna um produtor e consumidor numa sociedade na qual a

lógica é a produtividade, produz ele próprio sua alienação se dá por intermédio de

uma sensibilidade moderna na qual compartilhamos no dia-a-dia a situação de

mercadoria, como escreve Carlos Drummond no seu poema “A flor e a náusea”.

Nicolau Sevcenko nota que

por trás da vertigem coletiva da ação e da velocidade, engendrando-a, estimulando-

a, sem permitir a reflexão sobre suas consequências nas mentes e na cultura, as

inovações tecnológicas invadiam o cotidiano num surto inédito, multiplicando-se

mais rapidamente do que as pessoas pudessem se adaptar a elas e corroendo os

últimos resquícios de um mundo estável (...) (SEVCENKO, 1992, p. 162).

É essa estabilidade, o marca-passo do tempo, que os modernistas tenderam

a correr atrás ao perceber que a modernidade poderia pôr em risco o próprio

modernismo enquanto este se digladiasse em meras “importações” de conteúdos e

formas estrangeiras. Não que elas fossem estritamente maléficas, vimos o

contrário, mas a simples importação não levava em conta a realidade brasileira

mais profunda, a popular, aquela que marcava a alma verdadeira do país e da qual,

segundo Antonio Candido, a literatura anterior teimava em recalcar. Isto quer

dizer que o Brasil tinha um tempo específico de desenvolvimento e uma cultura

particular sendo que eles deveriam respeitá-los para não correrem o risco de se

perderem naquela mesma “vertigem coletiva”. Então, neste momento a

135

consciência e a ideologia do atraso voltam à tona de uma maneira transformada.

Como escreveria Oswald de Andrade no seu manifesto de 1924: “O trabalho da

geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.

Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.”

(Andrade, 1995, p. 44). Os Andrades então aderiram a esse etapismo cronológico

para salvaguardar o movimento da completa falta de ligação com sua terra, com as

referências específicas do país. Sem essa noção não há como se reintegrar ao

tradicionalismo brasileiro, à matéria nacional e seus congêneres. A época é do

localismo, embora tivesse a consciência da altitude universal e humanista, porque,

segundo o ledo engano de Oswald, “a [Primeira] guerra esgotou nos peitos

modernos a fonte das rivalidades.” Era preciso um tempo equilibrado entre as

balizas locais e a necessidade de uma missão que tornasse o país nacionalmente

universal, equilíbrio este quase nunca conquistado devido mesmo à recuperação

tradicionalista que ademais não conseguia ir além do “quinhão” nacional, como o

fora todas as outras tradições de brasilidade. No fim, a modernidade de compasso

do primeiro momento modernista cede à modernidade do “atraso progressista” do

segundo.

O evento que ocorrera já no começo do ano de 1924 que teve um papel

considerável como resposta e complemento à nova visão dos modernistas

paulistas foi a viagem feita pela caravana de artistas que reunia Oswald de

Andrade, Mário de Andrade, Blaise Cendrars, Tarsila do Amaral, Godofredo

Telles. É nele que acontece o que alguns críticos chamaram de “redescoberta” do

Brasil, no qual o modernismo cosmopolita encontra as seivas da cultura brasileira

e suas peculiaridades reunidas ou no carnaval carioca ou no barroco mineiro.

Sobre a viagem diz Silviano Santiago:

O caso mais interessante, a meu ver, para se falar de tradição no modernismo, e aí

desvinculo-a da noção de neoconservadorismo, seria a viagem feita pelos

modernistas, em 1924, a Minas Gerais (...) Esses poetas estavam todos imbuídos

pelos princípios futuristas, tinham confiança na civilização da máquina e do

progresso e , de repente, viajam em busca do Brasil colonial. Deparam-se com o

passado histórico nacional e com — o que é mais importante para nós — o

primitivismo enquanto manifestação do barroco setecentista mineiro. (Santiago,

2002, p. 121)

A descoberta de Minas Gerais como um recipiente da cultura brasileira mais

intocável e fonte para a ótica de um modernismo, no qual o primitivismo e a

136

popularesco emanavam uma arte purista da brasilidade, será a resposta para os

anseios de uma época marcada pelas crises de âmbito nacional no sentido de

reforçar o valor orgânico da cultura e, por conseguinte, da sociedade brasileira.

Esses anseios nacionalizantes, de salvação nacional no âmbito das artes, eram os

mesmos que movimentos como o tenentismo ou o demismo empreendiam para

“moralizar” as instituições políticas brasileiras. No entanto, aqui, no caso dos

modernistas, as fontes profundas da nacionalidade serão encontradas nas

expressões culturais populares, nas festas, danças, gastronomia, linguagem,

literatura etc., que, abordados em suas especificações, servirão como motivo para

enfrentar o dilema de um modernismo que até então procurava o modernismo em

literatura ao mesmo tempo em que ignorava a moderna nacionalização da

literatura que era o traço característico da tradição intelectual e literária.

Recuperado o eixo nacionalizante, embora sob o ponto de vista popular, a

retomada da tradição intelectual anterior será o próximo passo, daí que Paulo

Prado, no prefácio ao livro de poesia Pau-Brasil, irá eleger um Casimiro de Abreu

como o romântico exemplar, intérprete “profundo e íntimo da Raça”, em contraste

com um Gonçalves Dias, por exemplo (Prado, s/d, p. 60). Então aí unem-se a

tradição popular e a tradição literária.

Entrar na alma do povo significa entrar no interior do país, como se fosse a

descoberta do sentimento profundo de sua alma. É interessante notar o aspecto

que a viagem de “entrada” em direção ao interior do país tenha sido a resposta

para crises nacionais em que a busca pela originalidade e organicidade era a saída

mais “eficaz”. Em 1967, Antônio Callado, em seu Quarup, escrevia sobre uma

expressão em direção à origem brasileira, ao centro geográfico e originário do

Brasil, vindo a descobrir que o cerne da nacionalidade não passa de um “caldeirão

de saúvas” (Callado, 1982, p. 307). Em 1902, Os Sertões, de Euclides da Cunha,

revelava outro Brasil, distante do litoral e suas benesses de cosmopolitismo e

civilização, demonstrando que a República não era para todos. Não custa lembrar

também a similaridade entre os modernistas e os bandeirantes, por eles tantas

vezes cantados posteriormente, no intuito de desbravar e alargar as fronteiras,

agora no sentido cultural e literário. É a busca da origem que qualificará o tempo

nacional e aflorará o projeto literário brasileiro do século XX de identificação do

Brasil como entidade particular.

137

A origem como resposta para a crise brasileira da década de 1920 foi achada

então nas manifestações de um passado colonial específico, origem esta que

acompanha, nos termos de Brito Broca, o desejo de originalidade dos

modernistas:

Havia uma lógica interior no caso. O divórcio em que a maior parte dos nossos

escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas

barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original,

dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam.

(Broca apud Santiago, 2002, p. 121).

Friedrich Nietzsche já assinalava que “nós modernos não possuímos nada de

próprio” (Nietzsche, 2005, p. 101), nossa originalidade tem uma origem. Então

veríamos certa coerência se a originalidade modernista fosse buscar na origem da

nacionalidade os novos objetivos de uma literatura moderna. Entretanto, o jogo de

palavras não esconde o fato de que, no sentido literário, a expressão e a pesquisa

estética, a busca pela novidade formal e temática, recuou para nunca mais voltar à

tona. As pesquisas que daí se seguem vinculam-se mais ao conhecimento das

ciências como a antropologia, o folclore, a linguística, do que da arte, da poética,

da forma, da literatura enfim — tanto que Alceu Amoroso Lima chega a criticar

Mário de Andrade, por exemplo, pela sua “mania etnográfica” (Andrade, 1968, p.

27).

Ao lembrar que Antonio Candido afirmara que o primitivismo modernista

era mais natural para os brasileiros, afeitos com os costumes provindos das

culturas indígenas e africanas do que para os europeus que tinham que buscar

essas expressões fora de seu continente, devemos notar que a viagem que abriu os

olhos dos modernistas paulistas veio como forma de apresentar o país para um

visitante ilustre, Blaise Cendrars. Um poeta suíço que, como bom cubista,

interessava-se por conhecer e viajar para terras exóticas, vem ao Brasil e acaba

dando oportunidades para os próprios modernistas entenderem o seu próprio país.

Essa situação estranhamente contraditória revela que a brasilidade modernista

também serviu como uma autocrítica para esses poetas e intelectuais

modernamente estrangeiros que se viram no lugar daqueles que eles mesmos

criticavam, i.e., parecia que, no intuito de renovar a literatura através da

modernidade técnica e do cotidiano da cidade, eles estavam desfigurando a

138

literatura naquele viés tantas vezes batido e, já então, “rotinizado”. É o que diz

Cecília de Lara:

Aqui não se pode deixar de trazer à baila um dos marcos da viagem — o contato do

grupo modernista original com a tradição brasileira viva, nas cores e formas da arte

e da arquitetura colonial, remanescente em Minas. Nela se inspiram os poemas

sintéticos de Oswald de Andrade, e os traços e cores ingênuas de Tarsila do

Amaral. Bebendo em fonte um pouco diferente, Mário de Andrade produzirá o

marcante “Noturno de Belo Horizonte”. Estes foram alguns dos frutos palpáveis

que a famosa caravana modernista recolheu de Minas — em descoberta e

redescoberta de um Brasil que já estava se desfigurando nos centros urbanos e era

com frequência menosprezado por certas camadas ciosas de suas origens ou de sua

formação europeias. (Lara apud Cury, 1998, p. 81)

Cecília de Lara cita como resultado da viagem o “Noturno” de Mário de

Andrade. Escrito logo após a viagem esse é talvez a primeira manifestação

literária da nova fase modernista. A crítica vem dando destaque ao “Manifesto

pau-brasil”, de março de 1924, mas é nesse poema que o modernismo vê

inaugurado as tendências nacionais que virão mais elaboradas no manifesto.

Escreve ele:

Que luta pavorosa entre floresta e casas...

Todas as idades humanas

Macaqueadas por arquiteturas históricas

Torres torreões torrinhas e tolices

Brigaram em nome da?

Os mineiros secundam em coro:

— Em nome da civilização.

(Andrade, s/d, p. 136)

A crítica à importação de uma civilização estranha ao meio brasileiro é feita

aqui e serve também como autocrítica aos modernistas que aceitaram as

conquistas da civilização moderna sem ter em conta suas implicações nacionais. A

importação ainda assim continua sendo a crítica geral, aqui não mais contra os

passadistas da literatura, mas às criações culturais em geral, na arquitetura,

principalmente. É onde se vê as diferenças entre uma paisagem naturalmente

primitiva, ambiente de natureza edênica, e as aberrações das fachadas e prédios

que usam da cópia de monumentos estrangeiros à, vamos dizer, ordem natural

brasileira — construções manuelinas, românticas, góticas, gregas, são citadas

como “esquecimento da verdade”. Na desavença entre dois mundos, o da casa e o

da floresta, cria-se o desenraizamento da terra, o conflito entre mundos distintos

139

que obriga o homem privado a esquecer seu vínculo com o que faz do Brasil uma

nação especificamente rica e grandiosa. A civilização aqui toma ares novos. Ela é

a razão de ser da desavença que cria dissonâncias entre o litoral e o sertão, a

cidade e o campo, a modernidade e a brasilidade; uma civilização que não é

essencialmente desagregadora mas que, reduzida a mera imitação e importação,

assola a liberdade brasileira de respirar seus próprios ares, deixando-a viver na

“sombra” do europeu, na inverdade, na mentira.

O impacto das revelações da arquitetura colonial rendeu ainda uma crônica

escrita também logo após a viagem a Minas. Nela Mário lança o discurso que revê

a tradição artística brasileira e sua grandeza:

Que é da grandeza antiga? Essa dorme sono de cobra enorme, tombando aos

pedaços, apodrecida pelas goteiras na Trindade, no Rosário, na casa de Tiradentes.

É pena. Quanta obra de arte a se estragar! (Andrade, 1978, p. 114)

Perspectiva nova de um modernista que não reconhecia no passado qualquer

ordem de fatores que influíssem numa criação modernista e mesmo moderna, a

crônica ainda reafirma a noção de que “nós andamos em busca de arte e de

passado”, admitindo que, pelo menos para ele, o modernismo iria tomar um rumo

que pudesse adequar a floresta à casa, e assim reorganizar a cultura nacional em

torno das verdadeiras manifestações que a tornam rica e forte, sobrevivendo como

que debaixo do tapete das contendas literárias bacharelescas das elites literárias.

No entanto, o primeiro encontro com essa consciência se dá pela arquitetura

colonial, pelo barroco mineiro setecentista que fora apagado ao longo dos tempos

em favor dos olhares estrangeiros. Continua Mário:

Diante disso, que papel fazem as nossas igrejas modernas de S. Paulo! Não se

poderia então aproveitar dessa abundância, que é já nossa também, elementos que

não fossem góticos! Mas só o gótico é místico, não é? (...) Vai pro inferno as

Goticidades Arquitetônicas que não enumerei na minha ‘Paulicéia’! (...) Eu, queria

ainda dizer que os arquitetos neo-coloniais são quase tão idiotas como as

Goticidades Arquitetônicas... Pois é: não vê que estão a encher as avenidas de São

Paulo de casinholas complicadas, verdadeiros monstros de estação balneárias, de

exposições internacionais. Porque não aproveitam as velhas mansões setecentistas,

tão nobres! Tão harmoniosas! E sobretudo tão modernas pela simplicidade dos

traços. (idem, p. 114)

A visualidade das cidades mineiras dispostas na arquitetura foi de uma

revelação tão grande que mesmo Oswald de Andrade, em entrevista ao Diário de

140

Minas, publicada em 27 de abril de 1924, também acusava as discrepâncias de

uma arte tão natural ao Brasil em relação àquela, importada sem a mínima

consciência estética:

A arquitetura de São João Del Rei, Tiradentes e Sabará e de outras que vamos

percorrer está aí como uma censura viva aos inconscientes que pretendem

transplantar para o nosso clima o horror dos bangalôs e das casas de pastelaria. As

cores vivas e o aspecto sólido e calmo das casas mineiras é a melhor lição que pode

ser dada aos nossos construtores. Como é um crime substituir nos altares as velhas

imagens maravilhosas feitas à mão pelos nossos melhores santeiros por uma súcia

de santos almofadinhas e sem caráter definido, saídos da industrialização italiana e

alemã, é outro crime desprezar o cor-de-rosa das fachadas, o abrigo dos beirais e o

azul das janelas — nascidos da paisagem brasileira e da tradição, e tão

naturalmente de acordo com elas — pelas cores cinzentas da Europa. (Andrade,

1990 p. 16)

Assim como no primeiro modernismo a literatura deveria imitar as

tecnologias urbanas e as sensações delas resultantes, aqui a arquitetura

verdadeiramente brasileira tem que se harmonizar, estar de acordo com o

ambiente da qual emana. É assim que a quebra das divergências se realiza, aliando

produção popular nacional dos santeiros e a natureza e suas cores circundantes; a

renovação se daria neste sentido pela valorização da cultura popular em

detrimento do culto ao estrangeiro das elites eruditas que só entendem a arte como

cópia do estrangeiro46

.

Em Oswald de Andrade, o declive ocorre pela separação entre duas

vertentes da história e da cultura nacionais, a do lado doutor, bacharelesco e de

gabinete e dados antepassados populares, livres do contato da importação

(Moraes, 1978, p. 97). Só então a harmonia e o “sentido puro” tornar-se-ão fatores

primordiais na produção cultural brasileira, i.e., na medida em que esta parte da

população, esquecida e resistente, forte e reprimida, reproduz sua própria tradição

ao longo da história, ela é considerada a chave para os anseios da organicidade

brasileira destes modernistas. Eles viam a cultura popular como que parada no

tempo, viva mas antiga, um passado presente que assombrava e inquietava

agentes intelectuais que se embriagavam da vertigem moderna, etérea e

progressista, futurista e desestabilizadora. A seiva pungente e forte do povo foi 46

Vimos que Sílvio Romero fizera a mesma crítica contra as elites. Essas coincidências críticas

dão mais consistência aos nossos argumentos de uma tradição literária brasilista que segue quase a

mesma ordem: crítica à paisagem literária anterior, reinvidicação por nova literatura, expressão

que seja local, nacionalização como modo de particularização, crítica à elite, seja ela qual for,

literária ou econômica.

141

então a resposta coerente. O modernismo, no esforço de entender que a tradição

nacional vinha antes da tradição moderna, se traduziu na separação entre cultura e

civilização. Daí que a cultura passou a ser isolada de algo externo, não menos

desprezível e perigoso porque fragmentária e divisionista, e foi moldada numa

aura de autenticidade, aquilo que era particular, íntimo. Estava refundada a

dicotomia romântica: cultura e civilização. Só que aqui, no modernismo, a cultura

era um passo para ser civilização.

No “Noturno”, Mário de Andrade, ao demonstrar o caráter ambíguo da

cidade “modernicíssima”, afirma, no entanto, que “a terra se insurgiu”, a floresta

toma conta das casas:

O mato invadiu o gradeado das ruas

Bondes sopesados por troncos hercúleos

Incêndios de Cafés

Setas inflamadas, Comboios de trânsfugas pra Rio de Janeiro

A ramaria crequenta cegando as janelas

Com a poeira dura das folhagens...

Aquele homem fugiu

A imitação fugiu.

(Andrade, s/d, p. 137)

Essa espécie de revolução da natureza sobre a civilização ocorre

silenciosamente, como é silenciosa a maneira com que o povo mantém-se

resistente à modernização que não respeita as tradições seculares, transformando

tudo em mercadorias civilizadas, até mesmo os santos italianos citados por

Oswald de Andrade. O homem da imitação foge da natureza e da expressão

genuína desta, ou seja, dos “brasileiros lindamente misturados”; para Mário de

Andrade, é essa massa genuína que mantém a união forte da nação, união esta

imprescindível para o momento agudo de crise em que o país vivia, no qual até o

risco de fragmentação política era provável:

Que importa que uns falem mole descansado

Que os cariocas arranhem os erres na garganta

Que os capixabas e paroaras escancarem as vogais?

Que tem si o quinhentos-réis meridional

Vira cinco tostões do Rio pro Norte?

Juntos formamos este assombro de miséria e grandeza

Brasil, nome de vegetal!...

(Andrade, s/d, p. 146)

142

Pau-Brasil: será este o nome do vegetal o qual pouco tempo depois Oswald

de Andrade irá dar nome à tendência nacional do modernismo, configurando

aquilo que Wilson Martins chama de “primeira heresia modernista, desencadeada,

como sempre acontece, em nome de uma restauração ortodoxa.” (Martins, 2002,

p. 100). O que Martins chama de restauração ortodoxa é o que entendemos como

volta à tradição brasileira do mesmo modo que podemos entender a heresia como

o golpe de estado literário a que aludimos. É aí que a brasilidade toma ares de

programa a ser realizado por aqueles que ousassem empreender a verdadeira

renovação literária; todo o discurso de assimilação da modernidade exterior como

o verdadeiro critério de uma poética modernista e vanguardista será agora

transformado para a obrigatoriedade de manifestação da brasilidade, se a literatura

não quisesse correr o risco de fugir do seu próprio tempo e das necessidades do

momento. Mesmo que o antigo caráter formal e experimental ainda existisse em

algumas manifestações de outros modernistas e que o futurismo italiano

continuasse a ser a pedra de toque de um Graça Aranha, por exemplo, essa

tendência nacionalizante irá predominar pouco a pouco. Não é à toa a volta dessa

problemática pois ela reintegrava o modernismo numa tradição harmoniosa que a

própria cultura letrada e de elite sempre fizera questão de sinalizar: a

modernização via nacionalização da cultura, mesmo que vindo com uma novidade

importante, i.e., o populismo e o primitivismo. É por isso que, ainda aqui, aquilo

que chamamos de autocrítica, permanece parcial, na medida em que a revolução

não implicou uma mudança drástica. Como vimos, anteriormente, isso ocorrerá na

década de 1930 quando o Estado abraçará o populismo político aliando-se às

propostas dos modernistas.

É no “Manifesto da poesia pau-brasil” que o primitivismo modernista mais

se assenta como projeto de literatura que quer resgatar as fontes emotivas da arte.

Como primitivismo interno, aquele que vinha do primeiro modernismo,

ressaltando o intuitivo e a descarga de emoções como meio exclusivo de

empreender uma expressão pura dos sentimentos, desligados da racionalidade

pura e deste modo com menos sinais de corrupção plástica, pois era artificial e

conscientemente criada, como bem entendiam as vanguardas europeias,

influenciadas pelo intuísmo de Bergson e pela teoria do inconsciente e da

regressão de Freud; e também como primitivismo externo, aquele responsável

pela cultura de exotismo, das manifestações de povos “primitivos”, não

143

civilizados, “bárbaros”, que testemunhou uma ascensão no começo do século XX

no contexto do imperialismo. É neste sentido que, segundo Benedito Nunes,

vemos o manifesto de Oswald se dirigir às duas tendências. (Nunes, 1995, p. 9-

10).

Quanto ao primitivismo interno, Oswald ressalta a matéria psicológica, os

estados brutos da alma do povo, o psiquismo das manifestações da “raça crédula e

dualista”, da “sábia preguiça solar”, da “energia íntima”, da “hospitalidade um

pouco sensual e amorosa”, do carnaval como “acontecimento religioso da alma”,

“bárbaro e nosso”; neste veio localizam-se as representações de um caráter

brasileiro expresso na psicologia fundadora dos traços típicos dos homens e

mulheres brasileiros, revelados como idiossincrasia pura, autêntica e original,

daqui por diante não mais recalcados à luz de um modelo de comportamento e

cultura alienígenas ao meio brasileiro.

No âmbito do primitivismo exterior, Oswald de Andrade reiterava as

criações populares como expressões originais porque nativas e desvinculadas das

influências do mimetismo estrangeiro das quais as elites letradas se chafurdavam.

É daí que encontramos como fatos poéticos os “casebres de açafrão e de ocre nos

verdes da Favela”, os “cordões de Botafogo”, “o vatapá, o ouro, a dança”, o

“Carnaval”, e na linguagem popular a “contribuição milionária de todos os erros”.

(Andrade, 1995, p. 41-44).

É verdade que já em 1923 na sua já citada conferência “O esforço

intelectual do Brasil contemporâneo”, Oswald de Andrade anunciava a “matéria

psicológica” resultante da união de “três elementos diversos: o índio, o português

e o padre latino”, vindo o africano logo após dar um senso de realismo ao

idealismo europeu (idem, 1992, p. 29). Neste momento, existe uma apuração dos

fatos intelectuais dentro da história brasileira que fizeram valer os rumos pelos

quais ela progrediria como uma nova nação moderna onde, segundo Vinícius

Dantas, “a eclosão das realidades presentes”, da industrialização e da urbanização,

dariam condições materiais para que suas fontes psicológicas e culturais

permanecessem fortes. Em 1924, o

“Manifesto da poesia pau-brasil” traz também uma solução de uma problemática

local, onde o fio da continuidade precisa portanto ser puxado da tradição

nacionalista, muito embora Oswald embaralhe e confunda programaticamente as

noções de primitivo e moderno, nacional e cosmopolita, vanguardismo e tradição,

144

por aderir com igual ânimo radical, a um só tempo, aos dois lados. (Dantas, 1996,

p. 102).

É justamente essa ambiguidade que perdurará ainda em 1924 e será o

embate mais pessoal de Oswald de Andrade, sendo que, apesar de toda a moda

brasilista que ele mesmo inaugura, suas obras permanecerão num diálogo entre

vanguarda e localismo, ainda não absolutamente conciliados e sem o caráter de

experimentalismo daquela. Não há dúvida em pensarmos que essa particularidade

se deu pela ambição do autor de João Miramar em vanguardiar o movimento

modernista, trazendo e reelaborando as problemáticas novas que surgiam entre os

europeus. Ressaltar isso não implica, claro, a aberração da livre cópia, do

mimetismo do qual ele mesmo e o modernismo em geral combatiam; mas o jogo

mal entendido entre a noção de uma arte e literatura de expressão e demandas

locais e os questionamentos estéticos que as vanguardas históricas propunham, em

suma, o mesmo dilema entre o localismo e o cosmopolitismo do qual Antonio

Candido diz ser o complexo estrutural da formação da literatura brasileira, foi, a

partir deste momento, com a livre adesão ao discurso primitivo-brasileirista, a dor

de cabeça desses modernistas que não deixavam de pensar e ignorar a mente

estrangeira. A ótica destes modernistas, apesar de cosmopolita, pendia para a

associação crucial de ver no sentimento étnico nacional o remédio para a suspeita

de que o vanguardismo não excluía o nacionalismo, mesmo porque a

modernização do país, como o expressou Oswald em 1923, não alterará a

organicidade da fonte brasileira, do seu “sentimento étnico”.

O que vem à tona nessa discussão é o que no “Manifesto da poesia pau-

brasil” se enfatiza: “Dividamos: poesia de importação. E a poesia Pau-Brasil, de

exportação.” (Andrade, 1995, p. 42). Curioso é pensar que ainda aqui a matéria

bruta, a psicologia brasileira escancarada é também matéria de venda, i.e.,

podemos dizer que a poesia do “estado de inocência” não deixa de ser mais ou

menos tratada como produto exótico, para estrangeiro ver; quer dizer, o olhar

estrangeiro ainda permanece senão como forma de modelação, pelo menos como

o daquele que deverá ser o consumidor final dentro de um quadro de

reestruturação da “divisão internacional da literatura”, na qual a Europa era nosso

fornecedor direto de cultura. A poesia pau-brasil quer ser a vanguarda de segunda

mão, refiltrada pela magia e obscurantismo brasileiros para ser distribuídos aos

145

povos “consumidores de primitivismo”, ou seja, apreciados pelas mesmas

vanguardas que deram um rótulo no qual se engarrafa a substância brasileira

passando a “ser valorizada pelo critério exterior e proeminente da vanguarda

internacional.” (Dantas, 1996, p. 102). Enfim, é uma poesia do povo mas não para

o povo. Essa ambiguidade é crucial para entendermos que as dimensões

problemáticas de uma cultura que se via como “inferior” aos de fora, mesmo

quando passa por uma revolução no modo de se reorganizar e rever a própria

noção de cultura como o fora no modernismo primitivista, ainda mediavam sua

legitimidade pelo crivo do olhar estrangeiro. Pelo menos era esse o caso do

“processo de atrapalhação”, modo pelo qual Monteiro Lobato chamou o

movimento pau-brasil; atrapalhação porque Oswald produziu um “angu completo

dos valores e regras universalmente aceitas” (Lobato, 2008, p. 122) no intuito de

ser recebido como o renovador dentro da renovação que, então, não mais parecia

estancar-se naquilo que Plínio Salgado chamou de “sistematização da revolução

literária” (Salgado, 1972, p. 286) e que Mário de Andrade chamou de “pasmaceira

artística em que vivia” o país (Andrade, 1972, p. 223). Na ânsia de tomar a

vanguarda do modernismo, ele acabou criando a imagem de homem sem

propósito, estigmatizado como mero blaguista, cujo humor se tornará obstáculo

durante toda a sua vida que para aqueles que não acreditavam na crítica satírica

extremista e nem na seriedade dos seus projetos. É neste sentido que Lobato47

acredita que Oswald não tem credibilidade entre os seus pares nem entre as

demais intelectualidades, como bem expressa Afonso Arinos sobre os poemas

deste: “no primeiro instante a gente fica perturbado. Quase se desconfia se aquilo

é deboche.” (Arinos apud Boaventura, 1986, p. 48). É o que se vê nessas palavras

de um grande amigo de Oswald, Mário Guastini que via no autor

um blagueuer incorrigível que, para se divertir às custas dos pobres-diabos, que

acreditam nas suas pilhérias, resolveu transformar-se em apóstolo da arte-nova, de

uma arte-disparate, de uma arte que esses mesmos pobres-diabos, em consciência,

não podem levar a sério... (Guatini, apud Silveira, 2007, p. 179).

47

Tal artigo de Lobato, publicado em 1926 gerou uma resposta mordaz de Mário de Andrade, que

escreve um necrológio do editor no jornal A manhã de 13 de maio de 1926: “O telégrafo

implacável nos traz a notícia da morte de Monteiro Lobato, o conhecido autor de Urupês. Uma das

fatalidades que sofre a literatura nacional é esta das Parcas impacientes abandonarem no começo o

tecido de certas vidas brasileiras que se anunciavam belas e úteis.” ANDRADE apud PASSIANI,

Ênio. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Bauru:

Edusc/Anpocs, 2003, p.31.

146

O manifesto encerra as primeiras dores de um parto no qual se desejava

nascer um rebento legitimamente nacional ungindo o sangue local à modernidade

que veio, como o padre jesuíta, dar parte da civilização; pois, dentro das

disparidades de Oswald de Andrade, neste momento o teor civilizacional ainda se

fazia penetrar, conciliando “o melhor da tradição lírica” com o “melhor da nossa

tradição moderna”, unindo “floresta” e “escola”, o que, segundo Benedito Nunes,

formaria “um composto híbrido que ratifica a miscigenação étnica do povo

brasileiro...” (Nunes, 1995, p.13). O olhar vesgo de Oswald foi uma tentativa de

solucionar o progressivo questionamento sobre a necessidade momentânea de

apurar os fatos brutos da terra numa poética que se elevasse como único viés

programático do movimento, que parecia ver-se fadado ao não lugar do

cosmopolitismo extremista e do inextricável diálogo com as vanguardas artísticas,

modo único de manter sobre sua rubrica a marca de uma poética modernista. O

problema, no entanto, não é bem resolvido senão pelas ambiguidades de sua

expressão e pelos não entendimentos da crítica, tanto modernista quanto dos

inimigos de plantão; apesar de tudo, segundo Vinícius Dantas, a solução foi que,

tirando da mistura de tradição e modernidade um efeito de choque e surpresa,

Oswald apresenta a ‘matéria psicológica’, de que falava em Paris, limpa dos

constrangimentos morais, raciais e culturais que consumiam o debate nacionalista,

deslocado que ficava, nessa moldura vanguardista, para segundo plano. (Dantas,

1996, p 102).

Do processo resultou o desrecalcamento da cultura popular brasileira, livre

dos preconceitos e dos elitismos da literatura bacharelesca, doutofílica, eruditista,

dos “gaviões de penacho”.

O problema era que as dificuldades dessa solução foram caras para o futuro

do movimento que desde então não parou de se fragmentar às custas dos

primitivismos de segunda mão ou dos “futurismos” passadistas e academizantes.

