Da Ordenação única ao espaço das regras: esboço de uma comparação entre Foucault e...

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DA ORDENAÇÃO ÚNICA AO ESPAÇO DAS REGRAS: ESBOÇO DE UMA COMPARAÇÃO ENTRE FOUCAULT E WITTGENSTEIN 1 Alison Vander Mandeli Tiaraju Dal Pozzo Pez De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar e a refletir. Michel Foucault Por vezes, uma expressão tem que ser afastada da linguagem para limpeza, podendo, em seguida, voltar à circulação. Ludwig Wittgenstein I No prefácio de As Palavras e as Coisas Foucault comenta que este livro nascera de um texto de Borges, precisamente do riso que este lhe causara. Riso amarelo, nauseado, pois o texto apresentara a impossibilidade do nosso pensamento pensá-lo; apresentara o limite do próprio pensar, do nosso pensar. O que é tão evidente, para Foucault, em O Idioma analítico de John Wilkins que apresenta um estranhamento? Que permite uma dobra do nosso pensamento sobre si mesmo? Que permite pensar aquilo que para nós não é discutível? Certa enciclopédia chinesa se intitula Empório celestial de conhecimentos benévolos. Em suas páginas está escrito que os animais se dividem em: (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) domesticados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cachorros soltos, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de romper a jaula, (n) que de longe parecem moscas. (BORGES, O idioma analítico de John Wilkins. Apud. FOUCAULT, 1999, p.9). Esta classificação no texto de Borges nos é impossível por sua disposição, por sua ordenação, pelo lugar que a constitui e é por ela constituído. A ordem (a, b, c, d, e, f [...]) do texto para a nossa idade e geografia é um não lugar, denuncia e apresenta o impensado, arruína certo lugar comum no qual a ordem de tempo e espaço é reduzida a uma sucessão 1 MANDELI, A.V.; PEZ, T.P. ‘Da Ordenação Única ao Espaço das Regras: Esboço de uma Comparação Entre Foucault e Wittgenstein’. In.: NALLI, M; MANSANO, S. (org). Michel Foucault em Múltiplas Perspectivas. Londrina: EDUEL, 2013. p.115-135.

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DA ORDENAÇÃO ÚNICA AO ESPAÇO DAS REGRAS: ESBOÇO DE UMA

COMPARAÇÃO ENTRE FOUCAULT E WITTGENSTEIN1

Alison Vander Mandeli

Tiaraju Dal Pozzo Pez

De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas

a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto

quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem

momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar

diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do

que se vê, é indispensável para continuar a olhar e a refletir.

Michel Foucault

Por vezes, uma expressão tem que ser afastada da linguagem

para limpeza, podendo, em seguida, voltar à circulação.

Ludwig Wittgenstein

I

No prefácio de As Palavras e as Coisas Foucault comenta que este livro nascera de

um texto de Borges, precisamente do riso que este lhe causara. Riso amarelo, nauseado, pois o

texto apresentara a impossibilidade do nosso pensamento pensá-lo; apresentara o limite do

próprio pensar, do nosso pensar. O que é tão evidente, para Foucault, em O Idioma analítico

de John Wilkins que apresenta um estranhamento? Que permite uma dobra do nosso

pensamento sobre si mesmo? Que permite pensar aquilo que para nós não é discutível?

Certa enciclopédia chinesa se intitula Empório celestial de

conhecimentos benévolos. Em suas páginas está escrito que os

animais se dividem em: (a) pertencentes ao Imperador, (b)

embalsamados, (c) domesticados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos,

(g) cachorros soltos, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam

como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um pincel

finíssimo de pelo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de romper a

jaula, (n) que de longe parecem moscas. (BORGES, O idioma

analítico de John Wilkins. Apud. FOUCAULT, 1999, p.9).

Esta classificação no texto de Borges nos é impossível por sua disposição, por sua

ordenação, pelo lugar que a constitui e é por ela constituído. A ordem (a, b, c, d, e, f [...]) do

texto para a nossa idade e geografia – é um não lugar, denuncia e apresenta o impensado,

arruína certo lugar comum no qual a ordem de tempo e espaço é reduzida a uma sucessão

1 MANDELI, A.V.; PEZ, T.P. ‘Da Ordenação Única ao Espaço das Regras: Esboço de uma Comparação Entre

Foucault e Wittgenstein’. In.: NALLI, M; MANSANO, S. (org). Michel Foucault em Múltiplas Perspectivas.

Londrina: EDUEL, 2013. p.115-135.

linear que tem como fundamento o próprio homem. A ordem que nos é familiar tem como

referência uma subjetividade inata ao homem, tornado assim sujeito transcendental, e um

espaço entendido como mundo físico plenamente constituído, onde os objetos são entidades

plenamente constituídas; no qual a linguagem é basicamente proposições que servem para

ligar o sujeito e o mundo anteriormente a ela constituídos. Ela se constitui exclusivamente de

nomes, cuja única função é designar objetos, seja do mundo subjetivo - interior ao sujeito –

seja do mundo objetivo – exterior ao sujeito; no qual o conhecimento é a conveniência entre a

representação e o representado, a adequação entre a proposição e a coisa. Este modelo

estático de mundo é representado de forma culminante no Tractatus lógico-philosophicus

(TLP) de Wittgenstein. O plano central dessa obra era construir uma teoria que esclarecesse o

caráter representacional da linguagem. A teoria tractatiana tem como principal alvo a

declaração de que as proposições são uma espécie de figura (TLP, 2.1). A proposição é uma

ligação de elementos (nomes) colocados em uma determinada relação uns com os outros

(TLP, 3.14). As proposições representam um possível estado de coisas no mundo e os nomes

representam os objetos. Ao colocar nomes juntos construímos modelos, ou figuras da

realidade, que serão verdadeiras ou falsas se os nomes figurados na proposição representarem

um estado de coisas atual no mundo (TLP, 3.3411). Esse tipo de teoria, que compreende a

linguagem como um conjunto abstrato de proposições, cada uma representando um possível

estado de coisas no mundo, é criticado pelo assim chamado segundo Wittgenstein, e

exemplificado na citação de Agostinho que abre as Investigações Filosóficas (IF):

Se os adultos nomeassem algum objeto e, ao fazê-lo, se voltassem

para ele, eu percebia isto e compreendia que o objeto fora designado

pelos sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indicá-lo. Mas

deduzi isto dos seus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e

da linguagem que, por meio da mímica e dos jogos com os olhos, por

meio dos movimentos dos membros e do som da voz, indica as

sensações da alma, quando esta deseja algo, ou se detém, ou recusa,

ou foge. Assim, aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas

eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar

repetidamente nos seus lugares determinados em frases diferentes. E

quando habituara minha boca a esses signos, dava expressão aos meus

desejos. (AGOSTINHO, C, I:8).

