Louca Por Compras Espera Um Bebé - VISIONVOX

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Ficha Técnica

Título original: Shopaholic & Baby Título: Louca Por Compras Espera um Bebé

Autor: Sophie Kinsella Tradução: Carmo Vasconcelos Romão

Revisão: Domingas Cruz Capa: Maria Manuel Lacerda/Oficina do Livro, Lda.

ISBN: 9789897261718

QUINTA ESSÊNCIA uma marca da Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda

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© Sophie Kinsella, 2007

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Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.

Para Oscar

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros de Finanças Forward House

High Holborn, 394 Londres WC1V 7EX Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 30 de julho de 2003 Cara Mrs. Brandon Foi um grande prazer conhecê-la a si e a Mr. Brandon, e estou ansioso por assumir o papel deconselheiro de finanças da sua família. Neste momento, estou a estabelecer a situação bancária e uma caderneta de poupança para oseu filho que ainda não nasceu. Em devido tempo, poderemos discutir que investimentos asenhora e seu marido desejarão fazer em nome do bebé. Estou ansioso para conhecê-la melhor nos próximos meses; por favor, não hesite em contactar-me para falarmos de qualquer assunto, por menor que seja. Atenciosamente, Kenneth Prendergast Especialista em Investimentos de Família

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros de Finanças Forward House

High Holborn, 394 Londres WC1V 7EX

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 1 de agosto de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigado pela sua carta. Em resposta às suas perguntas: sim, poderá fazer um levantamento daconta do bebé – ainda que, naturalmente, eu não esperasse que fosse usado! Atenciosamente, Kenneth Prendergast Especialista em Investimentos de Família

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros de Finanças Forward House

High Holborn, 394 Londres WC1V 7EX

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 7 de agosto de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigado pela sua carta. Fiquei intrigado ao saber da «mensagem psíquica» que recebeu recentemente do seu filho aindanão nascido. Entretanto, creio que seja impossível fazer levantamentos nesta fase, ainda que,conforme diz, «o bebé o deseje». Atenciosamente, Kenneth Prendergast Especialista em Investimentos de Família

UM

Muito bem. Nada de pânico. Vai correr tudo bem. Claro que vai. Claro que vai! – Pode levantar a blusa, Mistress Brandon? – A técnica de ecografia olha-me com ar

agradável e profissional. – Preciso de aplicar um pouco de gel na sua barriga antes decomeçarmos o exame.

– Sem dúvida! – respondo sem mover um músculo. – O problema é que... estou umbocadinho... nervosa.

Encontro-me deitada numa cama no hospital Chelsea and Westminster, tensa de ansiedade. Aqualquer minuto, Luke e eu veremos o nosso bebé no ecrã pela primeira vez desde que eraapenas uma minúscula bolinha. Ainda não acredito. Na verdade, ainda não ultrapasseitotalmente o facto de estar grávida. Dentro de dezanove semanas, eu, Becky Brandon, néeBloom... serei mãe. Mãe!

Luke é o meu marido, a propósito. Estamos casados há pouco mais de um ano e este é umgenuíno, cem por cento, bebé de lua de mel! Viajámos imenso na lua de mel, mas chegueipraticamente à conclusão de que o bebé foi concebido quando estávamos num resort incrívelno Sri Lanka, chamado Unawatuna, todo cheio de orquídeas, bambus e paisagens lindas.

Unawatuna Brandon. Miss Unawatuna Orquídea-Bambu Brandon. Hum. Não sei muito bem o que diria a minha mãe. – A minha mulher teve um pequeno acidente na primeira fase da gravidez – explica Luke

sentado ao lado da cama. – De modo que está um pouco ansiosa. Aperta a minha mão, para me dar apoio, e retribuo o gesto. O meu livro de gravidez, Nove

Meses da Sua Vida, diz que devemos incluir o parceiro em todos os aspetos da gravidez, decontrário ele pode sentir-se magoado e isolado. Por isso incluo Luke o máximo que posso.Tipo: ontem à noite incluí-o enquanto via o meu novo DVD, Braços Tonificados Durante aGravidez. De repente, ele lembrou-se de que precisava de fazer um telefonema de negóciosmesmo a meio e perdeu grande parte, mas o facto é que não se sente isolado.

– A senhora teve um acidente? – A técnica fez uma pausa e deixou de digitar nocomputador.

– Caí de uma montanha durante uma tempestade enquanto andava à procura da minha irmãque não via há muito – explico. – Nessa altura não sabia que estava grávida. E acho que talveztenha magoado o bebé.

– Percebo. – A técnica olha para mim com delicadeza. Tem cabelo castanho quase grisalho,apanhado num nó, com uma caneta enfiada. – Bem, os bebés são umas coisinhas resistentes.Vamos espreitar, sim?

Pronto. Chegara o momento pelo qual estive obcecada durante semanas. Cautelosamente,

levanto a blusa e olho para a barriga inchada. – Não se importa de empurrar os colares para o lado? – acrescenta. – Tem aqui uma bela

coleção! – São pingentes especiais. – Junto-os, chocalhando-os. – Este é um símbolo asteca da

maternidade e este é um cristal de gestação... e este é um guizo para acalmar o bebé... e esta éuma pedra do parto.

– Uma pedra do parto? – Apertamo-la num ponto especial da palma da mão e ela afasta as dores do parto – explico.

– Os maoris usam-na desde os tempos antigos. – Hum, hum. – A técnica ergue uma sobrancelha e espreme um pouco de gelatina

transparente na minha barriga. Franze um pouco a testa, pressiona a coisa do ecógrafo sobre aminha pele e, instantaneamente, uma imagem turva, a preto e branco, aparece no ecrã.

Não consigo respirar. É o nosso bebé. Dentro de mim. Lanço um olhar a Luke e vejo-o a olhar fixamente para o

ecrã, hipnotizado. – Ali estão as quatro divisões do coração... – A técnica movimenta o aparelho. – Agora

estamos a ver os ombros... – Aponta para o ecrã e olho, obediente, semicerrando os olhos, aindaque, para ser sincera, não veja o ombro, apenas curvas indistintas.

– Está ali o braço... a mão... – A voz torna-se hesitante, franze a testa. Faz-se silêncio na pequena sala. Sinto uma súbita aflição. Por isso ela franze a testa. O bebé

só tem uma mão. Eu sabia. Invade-me uma avassaladora onda de amor e proteção. Sinto as lágrimas nos olhos. Não

importa que o nosso bebé tenha apenas uma mão. Vou amá-lo do mesmo modo. Vou amá-loainda mais. Luke e eu vamos levá-lo a qualquer parte do mundo para que tenha os melhorestratamentos e vamos criar um fundo de investigação, e se alguém sequer se atrever a olhar parao meu menino...

– ... e a outra mão. – A voz da técnica interrompe os meus pensamentos. – A outra mão? – ergo os olhos, engasgada. – Tem duas mãos? – Pois... tem. – A técnica parece espantada com a minha reação. – Olhe, pode vê-las aqui. –

Aponta para a imagem e, para meu espanto, consigo aperceber-me dos dedinhos ossudos. Dez. – Desculpe. – Engulo em seco, limpando os olhos com o lenço de papel que me entrega. – É

um enorme alívio. – Tanto quanto posso dizer, parece-me tudo muito bem – diz num tom tranquilizador. – E,

não se preocupe, é normal ficar emocionada durante a gravidez. São as hormonas que por aíandam.

Francamente. As pessoas levam a vida a falar das hormonas. Como o Luke ontem à noite,quando desatei a chorar durante um anúncio na televisão em que aparecia um cãozinho. Nãosão as hormonas, estou perfeitamente normal. Só que o anúncio é mesmo muito triste.

– E aqui têm. – A técnica toca mais uma vez no teclado, fazendo sair da impressora a tira deimagens a preto e branco que me entrega. Olho para a primeira e consigo ver a nítida silhuetade uma cabeça. Tem um narizinho, uma boca e tudo o mais.

– Bom, está tudo bem. – Faz girar a cadeira. – Só preciso que me digam se querem saber osexo do bebé.

– Não, obrigado – responde Luke com um sorriso. – Já conversámos muito sobre isso, não

foi, Becky? E chegámos à conclusão de que, se soubermos, vamos estragar um pouco a magia. – Muito bem – diz a técnica a sorrir. – Se decidiram assim, nada direi. «Nada dirá»? Significa que já viu qual é o sexo. Poderia contar-nos neste preciso momento! – Não decidimos bem, pois não? – intervenho. – Não é definitivo. – Bom... decidimos sim, Becky. – Luke parece perplexo. – Não te lembras? Falámos do

assunto uma noite inteira e concordámos que queríamos que fosse surpresa. – Ah, pois, é verdade. – Não consigo afastar os olhos da imagem obscurecida do bebé. – Mas

podíamos ter agora a nossa surpresa! E também seria mágico! Pronto, talvez não seja exatamente assim. Mas será que Luke não estará também ansioso por

saber? – É realmente isso que queres? – Quando ergo os olhos vejo uma expressão de

desapontamento no rosto dele. – Queres ficar já a saber? – Bem... – hesito. – Não, se tu não quiseres. A última coisa que quero é aborrecer Luke. Tem sido tão doce e amoroso desde que fiquei

grávida! Recentemente ando com desejos de todo o tipo de combinações. Por exemplo, outrodia tive um desejo súbito de ananás e de um casaco de malha cor-de-rosa. E Luke levou-me àscompras especialmente para isso.

Está prestes a dizer qualquer coisa quando o telemóvel dele começa a tocar. Tira-o do bolso,mas a técnica ergue a mão.

– Desculpe, mas não pode usar aqui o telemóvel. – Com certeza. – Luke franze a testa ao ver a identidade de quem lhe quer falar. – É o Iain. O

melhor será ligar-lhe depois. Não preciso de perguntar qual Iain. Trata-se de Iain Wheeler, o superchefe de marketing do

Grupo Arcodas. Luke tem uma empresa de relações públicas, a Brandon Communications, e oArcodas é o novo grande cliente do Luke. Foi uma coisa do outro mundo ter conseguidoconquistá-lo, o que deu um impulso fantástico à empresa – permitiu-lhe contratar mais ummonte de funcionários e está também a pensar abrir várias sucursais no resto da Europa.

Portanto, está tudo bem com a Brandon Communications. Mas, como sempre, Luke mata-sea trabalhar. Nunca o vi dar tanta atenção a alguém. Se o Iain Wheeler telefona, ele devolve-lhea chamada sempre, o máximo cinco minutos depois, até mesmo a meio da noite. Diz que otrabalho é mesmo assim, que o Arcodas é o seu mega cliente e que é para isso que lhe pagam.

Só posso dizer que, se por acaso o Iain Wheeler ligar enquanto eu estiver em trabalho departo, aquele telemóvel vai janela fora.

– Têm aqui um telefone fixo que eu possa usar? – pergunta Luke à técnica. – Becky, se não teimportas...

– Tudo bem. – Aceno com a mão. – Vou dizer-lhe onde fica – diz a técnica, levantando-se. – Volto num instante, Mistress

Brandon. Desaparecem os dois pela porta, que se fecha com um estalido pesado. Fico sozinha. O computador continua ligado. A coisa do aparelho das ecografias está ao lado

do monitor. Poderia estender a mão e... Não. Não sejas idiota. Nem sei usar o aparelho. E, além disso, estragaria a surpresa mágica.

Se o Luke quer que esperemos, muito bem, vamos esperar. Mudo de posição na cama e examino as unhas. Posso esperar pelas coisas. Claro que posso. É

fácil… Ai, meu Deus. Não posso. Até dezembro, não. E tenho-o ali na minha frente... e não está aqui

ninguém... vou só espreitar um bocadinho de nada. Muito depressa. E não vou dizer nada aoLuke. Teremos ainda a surpresa mágica no nascimento – só que não será bem uma completasurpresa para mim. Pois não.

Inclinando-me, consigo agarrar o manípulo do ecógrafo. Encosto-o no ao gel que cobre aminha barriga e imediatamente a imagem turva reaparece no ecrã.

Consegui! Agora só preciso mexê-lo ligeiramente para chegar ao bocadinho crucial... Concentrada, franzindo a testa, desloco o aparelho sobre o meu abdómen, inclinando-o para

um lado e para o outro, esticando a cabeça para espreitar o ecrã. É muito mais fácil do quepensara! Talvez devesse arranjar emprego como técnica de ecografia. Obviamente tenho jeito.

Ali está a cabeça. Uau, é enorme! E aquilo deve ser... A minha mão fica imóvel e prendo a respiração. Acabo de ver. Vi o sexo do meu bebé! É um menino! A imagem não é tão boa como a da técnica, mas mesmo assim é inconfundível. Luke e eu

vamos ter um filho! – Olá – digo alto para o ecrã com a voz ligeiramente embargada. – Olá, rapazinho! E agora não consigo impedir que as lágrimas rolem pelas faces. Vamos ter um menino

maravilhoso! Posso vestir-lhe jardineiras lindas, comprar um carrinho de pedais, e Luke podejogar críquete com ele, e vamos chamar-lhe...

Ah, meu Deus, que nome lhe vamos dar? Pergunto a mim mesma se Luke gostaria de Birkin. Assim eu poderia conseguir uma mala

Birkin1 para levar as fraldas. Birkin Brandon. Bem fixe. – Olá, bebezinho – digo a cantarolar em voz suave para a grande imagem redonda da cabeça

no ecrã. – Queres chamar-te Birkin? – O que está a senhora a fazer? – A voz da técnica obriga-me a dar um salto. Está parada à

porta com Luke, pasmada. – Este equipamento pertence ao hospital! Não devia tocar-lhe. – Desculpe – digo, limpando os olhos. – Mas precisava de espreitar mais uma vez. Luke,

estou a falar com o nosso bebé. É simplesmente... incrível. – Deixa-me ver! – Os olhos de Luke iluminam-se e ele atravessa rapidamente a sala, seguido

da técnica. – Onde? Não me importo que Luke veja que é um menino e dê cabo da surpresa. Tenho de partilhar

com ele este precioso momento. – Olha, ali está a cabeça! – aponto. – Olá, querido! – Onde está a cara? – Luke parece um pouco perturbado. – Não sei. Do outro lado. – Aceno ligeiramente ao de leve com a mão. – Olha a mamã e o

papá! E amamos-te muito, muito... – Mistress Brandon – interrompe a técnica. – A senhora está a falar com a sua bexiga.

* * *

Ora, como iria eu saber que era a minha bexiga? Parecia um bebé. Quando entramos na sala do obstetra, ainda sinto as faces a arder. A técnica fez-me um

discurso enorme sobre os danos que poderia ter causado a mim mesma ou à máquina, que

poderia ter partido, e só conseguimos livrar-nos dela quando Luke prometeu uma grandedoação para o laboratório.

E ela disse que, como eu nem chegara perto do bebé, era muito improvável que tivesse vistoo sexo. Humpf!

Mas, quando me sento diante do Dr. Braine, o nosso obstetra, começo a sentir-me animada. O Dr. Braine é um homem muito tranquilizador. Tem sessenta e poucos anos, cabelo grisalho

e bem cortado, um fato de riscas e um leve perfume a loção de barba antiquada. E pôs nestemundo milhares de bebés, inclusivamente Luke! Para ser franca, não consigo imaginar a Elinor,a mãe de Luke, a dar à luz, mas acho que deve ter acontecido, seja lá como foi. E, assim quedescobrimos que estava grávida, Luke disse que precisávamos de descobrir se o Dr. Braineainda exercia, porque era o melhor do país.

– Meu rapaz! – Aperta calorosamente a mão do Luke. – Como estás? – Muito bem. – Luke senta-se ao meu lado. – E como vai o David? Luke estudou com o filho do Dr. Braine e pergunta sempre por ele quando nos encontramos. Faz-se silêncio enquanto o Dr. Braine pensa na pergunta. É a única coisa que acho um

bocado irritante nele. O tipo reflete acerca de tudo o que se lhe diz, como se fosse da maiorimportância, quando, na verdade, nada daquilo é mais do que uma observação aleatória paramanter a conversa. Na nossa última consulta, perguntei-lhe onde comprara a gravata e elerefletiu durante cerca de cinco minutos, depois telefonou à mulher para se certificar e foi umaautêntica saga. E eu que nem gostava daquela estúpida gravata.

– O David está ótimo – diz por fim acenando com a cabeça. – Manda cumprimentos. –Segue-se outra pausa enquanto examina a ecografia. – Muito bom – comenta por fim. – Estátudo em ordem. Como se sente, Rebecca?

– Ah, estou bem! – respondo. – E feliz, porque o bebé está ótimo. – Continua a trabalhar a tempo inteiro, pelo que vejo. – O Dr. Braine olha para a minha ficha.

– Não será demasiado exigente para si? A meu lado, Luke disfarça uma fungadela. É mesmo mal-educado! – Bom... – Tento pensar na melhor maneira de dizer as coisas. – O meu trabalho não é assim

tão exigente. – A Becky trabalha no The Look – explica Luke. – Sabe, doutor, aqueles armazéns novos em

Oxford Street. – Ah! – A expressão do Dr. Braine esmorece. – Percebo. Sempre que digo às pessoas o que faço, elas desviam o olhar, embaraçadas, mudam de

assunto ou fingem que nunca ouviram falar do The Look. O que é impossível, porque todos osjornais o mencionam há semanas. Ontem o Daily World chamou-lhe o «maior desastre devenda a retalho da história britânica».