Todas as novas direções, incluídas dentro do mesmo problema que Oswald

inaugura com o manifesto, irão ou renegar o caráter primitivista, como Graça

Aranha arrastando Ronald de Carvalho, ou abraçá-lo, filtrando-o dos resquícios da

vanguarda, como os verdeamarelos, ou da total recusa de ambos os modelos como

foi o caso de Lins do Rego e de Gilberto Freyre e dos espiritualistas que se

reunirão em torno da revista Festa. Foi Prudente de Moraes, neto, quem afirmou

que “o manifesto da poesia pau-brasil, de 1924, assinalou o início da

147

desagregação do modernismo como movimento, como ação conjunta de grupo,

em defesa de ideais comuns.” (Moraes apud Domingos, 2010, p, 87). A recepção

foi bombástica dentro dos veios modernistas; afinal, era uma escolarização do

movimento, aquilo de que tanto eles haviam brigado para não acontecer nos anos

anteriores a 1920, como no caso da polêmica sobre a alcunha de “futuristas” dada

pelos críticos. Neste sentido, já em maio de 1924, um mês após a publicação do

manifesto, encontramos uma crítica ao caráter dogmático do movimento feita por

Manuel Bandeira:

A poesia brasileira vai entrar para a Liga Nacionalista. Oswald de Andrade acaba

de deitar manifesto — uma espécie de plataforma-poema daquilo que ele chama

Poesia Pau-Brasil. Eu protesto. O nome é cumprido demais. Bastaria dizer poesia

pau. Por inteiro: Manifesto Brasil da Poesia Pau. Porque é poesia de programa e

toda poesia de programa é pau. Aborrecem os poetas que se lembram da

nacionalidade quando fazem versos. Eu quero falar do que me der na cabeça.

Quero ser eventualmente mistura de turco com sírio-libanês. Quero ter o direito de

falar ainda na Grécia. (Bandeira, apud Silveira, 2007, p. 174)

É praticamente com as mesmas palavras que Carlos Drummond de Andrade

irá responder às tentativas de abrasileiramento da sua produção empreendidas

pelas cartas de Mário de Andrade que serviria também de resposta ao manifesto

de Oswald de Andrade:

Entendo por nacionalista: ter princípios, fazer estudos sobre o amor à pátria, etc. E

como é bom ser brasileiro! Contudo, não é o único bem da vida. Daí amanhecer,

outros dias, norueguês ou tchecoslovaco (mais frequentemente francês). Isto é o

que eu chamo de liberdade espiritual. (C&M, 2002, p. 79)

O aprisionamento do movimento que tinha como princípio a liberdade das

formas e dos tratamentos e o direcionismo patente dentro dos termos usados por

Oswald de Andrade, que no manifesto colocava o dilema da arte moderna entre o

Pau-Brasil e os identificados como herdeiros da cultura de gabinete e do

pompismo retórico, gerou antipatias tremendas pelo fato de reduzir a nova arte ao

primitivismo e à tradição local, segundo Mário de Andrade, “visando técnica e

ideologia”. Qualquer arte que se pretendia modernista, caso não apresentasse

esses dados estaria ligada, como se infere dos termos do manifesto, à “fatalidade

do primeiro branco aportado dominando politicamente a selva selvagem.”

(Andrade, 1995, p. 41). A referência ao verso “selva selvagem áspera e forte” da

148

Divina Comédia Dante Alighieri, que representa a perdição do caminho da

virtude, recuperada por Virgílio e Beatriz, mostra que Oswald identificava seu

Pau-Brasil como resposta para os desvios que o movimento parecia haver tomado,

sem nenhuma objetividade que lhe desse caráter de legitimação dentro do campo

literário brasileiro. É neste sentido que Oswald, num embaraço constante e

apresentando a solução para a apatia dos modernistas, tinha em mente a questão

de: que o seu primitivismo era uma conquista da civilização, que a catequese do

índio foi pressuposto para “o melhor de nossa demonstração moderna”, que o seu

pau-brasileirismo era, portanto, também um “assunto invasor” só que depurado

das “indigestões da sabedoria”, “sem reminiscências livrescas. Sem comparações

de apoio. Sem pesquisa etimologia. Sem ontologia.” (Andrade, 1992, p. 45).

É neste sentido que a linguagem de Oswald, com sua “volta ao material”

assumido em Memórias sentimentais de João Miramar, ao mesmo tempo em que

elaborava as dimensões sintáticas das vanguardas, principalmente o elemento da

surpresa e da invenção em síntese do cubismo apollinairista, demandava a atenção

à linguagem brasileira: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e

neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como

somos.” (Andrade, 1995, p. 42). Essa mistura entre a linguagem de choque

essencialmente vanguardista, “poesia etílica de visada crítica, cuja sintaxe nasce

não do ordenamento lógico do discurso, mas da montagem de peças que parecem

soltas”, de “lirismo objetivo e antiilusionismo”, como quer Haroldo de Campo

(Campos, s/d, p.19), e o falar cotidiano, o sermo plebeius, como o interpreta Paulo

Prado, ausente dos bibelôs da eloquência, causava um mal entendido maior por

não querer expressar um dado já real a partir de uma lógica teórica em vias de

conformação e delimitação do próprio objeto que trata — a linguagem. Em outras

palavras, se a língua já se apresentava em sua forma primitiva de maneira,

digamos, pura, em “estado de inocência”, sem nenhuma necessidade de ser

sistematizada, como se fala no manifesto, por que remodelá-la numa acepção

intrusa que reorganiza, reelabora o objeto para que seja exposta de determinada

forma, i.e., na forma da linguagem de vanguarda? Ou, de forma mais concisa, por

que o primitivismo se o primitivo se encontra dado, “puro”, em estado natural? A

interferência da dicção artística de Oswald foi prontamente exposta por Mário de

Andrade em artigo à Revista do Brasil, em setembro de 1924: “a criação dessa

linguagem que tudo abandona pela expressão, mesmo leis universais e básicas, é

149

exemplo fundamentalmente destrutivo que ignora as necessidades do material e

lhe desrespeita mesmo a razão de existência.” (Andrade, 1972, p. 222). Em outro

artigo, agora em 1925 e sobre o livro de poesias Pau-brasil, ele toma a mesma

contradição de Oswald:

Porque essa volta ao material popular, aos erros do povo é desejo de verdade

erudita, e das mais. O. de A. sabe delas e num átimo se aternurou sem crítica por

tudo o que é do povo, misturando, generalizando. E se contradizendo no mesmo

escrito que é o único jeito mesmo de ter contradição. (idem, p. 240).

O retorno ao “sentido puro”, à autenticidade nacional e pureza verbal

cotidiana dos primitivos da terra, ao contrário do que pensa Haroldo de Campo,

acreditando nele como a “acepção fenomenológica de disposição inaugural”

(Campos, s/d, p. 24) a partir do introito dentro da perspectiva da arte de

vanguarda, inflacionava aquilo que sempre foi a pedra no sapato das vanguardas,

o fato de que a linguagem modernista era marcada por hermetismos inebriantes,

incoerentes, sem nenhuma relação factual com as próprias fontes das quais se

abasteciam, ou seja, a realidade. Essa questão é delicada. É daí que a “paranoia e

mistificação”, da qual falava Monteiro Lobato, se torna o problema do qual a

simples ocorrência linguística ou manifestação artística se perde no vácuo da

especulação verbal e, naquele caso, pictórica. É essa a essência mesma da

vanguarda, o que José Guilherme Merquior chega a afirmar ser uma das suas

principais tendências porque “a arte de vanguarda desenvolveu, no século XX,

uma nítida propensão à incomunicabilidade”; é certo que existem exageros no

crítico liberal mas não podemos deixar de concordar que, em grande parte, “esse

democratismo linguístico foi posto a serviço de uma semântica ultra-aristocrática”

e que

toda a linha forte da literatura de vanguarda, a começar por Kafka e pelos

surrealismos, joga com significações incertas, esquivas, obscuras, cifradas. A

leitura — mesmo a mais atenta — resvala na penumbra das interpretações

oscilantes. (Merquior, 1974, p. 85).

O fato de essa vanguarda ter sua sobrevivência histórica até hoje denota que

eles não foram, no entanto, tão mal entendidos, pois, do contrário, eles estariam

hoje fadados ao esquecimento total. Entretanto, essa questão passa mesmo pela

150

autocrítica dos modernistas e vanguardistas, como demonstram essas palavras de

Jean Epstein:

As letras modernas, malgrado esquematização e aproximação, não se caracterizam

de forma nenhuma pela simplicidade. por força mesmo de suas esquematizações os

modernos exigem, para serem compreendidos, um trabalho intelectual

complementar importante por parte do leitor... (Epstein apud Martins, 2002, p. 54).

Quando a linguagem cosmopolita, a língua automática produzida pelos

profundos da inconsciência ou do “subconsciente”, como dizia Mário de Andrade,

descambou majoritariamente para o primitivismo externo, no caso brasileiro,

houve um choque duplo,pois a linguagem cotidiana, “a contribuição dos erros”, já

é em si desprovida de meneios e obrigações linguísticas que a escrita impõe, daí

que ela mesma, com superposições e eliminações de sílabas e ramificações de

gírias, apresenta-se, podemos dizer, quase vanguardista, pois também é sintética,

inovadora, automática. Quando o primitivismo vanguardista aborda tal linguagem,

no caso de Oswald, ela se anula, se estrutura na aparência da liberdade, do

sentido-purismo que inventa um olhar preconcebido para um objeto pronto,

elaborado, natural, como é a linguagem popular, a “originalidade nativa”. A

contradição oswaldiana é típica daquela crítica de Mário de Andrade sobre autores

que escrevem falas de personagens “naturalmente”, com erros gramaticais, depois

disso escrevem do “modo certo”: “nos seus textos escrevem gramaticalmente, mas

permitem que seus personagens, falando, ‘errem’ o português” (Andrade, 1972, p.

245). Conta-se nisso a escrita dos poemas pau-brasil serem “primitivos”,

popularescos, mas o manifesto da poesia pau-brasil não conter nenhum sinal da

língua vulgar, “como falamos”, a não ser numa passagem na qual cita a língua

pura (“dorme nenê que o bicho vem pegá”). Nada mais que um paubrasileirismo

de citação, e como uma citação, ele adquire o aspecto de algo externo, fora do

ambiente, servindo apenas como apêndice, e é exatamente isso o que é o “povo”

em Oswald de Andrade. Assim como para os modernistas em geral, homens e

mulheres “de fora”, o outro que querem descobrir porque não fizeram parte da sua

vida de “aristocratas” e de elites intelectuais, como se pode ver nestas palavras

idealistas do próprio Oswald sobre sua infância:

Apenas quando mamãe consentia que as criadas me levassem às festas religiosas

(...) eu ensaiava com elas no tablado de um coreto passos de maxixe no meio da

151

pretada. Evidentemente definia-se assim minha intensa adesão ao povo, seus ideais

e costumes. (Andrade, 1990, p. 37).

O “povo”, como uma citação, foi apenas uma adesão.

Em artigo de setembro de 1924, Mário de Andrade discorre o fato de que os

modernistas pretendiam colocar a “consciência nacional no presente do universo”.

Questionando-se sobre onde encontrar tal consciência nacional o autor de

Paulicéia admite que ela não poderia ser encontrada dentro da tradição dos

escritores brasileiros porque “essa tradição não dizia nada”; continua ele:

As poucas tentativas dum Basílio da Gama, dum Gonçalves Dias, dum Alencar

eram falhas porque intelectuais em vez de sentidas, porque dogmáticas em vez de

experimentais, idealistas em vez de críticas e práticas, divorciadas do seio popular,

descaminhadas da tradição, ignorantes dos fatos da realidade da terra. Apenas

alguma coisa da ironia do caboclo, da sua melancolia, do sentimento do brasileiro

urbano, da petulância pernóstica do mulato e sua chalaça lusa se podia aprender na

obra dum Gregório de Matos, dum Casimiro de Abreu, dum Álvares de Azevedo.

Outros pouquíssimos. (Andrade, 1972, p. 224)

Ainda afirma o autor que o nacionalismo de certos autores não implica ou

gera uma consciência nacional que tem de ser “íntima, popular e unânime”. Esse

“sentimento íntimo”, para lembrar o famigerado termo de Machado de Assis,

conclui Mário de Andrade, ainda não existe, lembrando que o trabalho dos

modernistas ajudava para o “aparecimento” dessa consciência nacional. Portanto,

em 1924, Mário de Andrade já revia à qual tradição literária o modernismo

poderia ligar-se para realizar o trabalho de “transportar a consciência nacional

para o presente do universo”. Foi isso o que Mário chamou de tradicionalização

ou de passadistização literária. Ele afirma, em entrevista ao jornal A noite, em

dezembro de 1925, que o modernismo não deve reviver o passado brasileiro mas

vivê-lo e sentí-lo não apenas na sua realidade física como também na sua

“emotividade histórica”, já que “sentir as lutas contra os franceses, Estácio de Sá,

Pedro I e a casinha de Machado de Assis” só brasileiro desprovido de “saudade

pela Europa”, brasileiro sem a “moléstia de Nabuco”, pode sentir. Completa ele:

Nós já temos um passado guassú e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece

é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é,

referí-lo ao presente. Bilac evocando Anchieta reviveu porque não tradicionalizou

Anchieta, não fez dele um valor agente pesando no mecanismo brasileiro mas uma

visão desrelacionada e morta do passado. Guilherme de Almeida em Raça vive os

capitães de terra, os escravos, etc. porque os refere ao presente brasileiro. (...)

152

Tradicionalizar o Brasil consistirá em viver-lhe a realidade atual com a nossa

sensibilidade tal como é e não como a gente quer que ela seja, e referindo a esse

presente nossos costumes, língua, nosso destino e também nosso passado.

(Andrade, 1983, p. 19)

Mário de Andrade pensa em como aproveitar melhor a tradição brasileira

que se aproximava das propostas modernistas. No mesmo sentido que Paulo Prado

reivindicou Casimiro de Abreu no seu prefácio ao livro de poesias Pau-Brasil,

Mário de Andrade irá reapropriar autores, fazendo uma leitura contemporânea que

os referisse a problemas circunstanciais. A referencialidade do presente é um

problema comum nas diversas fases de Mário de Andrade pois sua preocupação

com a historicidade das plataformas modernistas é o fator mais importante das

suas reviravoltas de opinião e sua aparente contradição. As diversas versões e

cortes do seu maior romance, Macunaíma, estaria ligado à necessidade de fazer

“literatura de circunstância”, conceito elaborado por ele mesmo, que “propôs uma

literatura não mais voltada para a ideia de universalidade e perenidade, mas

empenhada em uma reflexão crítica e em uma influência direta sobre seu tempo”,

como afirma Telê Porto Ancora Lopez (Lopez, 1978, p. xxxviii). É neste sentido

também que a figura de Machado de Assis terá um papel relevante nas suas fases

de intensa querela contra ou a favor dos cânones brasileiros. Mário confessa, por

exemplo, a influência do Bruxo na feitura do seu livro Amar verbo intransitivo,

nesta carta datada de 20 de fevereiro de 1927 dirigida a Carlos Drummond de

Andrade:

Ora se o senhor Mário de Andrade se inspira em Machado de Assis é porque quis

tradicionalizar a orientação humorística brasileira representada por Machado de

Assis na literatura de ordem artística, Machado que a gente pondo reparo mais

íntimo é mais brasileiro do que parece à primeira vista. Até na língua? Até na

língua que estudada de mais perto mostra uma aversão quase sistemática pelos

modismos especializadamente portugas. (C&M, 2002, p. 277-278)

Então, pelas palavras do próprio Mário, era possível sim referenciar

determinado aspecto de um autor da tradição literária brasileira no sentido de

problematizar uma questão do presente, vivendo-o e tradicionalizando-o numa

ótica modernista.

Para Mário de Andrade, a consciência de uma continuidade dentro da

tradição literária brasileira foi o salvaguardo do modernismo brasileiro. É que a

sede de ruptura das vanguardas europeias, segundo ele, não se dispôs a construir

153

um edifício estético que mantivesse as conquistas renovadoras concretamente

solidificadas. É o caso do futurismo italiano que destruiu cânones literários sem

nenhuma proposta construtiva; o resultado foi a sua completa degradação artística,

ainda mais quando Marinetti andou a namorar-se com o fascismo. Maiakovski,

para não cair no mesmo erro, “saiu” do futurismo. Mas no mesmo erro dos

italianos caíram os da França, da Alemanha, o grupo Sturm, os dadaístas, os

cubistas. Eles não souberam aproveitar e reavaliar a tradição literária de seus

países como o fizera o modernismo brasileiro, daí que, para Mário, “de todas as

tentativas de modernização artística do mundo, talvez a que achou melhor solução

para si mesma foi a brasileira.” (Andrade, 1983, p. 17). Ele então explica a

tradicionalização pela reintrodução do modernismo dentro da evolução da

literatura brasileira. Neste sentido, o momento de ruptura do movimento já

passou, foi apenas um “estado de exceção”, no qual, em suas palavras,

a gente se excetua apenas o tempo necessário para conquistar mais liberdade e

sobretudo visão melhor da torrente humana. Mas depois se reintegra na torrente,

porque só mesmo dentro dela pode ser eficiente e fecundo. (idem, p. 18).

Usando de empréstimo os termos dos formalistas russos, podemos afirmar

que é aí que o “estranhamento” se “automatiza”, a ruptura se canoniza.

É importante esse relato crítico de Mário de Andrade para explicar o

movimento modernista. Nele há uma percepção histórico-geneticista da literatura

de uma sutileza incrível. Para ele, nas revoluções literárias é necessário um

momento de exceção, de afastamento objetivo diante dos quadros e da paisagem

literária que se apresenta. Sem esse distanciamento, essa relação crítica sujeito-

objeto, a compreensão do momento histórico é impossível, dado que é neste

intervalo crítico que os grupos que pretendem tomar o “poder literário” avaliam os

campos e as estratégias de ataque (a autocrítica de que fala Bürger). As críticas

contra o passadismo, contra os “Mestres do passado”, como escreveria o próprio

Mário de Andrade, e as polêmicas levadas a cabo pelos integrantes da renovação

literária dão a entender que essa estratégia foi vitoriosa. A ruptura é apenas a

primeira fase cuja ressonância serve apenas para angariar destaque diante da

tradição literária vigente e da sociedade por ela representada, e é nesta perspectiva

que Antonio Candido acerta quando caracteriza o grupo modernista paulista como

grupo “não mais justaposto á comunidade, todavia, mas formado a partir dela,

154

oriundo da sua própria dinâmica, diferenciando-se de dentro para fora.” (Mello e

Souza, 2000, p. 144). Mas a reabilitação era necessária, afinal, esses modernistas

não poderiam viver como párias da literatura brasileira, e, mais que isso, a

literatura modernista — quer dizer, para eles, a literatura brasileira contemporânea

— não poderia ceder ao risco das imprecações e suscetibilidades de estagnação

pelo ataque direto e irresponsável. Foi essa a noção que tomou Mário de Andrade

(retroativamente, diga-se). Daí que a tradicionalização, i.e., a releitura presentista

da nacionalidade, da literatura brasileira torna-se urgente, modernizando alguns

aspectos desta tradição, para não perder o seu cheiro de modernismo, de

vanguarda. A questão atual é esta: “Ora, o maior problema atual do Brasil

consiste no acomodamento da nossa sensibilidade nacional com a realidade

brasileira...” (Andrade, 1983, p.18).

O modernismo tentaria pois o casamento junto ao seio popular que a

tradição brasileira não ousava enfrentar. Daí que o quinhão modernista para a

solução de continuidade da sua segunda fase fora o populismo e a atenção ao

detalhe local expurgado dos constrangimentos dos autores passados. A questão da

língua brasileira foi, desde então, o ponto chave do primitivismo modernista

brasileiro. Quanto a isso, se Oswald teve seus dilemas e insuficiências, Mário

também o impôs de modo incisivo. Como comenta Manuel Bandeira:

Em nenhum desses setores [crítica literária, musical e plástica] fez ele maiores

sacrifícios à verdade e à beleza de suas criações do que na questão da língua, e aí se

tornou mais irritante e contundente, muito mais inacessível, em suas nobres

intenções, aos julgamentos superficiais. (...) Numa linguagem brasileira artificial,

porque é uma síntese e sistematização pessoal de modismos dos quatro cantos do

Brasil, passou Mário de Andrade a escrever os seus livros, na poesia desde O

losango cáqui, publicado em 1924. (Bandeira, 1996, p. 610)

Como vimos, a questão da língua fora então um ponto crítico para esse novo

modernismo. Plínio Salgado chegará ao cúmulo policarpoquaresmista de estudar a

língua tupi:

Com Raul Bopp, atravessei muitas noites estudando a língua tupi. (...) Os

modernistas extremados ridicularizaram-nos, depois imitaram-nos, organizando um

indianismo surrealista e dadaísta, que denominaram ‘antropofagia’. (Salgado apud

Martins, 2002, p. 106).

155

A antropofagia de 1928, no entanto, admitiu vários textos de Salgado sobre

suas pesquisas da língua autóctone, mas desde 1924, todo mundo teve que tomar

partido e a fragmentação foi então inevitável, afinal, Oswald divisava o

movimento entre o paubrasileirismo (modernismo) e o não-paubrasileirismo

(atraso passadista).

Em julho de 1924 Graça Aranha, em sua conferência na Academia

Brasileira de Letras, intitulada “O espírito moderno”, acoimava:

O primitivismo dos intelectuais é um ato de vontade, um artifício como o

arcadismo dos acadêmicos. (...) Ser brasileiro não é ser selvagem, ser humilde,

escravo do terror, balbuciar uma linguagem imbecil, rebuscar os motivos da poesia

e da literatura unicamente numa pretendida ingenuidade popular, turvada pelas

influências e deformações da tradição europeia. (Aranha, 1925, p. 43-44)

Ronald de Carvalho e Renato Almeida então aliam-se ao integracionismo de

Aranha, formando o “grupo” dinamista. Estes dois últimos, segundo a crítica

hegemônica do modernismo, serão paulatinamente marcados pela academização

das formas, considerados modernistas academizantes por Sérgio Buarque de

Holanda, em seu polêmico artigo, “O lado oposto e outros lados”, de 1926 na

Revista do Brasil, criticando a obra Toda a América, de Ronald, além de Graça e

Renato48

. Mário de Andrade, no entanto, admite, em carta de 1928 a Carlos

Drummond, que

ninguém não conseguirá neste mundo fazer que eu recuse sob ponto de vista de

modernice, a obra de Ronald e Guilherme e creio que você nisso concorda comigo.

Eu era incapaz de botar eles “do outro lado” só porque são totalmente diferentes da

gente. (C&M, 2002, p. 311).

Já Drummond tem outra opinião: “Guilherme não tem a brutalidade, a

ternura e o amor que a nossa paisagem está exigindo de seus cantores (mesmo

defeito do Ronald).” (idem, p. 189).

Para Merquior, Graça Aranha é um “pensador impressionista abeberado no

irracionalismo do pensamento fin-de-siècle, ‘nacionalista’ obcecado pela fábula

48

Vaticinava Sérgio Buarque de Holanda contra aqueles: “São autores que se acham positivamente

situados do lado oposto e que fazem todo o possível para sentirem um pouco a inquietação da

gente de vanguarda. Houve tempo em que esses autores foram tudo quanto havia de bom na

literatura brasileira. No ponto em que estamos hoje eles não significam nada para nós.”

HOLANDA, Sérgio Buarque. O espírito e a letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, v.I, p.

224-228.

156

racista da ‘inferioridade do mestiço’ — nos antípodas, portanto, da etnologia

modernista”, concluindo que o “grupo” de Graça era uma “pseudo ‘arte

moderna’.” (Merquior, 1974, p. 92). O papel de Graça Aranha dentro do

modernismo foi traçado por Eduardo Jardim de Moraes; apesar das discordâncias

que vemos nos argumentos do filósofo sobre as influências nacionalistas do autor

de Canaã, é certo que a crítica não pôde entrar no seu pensamento sem o

preconceito legado pelos “líderes” do movimento. Ainda assim, quando se tem em

mente a iluminação dessas verdades, o discurso empático prevalece ao invés de

uma análise mais sobriamente crítica. Neste sentido, não é tão próprio chamar O

espírito moderno de Graça de “revolucionário”, como o quer Wilson Martins.

Acirrando ainda mais as divergências internas, em 1925 Drummond,

influenciado por Mário de Andrade, também toma partido contra Oswald de

Andrade. Afirma ele que

As teorias mais diversas têm isso de comum: são de borracha. Daí, não se pode

obrigar Oswald a dar suas ideias à objetivação que nos convém. O que ele prega,

procura ser: crédulo, bárbaro, pitoresco, ingênuo, lírico, primitivo. Dizer que sua

ingenuidade é falsa, porque de civilizado, me parece injustiça. Ele tenta uma crise

de primitivismo, porém não pode ficar burro de repente (?) nem esquecer o que

aprendeu nas Europas. (Aprendeu, por ex., a ser livre). Não acredito é nas

vantagens de seu primitivismo. (Andrade, 1972, p. 288)

Ressoando quase as mesmas palavras de Mário. No entanto, o primitivismo,

como veremos mais adiante, será uma discórdia entre o poeta mineiro e o paulista.

Principalmente em 1925, com a fundação de A Revista, o modernismo de Minas

entra no debate que envolvia o nacionalismo como moeda corrente, a partir de

agora sempre em onda inflacionária. É o que remonta Antonio de Alcântara

Machado, em 1927, em entrevista a Peregrino Jr.:

Antigamente era a frente única. Pancada nos inimigos. Agora é a discórdia.

Pancada nos companheiros. A preocupação de saber quem é que está certo. Ou,

mais gostoso: de saber quem é que está errado. (...) E principalmente a

preocupação de saber quem é de fato brasileiro da gema. (Machado apud Pinto,

2001, p. 452).

A brasilidade parecia o único meio de dinamizar o modernismo, como se

apenas a partir da atitude detalhista local pudesse imprimir na literatura a

dinâmica criativa que o cosmopolitismo tecnicista não conseguia dentro do afã

157

vertiginoso da modernidade que não respeita fronteiras; a crítica pautada no

critério da nacionalidade remontava então a Silvio Romero, que no século XIX

efetuara a mesma complexidade de unir um cientificismo agudo ao critério da

nacionalidade. Só que agora a diferença partia do primitivismo e da consequente

reorganização da cultura popular como fator de originalidade não mais

constrangedora, mas autentificadora da modernidade brasileira, ou melhor, da

brasilidade moderna. A febre de primitivismo e brasilidade era tanta que tornou-se

o sarampão da inteligência, como mostram essas palavras de Sérgio Milliet na

revista Terra roxa e outras terras sobre o livro de Ribeiro Couto, Um homem na

multidão: “Acredito que você ‘não ligue a mínima’ ao brasileirismo. Tanto

melhor. É uma verdadeira obsessão para quase todos nós.” (Milliet, 1926, p. 3).

Também em 1925 o grupo Verde-amarelo, integrando Plínio Salgado,

Menotti Del Picchia, Cândido Mota Filho e Cassiano Ricardo, lança suas palavras

contra o “Manifesto da poesia pau-brasil”:

Pau-Brasil é a madeira que já não existe, interessou holandeses e portugueses,

franceses e chineses, menos os brasileiros que dela só tiveram notícia pelos

historiadores; inspirou a colonização, quer dizer: a assimilação da terra e da boa

gente empanachada pelo estrangeiro; em síntese: pau nefasto, primitivo, colonial,

arcaísmo da flora, expressão do país subserviente, capitania, governo geral, sem

consciência definida, balbuciante, etc. Ainda hoje, na acepção tomada por Oswald,

pau importuno, xereta, metido a sebo. Aparece prestigiado por franceses e

italianos. Mastro absurdo da nossa festa do Divino carregado por Oswald, Mário,

Cendrars. (Verde Amarelo, 2004, p. 30)

Plínio Salgado descartava as inferências das vanguardas dentro do

movimento modernista. Desde o começo do movimento, já na época mesma da

Semana de 22, sua adesão era dada nos bastidores. Como ressaltou Eduardo

Jardim de Moraes, Plínio acreditava na “percepção intuitiva dos traços profundos

do psiquismo coletivo que é valorizada”. Para o autor de Despertemos a nação, a

nacionalidade se manifestava através dos sentimentos e não dos dados analíticos

dos quais um Mário de Andrade irá inferir a fonte nacional em suas pesquisas

antropológicas das canções, danças, poesias, mitos populares. Nada poderia

atrapalhar o cheiro da nacionalidade que sobe espontaneamente dos dados

emocionais, na medida em que estes podem, mais do que as inflexões

racionalizantes, “medir a unidade mais fundamental da nação que se realiza.”

(Moraes, 1978, p. 130). Daí que Plínio Salgado argumenta: “A unidade nacional

158

só se possibilita como consequência de uma grande unidade de sentimento.”

(Salgado apud Moraes, 1978, p. 130). Uma unidade que deflagra-se a despeito das

diferenças regionais e mesmo das manifestações absolutamente díspares de

conteúdo que, no fundo da psicologia do povo, remetem à alma brasileira —

concepção que faz lembrar a “unidade de sentido” da qual A. J. Toynbee visava

uma Europa como uma única fonte cultural, desprovida de diferenças. No entanto,

Salgado arrogava um irracionalismo perigoso que não titubeou em abraçar ideias

políticas que também enfileiravam a nacionalidade intumescida, ao mesmo tempo

que introspectiva à modernidade exterior não-brasileira. Escrevia ele no seu

“Conceito dinâmico da arte”:

Em suma. Só intuitivamente, e sem tutelas, iremos da nossa indecisão para uma

arte nacional expressiva de um novo valor humano. E nos iluminaremos com o

misterioso senso divinatório, sem o qual não existe Arte, que foi e será sempre:

emoção. (Salgado apud Moraes, 1978, p.128).

Como se vê, a dessacralização da arte empreendida pela vanguarda

encontra-se aqui esgotada em todos os graus. Por outro lado, se a arte não

consegue refletir tal unidade de sentimento, e mesmo os romances fracassados de

Plínio, como O estrangeiro e A tormenta o provam, o campo de um nacionalismo

político e social exaltado poderia ser a solução para empreender tal projeto, como

podemos ler em seu livro Despertemos a nação e EE. UU. do Brasil.

Cassiano Ricardo então daria o tom: “Não é com o voto secreto e outras

medidas teóricas propugnadas pelos continuadores do velho idealismo empírico

que havemos de construir a maior pátria do continente.” (Ricardo apud Moraes,

1978, p. 128). Como ele também escreveria em 1939:

Mas a quem caberia estudar o Brasil como ele é e defende-lo na sua originalidade?