O texto de Borges aponta para o espaço de impossibilidade desta linguagem da

representação. É o que devemos calar que é posto em jogo. É nossa terra natal que o texto

esquiva, nos tirando a estabilidade e a tranqüilidade da morada. Faz isso quando não podemos

definir nele uma categoria geral estável que reúna na mesma casa as sereias, os leitões e et

cetera, pois tal reunião evidencia o espaço vazio, a impossibilidade da ordem segundo nossos

critérios, a transgressão das condições de possibilidade do nosso pensar – este espaço vazio

emergido não é a ausência de ordem, não é o nada, é o limite do nosso pensamento, e quando

não dá para recortá-lo reduzindo-o a relações significado/significante, nome/coisa,

verdadeiro/falso que trariam uma unidade interior a esta desordem aparente. Esta

impossibilidade aparece quando a “enciclopédia chinesa” torna evidente o fato de não

pensarmos a ordem como o lócus a partir do qual podemos pensar. Quando torna evidentes as

condições de possibilidade do pensamento a partir dos seus próprios limites. O que este texto

apresenta para Foucault, na sua ordem impossível para o nosso pensamento, é um nível mais

profundo no qual os sujeitos são constituídos, os objetos são constituídos, as predicações se

tornam possíveis. O que ele torna evidente é o próprio espaço no qual essas categorias são

constituídas. Veja o que escreve Giannotti:

A filosofia parisiense costuma opor aquela lógica que estaria

inteiramente subordinada à identidade, tendendo, pois ao

automatismo, a um pensamento pela diferença onde a própria verdade

se revelaria antes da oposição dos valores de verdade – o verdadeiro e

o falso – característicos da proposição (GIANNOTTI, 2006, p.50).

O que causa o riso em Foucault é justamente essa abertura que o texto de Borges

evidencia. A abertura das condições de existência das categorias com as quais pensamos;

abertura que torna evidente não uma origem na qual está depositada a verdade, não a unidade

das palavras e sua relação transparente com os objetos de um mundo iluminado, mas que

várias ordens são passíveis de existência.

Esse texto de Borges fez-me rir durante muito tempo, não sem um

mal-estar evidente e difícil de vencer. Talvez porque no seu rastro

nascia a suspeita de que há desordem pior que aquela do incongruente

e da aproximação do que não convém; seria a desordem que faz

cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na

dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito (FOUCAULT, 1999,

p. 12).

A análise foucaultiana busca sob a unidade do sujeito e do objeto, antes da

proposição predicativa e da unidade científica a descrição das condições de existência do

saber. Segundo Foucault

[...] o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistême

onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a

seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua

positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua

perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade

(FOUCAULT, 1999, p. 18).

Da mesma forma, a filosofia madura de Wittgenstein busca descrever, um grande

número de ordens possíveis. Enquanto o esforço filosófico do Tractatus pode ser comparado,

metaforicamente, com um espelho, onde os signos linguísticos significativos têm a função

única de espelhar os objetos do mundo, revelando assim uma ordem única, representativa, a

filosofia pós-tractatus faz dos signos linguísticos uma caixa de ferramentas onde a ordem é

revelada pelo uso que os falantes fazem dos signos, e não na ligação objeto/palavra.

Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada: Lá estão um martelo,

uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de

cola, cola, pregos e parafuso. – Assim como são diferentes as funções

desses objetos, assim são diferentes as funções das palavras. (E há

semelhanças aqui e ali.) Com efeito, o que nos confunde é a

uniformidade da aparência das palavras, quando estas nos são ditas, ou

quando com elas nos defrontamos na escrita e na imprensa. Pois seu

emprego não nos é tão claro. E especialmente não o é quando

filosofamos! (IF, 11).

As funções das palavras são diferentes. Não cabe a elas apenas nomear objetos. O

contexto prático, sua função no discurso daquele que fala é que é importante para definir sua

significação. Mas, mesmo nesse quadro, onde o discurso ganha significação a partir da práxis,

existe uma ordem. Não é bom que as palavras ora representem uma coisa ora outra, ou que

signifique algo para uma pessoa e algo diferente para outra. Como podemos enunciar regras e

preservar ao mesmo tempo uma multiplicidade de ordens possíveis? Para Wittgenstein os

jogos de linguagem respondem a essa questão. Perceber que as palavras funcionam dentro de

jogos de linguagem, liberta o filósofo da busca de uma ordem última, desprendida do contexto

prático em que a linguagem está envolvida. Assim, é preciso perceber que o conceito de jogos

de linguagem torna-se imprescindível na organização das atividades realizadas através

linguagem. Vejamos a clássica passagem em que Wittgenstein expõe enfaticamente a questão

dos jogos de linguagem:

Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes

exemplos e outros:

Comandar, e agir segundo comandos –

Descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas -

Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho) –

Relatar um acontecimento –

Conjeturar sobre o acontecimento –

Expor uma hipótese e prová-la –

Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e

diagramas -

Inventar uma história; ler –

Representar teatro –

Cantar uma cantiga de roda –

Resolver um enigma –

Fazer uma anedota; contar –

Resolver um exemplo de cálculo aplicado –

Traduzir de uma língua para outra –

Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar. (IF, 23)

Considerando a linguagem do ponto de vista pragmático ficamos capacitados a

compreendê-la em sua totalidade, de acordo com a multiplicidade das ordens possíveis (jogos

de linguagem ou formações discursivas) que a constitui.