O único lado bom de trabalhar numa loja falida é que isso significa poder ter todo o temponecessário para ir ao médico ou frequentar as aulas pré-natais. E, se não voltar a toda a pressa,ninguém sequer repara.

– Tenho a certeza de que as coisas vão melhorar em breve – diz ele, encorajando-me. – Bom,têm mais alguma pergunta?

Respiro fundo. – Na verdade, tinha uma pergunta, doutor Braine – hesito. – Agora que os resultados dos

exames estão bons, o doutor diria que é seguro... o doutor sabe... – Sem dúvida nenhuma – garante o Dr. Braine entendendo perfeitamente. – Muitos casais

abstêm-se de ter relações sexuais no início da gravidez... – Não estou a falar de sexo! – exclamo surpreendida. – Estou a falar de fazer compras! – Fazer compras? – pergunta o Dr. Braine perplexo. – Ainda não comprei nada para o bebé – explico. – Não queria estragar as coisas. Mas, se

tudo parece estar bem, posso começar esta tarde! Não consigo evitar parecer entusiasmada. Esperei tanto tempo para começar a fazer as

compras do bebé. E acabei de saber de uma nova e fabulosa loja de bebés chamada Bambino,na King’s Road. Na verdade, tirei a tarde de folga especialmente para lá ir!

Sinto o olhar de Luke sobre mim, volto a cabeça e vejo que me olha incrédulo. – Querida, «começar» como? – pergunta. – Ainda não comprei nada para o bebé! – digo para me defender. – Sabes que não. – Mas então... Não compraste um roupão Ralph Lauren em miniatura? – Luke conta pelos

dedos. – E um cavalinho de baloiço? E um fatinho de fada cor-de-rosa com asas? – Essas coisas são para quando a criança andar – replico com dignidade. – Não comprei nada

para o bebé. Francamente. Luke não será bom pai se não souber a diferença. – E o que faremos se for um menino? – pergunta. – Vestimos-lhe o fatinho de fada cor-de-

rosa? Para falar verdade pensava vesti-lo eu mesma. Já o experimentei e estica bastante! Não que o

vá admitir a Luke. – Sabes, estou surpreendida contigo, Luke. – Ergo o queixo. – Não te julgava

preconceituoso. O Dr. Braine acompanha a nossa conversa, surpreendido. – Parece-me que não querem saber o sexo do bebé, pois não? – intervém. – Não, obrigado – afirma Luke, decidido. – Queremos manter a surpresa, não é assim,

Becky? – Ah... sim. – Aclaro a garganta. – A não ser que o doutor julgue que seja bom sabermos por

razões médicas urgentes. Olho intensamente para o Dr. Braine, que não capta a mensagem. – De modo algum. – Sorri de orelha a orelha. Raios!

Passam mais vinte minutos até sairmos do consultório em três dos quais o Dr. Braine meexamina e, nos restantes, ele e Luke recordam um qualquer jogo de críquete da escola. Tentoser educada e ouvir, mas não posso evitar remexer-me de impaciência. Quero ir à Bambino!

Por fim, a consulta acaba e saímos para a movimentada rua de Londres. Uma mulher passacom um antiquado carrinho de bebé Silver Cross, que examino discretamente. Não há dúvidade que quero um carrinho assim, com aquelas rodas fantásticas que balançam. Só que quero umacabamento em rosa-choque. Vai ficar fabuloso. As pessoas chamar-me-ão a Miúda doCarrinho de Bebé Rosa-Choque. Se for menino, mando pintá-lo com um spray azul-claro.Não... azul-esverdeado. E toda a gente vai dizer...

– Falei com o Giles, da imobiliária, hoje de manhã – disse Luke interrompendo os meuspensamentos.

– Ah sim? – Levanto os olhos, entusiasmada. – E há alguma coisa?

– Nada. – Ah! – Lá se vai o entusiasmo. De momento, moramos numa cobertura incrível que Luke possui há anos. É fantástica, mas

não tem jardim e, com tapetes beges imaculados por tudo quanto é sítio, não é exatamente olugar perfeito para um bebé. De maneira que a pusemos à venda há umas semanas ecomeçámos a procurar uma bela casa para a família.

O problema é que o apartamento foi comprado imediatamente. O que – modéstia à parte – sedeveu inteiramente à minha brilhante decoração. Pus velas em toda a parte, uma garrafa dechampanhe na casa de banho e um monte de toques «de estilo», como programas de ópera econvites para acontecimentos sociais chiques (emprestados pela Suze, a minha amigaelegantérrima.) E o casal Karlsson fez imediatamente uma oferta! E pagam em dinheiro!

O que é fantástico, mas… e onde vamos morar? Não vimos uma única casa de que tenhamosgostado; agora o agente explica que o mercado está muito «seco» e «pobre» e se já pensámosem alugar?

Eu não quero alugar. Quero ter uma linda casa nova para levar o meu bebé. – E se não encontrarmos? – Olho para Luke. – E se ficarmos na rua? Será inverno! Vou estar

incrivelmente grávida. Tenho uma imagem súbita de mim a percorrer Oxford Street enquanto um coro canta «Toca

o sino pequenino». – Querida, não vamos ficar na rua! Mas o Giles disse que talvez devêssemos ser mais

flexíveis nas nossas exigências. – Luke faz uma pausa. – Acho que ele se referia às tuasexigências, Becky.

É muito injusto! Quando mandaram um formulário para a procura de imóveis, o papel dizia:«Por favor, seja o mais específico possível nos seus desejos.» Foi o que fiz. E agora reclamam!

– Parece que podemos esquecer o quarto de sapatos – acrescenta. – Mas... – Detenho-me ao ver a expressão dele. Uma vez vi um quarto de sapatos no Lifestyle

of the Rich and Famous2 e desde então morro de desejo de ter um. – Mas pronto – digohumildemente.

– E talvez tenhamos de ser mais flexíveis em relação à localização. – Não me importo com isso! – afirmo enquanto o telemóvel de Luke começa a tocar. Na

verdade, acho que é até boa ideia. Luke é que sempre gostou muito de Maida Vale, não eu. Há montes de lugares onde gostaria

de morar. – Fala Luke Brandon – responde ele com ar profissional. – Ah, olá. Já fizemos a ecografia.

Está tudo ótimo. É a Jess – diz voltando-se para mim. – Tentou falar contigo, mas tens ainda otelefone desligado.

– Jess! – exclamo encantada. – Deixa-me falar com ela! Jess é a minha irmã. A minha irmã. Ainda acho o máximo dizê-lo. Durante toda a vida pensei

ser filha única e afinal descobri que tinha uma irmã há muito perdida! A princípio não nosentendemos perfeitamente, mas desde que ficámos as duas presas numa tempestade econversámos como devia ser, tornámo-nos amigas.

Há uns meses que não a vejo porque ela esteve na Guatemala, num projeto de investigaçãogeológica ou coisa que o valha. Mas telefonámos uma à outra e trocámos e-mails e ela mandou-me fotografias no cimo de um penhasco qualquer. (Vestindo um horroroso anoraque azul emvez do casaco de pele falsa tão fixe que lhe ofereci. Mas onde já se viu!)

– Vou voltar para o escritório – diz Luke ao telefone. – E a Becky vai fazer compras. Queresfalar com ela?

– Chiu! – sussurro, horrorizada. Luke sabe que não deve mencionar a palavra «compras» aJess.

Fazendo-lhe uma careta, pego no telefone e encosto-o ao ouvido. – Olá, Jess! Como vão as coisas por aí? – Fantásticas! – A voz está distante e cheia de estalidos. – Só liguei para saber como correu a

ecografia. Não posso deixar de me sentir emocionada por se ter lembrado. Estará provavelmente

algures, sobre alguma fenda suspensa de uma corda, retirando lascas da face da rocha, masmesmo assim lembrou-se de ligar.

– Está tudo ótimo! – Sim, o Luke já me disse. Graças a Deus. – Pelo seu tom de voz apercebo-me de que está

aliviada. Sei que ela sente remorsos por eu ter caído da montanha, porque fui lá para procurá-la,porque...

De qualquer forma, é uma longa história. A questão é que o bebé está ótimo. – Olha, o Luke disse que ias às compras? – Só umas coisas essenciais para o bebé – digo em tom natural. – Por exemplo... fraldas

recicladas. Na loja de artigos em segunda mão. – Estou a ver o Luke a rir-se de mim, masvolto-me rapidamente.

O problema é que a minha irmã Jess não gosta de gastar dinheiro nem de arruinar a Terracom o consumismo malvado. E acha que eu também não. Acredita que segui o caminho dela eabracei a frugalidade.

Assim fiz, por uma semana. Encomendei uma embalagem grande de flocos de aveia, compreiumas roupas na Oxfam e fiz sopa de lentilhas. Mas o problema de ser frugal é o ser muitochato! Enjoamo-nos da sopa, de não comprar revistas porque são um desperdício de dinheiro ede colar as sobras de sabonete para fazer uma bola grande e nauseabunda. E a aveia estava a sertão usada como os tacos de golfe de Luke, de modo que acabei por deitá-la fora e comprarWeetabix.

Só que não posso contar à Jess para não dar cabo do nosso belo laço fraternal. – Viste o artigo sobre como fazer as toalhitas de bebé? – pergunta entusiasmada. – Deve ser

muito fácil. Já comecei a guardar trapos. Podemos fazê-las juntas. – Oh... pois… sim! Jess manda-me constantemente exemplares de uma revista chamada Bebé Frugal. Tem

títulos de artigos como «Monte o quarto do seu bebé por 25 libras!» e fotografias de bebésvestidos com velhos sacos de farinha, coisa que me deprime só de ver. Não quero que o meubebé durma num cesto de plástico para roupa. Quero comprar um bercinho com folhos brancosmuito giros.

E agora ela fala-me de uma coisa chamada babygrows de cânhamo sustentável, por isso achomelhor acabar com a conversa.

– Tenho de desligar, Jess. Vais à festa da mãe? A minha mãe vai dar uma festa pelos seus sessenta anos no fim de semana que vem.

Convidou um monte de gente, haverá uma banda e o Martin, o nosso vizinho, fará os seustruques de magia.

– Claro! – responde Jess. – Não a perderia por nada! Vemo-nos lá.

– Adeus! Desligo o telefone, volto-me e vejo que Luke conseguiu arranjar um táxi. – Queres que te deixe na loja de roupa em segunda mão? – pergunta, abrindo a porta. Ah, ah, ah. – Bambino, na King’s Road, por favor – digo ao motorista. – Também queres vir, Luke? –

acrescento com súbito entusiasmo. – Poderíamos ver uns carrinhos fixes e isso e depois beberum chá num sítio simpático...

Pela expressão de Luke, já sei que vai dizer não. – Tenho de voltar, minha querida. Reunião com o Iain. Da próxima vez vou, prometo. Não adianta ficar desapontada. Sei que ele está a trabalhar integralmente na conta do

Arcodas. Pelo menos, conseguiu arranjar tempo para me acompanhar à ecografia. O táxi parte eLuke passa-me o braço pelos ombros.

– Estás com um aspeto luminoso – comenta. – A sério? – retribuo o sorriso. Hoje sinto-me muito bem com as minhas fabulosas calças de

ganga pré-mamã, sandálias de salto alto e uma blusa sexy, de gola alta, da Isabella Oliver, quepuxei para cima, para mostrar só um pouco de barriga bronzeada.

Nunca havia notado – mas estar grávida é incrível! Claro, a barriga cresce, mas é exatamenteo que deve acontecer. E, em comparação, as pernas parecem mais finas. E de repente ficamoscom um decote maravilhoso. (Do qual, devo dizer, Luke gosta muito.)

– Vamos ver mais uma vez as imagens da ecografia – diz ele. Meto a mão na mala e retiro de lá o rolo de imagens brilhantes. Ficamos a vê-las os dois

durante algum tempo: a cabeça redonda, o perfil do pequenino rosto. – Estamos a criar uma pessoa totalmente nova – murmuro com os olhos fixos. – Dá para

acreditar? – Bem sei. – Luke estreita-me nos seus braços. – É a maior aventura que alguma vez

teremos. – É incrível como a natureza funciona. – Mordo o lábio, sentindo-me de novo invadida pelas

emoções. – Surgiram em mim todos estes instintos maternais. Sinto como... se quisesse dartudo ao nosso bebé!

– Bambino – diz o motorista, estacionando junto ao passeio. Ergo os olhos das imagens daecografia e vejo a fachada da loja mais fantástica, novinha em folha. Toda em creme, o toldo àsriscas vermelhas, o porteiro vestido como um soldadinho de chumbo e as montras são uma arcade tesouro para crianças. Há lindas roupinhas de bebé nos manequins, uma caminha em formade Cadillac dos anos 50, uma roda gigante de verdade sempre a girar…

– Uau! – exclamo sufocada, estendendo a mão para o puxador da porta do táxi. – Será queaquela roda gigante está à venda? Adeus, Luke, até logo...

Já passei a entrada quando ouço Luke gritar: – Espera! – Volto-me e leio-lhe no rosto uma leve expressão de susto. – Becky. – Luke

inclina-se para fora do táxi. – O bebé não precisa de ter tudo.

1 Mala de mão da Hermés, cujo nome é uma homenagem à atriz Jane Birkin. É um símbolo de riqueza já que os seus preçosvariam entre os 5500 e os 110 000 euros. (N. da T.)

2 Série de televisão americana que foi para o ar entre 1984 e 1995. (N. da T.)

DOIS

Como foi que, afinal, consegui adiar tanto as compras para o bebé? Cheguei à secção de bebés da Bambino, no primeiro andar. A alcatifa é macia, ouvem-se

canções de embalar através do sistema de som e há enormes animais de peluche a decorar aentrada. Um funcionário vestido de Peter Rabbit entregou-me um cesto de verga branco e,quando olho em redor, agarrando-o, sinto o entusiasmo invadir-me.

Dizem que a maternidade nos modifica – e estão certos. Pela primeira vez na vida não pensosó em mim. Sinto-me totalmente altruísta! Tudo para o bem-estar do meu bebé, que ainda nãonasceu.

Numa direção, há filas de berços maravilhosos e móbiles que giram, tilintando. Noutra,avisto o brilho cromado e atraente dos carrinhos de bebé. À minha frente, há expositores compequeníssimas roupinhas. Dou um passo em frente, em direção às roupas. Vejam só aqueleslindos sapatinhos de coelho. E os minúsculos casacos de couro almofadado... e há umagigantesca secção de Bebé Dior... e, oh, meu Deus, júnior Dolce...

Tudo bem. Calma. Vou organizar-me. Só preciso de uma lista. Retiro do meu saco o Nove Meses da Sua Vida e vou direita ao capítulo oito, «Compras para

o seu Bebé» e, ansiosa, começo a examinar a página. Roupas Não se sinta tentada a comprar roupas muito pequeninas para o seu bebé. O branco érecomendado pela facilidade de lavagem. Três babygrows simples e seis bodies serãosuficientes. Por uns momentos olho para aquelas palavras. Decerto, não será boa ideia seguir um livro à

risca. Dizia até na introdução: «Não quererá seguir absolutamente todos os conselhos. Cadabebé é diferente, por isso deve guiar-se pelo seu instinto.»

O meu instinto diz-me que devo comprar um casaco de couro. Dirijo-me para o mostruário e observo as etiquetas dos tamanhos: «Bebé recém-nascido»,

«Bebé pequeno». Como hei de saber se terei um bebé pequeno? Até agora parece muitopequeno, mas quem o poderá dizer? Talvez deva comprar os dois, para maior segurança.

– É o fatinho para a neve da Baby in Urbe! – A mão com unhas impecáveis aparece no varãoà minha frente e apanha um fatinho acolchoado, num cabide preto chique. – Estava louca paraencontrar um.

– Eu também! – digo instintivamente e apanho o último que resta. – Sabe que no Harrod’s a lista de espera para estes é de seis meses? – A dona da mão é uma

gravidíssima loira de calças de ganga e blusa stretch turquesa. – Oh, meu Deus, têm toda acoleção da Baby in Urbe! – E começa a empilhar as roupas de bebé no cesto de verga branco. –

E olhe! Têm sapatos Piglet. Preciso de comprar uns para as minhas filhas. Eu nunca sequer ouvira falar da Baby in Urbe. Ou dos sapatos Piglet. Como posso ser tão pouco fixe? Como será possível não ter ouvido falar em nenhuma dessas

marcas? Enquanto examino as minúsculas roupinhas diante de mim, sinto um ligeiro pânico.Não sei o que se usa e o que não se usa. Não faço a mínima ideia sobre moda de bebé. E sótenho cerca de quatro meses para me atualizar.

Posso sempre perguntar à Suze. É a minha melhor e mais antiga amiga e tem três filhos.Ernest, Wilfrid e Clementine. Mas com ela as coisas são um pouco diferentes. A maior partedas roupas de bebé é bordada à mão, passada de geração em geração e cerzida pela velhaempregada da mãe dela, e os bebés dormem nos antigos berços de carvalho do solar da família.

Apanho dois pares de sapatos da Piglet, vários macaquinhos da Baby in Urbe e um par deJellie Wellies, pelo sim, pelo não. Então vejo o vestidinho cor-de-rosa mais lindo do mundo.Tem botões cor de arco-íris, cuequinhas do mesmo tecido e meias minúsculas. É simplesmentefantástico. Mas e se tivermos um menino?