A uma classe até então separada do Estado: a dos escritores, quaisquer que fossem,

pensadores e artistas aos quais foi dado o dom de penetrar na alma de seu povo e

no recesso dos destinos humanos.” (Ricardo, 1939, s/p).

O elitismo e a visão salvacionista dos intelectuais perante uma nação e um

povo que não consegue por si só adentrar na sua própria nacionalidade encontram

aqui os braços do poder estatal; a união entre nação e Estado estaria então mais

que perfeitamente efetivada, fechando um ciclo no qual a ideologia popular-

nacionalista dos anos 1920 encontrará a ideologia populista-estatal dos anos 1930.

159

O nacionalismo dos movimentos sociais então em voga e que pululava na

ânsia de salvar a nação, nacionalismo esse representado pelos movimentos

tenentistas, que na década de 1920 tentarão impor uma nova classe politicamente

ativa ao mesmo tempo que preparava terreno para as convicções políticas de

determinadas classes sociais urbanas, caracterizaram-se pela quase completa

apopularidade de suas reivindicações, nas quais a maioria da população não

entrava dentro das parcas propostas políticas que se preocupavam apenas com a

moralização do processo eleitoral e por algumas medidas superficiais no âmbito

social. Do mesmo modo foi o movimento modernista na década de 1920, fadado

às polemicices e especulações literárias que estavam longe da realidade social,

mesmo no seu segundo momento, quando o nacionalismo toma a vez e se torna a

chave de entrada na porta já aberta do nacionalismo literário do qual toda uma

tradição já problematizara. Na década de 1930 ocorre, no entanto, o encontro do

qual fala Cassiano Ricardo: os modernistas tomam cada vez mais o sabor do

populismo, aliando suas propostas de pesquisa ao governo de um Estado também

populista.

Em 1926, os “regionalistas” deitam seu manifesto. Mas já em 1923, Lins do

Rego, vaticinava:

O Brasil não precisava do dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos

rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às suas fontes

da vida, às profundezas de sua vida, às profundezas de sua consciência. (Rego apud

Martins, 2001, p. 120).

Havia uma reação profunda contra o que se entendia como anarquia

cosmopolita dos modernistas sulistas, e mesmo as insistências de um Joaquim

Inojosa de acender as discussões pareciam não surtir efeito, mesmo depois de sua

carta-manifesto “A arte moderna”, de 1924, na qual desafiava: “Porque, ou a

Paraíba se filia ao movimento renovador, ou, em arte, ficará no Morro do Castelo

da Antiguidade.” (Inojosa, 2009, p.482). Escrevia Gilberto Freyre em prefácio aos

Poemas negros, de Jorge de Lima: “Já uma vez me afoitei a sugerir esta ideia: a

necessidade de reconhecer-se um movimento distintamente nordestino de

renovação das letras, das artes, da cultura brasileira...” (Freyre apud Martins,

2002, p. 125). O antivanguardismo desses escritores estava fincado numa

perspectiva que, por um lado, criticava certo gratuitismo da “vanguarda” do

160

movimento e, por outro, insurgia-se pela autonomia de propostas para pensar uma

literatura também local mas deslocada de um nacionalismo primitivizante com o

qual outros modernistas se digladiavam. Existia mesmo uma questão de visão de

mundo e de experiência pessoal dentro da crítica dos “regionalistas”49

, como

podemos observar nas palavras de Graciliano Ramos:

Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os

modernistas brasileiros eram uns cabotinos. (...) Enquanto os rapazes de 22

promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno

sertão alagoano, vendendo chita no balcão. (Ramos apud Marques, 2010, p. 27).

No entanto, seria imprecaução colocar neste “grupo” pessoas com estéticas

tão díspares como Graciliano Ramos e Lins do Rego ou Jorge Amado. É mais

fácil avaliar que eram modernistas sem o movimento modernistas, posto que

alguns deles ousaram uma linguagem mais ousadamente experimental, com

Graciliano Ramos, embora seus romances fossem “produto de um

experimentalismo ficcional mais moderado.” (Merquior, 1974, p. 97-98)50

. Lins

do Rego e Jorge Amado pouco experimentaram uma linguagem vanguardista,

escrevendo seus romances como documentos sociais com teor popular: de

denúncia de uma realidade de decadência, o primeiro, ou de luta social, o

segundo. Jorge de Lima sempre manteve-se afastado das palhaçadas dos

modernistas do sul, seu neosimbolismo, classicismo e eloquência predominavam,

apesar de livros esteticamente mais modernistas como Essa negra Fulô, de 1928.

Em 1928, quando Oswald de Andrade lança seu “Manifesto antropofágico”,

o golpe de estado literário, do qual aludimos, está definitivamente realizado

porque é aí que o primitivismo puro mais se afunila para se tornar a “escola”

oswaldiana ortodoxa por excelência. Daí por diante então os rompimentos, antes

mais ou menos disfarçados, serão selados e expostos ao público. O trabalho de

“devoração crítica” das matérias estrangeiras, embrionariamente exposta no

manifesto de 1924, transforma-se na atitude antropofágica. Escreve ele: “Mas não

49

Taxar esse grupo de regionalista é, de certo modo, uma questão de perspectiva que infere na

discussão feita por nós na Introdução deste trabalho. Neste sentido, ainda não se viu a crítica

chamar o paulistismo dos modernistas de regionalismo. 50

Quanto ao experimentalismo de Graciliano Ramos, a opinião de Antonio Candido é diversa: “a

escrita de um Graciliano Ramos ou de um Dionélio Machado ("clássicas" de algum modo),

embora não sofrendo a influência modernista, pôde ser aceita como "normal" porque a sua

despojada secura tinha sido também assegurada pela libertação que o Modernismo efetuou.”

MELLO E SOUZA. Op. cit. p 186.

161

foram os cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos

comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.” (Andrade, 1992, p.

50). Aqui o primitivismo interno parece recuar em relação ao primitivismo

externo, como se o Freud do inconsciente do primeiro modernismo fosse deixado

de lado pelo Freud de Totem e tabu, mesmo que ambos se complementem. Esse

livro marca fortemente o manifesto. Nisto os críticos são bastante unânimes, dado

as suas constantes citações no que tange ao totemismo e sobre determinados

assuntos: “Freud acabou com o enigma da mulher e com outros sustos da

psicologia impressa.” A transformação do tabu em totem é o pressuposto para a

Revolução Caraíba:

Tínhamos uma justiça codificada da vingança. A ciência codificada da Magia.

Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. (...)

De William James e Voronoff. A transformação do Tabu em totem. Antropofagia.

(...)

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade

sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do

matriarcado. (idem, p. 50-52)

A leitura antropofágica de Freud pela Antropofagia apontava uma saída para

a interiorização do complexo repressivo resultando no ato primeiro da civilização,

aquele que inaugurou o estado de cultura no qual antes só havia a relação

simbiótica com a natureza, i.e., a sociedade complexa surgida após o assassinato

do pai pelos filhos, integrantes do clã primevo. O sentimento de ambivalência que

fazia com que os filhos amassem e odiassem o pai ao mesmo tempo, sendo causa

do assassinato, também será o motivo para a criação do totem e dos tabus sociais,

tais como o incesto ou o assassinato. É a partir da interiorização e da lembrança

do ato que o complexo de culpa e remorso dominará as próximas gerações de

famílias primitivas. O complexo de ambivalência no entanto permanecerá, sendo

que o inconsciente, desejo puro, potencialmente destrutivo, será represado pelo

consciente, o Superego da lembrança do pai retalhando a busca do prazer e da

satisfação. Como conclui Freud:

A sociedade estava agora baseada na cumplicidade do crime comum e no remorso

a ele ligado; enquanto que a moralidade fundamentava-se parte nas exigências

162

dessa sociedade e parte na penitencia exigida pelo sentimento de culpa. (Freud,

1974, p. 174-175).

Segundo Benedito Nunes, Oswald, ao generalizar a devoração antropofágica

“ligou essa purgação do primitivo à saúde moral do Raubentier nietzschiano...”

(Nunes, 1992, p. 20). Esse primitivismo de pretensa propensão social, a partir de

uma nova educação pela cultura reutilizada, configurou-se na especulação pura

porque aqui, no “Manifesto Antropofágico”, ele faz a crítica do comportamento

moral e cultural, mas sequer dá o tom mais radical à linguagem popular, que no

manifesto de 1924 era de suma importância. Parece que Oswald viu que, pelo

menos nesse sentido, a “opção” pelos de baixo e sua contribuição linguística para

a nova poesia não tinham mais viabilidade. Em 1928 o manifesto é menos

populista e mais mítico-cultural e “social”, mais utópico do que “realista”.

Também em 1928 Mário de Andrade lança o seu Macunaíma, verdadeira

obra-prima do modernismo primitivista, na verdade, a maior realização desta fase,

acompanhado também, em outro tom, de Martin Cererê, de Cassiano Ricardo e

do fabuloso Cobra Norato, de Raul Bopp, de 1931. Essas obras tornaram-se a

maior realização que a Antropofagia de Oswald de Andrade não conseguira

produzir, a não ser, claro, pelo livro de Bopp, que abandonara os verde-amarelos

para se filiar aos antropófagos. Não é de se estranhar que Macunaíma tenha sido

recebido como a primeira obra antropófaga, dado que saíra a público pouco tempo

depois do manifesto de Oswald, publicado no primeiro número da Revista de

Antropofagia em 1º de maio de 1928. No entanto, como mostrava um artigo

pioneiro de Tristão de Athaíde em setembro do mesmo ano, o “herói sem caráter”

pertencia a outro contexto, não antropofágico, porém ainda marcado pela

brasilidade (Lima, 1972, p. 332-339). A primeira versão da rapsódia fora escrita

em 1926, composta em oito dias. O primeiro prefácio, não publicado, revela os

objetivos do autor:

Macunaíma não é símbolo nem se tome os casos dele por enigmas ou fábulas. (...)

O que me interessou em Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que

vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros.

Ora, depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que parece certa: o brasileiro não

tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha

conclusão é (uma) novidade pra mim porque tirada da minha experiência pessoal.

E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não em vez

entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes,

163

na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem

como no mal. (Andrade, 1972, p. 289)

Ao elaborar as aventuras do mito indígena sob a ótica de um modernista,

Mário de Andrade já tinha em mente que os críticos o receberiam como uma

metáfora do brasileiro e por isso fez questão de deixar claro a não associação entre

Macunaíma e o “Brasil”, de modo generalista. No entanto, de modo meio

contraditório, ele faz questão de assinalar o aposto do anti-herói como “aquele que

não tem caráter”, também pertencente à psicologia do brasileiro. É o que vemos

também nesta carta de Mário a Augusto Meyer, escrevendo sobre o seu

personagem: “Mas si ele não é o Brasileiro ninguém não poderá negar que ele é

um brasileiro e bem brasileiro por sinal.” (Andrade, 1968, p. 58. Grafia original

mantida). Essa distorção revela as razões pelas quais os prefácios que Mário

escreveu para a rapsódia não tenham saído a lume, mesmo que ele explique tal

fato porque o primeiro prefácio tinha sido considerado insuficiente demais na

explicação e o segundo suficiente por demais. Assim como o personagem tinha

um caráter em aberto, o seu rapsodo resolveu deixar para os críticos a explicação

que ele não tivera coragem de publicizar. Ainda assim, a passagem mostra o

quanto o livro envolvia uma questão pessoal de Mário, questionado pela onda de

brasilidade na qual quase ninguém conseguia apreender exatamente o que seria o

brasileiro de que tanto se falava, tentando deste modo sintetizar tal problemática

através de uma paródia pan-folclórica, remontando os problemas histórico-

espaciais e psicológicos que fundamentam a teoria de um sentimento puro e

funcional da brasilidade.

Macunaíma tem um afastamento crítico dentro do movimento modernista.

Tudo nele leva ao não lugar, à contingência de uma história sem causas e efeitos,

enfim à uma “história aberta”, não historicista por não prever os caminhos pelos

quais os brasileiros deveriam passar até chegar à sua realização total previamente

reconhecida; se Macunaíma não tem caracteres, idiossincrasias, personalidade,

moral, ele não pertence a nenhuma esfera empírica, a nenhum lugar, a nenhum

país. É interessante que, neste sentido, a “entidade nacional dos brasileiros” não

tenha nada de tipicamente brasileiro por ser construído de substâncias psíquicas

específicas, a não ser pela total falta de uma visão de mundo e de uma modus

operandi diante da realidade do espaço brasileiro, também este

164

“desgeograficado”, sem fronteiras, como quer o próprio Mário: “Assim

desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o

mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea um conceito

étnico e geográfico.” (idem, p. 291). Acontece que o meio pelo qual Mário tenta

empreender a homogeneização brasileira incorre na possibilidade de negar as

próprias fronteiras da nação, posto que as regiões são descaracterizadas e

sublimadas em prol do “desrecalque” brasileiro — a não determinação do que

seriam as partes que formam o todo incorreriam na total desarticulação do que

seriam os “elementos nacionais” especificados. Se o brasileiro é uma não-pessoa,

as regiões não-regiões, então o Brasil poderia ser um não-Brasil. A resposta de

Mário é, portanto, o golpe nacionalista contra a própria nação.

No entanto, ao deixar em aberto a psicologia da não-psicologia do

brasileiro, Mário de Andrade aponta para uma concepção histórico-mitológica que

não implica nem na concepção cíclica do matriarcado pindorama de Oswald de

Andrade, nem mesmo numa teleologia recorrente nas leituras otimistas da

brasilidade. Mário então implode de vez todas as possibilidades de programação

da história brasileira, fortalecendo uma “história aberta”, como se ele efetuasse

aquilo que Jeanne Marie Gagnebin escreveu sobre Walter Benjamim:

Em lugar de apontar para uma ‘imagem eterna do passado’, como o historicismo,

ou, dentro de uma teoria do progresso, para a de futuros que cantam, o historiador

deve construir uma ‘experiência’ (Erfahrung) com o passado’. (Gagnebin, 1994, p.

8).

Realizar essa experiência a partir de lendas indígenas primitivas foi a

maneira com que Mário tentou sair das implicações progressistas da brasilidade e

da volta ou retomada de substâncias brutas fora de nosso tempo. Apesar disso,

Mário faz questão de não tratar Macunaíma como um índio puro e sim como a

mistura histórica que a modernidade concebeu em torno desse rebento, sem a

depuração da repressão social e cultural, puro desejo, como se ele fosse um Id

amalandrado. É o que diz nesta carta a Carlos Drummond de Andrade:

Meu Macunaíma nem a gente pode bem dizer que é indianista. O fato dum herói

principal de livro ser índio não implica que o livro seja indianista A maior parte do

livro se passa em São Paulo. Macunaíma não tem costumes índios, tem costumes

inventados por mim e outros que são de várias classes de brasileiros. (C&M, 2002,

p. 276)

165

A consciência de que era um moderno relatando um “fato” externo,

debruçado pelo seu olhar, situado no seu presente é o que diferencia Mário de

Andrade de seu colega modernista, Oswald de Andrade. Este não imaginaria que a

sua revolução caraíba e o índio antropofágico por ele “resgatado” seja uma

invenção sua, perpetrado por um homem urbano, burguês do século XX. É

verdade que Oswald não tentava por uma visão sentimental ou europeizada do

índio, como o fizera os românticos, mas sua utopia antropofágica, mesmo não

negando a modernidade industriosa e suas benesses, não conseguiu reconciliar as

divergências entre a necessidade de reelaborarão de uma concepção nacional

orgânica de literatura e a reavaliação das texturas primitivo-mitológicas que

punham em causa a brasilidade que tanto programavam em seus manifestos. A

devoração crítica por isso não tardou a estacionar sua produção na livre desforra

pública, no avacalhamento dos inimigos. A segunda dentição da Revista de

Antropofagia foi o completo agouro das tentativas de Oswald de Andrade de

responder aquilo que no seu manifesto de 1924 ficara por responder: como o

modernismo poderia dedicar-se à brasilidade tendo como modelo formal a

vanguarda, que já é em si mesma, cosmopolita e aberta às inovações, como

portanto reconciliar vanguarda e tradição sem perder-se em casuísticas retóricas e

especulativas? 1929 então testemunhou o degelo da Antropofagia, posto que sua

“revolução” não passou de degenerescências de seus mesquinhos julgamentos

públicos proto-estalinistas.

Mesmo Mário de Andrade, cujo nacionalismo ferrenho pode ser

acompanhado em suas cartas a Carlos Drummond, tinha consciência mais crítica

sobre a brasilidade modernista que se impunha como “obsessão”, como nos falou

Sérgio Milliet. É o que se vê nesta sua carta de 1929 a Manuel Bandeira:

Agora já não careço mais disso [de forçar o brasileirismo]; e até reconheço que um

bocado de água fria na fervura brasileirística não fará mal. Eu tenho muita culpa de

tudo o que sucedeu e se tivesse imaginado que a moda ficava tamanha de certo que

havia de ser mais moderado. Mas você mesmo me diga: você imaginava que das

minhas tentativas havia de sair a moda que saiu? E como saiu? (Andrade, s/d, p.

157)

Sem duvida é em 1928 que Mário se empenha para uma virada mais social

que fará da literatura um meio de participação mais integrada. É neste contexto

166

também que, com os ataques da Revista de Antropofagia, principalmente ao grupo

Anta, as inimizades vão tomar o teor mais que literário, partindo para as

disposições políticas que o nacionalismo da década de 1920 já espreitava como

campo natural de combate para as propostas que já não admitiam apenas querelas

literárias. É de 1928 a ruptura total entre Oswald de Andrade e Mário de Andrade.

O ano anterior, 1927, vê nascer um grupo conservador neo-simbolista,

situado em torno da revista Festa, reunindo homens como Tristão de Athaíde,

Murilo Araújo, Andrade Muricy, Tasso da Silveira, com uma visão

antivanguardista e antiprimitivista do modernismo que, apesar de negar o

cosmopolitismo atrelado às correntes modernistas europeias, pregava o

universalismo temático (Merquior, 1974, p. 94). Esses modos de ver o

modernismo, e a modernidade como sintoma de um novo tempo em ebulição

constante, arregimentariam em pouco tempo as opiniões políticas envoltas às

disputas que a década de 1930 irá impor para quem ousasse refletir as implicações

sociais que a cultura em geral e a literatura em particular poderiam inferir no

contexto entre-guerras.

Muito se questiona se a virada nacionalista dos modernistas fora realmente

uma reação contra o experimentalismo do primeiro momento. É indubitável que,

apesar de algumas das maiores obras do segundo modernismo ainda apresentarem

inovações estéticas provindas do primeiro momento, a partir de 1924 as

especulações em torno da consciência nacional estagnaram as pesquisas estético-

formais tipicamente vanguardistas. Mário de Andrade lamentará tal fato em 1942.

Mas mesmo romances como Macunaíma e os poemas-comprimidos de Pau-Brasil

não intensificaram a dinâmica sintético-inventiva que as vanguardas tanto

procuravam para alcançar o máximo de mobilidade expressiva; e ainda, as poucas

obras saídas a lume neste período que se encarregavam de arcar com a linguagem

de vanguardas, como um Minha nega Fulô, de Jorge de Lima, Um homem na

multidão, de Ribeiro Couto, ou de Chuva de Pedra e República dos Estados

Unidos do Brasil, de Menotti Del Picchia, revelaram-se inermes ao ponto de não

surtirem nenhum efeito maior de crítica.

O nacionalismo literário, como proposta de intensificação das pesquisas por

uma identidade sócio-psíquica e ideológica, reverbera dentro de uma obra ao

ponto de deslocá-la antes para a suposição de uma tese a ser ratificada — a de

uma identidade em si — do que para a forma e a inventividade narrativa e

167

construtiva, seja da prosa ou da poesia. Tanto é que essa literatura entisica-se,

dando lugar aos compósitos mais científico-filosóficos e psicológicos, do que

estritamente literários. A revista romântica Niterói se revelava uma revista de

“Ciências, Letras e Artes”; os da geração de 1870 previam mais a cientificidade

empírica da nacionalidade do que a sua compenetração estilística e imaginária

dentro dos quadros da literatura, e neste sentido o naturalismo academicizado

tivera seu papel. E ninguém há de negar a relação entre o primitivismo dos

modernistas e suas pesquisas folclóricas, psicológicas, etnográficas e filosóficas,

sem contar as linguísticas, como podemos mesmo ver no caso da Revista Nova.

Macunaíma, a maior obra do período tem suas dívidas com cada uma dessas

áreas.

Ainda assim o nacionalismo não pode ser considerado um “reagente”

antiexperimental, mas também não podermos crer, como se vê, que não houve um

retrocesso quanto à capacidade de criação expressiva que tomasse as inovações e

experimentações da linguagem como carro-chefe do segundo modernismo.

Merquior acredita que a conexão entre a arte moderna e o nacionalismo estético

pode ser explicada porque a ligação

residia na permeabilidade do decálogo estético da arte moderna ao projeto de

nacionalização da literatura, permeabilidade assegurada pelo moderno amor aos

primitivismos. Em outras palavras: a estética da arte moderna, convertendo o

oposicionismo cultural da grande arte romântica e pós-romântica em vontade de

ruptura cultura, valorizava a priori o deslocamento etnológico visado e conseguido

pelo nosso modernismo, ao abandonar o anticaboclismo de Graça Aranha, a

concepção negativa e pessimista dos nossos valores étnicos. (Merquior, 1974, p.

99-100)

Como se todo primitivismo tivesse conotações nacionalizantes. A resposta

não satisfaz a inclinação modernista para a brasilidade, já que o primitivismo

externo das vanguardas (europeias) era bem anterior à década de 1920. Mais

satisfatória é a sua suposição de que a superposição de arte de vanguarda e

nacionalismo possa ser consequência da situação

correspondente a uma fase de transição da sociedade brasileira; às décadas de

mutação da sociedade agrária e oligárquica, cada vez mais transformada pelo

advento da indústria, pelo incremento da urbanização e pela modernização das

relações sociais. (idem, p. 102).

168

Entre fins da do século XIX e a década de 1920, o país passa por crises

drásticas, na política, na economia e na sociedade. No Brasil, assim como no

mundo, a modernidade acentuava-se e dilatava-se, alcançando as regiões diversas

do globo graças às políticas imperialistas e de dependência de nações dentro da

divisão internacional do trabalho cada vez mais inflexível. Se existiu um ponto de

inflexão em que a modernidade, como fenômeno histórico e capitalista, mais se

retorce, aquele ponto no qual a curvatura marca um momento-limite entre duas

épocas, essa inflexão cobriria o período acima delimitado. É a partir das crises

econômicas e das debilidades das políticas liberais, das guerras mundiais e locais,

infladas pelas sequelas das interferências externas dentro de países dependentes,

das revoluções sociais que testavam o capitalismo como sistema, das artes que se

retorciam também nas intempéries de uma sociedade na qual a mercantilização e a

reprodução dessacralizam as obras e os artistas ao mesmo tempo que massificam

produtos artísticos, enfim, é dentro destas crises e projeções que o mundo pós-

Segunda Guerra, o mundo em que vivemos hoje, pode ser interpretado. No Brasil,

a década de 1920 e sua crise institucional foi o teste da verdadeira modernidade

que a República pareceu não ter revelado, como se ela tivesse sido um “República

que não foi”, nos dizeres de José Murilo de Carvalho.

Mas o grande exemplo crítico dessa questão veio “de dentro” do

movimento modernista. Com Carlos Drummond de Andrade aquelas projeções

pós-guerra tomam a face da condição agora crítica do modernismo: suas

mudanças, permanências e certa superação. É por isso que deixamos suas

interrogações para o próximo capítulo.

6 Drummond como experiência limite do modernismo

Carlos Drummond de Andrade é o problema-limite do modernismo

brasileiro, momento em que o movimento faz sua curva crítica. Talvez fosse esse

o fator que o fez sobreviver ao século XX como o maior poeta brasileiro, o mais

popular, mais vendido e aclamado. Ele foi a contração muscular da poesia

modernista pelo motivo de não se adequar totalmente a nenhuma das fases

modernistas. Não que ele não tenha sido um modernista como um Mário de

Andrade ou um Guilherme de Almeida, ambos exemplos de experimentação e

“classicização” do movimento. Admite-se aqui que Carlos Drummond foi

inflexível a qualquer leva modística que abateu os rumos das questões estéticas e

nacionalistas. Como podemos perceber em suas cartas para Mário de Andrade, a

adesão ao brasilismo não foi completa, sóbria, mas afetada pela exaltação e

conveniência, pela necessidade de afirmar-se apenas pela empolgação do

momento e pela cordialidade e diálogo ameno, embora crítico, com o amigo

paulista. As lições de Mário não eram absolutamente acatadas; e quando

Drummond aceitava suas propostas ele o fazia com um teor cético tipicamente

drummondiano que não agradava ao poeta paulista. Veremos, como exemplo

desse comportamento, a relação de Drummond com o tema nacionalismo literário

proposto por Mário de Andrade, como também a discussão do poeta mineiro

sobre a tradição literária, que é em si o debate sobre a tradição brasileira em

literatura.

Discutimos anteriormente que no primeiro modernismo praticamente toda a

tradição era deplorada pelos modernistas, taxada de passadista e destoada dos

novos momentos; o parnasianismo foi então eleito o arqui-inimigo. Em 1924

ocorre a grande reviravolta nacionalista que se encontrava com um passado

literário, com a lei Brasil, e com alguns cânones da literatura, no intuito de

promover uma cultura brasileira organicamente centrada nas manifestações

populares e folcloristas, sintomas de uma nacionalidade concreta. Para demonstrar

a discordância e a personalidade, Drummond aceita discutir tal questão sobre a

tradição literária e sua relação com o movimento modernista.

170

6.1. Drummond em estado bruto: 1922-1924

São poucos os trabalhos que tratam do jovem Drummond, aquele anterior à

década de 1930 e ao seu primeiro livro, Alguma poesia. Fator preponderante dessa

situação é a quase indiferença ativa de críticos que não se sentem atraídos pelas

primeiras manifestações do mineiro, ainda “disformes” e salpicadas com os brios

de juventude, tentando se impor literariamente e por isso, relegado às contradições

e intempéries da ingênua agressividade literária. Suas primeiras contribuições

jornalísticas são quase totalmente desconhecidas. Maria Zilda Cury (1998) foi a

que mais teve coragem de tratar por inteiro as críticas e participações do então

jornalista Carlos Drummond no jornal Diário de Minas na década de 1920. Cury

prioriza, então, as crônicas, os poemas e as críticas literárias que retratam um

Drummond participativo dentro da conjuntura de renovação das letras nacionais e

das discussões circunstanciais que pairavam no ar da inteligência brasileira, além

de sublinhar a liderança do jornalista diante do nascente grupo de jovens

modernistas mineiros e de retratar as mudanças e a modernização e renovação

cultural da cidade de Belo Horizonte. No entanto, seu trabalho dá uma sensação

de que o tesouro não fora tão bem gasto, que suas fontes não foram inteiramente

interpretadas. A autora mais descreve do que analisa as críticas de Drummond, o

que torna o trabalho mais parecido com um levantamento ou um inventário, coisa

que Fernando Py, tão trabalhosamente fez no seu Bibliografia comentada de

Carlos Drummond de Andrade (1985). Ainda assim a tese de Cury tem sua

importância crucial para os estudos do poeta por fornecer dados que comprovam

os dilemas da mente drummondiana que digeria aos poucos o verdadeiro teor das

propostas modernistas.

É por isso que Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade, de John

Gledson, também se torna um trabalho importante para compreendermos o fato de

que Drummond não fora um modernista nato, que nasceu literariamente já a

postos nas trincheiras das vanguardas (Gledson, 1981, p. 23). O caminho do poeta

mineiro, como o de Mário de Andrade e o de Manuel Bandeira, fora feito de lutas

intestinas e conturbadas discussões que o fizeram escolher e militar em torno de

uma só ideia, a que ele achava mais condizente com os novos ares de um país e de

171

uma cultura ainda por se desenvolver. Escreve Gledson, reafirmando, agora em

Influências e impasses, o caráter não-modernista do primeiro Drummond:

Antes do modernismo, ele foi fortemente influenciado por escritores como Álvaro

Moreyra, e sem dúvida por outros autores brasileiros e franceses das escolas do

simbolismo e do penumbrismo. Ele sentiu um entusiasmo arrebatador e quase

totalmente acrítico por eles, o que resultou em obras que não podem ser descritas

senão como imitações. (idem, p 2003, 34).

Diria Drummond bem mais tarde em entrevista sobre a relação com o seu

alvaromoreyrismo de juventude.

Álvaro Moreyra, com seu y civil, era para mim a própria encarnação da arte

delicada de escrever. Com o y e com as reticências que arrematavam sempre suas

frases. Como as reticências alongavam, refinavam, musicalizavam o bloco de

palavras, fazendo com que elas continuassem suspensas no ar, depois de concluído

o texto! Não me envergonho do meu alvaromoreyrismo descarado, de simples

repetidor canhestro, sempre aquém do modelo. Entre modelos de banalidade ou

mau gosto, vigentes na época, sua proposta sensível e irônica seduzia pela finura.

(Andrade, 2003, p. 1219)

O primeiro contato dos modernistas com o simbolismo é um dado

importante para ser ainda estudado com mais vigor. É crível que o simbolismo

teve uma relação íntima com as conquistas modernistas, como seus versos livres

já bem acentuavam. É de seu ramo carioca que surgem as primeiras manifestações

de uma arte nova, e nomes com os de Mário Perdeneiras, Olegário Mariano,

Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, sem falar de Manuel Bandeira; estes eram

tidos como fermentos de renovação artística desde a Primeira Guerra Mundial51

(Marques, 2011, p. 16). Neste sentido é possível contrapor a afirmativa de Alfredo

Bosi quando ele diz que

o Simbolismo não exerceu no Brasil função relevante que o distinguiu na literatura

europeia, na qual o reconheceram por legítimo precursor do imagismo inglês, o

surrealismo francês, o expressionismo alemão, o hermetismo italiano, a poesia pura

espanhola. (Bosi, 1994, p. 269).

51

Em dezembro de 1924, Mário de Andrade expõe para Manuel Bandeira seu mea culpa sobre a

relação entre o modernismo e as escolas “passadistas”, em especial o simbolismo: “Toda reação

traz exageros. Eu tive porque fui reacionário contra simbolismo. Hoje não sou. Não sou mais

modernista. Mas sou moderno, como você. Hoje já posso dizer que sou também um descendente

do simbolismo.” ANDRADE, Mário. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p.

40.

