Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos Drummond de Andrade em...
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Sergiano Alcântara da Silva
Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos Drummond de Andrade em perspectiva única
(1920-1930)
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Antônio Edmilson Martins Rodrigues
Rio de Janeiro Agosto de 2013
Sergiano Alcântara da Silva
Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos Drummond de Andrade em perspectiva única
(1920-1930)
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues Orientador
Departamento de História – PUC-Rio
Prof. Daniel Pinha Silva Departamento de História – PUC-Rio
Profª Amanda Danelli Costa
Departamento de Turismo – IGEOG -UERJ
Profª Mônica Herz Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2013
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.
Sergiano Alcântara da Silva Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará
em 2010. Tem experiência na área de História
Contemporânea, com ênfase nos temas, História e Literatura,
modernismo, Carlos Drummond de Andrade.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Silva, Sergiano Alcântara da
Modernismo da vanguarda e tradição literária
brasileira: Carlos Drummond de Andrade em perspectiva
única (1920-1930) / Sergiano Alcântara da Silva;
orientador: Rodrigues, Antonio Edmilson Martins – 2013.
245 f.; 30 cm
Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História,
2013.
Inclui bibliografia
1. História – Teses. 2. Modernismo. 3. Tradição. 4.
Nacionalismo. 5. Andrade, Carlos Drummond de. I.
Rodrigues, Antonio Edmilson Martins. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento
de História. III. Título.
Agradecimentos
A Flávio, Fabiana, Flaviano, Aila e João, experiências em mim;
A Dorenildo Matos, mestre que me criou a Crítica;
A Francisco Antônio, mestre que me despertou à História;
A Robson Alves, Victor Pereira, Ribamar Júnior, Filipe Canuto, Camila Queiroz,
Kátia Adriano e Josenildo Ferreira pela família que se permite acontecer;
A Juracy Pinheiro, para quem, sendo um pouco de azul, tornei-me além;
Ao professor Antonio Edmílson Martins Rodrigues, pelas descobertas em
maravilhosas aulas;
A Edna Maria, professora Maria Elisa, Evilásio Oliveira e Wilson, pela enorme
ajuda medida em detalhes;
A Carlo Romani e Gerson Galo Ledezma Meneses, pelo apoio de primeira ordem;
A Carlos Paiva e Jê Nicodemos, pela recepção carioca e ajuda amiga;
A CAPES, pelo auxílio e suporte dessa pesquisa.
Resumo
Silva, Sergiano Alcântara; Rodrigues, Antônio Edmilson Martins.
Modernismo de vanguarda e tradição literária brasileira: Carlos
Drummond de Andrade em perspectiva única (1920-1930). Rio de
Janeiro, 2013. 245 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A presente dissertação discute as dinâmicas históricas do modernismo
brasileiro dentro das especificidades de uma tradição que persiste na inteligência
local, a saber, a de que a construção da nossa literatura se daria apenas no
tratamento de temas nacionais, expressados pela cor e realidade nativas. Assim,
discute-se os combates intelectuais envolvidos no tema tradição literária que tem
como mote central um projeto de literatura essencialmente brasileira no intuito de
inserir o Brasil no concerto das nações modernas, como queria Mário de Andrade.
Neste sentido, o modernismo recuou qualitativamente quando se reportou ao
nacionalismo, abandonando a pesquisa estética de vanguarda em consonância com
a vida técnica da modernidade, em nome de um ideal mais geral que o aproximou
da tradição literária brasilista. A figura de Carlos Drummond de Andrade põe tal
condição em uma situação crítica na medida em que estabelece uma relação cética
tanto com o primeiro modernismo experimental quanto com o segundo
modernismo nacionalista, daí que o poeta mineiro se torna uma expressão
dialética do movimento, no sentido hegeliano do termo, ou seja, ele conserva,
suprime e eleva a outro nível as conquistas do modernismo.
Palavras-chave
Modernismo; tradição; nacionalismo; Carlos Drummond de Andrade.
Abstract
Silva, Sergiano Alcântara; Rodrigues, Antônio Edmilson Martins. The
avant-garde modernism and Brazilian literary tradition: Carlos
Drummond de Andrade in sole perspective (1920-1930). Rio de Janeiro,
2013. 245 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The present dissertation discusses the historical dynamics of Brazilian
modernism inside the specificities of a tradition that persists in local intelligence,
namely, the one which points out that the construction of our literature would be
made only on the treatment of national themes, expressed by native color and
reality. Thus, it is discussed the intellectual arguments involved in literary
tradition theme which have, as a central motif, a project of literature essentially
Brazilian aiming to insert Brazil into the concert of modern nations, like Mário de
Andrade wanted. In this sense, modernism retreated qualitatively when it reported
for nationalism, abandoning the avant-garde aesthetic research in agreement with
the technical life of modernity, in the name of a general ideal that approached
modernism with Brazilian literary tradition. The figure of Carlos Drummond de
Andrade puts such condition into a critical situation as he establishes a skeptic
relation not only with the first experimental modernism but also with the second
nationalist one, this way, the poet is himself a dialectical expression of the
movement, on the Hegelian sense of the term, since he conserves, suppresses and
elevates to another level the accomplishments of modernism.
Keywords
Modernism; tradition; nationalism; Carlos Drummond de Andrade.
Sumário
1. Introdução: Periferia da periferia ou o esquecido do esquecido.
Cânone e história literária nacional .......................................................... 10
2. Tradição à modernidade....................................................................... 22
2.1. Tradição moderna .......................................................................... 23
2.2. Moderna tradição brasileira ............................................................ 30
3. Da crítica imanente ao golpe de estado literário .................................. 53
4. Primeiro modernismo ........................................................................... 85
4.1. O cosmopolitismo dos pobres ........................................................ 86
4.2. Modernismo modernicizante: a tradição esquecida ....................... 94
5. Segundo modernismo: o golpe de estado literário ............................. 119
6. Drummond como experiência limite do modernismo .......................... 169
6.1. Drummond em estado bruto: 1922-1924...................................... 170
6.2. O eterno do moderno:
Drummond e as tensões da tradição brasileira: 1925-1930 ................ 200
6.2.1. Abrindo portas abertas .......................................................... 201
6.2.2. No labirinto o fio ..................................................................... 204
6.2.3. O roçar dos mantos ............................................................... 212
6.2.4. O mesmo assunto .................................................................. 217
6.3. O gauche retomado ..................................................................... 223
7. Considerações finais .......................................................................... 229
8. Referências bibliográficas .................................................................. 234
I
Oximoros do Brasil:
O Brasil é um país em que a independência ante Portugal foi
proclamada por um português,
a República foi proclamada por um monarquista,
a Revolução Burguesa foi feita por oligarquias,
o mais ilustre gesto de um presidente foi um suicídio,
a redemocratização foi presidida por um homem da própria
ditadura
a maior privatização foi feita pelo príncipe da sociologia
terceiromundista e esquerdizante,
numa praça Tiradentes não há uma estátua de Tiradentes,
mas de D. Pedro I, neto da Dona Maria que ordenara a
morte do alferes.
(Idelber Avelar)
II
Como eu gostava da nossa igreja, como a revejo bem agora!
O velho pórtico pelo qual entrávamos, negro, bexigoso como
uma espumadeira, estava desviado e como que cavado
profundamente nos ângulos (assim como a pia de água benta
para onde nos lavava), como se o ligeiro roçar dos mantos
das camponesas entrando na igreja, e de seus dedos tímidos
tomando a água benta, pudessem, repetindo-se através dos
séculos, adquirir uma força destrutiva, recurvar a pedra e
entalhá-la de sulcos como os traça a roda das carroças no
marco onde bate todos os dias.
(Marcel Proust)
1 Introdução Periferia da periferia ou o esquecido do esquecido. Cânone e história literária nacional
Existe um problema no modernismo. E este consiste na própria
especificação do termo. Desde a década de 1980 pesquisas têm demonstrado a
complexa ambiguidade do modernismo bem como as implicações de pensar tal
movimento como um mar de opiniões unívocas e homogêneas. Por esta
constatação, não existe apenas um modernismo, e isto é irrefutável. Do mesmo
modo, o modernismo não foi uma ruptura tão grande assim como antes se
pensava, como se ele inaugurasse uma revolução do que antes era apenas uma
tabula rasa. Nem ruptura nem um só movimento. Então o que é este processo
cultural e literário que iremos estudar nas próximas páginas? Existiram outros
modernismos? O que faz este modernismo que estudaremos ser diferente do que
ocorria e do que era produzido antes de sua aparição? Reforma ou revolução? Por
que hoje existe uma consagração tão grande de poucos nomes, de poucas obras,
de poucos lugares onde se desenvolveu? Seria o modernismo uma “escola de
obras falhas”, como queria Wilson Martins? (Martins, 2002, p. 52). Como Carlos
Drummond de Andrade, hoje o maior poeta brasileiro, se insere nesse ambiente e
nesses dilemas? Essas são questões que serão debatidas ao longo dessa
dissertação. Começamos por algumas implicações e explicações.
Em 7 de abril de 1929 era lançado nas páginas do jornal O povo, de
Fortaleza, um suplemento literário intitulado Maracajá. Era o primeiro e o
penúltimo. O número seguinte, de 26 de maio, findaria a curta passagem dessa
publicação que poderia ter sido esquecida, e quase fora. Em suas páginas
figuraram personalidades literárias como as de Jáder de Carvalho, Demócrito
Rocha, Raquel de Queiroz, Paulo Sarasate, Mário de Andrade do Norte, Franklin
Nascimento, sem falar da participação “especial” de Raul Bopp. Essas
publicações são consideradas como as primeiras manifestações modernistas em
terras cearenses. Delas falou um crítico: “O Ceará, como se vê, manteve sua
tradição de antecipar ou mesmo acompanhar com pequeno atraso as modificações
culturais dos centros hegemônicos.” (Marques, 2010, p. 68). O que espanta neste
tipo de comentário não é o tom de comiseração, nem mesmo a modéstia travestida
de grandiloquência, mas o fato do autor repetir o que ele mesmo comenta sobre o
11
comportamento dos modernistas cearenses, pois esses procuravam “se afirmar
diante dos sulistas”. É o que vemos, por exemplo, neste texto de Mário de
Andrade do Norte, intitulado “Turf”:
Há um Mário de Andrade no sul. De São Paulo. Outro no norte. No Ceará. Mário
de Andrade do sul é poeta modernista. O daqui também é poeta modernista. Pode
ser que se confundam os nomes. Mas o de lá não tem obrigação de mudar o nome.
Nem o daqui tem a obrigação de mudar o nome. Continuam como estavam. Faz de
conta que são cavalos de corrida. Estão no mesmo lugar. Vamos ver quem alcança
mais depressa o maior nome. — Larga! (Andrade do Norte, 1929, p. 10)
O tom de gracejo não esconde a teima de rivalidade regional que o nortista
imprimia nesta corrida em nome da posteridade. Se houve ou não uma vitória do
sulista cabe ao leitor averiguar. Mas o que nos interessa é como a “província” se
via e se aglutinava com o que ela entendia como os “centros hegemônicos”,
mesmo em termos diacrônicos, posto que quase cem anos depois o tom de quem
avalia o panorama literário (mesmo a partir de um olhar “científico”) parece ser o
mesmo, como podemos observar nos comentários do crítico contemporâneo
supracitado. É interessante notar também que tal texto-piada de Mário de Andrade
do Norte publicado no Maracajá seria impresso na Revista de Antropofagia
alguns meses depois. Inclusa no contexto das discussões entre Mário de Andrade,
do sul, e Oswald de Andrade, podemos perceber que a publicação do texto do
cearense fora apenas um meio estratégico e particular deste último dentro de uma
política literária litigiosa, tanto é que não há mais nenhuma outra participação do
nortista na revista paulista. Ou seja, a queixa original acabou sendo esvaziada.
Seria, então, tanto esse modernismo de província quanto sua historiografia
marcados apenas por um sentimento de “bairrismo e revanchismo”? Existe um
modernismo de província? É possível para um crítico constatar o nível de
modernismo de determinada manifestação literária ou seria possível afirmar,
como o faz Lígia Chiappini, que “houve e não houve modernismo” (Chiappini
apud Marques, 2011, p. 25) em determinado meio, seja ele no Rio Grande do Sul,
em Goiás, no Ceará etc.? O que nos importa aqui, como foi dito, é perceber como
determinados movimentos culturais são tratados pela história literária ou, mais
especificamente, como eles se erigem dentro de um cânone nacional, dentro de
um sistema literário brasileiro. Não que tenhamos a expectativa de encontrar, de
“resgatar” (este um termo tão cruel e paternalista) qualquer “igrejó regional”
12
surgido em qualquer esquina das capitais e interiores, mas de pensar como a
lembrança de uns pressupõe o esquecimento de outros ou, no máximo, uma visão
exótica, marginalizadora, excepcionalista desses esquecidos dos esquecidos.
Como falaremos mais adiante, a formação de um sistema literário nacional
pressupõe a exclusão não apenas das consideradas “manifestações literárias”,
como também exige o esquecimento até dessas formações grupais que não
chegaram a solidificar qualquer status para a história literária. É por isso que um
“complexo de Mário de Andrade do Norte” se instaura: como uma unidade
literária permite a produção de um texto tão realista quanto sarcástico, ao mesmo
tempo que angustiante? Porque é da sua consciência o fato de que o sulista está na
dianteira justamente porque está dentro do “centro hegemônico”. Então lutar
contra esse panorama seria “bairrismo”, como o quer Ivan Marques (2011)? Bem,
poderíamos pensar como o crítico mineiro e afirmar que “é a verificação das obras
que permite medir a modernidade de um artista, e não a leitura de manifestos e
artigos de ocasião, quase sempre carregados de retórica de compromisso.”
(Marques, 2011, p. 24). Há muito tempo atrás o próprio Mário de Andrade do
Norte poderia ter respondido a tal comentário:
Vocês do sul desculpem os tipógrafos do Ceará. Eles não podem fazer uma revista
melhor. Se tivessem mais recurso material, mostrariam como o cearense sabe tirar
dois couros de um bode só. (Andrade do Norte apud Marques, 2012, p. 69).
Mário poderia estar “fora da modernidade”, mas estava dentro de uma
sociedade excludente e marginalizadora que produzia desigualdades tanto
econômicas como, bem vemos, culturais; desigualdade esta que é a razão de ser
mesma da modernidade brasileira, como se essa exclusão da modernidade fosse
funcional à mesma modernidade “periférica”.
Não que haja revanchismo nesta forma de ver as coisas. É preciso crer que
toda a nova historiografia que releu o período que vai do final do século XIX à
década de 1920 tem o que falar, e muito, e seria ridículo dizer que ela é apenas um
movimento de ressentimento. Aquele período que antes se entendia como “pré-
modernismo” teve que ser redescoberto justamente pelo eclipse que o
modernismo paulista impôs sobre estes anos, por um lado, taxando-o como um
momento não muito interessante no modo de fazer literatura (críticas dos
modernistas) e, por outro, como um tempo importante para a consolidação
13
literária que viria depois (velha historiografia). Porém, um livro que pretendia
marcar por inteiro a história do movimento modernista, História do modernismo
brasileiro, de Mário da Silva Brito, lançado na década de 1970, já diluía um
pouco a sensação do ineditismo ou pelo menos de ruptura radical do grupo
paulista ao explicitar uma demanda de acontecimentos e de realizações culturais
que vinham se articulando muito antes da “Semana de 22”: a Primeira Guerra, a
imigração, os movimentos sociais, as primeiras polêmicas datadas de 1917,
grupos como o Grupo Zumbi etc. Nem por isso ele deixou de colocar a Semana
como um divisor de águas e tampouco livrou certos nomes da mesma crítica que
os modernistas faziam, principalmente quanto aos parnasianos.
Não é difícil então constatar como o modernismo está inserido numa
discussão tão grande quanto a que envolve a história literária e seus cânones. Daí
surgirem perguntas como: de qual modernismo você está falando? A partir de que
perspectiva você entende o modernismo? Isto não é reproduzir o cânone oficial?
Muito bem. Podemos dizer que esta dissertação seguirá o rumo da crítica de um
modernismo, o modernismo de vanguarda e não o modernismo “antigo”. Que isso
quer dizer? Destacaremos apenas um determinado modernismo que, apesar das
infindáveis fraturas internas que se desembocarão em diversas outras correntes,
teve como princípio e lógica os argumentos das vanguardas históricas europeias.
Neste sentido, ao ler “modernismo” nas próximas páginas o leitor deverá atentar
para esse tipo de modernismo influenciado pelas vanguardas, e não o modernismo
anterior.
Francisco Foot Hardman, em seu artigo “Antigos modernistas”, ao criticar a
historiografia que impunha interpretações com as lentes do movimento de 22
aponta três efeitos nocivos dessa perspectiva:
a) Exclusão de amplo e multifacetado universo sociocultural, político, regional que
não se enquadrava nos cânones de 1922, em se tratando, embora, de processos
intrínsecos aos avatares da modernidade; b) redução das relações internacionais na
cultura brasileira a eventuais contatos entre artistas brasileiros e movimentos
estéticos europeus, quando, na verdade, o internacionalismo e o simultaneísmo
espacial-temporal já se tinham configurado como experiências arraigadas na vida
cotidiana do país; c) definição esteticista para o sentido próprio de modernismo,
abandonando-se, com isso, outras, dimensões políticas, sociais, filosóficas e
culturais decisivas à percepção das temporalidades em choque que põem em
movimento e fazem alterar os significados da oposição antigo/moderno muito antes
de 1922. (Hardman, 1992, p. 290)
14
Seria difícil negar a modernidade do Brasil e de seus intelectuais que desde
o romantismo se articulam para pensar o país inserido no seu presente, no que está
no mundo e no que isto poderia lhe trazer de melhor para alcançar aquilo que eles
entendiam como a modernidade-modelo europeia. Não apenas na questão da
técnica, mas também nos moldes da política institucional e da economia de
mercado que, já na virada do século XIX para o XX, se internacionalizava
deixando o país como um membro crucial dentro da divisão internacional de
trabalho, no que tange mormente à exportação de café. Não foram os modernistas
que inventaram um país cujo panorama social e urbano se integrava às tecnologias
então em ascensão, por isso seria difícil afirmar que o modernismo monopolizou
um aspecto cotidiano tão comum à época em que a experiência da técnica chegava
com um impacto tão grande no modo de viver dos cidadãos. Eles não foram os
primeiros a incorporarem e a discutirem em termos literários o que a técnica
poderia causar na sensibilidade tanto do homem comum quanto no do literato.
Eles foram, sim, como veremos, aqueles que souberam organizar coerente e
organicamente um movimento em grupo que tinha como pressuposto a
interferência, a experiência, a inovação técnica como modus operandi, sem o qual
ele não se distinguiria do que eles mesmos identificavam como “os meios
passadistas” de fazer literatura.
A objeção para essa perspectiva de um modernismo vanguardista seria a de
que se poderia estar novamente repetindo os mesmo gestos da velha
historiografia, principalmente quanto ao fato de relegar esse mesmo modernismo
à simples cópia, imitação, mimese do estrangeiro. Não. O mesmo Foot Hardman,
em outra ocasião, refuta a ideia de que os contatos com a vanguarda foram
determinantes, argumentando que
como resultado dessa visão, o Modernismo parece situar-se na seguinte
contradição: os seus aspectos inovadores, sejam temáticos ou estilísticos, são frutos
da importação de propostas estéticas de vanguarda (...); seus aspectos retrógrados e
passadistas, embebidos de nacionalismo conservador, resultam de determinações
internas, isto é, da dominação oligárquico-burguesa. (idem, 1984, p. 114).
O autor pega justamente o nosso ponto de partida. Vamos aos pontos.
Em primeiro lugar, a relação entre os modernistas e os vanguardistas
históricos europeus foi sim decisiva para esse modernismo. Para nós é o que os
torna essencialmente distintos do que Foot Hardman chama de “antigos
15
modernistas”. É que seria difícil não tomar esses modernistas “de 22” passíveis de
influência do futurismo com o qual o movimento terá momentos de amor e ódio.
Seria também complicado não reportar as relações entre Oswald e o cubismo,
mesmo no que diz respeito à fase nacionalista, como veremos mais adiante. A
simpatia de um Manuel Bandeira pelo modernismo se deu justamente depois de
Mário de Andrade ler seu Paulicéia desvairada no Rio de Janeiro, sendo que
antes já tomara contato com os futuristas italianos passando a gostar de
“Palazzeschi, cuja Fontana Malata sabia de cor, de Soffici, Govoni, Ungaretti.”
(Bandeira, 1996, p. 61). Este mesmo afirmara que “o impulso inicial do
movimento modernista veio das artes plásticas” por meio de Anita Malfatti1 e do
seu expressionismo alemão. (idem, p. 606). Enfim, os exemplos seriam muitos. O
que importa salientar é que esse aspecto não será tratado como algo positivo,
progressista, como o critica Hardman2, mas sim como um dado importante para a
consolidação grupal do movimento, algo que o exclui do panorama literário da
época, mesmo que este já estivesse entregue às inovações técnicas e abordasse os
limites e possibilidades da modernidade brasileira, atuando em nomes tão
distintos como Olavo Bilac ou João do Rio, como nos demonstra Flora Süssekind
(1987).
Em segundo lugar, Hardman aponta uma divisão que estará presente nesta
dissertação, a saber, de um momento particularmente cosmopolita e
universalizante, ao mesmo tempo que tecnicista e urbanista, e outro marcado pelo
nacionalismo, pelo populismo e folclorismo, enfim, de preocupação com fatores
culturais internos. No entanto, ao contrário do que pensa o crítico, neste segundo
momento a vanguarda ainda permanecerá como horizonte problemático. Embora
os modernistas fossem aos poucos perdendo seu caráter de experimentação, de
formalização e sínteses estéticas, características do primeiro momento, as
1 Mesmo Mário de Andrade atribuiria a sua introdução ao modernismo em parte à Anita Malfatti,
como nesta carta direcionada a Augusto Meyer, datada de 20 de Maio de 1928: “Carece notar que
desde 1915 Anita Malfatti modernista, italiana de mãe, germanizada na cultura, inglesada também
(...) Talvez a influência dessa companheiragem nova provocou o enjoo [da estética parnasiana]...
Sei não. Em todo caso essa amizade conto como importantíssima na minha formação. Fez a
exposição dela que toda a gente a rrenegou e eu fiquei apaixonado sem saber direito porque.”
ANDRADE, Mário. Mário de Andrade escreve cartas a Alceu, Meyer e outros. Coligidas e
anotadas por Lygia Fernandes. Rio de Janeiro: Editora do autor, 1968, p. 50. 2 Não trataremos as questões como positivas ou negativas, mas como possibilidades perdidas
quando abertas por um horizonte de liberdade que não tenha como finalidade a brasilidade. O
próprio Hardman, mesmo criticando as visões dualistas, emprega a mesma concepção quando trata
em outro momento os “antigos modernistas” em contaste com os “modernistas”.
16
vanguardas ainda não seriam esquecidas como fatores mediativos do modernismo
internacional. Fatores tanto externos quanto internos ajudariam neste declive de
princípios que tornariam o modernismo vanguardista brasileiro mais brasileiro —
ou moderno à brasileira — que vanguardista. Ainda assim, seria difícil não
perceber que um livro como Macunaíma, apesar de extremamente findado no teor
folclorista-nacionalizante, não tivesse uma estrutura narrativa influenciada pelas
conquistas estéticas das vanguardas. Acontece que essas mesmas inovações vão
diluindo-se aos poucos em nome de um teor programático que não punha tanto
crédito em fatores formais de expressão, posto que o nacionalismo militante
implicava uma linguagem mais acessível, mais didática.
A experiência modernista de vanguarda conseguiu, no entanto, fazer algo
inédito: deixou para a posteridade a sensação de que saíram do nada, de que
sobrevieram de um vazio cultural. A própria crítica paulista contribuiu para esse
panorama injusto de relegar ao modernismo uma revolução fundadora. Como
estratégia de grupo, de consolidação, para surgirem como a novidade, o original, a
inventividade, os modernistas vanguardistas usaram da polêmica contra tudo o
que era produzido no cenário literário brasileiro, o que é natural para quem
pretende conquistar terreno dentro de um meio dominado por determinados
homens e estéticas hegemônicas. Para isso elegeram o parnasianismo, o
simbolismo e o regionalismo como inimigos a serem combatidos e ao mesmo
tempo insuflaram a ideia de que a literatura brasileira daquele momento era feita
apenas por essas escolas “passadistas”. Com isso deixaram de atentar a uma
produção literária que, assim como eles, realizava um
diálogo entre forma literária e imagens técnicas, registros sonoros, movimentos
mecânicos, novos processos de impressão. Diálogo em várias versões entre as
letras e os media que talvez defina a produção literária brasileira do período de
modo mais substantivo do que os muito neo (parnasianismo, regionalismo,
classicismo, romantismo), pós (naturalismo) e pré (modernismo) com que se
costuma etiquetá-la. (Sussekind, 1987, p. 18)
Defendendo a ideia de uma “cultura do modernismo”, Antonio Edmilson
Martins Rodrigues afirma que, por essa perspectiva que esvazia as produções
culturais da belle époque, caímos no erro de pensar uma modernidade sem
modernismo, chegando ao ponto de pensar situações-limites em que Machado de
Assis se torna um tradicionalista, um modernizante conservador. Desse modo,
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a violência do choque das novas ideias, a autoconsciência do presente, a
capacidade de perceber a cidade como espaço privilegiado do novo e a
preocupação com a recepção do que era produzido nos vários campos do
conhecimento foram colocadas num plano secundário. (Rodrigues, 2012).
Essa constatação corrobora com a ideia de um modernismo já existente
antes dos modernistas “de 22”, um modernismo que atualizava e renomeava novas
formas de apreender o fazer literário, de implicar meios diversos para a crítica
social, seja no humor ou na vida boêmia, o que Hardman chamaria de “antigo
modernismo”. Ao mesmo tempo, dá vazão para o nosso argumento de que o
modernismo que estudaremos tem um teor diferencial porque influenciados e
revitalizados pelas vanguardas europeias.
Flora Süssekind (1987), no seu grande estudo sobre as relações entre
literatura e técnica do período que vai do fim do século XIX à década de 1920, ao
confirmar que a fotografia, o telégrafo, o gramofone, o cinematógrafo, instituíram
um olhar novo cuja sensibilidade fora um divisor de águas para a subjetividade
tanto das pessoas comuns quanto dos literatos, também nos dá a entender que o
período realizara aquilo que o modernismo irá sistematizar de forma mais
“automática”, com “relacionamento mais crítico” (Süssekind, 1987, p. 86). Ela
indica como ocorre o processo no qual a técnica se relaciona com o fazer literário
dos autores da época, sendo que uns o articulam como meio de “imitação”, outros,
reativos, como motivo para “estilização”, e também para formas subjetivas de
“deslocamento” (idem, p. 90-91). Descobrimos, então, que o ornamentalismo de
um Bilac se dava de forma crítica em relação à técnica que condenaria o escritor
ao mero profissionalismo. Enquanto que nas suas crônicas e nas suas gazetas
rimadas, existe o fascínio pelo histórico e vulgar, na sua literatura “oficial”, nos
poemas, ele “tenta revigorar a eternidade como coordenada temporal não só para
uma produção literária que se quer clássica, como também para a vivência
citadina.” (idem, p. 99). Desse modo o ornamentalismo parnasiano tão criticado
pelos modernistas seria uma estratégia literária em face de um momento em que a
técnica diminuía e pulverizava a arte artesanal da poesia e da literatura.
No entanto, nos casos em que Flora cita momentos criativos cujos recursos
técnicos parecem interpelar o meio de produção literário, as inovações em muito
diferem do que os modernistas fariam mais tarde. Ela mesma, ao analisar um
18
poema de Adolfo Werneck no qual se tematiza a fotografia, afirma que o autor
cita os recursos fotográficos “meio gratuitamente, sem que isso afete sua própria
técnica poética”, coisa que, segundo ela mesma, acontece com poemas de Oswald
e Mário de Andrade. (idem, p. 126). Na maioria dos casos por ela citado, parece
haver o mesmo fenômeno em que a forma literária ainda não extravasa moldes
clássicos mesmo tendo temáticas tecnicistas ou, quando cita casos assim, como no
do poema “Telefone”, a forma modernista de vanguarda já está presente
latentemente, como no caso do seu autor, Guilherme de Almeida. Mesmo quanto
a Olavo Bilac e o parnasianismo de modo geral, seria difícil crer que todo o
movimento classicista se fez a partir de uma rejeição da técnica, do fazer
jornalístico, da padronização da escrita, em prol de um “falar bonito” (idem, p.77)
já que a escola não se limita ao príncipe dos poetas nem tão menos ao
“ornamentalismo”, sendo que a crítica dos modernistas ao parnasianismo e a
Bilac, neste sentido, parece ter mais um argumento “a favor” do que uma
refutação. Não há nenhuma premissa estética para que o parnasianismo seja
considerado como uma resistência à ciência e à racionalidade técnica, como se
fosse um romantismo, mas não com a fuga e a crítica revolucionária à
modernidade deste.
Por outro lado, é certo que a autora tem em mente que há uma diferença
entre esses modernistas e os modernistas vanguardistas, patente na sua ânsia de
comparar aqueles autores com estes, principalmente na pessoa de Oswald de
Andrade. Não é incomum ao longo do seu trabalho encontrar referências que
deixam crer nas divergências entre ambos, pois os antigos modernistas parecem
mais “descontínuos” (idem, p. 26), “hesitantes” (idem, p. 39), espantados e
encantados (idem, p. 86) com sua relação de “mera citação” (idem, p. 136),
enquanto os modernistas vanguardistas aparecem com os “sustos incorporados”
(idem, p. 48), nos quais realmente se encontra uma “literatura de corte” (idem, p.
48) porque estes “automatizaram os sustos” (idem, p. 100), são “mais articulados”
(idem, p. 134) com suas “elaborações críticas” (idem, p. 136) e com “uma sintaxe
e uma lógica particulares” (idem, p. 136). É como se os modernistas vanguardistas
tivessem sistematizado em teorias, manifestos e obras o que ocorria bem antes
deles de forma mais difusa, como se ocorresse nas décadas anteriores um
acumulação primitiva do que iria irromper com aquele modernismo. Diz-nos a
autora:
19
Montagens e cortes passariam a invadir, de fato, a técnica literária com a prosa
modernista. A ficção brasileira só ‘perdeu a sintaxe do coração e as calças’ em
textos como Memórias sentimentais de João Miramar (1924); o próprio Serafim,
de Oswald de Andrade. Macunaíma (1928), de Mário de Andrade; e Pathé Baby,
de Alcântara Machado. Aí sim se encontra uma literatura-de-corte, em sintonia
com uma concepção também diversa do cinema, e pouco preocupada em parecer
com as fitas, em falar de biógrafos e cinematógrafos. Uma literatura na qual, já
incorporado os sustos, dialoga-se maliciosamente com as novas técnicas e formas
de percepção. E que não cita a todo momento o cinema. Mas se apropria e redefine,
via escrita, o que lhe interessa. (idem, 1987, p. 48. Grifos meus)
Portanto, o fato de que o que se produzia antes do surgimento do movimento
modernista era também modernista, no sentido anteriormente exposto não exclui a
constatação de que eles tinham uma maneira específica de abordar a modernidade.
Mas agora era Marinetti, e não Baudelaire. Visão de mundo próxima das
vanguardas históricas e diretamente influenciada por elas. Como dito
anteriormente, isto também não significa que eles atentaram ao mero copismo,
mas que, à luz das discussões daquelas, os modernistas expressaram uma nova
maneira de produzir e experimentar literatura, traduzida num clima de
modernidade técnica extremamente vertiginosa que as primeiras décadas do
século XX também testemunharam a seu modo. Por isso que a tese de Foot
Hardman, de que o
cosmopolitismo modernista não se viabilizaria, portanto, a partir de uma
‘dependência externa’, mas das fissuras que a presença crescente de uma força de
trabalho internacional, tão numerosa quanto anônima, já vinha produzindo na
ordem dominante (Hardman, 1984, p.116)
parece-nos ineficaz, posto que o modernismo, mesmo o do primeiro tempo, não se
caracterizou apenas pelo cosmopolitismo; por outro lado, seria contraditório
refutar a tese de uma “dependência externa” afirmando que uma classe que, à
época, tinha uma presença marcante de estrangeiros, fosse, com sua simples
“presença”, “um aspecto determinante de todas as tensões, contradições e
mudanças vividas pela produção literária ‘pré-moderna’” e, como o autor atreve-
se a dizer, do próprio modernismo. Se critica a tese da dependência do
modernismo em relação às vanguardas, acaba afirmando uma outra “dependência
externa”, agora quanto à imigração e sua “força de trabalho internacional”. Mas o
próprio Hardman entenderá, em outra ocasião, que o modernismo antigo dava a
20
introdução do problema: “Entre projeções futuristas e revalorizações do passado,
escritores do Brasil na passagem do século tentavam fazer o que o modernismo,
depois, adotaria como programa: redescobrir o Brasil.” (idem, 1992, p. 289. Grifo
meu). Como se vê, o que diferencia os antigos modernistas do modernismo de
vanguarda é o caráter de programa, de movimento, de grupo deste último.
Embora o texto a seguir trabalhe com os “cânones” do modernismo
vanguardista, o autor entende que a historiografia sobre esses nomes e tendências
não é a única, tampouco a representante legítima desse período. No entanto,
apesar da defesa de um ponto de vista, não houve em nenhum momento certo
paternalismo e identificação com o objeto, fato que muitas vezes põe antolhos à
crítica, posto que, em nome da mesma defesa de uma tese, muitos críticos
incorrem à parcialidade e à injustiça para com outras visões, sendo um passo para
a ortodoxia. Por outro lado, é evidente que nem sempre uma historiografia que
tenta “resgatar” alguns esquecidos tente também esquecer outros esquecidos. Fica
sempre uma hierarquia da memória, pois enquanto uns são lembrados, outros
ainda esperam uma chance para serem ouvidos. A discussão sobre a tradição ao
longo dessas páginas tenta, então, dar uma resposta de como deve ser o primeiro
passo para a tal canonização literária.
Mas pensemos no nosso Mário de Andrade do Norte e sua corrida. A
“periferia” da “periferia”, a marginalização dentre os marginalizados. A
historiografia (como a tradição e o cânone) sempre pressupõe um discurso de
poder cruel. É porque ela ainda detém um ranço envergonhado da desigualdade
social, da desigualdade política e econômica, pois, lembrando a “falta de
condições” denunciada pelo Mário nortista, como não pensar que grandes homens
não esmoreceram sua literatura devido à falta de “condições materiais de
existência”? Modernismo no Rio, modernismo em Goiás, modernismo no Ceará,
modernismo no Piauí. Visões novas da historiografia. Mas qual delas
“sobreviverá” mais? Qual será editada? Qual terá impacto no nosso “sistema
literário”? A hierarquia, a desvantagem, a injustiça, os “centros hegemônicos”, os
“descompassos”, nos dizeres de Hardman, permanecem. No máximo, um
modernismo cearense ou goiano seria visto como uma nota de rodapé, uma
exceção dentro da historiografia, um trabalho “local”, ou mesmo, como nos diz o
pesquisador daquele movimento cearense, um “modernismo encarado sob uma
perspectiva periférica.” (Marques, 2010, p. 25). Este mesmo pesquisador acha tal
21
perspectiva “diferente” e por isso original, tal é o estado de mal estar que tanto ele
sente e como também o sentira Mário de Andrade do Norte. E isso é valido para
qualquer historiografia, não apenas a literária. Que os terrenos banidos da história
não sejam avaliados como uma “perspectiva periférica”. Que seja a totalidade,
sem nenhum preconceito ou arrivismo. Neste sentido, aqui é preciso pensar como
Foot Hardman:
Modernismo, qual? Dos artistas de 1922 ou de 1900? Da geração de 1930 ou de
1870? Dos comunistas de 1922 ou do movimento operário socialista e libertário
das décadas precedentes? Dos arquitetos acadêmicos ou dos engenheiros de obras
públicas? Dos ‘tenentes’ dos anos 20 ou dos abolicionistas e republicanos de meio
século antes? Dos poetas metropolitanos ou dos seringueiros do Acre? Dos fios
telegráficos da Comissão Rondon o dos índios rebeldes? De Mário e Oswald de
Andrade ou de Mário Pedrosa e Lívio Chavier? Da revolução ‘técnica’ ou da
revolução ‘social’? Dos nacional-integralistas ou dos bolchevistas? Do manifesto
Antropófago ou do Primeiro de Maio? (Hardman, 1992, p. 303)
Aqui se optou pelos de 22 e por Oswald e Mário de Andrade, do sul.
Editoras, bibliotecas, livros didáticos, todo um sistema literário hegemônico me
ajudou a chegar a esta pesquisa. Se não optei pelo Mário nortista, aqui tento
explicar os buracos daquele sistema e analisar por que o sulista acabará por vencer
a angustiante corrida. Por meio da tradição moderna brasileira.
2 Tradição à modernidade
(...) com os suspiros de uma geração é que se amassam as
esperanças da outra.3
(Machado de Assis)
Tudo o que sobrevive ao tempo tem sua dívida para com os contemporâneos
que o testemunharam. As tradições não nos expõem apenas os “mortos”, mas
também a oscilação dupla de duas mãos: uma que tapa a boca da sua atualidade
originária e outra que dá o testemunho de seus murmúrios. Estes murmúrios são
tudo aquilo que ficou, aqueles documentos de barbárie que Walter Benjamin tão
bem soube interpretar. Somente com estes sussurros, com estes documentos, é que
podemos manter nosso diálogo. E ainda assim, só a alguns lamentos será
permitido abrir nossas portas. Entendemos aí que as tradições trazem dentro de si
a tradução de uma recepção, quase sempre injusta e cruel, pois ela não se afasta
de um “acobertamento” da mudez de cada tempo.
Mas sendo um diálogo, podemos ir mais longe e transformar a assertiva de
Machado de Assis num questionamento: os suspiros de uma geração podem
amassar as esperanças da outra? Reviravolta. Ao contrário do que pensávamos, o
passado — mesmo aquele que escolhemos ver e ouvir, pressupondo vozes e
imagens inocentes de quem, embora não enterrado no esquecimento, persiste na
imobilidade da cadaverização perpétua e por isso cômoda à nossa consciência —
nos interroga. Quando este dilema acontece e as duas perguntas, a de lá e a de cá,
ficam sem resposta, surge uma perturbação do presente. Uma ruptura suspendeu
a suposta harmonia monótona, a empatia historicista do presente para com o
passado — o bocejo dá lugar ao espanto. Quando esta distensão é contínua, a
modernidade se manifesta como estética ou visão de mundo porque este é o seu
destino e sua condição de existência, i.e., a ruptura4. Quando é apenas uma fratura
exposta num corpo aparentemente “saudável”, ela se torna uma perturbação mais
perturbadora porque única, “inexplicável”, “particular” ou, como poderia dizer
alguns autores, “periférica”. Desta visão “periférica” surgirão alguns mestres
3 ASSIS, Machado. Teoria do medalhão In Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1973.
V. II, p. 288. 4 “(...) a consciência de modernidade nasce do sentimento de ruptura com o passado.” LE GOFF,
Jacques. História e memória. Trad: Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges. São
Paulo: Editora Unicamp, 2003, p. 175.
23
como Machado de Assis... O que isso quer dizer, especificamente? É o que
tentaremos apontar adiante.
2.1. Tradição moderna
O dilema acima mencionado é moderno porque encerra dentro de si a
característica crítica por excelência: ela é autofágica, separa-se continuamente,
consome-se e dilui-se na acidez de seu próprio veneno: “O que distingue a
modernidade é a crítica: o novo se opõe ao antigo e essa oposição é a
continuidade da tradição.” (Paz, 1976, p. 134). Para Octávio Paz a modernidade é
movimento, sempre para fora de si, transformando-se num outro, para daí partir-se
em mil pedaços que irão semear novos movimentos destinados também ao
estardalhaço. A tradição da ruptura identificada pelo autor mexicano cria outras
tradições porque “modernidade é sempre outra nunca ela mesma” (idem, 1984, p.
18), disforme, mal criada, etérea, algo que, como Deus, todo mundo pensa sentir,
mas não pode tocar. Pensar e sentir: a modernidade é ao mesmo tempo crítica e
paixão, força de sentimento e energia intelectual, afeição por aquilo que nega,
arrebatamento pelo objeto que, quando conquistado e decifrado e tornado parte de
si, não mais servirá porque o que vale é sempre o outro, algo exterior a nós.
Alteridade e heterogeneidade, sempre uma visão a distinguir um outro e um
diferente.
A tradição moderna é uma consciência histórica que não é uma tradição
porque também é mudança e por ser mudança e somente mudança é uma tradição.
A modernidade não permite a tautologia, a identidade, a unidade, o repouso, a
harmonia, a permanência. Apenas a crítica. E com a crítica a alteridade, e com a
alteridade a contradição. Com a contradição nasce a tradição da negação. A
modernidade então está condenada a negar-se, e negando a si, ela se torna ainda
mais moderna como negação da negação. Como exemplo desta condição e
pensamento moderno, é interessante notar então que, como condição formal da
modernidade o capitalismo, segundo Karl Marx, criaria os seus próprios coveiros,
encarnados no proletariado, realizando a maior ruptura que superaria a fase pré-
histórica da humanidade, pois como explica no primeiro livro de O capital: “a
24
produção capitalista produz, com a inexorabilidade5 de um processo natural, sua
própria negação. É a negação da negação.” (Marx, 1984, p. 294). O fato é que essa
negação tem se tornado uma tradição, pois os movimentos contestatórios ao par
modernidade/capitalismo, junto com as crises deste, tem-se demonstrado algo
contínuo, em ondas de influxo e refluxo, quebras e restaurações.
As rupturas vertiginosas da modernidade, seu caráter fugidio e transitório
parecem ter aspectos definidores, como podemos ver nessas palavras de David
Harvey:
Se a vida moderna está de fato tão permeada pelo sentido do fugidio, do efêmero,
do fragmentário e do contingente, há algumas profundas consequências. Para
começar, a modernidade não pode respeitar sequer o seu próprio passado, para não
falar de qualquer ordem social pré-moderna. A transitoriedade das coisas dificulta a
preservação de todo sentido de continuidade histórica. Se há algum sentido na
história, há que descobri-lo e defini-lo a partir do turbilhão da mudança, um
turbilhão que afeta tanto os termos da discussão como o que está sendo discutido.
A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma implacável ruptura com
todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um
interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes. (Harvey,
1992, p. 22)
Mas se, neste ponto de vista, a modernidade desrespeita todas as realizações
precedentes, toda a sua pré-história, como então, para Octávio Paz, elas se
constituem numa continuidade, numa tradição moderna? A validade da questão é
perspicaz se nos dermos conta de que o homem moderno teve que se “adaptar” a
uma nova relação com o tempo numa sociedade cujos movimentos inalcançáveis
e vertiginosos só puderam ser superficialmente capturados na cronologia marcada
a compassos do relógio ou do calendário. Sendo ilusão ou não a aceleração do
tempo histórico, se as transformações na cultura e na sociedade ainda eram lentas,
todos estavam certos de que a noção de tempo havia mudado, o transcorrer, a
passagem em ritmo incessante, a história parecia “marchar”, e sempre adiante.
Quanto mais rápidos, mais longe do que éramos, então será seguro olhar para trás:
“mudando nossa ideia do tempo, tivemos consciência da tradição.” (Paz, 1984, p.
25). Neste sentido, o modernismo, com sua sede frenética pela velocidade,
5 Sobre essa passagem determinista, vale citar a crítica de E. P. Thompson: “Mas isso não pode
desculpar as referências de Marx, como no seu primeiro prefácio a O capital, às ‘leis naturais da
produção capitalista (...) tendências que funcionam com necessidade férrea no sentido de
resultados inevitáveis.’ Como é possível aos ‘eruditos’ marxistas acusar então a Engels de
‘positivismo’ e exonerar Marx de toda a culpa?” THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Trad.:
Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 225 (nota).
25
conseguiu levar ao extremo a paixão moderna pela transitoriedade e mutabilidade
que o cotidiano e as máquinas da Segunda Revolução Industrial conseguiram
elaborar, coisa que o primeiro momento modernista soube expressar a partir de
uma linguagem ultra-arriscada de experimentação e ao mesmo tempo de crítica e
consciência de uma tradição a ser negada.
A modernidade baseia-se em conflito, na tensão que nasce de uma
dubiedade entre construção de uma sociedade a um ritmo nunca antes visto, tendo
como horizonte a intensa necessidade que o capitalismo demanda de suas forças
de produções incessantemente ativas, e a destruição de outra, de arcaísmos e
primitivismos que devem ser varridos ou vilipendiados à força para que aquela
sociedade imponha-se como ordem totalizadora, com a compulsória instalação e
conquista de mercados em locais ainda “não modernizados”. Essa dualidade é o
que faz da modernidade um antro de sistema, como se diria, desigual e
combinado, tanto a nível local como global. É certo então que ela se constitui a
partir de constantes oscilações, de ambiguidades, de confrontações e lutas que
expressam, segundo Marshall Berman, uma “experiência vital” porque a
modernidade une toda a humanidade, mas
trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos arroja num
redemoinho de perpétua desintegração e renovação, de luta e contradição, de
ambiguidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como
disse Marx, ‘tudo o que é sólido desmancha no ar’. (Berman, 1986, p. 15).
Essa desunidade é o que provoca rupturas e sem essas rupturas a
modernidade não existiria, posto que, como escreveu Jacques LeGoff, “o moderno
tende a se negar e destruir.” (Le Goff, 2003, p. 203). Negação da negação. É como
se a modernidade, como experiência crítica em que a sociedade ocidental põe a si
mesma à prova, não sobrevivesse a ela mesma, sendo que a necessidade de auto-
negar-se fora a justificação do discurso em que ela veio ao mundo contra outra
idade em que a humanidade estava estagnada nas lições de um tempo e de uma
sociedade rigidamente estancada. Mas esses preconceitos burgueses impunham
uma marcha em que a própria classe revolucionária — a mesma burguesia — teria
que administrar, recuando assim o próprio projeto de modernidade, pelo menos a
nível social, já que economicamente podemos dizer que a modernidade é mais
moderna do que em outros níveis, i.e., ali o processo de ruptura interna é mais
26
estrutural do que neste. Esses declives atestam como a tradição moderna, como
escreve Antoine Compagnon, “trai a si mesma e trai a verdadeira modernidade,
que se tornou o saldo dessa tradição moderna.” (Compagnon, 2010, p. 12).
Os paradoxos da modernidade podem ser interpretados tanto como a própria
condição de crítica da modernidade quanto sua força de destruição e criação. Se
fôssemos entender o quão crucial essa relação é para o próprio conceito de
civilização, poderíamos pensar como Sigmund Freud e perceber o Ocidente como
uma grande doença (tal qual a definição de Goethe para o Romantismo, o
movimento tão moderno porque anti-moderno) em que predomina o mal-estar
proveniente da iminente catástrofe da autodestruição completa, reacendendo um
complexo processo de culpabilização e repressão do instinto de morte:
Se a civilização constitui o caminho necessário de desenvolvimento, da família à
humanidade como um todo, então, em resultado do conflito inato surgido da
ambivalência, da eterna luta entre as tendências de amor e de morte, acha-se a ele
inextricavelmente ligado um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja
alturas que o indivíduo considere difíceis de tolerar. (Freud, 1974, p. 157)
Eros e Thanatos em Freud, eterno e transitório em Baudelaire6. A
modernidade admite em si o todo porque a totalidade e a reflexão7 são sua
máscara enquanto o progresso é a sua verdadeira face, embora ambos possam ser
discerníveis. E não é a toa que é neste mesmo progresso que o poeta de As flores
do mal temeu o mau sinal. Escreve-nos Baudelaire:
Há um erro muito em voga e do qual eu fujo como do inferno. Refiro-me à ideia de
progresso. Esse fanal obscuro, invenção do filosofismo atual, atestado sem garantia
da natureza ou da Divindade, essa lanterna moderna lança suas trevas sobre todos
os objetos do conhecimento; a liberdade se desfaz, o castigo desaparece. Quem
quiser ver a história com clareza deve apagar esse pérfido fanal. (Baudelaire apud
Compagnon, 2010, p. 11)
O “padrinho” da modernidade recusava aquele que vinha como motor
propulsor da própria modernidade, o progresso, porque, como bem assinalou
6 Como diz a passagem já clássica: “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a
metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.” BAUDELAIRE, Charles. Sobre a
modernidade: o pintor da vida moderna. Apres. e sel; Teixeira Coelho. Trad.:Suely Cassal. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 10. 7 “A modernidade difere do modernismo, tal como um conceito em via de formulação, na
sociedade, difere dos fenômenos sociais, tal como uma reflexão difere dos fatos (...) A primeira
tendência — certeza e arrogância — corresponde ao Modernismo; a segunda — interrogação e
reflexão —, à Modernidade.”. LEFEBVRE, Henri apud LE GOFF, Jacques. Op. cit. p. 195.
27
Walter Benjamin, para o poeta era preciso “fundar o conceito de progresso na
ideia de catástrofe.” (Benjamin, 1994, p. 174). E era justamente à iminência dessa
catástrofe que Baudelaire dedicava seu culto melancólico pela modernidade, ou
seja, ele já antecipava o “remorso” e o mal-estar que sublinhariam o futuro dessa
civilização. O entusiasmo da vida moderna não deixa de lado a acedia
involuntária e persistente de uma felicidade inalcançável que o progresso técnico
insiste falsamente em nos fazer crer. Essas discordâncias ilustram bem a
“ambivalência da modernidade baudelairiana e de toda verdadeira modernidade
que é igualmente resistência à modernidade, ou, pelo menos, à modernização.”
(Compagnon, 2010, p. 27)
Neste sentido, também não é à toa que Karl Marx constatara que o
Romantismo, o maior movimento crítico contra a modernidade e ao mesmo tempo
fruto da modernização, acompanharia o capitalismo até o seu fim caos (Löwy,
2002, p. 83). Se, segundo David Harvey, o Iluminismo fora uma resposta
filosófica ao do “eterno e imutável” da modernidade, ratificando uma ideologia do
progresso da humanidade baseada no conhecimento, na dominação da natureza e
da racionalidade científica contra o mito, a superstição e o poder absoluto, o
Romantismo conseguira denunciar o resultado de tal ideologia quando manuseada
em prol de uma sociedade industrial-capitalista tendo como resultados o
desencantamento, a quantificação e a mecanização do mundo, a dissolução dos
vínculos sociais e a abstração racionalista (Cf. Löwy & Sayre, 1995, p. 51-70).
Mas o caráter ambivalente da modernidade é tão inexorável que não podemos
deixar de considerar a lógica também burguesa dessa crítica romântica, pois “o
fato de um tão grande número de representantes do romantismo ser de nobre
estirpe não altera o caráter burguês do movimento mais do que a atitude
antifilistéia de sua política cultural.” (Hauser, 1998, p. 676). Assim o projeto do
Iluminismo e seu antípoda, o Romantismo, fazem parte de uma dialética —
negação, conservação e supressão — que domina o pensamento sobre a
modernidade8 desde o século XIX, provando que ela está fadada à modernofagia
que a torna mais moderna do que nunca.
Daí que voltamos ao caráter expressamente revolucionário da modernidade
— a ruptura sadomasoquista de si mesma. A tradição da ruptura, desde o
8 É o que afirma Dante Moreira Leite também quanto ao pensamento brasileiro.
28
romantismo, só admite a originalidade, a invenção, a novidade, ou seja, “a
modernidade é filha do tempo retilíneo: o presente não repete o passado e cada
instante é único, diferente e autossuficiente.” (Paz, 1976, p. 135-136). Embora
para Octávio Paz não se possa confundir modernidade e progresso, ele mesmo
aponta a similaridade de ambos no que diz respeito a uma visão retilínea do
tempo; neste sentido, todas as conquistas consideradas modernas também foram
apreendidas como parte de um processo contínuo de “aperfeiçoamento”, de
progressão temporal. Como aponta Reinhard Koselleck, mesmo noutra ótica,
o progresso reunia, pois, experiências e expectativas afetadas por um coeficiente de
variação temporal. Um grupo, um país, uma classe social tinham de estar à frente
dos outros, ou então procuravam alcançar os outros ou ultrapassá-los. Aqueles
dotados de uma superioridade técnica olhavam de cima para baixo o grau de
desenvolvimento dos outros povos, e quem possuísse um nível superior de
civilização julgava-se no direito de dirigir esses povos. (Koselleck, 2006, p. 317)
Sem esse coeficiente não poderíamos entender o que foi o colonialismo e o
imperialismo capitalista. Como nos explica Eric Hobsbawm:
A novidade [do imperialismo] no século XIX era que os não-europeus e suas
sociedades eram crescente e geralmente tratados como inferiores, indesejáveis,
fracos e atrasados, ou mesmo infantis.” (Hobsbawm, 1988, p. 118).
Do mesmo modo não poderíamos entender a condição moderna brasileira,
como uma ex-colônia, marcada pela ideologia da consciência e ideologia do
atraso em relação a um modelo de modernidade que parecia apenas vingar em
solo europeu ou, quando muito, norte-americano. Seria essa a consciência que
marcaria o pensamento social, cultural e econômico brasileiro, pois parecia que a
originalidade, a invenção e a novidade brasileiras perderam o horário do trem da
modernidade. Essa peculiaridade estaria presente tanto naquilo que Antonio
Candido chamou de “consciência amena de atraso”, mesmo que eufórica, quanto
na “consciência do subdesenvolvimento” do pós-Segunda Guerra. (Mello e Souza,
1979, p. 355).
Como uma espécie de desejo da negatividade, a modernidade brasileira será
então pensada em termos de falta, de insuficiência, como algo a ser construído,
mas como uma construção sempre “atrasada”, ultrapassada, que ocupa apenas
brechas dentro do processo de modernização. Sílvio Romero já apontava o fato de
29
que a modernidade aqui chegara pelas velas dos Grandes Descobrimentos, mas
seria difícil não pensar como Caio Prado Júnior que viu na Colônia apenas uma
grande empresa para servir de produtor de matérias primas para a Metrópole.
Portanto, a modernidade (colonial) brasileira seria apenas um dos processos de
acumulação primitiva de capital pela qual a burguesia europeia fundaria o
capitalismo industrial, como atesta Karl Marx, n’O Capital:
A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a
escravização e o enfurnamento da população nativa nas Minas, o comércio da
conquista e pilhagem das índias Orientais, a transformação da África em um
cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era da produção
capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais para a acumulação
primitiva. (Marx, 1984, p. 285)
Tal processo marcará aquilo que Francisco de Oliveira chama, no contexto
do subdesenvolvimento, de “produção da dependência”, em que essa
“singularidade histórica” constituía a “forma do desenvolvimento capitalista nas
ex-colônias transformadas em periferia, cuja função histórica era fornecer
elementos para a acumulação de capital no centro.” (Oliveira, 2003, p 126).
A história da modernidade brasileira então contorce com a ambivalência da
ambivalência, a modernidade da modernidade. Porque estaríamos à parte da
modernidade como modelo europeu de uma sociedade capitalista, o nosso
problema moderno seria mais angustiante dado as “singularidades históricas”: um
passado colonial, de economia agrária baseada em trabalho escravo produzindo
para o mercado externo. Como então pensar nessa modernidade líquida às custas
de um processo que marcou profundamente e ainda marca a sociedade, a
economia e a cultura do país? O caso brasileiro, como o da América Latina, tem
uma especialidade incomum: o escancaramento da aberração de um sistema de
produção baseado na desigualdade levada ao extremo, de uma modernidade falsa
porque reguladora, de uma democracia e uma justiça indiferentes porque
condizentes com a perseguição e o genocídio, a exclusão e a marginalização,
capazes de gerar termos tais como “modernização conservadora”. É que tudo o
que no “centro” do capitalismo existe de problemático, de perturbador e ao
mesmo tempo esclarecedor do que corre como ideologia, na “periferia” pode ser
posta à prova porque aqui qualquer corrente de ideias será duplamente
30
contraditória e paradoxal porque relegada e amalgamada com uma condição de
desigualdade interna e dependência externa herdadas do passado.
2.2. Moderna tradição brasileira
A busca e a continuidade se relacionam porque os modernos, assim que
negam um passado não-moderno têm como condição as tradições, o “eterno”
baudelaireano. Num e noutro encontramos a atualização de um presente na
relação entre nós que olhamos um esqueleto e eles, “imutáveis”, que a cada manhã
nos olham recém-nascidos. Esse encontro com o presente que se interpõe na
necessidade do passado fez parte do romantismo brasileiro, o que já em si nos
denuncia que o debate moderno, a disputa e busca do presente, não nos é alheio.
Pelo contrário.
A modernidade brasileira, ao buscar um sentido comum, a unidade, a
identidade, o sentimento particular e a crítica feita em nome de uma só verdade —
o Brasil na sua identidade —, variável nas perguntas mas imutável em uma
resposta, criou para si uma tradição que, pela ótica de Octávio Paz, é moderna
pelo sentimento apaixonado e pela crítica, mas que “não o é” pelo mesmo
sentimento e pela mesma crítica, ambas escancaradas ou disfarçadamente envoltas
em um único problema, um espectro que ronda a inteligência, o seu aroma
espiritual, atitudes e premissas modernas para uma finalidade brasileira, do
romantismo ao modernismo: o problema da identidade nacional brasileira.9 É o
que Abel Baptista chamou de Lei nacional:
A lei, lei nacional ou da nacionalidade literária, impõe-se com o movimento
romântico, mas sobrevive-lhe; atravessa-o, mas não se esgota nele, nem nos seus
princípios, nem no seu programa, nem na sua retórica: instala a questão nacional
como centro de gravidade da reflexão literária, torna ilegítima toda a tendência
para encarar a possibilidade de uma literatura resistir ao Brasil; por outro lado,
integra o fio de uma tradição única e contínua às sucessivas e diversas
interpretações do Brasil. Assim, não há projeto fora dessa conjunção, já o vimos,
mas a lei ameaça que é a própria literatura brasileira que desaparece se perde a
referência ao seu fundamento e à garantia de sua existência: porque deixa de se
distinguir, e só se distingue ostentando uma harmonia com a realidade brasileira, a
identidade brasileira ou o caráter nacional brasileiro, como se lhe queira chamar.
(Baptista, 2003, p. 31)
9 Não que “não seja moderno”, porque, como veremos, ele é mais que isso, mais moderno que a
modernidade.
31
De certo modo essa constatação não é tão nova assim.10
Muitos autores já
atentaram para a ideia de que a literatura brasileira só é brasileira enquanto
remeter à sua realidade, à uma presumível alma, pois sem isso não há literatura e,
por extensão, não haverá modernidade. A “identidade brasileira” é então um
espectro que ronda nossa inteligência. A tradição para a ruptura moderna tornou-
se tradição para a unidade brasileira, mas isto não nos faz menos modernos. Ser o
ou não ser moderno, tupi or not tupi, a lei Modernidade, ou lei Brasil, porque ser
brasileiro é ser moderno, mistura-se à tradição; no entanto, a modernidade está
condenada a se anular para manter-se moderna, o Brasil, em nome daquela mesma
modernidade, não. O brasileiro, como o moderno, interroga o passado, mas diante
de um jogo de espelhos em que vê a própria imagem e ouve a própria voz num só
eco. Uma mesma voz ecoa sobre todas as gerações da crítica e da literatura.
Octavio Paz vê um “mesmo princípio” derramado sobre a modernidade europeia,
a corrosiva “paixão crítica”; o caso brasileiro também vê o mesmo princípio, mas
este é por si o mesmo princípio, a tautologia é inescapável. Brasil modernidade e
Brasil mito: olhamos para trás e de certo modo nos petrificamos ou nos
extasiamos apaixonados por nós mesmos, porque na tradição e no passado estão
nossa própria voz e imagem, apenas paixão e não crítica destruidora, mas também
crítica, porque resposta para um presente, e não-paixão, não-arrebatadora ou
imoderada. Por trás de problemas distintos, a mesma busca, um país exigindo
alma, cor, sentimento; um “sentimento íntimo” de modernidade/brasilidade.
Seria de se perguntar se essa lei, se essa necessidade de realidade local
como forma única de legitimação de uma literatura nacional tem relação com o
caráter de dependência de uma ex-colônia. É uma questão sintomática quando a
literatura se encarcera num projeto de construção de identidade nacional porque
esse mesmo ideal é fruto de uma inquietação moderna e modernizante da cultura
brasileira. Como então aliar essa dicotomia de ver nascerem flores locais com
sementes alienígenas (a ideia de modernidade)? De determinar uma ideia local de
cultura com o intuito de assemelhar-se mais e mais com a cultura estrangeira, com
um modelo externo de sociedade? Ser brasileiro para ser como um europeu?
Antonio Candido já afirmara a formação da literatura brasileira como uma
“síntese de tendências universalistas e particularistas.” (Melo e Souza, 2007, p.
10
Basta ver o número de trabalhos acadêmicos que discutem a identidade nacional, dos quais até
mesmo este pode ser incluído.
32
25), mas como não pensar que o particularismo fora o grande mote das duas
maiores correntes literárias e culturais do país, o Romantismo e o Modernismo?
Como não pensar que o satanismo daquele — vide a pujança de Macário, de
Álvares de Azevedo — e o humorismo do vanguardismo foram obliterados pela
obsessão da identidade nacional, enfim, pela lei Brasil de que nos fala Abel
Baptista? O próprio Candido dá a pista, quase óbvia, quando fala do Romantismo
ao afirmar que este “recalcou as tendências satânicas tão características do meado
do século, selecionando as do sentimentalismo e do nacionalismo, mais
comunicáveis (...)” (idem, 2000, p. 143). É mais comunicável, é mais apelativo, é
mais legítimo e, acima de tudo, é mais “populista” insistir numa alma brasileira e
no nacionalismo. Como veremos, no caso do modernismo esse argumento será
válido.
No entanto, seria ridículo e injusto resumir o romantismo nestas poucas
palavras. Na verdade, ele foi e continua a ser a baliza para a lei ou a tradição
Brasil, i. e., os românticos nacionalistas conseguiram ressoar seu projeto no
passado e no futuro. Quer dizer, foi com ele que realmente passou a se constituir
uma tradição moderna brasileira ou tradição brasileira. É que primeiro eles
releram alguns dos mais importantes tratados e parnasos anteriormente escritos
sobre o país e sua singularidade histórica como meio de atingir uma literatura
específica.
Assim foi, por exemplo, com a releitura das teses de Ferdinand Denis. Em
1826, no clima da Independência, escrevia ele no seu Resumo da história literária
do Brasil:
Se os poetas dessas regiões fitarem a natureza, se se penetrarem da grandeza que
ela oferece, dentro de poucos anos serão iguais a nós, talvez nossos mestres (...)
Lamente as nações exterminadas, excite uma piedade tardia, mas favorável aos
restos das tribos indígenas; e que este povo exilado, diferente na cor e nos
costumes, não seja nunca esquecido pelos cantos do poeta; adote uma nova pátria e
cante-a ele mesmo. (Denis, 1978, p. 37-38)
Denis separa uma literatura brasileira de uma portuguesa apontando o
processo de diferenciação entre ambas, a tendência à nacionalização e a busca do
caráter nacional para a literatura brasileira em seus costumes; a riqueza natural é
antes de tudo um grande particular para essa diferenciação, devendo ela ser
33
cantada junto com o índio e suas “nações exterminadas”11
. Não é preciso muito
para ver as similaridades com o nacionalismo romântico, por isso que Antonio
Candido acreditou que o movimento do século XIX apenas retomou as posições
de Denis.
A expressão de uma literatura que punha na imaginação um caráter de
elaboração e descrição de costumes, de crenças, de maneiras de ver o mundo, que
assim realizados, dariam em si o resultado de uma literatura específica porque
retratando uma especificidade local, também foi argumento de Santiago Nunes
Ribeiro, que em 1843 escrevia no seu Da nacionalidade da literatura brasileira:
Este princípio literário e artístico é o resultado das influências, do sentimento, das
crenças, dos costumes e hábitos peculiares a um certo número de homens, que
estão em certas e determinadas relações, e que podem ser muito diferentes entre
alguns povos, embora falem a mesma língua. As condições sociais e o clima do
Novo Mundo necessariamente devem modificar as obras nele escritas nesta ou
naquela língua da velha Europa. (...) A literatura é e expressão da índole, do
caráter, da inteligência social de um povo ou de uma época. (...) Ora, se os
brasileiros têm seu caráter nacional, também devem possuir uma literatura pátria.
(Ribeiro, 1980, p. 46-48)
É mais ou menos nessa concepção de literatura nacional, como condizente
de uma leitura de um mundo particular também nacional, fazendo de uma nação
recém-independente não menos forte no sentido cultural porque ela é, comparada
à antiga metrópole, um outro mundo, com outros costumes e modos, embora com
a mesma língua, que um José de Alencar irá ditar um questionamento-lei básico
no prefácio ao Sonhos D’Ouro:
A literatura brasileira que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou
para o solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana
11
O indianismo romântico praticamente ignorou a realidade indígena contemporânea de seus
projetos e escritos, e nisso reside seu caráter mais especificamente ideológico, segundo Dante
Moreira Leite: “(...) o índio foi, no Romantismo, uma imagem do passado e, portanto, não
apresentava qualquer ameaça à ordem vigente, sobretudo à escravidão. Os escritores, políticos e
leitores identificavam-se com esse índio do passado, ao qual atribuíam virtudes e grandezas; o
índio contemporâneo que, no século XIX como agora, se arrastava na miséria e na semiescravidão
não constituía um tema literário.” LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São
Paulo: Ática, 1992, p. 172. Neste sentido, e apesar dos cacoetes economicistas, Nelson Werneck
Sodré explica a “escolha” do índio e não do negro como temática: “Oriundos de uma classe que
condicionava a posição do negro à uma inferioridade irremissível, os escritores do tempo não
podiam fazer dele o suporte natural de um movimento nativista no plano literário.” SODRÉ,
Nelson Werneck, História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p.
278. Assim, a idealização à europeia (pois Antonio Candido já escrevera que esse índio tinha
“alma” de europeu cavalheiresco) é duplamente falseada e, por isso, a modernidade brasileira é
duplamente “paradoxal”.
34
desta terra que lhe serviu de regaço; e a cada dia se enriquece ao contato de outros
povos e ao influxo da civilização? (Alencar, 1980, p. 132)
Nada mais ilustrativo da ambivalência brasileira que Antonio Candido
asseverava: cosmopolitismo-localismo. Certo? Talvez. O que exista em palavras
não conseguira ser realizado de modo tão sincrônico. O mesmo Antonio Candido
escreveu que os caracteres de uma literatura romântica foram indicados mas
“nunca seriamente investigados nem mesmo debatidos.” O que sobrou foi a mola-
mestra do apelo nacional que ainda assim, numa figura como a do romancista
cearense, tem um caráter menos prosaico como o de outros românticos, dado seu
objetivo de assumir uma “missão” e não ceder apenas a modismos. Neste sentido
é que a polêmica entre Alencar e Gonçalves de Magalhães pode ser vista como
uma disputa onde o caráter moderno, e por isso brasileiro, da literatura estava em
jogo, daí as pesadas críticas daquele contra o estilo épico e maquiado de A
Confederação dos Tamoios, em prol do romance, porque este tinha maior apelo ao
público leitor, então crescente, e mais do que isso, porque também era um gênero
essencialmente moderno. Escreveu Alencar:
A forma com que Homero cantou os gregos não serve para cantar os índios; o
verso que disse as desgraças de Troia e os combates mitológicos, não pode
exprimir as tristes endechas do Guanabara e as tradições da América. (idem, p. 98).
Cultivar outro gênero literário moderno era também uma forma de
introduzir o país na linguagem da modernidade, como se Alencar quisera ser,
neste sentido, um Cervantes brasileiro. Aqui novamente voltamos à mesma
questão. Sentimos o quanto a modernidade e as mediações da nacionalidade e da
literatura nacional são o cerne de questões que parecem estar longe da nossa
problemática. A modernidade deveria ser realizada a partir de diversos flancos.
Como escreve Abel Baptista:
Acresce, por outro lado, que essa era também a época em que a ideia de literatura,
noção moderna articulando uma dimensão estética e uma dimensão institucional e
social, acabava de se impor na cultura europeia, e sem essa condição, como se
compreende, a ideia de nacionalidade perderia a consistência indispensável para
fundamentar todo um projeto. (Baptista, 2003, p. 24)
É neste espírito que o modernismo citará o romantismo, como momento de
extrema precaução quanto à possibilidade moderna do Brasil no que tange à
35
literatura e, por extensão, à cultura nacional. E assim, as particularidades de
ambos já são bem conhecidas. Octávio Paz já assinalava que as vanguardas do
século XX “sabiam que a sua negação do romantismo era um ato romântico que
se inscrevia na tradição inaugural do romantismo: a tradição que nega a si mesma
para continuar-se, a tradição da ruptura.” (Paz, 1984, p. 133). José Aderaldo
Castelo lançara a questão de o modernismo ser na verdade um neo-romantismo. O
fato de que ambos empunharam um projeto nacional contribuiu para que
marcassem intensamente a história da cultura no país12
. Por outro lado, existiu
certo indianismo no modernismo que fora o mote principal das analogias. Mas
Antonio Candido afirmara certas diferenças:
Em nossos dias, o Neo-indianismo dos modernos de 1922 (precedido por meio
século de etnografia sistemática) iria acentuar aspectos autênticos do índio,
encarando-o, não como gentio-homem embrionário, mas como primitivo, cujo
interesse residia no que trouxesse de diferente, contraditório em relação à cultura
europeia. (Mello e Souza, 2007, p. 337).