É impossível não saber o sexo. Deve haver algum meio de descobrir secretamente. – Quantos filhos tem? – pergunta a jovem da blusa turquesa, para fazer conversa, enquanto

espreita para dentro dos sapatos para ver os tamanhos. – É o meu primeiro. – Aponto para a barriga. – Que maravilha! Tal e qual a minha amiga Saskia. – Aponta para uma jovem de cabelo

escuro ali perto. É magra como um palito, sem qualquer sinal de gravidez, e está a falar aotelemóvel muito concentrada. – Acabou de descobrir. É tão emocionante!

Neste momento, Saskia fecha o telemóvel e vem na nossa direção, com o rostoresplandecente.

– Consegui! – exclama. – Consegui a Venetia Carter! – Oh, Saskia! É fantástico! – A jovem da blusa turquesa larga o cesto de roupas mesmo em

cima do meu pé e lança os braços ao pescoço de Saskia. – Desculpe! – acrescenta, animada,quando lhe devolvo o cesto. – É uma ótima notícia! A Venetia Carter!

– Também vai à Venetia Carter? – pergunta-me com súbito interesse. Estou tão fora das coisas de bebé! Não faço a mínima ideia de quem ou o que é a Venetia

Carter. – Nunca ouvi falar – admito. – Com certeza que sabe. – A jovem da blusa turquesa arregala os olhos. – A obstetra! A

obstetra celebridade absolutamente imprescindível! Obstetra celebridade absolutamente imprescindível? Começo a ficar com pele de galinha. Há uma obstetra celebridade absolutamente

imprescindível e eu não sabia? – A de Hollywood! – explica a jovem da blusa turquesa. – Faz o parto dos bebés das estrelas

de cinema. Deve ter ouvido falar. Mudou-se agora para Londres. Todas as supermodelos vãopara ela. Faz até festas para as clientes, não é fabuloso? Levam os bebés e ganham uns sacos debrindes fabulosos...

O meu coração acelera enquanto ouço. Sacos de brindes? Festas com supermodelos? Nãoacredito que estou a perder tudo isso. Mas por que razão nunca ouvi falar da Venetia Carter?

A culpa é toda de Luke. Fez-nos ir diretamente ao velho e bolorento Dr. Braine. Nemchegámos a pensar em mais ninguém.

– E ela é boa a... bem... fazer os partos? – pergunto, tentando permanecer calma.

– Oh, a Venetia é maravilhosa – refere Saskia, que parece muito mais intensa que a amiga. –Não é como esses médicos antiquados. Liga-se realmente connosco. Amanda, a minha patroa,fez o mais fabuloso parto holístico dentro de água, com flores de lótus e massagem tailandesa.

Massagem tailandesa? O Dr. Braine jamais sequer mencionou a massagem tailandesa. – O meu marido não quer pagar para que eu tenha o bebé com ela – diz a jovem da blusa

turquesa. – É um forreta. Tu, Saskia, tens uma sorte! – Como se consegue uma consulta para ela? – As palavras saem-me da boca para fora antes

que possa evitar. – Tem a morada? Ou o telefone? – Oh! – A jovem da blusa turquesa troca olhares de desconfiança com Saskia. –

Provavelmente será demasiado tarde. Ela já não deve ter vagas. – Posso dar-lhe isto. Pode tentar. – Saskia mete a mão na bolsa Mulberry e retira lá de dentro

um folheto onde se pode ler «Venetia Carter» em elegantes letras em relevo azul-escuras e odesenho de um bebé. Abro, e a primeira coisa que vejo é uma página de testemunhosresplandecentes, com nomes discretos em baixo. Todos famosos! Volto-a e, na parte de trás, háum endereço em Maida Vale.

Não acredito. Maida Vale é onde moramos. Ah, tem tudo a ver. – Obrigada – digo, ofegante. – Vou tentar. Enquanto Saskia e a amiga se afastam, pego no telemóvel e primo o botão de chamada rápida

para ligar a Luke. – Luke! – exclamo assim que ele atende. – Graças a Deus que atendeste! Adivinha só! – Becky, estás bem? – pergunta, alarmado. – O que aconteceu? – Estou bem! Mas escuta, temos de mudar de médico! Acabo de descobrir uma brilhante

celebridade obstetra chamada Venetia Carter. Toda a gente vai ao seu consultório e parece queé incrível, e fica perto da nossa casa! Não podia ser mais perfeito! Vou ligar para ela!

– Becky, de que diabo estás a falar? – pergunta Luke incrédulo. – Não vamos mudar demédico! Temos um médico, lembra-te. Um médico muito bom.

Será que ele não me ouviu? – Bem sei que temos. Mas a Venetia Carter faz os partos de todas as estrelas de cinema! Ela é

holística! – «Holística» como? – Luke não parece impressionado. Meu Deus, ele tem uma mente tão

fechada! – Quero dizer que toda a gente tem um parto fabuloso. E faz massagem tailandesa! Acabo de

conhecer duas mulheres na Bambino e elas disseram... – Realmente não vejo que vantagens essa mulher poderá ter sobre o doutor Braine –

interrompeu Luke. – Sabemos que ele é experiente, sabemos que faz um bom trabalho, é amigoda família...

– Mas... mas... – Estou a pular de frustração. – Mas o quê? Estou atarantada. Não posso dizer: «Mas ele não dá festas frequentadas por supermodelos.» – Talvez eu queira ser seguida por uma mulher! – exclamo numa inspiração súbita. – Já

pensaste nisso? – Então vamos pedir ao doutor Braine que recomende uma colega – responde Luke com

firmeza. – Becky, o doutor Braine é obstetra da família há anos. Realmente, não acho quedevamos ir a correr consultar uma médica da moda, desconhecida, só porque duas mulheres tefalaram nela.

– Mas ela não é desconhecida! Essa é a questão! Ela trata das celebridades! – Becky, para com isso! – De repente, Luke parece incisivo. – Não é boa ideia. Já estás a

meio da gravidez. Não vais mudar de médico e acabou-se a conversa. O Iain está aqui. Tenhode desligar. Falamos depois.

O telefone fica mudo e olho para ele, lívida. Como se atreve a dizer-me qual o médico que me vai seguir? E o que há de tão extraordinário

no seu precioso Dr. Braine? Guardo o telemóvel e a brochura e começo a encher furiosamente ocesto com roupinhas de bebé Petit Lapin.

Luke não entende nada. Se todas as estrelas de cinema são seguidas por uma médica, ela temde ser boa.

E seria muito chique. Muito chique! Tenho uma visão súbita de mim mesma deitada num hospital, com o meu bebé ao colo, e a

Kate Winslet na cama ao lado. E a Heidi Klum na outra cama. Tornar-nos-íamos amigas! Compraríamos prendinhas umas às outras e os nossos bebés ficariam ligados para toda a

vida, iríamos ao parque juntas e seriamos fotografadas pela revista Hello! «Kate Winsletempurra o carrinho de bebé, conversando com uma amiga.»

Talvez «com Becky, a sua melhor amiga». – Desculpe, a senhora precisa de outro cesto? – Uma voz interrompe-me os pensamentos,

levanto os olhos e vejo um funcionário a apontar para a pilha de roupas de bebé a transbordardo cesto. Estive a enfiá-las no cesto sem sequer reparar.

– Ah, obrigada – digo, atordoada. Pego num segundo cesto de verga e vou até uma prateleirade chapéus minúsculos nos quais está escrito «Estrelinha» e «Pequeno Tesouro». Mas nãoconsigo concentrar-me.

Quero ser seguida pela Venetia Carter. Não me importa o que Luke pensa. Num desafio súbito, pego de novo no telemóvel e na brochura. Dirijo-me a um canto

silencioso da loja e marco cuidadosamente o número. – Boa tarde, consultório de Venetia Carter – responde uma voz de mulher com um sotaque

muito queque. – Ah, olá! – digo, tentando parecer o mais encantadora possível. – Vou ter um bebé em

dezembro e ouvi dizer que a doutora Venetia Carter é maravilhosa e fiquei a pensar se poderiahaver alguma possibilidade de marcar uma consulta com ela?

– Lamento – diz a mulher em voz firme, mas educada. – A doutora Carter está com a agendatotalmente ocupada neste momento.

– Mas estou mesmo desesperada! E de facto creio que preciso de um parto holístico dentro deágua. E moro em Maida Vale e estaria disposta a pagar acima do preço normal.

– A doutora Carter está absolutamente... – Gostaria ainda de acrescentar que trabalho como personal shopper e que gostaria de

oferecer gratuitamente os meus serviços à doutora Carter. – As palavras saem-me em catadupa.– E o meu marido tem uma empresa de comunicação e também poderia trabalhar para elagratuitamente! É claro que a doutora não precisa – acrescento logo. – Mas talvez pudesseperguntar? Por favor.

Silêncio. – A senhora chama-se? – pergunta por fim a mulher. – Rebecca Brandon – respondo ansiosa. – O meu marido é Luke Brandon, da Brandon

Communications e...

– Um momento, por favor, Mistress Brandon. Venetia... – A conversa é cortada por umtrecho animado de «As Quatro Estações».

Por favor, que ela diga que sim. Por favor, que ela diga que sim... Mal posso respirar enquanto espero. Estou junto a um expositor de coelhos de tricô brancos,

cruzando os dedos com todas as minhas forças, apertando pelo sim pelo não os pingentes quetrago ao pescoço e enviando preces silenciosas à deusa Vishnu, que me foi muito útil nopassado.

– Mistress Brandon? – Sim! – Largo todos os pingentes. – Diga, por favor! – É provável que surja uma vaga inesperada nas consultas da doutora Carter. Poderemos

informá-la nos próximos dias. – Com certeza – respondo ofegante. – Muito obrigada!

R E G A L A I R L I N E S Sede: Preston House

KINGSWAY, 354 • LONDRES WC2 4TH

Mrs. Rebecca Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 14 de agosto de 2003 Cara senhora Agradecemos a sua carta, bem como os itinerários de voo, o relatório do médico e as ecografiasenviadas em anexo. Concordo que o seu filho ainda não nascido viajou muitas vezes com a Regal Airlines.Infelizmente, tal não se qualifica como milhas aéreas por não ter sido ele a comprar aspassagens para esses voos. Lamentamos desapontá-la, esperando que continue a preferir a Regal Airlines. Atenciosamente, Margaret McNair Gerente de Atendimento ao Cliente.

TRÊS

Não voltei a mencionar Venetia Carter a Luke. Para começar ainda não é definitivo. E, também para começar, se o casamento me ensinou

alguma coisa, sei que não devemos falar de assuntos delicados quando o marido se sentestressado ou anda a inaugurar filiais simultaneamente em Amsterdão e Munique. Esteve foradurante toda a semana e só voltou ontem à noite, exausto.

Além do mais, mudar de médico não é o único assunto delicado que preciso de abordar. Hátambém o arranhãozito no Mercedes (que não foi culpa minha, foi aquele poste idiota) e os doispares de sapatos que quero que ele me compre na Miu Miu quando for a Milão.

É sábado de manhã e estou sentada no escritório, a verificar o extrato bancário no meuportátil. Só há cerca de dois meses descobri os serviços bancários pela internet – e têm montesde vantagens. Podemos utilizá-los a qualquer hora do dia! Além disso, não enviam extratospelo correio, de modo que ninguém (por exemplo, o meu marido) os vê espalhados pela casa.

– Becky, recebi uma carta da minha mãe. – Luke entra com a correspondência e uma canecade café. – Manda-te saudades.

– A tua mãe? – Tento esconder o meu horror. – Queres dizer a Elinor? – O que quer ela? Luke tem duas mães. Annabel, uma madrasta admirável e calorosa, que mora em Devon com

o pai dele e que fomos visitar no mês passado. E a verdadeira mãe, a rainha do gelo, Elinor, quemora nos Estados Unidos e o abandonou quando ele era pequeno e, que, na minha opinião,deveria ser excomungada.

– Anda a viajar pela Europa com a sua coleção de arte. – Porquê? – pergunto automaticamente. Tenho uma visão de Elinor num autocarro, com um

monte de quadros amarrados debaixo do braço. De qualquer modo, não parece muito o estilodela.

– Atualmente, a coleção está emprestada à Ufizzi, depois vai para uma galeria em Paris... –Luke detém-se. – Becky, não estás a pensar que quis dizer que ela levava os quadros emviagem de férias!

– Claro que não – respondo com dignidade. – Sei exatamente o que querias dizer. – De qualquer modo, vai estar em Londres no fim do ano e quer encontrar-se connosco. – Luke... pensava que detestavas a tua mãe. Achei que nunca mais querias vê-la, lembras-te? – Então, Becky! – Luke franze a testa ao de leve. – Será a avó do nosso filho. Não podemos

afastá-la completamente. Podemos sim, quero responder. Mas, pelo contrário, encolho involuntariamente os ombros.

Acho que ele tem razão. O bebé será o seu único neto. Terá o sangue dela. Ah, meu Deus, e se ele se parecer com Elinor? Invade-me a visão terrível de um bebé deitado

num carrinho, vestido com um conjunto Chanel creme, olhando-me furioso e dizendo: «Mãe, atua roupa é um horror!»

– Então, o que estás a fazer? – Luke interrompe os meus pensamentos e, demasiado tarde,apercebo-me de que vem na minha direção. Diretamente ao meu portátil.

– Nada! – respondo à pressa. – É só o meu extrato bancário... – Clico, tentando fechar ajanela que bloqueou. Que raiva.

– Passa-se alguma coisa? – pergunta Luke. – Não! – respondo ligeiramente em pânico. – Quero dizer... Vou desligar esta coisa! – Como

que por acaso arranco o cabo da parte de trás. Mas o ecrã continua ligado. O extrato continua láa preto e branco.

E o Luke aproxima-se cada vez mais. E, de facto, não sei se quero que ele veja isto. – Deixa-me tentar. – Luke chega à minha cadeira. – Estás no site do banco? – Sim... mais ou menos! Francamente, nem vale a pena incomodares-te... – Coloco a barriga

diante do ecrã, mas Luke espreita por cima de mim. Por alguns instantes olha para o extratocom ar incrédulo.

– Becky – diz por fim. – Está aí escrito «Primeiro Banco Cooperativo da Namíbia?» – Ah, pois... – digo em tom aparentemente natural. Tenho lá uma pequena conta. – Na Namíbia? – Mandaram-me um e-mail oferecendo-me taxas de juro muito competitivas – digo num tom

de leve desafio. – Foi uma ótima oportunidade. – Respondes a todos os e-mails que recebes, Becky? – Luke volta-se, incrédulo. – Também

tens uma ótima seleção de substitutos para o Viagra? Bem me parecia que ele não entenderia a minha nova e brilhante estratégia bancária. – Não fiques tão tenso! Porque é tão importante o sítio onde tenho conta? O comércio é agora

global, Luke. As antigas fronteiras desapareceram. Se conseguirmos boas taxas de juro noBangladesh, então...

– No Bangladesh? – Oh. Bom... é... que também tenho lá conta. Pequenina – acrescento imediatamente ao ver a

expressão dele. – Becky... – Luke tem dificuldades em absorver tudo. – Quantas contas on-line abriste? – Três – respondo depois de uma pausa. – Três, mais ou menos. Lança-me um olhar duro. O problema dos maridos é que acabam por nos conhecer

demasiado bem. – Pois bem: quinze – digo rapidamente. – E quantos levantamentos a crédito? – Quinze. O que foi? – acrescento na defensiva. – De que adianta ter uma conta se não

pudermos fazer levantamentos a crédito? – Quinze levantamentos a crédito! – exclama Luke agarrado à cabeça, incrédulo. – Becky...

és a dívida do Terceiro Mundo. – Estou a usar a economia global em meu proveito! – replico. – O banco do Chade deu-me

um bónus de cinquenta dólares só para abrir a conta! Luke está completamente aturdido. Mas qual o problema de ter quinze contas bancárias?

Toda a gente sabe que não devemos por todos os ovos num só cesto. – Luke, pareces esquecer – acrescento em tom altivo – que já fui jornalista financeira. Sei

tudo sobre dinheiro e investimentos. Quanto maior o risco, maior o lucro, acho que sabes muitobem.

Luke não parece muito impressionado.

– Conheço os princípios do investimento, obrigado, Becky – diz ele com delicadeza. – Então pronto. – Tenho uma ideia súbita. – Devíamos investir a conta de poupança do bebé

no Bangladesh. Provavelmente ganharíamos uma fortuna! – Estás maluca? – Luke olha-me fixamente. – Porque não? Trata-se de um mercado emergente! – Não concordo. – Luke revira os olhos. – Na verdade, já falei com o Kenneth sobre a

poupança do bebé e concordámos em aplicá-la numa carteira de investimentos seguros... – Espera um minuto! – Levanto a mão. – Como falaste com o Kenneth? E a minha opinião? Não acredito que nem me consultaram! Como se eu não tivesse sido especialista financeira

na televisão e não recebesse centenas de cartas por semana, pedindo conselhos. – Olha, Becky – suspira Luke. – O Kenneth ficou muito satisfeito por recomendar

investimentos adequados. Não precisas de te preocupar. – Não é essa a questão! – exclamo indignada. – Luke, não entendes. Nós vamos ser pais.

Temos de tomar todas as decisões importantes em conjunto. Caso contrário, o nosso filho vaiandar por aí a correr e começar a bater-nos e vamos acabar escondidos no quarto e nunca maispoderemos ter sexo!