Esboçar uma comparação entre a crítica foucaultiana2 e wittgensteineana a esse tipo

exclusivamente representacional de compreensão da linguagem é o mote do presente texto.

II

Ao leitor emerge o estalar ensurdecedor do pensamento de Foucault quando afirma

em “As palavras e as coisas” que não é fácil pensar a noção de descontinuidade e quando

afirma em “A Arqueologia do Saber” a necessidade de libertar-se da evidência da

continuidade. Não dá para ignorar, pois o zumbido desta questão corta a consciência numa

onda sonora como a produzida por um inseto ao invadir o ouvido. A calmaria da leitura é

elidida por uma inquietude que a põe em desassossego quase desesperador. Desassossego

posto em jogo pela sedução suscitada pelo autor francês ao desenrolar o problema colocado:

“Que quer dizer, de um modo geral: não mais pensar um pensamento? E inaugurar um

pensamento novo?” (FOUCAULT, 1999, p. 69), e, na mesma linha crítica: “Essas formas

prévias de continuidade, todas essas sínteses que não problematizamos e que deixamos valer

de pleno direito, é preciso, pois, mantê-las em suspenso” (FOUCAULT, 2009, p. 28). Estas

questões nos remetem ao centro da problemática foucaultiana e wittgensteineana em relação a

crítica de toda uma tradição do pensamento ocidental, em especial a história das ciências e das

ideias, que praticam uma história da continuidade a partir de uma série de unidades tomadas

como fundamentos solidificados que dispensariam qualquer questionamento.

Logo no início de “A arqueologia do Saber” Foucault exemplifica quais são as

unidades a que se refere – as unidades do Discurso. Quais sejam: as unidades do livro e da

obra; a unidade da noção de tradição; de influência; de desenvolvimento e de evolução; de

mentalidade e espírito; a unidade da noção de origem. É necessário não tomá-las como

2 Restringiremos nossa análise no chamado período arqueológico de Foucault, tendo como referência principal o

livro A arqueologia do Saber, pois nesse livro Foucault faz reflexões sobre os conceitos de “formação

discursiva”, “prática discursiva” e “saber”, fundamentais para entendermos o questionamento proposto. É

importante lembrarmos que a arqueologia foucaultiana “[...] pode ser pensada de vários modos, que não

permitiriam esquadrinhar sua obra (ainda que o uso desse termo o desagradasse) como uma teoria, ou seja, como

um sistema teórico e conceitual que foi sendo paulatinamente construído. Mas corretamente, os trabalhos de

Foucault, quer por seus livros, quer por seus artigos, devem ser avaliados como incursões teórico-críticas

variadas; diferentes sem ser incompatíveis; parciais, jamais totais e completas. De qualquer modo, a maior parte

de seus trabalhos até 1968 são trabalhos que enveredam, por assim dizer, de uma maneira transversal pela

história das ciências e pela epistemologia, tal como se fez na França a partir dos trabalhos de Bachelard e

Canguilhem” (Nalli, M. A. G. Sobre o conceito foucaultiano de Discurso. In: ORLANDI, Luis B. L. A

Diferença. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005. p. 151 – 169).

evidente – “sacudir a quietude com a qual as aceitamos” (FOUCAULT, 2009, p. 26). O que

Foucault questiona nessa substancialização é o fato da linguagem ser reduzida a nomes. Como

se o discurso fosse uma estrutura lógica constituída por um encadeamento de nomes, cuja

única função fosse representar um pretenso “mundo objetivo” ou um pretenso “mundo

subjetivo” interior a um sujeito. Enquanto soma de unidades a função particular do discurso

de representar é tornada universal; função figurativa que é tornada universal, destacando-se

como geral a relação entre uma entidade manifesta (discurso) e outra oculta (um significado

essencial). O discurso é visto como efeito deste significado que o controla, ou seja, ele apenas

expressa uma situação mental de um sujeito transcendental ou a aparência de uma “coisa” de

um mundo exterior aos sujeitos. Em ambos os casos o discurso é entendido como mera

representação. E pensar se reduz a buscar esse significado oculto. Em relação a isso Foucault

[...] unidade da obra? Uma soma de textos que podem ser denotados

pelo signo de um nome próprio. Ora, essa denotação [...] não é uma

função homogênea: [...] assim, não é a mesma relação que existe entre

o nome de Nietzsche por um lado e, por outro, as autobiografias de

juventude, as dissertações escolares, os artigos filológicos, Zaratustra,

Ecce Homo, as cartas, os últimos cartões-postais assinados por

“Dionysos” ou “Kaiser Nietzsche”, as inumeráveis cadernetas em que

se misturam notas de lavanderia e projetos de aforismos

(FOUCAULT, 2009, p. 26-27).

Como Foucault, Wittgenstein claramente vê essa tendência de tomar um único caso

central, a nomeação, por exemplo, e derivar dele um modelo geral do funcionamento da

linguagem, como um importante elemento da atitude teórica que gera várias falsas imagens

(MCGINN, 1997, p.39). É reducionista pensar que de um único caso, ou de uma única função

linguística, poderemos compreender a linguagem como um todo. Ao olhar para linguagem

dessa forma, ficamos cegos para o amplo e rico horizonte da atividade pragmático-linguística

humana. Não prestamos atenção em fenômenos importantes, como o domínio da língua, ou o

uso real que os falantes fazem das palavras.