Já os românticos praticamente transferiram uma ideia de cavalheirismo do
homem europeu para o nativo no intuito de ombreá-los, equiparando-os ao
conquistador. Embora Benedito Nunes não acredite que a segunda fase
modernista fosse um neo-indianismo, ele crê, quanto à Antropofagia, que esta
“converge porém com o romantismo no aspecto da rebeldia, do espírito refratário
à ordem.” (Nunes, 1990, p. 27). Tudo bem, mas seria difícil tratar o espírito
romântico anti-moderno, revolucionário de certo modo, e o espírito romântico
pró-moderno do caso brasileiro, angustiado por uma tradição, por um quinhão de
participação dentro do presente, da modernidade. Novamente o peso da
ambiguidade cosmopolitismo-localismo; mas já sabemos qual lado irá pesar mais.
Ainda assim, entre o romantismo e o modernismo, a melhor característica fora
dada por Mário de Andrade:
Nós tivemos no Brasil um movimento espiritual (não falo apenas escola de arte)
que foi absolutamente “necessário”, o Romantismo. (...) Me refiro ao “espírito”
romântico, ao espírito revolucionário romântico, que está na Inconfidência, no
12
“Na literatura brasileira, há dois momentos decisivos que mudaram toda a inteligência: o
Romantismo, no século XIX (1836-1870) e o ainda chamado Modernismo, no presente século
(1922-1945). Ambos representam fases culminantes de particularismo literário na dialética do
local e do cosmopolita; ambos se inspiram, não obstante, no exemplo europeu.” MELLO E
SOUZA, Antonio Candido. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 103. Os
momentos decisivos foram extremamente particularistas.
36
Basílio da Gama do “Uruguai”, nas liras de Gonzaga como nas “Cartas chilenas”
de quem os senhores quiserem. Este espírito preparou o estado revolucionário de
que resultou a independência política, e teve como padrão bem briguento a
primeira tentativa de língua brasileira. O espírito revolucionário modernista, tão
necessário como o romântico, preparou o estado revolucionário de 30 em diante, e
também teve como padrão barulhento a segunda tentativa de nacionalização da
linguagem. A similaridade é muito forte. (Andrade, 1978, p. 250)
Essa relação política é ainda mais interessante. O preparo de terreno de um
espírito romântico que, para Mário de Andrade, é anterior ao romantismo e ainda
posterior a ele, resultou no espírito de emancipação de 182213
. Incrível quando ele
tenta assimilar tal espírito puxando uma tradição preestabelecida para legitimar o
modernismo como fonte de criação socialmente ativa, o que, na ocasião, era o que
mais importava para o poeta de Paulicéia desvairada, pois a necessidade de uma
avaliação criadora e participativa do “movimento de 1922” é a razão de ser de tal
proximidade entre modernismo e romantismo, como bem poderemos ver mais
adiante. Importa saber como ele consegue tradicionalizar (o termo é dele mesmo)
toda a história literária brasileira, reportando até os poetas árcades um espírito de
independência que marcaria tanto o lado político quanto o literário. Se existiu uma
disputa quanto à ocorrência de uma literatura nacional ou nativista tendo como
balizas ou o Arcadismo, como no caso de Antonio Candido (2007), ou a literatura
colonial que “começou no primeiro século com a obra anchietiana”, como quer
Afrânio Coutinho (Coutinho, 1968, p. 170), Mário de Andrade dá o recado de que
o que importa é o espírito revolucionário que regeu o passado brasileiro e que
desembocou em duas revoluções políticas, a Independência e a Revolução de
1930.
É bem interessante pensar como essa tradição progressista, retilínea, meta-
histórica, teleológica ou, como diria Coutinho, esse “esforço plurissecular”,
“evolutivo”, que “expressou-se na literatura por intermédio de uma série de
tradições que foram sendo adaptadas ao espírito nacional” (idem, p. 179), teve um
caráter marcadamente e quase que intrinsecamente político, acompanhando, por
um lado, uma passagem da condição de colônia à de nação independente, e, por
outro, de virada institucional dentro da organização política do país, dando início
13
Escreve Mário sobre na ocasião do Centenário do Romantismo: “O verdadeiro Romantismo no
Brasil talvez se deva datar de 1500; e quanto ao chamado Romantismo de escola só veio mais
tarde em 1830.” ANDRADE, Mário. Centenário do Romantismo In Taxi e crônicas no Diário
Nacional. São Paulo: Duas Cidades, 1976, p. 195.
37
àquilo que se chamaria de “modernização conservadora”, com o governo Vargas.
Esse espírito revolucionário, de todos os modos, não passaria de uma
reformulação de acampamentos políticos das elites brasileiras, marcadas pela
injustiça social, autoritarismo e ditadura, além de perseguições em ambos os
momentos.
A modernidade em si é ditada por esse viés em que a nacionalidade e um
modelo específico de crescimento e de desenvolvimento não admitem a inclusão
da maioria da população, e tanto a literatura quanto a política, quando
ferrenhamente entrosadas num projeto de nacionalização, não conseguiram e
ainda não conseguem mostrar um caminho que não se coadune com a ideologia
das classes dominantes. Quanto a isso o Romantismo ou o Modernismo, dois
dinossauros da cultura no Brasil, não se eximem dessa responsabilidade. Como
escreve Octavio Ianni: “os prenúncios do Brasil moderno esbarram em pesadas
heranças de escravismo, autoritarismo, coronelismo, clientelismo. (...) O povo,
enquanto coletividade de cidadãos, continuava a ser uma ficção política. (Ianni,
1992, p. 33). Não queremos dizer, no entanto, que o nacionalismo fosse em si
venal, uma “ideologia” per si, mas os ditames dessa ideia de base “imaginada”14
serviu e serve antes para a cegueira de ortodoxias do que para a crítica
emancipadora, seja social ou mesmo teórica. Acontece que é preciso compor o
esquema do capitalismo colonial e imperialista para atentarmos para o
nacionalismo defensivo daqueles países de herança colonial, embora esse
nacionalismo seja também um subproduto alienígena, na medida em que escorrem
ideias também europeias. De modo que ocorre uma situação peculiar digna da
modernidade dos trópicos: o fato de que as benesses do capitalismo, sua
civilização e cultura, sejam por um lado um modelo a ser seguido e, por outro, a
constatação de que essa modernidade seja marcada aqui sob a condição do grilhão
da espoliação por nações estrangeiras, i.e., uma ambiguidade ou paradoxo duplo
novamente afeta a consciência de ver-se subjugado para entrar no “concerto das
14
Referência ao conceito de Benedict Anderson: “(...) proponho a seguinte definição de nação:
uma comunidade política imaginada — e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao
mesmo tempo, soberana.” ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Trad. Denise
Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 32. Não vamos nos ater aqui às discussões
sobre o conceito de nação a partir da visão de determinados autores, que são muitos, diga-se de
passagem. Foi preferível apontar como a nacionalidade era vista instrumentalmente a partir de
alguns autores e, depois, na mente dos modernistas; maneira mais “prática” do que a cansativa
especulação acadêmica do conceito de nação.
38
nações” desenvolvidas15
. Mais do que isso, enquanto marca da modernidade
brasileira, o nacionalismo e sua lei atravancaram em muito a criação livre que em
si mesma poderia ser porta de entrada para uma literatura brasileira e universal,
como é o caso de um Machado de Assis ou de um Guimarães Rosa, como explica
Dante Moreira Leite, pois neles se observam a superação da dicotomia particular-
universal revelando uma literatura aberta, pois suas “obras revelam, abaixo das
peculiaridades da situação brasileira, os conflitos humanos subjacentes em
qualquer literatura.” (Leite, 1992, p. 322). Como veremos, esse será também o
destino da literatura drummondiana, quando ele abandona o direcionismo
nacionalista marioandradiano em prol de uma liberdade de expressão pessoal,
social e humana.
Essa ponderação serve para que tenhamos em mente uma condição dessa
lei: ao tentar retratar uma ideia de Brasil, o dito pensamento brasileiro rendeu-se
às teorias racistas, psicologicistas, evolucionistas, segregadoras, e acima de tudo,
elitistas. Cabe pensarmos que a modernização brasileira deu-se pela “brasilização”
do Brasil, i.e., pela conferência de um pensamento que tivesse como teor as
possibilidades de efetivação de uma nação essencialmente moderna e, para isso,
entrou fundo na teorização da alma brasileira, do seu modo de se comportar, de
suas maneiras e valores, enfim, do caráter brasileiro. É aqui que as antigas teses
de um Ribeiro Nunes ou de um Ferdinand Denis e seus derivados entram, porque,
na tentativa de elucidar o modo de ser do brasileiro e assim especificar um modo
de fazer literatura nacional, essas ideias deram vazão aos estudos de caráter do
brasileiro. Escreve Afrânio Coutinho sobre os “traços” brasileiros e suas “formas
sociais de caráter”:
Esses traços é que a literatura traduz, consciente e inconscientemente, através dos
personagens, dos episódios, das cenas, dos conflitos, dos enredos, das descrições de
usos, e costumes, das reações psicológicas dos tipos, do comportamento e atitudes
dos indivíduos, das reações psicológicas. (Coutinho, 1968, p. 180).
Sob o questionamento: “como fixar a literatura brasileira sem saber como é
o caráter nacional brasileiro?”, Coutinho dá a entender que a literatura nacional
requer a conceituação de um caráter nacional. É neste momento que a lei Brasil
15
Cf. AHMAD, Aijaz. Cultura, nacionalismo e papel dos intelectuais In Linguagens do presente.
São Paulo: Boitempo, 2002.
39
pode entrar no campo mais perigoso da ideologia do nacionalismo; ela não apenas
expõe personagens e situações mas teoriza uma psicologia do brasileiro, algo que
estaria dentro de si e é quase impermeável às mudanças, portanto anti-históricas e
deterministas; daí, então, que surgirão os tipos: o brasileiro como preguiçoso,
luxurioso, sentimental, triste, saudosista, desorganizado etc.
No entanto, segundo Dante Moreira Leite, há uma diferença entre a
descrição de um hipotético caráter do brasileiro e da ideologia desse pretenso
caráter essencial. Explica ele que, “a indicação de traços parece menos
significativa que a tentativa de explicação, pois é nesta que o ideólogo se revela.”
(Leite, 1992, p. 142). É isso que separa alguns autores citados anteriormente de
um Euclides da Cunha ou de um Sílvio Romero. Enquanto estes tentam explicar
determinados caracteres nacionais do povo por eles esboçados, atentando às mais
variadas condições, desde o clima à miscigenação, aqueles que estudaremos
apenas se reportam a um caráter dado sem uma apresentação sistemática ou
coerente de uma resposta para tal ou qual traço. Porém, ainda se revelam no
campo do nacionalismo e da ideia de um caráter intransponível da gente brasileira.
Quando esse caráter é teorizado, resultando numa segunda ideologia, abrem-se as
portas entreabertas que o nacionalismo deixara. Nem sempre a “ideologia do
caráter nacional” e o “caráter nacional” provindo do nacionalismo se encontram,
pois embora esse seja praticamente uma lei, aquela é um perigo iminente que
acompanha apenas determinados momentos da nossa história16
. Veremos então
quando isso ocorre.
Entre o fim do século XIX e início do XX irá existir um pensamento de
tendência “antropológica” e social que problematizará o problema do caráter
brasileiro aliado às condições da modernização do país, formando um verdadeiro
“lençol ideológico”, se formos pegar emprestado os termos de Afrânio Coutinho.
Surge uma crítica que pensa a literatura em termos de nacionalidade; ela alia-se
então à já estabelecida literatura pedinte de realidade local, de natureza tropical e
de psicologia brasileira. Talvez o intelectual que soube melhor responder essas
questões fora Sílvio Romero, da Escola de Recife. Suas influências — dentre
16
Como explica Dante Moreira Leite: “A situação seria um pouco diferente se pretendesse estudar
o nacionalismo na vida intelectual brasileira, pois é provável que o nacionalismo — em seus vários
aspectos e em suas várias fases — constitua uma corrente capaz de ligar, de maneira coerente, uma
grande parte da vida intelectual brasileira. Dentro dessa história, as ideologias do caráter nacional
ficarão como um aspecto decisivo em determinada época, praticamente inexistente em outras.”
LEITE, Dante Moreira. Op. Cit. p. 148.
40
outros: Buckle, Molleschott, Spencer, Darwin, Haeckel, Büchner, Vogt e Huxley
— são de teóricos ou autores marcados pelo evolucionismo. Sua figura é a mais
controversa e intrigante, pelo seu jeito pessoal de debater as questões tratadas,
gerando polêmicas com grandes nomes nacionais; ele é mesmo a grande figura do
que se chamou “A geração de 1870”, ou o que José Veríssimo chamou de época
do modernismo:
O movimento de ideias que antes de acabada a primeira metade do século XIX se
começara a operar na Europa com o positivismo comtista, o transformismo
darwinista, o evolucionismo spenceriano, o intelectualismo de Taine e Renan e
quejandas correntes de pensamento, que, influindo na literatura, deviam pôr termo
ao domínio exclusivo do romantismo, só se entrou a sentir no Brasil, pelo menos,
vinte anos depois de verificada a sua influência ali. Sucessos de ordem política e
social, e ainda de ordem geral, determinaram-lhe a manifestação aqui (...) estes
diferentes sucessos produziram um salutar alvoroço, do qual evidentemente se
ressentiu o nosso pensamento e a nossa expressão literária. Às ideias, nem sempre
coerentes, às vezes mesmo desencontradas daquele movimento, fautoras também
nos acontecimentos sociais e políticos apontados, chamamos aqui de modernas;
expressamente de ‘pensamento moderno’. (Veríssimo, 1966, p. 249-250)
Romero ilustra bem o vínculo entre o localismo e o cosmopolitismo, só que
mais ou menos filtrado, daí sua originalidade. Por um lado, espera que a sociedade
brasileira atinja a europeia, tendo por base as teorias evolucionistas, integrando
assim o país à civilização ocidental; por outro, defende a cultura popular e suas
influências no folclore, tendo por base a etnografia. Como isso seria possível?
José Veríssimo já nos deu a resposta: o ecletismo (não a filosofia eclética). A
mistura de diversos teóricos, dava um sabor contraditório ao bando de ideias que
assolavam o país em meados do século17
; essa constatação causava um incômodo,
segundo Octavio Ianni:
A realidade social, econômica, política e cultural com a qual se defrontavam
intelectuais, escritores, políticos e governantes, profissionais liberais e setores
populares não se ajustava facilmente às ideias e aos conceitos, aos temas e às
explicações emprestados às pressas de sistemas de pensamento elaborados em
países da Europa. (Ianni, 1992, p. 17).
17
“Ocorre, no entanto, que no Brasil — pelo menos até a década de 1940 ou 1950 — não podemos
ser muito rigorosos ao exigir coerência ou um mínimo de organização teórica. A ausência de
universidades, ou, pelo menos, de uma tradição de estudos superiores realizados em nível
comparável ao de outros países, fez com que nossos escritores tenham sido literalmente
desorientados em matéria de teorias filosóficas, sociológicas ou psicológicas.” LEITE, Dante
Moreira. Op. Cit. p. 143.
41
Esse incômodo marca o pensamento brasileiro, principalmente nesta época
em que diversos acontecimentos punham na ordem do dia a elaboração de
respostas para problemas que tal “modernidade” não poderia mais ignorar, como a
abolição da escravatura, o desgaste da monarquia e o crescente movimento
republicano. Nem por isso se pode dizer que essas ideias estavam, de certo modo,
“fora de lugar”, ou eram “emprestadas” à toa, pois elas foram especialmente
selecionadas para pensar o país, revelando mais um teor ideológico. Flora
Süssekind nos explica:
Prefere-se Zola a Flaubert, como entre Marx, Comte e Spencer, escolhem-se os
dois últimos. Não é muito difícil perceber o que se repete nas escolhas. Não se trata
de ‘plágio’ ou ‘imitação’ indiscriminados. A preferência é sempre por qualquer
pensamento que ajude a estabelecer um conjunto de identidades. (Süssekind, 1984,
p. 53).
O incômodo previa a sutileza porque
é também apenas parcialmente certo dizer-se que eles não entenderam o pleno
sentido das ideias que colheram na Europa, pois, como eles os compreenderam,
aqueles conceitos correspondiam exatamente ao que estavam procurando.” (Grahan
apud Ianni, 1992, p. 17-18).
Dentre tantos “bandos de ideias” que surgiam no Velho Mundo, apenas
algumas seriam interessantes para pensar o Brasil, aquelas que mais se alinhavam
à ideia de uma evolução em direção à europeização. Nos diz então Hobsbawm:
O que o imperialismo trouxe às elites efetivas ou potenciais do mundo dependente
foi, portanto, essencialmente a ‘ocidentalização’. Esse processo já estava, sem
dúvida, em curso há muito tempo. Por várias décadas fora claro, para todos os
governos e elites confrontados à dependência ou à conquista, que eles tinham que
se ocidentalizar, caso contrário desapareceriam. E, de fato, as ideologias que
inspiram essas elites na era do imperialismo datavam dos anos entre a Revolução
Francesa e meados do século XIX, como quando revestiram a forma do
positivismo de August Comte, doutrina modernizadora que inspirou os governos
do Brasil, do México e do início da Revolução Turca. (Hobsbawm, 1988, p. 115)18
18
Da tara da ocidentalização nascerá um processo ambíguo de desvalorização e explicação da
“inferioridade” brasileira em termos não econômicos e estruturais do capitalismo, o que Nelson
Werneck Sodré chamará de ideologia do colonialismo: “Através da ideologia do colonialismo, a
camada culta dos povos oriundos da fase colonial estrita é ganha — preparada que está pela sua
condição de classe — para aceitar a subordinação econômica, atribuindo-a a fatores não materiais:
superioridade de raça, superioridade de clima, superioridade de situação geográfica, que
predestinam as novas metrópoles. É, em suma, a preparação do imperialismo (...)” SODRÉ,
Nelson Werneck. A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Petrópolis:
Vozes, 1984, p. 8.
42
O paradoxo dessa modernidade é tanto que, mesmo em prol de uma
literatura que deva se “encostar ao gênio, ao espírito popular nas suas
eminências”, Romero temia o poder de transformação social desse mesmo espírito
popular, como explica Antonio Candido: “Fica patente a sua ideologia de cunho
progressista e, ao mesmo tempo, o seu receio em face das mudanças bruscas e
profundas, já demonstrado quando se opôs à extinção imediata da escravidão (...)”
(Mello e Souza, 1978, p. 164). Apesar de concluir que o “povo brasileiro
representa uma fusão; é um povo mestiçado” e de pensar que a história do Brasil é
a história
da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que
predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas
ideias. Os operários deste fato inicial tem sido: português, o negro, o índio, o meio
físico e a imitação estrangeira. (Romero, 1980, p. 54)
o autor de Estudos sobre a poesia popular no Brasil afirma, categoricamente, que
“o elemento branco tende em todo o caso a predominar com a internação e o
desaparecimento progressivo do índio com a extinção do tráfico dos africanos e
com a imigração europeia” (idem, p. 121), dando razões para questionarmos como
o caráter essencialmente mestiço que define o brasileiro tende assim a se acabar
junto com o embranquecimento do país, como se o brasileiro em essência
tendesse a desaparecer para dar lugar a outro “tipo”, branco, europeizado. Seria
preciso antes nos perguntarmos como essa modernidade sobreviveria sem nenhum
caractere brasileiro, como é o caso da tara desses intelectuais ansiados pela
descoberta do modus operandi da psique nacional, para assim tentar resolver seu
“problema”. A ambiguidade dupla, a negação da negação, continua sendo uma lei
nessa modernidade. A questão principal é de que, em nome da realidade local e de
uma ideia de representação da realidade brasileira que lhe impulsionassem em
direção à modernidade, as diferenças seriam amenizadas, os conflitos das ideias
ver-se-iam irmãos de propósitos, tudo para cunhar um pensamento que coroasse
uma resposta para a diversidade e as diferenças brasileiras. Como nos escreve
Coutinho:
Destarte, herdando do romantismo a ideia da valorização da ‘cor local’, o realismo
emprestou-lhe um traço peculiar graças à doutrina positivista do ambientalismo, ao
43
mesologismo de Buckle e à filosofia determinista de Taine quanto à origem da
literatura nos fatores do meio, raça e momento, ampliando-a na teoria do localismo
regionalista, de que participou toda a geração de 1870 na busca do caráter nacional
para a literatura. (Coutinho, 1968, p. 128)
Roque Spencer de Barros acreditava que, enquanto o romantismo buscava a
peculiaridade, no típico e no insólito, a geração de 1870 pensaria o contrário, pois
ela desejava a integração do país junto à civilização ocidental e
compreender que nossas diferenças em relação com os países mais adiantados do
Ocidente não como uma ‘diferença de natureza’ mas como uma diferença de fase
histórica, entendida segundo o modelo de uma filosofia progressista. (BARROS,
1967, p. 14).
Apesar das disparidades entre as teorias cientificistas da geração de 1870 e o
Romantismo, não é difícil julgar que permaneceu a mesma preocupação quanto à
questão nacional: a necessidade de explicar o problema da possibilidade de uma
modernidade brasileira, como finalidade última, com a diferença de que aquela
geração agia sob a proteção tutelar de sistemas teóricos os mais diversos que
dariam mais legitimidade e autoridade às analises científicas contra os “doces,
enganosos e encantadores cismares” do romantismo. Como explica Lúcia Lippi
Oliveira:
Entender o Brasil, construir o Brasil, era uma meta fundamental para esses homens
que julgavam que o país deveria repetir, de forma acelerada, a experiência do
Ocidente. Neste contexto, a construção de um sentimento brasileiro tinha uma
importância fundamental, sendo a nacionalidade o critério básico de avaliação dos
produtos literários. (Oliveira, 1990, p.85)
É neste sentido que Sílvio Romero afirmará que “tudo quanto há contribuído
para a diferenciação nacional, deve ser estudado, e a medida do mérito dos
escritores é este critério novo.” (Romero, 1980, p. 54). Apesar de se identificar
como cientificista e anti-romântico, Romero
não encontra um outro critério de avaliação, a não ser aquilo mesmo que combate
(...) usa o critério popular e étnico para explicar o caráter nacional e, ao mesmo
tempo, o ‘critério positivo e evolucionista’ ao tratar das ‘relações do Brasil com a
humanidade em geral.’ (Leite, 1992, p. 185)19
.
19
Cruz Costa tem outra visão: “Não nos parece, pois, que Sílvio Romero tenha sido em filosofia
uma espécie de ‘barco sem leme nem bússola.’ (...) A bússola do filósofo é o conjunto das
condições que a própria vida histórica traça. É certo que Sílvio Romero oscilou — e oscilou
44
Com essa aparente contradição, Romero é um dos exemplos mais
interessantes de casos em que a teoria espanta-se com a realidade, obrigando-se a
rearticular novas maneiras, concepções e tentativas de hipóteses que não punham
em risco o vigor do pensamento mediante a acidez corrosiva do mundo empírico,
e é por isso que daí decorrerá uma visão de mundo por vezes até mesmo coerente
ou por outra meramente ornamentada pela autoridade científica, mas que nada
prova ao acerto de contas do real. Ele não foi o primeiro nem o último, pois em
homens que sofreram sua influência, como Euclides da Cunha ou Oliveira Viana,
e outros intelectuais de sua época,
Há sempre algum ou muito exorcismo. Trata-se de explicar as lutas sociais
[Canudos, Abolição, Imigração, República] em termos raciais. Querem descobrir
as raízes do atraso, barbárie, fetichismo, fanatismo das coletividades, multidões.
Em lugar de compreender as condições econômicas e políticas das desigualdades
sociais, buscam explicações geográficas, raciais, evolucionistas, darwinistas,
disfarçadas de antropologia científica, em geral a antropologia formulada no
âmbito do colonialismo e imperialismo da Inglaterra, França, Alemanha, Estados
Unidos e outros países. (Ianni, 1992, p. 137)
O apelo à caracterização racial para a descortinação do problema nacional
chega a paroxismos tais e inebriantes que podemos perceber tantas ambiguidades
nesse exorcismo a ponto de revelar-nos respostas por cima de outras respostas,
ideologias por cima de ideologias. Assim é que Sílvio Romero disserta em seu
livro contra Machado de Assis, por razão do anglofilismo desse e de seus vários
aspectos “alienígenas”:
(...) uma pequena elite intelectual separou-se notavelmente do grosso da população
e, ao passo que esta permanece quase inteiramente inculta, aquela (...) atirou-se a
copiar na política e nas letras (...) é este o mal de nossa habilidade ilusória e falha
de mestiços e meridionais, apaixonados, fantasistas, capazes de imitar, porém
organicamente impróprios para criar (...) (Romero, 1897, p.122)20
.
Aqui a explicação racial é mesclada pela diferenciação de classe, fonte dos
problemas díspares de visão de mundo que assolam os dois lados da nação, pois
bastante mesmo — como oscilam aqueles que são bafejados pelo salutar espírito de dúvida, todos
os que sentem a importância da inquietação que é sinal de vida. Interessado na vida prática, Sílvio
Romero não se consumiu na pesquisa de abstrações. Se assim tivesse feito, não nos teria deixado
essa grande obra que é a sua.” CRUZ COSTA, João. Contribuição à história das ideias no Brasil.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967 p. 301. 20
Cf. SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração In Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra,
2009, p. 123-127.
45
Romero entende que é a elite, tanto a política quanto a ilustrada, que tem o
problema da cópia e imitação, razão do seu interesse pelo folclore e poesia
popular. A advertência é, de certo modo, quase um lugar-comum à crítica destes
pensadores e, embora usassem como métodos e teorias elaborações estrangeiras,
pareciam eles entender que o próprio pensamento sobre a modernidade brasileira
e, consequentemente, de sua viabilidade “antropológica” ou psicológica — pois a
resposta estaria no dessecamento do caráter e da moral do seu povo — só seria
vigoroso se inspirado num ideário legítimo e confiável, sendo que isso dependeria
de cada época. A crítica que uma geração fará à sua anterior cumprirá o mesmo
ritual ilusório de lançar mãos de um “caudal de ideias do moderno” para dar nome
a um monstro de contradições que é o país, ao mesmo tempo em que repudia a
“macaqueação”, o “mimetismo”, o “copismo” nu e cru dos antecessores. É assim
que tais exorcismos, dos quais nos fala Octávio Ianni, não se esgotam na própria
ideologia do caráter racialista e psicologista, como nos mostra essa passagem de
Romero, pois seria muito tomá-los como ingênuos, ignorantes da realidade a que
tanto diziam se dedicar, e é justamente pelas disparidades, nem sempre passíveis
de aclimatação, que as brechas dessa modernidade duplamente ambígua mostra
suas brechas. Mas uma hora ou outra a cicatriz de Ulisses tem que aparecer.
Essa cicatriz, novamente infeccionando e jorrando sangue, por certa época
chamou-se Canudos. A partir dela Euclides da Cunha tem que confessar:
Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na
penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente.
Iludidos por uma civilização de empréstimo; respingando, em faina cega de
copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações,
tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências
da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver
e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da
Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos (...) (Cunha,
1966, p. 231)
Sob diferenças de classe e diferenças regionais, como explicar e, mais do
que isso, reconhecer um futuro para tal nação? Euclides da Cunha é outro
exemplar de cientista cuja teoria não se adequava à realidade que se pretendia
objeto de pesquisa pré-conceituado. É neste sentido que se podem encontrar
diversas ambiguidades no seu Os sertões, como Dante Moreira Leite procurou
demonstrar, pois ao mesmo tempo o autor esboça duas teorias incompatíveis: uma
46
delas afirma que a civilização21
esmagaria as “sub-raças sertanejas” obedecendo
às determinações evolucionistas da sobrevivência dos mais fortes22
, mas, por seu
lado, a outra afirma que o sertanejo seria a raça forte, em comparação com a
litorânea, capaz assim de constituir a futura raça brasileira. (Leite, 1992, p. 211).
Se o sertanejo é uma rocha viva, então, como mestiço fadado à extinção, poderia
ser ele o construtor de uma civilização brasileira? Se existe um declive de classe
ou de raça ou de cultura, então como pensar numa unidade brasileira capaz de
amortecer tais disparidades enormes e tão enraizadas (três séculos) na história do
país?
A verdade é que, lendo a contrapelo, tanto Euclides quanto Romero
demonstraram que a “civilização” não se fazia através da entrada compulsória na
modernidade — e Canudos mesmo demonstrara que a realidade é tão fugidia e
impermeável de teorizações abstratas e estranhas ao solo dos problemas nacionais,
díspares dos problemas modernos europeus. É interessante então compreender
como essa modernidade exigia exclusões e marginalizações em troca da inclusão
dentro de um sistema cruel de hierarquização da divisão de trabalho capitalista —
exclusões também reproduzidas a nível cultural, como vimos na introdução deste
trabalho. Os paradoxos da modernidade aqui se revelam críticos devido a esses
declives e dilemas de um país que para crescer, segundo um paradigma baseado
em desigualdades assimétricas, deve arcar com o preço de vidas humanas e de
outras organizações alternativas em nome de uma sublocação tão periférica e
marginal quanto à daquelas mesmas multidões dizimadas em Canudos. A
gradação dessa desigualdade, desde a hierarquia entre países coloniais e ex-
colônias até o abismo que separa os pobres e “rudes patrícios” de Euclides e a
“pequena elite intelectual” de Romero, faz parte assim de um sistema
estruturalmente vicioso, que exige a desigualdade e a dominação econômica como
seu motor de produção e reprodução.
21
Escrevera Euclides da Cunha em 2 de dezembro de 1888, no auge da crise pós-Abolição do
Império: “Desiluda-se o governo. A civilização é o corolário mais próximo da atividade humana
sobre o mundo; emanada imediatamente de um fato, que assume hoje, o caráter positivo de uma lei
— a evolução —, o seu curso, como está, é fatal, inexorável, não há tradição que lhe demore (...)
CUNHA, Euclides. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, v. I, p. 544. 22
Apesar da “retratação”, a sua posteridade não teve um bom uso, pois, como explica Gilberto
Freyre, “não há dúvida de que, como Nina Rodrigues, e como, em certas fases de sua vida, o
contraditório Sílvio Romero, Euclides padeceu daqueles preconceitos cientificistas contra mulatos
e cafuzos, concorrendo, talvez, para o ‘arianismo’ dos Oliveira Viana: seus sucessores imediatos
nos estudos de homens e populações brasileiras.” FREYRE In CUNHA. Op. Cit., p. 29.
47
No entanto, entre aquelas sequelas da modernidade que envolviam o “fator
humano” e a modernidade baseada num “caudal de ideias”, talvez o que mais
ficou de interesse para a inteligência brasileira em Os Sertões, antes da “denúncia
de um assassinato”, fora o grito por uma reforma da inteligência, pois, como
afirma Cruz Costa,
não é como filósofo que ele [Euclides] tem saliente lugar na história das ideias do
Brasil no século XX. É porque com ele se inicia a reação contra o sebaritismo
intelectual, contra a faina cega dos copistas dos pensadores de empréstimo.
(COSTA, 1967, p. 335)
Apesar disso, só podemos encará-lo a partir daquele “exorcismo”, embora,
no caso de Euclides, um exorcismo angustiado meio “retratação do tributo
republicano”, meio “retratação do seu determinismo geográfico e racial”, como o
quer José Guilherme Merquior23
(Merquior, 1996, p. 264).
É essa civilização “inexorável” de Euclides que, em outro sentido, Graça
Aranha irá chamar de Todo Infinito. Só que aqui ela não se apresenta como algo
determinado como o único destino a ser seguido: era a alma brasileira que deveria
se integrar no Cosmos, daí ser sua filosofia chamada de integracionista —
resultado escasso do monismo de seu mestre Tobias Barreto. Graça Aranha é
derradeiro pupilo da Escola de Recife e será o homem que tentará fazer a ligação
viável entre o século XIX e suas teorias filosófico-cientificistas e as vanguardas
do século XX; não precisaríamos de muita imaginação para saber o quanto essa
aproximação seria infrutífera. Mas o que vale em Graça Aranha aqui é a sua
leitura e visão cosmológica, metafísica e intuitiva do Brasil, cheia de filosofices e
de um discurso caricato que deixa a desejar se formos comparar com os grandes
nomes formados na Faculdade de Direito de Recife, como Sílvio Romero e Tobias
Barreto, Farias Brito e Capistrano de Abreu. A riqueza documental e empírica de
uns desses e mesmo a longevidade filosófica de outros demonstram o quanto,
naquele momento, o auge do pensamento tão cultuado por Romero como modelar
para o país já estava decadente e testemunhava seus últimos suspiros.
No mesmo ano de publicação de Os sertões, 1902, Graça publica Canaã,
espécie de romance-debate sobre os embates resultantes de um novo Brasil que se
23
As decepções e os fantasmas de tais exorcismos foram uma constante em sua vida logo após a
República. Cf SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras,
2003, p. 186-187.
48
aflorava sobre o trabalho da mão-de-obra estrangeira e das prerrogativas agrárias
no desenvolvimento do país. Nele há momentos que fariam rejubilar os olhos de
um Sílvio Romero com sua ideia de embranquecimento e de europeização, com
atesta o imigrante Lentz:
Nós renovaremos a Nação, nos espalharemos sobre ela, a cobriremos com nossos
corpos brancos e engrandeceremos para a eternidade. (...) Falando-lhe com melhor
franqueza, a civilização desta terra está na imigração de europeus, mas é preciso
que cada um de nós traga a vontade de governar e dirigir. (Aranha, 1981, p. 49).
Nesta curta passagem reside todo o paradoxo antes avaliado por nós sobre a
europeização marcada pela exploração de capitais e instituições estrangeiras24
.
Segundo Cruz Costa, a obra “espelha ainda, cremos, as contradições do
europeísmo dos letrados brasileiros, embora ali apareçam indícios de uma
tentativa de superação dessa situação.” (Costa, 1967, p. 388). Com efeito, a
questão que fica no romance é: devemos aceitar o embranquecimento, mesmo
vindo a partir da guerra e violência, como prega o personagem alemão e filho de
general, sendo que essa manobra seria o começo de uma recolonização do país?
Como aceitar a modernidade se ela, para os povos “atrasados” na medida dessa
mesma modernidade, só seria viável através da dependência e exploração? Pelo
impasse, a nacionalidade então não contribuiria para a modernidade nem a
recíproca seria a mesma.
Mas será mais tarde, com os livros A estética da vida e O espírito moderno,
que a tentativa de um pensamento filosófico moderno sobre a experiência
brasileira desembocaria numa série de contradições de um pensamento pouco
confiável e vigoroso para os seus contemporâneos. N’A estética da vida (1921)
Graça traça uma espécie de “psicologia profunda da coletividade” para tentar
explicar o estado da alma brasileira, que se encontra na fase do terror, fonte da
separação do espírito humano numa dualidade que separa o eu do mundo, e só a
partir dessa superação, apoiando-se no monismo filosófico, é que o brasileiro,
24
Manuel Bonfim, no seu A América Latina, dá uma ideia dessa relação: “Levada à prática, a
teoria do racismo científico deu o seguinte resultado: vão os ‘superiores’ aos países onde existem
esses ‘povos inferiores’, organizam-lhe a vida conforme as suas tradições — deles superiores;
instituem-se em classes dirigentes, e obrigam os inferiores a trabalhar para sustentá-los; e se estes
o não quiserem, então que os matem e eliminem de qualquer forma, a fim de ficar a terra para os
superiores (...) tal é, em síntese, a teoria das raças inferiores.” BONFIM, Manuel apud
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990
p. 117.
49
segundo Eduardo Jardim de Moraes, recuperaria o estado inicial “de inconsciência
e integração no todo que abandonamos no momento em que, moídos pelo terror
inicial, fizemo-nos consciência, diferente e distanciada do todo, tentando
interpretar a realidade.” (Moraes, 1978, p. 24). Para entender como se resolveria
tal problema, Graça dá uma hipótese: “No Brasil, o traço característico coletivo é
a imaginação.” Ele então lança mão de uma explicação: “As raízes longínquas
dessa imaginação acham-se na alma das raças diferentes, que se encontraram no
prodígio de nossa natureza tropical. Cada povo aí trouxe a sua melancolia.”
(Aranha, 1921, p. 86). Para chegar à união cósmica, Graça propõe uma ética da
estética da vida, cuidando de três trabalhos morais: “Deve vencer a ‘natureza’, que
apavora e esmaga, a ‘metafísica’, que lhe vem dessa natureza e da alma das raças
selvagens geradoras do seu espírito, a ‘inteligência’, que é a faculdade de
compreender o universo e no Brasil é estranhamente perturbada.” (idem. p.99).
Essas elaborações complicadas a que nos permitimos a digressão dão conta
do aparato filosófico, tanto quanto o “etnológico”, folclórico ou sociológico, do
qual essa geração e seus frutos incorreram para pensar a questão nacional. Não
resta dúvida que esse é também o derradeiro momento de um pensamento
deslocado de uma nova realidade, que se via indisposto, à época, num mundo
onde uma Guerra Mundial já havia espantado todos os fantasmas que o século
XIX criara, pelo menos seus fantasmas mais situados historicamente num
contexto de expansão e imperialismo capitalista. Assim é que,
apesar do interesse que poderiam ter despertado as suas curiosas fantasias sobre a
metafísica brasileira, cremos que nenhuma influência efetiva, permanente, exerceu
Graça Aranha (...) Ninguém o considerou filósofo e, pelos modos, ninguém se
preocupou muito com o seu terror cósmico, fundamento de sua metafísica...25
(COSTA, 1967, p. 391-392).
A questão nacional então chega a um momento crucial no começo do século
XX. Nos seus primeiros momentos o nacionalismo literário não se erguerá de
forma orgânica, não será prerrogativa de nenhuma “escola” ou de nenhum grupo
que tenha certo número de objetos conjunturais. É apenas com o modernismo que
25
Assim descreveu Alceu Amoroso Lima: “A ‘concepção espetacular do mundo’ seria a
justificação de todos os frívolos, de todos os cínicos, de todos os cabotinos, de todos os ‘príncipes’
da existência. Seria a dissolução da personalidade, quando a cultura e a civilização só se justificam
como concentração e a apuração dessa personalidade.” LIMA, Alceu Amoroso. Estudos literários.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 437 v.I.
50
esse nacionalismo terá tal faceta a nível grupal, como veremos. No entanto, ele
não chega a se esgotar. A problemática da modernidade brasileira ainda terá em
nomes de antropólogos, pesquisadores e cientistas uma explicação que não
hesitará lançar mãos daquelas teorias as quais já citamos. Por outro lado, no
território especificamente literário, o nacionalismo não se sistematizará. Na pós-
Proclamação da República, como explica Lúcia Lippi, “os ‘mosqueteiros-
intelectuais’[Sevcenko], tipos característicos da geração de 1870, acabaram
afastados do prestígio público pela atuação das oligarquias que passaram a
dominar a vida republicana e pela ausência de um publico leitor que os
prestigiasse26
. Outros intelectuais passaram a ‘ornamentar’ em seu lugar o
pensamento nacional.” (Oliveira, 1990, p. 87). Apenas no contexto da Primeira
Guerra veremos um Olavo Bilac percorrendo o país em nome de sua campanha
pela militarização do povo, pela obrigatoriedade do alistamento, pela educação
primária. Mais uma vez, num dos discursos de Bilac podemos encontrar aquela
brecha vista em Romero, de uma questão de classe se travestindo e se ocultando.
Diz no discurso na Faculdade de São Paulo, em 1915, intitulada “Em marcha!”:
Que é o serviço militar generalizado? É o triunfo completo da democracia; o
nivelamento das classes. A escola da ordem, da disciplina, da coesão; o laboratório
da dignidade própria e do patriotismo. É a instrução primária obrigatória; é o asseio
obrigatório, a higiene obrigatória, a regeneração muscular e física obrigatória. As
cidades estão cheias de ociosos descalços, maltrapilhos, inimigos da carta de abc e
do banho — animais brutos que de homens tem apenas a aparência e a maldade.
Para esses rebotalhos da sociedade a caverna seria a salvação. (Bilac, 1996, p. 914)
Apesar de não se considerar militarista, Bilac usa de sofismas para conceber
uma sociedade em que todo o povo seria o exército para que assim “cada
brasileiro se ufane do título de cidadão-soldado.” (idem, p. 939). Só assim ele
conceberia uma democracia que sabia não ser a realidade daquele momento; do
mesmo modo, as desigualdades de classe se dissolveriam nessa espécie de cidade-
estado espartana, onde a beleza estética e física, resultante da prática de esportes,
26
João do Rio traça um retrato dessa nova era: “Os tempos mudaram, meu caro. Há vinte anos um
sujeito para fingir de pensador começava por ter a barba por fazer e o fato cheio de nódoas. Hoje,
um tipo nessas condições seria posto fora até mesmo das confeitarias que são e sempre foram as
colmeias dos ociosos. Depois, há a concorrência, a tremenda concorrência de trabalho que proíbe
os românticos, o sentimentalismo, as noites passadas em claro e essa coisa abjeta que os imbecis
divinizam chamada boêmia, isto é, a falta de dinheiro, o saque eventual das algibeiras alheias e a
gargalhada de troça aos outros com a camisa por lavar e o estômago vazio.” RIO, João. (Paulo
Barreto) apud MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da República das Letras. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1973, p.95.
51
que à época era uma moda, seria prerrogativa dos cidadãos, higienicamente
capazes de exercer sua cidadania em tal pólis, pois, como podemos ver, o discurso
cientificista ainda permanecia atuante, reelaborado agora nas políticas públicas de
higienização e no discurso biopolítico sobre o corpo. No entanto, para o clamor
das contradições, ou seja, da modernidade, a “democracia da força bruta”
desrespeita os desqualificados, pobres e marginalizados, como se esses fossem
obrigados a “serem iguais”, cidadãos compulsórios; com isso o autor de “Via-
Láctea” acaba revelando nesta passagem o seu teor excludente e mesmo
antidemocrático dessa contradição disfarçada de discurso de libertação nacional.
Neste sentido, Bilac, como quase todos os intelectuais vistos aqui, não consegue
forjar um pensamento ausente da marca de sua visão de mundo estrita, porque,
mesmo reconhecendo diferenças, injustiças, desigualdades, eles se entregam ao
preconceito vil e degradante, sendo que é neles que tal situação de penúria acaba
se reproduzindo ao nível ideológico que justifica aquela situação.
Ainda assim, o nacionalismo de defesa nacional de Bilac não se redimira do
velho “cancro” da modernidade brasileira, entregando-se às ideias de raça e
caráter, como fica bem exposto num soneto clássico intitulado “Música
brasileira”:
Mas sobre essa volúpia erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.
És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
(idem, p. 241)
Por esta visão de mundo, de um povo formado por “três raças tristes”,
marcado pelo pauperismo intelectual e material, irá surgir o fenômeno do
regionalismo que predominou durante esta época, principalmente em nomes como
os de Monteiro Lobato, Coelho Neto, Afonso Arinos, e, talvez o mais citado à
época, Catulo da Paixão Cearense. O regionalismo e, principalmente Lobato e seu
Jeca Tatu, será muito atacado pelos modernistas de primeira hora porque, segundo
52
Mário da Silva Brito, “o intelectual deslumbrado com a metrópole cosmopolita
não encontra justificativa para a literatura de iaiás e ioiôs, para as letras caipiras.”
(Brito, 1978, p. 201). Já Menotti Del Picchia afirmaria que
não era ele o derivante do nosso meio, senão um artifício quase cabotinamente
jacobino, destinado a dedilhar as atrofiadas cordas sentimentais de uma raça que se
transforma dia a dia, numa estirpe decidida e máscula, americanizada — ou melhor
— abrasileirada.” (Picchia apud Brito, 1978, p. 202).
Mas este que escreve fora o autor de Juca Mulato, uma obra regionalista de
aspiração sentimental e idealista, uma contra-personagem frente ao realismo
impiedoso de Jeca Tatu. É verdade então que neste momento o modernismo
ligava-se ao tecnicismo e ao urbanismo e não admitia ver a imagem da literatura
reclusa nos sertões e no homem do campo, daí que esse regionalismo não se
coadunava com o otimismo progressista desses modernistas. Por fim das contas,
admitimos que tal
Regionalismo seria, em última análise, um movimento contrário ao nacionalismo,
pois tenderia a salientar diferenças, e não semelhanças, entre brasileiros de várias
regiões. Aparentemente, só no momento em que houve maior segurança quanto à
unidade nacional seria possível acentuar aspectos regionais divergentes. (Leite,
1992, p. 203)
Sobre o regionalismo escreve Mário de Andrade em carta a Luís da Câmara
Cascudo, já em 1925:
Em tese sou contrário ao regionalismo. Acho desintegrante da ideia da nação e
sobre este ponto muito prejudicial pro Brasil já tão separado. Além disso
fatalmente o regionalismo insiste sobre as diferenciações e as curiosidades
salientando não propriamente o caráter individual psicológico duma raça porém
seus dados exóticos. Pode-se dizer que exóticos até dentro do próprio país, não
acha? (Andrade, 2010, p. 64)
Como veremos mais adiante, é justamente num momento em que o país
passa por crises institucionais e sociais que o nacionalismo baterá na porta dos
modernistas, deixando de lado o seu aspecto cosmopolita e tecnicista da primeira
fase e recuperando a linha da tradição brasileira em modernidade, da lei Brasil.
3 Da crítica imanente ao golpe de estado literário
Tendo em consideração a Lei Brasil, o modernismo — sendo visto como um
projeto maior do que o próprio modernismo, i.e., como fato literário e cultural,
além de uma tentativa de sanar todas as disparidades da condição de nação
dependente — admitia para si uma situação que não era apenas dele, mas de toda
a história cultural do Brasil. Nele podemos encarar o problema das possibilidades
de uma cultura organicamente brasileira ou da “civilização brasileira”; é nesse
sentido que o historiador, ao tratar do modernismo, deve proceder numa dialética
constante com todo o complexo da cultura nacional referindo-o, social e
historicamente, a uma “entidade tensamente moderna” ou, especificamente, a uma
tradição brasileira marcada pela dialética modernidade-brasilidade. O
desequilíbrio tectônico que o modernismo causou na literatura, na medida em que
ousou, nos seus primórdios revolucionários do primeiro momento, desvincular-se
desta tradição, comportou a maior audácia que a inteligência moderna tentou
empreender contra a cultura estabelecida, quando toda a harmonia e o bocejo de
uma literatura travestida de um sorriso amarelo da sociedade já gerava o
desconforto de testemunhar os impasses pelos quais o Brasil, ao modernizar-se
sobre as fontes de arcaísmos, já não podia disfarçar. Entretanto, num determinado
momento, os modernistas deixaram de pensar a literatura como expressão de uma
sensibilidade nova, que se entendia com a fluidez moderna, desvirgulando-se
tanto nas ruas quanto nos versos livres, apreendendo, como bem podemos ver nos
primeiros escritos dos moços, a cidade cotidiana numa linguagem que deveria
condizer com o novo ambiente. A partir de 1924, então, o movimento volta a
pensar no Brasil como uma entidade que só será moderna a partir da mediação da
nacionalidade.
Este trabalho seguirá a divisão temática empreendida por Eduardo Jardim de
Moraes ao analisar dois momentos do modernismo:
Uma primeira fase, iniciada em 1917, caracteriza-se como a da polêmica do
modernismo com o passadismo. Esta é a fase de atualização — modernização em
que se sente fortemente a absorção das conquistas das vanguardas europeias do
momento e que perdura até o ano de 24. Uma segunda fase — que nos interessa
analisar com mais vagar —, que se inicia no ano crucial de 1924, quando o
54
modernismo passa a adotar como primordial a questão da elaboração de uma
cultura nacional, e que prossegue até o ano de 1929. (Moraes, 1978, p. 49)
No entanto, seguiremos um argumento divergente com relação ao do
filósofo. Eduardo Jardim crê que a brasilidade modernista fora fruto do diálogo da
juventude modernista com a obra de Graça Aranha, principalmente no que este
escreve em A estética da vida. Cremos, ao contrário, e como vimos no primeiro
capítulo, que a brasilidade desse segundo momento fora uma manobra de
estabilidade na qual os modernistas vanguardistas se viram na condição de
manter-se hegemonicamente. Para isso eles reviveram uma tradição brasileira, i.e.,
eles se aliaram à Lei Brasil, corroborando o argumento de que essa lei/tradição se
arregimenta como pré-condição para a entrada do modernismo no sistema
literário, no cânone nacional.
O “recuo” do modernismo ao problema nacionalista incluiu o modernismo
no velho sistema brasileiro. Não apenas num sistema que tenha como processo a
culminância de uma literatura nacional acabada, como o tratou Antonio Candido,
e sim, neste caso, que tenha como condição a permeabilidade crítica capaz de
sustentar um discurso de legitimação — enfim, uma visibilidade histórica baseada
numa continuidade. Essas mãos dadas com o pensamento e a literatura já
produzidas no passado e no presente estabelece uma integração total que repõe a
crítica modernista dentro de um campo já existente, a despeito de qualquer
negação da qual fora seu fator de sobrevivência no primeiro modernismo.
Acontece então, nesta continuidade, um movimento de tradicionalização, o qual
veremos mais adiante quando tratarmos do segundo modernismo. Aqui é
importante notar que Candido pensa o seu sistema atrelado a esta continuidade.
Ele entende a tradição, junto ao seu sistema, como a:
(...) transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos,
formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos
quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem essa tradição não
há literatura, como fenômeno de civilização. (Mello e Sousa, 2007, p. 26)
Fica claro que a elaboração de um sistema, apanhando certas características
homólogas e homogêneas de cada parte, tenha como consequência a
marginalização de outras manifestações, consideradas então como “excêntricas”,
“desiguais”, “menores”, “inadequadas” a um dado teórico-metodológico, e o
55
próprio Antonio Candido entende essas manifestações literárias como “esboços”,
deformações em comparação àquela massa uniforme da formação maior, mais
importante, a da literatura brasileira27
. Neste sentido, mesmo uma história literária
que tente se afastar de um mero alistamento de escolas também recai em algumas
dificuldades porque esta lança mãos de uma seleção pré-estabelecida. Cabe
concluir, portanto, que todas as produções culturais empenharam-se num trabalho
contínuo de seleção daquilo que afirmam e do que negam. O complexo sistema
brasileiro exige exclusão. O modernismo, em seu movimento de tradicionalização,
também vai dar-se a esse trabalho. E, como vimos, quase tudo o que acontecera
culturalmente no começo do século XX acabou sendo renegado pela historiografia
posterior.
O modernismo então, no seu chamado segundo momento, aloja-se na
tradição do sistema da literatura brasileira já formada. Pensa-se que tal tradição foi
uma escolha consciente num dado momento da história brasileira, mas também
não se pode deixar de lado que a tradição que se preocupa com a necessidade de
retratar o Brasil como ele é, com sua cor local, seu ambiente, costumes e natureza,
apesar de ser um imperativo categórico na inteligência brasileira, é uma dentre as
demais tradições literárias. É certo afirmar, nesta esteira, que sem tradição não há
civilização brasileira, mas a tradição da ontologia nacional é uma questão tolerada
sempre como legítima — dentre outras tradições literárias, ela terá o maior
privilégio; pô-la em questão é ato malvisto, mal-dito, insano, alienatório, fora de
lugar, e os artistas e literatos que ousaram fugir dessa linha ainda hoje pagam com
a pecha de autores excêntricos, menores, desgarrados (Cf. Sussekind, 1984). A
tradição desse modo pode excluir o sistema, a não ser que se tenha justamente a
necessidade de adotar este num sentido, numa meta final, o que, segundo Abel
Baptista, Antonio Candido fez, ao pensá-lo como um processo formativo de uma
literatura nacional (Baptista, 2007, 41-72). É tanto que, aos tempos do
modernismo, poderíamos questionar o sentido de uma literatura de cor local se
ela, como sistema, já estava concretizada, armada sobre fortes sentimentos
nacionais. Em outras palavras: por que ocorreu uma volta ao nacionalismo no
segundo modernismo se a literatura brasileira, nacionalmente estabilizada estética
e sistematicamente, já estava formada?
27
É certo então que a própria obra do crítico paulista concorre àquela tradição, no quesito
problema e crítica e não na relação formativa.
56
Dessa linha contínua podemos dizer, então, que o modernismo foi sua
consciência-limite, e por isso sua crise. Mas foi sua culminação por dois motivos:
1) Comparado ao primeiro modernismo estetizante, o problema da cultura
brasileira no segundo modernismo foi um “recuo”. Naquela primeira fase
artistas e críticos se reuniram em torno da elaboração contínua de uma
estética que se aprouvesse livremente de todos os ganhos formais e
temáticos que os novos tempos pareciam exigir. A destruição das
fórmulas, dos artifícios moles e boçais em que a poesia dominante
envergonhadamente se encaramujava, a evacuação do que seria o belo na
obra de arte, os impulsos primitivos do inconsciente — todas as
experiências eram possíveis tendo a liberdade estética como princípio e
esse foi o maior ganho que os modernistas puderam produzir nas letras
brasileiras de todos os tempos, algo nunca mais alcançado por sua
condição histórica mesma.
2) O movimento modernista, como um todo, exigia, para a elaboração mais
concreta de suas fórmulas, que a estética em si parecia condizer, uma
abordagem da cultura que, se antes pensava na arte como uma expressão
um momento tipicamente moderno, da vida urbana, das massas, do vulgar,
depois passou a exibir um elemento formativo que condensasse essa nova
perspectiva social num âmbito mais geral possível, afinal, a partir de 1924,
eles perceberam o quanto o modernismo já era nacionalmente sintomático
— daí que sua volta ao problema brasileiro se tornava concebível. E eles o
fizeram como nenhum outro movimento havia feito em nível grupal e
sistemático, resultado principalmente do polemicismo, seu moto-contínuo,
seu veículo de propaganda.
Enquanto crítica e enquanto adequação ao sistema, o modernismo conseguiu
esvaziar qualquer nova reformulação estética, ou seja, ele manteve e superou a si
mesmo, fazendo com que qualquer tentativa literária posterior tivesse nele um
modelo, seja revolucionário, seja conservador. Até hoje sofremos dessa doença
modernista.
Assim, desde 1924, o modernismo retrilhou o caminho em direção à
experiência brasileira, na mesma medida em que ela voltara as costas contras essa
mesma experiência nacional. Ele estava de volta à tradição. Mas foi uma
tradicionalização consciente. É que os modernistas foram intelectuais que sabiam
57
bem os interesses e os predicados que sua época apontava, num momento em que
a história do país passaria por mudanças drásticas, por conturbações e
movimentos que poderiam colocar a unidade do Brasil em risco28
. Eles viram que
o momento era outro, todas as esferas da sociedade já denunciavam essa
precariedade de ânimos que a República Velha, tão débil e carrancuda, não podia
suportar mais. Com isso, podemos afirmar que não é à toa que as discussões
gestadas pelo movimento de 1922 repercutiram nos eventos que se sucederam a
1930. Em 1942, Mário de Andrade apostava nesta conexão, embora suas reflexões
neste sentido escapassem do caráter previamente autoritário do governo Vargas
mesmo antes do Estado Novo, talvez acreditando que o modernismo estivesse
desde sempre prevenido de qualquer resquício de reacionarismo, mesmo aquela
ala que lhe fora, a ele, Mário, antagônica (Andrade, 1972, p. 255).
É a partir deste sentido histórico, naquele momento dos fins da década de
1910 e começo da década de 1920, conhecido como primeiro modernismo, que
podemos formular uma assertiva: o movimento de renovação artística, enquanto
trabalho de pesquisa e reestruturação estética, pôde apreender o passado como sua
pré-história, um “de antes”, e ao mesmo tempo conseguiu codificar objetivamente
as necessidades que o tempo então presente propunha para uma nova
compreensão artística.
Neste ponto podemos fazer um paralelo ao trabalho que Peter Bürguer
empreendeu para sustentar seu livro Teoria da vanguarda. Bürguer fez uma
análise histórico-genética da condição da arte na sociedade burguesa, esclareceu
como foi possível o desenvolvimento de uma crítica que se erguesse
artisticamente contra a própria negação da arte, como o fora as vanguardas
europeias. Para isso, ele lança mão de uma concepção mais solta e maleável de
ideologia, indo de encontro às concepções de Georg Lukács e Theodor Adorno.
Quer dizer, para ele a análise crítico-ideológica pressupõe uma construção
histórica do problema. Então, para entender as vanguardas, Bürguer encontra no
jovem Marx, a partir de sua crítica das formações sociais passadas bem como de
seus subsistemas, o conceito de autocrítica do presente, formulando a par deste
28
É interessante notar que quase um século antes, em 1836, durante os conflitos do Brasil
regencial, a preocupação com a possível fragmentação do país, como acontecera com a América
Espanhola, fez Gonçalves de Magalhães, no prefácio do seus Suspiros poéticos e saudade,
lamentar o “turbilhão em que se debate nossa Pátria” MAGALHÃES, Gonçalves. Prefácio a
Suspiros poéticos e saudade In COUTINHO, Afrânio (org.) Caminhos do pensamento crítico. Rio
de Janeiro: Pallas, 1980 v.1, p. 41.
58
outro conceito, o de crítica imanente. Esta tem como característica a crítica de
uma instituição social em nome de outra formação que, no entanto, ainda se
encontra dentro da própria instituição, como por exemplo, a crítica de uma
religião em nome de outra religião. Por autocrítica do presente, Bürguer entende o
afastamento objetivo do sujeito diante de seu próprio presente para que ele possa
“superá-lo” criticamente em sua autoconsciência histórica, vendo-se como
produto de um processo. Essa será sua resposta para entender as vanguardas
históricas porque com elas, o subsistema social da arte entra no estágio da
autocrítica:
(...) com os movimentos históricos de vanguarda, o subsistema social da arte entra
no estágio da autocrítica. O dadaísmo (...) não exerce mais uma crítica às
tendências artísticas precedentes, mas à instituição arte e aos rumos tomados pelo
seu desenvolvimento na sociedade burguesa. Com o conceito de instituição arte
deverão ser designados tanto o aparelho produtor e distribuidor de arte quanto as
ideias sobre arte predominantes num certo período, e que, essencialmente,
determinam a recepção das obras. As vanguardas se voltam contra ambos, ao qual
está submetida a obra de arte, e contra o status de arte na sociedade burguesa,
descrito como autônoma. (Bürguer, 2008, p. 57-58)
Cabe notar aqui que a adesão irrestrita a tais conceitos e elaborações não é
imprescindível — dada as disparidades claras de conteúdo e de condições
específicas analisadas pelo autor, e sua noção de identificar uma historicidade nas
vanguardas, usando do termo vanguardas históricas —, portanto pontuais, revela
bem o quanto ali seu desenvolvimento tinha algumas particularidades que no
Brasil não houvera. No entanto, vamos entender aos poucos o que o primeiro
modernismo brasileiro conquistou. Ele soube relativamente reunir ambos os
aspectos da teoria da vanguarda. Apesar das disparidades, podemos dizer que:
a) A luta contra o passadismo característico das primeiras polêmicas dos
modernistas contra a arte acadêmica, principalmente o caso do esteticismo
parnasiano, caracteriza-se como crítica imanente.
b) A criação de uma nova estética criativa que se interpunha em contraste
com uma literatura “velha” e em concordância com os novos tempos
modernos foi sua resposta prática, sua autocrítica parcial.
Mais adiante explicaremos o fato de a autocrítica da vanguarda no Brasil
poder ser considerada apenas parcialmente. Por ora cabe inferir o modernismo
como um processo histórico peculiar naquilo que Bürger entende como inclusão
59
da arte na vida moderna, i.e., na práxis vital. A completa imersão do artista e de
sua arte na comunidade e no cotidiano como uma reação ao retraimento da
estética para dentro de si mesma está vinculada à vitória total da burguesia, posto
que a politização e o engajamento da arte, depois de ganho o poder, seria perigoso
para uma recente classe dominante que ainda deve manter o poder em suas mãos.
A arte pela arte então é necessária. Ela se torna completamente autônoma. Contra
essa situação as vanguardas históricas “contrapõem não uma arte consequente
dentro da sociedade estabelecida, mas justamente o princípio de superação da arte
na práxis vital.” (Bürger, 2008, p. 108). O artista deve incluir sua arte na vida a tal
ponto de destruir a própria arte como instituição autônoma, desvinculada da
realidade, falsa e politicamente perigosa. Sua autocrítica realiza-se na medida em
que compreende objetivamente a realidade da arte na esfera social, desmascarando
o caráter ideológico da arte pela arte burguesa. A superação é feita.
Essa noção participante das vanguardas, não tanto no sentido político, mas
que irmana de uma crítica que desembocaria nela, interessa-nos porque mostra
como a arte não se separa de uma totalidade maior que ela e da qual sua função
tem forte concorrência. É tanto que, como nota Antonio Candido, é possível fazer
uma história a partir dessa ligação orgânica entre produção literária e vida social.
Tendo em conta essa baliza, o crítico paulista afirma que o modernismo se
caracteriza pelo desprendimento do grupo de artistas diante da comunidade. Um
agrupamento criador “(...) não mais justaposto à comunidade, todavia, mas
formado a partir dela, oriundo da sua dinâmica, diferenciando-se de dentro para
fora — por assim dizer.” (Mello e Souza, 2000, p. 144). Ao contrário do período
anterior (1890-1910) em que “a literatura se torna social, no sentido mundano da
palavra” e no qual o entisicamento da qualidade literária, superficialmente
refinada, entregue à oratória Parnasiana e ao “falso” regionalismo, o modernismo,
em sua busca por definição e renovação literária, entrega-se às polêmicas e
discussões jornalísticas culminando na Semana de 22, que os afastavam mais e
mais da aprovação da comunidade, isolando-se. Interessa notar que esse
movimento de “blindagem” do grupo, caracterizado até na sua linguagem
ininteligível, acompanha também a relação dos modernistas com os salões
burgueses. Candido compreende isso como uma assimilação, um aparelhamento
das vozes divergente por parte da aristocracia burguesa paulista, daí a dificuldade
60
de eles fazerem uma autocrítica completa. Na medida em que, nesse momento, os
modernistas se afastam da comunidade, eles se enclausuram na classe burguesa.
Mas então, o que foi o modernismo nestes dois sentidos? Exclusão
(Candido) ou inclusão (Bürguer) na comunidade e na sua práxis vital? Podemos
afirmar que, no esforço por criar uma literatura que expressasse o moderno, os
modernistas acabaram, pelo menos em seu primeiro tempo, tendo que se excluir,
algo natural para um grupo que se pretendia diferente do que pairava no ar das
letras nacionais. Isso implica o fato de que o moderno (o que acontecia na
realidade e na comunidade) parecia não aceitar o modernismo (como literatura e
sua visão de mundo artística). Isto é, se a indústria, o automóvel, o telégrafo, o
cinema, o maquinal cotidiano etc. eram uma realidade social visível, estavam nas
ruas, então por que não aceitar uma literatura que se inspirasse e tivesse nestas
conquistas modernas seu tema e sua composição num momento em que, segundo
Oswald de Andrade, tornava-se “lógico que o estilo dos escritores acompanhe a
evolução emocional dos surtos humanos” (Andrade, 1990, p. 43) e Mário de
Andrade, do mesmo modo, entendia a nova linguagem como resultado inevitável
da época, como “consequência da eletricidade, telégrafo, cabo submarino, T. S. F.,
caminho de ferro, transatlântico, automóvel, aeroplano” (Andrade, 1980, p. 252)?
Por que a sociedade não aceitou o grupo que falava de coisas que faziam parte do
cotidiano de todos? Não deveria haver uma empatia? Neste sentido, podemos
fazer um contraponto à Flora Süssekind. É certo que já havia uma literatura
preocupada com a técnica e que fazia questão até de mimetizá-la como o faria os
primeiros modernistas. No entanto, por que estes não receberam a aprovação do
público de antemão, já que aquilo era, em certos termos, “não tão novo assim”?
Pelo que discutimos na introdução, podemos pensar que o fato de os modernistas
irem além do que os “antigos modernistas” foram acabou sendo um peso
preponderante na avaliação social daqueles, pois eles se revelaram radicais em
demasia. Mas importa nota notar que essa reclamação de uma estética em sintonia
com a “segunda natureza”, como vimos anteriormente, já vinha de alguns anos,
como podemos ver nestas palavras de João do Rio, em 1909:
Uma estética nova surge, a estética do milagre animador. A natureza é outra,
utilizada pelo homem, vista na corrida dos automóveis. (...) A paisagem com a
vegetação dos canos de usinas, as sombras fugitivas dos aeroplanos e a disparada
dos automóveis, os oceanos sulcados rapidamente, desventrados pelos submarinos,
61
os dramas que esses ambientes novos dão às cidades cortadas de aço, cachoeirando,
por cima, por baixo em borbotões, as multidões apressadas, a exibição do luxo, a
nevrose do reclamo em iluminação mágica, os negócios, o caráter, as paixões, os
costumes, em que o sentimento das distâncias desaparece, o crescente
esmagamento do inútil, a flora formidável do parasitismo e do vício, o amor, a vida
dos nervos centuplicada, obrigam o artista a sentir e ver doutro feitio, amar doutra
forma, reproduzir doutra maneira. (Rio apud Martins, 2002, p. 48)
Claro que existe um precedente histórico que faz das vanguardas históricas
uma reação a um esteticismo burguês, da mesma forma que no Brasil as
composições reivindicativas dos modernistas tinham um alcance específico em
que pese o teor histórico da República Velha e da estagnada literatura dominante e
“improdutiva” em suas fórmulas. Existe um caráter social peculiar quando os
modernistas veem-se apoiados por uma classe em plena ascensão e isso também
influi no seu deslocamento diante da sociedade, chegando a adotar uma “posição
orgulhosa, isolacionista, em relação ao meio cultural dominante, acentuando haver
uma distância entre eles e os outros.” (Brito, 1978, p. 136). Um grupo que se atira
inconsequentemente em atos de puro “heroísmo”, como diria Mário de Andrade,
com apenas um programa de demolição do que existia, sem o apoio ou mesmo o
conhecimento da maioria da população, pronto a dar a vida por uma luta — assim
o modernismo era visto. Também podemos descrever dessa forma a revolta dos
Dezoito do Forte de Copacabana, de 1922. O completo despreparo, um desejo
romântico untado com seus exageros, a incompreensão emotiva, foram essas as
marcas do que ficou conhecido como movimento tenentista. Uma descrição clara
do movimento militar:
Os tenentes, que inegavelmente lideraram os acontecimentos, não têm ainda um
projeto para a sociedade, mas agem ainda num momento de despertar da
consciência, como membros de uma instituição ofendida, que veem como a
responsável pela República e, o que é fundamental, começam de forma vaga e
imprecisa a enxergá-la como representante dos interesses da nacionalidade. Tanto
não têm ainda um projeto para a sociedade que não se propõem a formular e definir
quais seriam esses interesses. (Forjaz, 1976 p. 68)
E as palavras de Sérgio Milliet sobre 1922: “Nós fomos assim: irrefletidos e
primários. Salvou-nos o lirismo, redimiu-nos o trabalho destrutivo que então
efetuamos.” (Milliet apud Mota, 2002, p. 99). As similaridades entre os
espontaneísmo, voluntarismo e indefinição ideológica de ambos os lados é
patente. O consequente isolamento, estruturado num vanguardismo forçado,
62
também são claros nestes movimentos deslocados de qualquer participação
popular, que reclamavam para si um discurso de defesa de interesses nacionais,
seja no âmbito político ou no literário, mas que, nos seus exageros heroicos, não
propunham nada que se fundamentasse na “sociedade total”. E assim como as
revoltas tenentistas prenunciavam a quartelada que encabeçaria o movimento de
1930, Mário de Andrade, como vimos, concebia o modernismo como um
preparador das ulteriores mudanças políticas e sociais da década seguinte,
inaugurando um “estado de espírito revolucionário”. Vale a pena citar novamente:
“O espírito revolucionário modernista, tão necessário como o romântico, preparou
o estado revolucionário de 30 em diante, e também teve como padrão barulhento a
segunda tentativa de nacionalização da linguagem” (Andrade, 1972 p. 250). As
tensões sociais que convulsionavam a República Velha tinham seus similares no
movimento espiritual qualificado dos modernistas, base de uma crítica a uma
cultura falsa que mais tarde os próprios iriam encarnar. Do mesmo modo o caráter
vanguardista, elitista e idealista de ambos29
explica o distanciamento social e
comunitário que tanto Antonio Candido quanto Maria Forjaz imprimem aos
acontecimentos artísticos quanto aos políticos e sociais no caso do tenentismo. É
neste sentido que nos fala Wilson Martins:
(...) é que, não só o Modernismo como todas as revoltas militares e institucionais,
até 1932, foram revoluções burguesas, não só porque foi afinal a burguesia que
delas se beneficiou, mas, ainda, porque se originaram numa ideologia burguesa e
desejavam a consolidação dos ideais burgueses de vida. São, por consequência,
revoltas, mais do que revoluções, contudo, são revoltas que se inscrevem, sem
querer e sem saber, num processo geral revolucionário. (Martins, 2002, p. 146)
Quando Antonio Candido aponta o modernismo como uma reação contra o
caráter de classe de uma literatura em nome de outra que se fundasse no bem
comum e popular, ele não tinha em mente os diversos momentos do modernismo.