– O quê? – É verdade! Vi na Supernanny! Luke está totalmente embasbacado. Não há dúvida de que deveria ver mais televisão. – Pois muito bem – diz por fim. – Podemos decidir as coisas em conjunto. Tudo bem. Mas

não vou investir a poupança do bebé num mercado emergente de alto risco. – E eu não vou investir num banco velho e tacanho onde o dinheiro não vai render nada! –

contraponho. – Empatados. – Luke franze a boca. – Então... o que recomenda a Supernanny quando os pais

têm abordagens fundamentalmente diferentes em relação ao investimento da poupança? – Não sei se já abordaram esse assunto – admito. Então tive uma ideia súbita e luminosa. – Já

sei. Vamos dividir o dinheiro. Tu investes metade e eu invisto metade. E veremos quem se saimelhor. Aposto que sou eu – não resisto a acrescentar.

– Ah, estou a ver – Luke ergue as sobrancelhas. – Então trata-se de um desafio, não éverdade, Mistress Brandon?

– Vencerá o mais ousado – digo, em tom casual, e Luke começa a rir. – Muito bem. Vamos a isso. Metade para cada um, para ser investido naquilo que

preferirmos. – Combinado – digo, estendendo a mão. Apertamos as mãos com ar sério enquanto o telefone

começa a tocar. – Eu atendo – diz Luke e vai até à secretária. – Estou? Ah, olá. Como está? Vou ganhar, mas vou mesmo! Vou escolher um monte de investimentos fantásticos e

transformar o bebé numa verdadeira casa da moeda. Talvez invista numa carteira de futuros.Ou em ouro. Ou... em arte! Só preciso de encontrar o próximo Damien Hirst e comprar umavaca em conserva ou qualquer coisa do género e depois leiloá-la com um lucro gigantesco naSotheby’s, e todos vão dizer que tenho visão e génio...

– Ah sim? – diz Luke. – Não, ela não me disse nada. Bom, obrigado. – E desliga o telefonepara me encarar com uma expressão interrogativa. – Becky, era o Giles, da imobiliária. Pareceque vocês tiveram uma longa conversa no início da semana. O que foi que lhe disseste,exatamente?

Merda, sabia que havia outro assunto delicado a abordar. Não há dúvida de que preciso decomeçar a fazer uma lista.

– Ah, isso. – Aclaro a garganta. – Só disse ao Giles que estávamos dispostos a ser maisflexíveis nas nossas exigências. – Ajeito os papéis na minha secretária, sem levantar os olhos. –Tal como disseste, expandir um pouco a área de busca.

– Um pouco? – repete Luke incrédulo. – Até às Caraíbas? Está a mandar-me informaçõesacerca da porcaria de oito vivendas em praias e quer saber se gostaríamos de marcar a viagem!

– Foste tu que disseste que precisávamos de olhar para um pouco mais longe, Luke! – digopara me defender. – A ideia foi tua!

– Estava a falar de Kensington! Não de Barbados! – Já viste o que podemos conseguir em Barbados? – contraponho ansiosa. – Olha para isto! –

Empurro a minha cadeira de escritório até à secretária dele, vou à internet e encontro umapágina de imóveis nas Caraíbas.

Os sites de imóveis são a melhor coisa de todos os tempos. Principalmente os que têmpasseios virtuais.

– Olha só esta – aponto para o ecrã. – Vivenda de cinco quartos com piscina infinita, jardimem plano inferior e chalé para hóspedes!

– Becky... – Luke faz uma pausa, como se pensasse como haveria de me explicar a situação.– Fica em Barbados.

Ele está tão insistente nesse único pormenor! – E então? Seria fabuloso! O bebé aprenderia a nadar e tu poderias mandar todos os e-mails a

partir do chalé dos hóspedes... e eu poderia correr na praia todos os dias... Tenho uma imagem fascinante de mim com biquíni de fio dental, empurrando um daqueles

carrinhos de bebé para jogging ao longo de uma luminosa praia das Caraíbas. E Luke ficariamuito bronzeado num polo, bebendo ponche de rum. Poderia começar a fazer surfe e colocariamais uma vez contas no cabelo...

– Não vou colocar outra vez contas no cabelo. – Luke interrompe os meus pensamentos. É mesmo assustador! Como é que ele... Ah, pronto. Talvez tenhamos partilhado a minha fantasia caribenha. – Olha, querida – diz, sentando-se. – Talvez daqui a cinco, dez anos, possamos pensar numa

coisa assim. Se tudo acontecer segundo os planos, nessa altura teremos um monte de opções.Mas, por enquanto, terá de ser na área central de Londres.

– Bom, então o que vamos fazer? – Fecho irritada o site de Barbados. – Não há nada nomercado. Vai chegar o Natal, vamos estar na rua e teremos de ir para um albergue de sem-abrigo com o bebé e comer só sopa...

– Becky. – Luke ergue a mão para fazer com que me cale. – Não vamos ter de comer sopa. Ele clica nos seus e-mails, abre um anexo e manda imprimir. Um instante depois a

impressora entra em ação. – O que é? O que estás a fazer? – Aqui tens. – Luke pega nas folhas e entrega-mas. – Foi isto o que Giles conseguiu. Para o

caso de «ainda estarmos a pensar em Londres», conforme as suas palavras. Acabou de entrar nomercado, fica aqui à esquina. Na Delamain Road, mas temos de ser rápidos.

Observo a primeira página, absorvendo as palavras o mais rapidamente possível. Elegante casa familiar... ideal para receber... grandioso

átrio... magnífica cozinha de luxo... Uau, tenho de admitir que parece incrível. Jardim com área de jogos projetada por arquiteto... seis quartos... quarto de vestir com closet para sapatos... Sustenho a respiração. Um closet para sapatos! Mas isso é apenas outra maneira de dizer... – Tem até um quarto para sapatos! – comenta Luke a rir. – O Giles ficou muito satisfeito com

isso. Vamos ver?

Estou tão entusiasmada com a casa. E não é só por causa do quarto dos sapatos. Li e reli ospormenores um monte de vezes e já me vejo a morar lá com Luke. A tomar um duche nocubículo Rainjet de pedra calcária... a fazer café na cozinha Balthaup com os seuseletrodomésticos de última geração... e depois talvez a sair para o jardim abrigado, virado aoeste, com os seus vários arbustos desenvolvidos. O que quer que isso queira dizer.

Agora é mais tarde, no mesmo dia, e seguimos pela arborizada Maida Vale Road para a verconforme o combinado. Aperto na mão as folhas com toda a informação, mas nem seria precisopois praticamente sei tudo de cor.

– Vinte e quatro... vinte e seis... – Luke franze os olhos para ver os números por quepassamos. – Deve ser do outro lado da rua.

– É ali! – Paro e aponto para o outro lado da rua. – Olha, ali está a impressionante entradacom colunas e a porta dupla com a atraente claraboia em forma de leque! É fabulosa! Vamos!

Luke segura-me quando me preparo para atravessar a rua a correr. – Becky, antes de entrarmos, só uma palavrinha. – O que é? – Puxo-lhe a mão como um cão que tenta escapar-se da trela. – O que é? – Tenta manter-te calma, sim? Não queremos parecer demasiado ansiosos. A primeira regra

dos bons negócios é parecer sempre que se vai recusar. – Ah! – Deixo de lhe puxar a mão. – Está bem. Calma. Consigo ficar calma. Mas enquanto atravessamos a rua e chegamos à porta da frente, sinto o coração a martelar.

Esta é a nossa casa, sei muito bem que é! – Adoro a porta da frente! – exclamo, tocando a campainha. – É tão brilhante! – Becky... calma, lembras-te? – diz Luke. – Tenta não pareceres tão impressionada. – Ah, claro, está bem. – Adoto a melhor expressão não impressionada que consigo no

momento em que a porta se abre. Uma mulher muito magra, de quarenta e poucos anos, encontra-se sobre o piso de mármore

preto e branco. Usa calças de ganga brancas D&G, uma blusa desportiva que sei que custouquinhentas libras e um anel com um diamante tão gigantesco que me espanta ver que conseguelevantar o braço.

– Olá. – Fala com um sotaque arrastado que imita o das classes trabalhadoras. – Vieram ver acasa?

– Sim! – Apercebo-me imediatamente de que pareço demasiado entusiasmada. – Isto é...claro – imito-lhe o tom desinteressado. – Pensámos dar uma vista de olhos.

– Fabia Paschali. – O aperto de mão dela parece um maço de algodão molhado. – Becky Brandon. O meu marido, Luke. – Pois muito bem, entrem. Seguimos-lhe os passos, com os pés a ecoar nos mosaicos e, quando olho em volta, tenho de

suster a respiração. É um hall enorme. E a ampla escadaria parece saída de Hollywood! Vejoimediatamente a minha imagem descendo-a num fantástico vestido de noite enquanto Luke estáà minha espera lá em baixo, a admirar-me.

– Aqui já fizeram fotografias de moda – conta Fabia, indicando a escada. – O mármore éimportado da Itália e o candelabro é antigo e de Murano. Está incluído.

Apercebo-me de que espera uma reação. – Muito bonito – diz Luke. – Becky? Calma. Tenho de mostrar calma. – É giro. – Bocejo ao de leve. – Podemos ver a cozinha? A cozinha é igualmente incrível. Tem um enorme balcão para os pequenos-almoços, teto de

vidro e todos os utensílios conhecidos pela humanidade. Esforço-me ao máximo para nãoparecer demasiado espantada enquanto Fabia nos mostra os eletrodomésticos.

– Forno triplo... banca para o chef... tábua de corte rotativa com várias superfícies... – Nada mau. – Passo a mão pelo granito, com ar superior. – Tem máquina de sushi

encastrada? – Sim – responde como se eu tivesse perguntado a coisa realmente mais óbvia. A cozinha tem uma máquina elétrica de sushi, encastrada! Ah, meu Deus, é simplesmente espetacular. Assim como o terraço, com cozinha de verão e

barbecue incorporados. E a sala de estar com prateleiras David Linley. Quando seguimos Fabiaaté ao andar de cima para vermos o quarto principal, estou praticamente a desmaiar, tentandonão soltar exclamações diante de tudo.

– Aqui é o quarto de vestir... – Fabia mostra-nos uma pequena divisão forrada de armários denogueira. – Este é o meu closet de sapatos feito por medida... – Abre a porta, entramos.

Sinto-me sem forças. De ambos os lados há fileiras e fileiras de sapatos, imaculadamentealinhados em prateleiras forradas de camurça. Louboutins... Blahniks...

– É incrível! – Sai-me sem querer. – E que engraçado, calçamos o mesmo número e tudo…isto estava destinado... – Luke lança-me um olhar de alerta. – Quero dizer... pois. – Encolho osombros, sem saber o que dizer. – Pois sim, acho eu.

– Têm filhos? – Fabia olha para a minha barriga enquanto nos afastamos. – Estamos à espera do primeiro para dezembro. – Nós temos dois no colégio interno. – Arranca um adesivo de nicotina do braço, olha-o de

testa franzida e atira-o para um cesto de papéis. Depois enfia a mão no bolso das calças deganga e retira de lá um maço de Marlboro Lights. – Agora ficam no último andar, mas aindatemos os quartos de bebé e posso mostrá-los se estiverem interessados. – Acende um isqueiro epuxa uma baforada.

– Quartos de bebé? – repete Luke, olhando para mim. – Mais do que um? – O dele e o dela. Temos um de cada. Nunca conseguimos mudar a decoração. Este é o do

meu filho... – Abre uma porta branca. Fico ali parada, boquiaberta. Parece o país das fadas. As paredes estão pintadas com um

mural de colinas verdes, céu azul, bosques e ursinhos de peluche num piquenique. Num cantohá uma caminha pintada em forma de castelo; do outro lado há um comboiozinho vermelho de

madeira numa linha, de tamanho suficiente para a criança se sentar em cima, com umbrinquedo em cada vagão.

Sinto uma pontada de desejo avassalador. Quero um menino. Quero tanto um menino! – E o da minha filha é este – prossegue Fabia. Mal consigo arrancar-me ao quarto do menino, mas acompanho-a atravessando o corredor

enquanto ela abre a porta e… mais uma vez, sinto-me sufocada. Nunca vi nada tão lindo. É o sonho de qualquer menina. As paredes estão decoradas com

fadas pintadas à mão, as cortinas brancas presas com enormes laços de tafetá lilás e o bercinhoenfeitado com folhos de bordado inglês, como a cama de uma princesa.

Ah, meus Deus. Agora quero uma menina. Quero os dois. Não posso ter os dois? – Então, o que acha? – Fabia vira-se para mim. Faz-se um silêncio no patamar. Não posso falar de tanta ansiedade. Quero esses quartos de

bebé mais do que alguma vez quis alguma coisa. Quero a casa inteira. Quero morar e passar onosso primeiro Natal aqui em família, e decorar um pinheiro enorme no átrio preto e branco, ependurar uma meia minúscula na lareira.

– Muito bonita – consigo dizer por fim, encolhendo um pouco os ombros. – Acho eu. – Bem. – Fabia puxa outra baforada do cigarro. – Vamos ver o resto. Sinto-me a flutuar enquanto prosseguimos por todos os compartimentos. Encontrámos a

nossa casa. Encontrámo-la. – Faz uma oferta! – sussurro a Luke enquanto observamos o compartimento da caldeira. –

Diz-lhe que queremos a casa! – Becky, calma aí! – Solta uma pequena gargalhada. – Não é assim que se negoceia. Ainda

não vimos tudo. Mas apercebo-me de que ele também adorou. Tem os olhos brilhantes e quando chegamos de

novo ao átrio já está a fazer perguntas sobre os vizinhos. – Bem... obrigado – diz ele por fim, apertando a mão de Fabia. – Contactaremos através do

corretor. Como consegue conter-se? Porque não pega no livro de cheques? – Muito obrigada – acrescento e estou prestes a apertar a mão de Fabia quando se ouve o som

de uma chave na porta da frente. Um homem bronzeado, de cinquenta e poucos anos, entra decalças de ganga, casaco de cabedal e traz na mão uma coisa muito fixe, tipo portfólio de arte.

– Olá! – Olha de um rosto para outro, sem dúvida interrogando-se se nos deveria conhecer. –Como estão?

– Querido, estes são os Brandon – diz Fabia. – Estiveram a ver a casa. – Ah. Indicados pela Hamptons? – Franze a testa. – Teria ligado, se soubesse. Há dez

minutos aceitei uma oferta da outra imobiliária. Sinto um choque de horror. Ele fez o quê? – Vamos fazer-lhe uma oferta agora mesmo! – digo imediatamente. – Vamos oferecer-lhes o

preço que pediram! – Sinto muito. Já está feito. – Encolhe os ombros e tira a casaco. – Os americanos que vieram

cá de manhã cedo – acrescentou para Fabia. Não. Não. Não podemos perder a casa dos nossos sonhos! – Luke, faz alguma coisa! – Tento falar com calma. – Faz uma oferta! Depressa! – Não se importam pois não? – Fabia parece surpreendida. – Não pareciam assim tão

interessados na casa. – Estávamos a fingir que queríamos ir com calma! – gemo, deixando desaparecer qualquer

aparência de desinteresse. – Luke, eu sabia que devíamos ter dito alguma coisa! Adorámos acasa! Adorei os quartos de bebé! Nós queremos!

– Gostaríamos muito de fazer uma oferta acima do preço pedido – diz Luke, adiantando-se. –Podemos agir imediatamente e pedir ao nosso advogado que contacte o vosso amanhã demanhã...

– Olhe, no que me diz respeito, a casa já foi vendida – declarou o marido de Fabia, revirandoos olhos. – Preciso de uma bebida. Boa sorte para a vossa procura. – Segue pelo chão demármore em direção à cozinha e ouço o frigorífico abrir-se.

– Sinto muito – diz Fabia, encolhendo os ombros, e leva-nos até à porta da frente. – Mas... – insisto, impotente. – Tudo bem. Se o negócio não se realizar, por favor, avise-nos. – Luke esboça um sorriso

educado e saímos lentamente para o sol do fim da tarde. As folhas começam a mudar de cor eos raios baixos do Sol brilham nas janelas do outro lado.

Já me via a morar nesta rua. A empurrar o bebé num carrinho, acenando para todos osvizinhos...

– Não acredito. – Sinto a voz um pouco embargada. – Era só uma casa. – Luke passa o braço pelos meus ombros descaídos. – Vamos encontrar

outra. – Não vamos. Nunca vamos encontrar uma assim. Era a casa perfeita! Paro, com a mão no portão de ferro forjado. Não posso desistir. Não sou uma idiota que

desiste facilmente. – Espera aqui – digo a Luke, dando meia volta. Volto a correr pelo caminho, subo a escada e meto um pé na porta antes de Fabia conseguir

fechá-la. – Ouça – digo ansiosa. – Por favor, Fabia, nós realmente, realmente, adorámos a sua casa.

Pagaremos o que quiser. – O meu marido já fechou o negócio. – Recua para dentro de casa. – Não posso fazer nada. – Pode convencê-lo a mudar de ideias! O que posso fazer para a convencer a si? – Olhe – suspira. – Não sou eu que decido. Poderia, por favor, tirar o pé? – Faço qualquer coisa! – grito, desesperada. – Compro-lhe uma coisa! Trabalho numa loja de

moda, posso conseguir coisas elegantes... Detenho-me. Fabia ainda olha para o meu pé, enfiado na porta. Depois olha para o outro. Não é nos meus pés que ela está interessada, é nas minhas botas de cobói Archie Swann feitas

de pele de bezerro batida e fechadas com uma tira de couro. Archie Swann é a grande novidadeem sapatos e estas botas, exatamente, saíram na Vogue da semana passada com o título de «asmais cobiçadas». Vi Fabia de olho nelas desde que chegámos.