172

Bosi esquece o respeito e a admiração que os modernistas tinham pelo

solitário simbolista Alphonsus de Guimaraens, a quem Mário de Andrade visitara

já em 1917, quando de sua primeira viagem à Minas. Esquece também as palavras

de Oswald quando diz, na ocasião da morte do poeta mineiro, que este era “um

lutador da arte nova”: “Alphonsus de Guimaraens valia sem dúvida todos os

poetas da Academia Brasileira.” (Andrade apud Brito, 1978, p.21). É nesta

tradição penumbrista que Drummond primeiro se faz poeta, aguçando as

características reticências nos versos, o teor sombrio e melancólico, como o atesta

um dos primeiros livros compilados pelo jovem poeta, Os 25 poemas de triste

alegria, de 1924. Diz dele Antônio Carlos Secchin:

Atmosfera algo anestésica, de que, no início do século, Mário Perdeneiras se fizera

cantor, e que pouco depois, com mais rendimento estético, seria retomada por

Álvaro Moreyra, Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto. É nessa linhagem que

assumidamente se inscreve o primeiro Drummond. (Secchin, 2012, p. 14).

A verdade é que Drummond tinha, à época, suas afinidades eletivas entre o

simbolismo decadentista à carioca e o modernismo de vanguarda paulista. Não se

pode dizer por isso que, entre 1919 e 1924, ele era um ativista abertamente

modernista. Um artigo interessante que demonstra bem a relação do jovem

Drummond com o modernismo é o intitulado “Sobre a arte moderna”, escrito por

ele e publicado em 27 de outubro de 1923 na Para Todos, revista sob a direção de

Álvaro Moreyra. Nele podemos ver um Drummond cauteloso quanto às “estéticas

desvairadas”:

Consciente ou inconscientemente, todos nos sentimos presa do terrível desejo de

reformar (...) Os homens de hoje não têm mestres. Quebraram as tábuas da

sabedoria, e com elas fizeram um lume delicioso... Ninguém segue mais o exemplo

das sombras amáveis do passado. Para quê? Todos se contemplam no espelho e a si

mesmos elegem mestres... Há tanto discípulos quanto apóstolos. Isso é divertido,

mas exprime um trágico momento da alma coletiva. A arte moderna propaga-se

como um incêndio — e eu não sei, ninguém sabe qual o limite máximo de difusão

a que podem atingir essas ideias revolucionárias. (Andrade, 2012, p. 124)

O que pesa é a sensação de que as revoluções que as vanguardas vinham

empreendendo não tomassem nenhum rumo lógico, nem em suas expressões

próprias nem em suas atitudes iconoclastas. Existia o medo mesmo de que a

literatura, pelo menos como era conhecida na forma de uma mensagem

“coerente”, poderia acabar de vez nestas tentativas de revoluções permanentes das

173

formas. Acima de tudo, essas revoltas desestruturam a concepção de um artista

iluminado, senhor da inspiração, pois, lembrando Peter Bürguer, a perspectiva

vanguardista destrona a hierarquia entre artista e público, pois para elas nós todos

temos a capacidade de criar obras de arte; a vanguarda, nas suas manifestações

mais extremas, “contrapõe a esse caráter não apenas o coletivo, como sujeito da

criação, mas a negação radical da categoria da produção individual.” (Bürguer,

2008, p. 109).

É neste sentido que a tradição literária, com os seus mestres do passado, se

esfuma no ar na medida em que todos podem ser mestres de si mesmos, artistas

independentes de uma diretiva que impunha uma arte dada e previamente aceita.

Então, segundo Drummond, como não temer que toda essa “democracia” literária

possa pôr em risco o sentido mesmo da figura do artista, da literatura, do

trabalhador intelectual? No entanto, apenas aqui, não é certo ver nestas palavras

do crítico um elitismo que tivesse medo da massificação da literatura pela simples

razão de que o direito da população à literatura, em geral, nunca fez parte das

reivindicações literárias — ao contrário da reivindicação do povo na literatura —,

modernistas ou não, nem tampouco pensavam que isso seria possível e, portanto,

esse problema nem sequer passava pelas suas cabeças. Como sempre, a questão

era interna entre os artistas: se não se pode negar que essa renovação existe e,

ainda, se ele mesmo, Drummond, se identifica com o movimento de vanguarda,

como então garantir sua sobrevivência, sendo que ele poderia, por força de seus

princípios de experimentação contínua, cair no nada, na mera literatice fortuita

sem sentido e sem objetivo de um momento de crise? Se os mestres do passado

não mais existem o que eles, modernistas, estavam produzindo de definitivo? Se

existe a necessidade inconteste e angustiante de renovação permanente, então o

que era a arte moderna, como defini-la? Octávio Paz, ao definir essa condição

como tradição da ruptura, poderia, no caso brasileiro, chamá-la de academização

da ruptura, i.e., a experimentação sem tom construtivo, apenas repetitivo e por

isso entediante, digamos mesmo, conservadora, no sentido de mudar para

permanecer ou permanecer somente na mudança sem sentido. Esse era o medo de

Drummond. Como vimos, era para resolver essa questão que o segundo

modernismo vinha à tona.

No mesmo artigo, Drummond continua o seu questionamento sobre a

perenidade do movimento.

174

O dia é cheio de amargura, e, pois, as visões do artista moderno não o são menos.

Tais criações terão — quem sabe? — a duração do nosso instante de desvairismo.

Mas eis aí a hipótese audaciosa, pois não é lícito prever o quanto viverá uma obra

de arte. Um minuto de beleza vale por toda a eternidade... Permanecerá a arte nova

somente enquanto for desequilíbrio social a única verdade de fácil constatação?

Ou, restabelecido o sossego dos homens, continuará ela como uma sublime vitória

do espírito sobre o tempo? Não se sabe... Tudo é possível... (Andrade, 2012, p.

125)

Ele aí teme que a arte modernista seja apenas um momento de

“desvairismo” contextualizado pelo mundo pós-Primeira Guerra52

. É neste sentido

que a adesão à uma estética que parecia tão pontual, momentânea, e fruto

específico de uma crise social e política global, parecia ser perigosa, dado que,

pela mesma instabilidade do momento, poderia sobrevir uma era de paz social e,

consequentemente, segundo a lógica apreensiva de Drummond, da ascensão de

uma arte harmônica, séria e acadêmica, de uma arte classicizada, pois naqueles

tempos “tudo é possível”. Por isso é interessante notar — por contraste com a

crítica de então, como essa de Drummond — que a arte de vanguarda era de tal

forma revolucionária, experimental, anti-pictórica e não-naturalista, que qualquer

mente, aberta o minimamente possível, olhava-a como uma expressão caricatural,

caótica, excêntrica, tipicamente paranoica, para tomar de empréstimo o termo

usado por Monteiro Lobato. É por isso que Drummond temia que, ao produzir

literariamente obras que expressassem tal técnica, cairia no ridículo e na

improdutibilidade, se adentrasse um novo período estável no mundo.

Corroborando com John Gledson, a conversão de Drummond ao modernismo foi

hesitante, tateando cautelosamente a segurança de que era exatamente aquela a

arte de vanguarda que se coadunaria numa arte efetivamente coerente e, acima de

tudo, estável ao ponto de garantir a sobrevivência de quem a aderisse (Gledson,

2003, p. 60). É o que ele, Drummond, confessa mais tarde numa crônica de 1927:

Me sinto contente, Martins de Almeida, meditando na responsabilidade que tenho

neste acontecimento [a aceitação do modernismo por Almeida]. Você teimava em

não admitir as expressões novas da arte e da literatura que começavam a aparecer

52

A leitura de Alceu Amoroso Lima em 1919 no contexto europeu era outra: “A influência neo-

naturalista da guerra sobre a literatura, em França, não parece prosseguir com a Paz. O que

aconteceu com a poesia, durante a guerra, parece dar-se agora com toda a literatura. Nota-se, em

França, um renascimento do romance de aventura, da literatura de imaginação, da fantasia e do

exotismo. (...) A guerra sacudiu a literatura trazendo-a do cubismo quase ao naturalismo, e

levando-a depois à mais desmedida fantasia.” LIMA, Alceu Amoroso. Estudos literários. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 87-88.

175

no Brasil, expressões que também eu ainda não assimilara bem, mas pelas quais

tinha uma larga simpatia. Mas quando eu o peguei ali no Bar do Ponto e o levei ao

Grande Hotel, onde o pus em contato com os viajantes mais inteligentes que já

estiveram em Minas Gerais — Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e

Blaise Cendrars — você não pode ter deixado de sofrer a forte ‘ação da presença’

daquelas personalidades tão agressivamente novas e tão fascinadoramente

irradiantes. (Andrade apud Gledson, 2003, p. 309)

De acordo com o artigo, o modernismo também não foi instantaneamente

aceito pelos mineiros. Um exemplo é Abgar Renault que, a exemplo de

Drummond e Martins de Almeida, não conseguia entender bem o real objetivo do

modernismo: “De início, não me despertou entusiasmo o movimento modernista.

Não o compreendi bem; por deficiência crítica ou por preconceito recebi-o

inicialmente como um processo de alteração, ou melhor, de destruição formal.”

(Renault apud Marques, 2011, p. 22).

São vários os trabalhos que mostram como o modernismo mineiro tinha

uma relação específica com as vanguardas modernas, e como eles souberam se

adequar ao espírito revolucionário da estética vanguardista com o chamado mito

da mineiridade, conservador e tradicional. Ao fazer uma análise sociológica do

movimento modernista mineiro, pautando-se pelas condições sociais dos

escritores e pelas afinidades pessoais, Fernando Correia Dias, aponta três

características do ideário mineiro no grupo: a tradição repensada, a conciliação de

lealdades e o apelo à razão. Apesar de uma leitura mais ou menos estrábica dos

textos expostos nos números d’A Revista, veículo dos modernistas mineiros, ele

afirma que os mineiros não tendiam a romper com o passado intelectual da região,

mas sim valorizá-lo criticamente:

Em relação ao passado literário em Minas, entendo que os modernistas locais

tiveram uma consciência muito nítida da necessidade de preservação da

continuidade histórica da vida intelectual. Retomaram, numa visão compreensiva,

as obras do árcade, assim como, num outro plano, a de Aleijadinho. (Dias, 1975,

p.172-173)

Por outro lado, esses modernistas faziam conciliações de lealdade entre a

relação emotiva com a região mineira, o país e o cosmopolitismo — reunindo

regionalismo, nacionalismo e universalismo. O que fica nesta análise de Dias é a

inferência de que a tradição e o teor emotivo de valorização da região são os

fatores da mineiridade, interferindo e condicionando as contradições de um

176

movimento estético tecnicista, urbano e universal e de uma “característica ideal”

de um povo cujos costumes regionais influiriam na visão de mundo, montanhesca,

“caipira”, roceira, interiorana etc. que formariam o “caráter mineiro”. Neste

sentido, assim escreve John Wirth sobre a ambiguidade dos modernistas mineiros:

Em relação à Minas, tinham um sentimento de ambiguidade: deploravam seu atraso

e procuravam as fontes de sua vitalidade na arte, arquitetura e língua. Basicamente,

nutriam simpatias pela tradição, o que refletia tanto suas origens de cidade pequena

quanto o ambiente de peso mas provinciano de Belo Horizonte. (Wirth apud Cury,

1998, p. 63)

Por esta perspectiva que podemos ter outro olhar sobre a angústia de

Drummond? É dubitável. Mas no mito da mineiridade existia uma conturbação da

modernidade brasileira. Ele é a dialética entre o local e o universal, escancarado-o

como uma fratura exposta. Assim é que afirma Antônio Candido:

Como acontece na província, fez parte da formação deles algum atraso de gosto

misturado ao interesse ativo pela novidade. Assim, ainda poderiam discutir

longamente sobre quem era melhor, Eça de Queiroz ou Camilo Castelo Branco, e

se impregnavam de Anatole France. Mas absorviam igualmente textos mais

chegados a uma certa pré-modernidade (...) De tal modo, que receberam e

adotaram com sofreguidão a Semana de Arte Moderna (...) (Mello e Souza, 1993,

p. 12)

A inquietação estava expressa pela própria capital mineira, Belo Horizonte,

projetada aos modos haussmannianos pelo engenheiro Aarão Reis; planejada em

linhas e traçados regulares, a cidade era a “poesia da República”, como escreveu

certa vez João do Rio, pois ela encarnava os ideais positivistas de progresso,

racionalização e ordem. Mas nada disso tirava a sensação de marasmo de uma

cidade incrustada no interior do país, ainda persistente num provincianismo, num

ambiente que ainda revivia a nostalgia dos momentos áureos do passado

minerador. Ao analisar o mito da mineiridade, Ivan Marques, afirma que essa

ambivalência resultava numa visão especial dentro do campo das elites:

As elites modernizadoras se esforçavam para negar o atraso, mas não a tradição.

Embora sonhassem com o progresso, acharam meios de resgatar as origens

mineiras, enraizando os ideais republicanos na malograda Inconfidência.

(MARQUES, 2011, p. 32).

É o que também pensa Guilhermino César, num artigo de 1982:

177

A aspiração do novo, do diferente, andava no ar. Por outro lado, atendo-me a Belo

Horizonte, a própria capital mineira, adrede construída, pedra sobre pedra, era por

si mesma um sinal premonitório; convidava à revisão do passado. (César apud

Cury, 1998, p. 78).

A condição de um modernismo provinciano inflacionava ainda mais as

possibilidades de pensar uma arte de vanguarda essencialmente cosmopolita

dentro de um contexto histórico em que a modernidade se fazia pelas balizas do

nacionalismo ou do “regionalismo”. Por isso, o exemplo dos mineiros, e de

Drummond especialmente, serve bem para discutirmos as nuances do modernismo

brasileiro; é por isso também que tomamos Drummond como consciência-limite

das fraturas e discussões modernistas. Se Merquior afirma que o modernismo foi

fruto de um país em transformação, em transição, fazendo com que unisse

primitivismo e vanguarda, não seria improvável se ele também afirmasse que

Drummond, pela sua própria saga íntima,

exala consciência histórica. A parábola do fazendeiro do ar é metáfora de nossa

evolução social. Filho de fazendeiros, sentindo e sofrendo a grande cidade dos anos

mais tempestuosos do seu século, ele captou como ninguém o significado

emocional de nossa complexa metamorfose de subcontinente agrário em sociedade

sócio-urbana. (Merquior, 1990, p. 305).

Mas Drummond conseguira sondar tal perspectiva sem ao menos aderir ao

primitivismo, como o fizera Mário de Andrade e Oswald de Andrade e outras

correntes, excetuando-se o já isolado Graça Aranha. Não precisou de uma

proposta que aderisse à mitologização da cultura nem à busca de uma essência

brasileira que tivesse na origem étnico-popularesca o dado para a observação

crítica das condições brasileiras de entrada no “concerto das nações modernas”,

como tão ansiosamente queria Mário de Andrade. Neste sentido, as palavras de

Luiz Costa Lima nos corroboram:

Apesar da marcante influência da sensibilidade de Manuel Bandeira, apesar da

amizade com que Mário o distingue, Drummond, como seu conterrâneo Murilo

Mendes, se distingue pela apreensão consequentemente realista. Contra uma

projetiva mítica, a sua obra propõe uma projetiva realista, marcada até às entranhas

pela ideia da corrosão que desgasta seres e coisas. (Lima, 1995, p. 133)

A posteridade deu cargo às provas desses caminhos tortuosos de ambos os

lados, e hoje podemos ver Drummond como um poeta mais “universal”, traduzido

178

e estudado em muitas línguas, do que os paulistas primitivistas. É, no entanto,

claro que a “vitória” desse modernismo drummondiano tem um caráter

denunciatório do que realmente sobrou como tradição modernista viável à

literatura. Neste sentido, o nosso trabalho tem um caráter apenas introdutório ao

problema, que parece ser maior do que o nosso fim pode suportar.

Voltando ao artigo “Sobre a arte moderna”, ele o encerra de modo reticente

e ainda apreensivo, deixando a questão sobre as verdadeiras capacidades do

modernismo em aberto:

Insisto em dizer que [o modernismo] é uma arte de luto e de lágrimas. As emoções

dionisíacas, de força e volúpia, que se refletem nos corações dos artistas de hoje,

são o contingente pessoal. Mais ainda nas páginas de maior alegria erra a tortura

coletiva. Libertação! Libertação! Mais do que nunca, é impossível libertar-se.

Entreguemos ao destino, senhor de mãos diferentes, o conto indeciso do nosso

futuro... A terra continuará a rolar, com igual indiferença... (Andrade, 2012, p. 125)

O ceticismo é completo e até certo ponto frustrante. Ao ligar o modernismo

apenas às agruras do pós-guerra, Drummond não vê o movimento como outra

coisa senão a mimese e o produto direto da barbárie, mesmo tendo em conta que

“as estéticas desvairadas já se faziam notar aos olhos antes da conflagração.”

(idem, p. 123). Com um certo apelo humanista, o crítico se inquieta mais ainda ao

pensar que a adesão ao modernismo poderia implicar na conveniência com a

“tortura coletiva”, sendo que ela era uma “arte de luto e de lágrimas.” Incrível

notar tal debilidade crítica de quem via as vanguardas europeias sem seu teor de

criticidade à sociedade burguesa, a mesma que produziu aquela barbárie bélica.

Ainda assim, é notório que a descrença do arremate final no artigo tenha em

mente a possibilidade de fracasso total do movimento, que pregava a liberdade e a

alegria dionisíaca sem ter em conta as responsabilidades sociais e políticas que o

contexto impunha. É como se a liberdade estética não fosse liberdade se não

acompanhasse a liberdade coletiva. Neste sentido, Drummond parece ter em

mente a questão participante do artista modernista, pois a abstinência de suas

responsabilidades estéticas numa sociedade deveria ser acentuada e tratada como

autocrítica necessária para que assim a arte também não concorresse ao vale de

lágrimas das mazelas sociais. Seria demais prever aqui o Drummond de A rosa do

povo, como um crítico adepto do avantlaletrismo poderia supor, mas é não menos

179

interessante notar como o apelo humanitário foi algo raro nesta fase do

modernismo.

Mas um certo clamor pela universalização da arte pode ter seus momentos

mais altos neste Drummond. É o que ele pede num artigo de 10 de janeiro do

mesmo ano do texto acima analisado.

O poeta não deve exprimir a sua própria dor, e a sua melancolia, e o seu prazer,

mas antes, acima de tudo, o prazer, a melancolia e a dor dos outros seres. O espírito

é universal e infinito não se contém dentro de si mesmo: clamo por um espaço mais

dilatado que as estreitas paredes da carne. (Andrade apud Cury, 1998, p. 123-124)

Estranho que um poeta tão individualista, como o conhecemos hoje, tenha

escrito tais palavras, embora essa seria a condição de uma personalidade poética

que teria em si um dilema, segundo Otto Maria Carpeaux:

A poesia de CDA exprime um conflito dentro da própria atitude poética:

transformar um arte toda pessoal, a mais pessoal de todas, em expressão de uma

época coletivista. Ou, para falar em termos pessoais: guardar, no turbilhão do

coletivismo, a dignidade humana. (Carpeaux, 1977, p. 146).

Mais estranho ainda é que, lendo o artigo “Sobre a arte moderna” e sua

apreensão sobre as condições do modernismo como arte renovadora viável, nos

surpreendemos com a constatação de que, já em 1922, Drummond

contraditoriamente se punha na trincheira das vanguardas modernistas. Nos

artigos do Diário de Minas, sua adesão parece ser confiante e militante. Em crítica

de 30 de setembro de 1922 ao livro Os condenados, de Oswald de Andrade, dizia

ele:

O futurismo, para vencer de fato em semelhante meio, terá que lutar com

dificuldades assombrosas. Veio encontrar-nos em marcha decidida para a

retaguarda; a soldadesca vai recuando sob o comando do general Coelho Neto, do

cel. Viriato Correa, do brigadeiro Catullo Cearense, e vários militares. Quando o

exército chegar ‘à extrema curva do caminho extremo’ estará morta a literatura

nacional. (Andrade apud Cury, 1998, p. 73)

A literatura morta comemorada é a da tradição literária, dos mestres e

cânones, do regionalismo grosseiro. Aqui Drummond parece não hesitar sobre a

capacidade crítica e desafiadora do movimento modernista, atentando à sua

coragem literária de enfrentar os ídolos da literatura nacional. Ele está coerente

180

com aquilo que vimos sobre o primeiro modernismo, sabe que a vitória dos novos

é certa e que ela trará uma mudança tão drástica a ponto de criar uma outra

literatura, diferente de todas as anteriores. Também está de acordo com a série de

famigerados artigos de Mário de Andrade, que em 1919, os publicou sob a

reunião do título, “Mestres do passado”:

Tolos e Malditos! Cuspimos sobre vós a nossa maldição e as risadas alumbrantes

da nossa cólera, o despeito divino das nossas impaciências! (...) Que o Brasil seja

infeliz porque vos criou! Que a Terra vá bater na Lua arrastada pelo peso dos

vossos ossos! Que o Universo se desmantele porque vos comportou! E que não

fique nada! Nada! Nada! (Andrade, 1978, p. 309).

Esta fase, como vimos, é ainda de tomar posições, de assumir querelas, de

gritar para ser ouvido e tomar posse das atenções do público.

Numa cidade como Belo Horizonte esse tipo de grito ainda se fazia em tom

angustiante para um jovem que via nela o tédio da modorra provinciana e

conservadora, como escreve em uma crônica de 27 de janeiro de 1921:

E esta cidade do Tédio. Chamaram-na de Belo Horizonte, devido a uns poentes cor

de tudo que incendeiam o nosso céu, mas qual! não pegou. Nem podia pegar. Que

quer dizer Belo Horizonte? Nada. (Andrade apud Cury, 1998, p. 62).

A sensação de que algo precisava ser renovado nas letras brasileiras foi

comentada em entrevista de 1982:

Nós não estávamos satisfeitos com o que havia lá. Não só em Minas como no

Brasil, a literatura tinha sofrido certo declínio. E pegando os livros publicados em

1920, 21 e 22, verificamos que não havia nada de novo, realmente, no Brasil.

(idem, p. 142).

Mas o mesmo artigo sobre Os condenados de Oswald de Andrade ainda

revela certa impaciência e incerteza quanto à verve do modernismo brasileiro.

Que quer dizer, afinal, o futurismo de São Paulo? A revista intitula-se: ‘mensário

de arte moderna’. Eis uma sábia denominação. Arte moderna quer dizer uma

porção de coisas; confio que queira dizer também futurismo. Até agora parece

difícil analisar a significação desse movimento. Pelo motivo muito simples de

serem poucos os frutos que ele nos tem oferecido. (idem, p. 71)

181

Como se vê, a resistência de Drummond quanto à capacidade de fixação e

força do modernismo ainda parece abalada pela simples constatação de que ainda

não se produzira obras suficientemente modernistas para serem aclamadas e

vangloriadas como a nova tendência que iria acabar com a literatura nacional

predominante. Como ser “os novos” se não havia nada de novo produzido? É essa

a questão de Drummond, pois sua sede de ver a prova cabal da arte moderna que

poderia calar os críticos passadistas ainda não estava elaborada, sintetizada em

arte pronta e acabada. É neste sentido, de concretização do pensamento

viabilizando a coerência do movimento, que Drummond ainda escreveria mais

tarde o artigo anteriormente visto, “Sobre a arte moderna”. Parecia que mesmo um

ano depois, mesmo com a publicação do saudado Paulicéia desvairada e seu

manifesto-mor do modernismo de primeira fase, o “Prefácio interessantíssimo”, o

crítico mineiro ainda não via no modernismo uma força eficaz de criação

renovadora. Mesmo o livro do qual a crítica de Drummond se detém, Os

condenados, não dava cabo das suficiências experimentais e estéticas modernistas

que tanto o crítico exigia do grupo paulista, o que é estranho já que muitos críticos

apontavam o alto teor de vanguardismo no romance de Oswald, como o então

progressista Alceu Amoroso Lima: “Sente-se, nesta reação contra a ordem

artificial, a influência do cinema como a proclamou Epstein ou como a ensaiou

Jules Romains.” (Lima, 1972, p. 205. Grifos meus).

É deste modo que vemos o quanto Drummond se sentia indeciso, dada sua

incapacidade de deter neste momento os verdadeiros sentidos pelos quais o

modernismo vinha passando. Tanto é sua incompreensão que, em outro artigo de

30 de setembro de 1922, ele ainda discuta a questão do futurismo no grupo de

renovadores da arte, situação já polemizada e discutida entre Mário e Oswald em

1919. Defendendo o futurismo, escreve o crítico mineiro:

Aliás, futurismo é, ou pelo menos, deve ser ânsia de liberdade, arrancada para o

azul, guerra aos velhos processos, alma nova: exaltação. Quem sofrer, viver e gritar

é futurista, podendo, indiferentemente, achar o Sr. Nicolas Beaudin um gênio ou

uma zebra, o Sr. Blaise Cendrars um deus ou um cavalo (para mim, ambos são

deuses e gênios). (Andrade apud Cury, 1998, p. 70)

Alguns meses depois, num aforismo, ele se confessava no mesmo Diário de

Minas: “Os futuristas, afinal, não passam de macacos que caíram do galho... (Esta

opinião é de outro macaco).” (idem, p. 185).

182

Sua opinião não será a mesma em 1924, quando de sua “entrada” no

modernismo, embora ainda não no modernismo nacionalista do momento e de seu

contato real com o movimento por ocasião da caravana paulista e suas conversas

com Mário de Andrade. Agora o futurismo é um termo a ser depurado, como

escreve em artigo de 07 de fevereiro daquele ano:

Se há no Brasil um grupo que honestamente se opõe ao futurismo, este é, sem

dúvida, o grupo audacioso de São Paulo, que vem pelejando com tanta beleza pelo

ressurgimento da literatura no Brasil. Ele não se filia a nenhuma escola; quer tão

somente — peço atenção, meus senhores! — fazer arte nova, novíssima. Que ideal

mais alevantado e menos sectário? Mas essa boa gente dos periódicos nacionais

não compreende semelhante coisa... Confesso que, mais de uma vez, ao levantar-

me, tenho corrido ao espelho, e, num exame ansioso das linhas do meu rosto

perguntando a mim mesmo: ‘Serei futurista?’ A crítica desse país é essencialmente

confusa, e revoluciona de tal modo as límpidas noções que a angustiosa pergunta

me tem penetrado fundamente coma lâmina fria... No Brasil, dorme-se modernista

(sem escola) e acorda-se futurista (escravo do Sr. Marinetti!). (idem, p. 69-70)

Quando Drummond resolve um questionamento pessoal quanto ao

modernismo, ele se depara com outro que o próprio grupo vinha discutindo por

um tempo, o do nacionalismo. É incrível pensar como um crítico tão perspicaz

não conseguia acompanhar o vaivém do movimento do qual tinha certa simpatia.

Mas esse deslocamento já tinha um histórico, pois mesmo a Semana de Arte

Moderna não tinha surtido nenhum efeito na pacata cidade de Belo Horizonte,

como o próprio Drummond confirmou, alguns anos depois:

Tanto que posso lembrar-me, o pequeno grupo de rapazes mineiros ‘dados às

letras’ não tomou conhecimento. Explica-se: só por acaso líamos jornais paulistas,

e os do Rio não deram maior importância ao fato, se é que deram alguma. (idem, p.

76).

A influência da literatura e do meio carioca era patente no primeiro

Drummond adorador de Álvaro Moreyra; nos anos de 1922 e 1923, o grupo

paulista tem sua atenção despertada, principalmente com a publicação do romance

Os condenados de Oswald e do Paulicéia de Mário. Mas somente em 1924

Drummond realmente entra de fato na consciência modernista e de suas cisões de

então, mormente pela caravana paulista em Minas e pela publicação do

“Manifesto da poesia pau-brasil”. Ainda assim, o nosso crítico, tendo resolvido

suas dúvidas quanto à adesão completa, vinha formatado intelectualmente por

183

outra condição que o colocaria na corda bamba das discussões do momento:

Drummond era um universalista e francófilo sem restrições. Ele não cederia a

nenhuma necessidade nacionalista ou folclórico-indiano-mitológico que Oswald

colocava então em jogo.

Como vemos, a sensação de estar deslocado, marginalizado, um outsider é e

continuará sendo posteriormente, a marca de sua trajetória poética, mesmo quando

de sua participação política ou de sua renegada inclusão e contribuição dentro do

modernismo nacionalista, sua atitude fora a de “um gauche tímido que assiste a

tudo à distância” (Sant’Anna, 1992, p. 23), cuja tortuosidade (Marques, 2011, p.

34) tinha por certo uma característica crítica, quando o ceticismo predominava,

mas também dificultava sua visão totalizante dos processos dos quais ele mesmo

se entretinha. Antonio Candido definira essa característica drummondiana como

uma inquietude particular presente em suas obras:

O bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por inquietudes poéticas que

provém uma das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egotismo profundo,

tem como consequência uma espécie de exposição mitológica da personalidade (...)

Trata-se de um problema de identidade ou identificação do ser, de que decorre o

movimento criador da sua obra na fase apontada, dando-lhe um peso de inquietude

que a faz oscilar entre o eu, o mundo e a arte, sempre descontente e contrafeita.

(Mello e Souza, 2011, p. 70)

A evasão era uma característica de seu individualismo, mas ela gera uma

angústia da qual Drummond sempre fora portador, como escreve Merquior em seu

Verso Universo em Drummond:

No fundo, o evasionismo moderno conhece sua impotência; sabe-se ferido de

morte pela ‘vacuidade do ideal’. Assim, não lhe resta senão o gosto agridoce da

evasão sem destino, a embriaguez da rebelião sem amanhã (...) O individualismo

coriáceo de Drummond insiste na solidão irredutível, moral e socialmente

irrecuperável (...) Ele será sempre um outsider, o que caricatura o general em plena

guerra, sob a ‘indignação cívica’ dos outro... (Merquior, 1976, p. 19-20)

Num primeiro momento, o gauche fez então a caricatura da tendência

modernista nacionalista, lutou com unhas e dentes para defender uma arte livre,

aplicou na medida sua crítica impecável contra qualquer escolarização do

modernismo, fato mesmo que o fez criticar posteriormente as associações do

movimento brasileiro com o futurismo italiano. Mas mesmo em 1924 o demônio

do ceticismo ainda o atacava, e a adesão ainda era frágil: ele ainda estava em

184

transição, que só seria realmente ultrapassada depois que suas correspondências

com Mário de Andrade são iniciadas. No entanto, a transição dizia respeito

justamente às novas condições e imposições do movimento; suas fissuras e

polêmicas podem ser sintomaticamente reveladas num artigo publicado por

Drummond em duas partes na Gazeta comercial, de Juiz de Fora, em 20 e 22 de

julho de 1924, intitulado “As condições atuais da poesia no Brasil”. O artigo, bem

ao gosto machadiano de panoramizar a literatura da atualidade, é considerado

como familiar ao famoso “Notícias da atual literatura brasileira (Instinto de

nacionalidade)” do bruxo do século XIX. (Gledson, 2003, p.305) (Marques, 2011,

p. 96).