A preocupação folclorista vem apenas quando o brasileirismo se torna uma
questão primeira e não quando a necessidade da modernidade técnica, fator
crucial do primeiro modernismo, era o seu carro chefe — aquilo que Ronald de
Carvalho chamou de Modernolatria. Neste sentido, assim é que podemos
compreender o modernismo historicamente como o desenvolvimento de uma
29
Seria uma injustiça enorme se confundíssemos os eventos sociais citados com o que foram as
greves operárias da década de 1910, cujo poder popular fora incontestável. Aí incluímos apenas as
revoltas tenentistas e seus congêneres como a revolução de 1924.
63
ideologia construtivista, de onde transparece que a modernidade, naquilo que se
chama de ideologia da cultura brasileira, só é possível no Brasil se ela vier
acompanhada de uma tradição que se ergue no discurso da construção de uma
identidade nacional, de uma tradição chamada Brasil. Acontece que o
modernismo apenas foi o maior vencedor, digamos, dessa tradição, quando na
década de 1930 o seu discurso torna-se programa de governo.
Essa evolução de um grupo dentro da comunidade ultrapassa a teoria da
vanguarda de Bürguer porque, ali onde um dadaísmo ou um expressionismo viam
a dilaceração de uma comunidade e do homem, diga-se mesmo, europeia ou
germânica, em que o burguês imperialista mostrava sua verdadeira face numa
guerra de caráter mundial, aqui a expectativa era de uma dinâmica que se inserisse
no progresso que o capitalismo pré-guerra poderia dispor — ainda mais agora
diante da decadência do Velho Mundo somado ao surto industrial brasileiro
durante o conflito — e ainda a necessidade política de conjurar a experiência
republicana, de mantê-la viável perante as alianças oligárquicas. Toda essa
conjuntura necessitava de um discurso que trabalhasse a cultura brasileira num
todo orgânico, algo que somente o Modernismo conseguiu ao ser o criador de um
estado de espírito nacional, como afirma Mário de Andrade:
A transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes
impérios, com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos
transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento
da consciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da
educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e
mesmo a remodelação da Inteligência nacional. (Andrade, 1972, p. 231)
As vanguardas históricas margeavam a ruptura total dentro das estruturas
sociais e éticas burguesas. No entanto, para sobreviver, os modernistas brasileiros
necessitavam da união geral, da criação de um sentimento orgânico de
nacionalidade, daí o nacionalismo do segundo modernismo. Com tudo isso,
podemos afirmar que, diante das perspectivas encontradas naquele momento no
país, era inevitável a vitória nacional e oficial do modernismo. Seu nacionalismo
só acelerou o movimento de integração dentro dessa conjuntura, e como essa
virada parecia lógica a um grupo deslocado que quisesse ganhar terreno — e o
modernismo não teria sobrevivido caso insistisse na literatura formal e moderna
do primeiro tempo nem mesmo com suas polêmicas e exageros —, efetivando sua
64
legitimação porque a ideologia da cor local era o fator de estabilidade e
sobrevivência da literatura brasileira, o que se viu na década de 1930 pareceu ser
um resultado natural. Toda uma tradição brasileira anterior exigia a necessidade
de a literatura retratar e apreender o país, tê-lo como única fonte de inspiração,
mas somente o modernismo conseguiu erigir esses discursos desfocados,
insuficientes e mesmo individuais num projeto de governo inspirado na mesma
organicidade que os modernistas conseguiram. Não está em questão aqui afirmar
uma possível cooptação por parte do Estado Novo, apenas queremos compreender
que os modernistas, em 1924, por assim dizer, deram um golpe de estado literário
antes daquele (a nível político), quando colocou em pauta, a nível espiritual, a
lógica popular e nacional, como nenhuma outro grupo intelectual ou governo
fizeram antes. O que eles conseguiram majoritariamente no discurso e na
pesquisa, os governos, tanto estaduais como o de Vargas, fizeram na prática.
Tanto é que o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional está para o
século XX e os modernistas como o IHGB está para o XIX e os românticos.
Aquilo que Antonio Candido chamou de “ida ao povo” do movimento
modernista (Mello e Souza, 2000, p.114), naquele contexto, não prescindiria de
uma “ida ao Estado”. Novamente, não está em jogo o caráter desse Estado, o
modernismo, quando torna-se nacionalista, e mesmo antes, pretendia alcançar a
totalidade do território brasileiro, e uma política pública também nacional que
acompanhasse essa elevação era necessária. É nesta perspectiva que o
totalitarismo do Estado Novo fez um crítico como Wilson Martins, afirmar a
tendência do modernismo para uma “vocação política totalitária”:
Há, pois, a partir de 1924, uma tendência (que se torna cada vez mais vaga) para
qualquer tipo de totalitarismo, racionalizada, a principio, sob a forma do descrédito
de todo regime de governo democrático e que, por isso mesmo acaba se
resolvendo, quase indiferentemente (do ponto de vista da distribuição dos nomes),
na bifurcação direita-esquerda. (MARTINS, 2002, p. 142).
Seria injustiça histórica pensar que a tendência do movimento, nesta nova
diretriz, era a associação com o totalitarismo de Estado, mesmo porque gente
como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade mantiveram relações
conturbadas com o Estado Novo, sendo que o primeiro fora afastado de seu cargo
público devido ao golpe e o segundo resolvera demitir-se do ministério onde
65
trabalhava (Cançado, 1993, p. 208). Martins, para confirmar suas suspeitas, cita
apenas críticos do modernismo, daí suas insuficiências.
O movimento de cultura totalizante ou orgânico, como quer Mário de
Andrade, não implicaria a centralização política de um Estado para que suas
pesquisas pudessem tornar-se efetivas. Mesmo Wilson Martins não dispõe de
nenhuma citação de modernistas — pelo menos daqueles não atrelados ao que
seria o verdamarelismo — que “desmoralizassem” as ideias liberais e mesmo
quando Oswald de Andrade, sob a encarnação paródica-realista de Machado
Penumbra, escrevesse que “Poincaré, Arthur Bernardes, Lenine, Mussoline e
Kermal Pachá ensaiam diretivas inéditas no código portentoso dos povos, perante
a falência idealista de Wilson e o último estertor rubro do sindicalismo” (Andrade,
1990, p. 43), ele está constatando mudanças políticas bruscas dos novos tempos e
não comemorando-as, como faz supor Martins. Há de lembrar as reivindicações
de Mário de Andrade contra as perseguições a intelectuais na França, no caso de
Louis Aragon, ou nos Estados Unidos, no julgamento de Sacco e Vanzetti
(Andrade, 1976, p.p. 515-520); também que o mesmo Mário impunha severas
críticas à Marinetti e sua ligação com os fascistas, desde 1919, quando de sua
polêmica sobre o artigo de Oswald, e ainda o fez durante a visita do italiano ao
Brasil, em 1926, quando recusou-se a ir às suas conferencias e ainda o acusou de
ser “delegado do fascismo”. A polêmica sobre o futurismo como a escola
modernista brasileira, compõe justamente essas divergências. Graça Aranha
tentava identificá-las:
(...) Marinetti renovou a vida italiana e determinou o fascismo, sua expressão
política. O futurismo russo de Maiakovski colaborou com o comunismo e com esse
se identificou. A mesma causa, futurismo, produziu resultados opostos, fascismo e
comunismo. Em ambas as conclusões impera a lei da realidade. Na Itália o
futurismo é ocidental e por isso patriota, nacionalista, militarista e imperialista. Na
Rússia é oriental, comunista, universalista, místico, pacifista e terrorista. No Brasil
será nem fascista, nem comunista. Será coisa nossa, uma fórmula que corresponda
à nossa espiritualidade liberta de todos os terrores, e à nossa suprema realidade.
(Aranha apud Martins, 2002, p. 143)
Simplesmente não foi nada. As insistências com que Graça Aranha impunha
a associação do modernismo com o futurismo revelavam que o maranhense não
conseguia entender que, em pleno ano de 1926, quando escreveu estas palavras, o
movimento já era outro. É de se questionar se o futurismo marinettiano, que desde
66
1914 vinha se aproximando do fascismo, foi um fator impulsionador para a
tendência nacionalizante do modernismo brasileiro. Mesmo quando Mário de
Andrade critica Marinetti em termos estéticos, como o faz em seu A Escrava que
não é Isaura, não há como negar sua consciência do que estava se passando com o
poeta italiano.
Cabe notar também como o progressismo técnico da primeira fase do
modernismo brasileiro pudesse relacionar o futurismo, tanto o italiano como o
russo, a fatores de mecanização do próprio homem e, deste modo, da facilidade de
ser manipulado numa sociedade de massificação crescente. É o que se nota no
romance Velocidade, de Renato Almeida, citado pelo próprio Wilson Martins:
A velocidade maquinista torceu e retorceu tanto o problema sociopolítico que
desmoronou toda a ideologia democrática, cujos fundamentos não suportaram mais
a edificação nova (...) O fenômeno sociopolítico se alterou com o império das
máquinas. (Almeida apud Martins, 2001, p. 146).
Macunaíma seria o canto melancólico dessa condição ambígua, “sem
caráter” algum. Poderíamos então questionar se todos os fenômenos
característicos de uma sociedade capitalista crescente — como o surgimento de
um proletariado, greves gerais, conflitos sociais, migrações do campo para cidade,
urbanização desenfreada —, que aconteceram nas décadas de 1910-1920,
revelaram mais do que a arte modernista como “máquina de produzir comoções”
poderia suportar, como se, agora, o seu modernismo não conseguisse suportar a
modernidade. O otimismo progressista do modernismo, aqui, confirmaria a
afirmação de João Luiz Lafetá de que serviu apenas como ideologia burguesa
(Lafetá, 2000, p. 14). Mas não há como confirmarmos se tal consciência de que o
maquinismo poderia ter seu lado nefasto existiu realmente e fosse um dos fatores
para a virada nacionalista (também otimista, pelo menos até Macunaíma).
Portanto, o pintor da vida moderna não necessariamente torna-se o bardo da
burguesia. Seria ridículo ver grandes similaridades entre a Rússia comunista e a
Itália fascista, muito menos no caso de seus respectivos progressismos. O
“Cadillac azul” de Oswald de Andrade e a Paulicéia desvairada de Mário de
Andrade não poderiam prever nada do que seria o Estado Novo.
Um caso pontual diz respeito ao grupo mineiro reunido em torno de A
Revista. O editorial do seu segundo número, de agosto de 1925, intitulado “Para
67
os espíritos criadores”, escrito por Martins de Almeida, traz um tom seco de
denúncia política, apoiado num nacionalismo acerbo — lembramos que os
mineiros também se encontravam na fase do brasileirismo —, no seu teor mais
raso e perigoso, como as denúncias contra o cosmopolitismo e suas
“transplantações exóticas”, propondo assim uma “geografia interior”; não durou
para que tradicionalistas como Gilberto Freyre aplaudissem tal posição de
enclausuramento e rigidez política e de tradicionalismo (Marques, 2011, p. 39).
Profundamente aristocrático, Almeida escreve:
Dissemos que éramos um órgão político. Nas relações internas, a nossa relação está
definida no sentido da centralização do poder. Tanto na política como nas letras,
ameaçam-nos perigosos elementos de dissolução. Anda por ai, em explosões
isoladas, um nefasto espírito de revolta sem organização nem idealismo, que tenta
enfraquecer o nosso organismo social. (...) No momento atual, o Brasil não
comporta a socialização das massas populares. Só uma personalidade inflexível
dirigida por uma boa compreensão das nossas necessidades pode resolver o
problema máximo da nacionalidade. (Almeida, 1925, p. 12-13)
As particularidades mineiras podem explicar esse acesso de autoritarismo
nas páginas de uma revista modernista que pregava a liberdade de criação estética.
Por um lado, não há como compará-lo com o falso discurso futurista que fazia o
mesmo quanto à estética, mas que politicamente acabou aproximando-se do
fascismo. Não se encontra nas palavras de Martins de Almeida nenhuma
homenagem ao progresso da sociedade moderna e suas técnicas, pelo contrário,
existe apenas uma mistura de nacionalismo aliado a um primitivismo mal
entendido, já que não atenta às raízes populares de tal manifestação como
percebiam outros modernistas. Não há um otimismo burguês nem um pessimismo
crítico, apenas um malfadado e nostálgico discurso em prol de uma ordem que
mistura provincianismo e modernização conservadora simbolizada na planejada e
recém-fundada cidade de Belo Horizonte.
Por outro lado, a falta de um projeto e de um objetivo concretos também
foram fatores cruciais para essa perspectiva do grupo mineiro. Eles aderiram ao
nacionalismo parvo, mesmo que tenham sido praticamente guiados pela mente de
Mário de Andrade. Não conseguiram decifrar as intempéries do momento,
decidiram pelo nacionalismo sem notar as consequências políticas que já então
assolavam a República Velha, ou, se não foram tão ingênuos, acabaram ainda
assim deslocados daquelas necessidades de que falava Martins de Almeida, não
68
percebendo a conjuntura que as “explosões isoladas” representavam, até porque
nem populares elas eram. Sem nenhuma projeção política verdadeira tais palavras
ficaram no vácuo; a fragmentação dentro do grupo mineiro, indo cada um cuidar
de seus afazeres profissionais, abandonando alguns até mesmo a carreira literária,
mostra bem o despreparo e a debilidade que o grupo de A Revista tinha. Sobrou
para Carlos Drummond responder anos mais tarde os despautérios de Almeida:
“Os ‘perigosíssimos elementos de dissolução’ que nos ameaçavam ‘tanto na
política como nas letras’ revelaram-se mais saudáveis do que nefastos. Quem
cortou a evolução política e social do país, nos últimos tempos, foi precisamente o
uso e abuso de poder centralizado.” (Andrade apud Marques, 2011, p. 42)
Vendo o modernismo assim em bloco podemos compreender a significância
de sua dinâmica ao comprovar ser ele o que poderíamos chamar, como o fez
Walter Benjamin a respeito do Surrealismo, o último instante da inteligência
brasileira. É neste período que as contradições da ideologia da cultura brasileira
mais se abastecem das dissonâncias que uma inteligência que se sente deslocada
pode proporcionar se ela tenta pensar a si mesma para além de uma viabilidade
estética. Insistir no posicionamento que estabelece a livre iniciativa das
expressões imaginativas parece ser um luxo quando todo o resto da tradição
literária brasileira apontava soluções para resolver um problema que nascia junto
com o Brasil, i.e., sua modernidade particular. Não que isso fosse o pressuposto
do golpe de estado modernista, sendo que eles anteriormente entendiam a
modernidade como apenas uma linguagem necessária porque era o atual, e assim
estavam apenas seguindo o “espírito do tempo”, como afirmava Mário de
Andrade. Os motivos foram outros. Mas é essa recorrência de exprimir os ditames
da voz natural que impede-nos de, seguindo Bürguer, lançar os modernistas como
autocríticos de seu próprio presente, de pressupor um distanciamento crítico
diante da corrente da literatura brasileira, acabando por superá-la. Eles nunca
negaram cegamente as literaturas anteriores, apenas tinham consciência que
naquele momento elas eram um peso nas costas da atualidade, por isso que
insistiam em repelir suas fórmulas, taxando-as de passadista. Mas quando a práxis
vital moderna é descartada, quando deixam de ser pintores da vida moderna, o
modernismo rompe a si mesmo.
69
Entretanto, essa reviravolta não é mecânica nem cabe ser passível de uma
abordagem estanque. As diversas “fases” do modernismo dialogam-se. É neste
sentido que o movimento encerrou todas as possibilidades de problemas que a
inteligência brasileira poderia alçar. Mas foi além. Sua própria fase de pesquisa
estética, de elaboração de uma linguagem que impelisse o país numa expressão
qualitativamente moderna, dá conta de que o que aqueles moços loucos fizeram
deve ser, antes de qualquer análise, respeitada. Ali, eles, em geral, fugiram do
essencialismo e do folclorismo que toda imposição estética brasileirista pode
carregar em si, abrindo-se com suas ideias em liberdade total. Essas polaridades,
esse vaivém, essas contradições, foram superadas no modernismo, naquele sentido
hegeliano do termo, de permanência e transformação. Mas em cada momento uma
tendência prevalecia. Este novo, de nacionalismo exigente, não há dúvida que fez
recuar muito as conquistas da linguagem nova que o primeiro tempo modernista
conseguiu propor e pelas quais sofreu todas as injúrias possíveis da crítica. Já
afirmava um crítico, dissertando sobre o auge do projeto político-ideológico
modernista na década de 1930:
(...) na fase de conscientização política, de literatura participante e de combate, o
projeto ideológico colore o projeto estético imprimindo-lhe novos matizes que, se
por um lado possibilitam realizações felizes como as já citadas, por outro lado
desciam o conjunto da produção literária da linha de intensa experimentação que
vinha seguindo e acabam por destruir-lhe o sentido mais íntimo de modernidade.
(Lafetá, 2000, p. 34)
João Luís Lafetá incorpora essa mediação compreensiva de que aquilo que
ele entende como projeto estético e como projeto político do modernismo não
teve suas fronteiras rigidamente delineadas, nem tampouco se distanciavam numa
contradição aparente. Seu argumento é de que a linguagem revela sempre uma
proposição de visão de mundo, i.e., uma ideologia, pelo menos potencialmente.
Então, o modernismo de proposição estética dos anos 1920 também tinha sua
posição ideológica dentro do campo de atuação de uma transformação da
linguagem tradutora das novidades modernas. Isto é certo. Quando as primeiras
manifestações modernistas exigiam uma visão estética que não admitisse os
antolhos que os impediam de expressar as mudanças sociais ocorridas até então,
não os liberam de concorrer por uma visão de mundo possível e aberta às novas
experiências. Neste sentido, eles estabeleceram uma ideologia do novo atrelada às
70
manifestações da vida moderna. No entanto, Lafetá esquece que as ideologias não
são opacas, que elas têm seu conteúdo específico. O que predominava nas obras e
críticas modernistas a partir de 1924, se era realmente ideológica, diferia
enormemente dos tratamentos técnico-urbanicistas e modernólatras dos primeiros
tempos. Lafetá não encontra a diferença entre os supracitados tempos modernistas
ao afirmar, sobre o primeiro destes, o projeto estético, que
inserindo-se dentro de um processo de conhecimento e interpretação da realidade
nacional — característica da nossa literatura — não ficou apenas no
desmascaramento da estética passadista, mas procurou abalar toda uma visão do
país que subjazia à produção cultural anterior à sua atividade. (idem, p. 21)
A retrógrada visão do país que as outras estéticas teimavam em manter,
desviando seu olhar às novas intempéries da vida moderna de modo sistemático
ou “automático” como diria Flora Süssekind, é, de certo modo, um dado real,
como vimos. Expressar a vida cotidiana, a língua vulgar, coloquial, rejeitar os
desmandos sintáticos e métricos, acompanhar o que há de novo e não isolar-se
num tempo que não existe mais — tudo isso os modernistas conseguiram elevar
ao nível estético nos seus primeiros anos. Mas é difícil concordar que já neste
tempo existia uma caracterização ideológica a qual Lafetá irá aludir como a
“consciência do país, desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter
de classe de suas atitudes e produções.” (idem, p. 21). Essa ideologia já é outra
não a mesma que se encontra na “estética do novo” da primeira época. Os
prenúncios da ênfase do projeto político que Lafetá incorpora no modernismo de
1930 acompanham mesmo todo o seu desenvolvimento. Podemos encontrar, por
exemplo, Oswald de Andrade, em pleno ano de 1915, a defender uma arte plástica
nacional (Andrade, 1992, p. 141), mas essa política é praticamente superficial
compara com o que foi promulgado e propagado pelo modernismo técnico de
primeira fase, i.e., o nacionalismo aí não se desenvolveu de modo programático-
estético como será a partir de 1924, nem mesmo como o ideológico-político em
1930.
Lafetá, no entanto, tenta não esgotar o debate sobre o modernismo apenas
na sua dicotomia. Sabe que existe uma dialética entre os projetos de cada época.
Ele só não conseguiu discernir, assim como Antonio Candido, os meneios que a
década de 1920 imprimiu dentro do movimento. A pesquisa estética praticamente
71
morre depois da publicação de A escrava que não é Isaura e de Memórias
sentimentais de João Miramar30
. Desde então, o impulso por uma temática
específica pinta de verde e amarelo as obras dos nossos modernistas. É certo,
entretanto, que a euforia aumenta, talvez mais do que antes, porque agora, no
momento nacionalista, eles se sentem num porto seguro, porque era um rumo
tomado, um objetivo deliberadamente escolhido e firmado, diante do qual as
portas do passado já estavam abertas. Então a convicção de que tínhamos uma
saída porque o Velho Mundo e sua guerra haviam demonstrado sua decadência e a
América simbolizava o novo em todo o seu esplendor, tornava-se quase óbvia:
tratava-se de afirmar que, diferentemente da Europa, nós tínhamos nosso caráter
renovador, em plena ascensão porque nos criamos da matéria lírico-civilizatória
que empreenderia uma nova era em cuja participação concorreríamos com obras
dignamente universais. Como escreve Mário de Andrade em carta a Sérgio
Milliet: “Agora livres, pelo exemplo dos europeus, vamos seguir o nosso caminho
que é todo diverso do da Europa desinteressante.” (Andrade, 1985, p. 300).
Portanto, a década de 1930 desarma as tentativas de um projeto que encarasse o
Brasil na via do progressismo anterior, desligado que era da conjuntura nacional.
Nesta perspectiva, podemos então entender o modernismo nestas três dimensões,
no que tange à sua ideologia:
1) Ideologia do novo. De 1917 até 1924. (Modernidade)
2) Ideologia cultural-nacionalista. De 1924 até 1930. (Nação)
3) Ideologia sociopolítica. Década de 1930. (Estado)
O movimento é claramente de ascensão naquilo que chamamos, corrigindo
Antonio Candido, de evolução dentro da comunidade. Durante a fase de literatura
moderna em que a estética do novo é o imperativo e a renovação expressional tem
30
Serafim Ponte Grande, publicado em 1933, fora fruto de longos anos de elaboração entre 1925 e
1929. Segundo Haroldo de Campos, ele é mais revolucionário do que Miramar, pois o cubismo
daquele é aplicado na “própria estrutura geral da obra, na macroestrutura portanto.”, um “grande
livro de fragmentos de livro” CAMPOS, Haroldo. Serafim: um grande não livro. In ANDRADE,
Oswald. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo, 2007, p. 17 e 20. Serafim é o que podemos
chamar de grande exceção que confirma a regra do nacionalismo do segundo modernismo na
medida em que seu lançamento fora postergado de certo modo pelo clima de brasileirismo do qual
dissociava; se fosse lançado ainda nos anos 1920, seria uma obra-ilha cercada de nacionalismo por
todos os lados, daí vir a lume apenas na década de 1930, num outro momento do modernismo.
Ainda assim a obra nascera “abortada” porque fora fruto de um período em que Oswald digladiava
em outra trincheira, o que explica o fato de o autor listá-la como “obra renegada” dentro do mesmo
livro. Por outro lado, Serafim ainda pode ser visto como um último golpe do modernismo dentro
do modernismo porque, se nascera numa época de literatura social e “neo-naturalista”, ela pode ser
vista como mais revolucionária ainda, dado seu radicalismo formal se comparado ao que vinha
acontecendo na nova fase modernista. Negações de negações à brasileira.
72
seu caráter de urgência, os modernistas conseguiram dar-se por reconhecidos,
mediante as polêmicas e atuações nos jornais patrocinados pela burguesia rural
que os apoiavam em seus salões. Eles então estavam dissociados do resto da
comunidade, fechados em si por meios estratégicos, praticamente lutando contra o
resto da sociedade que não aceitava as inovações ininteligíveis. A modernidade
era seu fundamento, as ruas, o cotidiano, a máquina, a velocidade, o vulgar, o
inconsciente explosivo; a literatura se construía baseada nos mesmo meios
tecnológicos, daí a eliminação de pontuações, o simultaneísmo, o verso livre, a
montagem, a narrativa não linear, o fluxo da consciência. O período é dominado
pela pesquisa estética e formal, pois, como atesta Sérgio Milliet, “é dessa
comunhão do poeta com a vida [práxis vital, diria Bürger], que provém a
multiplicidade e a simultaneidade da inspiração moderna.” (Milliet, 1972, p. 241).
Não existe nenhuma preocupação temática, a liberdade de temas é a regra. Apenas
combate-se o passadismo, os mestres do passado, o academismo, a retórica
bacharelesca, a seriedade esnobe. A literatura existe para a literatura no sentido de
que ela deve compor a vida moderna, identificar-se física e moralmente com ela.
Críticos do modernismo então atentaram ao possível formalismo do movimento. É
o que afirma Jorge Amado:
(...) a causa fundamental das contradições do modernismo: este era um movimento
brutalmente inconformista na forma e que era inteiramente conformista no
conteúdo. Digo ‘quase’ devido à ‘antropofagia’, pequena ala dentro do enorme
movimento, ala que fazia poesia e uma prosa que não se preocupava apenas com
quebrar rimas e abandonar vírgulas, que renovava também ideias. Dessa
contradição, inconformismo na forma, conservadorismo no conteúdo, vieram todas
as limitações do modernismo; daí veio mesmo a castração do poder criador dos
seus artistas. (Amado apud Martins, 2002, p. 147)
Seria uma crítica pobre afirmar que o modernismo foi um novo esteticismo.
O que mais o diferia de outras “escolas” era justamente o caráter de pesquisa
estética, a renovação constante, a busca por novos meios de expressão e formas
que impregnassem as dinâmicas da matéria moderna da vida. Seria esquecer
justamente o fator liberdade deste grupo, i.e., a completa abertura para as
experiências promovedoras do espírito novo. Ao contrário do esteticismo
parnasiano, por exemplo, que ficou preso nas mesmas formas, cantando os
mesmos temas, acabando por se enferrujar nas dissonâncias de um ornamentismo
frio, uma espécie de roupagem que vestia a moda dos poetas improdutivos, o
73
modernismo dessa época não se estagnaria na “conformidade de expressões, essa
oficialização de técnica”, como o pensou Plínio Salgado (Salgado, 1978, p. 286).
Seria também negar aquela que foi uma das três conquistas do modernismo,
segundo Mário de Andrade: direito permanente de pesquisa estética. (Andrade,
1972, p. 249)31
. É verdade que essa “permanência” é questionável, mas a
discutiremos mais tarde. O fato é que neste primeiro momento ela existiu.
A literatura-nação, ou o segundo tempo modernista, é a fase mais acirrada
do movimento, quando ele se fragmenta em direção à politização intensa. A
estética da ruptura formal expressiva alocada nos conteúdos da sociedade
moderna cede espaço à velha tradição brasileira de pensar a literatura como
provedora e promovedora de uma cultura nacional ainda por construir, que se
encontra ainda limitada e frágil, diante dos novos desafios que uma sociedade
moderna colocava em xeque. O mergulho na fonte brasileira, nas manifestações
populares, no folclore, na natureza nua e em contato com a civilização,
acompanhava-se de uma postura crítica em relação ao primeiro modernismo, cujo
cosmopolitismo e a pesquisa estética impregnavam uma ideologia da novidade,
progressista em suas formas, mas que para eles parecia vazia de sentido. Como
notamos, podemos retratar essa “volta à tradição nacional” como uma forma de
fuga quando os modernistas percebem a outra face da modernidade, agora
conteudisticamente, com suas tensões sociais e políticas, quando o país vê-se nas
conturbações que realmente o colocavam dentro do século XX; percebia-se que a
modernidade brasileira era apenas exterior, ainda não estava formada, digamos,
espiritualmente. As conquistas materiais e o avanço econômico do Brasil na
década de 1910 não acompanharam os avanços na política, ainda marcadamente
situada nas expressões rurais de clientelismo, ligando todo o território nacional
através da política dos governadores.
Como resultado dessa “ida ao povo”, pela primeira vez no Brasil a
intelectualidade vê nas manifestações e produções populares, na vida e no dia-a-
dia das massas que enchem o interior e as cidades do país, não mais um motivo de
degeneração, de inferioridade racial e cultural, nem mesmo o constrangimento que
31
Segundo Mário de Andrade: “O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista
impôs, é, ao meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa
estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência
criadora nacional.” ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins;
Brasília: INL,1972. p. 242.
74
se resolvia aqui-acolá com idealizações tacanhas como as do regionalismo de um
Catulo da Paixão ou de um Cornélio Pires, mas sim uma valorização dessa cultura
de origem primitiva, tanto ameríndia como africana. Segundo Antonio Candido, a
libertação desses recalques históricos (Mello e Souza, 2000, p. 110) foi a
conquista essencial do modernismo, pois o que antes era considerado nossas
deficiências agora são reinterpretadas como superioridades. Mais que isso, tal
inclinação parecia muito mais natural a um povo em que “as culturas primitivas se
misturam à vida cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado
recente” (idem, p. 111), tanto que o primitivismo dos cubistas ou dos dadaístas
pareciam artificiais, tendo que importar caracteres que para os brasileiros estavam
nas próprias fundações da nossa história.
A nação, nos termos de Sérgio Milliet, passou a ser uma “obsessão”. Ela era
o meio mais eficaz de substancializar a modernidade que aqui parecia oca, frágil e
ainda exótica, posto sua mera exterioridade. A máquina, a velocidade, a indústria
não têm “nacionalidade” e não precisam de um adjetivo, de uma alma ou
identidade pois elas têm pretensão de universalidade, como a burguesia, mas,
assim como essa classe, precisa de um território para fazerem seu quintal natural
de comércio, os modernistas tentaram nacionalizar a modernidade, ainda que não
na máquina fria e insensível, mas na estrutura viva e pulsante do povo e da
cultura. A literatura então concorria para essa obra comum, julgada na sua mais
pura origem nacional, nas cores e nas pessoas. Se a modernidade reservava um
canto para que cada nação desse seu cadinho de riqueza cultural, tornando-se esta
universal, então o particularismo seria o imperativo básico.
Mas esse movimento de brasileirismo acompanhava um fenômeno social e
político que estava em plena articulação. As convulsões sociais da década de 1920
não poderiam ser ignoradas. O risco de fragmentação política, cuja iminência
parecia certa devido às disputas entre as oligarquias e dentro delas mesmas, sendo
que as alianças já não pareciam resolver o problema, e ainda as mobilizações dos
campos civis e militares pressionando por mudanças efetivas — esse contexto
necessitava de um discurso e, mais que isso, de um movimento de caráter
nacional, que reiterasse a organicidade coletiva e a unidade política e cultural do
país. O modernismo, por fim das contas, acabou vindo atender essa demanda: a
literatura-nação é então inaugurada. Mais adiante tentaremos verificar tais
75
proposições aliadas a outros fatores internos dentro dos grupos modernistas que
foram então se formando.
O modernismo da década de 1930, por fim, foi o ponto alto da alavancada
em direção a oficialização das propostas nacional-populistas dos modernistas,
quando se configura e se estabelece sua tendência de “ida ao Estado”. Essa fase
não está dentro de nosso corte temporal e problemático. No entanto, cabe algumas
palavras gerais, como é a proposta dessa parte do trabalho porque, quando se diz
que o modernismo desenvolveu os trabalhos de um Sílvio Romero, de um
Euclides da Cunha ou de uma Nina Rodrigues (Mello e Souza, 2000, p. 113), e
que, neste sentido, foi a década de 1930 que teve sua importância maior, devemos
enfrentar o fato de que realmente eles estavam reavivando uma matéria
identificada a um pensamento interpretativo das condições brasileiras de
implementação da modernidade.
Não dá para entender a relação entre modernistas e Estado sem ocupar-se de
suas posições políticas. Parecia inevitável que o debate nacionalista desembocasse
em nacionalismo político, acompanhado das intempéries sociais que a década de
1930 faria ressoar em todo o mundo. Essa tendência estava tão arraigada nas
necessidades do tempo que mesmo os nacionalismos anteriores não se
impregnaram do teor extremista das facções então em formação. Nem a Liga
Nacionalista ou os discursos militaristas de Olavo Bilac propondo o “tempo de
protestar e reagir contra esse fermento de anarquia e essa tendência para o
desmembramento” (Bilac, 1996, p. 946) na década de 1910 infligiram nas mentes
dos intelectuais mais armados de retórica a disposição de um engajamento que
fosse além da literatura ou da participação isolada. Abguar de Bastos tenta
explicar a guinada modernista afirmando que
(...) o que não se evita é que o movimento literário iniciado em 22 se transformasse
em movimento político (...) Depois de 24 os rapazes e velhos do modernismo
entraram a se dividir. Porque uma coisa era o ‘nacionalismo’, o todo ‘nacional’, e
outra era a ‘brasilidade’, a síntese ‘brasileira’. (Bastos apud Martins, 2002, p. 141).
No entanto, as divisões que desde 1924 fragmentavam o movimento ainda
não tinham um caráter de partidarismo político como o deve acontecer em meados
da década. Os debates pautavam-se pela estética mais eficazmente brasileira,
aquele que poderia determinar exatamente o espírito e a cultura nacional, seja pelo
76
integracionismo de Graça Aranha, seja pela cultura não-douta de Oswald de
Andrade, seja pela pesquisa analítica de Mário de Andrade. O “Manifesto da
poesia pau-brasil”, por exemplo, não insinuava uma dinamização que implicasse a
sua leitura como um manifesto partidário, de disputa institucional ou mesmo uma
doutrina política32
. Se já existia certa empatia com o correligionarismo partidário,
este não entrava no palco da literatura, nem mesmo se tornava um tema central,
misturando programa partidário e criação imaginativa. É neste sentido que
podemos ver Mário de Andrade e Rubens Borba Alves de Morais assinando, em
1924, a fundação de uma sociedade secreta de ação política que será o núcleo do
ulterior Partido Democrático, incluindo agora neste nomes como os de Luís
Aranha, Prudente de Moraes Neto, Paulo Duarte, Sério Milliet etc. (Miceli, 2001,
p. 251).
A consciência de que o nacionalismo literário era incipiente diante de todo o
complexo cultural que eles mesmos se defrontaram foi crescendo aos poucos. Isso
faz crer o quanto o modernismo, mesmo quando se esfacelava em diversas
“visões”, ainda se enrolava em suas próprias desconexões com o Brasil de que
tanto falavam. A politização, neste sentido, foi outra tomada de perspectiva diante
do atraso em sua forma de ler o país e suas conjunturas. Para algumas mentes,
esse desfalque foi tratado de modo ambíguo fazendo com que Mário de Andrade,
em entrevista no ano de 1944, se confessasse: “Sempre fui contra a arte
desinteressada. Para mim, a arte tem de servir.” (Andrade, 1983, p. 104), sendo
que dois anos antes lamentara o seu absenteísmo diante das necessidades do
momento. Mas em outra entrevista, Mário de Andrade dá o tom dos novos tempos
ao tencionar até mesmo retrair as conquistas estéticas do modernismo em prol de
um motivo maior, o alcance das massas:
(...) preocupado em participar mais diretamente dos problemas políticos do nosso
tempo, não hesitando mesmo em reconhecer que o meu conceito de arte interessada
e a minha atitude artística sempre dirigida por um utilitarismo qualquer, me
propunham uma poesia de combate e uma arte de circunstância, o verso medido e a
própria rima se impuseram à minha poética por serem processos dinâmicos de
maior alcance social. (Andrade apud Martins, 2002, p. 136)
32
Mesmo que Paulo Prado visse no manifesto uma força disciplinadora. PRADO, Paulo. Prefácio
In ANDRADE, Oswald. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias completas). São Paulo:
Círculo do Livro, s/d, p. 61.
77
A incoerência e as contradições de Mário de Andrade provam o quão
angustiante fora para ele manter-se distante e independente do resto das
tendências modernistas que surgiram no momento, vendo que, mesmo não
aceitando de início os desvios à esquerda e à direita de seus colegas, era patente
uma tomada de posição se ele não quisesse correr o risco mesmo de atrasar-se
perante as vitórias do próprio modernismo, já que o mesmo afirmara em 1942 que
o movimento estético precedeu o político de 1930. Apesar disso ele não conseguiu
realizar tal linguagem solta, limpa, “de maior alcance social”, pois suas produções
da década de 1930, mesmo as que eram politicamente interessadas, continham
uma linguagem hermética, ainda difícil, e de “tensões profundas,” como são os
casos de A costela do grão cão, Livro azul e O carro da miséria. (Lafetá, 2000, p.
205).
Segundo Wilson Martins, pode-se datar de 1926 (com o aparecimento do
grupo Verde Amarelo) o começo das disposições políticas dentro do modernismo,
puxando para a direita Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e
Cândido Mota Filho, enquanto que Oswald de Andrade declina à esquerda como
Jorge Amado mais tarde o fará. (Martins, 2002, 139). Mas o fato é que no começo
as rupturas não tinham por medida a dicotomia direita-esquerda. Segundo Sérgio
Miceli as divergências estéticas entre Oswald de Andrade e Mário de Andrade e
Paulo Prado, por exemplo, explicam-se por razões políticas, posto que o primeiro
estava de acordo o grupo dominante de São Paulo, reunido no Partido
Republicano Paulista, do qual ele seria um preposto (como diria Antonio
Gramsci) dentro do órgão oficial do partido, o jornal Correio Paulistano. É
interessante se ater nestas questões.
Em seu clássico livro Intelectuais e classes dirigentes no Brasil, Sérgio
Miceli faz uma análise biográfica, familiar e econômica dos artistas e intelectuais
que tiveram relações diretas com o Estado varguista. Seguindo a linha de Pierre
Bourdieu, Miceli concebe as produções do campo simbólico com uma implicação
das condições materiais de sua existência, ou melhor, de quem o produz. Neste
sentido, ele avalia o perfil econômico das elites brasileiras, mais especificamente
da decadência da aristocracia do antigo regime republicano pré-golpe; situa como
se dá a absorção e inclusão dos filhos destas famílias no bojo do aparelho estatal,
vendo este processo como uma forma de sobrevivência em face da modernização
das estruturas econômicas e políticas. Este fenômeno é acompanhado da formação
78
de um mercado cultural (típica da capitalização da economia), que abre novas
fileiras não de ascensão, mas de visibilidade social de uma classe com então parco
prestígio. Assim, as transformações típicas da modernização do Estado e da
economia acabaram formando um campo de absorção de uma elite em vias de
extinção, aquela arcaica e clientelista — o Estado, nos termos de Miceli,
“cooptava” daquela aristocracia falida apenas o que mais poderia lhe servir como
quadros, os intelectuais. Duas mãos aí se encontram: a da decadência econômica
da velha elite e a do Estado patrimonialista varguista, já que neste, pela primeira
vez, a cultura era tratada como um “negócio oficial”. Já vimos que aqui não
importa a característica do Estado em questão, pois acreditamos, com Antonio
Candido, que o serviço público não significa necessariamente adesão à ordem
estabelecida (Mello e Souza, 2001, p. 196), mas importa evidenciar algumas
questões propostas.
Cabe notar as injunções que Miceli faz ao diferenciar os “primos pobres”, as
oligarquias decaídas, e os “homens sem profissão”, quer dizer, as famílias que
detinham o poder dominante havia muito tempo. Relacionados aos grupos,
podemos encontrar, dentre os primeiros, Mário de Andrade, Paulo Duarte,
Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Fernando de Azevedo; no grupo dos
abastados sem profissão: Oswald de Andrade, Cândido Mota Filho, Guilherme de
Almeida, Alcântara Machado. O sociólogo afirma então que as disputas e cisões
dentro do movimento modernista devem-se às razões políticas, posto que estes
últimos estavam vinculados ao perrepismo e admitiam a interferência do
nacionalismo e do programa partidário na esfera de suas produções estéticas,
enquanto que o grupo dos “democráticos”, i.e., majoritariamente os intelectuais
“primos pobres”, não acomodavam a tomada de posição política em suas criações:
Enquanto os escritores vinculados ao perrepismo buscaram colocar suas obras a
serviço de uma ideologia ‘nacionalista’ da qual poderiam utilizar os grupos
dirigentes (...), o grupo de intelectuais ‘democráticos’ sob liderança de Mário de
Andrade se empenhou em não deixar que suas tomadas de posição no terreno
político-partidário pudessem comprometer o conteúdo de sua produção literária e
estética. (Miceli, 2001, p. 103).
Assim, para Miceli, vê-se que as origens familiares e a necessidade de
manutenção econômica resvalaram suas querelas e implicâncias políticas dentro
do movimento modernista.
79
Porém, é difícil compreender que, para um “membro da classe dominante”,
Oswald de Andrade tenha começado a propagar a ideologia nacionalista tão tarde,
ou seja, em 1924, sendo que há quase uma década ele já se empenhava na carreira
de jornalista, dentro não só do mesmo Correio paulistano, mas também do Jornal
do Comércio, como do Correio da Manhã, este último onde ele publicou pela
primeira vez seu “Manifesto da poesia pau-brasil”. Ainda mais, seguindo as
mesmas indicações críticas de Antonio Candido quanto à cooptação pelo Estado,
pensamos que, pelo menos quanto a alguns modernistas, o fato de os “homens
sem profissão” trabalharem no jornal situacionista não implicaria a completa
adesão ao programa partidário pelo qual o periódico diz representar. A mesma
situação acontecia com os modernistas mineiros que se espalhavam na redação do
Diário de Minas, órgão do Partido Republicano Mineiro, onde Carlos Drummond
de Andrade chegou a ser chefe de redação sem no entanto expelir qualquer
opinião política (Cf. Cury, 1998). Não há como afirmar, portanto, que Oswald de
Andrade colocasse algum partido na frente de suas criações literárias, muito
menos dizer que ele indicava a interferência de tal agremiação. Sua reclamação
por uma visão democrática da cultura, rejeitando a douta, bacharelesca e
acadêmica, não condiz em nada com o fundamento de uma oligarquia que, pelo
contrário, devia expelir qualquer forma de participação popular, seja política ou
culturalmente. É certo, no entanto, que a ideologia por trás da ambição do Pau-
Brasil não se esquivava de uma oratória vã, como o notou Mário de Andrade
(Andrade, 1972, p. 231), mas essa é uma questão outra.
Ainda que Miceli confunda alguns autores e suas respectivas tendências
(como assinalar Cassiano Ricardo como “democrático” por ser “primo pobre” e ao
mesmo tempo notá-lo como perrepista), não existe uma explicação coerente do
que seria o racha interno do PRP depois da publicação do “Manifesto da poesia
pau-brasil”, posto que o autor afirma que a divergência entre Oswald de Andrade
e o grupo Verde-amarelo teve por motivo o mesmo esteticismo que os
“democratas” proclamavam. É que as divergências surgidas entre os grupos,
naquele momento, não iam além de uma preocupação estética, e só um pouco
mais tarde, em 1926, justamente com o surgimento dos verdeamarelos, é que as
implicações políticas vão aparecer. Cassiano Ricardo confirma que, desde a
origem, o seu grupo teve tais questões:
80
“Foi então que o nosso grupo se opôs ao cubismo, futurismo, dadaísmo,
expressionismo, surrealismo e inventou o ‘verdamarelismo’. Como a própria
denominação o diz, tomava a campanha o seu verdadeiro caminho. Adquiria um
sentido brasileiro (reunindo primitivismo ao moderno) e um sentido social e
político.” (Ricardo, 1939, s/p).
Portanto, para Miceli as injunções e facções políticas entre direita e
esquerda dentro do modernismo tiveram um antecedente. Eles já se dissociavam
como “democráticos” e como “perrepistas” desde que se conheciam como
intelectuais. A explicação que o autor dá para as reviravoltas extremistas é a de
que foi a Revolução de 1930, ao solapar tanto os “primos pobres” quanto os
“homens sem profissão” de dentro de seus respectivos nichos políticos e culturais,
“quando verificam o bloqueio que suas carreiras sofreriam com o desmonte do
antigo esquema situacionista” (Miceli, 2001, p. 252), que fê-los erguer-se
radicalmente contra o poder central, que, depois de 1932 e a derrota de São Paulo
na Revolução Constitucionalista, passaram a rever suas formas de participação e
de formação de quadros para a elite nacional, enquanto que o paulistismo se
arraigava ainda mais. A criação da Escola de Sociologia e Política, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras e o Departamento Municipal de Cultura fazem parte
deste contexto33
.
Nestas circunstâncias é que o modernismo se esgota em algum sentido. A
politização dos objetivos acompanha os agouros pelos quais passava a pesquisa
estética de vanguarda. É na década de 1930 que o recuo modernista dá seu último
passo, estagnando-se em fórmulas, aceitando outras necessidades extra-literárias,
normalizando suas inovações; o que na década de 1920 ocorria com estardalhaço,
com polêmicas em torno de livros e manifestos, agora se faz apenas como
atualização das conquistas: a “rotinização” foi o preço a pagar pelos meios
imediatos que as manifestações formalmente nacionalistas e as práticas políticas
exigiam. Agora o modernismo pecava pelo extremo oposto ao “formalismo”,
aproveitando-se mais das temáticas de conteúdo que das preocupações formais
que recuava tanto diante dos escritores de direita quanto dos de esquerda. Tornou-
se urgente a elaboração de conteúdos “problemáticos”, no romance (social) ou na
poesia (espiritual, psicológica), tanto que já era possível falar de um neo-
naturalismo na prosa, com o chamado romance nordestino — Graciliano Ramos,
33
MILLIET, Sérgio apud MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo:
Ática, 2002, p. 26.
81
em cuja obra não há nenhum apelo formal criativo mas que é um documento de
denúncia social, exemplifica bem este novo momento. (Mello e Souza, 1986, p.
182).
É justamente na década de 1930 que existe uma conjunção de fatores
socioculturais que irão ajudar a afundar o modernismo no marasmo do mesmismo
em termos estéticos vanguardistas. A fundação de escolas superiores, de formação
de quadros técnicos e administrativos, como aquelas mesmas criadas pelos
paulistas, contribuiu para uma crescente divisão do trabalho intelectual,
principalmente nas ciências da cultura que admitem um conhecimento mais
especializado sem o discursismo que imperava na inteligência brasileira (Mello e
Souza, 2000, p. 124); outrora a literatura era considerada o fenômeno central da
vida do espírito, por meio dela fazia-se pesquisa antropológica, sociologia,
história, economia, filosofia etc. Na falta de técnicos e especialistas nestas
diversas áreas, a literatura contribuía para dar forma e ornamento discursivo às
pesquisas, deixando de lado a descrição científica e a interpretação racional.
Quando em 1930 acontece o surto das ciências humanas, a literatura começa a
passar por um processo de depuração, voltando-se sobre si mesma. Ela vai
perdendo o seu caráter de pesquisa tanto formal quanto nacionalista; apenas alude
a um populismo que pouco intervém na criação literária, apenas na pesquisa, por
exemplo, de um solitário Mário de Andrade. Ao notar que foi o modernismo
facilitador do desenvolvimento da sociologia, da história social, da etnografia, do
folclore, da teoria educacional e da teoria política (idem, p. 122), enclausurando
tais ciências nas universidades e nas demais escolas superiores, só podemos
afirmar que o movimento ajudou a criar seu próprio fim. Na verdade, esse
processo se configura como uma “desestetização” do modernismo, quando a
pesquisa estética dá lugar à pesquisa científica, mesmo porque ela fora
incentivada por parte de alguns modernistas. É o que percebemos no caso da
fundação da Revista Nova, no ano de 1931, em que a poesia estava em segundo
plano, como assevera Mário de Andrade nesta carta de pedido de colaboração de
Augusto Meyer em que afirma que ela “é uma revista séria, de 150 páginas no
mínimo, trimestral, publicando pouca literatura, pelo menos literatura gratuita.
Muita crítica e muitos estudos de qualquer que tenham imediata correlação com o
Brasil.” (Andrade, 1968, p. 83).
82
O que se seguiu na década seguinte, com a geração de 1945, quando ocorre
o completo recuo da literatura pela literatura, sem pesquisa formal mas apenas um
esteticismo, foi a coroação de um processo que vinha desde 1924. E, segundo
Vagner Camilo, essa conjuntura também teve impacto na poesia “classicizante”
no Carlos Drummond de Andrade de Claro Enigma (Camilo, 2001, p. 54).
Portanto, na medida em que quase tudo que os modernistas punham em pauta
estava se tornando realidade, eles perdiam sua razão de ser. Do mesmo modo isso
se realizava no âmbito político, quando o Estado passa a adotar o discurso
populista. O povo começou a ser senão ouvido, pelo menos fazer parte da imagem
de um governo que dizia atender às suas necessidades. As massas urbanas
apossaram-se de uma cultura também urbana e que estava longe das canções
populares que Mário de Andrade coletava nos interiores do país, nem fazia parte
da Revolução Caraíba de Oswald de Andrade, muito menos se impregnavam do
Curupira e do Carão de Plínio Salgado e companhia.
É este o sentido que Lafetá chamou de passagem do estético (década de
1920) ao ideológico (década de 1930), como discutimos anteriormente. A
passagem marca o problema-limite do modernismo, quando as ideologias que lhe
afetam saturam a pesquisa estética e alijam os temas na superficialidade dos
problemas, principalmente quanto à poesia espiritualista, espécie de cancro que
sempre rondou o modernismo, ao mesmo tempo em que, positivamente, dispõe os
temas sociais ativando a consciência da literatura como função de denúncia e
politização, embora justamente os extremismos dessas elaborações tenham
transformado as obras em meros documentos neo-naturalistas. (Lafetá, 2000, p.
35-36). A participação então acarretará obras que se erigiam em espécies de
romance-tese, indo em direção a um sectarismo purista que será outro fator de
dissolução estética e literária da qual a década seguinte, de 1940, será testemunha.
As reformas educacionais, o trabalhismo, o populismo, o patrimonialismo
da cultura, o desrecalque do povo como programa de governo — todos esses
acontecimentos da década de 1930 revelam a estatização das discussões literárias
modernistas. A “ida ao Estado” efetiva-se; a adoção das problemáticas
modernistas, no entanto, aconteceria mesmo se a maioria deles não atuasse dentro
das funções estatais, i.e., mesmo que não fossem “cooptados”, nos temos de
Sérgio Miceli. É neste sentido que a maior vitória do modernismo foi o golpe final
83
naquilo que foi sua própria razão de ser, mesmo estética e ideologicamente
falando.
O nacionalismo modernista da década de 1920 encontra o estatismo da
década de 1930. Cabe então fazer uma breve comparação com o que aconteceu no
Romantismo do século XIX. Este, em sua primeira fase, quando a Independência
testemunhava a fragilidade do Estado, erguia o monumento épico chamado A
Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, no qual o Estado
Imperial era glorificado e legitimado; para a unidade da nação, os românticos
desse momento apelavam para o estatismo, sendo que todos eram altos
funcionários do Império, como os fundadores da revista Niterói, que em 1836
inauguraram o movimento. Como crítica a esse modo de construir a nação, e já
chegando a público com uma polêmica contra o próprio Gonçalves de Magalhães,
José de Alencar aposta num nacionalismo literário que criasse condições
emocionais, subjetivas; ou, nos termos de Mário de Andrade: ele nos apresentou
uma identidade “que permitiu muito maior colaboração entre o ser psicológico e
sua expressão verbal.” (Andrade, 1972, p. 244), ao contrário do verso duro e sem
rima de Magalhães (Mello e Souza, 2004, p. 45). O objetivismo do estatismo não
deve ignorar a comunidade imaginada do subjetivismo nacionalista.
Com o modernismo a relação foi contrária. O nacionalismo de 1924 pode
ser interpretado como uma resposta aos conflitos oligárquicos que, em nome de
disputas dentro do aparelho estatal e em nome deste, punham em risco o próprio
sentido unitário da nação. Como escreve Maria Efigênia Lage de Resende sobre o
período:
Se o federalismo possibilita a emergência de oligarquias e coronéis em seus
respectivos campos de atuação, a preponderância de interesses individuais impede
que os temas da nação e da cidadania adquiram posição de centralidade na agenda
política dos constituintes. (Resende, 2010, p. 98).
A “ida ao estado” da década de 1930 representou uma nova tomada de
consciência quando surgiu a oportunidade de efetivação oficial das pesquisas
populistas modernistas. O recrudescimento e o inchaço do Estado dentro dos
vários setores sociais contribuíram para que houvesse coincidências de objetivos.
O Varguismo com seu populismo massificado não poderia dispensar a única
criação inventiva que a intelectualidade brasileira produzia desde meados da
84
década de 1910, não haveria mesmo outros quadros intelectuais e mesmo
administrativas que já não estivessem impregnados da mágica modernista, que
como afirma Antonio Candido, já então estava normalizado, tornado habitual,
comunizado, no sentido de que já abandonara de vez a estética do novo (Candido,
1986, p. 185).
4 Primeiro modernismo
É preciso entender como se processou essa fase do modernismo brasileiro.
Mais precisamente, precisa-se ter em mente as realizações e empecilhos históricos
que o Brasil recentemente republicano testemunhou. As estruturas imperiais ainda
insistiam em permanecer arraigadas dentro das principais fontes sociais,
econômicas e políticas devido às próprias intempéries do processo de
Proclamação da Repúlica. Reformas então foram feitas para que a economia se
dinamizasse de vez: a constituição de 1891 institucionalizou o federalismo de que
os liberais tanto falavam, dando espaço para um complexo emaranhado
oligopolítico; reformas urbanas implementaram uma cultura de cosmopolitismo
antes maquiladora do elitismo do que inclusiva e democrática, jogando a
população indesejada para fora dos centros das cidades, com suas avenidas
linearmente racionalizadas e seus casarões que revelavam a imponência, feios
pelo mau gosto do exagero, das novas elites, dos novos homens agentes da
plutocracia que se inaugurou. No campo da política social houve mesmo um
retrocesso, mediante essa mesma manobra de exclusão social das populações mais
pobres, mormente os de homens e mulheres libertos após o 13 de Maio; o
montante de imigrantes que permaneceu nas cidades veio agravar as condições de
vida urbana, aumentando o contingente populacional e a democratização da
carestia e da fome, da exploração nas fábricas e do desemprego.
A atmosfera de civilização, de cosmopolitismo e mundanismo, foi
característico na Primeira República — que tem dois momentos distintos, um que
vai de 1900 a 1914 e outro que abrange o pós-guerra até a onda nacionalista na
década de 1920, no qual militares, intelectuais, setores das oligarquias
democráticas e camadas médias urbanas, reivindicam o saneamento das
instituições brasileiras. O cosmopolitismo também irá marcar a primeira geração
modernista quando eles mesmos se apropriam da necessidade de civilização
entendida como modernização meramente visual da cidade e suas estruturas e
funcionalidades; buscamos entender um pouco esse processo de íntima relação
histórica com o advento mais estável do Brasil dentro de uma divisão
internacional do trabalho. A ascensão à civilização pela própria civilização, o que,
segundo as críticas dos modernistas, a chamada belle époque entendia como a
86
imitação da Europa, impregnará também as primeiras reivindicações daqueles,
não agora no sentido de “imitação dos modelos”, mas no de proceder na criação
de uma literatura que imprimisse, formal e problematicamente, a modernidade que
se vivia dentro das próprias cidades brasileiras. A fonte de inspiração era as
conquistas materiais que uma economia capitalista urbana e fabril em plena
expansão poderia conceber, antes um cosmopolitismo de criação do que o anterior
cosmopolitismo de importação. A modernidade se dava pela modernidade, i.e.,
aquilo que eles entendiam como a cidade e seu cotidiano urbano, externamente
manifesto no maquinário e nas inovações técnicas. Na década seguinte, de 1920, o
problema mudará de foco, apontando a entrada da modernidade por meio da
nacionalidade, o cadinho nacional será visto como contributo para civilização,
como escrevia Mário de Andrade em carta a Joaquim Inojosa:
Significa só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das
nações que hoje em dia dirigem a civilização da Terra, tem de concorrer pra esse
concerto com sua parte pessoal, com o que singulariza e individualiza, parte essa
única que poderá enriquecer e alargar a Civilização. (ANDRADE apud MORAES,
1978, p. 120).
4.1. O cosmopolitismo dos pobres
O republicanismo, vitorioso do movimento de 1889, trouxe consigo uma
confusão de anseios por novas mudanças estruturais e sociais no país. É verdade
que o 15 de novembro foi o resultado de um processo de enfraquecimento das
instituições imperiais, bastante danificadas em sua morna estabilidade depois da
abolição de 1888; dentre tantos momentos podemos enumerar: a publicação do
“Manifesto Republicano”, em 1870 no jornal A República; o vira-casaca geral dos
fazendeiro do vale do Paraíba, os adesistas ou “republicanos de 13 de maio”,
descontentes com a abolição sem nenhuma indenização, além também de suas
críticas à insuficiência do processo de modernização do império; o
descontentamento por parte dos militares, disposto à intervenção política mediante
seus esforços e sua ampla popularidade logo após a guerra contra o Paraguai; as
contendas com a Igreja Católica; a saúde incerta de D. Pedro II, que, mediante
falta de herdeiro homem, poderia legar o Império a um estrangeiro, Conde D’Eu,
marido da Princesa Isabel; e também a publicidade das propostas republicanas
87
relativamente bem vistas, principalmente quanto ao federalismo (Neves, 2010, p.
28-29). Esses fatores político-econômicos internos, somados ao contexto de
solução capitalista num de seus períodos áureos, impulsionarão o século XX
brasileiro a uma nova característica dúbia quanto às profundas mudanças que se
pretendia.
A simples mudança de “roupa”, como Lima Barreto assinalaria sobre esses
não tão novos tempos, fizera parte de um processo de reconstituição e
restabelecimento de uma ordem social que não fosse alterada pela incompetência
política do Império. É neste sentido que a República não inaugurou uma fase
prosperamente política, mas, ao contrário, viu-se desde o começo sob a égide de
conturbadas crises em 1889, 1891, 1893, 1897 e 1904. Contribuía para isso certo
sentimento de improviso pela sensação de que a República fora o resultado de
uma decisão afobada quando, aderindo em última hora e marchando em direção
ao golpe, Deodoro da Fonseca, ao invés de derrubar o gabinete de Ouro Preto,
cujas reformas desagradaram tanto aos militares quanto aos cafeicultores
paulistas, acabou instaurando o novo regime. Então as crises políticas e sociais
serão o fantasma dessa República de dois gumes, na qual a economia especulativa
não liberal que dará ânimo a uma verdadeira plutocracia encontrava-se ao lado de
um regimento político e social tenso em que mesmo as alianças relativamente
estáveis escondiam os interesses específicos regionais acirrados por aquela mesma
economia desigual, colocando em risco a união político-institucional do país.
O cosmopolitismo desse período é o resultado de uma condição limítrofe
pela qual o país passava, tentando arregimentar uma estrutura política e
econômica que trouxesse as condições de uma inclusão dentro das civilizações
mais avançadas do mundo. Neste contexto, o Brasil terá seu papel estabilizado
dentro de uma divisão do trabalho capitalista que o marcará durante todo o século
XX. Cabe afirmar aqui a peculiaridade desse processo de expansão e ao mesmo
tempo a limitação da modernidade do país, pois é nestas circunstancias que
seguiremos a leitura modernista de uma “modernidade exogâmica”, advindo tanto
da influência das vanguardas europeias quanto à dependência da linguagem
associada à tecnicidade urbana. É que, para os modernistas em geral, a
modernidade na chamada belle époque era sinônimo de cópia, de imitação dos
trejeitos, maneiras, modos, costumes, pensamentos, todos advindos da Europa,
i.e., a modernidade tinha que vir de fora na medida em que, neste momento, os
88
padrões europeus tornaram-se o meio único de implementação da modernidade, da
civilização, fato em parte explicável pelo contexto do imperialismo e do boom
econômico que o velho continente testemunha entre 1900 e 191434
. Os
modernistas da primeira fase, apesar das críticas à triste imitação de padrões
estéticos do passadismo, serão influenciados por esse clima de euforia espetacular,
embora somente no pós-guerra, quando o país vive um crescimento relativamente
mais independente. É por isso que esse período de cosmopolitismo exacerbado
merece nossa atenção, pois nele a modernidade, como diria Graça Aranha, se dá
pela inclusão ativa do Todo, numa introjeção dentro da civilização pela
civilização, ao contrário do que acontecerá nos anos 1920, quando a modernidade
deverá passar necessariamente pela nacionalidade, num processo de civilização
pela nação. (Moraes, 1978, p. 97).
O Encilhamento fez parte do primeiro processo de inclusão do país dentro
do modelo da burguesia argentária. A criação de bancos responsáveis pela
emissão desenfreada de papel moeda gera uma onda de criação de empresas,
bancos, companhias industriais entregando-se à pura especulação, já que a maioria
só existia mesmo no papel, e apenas emitia ações para despejá-las no mercado de
títulos para a sua valorização. Como nos explica Caio Prado Júnior:
Em fins de 1891 estoura a crise e rui o castelo de cartas levantado pela
especulação. De um momento para o outro desvanece-se o valor da enxurrada de
títulos que abarrotava a bolsa e o mercado financeiro. A déblâcle arrastará muitas
instituições de bases sólidas mas que não resistirão à crise; e as falências se
multiplicam. O ano de 1892 será de liquidação; conseguir-se-á amainar a
tempestade, mas ficará a herança desastrosa legada por dois anos de jogatina e
loucura: a massa imensa de papel inconversível em circulação. (Prado Jr., 1987, p.
220)
As especulações, no entanto, continuam, mas agora em torno das oscilações
cambiais das quais as medidas dos governos contribuirão para manter essa cultura
de cupidez material da República Velha. Ainda assim, nota-se que houve um
34
Embora existam sim os exageros modernistas no intuito de difamar toda a literatura que lhes
seja anterior ou contemporânea, o contexto de um cosmopolitismo e de um imperialismo se torna
inegável. No entanto, temos consciência de que, como escreve Antonio Edmílson Martins
Rodrigues, “esse quadro fez com que o período da belle époque fosse visto de forma negativa,
transformando-o em pré-modernismo, em vazio cultural, ou como se a produção desse período
tivesse deixado de ter uma olhar crítico.” RODRIGUES, Antonio Edmílson Martins. “Que 22 que
nada” In Revista Brasileira de História. Disponível em:
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/que-22-que-nada>. Acesso em: 12 de
dezembro de 2012.
89
crescimento industrial nesse meio tempo devido à reforma financeira e bancária
do governo provisório além do que, é nesse momento que se percebe a nova cara
dos donos do poder que perdurarão durante o período: “Era a consagração
olímpica do arrivismo agressivo sob pretexto da democracia e o triunfo da
corrupção destemperada em nome da igualdade de oportunidades.” (Sevcenko,
2003, p. 37-38).
O ano de 1893 vive uma crise que atinge a Europa e os Estado Unidos,
interferindo também nos negócios de café do Brasil, agora indisposto a exportar
as enormes quantidades de sacas que já então revelavam uma crise de
superprodução. Sem exportação não há divisas, ocasionando queda também nas
importações de capital constante e interferindo também no pagamento da dívida
externa, desencadeando assim uma crise interna. Em 1897, o primeiro funding
loan salva as contas internas com o auxílio de empréstimos estrangeiros, dando
credibilidade ao país diante dos credores internacionais. A política deflacionária
de Campos Sales amplia as exportações e sana as contas do tesouro e as
importações de bens e de capital. No entanto, à medida que tais políticas
econômicas visam a valorização das exportações, principalmente do café paulista,
aumentando o lucro e as fortunas, a carestia e o custo de vida eram os problemas
comuns que a população mais pobre, longe das benesses desse sistema de
exclusivismo, tinha que enfrentar praticamente durante todo o período, supondo
que o custo de vida, entre 1889 e 1912 tenha crescido em 221% (Neto, 2010, p.
215).
O processo de constantes empréstimos, o crescimento das exportações de
matérias primárias para o exterior, o investimento em meios de transporte,
principalmente das estradas de ferro interligando regiões produtoras aos locais de
escoamento, e neste sentido, a melhoria dos portos do Rio de Janeiro e de Santos,
o investimento de capitais externos, maciçamente ingleses, o aumento das
importações — esse processo todo é caracterizado por um momento de
prosperidade pelo qual o capitalismo imperialista passa. As exportações de
capitais europeus em direção às suas colônias ou às regiões de domínio indireto,
como a América Latina, destinavam-se aos empréstimos governamentais e à
instalação de infraestrutura que propiciasse a evacuação rápida de matérias-
primas. Resultado de demanda ocasionada pelo enorme crescimento dos países
centrais, que desde meados de 1870, com a chamada Segunda Revolução
90
Industrial, exigiam uma capacidade de consumo que fosse análoga ao da produção
crescente, a compulsão por novos mercados consumidores e produtores de
produtos primários exigirá a expansão para outras áreas do globo bem como a
invasão, violenta indireta ou diretamente, desses espaços de consumo e de
fornecimento, inaugurando um neo-colonialismo nefasto, social e politicamente.
É nesse esquema que os governos republicanos brasileiros enfrentariam
crises e meneios para resolução paulatina, mas ineficaz, de diversas tensões
sociais. O deslocamento econômico causado pelo fim da escravidão no sentido de
implementação do trabalho livre que exigiu do Brasil a necessidade de políticas de
incorporação nesse novo modelo econômico tentacular que cobre todo o globo,
tendo como resultado as levas de imigrantes, proporcionou um aumento
populacional exorbitante, principalmente nas grandes cidades do Rio de Janeiro e
São Paulo. O desenvolvimento urbano deu-se junto ao crescimento populacional e
ao alargamento das cidades com seus novos bairros proletários para onde era
escorraçada toda uma população que era “inadequada” à pretensa imagem de uma
cidade limpa e ordeira. Os descontentamentos dessa população marginalizada
vieram na forma de vários motins urbanos que ocorreram no período, tendo como
ponto máximo a Revolta da Vacina e as greves operárias. O desemprego devido à
grande oferta de mão-de-obra, a insalubridade das moradias, ocasionando crises e
epidemias generalizadas, o alto custo de vida, a carência de gêneros alimentícios,
a repressão arbitrária das polícias urbanas dava substância às revoltas, a maioria
espontâneas, como a Revolta do Selo ou o “quebra lampiões” (Sevcenko, 2003, p.
75).
A sede de civilização dos governos e das elites econômicas e políticas foi,
portanto, imposta de cima para baixo por um cosmopolitismo desenfreado e
artificial, articulado com o desenvolvimento de uma divisão do trabalho mundial.
Daí que resultam as reformas urbanas que tinham como intuito dar nova cara à
cidade, limpa e organizada, salubre e racionalizada, longe da mendicância, das
doenças, dos pardieiros, de qualquer resquício de manifestação popular ou de
hábitos tipicamente “retrógrados” ou “fora de moda”, seja nas vestimentas, nos
rituais religiosos, nas gírias e maneiras de se comportar. Integrar-se no progresso
implicava o esquecimento e a irrelevância de todos os “tipos” nacionais que, para
usar a expressão de Antonio Candido, são recalcados tanto pela grande parte da
inteligência quanto pelos políticos.
91
Esta tentação de estabilidade e de ordem levou os homens de letras também
a identificar a literatura como mero “sorriso da sociedade”, aplicada na forma de
entretenimento e diversão, como mais uma manifestação de bem-estar social,
literatura limpa e arejada nos quais homens como Coelho Neto, Afrânio Peixoto,
Mário de Alencar, Arthur Azevedo dão o nó na gravata dos bons moços. Um
diletantismo e amadorismo tomam conta dos escritos mais amenos e disformes no
intuito de apresentar ao seu público hábitos urbanos, misturando um mundanismo
mais estético do que realista porque depositário do viés parisiense, naquilo que
Sérgio Miceli chamou de escritores “anatolianos”, e uma literatura associada ao
jornalismo de crônica social; o boêmio cede lugar ao “dândi”, e às reuniões nos
salões “onde a literatura se tinha assimilado ao mundanismo da metrópole
cosmopolita e civilizada em que o Rio timbrava por transformar-se.” (Machado
Neto, 1973, p. 74).
Com a eclosão da guerra, em 1914, o cosmopolitismo toma outra cara.
Surge um movimento de preocupação nacional, ligado primeiramente ao de defesa
da nação devido aos ataques aos navios brasileiros feitos pelos alemães. Em 1917
a guerra contra a Alemanha é declarada. Mas mesmo assim ela se dá em termos de
defesa da civilização (Europa) contra a barbárie (Alemanha). No âmbito do
nacionalismo político crescente, funda-se a Revista do Brasil, em 1916, que dizia
em seu primeiro editorial sobre “o desejo, a deliberação, a vontade firme de
constituir um núcleo de propaganda nacionalista.” (Oliveira, 1990, p. 119). No
entanto, a revista não criou um clima de renovação estética e mesmo nacionalista
no âmbito cultural; somente em 1923, quando Paulo Prado assume a sua direção,
que o modernismo poderá, a seu modo, realizar tal intuito. Por outro lado, ainda
na década de 1910, a criação da Liga de Defesa Nacional, tendo em Olavo Bilac o
maior propagandista e expoente, defendia o serviço militar obrigatório como
forma de salvaguardar a nação. Mesmo em seus discursos proferidos pelos Brasil,
Olavo Bilac, ao apontar a necessidade de educação para o povo, não se desprendia
do elitismo estreito ao acentuar o papel dos intelectuais como messias da
sociedade, aquele que levará a salvação ensinando o amor à pátria porque são,
segundo suas palavras, “legítimos depositários da civilização.” (Veloso, 1993, p.
90).