Fabia ergue os olhos para mim. – Gosto das suas botas – diz. Fico momentaneamente sem fala. Vai com calma, Becky vai com calma. – Esperei um ano inteiro por estas botas – digo por fim, sentindo-me a pisar cascas de ovos. –

Não se encontram em lado nenhum. – Estou na lista de espera da Harvey Nichols – rebate ela.

– Talvez – digo em tom casual. – Mas não vai conseguir. Só fizeram cinquenta pares e estãotodos esgotados. Sou personal shopper, de modo que sei dessas coisas.

Estou a fazer bluff. Mas creio que está a resultar. Ela está praticamente a salivar pelas botas. – Becky? – Luke sobe o caminho na minha direção. – O que se passa? – Luke! – Levanto uma das mãos. – Fica onde estás! – Sinto-me como Obi-Wan Kenobi a

dizer a Luke Skywalker para não interferir porque não entende o alcance da Força. Descalço a bota esquerda, deixando-a sobre o capacho como um totem. – É sua – digo –, se aceitar a nossa oferta. E entrego-lhe a outra quando assinarmos o

contrato. – Ligue para a imobiliária amanhã – diz Fabia, parecendo quase sem fôlego. – Vou

convencer o meu marido. A casa é vossa. Consegui! Não acredito! O mais rápido que posso, um pé com uma bota e o outro só com a meia, desço a escada em

direção a Luke. – Conseguimos a casa! – Lanço-lhe os braços ao pescoço. – Consegui a casa para nós! – Mas que porra... – Olha para mim. – O que lhe disseste? Porque tens só uma bota? – Ah... foi só uma pequena negociação – digo, em tom superior, e olho de novo para a porta.

Fabia já atirou para longe a sabrina dourada e enfia a perna com calças de ganga na bota.Observa-a para um lado e para o outro, hipnotizada.

– Se ligar para a imobiliária amanhã de manhã, acho que vai descobrir que é negóciofechado.

Nem precisamos de esperar até à manhã seguinte. Menos de duas horas depois, estamossentados no carro, a caminho da casa da minha mãe, quando o telemóvel de Luke toca.

– Sim? – diz ele para o auricular. – Ah sim? Faço-lhe caretas, tentando que me diga o que se passa, mas ele mantém os olhos fixo na

estrada, o que é de facto irritante. Por fim desliga e volta-se para mim com um levíssimosorriso.

– É nossa. – Boa! – exclamo, deliciada. – Eu não te disse? – Vão para Nova Iorque e querem mudar-se o mais rapidamente possível. Eu disse que

poderíamos resolver tudo até dezembro. – Teremos o nosso bebé na nossa linda casa nova antes do Natal. – Passo os braços em redor

do corpo. – Vai ser perfeito! – Ótima notícia – diz com uma expressão feliz. – E o mérito é todo teu. – Não foi nada – respondo com modéstia. – Só uma boa negociação. – Pego no telemóvel e

preparo-me para mandar uma mensagem a Suze avisando-a da boa-nova quando ele, derepente, toca.

– Estou? – digo, feliz da vida. – Mistress Brandon? É Margaret, do consultório de Venetia Carter. – Ah! – Fico hirta e olho para Luke. – Ah... olá. – Queríamos avisá-la de que temos uma desistência na agenda da doutora Carter, que terá

todo o prazer em receber a senhora, e o seu marido, se o desejar, na quinta-feira às três datarde.

– Claro – respondo um pouco ofegante. – Ah... sim, com certeza. Lá estarei! Muito obrigada! – De nada. Bom dia, Mistress Brandon.

A linha emudece e desligo o telefone com mãos trémulas. Consegui uma consulta comVenetia Carter! Vou conhecer celebridades e fazer uma massagem tailandesa holística!

Agora só preciso de participar ao Luke. – Quem era? – pergunta ele, ligando o rádio. Olha para o mostrador digital com a testa

franzida e aperta os botões. – Era... um... – deixo cair acidentalmente-de-propósito o telemóvel no chão e baixo-me para

o apanhar. Vai correr tudo bem, ele está de bom humor por causa da casa e tudo mais. Vou contar-lhe e

pronto. E se ele começar a pôr objeções, digo-lhe que sou uma mulher adulta e madura, quepode escolher a sua própria médica. É isso mesmo.

– Pois... Luke. – Sento-me de novo, com o rosto um pouco corado. – Quanto ao doutorBraine...

– O que tem? – Luke passa para outra pista. – A propósito, disse à minha mãe que iríamosorganizar um jantar com ele e com o David.

Um jantar? Ai, meu Deus, isto está cada vez pior. Preciso de lhe dizer e o mais depressapossível.

– Olha, Luke – Espero até ele diminuir a velocidade atrás de um camião. – Estive a pensarbem e a fazer umas pesquisas.

«Pesquisas» parece-me bem. Mesmo que tenha sido apenas a leitura de um artigo sobre«tendências para ter bebés em Hollywood» na fashionmommies.com.

– E o facto é que... – Engulo em seco. – Quero ser seguida pela Venetia Carter. Luke faz um ruído de impaciência. – Becky, outra vez não. Pensei que tínhamos concordado... – Consegui uma consulta para ela – digo apressadamente. – Marquei-a. Está tudo resolvido. – Fizeste o quê? – Trava num sinal vermelho e volta-se para mim. – O corpo é meu! – exclamo em tom defensivo. – Posso ser seguida pelo médico que eu

quiser! – Becky, temos a sorte de poderes ser seguida por um dos obstetras mais respeitados e

famosos do país e queres meter-te com uma mulher desconhecida... – Pela milionésima vez, não é uma desconhecida! – exclamo, frustrada. – É famosíssima em

Hollywood! É moderna e está atualizada, e faz uns partos incríveis na água, com flores delótus...

– Flores de lótus? Parece-me uma boa charlatã. – Luke carrega com força no acelerador. –Não deixo que arrisques a tua saúde e a do bebé...

– Não é uma charlatã! Nunca devia ter mencionado as flores de lótus. Devia saber que Luke não entenderia. – Olha, querido... – Tento uma abordagem diferente. – Dizes sempre que «devemos dar uma

oportunidade às pessoas». – Não, não digo. – Luke nunca dá o braço a torcer. – Bem, então devias – respondo irritada. Parámos num cruzamento com passadeira de peões e uma mulher passa com um carrinho de

bebé verdadeiramente chique, verde, de rodas altas e com aparência de era espacial. Uau.Talvez devêssemos comprar um como aquele. Franzo os olhos, tentando ver o logótipo.

É incrível, dantes nem reparava nos carrinhos de bebé. Agora não consigo deixar de osobservar, mesmo que esteja no meio de uma discussão com o meu marido.

Troca de ideias. Não é discussão. – Escuta, Luke – digo quando partimos de novo. – O meu livro diz que a grávida deve seguir

sempre o seu instinto. Pois bem, o meu instinto diz-me com toda a força: «Vai para a VenetiaCarter.» É a natureza que mo diz!

Luke fica em silêncio. Não sei se franze a testa por causa da estrada ou pelo que lhe digo. – Podíamos ir só uma vez, para ver como é – digo em tom pacificador. – Uma pequena

consulta. Se a detestarmos, não precisamos de voltar. Chegamos à casa dos meus pais. Há uma grande faixa prateada por cima da porta e um balão

de hélio, desgarrado, onde está escrito Parabéns pelos 60 anos, Jane!, pousa ao de leve no capôquando entramos.

– E eu consegui a nossa casa – não posso deixar de acrescentar. Mesmo sabendo que isso nãoé estritamente relevante.

Luke para o carro atrás de uma carrinha que tem «Eventos Especiais Oxshott», escrito delado e, por fim, volta-se para mim.

– Muito bem, Becky – suspira. – Ganhaste. Vamos à consulta.

QUATRO

Dizer que a minha mãe está entusiasmada com a vinda do bebé é certamente um eufemismo.Quando saímos do carro, voa pelo caminho de acesso à casa, o cabelo arranjado para a festa, orosto vermelho de animação.

– Becky! Como está o meu netinho? Já nem se incomoda a olhar-me para o rosto. A atenção vai diretamente para a barriga. – Está maior! Consegues ouvir a vovó? – Inclina-se mais. – Consegues ouvir a vovó? – Olá, Jane – diz Luke, delicado. – Será que podemos entrar? – Claro! – recompõe-se e leva-nos para dentro de casa. – Venham! Põe os pés para cima,

Becky! Toma uma chávena de chá. Graham! – Estou aqui! – O meu pai vem a descer a escada. – Becky! – Dá-me um abraço apertado. –

Vem sentar-te. A Suze está aqui com as suas crianças... – Já! – exclamo deliciada. Não vejo a Suze há séculos. Sigo os meus pais até à sala e

encontro a Suze sentada no sofá junto de Janice, a vizinha dos meus pais. Tem o cabelo loiropreso num carrapito e amamenta um dos gémeos. Entretanto, Janice torce-se pouco à vontade,esforçando-se claramente para não olhar.

– Bex! – O rosto de Suze ilumina-se. – Oh, meu Deus! Estás fantástica! – Suze! – Dou-lhe um abraço enorme, tentando não esmagar o bebé. – Como estás? E como

está a minha adorada Clemmie? – Beijo a cabecinha loira. – Este é o Wilfrid – corrige Suze, um pouco corada. Raios. Engano-me sempre. E, para piorar as coisas, Suze tem a paranoia de achar que o

Wilfrid parece uma menina. (E parece mesmo. Em especial com aquele macacão de renda.) – Onde estão os outros? – Mudo rapidamente de assunto. – Ah, o Tarkie está com eles – responde Suze, olhando vagamente pela janela. Acompanho-

lhe o olhar e vejo que o marido, Tarquin, empurra o meu afilhado Ernie em volta da tenda, numcarrinho de mão, com Clementine amarrada ao peito.

– Mais! – A voz esganiçada de Ernie chega fraca através da janela. – Mais, papá! – Assim estarás tu daqui a alguns meses, Luke – digo a rir. – Humm. – Ergue as sobrancelhas e pega no BlackBerry. – Tenho de mandar uns e-mails.

Vou lá para cima, se não houver problema. Sai da sala e sento-me numa poltrona fofa, perto da Suze. – Adivinha só. Aceitaram a nossa oferta para a casa perfeita! Olha! – Retiro da mala o

impresso da imobiliária e entrego-o à minha mãe para ela o admirar. – Que linda, querida! – exclama a minha mãe. – É isolada? – Bem... não. Mas é realmente... – Tem garagem? – O meu pai espreita por cima do ombro da minha mãe. – Não, não tem garagem, mas...

– Eles não precisam de garagem, Graham – interrompe a minha mãe. – Vivem em Londres!Vão de táxi a todo o lado.

– Estás a dizer-me que quem vive em Londres não conduz? – pergunta o meu pai, fazendotroça. – Estás a dizer-me que, em toda a nossa capital, nenhum morador jamais entra numcarro?

– Eu nunca conduziria em Londres. – Janice estremece levemente. – Sabem, eles esperam atépararmos no semáforo... e então dão-nos uma facada.

– «Eles»? – exclama o meu pai, exasperado. – Quem são «eles»? – Chão de mármore. Valha-me Deus! – A minha mãe levanta os olhos do papel e faz uma

careta. – E o que vai acontecer quando o pequenino estiver a aprender a andar? Poderás talvezcolocar um tapete. Um belo Berber pintalgado, para não se ver a sujidade.

Desisto. – E a segunda novidade é... – digo em voz alta, tentando trazer a conversa de novo para o

rumo certo. – Vou mudar de médico. – Paro para ver o efeito. – Vou ser seguida pela VenetiaCarter.

– Venetia Carter? – Suze levanta o olhar de Wilfrid com uma expressão pasmada. – A sério? Ah! Bem sabia que a Suze teria ouvido falar dela. – Sem dúvida – digo inchada de orgulho. – Acabamos de saber que conseguimos uma

consulta. Não é fantástico? – Então essa doutora Carter é boa? – A minha mãe olha primeiro para mim e depois para

Suze. – Chamam-lhe obstetra lista A – comenta Suze começando a fazer Wilfrid arrotar com toda a

habilidade. – Li um artigo sobre ela na Harpers. Dizem que é maravilhosa! Uma obstetra lista A! Transformo-me assim numa pessoa lista A! – É ela que segue todas as supermodelos e estrelas de cinema. – Não consigo deixar de

alardear. – Dá festas, chás, bolsas de brindes de marca e isso assim. Provavelmente vouconhecê-las a todas!

– Mas, Becky, achei que tinhas um médico respeitado. – O meu pai parece perplexo. – Seráboa ideia mudares?

– Paizinho, a Venetia Carter é de outro nível! – Não consigo deixar de me sentir impaciente.– É o máximo dos máximos. Tive de implorar para conseguir uma consulta.

– Olha, querida, quando fores famosa, não te esqueças de nós! – diz a minha mãe. – Não me vou esquecer! Olhem, querem ver a ecografia? – Meto a mão na carteira e retiro de

lá as imagens que entrego à minha mãe. – Olhem só! – refere ela, ofegante olhando para a imagem turva. – Olha, Graham! O nosso

primeiro netinho. É igualzinho à minha mãe. – À tua mãe? – replica o meu pai, incrédulo, pegando nas películas. – Estarás cega? – Becky, tricotei umas coisinhas para o bebé – diz Janice timidamente. – Uns casaquinhos

largos... um xaile... um conjunto com a Arca de Noé... e fiz três de cada animal, para o caso deos tamanhos não serem certos.

– Janice, que amoroso da tua parte! – exclamo, emocionada. – Não é nada, querida! Gosto de tricotar, claro, sempre esperei que o Tom e a Lucy

pudessem... – diz Janice com um sorriso corajoso e alegre. – Mas não tinha de ser. – Como está o Tom? – pergunto com cautela. Tom é filho de Janice. Tem mais ou menos a minha idade e casou-se há três anos, um grande

casamento superelegante. Mas depois deu tudo para o torto. A mulher, Lucy, fez uma tatuageme fugiu com um tipo que morava numa caravana e o Tom ficou muito esquisito e começou aconstruir uma casa de verão no quintal das traseiras dos pais.

– Oh, o Tom vai muito bem! Agora mora quase sempre na casa de verão. Deixamos-lhetabuleiros com comida. – Janice parece um pouco preocupada. – Diz que está a escrever umlivro.

– Ah, que bom! – digo, encorajando-a. – Sobre o quê? – O estado da sociedade. – Engole em seco. – Parece-me. Faz-se silêncio enquanto todos digerimos as palavras dela. – Em que estado acha ele que está a sociedade? – pergunta Suze. – Não muito bom – murmura Janice. – Bebe outra chávena de chá, Janice, minha querida. – A minha mãe dá-lhe uma palmadinha

amigável na mão. – Ou que tal um cálice de xerez? – Só um calicezinho de xerez – responde Janice, depois de uma pausa. – Eu sirvo-me. Enquanto Janice atravessa a sala até ao armário de bebidas, a minha mãe pousa a chávena. – Então, Becky – diz ela –, trouxeste todos os teus catálogos? – Cá estão eles! – Enfio a mão no saco que trouxe. – Tenho o da Blooming Marvelous, da

General Little Trading Company, da Little White Company... – Eu trouxe o da Jojo Maman Bebé – entoa Suze. – E o Cashmere Italian Baby. – Tenho todos – retruca a minha mãe acenando com a cabeça e estendendo a mão para um

monte de catálogos no suporte para revistas. – Vocês têm o Funky Baba? – Agita um catálogocom a fotografia de um bebé vestido de palhaço.

– Ooh! – exclama Suze. – Esse não vi! – Podes ver – digo. – Fico com o Petit Enfant. Mãe, vê o Luxury Baby. Com um suspiro feliz, todas nos sentámos para folhear imagens de bebés sobre os seus

tapetes com lindas T-shirts e a serem transportados em carrinhos muito elegantes. Francamente,vale a pena ter um bebé só por todas estas coisas lindas.

– Vou dobrar o canto da página se vir alguma coisa que devas comprar – sugere a minha mãeem tom profissional.

– Certo, eu também – concordo, encantada com um grupo de bebés vestidos de animais.Temos de comprar ao bebé um fatinho de urso polar para a neve. Dobro o canto da página epasso à seguinte, cheia de adoráveis fatos de esqui em miniatura. E vejam só os gorrinhos compompons!

– Luke, acho que temos de levar o bebé a esquiar o mais cedo possível – digo quando eleentra na sala. – Vai ajudar ao desenvolvimento.

– Esquiar? – Parece perplexo. – Becky, pensava que odiavas esquiar. De facto odeio esquiar. Talvez pudéssemos ir a Val d’Isère ou a outro lugar do mesmo género, usar aquela roupa

fantástica e pura e simplesmente não esquiar. – Becky! – A minha mãe interrompe-me os pensamentos. – Olha este berço. Tem controlo de

temperatura, luzes para embalar e ação vibratória calmante. – Uau! – Respiro fundo ao olhar para a fotografia. – É incrível! Quanto custa? – A versão de luxo são... mil e duzentas libras – responde a minha mãe consultando o texto. – Mil e duzentas libras? – Luke quase se engasga com o chá. – Por um berço? A sério? – É da última geração – comenta Suze. – Usa tecnologia da NASA.

– Tecnologia da Nasa? – Incrédulo, solta uma exclamação de desprezo. – Vamos mandar obebé para o espaço?