Drummond começa o artigo com uma homenagem a Olavo Bilac, um dos

“mestres do passado” atacado por Mário de Andrade, fato que causaria

estranhamento a quem então se dedicava exclusivamente à arte nova.

Emudecida a lira gloriosa de Olavo Bilac, operou-se no país uma grande

transmutação de valores poéticos. Bilac foi, mesmo, o único artista de moldes

parnasianos a conservar-nos o nome livre de irreverências. Preservou-o alta

nobreza dos seus versos, que tão cedo não serão esquecidos. Se é volúvel a nossa

memória, nem por isso o cantor de Fernão Dias Paes Leme terá a sua obra exposta

ao sarcasmo dos vindouros. É que ele nos deixou mais de uma coleção banal de

versos parnasianos: deixa-nos o arrebatamento tropical, o gosto enamorado da

terra, e ao fim, o seu cansaço, que era o cansaço de um filho dos trópicos. Destino

maravilhoso, o desse poeta! Não o podemos conceber de outra maneira. Sente-se

que Olavo Bilac preencheu o seu minuto com o máximo de ação e de sentimento, e

deixou a vida desdobrar-se como uma sucessão de paisagens novas, ao longo de

uma viagem ardente mas orientada. Moço, gozou e sofreu os espasmos e delíquios

de um temperamento de fogo. Foi vivendo, experimentando os homens e as coisas,

indagando, pedindo, cantando. Ao morrer, poderia afirmar que não falsificara os

seus destinos. Respeitamo-lo com razão. E quando não agissem outros motivos, sua

obra seria considerada ao menos pela feição nacionalista de muitos dos seus

poemas, sabido que nacionalismo é paradoxalmente, uma tendência de peso na

moderna literatura brasileira. (Andrade, 2012, p. 133-134)

A extensão da citação é valida para tomarmos conta da sensibilidade e quase

comoção das palavras desse animador da revolução da arte, da renovação estética

modernista. A data do artigo é crucial para entendermos tais palavras e suas

colorações ambíguas. É preciso reportar ao fato de que Drummond homenageia ao

talvez último grande poeta brasileiro que talvez tenha levado consigo “toda” uma

literatura brasileira que parecia não voltar mais, e ao mesmo tempo deixou uma

semente que, de certo modo, seria seu triunfo póstumo: o nacionalismo do qual o

príncipe dos poetas defendera e que agora era erigido como tendência da literatura

185

modernista. Ironia do destino talvez essa que fazia ligar o mestre do

Parnasianismo ao Modernismo. Mas Drummond, como a dobra ou consciência-

limite do modernismo, conseguira aí, como ninguém antes ou depois, ter tal

consciência e pescar uma similaridade que faria constranger aos seus colegas

paulistas. E antes de tudo, tal passagem era um tapa nos detratores do passadismo,

de Oswald à Menotti, de Milliet a Mário; resposta muito bem exposta quando

Drummond escreve que o nacionalismo é “paradoxalmente”, a nova tendência

modernista. Primeiro como tragédia depois como farsa: os “passadistas” então não

pareciam tão diferentes dos “renovadores” da arte. É como bem escreve Abel

Barros Baptista ao analisar a Formação da literatura brasileira, de Cândido:

O paradoxo [da Formação de Antonio Candido], de resto apenas aparente,

reproduz aquele que encontramos no próprio movimento modernista, que em certo

sentido também não foi modernista: no sentido em que, ao comprometer-se com a

construção nacional, se inscreveu na continuidade da construção nacional, quer

quando surgiu como reinteração do gesto fundador romântico, quer quando evoluiu

para o ‘projeto ideológico’ com desvalorização da experimentação e dissolução da

ideia de vanguarda. (Baptista, 2007, p. 66)

Mas não fora Mário de Andrade que, no artigo sobre “Os mestres do

passado”, escrevera que Olavo Bilac era o deputado da Beleza, defendendo-a

“desde que se considere a Beleza segundo a definição escolástica ‘o que agradou’.

E Bilac agradou. Foi um encantador. Todos os artifícios da Beleza soube reunir

em seus versos.”? (Andrade, 1978, p. 284). Como vemos, até mesmo Mário de

Andrade se revelava ambíguo quanto à Bilac, e ele mesmo reconheceria os

exageros de tal artigo contra os “mestres” passadistas em carta a Manuel

Bandeira, datada de 11 de maio de 1929:

Sou como todos os outros, já confessei publicamente erros morais meus,

desfazendo um mal que fizera antes (caso dos Mestres do Passado que depois pela

América Brasileira confessei ser falso porque de propósito eu apresentara os

defeitos e ocultara as qualidades dos em questão)...53

(Andrade, s/d, p. 154).

53

São interessantes as palavras de Manuel Bandeira sobre a sua relação com os “passadistas” e

com os modernistas: “Não quisemos, Ribeiro Couto e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de

Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente os mestres parnasianos e simbolistas, nunca

repudiamos o soneto nem, de modo geral, os versos metrificados e rimados.” BANDEIRA,

Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p. 65.

186

O tom de deferência de Drummond pode ser também considerado apenas

como uma forma de agradecimento pela “transmutação” a que, por ora, operava

na literatura brasileira por ter-nos deixado o “arrebatamento tropical” da terra. É

certo então afirmar que, numa época que abriria terreno para as reabilitações

literárias de autores que cantaram verdadeiramente a terra natal brasílica, por que

não aceitarmos as colaborações do nacionalismo olaviano, mesmo sendo ele um

parnasiano afeito ao formalismo tantas vezes execrado pelos modernistas de

primeira fase? Enquanto Paulo Prado fazia ecoar um Casimiro de Abreu nas

poesias-comprimido reunidas no livro Pau-Brasil, por que não remontar ao autor

de “Via Láctea” o sabor tropical da arte nacionalmente modernista? São questões

que parecem apenas especulativas. Mas a única coisa certa a dizer é que

Drummond, assim como Mário, tinha desde o começo um apego ao parnasiano, o

que ele, o mineiro, confessaria em uma entrevista na década de 1980:

Soneto de Bilac era como a vária do Jornal do Comércio, esta no plano político,

aquele no plano literário. O mestre falou? Turibulemos. Sempre amei Bilac,

embora não o confessasse no período modernista. (Andrade, 2003, p. 1215-1216.

Grifos meus)

O símbolo, no entanto, não deixa tomar o artigo de 1924 como uma

reabilitação. Prova disso é que, como quem quer erigir uma tradição, Drummond

exclui uma para dar voz à outra. É o que ele faz com o outro poeta parnasiano,

Alberto de Oliveira. Continua ele:

Já o mesmo não acontece com o Sr. Alberto de Oliveira, que vem sendo

impiedosamente atacado, e a quem, em boa justiça, não poderíamos desejar melhor

sorte. Em nenhum outro poeta a lira parnasiana foi mais insensível, nem

correspondeu menos à nossas necessidades espirituais. Condeno-o a natureza

mesma do seu espírito: espírito de escola, limitando ao tempo, e que, logicamente,

passou com a sua escola e o seu tempo. (Andrade, 2012, p. 134)

Drummond aqui ressoa a voz de Mário, no artigo deste sobre os “mestres”:

O Sr. Alberto de Oliveira foi perseguido por uma grande infelicidade na vida: não

teve que dizer. Mas era poeta. E como não tinha que dizer, sentiu os seus

amorezinhos, as suas verdadezinhas... Quando não sentia coisa nenhuma, escrevia

poemas parnasianos. (Andrade, 1978, p. 274).

187

O crítico mineiro faz ali o mesmo que irá fazer em outro momento que

analisarei: pôr fogo a um nome para dar voz apenas a uma direção específica e daí

erigir uma tradição literária estabelecida que terá como pano de fundo os debates

modernistas atualizados. Aquele que canta a terra tropical merece o respeito, mas

o que não atende às “nossas necessidades espirituais” deve ser escachado e

repelido, “onde nenhum curioso irá desencavá-lo”. Drummond usa destes dois

exemplos, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, para introduzir o leitor à “nova

poesia no Brasil”. Sobre os escombros literários desses foi possível fazer uma

ligação, uma “linha de continuidade”, como diria Mário de Andrade, que

retomasse a literatura antes totalmente rechaçada numa fórmula nova que

encarasse a tradição literária com os olhos voltados ao projeto brasilista de

construção de uma literatura orgânica e nacionalmente unificada. Para retomar aos

velhos deuses é preciso eleger também velhos diabos.

Mas isso significava que Drummond já então defendia o nacionalismo?

Não. O crítico não dá a entender que o nacionalismo de Bilac seria crucial para a

sobrevivência e a força de construção da nova fase nacionalista em literatura,

muito menos como um feedback constrangedor em si. Como vimos, ele vê em

Bilac a imagem do “paradoxo” modernista, e ainda tem a audácia de insinuar que

o parnasiano, com seu tropicalismo, seria mais natural e original do que os

modernistas, não afetando nem transformando em programa nacionalista a sua

escola. Afinal, não eram os vanguardistas que queriam a mudança total? Por que

recorrer ao “perigoso” nacionalista dos antigos? Para Drummond, Bilac soube

cantar a sua terra de modo saudável, sem o esforço caricatural e ingênuo, pois é

assim que ele arremata: “Apenas o perfil luminoso de Bilac permaneceu íntegro

em relação às suas falanges.” (Andrade, 2012, p. 134). Mas ainda assim, qualquer

defesa do nacionalismo se revelará ao longo do artigo como nociva, pelo menos

esteticamente. O mais certo é afirmarmos que a defesa de um gosto pessoal não

cedeu em nada qualquer resquício de crítica, seja ela de caráter modernista ou não,

nacionalista ou não. O que fica então é que Drummond, em nenhum passo de sua

vida intelectual, conseguiu se articular dentro de uma linha de pensamento que lhe

tirasse toda a liberdade de espírito e sua autonomia de criação, o que vale seja

para essa época de nacionalismo exacerbado, seja em sua participação junto ao

PC, seja em sua “classicização” logo após A Rosa do Povo, como bem mostrou

188

Vagner Camilo54

. (2010). Para tanto a ideia fixa da fraqueza do modernismo ainda

persistia, mesmo depois do impacto da visita dos paulistas cinco meses antes,

impacto que o próprio Drummond confessava ser crucial para a sua entrada no

movimento, como visto anteriormente. A hesitação, portanto, continua:

Infelizmente, essa poesia que hoje ostenta graças inéditas é motivo para inquietas

indagações. Não se fixou. Os espíritos gozaram de tamanha liberdade que se

embriagaram. Cada um seguiu o seu rumo, e os rumos foram desencontrados. Os

poetas mais representativos do momento são indispensáveis entre si, o que é

louvável, mas têm discípulos, que são unidos e confusos. É preciso aproveitar a

todo transe a liberdade! Daí a incerteza, e a angustiosa interrogação: qual o rumo

definitivo que tomará a poesia brasileira? Eis o que não sabemos. (Andrade, 2012,

p. 134-135)

Alguns meses depois, em 17 de outubro de 1924, em outro artigo publicado

no Diário de Minas intitulado “Poesia Brasileira”, a sensação continua a mesma:

Não nos iludamos com exterioridades: ainda não chegou o momento da poesia

brasileira. O que se vem fazendo ultimamente, despertando relativo interesse, e

obtendo maior ou menor êxito, não passa de experiências. Os nomes dos

experimentadores são conhecidos. Em todos eles se nota a educação e formação

europeias; em alguns se observa um nítido desejo de animar visões e aspectos do

panorama físico e moral do país; em poucos esse desejo só vai convertendo numa

aspiração tanto mais forte quanto mais inconsciente; em nenhum (e isto é

satisfatório) há um hipócrita respeito aos fictícios valores do passado. (idem, p.

142)

O ambiente modernista, de 1922 a 1924, mudara drasticamente, mas

Drummond ainda permanecia em seu ceticismo rançoso. Se é certo que as

influências dos modernistas paulistas ficaram mais fortes desde o começo do ano

de 1924, então como explicar essa atitude? No primeiro trecho vemos as mesmas

reclamações de que a liberdade até agora não dera frutos verdadeiros, não

empolgou nem atraiu um público capaz de manter-se ativo na dinâmica do

movimento que simplesmente “não se fixou”. Passados dois anos de angústia,

Drummond ainda via um panorama no qual “cada um segue seu rumo”, tendo que

se questionar para onde vai dar tanta liberdade desenfreada e sem objetivo

nenhum. Mesmo a tendência nacionalista de Oswald aqui é para ele não tão

54

Explica Camilo que, em Drummond, “a ilha [metáfora do isolamento de Drummond] propõe

uma visão em perspectiva do real e não sua anulação completa. Se ela implica evasão, isso não

redunda em alienação social ou política, por mais paradoxal que pareça.” CAMILO, Vagner.

Drummond: da Rosa do Povo á Rosa das Trevas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010, p. 93.

189

escolástica, como se ali naquele momento ele não previsse que a brasilidade

modernista estava para crescer e se expandir como um vírus letal. O mineiro

identifica apenas como um “cunho”, uma manifestação como todas as outras, e

adverte:

Antes de tudo, precisamos reformar essa ideia de nacionalismo, que interpretações

viciosas tanto deturparam. (...) Com efeito, não valia a pena fazer-se revolução

literária para voltarmos às fórmulas e preconceitos estéticos do Sr. Coelho Neto e

do Sr. Catulo Cearense. (idem, 2012, p. 135).

Da mesma forma, no artigo de outubro ele apenas afirma ser essa linha de

“alguns”, embora se tornando “forte e mais inconsciente”. O fato é que o crítico

tinha um receio enorme pela elaboração de uma literatura voltada exclusivamente

para a terra natal, seja ela na fórmula folclórica e indianista de Oswald de

Andrade, seja na forma especulativa do integracionimo de Graça Aranha, que

então se combatiam. Escrevia Drummond em junho de 24, mesmo mês em que o

autor de Malazarte dera uma conferência criticando a tendência primitivista de

Oswald:

Ouçamos ainda a voz do conferencista quando nos informa que ‘ser brasileiro não

significa ser bárbaro’. De acordo. Erro é de muita gente boa, inclusive do Sr.

Oswald de Andrade, um dos nossos mais luminosos espíritos. Mas ser brasileiro

não é também vencer a natureza e sua metafísica, e integrar-se no cosmos, — é

esse o erro de Graça Aranha, espírito sem raízes na realidade. (Andrade apud Cury,

1998, p. 129)

Deslocado dos novos rumos Drummond ainda insiste na desconfiança para

com o modernismo. Não entendeu o primeiro modernismo e agora não entende o

segundo, apenas tenta encará-los como um só bloco disposto pelo caráter de

experimentação inútil; em 1924, Drummond ainda permanecia atrás do

modernismo, que ele invariavelmente não conseguia compreender senão pelas

externalizações e características mais comuns. Sua angústia era resultado de um

mal-estar, num isolamento crítico pouco afeito às nuances de opiniões e

discussões dentro do movimento, por isso sua segurança em dar de cara apenas

com literatura e autores tão bem definidos e “esteticamente possíveis” como

Anatole France, seu ídolo de então. No entanto, a crítica ao nacionalismo era

pertinente dado a iminência catastrófica dentro das próprias experimentações de

190

vanguarda que reduziriam ano a ano. Arremata então sua invectiva contra o

nacionalismo no artigo “As condições atuais da poesia brasileira”:

Ele [o nacionalismo] repugna os espíritos sadios e lúcidos. Admissível na ordem

política, é de todo inconveniente na ordem estética. E é um doce engano, esse de

que teremos uma literatura genuinamente brasileira apenas com a utilização de

motivos brasileiros. Assim, fazer poesia tropical à outrance é um ingênuo delírio.

Os temas da poesia são universais. As palavras de Gonçalves Dias não nos farão

esquecer as paisagens ‘civilizadas’ da Europa (e vice-versa). (Andrade, 2012, p.

136)

A passagem sobre a “utilização de motivos brasileiros” faz lembrar o ensaio

de Machado de Assis quando este afirma:

Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho

por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto

local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura.

(Assis, 1974, III, p. 803).

Quando Drummond reitera o caráter universal da poesia, ele faz o mesmo

que Machado de Assis ao confirmar o intuito de que a poesia se faz com qualquer

matéria, corroborando portanto a sua essencial universalidade. Muito embora haja

semelhança de objetivos, os dois críticos divergem quanto à sutileza ao tratar do

tema, devido mais ao fato de ser o jovem Drummond, irrepreensível e alardeado,

vaticinando a torto e a direito, se comparado ao autor de Memorial de Aires, cuja

maturidade soubera articular o tema numa saída perfeitamente crítica e sóbria, a

do “sentimento íntimo”; condição paradoxal da literatura brasileira que, segundo

Abel Baptista, “não retira da tradição europeia qualquer princípio que impeça a

literatura brasileira de ser brasileira, mas também não extrai do Brasil qualquer

critério ou garantia de nacionalidade.” (Baptista, 2003, p. 108). Já Drummond

pensa apenas na recaída drástica que o assunto local, como ponta de lança estética,

acarretaria na literatura não brasileira em geral, mas também, modernista. É antes

de tudo um homem formado na tradição europeia que não quer entregar-se às

estreitezas nacionais para ver-se legitimado como um autor, i.e., ele teria que se

recondicionar para entrar nesta nova onda, o que parecia não estar nem um pouco

disposto. Do mesmo modo ainda era um autor “passadista”, nos termos

modernistas, aquele que não via na cultura popular ou primitiva brasileira um

assunto louvavelmente literário, o que será bem exposto nas suas cartas para

191

Mário de Andrade, que veremos daqui a pouco. Mas o que importa aqui é o relato

contraditório, ainda de uma mente “disforme” e, nesta medida, crítica, ainda que

numa ingenuidade sintomática.

É nesta sede de universalidade que Drummond irá elogiar as Canções

gregas, de Guilherme de Almeida, como um desvio saudável da tendência

predominante do nacionalismo:

Este poeta maravilhoso e ágil nos ensina que, sob o céu azul a alma dos homens

tem mil e uma vivendas, e ama transportar-se às mais diversas regiões. (...) Mas em

nosso espírito vadio erra a nostalgia de paragens longínquas, onde nunca estivemos

e onde a nossa alma viveu instantes inesquecíveis: Paris, Versailles, a Roma dos

Césares e dos papas, Atenas... Ninguém me fará entrar na cabeça que São João d’el

Rei vale Florença, e que o Aleijadinho é superior a Miguel Ângelo. (Andrade,

2012, p. 136)

O próprio título do livro de Guilherme de Almeida reflete certa

condescendência com temas clássicos. Podemos então perceber as diferenças

internas que já grassavam o modernismo hegemônico paulista, que enfim o

nacionalismo tinha que passar por um obstáculo que vinha junto com a própria

condição de defesa de uma literatura nacional: a formação dos próprios

modernistas. Seria difícil para muitos negar essa condição que o mesmo

Drummond tinha consciência; como negar a tradição europeia pré-vanguarda e a

própria Europa se é desta que vinham as fontes para tal crítica? Essa contrariedade

sempre fizera parte da tradição da literatura brasileira, desde o romantismo (Cf.

Baptista, 2003). Mas o nacionalismo modernista, ao contrário do romântico, não

sublimava o ranço estrangeiro com a idealização à europeia do brasileiro, do

indígena, e sim, encarava ou tentava encarar a verdadeira face da cultura popular,

agora com olhos positivos e otimistas, o que fora difícil para muitos poetas que

sonhavam com os ares de uma Europa civilizada. É neste sentido que também

entendemos este Drummond que nos escreve, do mesmo modo como ainda é

sintomática sua falta de simpatia total com o movimento modernista. É o que se

vê nestas palavras do nosso autor em 30 de setembro de 1922, no Diário de

Minas, no mesmo artigo sobre Os condenados, de Oswald de Andrade:

Ninguém pode honestamente pensar em Jeca Tatu, símbolo da terra patrícia,

quando sabe que há no Brasil cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Juiz

de Fora, onde uma população convulsa esfervilha entre arsenais, fábricas, docas e

estações ferroviárias. (Andrade apud Cury, 1998, p. 123).

192

Certo lado do país, aquele já revelado por Monteiro Lobato ou mesmo

Euclides da Cunha, ainda não podia ser visto pela retina do crítico mineiro sem

uma sensação de desconforto, ao contrário do que então começavam a fazer os

primitivistas paulistas. Por isso a opinião de Mário de Andrade em entrevista de

1925: “No Brasil, em que trata-se antes de mais nada de ser Brasil, sonetos como

Anchieta ou poesias como as Canções gregas são passadismo puro, vaidade

individualista, diletantismo sem função, almofadismo sem elegância verdadeira.”

(ANDRADE, 1983, p. 19). Está claro que é esta nova condição que dificultava a

adesão completa de Drummond ao movimento modernista.

Como exemplo disso é que, depois de dissertar sobre os novos da poesia e

da crítica à tendência oswaldiana, Drummond encerra o artigo tratando os

modernistas como eles, e não por nós: “Confiemos, portanto, nessa geração sem

compromissos nem preconceitos; nem todas as suas ideias são justas, mas os seus

ideais são luminosos.” (Andrade, 2012, p. 142). A confiança esbarra na sensação

de que o que existe no momento não é tão interessante, devido ao fato mesmo de

que o movimento poderia perder seus princípios e respingar nas velhas atitudes

regionalistas e nacionalistas que não fizeram crescer a literatura brasileira. Ao

contrário do que se pode pensar, Drummond quer uma literatura brasileira, mas

que não se interpelasse e enrugasse nas tentativas de delimitação unívoca de temas

e assuntos. Em 17 outubro de 1924, ele escreve no artigo “Poesia brasileira”, em

que diz sua opinião nestes termos:

Chegamos, é fato, à compreensão de uma dolorosa necessidade: a necessidade de

sermos brasileiros dentro do Brasil, na língua como no sangue, e na literatura como

na língua. Mas, isso não se faz com um manifesto ou uma conferência. É a obra,

nem sempre visível, muitas vezes irregular, e até mesmo inconsciente, de gerações

sem conta. Com que ridícula sobranceria pretendemos renunciar à cópia dos

figurinos franceses, e reunir materiais para a criação de um autêntico ‘gênio

brasileiro’, que podemos contrapor ao malsinado gênio francês! (Andrade, 2012, p.

144)

O problema para a formação de uma literatura brasileira de porte é ainda a

falta de uma tradição literária historicamente construída. É neste sentido que

Drummond atende às necessidades que os outros modernistas viam como a

primitivização dos temas literários. Não chega a ser angustiante para Drummond

pensar que ainda seria uma questão de tempo, obra de gerações, a formação da

193

literatura brasileira. Para isso, é ingenuidade negar toda a cultura estrangeira, e

mesmo sua cópia, sendo que é dela que podemos tirar as fontes de uma cultura e

de uma história que são modelos a seguir. Mais uma vez, Drummond acredita que

o desejo anti-mimético é uma ideia não brasileira mas sim europeia, daí que ele

vaticina: “E queremos manufaturar qualquer coisa parecido com um gênio

brasileiro! (Fugindo à imitação, continuamos a imitar).” (idem, p. 144). O

modernismo brasileiro teria que entender que o próprio nacionalismo não era uma

ideia nativa, mas europeia do mesmo modo que a vanguarda e toda a literatura

com a qual o Brasil vinha dialogando durante séculos. Como negar tal comércio

necessário para a subsistência de qualquer cultura? Como negar que a própria

civilização que os modernistas primitivistas queriam não era uma civilização à

Europa? Era negar a história do país, ainda novo, sem uma cultura vigorosa, sem

mesmo uma “elite” preparada para dirigir intelectual e politicamente (lembrem-se

da opinião de Silvio Romero). Sem uma tradição robusta como a francesa não

haveria como construir uma literatura genuinamente nacional; por isso que o

quase-modernista Drummond ainda lamenta a falta de ligação com uma tradição

literária: “Com efeito, quais os vínculos que prendem a geração ora em atividade e

as antecedentes? Pode dizer-se, de um modo geral, que essas em nada influíram

sobre os moços de hoje.” (idem, p. 146).

Neste mesmo mês de outubro Drummond lera uma carta de Mário de

Andrade endereçada a Martins de Almeida e decidira também entrar em contato

com o poeta paulista. A partir de então, a correspondência duraria 21 anos, até a

morte do autor de Paulicéia. Não há como negar a contribuição intelectual de

Mário para com o jovem poeta e crítico Drummond. É a partir das cartas que

aquele irá discutir os temas e bastidores do movimento, ao mesmo tempo em que

tentará trazer Drummond para as hostes do modernismo nacionalista. A escolha

por Mário é sintomática pois Drummond já vira o Pau-Brasil de Oswald com

maus olhos, e a visita dos paulistas revelara o caráter normativo e certamente

militante do autor de Pauliceia. Confessa Drummond na crônica “Suas cartas”,

em Confissões de Minas:

É quase impossível ter vinte anos, um pouco de sensibilidade, um pouco de

insatisfação, e não entregar a alguns poetas e alguns romancistas o cuidado de

resolvermos os nossos problemas, de nos salvar de nós mesmos. (Andrade, 2003, p.

198-199).

194

A primeira carta de Drummond é datada de 28 de outubro, ou seja, quatro

dias depois do artigo supracitado, “Poesia brasileira”. Ele parece inovar nos

termos:

Estou convencido que a questão da literatura no Brasil é uma questão de coragem

intelectual. Ou por outra: é preciso convencer-se a gente de que é brasileiro. E ser

brasileiro é uma coisa única no mundo; é de uma originalidade delirante. Não

confundir com nacionalismo. Aliás, você sabe disso melhor do que eu. (C&M,

2002, p. 14)

Drummond já vinha em direção a Mário com a ideia de que ele saberia

tratar os temas do modernismo atual. A coragem intelectual de que fala remete às

discussões do momento em que colocavam de um lado Oswald de Andrade e do

outro Graça Aranha. Não é errado afirmar que Drummond tenha procurado Mário

por vê-lo como um independente dentro destas correntes divergentes, do mesmo

modo que essa coragem intelectual seja o verdadeiro auxílio com que Drummond

queria resolver seus “preconceitos intelectuais”, como ele mesmo confessaria

mais tarde na já citada crônica sobre as cartas de Mário. Uma carta de Manuel

Bandeira a Drummond, de 21 de outubro, mostrava bem a posição-chave do

paulista dentro das discussões modernistas:

Pensando bem, creio que no fundo estão todos [Graça e Oswald] de acordo, e o

problema de enquadrar, situar a vida nacional no ambiente universal, procurando o

equilíbrio entre os dois elementos. O Mário de Andrade que parece ser o nosso

maior poeta atual e o segundo grande poeta brasileiro (o primeiro foi Castro Alves)

parece ter resolvido o problema nos seus últimos poemas, sobretudo no ‘Noturno

de Belo Horizonte’, que é todo o Brasil, ou pelo menos um pedaço enorme do

Brasil, sentido com larga emoção por um espírito de alcance e de cultura

universais. (Bandeira apud Moraes, 1978, p 118)

O “você sabe disso melhor do que eu” de Drummond tem como pano de

fundo tal carta de Manuel Bandeira. É dela que o mineiro tira a sua também

coragem intelectual para interpelar o paulista e resolver assim sua questão pessoal

sobre o modernismo. E mesmo a aparente linguagem pró-nacionalista, quando

afirma a necessidade de “ser” brasileiro, não nos autoriza a refletir que

Drummond já se convertia. Ele faz questão de assinalar que aquelas palavras não

podem ser lidas como nacionalistas; na verdade, ele está pensando na carta de

Manuel quando este aponta que Mário soube auxiliar o primitivismo e o

195

universalismo, e era justamente neste último ponto que o crítico mineiro se

reportava ao escrever aquela carta. Drummond buscava uma universalidade que

ele via minguar mais e mais com as polêmicas envolvendo a brasilidade, e, de

acordo com Bandeira, apenas Mário conseguia ter uma visão que acatava o

universalismo sem preconceitos, embora ainda pensando numa mediação

nacional, mas ainda assim, era isso que importava, sem nenhum programa

sectário. A “independência” de Mário então chamou a atenção do crítico

independente e outsider mineiro. Então, este resolvera pescar aquele, e de certo

modo provocar uma resposta que lhe desse uma saída para suas inquietações. Ao

cutucar tal onça ele seria aos poucos devorado pela moléstia-de-mário, a do

nacionalismo universalizante. O ataque viria na resposta, quando Mário comenta o

artigo sobre Anatole France que Drummond enviara junto à sua carta:

Li seu artigo. Está muito bom. Mas nele ressalta bem que falta em você — espírito

de mocidade brasileira. Está bom demais pra você. Quero dizer: está muito bem

pensante, refletido, sereno, acomodado, justo... principalmente isso, escrito com

grande espírito de justiça... você já é uma só lida inteligência e já muito

mobiliada... à francesa. Com toda a abundância do meu coração eu lhe digo que

isso é uma pena. Eu sofro com isso. Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo.

Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo,

mas acredite que um sacrifício é lindo. O natural da mocidade é crer e muitos

moços não creem. Que horror! Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que

por isso até agora não viveu, nós temos que dar alma ao Brasil e para isso todo

sacrifício é grandioso, é sublime. (C&M, 2002, p. 50-51)

Mário logo percebeu a relação de Drummond com o espírito francês,

mesmo num artigo que prometia criticar Anatole France, principalmente com o

ceticismo que será a maior característica do poeta mineiro. Por outro lado, Mário

já fala como um escritor maduro que precisa arrebanhar jovens para o sacrifício da

construção de uma literatura que se dedicasse exclusivamente ao Brasil. Mais do

que isso, transparece certa angústia em ver tais moços ainda deslumbrados com os

ares europeus sem ao menos ter saído do país, algo que ele ainda não identificava

com o ar provinciano que Drummond revelava. Não é difícil então ver que o

paulista se indignava em perceber a ineficácia do modernismo, pelo menos

daquele modernismo que ele e os primitivistas vinham há pouco lutando. Tudo

porque, como dissemos, o nacionalismo de desrecalque custava muito àqueles

moços que, como Drummond mais tarde diria, “precisavam deseducar-se” da

“decrepitude de inteligência, desmentida pelos nervos, mas confirmada pelas

196

bibliotecas.” (Andrade, 2003, p. 199). A resposta de Drummond então vem com

uma sinceridade ou “cinismo”, segundo Ivan Marques, que enfim respondia em

parte as invectivas contra o nacionalismo que vimos nos artigos atrás analisados:

Reconheço alguns defeitos que apontam no meu espírito. Não sou ainda

suficientemente brasileiro. Mas, às vezes, me pergunto se vale a pena sê-lo.