No pós-guerra a industrialização, então mais ou menos afetada pela guerra
no que tange às importações de capitais estáveis, como maquinário, terá um
92
aumento crucial para acender o otimismo do progressismo que dará as caras no
primeiro modernismo. Nesta curva encontramos o maior desenvolvimento urbano
e técnico de São Paulo. Se em 1907 São Paulo tem 326 empresas e cerca de
24.186 operários, em 1920 esses números passam para 4.145 e 83.998,
respectivamente (Silva apud Neto, 2010, p. 221). Quanto ao nível populacional,
no início do século ela abrigava 270 mil moradores, passando para 578 mil em
1920 (Sevcenko, 1992, 109). Como vimos com Hardman, o cosmopolitismo era
vivenciado também pelo número de imigrantes que se fixavam na cidade,
entreposto entre a chegada destes e seu destino final ou mesmo residindo na
capital do estado, abarrotando ainda mais as fileiras das fábricas nas quais 75% ou
85% dos operários eram estrangeiros (Morse, 1970, p. 238). É neste sentido que
Ronald de Carvalho afirmará: “O italiano, o alemão, o eslavo, o saxão trouxeram
a máquina para a nossa economia. A vida tornou-se mais ativa, mais vertiginosa,
mais cosmopolita, menos conservadora, enfim.” (Carvalho apud Brito, p. 27).
Apesar disso, não tão menos conservadora assim, pois, assim como qualquer
desenvolvimento que tenha como modelo a produção capitalista, em São Paulo, as
condições da classe operária, assim como de outros trabalhadores, como os ex-
escravos libertos e impulsionados para as margens da “cidade civilizada”, eram
tão precárias quanto às que vimos no Rio de Janeiro. Do mesmo modo, quando
houve a tentativa de manifestação política contra os desmandos dos empresários e
da polícia, como na greve de 1917, a repressão por parte do governo fora
inflexível e inumana.
Confirmando o fim de um século, o pós-guerra já nasce de certo modo
modernista ou pelo menos deixava no ar um ambiente de renovação e de desejo de
recomeço. É o que comenta Tristão de Athaíde sobre esse momento, ao assinalar
“o fim do naturalismo no romance, com Aluísio Azevedo ou Adolfo Caminha; o
fim do ornamentalismo na prosa, com Coelho Neto; o fim do parnasianismo na
poesia, com a tríade gloriosa Raimundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de
Oliveira.” (Lima apud Brito, 1978, p. 135). Ele ainda escreve, noutra ocasião:
Hoje, a mesma lei de história, que tem encontrado entre nós, como veremos,
confirmação plena nos autoriza a prever que o futuro movimento intelectual do
Brasil vai irradiar de S. Paulo. Vivendo em pleno germinar de ideia regionalista,
desfrutando metade da fortuna nacional, possuindo uma aristocracia da terra, tendo
herdado os seus filhos a altivez e o bom senso dos ‘paulistas’ de Piratininga,
prepara-se S. Paulo para a realeza da República. (...) O século XVI pertenceu a
93
Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII à Minas Gerais, o XIX ao Rio de Janeiro, o
século XX é o século de S. Paulo. (Lima apud Martins, 2002, p. 57)
Apesar do clima de otimismo e euforia pelo desenvolvimento, o campo
literário hegemônico, segundo a crítica modernista, ainda estava estagnado na
repetição de fórmulas e numa literatura regionalista que não alcançava nenhuma
inventividade capaz de organizar um verdadeiro movimento aglutinador de
renovação. Existe, claro, escritores profícuos como Lima Barreto, Euclides da
Cunha e Monteiro Lobato; mas, por forças circunstanciais ou mesmo pelo
movimento que então encabeçaria a inteligência nacional, o modernismo, eles
foram relativa ou drasticamente postos de lado também por razões de
hegemonia35
.
O crescimento urbano da cidade revelava a paisagem-tema que os
modernistas precisavam para descrever a modernidade na perspectiva
vanguardista. Os operários, os imigrantes, a burguesia, as festas urbanas, as
passeatas e comemorações, o trabalho nas ruas, os automóveis, os cinemas, as
danças, os bailes, o cotidiano da cidade era impresso nas notas soltas dos poemas
e no aspecto telegráfico do romance oswaldiano. Este já dizia de sua São Paulo:
É a cidade que, nas suas gargantas confusas, nos seus desdobramentos infindáveis
de bairros nascentes, na ambição improvisada das suas feiras e na vitória dos seus
mercados, ulula uma desconhecida harmonia de violências humanas, de ascensões
e desastres, de lutas, ódios e amores, a propor, às receptividades de escola, o
riquíssimo material das suas sugestões e a persuasão imperativa de suas cores e
linhas. São Paulo é a cidade que pede romancistas e poetas que impõe pasmosos
problemas humanos e agita, no seu tumulto discreto, egoísta e inteligente, as
profundas revoluções criadoras de imortalidades. (Andrade, 1992, p. 27)
O cosmopolitismo de São Paulo vai ser assumido pela inteligência então em
formação direta com a vanguarda europeia. Já em 1912, Oswald de Andrade faz
sua primeira viagem à Europa trazendo na bagagem o Manifesto Futurista de
1909; em 1917 ocorre a grande polêmica em torno de Anita Malfatti que irá
agrupar todos os modernistas paulistas numa direção única: dissipar as hostes
passadistas na literatura. As derrubadas, o bota abaixo, tanto de São Paulo quanto
35
Cabe, neste sentido, citarmos ainda este apelo, resposta de Mário de Andrade ao escritor de Os
Brunzundangas, publicado no número 4 da revista Klaxon: “Sr. Lima Barreto (...) amigavelmente
tomamos a liberdade de lhe dar conselho (...) Não deixe também que as obras de Apollinaire,
Cendrars, Epstein, que a Livraria Leite Ribeiro de há alguns tempos para cá (dezembro, não é?)
começou a receber, sejam adquiridas por dinheiros paulistas. Compre esses livros, Sr. Lima,
compre esses livros!” In KLAXON, n. 4. 15 de agosto de 1922, p. 17.
94
do Rio de Janeiro, visavam colocar a cidade dentro de uma imagem moderna,
repudiando os vestígios do passado; o modernismo se encobrirá nessa capa
moderna para cantar as mesmas cidades e suas máquinas alienadoras.
4.2. Modernismo modernicizante: a tradição esquecida
A consciência de que um movimento novo era necessário, dada a
supersaturação da produção contemporânea, aguçou a experiência histórica dos
modernistas. Eles foram os primeiros a sistematizar a crítica à “escola” literária
anterior num nível jamais visto antes na história das nossas polêmicas culturais,
fato que pesou na concepção de um momento “pré-modernista”, no qual a crítica
modernista, com seus preconceitos, varreu de vez tudo o que fora produzido
anteriormente. Brigaram, arguiram, discutiram tanto que ninguém poderia duvidar
que eles apresentavam realmente algo de novo, gostando ou não. O próprio
modernismo só surgiu como movimento, uma formação de um grupo com
determinados objetivos, depois que um “passadista” resolveu denunciar aquelas
“deformações da natureza”, como foi o caso da polêmica de Monteiro Lobato com
relação à exposição de Anita Malfatti. O termo passadismo era por eles tão
propalado e repetido que a alcunha de futuristas, para além das confusões com as
manifestações de Marinetti e da carga pejorativa, condizia muito para essas
pessoas aparentemente tão ariscas com o que vinha do passado/presente, i.e., se
para eles o que existia em literatura era “passadista”, não é a toa que eles seriam
taxados de “futuristas”, no sentido apenas temporal do termo. O resultado foi pôr
a crítica modernista em pauta. A crítica imanente ao subsistema arte ganhava
terreno.
No entanto, a nova estética não punha em questão a arte num estágio de
autocrítica radical. No Brasil, a arte, como subsistema social, nunca esteve no
cadafalso da crítica nem do artista. Explica-se: a literatura, o lugar-comum da
cultura brasileira, era sinônimo de status num país onde, se pegarmos a época do
auge modernista, a década de 1920, mais de 16 milhões de pessoas padeciam na
sombra do analfabetismo36
. Mais que isso, a atividade intelectual era a forma mais
36
Representando cerca de 69,1 % da população total. Fonte I. B. G. E In MACHADO NETO, A.
L. Estrutura social da república das letras (Sociologia da vida intelectual brasileira — 1870-
1930). Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, 1973. p. 253.
95
imediata de legitimação social para uma cultura bacharelesca em que deter um
diploma de direito ou de medicina, dentro do campo da elite, era quase um dever;
daí que o exercício imaginativo foi o instrumento correlato pelo qual nossa visão
de mundo germinava. É neste sentido que a arte, como instituição, não correu
perigo, nem mesmo neste momento em que o debate estético e funcional da arte
fora a forma mais radical que um movimento cultural alcançou no Brasil.
Portanto, nem mesmo poderia ser mais que isso, posto que, segundo Bürger, um
dado real para a expressa crítica à instituição artística diz respeito ao seu status
dentro da sociedade (Bürger, 2008, p. 58)
Se os modernistas não ousaram arcar com o sacrifício da arte como crítica à
sociedade, no entanto a “compreensão objetiva” de que eles viviam um momento
de declínio deu-lhes um caráter de autocrítica parcial. Eles souberam decodificar
os imperativos de uma nova estética ao mesmo tempo em que tentaram constatar
o fim de outra, mas não colocaram a arte em xeque, posto o valor social que a
literatura alcança em nossa sociedade. Não podemos por isso aceitar
absolutamente as teses de Bürger no que tange às vanguardas históricas em
relação ao modernismo brasileiro; como escreveu certa vez Mário de Andrade
comparando as vanguardas europeias e as brasileiras: “não podemos ter o mesmo
ideal porque suas necessidades eram outras.” (Andrade apud Moraes, 1978, p.
232). Entretanto, as assertivas do crítico marxista servem para pensarmos
problemas de ordem social e estética que colocaram as vanguardas europeias e
que os nossos artistas tomaram como parte de seus pensamentos.
Peter Bürguer adianta o fato de que a autonomia fora o caráter essencial
pelo qual a sociedade burguesa pensava a arte. Esse desejo quase nunca era
alcançado devido aos conteúdos políticos que insistiam em fazer da arte, palco de
denúncias e questionamentos. Nem mesmo a estética de Shiller e de Kant,
advogando o desenvolvimento da arte desligada da práxis vital, conseguiram
excluir o problema da vida e da opinião dentro da arte, quer dizer, a arte como
instituição já existe, mas a opinião predominava dentro dela, como atesta o caso
de Voltaire, por isso ela ainda não era inteiramente autônoma. Como vimos,
apenas quando a burguesia ganha o poder político é que as obras perdem essa
tensão entre o caráter autônomo da arte e seus conteúdos políticos. Ergue-se o
esteticismo, quando a arte tem como conteúdo ela mesma. Com a carência de
função social em que a arte se entrega, a autocrítica torna-se necessária. É neste
96
sentido que “os movimentos europeus de vanguarda podem ser definidos como
um ataque ao status da arte na sociedade burguesa.” (Bürger, 2008, p. 105). As
vanguardas europeias implicavam portanto a revolução social.
A arte no Brasil e a literatura mais especificamente, desde a independência,
praticamente exigem como arte verdadeira aquela que alcançasse o máximo de
frescor estético junto à cor local. Conclui-se que a autonomia da arte no país seria
um verdadeiro praguejo contra uma literatura “incipiente” como a brasileira, que
acreditava abrasileirar a literatura somente na medida em que se alimentava “de
assuntos que lhe oferece a sua região”, como escreveu Machado de Assis no seu
famoso ensaio “Notícias da atual literatura brasileira”. O ponto alto do esteticismo
vazio no Brasil foi sem dúvida o Parnasianismo com sua “máquina de fazer
versos” milimetricamente medidos e rimados esmeradamente. Fatura e temas
parnasianos entregando-se aos deuses e lugares longínquos foram o alvo principal
dos ataques modernistas, articulados inteiramente numa arte que traduzisse em
símbolos as enormes modificações sociais pelas quais passavam São Paulo, com
seus imigrantes, seu café tipo exportação, suas indústrias e o crescente
proletariado. É neste sentido que podemos afirmar que o parnasianismo foi sim
um inimigo-comum que favoreceu uma crítica geral à uma arte oficial que,
segundo os modernistas, há muito não se interessava pelos acontecimentos e pela
vida comum. Mesmo na fase modernista nacionalista pós-1924, ele poderia ser
visto como um alienante típico de um pensamento europeísta, como quer Mário
de Andrade nesta carta a Augusto Meyer, datada de 20 de maio de 1928: “Minha
formação foi inteiramente francesa por assim dizer. Depois foi parnasiana do
Brasil, o que quer dizer que continuou inteiramente desnacionalizada.” (Andrade,
1968, p. 49).
O parnasianismo então foi o mais massacrado possível. De todas as
manifestações literárias do período entre o “pós-naturalismo” até a década de
1920, a escola de Bilac & Co. se tornou um alvo crucial devido à sua hegemonia e
ao seu ar oficialesco durante a República Velha. O parnasianismo exemplifica
bem aquilo que Bürguer diz ser a condição necessária para haver uma
“compreensão objetiva” de uma época passada, i.e., apreensão “do processo geral
na medida em que, no presente do individuo, este processo tenha chegado a uma
conclusão — ainda que provisória.” (Bürger, 2008, p. 57). O Parnaso brasileiro
estava mais do que senil, estava carrancudo, débil, inútil, em colapso; os
97
modernistas não precisariam de muito para enterrá-lo. A querela contra o
passadismo revela-se, deste modo, como a crítica imanente e deixa como
consequência um espaço aberto para novas experiências modernistas. Isso não
quer dizer que desde então os modernistas se empenhavam por dar uma cor
nacionalista à necessidade de uma arte mais condizente com a realidade da época.
É inteiramente possível adotar o presente de uma época sem lançar mãos de
especulações figurativistas do que seria a essência de um povo. O ataque
antiparnasiano formou um bloco homogêneo que tinha também outros objetivos
em comum, mas se não fosse a condição em que os modernistas se encontravam,
de perceberem, segundo eles mesmos, que o que se fazia em arte estava
totalmente desconectado com os novos tempos, o movimento não se coadunaria
tanto em sua luta por uma nova estética: para erguer o novo é preciso saber que
existe um (possível) velho. É razoável concluir então que esse foi o ponto-chave
para uma autocrítica da arte, sendo que o parnasianismo elevava o esteticismo
purista a um nível em que a práxis vital, a vida cotidiana, era dispensada do fazer
artístico, abrindo portas para que o modernismo se insurgisse na tentativa de unir
a arte e a modernidade da vida.
É neste sentido que seguiremos as propostas de Eduardo Jardim de Moraes
ao esquematizar o primeiro tempo modernista em quatro elementos fundamentais:
a polêmica contra o passadismo, o aporte das vanguardas europeias, o papel novo
das artes plásticas e a necessidades de elaboração de uma linguagem de acordo
com a nova realidade moderna (Moraes, 1978, p.53). Estas linhas de frente, sem
dúvida, coadunaram os diversos escritores que empreenderam e trabalharam numa
nova estética, numa atitude literária de enfrentamento, de conquistas, de posições
e opiniões dentro da sociedade; quer dizer, realmente aí se pode dizer que o
modernismo se erigia como movimento, sendo que anteriormente as
manifestações ocasionais e pontuais não infligiram nenhuma consciência geral,
mesmo que dentro das hostes intelectuais, do que seria a vanguarda brasileira.
É verdade que a literatura que vinha sendo praticada no Brasil gerava um
desconforto já bem antes da década de 1920. E não precisava ter um “espírito de
vanguarda” para notar esse estado de miséria intelectual. Em 1893, Capistrano de
Abreu comentava: “A nova geração continua a fazer literatura por simples
diletantismo, sem ideal definitivo e civilizador, reproduzindo no mais das vezes,
em estilo pobre e defeituoso, autores estrangeiros.” (Abreu, apud Brito, 1978, p.
98
16). As criações do espírito enferrujavam-se mediante a reprodução de fórmulas e
apetrechos formais que, antes de denotarem o mínimo de experimentação, serviam
apenas de ornamento, uma falsa capa cobrindo a superficialidade de ideias e de
sensibilidade poética. A má consciência afetava até os grandes da época, se
lermos os termos de Raimundo Correia:
A época atual é, com efeito, dura e penosa para a vida do espírito. Que vemos nós
em torno? O patriotismo, a abnegação heroica e as mais nobres virtudes deixam de
ser uma realidade, evaporando-se em frases ocas... O aspecto sob a qual todas as
coisas são encaradas presentemente por uma literatura doentia e ‘fin du siècle’,
traduz com triste exatidão esse mal-estar que nos oprime e asfixia. (CORREIA,
apud BRITO, 1978, p. 17).
Interessante notar que, ao contrário do que acontece no primeiro
modernismo, nessa época que vai desde 1890 até 1920 ocorre justamente aquilo
que Antonio Candido chama de absorção da literatura na comunidade. Se antes a
literatura era feita por estudantes ou intelectuais e ficava concentrada apenas neste
meio, naquele momento, na medida em que a população cresce, ela deixa de ser
manifestação de um só grupo e passa a ser produzida e consumida por outros
setores sociais, esboçando a profissionalização da atividade de escritor. A
literatura vai se socializando no sentido de que está mais presente em jornais,
revistas, nas atividades dos profissionais liberais e nos salões (Mello e Sousa,
2000, p. 142). Isto quer dizer que a literatura vai se tornar cada vez mais um status
de apreciação/apresentação social, no qual debutantes copiam e decoram as
fórmulas literárias no desejo de terem visão social37
: “E se um poeta fazia
alexandrinos exatos, com cesura e tudo, era um bom poeta, poderia estar
descansado.” (Dantas, apud Brito, p. 32). Essas palavras de Pedro Dantas dão a
entender como fora natural, dentro do palco principal da literatura, a escassez de
inventividade geral naquela época e explica o mal-estar aludido por algumas
mentes de então.
Se o modernismo veio contra a provável concentração desse clima de vazio
e escassez criativa, há de se notar que, nas primeiras décadas do século, uma
figura se destacava como expoente literário: Monteiro Lobato. É o que nota
37
É a partir dessa mera repetição de formas que o Parnasianismo ou o Simbolismo se
enfraquecerá, dando condições para a crítica modernista contra essa literatura pouco inventiva e
imóvel, ao contrário dos seus grandes mestres como Olavo Bilac ou Alphonsus de Guimaraens.
99
Wilson Martins, no seu livro A ideia modernista, ao afirmar que, até 1921, a
vanguarda literária esteve nas mãos do criador de Jeca Tatu (Martins, 2002, p.
26). De fato, Lobato era mais um que lamentava o panorama literário do país no
mesmo sentido dos que citamos anteriormente, só que com uma agudeza mais
proporcional e ativa de que é testemunha suas obras. Sobre o fator poesia como
elemento sinalizador de status e de fraqueza substancial dos novos escritores, ele
afirma, em 1918, no prefácio ao livro de Borges Netto: “Estrear virou sinônimo de
vir a público com uma ‘plaquette’ de sonetos na mão. Ou por preguiça (...) ou por
arrastamento promovido pela fulguração de Bilac, o caso foi que a prosa decaiu
como coisa de somenos.” E continua, agora denunciando a forma aguada da prosa
contemporânea:
Frouxa, enxundiosa, molenga, espapaçada, sem osso nem nervo, sem predomínio
das riquíssimas qualidades que fazem da prosa de Camilo a maravilha da língua
portuguesa, a nossa prosa, no principiante, é uma geleia. O adjetivo erigido a
funções de maria-mole em tiguera, copioso, excessivo, afogando o desenho no
empastamento da cor; o verbo composto amolentador da ação — ia andando,
estava fazendo — usado e abusado com o fim expresso de amanciar o período; o
descritivo naturalista, pegando como bexiga de Zola, e preposto, parece enfadar o
leitor (...) (Lobato apud Martins, 2002, p. 28)
Verdade que é difícil encontrar em algum modernista uma crítica
constituída de uma visão tão detalhada e implacável contra a literatura praticada
em seu tempo, mas não sabemos se é certo exemplificar Monteiro Lobato como
uma figura vanguardista tampouco protomodernista. A crítica, ou pelo menos a
consciência passiva, de uma situação de intenso tédio criativo, como vimos, não
era tão “nova” assim, muito menos ainda estava reservada aos “novos”, como era
o caso de Lobato, “moço àquela época embora velho de sensibilidade”, como
escreveu Sérgio Milliet (Milliet apud Brito, 1978, p.56). Entre 1918 e 1923
Urupês teve nove edições, cerca de oito mil exemplares vendidos só em 1920; já
Cidades mortas e Ideias de Jeca Tatu, no mesmo período, tiveram quatro edições,
Onda verde, duas. Ele era um fenômeno editorial então nunca antes visto. Apesar
das renovações estilísticas, da ruptura dentro daquele meio no qual predominavam
autores de “simples papel carbono de decalque”, além de sua campanha contra o
falso regionalismo idealista e manipulador, a popularidade de Lobato não o
transformou num fenômeno literário capaz de fazer eco como crítica e como
exemplo de criatividade e inventividade reformadora, i.e., ele não criou ou
100
vivificou um movimento criativo que extrapolasse suas próprias obras; sua
literatura foi revolucionária até certo ponto porque não teve um impacto que
produzisse o choque de uma transformação que alcançasse intensidade
proporcional à sua notoriedade. Ele foi, igualmente, o paradoxo de uma novidade
em literatura que não despertou uma literatura nova como movimento, e mesmo
nessa situação, não teve influência à futura visão coroada do modernismo que o
tingiu com as cores do passadismo conservador. Em quase uma década de
produção, de 1915 a 1923, ele não causou o debate nacional que o movimento
paulista proporcionou, como se ele tivesse ficado ilhado em sua fama. Apesar dos
exageros da versão oficial do modernismo, o caso Anita Malfatti revelou apenas
que as rupturas que Lobato trouxe na literatura tinham uma limitação forte: um
conservadorismo em relação aos extremos que a forma pode experimentar. Ele
queria mudar para deixar tudo como está, e não estaríamos errados se
afirmássemos que aquelas outras mentes preocupadas com a literatura tísica
brasileira também não aguentariam ver as “mistificações” vanguardistas,
demasiadas radicais. Oswald de Andrade, a respeito disso, comentava na sua
“Carta a Monteiro Lobato”:
Mas você Lobato, foi o culpado de não ter a merecida parte de leão nas
transformações tumultuosas, mas definitivas, que vieram se desdobrando desde a
Semana de Arte de 22. Você foi o Gandhi do modernismo. Jejuou e produziu,
quem sabe, nesse e noutros setores, a mais eficaz resistência passiva de que se
possa orgulhar uma vocação patriótica. (Andrade, 1971, p.4)
É neste sentido que Wilson Martins afirmou que não é Anita mas Lobato o
verdadeiro “protomártir do modernismo”, ignorado e combatido pelas novas
gerações, obsedado do papel de líder de um movimento de renovação, fadado à
exclusão da “resistência passiva”, de que fala Oswald de Andrade. Podemos
comparar, no entanto, o papel de Monteiro Lobato na década de 1910 e o
aparecimento de Lasar Segall, em sua exposição moderna datada de 1913; ao
mesmo tempo há de se confirmar o que notamos antes sobre o “teor de
vanguarda” que regia a recepção das raras aparições inovadoras, tanto na literatura
como nas artes plásticas. Primeiro, percebemos que, já no começo da década de
1910 a arte não-acadêmica existia em alguns focos e, ao contrário do que
aconteceria com Anita Malfatti, ela não era descrita em termos de “paranoia e
mistificação”. Tanto é que tal exposição de Segall foi bem recebida pelo
101
conservador O Estado de São Paulo de 1º de março de 1913: “Todos os seus
trabalhos, de uma técnica moderna e às vezes ousada, têm uma nota de
sinceridade que impressiona muito favoravelmente e que os torna dignos de
atenção do público.” (apud Brito, 1978, p. 68). Tal exposição, no entanto, não
reacendeu o debate sobre inovações técnicas vanguardistas nas artes plásticas
brasileira, foi apenas um foco novo mas fraco na modorra cultural. Mário de
Andrade se espantaria com a disparidade de contraste entre as recepções de Segall
e Anita: “A inconsistência brasileira era tamanha que, pelo contrário, Lasar Segall
conseguiu o aplauso dos jornais e, o que é assombroso, o elogio de Nestor Pestana
pelo O Estado de São Paulo.” (Andrade, apud Brito, 1978, p. 67). É Nestor
Pestana, segundo Mário da Silva Brito, o “idealizador” da crítica de Monteiro
Lobato à pintora de A estudante russa. Importa assinalar aqui que mesmo ideias
novas consideradas apenas excepcionais como o caso de Segall em 1913, como as
consideradas como fenômeno popular no caso de Lobato, não conseguiam reagir
em conjunto e com força bastante para empreender uma nova dinâmica cultural ao
país.
Em segundo lugar, os casos de Monteiro Lobato e de Lasar Segall
exemplificam não apenas o conservadorismo reinante mas também as limitações
do que era considerado como moderno ou, pelo menos, “novo”. Segall de longe
passava do que Lobato considerava, no famoso artigo, como “arte caricatural”: “É
a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura
da cor, caricatura da forma — caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar
uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador.” (Lobato, 1978,
p. 53). A arte nova de um Lasar Segall, como a do próprio Lobato, não
comportaria os extremos de experimentação formal que deturpasse um
naturalismo seco, ou o mínimo de inteligibilidade conceitual ao qual a arte
acadêmica era o modelo. É o que comenta Oswald de Andrade, único a defender
publicamente, ainda que de modo sensabor, a pintora expressionista: “A suas telas
chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as
nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da
oleografia.”38
(Andrade apud Brito, 1978, p. 61).
38
Oswald de Andrade afirmaria no seu Serafim Ponte Grande sobre o naturalismo pictórico:
“Transponho a vida. Não copio igualzinho. Nisso residiu o mestre equívoco naturalista. A verdade
de uma casa transposta na tela é outra que a verdade na natureza. Pode ser até oposta. Tudo em
102
Essas considerações confirmam o fato de que existia um modernismo
latente, nas reclamações ou em realizações pontuais, mas as suas expectativas
talvez não fossem as que predominavam nas vanguardas europeias das quais os
brasileiros beberiam, muito menos num nível geral com o qual o modernismo
ulterior sonhou e conseguiu. Ainda assim, essas vozes, as mais cultas e vorazes,
passariam por um silenciamento que o modernismo acabou por tornar-se
cúmplice, como no caso de um João do Rio, de um Gonzaga Duque ou de um
Lima Barreto — este um herdeiro de uma ironia que os novos não poderiam
entender.
O caso Anita Malfatti acabou sendo a vitória modernista: trouxe-os à tona
como grupo. Isto tanto a crítica quanto os próprios modernistas confirmam.
Coadunaram então as “pré-consciências” (quem diz é Mário de Andrade), a
exigência de criação de um espírito novo em resposta a um panorama específico.
O “passadismo” é o rebento das discórdias de 1917: daí em diante, qualquer
afronta aos novos em nome de uma arte morta e estanque seria rebatida com gritos
e palavras de animosidade; do mesmo modo que os modernistas transformaram a
literatura contemporânea num único bloco homogêneo, as “araras” do passadismo
ajudaram a aglutinar a arte nova vanguardista num único grupo, carrancudo e
disposto a tudo para concorrer à inteligência nacional: “Foi ela [Anita], foram
seus quadros que nos deram uma primeira consciência de revolta e de coletividade
em luta pela modernização das artes brasileiras. Pelo menos a mim.”, é o que
afirma Mário de Andrade (Andrade apud Brito, 1978, p. 71), apesar de que, em
sua opinião, a arregimentação em torno desse problema comum foi instintiva e
automática, sem nenhum debate mais claro em torno da pintura de vanguarda pois
eles mesmos não tinham uma educação plástica de vanguarda:
Com efeito: educados na plástica “histórica”, sabendo quando muito da existência
dos impressionistas principais, ignorando Cézanne, o que nos levou a aderir
incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, que em plena guerra vinha nos
mostrar quadros expressionistas e cubistas? (ANDRADE, 1972,. p. 232).
Foi o que fez Mário de Andrade ao dar gargalhadas numa visita à
famigerada segunda exposição de Anita Malfatti, mais tarde, dando-lhe de
arte é descoberta e transposição.” ANDRADE, Oswald. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo,
2007, p. 48.
103
presente um soneto parnasiano. Essa ambiguidade é latente nas formas de reação
dos modernistas que se preocuparam mais em atacar Monteiro Lobato e as hostes
“passadistas” do que em defender a pintura de Anita. Só Oswald de Andrade o
fez. Mário de Andrade enfrentou o desafio bem mais tarde. Como parte desse
clima de euforia desgarrada, Menotti Del Picchia confessava, em novembro de
1920, que também havia abominado as pinturas vanguardistas de Malfatti porque
“essa arte, por sugestão e por mal conhecê-la, eu também, como muitos,
berramente a neguei.” (Picchia, apud Brito, 1978, p. 67). A confissão de
“penitência”, como ele mesmo afirma, não tinha o mesmo tom agressivo que faria
inveja a Lobato, quatro meses antes, na Revista do Brasil, na qual Del Picchia
negava qualquer arte de vanguarda:
Daí aparecer na arte uma criação doentia, que se chamou cubismo, uma escola
enigmática e doida, que se chamou futurismo. (...) Por um decadentismo que se
acentua ignominiosamente após a guerra, na loucura crescente de se reformar a
face do mundo, os artistas hodiernos escarnecem desse passado e, por uma ironia
irritante, engendram uma arte pueril, absurda e efêmera, que divinizam sob a égide
do primitivismo e da ingenuidade. Artistas admiráveis, contagiados por essa
corrente cultuam essa arte doentia, que amanhã pela reação sensata dos artistas
menos radicais, apenas será uma ridícula memória na história da arte. (Picchia
apud Martins, 2002, p. 37)
Menotti Del Picchia aderira tardiamente ao modernismo, mas já antes de
1922 angariava fama e prestígio junto ao grupo de renovadores que tinha em
Monteiro Lobato o chefe; o Juca Mulato daquele era criativamente o “primo
pobre” do Jeca Tatu deste. Visto com desconfiança, de que Oswald de Andrade
fazia profissão de fé, Menotti Del Picchia, segundo Wilson Martins, debandou
para o lado da juventude modernista apenas pelo anseio de tornar-se chefe de um
grupo; assim se fez. Fato que poderia ter acontecido com o próprio Monteiro
Lobato, muitas vezes sondado pelos modernistas devido à sua popularidade e
respeito nacional. É neste sentido que, segundo Tadeu Chiarelli, a ambiguidade
desse tempo se fazia por estratégias delicadas. Os ataques a Lobato deviam-se ao
fato de ele não ter aceito tais investidas. Chiarelli também afirma que Anita
Malfatti, já em 1917, recuara em suas experiências vanguardistas, que os quadros
expostos na exposição deste ano eram de suas primeiras experiências, mais
radicais, e que entre 1916 e 1917 a pintora punha em questão a arte moderna,
recuando seu vanguardismo. Nestas circunstâncias, a não adesão de Lobato aos
104
modernistas fora grande fator para atribui-lhe o recuo vanguardista de Malfatti
(Chiarelli, 1995, p. 24-26). Se Lobato permaneceu em sua “sinceridade” (o termo
foi usado por Wilson Martins), Menotti foi a escolha aceita pelos novos
modernistas, posto que, à época, era já um nome feito na literatura. Assim, uma
estratégia de hegemonia ganhava maiores contornos.
Já em janeiro de 1921, Menotti Del Picchia, convertido ao futurismo do
qual, segundo ele mesmo, foi “um encruado perseguidor” pois “só ao ouvir o
nome de Marinetti sentia a ânsia de estrangulamento e minhas mãos crispavam
tenazes” (Brito, 1978, p. 168), lançava o artigo “Na maré das reformas”,
verdadeiro manifesto contra o passadismo e a favor de uma linguagem que
atualizasse a literatura à modernização crescente do meio, diga-se, de São Paulo39
:
O pensamento nas suas fórmulas objetivas deve acompanhar passo a passo a
mutação protéica da luta humana; Casimiro de Abreu não pode, com seu lirismo
romântico, cantar a agitação das greves (...) Colocando o problema da reforma
estética entre nós, pouco se salva do passado.(...) a vida século XX, com fábricas e
bolchevismo, com o sangue ainda quente derramado pelo holocausto da grade
guerra, pede outra técnica para a sua representação, outra expressão verbal para a
sua extrinsecação artística. (Picchia apud Brito, 1978, p. 188-190).
Nota-se que existiu entre os modernistas a mesma sensação que a República
causava no país. Os ventos de mudança que vieram desde fins do século engordar
o otimismo de novos rumos na política e na situação social do país revelaram-se
superficiais, senão mistificadores, ao passo em que se percebia que o novo regime
manteria as mesmas estruturas marginalizadoras vividas durante o Império.
Mesmo as conquistas econômicas das quais parte do país testemunhava, na
medida em que a imigração crescia ano após ano, o trabalho assalariado e os
níveis sociais e culturais não eram acompanhados pelos crescimento industrial nos
anos pós-guerra, nos quais também predominava uma literatura de expressão
burguesa, que ousava experienciar aqui-ali o sabor idealizado de um Brasil
arcaico no sertanismo da literatura ao mesmo tempo que se saboreava no
europeismo diletante da República Velha, em que as oligarquias cercavam-se
39
É importante ressaltar o quanto o seu paulistanismo à essa época já era gritante: “Rinchem de
inveja as outras ‘capitanias do país’, entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo
continua e continuará com a batuta da liderança.” PICCHIA, Menotti Del In BRITO, Mário da
Silva. História do modernismo brasileiro - Antecedentes da Semana de Arte moderna. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 171.
105
dentro de seus sítios políticos, e onde o parnasianismo e o simbolismo se
arranhavam nas goelas roucas dos poetas e na prosa emaranhada do naturalismo.
A guerra, no entanto, trazia a mesma sensação de que algo deveria mudar
radicalmente, cedo ou tarde. Até Alberto de Oliveira o sentia, em 1916, em pleno
discurso na Academia Brasileira de Letras: “Assim como por vossas mãos vieram
até nós antigas formas literárias, virão amanhã as novas ideias de um novo
período social, de uma nova e talvez melhor humanidade que a dura lição da
guerra prepara.” O parnasiano ainda questiona: “Falta um ideal superior que a
todos irmane e congregue. Político? Moral? Religioso? Religioso, moral e
político, e, no que nos toca, artístico e literário. Trá-lo-á o dia de amanhã finda a
calamidade da guerra?” (Oliveira apud Brito, 1978, p. 38). Ao modernismo coube
a resposta positiva. A guerra abre caminho para o Novo Mundo, é o que diz o
primeiro número de Papel e Tinta, em que Oswald de Andrade é um dos
idealizadores:
As consequências sociais da guerra refletiram-se singularmente na vida do nosso
povo. Por esse instinto de progresso, que vigia na alma das nacionalidades, o
Brasil, em cinco anos, sofreu uma transformação visceral. Todas as suas forças
econômicas, políticas, intelectuais, tiveram uma eclosão notável. (Andrade apud
Brito, 1978, p. 144).
Assim, a grande metrópole era a condição da poesia moderna, como afirma
Alfredo Bosi:
A combinação de uma nova perspectiva, o novo espaço-tempo da cidade grande do
pós-guerra, com uma bateria de estímulos artísticos europeus tornou possível,
historicamente, a Semana de Arte Moderna de 1922 (...) Não bastou que
aparecessem os talentos modernistas. Era necessário que esses talentos se
movessem no solo sólido de uma cidade moderna, capital do Estado mais
“desenvolvido” do Brasil. Então, as imagens novas da indústria, da maquinaria, da
metrópole, do burguês, do proletário e do imigrante, e sinal de relevo, do
intelectual sofrido e irônico, puderam surgir na poesia de Mário de Andrade e no
mosaico futurista de Oswald de Andrade. (Bosi, 2003, p. 210)
Como salienta Eduardo Jardim de Moraes, é justamente esse clima
dinâmico de modernidade que a vanguarda brasileira pretende apreender
consumando o que eles chamavam de atualização do ambiente artístico brasileiro,
elemento e objetivo central no primeiro modernismo. Uma nova técnica e uma
nova linguagem eram necessárias para que pudessem adquirir uma visão de
106
mundo comum às conquistas materiais modernas, aos novos preceitos morais e à
dinâmica de um cotidiano estranho aos antigos processos e matérias que a
literatura e a arte insistiam em manter. A modernização da vida, a ligação com a
práxis vital, deflagraria uma revolução nos modos de expressar, uma revolução
necessária e urgente que personificasse a própria velocidade e dinamismo que a
cidade e os aparelhos técnicos da modernidade insuflavam nos espíritos. Como
vimos anteriormente, essa revolução já estava acontecendo, e mesmo a nível
literário ela só precisava ser formalmente elaborada, como fizera os modernistas
vanguardistas, quando, enfim, como ressalta Fora Süssekind, a técnica já se torna
um “hábito” necessário (Süssekind, 1987, p. 147).
Se o ato de atravessar a rua exigia dos transeuntes da cidade a experiência
física e matemática de calcular a velocidade do automóvel, educando a retina,
repositórios do espaço-tempo, assim como outros sentidos como audição e o
olfato, tudo isso para um exercício simples e cotidiano — aquelas experiências
eram vividas todas as vezes que saiam de suas casas — então por que não senti-
las na forma e na consistência de um poema ou na construção telegráfica de um
romance? Guilherme de Almeida dá bem a síntese do que era esse sentimento,
esse espírito: “É o Fiat universal. Movimento = Realidade. Tudo quanto existe é
movimento: movimento que se realiza e se realiza no tempo e no espaço. Assim,
nada realmente existe, tudo acontece.” (Almeida apud Ulrich, 2007, p. 49). É o
que ele esboça em seu poema “Velocidade”, título e termo tão comum dentre as
produções modernistas:
Não se lembram do gigante das botas de sete léguas?
Lá vai ele: vai varando, no seu voo de asas cegas,
as distancias...
e dispara,
nunca para,
nem repara
para os lados,
para frente,
para trás...
vai como um pária...
(...)
(Almeida apud Martins, 2002, p. 49)
A mecânica do tempo (assim como da forma, da pele e corpo do poema) se
distorce, ela não tem mais as similitudes e exatidões limítrofes que o positivismo
107
lhe impunha organizando-a em blocos lineares. O que está ao redor, sua
movimentação, seus gostos, suas cores e ritmos, preenche o estado interno da
consciência de tal modo que, neste contexto em que a vida cotidiana se vê afetada
por novas perspectivas, as percepções subjetivas são profundamente marcadas
pela imensidão de experiências novas. Essa mobilização da consciência salta à
obra de arte, e, para que a sensibilidade se torne mais pura e livre, a ação e a
inteligência são rejeitadas para que a intuição ganhe espaço, a partir de um
movimento de desatenção, ocasional (como Marcel Proust entendia) ou derivado
das “palavras em liberdade” do automatismo futurista40
; como escreve Henri
Bergson: “Com efeito, é da alma inteira que emana a decisão livre; e o ato será
tanto mais livre quanto mais a série dinâmica a que se liga tender para se
identificar com o eu real.” O inconsciente a céu aberto (nos termos de Sigmund
Freud) é o que procuram esses vanguardistas para exprimirem de imediato a
relação do eu profundo com os dados externos que o cotidiano nos oferece, é o
“eu de baixo que sobe à superfície. É a crosta superior que estala cedendo a um
irresistível impulso.” (Bergson, 1988, p. 117-118). Vemos o que Mário de
Andrade sistematizou no seu “Discurso sobre algumas tendências da poesia
modernista”: “A impulsão lírica é livre, independe de nós, independe de nossa
inteligência. Pode nascer de uma réstia de cebolas como de um amor perdido (...)
O que realmente existe é o subconsciente enviando à inteligência telegramas e
mais telegramas (...)”. Continua ele:
Substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente. Esse um dos pontos
mais incompreendidos pelos passadistas. (...) Na verdade: tal substituição duma
ordem por outra tem perigos formidáveis. O mais importante é o hermeticismo
absolutamente cego (...). Erro gravíssimo. E falta de lógica. O poeta não fotografa
o inconsciente. (...) Assim, na poesia modernista, ao se dá, na maioria das vezes
concatenação de ideias mas associação de imagens e principalmente:
SUPERPOSIÇÃO DE IDEIAS E IMAGES. (Andrade, 1980, p. 242-245)
Vamos encontrar então um paralelismo muito forte com as perspectivas
freudianas no seu A interpretação dos sonhos. Ao notar em seus pacientes que o
40
Escreve Marinetti sobre as palavras em liberdade: “Desconsiderando todas as definições
estúpidas e todos os verbalismos confusos dos professores, eu lhes declaro que o lirismo é
simplesmente a faculdade raríssima de inebriar-se da vida e de inebriá-la de nós mesmos.” Apud
CALBUCI, Eduardo. Marinetti e Mário: desconexões entre o Manifesto Técnico da literatura
Futurista e o “Prefácio interessantíssimo”. In Revista USP. São Paulo. N. 79. Set/nov. 2008, p.
207.
108
ato de reflexão, no qual há o exercício da faculdade crítica, inibe algumas ideias
de tal modo que elas nunca se tornariam conscientes mas suprimidas antes de
serem percebidas, Freud aponta a necessidade da auto-observação porque
O auto-observador, por outro lado, só precisa dar-se o trabalho de suprimir sua
faculdade crítica. Se tiver êxito nisso, virão à sua consciência inúmeras ideias que,
de outro modo, ele jamais conseguiria captar (...) À medida que emergem, as
representações involuntárias transformam-se em imagens visuais e acústicas.
(Freud, 2001, p. 103-104. Grifos meus)
As imagens aliteradas são apresentadas “ocasionalmente” ao ponto de se
tornarem ordeiras em seu próprio caos, como no poema “Noturno”, do mesmo
Mário de Andrade:
Gingam os bondes como um fogo de artifício,
Sapateando nos trilhos,
Cuspindo um orifício na treva cor de sal...
Num perfume de heliotrópios e de poças gira uma flor-do-mal... Veio do
Turquestão;
E traz olheiras que escurecem almas...
Fundiu esterlinas entre as unhas roxas
Nas oscilantes de Ribeirão Preto...
- Batat’asst’ô furnn!...
Luzes do Cambuci pelas noites de crime!
Calor... E as nuvens baixas muito grossas,
Feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores...
(Andrade, s/d, p. 53)
A deformidade, ou melhor, a simultaneidade de sentidos é que gera a
sensação de distorção, superposição, dissolução de que testemunham a arte
vanguardista, daí que para uma sensibilidade educada na apreciação da arte
figurativa e naturalista, estas realizações possam parecer “caricaturais”, como o
escrevera Monteiro Lobato. Como no poema, as sensações proporcionam raios
luminosos que exemplificam a variabilidade de perspectiva que a noite
proporciona no poeta, como se sua emoção comunicativa se debelasse apenas no
balbuciamento solto e cadente de sua subjetividade formando assim mosaico
acabado41
.
41
É o que nos diz o simultaneísmo, do qual nos fala Soffici, no seu Estética futurista: “Posto o
artista como centro móvel do universo vivente, todas as sensações e emoções, sem perspectiva de
109
Mário de Andrade afirma que existe uma certa ordem naquele aparente
caos de que se taxava de feio; para ele, no entanto, na arte moderna, não existe
nem o feio nem o belo, pois são ambos relativos. É o mesmo que pensava Carlos
Drummond ao notar que “arte e beleza são, afinal, categorias independentes.”
(Andrade apud Cury, 1988, p. 215). A mistura de sentidos que produzia tal arte,
era apenas uma elaboração pulsante, um movimento e uma dinâmica análoga ao
que se passava no exterior, i.e., a impulsão lírica é uma forma de dizermos que, tal
qual a combustão de um automóvel, nosso eu profundo também é uma máquina,
uma máquina criadora volúvel. Como escreveu Rubens Borba de Moraes:
As invenções modernas transformaram nossos sentidos. O homem não tem mais 5
sentidos, tem centenas, milhares. A velocidade da vida moderna obriga o artista a
realizar depressa o que ele sentiu depressa, antes da inteligência intervir. Desse
estado de coisas nasceu a sistematização da arte moderna. O tempo!... Além da
sintetização cinematográfica, a vertigem da vida moderna cria também, no artista,
uma facilidade de análise, produzida pela multiplicidade de fatos diferentes que se
realizam em pequeno espaço de tempo. (Moraes apud Martins, 2002, p. 42)
Existe a necessidade de se adequar a certo espírito que pairava no ar: o
espírito moderno. Difícil não encontrar nos escritos desses modernistas o termo
espírito acompanhado de palavras que apontam a necessidade de ir ao seu
encontro, de estar de acordo com os tempos novos ao nível “superestrutural” da
estética e da cultura, de um processo de autoconhecimento, de autoconsciência
mesma. A similaridade entre tempo e cultura não prescindia de conteúdos já
expressos nos meios de vida e condição do homem moderno, faltava apenas uma
medida expressional que assimilasse tais conteúdos coerentemente, mimética e
sistematicamente, de modo que a forma estética passou a ser o ponto de partida e
o de chegada imprimindo até mesmo as formas da vida nas características
epidérmicas das obras, como bem fez Guilhaume Apollinaire em seu Caligramas.
Tal espírito, portanto, tinha sua capacidade de produção aliada às condições
materiais de uma sociedade em completo desenvolvimento técnico, mas, sendo
que as atividades do espírito não acompanham as materiais, ainda mais numa
estrutura capitalista na qual a revolução permanente das estruturas econômicas é a
lei geral, onde tudo que é sólido desmancha no ar, as inovações espirituais espaço ou de tempo, atraídas e fundidas num ato criativo poético. Simultaneidade de estados de
espíritos polarizados por vias análogas de recordações e de outros tempos, como luzes de astros
errantes concentrados num espelho” citado por CAMPOS, Haroldo. Miramar na mira In
ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 1990. p. 12.
110
padecem de “atraso” quanto às materiais. A decadência da Europa pós-guerra
animou então as mentes desses intelectuais que viram, tanto na insuficiência e
decadência do Velho Mundo quanto nas conquistas econômicas brasileiras, a
chance de acertar as contas junto ao que Antonio Candido chamou de recalque
brasileiro. O otimismo da década de 1920 era o produto das contradições
explícitas pelas quais uma intelectualidade de vanguarda assume as inovações de
uma sociedade que admite para si as conquistas de um mundo desigual no qual a
riqueza se produzia sobre os cacos de um mundo-modelo então mergulhado no
caos social e econômico.
Mas o entusiasmo instintual na adesão ao caso Anita Malfatti, velando certa
ignorância do que era a vanguarda, também permanece neste momento no qual,
em pleno 1926, escrevendo em Terra roxa e outras terras, Paulo Prado ainda não
sabe bem o que era tal espírito moderno: “Os trabalhos publicados obedecerão a
uma linha geral chamada espírito moderno, que não sabemos bem o que seja, mas
que está patentemente delineada pelas suas exclusões.” (Prado, 1926, p. 1). As
exclusões aí dizem respeito tanto às dissidências dentro do modernismo à época
quanto aos passadistas atrasados que ainda teimavam em ir contra o “espírito do
tempo”. Guilherme de Almeida confirma o tal quadro:
Sente-se agora na humanidade, uma alteração inexprimível, uma preocupação
estranha e fala-se muito em ‘espírito moderno’. Ninguém saberá definir esse
espírito, localizá-lo, analisá-lo; sente-se que ele existe de fato — e nada mais. E
seria mesmo imprudência, até tolice, querer explicá-lo, situá-lo. Sabemos que tal
quadro, tal poema, tal música ‘são modernos’ ou ‘não são modernos’. Por quê?
Impossível responder. São porque são, não são porque não são. (Almeida, 1939,
s/p)
Plínio Salgado, em artigo publicado em 1928 na revista Festa, comentando
o primeiro modernismo, via, do mesmo modo, um espírito rondando a inteligência
brasileira: “Essa conformidade de expressões, essa oficialização de técnica
revelam, por certo, ‘um estado de espírito’, mas é um estado de espírito cultural,
que não corresponde a uma realidade nacional, e tem mesmo muita porção de
Europa.” (Salgado, 1978, p. 286). Se fôssemos contar o número de vezes em que
o termo se repete na famosa conferência de Mário de Andrade sobre o movimento
modernista, ficaríamos espantados com o gosto que se tinha em empregá-la vinte
e seis vezes. Graça Aranha acreditava ser passadismo tentar definir o que quer que
111
fosse chamado de “espírito moderno” justamente pelas características do seu
próprio tempo no qual “tudo é móvel, tudo se esvai e tudo se transforma”,
concluindo que o “espírito moderno é uma abstração. O momento em que o
definimos e o captamos, entrou no passado.” No entanto, mais adiante, ele admite
o fato de que o espírito moderno detém, ao contrário do subjetivismo passivo ou
dinâmico de outras épocas, o objetivo dinâmico, em que “a arte exprime o
movimento das coisas, que agem pelas suas próprias forças, independentes do eu.”
(Aranha, 1925, p. 24-25).
Ora, a experiência-movimento se expressa de forma pura no cinema, onde
diversas imagens fotográficas apresentadas velozmente dão a aparência de
movimento, sendo essa montagem de imagens o elemento técnico fundamental
que dá vida à sétima arte. Assim, o cinema vai ser o exemplo mais pertinente no
sentido de elaboração técnica de uma arte que tenha como princípio o movimento,
a dinâmica do tempo transcorrido tanto material quanto abstratamente. Essa lição
o primeiro editorial da revista Klaxon já entendia:
KLAXON sabe que o cinematógrafo existe. Perola White é preferível à Sarah
Bernhardt. Sarah é tragédia, romantismo sentimental e técnico. Pérola é raciocínio,
esporte, rapidez, alegria, vida. Sarah Bernhardt = século XIX. Pérola White =
século XX. A cinematografia é a criação artística mais representativa da nossa
época. É preciso observar-lhe a lição. (Klaxon, 1922, p. 2).
O ambiente social então já se encontrava familiarizado — “automatizado”,
se formos pegar emprestado a expressão de Flora Süssekind — com essa
experiência, visto, principalmente depois da guerra, como a maior influência entre
a juventude da época. É o momento em que a indústria cinematográfica americana
tem uma próspera alavancada, devido mesmo às circunstancias que a guerra
impôs ao cinema europeu, mais afeito aos procedimentos de vanguarda e
experimentalismo formal dos quais, à vista daquele, procuravam apenas uma
diversão mais convencional e emotiva; soma-se a isso o aparelho propagandístico
e o sistema de distribuição que enchiam as salas de cinema de astros americanos,
verdadeiros deuses novos de um nicho mercadológico no qual colaboravam a
indústria de magazines, pôsteres, fofocas, fotografias etc. (Sevcenko, 1992, p. 92-
93). Por seus aspectos técnicos o modernismo então não deixou de lado a
presunção vanguardista que o cinema trazia em si. Mário de Andrade assim
comenta:
112
A OBRA DE ARTE É UMA MÁQUINA DE PRODUZIR EMOÇÕES. E só
conseguimos descobrir essa verdade porque Malherbe chegou. O Malherbe da
história moderna das artes é a cinematografia. Realizando as feições plásticas e as
das palavras (e note-se que a cinematografia é ainda uma arte infante, não sabemos
a que apuro atingirá), realizando a vida como nenhuma arte ainda o conseguira, foi
ela o Eureka! das artes puras. (Andrade, 1980, p.258)
Realizar a vida moderna é uma tarefa que, na arte, adequa a experiência da
velocidade e da dinâmica coletiva entregue aos impulsos gerados pela
simultaneidade de sensações que o cotidiano moderno nos oferece. Esses
impulsos primários são aqueles mesmos que Mário de Andrade tenta teorizar em
seu A escrava que não é Isaura, abstendo das inocorrências ativas da consciência,
da inteligência, para a emanação purista das fontes mais profundas com as quais o
lirismo de caráter modernista acompanha os distúrbios e polifonias que a vida
numa cidade moderna causa em qualquer um que tenha a experiência de sair à rua.
A procura por uma origem perdida no inconsciente, primitiva e ao mesmo
tempo ocasional, é não apenas uma reinvidicação das diversas correntes
modernistas e de vanguarda, mas também uma carência de qualquer ser comum
exposto ao bombardeio de novas sensibilidades, como escreve Nicolau Sevcenko:
As dimensões oníricas profundas da mente, que compartilham da força desse
impulso primordial, são por isso guias mais legítimos que as superfícies
encrostadas da consciência, esterilizadas pelo longo empenho histórico da
imposição de padrões de ordem e estabilidade. (SEVCENKO, 1992, p. 155).
É essa relação entre os condicionantes de uma vida explosiva em termos
materiais e dinâmicos e as intempéries desse impacto nas mentes das pessoas,
reinventando suas formas de conceber e de estar-no-mundo, que irá derivar o
primitivismo interno tão alardeado pelas vanguardas. Não se pode dizer que existe
desde aí um irracionalismo sistemático e dogmático que a primeira guerra dará
como rebento às instituições políticas e à filosofia, mas antes uma tentativa de
explicar e de conceber, a nível estético e histórico, a complexidade de uma
sociedade que não parece ter raízes profundas, de certo modo, esvaziada não em
sua aparência externa mas na de capacidade de integração de seus próprios
produtores. As raízes dos impulsos instituais dos homens e mulheres da sociedade
moderna, que Sigmund Freud fora buscar historicamente nas criações das
interdições em seu Totem e tabu, de 1919, alardeando nossa genética social
primitivista, fora para os modernistas o modo de comunicação com uma realidade
113
fragmentária mas deslumbrante. Quando então Freud afirma que a arte “funcionou
originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos”
(Freud, 1974, p. 114), as vanguardas já haviam experimentado todos os
desregramentos do subconsciente, tentando resgatá-los. A impulsão lírica é o
precedente da arte livre dos cacoetes acadêmicos, a nau desgovernada que
descobre o novo mundo. Mário de Andrade, em seu A Escrava não é Isaura,
escreve:
(...) os poetas modernistas consultando a liberdade das impulsões líricas puseram-
se a cantar tudo: os materiais, as descobertas científicas e os esportes. O automóvel
de Marinetti, o telégrafo de La Rochelle, as assembleias constituintes para o russo
Alexander Blox, o cabaré para o espanhol De Torres, Ivan Goll alsaciano trata de
Carlito, Leonhard alemão se inspira em Liebknecht enquanto e Eliot americano
aplica em poemas as teorias de Einstein, eminentemente líricas. E tudo, tudo o que
pertence à natureza e à vida nos interessa. (Andrade, 1980, p.217)
O primitivismo “interno” enriquecido pelas conquistas freudianas ou pela
psicologia das massas de um Gustave Le Bon acompanha as descobertas das
culturas “primitivas”. Como nos conta Eric Hobsbawm no seu A era dos impérios:
No campo da arte, e especialmente das artes visuais, as vanguardas ocidentais
trataram as culturas não-ocidentais em total pé de igualdade. Na verdade,
inspiraram-se preponderantemente nelas nesse período. (...) Seu ‘primitivismo’ era,
sem dúvida, sua principal atração, mas é inegável que as gerações de vanguarda no
início do século XX ensinaram os europeus a ver essas obras como arte — muitas
vezes grande arte — em verdadeira grandeza, independente de sua origem.
(Hobsbawm, 1988, p. 120-121)
O imperialismo europeu deu ênfase à exoticização de manifestações
culturais de povos por ele dominados, trazendo para as metrópoles todo um
aparato de objetos como roupas, máscaras, fantasias, penugens, amuletos, além de
danças, músicas, teatro e jogos; daí que surgiu o foco de desenvolvimento de
pesquisas etnográficas, antropológicas e históricas. Nas Exposições Universais
pavilhões dedicados a essas culturas não-europeias vislumbravam os visitantes,
tornado populares essas “curiosidades” de povos “esquisitos” mas ao mesmo
tempo interessantes, demonstrando assim um acordo implícito com a violência
neo-colonialista. É nesta onda de primitivismo que danças exóticas que tinham
forte intensidade rítmica são popularizadas, como as chamadas danças e músicas
negras, como o jazz, do qual Scott Fitzgerald diria que “está associada a um
114
estado de estimulação nervosa, não diferente daquelas das grandes cidades por
trás das linhas de guerra.” (apud Sevcenko, 1992 p. 172 e 181).
É importante frisar essa relação intrínseca entre os diversos movimentos de
vanguarda e suas associações com um progressismo que por muitas vezes não
admitia uma visão mais global do desenvolvimento do capitalismo. Os
modernistas brasileiros tentaram adequar sua linguagem às inovações tecnológicas
e urbanísticas da sociedade sem reconhecer as vicissitudes que esse
desenvolvimento causava àquela época em que cidades brasileiras passavam por
crises sociais que eram maquiadas para não estragarem a imagem de um progresso
em conformidade com a ordem burguesa. Já comentamos o fato de que, neste
sentido, eles concorreram para o falso discurso burguês de imposição a uma
lógica ornamentalmente tecnicista, tudo porque eles desejavam a inclusão dentro
do modelo europeu de desenvolvimento a par do reconhecimento estético. Tal
comportamento pode ser facilmente explicado pelo contexto do pós-guerra que,
tornando-se um marco divisório de dois mundos (ou dois séculos como quer Eric
Hobsbawm), fez com que as auguras sofridas no continente europeu
conscientizassem as alas vanguardistas europeias em direção a um ceticismo com
relação à sua democracia liberal que se alimentava dos crimes do imperialismo,
esse mesmo fator de combustão da guerra, ao mesmo tempo em que,
contrariamente, no Brasil, o desenvolvimento técnico e urbano (não o social e
político) era agraciado porque revelava a entrada do Brasil na modernidade ou,
mais especificamente, a entrada da modernidade no Brasil, o canto maior desse
primeiro modernismo. É neste sentido que o nosso argumento de que a crítica
modernista era parcial parece mais acertada.
A própria crítica ao passadismo e à tradição canônica literária não
ultrapassava o campo da arte. É só lembrarmo-nos da famosa polêmica entre
Mário de Andrade e Oswald de Andrade sobre o mal-entendido surgido logo após
o autor de Os condenados lançar em artigo uma apresentação do poeta futurista
autor de Paulicéia desvairada. Ao ver seus poemas aliados à corrente futurista
italiana, personificada em Marinetti, Mário fez questão de refutar qualquer
concordância entre os dois. Dentre os argumentos de independência com relação a
qualquer escola modernista, ele erguia-se em defesa da tradição religiosa, sem
sequer mencionar a proximidade que então ocorria entre o marinettismo e o
fascismo, mesmo que ele tivesse consciência disso. Sua recusa falou apenas isso:
115
Algumas ideias dele pude bem compreender ou distinguir; mas estas horrorizam: o
banimento completo da lembrança de Deus, o desrespeito absoluto pelo meigo
idioma, também gentil, e o abandono da noção de pátria e principalmente de
tradição. (Andrade, 1978, p. 237).
Apesar de que nem todos os modernistas tinham um catolicismo tão
arraigado como o de Mário de Andrade, é raro percebermos alguma palavra crítica
com relação à religiosidade ou ao catolicismo, mesmo que, no contexto de
expansão da reação católica baseada no Centro D. Vital de Jackson de Figueiredo,
eles criticassem a interferência tanto do que seria posteriormente denominado pelo
próprio Mário de novo condoreirismo que se interpunha tanto na literatura
espiritualista como na crítica de teor ortodoxo católico, como no caso de Tristão
de Athayde. É preciso reconsiderar, portanto, os limites do modernismo como
uma renovação geral da cultura brasileira. A modernidade tão propalada era
específica, pois era preciso, como na política, uma revolução dentro da ordem. Da
ordem apenas estética.
A modernidade entendida como o automóvel, o avião, o telefone, a vitrola,
o cinema, o transatlântico, a lâmpada elétrica etc. não era homóloga, aqui, àquela
que os ideólogos liberais do capitalismo propunham, a democracia fundada na
ampla participação de todos e no direito de manifestação. Nem mesmo a
organização política de uma República que se baseava na constituição americana
se empenharia em resolver as distorções capilares dos acordos oligárquicos, que
iam desde os pequenos distritos nos interiores do país até o Palácio do Catete, de
uma política falsamente liberal marcada pelas constantes arregimentações estatais
em todos os campos da sociedade. A modernidade assim, na aparência vulgar de
mera roupagem, falseava as tensões intestinas na política e as desigualdades
sociais além das revoltas levadas a cabo pela população e pelos movimentos
operários. Daí que a virada modernista em direção à nacionalidade contém em sua
substância também essa consciência de que existe não apenas um problema a ser
resolvido internamente mas, antes de tudo, a necessidade de união e de descoberta
dos profundos da nação, repercutindo nas diversas correntes pós-1924. Como se
vê, a reação foi a pior possível pois, no lugar de discutirem as implementações e
as consequências do que seria aquela modernidade, eles “recuam” a uma
estratégia em que a nacionalidade e o populismo aliados encobriram ou mesmo
116
ignoraram os verdadeiros problemas sociais presentes naquele momento. Sobraria
então, a nível político, para o Vargas e sua resposta... antiliberal. Retrocesso do
retrocesso. Negação da negação.
Entretanto, a modernidade modernicizante do primeiro modernismo pode
ser descrita como caso único na história modernista. Somente nesse momento que
a revolução na estética aproxima-se de uma modernidade revolucionária, ainda
que vista exteriormente. Somente nela houve uma liberdade de criação nunca
antes experimentada, pesquisas estéticas inéditas, polêmicas intelectuais
generalizadas, e , acima de tudo, houve um completo afastamento da necessidade
de descobrir a ontologia brasileira, de descrever suas paisagens e tipos, de pintar a
obra de arte de verde e amarelo. Se fosse julgado apenas por isso, poderíamos
considerá-lo uma “revolução”. A arte e a vida finalmente tentam encontrar-se em
suas similitudes, a vida moderna exigia o pintor da vida moderna. Menotti Del
Picchia na sua conferência na Semana de Arte Moderna, diz de seus elementos:
Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos,
motores, chaminés de fabricas, sangue, velocidade, sonho , na nossa arte! E que o
rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o ultimo deus
homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e a sonhar, na era do jazz-band e
do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena.
(Picchia apud Moraes, 1978, p. 65)
Ou Carlos Drummond de Andrade, em 1923:
E pensando nisso já os meus sentidos se volvem para a rua, a grande rua com seus
alegres rumores, e logo a vertigem me invade, nesse cenário de vida perturbadora...
A vida! A vida! Sempre a vida! E o trabalho, os gritos, os espantos, das tragédias...
(Andrade apud Cury, 1998, p. 59).
Aqui os modernistas brasileiros se aproximariam das vanguardas históricas,
no sentido de maior proximidade entre a vida cotidiana, nova, moderna, e a arte.
Não há crítica à instituição arte, mas a um estilo e uma forma de fazer literatura. A
crítica é, em primeiro lugar, imanente ao sistema, quer dizer não vai além da
instituição arte pois preocupa-se com a arte em sua dimensão apenas simbólica,
mesmo que dentro dessa crítica esteja em jogo a necessidade de exprimir o
“espírito de uma época”, como Mário de Andrade justificava o seu modernismo
em carta a Manuel Bandeira. Não existe uma relação que desvendasse uma falha
117
ou uma distorção em que a arte implicasse na concepção que a sociedade fazia de
si e da função daquela em disfarçar ou recalcar verdadeiros problemas sociais,
como as desigualdades socioeconômicas, regionais, culturais e raciais que o país
abrigava. Quando o modernismo se enveredou na trama política e cultural, como
um projeto ideológico mesmo, o seu tema e suas presunções ainda estavam longe
de um expediente que realmente “sanasse o Brasil”, termos tantas vezes repetidos
pelo autor de Paulicéia devairada.
Em segundo lugar, ela também é autocrítica da arte. Autocrítica parcial,
como podemos entender, devido ao seu caráter limitado de não poder implodir a
função da arte nesta sociedade, como vimos acima. Entretanto, ela constituiu-se,
ainda no sentido apenas estético, numa autocrítica na medida em que pensou a
arte nas suas necessidades modernas, no seu desejo de atualização, mediante
certas transformações urbano-técnicas pelas quais passavam certas cidades
brasileiras. Ainda assim, a formalidade estética modernista era mais interessante
que a matéria da vida moderna, do que o simples arrolamento arbitrário do
cotidiano. Escreve Mário no seu “Prefácio Interessantíssimo”:
Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no
que tem de exterior: automóvel, cinema, asfalto. Si estas palavras frequentam-me o
livro não é porque pense com elas escrever o moderno, mas porque sendo o meu
livro moderno elas têm nele sua razão de ser. (ANDRADE, s/d, p. 32).
A livre forma modernista é que prevalece comparada à livre temática do
assunto, embora esta não fosse passível de recuo. Não adianta descrever a
modernidade se você não sente no espírito moderno, e Mário de Andrade já havia
dado a “poética” sobre a literatura modernista em seu A escrava que não é Isaura,
no qual encontra no subjetivismo desenfreado a fonte de tal poesia. Só mais tarde
Oswald de Andrade e o grupo reunido no verde-amarelismo vão dar suas
contribuições sobre a intuição modernista. Essas elaborações demonstram o
quanto esse primeiro modernismo tentou se desvincular de toda uma formação
literária que não implicava um reconhecimento histórico da modernidade pautada
na tradição brasileira e que se pudesse sentir tanto na linguagem quanto nos seus
temas, aproximando-se assim da práxis vital moderna.
No entanto, como dissemos, o primeiro tempo modernista foi um período
nunca antes experimentado nas nossas letras. Sua maior lição foi, paradoxalmente,
118
ter ido além dos questionamentos que a tradição brasileirista da cor local exigia. E
esta é sua maior conquista. O período de experimentação formal, de destruição
dos cânones, da liberdade de temas e artifícios, da polemica, da blague crianceira,
o período heroico, como o chama Mário de Andrade, do “escândalo publico
permanente”, se serviu não como exemplo mas lição, a “revolta era justíssima”,
como se dizia na apresentação da Klaxon. (Klaxon, 1922, p. 3). Mais tarde até
Mário de Andrade iria lamentar que o “pragmatismo das pesquisas sempre
enfraqueceu a liberdade de criação.” (Andrade, 1972, p. 240). O importante a
ressaltar é que tanto sua crítica imanente quanto sua parcial autocrítica revelaram
a radicalidade que um movimento artístico de inspiração na pura liberdade total
pode proporcionar de conquistas para uma cultura literária.
5 Segundo modernismo: o golpe de estado literário
O caráter único da primeira época modernista sobreviveu às influências
nacionalizantes porque o desejo maior era de distanciamento crítico para que os
novos pudessem dedicar-se à pesquisa estética, e se eles realmente queriam ser
reconhecidos, a evocação da polêmica e da provocação não seria efetiva se o seu
comportamento fosse o de “mocinhos educados”. Adotando aquilo que Bürguer
chamou de “estética do choque”, eles provocariam uma nova educação estética no
público, mesmo que essa reação fosse negativa. Assim, foram tratados como
loucos e “negados e negadores”, nos dizeres de Oswald de Andrade (Andrade,
1992, p. 26). Encarando o momento como realmente de luta e aglutinação de
objetivos, conseguiram lançar para si os holofotes das contendas literárias,
podendo ser ouvidos, entrevistados, publicados, e por alguns, reconhecidos.
Se entre 1917 e 1924 o modernismo conseguiu unir a crítica imanente à
parcial autocrítica, durante o ano do “Manifesto Pau-Brasil” as coisas mudariam
radicalmente de rumo. A brasilidade tornar-se-á a problemática mais comum em
todos os grupos modernistas que, desde então, aos poucos foram se formando.
Aliás, é interessante notar que, quando eles refinam a necessidade de criação de
uma literatura brasileiristica, ao invés de unirem-se em torno de tal projeto, os
ânimos acirram-se, fragmentando mais e mais um grupo antes relativamente
homogêneo. Já que a luta contra o passadismo parecia ganha e que eles estavam
nacionalmente reconhecidos, o terreno estava pronto para que as conquistas e
pesquisas estéticas tivessem mais liberdade ou, no mínimo, menos preconceitos.
Ao invés disso, houve um recuo à velha tradição de pensar o Brasil em termos
esteticamente nacionais.
Em um dos vários artigos de Machado de Assis em que se dão notícias da
“atual literatura brasileira”, podemos ver o que ele chama de golpe de estado
literário, ao reinvidicar uma política para certas manifestações artísticas ainda
incipientes no país42
. Pedimos emprestada a definição de Machado para dar noção
42
Opinando sobre a montanha de traduções do teatro francês que impedia o afloramento de um
teatro nacional, Machado exclama: “Haverá remédio para a situação? Cremos que sim. Uma
reforma dramática não é difícil neste caso. Há um meio fácil e engenhoso: recorra-se às operações
políticas. A questão é de pura diplomacia; e um golpe de estado literário não é mais difícil que
uma parcela de orçamento. Em termos claros, um tratado sobre direitos de representação
reservados, com o apêndice de um imposto sobre as traduções dramáticas, vem muito a pelo, e
120
ao que aconteceu durante essa segunda fase modernista. A audácia, a sutileza e
certa originalidade, com as quais os modernistas passaram a pensar novas formas
de erguer uma literatura que alcançasse a seiva brasileira, ocasionaram uma
ruptura brusca aos modos de encarar a literatura em comparação à época do
primeiro modernismo. A posterior coroação de seus projetos de defesa do
patrimônio, na atuação no Ministério da Saúde e Educação, na Secretaria de
Cultura, na elaboração de projetos de leis, na expressão artística em locais e
repartições públicas — tudo isso foi resultado de sua ambição por uma cultura
“sistematicamente” brasileira.