– Não queres o melhor para o nosso filho, Luke? – respondo. – O que acha, Janice? Olho para o outro lado da sala, mas Janice não me ouviu. Olha para a imagem da ecografia e

limpa os olhos com um lenço. – Janice... Sente-se bem? – Desculpa, querida. – Assoa-se, depois toma um gole de xerez, esvaziando o copo. – Posso

servir-me de mais um, Jane? – À vontade, querida! – encoraja-a a minha mãe. – Coitada da Janice – acrescenta num

murmúrio para mim e para Suze. – Está desesperada para ter um neto. Mas o Tom nem sequersai de casa. E quando sai... – Baixa ainda mais a voz. – Não corta o cabelo há meses, quantomais a barba! E eu disse-lhe: «Ele não vai conseguir arranjar uma miúda como deve ser, se nãotratar da aparência!» Mas... – Interrompe-se quando a campainha da porta toca. – Deve ser opessoal do catering. Disse-lhes para usarem a porta da cozinha!

– Eu abro. – O meu pai levanta-se e voltamos todas aos catálogos. – Acham que devíamos comprar um assento e um suporte para a banheira? – Olho para a

página. – E uma banheira insuflável de viagem? – Compra isto. – Suze mostra a fotografia de um ninho almofadado para bebé. – São

fabulosos. O Wilfie vive no dele. – Com certeza! – confirmo com a cabeça. – Dobra o canto da página! – Estes cantos estão a ficar cada vez mais volumosos – diz a minha mãe, examinando o

catálogo. – Talvez devêssemos dobrar as páginas que não interessam. – Porque não encomendam simplesmente todo o catálogo e depois devolvem as pouquíssimas

coisas que não quiserem? – sugere Luke. Bom, eis uma boa... Ah. Ele está a ser engraçadinho. Que giro. Estou quase a dar-lhe a resposta que merece

quando a voz do meu pai ressoa no corredor. – Entra, Jess. Estamos todos a tomar chá. A Jess está aqui! Ah, meu Deus. A Jess está aqui. – Depressa, escondam os catálogos! – digo em voz baixa e começo a enfiá-los por trás das

almofadas, numa agitação nervosa. – Já sabem como é a Jess. – Mas talvez ela queira dar uma olhadela, querida! – comenta a minha mãe. A minha mãe de facto não entende a Jess e o assunto da simplicidade. Acha que ela está

apenas a passar por uma «fase», semelhante à que a Suze atravessou quando se tornouvegetariana radical durante cerca de três semanas antes de ficar totalmente apanhada e meter naboca uma sanduíche de bacon inteira.

– De certeza que não vai querer – diz Suze, que ficou em casa da Jess e sabe como ela é.Pega no exemplar do Funky Baba da minha mãe e empurra-o para baixo da cadeira de balouçodo Wilfrid no instante em que o meu pai e a Jess aparecem à porta.

– Olá, Jess! – começo cheia de entusiasmo. Mas detenho-me, perplexa. Não vejo a Jess hácerca de dois meses e ela está absolutamente espetacular!

Toda bronzeada, magra, vestindo uns calções cargo que deixam ver as pernas longas ebronzeadas. Tem o cabelo curto com reflexos claros do sol e a T-shirt verde, sem mangas,destaca-lhe os olhos cor de avelã.

– Olá! – cumprimenta ela, pousando a mochila. – Olá, tia Jane. Becky, como tens passado? – Estou ótima! – Não consigo deixar de olhar para ela. – Estás fantástica! Tão bronzeada! – Ah. – Jess olha para si mesma com interesse zero, depois enfia a mão na mochila. – Trouxe

umas bolachas de milho. São feitas por uma cooperativa no norte da Guatemala. – Entrega àminha mãe uma caixa de papelão áspero e a minha mãe vira-a nos dedos, atónita.

– Obrigada, querida – diz por fim e coloca-as ao lado do bule de chá. – Come um bombom defondant!

– Uau. – Jess senta-se no pufe. – Olhe só a Cl... – Detém-se quando eu murmuro «Wilfie!»nas costas de Suze.

– O quê? – pergunta Suze. – Só ia perguntar... onde está a Clementine? – emenda Jess. – Nem posso acreditar! O Wilfie

está enorme! Lanço-lhe um sorriso minúsculo por cima da chávena de chá enquanto Suze responde. Meu

Deus, quem tal imaginaria? A minha irmã e a minha melhor amiga a conversarem. Houve um tempo em que pensei ter perdido definitivamente as duas. A Jess porque tivemos

uma discussão enorme e nos insultámos com palavras que fazem com que me encolha só depensar. E a Suze porque fez uma nova amiga chamada Lulu, que monta a cavalo, tem quatrofilhos e se acha superior a toda a gente. Ainda não entendo por que razão a Suze gosta dela. Naverdade, é o único assunto que não abordamos.

– Também tenho uma coisa para ti, Becky. Jess enfia a mão na mochila e retira de lá um punhado de trapos encardidos. Janice encolhe-

se com um grito consternado. – O que é isso, querida? – A Becky e eu vamos fazer toalhitas de bebé – diz Jess. – Fazer toalhitas? – exclama a minha mãe sem entender. – Mas, querida, a Boots fabrica-as.

Podemos até comprar três embalagens pelo preço de duas. – Parecem assim... usadas – arrisca Janice. – Só precisamos de as ferver e mergulhar numa solução de óleo e sabão – informa Jess. – É

muito menos agressivo para o meio ambiente e para a pele do bebé. E são reutilizáveis. A longoprazo, vais economizar muitas libras.

– É... fabuloso. – Engulo em seco e pego nos trapos, um dos quais tem impressas de lado aspalavras «Prisão de Wandsworth» já desbotadas. De maneira nenhuma quero ter um balde detrapos velhos e nojentos no quarto do bebé. Mas a Jess parece tão entusiasmada que não queromagoar-lhe os sentimentos.

– Vou ajudar-te a fazer um porta-bebés também – diz. – A partir de umas calças de gangavelhas do Luke. É bem simples.

– Boa ideia! – consigo dizer. Nem me atrevo a olhar para o Luke. – E tenho outra ideia. – Jess volta-se no pufe para olhar para mim. – Não precisas de dizer

que sim, mas talvez devesses pensar no assunto. – Claro – digo nervosa. – O que é? – Aceitarias fazer uma palestra? – Uma palestra? – Estou perplexa. – Sobre o quê? – Sobre como venceste o vício de gastar. – Jess inclina-se para a frente, com uma expressão

calorosa e fraterna no rosto. – Tenho uma amiga que é psicóloga e falei-lhe de ti e de comomudaste. Ela disse que achava que serias uma inspiração para muitos dos viciados do grupo.

Fez-se silêncio na sala. Sinto-me empalidecer. – Aceita, Bex. – Suze toca-me no pé. – Serias fantástica. – Eu vou assistir – diz Luke. – Quando vai ser? – Não precisa de ser uma coisa formal – insiste Jess. – Só uma conversa amigável sobre

como resistir à pressão do consumo. Em especial agora que estás grávida. – Abana a cabeça. –É ridícula a quantidade de lixo que as pessoas se sentem compelidas a comprar para os filhos.

– Eu culpo os catálogos – afirma Luke, muito sério. – Então o que achas, Becky? – insiste Jess. – Na verdade, não... – Aclaro um pouco a garganta. – Não tenho certeza... – Não te sintas envergonhada! – Jess levanta-se do pufe e vem sentar-se a meu lado no sofá. – Tenho realmente muito orgulho em ti, Becky. E também tu devias ter orgulho em ti

mesma... – A expressão dela muda quando se acomoda no sofá. – Estou sentada em cima dequê? O que é isto? – Enfia a mão atrás e retira dois brilhantes catálogos, com todos os cantosdas páginas dobrados.

Merda. E tinha logo de apanhar o Luxury Baby, que tem na capa um bebé vestido com roupasRalph Lauren, com um biberão Dior na mão e sentado num Rolls Royce miniatura.

– A Becky não estava a ver isso – diz Suze imediatamente. – Nem são dela. São meus. Fui euque os trouxe.

Não há dúvida de que adoro a Suze. Jess folheia o Luxury Baby e estremece. – É escandaloso. Isto é, qual é o bebé que precisa de uma banheira insuflável? Ou de um

berço de marca? – Ah, pois é. – Tento imitar-lhe o tom de desdém. – É terrível. Se bem que provavelmente

comprarei algumas coisas, sabes... – Jess, minha querida, dá aqui uma olhadela! – diz a minha mãe, solicita. – A Becky já

encontrou um super berço para o bebé! – Procura entre os catálogos. – Onde está? Tem luzes...e ação vibratória...

Fico rígida de tão horrorizada. Não mostres à Jess o berço de mil e duzentas libras. – Cá está! – A minha mãe estende o Funky Baba. – A Jess não quer ver isso! – Tento pegar no catálogo, mas Jess chega primeiro. – Em que página? – pergunta. – Mãe? – interrompe-nos uma voz e todos olhamos. Parado à porta está um tipo de cabelos

pretos, desgrenhados e barba crescida. É alto, desengonçado, e tem na mão um velho livro debolso muito gasto. Não faço ideia de quem ele...

Espera aí. É o Tom? Caraças. Mal o reconheci. A minha mãe tem razão acerca da barba, parece que há dias não vê

uma gilete. – O pai precisa de ajuda para um dos truques de magia – diz ele abruptamente a Janice. – O

coelho ficou preso ou qualquer coisa do género. – Valha-me Deus! – exclama Janice, pousando o copo. – É melhor eu ir. Tom, trata de ser

educado e cumprimenta as pessoas, querido. – Olá, pessoal. – Tom lança um olhar desinteressado a toda a sala. – Conheces a Suze, a amiga da Becky, não é verdade? – diz Janice em voz maviosa. – E já

conheces a Jess, a irmã dela?

– Olá, Tom! – cumprimenta Suze alegremente. – Olá – diz Jess. Olho para ela, nervosa, pronta para ouvir um sermão acerca de que gastar mil libras num

berço é sinal dos tempos malignos e decadentes em que vivemos. Mas, para minha surpresa, elanem olha para o catálogo. Deixou-o cair no colo e olha para Tom, como se estivessehipnotizada.

E Tom também olha para ela. Os olhos de Jess dirigem-se para o livro que ele está a ler. – Isso é a Sociedade de Consumo: Mitos e Estruturas? – Sim. Já leste? – Não, mas li outra obra de Baudrillard, O Sistema dos Objetos. – Também tenho! – Tom aproxima-se dela. – Que tal achaste? Esperem lá... – O conceito de estimulação e o simulacro são muito interessantes. – Jess mexe no cordão da

Tiffany que lhe ofereci. Nunca toca no cordão da Tiffany. Ah, meu Deus! Encantou-se por ele! – Estou a tentar aplicar o desmoronamento das hiper-realidades à minha tese sobre entropia

capitalista pós-moderna – diz Tom acenando intensamente com a cabeça. Fantástico! Eles são ambos bonitos, há química entre eles e entendem-se na mesma língua, só

que com palavras esquisitas que mais ninguém percebe. É como um episódio de The OC, aquimesmo na sala da minha mãe.

Lanço um olhar a Luke, que ergue as sobrancelhas. A minha mãe dá uma cotovelada a Suze,que responde com um sorriso. Estamos completamente boquiabertos. Quanto a Janice, parecefora de si.

– Bom – Tom encolhe os ombros. – Tenho de ir... Como um redemoinho, Janice entra em ação. – Jess, minha querida! – exclama ela, saltando do sofá. – Nunca chegámos a conhecer-nos

bem, pois não? Porque não vem tomar um chá e pode assim continuar a conversa com o Tom? – Ah! – exclama Jess parecendo consternada. – Bem... eu vim visitar todos aqui... – Pode estar com todos eles mais tarde, na festa! – Janice segura com firmeza o braço

bronzeado de Jess e começa a puxá-la para a porta. – Jane, Graham, não se importam, poisnão?

– De madeira nenhuma – refere o meu pai tranquilamente. – Então, está bem. – Jess olha para Tom e um leve rubor sobe-lhe às faces. – Até logo. – Adeus! – respondemos todos em coro. A porta fecha-se atrás deles e olhamo-nos numa alegria contida. – Bom! – diz a minha mãe, pegando no bule. – Não seria ótimo? Podíamos deitar o

gradeamento abaixo e colocar uma tenda nos dois relvados! – Mãe! Francamente! – reviro os olhos. É mesmo dela, pôr o carro à frente dos bois e

imaginar todo o tipo de ridículas... Uuuuu. O bebé podia levar as alianças!

Enquanto Jess está na casa do lado, Luke a ler o jornal e Tarquin a dar banho às crianças, Suzee eu ocupamos o meu antigo quarto. Ligamos o rádio alto, tomamos banho de espuma na

banheira e conversamos, como nos velhos tempos em Fulham. Então Suze senta-se na cama aamamentar os bebés enquanto pinto as unhas dos pés.

– Não vais conseguir fazer isso por muito mais tempo – diz Suze, olhando para mim. – Porquê? – levanto os olhos, assustada. – Faz mal ao bebé? – Não, idiota! – responde a rir. – Não vais conseguir lá chegar! É uma ideia estranha. Nem consigo imaginar-me assim tão grande. Passo a mão pela barriga

e o bebé dá um pontapé. – Ahhh! – exclamo. – Deu-me um pontapé bem forte! – Espera até começar a dar-te joelhadas – replica Suze. – É uma perfeita loucura, parece que

tens um alien dentro de ti. Estão a ver? É por isso que precisamos de uma melhor amiga durante a gravidez. Nenhum

dos meus livros de bebé dizem: «É uma perfeita loucura, parece que tens um alien dentro deti.»

– Olá, querida. – Tarquin está de novo à porta. – Posso deitar o Wilfie? – Podes, já acabou. – Suze entrega-lhe o bebé sonolento, que se aninha no ombro de Tarquin

como se soubesse que é ali o seu lugar. – Gostas das minhas unhas, Tarkie? – pergunto, agitando os dedos dos pés em frente dele. O

Tarkin é um amor. Quando o conheci, era totalmente estranho, antiquado, e nem dava para teruma conversa com ele, mas, nem sei como, ficou cada vez mais normal com o passar dos anos.

Ele olha para as minhas unhas sem qualquer expressão. – Maravilhosas. Vamos, meu caro. – Dá uma palmadinha nas costas de Wilfie. – Vamos para

o vale dos lençóis. – O Tarkie é um ótimo pai – comento, admirada, enquanto ele sai do quarto. – Ah, é ótimo – responde Suze, orgulhosa, e começa a dar de mamar a Clementine. – Só que

põe Wagner a tocar para eles o tempo todo. O Ernie consegue cantar a ária da Brunhilda doprincípio ao fim, em alemão, mas não consegue falar grande coisa em inglês. – Franze a testa. –Na verdade, começo a ficar preocupada.

Retiro o que disse. O Tarquin continua a ser esquisito. Começo a aplicar o meu rímel novo nas pestanas enquanto vejo a Suze a fazer caretas

engraçadas para Clementine ao mesmo tempo que lhe beija as bochechinhas gorduchas. A Suzeé adorável com os filhos.

– Achas que vou ser boa mãe, Suze? – As palavras saltam-me da boca antes que me apercebado que estou a dizer.

– Claro! – Suze olha-me no espelho. – Vais ser uma mãe incrível! Vais ser simpática,divertida e a mais bem vestida do parque...

– Mas não sei nada acerca de bebés. É incrível, mas francamente, não sei nada. – Eu também não sabia, lembras-te? – Suze encolhe os ombros. – Mas vais aprender

depressa! Toda a gente me diz que vou aprender imediatamente. Mas e se não for assim? Estudei

álgebra durante três anos e nunca aprendi grande coisa. – Não podes dar-me umas dicas de mãe? – Guardo a escovinha do rímel. – Tipo... as coisas

que preciso de saber. Suze franze a testa, pensativa. – Só posso dar-te dicas muito básicas – diz por fim. – Aquelas que nem precisam de ser

dadas.

Sinto-me assustada. – Tipo o quê, exatamente? – Tento parecer descontraída. – Isto é, provavelmente já sei do

que se trata... – Bom, olha. – Conta pelos dedos. – Coisas como ter alguns conhecimentos de primeiros

socorros... ter a certeza de que se tem todo o equipamento... talvez queiras marcar um curso demassagem para bebés... – Levanta Clementine. – Estás a fazer o Bebé Einstein?

Pronto, agora é que não percebo nada. Nunca ouvi falar do Bebé Einstein. – Não te preocupes, Bex! – diz Suze imediatamente quando olha para mim. – Nada disso

importa. Desde que consigas mudar-lhe a fralda e cantar-lhe uma canção de embalar, nãohaverá problema!

Não sei mudar fraldas. E não sei cantar canções de embalar. Meu Deus, estou bem arranjada. Passam mais vinte minutos até Suze acabar de dar de mamar a Clementine e entregá-la a

Tarquin. – Muito bem! – Fecha a porta e volta-se com olhos brilhantes. – Não está aqui ninguém. Dá-

me a tua aliança, só preciso de um fio ou qualquer coisa assim. – Toma. – Vou ao toucador e encontro uma antiga fita de presente Christian Dior. – Serve? – Deve servir. – Suze passa o anel pela fita. – Olha, Becky, tens a certeza de que queres

saber? Estremeço de dúvida. Talvez o Luke esteja certo. Talvez devêssemos esperar pela mágica

surpresa. Mas, afinal, como saberei de que cor hei de comprar o carrinho? – Quero saber – respondo, decidida. – Vamos a isso. – Então senta-te. – Suze dá um nó na fita e olha para mim a rir. – É emocionante! A Suze é o máximo. Sabia que teria encontrado um modo de descobrir. Pendura o anel sobre

a minha barriga e ficamos as duas a olhar, fascinadas. – Não se mexe – digo num sussurro. – Já se vai mexer – murmura Suze de novo. É arrepiante. Sinto como se estivéssemos numa sessão espírita e que, de repente, o anel fosse

soletrar o nome de uma pessoa morta enquanto uma janela se fechasse com estrondo e um vasose estilhaçasse no chão.