Ao tentar compreender toda a linguagem através de um único caso, nós super-

simplificamos o fenômeno linguístico, valorizamos um único tipo de palavra (nomes) e

abstraímos a linguagem da vida dos falantes. Para contrapor essa visão, Wittgenstein dá o

exemplo do negociante (IF, 1), com o intuito de chamar nossa atenção para uma outra maneira

de olharmos para linguagem, a saber, em seu ambiente de funcionamento. O filósofo nos

convida a imaginar a seguinte situação: alguém vai fazer compras e ao chegar à mercearia

entrega um papel ao negociante com os signos “cinco maçãs vermelhas”. Ao olhar o papel, o

merceeiro:

Abre o caixote sobre o qual encontra-se o signo “maçãs”; depois

procura em uma tabela a palavra “vermelho” e encontra na frente

desta um modelo de cor; a seguir, enuncia a série dos numerais até a

palavra “cinco” [...], e a cada numeral tira do caixote uma maçã da cor

do modelo. Assim e de modo semelhante se opera com palavras. (IF, 1

- grifo nosso).

O exemplo dado não envolve a super-simplificação característica da visão filosófica

que busca uma ordem única. Mesmo sendo um exemplo simples, ele é de certa forma

completo, pois apresenta a linguagem em seu ambiente natural de funcionamento.

Wittgenstein não quer derivar dele a essência da linguagem, mas de preferência usá-lo como

meio para chamar nossa atenção à riqueza do fenômeno linguístico quando visto na práxis dos

falantes. A nomeação, dessa forma, não pode ser vista como essencial, pois no exemplo cada

palavra tem uma função específica: “cinco”, “maçãs” e “vermelhas” são palavras que

possuem um uso específico fundamentalmente diferente uns dos outros (cf. BAKER,

HACKER, 2005, p.50). Wittgenstein conduz assim seu trabalho contra a tentação de

compreender a linguagem abstraída de seu uso. Isso nos faz perceber como a linguagem está

repleta de atividades não linguísticas e como no uso as diferentes funções das expressões

linguísticas tornam-se aparentes.

No exemplo do negociante, Wittgenstein se preocupa em nos mostrar a variedade

das técnicas linguísticas que existem em um simples uso da linguagem. Neste novo exemplo,

ele apresenta uma imagem onde as únicas palavras existentes são nomes de objetos: “cubos”,

“colunas”, “lajotas” e “vigas”. Essas palavras são toda a linguagem de uma comunidade (IF,

2), mas novamente vamos imaginá-la funcionando em seu ambiente natural, onde elas servem

para o entendimento entre um construtor A e seu ajudante B:

A executa a construção de um edifício com pedras apropriadas; estão

à mão cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhe as pedras, e na

seqüência em que A precisa delas. Para esta finalidade, servem-se de

uma linguagem constituída das palavras “cubos”, “colunas”, “lajotas”

e “vigas”. A grita essas palavras; B traz as pedras que aprendeu trazer

ao ouvir este chamado. (IF, 2).

As palavras “cubos”, “colunas”, “lajotas” e “vigas” devem ser compreendidas dentro

dessa comunidade histórica. Assim, a crítica de Wittgenstein se aproxima da crítica de

Foucault ao pensamento representativo, e tem como principal alvo o fato deste pensamento

criar entidades ideais, fundamentos meta – históricos. A crítica, assim, rompe com a idéia de

que um conjunto de discursos é a expressão da genialidade ou denotassem o significado lhe

dado pelo autor – no caso por nós citado acima – Nietzsche. Rompe, pois, com a idéia de que

pensar esse conjunto de discursos é interpretar um significado oculto, buscar a palavra muda

sob a palavra. Ao provocar a inquietude do pensamento, Foucault afirma que o signo

Nietzsche não é evidente em si mesmo, que é necessário um campo discursivo que o

possibilite. Da mesma forma, Wittgenstein nos diz que não podemos saber o que significa

"xeque-mate", se nos limitamos a observar a última jogada de uma partida de xadrez (IF,

316). Com isto, sugere que o significado de uma expressão não está determinado pelas

palavras individuais que a compõem, mas, como já dissemos, pela maneira que as usamos.

Esta prática pressupõe o domínio de uma técnica que depende do contexto e das

circunstancias particulares que a rodeiam. Uma origem única de significado é inexistente.

Não se trata de negar essas unidades, trata-se apenas de não absolutizá-las mostrando

as condições de sua existência. A crítica não tem um sentido negativo ou é uma forma de

julgamento que pretende subjugar em nome de uma identidade comum o que é pensado.

Foucault e Wittgenstein, por exemplo, não rejeitam o jogo de linguagem representativo, onde

as palavras servem para nomear objetos. O que fazem é enfatizar a idéia de que esse é um tipo

de uso de palavras entre inúmeros usos possíveis. A crítica é uma abertura que ao sacudir,

rachar as unidades, pretende mostrar o conjunto de regras de formação no qual elas podem

existir. Não se trata de afirmar negando a diferença, mas abrir o estreito da unidade em busca

do campo de regras de formação no qual a unidade é apenas uma das práticas possíveis. Sobre

a crítica:

Não posso me impedir de pensar em uma crítica que não procuraria

julgar, mas procuraria fazer existir uma obra, um livro, uma frase,

uma idéia; ela acenderia os fogos, olharia a grama crescer, escutaria o

vento e tentaria apreender o vôo da espuma para semeá-la. Ela

multiplicaria não os julgamentos, mas os sinais de existência; ela os

provocaria, os tiraria de seu sono. Às vezes, ela os inventaria? Tanto

melhor, tanto melhor. A crítica por sentença me faz dormir. Eu

adoraria uma crítica por lampejos imaginativos. Ela não seria

soberana, nem vestida de vermelho. Ela traria a fulguração das

tempestades possíveis (FOUCAULT, 2000, p. 302).