O que mais chama a atenção é justamente o fato de que a aglutinação
orgânica em torno de uma noção unificadora da cultura fosse capaz de criar um
“estado de espírito nacional”, como diria Mário de Andrade em sua conferência de
1942. Criar uma sociedade orgânica que se nutriria dessa cultura em todos os seus
níveis, desde o seu produtor até a cadeia de distribuição e sua recepção, sem
contar o conteúdo de ideias sobre ela mesma, criou um estado tal que o próprio
“nacional” tornou-se uma instituição estética. Em todas as conquistas feitas pelo
modernismo citadas por Mário de Andrade na conferência acima citada, o caráter
“coletivo” e “orgânico” era o que tornava o modernismo distinto dentre outros
movimentos brasileiros.
Já é tempo de observar, não o que um Augusto Meyer, um Tasso da Silveira e um
Carlos Drummond de Andrade têm de diferente, mas o que têm de igual e o que
nos igualava, por cima dos nossos despautérios individualistas, era justamente a
organicidade de um espírito atualizado, que pesquisava já irrestritamente radicado
à sua entidade coletiva nacional. (Andrade, 1972, p. 243. Grifos meus)
Para Mário de Andrade, o Brasil finalmente sistematizava a arte e seu
conteúdo de uma forma que o coletivo da nação poderia ver-se e sentir-se dentro
de um ideal comum, num “todo orgânico da consciência coletiva” (idem, p.242),
sintonizado no objetivo de atualização constante do espírito. Vejamos os
resultados desta organicidade efetuada pelo modernismo a nível nacional: em
Manaus, tínhamos Abguar Bastos com o seu manifesto “Flaminaçu”; no Pará, o
grupo de Lúcidio Freitas, Tito Franco, Dejard de Mendonça, Alves de Souza e
Peregrino Júnior; no Maranhão, as vozes de Manuel Bittencourt; no Ceará, o
convém perfeitamente às necessidades.” ASSIS, Machado. O passado, o presente e o futuro da
literatura In Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1974, v. III, p. 787.
121
grupo modernista integrado por Aldo Prado, Carlos Demétrio, Leite Maranhão,
Júlio Maciel, Pereira Júnior e Lúcio Várzea; no Recife, o modernismo e o
regionalismo que reuniam Joaquim Inojosa, João Vasconcelos, Ascenso Ferreira,
Valdemar de Oliveira, Gilberto Freyre, Olívio Montenegro e Sílvio Rabelo; em
Maceió, temos Jorge de Lima, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aurélio
Buarque de Holanda e Valdemar Cavalcanti; em Minas, Carlos Drummond de
Andrade, João Alphonsus, Martins de Almeida, Rosário Fusco, Emílio Moura; no
Rio Grande, Augusto Meyer, Raul Bopp, Rui Cirne Lima, Pedro Vergara, Roque
Calage, Paulo Arinos, João Pinto da Silva, Carlos Dante de Morais, dentre outros.
Essa organicidade nacionalmente constituída que o modernismo modelou foi,
segundo o conferencista Mário de Andrade, a maior conquista geral que nenhuma
outra manifestação literária e cultural conseguiu alcançar. A repercussão coletiva
era o que os diferenciavam de um Gregório de Matos ou de um Castro Alves e
suas respectivas matérias literárias. O debate nacional só foi viável devido à esta
conquista que punha todos eles radicados em sua realidade.
No entanto, não é dispendioso reafirmar que esta organicidade estava
fechada apenas às hostes intelectuais do país, quer dizer, a uma minoria ínfima da
população. Apesar de notar a ampliação da participação no âmbito cultural,
Antonio Candido, avaliando as conquistas da década de 1920 que repercutiriam na
seguinte é categórico ao afirmar:
Não se pode, é claro, falar em socialização ou coletivização da cultura artística e
intelectual, porque no Brasil as suas manifestações em nível erudito são tão
restritas quantitativamente que vão pouco além da pequena minoria que as pode
fruir. (Mello e Souza, 1986, p. 182).
Talvez Mário de Andrade nem tenha intuído de tal coletivização uma
socialização democrática das ideias, já que o tom ácido na análise do movimento
em 1942 tenha se centrado no déficit de participação política dentro do contexto
de encerramento das liberdades do Estado Novo, não incluindo assim a
participação popular dentro mesmo do debate modernista e apenas questionando a
escassez de interesse políticos por parte dos intelectuais.
Todo o trabalho que pregava a autonomia como grande necessidade de uma
arte que, se desejasse sobreviver em meio às volatilidades da modernidade,
deveria também acompanhar o caos de sensibilidade proporcionado pela vida
122
moderna, tirando daí sua “máxima expressão”, como queria o próprio Mário de
Andrade no seu A Escrava que não é Isaura, estacou na deliberada aliança com
uma temática que impunha a realização clara das expressões nacionais. A
finalidade dessa nova arte modernista não era a de representar uma classe, uma
região, uma raça, a modernidade radicada na atualidade dos temas e da pesquisa
estética, mas de resgatar o que ele entendia como um recalque da sociedade
brasileira, empenhando-se em valorizar as culturas primitivas e edênicas que a
cultura de elite reprimira como manifestação da cultura brasileira.
Como já foi reiterado, o ano de 1924 é tido como um marco divisório dessa
inclinação, quando a estética do novo dá lugar à ideologia cultural-nacionalista. O
que em 1924 se dava no âmbito de expressão literária, na presença de uma cor
brasileira nas obras de poesia e prosa, balizadas por pesquisas linguísticas e
folclóricas, na década de 1930 estabelecer-se-á no nível das políticas estatais de
cultura, configurando a vitória final do movimento, assim como sua concomitante
“derrota”. Mas o ano de 1924 guarda em si o problema de se saber como de fato
ocorreu tal virada e por quais razões. Eduardo Jardim de Moraes estabelece duas
correntes interpretativas que até hoje podem ser consideradas nas leituras sobre o
modernismo. A primeira diz respeito àquela interpretação que ele chama de
idealista, por tratar as mudanças no âmbito literário apenas dentro da própria
dinâmica literária sem nenhuma ligação com fatores extra-literários. Inclui nesta
perspectiva a obra de Wilson Martins por nós aqui já conhecida, indicando-a
como dotada de uma ótica autonomista da literatura, como se esta tivesse uma
“vontade literária” (Moraes, 1978, p. 74), como parece quando o crítico fala da
nova “escolha de rumo determinado” no ano de 1924. Acreditamos que não é bem
certo apontar tais características à leitura empreendida por Martins, na medida em
que ele também situa o modernismo e todas as suas características a contextos que
não se vinculam apenas ao nível imaginativo. Em seu A ideia modernista, Wilson
Martins organiza a delimitação do modernismo entre o início em 1916 e 1945 e
tem como determinantes alguns fatos externos: a promulgação do Código Civil
naquele ano e o fim da Segunda Guerra Mundial neste último. Apesar de alguns
exageros de Wilson Martins, exageros que tomam ar de diretivas contradições,
123
não há como negar a importância do seu trabalho na diversificação de propostas
interpretativas sobre o modernismo em geral43
.
Outra proposta interpretativa daquela virada nacionalista que Eduardo
Jardim aponta é a dita “socializante,” tendo em Antônio Candido e sua cria
intelectual, João Luiz Lafetá, como representantes principais. Teoricamente, ela
traria encargos históricos e sociais em demasia, aviltando as próprias indicações
autonomistas que a literatura e seus criadores pudessem ter. No entanto, seguimos
a perspectiva de Lafetá quando afirma que para compreender o modernismo “é
preciso pensar na sua correlação com outras áreas da vida social brasileira, em
especial na sua correlação com o movimento da economia capitalista.” (Lafetá,
2003, p. 26). Ele está tentando entender como as modernidades de um capitalismo
industrial incipiente nas décadas de 1910 e 1920 poderiam inferir nas decisões
estéticas que se apoiavam justamente nas inovações modernas da sociedade
urbana, coisa que foi a própria razão de ser do primeiro modernismo. É certo,
também, que essas dimensões não são totalizadas enquanto se tem em conta que
as mudanças sociais no Brasil não são apreendidas de forma tão mecanizadas
assim. Existem interesses conflitivos que se esboçam e se acirram nas tonalidades
das manifestações literárias; e num país tão conturbado como o Brasil do período
pós-republicano, as decisões e discussões pela melhor maneira de retratar a
dinâmica desse torvelinho deviam ser enfrentadas além de uma ingenuidade
criadora mas como propostas de visões de mundo interventoras da realidade. É o
que podemos perceber nestas palavras de Mário de Andrade em carta a Sérgio
Milliet datada de 11 de agosto de 1924, no qual se percebe que o clima pesado da
revolução de 1924 fazia-o pensar sobre o futuro do país:
Tua carta me encheu de relativa alegria. Relativa porque estes dias de pós-
revolução não permitem alegria total. A gente começa a pensar sobre o Brasil, os
destinos do Brasil, o horror da aventura passada e não há como livrar-se de ideias
acabrunhadoras. (Andrade, 1985, p. 298).
Não há como negar que, como vimos, o primeiro modernismo vinha como
uma iniciativa estética repositiva de mudanças estruturais pelas quais o país vinha
43
Wilson Martins tenta fazer uma releitura dos marcos e obras modernistas, sendo talvez um dos
primeiros a empreender certa revisão crítica do movimento, e por isso é considerado um autor
conservador, segundo críticos seus como Haroldo de Campos. É interessante notar que a edição de
que dispomos fora coeditada pela Academia Brasileira de Letras, como se fosse uma espécie de
revide desta às críticas sofridas e amargas que os modernistas lhe faziam.
124
passando, sendo que seria completa falta de consciência se eles cantassem uma
cidade, suas máquinas e convulsões cotidianas sem que essas realmente
existissem em suas realidades próprias.
Para Eduardo Jardim, autores como Aracy Amaral, Benedito Nunes e Alceu
Amoroso Lima, por seu lado, investiram na leitura do modernismo pós-1924
como uma apreensão do primitivismo das vanguardas europeias, principalmente
do expressionismo e do cubismo. Sobre a perspectiva Pau-Brasil, escreveu Nunes
ligando-a ao cubismo: “Ela é sintética como a do cubismo; a invenção de formas
assegura-lhe a originalidade, e a surpresa, o choque subverte o comum, mesmo à
custa de parecer trivial.” (Nunes, 1995, p. 11). Já Alceu Amoroso Lima aponta em
seu famoso artigo intitulado “Literatura suicida” sobre a Poesia Pau-Brasil:
A sua poesia é tão importada como as demais. A única diferença é a seguinte: é que
ele importa mercadoria deteriorada — automóveis em segunda mão, máquinas já
usadas e enferrujadas, etc. Toda a originalidade novinha do Sr. Oswald de
Andrade, toda a sua literatura mandioca, aborígene, precabralina, precolombiana,
premongólica, toda ela é bebidinha, direta e indiretamente, em duas fontes
europeias muito recentes e muito conhecidas: o dadaísmo francês e o
expressionismo alemão. (Lima, 1966, p. 917)
Do mesmo modo Aracy Amaral, no seu livro Blaise Cendrars no Brasil e os
modernistas, recorre às relações pessoais e influências estéticas do poeta cubista
Blaise Cendrars sobre os modernistas paulistas, fazendo-os descobrirem o Brasil
por meio do primitivismo da vanguarda europeia. É claro que houve uma
influência das vanguardas históricas, no que pese mais ao primeiro momento
modernista, quando o cosmopolitismo era a tônica do momento, reinterpretando
as condicionantes técnicas e urbanísticas que os europeus então problematizavam
aliados ao primitivismo interno do inconsciente, fazendo desleixar, usando os
termos de Jardim de Moraes, uma dialética extra-literária e intra-literária. Já
vimos, no entanto, como essa recepção das vanguardas tinha questionamentos
vários, como os de Mário de Andrade sobre o futurismo. Ainda assim, não há de
ignorar a completa influência de autores como Paul Dermée, Marinetti, Jean
Cocteau, Max Jacob, Guillaume Apollinaire, Verhaeren, Epstein etc. para os
modernistas de primeira fase. E também vimos que o primitivismo europeu tinha
suas relações com a “descoberta” de culturas extra-européias localizadas nos
países sob domínio do imperialismo daquele continente; danças, religiões, cultos,
125
artes, objetos de todo tipo eram trazidos para a Europa onde faziam sucesso pelo
exotismo de culturas vistas como atrasadas mas interessantes. Como vimos, as
ligações entre os movimentos políticos e econômicos também influíam nas
diversas elaborações e revoluções estéticas que parecem não ter nenhuma relação;
esse fator deve levar-nos a considerar a dinamização e globalização das
consequências predatórias do capitalismo, interferindo e ligando culturas e
sociedades a níveis nunca antes visto.
No entanto, Eduardo Jardim abandona a proposta de lidar a virada de 1924
como uma leitura dos modernistas de A estética da vida, de Graça Aranha, no
sentido de “estabelecer uma relação entre o nacionalismo emergente de 24 e o
material ideológico já presente na cultura nacional” (Moraes, 1978, p. 82) para
mais tarde propor que a brasilidade modernista fora a mediação para o ingresso na
civilização porque o contraste do primeiro modernismo, com sua modernidade
compulsória, consistia apenas na repetição do desenvolvimento das nações
europeias:
Ao situar de forma imediatista o processo de incorporação na ordem da
modernidade, aos modernistas restava lamentar a precariedade da posição em que
se encontravam. Cada vez mais parecia que a eficácia da ótica imediatista
fracassara e que seria necessário investir nos dispositivos mediadores para garantir
a incorporação pretendida. (idem, 1988, p. 230).
Daí que a nacionalidade seria o fator mediativo que incorporaria o Brasil no
concerto das nações cultas. Neste sentido, segundo Moraes, a brasilidade veio
como intermédio de compatibilização entre o novo, a modernidade, e o antigo, a
tradição verdadeiramente brasileira, popular e não douta.
Essas leituras interpretativas têm em comum justamente o fato de reportar
ao ano de 1924 quando o modernismo toma realmente um caminho mais objetivo,
o que, para Wilson Martins, é o ano em que se constitui a verdadeira “estética
modernista”, iniciada após a confusão e a indecisão do primeiro modernismo
(Martins, 2002, p. 81). No entanto, em meados de 1923 já podemos perceber
alguns sintomas de uma virada de ótica em que a preocupação por uma síntese do
que seria a literatura e ainda mais a leitura de uma literatura em que se perceba a
alma brasileira. É o que vemos, por exemplo, em janeiro de 1923 no artigo de
126
Cândido Mota Filho para o número oito da Klaxon, em homenagem justamente a
Graça Aranha:
No desenvolvimento lógico que segue a literatura nacional, firmando-se,
personalizando-se, com múltiplas correntes, com múltiplas influências, vieram aos
poucos surgindo os verdadeiros intérpretes do sentimento nacional, os escritores
genuinamente da terra e da raça (...) A literatura mostra-se nessa luta, onde se
percebe a alma da terra gritando, implorando por um artista que a cante, que a
compreenda. (Filho, 1923, p. 5)
O ano de 1923 já começa, portanto, com o diagnóstico da necessidade de
um esforço intelectual brasileiro para garantir através da literatura um modo de
compreender a alma brasileira, fito que começará pouco a pouco a tomar o lugar
de destaque para a própria noção de modernidade à brasileira.
A experiência da falta de correspondência entre uma literatura que se
pretendia nova, modernista, e os caracteres da terra e de seu povo passará a ser
vista como um sério desfalque, até mesmo um atraso em relação ao que a partir de
então se entenderá como modernidade. É de se atentar a essa circunstância de
consideração de um novo atraso cultural e não econômico. Os modernistas de
primeira fase se vangloriavam das inovações urbanas e tecnológicas pelas quais o
país fora pouco a pouco se aproximando das associações de um desenvolvimento
moderno por si só espontâneo na medida em que se urbanizava e se
industrializava mais e mais. O acesso a essas inovações, o clima cosmopolita que
as ruas, com seus carros e imigrantes de diversos países, pareciam oferecer à
mente de intelectuais que só poderiam interpretar aquilo como uma europeização
do próprio meio, europeização esta com efeitos civilizatórios, só vinha corroborar
com a sensação de que o país finalmente estava a par das nações desenvolvidas e
ricas. A partir de agora, no entanto, a percepção parecia ser outra. Não adiantava
termos uma modernidade de capa, externa, aparente, visual, era também
necessário adaptar ou, mais especificamente, dar um nome a essa modernidade,
situá-la nalguma localidade, substancializá-la antes que o universalismo e a
própria modernidade destruidora, como a própria guerra havia mostrado,
colocassem o movimento todo a se perder num externalismo e num
cosmopolitismo sem alma, e, como a própria economia dava a entender, sem
raízes. Como vimos, assim como uma burguesia cosmopolita necessitava
gerenciar seu quintal de mercado, associando-se à ideologia nacionalista, os
127
modernistas compreendiam que o mesmo internacionalismo que as vanguardas
ensinavam deveria ser contrabalanceado por um nacionalismo puro, que desse ao
movimento as guardas das fronteiras de uma literatura que até então, para eles,
parecia estar em risco. Daí a sensação de atraso quanto à questão cultural de
apreender a verdadeira modernidade: a tradição brasileira.
Também é em 1923 que Oswald de Andrade pronuncia sua conferência “O
esforço intelectual do Brasil contemporâneo” na qual já fazia um retrospecto dos
autores canônicos que remontavam à uma alma brasileira:
Verdade é que o sentimento brasileiro se anunciava já nos cantos coloniais de
Basílio da Gama, no instinto indianista do nosso poeta Gonçalves Dias e na língua
pitoresca de José de Alencar. Havia mesmo nos romances deste último o esboço de
tipos que poderiam servir anda hoje de base psíquica à nossa literatura.
(ANDRADE, 1992, p. 31).
O esboço de um quadro histórico que anunciaria uma tradição
especificamente brasileira e, mais ainda, bem estruturada e dinâmica num único
esforço, faz parte dessas iniciativas de retradução de uma perspectiva literária
propriamente estratégica (a palestra é feita em Paris, para estrangeiros), ainda que
mais tarde o próprio Oswald renegue alguns autores por ele aí citados. Mas os
sentidos de diferenciação literária que faria do Brasil um país produtor de uma
literatura forte e arraigada num conjunto nacional em torno de um problema seria
quase impensável naqueles moços de anos antes, loucos que estavam por negar os
cânones. Assim, essa nova conceituação da modernidade se faz, segundo Eduardo
Jardim de Moraes, através do
esforço de compatibilização do antigo e do novo. Só desta forma, através da
adoção desta solução que busca fundar a cultura nacional nova em registro da
temporalidade próprio, nacional, onde também se abriga o passado, é que se poderá
pensar o ingresso da produção cultural do país no concerto das nações cultas.
(Moraes, 1988, p. 231).
Logo após a conferência de Oswald de Andrade, Sérgio Milliet escreve a
Rubens Borba de Moraes relatando o interesse dos parisienses em relação ao
modernismo brasileiro; Rubens escreve então para Joaquim Inojosa:
Ivan Goll, que publicou o ano passado uma antologia mundial onde todos os
modernos dos ‘Cinco Continentes’ (é o título do vol.) estão reunidos, vai
128
acrescentar um apêndice consagrado à poesia brasileira moderna. (Moraes apud
Moraes, 1988, p. 228).
Não é de graça que tais resultados tenham incentivado os modernistas de
primeira hora a sustentar que uma literatura especificamente nacional, de cor
local, fosse a porta de entrada para o conhecimento internacional da literatura
brasileira e modernista.
O ano de 1923 então guarda esse repositório de transição entre as duas
tendências modernistas. A fase de construção de uma literatura, que tantas vezes
eles teimavam em anunciar nos meses pós-Semana de Arte Moderna, foi aos
poucos a fase de reconciliação com a literatura brasileira, embora peneirada ao
gosto de cada corrente que vinha surgindo aos poucos. O primeiro resultado dessa
construção teria sido a própria Klaxon, como dita seu primeiro número. Sua
“Significação” já abre fazendo uma releitura da Semana de 22: “Houve erros
proclamados em voz alta. Pregaram-se ideias inadmissíveis. É preciso refletir. É
preciso esclarecer. É preciso construir. Daí KLAXON.” Aproveita então para
redefinir o anti-passadismo em termos mais amenos, admitindo que a literatura
nova não se faz a partir do zero: “Não se reconstruirá o que ruir. Antes aproveitará
o terrenos para sólidos, higiênicos, altivos edifícios de cimento armado.” (Klaxon,
1922, p. 1-2). É o desejo de reconstrução que anima os espíritos desde o ano de
1922. Em artigo para a Revista do Brasil, no ano de 1923, escrevia Mário de
Andrade:
Há também as convalescenças espirituais. O incidente futurista no Brasil... Esse
período terrível que vem desde meados de 1920 até à Semana de Arte Moderna,
fevereiro, ainda março de 1922, não foi senão uma doença grave, gravíssima, que
alguns espíritos moços brasileiros sofreram. E que febre! Delírios! Houve
exageros? Houve. Depois veio a convalescença. (Andrade apud Martins, 2002, p.
84)
A releitura da Semana de Arte Moderna vem superar a consciência de que
esse período fora apenas de distúrbios “gratuitos” da mocidade, repletos que
estavam da euforia aventureira, como o próprio Mário via em retrospecto a partir
de 1942. Mas essas circunstâncias, da década de 1940, eram outras: política,
participativa. As de 1923 visavam o reencontro com uma base sólida na qual uma
literatura nova poderia aflorar suas conquistas estéticas devido à aparência cada
129
vez mais verdadeira de que eles não conquistaram nada concretamente, além dos
holofotes públicos e dos inimigos de primeira mão.
O sentimento de que o modernismo, desde o início, trazia em si um vácuo
de propostas de construção e de renovação literária, no entanto, foi um fantasma
que acompanhou todo o período da década de 1920, vindo a ser
incontestavelmente aceito por Mário de Andrade na sua famosa conferência de
1942. João Luiz Lafetá corroborava com a
suspeita de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito grande de cacoetes,
de ‘atitudes’ literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e bem
realizada. (...) mas, na medida em que foi exagerado (...) afastou das obras então
produzidas grande parte da radicalidade da nova estética. (Lafetá, 2003, p. 35).
As próprias conquistas formais do primeiro modernismo são postas aí em
xeque; mas não é admissível que a onda de reconstrução pós-22 tenha dado algum
rumo mais objetivo aos grupos modernistas. Não há nenhuma menção a
construção de uma literatura eminentemente nacional nos número da revista
Klaxon, principal revista modernista na qual, ainda, quase todos os modernistas
que se desmembrariam em várias correntes atuavam conjuntamente, como Graça
Aranha, Guilherme de Almeida, Luís Aranha, Renato Almeida, Menotti Del
Picchia, Carlos Alberto de Araújo, Ronald de Carvalho, Couto de Barros, Rubens
de Moraes e Camargo Aranha. Apenas Paulicéia desvairada, publicado em 1922,
veio coroar o ano da Semana mas, de certo modo, atrasada em relação ao novo
momento de construção, sendo que o livro fora marcada pelo espírito dos
desvarios e do esteticismo do primeiro modernismo, além dos exageros próprios
daquele momento. É o que Mário de Andrade, em 1924, noutro momento de
releitura, confessa:
Paulicéia manifesta um estado de espírito eminentemente transitório: cólera cega
que se vinga, revolta que não se esconde, confiança infantil no senso comum dos
homens. Estes sentimentos duram pouco. A cólera esfria. A revolta perde sua razão
de ser. A confiança desilude-se num segundo. (Andrade, 1978, p. 71).
A Semana é então posta na queima dos próprios modernistas que
perceberam o vácuo que o momento de euforia ocultava. De certo modo, o
experimentalismo formal e estético impunha para eles as desvantagens de pensar a
literatura como forma de sustentação pública, aceitável naquilo que ela mesma
130
poderia ter de novidade. As reações que eles chamavam de passadistas só vieram
para dar-lhes um lugar de visibilidade dentro da sociedade, mas não os colocavam
como verdadeiros produtores de uma literatura que desse substância ao que eles
tanto falavam: a novidade em si. Mais que isso, parece haver agora, com o
nacionalismo, a ocasião de conquista de um público antes pela literatura que pela
literatice da retórica polemicista. 1922 fora um ano crucial para pensar a
possibilidade de renovação da literatura nacional, não apenas pelo fato do
Centenário da Independência mas também pela lógica que punha em risco o
próprio vetor de possibilidade de uma literatura representativa de uma época de
crise. Eles vieram e se sentiram vitoriosos pelo grito, mas sua estética ainda
permeava a ilogicidade de meros moços afeitos a esquemas que o país, quer dizer,
a intelectualidade em geral e um público de literatura específico, não
compreendia. O nacionalismo da década de 1920 veio arregimentar então esses
espíritos que não conseguiam encontrar um aporte que conjurasse todos os
despautérios e ataques que sofreram; ainda assim eles não se livrariam fácil da
crítica que ainda não via uma obra literária modernista de vigor e que fosse
representativa não do modernismo mas da literatura brasileira mesma; é que eles
vieram, arrastaram e criticaram toda a literatura e cânones existentes e, quando se
deparam que os “passadistas” realmente já não existiam ou foram dessacralizados,
e uma nova literatura que deveria tomar lugar destes simplesmente não existia,
então se deram conta do atraso em que estavam. A construção então era necessária
e por isso se fazia por condições de atraso. Eram nestes termos que o modernismo
alcançava a autocrítica.
Como vimos Antonio Candido já asseverava que, na década de 1930, o
movimento modernista passou pelo momento de “surgimento de condições para
realizar, difundir e ‘normalizar’ uma série de aspirações, inovações,
pressentimentos gerados no decênio de 1920.” (Mello e Souza, 1989, p. 182). Mas
já na década de 1920 podemos vislumbrar o decaimento do processo de pesquisa
estética ou pelo menos o retraimento nas fórmulas nem tão novas e mesmo em
certa academização dos processos. É o que critica Plínio Salgado, em 1928 na
revista Festa:
Criávamos, ao mesmo tempo, novos jugos, com a ‘sistematização da revolução
literária’, que veio, pouco a pouco, ‘uniformizando os escritores e poetas’. (...)
131
Consideramos, além do mais, que ‘há muita técnica’ na arte nova, o que a torna,
em sentido e inteligência, ‘identificada com a arte velha’. (Salgado, 1978, p. 286-
287).
E mesmo outras tendências do modernismo compreendiam o momento,
como aprova Sérgio Milliet, em 1925: “Hoje vivemos felizes e sossegados, na paz
dos justos. Já não se discute mais o modernismo. Apenas se combate esta ou
aquela tendência.” (Milliet, 1978, p. 241). É neste processo de quase refluxo do
movimento modernista que os anos seguintes de 1922 até 1924 tentarão responder
por uma nova atitude participativa dentro da conjuntura produtiva da literatura
nacional. Quando finalmente conseguem se integrar dentro das hostes da literatura
nacional, a canonização e a rotinização se tornam inevitáveis, como lamentará
Carlos Drummond de Andrade, anos mais tarde:
Bem, não adianta insistir nisto, agora que o modernismo, de tão integrado na
evolução literária, foi reconhecido oficialmente, adotado nas escolas, sacralizado...
Não gosto muito disto, não. Era melhor quando nos apontavam como párias, os
marginais da literatura. Tínhamos bom humor suficiente para nos divertir com os
xingamentos, as pedradas. (...) Era tão gostoso brincar de modernismo.... (Andrade,
2003, p.. 1227)
Mas antes o processo de abrasileiramento do modernismo fora uma forma
de identificação com uma modernidade que se inteirasse com o que há de
moderno nas condições brasileiras de pensar essa integração dentro da civilização.
Para Wilson Martins, em 1924, os modernistas passam de futuristas a modernos.
A queima que viu sobre a Semana de Arte Moderna foi alongada às matérias
futuristas que, apesar dos não-ditos, predominavam quer queira quer não entre os
diversos escritores. Na verdade, o ponto crítico era Marinetti e não o próprio
futurismo, posto que aquele já vinha a um bom tempo se aliando ao fascismo
mussolinista. O futurismo agora já é passadismo, como o queria Ronald de
Carvalho em carta a Jackson de Figueiredo, publicada na Revista do Brasil, em
fevereiro de 1924:
Abaixo, pois, o virtuosismo, o sádemirandismo, o dicionarismo e mais abantesmas
que desfibram as nossas energias, reduzindo-as a um jogo caprichoso e tolo. O
futurismo é também passadismo. morra o futurismo! (Carvalho apud Martins,
2002, p. 86).
132
Abguar Bastos fazia a mesma diferenciação: “O ‘modernismo’ apareceu
fantasiado de futurismo. Entretanto o futurismo era coisa de antes da grande
guerra, era coisa por assim dizer passadista.”44
(Bastos apud Martins, 2002, p. 86).
A lição mesma do movimento italiano, aos olhos de Mário de Andrade em
entrevista no ano de 1925, foi de que serviu para dar novo olhar às necessidades
do momento, de construção e objetivação:
Veja O Futurismo Italiano. Fez Um Chinfrim Danado, Destruiu, Destruiu,
Encasquetou De Matar O Chiaro Di Luna E Outras Bobagens, Matou? Matou
Nada. E Vai, O Futurismo Ficou Matando O Luar Até Agora E Não Achou Saída
Humanamente Artística. (Andrade, 1983, P. 17).
Wilson Martins, ao diferenciar modernismo de futurismo, colocou os dois
Andrades em confrontação, sendo que Oswald de Andrade não abandonara sua
filiação às estéticas vanguardistas, ao contrário do rumo que vai tomar Mário de
Andrade. No entanto, é dado a Oswald de Andrade o título de introdutor do
nacionalismo modernista quando publica o “Manifesto da poesia pau-brasil”, em
1924. É interessante então notar essas disparidades. Elas não dizem respeito
apenas às leituras canônicas sobre o movimento mas também às representações
que cada um reclamava para si na tentativa de recuperar o Brasil dentro de uma
perspectiva modernista, inovadora ao ponto de suplantar e destruir a unidade do
próprio movimento. Essas configurações paradoxais que fazem do poeta mais
vanguardista inaugurar a tendência mais conservadora45
, dão certa noção do quão
complexo e diluente é o momento no qual várias fórmulas e estratégias são
implementadas no intuito de dar uma resposta às novas necessidades de
construção. Quando Mário de Andrade esperneia para livrar o futurismo dentro
das perspectivas de construção do movimento, ele, segundo Martins, dá o tiro de
misericórdia no período experimentalista do primeiro momento e inaugura de
certo modo a fase do modernismo brasileiro e não vanguardista, estrangeiro,
44
Sobre essa questão, escreve Mário de Andrade em carta a Manuel Bandeira: “O que eu faço, e
talvez já reparaste nisso, é uma distinção entre modernos e modernistas. (...) Toda reação traz
exageros. Eu tive porque fui reacionário contra o simbolismo. Hoje não sou. Não sou mais
modernista. Mas sou moderno, como você. Hoje já posso dizer que sou também um descendente
do simbolismo. O moderno evoluciona. Está certo nisso. O que também não impede que os
modernistas tenham descoberto suas coisas e que se não fossem eles muito moderno de hoje
estaria bom e rijo passadista.” ANDRADE, Mário. Cartas a Manuel bandeira. Rio de Janeiro:
Ediouro, s/d p. 40. 45
Lembremos que é conservadora aqui no sentido de volta a uma tradição pré-existente.
133
cosmopolita; daí até o brasileirismo é um passo; daí até o retrocesso, idem, como
atesta Martins:
Esse ponto é importante, porque nele se encontra a fonte de todo o ‘brasileirismo’
modernista, nessa fase e nas suas ulteriores: pode-se imaginar (embora tal espécie
de cogitações seja desprovida de sentido em perspectivas históricas) que o romance
modernista teria enveredado pelo cosmopolitismo esteticista, terá digamos, adotado
Cocteau por mestre, se, a meio da sua primeira década, as linhas de força da escola
não houvessem sofrido o impacto antifuturista que estudamos. (Martins, 2002, p.
92)
Nestas dimensões o modernismo de 1924 teria as melhores condições de
aflorar sua brasilidade, sem nenhum obstáculo, e, mais importante, sem nenhuma
obstrução interna de um público mais ou menos afeito ao que era o movimento.
Existem dois momentos importantes para que o ano de 1924 se encaminhe como o
ano da virada, um ao nível mais da crítica e outra, em relação a um acontecimento
específico.
Sendo mais cronológico, as novas discussões sobre a interpretação brasileira
dentro do movimento se dão mesmo em meados de 1923; como vimos, ela já
aparece num dos últimos números da revista Klaxon. Em agosto de 1923
encontramos o artigo que Mário de Andrade escreveu para a Revista do Brasil em
que diz:
Repor-nos-emos assim dentro do tradicionalismo, sem o qual ninguém vive.
Tradicionalismo brasileiro? Também. Por que não? Pela penetração panteísta da
terra, pela compreensão histórica da raça e pelo servir-se duma língua, evolutiva
sem dúvida, mas sem exageradas deformações. Nosso tradicionalismo, porém, será
principalmente humano e universal. A guerra esgotou nos peitos modernos a fonte
das rivalidades. (...) Nós, os modernistas, quebramos a natural evolução. Saltamos
os lustros de atraso. Apagamos a sombra. Mas somos hoje a voz brasileira do coro
‘1923’, em que entram todas as nações. Poderia documentá-lo. E por isso a solução
de continuidade na tradição artística brasileira. (ANDRADE apud MARTINS,
2002, p. 84-85)
A “solução de continuidade na tradição artística brasileira” seria o epitáfio
do primeiro modernismo. Daí por diante era inevitável a reintegração dentro dos
limites de uma literatura construtiva em torno da nacionalidade para a qual a
universalidade ou a civilização seriam o fim necessário que constituiria a missão
crucial dos modernistas que pensavam dar uma nova atmosfera real para o
movimento. A preocupação com a escalada natural pela qual o país deveria passar
134
é assim posta como critério, sediada numa complexidade teleológica da nação
brasileira; é que seria preciso marcar o passo para a devida entrada do país dentro
da universalidade literária, algo que os desvarios e delírios do primeiro momento
pareciam não deixar entrever. Vimos que as perspectivas temporais dentro dos
marcos de um desenvolvimento econômico e urbano desalinhavam o que seria as
verdadeiras necessidades e aparatos conjunturais do país para que ele recebesse
tais revoluções técnicas. A vertigem, termo bastante usado para caracterizar as
novidades revolucionárias da época, a vertigem temporal deixa escapar as bases
espaciais nas quais ela mesma possa se situar, dando a sensação de que o tempo
urbano se estreita mais rápido do que o espaço que ocupamos. O tempo é, assim
como uma mercadoria, um produto a ser elaborado em tão pouco tempo quanto
seu consumo, para que se valorize, marcando tanto as horas de trabalho quanto as
de lazer e, claro, do próprio consumo (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 112). Essa
sensação de que não há como deter as demandas de tempo que o ser humano, na
medida em que se torna um produtor e consumidor numa sociedade na qual a
lógica é a produtividade, produz ele próprio sua alienação se dá por intermédio de
uma sensibilidade moderna na qual compartilhamos no dia-a-dia a situação de
mercadoria, como escreve Carlos Drummond no seu poema “A flor e a náusea”.
Nicolau Sevcenko nota que
por trás da vertigem coletiva da ação e da velocidade, engendrando-a, estimulando-
a, sem permitir a reflexão sobre suas consequências nas mentes e na cultura, as
inovações tecnológicas invadiam o cotidiano num surto inédito, multiplicando-se
mais rapidamente do que as pessoas pudessem se adaptar a elas e corroendo os
últimos resquícios de um mundo estável (...) (SEVCENKO, 1992, p. 162).
É essa estabilidade, o marca-passo do tempo, que os modernistas tenderam
a correr atrás ao perceber que a modernidade poderia pôr em risco o próprio
modernismo enquanto este se digladiasse em meras “importações” de conteúdos e
formas estrangeiras. Não que elas fossem estritamente maléficas, vimos o
contrário, mas a simples importação não levava em conta a realidade brasileira
mais profunda, a popular, aquela que marcava a alma verdadeira do país e da qual,
segundo Antonio Candido, a literatura anterior teimava em recalcar. Isto quer
dizer que o Brasil tinha um tempo específico de desenvolvimento e uma cultura
particular sendo que eles deveriam respeitá-los para não correrem o risco de se
perderem naquela mesma “vertigem coletiva”. Então, neste momento a
135
consciência e a ideologia do atraso voltam à tona de uma maneira transformada.
Como escreveria Oswald de Andrade no seu manifesto de 1924: “O trabalho da
geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.”
(Andrade, 1995, p. 44). Os Andrades então aderiram a esse etapismo cronológico
para salvaguardar o movimento da completa falta de ligação com sua terra, com as
referências específicas do país. Sem essa noção não há como se reintegrar ao
tradicionalismo brasileiro, à matéria nacional e seus congêneres. A época é do
localismo, embora tivesse a consciência da altitude universal e humanista, porque,
segundo o ledo engano de Oswald, “a [Primeira] guerra esgotou nos peitos
modernos a fonte das rivalidades.” Era preciso um tempo equilibrado entre as
balizas locais e a necessidade de uma missão que tornasse o país nacionalmente
universal, equilíbrio este quase nunca conquistado devido mesmo à recuperação
tradicionalista que ademais não conseguia ir além do “quinhão” nacional, como o
fora todas as outras tradições de brasilidade. No fim, a modernidade de compasso
do primeiro momento modernista cede à modernidade do “atraso progressista” do
segundo.
O evento que ocorrera já no começo do ano de 1924 que teve um papel
considerável como resposta e complemento à nova visão dos modernistas
paulistas foi a viagem feita pela caravana de artistas que reunia Oswald de
Andrade, Mário de Andrade, Blaise Cendrars, Tarsila do Amaral, Godofredo
Telles. É nele que acontece o que alguns críticos chamaram de “redescoberta” do
Brasil, no qual o modernismo cosmopolita encontra as seivas da cultura brasileira
e suas peculiaridades reunidas ou no carnaval carioca ou no barroco mineiro.
Sobre a viagem diz Silviano Santiago:
O caso mais interessante, a meu ver, para se falar de tradição no modernismo, e aí
desvinculo-a da noção de neoconservadorismo, seria a viagem feita pelos
modernistas, em 1924, a Minas Gerais (...) Esses poetas estavam todos imbuídos
pelos princípios futuristas, tinham confiança na civilização da máquina e do
progresso e , de repente, viajam em busca do Brasil colonial. Deparam-se com o
passado histórico nacional e com — o que é mais importante para nós — o
primitivismo enquanto manifestação do barroco setecentista mineiro. (Santiago,
2002, p. 121)
A descoberta de Minas Gerais como um recipiente da cultura brasileira mais
intocável e fonte para a ótica de um modernismo, no qual o primitivismo e a
136
popularesco emanavam uma arte purista da brasilidade, será a resposta para os
anseios de uma época marcada pelas crises de âmbito nacional no sentido de
reforçar o valor orgânico da cultura e, por conseguinte, da sociedade brasileira.
Esses anseios nacionalizantes, de salvação nacional no âmbito das artes, eram os
mesmos que movimentos como o tenentismo ou o demismo empreendiam para
“moralizar” as instituições políticas brasileiras. No entanto, aqui, no caso dos
modernistas, as fontes profundas da nacionalidade serão encontradas nas
expressões culturais populares, nas festas, danças, gastronomia, linguagem,
literatura etc., que, abordados em suas especificações, servirão como motivo para
enfrentar o dilema de um modernismo que até então procurava o modernismo em
literatura ao mesmo tempo em que ignorava a moderna nacionalização da
literatura que era o traço característico da tradição intelectual e literária.
Recuperado o eixo nacionalizante, embora sob o ponto de vista popular, a
retomada da tradição intelectual anterior será o próximo passo, daí que Paulo
Prado, no prefácio ao livro de poesia Pau-Brasil, irá eleger um Casimiro de Abreu
como o romântico exemplar, intérprete “profundo e íntimo da Raça”, em contraste
com um Gonçalves Dias, por exemplo (Prado, s/d, p. 60). Então aí unem-se a
tradição popular e a tradição literária.
Entrar na alma do povo significa entrar no interior do país, como se fosse a
descoberta do sentimento profundo de sua alma. É interessante notar o aspecto
que a viagem de “entrada” em direção ao interior do país tenha sido a resposta
para crises nacionais em que a busca pela originalidade e organicidade era a saída
mais “eficaz”. Em 1967, Antônio Callado, em seu Quarup, escrevia sobre uma
expressão em direção à origem brasileira, ao centro geográfico e originário do
Brasil, vindo a descobrir que o cerne da nacionalidade não passa de um “caldeirão
de saúvas” (Callado, 1982, p. 307). Em 1902, Os Sertões, de Euclides da Cunha,
revelava outro Brasil, distante do litoral e suas benesses de cosmopolitismo e
civilização, demonstrando que a República não era para todos. Não custa lembrar
também a similaridade entre os modernistas e os bandeirantes, por eles tantas
vezes cantados posteriormente, no intuito de desbravar e alargar as fronteiras,
agora no sentido cultural e literário. É a busca da origem que qualificará o tempo
nacional e aflorará o projeto literário brasileiro do século XX de identificação do
Brasil como entidade particular.
137
A origem como resposta para a crise brasileira da década de 1920 foi achada
então nas manifestações de um passado colonial específico, origem esta que
acompanha, nos termos de Brito Broca, o desejo de originalidade dos
modernistas:
Havia uma lógica interior no caso. O divórcio em que a maior parte dos nossos
escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas
barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original,
dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam.
(Broca apud Santiago, 2002, p. 121).
Friedrich Nietzsche já assinalava que “nós modernos não possuímos nada de
próprio” (Nietzsche, 2005, p. 101), nossa originalidade tem uma origem. Então
veríamos certa coerência se a originalidade modernista fosse buscar na origem da
nacionalidade os novos objetivos de uma literatura moderna. Entretanto, o jogo de
palavras não esconde o fato de que, no sentido literário, a expressão e a pesquisa
estética, a busca pela novidade formal e temática, recuou para nunca mais voltar à
tona. As pesquisas que daí se seguem vinculam-se mais ao conhecimento das
ciências como a antropologia, o folclore, a linguística, do que da arte, da poética,
da forma, da literatura enfim — tanto que Alceu Amoroso Lima chega a criticar
Mário de Andrade, por exemplo, pela sua “mania etnográfica” (Andrade, 1968, p.
27).
Ao lembrar que Antonio Candido afirmara que o primitivismo modernista
era mais natural para os brasileiros, afeitos com os costumes provindos das
culturas indígenas e africanas do que para os europeus que tinham que buscar
essas expressões fora de seu continente, devemos notar que a viagem que abriu os
olhos dos modernistas paulistas veio como forma de apresentar o país para um
visitante ilustre, Blaise Cendrars. Um poeta suíço que, como bom cubista,
interessava-se por conhecer e viajar para terras exóticas, vem ao Brasil e acaba
dando oportunidades para os próprios modernistas entenderem o seu próprio país.
Essa situação estranhamente contraditória revela que a brasilidade modernista
também serviu como uma autocrítica para esses poetas e intelectuais
modernamente estrangeiros que se viram no lugar daqueles que eles mesmos
criticavam, i.e., parecia que, no intuito de renovar a literatura através da
modernidade técnica e do cotidiano da cidade, eles estavam desfigurando a
138
literatura naquele viés tantas vezes batido e, já então, “rotinizado”. É o que diz
Cecília de Lara:
Aqui não se pode deixar de trazer à baila um dos marcos da viagem — o contato do
grupo modernista original com a tradição brasileira viva, nas cores e formas da arte
e da arquitetura colonial, remanescente em Minas. Nela se inspiram os poemas
sintéticos de Oswald de Andrade, e os traços e cores ingênuas de Tarsila do
Amaral. Bebendo em fonte um pouco diferente, Mário de Andrade produzirá o
marcante “Noturno de Belo Horizonte”. Estes foram alguns dos frutos palpáveis
que a famosa caravana modernista recolheu de Minas — em descoberta e
redescoberta de um Brasil que já estava se desfigurando nos centros urbanos e era
com frequência menosprezado por certas camadas ciosas de suas origens ou de sua
formação europeias. (Lara apud Cury, 1998, p. 81)
Cecília de Lara cita como resultado da viagem o “Noturno” de Mário de
Andrade. Escrito logo após a viagem esse é talvez a primeira manifestação
literária da nova fase modernista. A crítica vem dando destaque ao “Manifesto
pau-brasil”, de março de 1924, mas é nesse poema que o modernismo vê
inaugurado as tendências nacionais que virão mais elaboradas no manifesto.
Escreve ele:
Que luta pavorosa entre floresta e casas...
Todas as idades humanas
Macaqueadas por arquiteturas históricas
Torres torreões torrinhas e tolices
Brigaram em nome da?
Os mineiros secundam em coro:
— Em nome da civilização.
(Andrade, s/d, p. 136)
A crítica à importação de uma civilização estranha ao meio brasileiro é feita
aqui e serve também como autocrítica aos modernistas que aceitaram as
conquistas da civilização moderna sem ter em conta suas implicações nacionais. A
importação ainda assim continua sendo a crítica geral, aqui não mais contra os
passadistas da literatura, mas às criações culturais em geral, na arquitetura,
principalmente. É onde se vê as diferenças entre uma paisagem naturalmente
primitiva, ambiente de natureza edênica, e as aberrações das fachadas e prédios
que usam da cópia de monumentos estrangeiros à, vamos dizer, ordem natural
brasileira — construções manuelinas, românticas, góticas, gregas, são citadas
como “esquecimento da verdade”. Na desavença entre dois mundos, o da casa e o
da floresta, cria-se o desenraizamento da terra, o conflito entre mundos distintos
139
que obriga o homem privado a esquecer seu vínculo com o que faz do Brasil uma
nação especificamente rica e grandiosa. A civilização aqui toma ares novos. Ela é
a razão de ser da desavença que cria dissonâncias entre o litoral e o sertão, a
cidade e o campo, a modernidade e a brasilidade; uma civilização que não é
essencialmente desagregadora mas que, reduzida a mera imitação e importação,
assola a liberdade brasileira de respirar seus próprios ares, deixando-a viver na
“sombra” do europeu, na inverdade, na mentira.
O impacto das revelações da arquitetura colonial rendeu ainda uma crônica
escrita também logo após a viagem a Minas. Nela Mário lança o discurso que revê
a tradição artística brasileira e sua grandeza:
Que é da grandeza antiga? Essa dorme sono de cobra enorme, tombando aos
pedaços, apodrecida pelas goteiras na Trindade, no Rosário, na casa de Tiradentes.
É pena. Quanta obra de arte a se estragar! (Andrade, 1978, p. 114)
Perspectiva nova de um modernista que não reconhecia no passado qualquer
ordem de fatores que influíssem numa criação modernista e mesmo moderna, a
crônica ainda reafirma a noção de que “nós andamos em busca de arte e de
passado”, admitindo que, pelo menos para ele, o modernismo iria tomar um rumo
que pudesse adequar a floresta à casa, e assim reorganizar a cultura nacional em
torno das verdadeiras manifestações que a tornam rica e forte, sobrevivendo como
que debaixo do tapete das contendas literárias bacharelescas das elites literárias.
No entanto, o primeiro encontro com essa consciência se dá pela arquitetura
colonial, pelo barroco mineiro setecentista que fora apagado ao longo dos tempos
em favor dos olhares estrangeiros. Continua Mário:
Diante disso, que papel fazem as nossas igrejas modernas de S. Paulo! Não se
poderia então aproveitar dessa abundância, que é já nossa também, elementos que
não fossem góticos! Mas só o gótico é místico, não é? (...) Vai pro inferno as
Goticidades Arquitetônicas que não enumerei na minha ‘Paulicéia’! (...) Eu, queria
ainda dizer que os arquitetos neo-coloniais são quase tão idiotas como as
Goticidades Arquitetônicas... Pois é: não vê que estão a encher as avenidas de São
Paulo de casinholas complicadas, verdadeiros monstros de estação balneárias, de
exposições internacionais. Porque não aproveitam as velhas mansões setecentistas,
tão nobres! Tão harmoniosas! E sobretudo tão modernas pela simplicidade dos
traços. (idem, p. 114)
A visualidade das cidades mineiras dispostas na arquitetura foi de uma
revelação tão grande que mesmo Oswald de Andrade, em entrevista ao Diário de
140
Minas, publicada em 27 de abril de 1924, também acusava as discrepâncias de
uma arte tão natural ao Brasil em relação àquela, importada sem a mínima
consciência estética:
A arquitetura de São João Del Rei, Tiradentes e Sabará e de outras que vamos
percorrer está aí como uma censura viva aos inconscientes que pretendem
transplantar para o nosso clima o horror dos bangalôs e das casas de pastelaria. As
cores vivas e o aspecto sólido e calmo das casas mineiras é a melhor lição que pode
ser dada aos nossos construtores. Como é um crime substituir nos altares as velhas
imagens maravilhosas feitas à mão pelos nossos melhores santeiros por uma súcia
de santos almofadinhas e sem caráter definido, saídos da industrialização italiana e
alemã, é outro crime desprezar o cor-de-rosa das fachadas, o abrigo dos beirais e o
azul das janelas — nascidos da paisagem brasileira e da tradição, e tão
naturalmente de acordo com elas — pelas cores cinzentas da Europa. (Andrade,
1990 p. 16)
Assim como no primeiro modernismo a literatura deveria imitar as
tecnologias urbanas e as sensações delas resultantes, aqui a arquitetura
verdadeiramente brasileira tem que se harmonizar, estar de acordo com o
ambiente da qual emana. É assim que a quebra das divergências se realiza, aliando
produção popular nacional dos santeiros e a natureza e suas cores circundantes; a
renovação se daria neste sentido pela valorização da cultura popular em
detrimento do culto ao estrangeiro das elites eruditas que só entendem a arte como
cópia do estrangeiro46
.
Em Oswald de Andrade, o declive ocorre pela separação entre duas
vertentes da história e da cultura nacionais, a do lado doutor, bacharelesco e de
gabinete e dados antepassados populares, livres do contato da importação
(Moraes, 1978, p. 97). Só então a harmonia e o “sentido puro” tornar-se-ão fatores
primordiais na produção cultural brasileira, i.e., na medida em que esta parte da
população, esquecida e resistente, forte e reprimida, reproduz sua própria tradição
ao longo da história, ela é considerada a chave para os anseios da organicidade
brasileira destes modernistas. Eles viam a cultura popular como que parada no
tempo, viva mas antiga, um passado presente que assombrava e inquietava
agentes intelectuais que se embriagavam da vertigem moderna, etérea e
progressista, futurista e desestabilizadora. A seiva pungente e forte do povo foi 46
Vimos que Sílvio Romero fizera a mesma crítica contra as elites. Essas coincidências críticas
dão mais consistência aos nossos argumentos de uma tradição literária brasilista que segue quase a
mesma ordem: crítica à paisagem literária anterior, reinvidicação por nova literatura, expressão
que seja local, nacionalização como modo de particularização, crítica à elite, seja ela qual for,
literária ou econômica.
141
então a resposta coerente. O modernismo, no esforço de entender que a tradição
nacional vinha antes da tradição moderna, se traduziu na separação entre cultura e
civilização. Daí que a cultura passou a ser isolada de algo externo, não menos
desprezível e perigoso porque fragmentária e divisionista, e foi moldada numa
aura de autenticidade, aquilo que era particular, íntimo. Estava refundada a
dicotomia romântica: cultura e civilização. Só que aqui, no modernismo, a cultura
era um passo para ser civilização.
No “Noturno”, Mário de Andrade, ao demonstrar o caráter ambíguo da
cidade “modernicíssima”, afirma, no entanto, que “a terra se insurgiu”, a floresta
toma conta das casas:
O mato invadiu o gradeado das ruas
Bondes sopesados por troncos hercúleos
Incêndios de Cafés
Setas inflamadas, Comboios de trânsfugas pra Rio de Janeiro
A ramaria crequenta cegando as janelas
Com a poeira dura das folhagens...
Aquele homem fugiu
A imitação fugiu.
(Andrade, s/d, p. 137)
Essa espécie de revolução da natureza sobre a civilização ocorre
silenciosamente, como é silenciosa a maneira com que o povo mantém-se
resistente à modernização que não respeita as tradições seculares, transformando
tudo em mercadorias civilizadas, até mesmo os santos italianos citados por
Oswald de Andrade. O homem da imitação foge da natureza e da expressão
genuína desta, ou seja, dos “brasileiros lindamente misturados”; para Mário de
Andrade, é essa massa genuína que mantém a união forte da nação, união esta
imprescindível para o momento agudo de crise em que o país vivia, no qual até o
risco de fragmentação política era provável:
Que importa que uns falem mole descansado
Que os cariocas arranhem os erres na garganta
Que os capixabas e paroaras escancarem as vogais?
Que tem si o quinhentos-réis meridional
Vira cinco tostões do Rio pro Norte?
Juntos formamos este assombro de miséria e grandeza
Brasil, nome de vegetal!...
(Andrade, s/d, p. 146)
142
Pau-Brasil: será este o nome do vegetal o qual pouco tempo depois Oswald
de Andrade irá dar nome à tendência nacional do modernismo, configurando
aquilo que Wilson Martins chama de “primeira heresia modernista, desencadeada,
como sempre acontece, em nome de uma restauração ortodoxa.” (Martins, 2002,
p. 100). O que Martins chama de restauração ortodoxa é o que entendemos como
volta à tradição brasileira do mesmo modo que podemos entender a heresia como
o golpe de estado literário a que aludimos. É aí que a brasilidade toma ares de
programa a ser realizado por aqueles que ousassem empreender a verdadeira
renovação literária; todo o discurso de assimilação da modernidade exterior como
o verdadeiro critério de uma poética modernista e vanguardista será agora
transformado para a obrigatoriedade de manifestação da brasilidade, se a literatura
não quisesse correr o risco de fugir do seu próprio tempo e das necessidades do
momento. Mesmo que o antigo caráter formal e experimental ainda existisse em
algumas manifestações de outros modernistas e que o futurismo italiano
continuasse a ser a pedra de toque de um Graça Aranha, por exemplo, essa
tendência nacionalizante irá predominar pouco a pouco. Não é à toa a volta dessa
problemática pois ela reintegrava o modernismo numa tradição harmoniosa que a
própria cultura letrada e de elite sempre fizera questão de sinalizar: a
modernização via nacionalização da cultura, mesmo que vindo com uma novidade
importante, i.e., o populismo e o primitivismo. É por isso que, ainda aqui, aquilo
que chamamos de autocrítica, permanece parcial, na medida em que a revolução
não implicou uma mudança drástica. Como vimos, anteriormente, isso ocorrerá na
década de 1930 quando o Estado abraçará o populismo político aliando-se às
propostas dos modernistas.
É no “Manifesto da poesia pau-brasil” que o primitivismo modernista mais
se assenta como projeto de literatura que quer resgatar as fontes emotivas da arte.
Como primitivismo interno, aquele que vinha do primeiro modernismo,
ressaltando o intuitivo e a descarga de emoções como meio exclusivo de
empreender uma expressão pura dos sentimentos, desligados da racionalidade
pura e deste modo com menos sinais de corrupção plástica, pois era artificial e
conscientemente criada, como bem entendiam as vanguardas europeias,
influenciadas pelo intuísmo de Bergson e pela teoria do inconsciente e da
regressão de Freud; e também como primitivismo externo, aquele responsável
pela cultura de exotismo, das manifestações de povos “primitivos”, não
143
civilizados, “bárbaros”, que testemunhou uma ascensão no começo do século XX
no contexto do imperialismo. É neste sentido que, segundo Benedito Nunes,
vemos o manifesto de Oswald se dirigir às duas tendências. (Nunes, 1995, p. 9-
10).
Quanto ao primitivismo interno, Oswald ressalta a matéria psicológica, os
estados brutos da alma do povo, o psiquismo das manifestações da “raça crédula e
dualista”, da “sábia preguiça solar”, da “energia íntima”, da “hospitalidade um
pouco sensual e amorosa”, do carnaval como “acontecimento religioso da alma”,
“bárbaro e nosso”; neste veio localizam-se as representações de um caráter
brasileiro expresso na psicologia fundadora dos traços típicos dos homens e
mulheres brasileiros, revelados como idiossincrasia pura, autêntica e original,
daqui por diante não mais recalcados à luz de um modelo de comportamento e
cultura alienígenas ao meio brasileiro.
No âmbito do primitivismo exterior, Oswald de Andrade reiterava as
criações populares como expressões originais porque nativas e desvinculadas das
influências do mimetismo estrangeiro das quais as elites letradas se chafurdavam.
É daí que encontramos como fatos poéticos os “casebres de açafrão e de ocre nos
verdes da Favela”, os “cordões de Botafogo”, “o vatapá, o ouro, a dança”, o
“Carnaval”, e na linguagem popular a “contribuição milionária de todos os erros”.
(Andrade, 1995, p. 41-44).
É verdade que já em 1923 na sua já citada conferência “O esforço
intelectual do Brasil contemporâneo”, Oswald de Andrade anunciava a “matéria
psicológica” resultante da união de “três elementos diversos: o índio, o português
e o padre latino”, vindo o africano logo após dar um senso de realismo ao
idealismo europeu (idem, 1992, p. 29). Neste momento, existe uma apuração dos
fatos intelectuais dentro da história brasileira que fizeram valer os rumos pelos
quais ela progrediria como uma nova nação moderna onde, segundo Vinícius
Dantas, “a eclosão das realidades presentes”, da industrialização e da urbanização,
dariam condições materiais para que suas fontes psicológicas e culturais
permanecessem fortes. Em 1924, o
“Manifesto da poesia pau-brasil” traz também uma solução de uma problemática
local, onde o fio da continuidade precisa portanto ser puxado da tradição
nacionalista, muito embora Oswald embaralhe e confunda programaticamente as
noções de primitivo e moderno, nacional e cosmopolita, vanguardismo e tradição,
144
por aderir com igual ânimo radical, a um só tempo, aos dois lados. (Dantas, 1996,
p. 102).
É justamente essa ambiguidade que perdurará ainda em 1924 e será o
embate mais pessoal de Oswald de Andrade, sendo que, apesar de toda a moda
brasilista que ele mesmo inaugura, suas obras permanecerão num diálogo entre
vanguarda e localismo, ainda não absolutamente conciliados e sem o caráter de
experimentalismo daquela. Não há dúvida em pensarmos que essa particularidade
se deu pela ambição do autor de João Miramar em vanguardiar o movimento
modernista, trazendo e reelaborando as problemáticas novas que surgiam entre os
europeus. Ressaltar isso não implica, claro, a aberração da livre cópia, do
mimetismo do qual ele mesmo e o modernismo em geral combatiam; mas o jogo
mal entendido entre a noção de uma arte e literatura de expressão e demandas
locais e os questionamentos estéticos que as vanguardas históricas propunham, em
suma, o mesmo dilema entre o localismo e o cosmopolitismo do qual Antonio
Candido diz ser o complexo estrutural da formação da literatura brasileira, foi, a
partir deste momento, com a livre adesão ao discurso primitivo-brasileirista, a dor
de cabeça desses modernistas que não deixavam de pensar e ignorar a mente
estrangeira. A ótica destes modernistas, apesar de cosmopolita, pendia para a
associação crucial de ver no sentimento étnico nacional o remédio para a suspeita
de que o vanguardismo não excluía o nacionalismo, mesmo porque a
modernização do país, como o expressou Oswald em 1923, não alterará a
organicidade da fonte brasileira, do seu “sentimento étnico”.
O que vem à tona nessa discussão é o que no “Manifesto da poesia pau-
brasil” se enfatiza: “Dividamos: poesia de importação. E a poesia Pau-Brasil, de
exportação.” (Andrade, 1995, p. 42). Curioso é pensar que ainda aqui a matéria
bruta, a psicologia brasileira escancarada é também matéria de venda, i.e.,
podemos dizer que a poesia do “estado de inocência” não deixa de ser mais ou
menos tratada como produto exótico, para estrangeiro ver; quer dizer, o olhar
estrangeiro ainda permanece senão como forma de modelação, pelo menos como
o daquele que deverá ser o consumidor final dentro de um quadro de
reestruturação da “divisão internacional da literatura”, na qual a Europa era nosso
fornecedor direto de cultura. A poesia pau-brasil quer ser a vanguarda de segunda
mão, refiltrada pela magia e obscurantismo brasileiros para ser distribuídos aos
145
povos “consumidores de primitivismo”, ou seja, apreciados pelas mesmas
vanguardas que deram um rótulo no qual se engarrafa a substância brasileira
passando a “ser valorizada pelo critério exterior e proeminente da vanguarda
internacional.” (Dantas, 1996, p. 102). Enfim, é uma poesia do povo mas não para
o povo. Essa ambiguidade é crucial para entendermos que as dimensões
problemáticas de uma cultura que se via como “inferior” aos de fora, mesmo
quando passa por uma revolução no modo de se reorganizar e rever a própria
noção de cultura como o fora no modernismo primitivista, ainda mediavam sua
legitimidade pelo crivo do olhar estrangeiro. Pelo menos era esse o caso do
“processo de atrapalhação”, modo pelo qual Monteiro Lobato chamou o
movimento pau-brasil; atrapalhação porque Oswald produziu um “angu completo
dos valores e regras universalmente aceitas” (Lobato, 2008, p. 122) no intuito de
ser recebido como o renovador dentro da renovação que, então, não mais parecia
estancar-se naquilo que Plínio Salgado chamou de “sistematização da revolução
literária” (Salgado, 1972, p. 286) e que Mário de Andrade chamou de “pasmaceira
artística em que vivia” o país (Andrade, 1972, p. 223). Na ânsia de tomar a
vanguarda do modernismo, ele acabou criando a imagem de homem sem
propósito, estigmatizado como mero blaguista, cujo humor se tornará obstáculo
durante toda a sua vida que para aqueles que não acreditavam na crítica satírica
extremista e nem na seriedade dos seus projetos. É neste sentido que Lobato47
acredita que Oswald não tem credibilidade entre os seus pares nem entre as
demais intelectualidades, como bem expressa Afonso Arinos sobre os poemas
deste: “no primeiro instante a gente fica perturbado. Quase se desconfia se aquilo
é deboche.” (Arinos apud Boaventura, 1986, p. 48). É o que se vê nessas palavras
de um grande amigo de Oswald, Mário Guastini que via no autor
um blagueuer incorrigível que, para se divertir às custas dos pobres-diabos, que
acreditam nas suas pilhérias, resolveu transformar-se em apóstolo da arte-nova, de
uma arte-disparate, de uma arte que esses mesmos pobres-diabos, em consciência,
não podem levar a sério... (Guatini, apud Silveira, 2007, p. 179).
47
Tal artigo de Lobato, publicado em 1926 gerou uma resposta mordaz de Mário de Andrade, que
escreve um necrológio do editor no jornal A manhã de 13 de maio de 1926: “O telégrafo
implacável nos traz a notícia da morte de Monteiro Lobato, o conhecido autor de Urupês. Uma das
fatalidades que sofre a literatura nacional é esta das Parcas impacientes abandonarem no começo o
tecido de certas vidas brasileiras que se anunciavam belas e úteis.” ANDRADE apud PASSIANI,
Ênio. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Bauru:
Edusc/Anpocs, 2003, p.31.
146
O manifesto encerra as primeiras dores de um parto no qual se desejava
nascer um rebento legitimamente nacional ungindo o sangue local à modernidade
que veio, como o padre jesuíta, dar parte da civilização; pois, dentro das
disparidades de Oswald de Andrade, neste momento o teor civilizacional ainda se
fazia penetrar, conciliando “o melhor da tradição lírica” com o “melhor da nossa
tradição moderna”, unindo “floresta” e “escola”, o que, segundo Benedito Nunes,
formaria “um composto híbrido que ratifica a miscigenação étnica do povo
brasileiro...” (Nunes, 1995, p.13). O olhar vesgo de Oswald foi uma tentativa de
solucionar o progressivo questionamento sobre a necessidade momentânea de
apurar os fatos brutos da terra numa poética que se elevasse como único viés
programático do movimento, que parecia ver-se fadado ao não lugar do
cosmopolitismo extremista e do inextricável diálogo com as vanguardas artísticas,
modo único de manter sobre sua rubrica a marca de uma poética modernista. O
problema, no entanto, não é bem resolvido senão pelas ambiguidades de sua
expressão e pelos não entendimentos da crítica, tanto modernista quanto dos
inimigos de plantão; apesar de tudo, segundo Vinícius Dantas, a solução foi que,
tirando da mistura de tradição e modernidade um efeito de choque e surpresa,
Oswald apresenta a ‘matéria psicológica’, de que falava em Paris, limpa dos
constrangimentos morais, raciais e culturais que consumiam o debate nacionalista,
deslocado que ficava, nessa moldura vanguardista, para segundo plano. (Dantas,
1996, p 102).
Do processo resultou o desrecalcamento da cultura popular brasileira, livre
dos preconceitos e dos elitismos da literatura bacharelesca, doutofílica, eruditista,
dos “gaviões de penacho”.
O problema era que as dificuldades dessa solução foram caras para o futuro
do movimento que desde então não parou de se fragmentar às custas dos
primitivismos de segunda mão ou dos “futurismos” passadistas e academizantes.
Todas as novas direções, incluídas dentro do mesmo problema que Oswald
inaugura com o manifesto, irão ou renegar o caráter primitivista, como Graça
Aranha arrastando Ronald de Carvalho, ou abraçá-lo, filtrando-o dos resquícios da
vanguarda, como os verdeamarelos, ou da total recusa de ambos os modelos como
foi o caso de Lins do Rego e de Gilberto Freyre e dos espiritualistas que se
reunirão em torno da revista Festa. Foi Prudente de Moraes, neto, quem afirmou
que “o manifesto da poesia pau-brasil, de 1924, assinalou o início da
147
desagregação do modernismo como movimento, como ação conjunta de grupo,
em defesa de ideais comuns.” (Moraes apud Domingos, 2010, p, 87). A recepção
foi bombástica dentro dos veios modernistas; afinal, era uma escolarização do
movimento, aquilo de que tanto eles haviam brigado para não acontecer nos anos
anteriores a 1920, como no caso da polêmica sobre a alcunha de “futuristas” dada
pelos críticos. Neste sentido, já em maio de 1924, um mês após a publicação do
manifesto, encontramos uma crítica ao caráter dogmático do movimento feita por
Manuel Bandeira:
A poesia brasileira vai entrar para a Liga Nacionalista. Oswald de Andrade acaba
de deitar manifesto — uma espécie de plataforma-poema daquilo que ele chama
Poesia Pau-Brasil. Eu protesto. O nome é cumprido demais. Bastaria dizer poesia
pau. Por inteiro: Manifesto Brasil da Poesia Pau. Porque é poesia de programa e
toda poesia de programa é pau. Aborrecem os poetas que se lembram da
nacionalidade quando fazem versos. Eu quero falar do que me der na cabeça.
Quero ser eventualmente mistura de turco com sírio-libanês. Quero ter o direito de
falar ainda na Grécia. (Bandeira, apud Silveira, 2007, p. 174)
É praticamente com as mesmas palavras que Carlos Drummond de Andrade
irá responder às tentativas de abrasileiramento da sua produção empreendidas
pelas cartas de Mário de Andrade que serviria também de resposta ao manifesto
de Oswald de Andrade:
Entendo por nacionalista: ter princípios, fazer estudos sobre o amor à pátria, etc. E
como é bom ser brasileiro! Contudo, não é o único bem da vida. Daí amanhecer,
outros dias, norueguês ou tchecoslovaco (mais frequentemente francês). Isto é o
que eu chamo de liberdade espiritual. (C&M, 2002, p. 79)
O aprisionamento do movimento que tinha como princípio a liberdade das
formas e dos tratamentos e o direcionismo patente dentro dos termos usados por
Oswald de Andrade, que no manifesto colocava o dilema da arte moderna entre o
Pau-Brasil e os identificados como herdeiros da cultura de gabinete e do
pompismo retórico, gerou antipatias tremendas pelo fato de reduzir a nova arte ao
primitivismo e à tradição local, segundo Mário de Andrade, “visando técnica e
ideologia”. Qualquer arte que se pretendia modernista, caso não apresentasse
esses dados estaria ligada, como se infere dos termos do manifesto, à “fatalidade
do primeiro branco aportado dominando politicamente a selva selvagem.”
(Andrade, 1995, p. 41). A referência ao verso “selva selvagem áspera e forte” da
148
Divina Comédia Dante Alighieri, que representa a perdição do caminho da
virtude, recuperada por Virgílio e Beatriz, mostra que Oswald identificava seu
Pau-Brasil como resposta para os desvios que o movimento parecia haver tomado,
sem nenhuma objetividade que lhe desse caráter de legitimação dentro do campo
literário brasileiro. É neste sentido que Oswald, num embaraço constante e
apresentando a solução para a apatia dos modernistas, tinha em mente a questão
de: que o seu primitivismo era uma conquista da civilização, que a catequese do
índio foi pressuposto para “o melhor de nossa demonstração moderna”, que o seu
pau-brasileirismo era, portanto, também um “assunto invasor” só que depurado
das “indigestões da sabedoria”, “sem reminiscências livrescas. Sem comparações
de apoio. Sem pesquisa etimologia. Sem ontologia.” (Andrade, 1992, p. 45).