– Ora aqui está! – murmura Suze enquanto o anel começa a balançar pendurado na fita. –Olha!

– Ai, meu Deus! – A minha voz é um grito abafado. – Que diz ele? – Gira em círculos! É uma menina! Prendo a respiração. – Tens a certeza? – Tenho! Vais ter uma filha! Parabéns! – Suze abraça-me. É uma menina. Sinto-trémula. Vou ter uma filha! Eu sabia. Tive sempre a intuição de que era

uma menina. – Becky? – A porta abre-se e a minha mãe está ali parada, resplandecente com lantejoulas

roxas e com um batom igualmente espalhafatoso. – As pessoas vão chegar em breve. – Olhapara mim e para Suze. – Está tudo bem, querida?

– Mãe, vou ter uma menina! – digo sem conseguir conter-me. – A Suze fez o teste. O anel!Ele descreveu um círculo!

– Uma menina! – O rosto da minha mãe ilumina-se. – Bem me parecia que havia de ser uma

menina! Ah, Becky, minha querida! – Não é uma maravilha? – comenta Suze. – Vai ter uma neta! – Posso ir buscar a tua antiga casa de bonecas, Becky! – A minha mãe está encantada. – E

vou mandar pintar de cor-de-rosa o quarto de hóspedes... – Aproxima-se e examina a minhabarriga. – Pois, basta ver o formato, querida. Não há dúvida de que é uma menina.

– E veja o anel! – sugere Suze, erguendo de novo a fita sobre a minha barriga e imobilizando-o totalmente. Então o anel começa a mover-se para a frente e para trás. Por momentos ninguémfala.

– Pensei que tinhas dito que era um círculo – refere a minha mãe, perplexa. – E foi! Suze, o que se passa? Porque vai para a frente e para trás? – Não sei! – Espreita o anel, com a testa franzida. – Talvez afinal seja um menino. Olhamos todas para a minha barriga como se esperássemos que ela começasse a falar. – A barriga está empinada – diz por fim a minha mãe. – Pode ser um menino. Há um minuto disse-me que parecia ser menina. Ah, pelo amor de Deus. O problema dessas

histórias antigas é que, na verdade, são um perfeito disparate. – Vamos então, minhas queridas – diz a minha mãe enquanto uma música começa de repente

a soar lá em baixo. – Chegou o Keith, da Fox and Grapes, e está a fazer todo o tipo de cocktailselegantes.

– Excelente! – exclama Suze, pegando na bolsa de maquilhagem. – Vamos já para baixo. A minha mãe sai do quarto e Suze começa a aplicar a maquilhagem a toda a velocidade

enquanto eu observo perfeitamente atónita. – Que caraças, Suze? Estás a treinar para as olimpíadas da maquilhagem? – Espera só – responde ela, passando sombra brilhante nas pálpebras. – Também tu vais

conseguir maquilhar-te em três segundos. – Desatarraxa a tampa do batom e passa-o peloslábios. – Pronto! – Em seguida, pega no elegante vestido de cetim verde e veste-o, depois retirada carteira um travessão de pedrarias e torce o cabelo loiro num nó.

– Que bonito! – digo, admirando o travessão. – Obrigada. – Hesita. – Foi a Lulu que mo deu. – Ah, claro. – Vendo bem, não é assim tão bonito. – E... como está a Lulu? – Faço um

esforço para ser educada e perguntar-lhe. – Está ótima! – Suze baixa o rosto enquanto arranja o cabelo. – Escreveu um livro. – Um livro? – Lulu nunca me pareceu do tipo de quem escreve livros. – Sobre cozinha para crianças. – A sério? – pergunto, surpreendida. – Bom, talvez devesse lê-lo. É bom? – Ainda não o li – responde Suze depois de uma pausa. – Mas é óbvio que é especialista, com

quatro filhos... Há uma espécie de tensão na voz dela que não consigo entender. Então Suze ergue a cabeça e

o cabelo dela está tão mal que explodimos ambas numa gargalhada. – Deixa que eu faço isso. – Seguro o travessão, retiro-o do cabelo embaraçado, escovo-o e

torço-o de novo, soltando umas finas madeixas à frente. – Fabuloso! – Suze abraça-me. – Obrigada, Bex. E agora estou a morrer por um Cosmo.

Anda! Sai praticamente a galope do quarto e sigo escada abaixo, atrás dela, com um entusiasmo

ligeiramente menor. Aposto que o meu será um Cocktail de Fruta Virgem Qualquer Coisa. Isto é, obviamente não me importo. Estou a criar um novo ser humano muito belo e tal. Mas

mesmo assim. Se eu fosse Deus, faria com que não fizesse mal as grávidas beberem cocktails.E os nossos braços não iriam inchar. E não haveria enjoos matinais e o trabalho de parto nãoexistiria...

Pensando bem, eu teria criado um sistema totalmente diferente.

* * *

Mesmo com cocktails sem álcool, é uma festa fabulosa. À meia-noite, a tenda está cheia etivemos um jantar maravilhoso. O meu pai fez um discurso e falou de como a minha mãe é umaesposa, uma mãe e agora uma futura avó maravilhosa. E Martin, o nosso vizinho, fez o seuespetáculo de magia, que foi mesmo excelente! Exceto a parte em que tentou cortar Janice aomeio e esta se assustou quando ele ligou a motosserra, começando a gritar: «Não me mates,Martin!» enquanto ele acelerava a serra como um maníaco num filme de terror.

Por fim, correu tudo bem. O Martin tirou a máscara e a Janice ficou bem, depois de tomar umbrande.

Agora a banda está a tocar e estamos todos na pista de dança. A minha mãe e o meu paidançam juntos, as caras rosadas e a rir um para o outro, com as luzes a brilhar nas lantejoulasda minha mãe. A Suze dança com um braço no pescoço de Tarquin e o outro em volta deClementine, que acordou e não quis voltar a adormecer. Tom e Jess estão parados junto à pista,a conversar e, de vez em quando, a arrastar desajeitadamente os pés. Tom fica lindamente desmoking e a saia preta e bordada de Jess é fantástica! (Tive quase a certeza absoluta de que eraDries van Noten. Mas parece que foi feita por uma cooperativa feminina na Guatemala e custouuns trinta pence. Típico.)

E eu vesti o meu novo vestido cor-de-rosa de pontas e danço (o melhor que posso, por casada barriga) com Luke. Os meus pais dançam ali perto e acenam, e eu retribuo o aceno, tentandonão me encolher de horror. Sei que a festa é deles e tal, mas os meus pais realmente não sabemdançar. A minha mãe balança as ancas, totalmente fora de ritmo, e o meu pai dá socos no ar,como se lutasse contra três homens invisíveis ao mesmo tempo.

Porque será que os pais não sabem dançar? Será alguma lei universal da física? De súbito, ocorre-me um pensamento terrível. Vamos ser pais! Daqui a vinte anos os nossos

filhos hão de encolher-se de horror diante de nós. Não. Não posso deixar que tal aconteça. – Luke! – digo, ansiosa, fazendo-me ouvir acima do som da música. – Temos de ser capazes

de dançar bem para não envergonhar o nosso filho! – Eu danço muito bem – responde Luke. – Muito mesmo. – Não danças, não! – Tive aulas de dança na adolescência, bem sabes. Sei dançar a valsa como o Fred Astaire. – Dançar a valsa? – repito, com desprezo. – Isso não está a dar! Temos de saber todos os

passos de street dance. Olha para mim. Faço uns gestos com a cabeça e o corpo, como nos vídeos de rap. Quando ergo o rosto, Luke

olha-me boquiaberto. – Querida – diz. – O que estás a fazer? – Isto é hip hop! É street! – Becky, querida! – A minha mãe abriu caminho por entre os convidados que estão a dançar

e vem ter comigo. – Que se passa? Entraste em trabalho de parto?

Francamente. A minha família não faz ideia das tendências contemporâneas da dançaurbana.

– Estou ótima – respondo. – Estou a dançar. Ai. Na verdade, talvez tenha distendido um ou três músculos. – Anda cá, J-Lo. – Luke puxa-me para si. A minha mãe vai falar com Janice e eu olho para o

rosto reluzente de Luke. Está de bom humor desde o telefonema de negócios que recebeudurante o café.

– O que era o telefonema? – pergunto. – Boas notícias? – Acabamos de receber a aprovação para Barcelona. – Torce o nariz como sempre faz quando

se sente encantado com a vida mas quer parecer impávido. – Ficamos assim com oitoescritórios em toda a Europa. Tudo devido ao contrato com o Arcodas.

Nunca me disse que Barcelona estava nos planos! É típico de Luke manter segredo até onegócio estar feito. Se não tivesse acontecido, provavelmente nunca diria uma palavra a esserespeito.

Oito escritórios. Além de Londres e Nova Iorque. É superfantástico. A música muda para uma faixa lenta e Luke puxa-me mais para si. Pelo canto do olho, noto

que Jess e Tom entraram mais na pista de dança. Vamos, insisto com Tom em silêncio. Beija-a. – Então as coisas vão muito bem? – pergunto. – As coisas, querida, não poderiam ser mais fantásticas – Luke olha-me nos olhos, deixando

de lado o tom brincalhão. – A sério. Vamos triplicar de tamanho. – Uau. – Fico a digerir aquilo por um momento. – Vamos ser quaquilionários? – Talvez. – Ele assente. É mesmo fixe. Sempre quis ser quaquilionária. Podemos ter um edifício chamado Brandon

Tower! – Podemos comprar uma ilha? – A Suze tem uma ilha na Escócia e eu sempre me senti um

pouco inferiorizada. – Talvez – responde Luke a rir. Estou prestes a dizer que também precisamos de um jato particular, quando o bebé começa a

revirar-se dentro de mim. Agarro nas mãos de Luke e poiso-as na minha barriga. – Está a dizer olá. – Olá, bebé – murmura ele na sua voz grave. Em seguida, puxa-me para si com mais força

ainda e fecho os olhos, respirando o perfume do seu aftershave e sentindo a música vibrardentro de mim como um coração.

Não me lembro de alguma vez ter estado tão feliz. Estamos a dançar com o rosto colado, obebé dá pontapés entre nós, temos uma casa nova e fabulosa e vamos ser quaquilionários! Tudoé simplesmente perfeito.

BECKY BRANDON

AUTOTESTE PARA CANÇÕES DE EMBALAR Boa noite ,bebé… João Pestana Que lá vem lá vem E As Pombinhas da Catrina Doidas, doidas, doidas Mas ... Vai-te embora, papão mau Caiu do telhado Sai de cima do telhado Deixa dormir o bebé Para não ficar molhado Ah, caraças, como vou eu saber?

CINCO

Tudo bem. Esta é a minha toilette para a primeira consulta com uma imprescindível obstetracelebridade.

Cafetã bordado como os de Jemina Khan. Calças de ganga de grávida (com o elástico escondido nos bolsos e não com um repulsivopainel de tecido elástico). A minha nova roupa interior para grávida Elle MacPherson (lilás) Sandálias Prada. Acho que estou muito bem. Espero. Puxo o cafetã e sacudo o cabelo diante do espelho. – Olá – murmuro. – Olá, Kate. Olá, Elle. Meu Deus, que prazer encontrá-la. Estou a usar

umas calças suas! Não. Não menciones as calças. Observo-me pela última vez, acrescento um pouquinho de pó e pego na mala. – Luke, estás pronto? – pergunto. – Ahã. – Luke mete a cabeça pela porta do escritório, com o telefone enfiado por baixo do

queixo. – Espera um pouco, Iain. Becky, é mesmo preciso eu ir? – O quê? – Encaro-o, horrorizada. – Claro que é preciso! Luke olha-me no rosto, como se avaliasse toda a extensão do meu humor. – Iain – diz por fim, voltando ao telefone. – Isto é complicado. Desaparece no escritório e baixa a voz para um murmúrio. Complicado? Como assim, complicado? Vamos à obstetra e está tudo dito. Começo a andar

de um lado para o outro no corredor, furiosa, ensaiando respostas na cabeça: O Iain não podeesperar uma única vez? Toda a nossa vida tem de girar em volta do Arcodas? O nascimento donosso bebé não é importante para ti? Alguma vez te preocupas comigo?

Bem, pronto. Esta última talvez não. Por fim, Luke reaparece à porta do escritório. O telefone desapareceu e está a vestir o casaco

do fato. – Ouve, Becky... – começa ele. Eu sabia. Ele não vai. – Nunca quiseste ir à consulta da Venetia Carter, pois não? – As palavras saem-me da boca. –

Tens qualquer coisa contra ela! Bom, ótimo! Vai tratar dos teus negócios que eu vou sozinha. – Becky... – Ergue a mão. – Eu vou à consulta. – Ah – respondo, aplacada. – Bom, então é melhor irmos. São vinte minutos a pé. – Vamos de carro. – Volta ao escritório e eu acompanho-o. – O Iain está de volta da reunião

do grupo no hotel. Pode apanhar-nos, teremos uma rápida reunião no carro e depois vou ter

contigo. – Certo – digo, depois de uma pausa. – Parece-me bem. Na verdade, parece-me horrível. Não suporto o Iain Wheeler, a última coisa que quero é estar

num carro com ele. Mas não posso dizer isso a Luke. Já há um leve desentendimento entre mime o Arcodas.

Que não foi minha culpa. Foi da Jess. Há alguns meses fez-me liderar um grande protestoambiental contra eles, quando eu não fazia ideia de que era o novo cliente importante de Luke.Luke transformou tudo aquilo num exercício positivo de relações públicas e o pessoal doArcodas fingiu ter um grande sentido de humor em relação ao assunto, mas não sei se fuirealmente perdoada.

– Não tenho nada contra ela – acrescenta Luke, ajeitando a gravata. – Mas já te digo, Becky:essa obstetra tem de ser espetacular para desistirmos do doutor Braine.

– Luke, vais adorá-la – digo com paciência. – Sei que vais. Enfio a mão na mala e verifico se o telemóvel está carregado, depois paro quando vejo algo

na mesa de Luke. É um recorte das páginas financeiras sobre um novo fundo de investimento ena margem está rabiscado: «Fundo para o bebé?»

Aaah! – Estás então a pensar colocar o dinheiro do bebé num fundo de índice? – pergunto

distraidamente. – Que decisão interessante. Luke parece perplexo por momentos, depois acompanha o meu olhar. – Talvez esteja – diz em tom igualmente natural. – Ou talvez seja um bluff para enganar a

espionagem da oposição. – A oposição não precisa de espiar. – Lanço-lhe um sorriso delicado. – Tem as suas próprias

ideias brilhantes. Na verdade, se precisares de alguma dica, ficarei feliz por te ajudar. Em trocade uma pequena quantia.

– Tudo bem – responde educadamente. – E então, vai tudo bem com o teu investimento? – Fantástico, obrigada. Não poderia ir melhor. – Excelente. Fico feliz em saber. – É... aquele investimento recente que fiz em quintas japonesas foi fantástico... – Tapo a boca

com a mão. – Bolas! Falei demasiado! – Pois é, Becky. Enganaste-me mesmo. – Luke ri. – Vamos? Saímos do prédio e Luke faz-me entrar na limusina preta de Iain. – Luke. – Iain cumprimenta do seu banco junto à janela. – Rebecca. Iain é um sujeito atarracado, quarentão, com cabelo grisalho curto. Na verdade, tem boa

aparência, mas uma pele horrível que esconde com bronzeado artificial. E usa demasiadoaftershave. Porque será que os homens fazem uma coisa dessas?

– Obrigada pela boleia, Iain – digo com o meu mais encantador tom de esposa corporativa. – Tudo bem. – O olhar de Iain pousa na minha grande barriga. – Comeste bolos a mais,

Rebecca. Que engraçado! – Mais ou menos – digo do modo mais agradável que consigo. Quando o carro avança, Iain toma um gole de café para viagem. – Quanto tempo falta para o grande dia? – Dezassete semanas. – Então, como preenches o tempo até lá? Não me digas: aulas de ioga. A minha namorada

transformou-se numa fanática do ioga – acrescenta para Luke, sem me dar a possibilidade deresponder. – Uma tremenda asneira, se querem saber.

Francamente. Número um: o ioga não é asneira, é um modo de canalizar o espírito atravésdos chacras da vida ou sei lá o quê.

E número dois: não preciso de maneiras de preencher o tempo, obrigada. – Na verdade, Iain, sou chefe das Personal Shoppers num importante armazém de Londres.