Pessoalmente, acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob

céus pouco civilizados. Tenho uma estima bem medíocre pelo panorama brasileiro.

Sou um mau cidadão, confesso. É que nasci em Minas, quando devera nascer (não

veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é

estranho: sou um exilado. E isto não acontece comigo, apenas: “eu sou um exilado,

tu és um exilado, ele é um exilado”. Sabe de uma coisa? Acho o Brasil infecto... O

Brasil tem uma atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns

políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis e velhacos. Entretanto, como

não sou melhor nem pior do que os meus semelhantes, eu me interesso pelo Brasil.

Sei o aplaudir com a maior sinceridade do mundo a feição que tomou o movimento

modernista nacional, nos últimos tempos: função francamente construtora, após a

fase inicial e lógica de destruição dos falsos valores. O que todos nós queremos (o

que, pelo menos, imagino que todos queiram) é obrigar este velho e imoralíssimo

Brasil dos nossos dias a incorporar-se ao movimento universal das ideias. Ou,

como diz Manuel Bandeira, “enquadrar , situar a vida nacional no ambiente

universal, procurando o equilíbrio entre os dois elementos” equilíbrio

evidentemente difícil, dada a evidência da desproporção. E este é um trabalho de

muitas e muitas gerações. Como realizá-lo? Penso que este problema envolve

centenas de problemas particulares, que rebentam e se desenvolvem na intimidade

do nosso espírito inquieto. Cada um de nós tem de resolver o seu caso, criado e

mantido à sombra desse caso brasileiro. (C&M, 2002, p. 56-57)

Drummond cita a carta que Bandeira lhe enviara para corroborar suas ideias

de universalidade. Mas é incrível que ele não tenha percebido que a

universalidade de que Mário falava tinha implicância num nacionalismo que

enfim desautorizava qualquer afirmativa de que o poeta paulista sabia como fazer

o Brasil “incorporar-se ao movimento universal das ideias”. É que para Mário a

universalidade se alcançava com o quinhão brasileiro, e apenas brasileiro; isto

quer dizer que com a primitivização e folclorização da literatura brasileira tendo

por base a cultura popular, o país partiria do regional para o universal, mas apenas

como uma peça dentro de um enorme quebra-cabeça. A universalização

pressupunha um produto tipicamente brasileiro que seria sua literatura popular

coroada pelos mitos, superstições, canções, brincadeiras, religiosidade etc. É o

que diz Mário de Andrade em carta a Joaquim Inojosa:

Veja bem: abrasileiramento do brasileiro não quer dizer regionalismo nem mesmo

nacionalismo = o Brasil pros brasileiros. Não é isso. Significa só que o Brasil pra

197

ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia

dirigem a civilização da Terra, tem de concorrer pra esse concerto com sua parte

pessoal, com o que singulariza e individualiza, parte essa única que poderá

enriquecer e alargar a Civilização. Da mesma forma que do lado prático. Se nós

quiséssemos concorrer pra organização da economia da Terra, com o trigo próprio

da Rússia ou o vinho próprio da França ou da Itália, a nossa colaboração seria

inferior, secundária, subversiva e inútil porque nem o trigo nem o vinho são

específicos da nossa terra. Mas com a borracha, o açúcar e o café e a carne nós

podemos alargar, engrandecer a economia humana. Da mesma forma nós teremos

nosso lugar na civilização artística humana no dia em que concorrermos com o

contingente brasileiro, derivado das nossas necessidades, da nossa formação por

meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e clima, pro

concerto dos homens terrestres. (Andrade apud Moraes, 1978, p. 120)

Drummond não conseguiu compreender que esta universalidade era

coerente com a literatura primitivista que faziam Oswald e Mário. Só que para o

mineiro, a universalidade era a liberdade de temas, a despreocupação de formas ao

mesmo tempo que a capacidade de escolher em que tempo e em que espaço

escrever. Drummond também reafirma o que disse em outro artigo quando pensa

que a literatura brasileira precisa de mais tempo e de uma tradição para dar-se por

formada, assim como acontecera com as nações europeias. Mas apenas se dá por

esta via, já que o ambiente “imoralíssimo” e “infecto” das paisagens brasileiras

não seria capaz por si próprio de criar e dar mote às criações imaginativas

perfeitas. Não é preciso muito esforço para perceber os preconceitos intelectuais

de que ele mesmo falaria mais tarde sobre esta época. Apesar de tudo ele tinha

consciência — neste caso talvez cínica — de que esta posição não era aristocrática

e tampouco antidemocrática, como escreve na mesma carta: “Espero que não veja

nestas palavras a intenção de criar uma oligarquia intelectual, ou qualquer coisa

parecida com um clã ou um mandarinato das letras. Não. Estamos, se não me

engano, em dias largamente democráticos, em que nenhuma aristocracia é

possível, mesmo a da inteligência.” A questão então sobrepunha o campo literário

e passava a ter uma constituição também política, porque “o nacionalismo convém

às massas, o universalismo convém às elites (repito, não se trata de clã).” (C&M,

2002, p. 60). Então, a própria identificação dos preconceitos nacionalistas com o

povo, como se fosse naturalizado, faz com que Drummond, ao negar o elitismo,

reafirme-o na mesma medida em que diz que o nacionalismo é perigoso,

esteticamente falando, i.e., ele não admitia ver qualquer resquício de literatura

popular dentro do campo ilustre da literatura e o nacionalismo que tanto o

modernismo vinha pedindo dava como iminente tal acontecimento. Esse caráter

198

aristocrático e elitista de Drummond fora exposto no editorial do primeiro número

de A Revista, em julho de 1925, escrito pelo nosso crítico, intitulado “Para os

céticos”, reforçando a nossa hipótese de que o nacionalismo modernista também

responde à crise social e institucional do país, principalmente após 1924:

Na ordem interna é forçoso lançar ainda uma afirmação. Nascidos na república,

assistimos ao espetáculo cotidiano e pungente das desordens intestinas, ao longo

das quais se desenha, nítida e perturbadora, em nosso horizonte social, uma

tremenda crise de autoridade. No Brasil ninguém quer obedecer. Um criticismo

unilateral domina tanto nas chamadas elites culturais como nas classes populares.

Há mil pastores para uma só ovelha. Por isso mesmo as paixões ocupam o lugar

das ideias, e, em vez de discutirem-se princípios, discutem-se homens. (Andrade,

1925, p. 12-13)

Portanto, podemos ver que a universalidade de Drummond era bem vinda e

daria vazão a uma crítica aos rumos do modernismo mas, sendo ele baseado

tematicamente em preconceitos, seria também tão nocivo quanto o que ele

combatia. Os modernistas mineiros, identificados por Pedro Nava como

politicamente de centro (Cançado, 1993, p. 109), entendiam a crise de então como

um problema meramente político em que faltava um braço forte no Estado para

resolver as desordens internas. É difícil não pensar como estes modernistas,

revolucionários esteticamente, não tinham nenhuma opinião relativamente

progressista em política. A questão é pertinente pois a maioria deles, em

entrevistas posteriores, afirma, por exemplo, que a relação do grupo com o Diário

de Minas, jornal da oligarquia local, era apenas casual, sendo que não respondiam

às demandas políticas, e neste sentido estavam certos, como vimos anteriormente

em outro capítulo. Mas agora, com um veículo próprio, eles não fugiam de uma

visão high brown, de escacho da população, incivilizada e inculta. Então, mesmo

nos mineiros, estava ausente o cunho popular ao mesmo tempo em que

expressavam o continuísmo de uma dominação social e intelectual que eles

mesmos aí não conseguiam disfarçar:

Os intelectuais da rua da Bahia não eram, basicamente, homens de letras perdidos

na provinciana Belo Horizonte, mas uma geração bem nascida, bem educada, e

represada em suas aspirações de influência e poder. Ela se constitui assim, em

intelligentsia que olhava inevitavelmente com rancor e desesperança para as

oportunidades que os velhos oligarcas do palácio da Liberdade lhes negavam.

Abertas as comportas do sistema político, lançaram-se com todas as forças à vida

política, sem trair, mas na realidade cumprindo sua vocação de intelectuais.

Poucos, como os poetas Emílio Moura e Drummond, teriam o talento e as

199

condições pessoais adequadas para fazerem da literatura não somente um estilo, um

adorno ou um traço a mais de sua cultura, mas sua forma mais alta de realização

pessoal. Para os demais, a política foi o caminho. (Schwartzman, Bomeny &

Ribeiro, 1984, p. 28)

Mas, por outro lado, como vimos, era o real individualismo, a idiossincrasia

gauche, que também impedia o apego de Drummond ao programa nacionalista

que o movimento, de forma geral e incluindo Mário de Andrade, impunha. É o

que nos explica Gilda de Mello e Sousa:

Parece evidente o desacordo entre o seu temperamento e o nacionalismo, a que

haviam aderido os companheiros. Era uma tendência que procurava pesquisar a

realidade exterior, os aspectos pitorescos dos costumes e do país, dando preferência

à paisagem (tratada de maneira ornamental, não psicológica), relegando para

segundo plano as sondagens de cunho mais pessoal. Que sentido poderia ter isso

para o seu temperamento fechado e solitário, que só contava com a arte para se

exprimir? Como ter um programa estrito e definido a sua alma ferida, esquiva e no

entanto sequiosa de comunicação? (Mello e Sousa, 1980, p 271)

No fundo, Drummond cedia aos poucos por necessidade de sobrevivência

literária, razão pela qual não foi preciso muito esforço do poeta paulista. Depois

de algumas cartas de Mário ele já se dava por “vencido” na questão sobre o

nacionalismo, como vemos na carta de janeiro do ano de 1925: “(...) verá que

capitulei em mais de um ponto. Hoje sou brasileiro confesso. E graças a você meu

caro!” (C&M, 2002, p. 88. Grifos meus). E na carta seguinte, de 06 de fevereiro:

Quando penso que também andei a esmo pelos jardins passadistas, colhendo e

cheirando flores gramaticais, e bancando atitudes de sabedoria! Pois veio o

imprevisto e me expulsou do jardim. Você, com duas ou três cartas valentes acabou

o milagre. Converteu-me à terra. Creio agora que, sendo o mesmo, sou outro pela

visão menos escura e mais amorosa das coisas que me rodeiam. (C&M, 2002, p.

95)

Ivan Marques escreve que Drummond resplandecia um paradoxo quando

critica ao mesmo tempo primitivismo e Machado de Assis, símbolo do

universalismo, no seu artigo d’A Revista que analisaremos adiante (Marques,

2011, p. 96). Mas ele não percebe o momento em que Drummond faz sua

conversão ao brasileirismo e portanto, a coerência de sua crítica contra o bruxo

realizada após a conversão. De qualquer modo, Drummond não conseguirá de

todo entregar-se ao nacionalismo como queria Mário de Andrade, ambos teriam

ainda muito que discutir. Aqui, no entanto, Drummond poderá ser considerado,

200

enfim, um modernista absolutamente reconhecido. Ele estará em paz consigo

mesmo e sua “moléstia de Nabuco”, o dedicar-se apenas à cultura estrangeira,

sanada. A conversão se dá de forma atabalhoada e incisiva, típica de

autoafirmação. Por isso veremos adiante momentos em que se percebe a ânsia de

Drummond em purificar-se do universalismo e do seu “não-modernismo” da

época anterior, momentos que mostram discordâncias e contradições importantes.

6.2. O eterno do moderno: Drummond e as tensões da tradição brasileira: 1925-1930

O Drummond brasilista agora fará o possível para provar a si mesmo sua

conversão. Em artigo intitulado “A tradição em literatura”, publicado em 1925 em

A revista, periódico dos modernistas mineiros, ele mostra-se afobado e incisivo

nas palavras, não medindo a crítica, discernindo o que é tradição válida e tradição

passadista; diferenciações que o nacionalismo do segundo momento pedia. Uma

leitura detalhada de tal artigo será então necessária para entendermos a

contribuição de Drummond para pensar os limites e tensões, nuances e fissuras da

tradição brasileira nos aspectos do modernismo aqui estudados.

Drummond terá então que fazer um acerto de contas com sua formação

intelectual, daí resultou seu interesse pelo diálogo com a tradição literária, com os

nossos clássicos, para depurá-los, avaliá-los à luz das “necessidades novas”, de

um presente temporalizado pela constante de atualização, de atualizar ao atual;

enfim, pondo o fogo da crítica a serviço da ideia “acrítica” da tradição Brasil, de

certo modo imóvel, e nestas circunstâncias ele estará erguendo uma tradição: a

tradição modernista. Uma tradição contra outra, é certo, pois elas se multiplicam.

Para preservar uma — a do brasilianismo em literatura — ele vai atacar outra. E

assim, pensando estar mudando, a crítica modernista estava reafirmando aquilo

que negava. Negação da negação. A modernidade brasileira em estado puro.

O texto de Drummond se articula em torno da crítica à tradição. Mas como,

se nessa fase os modernistas estavam num movimento de “ida à tradição”? Essa

questão é o que faz de Drummond uma experiência limite dentro do modernismo.

Ao mesmo tempo em que adere à tese nacionalista tradicionalista, ele a explode

de certo modo e dá vazão à crítica da tradição. No entanto, mesmo assim, como

veremos, a sua crítica da tradição se fará em nome de uma perspectiva ainda

201

marcante do segundo momento modernista, tudo porque ele tenta destruir o maior

fantasma da tradição nacionalista brasileira, Machado de Assis, aquele que mais

bem soube empreender uma crítica contra esta. Em movimentos sempre

ambíguos, o crítico mineiro por um lado dá força à empresa de Mário de Andrade

e, por outro, critica-a por colocar a tradição, em alguns momentos do artigo, como

um bloco só. No fim das contas, a sensação que o autor nos dá é a de que a

tradição em si não merece nenhum beneplácito. Para tal afirmação concorre a

crítica de Mário contra a concepção de tradição de Drummond. Mais uma vez,

este não soube acatar bem as peripécias do momento modernista. No entanto, esse

será o fator que o tornará de certo modo mais crítico.

6.2.1. Abrindo portas abertas

Carlos Drummond de Andrade já começa o artigo com distinções:

Os escritores que falam em nome de uma tradição são justamente aqueles que mais

fazem por destruí-la e contribuem para sua corrupção. Ao contrário, aqueles que

não se preocupam com os fantasmas e fantoches do passado, mantém inalterável a

linha de independência intelectual que condiciona toda criação de natureza

clássica. São estes últimos os verdadeiros tradicionalistas, por isso que o próprio da

tradição é renovar-se a cada época e não permanecer unificada e catalogada.

Romper com os preconceitos do passado não é o mesmo que repudiá-lo. (Andrade,

1925, p. 32)

Drummond inverte as ordens nas quais o senso comum concebe a tradição,

qual seja, a de que os tradicionalistas são aqueles que preservam as obras do

passado. Com isso, ele se aproxima de um novo modelo de tradição, implicando

assim novos jogos de concepção temporal que veremos mais adiante. Entretanto,

vale aqui notar, primeiramente no texto, a oposição nova entre “os escritores que

falam em nome” da tradição e aqueles que “não se preocupam com os fantasmas e

fantoches do passado”.

A ideia central da distinção é que a tradição é móvel, e que por isso mesmo

ela não deve ser movida nem delineada, muito menos glorificada ou desviada para

qualquer finalidade, é de certo modo então, inútil, imprestável, obsoleta por

definição; no entanto, ao isolá-la num canto só seu, Drummond acaba dando-lhe

aura, uma autenticidade de algo intocável e único que ninguém deve glorificar

202

porque já é em si algo grandioso na sua inutilidade. Quando tocada, isto é,

“quando pessoas falam em nome” dela, sua corrupção é inexorável. Chave do

primeiro enunciado: o mineiro está fazendo um ataque aos homens que se

legitimam por detrás da tradição, que a tomam para fins pessoais ou ideológicos, e

assim se pensam inabaláveis e irrefutáveis; claro que, neste sentido, o documento

é político, o próprio programa da revista, escrito também por Drummond,

confessava abertamente. A crítica dirige-se então aos “escritores” de intenção

política e seus meios desprezíveis de agir em torno de uma aura do passado e de

seus cânones, identificando a corrupção de tal ação numa “tradição em si”. Estava

em jogo a avaliação que punha no passado o direito de autoridade, a autoridade do

passado que é, portanto, no sentido aí colocado, a tradição.

O período seguinte é tanto quanto audacioso. Os “fantasmas” e os

“fantoches” do passado são imagens que nos dão a entender aquela dialética entre

os do pretérito e os de agora, metáfora finíssima em sua composição. Os

“fantasmas” pressupõem tanto o espírito que ainda permanece sobre nossa

consciência como sua capacidade de nos inquietar, de assustar aqueles que, assim

sendo, também nos olham e velam — portanto um papel ativo e nada inocente do

passado, sua permanência e seus poderes inabaláveis: pois quem pode lutar contra

algo invisível, uma espécie de grande Outro lacaniano? O próprio poeta mais

tarde dará uma boa imagem dessa condição no poema “Convívio”, de Claro

Enigma:

Mas, como de longe, ao mesmo tempo que nossos atuais habitantes

e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!

A mais tênue forma exterior nos atinge.

O próximo existe. O pássaro existe.

E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que [disfarçados...

(idem, 2002, p. 287)

Voltando à crítica de Drummond. Na primeira frase o passado como alma,

na segunda como poder. Mas os “fantoches” aplainam tal prepotência; sendo

“fantoches”, o passado é controlável, submisso aos nossos comandos, suscetível à

boa ou má intenção de quem o usurpa, deste modo corruptível, como o próprio

Drummond o via. Novamente aqui a tradição não se afasta do utilitarismo.

No entanto, o “verdadeiro tradicionalista” não se importa com nada disso; é

trabalho baldado pensar ou entrevar-se nesse caminho, existem preocupações

203

maiores que lhe afastam de um problema que não existe e que se existe está morto

e, assim sendo, não se deve profanar o descanso eterno dos antepassados. Mas

Drummond revela sua antinomia. A própria razão de ser do artigo acaba na

negação de suas palavras: se na tradição não se toca por que então escrever sobre

ela, tocá-la e sacudi-la e, por fim, corrompê-la? Será que Drummond está

“fantochizando” o passado? Se sim, será em direção a um único caminho, uma só

resposta a que já nos acostumamos ouvir, a da tradição Brasil?

Drummond aponta uma continuidade da qual não se necessita cuidado ou

discussão, tampouco o resguardo que os “falsos” tradicionalistas procuram

atender e “falar em nome”. Os verdadeiros tradicionalistas “mantêm inalterável a

linha de independência intelectual que condiciona toda criação de origem

clássica”. É o primeiro vacilo que ele deixa escapar, é o homem necessitando de

liberdade para produzir, que deve pertencer a uma verdadeira linhagem digna de

respeito e admiração, é o poeta pré-conversão aflorando no asfalto sufocante de

uma pregação incondicional de um ideal, seja ele qual for, que empobrece a

originalidade criativa. É ainda a revolta de um ano antes (portanto, no período

ainda não nacionalista) que ainda persistia nesta carta, dentre muitas outras que

debatiam o mesmo tema, datada de 30 de Dezembro de 1924 para Mário de

Andrade:

Entendo por nacionalista: ter princípios, fazer estudos sobre o amor à pátria, etc. E

como é bom ser brasileiro! Contudo, não é o único bem da vida. Daí amanhecer,

outros dias, norueguês ou tchecoslovaco (mais frequentemente francês.) Isto é o

que eu chamo de liberdade espiritual. (C&M, 2002, p. 79)

A distância entre a “liberdade espiritual” aqui e a “independência

intelectual” ali só poderia ser mensurável no apelo moral que separa o verdadeiro

do falso; é certo que tal apelo não atinge a tradição — ela aqui permanece como

algo “no seu canto” — mas um comportamento em relação à ela, daqueles que lhe

exibem como troféu e de outros que a ignoram. Mas a tradição “renova-se”

porque quem a mantém são homens “independentes”... dela mesma! O “toque” é

inevitável, mesmo os que se afastam de sua presença, e por causa disto, cedo ou

tarde a corromperão; no fim, falsos e verdadeiros são julgamentos que se anulam.

Na situação limite que o próprio artigo impõe e denuncia (como uma atitude que

“se importa” com a tradição), resta a Drummond posicionar-se: nem criar cânones

204

nem deixá-los de lado: que se tome o cadáver da tradição ao sabor das tapas, mas

sem “repudiá-lo”.

O rompimento ao longo do texto, no entanto, parece virar repúdio. Mas

nestes termos apresentados pelo crítico a ruptura parece superficial, pelo menos na

sua acepção mais ou menos polida da tradição. É claro que Drummond vai eleger

apenas um passado, dentre outras, para fazer sua crítica e depuração — e

estrategicamente será a obra de Machado de Assis, o autor que menos se ajustava

à tradição da brasilidade —, pondo-o num único bloco passível de confrontação e

de avaliação suscetível. Nem por isso ele não se via incluso também numa

tradição, o próprio tom de acerto de contas de um recém-convertido que suas

palavras escancaram, o ato em si do tema proposto, a entonação moral quanto aos

verdadeiros tradicionalistas como homens independentes: nada de tudo isso lhe

poderia ser estranho. A noção sóbria de que o rompimento deve ser saudável

adere à certeza de que o próprio Drummond também está na arena de disputa da

tradição, e mesmo que no desenvolvimento da argumentação, o não-repúdio fique

intolerável, ele sabe que poderá ser julgado pela posteridade. Uma consciência

histórica não se desliga dessa percepção aguda. Tal consciência de efemeridade,

como vimos, fora a angústia que fizera com que Drummond aceitasse o

modernismo tão tardiamente, visto que não via no movimento uma duração que

lhe fizesse vingar e permanecer na literatura brasileira. Assim, ele pensava sobre o

modernismo então no artigo “Sobre a arte moderna”, de 1924:

Esta arte é bem atual, e não tem relações imediatas com o futuro. É o espelho do

dia que passa... O dia é cheio de amargura, e, pois, as visões do artista moderno não

o são menos. (idem, 2012, p. 125)

Fica perceptível que essa amargura ainda era consciente no Drummond

convertido.

6.2.2. No labirinto o fio

A relativização do rompimento, e com ela o da própria tradição, mistura-se

com a atitude extremista, a negação total.

205

A verdade é que o tempo age sobre qualquer livro de duas maneiras: debastando-o

e emprestando-lhe novas aparências. Por um lado, tira-lhe todo o interesse que seja

do tempo, e que com ele se adelgasse; por outro, empresta-lhe uma consistência

que o torna capaz de impressionar sensibilidades de tempos muitos diversos.

Assim, o livro de 1500, lido em 1905, não é o mesmo livro de então; morreu um

pouco e tornou a nascer um pouco. É um outro livro de um outro autor. O que

chamamos tradição propriamente não existe. Que vem a ser uma tradição literária?

Talvez o mosaico fantasista e caprichoso com que o tempo se divertiu em

transformar a sucessão de obras e autores que constituem uma literatura? Não pode

ser mais que isso, e a nossa época, dotada de espírito crítico, acha pouco. (idem,

1925, p. 32)

A questão parece ser a mesma: como negar a existência daquilo que já

notamos como conceito, no caso, a tradição? Mesmo essas contradições de

superfície do extremista, sem a análise pontual das afirmações, não reduzem a

finalidade última de demonstrar a relação íntima entre os tempos e, também, o

poder daí resultante, seja do passado na forma de tradição — a tradição como aura

e não necessariamente como autoridade —, seja do presente na da crítica

modernista. É esta consciência que está por trás das “duas maneiras” com que o

tempo age, por extensão, sobre um documento de cultura.

Surpreende, pois, a afirmação de um tempo pelo tempo como produtor

“caprichoso” da tradição. O que anteriormente dependia dos homens, na atividade

ou na passibilidade, agora se reduz a um poder incontrolável, difícil de alcançar;

mas para Drummond, assim como o tempo muda, a tradição “renova-se”,

portanto, a indiferença pela tradição parece estar de acordo com a indiferença pelo

tempo, sendo que esta que se liga àquela. De nada adianta qualquer pretensão de

autoridade dos homens para sobreviverem ao eterno em suas obras, a posteridade

dos seus nomes é oficio alheio, trabalho perene que corrói sua carne deixando

apenas um resíduo — este resíduo para Drummond é a tradição55

. Resíduo que

não permanece intocável pelo tempo, pois em sua acepção, a tradição é móvel,

então o trabalho será tão infinito quanto os séculos, o adelgamento permanecerá.

Quais os “interesses”, então, que levam o tempo a talhar esta ou aquela

obra? Drummond não parece ser explícito para aquilo que ele mesmo está fazendo

ao escrever aquelas letras. Isso não o reserva de dar uma resposta plausível. O

interesse é do próprio tempo, i.e., apenas aquelas obras que estão “de acordo” com

o que podemos dizer “espírito do tempo” é que poderão ter o privilégio de serem

55

O que nos faz lembrar do poema Resíduo: “E de tudo fica um pouco./ Oh abre os vidros de

loção/ e abafa/ o insuportável mau cheiro da memória.” ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia

completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2002, p. 159.

206

moldadas... Por outro “espírito do tempo” posterior. É neste sentido que o

modernismo faz a apropriação do romantismo e de toda a tradição de brasilidade.

Então é sintomático dessa “coincidência temporal” tais palavras de Mário de

Andrade sobre o romantismo na sua conferência de 1942:

Esta necessidade espiritual [revolucionária], que ultrapassa a literatura estética, é

que diferença fundamentalmente Romantismo e Modernismo, das outras escolas de

artes brasileiras (...) Ora aquela base humana e popular das pesquisas estéticas é

facílimo encontrar no Romantismo, que chegou mesmo a retornar coletivamente às

fontes do povo e, a bem dizer, criou a ciência do folclore. (Andrade, 1975, p. 250)

Então, tudo depende de um denominador comum que ligue os tempos

diferentes, de uma continuidade, uma “linha inalterável” (como o quer o próprio

Mário). Está então flagrante a mesma “linha” em Antonio Candido, quando este

diferencia as manifestações literárias da literatura, “considerada aqui como um

sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as

notas dominantes duma fase.” (Mello e Souza, 2007, p. 25). Ponto crítico:

tradição invariável (o supra-histórico de Nietzsche) e tradição mutável. Como

reconciliar? Não é preciso, nunca deve ser. O contraste nos distrai enquanto que o

sentido por trás das contradições aparentes está na segunda “maneira” com que o

tempo trata a obra: “empresta-lhe uma consistência que o torna capaz de

impressionar sensibilidades de tempos muitos diversos.”

“Consistência”, feição, esqueleto que nos olha recém-nascidos, que detém

certa beleza que extasia-nos por sua sincera beleza, vamos dizer, por sua empatia;

a empatia é incontornável, a fluidez do tempo não desgasta a imagem, sua nossa

semelhança. A identidade com coisas tão velhas impressiona e conquista porque

atingiu nosso sentimento. A “sensibilidade histórica” é atemporal, aistórica por ser

histórica.

Convém aqui fazer um diálogo com talvez o maior modernista que

problematizou a tradição contra a paixão crítica moderna, e perceber as nuanças

com que o modernismo tinha que lidar. Escreve-nos T. S. Eliot:

O sentido histórico envolve uma percepção, não só da passadez do passado, mas de

sua presença; o sentido histórico compele um homem a escrever não apenas com

sua própria geração em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura

da Europa desde Homero e dentro dele a toda a literatura de seu país tem uma

existência simultânea e compõe uma ordem simultânea; este sentido histórico, que

é um sentido de atemporal, assim como do temporal e do atemporal e do temporal

207

em conjunto é o que torna um escritor tradicional. E é, ao mesmo tempo, o que faz

um escritor mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria

contemporaneidade. (Eliot, 1932, p. 14. Grifos meus)

Ser contemporâneo de si mesmo, como escrevera certa vez o poeta Murilo

Mendes, é para T. S. Eliot ser contemporâneo de um tempo atemporal, de uma

história aistórica. A busca do presente é a busca de algo que não é presente nem

mesmo passado porque não tem definição passível de medição cronológica,

apenas de apreensão sensitiva, mas de um sentido que no fim das contas nos

impede de nos aventurarmos no próprio presente, no contemporâneo, já que ele é

dado de antemão em direção ao coração de quem viver e sentir o agora; neste

sentido, nem mesmo é preciso compelir a escrever com o sentimento, sendo que,

escrevendo mesmo com a matéria do novo ou do velho, ele vai tratar de um

contemporâneo de antigamente ou de um contemporâneo de agora. O “sentido

histórico” de Eliot anula-se, ou antes, é apenas “sentido”, é apenas tradição, uma

continuação infalível, sendo que fugir para qualquer tipo de forma, clássica ou

moderna, é permanecer num mesmo território, livre da consciência de mudança e

na superficialidade do histórico, da diferença de tempos. O pleonasmo do

argumento é o exemplo eminente do pleonasmo do tempo. A tradição — o tempo

verdadeiro — tem sempre a última aparência do momento que morreu, e nós

“modernos” e iludidos que somos, não sabemos que ao olhar, sentir ou

impressionarmo-nos por sua presença, estamos “escrevendo” nós mesmos, como

podemos ver na tradição Brasil. Para o modernista cristão inglês, se o antigo não

deve mais existir, tão menos o moderno permanecerá ileso.

Essa continuidade pela continuidade, essa “ordem simultânea” que vagueia

sobre todos os tempos parece se aproximar da supra-história nietzscheana,

fantasma eterno caminhante nos jardins da história. Nietzsche também apontava

uma “simultaneidade intemporal” de indivíduos “que formam uma espécie de

ponte sobre a torrente do devir”, cabendo à história mediar esse elevado “diálogo

entre os espíritos”. Assim, a grandeza da humanidade pode sim ser uma

construção ao longo da história, apesar de não histórica, mas feita de modo

concatenado, aos saltos.