É neste sentido que a linguagem de Oswald, com sua “volta ao material”
assumido em Memórias sentimentais de João Miramar, ao mesmo tempo em que
elaborava as dimensões sintáticas das vanguardas, principalmente o elemento da
surpresa e da invenção em síntese do cubismo apollinairista, demandava a atenção
à linguagem brasileira: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e
neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como
somos.” (Andrade, 1995, p. 42). Essa mistura entre a linguagem de choque
essencialmente vanguardista, “poesia etílica de visada crítica, cuja sintaxe nasce
não do ordenamento lógico do discurso, mas da montagem de peças que parecem
soltas”, de “lirismo objetivo e antiilusionismo”, como quer Haroldo de Campo
(Campos, s/d, p.19), e o falar cotidiano, o sermo plebeius, como o interpreta Paulo
Prado, ausente dos bibelôs da eloquência, causava um mal entendido maior por
não querer expressar um dado já real a partir de uma lógica teórica em vias de
conformação e delimitação do próprio objeto que trata — a linguagem. Em outras
palavras, se a língua já se apresentava em sua forma primitiva de maneira,
digamos, pura, em “estado de inocência”, sem nenhuma necessidade de ser
sistematizada, como se fala no manifesto, por que remodelá-la numa acepção
intrusa que reorganiza, reelabora o objeto para que seja exposta de determinada
forma, i.e., na forma da linguagem de vanguarda? Ou, de forma mais concisa, por
que o primitivismo se o primitivo se encontra dado, “puro”, em estado natural? A
interferência da dicção artística de Oswald foi prontamente exposta por Mário de
Andrade em artigo à Revista do Brasil, em setembro de 1924: “a criação dessa
linguagem que tudo abandona pela expressão, mesmo leis universais e básicas, é
149
exemplo fundamentalmente destrutivo que ignora as necessidades do material e
lhe desrespeita mesmo a razão de existência.” (Andrade, 1972, p. 222). Em outro
artigo, agora em 1925 e sobre o livro de poesias Pau-brasil, ele toma a mesma
contradição de Oswald:
Porque essa volta ao material popular, aos erros do povo é desejo de verdade
erudita, e das mais. O. de A. sabe delas e num átimo se aternurou sem crítica por
tudo o que é do povo, misturando, generalizando. E se contradizendo no mesmo
escrito que é o único jeito mesmo de ter contradição. (idem, p. 240).
O retorno ao “sentido puro”, à autenticidade nacional e pureza verbal
cotidiana dos primitivos da terra, ao contrário do que pensa Haroldo de Campo,
acreditando nele como a “acepção fenomenológica de disposição inaugural”
(Campos, s/d, p. 24) a partir do introito dentro da perspectiva da arte de
vanguarda, inflacionava aquilo que sempre foi a pedra no sapato das vanguardas,
o fato de que a linguagem modernista era marcada por hermetismos inebriantes,
incoerentes, sem nenhuma relação factual com as próprias fontes das quais se
abasteciam, ou seja, a realidade. Essa questão é delicada. É daí que a “paranoia e
mistificação”, da qual falava Monteiro Lobato, se torna o problema do qual a
simples ocorrência linguística ou manifestação artística se perde no vácuo da
especulação verbal e, naquele caso, pictórica. É essa a essência mesma da
vanguarda, o que José Guilherme Merquior chega a afirmar ser uma das suas
principais tendências porque “a arte de vanguarda desenvolveu, no século XX,
uma nítida propensão à incomunicabilidade”; é certo que existem exageros no
crítico liberal mas não podemos deixar de concordar que, em grande parte, “esse
democratismo linguístico foi posto a serviço de uma semântica ultra-aristocrática”
e que
toda a linha forte da literatura de vanguarda, a começar por Kafka e pelos
surrealismos, joga com significações incertas, esquivas, obscuras, cifradas. A
leitura — mesmo a mais atenta — resvala na penumbra das interpretações
oscilantes. (Merquior, 1974, p. 85).
O fato de essa vanguarda ter sua sobrevivência histórica até hoje denota que
eles não foram, no entanto, tão mal entendidos, pois, do contrário, eles estariam
hoje fadados ao esquecimento total. Entretanto, essa questão passa mesmo pela
150
autocrítica dos modernistas e vanguardistas, como demonstram essas palavras de
Jean Epstein:
As letras modernas, malgrado esquematização e aproximação, não se caracterizam
de forma nenhuma pela simplicidade. por força mesmo de suas esquematizações os
modernos exigem, para serem compreendidos, um trabalho intelectual
complementar importante por parte do leitor... (Epstein apud Martins, 2002, p. 54).
Quando a linguagem cosmopolita, a língua automática produzida pelos
profundos da inconsciência ou do “subconsciente”, como dizia Mário de Andrade,
descambou majoritariamente para o primitivismo externo, no caso brasileiro,
houve um choque duplo,pois a linguagem cotidiana, “a contribuição dos erros”, já
é em si desprovida de meneios e obrigações linguísticas que a escrita impõe, daí
que ela mesma, com superposições e eliminações de sílabas e ramificações de
gírias, apresenta-se, podemos dizer, quase vanguardista, pois também é sintética,
inovadora, automática. Quando o primitivismo vanguardista aborda tal linguagem,
no caso de Oswald, ela se anula, se estrutura na aparência da liberdade, do
sentido-purismo que inventa um olhar preconcebido para um objeto pronto,
elaborado, natural, como é a linguagem popular, a “originalidade nativa”. A
contradição oswaldiana é típica daquela crítica de Mário de Andrade sobre autores
que escrevem falas de personagens “naturalmente”, com erros gramaticais, depois
disso escrevem do “modo certo”: “nos seus textos escrevem gramaticalmente, mas
permitem que seus personagens, falando, ‘errem’ o português” (Andrade, 1972, p.
245). Conta-se nisso a escrita dos poemas pau-brasil serem “primitivos”,
popularescos, mas o manifesto da poesia pau-brasil não conter nenhum sinal da
língua vulgar, “como falamos”, a não ser numa passagem na qual cita a língua
pura (“dorme nenê que o bicho vem pegá”). Nada mais que um paubrasileirismo
de citação, e como uma citação, ele adquire o aspecto de algo externo, fora do
ambiente, servindo apenas como apêndice, e é exatamente isso o que é o “povo”
em Oswald de Andrade. Assim como para os modernistas em geral, homens e
mulheres “de fora”, o outro que querem descobrir porque não fizeram parte da sua
vida de “aristocratas” e de elites intelectuais, como se pode ver nestas palavras
idealistas do próprio Oswald sobre sua infância:
Apenas quando mamãe consentia que as criadas me levassem às festas religiosas
(...) eu ensaiava com elas no tablado de um coreto passos de maxixe no meio da
151
pretada. Evidentemente definia-se assim minha intensa adesão ao povo, seus ideais
e costumes. (Andrade, 1990, p. 37).
O “povo”, como uma citação, foi apenas uma adesão.
Em artigo de setembro de 1924, Mário de Andrade discorre o fato de que os
modernistas pretendiam colocar a “consciência nacional no presente do universo”.
Questionando-se sobre onde encontrar tal consciência nacional o autor de
Paulicéia admite que ela não poderia ser encontrada dentro da tradição dos
escritores brasileiros porque “essa tradição não dizia nada”; continua ele:
As poucas tentativas dum Basílio da Gama, dum Gonçalves Dias, dum Alencar
eram falhas porque intelectuais em vez de sentidas, porque dogmáticas em vez de
experimentais, idealistas em vez de críticas e práticas, divorciadas do seio popular,
descaminhadas da tradição, ignorantes dos fatos da realidade da terra. Apenas
alguma coisa da ironia do caboclo, da sua melancolia, do sentimento do brasileiro
urbano, da petulância pernóstica do mulato e sua chalaça lusa se podia aprender na
obra dum Gregório de Matos, dum Casimiro de Abreu, dum Álvares de Azevedo.
Outros pouquíssimos. (Andrade, 1972, p. 224)
Ainda afirma o autor que o nacionalismo de certos autores não implica ou
gera uma consciência nacional que tem de ser “íntima, popular e unânime”. Esse
“sentimento íntimo”, para lembrar o famigerado termo de Machado de Assis,
conclui Mário de Andrade, ainda não existe, lembrando que o trabalho dos
modernistas ajudava para o “aparecimento” dessa consciência nacional. Portanto,
em 1924, Mário de Andrade já revia à qual tradição literária o modernismo
poderia ligar-se para realizar o trabalho de “transportar a consciência nacional
para o presente do universo”. Foi isso o que Mário chamou de tradicionalização
ou de passadistização literária. Ele afirma, em entrevista ao jornal A noite, em
dezembro de 1925, que o modernismo não deve reviver o passado brasileiro mas
vivê-lo e sentí-lo não apenas na sua realidade física como também na sua
“emotividade histórica”, já que “sentir as lutas contra os franceses, Estácio de Sá,
Pedro I e a casinha de Machado de Assis” só brasileiro desprovido de “saudade
pela Europa”, brasileiro sem a “moléstia de Nabuco”, pode sentir. Completa ele:
Nós já temos um passado guassú e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece
é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é,
referí-lo ao presente. Bilac evocando Anchieta reviveu porque não tradicionalizou
Anchieta, não fez dele um valor agente pesando no mecanismo brasileiro mas uma
visão desrelacionada e morta do passado. Guilherme de Almeida em Raça vive os
capitães de terra, os escravos, etc. porque os refere ao presente brasileiro. (...)
152
Tradicionalizar o Brasil consistirá em viver-lhe a realidade atual com a nossa
sensibilidade tal como é e não como a gente quer que ela seja, e referindo a esse
presente nossos costumes, língua, nosso destino e também nosso passado.
(Andrade, 1983, p. 19)
Mário de Andrade pensa em como aproveitar melhor a tradição brasileira
que se aproximava das propostas modernistas. No mesmo sentido que Paulo Prado
reivindicou Casimiro de Abreu no seu prefácio ao livro de poesias Pau-Brasil,
Mário de Andrade irá reapropriar autores, fazendo uma leitura contemporânea que
os referisse a problemas circunstanciais. A referencialidade do presente é um
problema comum nas diversas fases de Mário de Andrade pois sua preocupação
com a historicidade das plataformas modernistas é o fator mais importante das
suas reviravoltas de opinião e sua aparente contradição. As diversas versões e
cortes do seu maior romance, Macunaíma, estaria ligado à necessidade de fazer
“literatura de circunstância”, conceito elaborado por ele mesmo, que “propôs uma
literatura não mais voltada para a ideia de universalidade e perenidade, mas
empenhada em uma reflexão crítica e em uma influência direta sobre seu tempo”,
como afirma Telê Porto Ancora Lopez (Lopez, 1978, p. xxxviii). É neste sentido
também que a figura de Machado de Assis terá um papel relevante nas suas fases
de intensa querela contra ou a favor dos cânones brasileiros. Mário confessa, por
exemplo, a influência do Bruxo na feitura do seu livro Amar verbo intransitivo,
nesta carta datada de 20 de fevereiro de 1927 dirigida a Carlos Drummond de
Andrade:
Ora se o senhor Mário de Andrade se inspira em Machado de Assis é porque quis
tradicionalizar a orientação humorística brasileira representada por Machado de
Assis na literatura de ordem artística, Machado que a gente pondo reparo mais
íntimo é mais brasileiro do que parece à primeira vista. Até na língua? Até na
língua que estudada de mais perto mostra uma aversão quase sistemática pelos
modismos especializadamente portugas. (C&M, 2002, p. 277-278)
Então, pelas palavras do próprio Mário, era possível sim referenciar
determinado aspecto de um autor da tradição literária brasileira no sentido de
problematizar uma questão do presente, vivendo-o e tradicionalizando-o numa
ótica modernista.
Para Mário de Andrade, a consciência de uma continuidade dentro da
tradição literária brasileira foi o salvaguardo do modernismo brasileiro. É que a
sede de ruptura das vanguardas europeias, segundo ele, não se dispôs a construir
153
um edifício estético que mantivesse as conquistas renovadoras concretamente
solidificadas. É o caso do futurismo italiano que destruiu cânones literários sem
nenhuma proposta construtiva; o resultado foi a sua completa degradação artística,
ainda mais quando Marinetti andou a namorar-se com o fascismo. Maiakovski,
para não cair no mesmo erro, “saiu” do futurismo. Mas no mesmo erro dos
italianos caíram os da França, da Alemanha, o grupo Sturm, os dadaístas, os
cubistas. Eles não souberam aproveitar e reavaliar a tradição literária de seus
países como o fizera o modernismo brasileiro, daí que, para Mário, “de todas as
tentativas de modernização artística do mundo, talvez a que achou melhor solução
para si mesma foi a brasileira.” (Andrade, 1983, p. 17). Ele então explica a
tradicionalização pela reintrodução do modernismo dentro da evolução da
literatura brasileira. Neste sentido, o momento de ruptura do movimento já
passou, foi apenas um “estado de exceção”, no qual, em suas palavras,
a gente se excetua apenas o tempo necessário para conquistar mais liberdade e
sobretudo visão melhor da torrente humana. Mas depois se reintegra na torrente,
porque só mesmo dentro dela pode ser eficiente e fecundo. (idem, p. 18).
Usando de empréstimo os termos dos formalistas russos, podemos afirmar
que é aí que o “estranhamento” se “automatiza”, a ruptura se canoniza.
É importante esse relato crítico de Mário de Andrade para explicar o
movimento modernista. Nele há uma percepção histórico-geneticista da literatura
de uma sutileza incrível. Para ele, nas revoluções literárias é necessário um
momento de exceção, de afastamento objetivo diante dos quadros e da paisagem
literária que se apresenta. Sem esse distanciamento, essa relação crítica sujeito-
objeto, a compreensão do momento histórico é impossível, dado que é neste
intervalo crítico que os grupos que pretendem tomar o “poder literário” avaliam os
campos e as estratégias de ataque (a autocrítica de que fala Bürger). As críticas
contra o passadismo, contra os “Mestres do passado”, como escreveria o próprio
Mário de Andrade, e as polêmicas levadas a cabo pelos integrantes da renovação
literária dão a entender que essa estratégia foi vitoriosa. A ruptura é apenas a
primeira fase cuja ressonância serve apenas para angariar destaque diante da
tradição literária vigente e da sociedade por ela representada, e é nesta perspectiva
que Antonio Candido acerta quando caracteriza o grupo modernista paulista como
grupo “não mais justaposto á comunidade, todavia, mas formado a partir dela,
154
oriundo da sua própria dinâmica, diferenciando-se de dentro para fora.” (Mello e
Souza, 2000, p. 144). Mas a reabilitação era necessária, afinal, esses modernistas
não poderiam viver como párias da literatura brasileira, e, mais que isso, a
literatura modernista — quer dizer, para eles, a literatura brasileira contemporânea
— não poderia ceder ao risco das imprecações e suscetibilidades de estagnação
pelo ataque direto e irresponsável. Foi essa a noção que tomou Mário de Andrade
(retroativamente, diga-se). Daí que a tradicionalização, i.e., a releitura presentista
da nacionalidade, da literatura brasileira torna-se urgente, modernizando alguns
aspectos desta tradição, para não perder o seu cheiro de modernismo, de
vanguarda. A questão atual é esta: “Ora, o maior problema atual do Brasil
consiste no acomodamento da nossa sensibilidade nacional com a realidade
brasileira...” (Andrade, 1983, p.18).
O modernismo tentaria pois o casamento junto ao seio popular que a
tradição brasileira não ousava enfrentar. Daí que o quinhão modernista para a
solução de continuidade da sua segunda fase fora o populismo e a atenção ao
detalhe local expurgado dos constrangimentos dos autores passados. A questão da
língua brasileira foi, desde então, o ponto chave do primitivismo modernista
brasileiro. Quanto a isso, se Oswald teve seus dilemas e insuficiências, Mário
também o impôs de modo incisivo. Como comenta Manuel Bandeira:
Em nenhum desses setores [crítica literária, musical e plástica] fez ele maiores
sacrifícios à verdade e à beleza de suas criações do que na questão da língua, e aí se
tornou mais irritante e contundente, muito mais inacessível, em suas nobres
intenções, aos julgamentos superficiais. (...) Numa linguagem brasileira artificial,
porque é uma síntese e sistematização pessoal de modismos dos quatro cantos do
Brasil, passou Mário de Andrade a escrever os seus livros, na poesia desde O
losango cáqui, publicado em 1924. (Bandeira, 1996, p. 610)
Como vimos, a questão da língua fora então um ponto crítico para esse novo
modernismo. Plínio Salgado chegará ao cúmulo policarpoquaresmista de estudar a
língua tupi:
Com Raul Bopp, atravessei muitas noites estudando a língua tupi. (...) Os
modernistas extremados ridicularizaram-nos, depois imitaram-nos, organizando um
indianismo surrealista e dadaísta, que denominaram ‘antropofagia’. (Salgado apud
Martins, 2002, p. 106).
155
A antropofagia de 1928, no entanto, admitiu vários textos de Salgado sobre
suas pesquisas da língua autóctone, mas desde 1924, todo mundo teve que tomar
partido e a fragmentação foi então inevitável, afinal, Oswald divisava o
movimento entre o paubrasileirismo (modernismo) e o não-paubrasileirismo
(atraso passadista).
Em julho de 1924 Graça Aranha, em sua conferência na Academia
Brasileira de Letras, intitulada “O espírito moderno”, acoimava:
O primitivismo dos intelectuais é um ato de vontade, um artifício como o
arcadismo dos acadêmicos. (...) Ser brasileiro não é ser selvagem, ser humilde,
escravo do terror, balbuciar uma linguagem imbecil, rebuscar os motivos da poesia
e da literatura unicamente numa pretendida ingenuidade popular, turvada pelas
influências e deformações da tradição europeia. (Aranha, 1925, p. 43-44)
Ronald de Carvalho e Renato Almeida então aliam-se ao integracionismo de
Aranha, formando o “grupo” dinamista. Estes dois últimos, segundo a crítica
hegemônica do modernismo, serão paulatinamente marcados pela academização
das formas, considerados modernistas academizantes por Sérgio Buarque de
Holanda, em seu polêmico artigo, “O lado oposto e outros lados”, de 1926 na
Revista do Brasil, criticando a obra Toda a América, de Ronald, além de Graça e
Renato48
. Mário de Andrade, no entanto, admite, em carta de 1928 a Carlos
Drummond, que
ninguém não conseguirá neste mundo fazer que eu recuse sob ponto de vista de
modernice, a obra de Ronald e Guilherme e creio que você nisso concorda comigo.
Eu era incapaz de botar eles “do outro lado” só porque são totalmente diferentes da
gente. (C&M, 2002, p. 311).
Já Drummond tem outra opinião: “Guilherme não tem a brutalidade, a
ternura e o amor que a nossa paisagem está exigindo de seus cantores (mesmo
defeito do Ronald).” (idem, p. 189).
Para Merquior, Graça Aranha é um “pensador impressionista abeberado no
irracionalismo do pensamento fin-de-siècle, ‘nacionalista’ obcecado pela fábula
48
Vaticinava Sérgio Buarque de Holanda contra aqueles: “São autores que se acham positivamente
situados do lado oposto e que fazem todo o possível para sentirem um pouco a inquietação da
gente de vanguarda. Houve tempo em que esses autores foram tudo quanto havia de bom na
literatura brasileira. No ponto em que estamos hoje eles não significam nada para nós.”
HOLANDA, Sérgio Buarque. O espírito e a letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, v.I, p.
224-228.
156
racista da ‘inferioridade do mestiço’ — nos antípodas, portanto, da etnologia
modernista”, concluindo que o “grupo” de Graça era uma “pseudo ‘arte
moderna’.” (Merquior, 1974, p. 92). O papel de Graça Aranha dentro do
modernismo foi traçado por Eduardo Jardim de Moraes; apesar das discordâncias
que vemos nos argumentos do filósofo sobre as influências nacionalistas do autor
de Canaã, é certo que a crítica não pôde entrar no seu pensamento sem o
preconceito legado pelos “líderes” do movimento. Ainda assim, quando se tem em
mente a iluminação dessas verdades, o discurso empático prevalece ao invés de
uma análise mais sobriamente crítica. Neste sentido, não é tão próprio chamar O
espírito moderno de Graça de “revolucionário”, como o quer Wilson Martins.
Acirrando ainda mais as divergências internas, em 1925 Drummond,
influenciado por Mário de Andrade, também toma partido contra Oswald de
Andrade. Afirma ele que
As teorias mais diversas têm isso de comum: são de borracha. Daí, não se pode
obrigar Oswald a dar suas ideias à objetivação que nos convém. O que ele prega,
procura ser: crédulo, bárbaro, pitoresco, ingênuo, lírico, primitivo. Dizer que sua
ingenuidade é falsa, porque de civilizado, me parece injustiça. Ele tenta uma crise
de primitivismo, porém não pode ficar burro de repente (?) nem esquecer o que
aprendeu nas Europas. (Aprendeu, por ex., a ser livre). Não acredito é nas
vantagens de seu primitivismo. (Andrade, 1972, p. 288)
Ressoando quase as mesmas palavras de Mário. No entanto, o primitivismo,
como veremos mais adiante, será uma discórdia entre o poeta mineiro e o paulista.
Principalmente em 1925, com a fundação de A Revista, o modernismo de Minas
entra no debate que envolvia o nacionalismo como moeda corrente, a partir de
agora sempre em onda inflacionária. É o que remonta Antonio de Alcântara
Machado, em 1927, em entrevista a Peregrino Jr.:
Antigamente era a frente única. Pancada nos inimigos. Agora é a discórdia.
Pancada nos companheiros. A preocupação de saber quem é que está certo. Ou,
mais gostoso: de saber quem é que está errado. (...) E principalmente a
preocupação de saber quem é de fato brasileiro da gema. (Machado apud Pinto,
2001, p. 452).
A brasilidade parecia o único meio de dinamizar o modernismo, como se
apenas a partir da atitude detalhista local pudesse imprimir na literatura a
dinâmica criativa que o cosmopolitismo tecnicista não conseguia dentro do afã
157
vertiginoso da modernidade que não respeita fronteiras; a crítica pautada no
critério da nacionalidade remontava então a Silvio Romero, que no século XIX
efetuara a mesma complexidade de unir um cientificismo agudo ao critério da
nacionalidade. Só que agora a diferença partia do primitivismo e da consequente
reorganização da cultura popular como fator de originalidade não mais
constrangedora, mas autentificadora da modernidade brasileira, ou melhor, da
brasilidade moderna. A febre de primitivismo e brasilidade era tanta que tornou-se
o sarampão da inteligência, como mostram essas palavras de Sérgio Milliet na
revista Terra roxa e outras terras sobre o livro de Ribeiro Couto, Um homem na
multidão: “Acredito que você ‘não ligue a mínima’ ao brasileirismo. Tanto
melhor. É uma verdadeira obsessão para quase todos nós.” (Milliet, 1926, p. 3).
Também em 1925 o grupo Verde-amarelo, integrando Plínio Salgado,
Menotti Del Picchia, Cândido Mota Filho e Cassiano Ricardo, lança suas palavras
contra o “Manifesto da poesia pau-brasil”:
Pau-Brasil é a madeira que já não existe, interessou holandeses e portugueses,
franceses e chineses, menos os brasileiros que dela só tiveram notícia pelos
historiadores; inspirou a colonização, quer dizer: a assimilação da terra e da boa
gente empanachada pelo estrangeiro; em síntese: pau nefasto, primitivo, colonial,
arcaísmo da flora, expressão do país subserviente, capitania, governo geral, sem
consciência definida, balbuciante, etc. Ainda hoje, na acepção tomada por Oswald,
pau importuno, xereta, metido a sebo. Aparece prestigiado por franceses e
italianos. Mastro absurdo da nossa festa do Divino carregado por Oswald, Mário,
Cendrars. (Verde Amarelo, 2004, p. 30)
Plínio Salgado descartava as inferências das vanguardas dentro do
movimento modernista. Desde o começo do movimento, já na época mesma da
Semana de 22, sua adesão era dada nos bastidores. Como ressaltou Eduardo
Jardim de Moraes, Plínio acreditava na “percepção intuitiva dos traços profundos
do psiquismo coletivo que é valorizada”. Para o autor de Despertemos a nação, a
nacionalidade se manifestava através dos sentimentos e não dos dados analíticos
dos quais um Mário de Andrade irá inferir a fonte nacional em suas pesquisas
antropológicas das canções, danças, poesias, mitos populares. Nada poderia
atrapalhar o cheiro da nacionalidade que sobe espontaneamente dos dados
emocionais, na medida em que estes podem, mais do que as inflexões
racionalizantes, “medir a unidade mais fundamental da nação que se realiza.”
(Moraes, 1978, p. 130). Daí que Plínio Salgado argumenta: “A unidade nacional
158
só se possibilita como consequência de uma grande unidade de sentimento.”
(Salgado apud Moraes, 1978, p. 130). Uma unidade que deflagra-se a despeito das
diferenças regionais e mesmo das manifestações absolutamente díspares de
conteúdo que, no fundo da psicologia do povo, remetem à alma brasileira —
concepção que faz lembrar a “unidade de sentido” da qual A. J. Toynbee visava
uma Europa como uma única fonte cultural, desprovida de diferenças. No entanto,
Salgado arrogava um irracionalismo perigoso que não titubeou em abraçar ideias
políticas que também enfileiravam a nacionalidade intumescida, ao mesmo tempo
que introspectiva à modernidade exterior não-brasileira. Escrevia ele no seu
“Conceito dinâmico da arte”:
Em suma. Só intuitivamente, e sem tutelas, iremos da nossa indecisão para uma
arte nacional expressiva de um novo valor humano. E nos iluminaremos com o
misterioso senso divinatório, sem o qual não existe Arte, que foi e será sempre:
emoção. (Salgado apud Moraes, 1978, p.128).
Como se vê, a dessacralização da arte empreendida pela vanguarda
encontra-se aqui esgotada em todos os graus. Por outro lado, se a arte não
consegue refletir tal unidade de sentimento, e mesmo os romances fracassados de
Plínio, como O estrangeiro e A tormenta o provam, o campo de um nacionalismo
político e social exaltado poderia ser a solução para empreender tal projeto, como
podemos ler em seu livro Despertemos a nação e EE. UU. do Brasil.
Cassiano Ricardo então daria o tom: “Não é com o voto secreto e outras
medidas teóricas propugnadas pelos continuadores do velho idealismo empírico
que havemos de construir a maior pátria do continente.” (Ricardo apud Moraes,
1978, p. 128). Como ele também escreveria em 1939:
Mas a quem caberia estudar o Brasil como ele é e defende-lo na sua originalidade?
A uma classe até então separada do Estado: a dos escritores, quaisquer que fossem,
pensadores e artistas aos quais foi dado o dom de penetrar na alma de seu povo e
no recesso dos destinos humanos.” (Ricardo, 1939, s/p).
O elitismo e a visão salvacionista dos intelectuais perante uma nação e um
povo que não consegue por si só adentrar na sua própria nacionalidade encontram
aqui os braços do poder estatal; a união entre nação e Estado estaria então mais
que perfeitamente efetivada, fechando um ciclo no qual a ideologia popular-
nacionalista dos anos 1920 encontrará a ideologia populista-estatal dos anos 1930.
159
O nacionalismo dos movimentos sociais então em voga e que pululava na
ânsia de salvar a nação, nacionalismo esse representado pelos movimentos
tenentistas, que na década de 1920 tentarão impor uma nova classe politicamente
ativa ao mesmo tempo que preparava terreno para as convicções políticas de
determinadas classes sociais urbanas, caracterizaram-se pela quase completa
apopularidade de suas reivindicações, nas quais a maioria da população não
entrava dentro das parcas propostas políticas que se preocupavam apenas com a
moralização do processo eleitoral e por algumas medidas superficiais no âmbito
social. Do mesmo modo foi o movimento modernista na década de 1920, fadado
às polemicices e especulações literárias que estavam longe da realidade social,
mesmo no seu segundo momento, quando o nacionalismo toma a vez e se torna a
chave de entrada na porta já aberta do nacionalismo literário do qual toda uma
tradição já problematizara. Na década de 1930 ocorre, no entanto, o encontro do
qual fala Cassiano Ricardo: os modernistas tomam cada vez mais o sabor do
populismo, aliando suas propostas de pesquisa ao governo de um Estado também
populista.
Em 1926, os “regionalistas” deitam seu manifesto. Mas já em 1923, Lins do
Rego, vaticinava:
O Brasil não precisava do dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos
rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às suas fontes
da vida, às profundezas de sua vida, às profundezas de sua consciência. (Rego apud
Martins, 2001, p. 120).
Havia uma reação profunda contra o que se entendia como anarquia
cosmopolita dos modernistas sulistas, e mesmo as insistências de um Joaquim
Inojosa de acender as discussões pareciam não surtir efeito, mesmo depois de sua
carta-manifesto “A arte moderna”, de 1924, na qual desafiava: “Porque, ou a
Paraíba se filia ao movimento renovador, ou, em arte, ficará no Morro do Castelo
da Antiguidade.” (Inojosa, 2009, p.482). Escrevia Gilberto Freyre em prefácio aos
Poemas negros, de Jorge de Lima: “Já uma vez me afoitei a sugerir esta ideia: a
necessidade de reconhecer-se um movimento distintamente nordestino de
renovação das letras, das artes, da cultura brasileira...” (Freyre apud Martins,
2002, p. 125). O antivanguardismo desses escritores estava fincado numa
perspectiva que, por um lado, criticava certo gratuitismo da “vanguarda” do
160
movimento e, por outro, insurgia-se pela autonomia de propostas para pensar uma
literatura também local mas deslocada de um nacionalismo primitivizante com o
qual outros modernistas se digladiavam. Existia mesmo uma questão de visão de
mundo e de experiência pessoal dentro da crítica dos “regionalistas”49
, como
podemos observar nas palavras de Graciliano Ramos:
Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os
modernistas brasileiros eram uns cabotinos. (...) Enquanto os rapazes de 22
promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno
sertão alagoano, vendendo chita no balcão. (Ramos apud Marques, 2010, p. 27).
No entanto, seria imprecaução colocar neste “grupo” pessoas com estéticas
tão díspares como Graciliano Ramos e Lins do Rego ou Jorge Amado. É mais
fácil avaliar que eram modernistas sem o movimento modernistas, posto que
alguns deles ousaram uma linguagem mais ousadamente experimental, com
Graciliano Ramos, embora seus romances fossem “produto de um
experimentalismo ficcional mais moderado.” (Merquior, 1974, p. 97-98)50
. Lins
do Rego e Jorge Amado pouco experimentaram uma linguagem vanguardista,
escrevendo seus romances como documentos sociais com teor popular: de
denúncia de uma realidade de decadência, o primeiro, ou de luta social, o
segundo. Jorge de Lima sempre manteve-se afastado das palhaçadas dos
modernistas do sul, seu neosimbolismo, classicismo e eloquência predominavam,
apesar de livros esteticamente mais modernistas como Essa negra Fulô, de 1928.
Em 1928, quando Oswald de Andrade lança seu “Manifesto antropofágico”,
o golpe de estado literário, do qual aludimos, está definitivamente realizado
porque é aí que o primitivismo puro mais se afunila para se tornar a “escola”
oswaldiana ortodoxa por excelência. Daí por diante então os rompimentos, antes
mais ou menos disfarçados, serão selados e expostos ao público. O trabalho de
“devoração crítica” das matérias estrangeiras, embrionariamente exposta no
manifesto de 1924, transforma-se na atitude antropofágica. Escreve ele: “Mas não
49
Taxar esse grupo de regionalista é, de certo modo, uma questão de perspectiva que infere na
discussão feita por nós na Introdução deste trabalho. Neste sentido, ainda não se viu a crítica
chamar o paulistismo dos modernistas de regionalismo. 50
Quanto ao experimentalismo de Graciliano Ramos, a opinião de Antonio Candido é diversa: “a
escrita de um Graciliano Ramos ou de um Dionélio Machado ("clássicas" de algum modo),
embora não sofrendo a influência modernista, pôde ser aceita como "normal" porque a sua
despojada secura tinha sido também assegurada pela libertação que o Modernismo efetuou.”
MELLO E SOUZA. Op. cit. p 186.
161
foram os cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos
comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.” (Andrade, 1992, p.
50). Aqui o primitivismo interno parece recuar em relação ao primitivismo
externo, como se o Freud do inconsciente do primeiro modernismo fosse deixado
de lado pelo Freud de Totem e tabu, mesmo que ambos se complementem. Esse
livro marca fortemente o manifesto. Nisto os críticos são bastante unânimes, dado
as suas constantes citações no que tange ao totemismo e sobre determinados
assuntos: “Freud acabou com o enigma da mulher e com outros sustos da
psicologia impressa.” A transformação do tabu em totem é o pressuposto para a
Revolução Caraíba:
Tínhamos uma justiça codificada da vingança. A ciência codificada da Magia.
Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. (...)
De William James e Voronoff. A transformação do Tabu em totem. Antropofagia.
(...)
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade
sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do
matriarcado. (idem, p. 50-52)
A leitura antropofágica de Freud pela Antropofagia apontava uma saída para
a interiorização do complexo repressivo resultando no ato primeiro da civilização,
aquele que inaugurou o estado de cultura no qual antes só havia a relação
simbiótica com a natureza, i.e., a sociedade complexa surgida após o assassinato
do pai pelos filhos, integrantes do clã primevo. O sentimento de ambivalência que
fazia com que os filhos amassem e odiassem o pai ao mesmo tempo, sendo causa
do assassinato, também será o motivo para a criação do totem e dos tabus sociais,
tais como o incesto ou o assassinato. É a partir da interiorização e da lembrança
do ato que o complexo de culpa e remorso dominará as próximas gerações de
famílias primitivas. O complexo de ambivalência no entanto permanecerá, sendo
que o inconsciente, desejo puro, potencialmente destrutivo, será represado pelo
consciente, o Superego da lembrança do pai retalhando a busca do prazer e da
satisfação. Como conclui Freud:
A sociedade estava agora baseada na cumplicidade do crime comum e no remorso
a ele ligado; enquanto que a moralidade fundamentava-se parte nas exigências
162
dessa sociedade e parte na penitencia exigida pelo sentimento de culpa. (Freud,
1974, p. 174-175).
Segundo Benedito Nunes, Oswald, ao generalizar a devoração antropofágica
“ligou essa purgação do primitivo à saúde moral do Raubentier nietzschiano...”
(Nunes, 1992, p. 20). Esse primitivismo de pretensa propensão social, a partir de
uma nova educação pela cultura reutilizada, configurou-se na especulação pura
porque aqui, no “Manifesto Antropofágico”, ele faz a crítica do comportamento
moral e cultural, mas sequer dá o tom mais radical à linguagem popular, que no
manifesto de 1924 era de suma importância. Parece que Oswald viu que, pelo
menos nesse sentido, a “opção” pelos de baixo e sua contribuição linguística para
a nova poesia não tinham mais viabilidade. Em 1928 o manifesto é menos
populista e mais mítico-cultural e “social”, mais utópico do que “realista”.
Também em 1928 Mário de Andrade lança o seu Macunaíma, verdadeira
obra-prima do modernismo primitivista, na verdade, a maior realização desta fase,
acompanhado também, em outro tom, de Martin Cererê, de Cassiano Ricardo e
do fabuloso Cobra Norato, de Raul Bopp, de 1931. Essas obras tornaram-se a
maior realização que a Antropofagia de Oswald de Andrade não conseguira
produzir, a não ser, claro, pelo livro de Bopp, que abandonara os verde-amarelos
para se filiar aos antropófagos. Não é de se estranhar que Macunaíma tenha sido
recebido como a primeira obra antropófaga, dado que saíra a público pouco tempo
depois do manifesto de Oswald, publicado no primeiro número da Revista de
Antropofagia em 1º de maio de 1928. No entanto, como mostrava um artigo
pioneiro de Tristão de Athaíde em setembro do mesmo ano, o “herói sem caráter”
pertencia a outro contexto, não antropofágico, porém ainda marcado pela
brasilidade (Lima, 1972, p. 332-339). A primeira versão da rapsódia fora escrita
em 1926, composta em oito dias. O primeiro prefácio, não publicado, revela os
objetivos do autor:
Macunaíma não é símbolo nem se tome os casos dele por enigmas ou fábulas. (...)
O que me interessou em Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que
vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros.
Ora, depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que parece certa: o brasileiro não
tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha
conclusão é (uma) novidade pra mim porque tirada da minha experiência pessoal.
E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não em vez
entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes,
163
na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem
como no mal. (Andrade, 1972, p. 289)
Ao elaborar as aventuras do mito indígena sob a ótica de um modernista,
Mário de Andrade já tinha em mente que os críticos o receberiam como uma
metáfora do brasileiro e por isso fez questão de deixar claro a não associação entre
Macunaíma e o “Brasil”, de modo generalista. No entanto, de modo meio
contraditório, ele faz questão de assinalar o aposto do anti-herói como “aquele que
não tem caráter”, também pertencente à psicologia do brasileiro. É o que vemos
também nesta carta de Mário a Augusto Meyer, escrevendo sobre o seu
personagem: “Mas si ele não é o Brasileiro ninguém não poderá negar que ele é
um brasileiro e bem brasileiro por sinal.” (Andrade, 1968, p. 58. Grafia original
mantida). Essa distorção revela as razões pelas quais os prefácios que Mário
escreveu para a rapsódia não tenham saído a lume, mesmo que ele explique tal
fato porque o primeiro prefácio tinha sido considerado insuficiente demais na
explicação e o segundo suficiente por demais. Assim como o personagem tinha
um caráter em aberto, o seu rapsodo resolveu deixar para os críticos a explicação
que ele não tivera coragem de publicizar. Ainda assim, a passagem mostra o
quanto o livro envolvia uma questão pessoal de Mário, questionado pela onda de
brasilidade na qual quase ninguém conseguia apreender exatamente o que seria o
brasileiro de que tanto se falava, tentando deste modo sintetizar tal problemática
através de uma paródia pan-folclórica, remontando os problemas histórico-
espaciais e psicológicos que fundamentam a teoria de um sentimento puro e
funcional da brasilidade.
Macunaíma tem um afastamento crítico dentro do movimento modernista.
Tudo nele leva ao não lugar, à contingência de uma história sem causas e efeitos,
enfim à uma “história aberta”, não historicista por não prever os caminhos pelos
quais os brasileiros deveriam passar até chegar à sua realização total previamente
reconhecida; se Macunaíma não tem caracteres, idiossincrasias, personalidade,
moral, ele não pertence a nenhuma esfera empírica, a nenhum lugar, a nenhum
país. É interessante que, neste sentido, a “entidade nacional dos brasileiros” não
tenha nada de tipicamente brasileiro por ser construído de substâncias psíquicas
específicas, a não ser pela total falta de uma visão de mundo e de uma modus
operandi diante da realidade do espaço brasileiro, também este
164
“desgeograficado”, sem fronteiras, como quer o próprio Mário: “Assim
desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o
mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea um conceito
étnico e geográfico.” (idem, p. 291). Acontece que o meio pelo qual Mário tenta
empreender a homogeneização brasileira incorre na possibilidade de negar as
próprias fronteiras da nação, posto que as regiões são descaracterizadas e
sublimadas em prol do “desrecalque” brasileiro — a não determinação do que
seriam as partes que formam o todo incorreriam na total desarticulação do que
seriam os “elementos nacionais” especificados. Se o brasileiro é uma não-pessoa,
as regiões não-regiões, então o Brasil poderia ser um não-Brasil. A resposta de
Mário é, portanto, o golpe nacionalista contra a própria nação.
No entanto, ao deixar em aberto a psicologia da não-psicologia do
brasileiro, Mário de Andrade aponta para uma concepção histórico-mitológica que
não implica nem na concepção cíclica do matriarcado pindorama de Oswald de
Andrade, nem mesmo numa teleologia recorrente nas leituras otimistas da
brasilidade. Mário então implode de vez todas as possibilidades de programação
da história brasileira, fortalecendo uma “história aberta”, como se ele efetuasse
aquilo que Jeanne Marie Gagnebin escreveu sobre Walter Benjamim:
Em lugar de apontar para uma ‘imagem eterna do passado’, como o historicismo,
ou, dentro de uma teoria do progresso, para a de futuros que cantam, o historiador
deve construir uma ‘experiência’ (Erfahrung) com o passado’. (Gagnebin, 1994, p.
8).
Realizar essa experiência a partir de lendas indígenas primitivas foi a
maneira com que Mário tentou sair das implicações progressistas da brasilidade e
da volta ou retomada de substâncias brutas fora de nosso tempo. Apesar disso,
Mário faz questão de não tratar Macunaíma como um índio puro e sim como a
mistura histórica que a modernidade concebeu em torno desse rebento, sem a
depuração da repressão social e cultural, puro desejo, como se ele fosse um Id
amalandrado. É o que diz nesta carta a Carlos Drummond de Andrade:
Meu Macunaíma nem a gente pode bem dizer que é indianista. O fato dum herói
principal de livro ser índio não implica que o livro seja indianista A maior parte do
livro se passa em São Paulo. Macunaíma não tem costumes índios, tem costumes
inventados por mim e outros que são de várias classes de brasileiros. (C&M, 2002,
p. 276)
165
A consciência de que era um moderno relatando um “fato” externo,
debruçado pelo seu olhar, situado no seu presente é o que diferencia Mário de
Andrade de seu colega modernista, Oswald de Andrade. Este não imaginaria que a
sua revolução caraíba e o índio antropofágico por ele “resgatado” seja uma
invenção sua, perpetrado por um homem urbano, burguês do século XX. É
verdade que Oswald não tentava por uma visão sentimental ou europeizada do
índio, como o fizera os românticos, mas sua utopia antropofágica, mesmo não
negando a modernidade industriosa e suas benesses, não conseguiu reconciliar as
divergências entre a necessidade de reelaborarão de uma concepção nacional
orgânica de literatura e a reavaliação das texturas primitivo-mitológicas que
punham em causa a brasilidade que tanto programavam em seus manifestos. A
devoração crítica por isso não tardou a estacionar sua produção na livre desforra
pública, no avacalhamento dos inimigos. A segunda dentição da Revista de
Antropofagia foi o completo agouro das tentativas de Oswald de Andrade de
responder aquilo que no seu manifesto de 1924 ficara por responder: como o
modernismo poderia dedicar-se à brasilidade tendo como modelo formal a
vanguarda, que já é em si mesma, cosmopolita e aberta às inovações, como
portanto reconciliar vanguarda e tradição sem perder-se em casuísticas retóricas e
especulativas? 1929 então testemunhou o degelo da Antropofagia, posto que sua
“revolução” não passou de degenerescências de seus mesquinhos julgamentos
públicos proto-estalinistas.
Mesmo Mário de Andrade, cujo nacionalismo ferrenho pode ser
acompanhado em suas cartas a Carlos Drummond, tinha consciência mais crítica
sobre a brasilidade modernista que se impunha como “obsessão”, como nos falou
Sérgio Milliet. É o que se vê nesta sua carta de 1929 a Manuel Bandeira:
Agora já não careço mais disso [de forçar o brasileirismo]; e até reconheço que um
bocado de água fria na fervura brasileirística não fará mal. Eu tenho muita culpa de
tudo o que sucedeu e se tivesse imaginado que a moda ficava tamanha de certo que
havia de ser mais moderado. Mas você mesmo me diga: você imaginava que das
minhas tentativas havia de sair a moda que saiu? E como saiu? (Andrade, s/d, p.
157)
Sem duvida é em 1928 que Mário se empenha para uma virada mais social
que fará da literatura um meio de participação mais integrada. É neste contexto
166
também que, com os ataques da Revista de Antropofagia, principalmente ao grupo
Anta, as inimizades vão tomar o teor mais que literário, partindo para as
disposições políticas que o nacionalismo da década de 1920 já espreitava como
campo natural de combate para as propostas que já não admitiam apenas querelas
literárias. É de 1928 a ruptura total entre Oswald de Andrade e Mário de Andrade.
O ano anterior, 1927, vê nascer um grupo conservador neo-simbolista,
situado em torno da revista Festa, reunindo homens como Tristão de Athaíde,
Murilo Araújo, Andrade Muricy, Tasso da Silveira, com uma visão
antivanguardista e antiprimitivista do modernismo que, apesar de negar o
cosmopolitismo atrelado às correntes modernistas europeias, pregava o
universalismo temático (Merquior, 1974, p. 94). Esses modos de ver o
modernismo, e a modernidade como sintoma de um novo tempo em ebulição
constante, arregimentariam em pouco tempo as opiniões políticas envoltas às
disputas que a década de 1930 irá impor para quem ousasse refletir as implicações
sociais que a cultura em geral e a literatura em particular poderiam inferir no
contexto entre-guerras.
Muito se questiona se a virada nacionalista dos modernistas fora realmente
uma reação contra o experimentalismo do primeiro momento. É indubitável que,
apesar de algumas das maiores obras do segundo modernismo ainda apresentarem
inovações estéticas provindas do primeiro momento, a partir de 1924 as
especulações em torno da consciência nacional estagnaram as pesquisas estético-
formais tipicamente vanguardistas. Mário de Andrade lamentará tal fato em 1942.
Mas mesmo romances como Macunaíma e os poemas-comprimidos de Pau-Brasil
não intensificaram a dinâmica sintético-inventiva que as vanguardas tanto
procuravam para alcançar o máximo de mobilidade expressiva; e ainda, as poucas
obras saídas a lume neste período que se encarregavam de arcar com a linguagem
de vanguardas, como um Minha nega Fulô, de Jorge de Lima, Um homem na
multidão, de Ribeiro Couto, ou de Chuva de Pedra e República dos Estados
Unidos do Brasil, de Menotti Del Picchia, revelaram-se inermes ao ponto de não
surtirem nenhum efeito maior de crítica.
O nacionalismo literário, como proposta de intensificação das pesquisas por
uma identidade sócio-psíquica e ideológica, reverbera dentro de uma obra ao
ponto de deslocá-la antes para a suposição de uma tese a ser ratificada — a de
uma identidade em si — do que para a forma e a inventividade narrativa e
167
construtiva, seja da prosa ou da poesia. Tanto é que essa literatura entisica-se,
dando lugar aos compósitos mais científico-filosóficos e psicológicos, do que
estritamente literários. A revista romântica Niterói se revelava uma revista de
“Ciências, Letras e Artes”; os da geração de 1870 previam mais a cientificidade
empírica da nacionalidade do que a sua compenetração estilística e imaginária
dentro dos quadros da literatura, e neste sentido o naturalismo academicizado
tivera seu papel. E ninguém há de negar a relação entre o primitivismo dos
modernistas e suas pesquisas folclóricas, psicológicas, etnográficas e filosóficas,
sem contar as linguísticas, como podemos mesmo ver no caso da Revista Nova.
Macunaíma, a maior obra do período tem suas dívidas com cada uma dessas
áreas.
Ainda assim o nacionalismo não pode ser considerado um “reagente”
antiexperimental, mas também não podermos crer, como se vê, que não houve um
retrocesso quanto à capacidade de criação expressiva que tomasse as inovações e
experimentações da linguagem como carro-chefe do segundo modernismo.
Merquior acredita que a conexão entre a arte moderna e o nacionalismo estético
pode ser explicada porque a ligação
residia na permeabilidade do decálogo estético da arte moderna ao projeto de
nacionalização da literatura, permeabilidade assegurada pelo moderno amor aos
primitivismos. Em outras palavras: a estética da arte moderna, convertendo o
oposicionismo cultural da grande arte romântica e pós-romântica em vontade de
ruptura cultura, valorizava a priori o deslocamento etnológico visado e conseguido
pelo nosso modernismo, ao abandonar o anticaboclismo de Graça Aranha, a
concepção negativa e pessimista dos nossos valores étnicos. (Merquior, 1974, p.
99-100)
Como se todo primitivismo tivesse conotações nacionalizantes. A resposta
não satisfaz a inclinação modernista para a brasilidade, já que o primitivismo
externo das vanguardas (europeias) era bem anterior à década de 1920. Mais
satisfatória é a sua suposição de que a superposição de arte de vanguarda e
nacionalismo possa ser consequência da situação
correspondente a uma fase de transição da sociedade brasileira; às décadas de
mutação da sociedade agrária e oligárquica, cada vez mais transformada pelo
advento da indústria, pelo incremento da urbanização e pela modernização das
relações sociais. (idem, p. 102).
168
Entre fins da do século XIX e a década de 1920, o país passa por crises
drásticas, na política, na economia e na sociedade. No Brasil, assim como no
mundo, a modernidade acentuava-se e dilatava-se, alcançando as regiões diversas
do globo graças às políticas imperialistas e de dependência de nações dentro da
divisão internacional do trabalho cada vez mais inflexível. Se existiu um ponto de
inflexão em que a modernidade, como fenômeno histórico e capitalista, mais se
retorce, aquele ponto no qual a curvatura marca um momento-limite entre duas
épocas, essa inflexão cobriria o período acima delimitado. É a partir das crises
econômicas e das debilidades das políticas liberais, das guerras mundiais e locais,
infladas pelas sequelas das interferências externas dentro de países dependentes,
das revoluções sociais que testavam o capitalismo como sistema, das artes que se
retorciam também nas intempéries de uma sociedade na qual a mercantilização e a
reprodução dessacralizam as obras e os artistas ao mesmo tempo que massificam
produtos artísticos, enfim, é dentro destas crises e projeções que o mundo pós-
Segunda Guerra, o mundo em que vivemos hoje, pode ser interpretado. No Brasil,
a década de 1920 e sua crise institucional foi o teste da verdadeira modernidade
que a República pareceu não ter revelado, como se ela tivesse sido um “República
que não foi”, nos dizeres de José Murilo de Carvalho.
Mas o grande exemplo crítico dessa questão veio “de dentro” do
movimento modernista. Com Carlos Drummond de Andrade aquelas projeções
pós-guerra tomam a face da condição agora crítica do modernismo: suas
mudanças, permanências e certa superação. É por isso que deixamos suas
interrogações para o próximo capítulo.
6 Drummond como experiência limite do modernismo
Carlos Drummond de Andrade é o problema-limite do modernismo
brasileiro, momento em que o movimento faz sua curva crítica. Talvez fosse esse
o fator que o fez sobreviver ao século XX como o maior poeta brasileiro, o mais
popular, mais vendido e aclamado. Ele foi a contração muscular da poesia
modernista pelo motivo de não se adequar totalmente a nenhuma das fases
modernistas. Não que ele não tenha sido um modernista como um Mário de
Andrade ou um Guilherme de Almeida, ambos exemplos de experimentação e
“classicização” do movimento. Admite-se aqui que Carlos Drummond foi
inflexível a qualquer leva modística que abateu os rumos das questões estéticas e
nacionalistas. Como podemos perceber em suas cartas para Mário de Andrade, a
adesão ao brasilismo não foi completa, sóbria, mas afetada pela exaltação e
conveniência, pela necessidade de afirmar-se apenas pela empolgação do
momento e pela cordialidade e diálogo ameno, embora crítico, com o amigo
paulista. As lições de Mário não eram absolutamente acatadas; e quando
Drummond aceitava suas propostas ele o fazia com um teor cético tipicamente
drummondiano que não agradava ao poeta paulista. Veremos, como exemplo
desse comportamento, a relação de Drummond com o tema nacionalismo literário
proposto por Mário de Andrade, como também a discussão do poeta mineiro
sobre a tradição literária, que é em si o debate sobre a tradição brasileira em
literatura.
Discutimos anteriormente que no primeiro modernismo praticamente toda a
tradição era deplorada pelos modernistas, taxada de passadista e destoada dos
novos momentos; o parnasianismo foi então eleito o arqui-inimigo. Em 1924
ocorre a grande reviravolta nacionalista que se encontrava com um passado
literário, com a lei Brasil, e com alguns cânones da literatura, no intuito de
promover uma cultura brasileira organicamente centrada nas manifestações
populares e folcloristas, sintomas de uma nacionalidade concreta. Para demonstrar
a discordância e a personalidade, Drummond aceita discutir tal questão sobre a
tradição literária e sua relação com o movimento modernista.
170
6.1. Drummond em estado bruto: 1922-1924
São poucos os trabalhos que tratam do jovem Drummond, aquele anterior à
década de 1930 e ao seu primeiro livro, Alguma poesia. Fator preponderante dessa
situação é a quase indiferença ativa de críticos que não se sentem atraídos pelas
primeiras manifestações do mineiro, ainda “disformes” e salpicadas com os brios
de juventude, tentando se impor literariamente e por isso, relegado às contradições
e intempéries da ingênua agressividade literária. Suas primeiras contribuições
jornalísticas são quase totalmente desconhecidas. Maria Zilda Cury (1998) foi a
que mais teve coragem de tratar por inteiro as críticas e participações do então
jornalista Carlos Drummond no jornal Diário de Minas na década de 1920. Cury
prioriza, então, as crônicas, os poemas e as críticas literárias que retratam um
Drummond participativo dentro da conjuntura de renovação das letras nacionais e
das discussões circunstanciais que pairavam no ar da inteligência brasileira, além
de sublinhar a liderança do jornalista diante do nascente grupo de jovens
modernistas mineiros e de retratar as mudanças e a modernização e renovação
cultural da cidade de Belo Horizonte. No entanto, seu trabalho dá uma sensação
de que o tesouro não fora tão bem gasto, que suas fontes não foram inteiramente
interpretadas. A autora mais descreve do que analisa as críticas de Drummond, o
que torna o trabalho mais parecido com um levantamento ou um inventário, coisa
que Fernando Py, tão trabalhosamente fez no seu Bibliografia comentada de
Carlos Drummond de Andrade (1985). Ainda assim a tese de Cury tem sua
importância crucial para os estudos do poeta por fornecer dados que comprovam
os dilemas da mente drummondiana que digeria aos poucos o verdadeiro teor das
propostas modernistas.
É por isso que Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade, de John
Gledson, também se torna um trabalho importante para compreendermos o fato de
que Drummond não fora um modernista nato, que nasceu literariamente já a
postos nas trincheiras das vanguardas (Gledson, 1981, p. 23). O caminho do poeta
mineiro, como o de Mário de Andrade e o de Manuel Bandeira, fora feito de lutas
intestinas e conturbadas discussões que o fizeram escolher e militar em torno de
uma só ideia, a que ele achava mais condizente com os novos ares de um país e de
171
uma cultura ainda por se desenvolver. Escreve Gledson, reafirmando, agora em
Influências e impasses, o caráter não-modernista do primeiro Drummond:
Antes do modernismo, ele foi fortemente influenciado por escritores como Álvaro
Moreyra, e sem dúvida por outros autores brasileiros e franceses das escolas do
simbolismo e do penumbrismo. Ele sentiu um entusiasmo arrebatador e quase
totalmente acrítico por eles, o que resultou em obras que não podem ser descritas
senão como imitações. (idem, p 2003, 34).
Diria Drummond bem mais tarde em entrevista sobre a relação com o seu
alvaromoreyrismo de juventude.
Álvaro Moreyra, com seu y civil, era para mim a própria encarnação da arte
delicada de escrever. Com o y e com as reticências que arrematavam sempre suas
frases. Como as reticências alongavam, refinavam, musicalizavam o bloco de
palavras, fazendo com que elas continuassem suspensas no ar, depois de concluído
o texto! Não me envergonho do meu alvaromoreyrismo descarado, de simples
repetidor canhestro, sempre aquém do modelo. Entre modelos de banalidade ou
mau gosto, vigentes na época, sua proposta sensível e irônica seduzia pela finura.
(Andrade, 2003, p. 1219)
O primeiro contato dos modernistas com o simbolismo é um dado
importante para ser ainda estudado com mais vigor. É crível que o simbolismo
teve uma relação íntima com as conquistas modernistas, como seus versos livres
já bem acentuavam. É de seu ramo carioca que surgem as primeiras manifestações
de uma arte nova, e nomes com os de Mário Perdeneiras, Olegário Mariano,
Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, sem falar de Manuel Bandeira; estes eram
tidos como fermentos de renovação artística desde a Primeira Guerra Mundial51
(Marques, 2011, p. 16). Neste sentido é possível contrapor a afirmativa de Alfredo
Bosi quando ele diz que
o Simbolismo não exerceu no Brasil função relevante que o distinguiu na literatura
europeia, na qual o reconheceram por legítimo precursor do imagismo inglês, o
surrealismo francês, o expressionismo alemão, o hermetismo italiano, a poesia pura
espanhola. (Bosi, 1994, p. 269).
51
Em dezembro de 1924, Mário de Andrade expõe para Manuel Bandeira seu mea culpa sobre a
relação entre o modernismo e as escolas “passadistas”, em especial o simbolismo: “Toda reação
traz exageros. Eu tive porque fui reacionário contra simbolismo. Hoje não sou. Não sou mais
modernista. Mas sou moderno, como você. Hoje já posso dizer que sou também um descendente
do simbolismo.” ANDRADE, Mário. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p.
40.
172
Bosi esquece o respeito e a admiração que os modernistas tinham pelo
solitário simbolista Alphonsus de Guimaraens, a quem Mário de Andrade visitara
já em 1917, quando de sua primeira viagem à Minas. Esquece também as palavras
de Oswald quando diz, na ocasião da morte do poeta mineiro, que este era “um
lutador da arte nova”: “Alphonsus de Guimaraens valia sem dúvida todos os
poetas da Academia Brasileira.” (Andrade apud Brito, 1978, p.21). É nesta
tradição penumbrista que Drummond primeiro se faz poeta, aguçando as
características reticências nos versos, o teor sombrio e melancólico, como o atesta
um dos primeiros livros compilados pelo jovem poeta, Os 25 poemas de triste
alegria, de 1924. Diz dele Antônio Carlos Secchin:
Atmosfera algo anestésica, de que, no início do século, Mário Perdeneiras se fizera
cantor, e que pouco depois, com mais rendimento estético, seria retomada por
Álvaro Moreyra, Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto. É nessa linhagem que
assumidamente se inscreve o primeiro Drummond. (Secchin, 2012, p. 14).
A verdade é que Drummond tinha, à época, suas afinidades eletivas entre o
simbolismo decadentista à carioca e o modernismo de vanguarda paulista. Não se
pode dizer por isso que, entre 1919 e 1924, ele era um ativista abertamente
modernista. Um artigo interessante que demonstra bem a relação do jovem
Drummond com o modernismo é o intitulado “Sobre a arte moderna”, escrito por
ele e publicado em 27 de outubro de 1923 na Para Todos, revista sob a direção de
Álvaro Moreyra. Nele podemos ver um Drummond cauteloso quanto às “estéticas
desvairadas”:
Consciente ou inconscientemente, todos nos sentimos presa do terrível desejo de
reformar (...) Os homens de hoje não têm mestres. Quebraram as tábuas da
sabedoria, e com elas fizeram um lume delicioso... Ninguém segue mais o exemplo
das sombras amáveis do passado. Para quê? Todos se contemplam no espelho e a si
mesmos elegem mestres... Há tanto discípulos quanto apóstolos. Isso é divertido,
mas exprime um trágico momento da alma coletiva. A arte moderna propaga-se
como um incêndio — e eu não sei, ninguém sabe qual o limite máximo de difusão
a que podem atingir essas ideias revolucionárias. (Andrade, 2012, p. 124)
O que pesa é a sensação de que as revoluções que as vanguardas vinham
empreendendo não tomassem nenhum rumo lógico, nem em suas expressões
próprias nem em suas atitudes iconoclastas. Existia o medo mesmo de que a
literatura, pelo menos como era conhecida na forma de uma mensagem
“coerente”, poderia acabar de vez nestas tentativas de revoluções permanentes das
173
formas. Acima de tudo, essas revoltas desestruturam a concepção de um artista
iluminado, senhor da inspiração, pois, lembrando Peter Bürguer, a perspectiva
vanguardista destrona a hierarquia entre artista e público, pois para elas nós todos
temos a capacidade de criar obras de arte; a vanguarda, nas suas manifestações
mais extremas, “contrapõe a esse caráter não apenas o coletivo, como sujeito da
criação, mas a negação radical da categoria da produção individual.” (Bürguer,
2008, p. 109).
É neste sentido que a tradição literária, com os seus mestres do passado, se
esfuma no ar na medida em que todos podem ser mestres de si mesmos, artistas
independentes de uma diretiva que impunha uma arte dada e previamente aceita.
Então, segundo Drummond, como não temer que toda essa “democracia” literária
possa pôr em risco o sentido mesmo da figura do artista, da literatura, do
trabalhador intelectual? No entanto, apenas aqui, não é certo ver nestas palavras
do crítico um elitismo que tivesse medo da massificação da literatura pela simples
razão de que o direito da população à literatura, em geral, nunca fez parte das
reivindicações literárias — ao contrário da reivindicação do povo na literatura —,
modernistas ou não, nem tampouco pensavam que isso seria possível e, portanto,
esse problema nem sequer passava pelas suas cabeças. Como sempre, a questão
era interna entre os artistas: se não se pode negar que essa renovação existe e,
ainda, se ele mesmo, Drummond, se identifica com o movimento de vanguarda,
como então garantir sua sobrevivência, sendo que ele poderia, por força de seus
princípios de experimentação contínua, cair no nada, na mera literatice fortuita
sem sentido e sem objetivo de um momento de crise? Se os mestres do passado
não mais existem o que eles, modernistas, estavam produzindo de definitivo? Se
existe a necessidade inconteste e angustiante de renovação permanente, então o
que era a arte moderna, como defini-la? Octávio Paz, ao definir essa condição
como tradição da ruptura, poderia, no caso brasileiro, chamá-la de academização
da ruptura, i.e., a experimentação sem tom construtivo, apenas repetitivo e por
isso entediante, digamos mesmo, conservadora, no sentido de mudar para
permanecer ou permanecer somente na mudança sem sentido. Esse era o medo de
Drummond. Como vimos, era para resolver essa questão que o segundo
modernismo vinha à tona.
No mesmo artigo, Drummond continua o seu questionamento sobre a
perenidade do movimento.
174
O dia é cheio de amargura, e, pois, as visões do artista moderno não o são menos.
Tais criações terão — quem sabe? — a duração do nosso instante de desvairismo.
Mas eis aí a hipótese audaciosa, pois não é lícito prever o quanto viverá uma obra
de arte. Um minuto de beleza vale por toda a eternidade... Permanecerá a arte nova
somente enquanto for desequilíbrio social a única verdade de fácil constatação?
Ou, restabelecido o sossego dos homens, continuará ela como uma sublime vitória
do espírito sobre o tempo? Não se sabe... Tudo é possível... (Andrade, 2012, p.
125)
Ele aí teme que a arte modernista seja apenas um momento de
“desvairismo” contextualizado pelo mundo pós-Primeira Guerra52
. É neste sentido
que a adesão à uma estética que parecia tão pontual, momentânea, e fruto
específico de uma crise social e política global, parecia ser perigosa, dado que,
pela mesma instabilidade do momento, poderia sobrevir uma era de paz social e,
consequentemente, segundo a lógica apreensiva de Drummond, da ascensão de
uma arte harmônica, séria e acadêmica, de uma arte classicizada, pois naqueles
tempos “tudo é possível”. Por isso é interessante notar — por contraste com a
crítica de então, como essa de Drummond — que a arte de vanguarda era de tal
forma revolucionária, experimental, anti-pictórica e não-naturalista, que qualquer
mente, aberta o minimamente possível, olhava-a como uma expressão caricatural,
caótica, excêntrica, tipicamente paranoica, para tomar de empréstimo o termo
usado por Monteiro Lobato. É por isso que Drummond temia que, ao produzir
literariamente obras que expressassem tal técnica, cairia no ridículo e na
improdutibilidade, se adentrasse um novo período estável no mundo.
Corroborando com John Gledson, a conversão de Drummond ao modernismo foi
hesitante, tateando cautelosamente a segurança de que era exatamente aquela a
arte de vanguarda que se coadunaria numa arte efetivamente coerente e, acima de
tudo, estável ao ponto de garantir a sobrevivência de quem a aderisse (Gledson,
2003, p. 60). É o que ele, Drummond, confessa mais tarde numa crônica de 1927:
Me sinto contente, Martins de Almeida, meditando na responsabilidade que tenho
neste acontecimento [a aceitação do modernismo por Almeida]. Você teimava em
não admitir as expressões novas da arte e da literatura que começavam a aparecer
52
A leitura de Alceu Amoroso Lima em 1919 no contexto europeu era outra: “A influência neo-
naturalista da guerra sobre a literatura, em França, não parece prosseguir com a Paz. O que
aconteceu com a poesia, durante a guerra, parece dar-se agora com toda a literatura. Nota-se, em
França, um renascimento do romance de aventura, da literatura de imaginação, da fantasia e do
exotismo. (...) A guerra sacudiu a literatura trazendo-a do cubismo quase ao naturalismo, e
levando-a depois à mais desmedida fantasia.” LIMA, Alceu Amoroso. Estudos literários. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 87-88.
175
no Brasil, expressões que também eu ainda não assimilara bem, mas pelas quais
tinha uma larga simpatia. Mas quando eu o peguei ali no Bar do Ponto e o levei ao
Grande Hotel, onde o pus em contato com os viajantes mais inteligentes que já
estiveram em Minas Gerais — Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e
Blaise Cendrars — você não pode ter deixado de sofrer a forte ‘ação da presença’
daquelas personalidades tão agressivamente novas e tão fascinadoramente
irradiantes. (Andrade apud Gledson, 2003, p. 309)
De acordo com o artigo, o modernismo também não foi instantaneamente
aceito pelos mineiros. Um exemplo é Abgar Renault que, a exemplo de
Drummond e Martins de Almeida, não conseguia entender bem o real objetivo do
modernismo: “De início, não me despertou entusiasmo o movimento modernista.
Não o compreendi bem; por deficiência crítica ou por preconceito recebi-o
inicialmente como um processo de alteração, ou melhor, de destruição formal.”
(Renault apud Marques, 2011, p. 22).
São vários os trabalhos que mostram como o modernismo mineiro tinha
uma relação específica com as vanguardas modernas, e como eles souberam se
adequar ao espírito revolucionário da estética vanguardista com o chamado mito
da mineiridade, conservador e tradicional. Ao fazer uma análise sociológica do
movimento modernista mineiro, pautando-se pelas condições sociais dos
escritores e pelas afinidades pessoais, Fernando Correia Dias, aponta três
características do ideário mineiro no grupo: a tradição repensada, a conciliação de
lealdades e o apelo à razão. Apesar de uma leitura mais ou menos estrábica dos
textos expostos nos números d’A Revista, veículo dos modernistas mineiros, ele
afirma que os mineiros não tendiam a romper com o passado intelectual da região,
mas sim valorizá-lo criticamente:
Em relação ao passado literário em Minas, entendo que os modernistas locais
tiveram uma consciência muito nítida da necessidade de preservação da
continuidade histórica da vida intelectual. Retomaram, numa visão compreensiva,
as obras do árcade, assim como, num outro plano, a de Aleijadinho. (Dias, 1975,
p.172-173)
Por outro lado, esses modernistas faziam conciliações de lealdade entre a
relação emotiva com a região mineira, o país e o cosmopolitismo — reunindo
regionalismo, nacionalismo e universalismo. O que fica nesta análise de Dias é a
inferência de que a tradição e o teor emotivo de valorização da região são os
fatores da mineiridade, interferindo e condicionando as contradições de um
176
movimento estético tecnicista, urbano e universal e de uma “característica ideal”
de um povo cujos costumes regionais influiriam na visão de mundo, montanhesca,
“caipira”, roceira, interiorana etc. que formariam o “caráter mineiro”. Neste
sentido, assim escreve John Wirth sobre a ambiguidade dos modernistas mineiros:
Em relação à Minas, tinham um sentimento de ambiguidade: deploravam seu atraso
e procuravam as fontes de sua vitalidade na arte, arquitetura e língua. Basicamente,
nutriam simpatias pela tradição, o que refletia tanto suas origens de cidade pequena
quanto o ambiente de peso mas provinciano de Belo Horizonte. (Wirth apud Cury,
1998, p. 63)
Por esta perspectiva que podemos ter outro olhar sobre a angústia de
Drummond? É dubitável. Mas no mito da mineiridade existia uma conturbação da
modernidade brasileira. Ele é a dialética entre o local e o universal, escancarado-o
como uma fratura exposta. Assim é que afirma Antônio Candido:
Como acontece na província, fez parte da formação deles algum atraso de gosto
misturado ao interesse ativo pela novidade. Assim, ainda poderiam discutir
longamente sobre quem era melhor, Eça de Queiroz ou Camilo Castelo Branco, e
se impregnavam de Anatole France. Mas absorviam igualmente textos mais
chegados a uma certa pré-modernidade (...) De tal modo, que receberam e
adotaram com sofreguidão a Semana de Arte Moderna (...) (Mello e Souza, 1993,
p. 12)
A inquietação estava expressa pela própria capital mineira, Belo Horizonte,
projetada aos modos haussmannianos pelo engenheiro Aarão Reis; planejada em
linhas e traçados regulares, a cidade era a “poesia da República”, como escreveu
certa vez João do Rio, pois ela encarnava os ideais positivistas de progresso,
racionalização e ordem. Mas nada disso tirava a sensação de marasmo de uma
cidade incrustada no interior do país, ainda persistente num provincianismo, num
ambiente que ainda revivia a nostalgia dos momentos áureos do passado
minerador. Ao analisar o mito da mineiridade, Ivan Marques, afirma que essa
ambivalência resultava numa visão especial dentro do campo das elites:
As elites modernizadoras se esforçavam para negar o atraso, mas não a tradição.
Embora sonhassem com o progresso, acharam meios de resgatar as origens
mineiras, enraizando os ideais republicanos na malograda Inconfidência.
(MARQUES, 2011, p. 32).