Nessa citação, a crítica foucaultiana mostra que a unidade é organização,

multiplicidade de relações, ou seja, o discurso não é uma entidade governada por um sentido

oculto, mas um conjunto singular de relações discursivas e não discursivas. Não há o discurso

enquanto átomo fundamental, o que há é um campo discursivo, uma formação discursiva, ou

seja, um conjunto de relações entre discursos e elementos não discursivos que funcionam

como condição de existência, de diferenciação, de separação, de cooperação, de

desaparecimento, ou melhor, um conjunto de relações que funcionam como regra. É por

buscar descrever esse conjunto de regras que a arqueologia é uma análise do discurso, mais

precisamente das formações discursivas, e uma abertura crítica, pois, como dito, não toma

uma existência particular como universalidade, mas busca o espaço no qual múltiplas

existências se formam. É somente nessa abertura que Foucault pode afirmar que cabe ao

pensamento escutar a emergência e costurar a proveniência dessas relações. A “pesquisa” da

proveniência (Herkunft) é um processo de dissociação da “unidade”, pois visa fazer surgir ou

reencontrar os vários acontecimentos, as várias relações em jogo que a constituíram. Entrar no

jogo da diferença, no combate das forças e não sentar na poltrona da identidade como se ela

fosse a sombra do repouso da verdade. A “identidade” é forjada e só “é” como organização.

Não há continuidade estável. Há lutas, desvios, dispersões, conluios. Escutar a emergência

(Entestehung) é tomar o acontecimento discursivo na imanência das relações que o

constituem. É escutar esse efervescer das relações que entram em cena, que cortam a

“unidade”. Mesmo com toda essa acidez, a crítica arqueológica não pretende negar

radicalmente as análises que tomam as unidades como entidades fundamentais, mas coloca-se

como alternativa analítica que visa multiplicar os sinais de existência e não ficar no estreito

das sínteses apriorísticas. Sobre esse espaço das regras de formação escreve Foucault:

O “pré-conceitual” [...] (no nível dos discursos), o conjunto das regras

que aí se encontram efetivamente aplicadas. [...] Na análise que aqui

se propõe, as regras de formação têm seu lugar não na “mentalidade”

ou na consciência dos indivíduos, mas no próprio discurso; elas se

impõem a todos os indivíduos que tentam falar nesse campo

discursivo. Por outro lado não são consideradas universalmente

válidas para todos os domínios indiscriminadamente; são sempre

descritas em campos discursivos determinados, e suas possibilidades

indefinidas de extensão não são reconhecidas antecipadamente. Essas

regras não são o resultado de operações efetuadas pelos indivíduos

(FOUCAULT, 2009, p. 69).

Esta citação traz uma série de pontos que necessitam de reflexão. Primeiramente ela

é muito próxima da ideia wittgensteineana de jogo de linguagem que já esboçamos acima.

Aquilo que confere vida e significado às palavras é o seu uso na prática efetiva da linguagem,

por isso não basta analisar as palavras como meros signos denotativos quando buscamos

compreendê-las. A prática é ordenada por regras contextuais, que não são válidas

universalmente, mas que são essenciais aos jogos em que elas pertencem. Percebemos assim

que o mais evidente em uma formação discursiva são as regras de formação e que estas são o

objetivo da análise. Esse “pré-conceitual” na citação de Foucault e em concordância com

Wittgenstein, não se refere nem a um mundo já objetivado – anterior ao discurso – nem a um

sujeito transcendental que estaria ao lado desse mundo do qual o discurso seria mero efeito.

Refere-se a esse conjunto de regras de formação que formam sujeitos e objetos.

Wittgenstein e Foucault renunciam a idéia de um mundo enquanto ente físico total, o

qual seria refletido pelo discurso de maneira distorcida, com certa opacidade perene. Não há

mundo a priori. Não há “coisas” a priori. A crítica busca não tomar a “coisa” como unidade

constituída e evidente à reflexão, pois a “coisa” deve ser entendida como objeto e, por isso,

indissociável da ordem de relações de regras de formação que a produziu enquanto objeto, ou

seja, a crítica descreve, como num campo discursivo, objetos são constituídos. A análise,

assim, não remete o discurso a um referente privilegiado que qualificaria o discurso como

verdadeiro ou falso de acordo com a existência empírica do referente. Foucault exemplifica:

Nas descrições cuja teoria acabo de tentar fornecer, não se trata de

interpretar o discurso para fazer através dele uma história do referente.

No exemplo escolhido3, não se procura saber quem era louco em tal

época, em que consistia sua loucura, nem se suas perturbações eram

idênticas às que nos são, hoje, familiares. [...] não se procura

reconstituir o que podia ser a própria loucura, tal como se apresentaria

inicialmente em alguma experiência primitiva, fundamental, surda

(FOUCAULT, 2009, p. 53).

Não há o ser loucura que definiria a continuidade unitária de um discurso unitário

denominado psiquiatria. Foucault quer renunciar a esse tipo de análise que faz do discurso

função denotativa de uma coisa que o determina. Wittgenstein também rejeita essa história do

referente, como vemos aqui: não estamos fazendo [...] história natural; podemos inventar

uma história natural fictícia para nossos propósitos (IF II, p.205). Por diferentes vias, o

propósito dos autores é mostrar que o discurso, seja o psiquiátrico ou qualquer outro,

enquanto um campo de regras de formação, constitui objetos, desfaz objetos da “origem,

simultânea ou sucessivamente, a objetos que se excluem, sem que ele próprio tenha de se

modificar” (FOUCAULT, 2009, p. 50). Veja que tanto em Foucault quanto em Wittgenstein,

o importante é o espaço de regras, um certo corpus de relações com uma estabilidade relativa

(espaço que se constitui como instituição) o qual objetos se originam, se modificam, se

diferenciam, se contradizem, se excluem. Esse espaço discursivo é composto, já dito neste

trabalho, de relações discursivas e não discursivas. Nas palavras de Foucault:

As relações discursivas [...] Elas estão, de alguma maneira, no limite

do discurso: oferecem-lhe objetos de que ele pode falar, ou antes (pois

essa imagem da oferta supõe que os objetos sejam formados de um

lado e o discurso, do outro), determinam o feixe de relações que o

discurso deve efetuar para poder falar de tais objetos, para poder

abordá-los, nomeá-los, analisá-los, classificá-los, explicá-los etc.

(FOUCAULT, 2009, p. 51).