A “sensibilidade de tempos diversos” de Drummond e a “ordem

simultânea” de Eliot parecem se completar. Apenas parecem. Enquanto o

americano insistentemente tentar refutar qualquer sinal de mutabilidade, chegando

208

a anular o tempo compartimentado “em nome” da tradição pela tradição, da

tautologia, Drummond ainda se compraz na concepção do tempo histórico porque

o trabalho capaz de impressionar a sensibilidade dos tempos, capaz de tocar o

coração da atualidade que o recebe, é também, apesar do que vimos

anteriormente, tarefa ativa do presente, afinal, um sentimento que viaja absoluto,

transgredindo qualquer fronteira cronológica, explodindo as dimensões do espaço

temporal, chega até nós, bate em nossa porta insistentemente e podemos até abri-

la, mas compete ao nosso coração arrebatá-lo, ao nosso presente, senti-lo e

impressionarmo-nos.

Retomando o artigo de Drummond, ao afirmar a inexistência da tradição, ele

foi impassível, insensível, não lhe agradou o espetáculo, aparentemente bateu a

porta na cara da tradição, mas nem por isso deixou de abri-la para verificar a sua

“consistência”, sua face.

Ao tratar antes da onipotência de um tempo artesão a talhar a tradição, o

crítico mineiro esboçou uma premissa que poderia ter sua conclusão depois da

constatação da “sensibilidade de tempos diversos”, mas ficou apenas na premissa.

Na verdade, a conclusão era clara: por detrás da especulação do trabalho do tempo

ou da significação dos homens na tradição, fica a certeza de que esta é uma

avaliação, interpretação; e sendo interpretação ela, a tradição, só pode ser

analisada como uma forma de tradução, porque ela se torna outra, vibrando o eco

na abóbada de cada século: como escreve Drummond, “morreu um pouco e

tornou a nascer um pouco. É um outro livro de um outro autor.” Continua porque

morre também. Mas é uma tradução nos sentido exposto por Karl Marx e

Friedrich Engels, no caso da releitura que os alemães fizeram do socialismo

francês56

:

O trabalho exclusivo dos literatos alemães foi o de pôr em uníssono as novas ideias

francesas e a sua velha consciência filosófica, ou melhor, apropriar-se das ideias

francesas partindo do próprio ponto de vista filosófico. Apropriaram-se dessas

ideias pela tradução, como se faz com uma língua estrangeira (...) Por exemplo, por

debaixo da crítica francesa ao regime do dinheiro, escreveram: ‘Alienação da

natureza humana’, debaixo da crítica francesa ao Estado burguês, escreveram:

‘Abolição do reino da universalidade abstrata’ e assim por diante. (Marx & Engels,

1993, p. 92)

56

Aqui seguimos a ideia proposta por Flora Süssekind (1984).

209

A releitura da ideia original, da obra original, na direção de um novo sentido

contemporâneo, que satisfaça as novas necessidades do momento, é o que então

fazia Drummond. E é neste mesmo sentido que o modernismo reelaborava suas

concepções de literatura nacional e de seus precursores. Nesta tradução retroativa,

principalmente a de “desrecalque”, elementos novos são reinterpretados e

traduzidos na predileção das demandas atuais57

. Como escreve Flora Süssekind

sobre a ideologia estética do naturalismo:

A construção de uma história literária, como a de uma árvore genealógica, se faz

com o ocultamento das diferenças e descontinuidades. (...) Nada que coloque em

dúvida a caracterização de tal literatura como um processo contínuo e evolucionista

de aperfeiçoamento (...) De um pai para filho, de um escritor a outro, de um

período a outro, e espera-se que se repita a tradição transmitida senão

hereditariamente, ao menos literariamente. (...) Em eco, repetem-se

proverbialmente. (Süssekind, 1984, p. 33-34)

Sendo uma seleção, uma avaliação, o olhar que cria uma tradição distingue

o que lhe convier do passado. Os tempos se reconciliam, reverberam a força do

novo, este sempre um problema antigo, se o motivo maior for o Brasil do futuro,

pois o Brasil é meta-história, telos: uma filosofia da história, determinismo

genuíno, lei de desenvolvimento histórico inelutável, como escreve Roberto

Ventura:

A história literária brasileira, traz, desde os primeiros esboços no romantismo, a

definição de uma entidade abstrata corporificada nas obras, criações individuais

que refletiriam um “caráter” ou “espírito” coletivo: o ser nacional. Busca-se uma

essência, situada em uma teleologia inscrita na ordem natural das coisas. A história

literária se torna sinônimo mais ou menos difuso desse ser, com a função de

apresentar a identidade coletiva do povo brasileiro, cuja origem é remetida à

formação quase mítica de uma ‘tradição’ nacional. (Ventura, 1991, p.166)

Nisto reside a “originalidade” brasileira, e a inteligência de tanto pensar na

nacionalidade, esqueceu-se deste quinhão, pura metafísica da sensibilidade, tão

distraídos puderam estar, que mesmo vendo-se numa história não sabiam que a

história estava neles, impregnado do mofo dos antigos, mofo tão novo quanto as

57

Assim é que Mário de Andrade escreveria, por exemplo, sobre Aleijadinho, relendo-o: “Mas

abrasileirando a coisa lusa, lhe dando graça, delicadeza e dengue na arquitetura, por outro lado,

mestiço, ele vagava no mundo. Ele reinventava o mundo. O Aleijadinho lembra tudo! Evoca os

primitivos itálicos, bosqueja a Renascença, se afunda no gótico, quase francês por vezes, muito

germânico, quase sempre, espanhol no realismo místico.” ANDRADE, Mário. O Aleijadinho e

Álvares de Azevedo. Rio de Janeiro: Revista Acadêmica editora, 1935. P. 65.

210

recentes teorias vindas das vanguardas europeias porque a seleção do passado vem

junto à seleção do presente, das ideias atuais que não semeiam arbitrariamente em

quaisquer terras, traduzidas em idioma local para poderem falar com aquela voz

que encontramos aqui “desde sempre”. A inteligência brasileira ultrapassou a

vulgar disputa entre modernos e antigos porque nossos novos estão condenados a

ser velhos de espírito. Mas ressuscitamos a ideia nacional, enquanto morrem os

homens e os tempos: a tradição brasilianista supera os tempos, flutua acima da

história, zomba da mudança, é extemporânea em qualquer atualidade, pode morrer

com uma geração mas a próxima vestirá a mesma sobrecasaca. Mais ainda: como

tradução do que está à disposição, a tradição não deve ser vinculada meramente ao

campo da produção, menos do tempo como tampouco do homem, mas ela se

insere sim no campo da recepção. O passado e seus homens produzem, mas nós e

a crítica, ao avaliarmos e distinguirmos, também produzimos um modo de

recepção.

Em uma entrevista bem posterior, na década de 1980, Drummond dá bem

essa dimensão da tradição literária:

Nunca deixei de nutrir certo respeito-ternurinha pelos mais velhos que tinham feito

o mesmo que eu tentava fazer. Podia não ser muito afeiçoado ao que escreveram,

mas eram de certo modo meus tios, pessoas a quem a gente dispensa consideração,

mesmo não indo com a cara deles. De fato, se não fossem esses tios literários, que

mal ou bem nos transmitem o fio de uma tradição que vem de longe, não haveria

literatura. Ninguém a inventaria. (Andrade, 2003, p. 1214)

Nem por isso Drummond deixa de notar no artigo por nós analisado a

morbidez da “crítica” diante do “mosaico fantasista e caprichoso”, ainda que

reconhecendo-a como tal. É preciso mais que isso. Se damo-nos ao trabalho de

enfrentá-la, abrir a porta para encarar a face disforme, mas sendo ainda assim uma

face, um conjunto do “atemporal, assim como do temporal e do atemporal e do

temporal” eliotiano, se produzimos tal receptividade, avaliando-a e assim

identificando-a e batizando-a, a tarefa da crítica não deveria acabar aí. Na

passagem seguinte, o crítico abre o coração da crítica verdadeira:

Temos mais que direito de desrespeitar essa tradição: temos o imperioso dever. E

só assim teremos dessa matéria morta e pegajosa dos séculos uma argila dúctil, que

sirva às nossas criações. (idem, 1925, p. 32)

211

“Romper” com o passado, “desrespeitar” a tradição. Ali sem refutação, aqui

sem escrúpulos de qualquer ordem. É claro que nem tudo que é passado é

tradição; é preciso separar o que sobrou como silêncio do que sobrou como voz —

aquela mesma voz de sempre. Drummond vacila ao olhar para trás porque, em

nome de um projeto maior, ele deverá respeitar certo passado que lhe interessa,

novamente, vale a pena repetir, o de uma tradição de brasilidade. Por outro lado, a

“tradição” escolhida a dedo (e o crítico ao eleger apenas “a” e não “uma” das

tradições a ser negada está sendo eminentemente político, posto que tem

consciência que a tradição é vária e “renovável” como ele nota anteriormente)

será a tradição crítica desta brasilidade, a crítica canonizada apesar e por causa de

sua perturbação que afrontou, ironicamente por sua “independência espiritual”, o

Brasil da tradição, a tradição do Brasil — a tradição chamada Machado de Assis.

Exige-se sacrifício pessoal, o mineiro mesmo o confessa no artigo, posto ser o

autor de Brás Cubas um dos seus maiores mestres: a Causa pede a prova de

fidelidade. Um dos sacrifícios que Mário de Andrade exigira de Drummond em

nome do ideal brasileiro e que antes da conversão ele, o mineiro, refutara em carta

de 22 de novembro de 1924 respondendo:

Enorme sacrifício; ainda bem que você o reconhece! Aí o lado trágico do caso. É

um sacrifício a fio, desaprovado pela razão (como todo sacrifício). Confesso-lhe

que não encontro no cérebro nenhum raciocínio em apoio à minha atitude. (C&M,

2002, p. 59)

Tragédias que seriam agora postas na ordem do dia.

Drummond escancara sua “corrupção” antes indesejada, põe os pingos nos

is: “a” tradição, mesmo a desrespeitada, deve ser entregue ao serviço dos

contemporâneos. O vacilo dentro do vacilo. O “desrespeito” pode ser favorável à

uma conversão da tradição indesejada; absorvida, ela terá um sentido mais ou

menos viável à “criação”. Se Eliot não se dá a esse trabalho porque existe uma só

“ordem simultânea” e conseguintemente nada pode ser negado, o mineiro, ao abrir

a porta sabe que aquela “sensibilidade” da tradição, se moldada à sua “matéria

dúctil”, poderá ser útil. No começo de sua argumentação era o tempo que se

inspirava “caprichosamente” no trabalho de produzir a tradição, agora o crítico

desce ao chão e se adianta ao que são as condições reais do trato: são os homens

que moldam e talham esta matéria argilosa a seu bem entender; sendo ela

212

renovável, não será tão menos intocável (retira sua aura) e maleável (esquece o

argumento moral). A corrupção da tradição então é a condição da “renovação”.

6.2.3. O roçar dos mantos

Drummond passa a afinar sua crítica, historicizando-a. Do desrespeito à

tradição ele conclui:

Recolhamos o seu espólio sem excesso de veneração; temos que proceder a um

grave inventário de suas pretendidas riquezas. O presente não pode estar a sofrer os

contínuos bluffs do passado. Seremos duramente julgados amanhã, porque é cada

vez maior esse diabólico senso crítico que distingue o homem e o moderno.

(Andrade, 1925, p. 32-33)

O movimento de uma continuidade já é caso acertado, é patente que

deveremos tratar o que parecia intratável, se o que sobrou serviu de herança não

custa recebê-lo, é no ato da recepção que a tradição, na sua condição de que não

há algo que não ela mesma, poderá ser “corrompida” — sem nenhuma

“veneração” ou “impressão”, podendo ser vista apenas como espólio. Os bens

podem ficar conquanto os antigos donos abandonem seu encargo de “fantasmas

do passado”. Ainda assim, os objetos têm que passar pelo crivo, é preciso avaliar

seu lastro para que sua “matéria dúctil” possa ser útil à criação, à originalidade

dos novos, fator único de nossa ausência de recusa. Entretanto, o capricho que

agora parece nosso e não do tempo, esconde uma condição inalterável da

modernidade: a necessidade de olhar o antigo (como vimos com David Harvey) e,

pelo contraste, saber-se outro, novo; é a ação simples e vulgar da alteridade, da

diferenciação; a dependência é de mão dupla (porque o motivo era um só, o da

brasilidade), mesmo que disfarçada em “independências espirituais” do presente

de lado ou de “fantasmas” do passado do outro.

O “espólio” é que deve ser, à sua maneira, moldado e “inventariado”,

digno de reconciliação, ou seja, se podemos manter o diálogo ou pelo menos o

olhar sobre a tradição, apenas sob a condição de espólio, essa concessão toma

validade. A tradição vai aos poucos sendo reabilitada, pelo menos a que

conhecemos, da qual Drummond também tenta se dobrar. Alistamento, separação,

discriminação, quantificação, qualificação — tal material, se sobreviver a tal

213

avaliação, que antes era outorgado ao tempo “caprichoso”, mas sustentado agora

por critérios críticos de demandas atuais, superficialmente independentes, se,

enfim, for provada sua utilidade, sua “pretendida riqueza”, então não tem por que

recusá-la: a nuance entre rejeição e ponderação irá depender de sua utilidade, por

isso ali se rompe, aqui se inventaria, se reconquista. Nesse amálgama entre o

vacilo e a atitude extremista, nessa crítica estrábica, não deveria faltar a

contradição, e nem terá importância se no princípio Drummond afirma não ser da

natureza da tradição a sua catalogação e que, nesta altura, já apela para o

inventariamento do seu “espólio”.

Ao analisar o famoso artigo de Machado de Assis, “A nova geração”, Abel

Baptista, dá um resumo do que seria a condição do conceito de “pecúlio” usado

pelo autor de Americanas:

Nestes termos, se a emergência do novo é inseparável da memória do antigo, isso

deve-se também ao fato de a memória do antigo se estruturar na dependência do

novo emergente. O ‘pecúlio’, neste sentido, não representa a resistência do passado

aos modernos: é uma componente indispensável da própria condição moderna.

(Baptista, 2003, p. 88)

Aqui em Drummond, no entanto, o espólio não é apenas o que “entra e

fica”, como diz Machado sobre o seu “pecúlio”, mas o que serve de apoio à

tradição brasileira. Quando aconselha que a tarefa da crítica é “proceder a um

grave inventário” do “espólio”, Drummond abre novamente espaço para a noção

de uma tradução da tradição, sendo que a interpretação, ao dar prova ou não das

“pretendidas riquezas”, seria o único ato sensível que ligaria o objeto de

inventariação com aquele que a inventaria. A ”sensibilidade” da tradição que

anteriormente “impressionava”, que vinha de um antes e permanecia numa

linearidade infinita, aqui é substituída pelo sentimento crítico que vai em direção

oposta, à cata do que lhe interessa — a relação é essencialmente interesseira senão

não valeria a empresa —, e recompõe o que ele separou e avaliou, no sentido de

dar um uso conveniente à nova criação; o utilitarismo, como se viu, nunca foi

velado. Seria a paixão crítica de que nos fala Octávio Paz (1984)? Seria o impulso

moderno?

A condição é dúbia, e nem por isso, ou por causa disso, deixa de ser

moderna. Aquela modernidade duplamente ambígua.

214

A razão de ser da argumentação, sendo em si uma tentativa de distinção

entre os velhos e os novos, já está inclusa no debate moderno e modernista. É

preciso a identificação daquilo que se nega para ser negado, lógica simplista, diga-

se de passagem, mas crucial para qualquer movimento que se pretenda novo

porque o adjetivo só existe por exclusão: ele não é o “recente” tampouco o

“melhor”, uma “arte recente” ou uma “sociedade melhor” oferecem a imagem

revolucionária que o “novo” abriga. Os “desrespeitadores” assim o são somente

porque necessitam de um objeto a ser “desrespeitado”, os inventariantes seriam

inúteis sem os bens a administrar. Assim, Drummond não se desvincula desta

condição primaria moderna: a crítica, para interpretar, precisa reconhecer a

tradição, mesmo que em sua forma retalhada, esquartejada, em estado de

“espólio”. Nessa acepção a tradição é incontornável, na há como negar-lhe

qualquer inexistência e nem ignorá-la, não vale, portanto, ser falso ou

verdadeiramente tradicionalista, ela está aí — no momento mesmo em que a

domamos, ela parece dotada de autonomia, de um poder de insistência, ao menos.

A tensão da premissa é moderna, portanto, só que ela deságua por dois veios

que se separam e se encontram ao longo de um caminho ruidoso, com um só fim.

Sendo aceita no contraste visual — olhar o decrépito esqueleto para o

reconhecimento do próprio vigor da juventude — a tradição eleita para o tapa do

qual nós exigimos como oferta pelo seu “reconhecimento” (só o tapa imprime no

passado o hematoma que dá visibilidade à tradição) não deixa de ser uma afronta

à também pretensa onipotência do novo: o moderno adjetivado é intransitivo,

finge unilateralmente à exigência e à servidão do velho, quando na verdade só

pode existir na companhia deste, mesmo que seja usualmente como seu antônimo,

seja no dicionário como no movimento histórico. É interessante como essa

condição sobreviveu nas vanguardas, como podemos perceber nas práticas

modernas aliadas às filosofias e éticas antigas, como bem escreve Antoine

Compagnon sobre Malevitch, por exemplo:

Contentamo-nos em insistir ainda na coincidência de uma pintura decisiva na

história e de uma filosofia ultrapassada [a influência do niilismo no pintor]

servindo-lhe de pretexto. Não se encontraria a mesma mistura, a mesma defasagem

ou a mesma tensão na maioria dos artistas contemporâneos, verdadeiramente

inovadores, em Proust, Joyce, Eliot, Pound, Kafka? A nova arte não anda sem

arcaísmo. É assim que, em Dom Quixote, reagindo contra o conformismo do

215

romance de cavalaria, Cervantes deu origem ao romance moderno. (Compagnon,

2010, p. 76-77)

No entanto, por outro lado, a aceitação da tradição não se traduz na sua

resistência justamente por sua tradução, sua interpretação; na verdade, o que

parece ser afronta, resistência, fantasmagoria da tradição, na aparência

incondicional, é apenas uma condição para sua “fantochização” pelo desrespeitoso

tribunal da crítica moderna — como um bem ela só é de agrado porque é

espoliada, saqueada pelos bárbaros modernos que somos: anular a anulação, negar

a negação, negar o moderno para ser moderno, negar a si mesmo. A alteridade e a

diferença, se irrevogáveis, estão, como modernos, condenados a se desfazerem

por completo em infinitos outros, em incontáveis novos. Drummond quer ambos,

embora saiba, como moderno e artista modernista, que também será superado,

será um “outros de antes”. Mas o que vale é a moeda do atual (tal nossa

modernidade), na luta pelo agora, por um projeto único que, se não é anterior à

modernidade é ao menos tão infinita se comparada à finitude das gerações, deverá

permanecer, posto que é o sentido maior tanto seu quanto dos “desrespeitados”

filtrados; tradição que se renova e se nega por ser ela mesma, a interpretar

“fantasmas” e “fantoches”, dois papéis, antes sentimento do que história, que

compelem os homens a escrever com sua geração em seus ossos e com uma

“ordem simultânea” impressa na pele, alteridade na superfície de uma identidade,

de uma tradição — enfim, de uma tradição de brasilidade. Que é a identidade

senão entender-se apenas com o que nos convém, com o que basta ao seu projeto,

como quer Drummond? Se um dia ele será superado, um descarte na lista de

inventário ou uma madeira a ser talhada, não tem importância talvez: ele está

seguro de que esse trabalho, mesmo regido por qualquer “alteridade” e

“diferença” ou geração que vier, será pautado por um único princípio, em uma

única identidade, pronta a desaguar num único e só futuro, uma só história, um só

oceano, oceano imenso chamado Brasil.

Este panorama que Drummond nos mostra — de uma tradição que não é

aquela tradição (ruptura) por ser a tradição (uma só voz) de uma só tradição

(Brasil) — convida qualquer análise da modernidade brasileira a se retirar, pois é

trabalho inútil, talvez, não porque não sejamos modernos, vemos o contrário, mas

pelo fato de que toda a diferença é uma só unidade, a paixão crítica, a diferença

216

outra se transforma numa diferença mesma; o sentido de qualquer “espólio” é

enriquecer uma ideia, e se essa riqueza aumenta irremediavelmente, a inteligência

“independente de espírito” segue caminho proporcionalmente inverso, empobrece,

recua em sua aparência de originalidade.

A discussão se alimenta da modernidade — caça-lhe, prende ao cativeiro,

degusta todas as forças e virtudes guerreiras para depois vomitá-la, criando uma

substância que é mistura de sulcos internos e proteínas estrangeiras a seu corpo,

gosma verde e amarela —, para fins externos a ela mesma: inventaria apenas o

que lhe pode servir como “espólio”, e assim, pode dar ao “fantasma” moderno o

mesmo tratamento dado à tradição, colhe apenas o que convém de sua “pretendida

riqueza”, e, portanto, chega à atitude extrema de suprimir até a autoridade do

moderno, de modo que o próprio Drummond anula seu “desrespeito”, como

também ele se faz necessário porque será no futuro um objeto de crítica e razão de

ser de outro “espólio” posterior de caráter... Brasileiro! Modernofagia. Por isso

parecemos mais modernos do que qualquer modernidade.

Se a tradição da transformação, a continuidade da descontinuidade aponta os

pés para o infinito, pois só neste significado é que repousa o sentido do futuro, é a

condição moderna por excelência, nem tanto o somos. É como sentir a dor de uma

perna amputada: apenas sente-se com a alma e com a carne disponível, não com

uma carne que deveria sentir. A fastigiosa caça da modernidade só faz sentido se o

vômito for verde e amarelo, do contrário é trabalho vão; enquanto não se acha tal

substância autêntica, a aventura moderna é necessária.

A mudança numa só direção não exclui a acumulação, mas só neste sentido

pode se dar ao luxo de distinguir antes e depois, velho e novo, todos sobre o

mesmo terreno. Drummond fala de “riqueza” pretendida do passado, mas não vai

de encontro à concepção de um montante cultural que tenha seu valor para o

sortudo que está no atual, o crivo do “inventário” serve tão-só para distinguir

positiva ou negativamente tal lastro cultural. Aí, no entanto, a “riqueza” tem uma

escalada vertical e não horizontal, não é um amontoado arbitrário, é o que há de

comum entre todas as tradições que o tempo, ou melhor, os homens foram

produzindo, recebendo e deixando de herança para quem os receber; se a

avaliação cabe a nós, intransigentes contemporâneos, é claro que ficaremos

apenas com o que é de nosso interesse, o que causar empatia com nosso projeto

presente, a questão é que havia algo de comum entre a “sensibilidade

217

impressionante” que vinha de lá, da tradição, e o sentimento de empatia que vai de

cá, da crítica modernista. Drummond talvez não percebesse que ao repartir os

bens para uma só “riqueza” estava reprisando o mesmo ritual que a geração

inventariada por ele, embora não se iludisse que no futuro isso era mais que certo,

devido ao “diabólico senso crítico que distingue o homem e o moderno.” Se para

Paz (1984) a tradição é ruptura, aqui a tradição (continuidade) é tradição (Brasil),

a tautologia insiste, a modernidade recua. A modernidade resiste.

6.2.4. O mesmo assunto

Continuidade da descontinuidade do igual, repetição na diferenciação, não

diferenciação repetitiva. O novo não se faz no presente, a busca do atual só carece

do antigo porque o céu dos problemas deste é o mesmo que paira sobre as nossas

cabeças. O presente não é matéria de criação — reconhece Drummond que não é

possível ser original se a demanda literária é a mesma; é do “espólio” avaliado, da

tradição, “matéria morta e pegajosa”, moldada e inventariada que deve partir a

inspiração do novo, que já não é mais original. Depurou-se então o termo: “o

novo”, antes forma de contraste, oposição, diferença, agora é harmonia,

semelhança, identidade. Rompe com o passado sim, não menos o desrespeito para

com a tradição; mas há passados e passados, tradições e tradições, fica com uns

desaparecem outros, tudo dependerá do inventariante, i.e., do crítico do presente,

do moderno. Neste sentido — e apenas neste —, Drummond não destoa muito da

concepção de “sentido histórico” de T. S. Eliot anteriormente citada. Se o

“espólio” feito em todas as gerações precedentes tinha como único motivo

inventariar uma tradição literária brasileira, o escritor moderno carrega em si (e o

Drummond recém-convertido nacionalista não se abstém disto) aquela “ordem

simultânea” que o faz escrever tanto com a comunidade de sua geração quanto

com um sentimento em sua alma. Assim, ao que o mineiro pensa ser a superação

da tradição em estado bruto, apreende-se um conceito que denota a própria

tradição — a continuidade — na ideia de “espólio”; por isso, se não lhe dá mais

uma aura, uma autoridade, põe-lhe um decoro. Neste sentido, Drummond é

novamente mais moderno que a modernidade, brinca com ela, questiona-a com

seus próprios termos, procura a brecha e por ela explode a diferença, é, portanto,

218

moderno porque exterior a esta na medida em que a anula em seu próprio

território. Em jogo, a criação que atinja a todos, absoluta, homogênea, sem

nenhum contraste interno. Para isso sacrifícios são necessários:

Que cada um de nós faça o íntimo e ignorado sacrifício de suas predileções, e

queime silenciosamente seus ídolos quando perceber que estes ídolos e suas obras

são um entrave à renovação da obra geral. (Andrade, 1925, p. 33)

Seria inevitável que a “obra geral” entrasse em desacordo com a

“predileção” pessoal — daí que o sacrifício deve ser tão “renovável” quanto a

tradição —, que é mais “íntimo”, mais privado que um ato público, embora

Drummond faça o favor de expor sua fogueira num periódico. Aqui novamente a

atitude extremista mistura-se com um pesar, pois atirar à fogueira os “ídolos” cabe

a cada um, mas “silenciosamente”, sem qualquer tipo de alarido passível de

trauma, afinal é uma questão “íntima”, e sendo do sentimento, do coração, é

preciso o mínimo de respeito; outra reviravolta: o “desrespeito” obrigatório — é

um dever moderno — e “imperioso”, afobado e inconsequente, aqui está envolto

em uma atmosfera de deferência; para cremar o corpo é preciso velá-lo, certo de

que o “ídolo” não é um indigente, tendo então direito a certa cerimônia, tudo

porque é um sacrifício pessoal, e Drummond mais do que qualquer um sabe que

isso dói um pouco. É o que ele relembra bem mais tarde, com relação ao próprio

Machado de Assis:

Deste não me separaria nunca, embora vez por outra lhe tenha feito umas má-

criações. Justifico-me: amor nenhum dispensa uma gota de ácido. É mesmo o sinal

menos que prova, pela insignificância e transitoriedade, a grandeza do sinal mais.

Se me derem Machado na tal ilha deserta, estou satisfeito; o resto que se dane,

embora o resto seja tanta coisa amorável. (Andrade, 2003, p. 1217-1218)

Os “ídolos”, entretanto, não estão no “espólio” inventariado; depois da

avaliação, eles são comprovadamente aqueles de “pretendidas riquezas”, não-

eleitos, profanadores, degradados, devem ser portanto denunciados, admoestados

e condenados finalmente a arder em chamas. Como bem nos diz Flora Süssekind

sobre a condenação de Sílvio Romero ao mesmo Machado de Assis:

Se não repete a nacionalidade, tal como a define Sílvio Romero, Machado torna-se

passível de crítica. (...) Ao fragmentar alguns de seus sustentáculos com a ironia,

resta-lhe uma dupla condenação. Machado parece, como o pequeno Johann, usar

219

sua pena para, com uma linha dupla, fraturar o ‘instinto de nacionalidade’

dominante na ficção brasileira. Ruptura que não o deixa sem a punição de torná-lo

sem ‘filhos’ ou ‘seguidores’. Estéril como Aires e Bentinho, permanece

estigmatizado por inexplicável isolamento de quem, numa literatura que se exige

documental, ironicamente pincela fragmentos. (Süssekind, 1984, p. 30-32)

Neste tratamento o esquecimento da tradição não aceita, que se

transubstancia na imagem dos “ídolos”, é tarefa dos novos; a verdadeira afronta

não vem da tradição maleável e sim da que não se ajusta a uma condição que nos

interessa, a nós contemporâneos, justamente daquela que nos tornaria mais

modernos, pois ela demonstra o contraste interno, a alteridade, a consciência de

uma variedade heterogênea, como em Machado de Assis. Negando-a em nome de

uma modernidade — do “desrespeito” à uma autoridade de antigamente — nega-

se a negação, o mesmo movimento que faz ouvir a voz de um, que é sempre uma

voz, tapa simultaneamente a boca de outros, que são a voz discordante, disforme,

inconveniente e, no mesmo sentido, perturbadora.

A tradição filtrada, “inventariada”, perpetua a voz única, a brasilianistica em

literatura, graças a este desacordo que será tão “renovável” quanto qualquer

tradição, i.e., como as gerações precedentes levaram ao fogo os “ídolos”

discordantes, as futuras também perpetuarão o rito. Mas, ao contrário do que

poderia parecer, esta desarmonia não chega a ser ruptura, daí que não se pode

levar a considerá-la eminentemente moderna, já que é o desacordo de um mesmo

problema, pauta as mesmas questões seguidas das mesmas argumentações, sendo

que a voz que discorda ainda assim põe em consideração o projeto brasileiro — e

se ele deve ser eternamente vencido pela voz hegemônica, isso não o torna uma

“vítima” da “amodernidade” em território brasileiro. Os filhos desgarrados,

bastardos, deserdados, para lembrar as associações de Flora Süssekind (1984),

ainda que expulsos de casa, tinham o sangue de seus pais correndo em suas veias,

e, conseguintemente, falando de modo “naturalista”, estavam condenados ao

mesmo “vício”. Mais particularmente podemos percebê-lo em Oswald de

Andrade, que, apesar de um romance extremamente experimental na década de

1920, será o primeiro a encontrar a tradição da brasilidade como saída para o

sucesso do modernismo.

Drummond quer que saibamos da reflexibilidade, da racionalidade aguda de

sua proposta; passa certo ar de segurança e responsabilidade, dá a entender, enfim,

para o leitor, a integridade da ação e, é claro, de seu projeto, projeto de toda uma

220

(várias) geração(ões), de todos que irão perpetrar a “obra geral” da literatura

brasileira, do seu sistema. Foram-se os tempos das provocações imprudentes, das

polêmicas de letralices formais, das semanas de pura ofensa e ousados berros, dos

“reformistas que gritam demais”, como ele mesmo escrevera a respeito dos

paulistas em um artigo de 1922 (apud Cançado, 1993, p. 95); agora é hora de

abraçar um projeto, é preciso a análise da realidade, o estudo comprometido com

uma disciplina austera, de reflexão e avaliação incorrigíveis, e as seguintes

polêmicas daí resultantes só levariam a mais estudo e levantamento de

documentação, sendo pois de “interesse”. Neste sentido é que se entende o caso

discordante entre Mário e Oswald, como escrevera Eduardo Jardim, de Moraes,

entre a visão analítica da cultura daquele e a visão intuitiva e sintética da

nacionalidade deste último (Moraes, 1978, p. 124), assim como podemos perceber

o porquê da tomada de posição do nosso mineiro para o poeta de Paulicéia.