É o que também pensa Guilhermino César, num artigo de 1982:
177
A aspiração do novo, do diferente, andava no ar. Por outro lado, atendo-me a Belo
Horizonte, a própria capital mineira, adrede construída, pedra sobre pedra, era por
si mesma um sinal premonitório; convidava à revisão do passado. (César apud
Cury, 1998, p. 78).
A condição de um modernismo provinciano inflacionava ainda mais as
possibilidades de pensar uma arte de vanguarda essencialmente cosmopolita
dentro de um contexto histórico em que a modernidade se fazia pelas balizas do
nacionalismo ou do “regionalismo”. Por isso, o exemplo dos mineiros, e de
Drummond especialmente, serve bem para discutirmos as nuances do modernismo
brasileiro; é por isso também que tomamos Drummond como consciência-limite
das fraturas e discussões modernistas. Se Merquior afirma que o modernismo foi
fruto de um país em transformação, em transição, fazendo com que unisse
primitivismo e vanguarda, não seria improvável se ele também afirmasse que
Drummond, pela sua própria saga íntima,
exala consciência histórica. A parábola do fazendeiro do ar é metáfora de nossa
evolução social. Filho de fazendeiros, sentindo e sofrendo a grande cidade dos anos
mais tempestuosos do seu século, ele captou como ninguém o significado
emocional de nossa complexa metamorfose de subcontinente agrário em sociedade
sócio-urbana. (Merquior, 1990, p. 305).
Mas Drummond conseguira sondar tal perspectiva sem ao menos aderir ao
primitivismo, como o fizera Mário de Andrade e Oswald de Andrade e outras
correntes, excetuando-se o já isolado Graça Aranha. Não precisou de uma
proposta que aderisse à mitologização da cultura nem à busca de uma essência
brasileira que tivesse na origem étnico-popularesca o dado para a observação
crítica das condições brasileiras de entrada no “concerto das nações modernas”,
como tão ansiosamente queria Mário de Andrade. Neste sentido, as palavras de
Luiz Costa Lima nos corroboram:
Apesar da marcante influência da sensibilidade de Manuel Bandeira, apesar da
amizade com que Mário o distingue, Drummond, como seu conterrâneo Murilo
Mendes, se distingue pela apreensão consequentemente realista. Contra uma
projetiva mítica, a sua obra propõe uma projetiva realista, marcada até às entranhas
pela ideia da corrosão que desgasta seres e coisas. (Lima, 1995, p. 133)
A posteridade deu cargo às provas desses caminhos tortuosos de ambos os
lados, e hoje podemos ver Drummond como um poeta mais “universal”, traduzido
178
e estudado em muitas línguas, do que os paulistas primitivistas. É, no entanto,
claro que a “vitória” desse modernismo drummondiano tem um caráter
denunciatório do que realmente sobrou como tradição modernista viável à
literatura. Neste sentido, o nosso trabalho tem um caráter apenas introdutório ao
problema, que parece ser maior do que o nosso fim pode suportar.
Voltando ao artigo “Sobre a arte moderna”, ele o encerra de modo reticente
e ainda apreensivo, deixando a questão sobre as verdadeiras capacidades do
modernismo em aberto:
Insisto em dizer que [o modernismo] é uma arte de luto e de lágrimas. As emoções
dionisíacas, de força e volúpia, que se refletem nos corações dos artistas de hoje,
são o contingente pessoal. Mais ainda nas páginas de maior alegria erra a tortura
coletiva. Libertação! Libertação! Mais do que nunca, é impossível libertar-se.
Entreguemos ao destino, senhor de mãos diferentes, o conto indeciso do nosso
futuro... A terra continuará a rolar, com igual indiferença... (Andrade, 2012, p. 125)
O ceticismo é completo e até certo ponto frustrante. Ao ligar o modernismo
apenas às agruras do pós-guerra, Drummond não vê o movimento como outra
coisa senão a mimese e o produto direto da barbárie, mesmo tendo em conta que
“as estéticas desvairadas já se faziam notar aos olhos antes da conflagração.”
(idem, p. 123). Com um certo apelo humanista, o crítico se inquieta mais ainda ao
pensar que a adesão ao modernismo poderia implicar na conveniência com a
“tortura coletiva”, sendo que ela era uma “arte de luto e de lágrimas.” Incrível
notar tal debilidade crítica de quem via as vanguardas europeias sem seu teor de
criticidade à sociedade burguesa, a mesma que produziu aquela barbárie bélica.
Ainda assim, é notório que a descrença do arremate final no artigo tenha em
mente a possibilidade de fracasso total do movimento, que pregava a liberdade e a
alegria dionisíaca sem ter em conta as responsabilidades sociais e políticas que o
contexto impunha. É como se a liberdade estética não fosse liberdade se não
acompanhasse a liberdade coletiva. Neste sentido, Drummond parece ter em
mente a questão participante do artista modernista, pois a abstinência de suas
responsabilidades estéticas numa sociedade deveria ser acentuada e tratada como
autocrítica necessária para que assim a arte também não concorresse ao vale de
lágrimas das mazelas sociais. Seria demais prever aqui o Drummond de A rosa do
povo, como um crítico adepto do avantlaletrismo poderia supor, mas é não menos
179
interessante notar como o apelo humanitário foi algo raro nesta fase do
modernismo.
Mas um certo clamor pela universalização da arte pode ter seus momentos
mais altos neste Drummond. É o que ele pede num artigo de 10 de janeiro do
mesmo ano do texto acima analisado.
O poeta não deve exprimir a sua própria dor, e a sua melancolia, e o seu prazer,
mas antes, acima de tudo, o prazer, a melancolia e a dor dos outros seres. O espírito
é universal e infinito não se contém dentro de si mesmo: clamo por um espaço mais
dilatado que as estreitas paredes da carne. (Andrade apud Cury, 1998, p. 123-124)
Estranho que um poeta tão individualista, como o conhecemos hoje, tenha
escrito tais palavras, embora essa seria a condição de uma personalidade poética
que teria em si um dilema, segundo Otto Maria Carpeaux:
A poesia de CDA exprime um conflito dentro da própria atitude poética:
transformar um arte toda pessoal, a mais pessoal de todas, em expressão de uma
época coletivista. Ou, para falar em termos pessoais: guardar, no turbilhão do
coletivismo, a dignidade humana. (Carpeaux, 1977, p. 146).
Mais estranho ainda é que, lendo o artigo “Sobre a arte moderna” e sua
apreensão sobre as condições do modernismo como arte renovadora viável, nos
surpreendemos com a constatação de que, já em 1922, Drummond
contraditoriamente se punha na trincheira das vanguardas modernistas. Nos
artigos do Diário de Minas, sua adesão parece ser confiante e militante. Em crítica
de 30 de setembro de 1922 ao livro Os condenados, de Oswald de Andrade, dizia
ele:
O futurismo, para vencer de fato em semelhante meio, terá que lutar com
dificuldades assombrosas. Veio encontrar-nos em marcha decidida para a
retaguarda; a soldadesca vai recuando sob o comando do general Coelho Neto, do
cel. Viriato Correa, do brigadeiro Catullo Cearense, e vários militares. Quando o
exército chegar ‘à extrema curva do caminho extremo’ estará morta a literatura
nacional. (Andrade apud Cury, 1998, p. 73)
A literatura morta comemorada é a da tradição literária, dos mestres e
cânones, do regionalismo grosseiro. Aqui Drummond parece não hesitar sobre a
capacidade crítica e desafiadora do movimento modernista, atentando à sua
coragem literária de enfrentar os ídolos da literatura nacional. Ele está coerente
180
com aquilo que vimos sobre o primeiro modernismo, sabe que a vitória dos novos
é certa e que ela trará uma mudança tão drástica a ponto de criar uma outra
literatura, diferente de todas as anteriores. Também está de acordo com a série de
famigerados artigos de Mário de Andrade, que em 1919, os publicou sob a
reunião do título, “Mestres do passado”:
Tolos e Malditos! Cuspimos sobre vós a nossa maldição e as risadas alumbrantes
da nossa cólera, o despeito divino das nossas impaciências! (...) Que o Brasil seja
infeliz porque vos criou! Que a Terra vá bater na Lua arrastada pelo peso dos
vossos ossos! Que o Universo se desmantele porque vos comportou! E que não
fique nada! Nada! Nada! (Andrade, 1978, p. 309).
Esta fase, como vimos, é ainda de tomar posições, de assumir querelas, de
gritar para ser ouvido e tomar posse das atenções do público.
Numa cidade como Belo Horizonte esse tipo de grito ainda se fazia em tom
angustiante para um jovem que via nela o tédio da modorra provinciana e
conservadora, como escreve em uma crônica de 27 de janeiro de 1921:
E esta cidade do Tédio. Chamaram-na de Belo Horizonte, devido a uns poentes cor
de tudo que incendeiam o nosso céu, mas qual! não pegou. Nem podia pegar. Que
quer dizer Belo Horizonte? Nada. (Andrade apud Cury, 1998, p. 62).
A sensação de que algo precisava ser renovado nas letras brasileiras foi
comentada em entrevista de 1982:
Nós não estávamos satisfeitos com o que havia lá. Não só em Minas como no
Brasil, a literatura tinha sofrido certo declínio. E pegando os livros publicados em
1920, 21 e 22, verificamos que não havia nada de novo, realmente, no Brasil.
(idem, p. 142).
Mas o mesmo artigo sobre Os condenados de Oswald de Andrade ainda
revela certa impaciência e incerteza quanto à verve do modernismo brasileiro.
Que quer dizer, afinal, o futurismo de São Paulo? A revista intitula-se: ‘mensário
de arte moderna’. Eis uma sábia denominação. Arte moderna quer dizer uma
porção de coisas; confio que queira dizer também futurismo. Até agora parece
difícil analisar a significação desse movimento. Pelo motivo muito simples de
serem poucos os frutos que ele nos tem oferecido. (idem, p. 71)
181
Como se vê, a resistência de Drummond quanto à capacidade de fixação e
força do modernismo ainda parece abalada pela simples constatação de que ainda
não se produzira obras suficientemente modernistas para serem aclamadas e
vangloriadas como a nova tendência que iria acabar com a literatura nacional
predominante. Como ser “os novos” se não havia nada de novo produzido? É essa
a questão de Drummond, pois sua sede de ver a prova cabal da arte moderna que
poderia calar os críticos passadistas ainda não estava elaborada, sintetizada em
arte pronta e acabada. É neste sentido, de concretização do pensamento
viabilizando a coerência do movimento, que Drummond ainda escreveria mais
tarde o artigo anteriormente visto, “Sobre a arte moderna”. Parecia que mesmo um
ano depois, mesmo com a publicação do saudado Paulicéia desvairada e seu
manifesto-mor do modernismo de primeira fase, o “Prefácio interessantíssimo”, o
crítico mineiro ainda não via no modernismo uma força eficaz de criação
renovadora. Mesmo o livro do qual a crítica de Drummond se detém, Os
condenados, não dava cabo das suficiências experimentais e estéticas modernistas
que tanto o crítico exigia do grupo paulista, o que é estranho já que muitos críticos
apontavam o alto teor de vanguardismo no romance de Oswald, como o então
progressista Alceu Amoroso Lima: “Sente-se, nesta reação contra a ordem
artificial, a influência do cinema como a proclamou Epstein ou como a ensaiou
Jules Romains.” (Lima, 1972, p. 205. Grifos meus).
É deste modo que vemos o quanto Drummond se sentia indeciso, dada sua
incapacidade de deter neste momento os verdadeiros sentidos pelos quais o
modernismo vinha passando. Tanto é sua incompreensão que, em outro artigo de
30 de setembro de 1922, ele ainda discuta a questão do futurismo no grupo de
renovadores da arte, situação já polemizada e discutida entre Mário e Oswald em
1919. Defendendo o futurismo, escreve o crítico mineiro:
Aliás, futurismo é, ou pelo menos, deve ser ânsia de liberdade, arrancada para o
azul, guerra aos velhos processos, alma nova: exaltação. Quem sofrer, viver e gritar
é futurista, podendo, indiferentemente, achar o Sr. Nicolas Beaudin um gênio ou
uma zebra, o Sr. Blaise Cendrars um deus ou um cavalo (para mim, ambos são
deuses e gênios). (Andrade apud Cury, 1998, p. 70)
Alguns meses depois, num aforismo, ele se confessava no mesmo Diário de
Minas: “Os futuristas, afinal, não passam de macacos que caíram do galho... (Esta
opinião é de outro macaco).” (idem, p. 185).
182
Sua opinião não será a mesma em 1924, quando de sua “entrada” no
modernismo, embora ainda não no modernismo nacionalista do momento e de seu
contato real com o movimento por ocasião da caravana paulista e suas conversas
com Mário de Andrade. Agora o futurismo é um termo a ser depurado, como
escreve em artigo de 07 de fevereiro daquele ano:
Se há no Brasil um grupo que honestamente se opõe ao futurismo, este é, sem
dúvida, o grupo audacioso de São Paulo, que vem pelejando com tanta beleza pelo
ressurgimento da literatura no Brasil. Ele não se filia a nenhuma escola; quer tão
somente — peço atenção, meus senhores! — fazer arte nova, novíssima. Que ideal
mais alevantado e menos sectário? Mas essa boa gente dos periódicos nacionais
não compreende semelhante coisa... Confesso que, mais de uma vez, ao levantar-
me, tenho corrido ao espelho, e, num exame ansioso das linhas do meu rosto
perguntando a mim mesmo: ‘Serei futurista?’ A crítica desse país é essencialmente
confusa, e revoluciona de tal modo as límpidas noções que a angustiosa pergunta
me tem penetrado fundamente coma lâmina fria... No Brasil, dorme-se modernista
(sem escola) e acorda-se futurista (escravo do Sr. Marinetti!). (idem, p. 69-70)
Quando Drummond resolve um questionamento pessoal quanto ao
modernismo, ele se depara com outro que o próprio grupo vinha discutindo por
um tempo, o do nacionalismo. É incrível pensar como um crítico tão perspicaz
não conseguia acompanhar o vaivém do movimento do qual tinha certa simpatia.
Mas esse deslocamento já tinha um histórico, pois mesmo a Semana de Arte
Moderna não tinha surtido nenhum efeito na pacata cidade de Belo Horizonte,
como o próprio Drummond confirmou, alguns anos depois:
Tanto que posso lembrar-me, o pequeno grupo de rapazes mineiros ‘dados às
letras’ não tomou conhecimento. Explica-se: só por acaso líamos jornais paulistas,
e os do Rio não deram maior importância ao fato, se é que deram alguma. (idem, p.
76).
A influência da literatura e do meio carioca era patente no primeiro
Drummond adorador de Álvaro Moreyra; nos anos de 1922 e 1923, o grupo
paulista tem sua atenção despertada, principalmente com a publicação do romance
Os condenados de Oswald e do Paulicéia de Mário. Mas somente em 1924
Drummond realmente entra de fato na consciência modernista e de suas cisões de
então, mormente pela caravana paulista em Minas e pela publicação do
“Manifesto da poesia pau-brasil”. Ainda assim, o nosso crítico, tendo resolvido
suas dúvidas quanto à adesão completa, vinha formatado intelectualmente por
183
outra condição que o colocaria na corda bamba das discussões do momento:
Drummond era um universalista e francófilo sem restrições. Ele não cederia a
nenhuma necessidade nacionalista ou folclórico-indiano-mitológico que Oswald
colocava então em jogo.
Como vemos, a sensação de estar deslocado, marginalizado, um outsider é e
continuará sendo posteriormente, a marca de sua trajetória poética, mesmo quando
de sua participação política ou de sua renegada inclusão e contribuição dentro do
modernismo nacionalista, sua atitude fora a de “um gauche tímido que assiste a
tudo à distância” (Sant’Anna, 1992, p. 23), cuja tortuosidade (Marques, 2011, p.
34) tinha por certo uma característica crítica, quando o ceticismo predominava,
mas também dificultava sua visão totalizante dos processos dos quais ele mesmo
se entretinha. Antonio Candido definira essa característica drummondiana como
uma inquietude particular presente em suas obras:
O bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por inquietudes poéticas que
provém uma das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egotismo profundo,
tem como consequência uma espécie de exposição mitológica da personalidade (...)
Trata-se de um problema de identidade ou identificação do ser, de que decorre o
movimento criador da sua obra na fase apontada, dando-lhe um peso de inquietude
que a faz oscilar entre o eu, o mundo e a arte, sempre descontente e contrafeita.
(Mello e Souza, 2011, p. 70)
A evasão era uma característica de seu individualismo, mas ela gera uma
angústia da qual Drummond sempre fora portador, como escreve Merquior em seu
Verso Universo em Drummond:
No fundo, o evasionismo moderno conhece sua impotência; sabe-se ferido de
morte pela ‘vacuidade do ideal’. Assim, não lhe resta senão o gosto agridoce da
evasão sem destino, a embriaguez da rebelião sem amanhã (...) O individualismo
coriáceo de Drummond insiste na solidão irredutível, moral e socialmente
irrecuperável (...) Ele será sempre um outsider, o que caricatura o general em plena
guerra, sob a ‘indignação cívica’ dos outro... (Merquior, 1976, p. 19-20)
Num primeiro momento, o gauche fez então a caricatura da tendência
modernista nacionalista, lutou com unhas e dentes para defender uma arte livre,
aplicou na medida sua crítica impecável contra qualquer escolarização do
modernismo, fato mesmo que o fez criticar posteriormente as associações do
movimento brasileiro com o futurismo italiano. Mas mesmo em 1924 o demônio
do ceticismo ainda o atacava, e a adesão ainda era frágil: ele ainda estava em
184
transição, que só seria realmente ultrapassada depois que suas correspondências
com Mário de Andrade são iniciadas. No entanto, a transição dizia respeito
justamente às novas condições e imposições do movimento; suas fissuras e
polêmicas podem ser sintomaticamente reveladas num artigo publicado por
Drummond em duas partes na Gazeta comercial, de Juiz de Fora, em 20 e 22 de
julho de 1924, intitulado “As condições atuais da poesia no Brasil”. O artigo, bem
ao gosto machadiano de panoramizar a literatura da atualidade, é considerado
como familiar ao famoso “Notícias da atual literatura brasileira (Instinto de
nacionalidade)” do bruxo do século XIX. (Gledson, 2003, p.305) (Marques, 2011,
p. 96).
Drummond começa o artigo com uma homenagem a Olavo Bilac, um dos
“mestres do passado” atacado por Mário de Andrade, fato que causaria
estranhamento a quem então se dedicava exclusivamente à arte nova.
Emudecida a lira gloriosa de Olavo Bilac, operou-se no país uma grande
transmutação de valores poéticos. Bilac foi, mesmo, o único artista de moldes
parnasianos a conservar-nos o nome livre de irreverências. Preservou-o alta
nobreza dos seus versos, que tão cedo não serão esquecidos. Se é volúvel a nossa
memória, nem por isso o cantor de Fernão Dias Paes Leme terá a sua obra exposta
ao sarcasmo dos vindouros. É que ele nos deixou mais de uma coleção banal de
versos parnasianos: deixa-nos o arrebatamento tropical, o gosto enamorado da
terra, e ao fim, o seu cansaço, que era o cansaço de um filho dos trópicos. Destino
maravilhoso, o desse poeta! Não o podemos conceber de outra maneira. Sente-se
que Olavo Bilac preencheu o seu minuto com o máximo de ação e de sentimento, e
deixou a vida desdobrar-se como uma sucessão de paisagens novas, ao longo de
uma viagem ardente mas orientada. Moço, gozou e sofreu os espasmos e delíquios
de um temperamento de fogo. Foi vivendo, experimentando os homens e as coisas,
indagando, pedindo, cantando. Ao morrer, poderia afirmar que não falsificara os
seus destinos. Respeitamo-lo com razão. E quando não agissem outros motivos, sua
obra seria considerada ao menos pela feição nacionalista de muitos dos seus
poemas, sabido que nacionalismo é paradoxalmente, uma tendência de peso na
moderna literatura brasileira. (Andrade, 2012, p. 133-134)
A extensão da citação é valida para tomarmos conta da sensibilidade e quase
comoção das palavras desse animador da revolução da arte, da renovação estética
modernista. A data do artigo é crucial para entendermos tais palavras e suas
colorações ambíguas. É preciso reportar ao fato de que Drummond homenageia ao
talvez último grande poeta brasileiro que talvez tenha levado consigo “toda” uma
literatura brasileira que parecia não voltar mais, e ao mesmo tempo deixou uma
semente que, de certo modo, seria seu triunfo póstumo: o nacionalismo do qual o
príncipe dos poetas defendera e que agora era erigido como tendência da literatura
185
modernista. Ironia do destino talvez essa que fazia ligar o mestre do
Parnasianismo ao Modernismo. Mas Drummond, como a dobra ou consciência-
limite do modernismo, conseguira aí, como ninguém antes ou depois, ter tal
consciência e pescar uma similaridade que faria constranger aos seus colegas
paulistas. E antes de tudo, tal passagem era um tapa nos detratores do passadismo,
de Oswald à Menotti, de Milliet a Mário; resposta muito bem exposta quando
Drummond escreve que o nacionalismo é “paradoxalmente”, a nova tendência
modernista. Primeiro como tragédia depois como farsa: os “passadistas” então não
pareciam tão diferentes dos “renovadores” da arte. É como bem escreve Abel
Barros Baptista ao analisar a Formação da literatura brasileira, de Cândido:
O paradoxo [da Formação de Antonio Candido], de resto apenas aparente,
reproduz aquele que encontramos no próprio movimento modernista, que em certo
sentido também não foi modernista: no sentido em que, ao comprometer-se com a
construção nacional, se inscreveu na continuidade da construção nacional, quer
quando surgiu como reinteração do gesto fundador romântico, quer quando evoluiu
para o ‘projeto ideológico’ com desvalorização da experimentação e dissolução da
ideia de vanguarda. (Baptista, 2007, p. 66)
Mas não fora Mário de Andrade que, no artigo sobre “Os mestres do
passado”, escrevera que Olavo Bilac era o deputado da Beleza, defendendo-a
“desde que se considere a Beleza segundo a definição escolástica ‘o que agradou’.
E Bilac agradou. Foi um encantador. Todos os artifícios da Beleza soube reunir
em seus versos.”? (Andrade, 1978, p. 284). Como vemos, até mesmo Mário de
Andrade se revelava ambíguo quanto à Bilac, e ele mesmo reconheceria os
exageros de tal artigo contra os “mestres” passadistas em carta a Manuel
Bandeira, datada de 11 de maio de 1929:
Sou como todos os outros, já confessei publicamente erros morais meus,
desfazendo um mal que fizera antes (caso dos Mestres do Passado que depois pela
América Brasileira confessei ser falso porque de propósito eu apresentara os
defeitos e ocultara as qualidades dos em questão)...53
(Andrade, s/d, p. 154).
53
São interessantes as palavras de Manuel Bandeira sobre a sua relação com os “passadistas” e
com os modernistas: “Não quisemos, Ribeiro Couto e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de
Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente os mestres parnasianos e simbolistas, nunca
repudiamos o soneto nem, de modo geral, os versos metrificados e rimados.” BANDEIRA,
Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p. 65.
186
O tom de deferência de Drummond pode ser também considerado apenas
como uma forma de agradecimento pela “transmutação” a que, por ora, operava
na literatura brasileira por ter-nos deixado o “arrebatamento tropical” da terra. É
certo então afirmar que, numa época que abriria terreno para as reabilitações
literárias de autores que cantaram verdadeiramente a terra natal brasílica, por que
não aceitarmos as colaborações do nacionalismo olaviano, mesmo sendo ele um
parnasiano afeito ao formalismo tantas vezes execrado pelos modernistas de
primeira fase? Enquanto Paulo Prado fazia ecoar um Casimiro de Abreu nas
poesias-comprimido reunidas no livro Pau-Brasil, por que não remontar ao autor
de “Via Láctea” o sabor tropical da arte nacionalmente modernista? São questões
que parecem apenas especulativas. Mas a única coisa certa a dizer é que
Drummond, assim como Mário, tinha desde o começo um apego ao parnasiano, o
que ele, o mineiro, confessaria em uma entrevista na década de 1980:
Soneto de Bilac era como a vária do Jornal do Comércio, esta no plano político,
aquele no plano literário. O mestre falou? Turibulemos. Sempre amei Bilac,
embora não o confessasse no período modernista. (Andrade, 2003, p. 1215-1216.
Grifos meus)
O símbolo, no entanto, não deixa tomar o artigo de 1924 como uma
reabilitação. Prova disso é que, como quem quer erigir uma tradição, Drummond
exclui uma para dar voz à outra. É o que ele faz com o outro poeta parnasiano,
Alberto de Oliveira. Continua ele:
Já o mesmo não acontece com o Sr. Alberto de Oliveira, que vem sendo
impiedosamente atacado, e a quem, em boa justiça, não poderíamos desejar melhor
sorte. Em nenhum outro poeta a lira parnasiana foi mais insensível, nem
correspondeu menos à nossas necessidades espirituais. Condeno-o a natureza
mesma do seu espírito: espírito de escola, limitando ao tempo, e que, logicamente,
passou com a sua escola e o seu tempo. (Andrade, 2012, p. 134)
Drummond aqui ressoa a voz de Mário, no artigo deste sobre os “mestres”:
O Sr. Alberto de Oliveira foi perseguido por uma grande infelicidade na vida: não
teve que dizer. Mas era poeta. E como não tinha que dizer, sentiu os seus
amorezinhos, as suas verdadezinhas... Quando não sentia coisa nenhuma, escrevia
poemas parnasianos. (Andrade, 1978, p. 274).
187
O crítico mineiro faz ali o mesmo que irá fazer em outro momento que
analisarei: pôr fogo a um nome para dar voz apenas a uma direção específica e daí
erigir uma tradição literária estabelecida que terá como pano de fundo os debates
modernistas atualizados. Aquele que canta a terra tropical merece o respeito, mas
o que não atende às “nossas necessidades espirituais” deve ser escachado e
repelido, “onde nenhum curioso irá desencavá-lo”. Drummond usa destes dois
exemplos, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, para introduzir o leitor à “nova
poesia no Brasil”. Sobre os escombros literários desses foi possível fazer uma
ligação, uma “linha de continuidade”, como diria Mário de Andrade, que
retomasse a literatura antes totalmente rechaçada numa fórmula nova que
encarasse a tradição literária com os olhos voltados ao projeto brasilista de
construção de uma literatura orgânica e nacionalmente unificada. Para retomar aos
velhos deuses é preciso eleger também velhos diabos.
Mas isso significava que Drummond já então defendia o nacionalismo?
Não. O crítico não dá a entender que o nacionalismo de Bilac seria crucial para a
sobrevivência e a força de construção da nova fase nacionalista em literatura,
muito menos como um feedback constrangedor em si. Como vimos, ele vê em
Bilac a imagem do “paradoxo” modernista, e ainda tem a audácia de insinuar que
o parnasiano, com seu tropicalismo, seria mais natural e original do que os
modernistas, não afetando nem transformando em programa nacionalista a sua
escola. Afinal, não eram os vanguardistas que queriam a mudança total? Por que
recorrer ao “perigoso” nacionalista dos antigos? Para Drummond, Bilac soube
cantar a sua terra de modo saudável, sem o esforço caricatural e ingênuo, pois é
assim que ele arremata: “Apenas o perfil luminoso de Bilac permaneceu íntegro
em relação às suas falanges.” (Andrade, 2012, p. 134). Mas ainda assim, qualquer
defesa do nacionalismo se revelará ao longo do artigo como nociva, pelo menos
esteticamente. O mais certo é afirmarmos que a defesa de um gosto pessoal não
cedeu em nada qualquer resquício de crítica, seja ela de caráter modernista ou não,
nacionalista ou não. O que fica então é que Drummond, em nenhum passo de sua
vida intelectual, conseguiu se articular dentro de uma linha de pensamento que lhe
tirasse toda a liberdade de espírito e sua autonomia de criação, o que vale seja
para essa época de nacionalismo exacerbado, seja em sua participação junto ao
PC, seja em sua “classicização” logo após A Rosa do Povo, como bem mostrou
188
Vagner Camilo54
. (2010). Para tanto a ideia fixa da fraqueza do modernismo ainda
persistia, mesmo depois do impacto da visita dos paulistas cinco meses antes,
impacto que o próprio Drummond confessava ser crucial para a sua entrada no
movimento, como visto anteriormente. A hesitação, portanto, continua:
Infelizmente, essa poesia que hoje ostenta graças inéditas é motivo para inquietas
indagações. Não se fixou. Os espíritos gozaram de tamanha liberdade que se
embriagaram. Cada um seguiu o seu rumo, e os rumos foram desencontrados. Os
poetas mais representativos do momento são indispensáveis entre si, o que é
louvável, mas têm discípulos, que são unidos e confusos. É preciso aproveitar a
todo transe a liberdade! Daí a incerteza, e a angustiosa interrogação: qual o rumo
definitivo que tomará a poesia brasileira? Eis o que não sabemos. (Andrade, 2012,
p. 134-135)
Alguns meses depois, em 17 de outubro de 1924, em outro artigo publicado
no Diário de Minas intitulado “Poesia Brasileira”, a sensação continua a mesma:
Não nos iludamos com exterioridades: ainda não chegou o momento da poesia
brasileira. O que se vem fazendo ultimamente, despertando relativo interesse, e
obtendo maior ou menor êxito, não passa de experiências. Os nomes dos
experimentadores são conhecidos. Em todos eles se nota a educação e formação
europeias; em alguns se observa um nítido desejo de animar visões e aspectos do
panorama físico e moral do país; em poucos esse desejo só vai convertendo numa
aspiração tanto mais forte quanto mais inconsciente; em nenhum (e isto é
satisfatório) há um hipócrita respeito aos fictícios valores do passado. (idem, p.
142)
O ambiente modernista, de 1922 a 1924, mudara drasticamente, mas
Drummond ainda permanecia em seu ceticismo rançoso. Se é certo que as
influências dos modernistas paulistas ficaram mais fortes desde o começo do ano
de 1924, então como explicar essa atitude? No primeiro trecho vemos as mesmas
reclamações de que a liberdade até agora não dera frutos verdadeiros, não
empolgou nem atraiu um público capaz de manter-se ativo na dinâmica do
movimento que simplesmente “não se fixou”. Passados dois anos de angústia,
Drummond ainda via um panorama no qual “cada um segue seu rumo”, tendo que
se questionar para onde vai dar tanta liberdade desenfreada e sem objetivo
nenhum. Mesmo a tendência nacionalista de Oswald aqui é para ele não tão
54
Explica Camilo que, em Drummond, “a ilha [metáfora do isolamento de Drummond] propõe
uma visão em perspectiva do real e não sua anulação completa. Se ela implica evasão, isso não
redunda em alienação social ou política, por mais paradoxal que pareça.” CAMILO, Vagner.
Drummond: da Rosa do Povo á Rosa das Trevas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010, p. 93.
189
escolástica, como se ali naquele momento ele não previsse que a brasilidade
modernista estava para crescer e se expandir como um vírus letal. O mineiro
identifica apenas como um “cunho”, uma manifestação como todas as outras, e
adverte:
Antes de tudo, precisamos reformar essa ideia de nacionalismo, que interpretações
viciosas tanto deturparam. (...) Com efeito, não valia a pena fazer-se revolução
literária para voltarmos às fórmulas e preconceitos estéticos do Sr. Coelho Neto e
do Sr. Catulo Cearense. (idem, 2012, p. 135).
Da mesma forma, no artigo de outubro ele apenas afirma ser essa linha de
“alguns”, embora se tornando “forte e mais inconsciente”. O fato é que o crítico
tinha um receio enorme pela elaboração de uma literatura voltada exclusivamente
para a terra natal, seja ela na fórmula folclórica e indianista de Oswald de
Andrade, seja na forma especulativa do integracionimo de Graça Aranha, que
então se combatiam. Escrevia Drummond em junho de 24, mesmo mês em que o
autor de Malazarte dera uma conferência criticando a tendência primitivista de
Oswald:
Ouçamos ainda a voz do conferencista quando nos informa que ‘ser brasileiro não
significa ser bárbaro’. De acordo. Erro é de muita gente boa, inclusive do Sr.
Oswald de Andrade, um dos nossos mais luminosos espíritos. Mas ser brasileiro
não é também vencer a natureza e sua metafísica, e integrar-se no cosmos, — é
esse o erro de Graça Aranha, espírito sem raízes na realidade. (Andrade apud Cury,
1998, p. 129)
Deslocado dos novos rumos Drummond ainda insiste na desconfiança para
com o modernismo. Não entendeu o primeiro modernismo e agora não entende o
segundo, apenas tenta encará-los como um só bloco disposto pelo caráter de
experimentação inútil; em 1924, Drummond ainda permanecia atrás do
modernismo, que ele invariavelmente não conseguia compreender senão pelas
externalizações e características mais comuns. Sua angústia era resultado de um
mal-estar, num isolamento crítico pouco afeito às nuances de opiniões e
discussões dentro do movimento, por isso sua segurança em dar de cara apenas
com literatura e autores tão bem definidos e “esteticamente possíveis” como
Anatole France, seu ídolo de então. No entanto, a crítica ao nacionalismo era
pertinente dado a iminência catastrófica dentro das próprias experimentações de
190
vanguarda que reduziriam ano a ano. Arremata então sua invectiva contra o
nacionalismo no artigo “As condições atuais da poesia brasileira”:
Ele [o nacionalismo] repugna os espíritos sadios e lúcidos. Admissível na ordem
política, é de todo inconveniente na ordem estética. E é um doce engano, esse de
que teremos uma literatura genuinamente brasileira apenas com a utilização de
motivos brasileiros. Assim, fazer poesia tropical à outrance é um ingênuo delírio.
Os temas da poesia são universais. As palavras de Gonçalves Dias não nos farão
esquecer as paisagens ‘civilizadas’ da Europa (e vice-versa). (Andrade, 2012, p.
136)
A passagem sobre a “utilização de motivos brasileiros” faz lembrar o ensaio
de Machado de Assis quando este afirma:
Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho
por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto
local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura.
(Assis, 1974, III, p. 803).
Quando Drummond reitera o caráter universal da poesia, ele faz o mesmo
que Machado de Assis ao confirmar o intuito de que a poesia se faz com qualquer
matéria, corroborando portanto a sua essencial universalidade. Muito embora haja
semelhança de objetivos, os dois críticos divergem quanto à sutileza ao tratar do
tema, devido mais ao fato de ser o jovem Drummond, irrepreensível e alardeado,
vaticinando a torto e a direito, se comparado ao autor de Memorial de Aires, cuja
maturidade soubera articular o tema numa saída perfeitamente crítica e sóbria, a
do “sentimento íntimo”; condição paradoxal da literatura brasileira que, segundo
Abel Baptista, “não retira da tradição europeia qualquer princípio que impeça a
literatura brasileira de ser brasileira, mas também não extrai do Brasil qualquer
critério ou garantia de nacionalidade.” (Baptista, 2003, p. 108). Já Drummond
pensa apenas na recaída drástica que o assunto local, como ponta de lança estética,
acarretaria na literatura não brasileira em geral, mas também, modernista. É antes
de tudo um homem formado na tradição europeia que não quer entregar-se às
estreitezas nacionais para ver-se legitimado como um autor, i.e., ele teria que se
recondicionar para entrar nesta nova onda, o que parecia não estar nem um pouco
disposto. Do mesmo modo ainda era um autor “passadista”, nos termos
modernistas, aquele que não via na cultura popular ou primitiva brasileira um
assunto louvavelmente literário, o que será bem exposto nas suas cartas para
191
Mário de Andrade, que veremos daqui a pouco. Mas o que importa aqui é o relato
contraditório, ainda de uma mente “disforme” e, nesta medida, crítica, ainda que
numa ingenuidade sintomática.
É nesta sede de universalidade que Drummond irá elogiar as Canções
gregas, de Guilherme de Almeida, como um desvio saudável da tendência
predominante do nacionalismo:
Este poeta maravilhoso e ágil nos ensina que, sob o céu azul a alma dos homens
tem mil e uma vivendas, e ama transportar-se às mais diversas regiões. (...) Mas em
nosso espírito vadio erra a nostalgia de paragens longínquas, onde nunca estivemos
e onde a nossa alma viveu instantes inesquecíveis: Paris, Versailles, a Roma dos
Césares e dos papas, Atenas... Ninguém me fará entrar na cabeça que São João d’el
Rei vale Florença, e que o Aleijadinho é superior a Miguel Ângelo. (Andrade,
2012, p. 136)
O próprio título do livro de Guilherme de Almeida reflete certa
condescendência com temas clássicos. Podemos então perceber as diferenças
internas que já grassavam o modernismo hegemônico paulista, que enfim o
nacionalismo tinha que passar por um obstáculo que vinha junto com a própria
condição de defesa de uma literatura nacional: a formação dos próprios
modernistas. Seria difícil para muitos negar essa condição que o mesmo
Drummond tinha consciência; como negar a tradição europeia pré-vanguarda e a
própria Europa se é desta que vinham as fontes para tal crítica? Essa contrariedade
sempre fizera parte da tradição da literatura brasileira, desde o romantismo (Cf.
Baptista, 2003). Mas o nacionalismo modernista, ao contrário do romântico, não
sublimava o ranço estrangeiro com a idealização à europeia do brasileiro, do
indígena, e sim, encarava ou tentava encarar a verdadeira face da cultura popular,
agora com olhos positivos e otimistas, o que fora difícil para muitos poetas que
sonhavam com os ares de uma Europa civilizada. É neste sentido que também
entendemos este Drummond que nos escreve, do mesmo modo como ainda é
sintomática sua falta de simpatia total com o movimento modernista. É o que se
vê nestas palavras do nosso autor em 30 de setembro de 1922, no Diário de
Minas, no mesmo artigo sobre Os condenados, de Oswald de Andrade:
Ninguém pode honestamente pensar em Jeca Tatu, símbolo da terra patrícia,
quando sabe que há no Brasil cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Juiz
de Fora, onde uma população convulsa esfervilha entre arsenais, fábricas, docas e
estações ferroviárias. (Andrade apud Cury, 1998, p. 123).
192
Certo lado do país, aquele já revelado por Monteiro Lobato ou mesmo
Euclides da Cunha, ainda não podia ser visto pela retina do crítico mineiro sem
uma sensação de desconforto, ao contrário do que então começavam a fazer os
primitivistas paulistas. Por isso a opinião de Mário de Andrade em entrevista de
1925: “No Brasil, em que trata-se antes de mais nada de ser Brasil, sonetos como
Anchieta ou poesias como as Canções gregas são passadismo puro, vaidade
individualista, diletantismo sem função, almofadismo sem elegância verdadeira.”
(ANDRADE, 1983, p. 19). Está claro que é esta nova condição que dificultava a
adesão completa de Drummond ao movimento modernista.
Como exemplo disso é que, depois de dissertar sobre os novos da poesia e
da crítica à tendência oswaldiana, Drummond encerra o artigo tratando os
modernistas como eles, e não por nós: “Confiemos, portanto, nessa geração sem
compromissos nem preconceitos; nem todas as suas ideias são justas, mas os seus
ideais são luminosos.” (Andrade, 2012, p. 142). A confiança esbarra na sensação
de que o que existe no momento não é tão interessante, devido ao fato mesmo de
que o movimento poderia perder seus princípios e respingar nas velhas atitudes
regionalistas e nacionalistas que não fizeram crescer a literatura brasileira. Ao
contrário do que se pode pensar, Drummond quer uma literatura brasileira, mas
que não se interpelasse e enrugasse nas tentativas de delimitação unívoca de temas
e assuntos. Em 17 outubro de 1924, ele escreve no artigo “Poesia brasileira”, em
que diz sua opinião nestes termos:
Chegamos, é fato, à compreensão de uma dolorosa necessidade: a necessidade de
sermos brasileiros dentro do Brasil, na língua como no sangue, e na literatura como
na língua. Mas, isso não se faz com um manifesto ou uma conferência. É a obra,
nem sempre visível, muitas vezes irregular, e até mesmo inconsciente, de gerações
sem conta. Com que ridícula sobranceria pretendemos renunciar à cópia dos
figurinos franceses, e reunir materiais para a criação de um autêntico ‘gênio
brasileiro’, que podemos contrapor ao malsinado gênio francês! (Andrade, 2012, p.
144)
O problema para a formação de uma literatura brasileira de porte é ainda a
falta de uma tradição literária historicamente construída. É neste sentido que
Drummond atende às necessidades que os outros modernistas viam como a
primitivização dos temas literários. Não chega a ser angustiante para Drummond
pensar que ainda seria uma questão de tempo, obra de gerações, a formação da
193
literatura brasileira. Para isso, é ingenuidade negar toda a cultura estrangeira, e
mesmo sua cópia, sendo que é dela que podemos tirar as fontes de uma cultura e
de uma história que são modelos a seguir. Mais uma vez, Drummond acredita que
o desejo anti-mimético é uma ideia não brasileira mas sim europeia, daí que ele
vaticina: “E queremos manufaturar qualquer coisa parecido com um gênio
brasileiro! (Fugindo à imitação, continuamos a imitar).” (idem, p. 144). O
modernismo brasileiro teria que entender que o próprio nacionalismo não era uma
ideia nativa, mas europeia do mesmo modo que a vanguarda e toda a literatura
com a qual o Brasil vinha dialogando durante séculos. Como negar tal comércio
necessário para a subsistência de qualquer cultura? Como negar que a própria
civilização que os modernistas primitivistas queriam não era uma civilização à
Europa? Era negar a história do país, ainda novo, sem uma cultura vigorosa, sem
mesmo uma “elite” preparada para dirigir intelectual e politicamente (lembrem-se
da opinião de Silvio Romero). Sem uma tradição robusta como a francesa não
haveria como construir uma literatura genuinamente nacional; por isso que o
quase-modernista Drummond ainda lamenta a falta de ligação com uma tradição
literária: “Com efeito, quais os vínculos que prendem a geração ora em atividade e
as antecedentes? Pode dizer-se, de um modo geral, que essas em nada influíram
sobre os moços de hoje.” (idem, p. 146).
Neste mesmo mês de outubro Drummond lera uma carta de Mário de
Andrade endereçada a Martins de Almeida e decidira também entrar em contato
com o poeta paulista. A partir de então, a correspondência duraria 21 anos, até a
morte do autor de Paulicéia. Não há como negar a contribuição intelectual de
Mário para com o jovem poeta e crítico Drummond. É a partir das cartas que
aquele irá discutir os temas e bastidores do movimento, ao mesmo tempo em que
tentará trazer Drummond para as hostes do modernismo nacionalista. A escolha
por Mário é sintomática pois Drummond já vira o Pau-Brasil de Oswald com
maus olhos, e a visita dos paulistas revelara o caráter normativo e certamente
militante do autor de Pauliceia. Confessa Drummond na crônica “Suas cartas”,
em Confissões de Minas:
É quase impossível ter vinte anos, um pouco de sensibilidade, um pouco de
insatisfação, e não entregar a alguns poetas e alguns romancistas o cuidado de
resolvermos os nossos problemas, de nos salvar de nós mesmos. (Andrade, 2003, p.
198-199).
194
A primeira carta de Drummond é datada de 28 de outubro, ou seja, quatro
dias depois do artigo supracitado, “Poesia brasileira”. Ele parece inovar nos
termos:
Estou convencido que a questão da literatura no Brasil é uma questão de coragem
intelectual. Ou por outra: é preciso convencer-se a gente de que é brasileiro. E ser
brasileiro é uma coisa única no mundo; é de uma originalidade delirante. Não
confundir com nacionalismo. Aliás, você sabe disso melhor do que eu. (C&M,
2002, p. 14)
Drummond já vinha em direção a Mário com a ideia de que ele saberia
tratar os temas do modernismo atual. A coragem intelectual de que fala remete às
discussões do momento em que colocavam de um lado Oswald de Andrade e do
outro Graça Aranha. Não é errado afirmar que Drummond tenha procurado Mário
por vê-lo como um independente dentro destas correntes divergentes, do mesmo
modo que essa coragem intelectual seja o verdadeiro auxílio com que Drummond
queria resolver seus “preconceitos intelectuais”, como ele mesmo confessaria
mais tarde na já citada crônica sobre as cartas de Mário. Uma carta de Manuel
Bandeira a Drummond, de 21 de outubro, mostrava bem a posição-chave do
paulista dentro das discussões modernistas:
Pensando bem, creio que no fundo estão todos [Graça e Oswald] de acordo, e o
problema de enquadrar, situar a vida nacional no ambiente universal, procurando o
equilíbrio entre os dois elementos. O Mário de Andrade que parece ser o nosso
maior poeta atual e o segundo grande poeta brasileiro (o primeiro foi Castro Alves)
parece ter resolvido o problema nos seus últimos poemas, sobretudo no ‘Noturno
de Belo Horizonte’, que é todo o Brasil, ou pelo menos um pedaço enorme do
Brasil, sentido com larga emoção por um espírito de alcance e de cultura
universais. (Bandeira apud Moraes, 1978, p 118)
O “você sabe disso melhor do que eu” de Drummond tem como pano de
fundo tal carta de Manuel Bandeira. É dela que o mineiro tira a sua também
coragem intelectual para interpelar o paulista e resolver assim sua questão pessoal
sobre o modernismo. E mesmo a aparente linguagem pró-nacionalista, quando
afirma a necessidade de “ser” brasileiro, não nos autoriza a refletir que
Drummond já se convertia. Ele faz questão de assinalar que aquelas palavras não
podem ser lidas como nacionalistas; na verdade, ele está pensando na carta de
Manuel quando este aponta que Mário soube auxiliar o primitivismo e o
195
universalismo, e era justamente neste último ponto que o crítico mineiro se
reportava ao escrever aquela carta. Drummond buscava uma universalidade que
ele via minguar mais e mais com as polêmicas envolvendo a brasilidade, e, de
acordo com Bandeira, apenas Mário conseguia ter uma visão que acatava o
universalismo sem preconceitos, embora ainda pensando numa mediação
nacional, mas ainda assim, era isso que importava, sem nenhum programa
sectário. A “independência” de Mário então chamou a atenção do crítico
independente e outsider mineiro. Então, este resolvera pescar aquele, e de certo
modo provocar uma resposta que lhe desse uma saída para suas inquietações. Ao
cutucar tal onça ele seria aos poucos devorado pela moléstia-de-mário, a do
nacionalismo universalizante. O ataque viria na resposta, quando Mário comenta o
artigo sobre Anatole France que Drummond enviara junto à sua carta:
Li seu artigo. Está muito bom. Mas nele ressalta bem que falta em você — espírito
de mocidade brasileira. Está bom demais pra você. Quero dizer: está muito bem
pensante, refletido, sereno, acomodado, justo... principalmente isso, escrito com
grande espírito de justiça... você já é uma só lida inteligência e já muito
mobiliada... à francesa. Com toda a abundância do meu coração eu lhe digo que
isso é uma pena. Eu sofro com isso. Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo.
Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo,
mas acredite que um sacrifício é lindo. O natural da mocidade é crer e muitos
moços não creem. Que horror! Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que
por isso até agora não viveu, nós temos que dar alma ao Brasil e para isso todo
sacrifício é grandioso, é sublime. (C&M, 2002, p. 50-51)
Mário logo percebeu a relação de Drummond com o espírito francês,
mesmo num artigo que prometia criticar Anatole France, principalmente com o
ceticismo que será a maior característica do poeta mineiro. Por outro lado, Mário
já fala como um escritor maduro que precisa arrebanhar jovens para o sacrifício da
construção de uma literatura que se dedicasse exclusivamente ao Brasil. Mais do
que isso, transparece certa angústia em ver tais moços ainda deslumbrados com os
ares europeus sem ao menos ter saído do país, algo que ele ainda não identificava
com o ar provinciano que Drummond revelava. Não é difícil então ver que o
paulista se indignava em perceber a ineficácia do modernismo, pelo menos
daquele modernismo que ele e os primitivistas vinham há pouco lutando. Tudo
porque, como dissemos, o nacionalismo de desrecalque custava muito àqueles
moços que, como Drummond mais tarde diria, “precisavam deseducar-se” da
“decrepitude de inteligência, desmentida pelos nervos, mas confirmada pelas
196
bibliotecas.” (Andrade, 2003, p. 199). A resposta de Drummond então vem com
uma sinceridade ou “cinismo”, segundo Ivan Marques, que enfim respondia em
parte as invectivas contra o nacionalismo que vimos nos artigos atrás analisados:
Reconheço alguns defeitos que apontam no meu espírito. Não sou ainda
suficientemente brasileiro. Mas, às vezes, me pergunto se vale a pena sê-lo.
Pessoalmente, acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob
céus pouco civilizados. Tenho uma estima bem medíocre pelo panorama brasileiro.
Sou um mau cidadão, confesso. É que nasci em Minas, quando devera nascer (não
veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é
estranho: sou um exilado. E isto não acontece comigo, apenas: “eu sou um exilado,
tu és um exilado, ele é um exilado”. Sabe de uma coisa? Acho o Brasil infecto... O
Brasil tem uma atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns
políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis e velhacos. Entretanto, como
não sou melhor nem pior do que os meus semelhantes, eu me interesso pelo Brasil.
Sei o aplaudir com a maior sinceridade do mundo a feição que tomou o movimento
modernista nacional, nos últimos tempos: função francamente construtora, após a
fase inicial e lógica de destruição dos falsos valores. O que todos nós queremos (o
que, pelo menos, imagino que todos queiram) é obrigar este velho e imoralíssimo
Brasil dos nossos dias a incorporar-se ao movimento universal das ideias. Ou,
como diz Manuel Bandeira, “enquadrar , situar a vida nacional no ambiente
universal, procurando o equilíbrio entre os dois elementos” equilíbrio
evidentemente difícil, dada a evidência da desproporção. E este é um trabalho de
muitas e muitas gerações. Como realizá-lo? Penso que este problema envolve
centenas de problemas particulares, que rebentam e se desenvolvem na intimidade
do nosso espírito inquieto. Cada um de nós tem de resolver o seu caso, criado e
mantido à sombra desse caso brasileiro. (C&M, 2002, p. 56-57)
Drummond cita a carta que Bandeira lhe enviara para corroborar suas ideias
de universalidade. Mas é incrível que ele não tenha percebido que a
universalidade de que Mário falava tinha implicância num nacionalismo que
enfim desautorizava qualquer afirmativa de que o poeta paulista sabia como fazer
o Brasil “incorporar-se ao movimento universal das ideias”. É que para Mário a
universalidade se alcançava com o quinhão brasileiro, e apenas brasileiro; isto
quer dizer que com a primitivização e folclorização da literatura brasileira tendo
por base a cultura popular, o país partiria do regional para o universal, mas apenas
como uma peça dentro de um enorme quebra-cabeça. A universalização
pressupunha um produto tipicamente brasileiro que seria sua literatura popular
coroada pelos mitos, superstições, canções, brincadeiras, religiosidade etc. É o
que diz Mário de Andrade em carta a Joaquim Inojosa:
Veja bem: abrasileiramento do brasileiro não quer dizer regionalismo nem mesmo
nacionalismo = o Brasil pros brasileiros. Não é isso. Significa só que o Brasil pra
197
ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia
dirigem a civilização da Terra, tem de concorrer pra esse concerto com sua parte
pessoal, com o que singulariza e individualiza, parte essa única que poderá
enriquecer e alargar a Civilização. Da mesma forma que do lado prático. Se nós
quiséssemos concorrer pra organização da economia da Terra, com o trigo próprio
da Rússia ou o vinho próprio da França ou da Itália, a nossa colaboração seria
inferior, secundária, subversiva e inútil porque nem o trigo nem o vinho são
específicos da nossa terra. Mas com a borracha, o açúcar e o café e a carne nós
podemos alargar, engrandecer a economia humana. Da mesma forma nós teremos
nosso lugar na civilização artística humana no dia em que concorrermos com o
contingente brasileiro, derivado das nossas necessidades, da nossa formação por
meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e clima, pro
concerto dos homens terrestres. (Andrade apud Moraes, 1978, p. 120)
Drummond não conseguiu compreender que esta universalidade era
coerente com a literatura primitivista que faziam Oswald e Mário. Só que para o
mineiro, a universalidade era a liberdade de temas, a despreocupação de formas ao
mesmo tempo que a capacidade de escolher em que tempo e em que espaço
escrever. Drummond também reafirma o que disse em outro artigo quando pensa
que a literatura brasileira precisa de mais tempo e de uma tradição para dar-se por
formada, assim como acontecera com as nações europeias. Mas apenas se dá por
esta via, já que o ambiente “imoralíssimo” e “infecto” das paisagens brasileiras
não seria capaz por si próprio de criar e dar mote às criações imaginativas
perfeitas. Não é preciso muito esforço para perceber os preconceitos intelectuais
de que ele mesmo falaria mais tarde sobre esta época. Apesar de tudo ele tinha
consciência — neste caso talvez cínica — de que esta posição não era aristocrática
e tampouco antidemocrática, como escreve na mesma carta: “Espero que não veja
nestas palavras a intenção de criar uma oligarquia intelectual, ou qualquer coisa
parecida com um clã ou um mandarinato das letras. Não. Estamos, se não me
engano, em dias largamente democráticos, em que nenhuma aristocracia é
possível, mesmo a da inteligência.” A questão então sobrepunha o campo literário
e passava a ter uma constituição também política, porque “o nacionalismo convém
às massas, o universalismo convém às elites (repito, não se trata de clã).” (C&M,
2002, p. 60). Então, a própria identificação dos preconceitos nacionalistas com o
povo, como se fosse naturalizado, faz com que Drummond, ao negar o elitismo,
reafirme-o na mesma medida em que diz que o nacionalismo é perigoso,
esteticamente falando, i.e., ele não admitia ver qualquer resquício de literatura
popular dentro do campo ilustre da literatura e o nacionalismo que tanto o
modernismo vinha pedindo dava como iminente tal acontecimento. Esse caráter
198
aristocrático e elitista de Drummond fora exposto no editorial do primeiro número
de A Revista, em julho de 1925, escrito pelo nosso crítico, intitulado “Para os
céticos”, reforçando a nossa hipótese de que o nacionalismo modernista também
responde à crise social e institucional do país, principalmente após 1924:
Na ordem interna é forçoso lançar ainda uma afirmação. Nascidos na república,
assistimos ao espetáculo cotidiano e pungente das desordens intestinas, ao longo
das quais se desenha, nítida e perturbadora, em nosso horizonte social, uma
tremenda crise de autoridade. No Brasil ninguém quer obedecer. Um criticismo
unilateral domina tanto nas chamadas elites culturais como nas classes populares.
Há mil pastores para uma só ovelha. Por isso mesmo as paixões ocupam o lugar
das ideias, e, em vez de discutirem-se princípios, discutem-se homens. (Andrade,
1925, p. 12-13)
Portanto, podemos ver que a universalidade de Drummond era bem vinda e
daria vazão a uma crítica aos rumos do modernismo mas, sendo ele baseado
tematicamente em preconceitos, seria também tão nocivo quanto o que ele
combatia. Os modernistas mineiros, identificados por Pedro Nava como
politicamente de centro (Cançado, 1993, p. 109), entendiam a crise de então como
um problema meramente político em que faltava um braço forte no Estado para
resolver as desordens internas. É difícil não pensar como estes modernistas,
revolucionários esteticamente, não tinham nenhuma opinião relativamente
progressista em política. A questão é pertinente pois a maioria deles, em
entrevistas posteriores, afirma, por exemplo, que a relação do grupo com o Diário
de Minas, jornal da oligarquia local, era apenas casual, sendo que não respondiam
às demandas políticas, e neste sentido estavam certos, como vimos anteriormente
em outro capítulo. Mas agora, com um veículo próprio, eles não fugiam de uma
visão high brown, de escacho da população, incivilizada e inculta. Então, mesmo
nos mineiros, estava ausente o cunho popular ao mesmo tempo em que
expressavam o continuísmo de uma dominação social e intelectual que eles
mesmos aí não conseguiam disfarçar:
Os intelectuais da rua da Bahia não eram, basicamente, homens de letras perdidos
na provinciana Belo Horizonte, mas uma geração bem nascida, bem educada, e
represada em suas aspirações de influência e poder. Ela se constitui assim, em
intelligentsia que olhava inevitavelmente com rancor e desesperança para as
oportunidades que os velhos oligarcas do palácio da Liberdade lhes negavam.
Abertas as comportas do sistema político, lançaram-se com todas as forças à vida
política, sem trair, mas na realidade cumprindo sua vocação de intelectuais.
Poucos, como os poetas Emílio Moura e Drummond, teriam o talento e as
199
condições pessoais adequadas para fazerem da literatura não somente um estilo, um
adorno ou um traço a mais de sua cultura, mas sua forma mais alta de realização
pessoal. Para os demais, a política foi o caminho. (Schwartzman, Bomeny &
Ribeiro, 1984, p. 28)
Mas, por outro lado, como vimos, era o real individualismo, a idiossincrasia
gauche, que também impedia o apego de Drummond ao programa nacionalista
que o movimento, de forma geral e incluindo Mário de Andrade, impunha. É o
que nos explica Gilda de Mello e Sousa:
Parece evidente o desacordo entre o seu temperamento e o nacionalismo, a que
haviam aderido os companheiros. Era uma tendência que procurava pesquisar a
realidade exterior, os aspectos pitorescos dos costumes e do país, dando preferência
à paisagem (tratada de maneira ornamental, não psicológica), relegando para
segundo plano as sondagens de cunho mais pessoal. Que sentido poderia ter isso
para o seu temperamento fechado e solitário, que só contava com a arte para se
exprimir? Como ter um programa estrito e definido a sua alma ferida, esquiva e no
entanto sequiosa de comunicação? (Mello e Sousa, 1980, p 271)
No fundo, Drummond cedia aos poucos por necessidade de sobrevivência
literária, razão pela qual não foi preciso muito esforço do poeta paulista. Depois
de algumas cartas de Mário ele já se dava por “vencido” na questão sobre o
nacionalismo, como vemos na carta de janeiro do ano de 1925: “(...) verá que
capitulei em mais de um ponto. Hoje sou brasileiro confesso. E graças a você meu
caro!” (C&M, 2002, p. 88. Grifos meus). E na carta seguinte, de 06 de fevereiro:
Quando penso que também andei a esmo pelos jardins passadistas, colhendo e
cheirando flores gramaticais, e bancando atitudes de sabedoria! Pois veio o
imprevisto e me expulsou do jardim. Você, com duas ou três cartas valentes acabou
o milagre. Converteu-me à terra. Creio agora que, sendo o mesmo, sou outro pela
visão menos escura e mais amorosa das coisas que me rodeiam. (C&M, 2002, p.
95)
Ivan Marques escreve que Drummond resplandecia um paradoxo quando
critica ao mesmo tempo primitivismo e Machado de Assis, símbolo do
universalismo, no seu artigo d’A Revista que analisaremos adiante (Marques,
2011, p. 96). Mas ele não percebe o momento em que Drummond faz sua
conversão ao brasileirismo e portanto, a coerência de sua crítica contra o bruxo
realizada após a conversão. De qualquer modo, Drummond não conseguirá de
todo entregar-se ao nacionalismo como queria Mário de Andrade, ambos teriam
ainda muito que discutir. Aqui, no entanto, Drummond poderá ser considerado,
200
enfim, um modernista absolutamente reconhecido. Ele estará em paz consigo
mesmo e sua “moléstia de Nabuco”, o dedicar-se apenas à cultura estrangeira,
sanada. A conversão se dá de forma atabalhoada e incisiva, típica de
autoafirmação. Por isso veremos adiante momentos em que se percebe a ânsia de
Drummond em purificar-se do universalismo e do seu “não-modernismo” da
época anterior, momentos que mostram discordâncias e contradições importantes.
6.2. O eterno do moderno: Drummond e as tensões da tradição brasileira: 1925-1930
O Drummond brasilista agora fará o possível para provar a si mesmo sua
conversão. Em artigo intitulado “A tradição em literatura”, publicado em 1925 em
A revista, periódico dos modernistas mineiros, ele mostra-se afobado e incisivo
nas palavras, não medindo a crítica, discernindo o que é tradição válida e tradição
passadista; diferenciações que o nacionalismo do segundo momento pedia. Uma
leitura detalhada de tal artigo será então necessária para entendermos a
contribuição de Drummond para pensar os limites e tensões, nuances e fissuras da
tradição brasileira nos aspectos do modernismo aqui estudados.
Drummond terá então que fazer um acerto de contas com sua formação
intelectual, daí resultou seu interesse pelo diálogo com a tradição literária, com os
nossos clássicos, para depurá-los, avaliá-los à luz das “necessidades novas”, de
um presente temporalizado pela constante de atualização, de atualizar ao atual;
enfim, pondo o fogo da crítica a serviço da ideia “acrítica” da tradição Brasil, de
certo modo imóvel, e nestas circunstâncias ele estará erguendo uma tradição: a
tradição modernista. Uma tradição contra outra, é certo, pois elas se multiplicam.
Para preservar uma — a do brasilianismo em literatura — ele vai atacar outra. E
assim, pensando estar mudando, a crítica modernista estava reafirmando aquilo
que negava. Negação da negação. A modernidade brasileira em estado puro.
O texto de Drummond se articula em torno da crítica à tradição. Mas como,
se nessa fase os modernistas estavam num movimento de “ida à tradição”? Essa
questão é o que faz de Drummond uma experiência limite dentro do modernismo.
Ao mesmo tempo em que adere à tese nacionalista tradicionalista, ele a explode
de certo modo e dá vazão à crítica da tradição. No entanto, mesmo assim, como
veremos, a sua crítica da tradição se fará em nome de uma perspectiva ainda
201
marcante do segundo momento modernista, tudo porque ele tenta destruir o maior
fantasma da tradição nacionalista brasileira, Machado de Assis, aquele que mais
bem soube empreender uma crítica contra esta. Em movimentos sempre
ambíguos, o crítico mineiro por um lado dá força à empresa de Mário de Andrade
e, por outro, critica-a por colocar a tradição, em alguns momentos do artigo, como
um bloco só. No fim das contas, a sensação que o autor nos dá é a de que a
tradição em si não merece nenhum beneplácito. Para tal afirmação concorre a
crítica de Mário contra a concepção de tradição de Drummond. Mais uma vez,
este não soube acatar bem as peripécias do momento modernista. No entanto, esse
será o fator que o tornará de certo modo mais crítico.
6.2.1. Abrindo portas abertas
Carlos Drummond de Andrade já começa o artigo com distinções:
Os escritores que falam em nome de uma tradição são justamente aqueles que mais
fazem por destruí-la e contribuem para sua corrupção. Ao contrário, aqueles que
não se preocupam com os fantasmas e fantoches do passado, mantém inalterável a
linha de independência intelectual que condiciona toda criação de natureza
clássica. São estes últimos os verdadeiros tradicionalistas, por isso que o próprio da
tradição é renovar-se a cada época e não permanecer unificada e catalogada.
Romper com os preconceitos do passado não é o mesmo que repudiá-lo. (Andrade,
1925, p. 32)
Drummond inverte as ordens nas quais o senso comum concebe a tradição,
qual seja, a de que os tradicionalistas são aqueles que preservam as obras do
passado. Com isso, ele se aproxima de um novo modelo de tradição, implicando
assim novos jogos de concepção temporal que veremos mais adiante. Entretanto,
vale aqui notar, primeiramente no texto, a oposição nova entre “os escritores que
falam em nome” da tradição e aqueles que “não se preocupam com os fantasmas e
fantoches do passado”.
A ideia central da distinção é que a tradição é móvel, e que por isso mesmo
ela não deve ser movida nem delineada, muito menos glorificada ou desviada para
qualquer finalidade, é de certo modo então, inútil, imprestável, obsoleta por
definição; no entanto, ao isolá-la num canto só seu, Drummond acaba dando-lhe
aura, uma autenticidade de algo intocável e único que ninguém deve glorificar
202
porque já é em si algo grandioso na sua inutilidade. Quando tocada, isto é,
“quando pessoas falam em nome” dela, sua corrupção é inexorável. Chave do
primeiro enunciado: o mineiro está fazendo um ataque aos homens que se
legitimam por detrás da tradição, que a tomam para fins pessoais ou ideológicos, e
assim se pensam inabaláveis e irrefutáveis; claro que, neste sentido, o documento
é político, o próprio programa da revista, escrito também por Drummond,
confessava abertamente. A crítica dirige-se então aos “escritores” de intenção
política e seus meios desprezíveis de agir em torno de uma aura do passado e de
seus cânones, identificando a corrupção de tal ação numa “tradição em si”. Estava
em jogo a avaliação que punha no passado o direito de autoridade, a autoridade do
passado que é, portanto, no sentido aí colocado, a tradição.
O período seguinte é tanto quanto audacioso. Os “fantasmas” e os
“fantoches” do passado são imagens que nos dão a entender aquela dialética entre
os do pretérito e os de agora, metáfora finíssima em sua composição. Os
“fantasmas” pressupõem tanto o espírito que ainda permanece sobre nossa
consciência como sua capacidade de nos inquietar, de assustar aqueles que, assim
sendo, também nos olham e velam — portanto um papel ativo e nada inocente do
passado, sua permanência e seus poderes inabaláveis: pois quem pode lutar contra
algo invisível, uma espécie de grande Outro lacaniano? O próprio poeta mais
tarde dará uma boa imagem dessa condição no poema “Convívio”, de Claro
Enigma:
Mas, como de longe, ao mesmo tempo que nossos atuais habitantes
e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!
A mais tênue forma exterior nos atinge.
O próximo existe. O pássaro existe.
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que [disfarçados...
(idem, 2002, p. 287)
Voltando à crítica de Drummond. Na primeira frase o passado como alma,
na segunda como poder. Mas os “fantoches” aplainam tal prepotência; sendo
“fantoches”, o passado é controlável, submisso aos nossos comandos, suscetível à
boa ou má intenção de quem o usurpa, deste modo corruptível, como o próprio
Drummond o via. Novamente aqui a tradição não se afasta do utilitarismo.
No entanto, o “verdadeiro tradicionalista” não se importa com nada disso; é
trabalho baldado pensar ou entrevar-se nesse caminho, existem preocupações
203
maiores que lhe afastam de um problema que não existe e que se existe está morto
e, assim sendo, não se deve profanar o descanso eterno dos antepassados. Mas
Drummond revela sua antinomia. A própria razão de ser do artigo acaba na
negação de suas palavras: se na tradição não se toca por que então escrever sobre
ela, tocá-la e sacudi-la e, por fim, corrompê-la? Será que Drummond está
“fantochizando” o passado? Se sim, será em direção a um único caminho, uma só
resposta a que já nos acostumamos ouvir, a da tradição Brasil?
Drummond aponta uma continuidade da qual não se necessita cuidado ou
discussão, tampouco o resguardo que os “falsos” tradicionalistas procuram
atender e “falar em nome”. Os verdadeiros tradicionalistas “mantêm inalterável a
linha de independência intelectual que condiciona toda criação de origem
clássica”. É o primeiro vacilo que ele deixa escapar, é o homem necessitando de
liberdade para produzir, que deve pertencer a uma verdadeira linhagem digna de
respeito e admiração, é o poeta pré-conversão aflorando no asfalto sufocante de
uma pregação incondicional de um ideal, seja ele qual for, que empobrece a
originalidade criativa. É ainda a revolta de um ano antes (portanto, no período
ainda não nacionalista) que ainda persistia nesta carta, dentre muitas outras que
debatiam o mesmo tema, datada de 30 de Dezembro de 1924 para Mário de
Andrade:
Entendo por nacionalista: ter princípios, fazer estudos sobre o amor à pátria, etc. E
como é bom ser brasileiro! Contudo, não é o único bem da vida. Daí amanhecer,
outros dias, norueguês ou tchecoslovaco (mais frequentemente francês.) Isto é o
que eu chamo de liberdade espiritual. (C&M, 2002, p. 79)
A distância entre a “liberdade espiritual” aqui e a “independência
intelectual” ali só poderia ser mensurável no apelo moral que separa o verdadeiro
do falso; é certo que tal apelo não atinge a tradição — ela aqui permanece como
algo “no seu canto” — mas um comportamento em relação à ela, daqueles que lhe
exibem como troféu e de outros que a ignoram. Mas a tradição “renova-se”
porque quem a mantém são homens “independentes”... dela mesma! O “toque” é
inevitável, mesmo os que se afastam de sua presença, e por causa disto, cedo ou
tarde a corromperão; no fim, falsos e verdadeiros são julgamentos que se anulam.
Na situação limite que o próprio artigo impõe e denuncia (como uma atitude que
“se importa” com a tradição), resta a Drummond posicionar-se: nem criar cânones
204
nem deixá-los de lado: que se tome o cadáver da tradição ao sabor das tapas, mas
sem “repudiá-lo”.
O rompimento ao longo do texto, no entanto, parece virar repúdio. Mas
nestes termos apresentados pelo crítico a ruptura parece superficial, pelo menos na
sua acepção mais ou menos polida da tradição. É claro que Drummond vai eleger
apenas um passado, dentre outras, para fazer sua crítica e depuração — e
estrategicamente será a obra de Machado de Assis, o autor que menos se ajustava
à tradição da brasilidade —, pondo-o num único bloco passível de confrontação e
de avaliação suscetível. Nem por isso ele não se via incluso também numa
tradição, o próprio tom de acerto de contas de um recém-convertido que suas
palavras escancaram, o ato em si do tema proposto, a entonação moral quanto aos
verdadeiros tradicionalistas como homens independentes: nada de tudo isso lhe
poderia ser estranho. A noção sóbria de que o rompimento deve ser saudável
adere à certeza de que o próprio Drummond também está na arena de disputa da
tradição, e mesmo que no desenvolvimento da argumentação, o não-repúdio fique
intolerável, ele sabe que poderá ser julgado pela posteridade. Uma consciência
histórica não se desliga dessa percepção aguda. Tal consciência de efemeridade,
como vimos, fora a angústia que fizera com que Drummond aceitasse o
modernismo tão tardiamente, visto que não via no movimento uma duração que
lhe fizesse vingar e permanecer na literatura brasileira. Assim, ele pensava sobre o
modernismo então no artigo “Sobre a arte moderna”, de 1924:
Esta arte é bem atual, e não tem relações imediatas com o futuro. É o espelho do
dia que passa... O dia é cheio de amargura, e, pois, as visões do artista moderno não
o são menos. (idem, 2012, p. 125)
Fica perceptível que essa amargura ainda era consciente no Drummond
convertido.