A crítica elide a unidade e evidência da “coisa” para descrever, apresentar esse

espaço discursivo. Destaca-se o conjunto de regras próprias do campo discursivo, mostrando

que a relação entre palavras e coisas, a relação de nomeação é apenas uma prática possível

num espaço de ordenação múltiplo.

3 Foucault se refere ao discurso psiquiátrico.

Na citação também percebemos uma crítica ao sujeito como fundamento, pois a

posição ou existência de um sujeito depende de todo um campo discursivo que o possibilite,

ou seja, é todo um conjunto de relações que funcionam como regras que possibilitam os

sujeitos. São elas que determinam quem fala; certo status desses sujeitos; certas relações

desses sujeitos com outros e com instituições (nas quais se produz saber e possibilitam que

sujeitos veiculem esse saber); certas relações desses sujeitos com objetos (definidos, também,

por esse conjunto de relações). Vejamos:

Se no discurso clínico o médico é sucessivamente o questionador

soberano e direto, o olho que observa, o dedo que toca, o órgão de

decifração dos sinais, o ponto de integração de descrições já feitas, o

técnico de laboratório, é porque todo um feixe de relações se encontra

em jogo; relações entre o espaço hospitalar, como local ao mesmo

tempo de assistência, de observação purificada e sistemática, e de

terapêutica, parcialmente testada, parcialmente experimental, e todo

um grupo de técnicas e de códigos de percepção do corpo humano –

tal como é definido pela anatomia patológica (FOUCAULT, 2009, p.

59).

A crítica cria um abismo na tão evidente relação entre o discurso e uma interioridade

subjetiva de um sujeito como fundamento. As regras de formação são anônimas, são regras

públicas. Constituem hábitos, instituições – um lugar privilegiado, exterior ao cogito, pois não

importa quem fala, mas de onde fala. Esse sujeito fundante, criticado por Foucault, é

pressuposto na citação de Agostinho que abre as Investigações Filosóficas. Como vimos,

Agostinho diz que quando os adultos nomeavam os objetos, ele compreendia que faziam um

ato de nomeação, ligando palavras e coisas através da pronúncia de um som acompanhado de

um ato de apontar o objeto. Pressuposta a essa declaração, está a idéia de que a criança faz a

associação entre os nomes e os objetos através do pensamento, o que significa que de antemão

deve possuir uma linguagem mental privada, para que possa compreender a pública. Para

melhor visualizar essas características que pressupõe esse sujeito fundante, alguns

comentadores (cf. BAKER; HACKER, 2005, p.48; MCGINN, 1997, p.38) citam outra

passagem das Confissões, não citadas por Wittgenstein, mas que fazem parte do contexto da

citação inicial:

Pouco a pouco, comecei a perceber onde eu estava. Queria exprimir os

meus desejos aos outros, pois poderiam satisfazê-los, mas isso eu não

podia fazer, porque meus desejos estavam dentro de mim, enquanto as

pessoas estavam fora de mim, e eles não tinham poderes para

penetrar-me nos sentidos. Assim, balançava meus braços e pernas e

fazia ruídos, esperando que alguns sinais, pudessem mostrar os meus

desejos, no pouco que eu podia imitá-los. (AGOSTINHO, C, I: 6).

Nestas reflexões, podemos visualizar a tendência de pensar o sujeito em termos de

uma essência privada, ou mente, concebida como algo já humano, mas sem a capacidade de

comunicação. A criança já nasce com essa estrutura mental a priori, repleta de desejos,

pensamentos, vontades, mas ainda sem a aptidão linguística para revelar sua estrutura

subjetiva. Para aprender como transmitir sua esfera mental, como revelar seus pensamentos,

basta à criança perceber, como vimos na primeira citação das Confissões, qual palavra é usada

para designar aquele objeto. O propósito primário da linguagem seria então revelar essa esfera

mental que é primordialmente oculta e só acessível ao sujeito. Para Wittgenstein, Agostinho:

Descreve o aprendizado da linguagem humana como se a criança

chegasse a um país estrangeiro e não compreendesse a língua desse

país; isto é, como se ela já tivesse uma linguagem, só que não essa. Ou

também: como se a criança já pudesse pensar, e apenas não pudesse

falar. E “pensar” significaria aqui qualquer coisa como: falar consigo

mesmo. (IF, 32).

Isso enfatiza um forte dualismo, que tem ecos claramente cartesianos4. Existe um

sujeito de pensamento inato, por um lado, e um mundo físico de outro, que será plenamente

acessado quando o sujeito aprender quais palavras ligam-se aos respectivos objetos. A

compreensão das palavras é fundamentada neste sujeito, pois é essa mente que verifica qual

objeto é designado pelo seu respectivo nome. A compreensão é assim um fenômeno interno; é

a junção palavra/coisa que é feita por esse sujeito transcendente ao mundo. Isso, segundo

Foucault e Wittgenstein é reducionista. O pensamento simplório de que as palavras somente

significam os objetos que substituem, envolve o funcionamento da linguagem como uma

bruma que torna impossível a visão clara; para tornar clara a visão é preciso estudarmos

espécies primitivas do emprego da linguagem como, por exemplo, as que emprega as crianças

quando estão aprendendo a falar. O ensino da linguagem não é aqui nenhuma explicação, mas

sim um treinamento (IF, 4). Por exemplo, o ensino das crianças na comunidade de

construtores. Elas são introduzidas na cultura de sua sociedade não só aprendendo qual

palavra é a correta para representar cada uma das pedras de construção, mas são educadas

para executar a atividade de construção, usar as palavras na práxis comunitária e reagir de

certa maneira frente às palavras dos outros (cf. IF, 4). Obviamente ao ensinar as palavras, o

professor pode apontar e pronunciar “lajota”, mas pergunto, o aluno aprenderá o significado

da palavra só através desse procedimento? Obviamente que não, pois na prática da

comunidade o signo “lajota” não serve apenas para evocar na mente de quem o ouve ou

4 Sabemos que Descartes considerava a mente e o corpo como dois tipos distintos de substâncias; os corpos são

substâncias materiais e possuem a propriedade da extensão (res extensa) ao passo que as mentes não são

materiais e possuem a propriedade do pensamento (res cogitans). (cf. Meditações Metafísicas).

pronuncia uma representação do objeto. Wittgenstein não nega que isso pode acontecer e de

certa forma ajudar a compreender o verdadeiro uso que a palavra possui, mas essa

representação mental ainda não é nem um lance na vida prática dos construtores.