A reflexão previne que da queima não sobre um pouco de cinza dos

“ídolos”, cinza que possa ainda perturbar a “consciência moderna”. E como não

pensar também que o ato serenizado do qual o termo “silenciosamente” nos

remete não seja uma forma de ter a garantia do sucesso da depuração, sendo um

processo gradual, obtido aos poucos, já que a fogueira está no nosso íntimo e nada

se queima instantaneamente, ainda mais obras e homens de consideração

(novamente, a questão é pessoal, emotiva); por outro lado, nem mesmo é

inconcebível que no “respeito”, na ponderação, se esconda também certo

masoquismo de sentir cada segundo da gloriosa purgação...

Afinal, o maldito da literatura é um mal entendido porque “disse o mal”, o

indizível, o sacrilégio; é dado à atualidade o dever do “desrespeito”: os

desregrados serão intraduzíveis, ilegíveis, e daí para a deslegitimação é só um

pulo, um risco no material do inventário. Se eles ainda insistem na perturbação de

seu silêncio, na fantasmagorização, sendo que foram descartados para a

fantochização, é porque o silêncio é a linguagem possível para os que tiveram a

voz engolida pela boca do esquecimento. Entretanto, o maldito-mor não era

apenas o “ídolo” como também um deus, o maior deus da literatura brasileira.

Como isso pôde acontecer? Abel Baptista mostra-nos como Machado de Assis

fora aos poucos sendo absorvido pelos intérpretes interessados pela tradição

brasileira, tendo sua perturbação normalizada (Baptista, 2003, p. 35), mas

221

Drummond, intratável, resolveu mexer no morto e profaná-lo de vez. Assim ele

mostra a verdadeira face e o fim último de seu artigo:

Amo tal escritor patrício do século 19, pela magia irrepreensível de seu estilo e

pela genuína aristocracia do seu pensamento. Mas se considerar que este escritor é

um desvio no que deve seguir a mentalidade de meu país, e a aristocracia um

refinamento ainda impossível e indesejado, que devo fazer? A resposta é clara e

reta: repudiá-lo. Chamemos este escritor pelo nome: é o grande Machado de Assis.

Sua obra tem sido o cipoal em que se enredou e perdeu mais poderosa

individualidade, seduzida pela sutileza, pela perversidade profunda e ardilosa deste

romancista tão curioso e, ao cabo, tão monótono. (Andrade, 1925, p. 33)

O “sacrifício” íntimo como perda condicional inevitável só é dado ao

sentimento de ligação, de amor pelo objeto oferto; Drummond faz questão de

ressaltar, por necessidade de coerência, que quando falava de “predileções” não

estava lançando mão de um jogo superficial de retórica, antes do sacrifício do

“ídolo” vem o pesar do poeta, da pessoa que não deixa de entrever na fogueira um

pedaço de sua carne também. O reconhecimento do amor, por outras vias, dá a

patente de legitimidade: todo mártir tem direito ao respeito, e com o respeito vem

o exemplo; Drummond é prova de exemplaridade, faz de sua autofagia uma

mensagem, do ato heroico um reconhecimento coletivo — o leitor entende como

grandioso e glorioso o ato íntimo do crítico, sendo levado pela empatia a

considerá-lo.

O amor não resiste à falha do “objeto” amado, qualquer vestígio estranho à

imagem que dele construímos resulta numa alteração, o que pensávamos ser puro,

perfeito, porque assim o entediamos e víamos, agora foi corrompido, ele então se

torna estrangeiro, irreconhecível, não adere mais ao que sentíamos dele receber:

como a tradição, o amor também está circunscrito ao campo da recepção, quem

ama, quem traduz, sempre recebe uma imagem mas não se vê que é nele que a

imagem também é produzida, como se ele fosse a retina ao transformar a luz

exterior num conjunto de formas e cores dentro do cérebro. Sendo algo que não eu

ou uma continuação de mim, sendo outro, a alteridade da alteração é repudiada,

desprezada, degradada: seguinte à resposta do amante diante da Queda do amado,

o crítico também parte do amor para o ódio, o “repúdio”.

Machado de Assis transformou-se, portanto, num desvio no íntimo, na

predileção do mineiro, mas também o era na “mentalidade” de seu país — veja

que quem dá a avaliação é ele! O lado pessoal extrapola para um dado objetivo.

222

Neste sentido, seria interessante um estudo sobre a relação do modernismo com

Machado de Assis, figura para eles tão emblemática e que expunha suas

contradições. Podemos perceber essa relação de amor e ódio nestas palavras de

Mário de Andrade sobre o criador de Brás Cubas:

Amor que nasça de piedade, nem é amor e nem exalta, deprime. E sobra ainda

lembrar que certas desgraças, não o são exatamente. Nascem do nosso orgulho.

Nascem de uma certa espécie de pudor muito confundível com ambições falsas e

com respeito humano. Estou me referindo, por exemplo, a preconceitos de raça e

de classe. E aos artistas a que faltem esses dons de generosidade, a confiança na

vida e no homem, a esperança, me parece impossível amar a perfeição, a grandeza

da arte é insuficiente para que um culto se totalize tomando todas as forças do

crente. Sabes a diferença entre a caridade católica e o livre exame protestante?... A

um Machado de Assis só se pode cultuar protestantemente. (Andrade, 1972, p. 90)

A “magia irrepreensível” de Drummond, ao chocar-se com algo maior

merece o “repúdio”, a “aristocracia” genuína e a “falta de generosidade”, a

condenação da “impossibilidade”; enquanto o amor afirma, o ódio, em nome de

outro amor, nega. Nesse jogo, não menos contraditório quanto coerente, aqui nem

mesmo essas palavras são válidas, o vacilo parece perpétuo na medida em que os

inventários das gerações futuras também o serão, tudo envolto numa única

questão brasileira.

Chega a ser irônico um poeta cuja mais densa característica era o

individualismo ligar esse comportamento à “perversidade”, metaforizando tal

condição no termo “cipoal”, lugar de difícil acesso, e, talvez, seria esse o

significado da “impossibilidade” mencionada como inabitável e impraticável; os

termos “sutileza” e “ardilosa” “perversidade”, incorporam na nova imagem

alterada, o sentido da malícia dissimulada, do encanto sorrateiro premeditando

maus caminhos para a presa que a própria metáfora do “cipoal” faz crer, como um

bicho escondido no mato pronto a dar seu bote. Machado atrai olhares, leitores

inocentes, ingênuos imberbes, moços literatos desavisados: Machado, nesta

acusação de Drummond, é Capitu e seus olhos de ressaca, olhar oblíquo e

dissimulado, perverso e ardiloso; se na sua juventude tais olhos deram-lhe a

oportunidade e o encanto do primeiro beijo literário, mais tarde ele expôs a

confissão do adultério, denunciando a si mesmo. Do mesmo modo, como não

ligar Drummond a Bentinho: este para edificar seu amor rompe com a tradição,

quebra uma promessa santa, mas posteriormente, ao legitimar a separação na

223

acusação de adultério, estará assim reafirmando outra tradição, a do casamento,

isto é, as “corrupções” das tradições são modeladas ao interesse pontual, presente

(não seria esse um ato moderno?). Também o mineiro: em sua juventude e até

pouco tempo antes de tal artigo esbravejava impaciente contra qualquer vestígio

de tradição brasilianista em literatura, converte-se e agora o vemos como mais um

no contingente desta.

Mas então ele ainda estava em sua mocidade, e sendo assim, como ele

mesmo assevera ao fim do artigo, num tom digno mesmo de fecho de manifesto:

“É inútil acrescentar que temos razão: a razão está com a mocidade.” (Andrade,

1925, p. 33).

6.3. O gauche retomado

É interessante notar como Carlos Drummond de Andrade não conseguia

articular as questões modernistas presentes. Como vemos nesse artigo acima

analisado, a tradição é, por princípio, algo nefasto, mas aos poucos ele a reelabora

como algo a ser filtrado pois o seu objetivo também é sinalizar que estava de

acordo com a brasilidade do modernismo, e com isso, das reinterpretações da

tradição literária brasileira. Não por isso o ataque pessoal contra Machado de

Assis. Pode se dizer que o artigo inteiro é um ato falho, no sentido freudiano do

termo. Tudo porque ele acaba se revelando ainda independente, com a sede

daquela liberdade que tanto lutara em debates com Mário de Andrade. A questão

contraditória é que neste número de A revista o nacionalismo é o mote em quase

todos os artigos e no próprio editorial do qual Drummond fora o autor:

Será preciso dizer que temos um ideal? Ele se apoia no mais franco e decidido

nacionalismo. A confissão desse nacionalismo constitui o maior orgulho da nossa

geração, que não pratica a xenofobia nem o chauvinismo, e que, longe de repugnar

as correntes civilizadoras da Europa, intenta submeter o Brasil cada vez mais ao

seu influxo, sem quebra da nossa originalidade nacional. (idem, 1925, p. 12)

Este período final são palavras difíceis para o modernismo do segundo

momento. Nem Oswald, nem Plínio, muito menos Mário aceitariam tais

assertivas. No entanto, é estranho que este último não tenha se referido em suas

cartas ao mineiro a nenhum dos artigos do primeiro número da revista.

224

A contradição de Drummond fora outra vez flagrante alguns meses depois

da publicação de “A tradição em literatura”. No artigo “T’ai”, no jornal A Noite,

em dezembro de 1925, Carlos Drummond de Andrade retomava a questão e

vaticinava contra o respeito à tradição:

Que diabos posso descobrir senão exotismo numa besta que morreu há 500 anos e

nem sequer deixou nada pra mim? Podem dizer que a substância humana é a

mesma. Porém, cada época tem sua feição, e modela a seu jeito essa substância. Ai

é que está. Pra v. se acamaradar com um individuo tão recuado no tempo, precisa

emprestar-lhe sua inquietação de V., sua filosofia das coisas, seu modo de ver e de

pensar. Tem que recriá-lo, pois não. A prova é que não são nem um nem dois

escritores apoteosados por uma geração e pulverizados por outra. (idem, 1972, p.

259)

O artigo todo apresenta argumentos contra o respeito à tradição que os

modernistas tinham à época, afirmando que a corda do passado “está apertando

demais” e que “o melhor era cortá-la duma vez.” (idem, p. 258). Somente aqui

podemos perceber que, para o modernismo nacionalista, a volta à tradição

brasileira, que era o preceito de qualquer nacionalismo, apresentava suas brechas

incorrigíveis. E seria mesmo Drummond quem exploraria, mesmo que às vezes

não conscientemente, tal condição peculiar de tradicionalismo e modernismo

brasileiro. Tanto que é impossível prever que o autor dessa crítica acima tenha

sido o mesmo que escrevera o editorial Para os céticos cinco meses antes em que

afirmava: “Pugnamos pelo saneamento da tradição, que não pode continuar a ser o

túmulo das nossas ideias, mas antes a fonte generosa de que elas dimanem.” 58

(idem, 1925, p. 12. Grifos meus).

Mas agora Mário de Andrade não gostou do artigo “T’ai”, como ele mesmo

escreve a Drummond no Ano Bom de 1926:

Discordo de você sobre tradição. Isto é, não sei se discordo propriamente. Meia

coluna vi que não dava bem pra você esclarecer bem o conceito de tradição e o

emprego dela que repudiava. Você leu a minha entrevista n’A noite? Lá estabeleci

a maneira de tradição pra qual sou favorável. Que emprego e que aliás você

também emprega e nem que não queira há de sentir fatalmente, como prova o

“Sabará”. (C&M, 2002, p. 180)

58

É o que também afirma Gustavo Canedo no artigo A situação, também no primeiro número de A

revista, onde escreve: “É esta a forma de patriotismo, que à luz do amor à tradição, nos guia à

posteridade de um amor luminoso.” CANEDO, Gustavo. A situação In A revista. Belo Horizonte.

Ano 1. Vol. 1.

225

Drummond acaba não respondendo a crítica. Pelo último artigo analisado

bem se vê que Drummond não conseguira apreender bem o sentido de

tradicionalização de que fala Mário de Andrade em sua entrevista acima

mencionada.

Toda tentativa de modernização implica a passadistização da coisa que a gente quer

modernizar. Assim nos sujeitos indivíduos que tentam é natural, quase

imprescindível a psicologia do revoltado. A gente se revolta contra o que parou.

Isso perturba o indivíduo, faz ele praticar exageros, leviandades e perder

principalmente muito da posse de si mesmo (...) Numa revolta o importante é não

ficar marcando passo. A gente se excetua apenas o tempo necessário para

conquistar mais liberdade e sobretudo visão melhor da torrente humana. Mas

depois se reintegra na torrente, porque só mesmo dentro dela pode eficiente e

fecundo. Pois até já não se fala que muitos de nós, modernistas brasileiros, estamos

voltando para trás? Voltando nada! Não paramos na revolta, esse foi o jeito com

que acertamos a primeira pergunta do nosso exame. (...) Tradicionalizar o Brasil

consistirá em viver-lhe a realidade atual com a nossa sensibilidade tal como é e não

como a gente quer que ela seja, e referindo a esse presente nossos costumes, língua,

nosso destino e também nosso passado. (Andrade, 1983, p. 17-19)

Na verdade, em “T’ai” parece haver uma discordância com o “Sobre a

tradição em literatura”, devido à falta de ponderações que ele faz sobre a tradição.

Bem visto, é o Drummond gauche e crítico aflorando, ao mesmo tempo também

um crítico ingênuo e pouco afeito às nuanças do modernismo. É a mesma mente

pré-1924 que tenta perceber que a tradicionalização do modernismo parecia ser

um erro inelutável, mas ainda assim, criticável. Ao fim, ele se revelará inquieto

quanto à nacionalização do modernismo, mesmo produzindo críticas e poemas

que se esforcem por predispor uma necessidade de documentação da brasilidade.

O desinteresse pelo primitivismo ao menos continuava o mesmo, como ele

confessa ao amigo em carta de 07 de fevereiro de 1927:

Nunca tive a menor simpatia pelo índio, nunca recebi a menor sugestão dele. Nada

em mim e fora de mim me fala dele. Detesto O guarani, romance e ópera. E já que

estamos falando em índio, me explique aquela sua “Toada do pai do mato”, que fui

descobrir — era, imagine onde! — dentro duma conferência do senhor Arnaldo

Damasceno Vieira. É preciso admitir que sou ignorantíssimo em folclore indígena.

O poema me perturbou, mas não me comoveu. (C&M, 2002, p. 269)

A verdade é que Mário de Andrade não conseguira converter um espírito tão

livre e individualista como o de Drummond para a simpatia de um projeto que se

construía, para o mineiro, como um abandono total à sua criação intelectual e

226

literária, e ainda mais porque exigia uma disciplina quanto à pesquisa folclórica e

mitológica da qual pouco fora afeito. Mais do que isso, o modernismo de

Drummond ainda persistia num invólucro pouco purista quanto às reivindicações

modernistas de primeira fase, por exemplo. Com isso não queremos afirma o não-

modernismo crônico do poeta, seria ridículo não pensar na ironia, no poema-

piada, no verso livre, na síntese etc. das quais Drummond fora mestre; mas nele

permaneceram certos esforços que pareciam estar “ultrapassados”, como bem

mostra a crítica do mesmo Mário de Andrade ao primeiro livro de poemas do

nosso mineiro, Alguma poesia:

Tem mesmo em Carlos Drummond de Andrade um compromisso claro entre o

verso-livre e a metrificação. Os versos curtos assumem, na infinita maioria, função

de versos medidos, contendo noções geralmente completas e acentuações

tradicionais. (Andrade, 1972, p. 32).

Drummond, portanto, abandona o seu penumbrismo alvaromoreyrista, mas

continua num diálogo constante com soluções poéticas não-modernistas, daí que o

elegemos como a dobra do movimento, seu limite crítico.

É neste sentido que entendemos que Drummond sempre tivera em conta o

diálogo com a tradição literária, e nem por isso não seria tão surpreendente assim

a sua “virada classicista” de Claro Enigma. Esta questão já fora resolvida por

Vagner Camilo ao argumentar que o poeta gauche e solitário queria

por um lado, proteger-se da retórica alienante e estéril em que incorreu a geração

de 45 no seu intento de firmar o território autônomo da poesia, em resposta à

especialização do trabalho artístico então em curso; de outro, escapar ao

comprometimento político-partidário de muitos artistas participantes que se

sujeitaram aos dogmas jdanovistas. (Camilo, 2001, p. 96).

Mas é importante ressaltar o quanto a formação pré-modernista de

Drummond sobreviveu ao choque do movimento e à adesão junto aos

modernistas, que, anos mais tarde seria relativizada. Em entrevista a Zuenir

Ventura no ano de 1980, Drummond, ao ser perguntado sobre seu verdadeiro

papel de gauche na vida, responde:

Acho que fui. Porque aderi ao sistema de valores que dominava na minha época,

participei timidamente de um movimento de renovação literária, que não chegou a

227

ser política, nem social, nem econômica. Fiquei na minha toca. (Andrade, 1980, p.

8. Grifos meus)

Por fim, quando Carlos Drummond de Andrade publica Alguma poesia,

com poemas escritos ao longo da década de 1920, percebemos suas faces quanto

ao nacionalismo, principalmente em poemas como “Também já fui brasileiro”:

Eu também já fui brasileiro

moreno como vocês.

Ponteei viola, guiei forde

e aprendi na mesa dos bares

que o nacionalismo é uma virtude.

Mas há uma hora em que os bares se fecham

E todas as virtudes se negam.

(idem, 2002, p. 7)

E, em um poema tipicamente marioandradiano como Europa, França e

Bahia, de depreciação da “moléstia de Nabuco”, um final-ato-falho:

Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.

Minha boca procura a “Canção do exílio”.

Como era mesmo a “Canção do exílio”?

Eu tão esquecido de minha terra...

(idem, 2002, p. 9)

Não é a toa que Alguma poesia já é considerado como parte de um outro

modernismo, de uma outra “geração”. Em tudo Carlos Drummond pôde contribuir

para assentar sua poética e pensamento numa conformidade literária divergente do

chamado segundo modernismo, de ânimo nacionalista. Drummond então repete

nos poemas suas críticas e dúvidas já adiantadas a Mário de Andrade por meio de

suas cartas. Emanuel de Moraes interpreta o último poema citado como a penúria

da condição de exilado de sua terra natal, Itabira (Moraes, 1972, p. 6), mas ele não

conseguiu atender aos reclames de que o poeta, mesmo refutando a saudade de

terras não conhecidas, ainda assim não consegue vislumbrar a própria terra, sua

nacionalidade, e mesmo o sentimento ufanista ressaltado pela alusão ao poema de

Gonçalves Dias encontra uma quase blague diante da artificialidade do momento

em que a saudade não tem nem mesmo um objeto, revelando-se por si inútil e sem

sentido. É como se essa passagem fosse uma introdução para o famoso final do

poema Hino nacional, de Brejo das Almas:

228

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!

Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,

Ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.

O Brasil não nos quer! Está farto de nós!

Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.

Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

(Andrade, 2002, p. 52)

7 Considerações finais Drummond e os modernistas

No artigo intitulado Geração de 45, João Cabral de Mello Neto escreve:

Os poetas de 1930 encontraram o terreno mais ou menos limpo, vale dizer: vazio

de formas aceitas e exigidas pelo costume do leitor de poesia, dentro das quais

tivessem de escrever sua poesia. Deixando de lado os tiques e vícios do estilo

quase polêmico nascido dos combates da Semana de Arte Moderna, mas

aproveitando os direitos que aquela revolta tinha posto em suas mãos, tais poetas

puderam entregar-se livremente a escrever sua poesia. (...) Para o poeta da geração

de 1930 já não havia a necessidade de criar novas formas para opor, no combate, às

formas antigas que queria desmoralizar, atitude que é evidente nos modernistas de

primeira hora. Os poetas de 1930 encontram as formas velhas já desmoralizadas e

nenhuma forma nova que as substituísse. (Mello Neto, 1994, p.744)

Esse talvez fosse um bom resumo para dar as palavras finais desse trabalho.

É devido à chamada geração de 1930 uma estabilização mais ou menos aceita do

modernismo. Vale dizer que é como se, para Cabral de Mello Neto, poetas como

Carlos Drummond tiveram uma situação histórica peculiar. Eles foram os que

mais se beneficiaram das vitórias dos primeiros modernistas. Enquanto que

aqueles fizeram o “sacrifício” geral, como bem se pretendia Mário de Andrade,

lutaram em nome das novas formas e por isso foram desprezados, recebendo o

castigo do público, até finalmente serem consagrados como mestres, os da

geração de 1930 aproveitaram todos os benefícios resultantes das querelas

modernistas. Tudo sem pegar em armas, sem vanguardiar. Drummond encontra

um terreno já arado para uma experimentação pessoal de sua poesia no momento

em que o modernismo já se encontrava, como escrevia Antonio Candido,

“rotinizado”.

O que isso então tem a ver com o nacionalismo e a tradição Brasil? O

problema é que o modernismo cedeu lugar à nacionalidade. O poeta de 1930 não

precisava “criar novas formas” porque ele percebia que a literatura modernista se

alicerçara em uma constante pouco experimentalista, pois a segunda fase

modernista estancou a intensa problematização da forma como meio de alcançar

novos horizontes de ruptura moderna. Com isso o modernismo/ruptura retraiu-se

diante da perspectiva que o nacionalismo/tradição impunha-se como meio de

estabilização da arte. Chegou-se ao ponto de perceber que o modernismo já dera a

230

sua “lição” bem antes mesmo de elaborar as questões principais. O nacionalismo

modernista então freia a participação de um modernismo atrevido para dar forma

a uma tradição em si, uma tradição modernista elaborada tão precocemente,

tradição “curta porém viva e atuante”, como escreve Cabral de Mello Neto. Não é

preciso muito para adivinhar por que o modernismo se tornou uma tradição em

pouco menos de vinte anos, pois, na medida em que se entrega à tradição-mor

brasileira, a de seu nacionalismo, ele já estava pronto para dominar e se alocar no

sistema literário do país. Não é coincidência, então o fato de que o sistema

literário de Antonio Candido se encontra com o modernismo. Fazendo uma

belíssima leitura do artigo de Cabral, Abel Baptista aponta:

A teoria da “formação” [de Candido] é portanto a melhor teoria do Modernismo,

no duplo sentido, objetivo e subjetivo do genitivo; a que explica a configuração

particular que o Modernismo assumiu e aquela com que o Modernismo a si mesmo

se explica no âmbito de uma tradição que se pretendeu própria, uma e contínua.

Não há paradoxo nenhum em afirmar que a teoria de Candido é uma componente

decisiva do Modernismo justamente porque dissolve, do mesmo golpe, a

modernidade do gesto fundador romântico e a ruptura do Modernismo de 22.

(Baptista, 2007, p. 66)

No momento em que o modernismo opta pela experiência da continuidade

com a tradição Brasil logo ele se encontra na sua própria não modernidade ou no

“não modernismo da modernidade brasileira”. É que assim ele nega o seu caráter

de ruptura, assim como Candido nega o mesmo com relação ao romantismo

quando afirma que é desde o arcadismo que a formação do sistema literário se

esboça. Incrível não pensar assim que “a continuidade da poesia brasileira

enquanto modernista torna-se incompatível com a continuidade enquanto

brasileira” (idem, p. 51) ou a renovação e a ruptura se tornam constantes, mesmo

numa tradição como pensa Octavio Paz, ou a continuidade de um modelo esbarra

toda tentativa de modernidade. Foi neste último caminho que o modernismo de

segunda fase se entranhou tendo como consequência para a condição de não haver

“necessidade de criar novas formas” para a geração de Drummond, como explica

Cabral.

Como podemos ver, é Drummond que, como afirmamos, se torna a dobra do

modernismo e seus projetos. Por um lado, ele e sua geração se encontram

estacionados num momento em que a modernidade dos modernistas já tinha dado

lugar à modernidade brasileira, da negação da negação, ou seja, da negação do

231

próprio caráter gesticular da modernidade, a ruptura. Um Drummond e um Murilo

Mendes poderão, em parte, se desvincular da primeira geração de modernistas ao

passo que, na medida em que estes abriram caminho para a “morte” do

modernismo, acompanharão esta mesma tendência. Então, em entrevista a O

jornal em 19 de novembro de 1944 o poeta mineiro apontava o meio de

disciplinar o caos moderno, a ruptura, dando mais vazão àquela “morte”:

Todas as experiências com a palavra organizada no conjunto poético já foram

tentadas. A tal ponto que, aqui ou ali, se observa o cansaço e a volta a esses

“moldes antigos” a que você se refere. (...) Pois que voltem a elas os que estiverem

desejosos de voltar e se sintam capazes de extrair de tais formas novos efeitos.

Prefiro sugerir outra tarefa: a de disciplinar o chamado caos moderno, a de

pesquisar e estabelecer as leis da poética moderna, leis de gosto, de psicologia, de

ritmo, de métrica. (Andrade, 1977, p. 25)

Tem-se em conta que desde a década de 1930, a compreensão de que o

modernismo se estagnava era patente nas obras que então vieram a lume. Alguma

poesia de Drummond não tem nenhum meio novo de expressão senão aqueles já

elaborados pelos primeiros modernistas, como o poema-piada, o verso livre, o

coloquialismo etc. Na prosa a sensação era a mesma. Mas era interessante então

notar que mesmo o nosso mineiro compreendia que o modernismo já fizera o

suficiente para inaugurar uma expressão própria, não atentando ao fato de que

essa era a única forma de o modernismo sobreviver a sua própria demanda de

rupturas. Neste sentido, Drummond já podia ser considerado como aquele que se

volta aos “moldes antigos”, se compreendermos que o movimento — nas figuras

de um Oswald, de um Mário, de um Bandeira — já tinha os seus “mestres do

passado”, já era uma tradição com preceitos e maneiras de elaboração geral, com

suas leis, diga-se.

A questão é interessante porque tem também suas razões históricas. Durante

as décadas de 1930 e 1940 uma nova forma de fazer literatura parecia se impor.

Quando Mário de Andrade escreve em sua conferência de 1942 que “os

modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a

ninguém” e que a essência mesma da época era lutar pelo “amilhoramento

político-social do homem.” (Andrade, 1972, p. 254), ele mesmo concorria mais

uma vez para o apagamento da característica moderna do modernismo ao pensar

apenas na militância político-estético. Do mesmo modo, contribuiu a fase

232

comunista de Oswald de Andrade quando afirmava, em prefácio a Serafim Ponte

Grande, que estava “possuído de uma única vontade. Ser pelo menos, a casaca de

ferro na Revolução Proletária.” (Andrade, 2007, 58). Essa perspectiva de que a

literatura experimental deveria ceder lugar à militância política pode ter sido um

fator crucial para aquela similaridade de ver o modernismo como algo até certo

ponto ultrapassado, que ele mesmo precisava de um teor mais social para alcançar

as premissas do seu presente. Isso é certo, e foi mesmo necessário pontualmente.

No entanto, a preocupação política colocou mais uma pá de cal nas experiências

formais modernistas, ainda mais pela razão de que o que se fazia era

“individualismos” e “desvairismos”, tipicamente burgueses. O distanciamento

entre formalismo (para pegar um termo depreciativo típico da cultura stalinista) e

a participação fora então para o modernismo a única medida. Como expressa

Drummond em entrevista a Ary de Andrade, em 1945:

O perigo, insisto, é a volta às velhas formas burguesas de expressão, à literatura

água de flor de laranjeira, anódina e inconsequente, ou simplesmente acadêmica.

Este perigo é tanto maior quanto muitos escritores, entre nós, não raciocinam

perante os fatos e fenômenos políticos. (Andrade, 1977, p. 35).

Neste sentido, em que as velhas formas burguesas eram a experimentação e

mesmo o nacionalismo da segunda fase, podemos afirmar que uma obra como A

rosa do povo, como os últimos livros participativos de Mário, como o imponente

e classista Café, pode ser considerado como um dos coveiros do modernismo.

Por outro lado, se Drummond por essa perspectiva “matou” o modernismo,

ele o mataria também de outra forma. É que o modernismo negara acesso a outros

cânones por ele destronados, como o dos portugueses e de outros poetas não

“nacionalistas”. No entanto, em 1951, Drummond lança o polêmico livro Claro

Enigma, considerado sua virada classicista, no qual volta aos mesmos “moldes

antigos” de que fala acima, com sonetos e chaves de ouro, rimas, metrificações,

referências clássicas etc. Abel Baptista então nos explica a significação do livro

no sentido por nós aqui exposto:

(...) o poeta mais novo que se abeira de Drummond, pilar notório da ‘tradição, curta

porém viva e atuante’ com que Cabral define a poesia brasileira, vai encontrar uma

‘lição de poética’ que o reenvia para as formas clássicas e para os poetas clássicos,

notadamente portugueses, antigos e modernos. A lição do mesmo consagrado pelo

233

cânone é também a passagem para a lição de outros nomes excluídos do cânone.

(Baptista, 2007, p. 55)

Drummond rompe então com o modernismo canônico ao instalar-se como

um crítico das noções estabelecidas pelo movimento. Assim sendo, o seu ato mais

antimodernista é, em si, a ação mais modernista que acontecia desde meados da

década de 1920. Em outras palavras, é ele que rompe a tradição modernista na

medida em que volta aos modelos antigos. Se o Brasil está condenado à

continuidade da tradição Brasil a maior ação revolucionária e de ruptura é uma

“reação conservadora”, como é conservadora nossa modernidade ou nossa

modernização político-econômica. Negação da negação da negação. Modernidade

brasileira.

Onde fica então neste panorama literário nosso Mário de Andrade do Norte

com sua eterna corrida pela posteridade? Excluído do sistema que já nasceu

“pronto e acabado”? Espera-se ter demonstrado como tal sistema funciona e como

ele oferece um espaço dentro de sua própria Academia de imortais, seus cânones.

Com a lei Brasil, com a tradição Brasil, a experiência histórica brasileira parece se

tornar mais real porque, como em toda a sua estrutura social, econômica e

política, ela é também desigual, injusta, hierárquica. Oferecendo o modernismo

como um documento de barbárie, barbárie dupla, por assim dizer, como toda a

modernidade brasileira, pudemos saber como Mário de Andrade deixou para trás

muito mais pessoas naquele terrível turfe que acaba nunca mais.

8

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