6.2.2. No labirinto o fio
A relativização do rompimento, e com ela o da própria tradição, mistura-se
com a atitude extremista, a negação total.
205
A verdade é que o tempo age sobre qualquer livro de duas maneiras: debastando-o
e emprestando-lhe novas aparências. Por um lado, tira-lhe todo o interesse que seja
do tempo, e que com ele se adelgasse; por outro, empresta-lhe uma consistência
que o torna capaz de impressionar sensibilidades de tempos muitos diversos.
Assim, o livro de 1500, lido em 1905, não é o mesmo livro de então; morreu um
pouco e tornou a nascer um pouco. É um outro livro de um outro autor. O que
chamamos tradição propriamente não existe. Que vem a ser uma tradição literária?
Talvez o mosaico fantasista e caprichoso com que o tempo se divertiu em
transformar a sucessão de obras e autores que constituem uma literatura? Não pode
ser mais que isso, e a nossa época, dotada de espírito crítico, acha pouco. (idem,
1925, p. 32)
A questão parece ser a mesma: como negar a existência daquilo que já
notamos como conceito, no caso, a tradição? Mesmo essas contradições de
superfície do extremista, sem a análise pontual das afirmações, não reduzem a
finalidade última de demonstrar a relação íntima entre os tempos e, também, o
poder daí resultante, seja do passado na forma de tradição — a tradição como aura
e não necessariamente como autoridade —, seja do presente na da crítica
modernista. É esta consciência que está por trás das “duas maneiras” com que o
tempo age, por extensão, sobre um documento de cultura.
Surpreende, pois, a afirmação de um tempo pelo tempo como produtor
“caprichoso” da tradição. O que anteriormente dependia dos homens, na atividade
ou na passibilidade, agora se reduz a um poder incontrolável, difícil de alcançar;
mas para Drummond, assim como o tempo muda, a tradição “renova-se”,
portanto, a indiferença pela tradição parece estar de acordo com a indiferença pelo
tempo, sendo que esta que se liga àquela. De nada adianta qualquer pretensão de
autoridade dos homens para sobreviverem ao eterno em suas obras, a posteridade
dos seus nomes é oficio alheio, trabalho perene que corrói sua carne deixando
apenas um resíduo — este resíduo para Drummond é a tradição55
. Resíduo que
não permanece intocável pelo tempo, pois em sua acepção, a tradição é móvel,
então o trabalho será tão infinito quanto os séculos, o adelgamento permanecerá.
Quais os “interesses”, então, que levam o tempo a talhar esta ou aquela
obra? Drummond não parece ser explícito para aquilo que ele mesmo está fazendo
ao escrever aquelas letras. Isso não o reserva de dar uma resposta plausível. O
interesse é do próprio tempo, i.e., apenas aquelas obras que estão “de acordo” com
o que podemos dizer “espírito do tempo” é que poderão ter o privilégio de serem
55
O que nos faz lembrar do poema Resíduo: “E de tudo fica um pouco./ Oh abre os vidros de
loção/ e abafa/ o insuportável mau cheiro da memória.” ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia
completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2002, p. 159.
206
moldadas... Por outro “espírito do tempo” posterior. É neste sentido que o
modernismo faz a apropriação do romantismo e de toda a tradição de brasilidade.
Então é sintomático dessa “coincidência temporal” tais palavras de Mário de
Andrade sobre o romantismo na sua conferência de 1942:
Esta necessidade espiritual [revolucionária], que ultrapassa a literatura estética, é
que diferença fundamentalmente Romantismo e Modernismo, das outras escolas de
artes brasileiras (...) Ora aquela base humana e popular das pesquisas estéticas é
facílimo encontrar no Romantismo, que chegou mesmo a retornar coletivamente às
fontes do povo e, a bem dizer, criou a ciência do folclore. (Andrade, 1975, p. 250)
Então, tudo depende de um denominador comum que ligue os tempos
diferentes, de uma continuidade, uma “linha inalterável” (como o quer o próprio
Mário). Está então flagrante a mesma “linha” em Antonio Candido, quando este
diferencia as manifestações literárias da literatura, “considerada aqui como um
sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as
notas dominantes duma fase.” (Mello e Souza, 2007, p. 25). Ponto crítico:
tradição invariável (o supra-histórico de Nietzsche) e tradição mutável. Como
reconciliar? Não é preciso, nunca deve ser. O contraste nos distrai enquanto que o
sentido por trás das contradições aparentes está na segunda “maneira” com que o
tempo trata a obra: “empresta-lhe uma consistência que o torna capaz de
impressionar sensibilidades de tempos muitos diversos.”
“Consistência”, feição, esqueleto que nos olha recém-nascidos, que detém
certa beleza que extasia-nos por sua sincera beleza, vamos dizer, por sua empatia;
a empatia é incontornável, a fluidez do tempo não desgasta a imagem, sua nossa
semelhança. A identidade com coisas tão velhas impressiona e conquista porque
atingiu nosso sentimento. A “sensibilidade histórica” é atemporal, aistórica por ser
histórica.
Convém aqui fazer um diálogo com talvez o maior modernista que
problematizou a tradição contra a paixão crítica moderna, e perceber as nuanças
com que o modernismo tinha que lidar. Escreve-nos T. S. Eliot:
O sentido histórico envolve uma percepção, não só da passadez do passado, mas de
sua presença; o sentido histórico compele um homem a escrever não apenas com
sua própria geração em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura
da Europa desde Homero e dentro dele a toda a literatura de seu país tem uma
existência simultânea e compõe uma ordem simultânea; este sentido histórico, que
é um sentido de atemporal, assim como do temporal e do atemporal e do temporal
207
em conjunto é o que torna um escritor tradicional. E é, ao mesmo tempo, o que faz
um escritor mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria
contemporaneidade. (Eliot, 1932, p. 14. Grifos meus)
Ser contemporâneo de si mesmo, como escrevera certa vez o poeta Murilo
Mendes, é para T. S. Eliot ser contemporâneo de um tempo atemporal, de uma
história aistórica. A busca do presente é a busca de algo que não é presente nem
mesmo passado porque não tem definição passível de medição cronológica,
apenas de apreensão sensitiva, mas de um sentido que no fim das contas nos
impede de nos aventurarmos no próprio presente, no contemporâneo, já que ele é
dado de antemão em direção ao coração de quem viver e sentir o agora; neste
sentido, nem mesmo é preciso compelir a escrever com o sentimento, sendo que,
escrevendo mesmo com a matéria do novo ou do velho, ele vai tratar de um
contemporâneo de antigamente ou de um contemporâneo de agora. O “sentido
histórico” de Eliot anula-se, ou antes, é apenas “sentido”, é apenas tradição, uma
continuação infalível, sendo que fugir para qualquer tipo de forma, clássica ou
moderna, é permanecer num mesmo território, livre da consciência de mudança e
na superficialidade do histórico, da diferença de tempos. O pleonasmo do
argumento é o exemplo eminente do pleonasmo do tempo. A tradição — o tempo
verdadeiro — tem sempre a última aparência do momento que morreu, e nós
“modernos” e iludidos que somos, não sabemos que ao olhar, sentir ou
impressionarmo-nos por sua presença, estamos “escrevendo” nós mesmos, como
podemos ver na tradição Brasil. Para o modernista cristão inglês, se o antigo não
deve mais existir, tão menos o moderno permanecerá ileso.
Essa continuidade pela continuidade, essa “ordem simultânea” que vagueia
sobre todos os tempos parece se aproximar da supra-história nietzscheana,
fantasma eterno caminhante nos jardins da história. Nietzsche também apontava
uma “simultaneidade intemporal” de indivíduos “que formam uma espécie de
ponte sobre a torrente do devir”, cabendo à história mediar esse elevado “diálogo
entre os espíritos”. Assim, a grandeza da humanidade pode sim ser uma
construção ao longo da história, apesar de não histórica, mas feita de modo
concatenado, aos saltos.
A “sensibilidade de tempos diversos” de Drummond e a “ordem
simultânea” de Eliot parecem se completar. Apenas parecem. Enquanto o
americano insistentemente tentar refutar qualquer sinal de mutabilidade, chegando
208
a anular o tempo compartimentado “em nome” da tradição pela tradição, da
tautologia, Drummond ainda se compraz na concepção do tempo histórico porque
o trabalho capaz de impressionar a sensibilidade dos tempos, capaz de tocar o
coração da atualidade que o recebe, é também, apesar do que vimos
anteriormente, tarefa ativa do presente, afinal, um sentimento que viaja absoluto,
transgredindo qualquer fronteira cronológica, explodindo as dimensões do espaço
temporal, chega até nós, bate em nossa porta insistentemente e podemos até abri-
la, mas compete ao nosso coração arrebatá-lo, ao nosso presente, senti-lo e
impressionarmo-nos.
Retomando o artigo de Drummond, ao afirmar a inexistência da tradição, ele
foi impassível, insensível, não lhe agradou o espetáculo, aparentemente bateu a
porta na cara da tradição, mas nem por isso deixou de abri-la para verificar a sua
“consistência”, sua face.
Ao tratar antes da onipotência de um tempo artesão a talhar a tradição, o
crítico mineiro esboçou uma premissa que poderia ter sua conclusão depois da
constatação da “sensibilidade de tempos diversos”, mas ficou apenas na premissa.
Na verdade, a conclusão era clara: por detrás da especulação do trabalho do tempo
ou da significação dos homens na tradição, fica a certeza de que esta é uma
avaliação, interpretação; e sendo interpretação ela, a tradição, só pode ser
analisada como uma forma de tradução, porque ela se torna outra, vibrando o eco
na abóbada de cada século: como escreve Drummond, “morreu um pouco e
tornou a nascer um pouco. É um outro livro de um outro autor.” Continua porque
morre também. Mas é uma tradução nos sentido exposto por Karl Marx e
Friedrich Engels, no caso da releitura que os alemães fizeram do socialismo
francês56
:
O trabalho exclusivo dos literatos alemães foi o de pôr em uníssono as novas ideias
francesas e a sua velha consciência filosófica, ou melhor, apropriar-se das ideias
francesas partindo do próprio ponto de vista filosófico. Apropriaram-se dessas
ideias pela tradução, como se faz com uma língua estrangeira (...) Por exemplo, por
debaixo da crítica francesa ao regime do dinheiro, escreveram: ‘Alienação da
natureza humana’, debaixo da crítica francesa ao Estado burguês, escreveram:
‘Abolição do reino da universalidade abstrata’ e assim por diante. (Marx & Engels,
1993, p. 92)
56
Aqui seguimos a ideia proposta por Flora Süssekind (1984).
209
A releitura da ideia original, da obra original, na direção de um novo sentido
contemporâneo, que satisfaça as novas necessidades do momento, é o que então
fazia Drummond. E é neste mesmo sentido que o modernismo reelaborava suas
concepções de literatura nacional e de seus precursores. Nesta tradução retroativa,
principalmente a de “desrecalque”, elementos novos são reinterpretados e
traduzidos na predileção das demandas atuais57
. Como escreve Flora Süssekind
sobre a ideologia estética do naturalismo:
A construção de uma história literária, como a de uma árvore genealógica, se faz
com o ocultamento das diferenças e descontinuidades. (...) Nada que coloque em
dúvida a caracterização de tal literatura como um processo contínuo e evolucionista
de aperfeiçoamento (...) De um pai para filho, de um escritor a outro, de um
período a outro, e espera-se que se repita a tradição transmitida senão
hereditariamente, ao menos literariamente. (...) Em eco, repetem-se
proverbialmente. (Süssekind, 1984, p. 33-34)
Sendo uma seleção, uma avaliação, o olhar que cria uma tradição distingue
o que lhe convier do passado. Os tempos se reconciliam, reverberam a força do
novo, este sempre um problema antigo, se o motivo maior for o Brasil do futuro,
pois o Brasil é meta-história, telos: uma filosofia da história, determinismo
genuíno, lei de desenvolvimento histórico inelutável, como escreve Roberto
Ventura:
A história literária brasileira, traz, desde os primeiros esboços no romantismo, a
definição de uma entidade abstrata corporificada nas obras, criações individuais
que refletiriam um “caráter” ou “espírito” coletivo: o ser nacional. Busca-se uma
essência, situada em uma teleologia inscrita na ordem natural das coisas. A história
literária se torna sinônimo mais ou menos difuso desse ser, com a função de
apresentar a identidade coletiva do povo brasileiro, cuja origem é remetida à
formação quase mítica de uma ‘tradição’ nacional. (Ventura, 1991, p.166)
Nisto reside a “originalidade” brasileira, e a inteligência de tanto pensar na
nacionalidade, esqueceu-se deste quinhão, pura metafísica da sensibilidade, tão
distraídos puderam estar, que mesmo vendo-se numa história não sabiam que a
história estava neles, impregnado do mofo dos antigos, mofo tão novo quanto as
57
Assim é que Mário de Andrade escreveria, por exemplo, sobre Aleijadinho, relendo-o: “Mas
abrasileirando a coisa lusa, lhe dando graça, delicadeza e dengue na arquitetura, por outro lado,
mestiço, ele vagava no mundo. Ele reinventava o mundo. O Aleijadinho lembra tudo! Evoca os
primitivos itálicos, bosqueja a Renascença, se afunda no gótico, quase francês por vezes, muito
germânico, quase sempre, espanhol no realismo místico.” ANDRADE, Mário. O Aleijadinho e
Álvares de Azevedo. Rio de Janeiro: Revista Acadêmica editora, 1935. P. 65.
210
recentes teorias vindas das vanguardas europeias porque a seleção do passado vem
junto à seleção do presente, das ideias atuais que não semeiam arbitrariamente em
quaisquer terras, traduzidas em idioma local para poderem falar com aquela voz
que encontramos aqui “desde sempre”. A inteligência brasileira ultrapassou a
vulgar disputa entre modernos e antigos porque nossos novos estão condenados a
ser velhos de espírito. Mas ressuscitamos a ideia nacional, enquanto morrem os
homens e os tempos: a tradição brasilianista supera os tempos, flutua acima da
história, zomba da mudança, é extemporânea em qualquer atualidade, pode morrer
com uma geração mas a próxima vestirá a mesma sobrecasaca. Mais ainda: como
tradução do que está à disposição, a tradição não deve ser vinculada meramente ao
campo da produção, menos do tempo como tampouco do homem, mas ela se
insere sim no campo da recepção. O passado e seus homens produzem, mas nós e
a crítica, ao avaliarmos e distinguirmos, também produzimos um modo de
recepção.
Em uma entrevista bem posterior, na década de 1980, Drummond dá bem
essa dimensão da tradição literária:
Nunca deixei de nutrir certo respeito-ternurinha pelos mais velhos que tinham feito
o mesmo que eu tentava fazer. Podia não ser muito afeiçoado ao que escreveram,
mas eram de certo modo meus tios, pessoas a quem a gente dispensa consideração,
mesmo não indo com a cara deles. De fato, se não fossem esses tios literários, que
mal ou bem nos transmitem o fio de uma tradição que vem de longe, não haveria
literatura. Ninguém a inventaria. (Andrade, 2003, p. 1214)
Nem por isso Drummond deixa de notar no artigo por nós analisado a
morbidez da “crítica” diante do “mosaico fantasista e caprichoso”, ainda que
reconhecendo-a como tal. É preciso mais que isso. Se damo-nos ao trabalho de
enfrentá-la, abrir a porta para encarar a face disforme, mas sendo ainda assim uma
face, um conjunto do “atemporal, assim como do temporal e do atemporal e do
temporal” eliotiano, se produzimos tal receptividade, avaliando-a e assim
identificando-a e batizando-a, a tarefa da crítica não deveria acabar aí. Na
passagem seguinte, o crítico abre o coração da crítica verdadeira:
Temos mais que direito de desrespeitar essa tradição: temos o imperioso dever. E
só assim teremos dessa matéria morta e pegajosa dos séculos uma argila dúctil, que
sirva às nossas criações. (idem, 1925, p. 32)
211
“Romper” com o passado, “desrespeitar” a tradição. Ali sem refutação, aqui
sem escrúpulos de qualquer ordem. É claro que nem tudo que é passado é
tradição; é preciso separar o que sobrou como silêncio do que sobrou como voz —
aquela mesma voz de sempre. Drummond vacila ao olhar para trás porque, em
nome de um projeto maior, ele deverá respeitar certo passado que lhe interessa,
novamente, vale a pena repetir, o de uma tradição de brasilidade. Por outro lado, a
“tradição” escolhida a dedo (e o crítico ao eleger apenas “a” e não “uma” das
tradições a ser negada está sendo eminentemente político, posto que tem
consciência que a tradição é vária e “renovável” como ele nota anteriormente)
será a tradição crítica desta brasilidade, a crítica canonizada apesar e por causa de
sua perturbação que afrontou, ironicamente por sua “independência espiritual”, o
Brasil da tradição, a tradição do Brasil — a tradição chamada Machado de Assis.
Exige-se sacrifício pessoal, o mineiro mesmo o confessa no artigo, posto ser o
autor de Brás Cubas um dos seus maiores mestres: a Causa pede a prova de
fidelidade. Um dos sacrifícios que Mário de Andrade exigira de Drummond em
nome do ideal brasileiro e que antes da conversão ele, o mineiro, refutara em carta
de 22 de novembro de 1924 respondendo:
Enorme sacrifício; ainda bem que você o reconhece! Aí o lado trágico do caso. É
um sacrifício a fio, desaprovado pela razão (como todo sacrifício). Confesso-lhe
que não encontro no cérebro nenhum raciocínio em apoio à minha atitude. (C&M,
2002, p. 59)
Tragédias que seriam agora postas na ordem do dia.
Drummond escancara sua “corrupção” antes indesejada, põe os pingos nos
is: “a” tradição, mesmo a desrespeitada, deve ser entregue ao serviço dos
contemporâneos. O vacilo dentro do vacilo. O “desrespeito” pode ser favorável à
uma conversão da tradição indesejada; absorvida, ela terá um sentido mais ou
menos viável à “criação”. Se Eliot não se dá a esse trabalho porque existe uma só
“ordem simultânea” e conseguintemente nada pode ser negado, o mineiro, ao abrir
a porta sabe que aquela “sensibilidade” da tradição, se moldada à sua “matéria
dúctil”, poderá ser útil. No começo de sua argumentação era o tempo que se
inspirava “caprichosamente” no trabalho de produzir a tradição, agora o crítico
desce ao chão e se adianta ao que são as condições reais do trato: são os homens
que moldam e talham esta matéria argilosa a seu bem entender; sendo ela
212
renovável, não será tão menos intocável (retira sua aura) e maleável (esquece o
argumento moral). A corrupção da tradição então é a condição da “renovação”.
6.2.3. O roçar dos mantos
Drummond passa a afinar sua crítica, historicizando-a. Do desrespeito à
tradição ele conclui:
Recolhamos o seu espólio sem excesso de veneração; temos que proceder a um
grave inventário de suas pretendidas riquezas. O presente não pode estar a sofrer os
contínuos bluffs do passado. Seremos duramente julgados amanhã, porque é cada
vez maior esse diabólico senso crítico que distingue o homem e o moderno.
(Andrade, 1925, p. 32-33)
O movimento de uma continuidade já é caso acertado, é patente que
deveremos tratar o que parecia intratável, se o que sobrou serviu de herança não
custa recebê-lo, é no ato da recepção que a tradição, na sua condição de que não
há algo que não ela mesma, poderá ser “corrompida” — sem nenhuma
“veneração” ou “impressão”, podendo ser vista apenas como espólio. Os bens
podem ficar conquanto os antigos donos abandonem seu encargo de “fantasmas
do passado”. Ainda assim, os objetos têm que passar pelo crivo, é preciso avaliar
seu lastro para que sua “matéria dúctil” possa ser útil à criação, à originalidade
dos novos, fator único de nossa ausência de recusa. Entretanto, o capricho que
agora parece nosso e não do tempo, esconde uma condição inalterável da
modernidade: a necessidade de olhar o antigo (como vimos com David Harvey) e,
pelo contraste, saber-se outro, novo; é a ação simples e vulgar da alteridade, da
diferenciação; a dependência é de mão dupla (porque o motivo era um só, o da
brasilidade), mesmo que disfarçada em “independências espirituais” do presente
de lado ou de “fantasmas” do passado do outro.
O “espólio” é que deve ser, à sua maneira, moldado e “inventariado”,
digno de reconciliação, ou seja, se podemos manter o diálogo ou pelo menos o
olhar sobre a tradição, apenas sob a condição de espólio, essa concessão toma
validade. A tradição vai aos poucos sendo reabilitada, pelo menos a que
conhecemos, da qual Drummond também tenta se dobrar. Alistamento, separação,
discriminação, quantificação, qualificação — tal material, se sobreviver a tal
213
avaliação, que antes era outorgado ao tempo “caprichoso”, mas sustentado agora
por critérios críticos de demandas atuais, superficialmente independentes, se,
enfim, for provada sua utilidade, sua “pretendida riqueza”, então não tem por que
recusá-la: a nuance entre rejeição e ponderação irá depender de sua utilidade, por
isso ali se rompe, aqui se inventaria, se reconquista. Nesse amálgama entre o
vacilo e a atitude extremista, nessa crítica estrábica, não deveria faltar a
contradição, e nem terá importância se no princípio Drummond afirma não ser da
natureza da tradição a sua catalogação e que, nesta altura, já apela para o
inventariamento do seu “espólio”.
Ao analisar o famoso artigo de Machado de Assis, “A nova geração”, Abel
Baptista, dá um resumo do que seria a condição do conceito de “pecúlio” usado
pelo autor de Americanas:
Nestes termos, se a emergência do novo é inseparável da memória do antigo, isso
deve-se também ao fato de a memória do antigo se estruturar na dependência do
novo emergente. O ‘pecúlio’, neste sentido, não representa a resistência do passado
aos modernos: é uma componente indispensável da própria condição moderna.
(Baptista, 2003, p. 88)
Aqui em Drummond, no entanto, o espólio não é apenas o que “entra e
fica”, como diz Machado sobre o seu “pecúlio”, mas o que serve de apoio à
tradição brasileira. Quando aconselha que a tarefa da crítica é “proceder a um
grave inventário” do “espólio”, Drummond abre novamente espaço para a noção
de uma tradução da tradição, sendo que a interpretação, ao dar prova ou não das
“pretendidas riquezas”, seria o único ato sensível que ligaria o objeto de
inventariação com aquele que a inventaria. A ”sensibilidade” da tradição que
anteriormente “impressionava”, que vinha de um antes e permanecia numa
linearidade infinita, aqui é substituída pelo sentimento crítico que vai em direção
oposta, à cata do que lhe interessa — a relação é essencialmente interesseira senão
não valeria a empresa —, e recompõe o que ele separou e avaliou, no sentido de
dar um uso conveniente à nova criação; o utilitarismo, como se viu, nunca foi
velado. Seria a paixão crítica de que nos fala Octávio Paz (1984)? Seria o impulso
moderno?
A condição é dúbia, e nem por isso, ou por causa disso, deixa de ser
moderna. Aquela modernidade duplamente ambígua.
214
A razão de ser da argumentação, sendo em si uma tentativa de distinção
entre os velhos e os novos, já está inclusa no debate moderno e modernista. É
preciso a identificação daquilo que se nega para ser negado, lógica simplista, diga-
se de passagem, mas crucial para qualquer movimento que se pretenda novo
porque o adjetivo só existe por exclusão: ele não é o “recente” tampouco o
“melhor”, uma “arte recente” ou uma “sociedade melhor” oferecem a imagem
revolucionária que o “novo” abriga. Os “desrespeitadores” assim o são somente
porque necessitam de um objeto a ser “desrespeitado”, os inventariantes seriam
inúteis sem os bens a administrar. Assim, Drummond não se desvincula desta
condição primaria moderna: a crítica, para interpretar, precisa reconhecer a
tradição, mesmo que em sua forma retalhada, esquartejada, em estado de
“espólio”. Nessa acepção a tradição é incontornável, na há como negar-lhe
qualquer inexistência e nem ignorá-la, não vale, portanto, ser falso ou
verdadeiramente tradicionalista, ela está aí — no momento mesmo em que a
domamos, ela parece dotada de autonomia, de um poder de insistência, ao menos.
A tensão da premissa é moderna, portanto, só que ela deságua por dois veios
que se separam e se encontram ao longo de um caminho ruidoso, com um só fim.
Sendo aceita no contraste visual — olhar o decrépito esqueleto para o
reconhecimento do próprio vigor da juventude — a tradição eleita para o tapa do
qual nós exigimos como oferta pelo seu “reconhecimento” (só o tapa imprime no
passado o hematoma que dá visibilidade à tradição) não deixa de ser uma afronta
à também pretensa onipotência do novo: o moderno adjetivado é intransitivo,
finge unilateralmente à exigência e à servidão do velho, quando na verdade só
pode existir na companhia deste, mesmo que seja usualmente como seu antônimo,
seja no dicionário como no movimento histórico. É interessante como essa
condição sobreviveu nas vanguardas, como podemos perceber nas práticas
modernas aliadas às filosofias e éticas antigas, como bem escreve Antoine
Compagnon sobre Malevitch, por exemplo:
Contentamo-nos em insistir ainda na coincidência de uma pintura decisiva na
história e de uma filosofia ultrapassada [a influência do niilismo no pintor]
servindo-lhe de pretexto. Não se encontraria a mesma mistura, a mesma defasagem
ou a mesma tensão na maioria dos artistas contemporâneos, verdadeiramente
inovadores, em Proust, Joyce, Eliot, Pound, Kafka? A nova arte não anda sem
arcaísmo. É assim que, em Dom Quixote, reagindo contra o conformismo do
215
romance de cavalaria, Cervantes deu origem ao romance moderno. (Compagnon,
2010, p. 76-77)
No entanto, por outro lado, a aceitação da tradição não se traduz na sua
resistência justamente por sua tradução, sua interpretação; na verdade, o que
parece ser afronta, resistência, fantasmagoria da tradição, na aparência
incondicional, é apenas uma condição para sua “fantochização” pelo desrespeitoso
tribunal da crítica moderna — como um bem ela só é de agrado porque é
espoliada, saqueada pelos bárbaros modernos que somos: anular a anulação, negar
a negação, negar o moderno para ser moderno, negar a si mesmo. A alteridade e a
diferença, se irrevogáveis, estão, como modernos, condenados a se desfazerem
por completo em infinitos outros, em incontáveis novos. Drummond quer ambos,
embora saiba, como moderno e artista modernista, que também será superado,
será um “outros de antes”. Mas o que vale é a moeda do atual (tal nossa
modernidade), na luta pelo agora, por um projeto único que, se não é anterior à
modernidade é ao menos tão infinita se comparada à finitude das gerações, deverá
permanecer, posto que é o sentido maior tanto seu quanto dos “desrespeitados”
filtrados; tradição que se renova e se nega por ser ela mesma, a interpretar
“fantasmas” e “fantoches”, dois papéis, antes sentimento do que história, que
compelem os homens a escrever com sua geração em seus ossos e com uma
“ordem simultânea” impressa na pele, alteridade na superfície de uma identidade,
de uma tradição — enfim, de uma tradição de brasilidade. Que é a identidade
senão entender-se apenas com o que nos convém, com o que basta ao seu projeto,
como quer Drummond? Se um dia ele será superado, um descarte na lista de
inventário ou uma madeira a ser talhada, não tem importância talvez: ele está
seguro de que esse trabalho, mesmo regido por qualquer “alteridade” e
“diferença” ou geração que vier, será pautado por um único princípio, em uma
única identidade, pronta a desaguar num único e só futuro, uma só história, um só
oceano, oceano imenso chamado Brasil.
Este panorama que Drummond nos mostra — de uma tradição que não é
aquela tradição (ruptura) por ser a tradição (uma só voz) de uma só tradição
(Brasil) — convida qualquer análise da modernidade brasileira a se retirar, pois é
trabalho inútil, talvez, não porque não sejamos modernos, vemos o contrário, mas
pelo fato de que toda a diferença é uma só unidade, a paixão crítica, a diferença
216
outra se transforma numa diferença mesma; o sentido de qualquer “espólio” é
enriquecer uma ideia, e se essa riqueza aumenta irremediavelmente, a inteligência
“independente de espírito” segue caminho proporcionalmente inverso, empobrece,
recua em sua aparência de originalidade.
A discussão se alimenta da modernidade — caça-lhe, prende ao cativeiro,
degusta todas as forças e virtudes guerreiras para depois vomitá-la, criando uma
substância que é mistura de sulcos internos e proteínas estrangeiras a seu corpo,
gosma verde e amarela —, para fins externos a ela mesma: inventaria apenas o
que lhe pode servir como “espólio”, e assim, pode dar ao “fantasma” moderno o
mesmo tratamento dado à tradição, colhe apenas o que convém de sua “pretendida
riqueza”, e, portanto, chega à atitude extrema de suprimir até a autoridade do
moderno, de modo que o próprio Drummond anula seu “desrespeito”, como
também ele se faz necessário porque será no futuro um objeto de crítica e razão de
ser de outro “espólio” posterior de caráter... Brasileiro! Modernofagia. Por isso
parecemos mais modernos do que qualquer modernidade.
Se a tradição da transformação, a continuidade da descontinuidade aponta os
pés para o infinito, pois só neste significado é que repousa o sentido do futuro, é a
condição moderna por excelência, nem tanto o somos. É como sentir a dor de uma
perna amputada: apenas sente-se com a alma e com a carne disponível, não com
uma carne que deveria sentir. A fastigiosa caça da modernidade só faz sentido se o
vômito for verde e amarelo, do contrário é trabalho vão; enquanto não se acha tal
substância autêntica, a aventura moderna é necessária.
A mudança numa só direção não exclui a acumulação, mas só neste sentido
pode se dar ao luxo de distinguir antes e depois, velho e novo, todos sobre o
mesmo terreno. Drummond fala de “riqueza” pretendida do passado, mas não vai
de encontro à concepção de um montante cultural que tenha seu valor para o
sortudo que está no atual, o crivo do “inventário” serve tão-só para distinguir
positiva ou negativamente tal lastro cultural. Aí, no entanto, a “riqueza” tem uma
escalada vertical e não horizontal, não é um amontoado arbitrário, é o que há de
comum entre todas as tradições que o tempo, ou melhor, os homens foram
produzindo, recebendo e deixando de herança para quem os receber; se a
avaliação cabe a nós, intransigentes contemporâneos, é claro que ficaremos
apenas com o que é de nosso interesse, o que causar empatia com nosso projeto
presente, a questão é que havia algo de comum entre a “sensibilidade
217
impressionante” que vinha de lá, da tradição, e o sentimento de empatia que vai de
cá, da crítica modernista. Drummond talvez não percebesse que ao repartir os
bens para uma só “riqueza” estava reprisando o mesmo ritual que a geração
inventariada por ele, embora não se iludisse que no futuro isso era mais que certo,
devido ao “diabólico senso crítico que distingue o homem e o moderno.” Se para
Paz (1984) a tradição é ruptura, aqui a tradição (continuidade) é tradição (Brasil),
a tautologia insiste, a modernidade recua. A modernidade resiste.
6.2.4. O mesmo assunto
Continuidade da descontinuidade do igual, repetição na diferenciação, não
diferenciação repetitiva. O novo não se faz no presente, a busca do atual só carece
do antigo porque o céu dos problemas deste é o mesmo que paira sobre as nossas
cabeças. O presente não é matéria de criação — reconhece Drummond que não é
possível ser original se a demanda literária é a mesma; é do “espólio” avaliado, da
tradição, “matéria morta e pegajosa”, moldada e inventariada que deve partir a
inspiração do novo, que já não é mais original. Depurou-se então o termo: “o
novo”, antes forma de contraste, oposição, diferença, agora é harmonia,
semelhança, identidade. Rompe com o passado sim, não menos o desrespeito para
com a tradição; mas há passados e passados, tradições e tradições, fica com uns
desaparecem outros, tudo dependerá do inventariante, i.e., do crítico do presente,
do moderno. Neste sentido — e apenas neste —, Drummond não destoa muito da
concepção de “sentido histórico” de T. S. Eliot anteriormente citada. Se o
“espólio” feito em todas as gerações precedentes tinha como único motivo
inventariar uma tradição literária brasileira, o escritor moderno carrega em si (e o
Drummond recém-convertido nacionalista não se abstém disto) aquela “ordem
simultânea” que o faz escrever tanto com a comunidade de sua geração quanto
com um sentimento em sua alma. Assim, ao que o mineiro pensa ser a superação
da tradição em estado bruto, apreende-se um conceito que denota a própria
tradição — a continuidade — na ideia de “espólio”; por isso, se não lhe dá mais
uma aura, uma autoridade, põe-lhe um decoro. Neste sentido, Drummond é
novamente mais moderno que a modernidade, brinca com ela, questiona-a com
seus próprios termos, procura a brecha e por ela explode a diferença, é, portanto,
218
moderno porque exterior a esta na medida em que a anula em seu próprio
território. Em jogo, a criação que atinja a todos, absoluta, homogênea, sem
nenhum contraste interno. Para isso sacrifícios são necessários:
Que cada um de nós faça o íntimo e ignorado sacrifício de suas predileções, e
queime silenciosamente seus ídolos quando perceber que estes ídolos e suas obras
são um entrave à renovação da obra geral. (Andrade, 1925, p. 33)
Seria inevitável que a “obra geral” entrasse em desacordo com a
“predileção” pessoal — daí que o sacrifício deve ser tão “renovável” quanto a
tradição —, que é mais “íntimo”, mais privado que um ato público, embora
Drummond faça o favor de expor sua fogueira num periódico. Aqui novamente a
atitude extremista mistura-se com um pesar, pois atirar à fogueira os “ídolos” cabe
a cada um, mas “silenciosamente”, sem qualquer tipo de alarido passível de
trauma, afinal é uma questão “íntima”, e sendo do sentimento, do coração, é
preciso o mínimo de respeito; outra reviravolta: o “desrespeito” obrigatório — é
um dever moderno — e “imperioso”, afobado e inconsequente, aqui está envolto
em uma atmosfera de deferência; para cremar o corpo é preciso velá-lo, certo de
que o “ídolo” não é um indigente, tendo então direito a certa cerimônia, tudo
porque é um sacrifício pessoal, e Drummond mais do que qualquer um sabe que
isso dói um pouco. É o que ele relembra bem mais tarde, com relação ao próprio
Machado de Assis:
Deste não me separaria nunca, embora vez por outra lhe tenha feito umas má-
criações. Justifico-me: amor nenhum dispensa uma gota de ácido. É mesmo o sinal
menos que prova, pela insignificância e transitoriedade, a grandeza do sinal mais.
Se me derem Machado na tal ilha deserta, estou satisfeito; o resto que se dane,
embora o resto seja tanta coisa amorável. (Andrade, 2003, p. 1217-1218)
Os “ídolos”, entretanto, não estão no “espólio” inventariado; depois da
avaliação, eles são comprovadamente aqueles de “pretendidas riquezas”, não-
eleitos, profanadores, degradados, devem ser portanto denunciados, admoestados
e condenados finalmente a arder em chamas. Como bem nos diz Flora Süssekind
sobre a condenação de Sílvio Romero ao mesmo Machado de Assis:
Se não repete a nacionalidade, tal como a define Sílvio Romero, Machado torna-se
passível de crítica. (...) Ao fragmentar alguns de seus sustentáculos com a ironia,
resta-lhe uma dupla condenação. Machado parece, como o pequeno Johann, usar
219
sua pena para, com uma linha dupla, fraturar o ‘instinto de nacionalidade’
dominante na ficção brasileira. Ruptura que não o deixa sem a punição de torná-lo
sem ‘filhos’ ou ‘seguidores’. Estéril como Aires e Bentinho, permanece
estigmatizado por inexplicável isolamento de quem, numa literatura que se exige
documental, ironicamente pincela fragmentos. (Süssekind, 1984, p. 30-32)
Neste tratamento o esquecimento da tradição não aceita, que se
transubstancia na imagem dos “ídolos”, é tarefa dos novos; a verdadeira afronta
não vem da tradição maleável e sim da que não se ajusta a uma condição que nos
interessa, a nós contemporâneos, justamente daquela que nos tornaria mais
modernos, pois ela demonstra o contraste interno, a alteridade, a consciência de
uma variedade heterogênea, como em Machado de Assis. Negando-a em nome de
uma modernidade — do “desrespeito” à uma autoridade de antigamente — nega-
se a negação, o mesmo movimento que faz ouvir a voz de um, que é sempre uma
voz, tapa simultaneamente a boca de outros, que são a voz discordante, disforme,
inconveniente e, no mesmo sentido, perturbadora.
A tradição filtrada, “inventariada”, perpetua a voz única, a brasilianistica em
literatura, graças a este desacordo que será tão “renovável” quanto qualquer
tradição, i.e., como as gerações precedentes levaram ao fogo os “ídolos”
discordantes, as futuras também perpetuarão o rito. Mas, ao contrário do que
poderia parecer, esta desarmonia não chega a ser ruptura, daí que não se pode
levar a considerá-la eminentemente moderna, já que é o desacordo de um mesmo
problema, pauta as mesmas questões seguidas das mesmas argumentações, sendo
que a voz que discorda ainda assim põe em consideração o projeto brasileiro — e
se ele deve ser eternamente vencido pela voz hegemônica, isso não o torna uma
“vítima” da “amodernidade” em território brasileiro. Os filhos desgarrados,
bastardos, deserdados, para lembrar as associações de Flora Süssekind (1984),
ainda que expulsos de casa, tinham o sangue de seus pais correndo em suas veias,
e, conseguintemente, falando de modo “naturalista”, estavam condenados ao
mesmo “vício”. Mais particularmente podemos percebê-lo em Oswald de
Andrade, que, apesar de um romance extremamente experimental na década de
1920, será o primeiro a encontrar a tradição da brasilidade como saída para o
sucesso do modernismo.
Drummond quer que saibamos da reflexibilidade, da racionalidade aguda de
sua proposta; passa certo ar de segurança e responsabilidade, dá a entender, enfim,
para o leitor, a integridade da ação e, é claro, de seu projeto, projeto de toda uma
220
(várias) geração(ões), de todos que irão perpetrar a “obra geral” da literatura
brasileira, do seu sistema. Foram-se os tempos das provocações imprudentes, das
polêmicas de letralices formais, das semanas de pura ofensa e ousados berros, dos
“reformistas que gritam demais”, como ele mesmo escrevera a respeito dos
paulistas em um artigo de 1922 (apud Cançado, 1993, p. 95); agora é hora de
abraçar um projeto, é preciso a análise da realidade, o estudo comprometido com
uma disciplina austera, de reflexão e avaliação incorrigíveis, e as seguintes
polêmicas daí resultantes só levariam a mais estudo e levantamento de
documentação, sendo pois de “interesse”. Neste sentido é que se entende o caso
discordante entre Mário e Oswald, como escrevera Eduardo Jardim, de Moraes,
entre a visão analítica da cultura daquele e a visão intuitiva e sintética da
nacionalidade deste último (Moraes, 1978, p. 124), assim como podemos perceber
o porquê da tomada de posição do nosso mineiro para o poeta de Paulicéia.
A reflexão previne que da queima não sobre um pouco de cinza dos
“ídolos”, cinza que possa ainda perturbar a “consciência moderna”. E como não
pensar também que o ato serenizado do qual o termo “silenciosamente” nos
remete não seja uma forma de ter a garantia do sucesso da depuração, sendo um
processo gradual, obtido aos poucos, já que a fogueira está no nosso íntimo e nada
se queima instantaneamente, ainda mais obras e homens de consideração
(novamente, a questão é pessoal, emotiva); por outro lado, nem mesmo é
inconcebível que no “respeito”, na ponderação, se esconda também certo
masoquismo de sentir cada segundo da gloriosa purgação...
Afinal, o maldito da literatura é um mal entendido porque “disse o mal”, o
indizível, o sacrilégio; é dado à atualidade o dever do “desrespeito”: os
desregrados serão intraduzíveis, ilegíveis, e daí para a deslegitimação é só um
pulo, um risco no material do inventário. Se eles ainda insistem na perturbação de
seu silêncio, na fantasmagorização, sendo que foram descartados para a
fantochização, é porque o silêncio é a linguagem possível para os que tiveram a
voz engolida pela boca do esquecimento. Entretanto, o maldito-mor não era
apenas o “ídolo” como também um deus, o maior deus da literatura brasileira.
Como isso pôde acontecer? Abel Baptista mostra-nos como Machado de Assis
fora aos poucos sendo absorvido pelos intérpretes interessados pela tradição
brasileira, tendo sua perturbação normalizada (Baptista, 2003, p. 35), mas
221
Drummond, intratável, resolveu mexer no morto e profaná-lo de vez. Assim ele
mostra a verdadeira face e o fim último de seu artigo:
Amo tal escritor patrício do século 19, pela magia irrepreensível de seu estilo e
pela genuína aristocracia do seu pensamento. Mas se considerar que este escritor é
um desvio no que deve seguir a mentalidade de meu país, e a aristocracia um
refinamento ainda impossível e indesejado, que devo fazer? A resposta é clara e
reta: repudiá-lo. Chamemos este escritor pelo nome: é o grande Machado de Assis.
Sua obra tem sido o cipoal em que se enredou e perdeu mais poderosa
individualidade, seduzida pela sutileza, pela perversidade profunda e ardilosa deste
romancista tão curioso e, ao cabo, tão monótono. (Andrade, 1925, p. 33)
O “sacrifício” íntimo como perda condicional inevitável só é dado ao
sentimento de ligação, de amor pelo objeto oferto; Drummond faz questão de
ressaltar, por necessidade de coerência, que quando falava de “predileções” não
estava lançando mão de um jogo superficial de retórica, antes do sacrifício do
“ídolo” vem o pesar do poeta, da pessoa que não deixa de entrever na fogueira um
pedaço de sua carne também. O reconhecimento do amor, por outras vias, dá a
patente de legitimidade: todo mártir tem direito ao respeito, e com o respeito vem
o exemplo; Drummond é prova de exemplaridade, faz de sua autofagia uma
mensagem, do ato heroico um reconhecimento coletivo — o leitor entende como
grandioso e glorioso o ato íntimo do crítico, sendo levado pela empatia a
considerá-lo.
O amor não resiste à falha do “objeto” amado, qualquer vestígio estranho à
imagem que dele construímos resulta numa alteração, o que pensávamos ser puro,
perfeito, porque assim o entediamos e víamos, agora foi corrompido, ele então se
torna estrangeiro, irreconhecível, não adere mais ao que sentíamos dele receber:
como a tradição, o amor também está circunscrito ao campo da recepção, quem
ama, quem traduz, sempre recebe uma imagem mas não se vê que é nele que a
imagem também é produzida, como se ele fosse a retina ao transformar a luz
exterior num conjunto de formas e cores dentro do cérebro. Sendo algo que não eu
ou uma continuação de mim, sendo outro, a alteridade da alteração é repudiada,
desprezada, degradada: seguinte à resposta do amante diante da Queda do amado,
o crítico também parte do amor para o ódio, o “repúdio”.
Machado de Assis transformou-se, portanto, num desvio no íntimo, na
predileção do mineiro, mas também o era na “mentalidade” de seu país — veja
que quem dá a avaliação é ele! O lado pessoal extrapola para um dado objetivo.
222
Neste sentido, seria interessante um estudo sobre a relação do modernismo com
Machado de Assis, figura para eles tão emblemática e que expunha suas
contradições. Podemos perceber essa relação de amor e ódio nestas palavras de
Mário de Andrade sobre o criador de Brás Cubas:
Amor que nasça de piedade, nem é amor e nem exalta, deprime. E sobra ainda
lembrar que certas desgraças, não o são exatamente. Nascem do nosso orgulho.
Nascem de uma certa espécie de pudor muito confundível com ambições falsas e
com respeito humano. Estou me referindo, por exemplo, a preconceitos de raça e
de classe. E aos artistas a que faltem esses dons de generosidade, a confiança na
vida e no homem, a esperança, me parece impossível amar a perfeição, a grandeza
da arte é insuficiente para que um culto se totalize tomando todas as forças do
crente. Sabes a diferença entre a caridade católica e o livre exame protestante?... A
um Machado de Assis só se pode cultuar protestantemente. (Andrade, 1972, p. 90)
A “magia irrepreensível” de Drummond, ao chocar-se com algo maior
merece o “repúdio”, a “aristocracia” genuína e a “falta de generosidade”, a
condenação da “impossibilidade”; enquanto o amor afirma, o ódio, em nome de
outro amor, nega. Nesse jogo, não menos contraditório quanto coerente, aqui nem
mesmo essas palavras são válidas, o vacilo parece perpétuo na medida em que os
inventários das gerações futuras também o serão, tudo envolto numa única
questão brasileira.
Chega a ser irônico um poeta cuja mais densa característica era o
individualismo ligar esse comportamento à “perversidade”, metaforizando tal
condição no termo “cipoal”, lugar de difícil acesso, e, talvez, seria esse o
significado da “impossibilidade” mencionada como inabitável e impraticável; os
termos “sutileza” e “ardilosa” “perversidade”, incorporam na nova imagem
alterada, o sentido da malícia dissimulada, do encanto sorrateiro premeditando
maus caminhos para a presa que a própria metáfora do “cipoal” faz crer, como um
bicho escondido no mato pronto a dar seu bote. Machado atrai olhares, leitores
inocentes, ingênuos imberbes, moços literatos desavisados: Machado, nesta
acusação de Drummond, é Capitu e seus olhos de ressaca, olhar oblíquo e
dissimulado, perverso e ardiloso; se na sua juventude tais olhos deram-lhe a
oportunidade e o encanto do primeiro beijo literário, mais tarde ele expôs a
confissão do adultério, denunciando a si mesmo. Do mesmo modo, como não
ligar Drummond a Bentinho: este para edificar seu amor rompe com a tradição,
quebra uma promessa santa, mas posteriormente, ao legitimar a separação na
223
acusação de adultério, estará assim reafirmando outra tradição, a do casamento,
isto é, as “corrupções” das tradições são modeladas ao interesse pontual, presente
(não seria esse um ato moderno?). Também o mineiro: em sua juventude e até
pouco tempo antes de tal artigo esbravejava impaciente contra qualquer vestígio
de tradição brasilianista em literatura, converte-se e agora o vemos como mais um
no contingente desta.
Mas então ele ainda estava em sua mocidade, e sendo assim, como ele
mesmo assevera ao fim do artigo, num tom digno mesmo de fecho de manifesto:
“É inútil acrescentar que temos razão: a razão está com a mocidade.” (Andrade,
1925, p. 33).
6.3. O gauche retomado
É interessante notar como Carlos Drummond de Andrade não conseguia
articular as questões modernistas presentes. Como vemos nesse artigo acima
analisado, a tradição é, por princípio, algo nefasto, mas aos poucos ele a reelabora
como algo a ser filtrado pois o seu objetivo também é sinalizar que estava de
acordo com a brasilidade do modernismo, e com isso, das reinterpretações da
tradição literária brasileira. Não por isso o ataque pessoal contra Machado de
Assis. Pode se dizer que o artigo inteiro é um ato falho, no sentido freudiano do
termo. Tudo porque ele acaba se revelando ainda independente, com a sede
daquela liberdade que tanto lutara em debates com Mário de Andrade. A questão
contraditória é que neste número de A revista o nacionalismo é o mote em quase
todos os artigos e no próprio editorial do qual Drummond fora o autor:
Será preciso dizer que temos um ideal? Ele se apoia no mais franco e decidido
nacionalismo. A confissão desse nacionalismo constitui o maior orgulho da nossa
geração, que não pratica a xenofobia nem o chauvinismo, e que, longe de repugnar
as correntes civilizadoras da Europa, intenta submeter o Brasil cada vez mais ao
seu influxo, sem quebra da nossa originalidade nacional. (idem, 1925, p. 12)
Este período final são palavras difíceis para o modernismo do segundo
momento. Nem Oswald, nem Plínio, muito menos Mário aceitariam tais
assertivas. No entanto, é estranho que este último não tenha se referido em suas
cartas ao mineiro a nenhum dos artigos do primeiro número da revista.
224
A contradição de Drummond fora outra vez flagrante alguns meses depois
da publicação de “A tradição em literatura”. No artigo “T’ai”, no jornal A Noite,
em dezembro de 1925, Carlos Drummond de Andrade retomava a questão e
vaticinava contra o respeito à tradição:
Que diabos posso descobrir senão exotismo numa besta que morreu há 500 anos e
nem sequer deixou nada pra mim? Podem dizer que a substância humana é a
mesma. Porém, cada época tem sua feição, e modela a seu jeito essa substância. Ai
é que está. Pra v. se acamaradar com um individuo tão recuado no tempo, precisa
emprestar-lhe sua inquietação de V., sua filosofia das coisas, seu modo de ver e de
pensar. Tem que recriá-lo, pois não. A prova é que não são nem um nem dois
escritores apoteosados por uma geração e pulverizados por outra. (idem, 1972, p.
259)
O artigo todo apresenta argumentos contra o respeito à tradição que os
modernistas tinham à época, afirmando que a corda do passado “está apertando
demais” e que “o melhor era cortá-la duma vez.” (idem, p. 258). Somente aqui
podemos perceber que, para o modernismo nacionalista, a volta à tradição
brasileira, que era o preceito de qualquer nacionalismo, apresentava suas brechas
incorrigíveis. E seria mesmo Drummond quem exploraria, mesmo que às vezes
não conscientemente, tal condição peculiar de tradicionalismo e modernismo
brasileiro. Tanto que é impossível prever que o autor dessa crítica acima tenha
sido o mesmo que escrevera o editorial Para os céticos cinco meses antes em que
afirmava: “Pugnamos pelo saneamento da tradição, que não pode continuar a ser o
túmulo das nossas ideias, mas antes a fonte generosa de que elas dimanem.” 58
(idem, 1925, p. 12. Grifos meus).
Mas agora Mário de Andrade não gostou do artigo “T’ai”, como ele mesmo
escreve a Drummond no Ano Bom de 1926:
Discordo de você sobre tradição. Isto é, não sei se discordo propriamente. Meia
coluna vi que não dava bem pra você esclarecer bem o conceito de tradição e o
emprego dela que repudiava. Você leu a minha entrevista n’A noite? Lá estabeleci
a maneira de tradição pra qual sou favorável. Que emprego e que aliás você
também emprega e nem que não queira há de sentir fatalmente, como prova o
“Sabará”. (C&M, 2002, p. 180)
58
É o que também afirma Gustavo Canedo no artigo A situação, também no primeiro número de A
revista, onde escreve: “É esta a forma de patriotismo, que à luz do amor à tradição, nos guia à
posteridade de um amor luminoso.” CANEDO, Gustavo. A situação In A revista. Belo Horizonte.
Ano 1. Vol. 1.
225
Drummond acaba não respondendo a crítica. Pelo último artigo analisado
bem se vê que Drummond não conseguira apreender bem o sentido de
tradicionalização de que fala Mário de Andrade em sua entrevista acima
mencionada.
Toda tentativa de modernização implica a passadistização da coisa que a gente quer
modernizar. Assim nos sujeitos indivíduos que tentam é natural, quase
imprescindível a psicologia do revoltado. A gente se revolta contra o que parou.
Isso perturba o indivíduo, faz ele praticar exageros, leviandades e perder
principalmente muito da posse de si mesmo (...) Numa revolta o importante é não
ficar marcando passo. A gente se excetua apenas o tempo necessário para
conquistar mais liberdade e sobretudo visão melhor da torrente humana. Mas
depois se reintegra na torrente, porque só mesmo dentro dela pode eficiente e
fecundo. Pois até já não se fala que muitos de nós, modernistas brasileiros, estamos
voltando para trás? Voltando nada! Não paramos na revolta, esse foi o jeito com
que acertamos a primeira pergunta do nosso exame. (...) Tradicionalizar o Brasil
consistirá em viver-lhe a realidade atual com a nossa sensibilidade tal como é e não
como a gente quer que ela seja, e referindo a esse presente nossos costumes, língua,
nosso destino e também nosso passado. (Andrade, 1983, p. 17-19)
Na verdade, em “T’ai” parece haver uma discordância com o “Sobre a
tradição em literatura”, devido à falta de ponderações que ele faz sobre a tradição.
Bem visto, é o Drummond gauche e crítico aflorando, ao mesmo tempo também
um crítico ingênuo e pouco afeito às nuanças do modernismo. É a mesma mente
pré-1924 que tenta perceber que a tradicionalização do modernismo parecia ser
um erro inelutável, mas ainda assim, criticável. Ao fim, ele se revelará inquieto
quanto à nacionalização do modernismo, mesmo produzindo críticas e poemas
que se esforcem por predispor uma necessidade de documentação da brasilidade.
O desinteresse pelo primitivismo ao menos continuava o mesmo, como ele
confessa ao amigo em carta de 07 de fevereiro de 1927:
Nunca tive a menor simpatia pelo índio, nunca recebi a menor sugestão dele. Nada
em mim e fora de mim me fala dele. Detesto O guarani, romance e ópera. E já que
estamos falando em índio, me explique aquela sua “Toada do pai do mato”, que fui
descobrir — era, imagine onde! — dentro duma conferência do senhor Arnaldo
Damasceno Vieira. É preciso admitir que sou ignorantíssimo em folclore indígena.
O poema me perturbou, mas não me comoveu. (C&M, 2002, p. 269)
A verdade é que Mário de Andrade não conseguira converter um espírito tão
livre e individualista como o de Drummond para a simpatia de um projeto que se
construía, para o mineiro, como um abandono total à sua criação intelectual e
226
literária, e ainda mais porque exigia uma disciplina quanto à pesquisa folclórica e
mitológica da qual pouco fora afeito. Mais do que isso, o modernismo de
Drummond ainda persistia num invólucro pouco purista quanto às reivindicações
modernistas de primeira fase, por exemplo. Com isso não queremos afirma o não-
modernismo crônico do poeta, seria ridículo não pensar na ironia, no poema-
piada, no verso livre, na síntese etc. das quais Drummond fora mestre; mas nele
permaneceram certos esforços que pareciam estar “ultrapassados”, como bem
mostra a crítica do mesmo Mário de Andrade ao primeiro livro de poemas do
nosso mineiro, Alguma poesia:
Tem mesmo em Carlos Drummond de Andrade um compromisso claro entre o
verso-livre e a metrificação. Os versos curtos assumem, na infinita maioria, função
de versos medidos, contendo noções geralmente completas e acentuações
tradicionais. (Andrade, 1972, p. 32).
Drummond, portanto, abandona o seu penumbrismo alvaromoreyrista, mas
continua num diálogo constante com soluções poéticas não-modernistas, daí que o
elegemos como a dobra do movimento, seu limite crítico.
É neste sentido que entendemos que Drummond sempre tivera em conta o
diálogo com a tradição literária, e nem por isso não seria tão surpreendente assim
a sua “virada classicista” de Claro Enigma. Esta questão já fora resolvida por
Vagner Camilo ao argumentar que o poeta gauche e solitário queria
por um lado, proteger-se da retórica alienante e estéril em que incorreu a geração
de 45 no seu intento de firmar o território autônomo da poesia, em resposta à
especialização do trabalho artístico então em curso; de outro, escapar ao
comprometimento político-partidário de muitos artistas participantes que se
sujeitaram aos dogmas jdanovistas. (Camilo, 2001, p. 96).
Mas é importante ressaltar o quanto a formação pré-modernista de
Drummond sobreviveu ao choque do movimento e à adesão junto aos
modernistas, que, anos mais tarde seria relativizada. Em entrevista a Zuenir
Ventura no ano de 1980, Drummond, ao ser perguntado sobre seu verdadeiro
papel de gauche na vida, responde:
Acho que fui. Porque aderi ao sistema de valores que dominava na minha época,
participei timidamente de um movimento de renovação literária, que não chegou a
227
ser política, nem social, nem econômica. Fiquei na minha toca. (Andrade, 1980, p.
8. Grifos meus)
Por fim, quando Carlos Drummond de Andrade publica Alguma poesia,
com poemas escritos ao longo da década de 1920, percebemos suas faces quanto
ao nacionalismo, principalmente em poemas como “Também já fui brasileiro”:
Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
E todas as virtudes se negam.
(idem, 2002, p. 7)
E, em um poema tipicamente marioandradiano como Europa, França e
Bahia, de depreciação da “moléstia de Nabuco”, um final-ato-falho:
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a “Canção do exílio”.
Como era mesmo a “Canção do exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra...
(idem, 2002, p. 9)
Não é a toa que Alguma poesia já é considerado como parte de um outro
modernismo, de uma outra “geração”. Em tudo Carlos Drummond pôde contribuir
para assentar sua poética e pensamento numa conformidade literária divergente do
chamado segundo modernismo, de ânimo nacionalista. Drummond então repete
nos poemas suas críticas e dúvidas já adiantadas a Mário de Andrade por meio de
suas cartas. Emanuel de Moraes interpreta o último poema citado como a penúria
da condição de exilado de sua terra natal, Itabira (Moraes, 1972, p. 6), mas ele não
conseguiu atender aos reclames de que o poeta, mesmo refutando a saudade de
terras não conhecidas, ainda assim não consegue vislumbrar a própria terra, sua
nacionalidade, e mesmo o sentimento ufanista ressaltado pela alusão ao poema de
Gonçalves Dias encontra uma quase blague diante da artificialidade do momento
em que a saudade não tem nem mesmo um objeto, revelando-se por si inútil e sem
sentido. É como se essa passagem fosse uma introdução para o famoso final do
poema Hino nacional, de Brejo das Almas:
228
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
Ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
(Andrade, 2002, p. 52)
7 Considerações finais Drummond e os modernistas
No artigo intitulado Geração de 45, João Cabral de Mello Neto escreve:
Os poetas de 1930 encontraram o terreno mais ou menos limpo, vale dizer: vazio
de formas aceitas e exigidas pelo costume do leitor de poesia, dentro das quais
tivessem de escrever sua poesia. Deixando de lado os tiques e vícios do estilo
quase polêmico nascido dos combates da Semana de Arte Moderna, mas
aproveitando os direitos que aquela revolta tinha posto em suas mãos, tais poetas
puderam entregar-se livremente a escrever sua poesia. (...) Para o poeta da geração
de 1930 já não havia a necessidade de criar novas formas para opor, no combate, às
formas antigas que queria desmoralizar, atitude que é evidente nos modernistas de
primeira hora. Os poetas de 1930 encontram as formas velhas já desmoralizadas e
nenhuma forma nova que as substituísse. (Mello Neto, 1994, p.744)
Esse talvez fosse um bom resumo para dar as palavras finais desse trabalho.
É devido à chamada geração de 1930 uma estabilização mais ou menos aceita do
modernismo. Vale dizer que é como se, para Cabral de Mello Neto, poetas como
Carlos Drummond tiveram uma situação histórica peculiar. Eles foram os que
mais se beneficiaram das vitórias dos primeiros modernistas. Enquanto que
aqueles fizeram o “sacrifício” geral, como bem se pretendia Mário de Andrade,
lutaram em nome das novas formas e por isso foram desprezados, recebendo o
castigo do público, até finalmente serem consagrados como mestres, os da
geração de 1930 aproveitaram todos os benefícios resultantes das querelas
modernistas. Tudo sem pegar em armas, sem vanguardiar. Drummond encontra
um terreno já arado para uma experimentação pessoal de sua poesia no momento
em que o modernismo já se encontrava, como escrevia Antonio Candido,
“rotinizado”.
O que isso então tem a ver com o nacionalismo e a tradição Brasil? O
problema é que o modernismo cedeu lugar à nacionalidade. O poeta de 1930 não
precisava “criar novas formas” porque ele percebia que a literatura modernista se
alicerçara em uma constante pouco experimentalista, pois a segunda fase
modernista estancou a intensa problematização da forma como meio de alcançar
novos horizontes de ruptura moderna. Com isso o modernismo/ruptura retraiu-se
diante da perspectiva que o nacionalismo/tradição impunha-se como meio de
estabilização da arte. Chegou-se ao ponto de perceber que o modernismo já dera a
230
sua “lição” bem antes mesmo de elaborar as questões principais. O nacionalismo
modernista então freia a participação de um modernismo atrevido para dar forma
a uma tradição em si, uma tradição modernista elaborada tão precocemente,
tradição “curta porém viva e atuante”, como escreve Cabral de Mello Neto. Não é
preciso muito para adivinhar por que o modernismo se tornou uma tradição em
pouco menos de vinte anos, pois, na medida em que se entrega à tradição-mor
brasileira, a de seu nacionalismo, ele já estava pronto para dominar e se alocar no
sistema literário do país. Não é coincidência, então o fato de que o sistema
literário de Antonio Candido se encontra com o modernismo. Fazendo uma
belíssima leitura do artigo de Cabral, Abel Baptista aponta:
A teoria da “formação” [de Candido] é portanto a melhor teoria do Modernismo,
no duplo sentido, objetivo e subjetivo do genitivo; a que explica a configuração
particular que o Modernismo assumiu e aquela com que o Modernismo a si mesmo
se explica no âmbito de uma tradição que se pretendeu própria, uma e contínua.
Não há paradoxo nenhum em afirmar que a teoria de Candido é uma componente
decisiva do Modernismo justamente porque dissolve, do mesmo golpe, a
modernidade do gesto fundador romântico e a ruptura do Modernismo de 22.
(Baptista, 2007, p. 66)
No momento em que o modernismo opta pela experiência da continuidade
com a tradição Brasil logo ele se encontra na sua própria não modernidade ou no
“não modernismo da modernidade brasileira”. É que assim ele nega o seu caráter
de ruptura, assim como Candido nega o mesmo com relação ao romantismo
quando afirma que é desde o arcadismo que a formação do sistema literário se
esboça. Incrível não pensar assim que “a continuidade da poesia brasileira
enquanto modernista torna-se incompatível com a continuidade enquanto
brasileira” (idem, p. 51) ou a renovação e a ruptura se tornam constantes, mesmo
numa tradição como pensa Octavio Paz, ou a continuidade de um modelo esbarra
toda tentativa de modernidade. Foi neste último caminho que o modernismo de
segunda fase se entranhou tendo como consequência para a condição de não haver
“necessidade de criar novas formas” para a geração de Drummond, como explica
Cabral.
Como podemos ver, é Drummond que, como afirmamos, se torna a dobra do
modernismo e seus projetos. Por um lado, ele e sua geração se encontram
estacionados num momento em que a modernidade dos modernistas já tinha dado
lugar à modernidade brasileira, da negação da negação, ou seja, da negação do
231
próprio caráter gesticular da modernidade, a ruptura. Um Drummond e um Murilo
Mendes poderão, em parte, se desvincular da primeira geração de modernistas ao
passo que, na medida em que estes abriram caminho para a “morte” do
modernismo, acompanharão esta mesma tendência. Então, em entrevista a O
jornal em 19 de novembro de 1944 o poeta mineiro apontava o meio de
disciplinar o caos moderno, a ruptura, dando mais vazão àquela “morte”:
Todas as experiências com a palavra organizada no conjunto poético já foram
tentadas. A tal ponto que, aqui ou ali, se observa o cansaço e a volta a esses
“moldes antigos” a que você se refere. (...) Pois que voltem a elas os que estiverem
desejosos de voltar e se sintam capazes de extrair de tais formas novos efeitos.
Prefiro sugerir outra tarefa: a de disciplinar o chamado caos moderno, a de
pesquisar e estabelecer as leis da poética moderna, leis de gosto, de psicologia, de
ritmo, de métrica. (Andrade, 1977, p. 25)
Tem-se em conta que desde a década de 1930, a compreensão de que o
modernismo se estagnava era patente nas obras que então vieram a lume. Alguma
poesia de Drummond não tem nenhum meio novo de expressão senão aqueles já
elaborados pelos primeiros modernistas, como o poema-piada, o verso livre, o
coloquialismo etc. Na prosa a sensação era a mesma. Mas era interessante então
notar que mesmo o nosso mineiro compreendia que o modernismo já fizera o
suficiente para inaugurar uma expressão própria, não atentando ao fato de que
essa era a única forma de o modernismo sobreviver a sua própria demanda de
rupturas. Neste sentido, Drummond já podia ser considerado como aquele que se
volta aos “moldes antigos”, se compreendermos que o movimento — nas figuras
de um Oswald, de um Mário, de um Bandeira — já tinha os seus “mestres do
passado”, já era uma tradição com preceitos e maneiras de elaboração geral, com
suas leis, diga-se.
A questão é interessante porque tem também suas razões históricas. Durante
as décadas de 1930 e 1940 uma nova forma de fazer literatura parecia se impor.
Quando Mário de Andrade escreve em sua conferência de 1942 que “os
modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a
ninguém” e que a essência mesma da época era lutar pelo “amilhoramento
político-social do homem.” (Andrade, 1972, p. 254), ele mesmo concorria mais
uma vez para o apagamento da característica moderna do modernismo ao pensar
apenas na militância político-estético. Do mesmo modo, contribuiu a fase
232
comunista de Oswald de Andrade quando afirmava, em prefácio a Serafim Ponte
Grande, que estava “possuído de uma única vontade. Ser pelo menos, a casaca de
ferro na Revolução Proletária.” (Andrade, 2007, 58). Essa perspectiva de que a
literatura experimental deveria ceder lugar à militância política pode ter sido um
fator crucial para aquela similaridade de ver o modernismo como algo até certo
ponto ultrapassado, que ele mesmo precisava de um teor mais social para alcançar
as premissas do seu presente. Isso é certo, e foi mesmo necessário pontualmente.
No entanto, a preocupação política colocou mais uma pá de cal nas experiências
formais modernistas, ainda mais pela razão de que o que se fazia era
“individualismos” e “desvairismos”, tipicamente burgueses. O distanciamento
entre formalismo (para pegar um termo depreciativo típico da cultura stalinista) e
a participação fora então para o modernismo a única medida. Como expressa
Drummond em entrevista a Ary de Andrade, em 1945:
O perigo, insisto, é a volta às velhas formas burguesas de expressão, à literatura
água de flor de laranjeira, anódina e inconsequente, ou simplesmente acadêmica.
Este perigo é tanto maior quanto muitos escritores, entre nós, não raciocinam
perante os fatos e fenômenos políticos. (Andrade, 1977, p. 35).
Neste sentido, em que as velhas formas burguesas eram a experimentação e
mesmo o nacionalismo da segunda fase, podemos afirmar que uma obra como A
rosa do povo, como os últimos livros participativos de Mário, como o imponente
e classista Café, pode ser considerado como um dos coveiros do modernismo.
Por outro lado, se Drummond por essa perspectiva “matou” o modernismo,
ele o mataria também de outra forma. É que o modernismo negara acesso a outros
cânones por ele destronados, como o dos portugueses e de outros poetas não
“nacionalistas”. No entanto, em 1951, Drummond lança o polêmico livro Claro
Enigma, considerado sua virada classicista, no qual volta aos mesmos “moldes
antigos” de que fala acima, com sonetos e chaves de ouro, rimas, metrificações,
referências clássicas etc. Abel Baptista então nos explica a significação do livro
no sentido por nós aqui exposto:
(...) o poeta mais novo que se abeira de Drummond, pilar notório da ‘tradição, curta
porém viva e atuante’ com que Cabral define a poesia brasileira, vai encontrar uma
‘lição de poética’ que o reenvia para as formas clássicas e para os poetas clássicos,
notadamente portugueses, antigos e modernos. A lição do mesmo consagrado pelo
233
cânone é também a passagem para a lição de outros nomes excluídos do cânone.
(Baptista, 2007, p. 55)
Drummond rompe então com o modernismo canônico ao instalar-se como
um crítico das noções estabelecidas pelo movimento. Assim sendo, o seu ato mais
antimodernista é, em si, a ação mais modernista que acontecia desde meados da
década de 1920. Em outras palavras, é ele que rompe a tradição modernista na
medida em que volta aos modelos antigos. Se o Brasil está condenado à
continuidade da tradição Brasil a maior ação revolucionária e de ruptura é uma
“reação conservadora”, como é conservadora nossa modernidade ou nossa
modernização político-econômica. Negação da negação da negação. Modernidade
brasileira.
Onde fica então neste panorama literário nosso Mário de Andrade do Norte
com sua eterna corrida pela posteridade? Excluído do sistema que já nasceu
“pronto e acabado”? Espera-se ter demonstrado como tal sistema funciona e como
ele oferece um espaço dentro de sua própria Academia de imortais, seus cânones.
Com a lei Brasil, com a tradição Brasil, a experiência histórica brasileira parece se
tornar mais real porque, como em toda a sua estrutura social, econômica e
política, ela é também desigual, injusta, hierárquica. Oferecendo o modernismo
como um documento de barbárie, barbárie dupla, por assim dizer, como toda a
modernidade brasileira, pudemos saber como Mário de Andrade deixou para trás
muito mais pessoas naquele terrível turfe que acaba nunca mais.
8
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