Aqui podemos perceber uma nova compreensão da subjetividade que surge com essa

maneira pragmática de olhar para a linguagem. No modelo onde o sujeito é fundamento, cabe

a estrutura mental inata apenas verificar qual palavra é usada para designar os objetos, e ao

aprender isso, esse sujeito mental torna-se apto linguisticamente para transmitir sua esfera

privada. Na proposta de Wittgenstein e Foucault, em contraste, a linguagem é internamente

ligada com a forma de vida dos falantes. Assim, o sujeito emerge vagarosamente através da

aquisição de novos e mais complexos jogos de linguagem ou discursos que os constituem.

Não existe então um sujeito mental enquanto base da compreensão das palavras, mas uma

subjetividade dissolvida nas práticas da comunidade linguística.

É este local, esta espacialidade constituída por esse conjunto de relações discursivas

que possibilitam o sujeito autor, o sujeito médico. O sujeito passa a ser apenas uma função,

cuja existência se dá nesse conjunto de relações de regras de formação. A crítica descreve

essa topografia na qual só há o discurso. Deve-se partir dos discursos. Segundo Deleuze:

É que ele não escolhe as palavras, as frases e as proposições de base

segundo a estrutura, nem segundo um sujeito-autor de quem elas

emanariam, mas segundo a simples função que exercem num

conjunto: por exemplo, as regras de internamento no caso do asilo, ou

no da prisão (DELEUZE, 2005, p. 28).

O “pré-conceitual” não se identifica com um sujeito transcendental nem com uma

“coisa” a priori, mas é um conjunto de relações que funcionam como regra de formação do

acontecimento discursivo. A crítica, por isso, rompe com a evidência da unidade abrindo um

espaço novo de análise. Qual seja: o campo das formações discursivas que torna evidente o

conjunto de regras de formação que ele é. Ampliando a análise, são necessárias algumas

observações que definam melhor esse campo de relações de regras de formação.

III

A formação discursiva, enquanto espaço de relações de regras, é a condição de

existência desses próprios discursos em formação. Uma formação discursiva é determinada

quando se elucida o conjunto de relações que constituem sua existência. As regras são seus

padrões de elucidação, de definição. O espaço ordenado de relações discursivas se mostra na

elucidação dessas próprias relações, ou seja, a crítica, enquanto descrição das relações

discursivas, torna evidente o espaço de regras que constitui sua existência e, vice-versa, ao

elucidar as regras torna evidente a ordem da formação discursiva. Isso demonstra que uma

formação discursiva é uma certa ordem, ou melhor, uma certa ordenação de discursos. É por

isso que Foucault pode dizer que uma formação discursiva é um sistema de dispersão, ou seja,

um espaço que é uma ordenação discursiva na qual objetos, sujeitos, conceitos podem existir,

se modificar, se opor, desaparecer. É neste espaço de ordenação que essas categorias perdem

sua idealidade de um possível utópico ou de um fundamento posterior, anterior e sob o

discurso, sendo descritas em sua existência singular de discurso. A singularidade de existência

dessas categorias (e da formação discursiva) se dá na singularidade de existência do campo de

regras na qual se formam. Como escreve Deleuze: “É o ‘Diz-SE’ como murmúrio anônimo,

que assume tal ou qual dimensão diante do corpus considerado” (DELEUZE, 2005, p. 28-29).

Isto mostra que as regras não são exteriores à formação discursiva ou dos jogos de linguagem,

mas como diz Foucault, estão nas margens, nas fronteiras dos discursos, ou seja, é a própria

singularidade da relação que se constitui como regra. Sendo a formação discursiva um

conjunto de relações de discursos e elementos não discursivos, ela própria é esse conjunto de

regras que se auto-regula, se auto-delimita. Ainda segundo Deleuze:

Se a repetição dos enunciados tem condições tão estritas, não é em

virtude de condições exteriores, mas da materialidade interna que faz

da própria repetição a força característica do enunciado. É que um

enunciado se define sempre através de uma relação específica com

uma outra coisa de mesmo nível que ele, isto é, uma outra coisa que

concerne a ele próprio (e não a seu sentido ou seus elementos). Esta

“outra coisa” pode ser um enunciado, caso em que o enunciado se

repete abertamente. Mas, no limite, ele é necessariamente outra coisa

que não um enunciado: é um “Lado de Fora” (DELEUZE, 2005,

p.23).

O campo de relações de regras de formação discursiva não é estranho ao tempo, por

isso Foucault o chamará A priori histórico. Ele é estranho ao tempo entendido como sucessão

temporal absoluta. A crítica propõe a suspensão do tempo enquanto sequência linear, na qual

o discurso é uma unidade ideal (expressão de um pensamento ou de uma “coisa”) que teria

uma história, para fazer “aparecerem relações que caracterizam a temporalidade das

formações discursivas [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 188). Para Foucault é o conjunto das

relações das regras de formação que constituem uma evidência histórica. Espaço no qual

objetos têm origem, se transformam, deixam de existir; conceitos são elaborados, descartados;

elementos não discursivos se transformam, deixam de existir. O espaço discursivo é um

pedaço de história cuja historicidade é problematizada na medida em que se evidenciam as

relações que o constituem. Isto impossibilita uma totalidade histórica ou um saber como

totalidade da história (iluminar todas as relações de uma época), pois aquele espaço, enquanto

conjunto de regras, determina sempre um campo de dizibilidade fora do qual se dá a

impossibilidade do pensamento, eis o porquê do riso de Foucault ao ler o texto de Borges.

Nesse sentido atesta Paul Veyne:

Todavia, não possuímos uma verdade adequada das coisas, porque só

alcançamos uma coisa em si através da idéia que dela construímos em

cada época (idéia cujo discurso é a formulação última, a differentia

ultima). Não a alcançamos, pois, senão enquanto “fenômeno”, porque

não podemos separar a coisa em si do “discurso” no qual ela se

encontra contida para nós. “Assoreada”, gostava de dizer Foucault.

Nada poderia ser conhecido na ausência dessas espécies de

pressupostos (VEYNE, 2009, p. 16).

A crítica afirma o discurso enquanto prática. O espaço de relações de regras de

formação (formação discursiva) é um espaço de práticas discursivas. Foucault torna evidente

o espaço vazio que grande parte do pensamento ocidental tenta preencher com um

fundamento. Esse espaço vazio não é o nada (como já dito), é um espaço de positividade (de

práticas), pois as relações que o constituem só existem na medida em que se efetivam, na

medida em que ocorrem, só são no plural e em ação. O conceito de formação discursiva

evidencia um conjunto de práticas discursivas que constituem a totalidade de visibilidade da

história existente para determinada época. Não há um sujeito que transcenda este espaço, nem

um mundo a descobrir sob ele.

Também Wittgenstein, nas Investigações filosóficas, preocupou-se com as regras que

determinam o significado das palavras e que, como vimos nos exemplos dos construtores e

das maçãs vermelhas, mesclam-se com muitos elementos pragmáticos. Segundo a concepção

do significado como uso, as regras que determinam o significado das palavras dizem respeito

a toda espacialidade que de alguma forma faça parte do jogo de linguagem em questão. Estão

inclusos nesta espacialidade de regras tanto as próprias regras gramaticais, quanto os gestos,

comportamentos, etc. Enquanto o Tractatus estipulava regras rígidas para a linguagem

significativa, regras essas que canalizavam o pensamento na direção de uma ordem única,

regras independentes dos sujeitos e das formas de vida, regras que pressupunham um sujeito

transcendental inato, nas Investigações Wittgenstein entende a noção de regra como algo

público, que se efetiva na prática dos sujeitos que a usam:

Não pode ser que apenas uma pessoa tenha, uma única vez, seguido

uma regra. Não pode ser que apenas uma única vez tenha sido feita

uma comunicação, dada ou compreendida uma ordem etc. – Seguir

uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida

de xadrez são hábitos (costumes, instituições). (IF, 199).

Ao pensarmos sobre o seguir de regras, somos levados a algo que é compartilhado,

que pode ser explicado e corrigido, se assim a forma de vida o exigir. É, portanto, uma prática

intrinsecamente pública, remetendo a critérios públicos de explicação e correção e não a

qualquer tipo de atividade oculta ou misteriosa.

Para realçar o status de fundamento infundado que as regras assumem, podemos

pensar em algumas passagens do Da Certeza de Wittgenstein. O filósofo dá o seguinte

exemplo: em uma aula de ciências o aluno interrompe a todo o momento o professor, fazendo

questões sobre a uniformidade da natureza ou sobre a validade dos raciocínios indutivos.

Deve o professor sossegar-lhe, dizendo que temos fundamentos inabaláveis para tais

questões? Segundo Wittgenstein não. Um professor sensato preocupar-se-ia com o aluno, pois

se parar em tais questões não pode fazer progressos. Não que a reflexão não tenha validade,

mas tais dúvidas não têm lugar ali. Parte-se de uma prática e regras dadas. Para Wittgenstein,

o aluno seria como alguém que estando a procurar algo em um quarto abre uma gaveta e não

vê ali; depois fecha-a, espera e abre-a mais uma vez para ver se por acaso não está lá agora,

e continua assim. Não aprendeu a procurar coisas. E do mesmo modo o aluno não aprendeu

a fazer perguntas. Não aprendeu o jogo. (DC, 315).

Existe fundamento, mas ele tem um fim. O final da cadeia das razões termina nas

regras pragmáticas da comunidade, no caso, científica. Esse domínio das regras é a abertura

que contrasta com a ordem única tractatiana, essas regras são ordens possíveis, como a

classificação dos animais no Idioma analítico de John Wilkins.

No final de A Arqueologia do Saber Foucault escreve que a arqueologia busca

descrever o domínio do Saber. O que é o saber? Qual a relação com o campo de relações de

regras de formação? A crítica arqueológica ao analisar o espaço das práticas discursivas

demonstra que é na sua efetividade que se formam os conceitos, os objetos, os sujeitos. Este

conjunto de regras de formação em sua efetividade é anterior as unidades científicas, as

verificações verdadeiro/falso que figuram em análises do tipo científicas. É anterior ao

discernimento do cogito afirmando sonho ou vigília, mas não é irracional. É o limite do

pensamento. É o espaço no qual o pensamento é possível. É a ordem do saber. Segundo

Foucault:

A esse conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma

prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência,

apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar, pode-se

chamar saber. Um saber é aquilo de que podemos falar em uma

prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio

constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status

científico [...] (FOUCAULT, 2009, p.204).

O campo das relações discursivas e elementos não discursivos constituem em sua

efetividade, para Foucault, o saber. Este não é o produto de um sujeito, não designa uma

“coisa”. É o espaço no qual designações podem existir, onde o sujeito ganha existência. Não

se confunde com a ciência, mas é o espaço no qual ciências podem existir, se opor, dar-se

uma história. Não é um efeito desse campo no qual se constitui, pois essas regras não são

anteriores a ele. O saber se dá na efetividade das relações das regras de formação. É, portanto,

a própria formação discursiva. O saber é a dizibilidade de um campo discursivo. É a abertura

na qual o pensamento de uma época pode se realizar. É o campo de relações de regras de

formação. Nem mudo, nem dizível, um espaço de dizibilidade. É este espaço que a crítica

Foucaultiana e Wittgensteineana abrem ao pensamento possibilitando a este pensar-se.

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