De modo que não tenho muito tempo para o ioga. – Armazém? – Volta-se no banco para olhar para mim. – Não sabia. Qual? Realmente caí na esparrela. – É... um novo – digo, examinando as unhas. – Chamado? – Chamado... The Look. – The Look? – Iain solta uma risadinha incrédula e quase larga o café. – Luke, não me

disseste que a tua mulher trabalhava no The Look! Gostas de negócios lentos, Rebecca? – Não é assim tão mau – digo educadamente. – Não é tão mau? Nunca ouve maior fracasso no comércio em toda a história! Espero que te

livres das tuas ações. – Ele ri de novo. – Não estás a contar com um prémio no Natal, pois não? Este gajo começa realmente a irritar-me. Uma coisa é eu ser grosseira em relação ao The

Look, eles são meus patrões. Mas é totalmente diferente as outras pessoas serem grosseiras. – Na verdade, acho que o The Look se prepara para uma grande volta – digo friamente. –

Tivemos um começo difícil, admito, mas a base está lá. – Bem, boa sorte. – Iain franze o rosto, divertido. – Queres um conselho? Eu continuaria à

procura de outro emprego. Forço um sorriso – depois volto-me para olhar pela janela, furiosa. Meu Deus, ele está a ser

condescendente. Vai ver. O The Look pode ser um sucesso. Só precisa... bem, precisa declientes, para começar.

O carro para junto ao passeio e o motorista fardado sai para abrir a porta. – Mais uma vez, obrigada pela boleia, Iain – digo educadamente. – Luke, encontramo-nos lá

dentro. – Hã-hã – concorda Luke, franzindo a testa enquanto abre a pasta. – Não devo demorar

muito. E então, Iain, qual foi exatamente o problema com esse esboço? Enquanto o motorista me deixa no passeio, os dois já estão envolvidos nos papéis. – Tudo bem a partir daqui, minha senhora? – O motorista indica-me a esquina. – A Fencastle

Street fica ali adiante, só que não posso ir porque o trânsito é proibido. – Não se preocupe, posso andar. Ah, esqueci-me da carteira... – Enfio de novo a mão no carro

e oiço o Iain a dizer: – Quando eu quiser que esse tipo de decisão seja tomada, Luke, sou eu que a tomo, caraças. –

Fico surpreendida pelo tom áspero e vejo Luke estremecer. É inacreditável. Quem pensa o gajo que é? Só porque se considera mais esperto que os outros

nos negócios acha que pode ser indelicado com quem quiser? Sinto vontade de entrar de novono carro e de lhe dizer exatamente o que penso a respeito dele.

Mas não sei se Luke gostaria. – Até já, querido. – Aperto a mão dele e pego na mala. – Não te demores.

Estou um pouco adiantada para a consulta, assim aproveito a oportunidade para retocar o batome dar uma rápida penteadela ao cabelo. Vou até à esquina e entro na Fencastle Street. Cerca devinte metros mais adiante há um edifício impressionante, com as palavras «Centro Holístico deMaternidade Venetia Carter» gravadas no vidro e, no outro lado da rua, vejo um amontoado defotógrafos, com as lentes apontadas para a porta.

Paro, com o coração a bater acelerado. São paparazzi. Todos disparam as máquinas! Dequem estarão... o que estarão...

Oh, meu Deus. É a nova Bond Girl! Encaminha-se para o prédio com um top cor-de-rosa semalças da Juicy e calças de ganga, exibindo a barriga. Consigo ouvir os gritos dos fotógrafosdizendo «Volte-se para este lado!» e «Para quando espera o bebé?»

Isto é tão fixe! Tentando parecer descontraída, sigo rapidamente pelo passeio e chego à porta ao mesmo

tempo que ela. Todas as máquinas continuam a disparar atrás de nós. Vou sair em todas asrevistas de mexericos com uma Bond Girl!

– Olá – murmuro de forma natural enquanto ela toca à campainha. – Sou a Becky. Tambémestou grávida. Gosto do seu top!

Ela olha-me como se eu fosse uma imbecil, depois, sem responder, empurra a porta. Bem, não foi muito simpática. Mas não faz mal, tenho a certeza de que outras serão. Sigo-a

por um elegante corredor de azulejo e entro numa sala grande com poltronas de veludo lilás atéà receção; na mesinha do centro há uma vela Jo Malone acesa.

Enquanto sigo até à receção atrás da Bond Girl, faço um exame rápido da sala. Duas miúdasde calças de ganga, que poderiam facilmente ser supermodelos, leem a OK! e mostramfotografias uma à outra. Sentada do outro lado está uma jovem tremendamente grávida,vestindo Missoni, lavada em lágrimas, com um marido que, de mão dada com ela, dizansiosamente:

– Querida, se quiseres podemos chamar Aspen ao bebé, mas pensava que não estavas a falara sério.

Aspen. Aspen Brandon. Lorde Aspen Brendon, conde de Londres. Hmm. Não tenho a certeza. A Bond Girl acaba de falar com a rececionista, depois afasta-se e senta-se num canto. – Posso ajudá-la? – A rececionista olha para mim. Sorrio. – Tenho consulta marcada com a doutora Venetia Carter. Sou Rebecca Brandon. – Sente-se, Mistress Brandon. A doutora Carter vai recebê-la. – A rececionista sorri e

entrega-me uma brochura. – Um pouco de literatura introdutória. Sirva-se do chá de ervas. – Obrigada! – Pego na brochura e sento-me diante das supermodelos. Das colunas sai uma

música suave, de flauta de Pã, e há fotografias de mães e bebés afixadas aos quadros forradosde cetim. Toda a atmosfera é serena e linda. A milhões de quilómetros da velha e aborrecidasala de espera do Dr. Braine, com as suas cadeiras de plástico, a horrível carpete e os cartazessobre o ácido fólico.

Luke vai ficar impressionado quando chegar. Eu sabia que esta era a decisão certa! Sentindo-me feliz, começo a folhear a brochura, lendo os títulos aqui e ali. Parto na água...

parto com reflexologia... hipnoparto...

Talvez eu faça um hipnoparto. Seja lá o que isso for. Estou a olhar para a fotografia de uma jovem com um bebé ao colo no que parece ser uma

enorme banheira de hidromassagem quando a rececionista me chama. – Mistress Brandon? A doutora Venetia vai recebê-la. – Ah! – Pouso a brochura e olho para o relógio, ansiosa. – O meu marido ainda não chegou.

Deve chegar dentro de uns minutos... – Não se preocupe. – Sorri. – Mando-o entrar assim que ele chegar. Por favor, por aqui. Acompanho a rececionista pelo corredor atapetado. As paredes estão cobertas de fotografias

assinadas por glamurosas mães-celebridades com bebés recém-nascidos e sinto-me tontaenquanto caminho. De facto, preciso de pensar no que irei vestir para o parto. Talvez peçaalgumas dicas a Venetia Carter.

Chegamos a uma porta pintada de cor creme e a rececionista bate duas vezes antes de a abrirpara me fazer entrar.

– Venetia, esta é Mistress Brandon. – Mistress Brandon! – Uma mulher de beleza estonteante, cabelo comprido, adianta-se com a

mão estendida. – Bem-vinda ao Centro Holístico de Maternidade. – Olá! – Retribuo o sorriso. – Pode tratar-me por Becky. Uau. Venetia Carter parece uma estrela de cinema! É muito mais nova do que eu esperava e

mais magra. Tem vestido um fato Armani justo e uma impecável camisa branca e mantém ocabelo afastado do rosto com uma elegante bandelete de tartaruga.

– Tenho muito prazer em conhecê-la, Becky. – Tem uma voz toda prateada e melodiosa,como a Bruxa Boa do Norte. – Sente-se e vamos então conversar.

Calça sapatos Chanel vintage, noto ao sentar-me. E olhem só para aquele incrível topázioamarelo pendurado ao pescoço num fio de prata.

– Quero agradecer-lhe por ter conseguido encaixar-me num estágio tão avançado – digorapidamente enquanto entrego a minha ficha médica. – Agradeço de verdade. E adoro os seussapatos!

– Obrigada! – Sorri. – Vamos então dar uma olhadela. Está grávida de vinte e três semanas...primeiro bebé... – Passa os dedos de unhas impecáveis pelas anotações do Dr. Braine. – Algumproblema com a gravidez? Há algum motivo para ter deixado o médico anterior?

– Quero apenas uma abordagem mais holística – digo, inclinando-me para a frente, com todaa franqueza. – Estive a ler a sua brochura e acho todos os seus tratamentos incríveis.

– Tratamentos? – Franze a testa pálida. – Quero dizer, partos – emendo à pressa. – Bem. – Venetia Carter retira de uma gaveta um dossiê creme de papel, uma caneta de prata

de tinta permanente e escreve na capa «Rebecca Brandon» em letra floreada. – Temos muitotempo para decidir a abordagem ao parto que deseja. Mas, primeiro, deixe-me saber mais coisasa seu respeito. É casada, não é verdade?

– Sim – confirmo, acenando com a cabeça. – E o seu marido vem hoje? Mister Brandon, creio? – Já devia ter chegado. – Faço um ruído com a língua como que para pedir desculpa. – Está lá

fora, no carro, numa rápida reunião de negócios. Mas vai chegar em breve. – Tudo bem. – Ela levanta a cabeça e sorri, todos os dentes perfeitos, brancos e brilhantes. –

Tenho a certeza de que o seu marido está muito entusiasmado com o bebé. – Ah, está sim! – Vou contar-lhe tudo sobre a nossa primeira ecografia quando a porta se

abre. – Mister Brandon está aqui – diz a rececionista e Luke entra dizendo: – Desculpe, desculpe, sei que estou atrasado... – Ainda bem que chegaste, Luke! – exclamo. – Entra para conheceres a doutora Carter. – Por favor! – Ela ri mais uma vez. – Pode chamar-me Venetia, toda a gente chama... – Venetia? – Luke deteve-se e olha para Venetia Carter como se não pudesse acreditar nos

seus olhos. – Venetia? És tu? Venetia Carter abre a boca de espanto. – Luke? – pergunta. – Luke Brandon? – Vocês conhecem-se? – pergunto, atónita. Por uns momentos, nenhum dos dois fala. – Estudámos juntos em Cambridge – explica Luke por fim. – Há anos. Mas... – Coça a testa.

– Venetia Carter. Casaste? – Mudei o apelido legalmente. Não farias o mesmo? – Qual era o seu apelido, antes de o mudar? – pergunto educadamente, mas nenhum dos dois

parece ouvir. – Foi há quantos anos? – Luke está ainda surpreendido. – Muitos. Demasiados. – Ela passa a mão pelo cabelo, que volta a cair numa perfeita cascata

ruiva. – Tens visto alguém do antigo grupo da Brown? Como o Jonathan? Ou o Matthew? – Perdi o contacto. – Luke encolhe ombros. – E tu? – Continuei em contacto com alguns deles enquanto estive nos Estados Unidos. Agora que

voltei a Londres, alguns de nós encontramo-nos sempre que podemos... Interrompe-a um som que lhe sai do bolso. Pega no pager e desliga-o. – Com licença. Preciso de fazer um telefonema. Vou para a sala ao lado. Quando ela desaparece, olho para Luke. Vejo que tem o rosto iluminado, como se fosse

Natal. – Conheces a Venetia? – pergunto. – Que incrível! – É, não é? – Abana a cabeça, incrédulo. – Ela fazia parte de um grupo que eu conhecia em

Cambridge. Claro, nesse tempo chamava-se Venetia Grime. – Grime?3 – Não consigo evitar um risinho. – Não será o melhor nome para uma médica – diz ele também a sorrir. – Não me espanta que

o tenha mudado. – Conhecia-la bem? – Andávamos na mesma faculdade – declara Luke. – A Venetia sempre foi incrivelmente

brilhante. Extremamente talentosa. Sempre soube que iria dar-se bem na vida... – Interrompe oque estava a dizer quando a porta se abre e Venetia regressa.

– Desculpem! – Vem sentar-se diante da secretária, com uma longa perna vestida de Armaninaturalmente cruzada sobre a outra. – Onde íamos?

– Estava a dizer ao Luke que é uma coincidência! – exclamo. – O facto de já se conhecerem. – Extraordinário, não é verdade? – Solta uma gargalhada cristalina. – De entre todas as

centenas de pacientes que já tive, nunca me apareceu uma casada com um ex-namorado! O meu sorriso imobiliza-se ligeiramente. Ex-namorado? – Estava a tentar lembrar-me durante quanto tempo namorámos, Luke – acrescenta. – Um

ano?

Namoraram durante um ano? – Não me lembro – responde Luke com tranquilidade. – Já passou muito tempo. Esperem lá. Só um minuto. Rebobinar. Acho que perdi alguma coisa. Venetia Carter foi namorada de Luke em Cambridge? Mas... ele nunca me falou nela. Nunca

ouvi falar de uma Venetia. Quero dizer... não que isso tenha agora a mínima importância. Porque teria? Não sou o tipo

de pessoa que fica toda alterada com velhas namoradas surgidas do passado. Sou naturalmenteuma pessoa muito não ciumenta. Na verdade, provavelmente nem vou mencionar isso.

Ou talvez mencione, só por acaso. – Olha, querido, não me lembro de me teres falado da Venetia – digo a Luke com um risinho

descontraído. – Não é curioso? – Não se preocupe, Becky. – Venetia inclina-se para a frente com um ar confidencial. – Sei

muito bem que nunca fui o amor da vida de Luke. Sinto dentro de mim um brilho quente de prazer. – Ah, claro – digo, tentando parecer modesta. – Bom... – Era a Sacha de Bonneville – acrescenta ela. O quê? O quê? O amor da vida de Luke não era a porcaria da Sacha de Bonneville! Era eu! A sua mulher! – Para além da Becky, claro! – exclama ela com uma série de gargalhadas em tom de

desculpa. – Estava só a falar sobre aquela época. No grupo da Brown. De qualquer modo… –Radiante, Venetia lança o cabelo para trás e pega de novo na papeleta e na caneta. – Voltandoao parto!

– Pois – digo, recuperando a compostura. – Bom, eu estava a pensar fazer talvez um daquelespartos na água com flores de lótus...

– A propósito, devias aparecer uma noite destas, Luke – interrompe Venetia. – Para ver opessoal do antigo grupo.

– Adorava! – diz Luke. – Adorávamos não é, Becky? – Claro – respondo depois de uma pausa. – Que ideia fabulosa. – Desculpe interromper, Becky – diz-me Venetia a sorrir. – Continue. Um parto na água, era

o que estava a dizer?

Ficamos ali durante mais vinte e cinco minutos, a falar de vitaminas, análises ao sangue emuitas outras coisas. Mas, para ser sincera, a minha mente afasta-se do assunto.

Estou a tentar concentrar-me, mas várias imagens aparecem na minha cabeça para medistrair. Tipo Luke e Venetia com o uniforme de Cambridge, beijando-se apaixonadamentenum bote. (Eu quis dizer um bote ou uma gôndola? Aquele barco com um pau comprido, querodizer.)

E fico a imaginá-lo a passar as mãos pelos cabelos dela, compridos e ruivos, enquantomurmura: «Amo-te, Venetia.»

O que é simplesmente idiota. Aposto que ele nunca disse que a amava. Aposto... mil libras. – Becky? – Ah! – Volto a mim e percebo subitamente que a consulta acabou. Luke e Venetia estão de

pé, à minha espera.

– Vai então planear o seu parto comigo, Becky? – pergunta Venetia enquanto abre a porta. – Sem dúvida! – Não é nada complicado! – diz a sorrir. – Só gostaria de ter uma ideia geral de como

imagina o parto. E Luke, vou ligar-te, sei que o pessoal adoraria voltar a ver-te. – Fantástico! – O rosto dele está animado enquanto lhe beija ambas as faces. Então a porta

fecha-se e saímos para o corredor. Não sei bem o que Luke pensa. Para ser franca, não tenho bem a certeza do que estou a pensar. – Bem – diz Luke por fim. – Muito impressionante. Muito, muito impressionante. – Ah... é! – Becky. – Luke detém-se subitamente. – Quero pedir-te desculpa. Estavas certa e eu estava

errado. – Abana a cabeça. – Desculpa ter sido tão negativo em relação a vir aqui. Estás certa,fui preconceituoso e idiota. Mas tomaste uma decisão totalmente correta.

– Certo. – Aceno várias vezes com a cabeça. – Julgas então... que devemos ficar com aVenetia?

– Sem dúvida! – Ri, perplexo. – Tu não? Vir aqui não é o teu sonho transformado emrealidade?

– Ah... sim – digo, dobrando em partes cada vez menores o meu folheto de OpçõesAlternativas para o Alívio da Dor. – Claro que é.

– Meu amor. Querida. – De repente, Luke franze a testa, preocupado. – Se te sentesameaçada por causa do meu antigo relacionamento com a Venetia, quero garantir...

– Ameaçada? – interrompo-o, cheia de animação. – Não sejas ridículo! Não me sintoameaçada.

Talvez me sinta um pouquinho ameaçada. Mas como posso dizê-lo a Luke? – Ainda bem que ainda aí estão! – A voz cristalina de Venetia viaja pelo corredor e volto-me,

vendo-a aproximar-se com uma papeleta na mão. – Tem de levar o seu presente de boas-vindasantes de ir, Becky! Temos todo o tipo de brindes para si. E havia outra coisa que eu queriamencionar...

– Venetia. – Luke interrompe-lhe a entusiasmada conversa. – Deixa-me ser franco...Estávamos a discutir o facto do nosso relacionamento anterior. Não sei se a Becky se senteconfortável com isso. – Pega-me na mão e eu agarro a dele, agradecida.

Venetia respira fundo e assente. – Claro – diz. – Becky, entendo perfeitamente. Se se sente desconfortável, certamente deve

considerar a hipótese de procurar outro médico. Não ficarei ofendida! – Lança-me um sorrisoamigável. – Só posso dizer que... sou uma profissional. Se decidir permanecer sob os meuscuidados, vou ajudá-la a ter a melhor experiência de parto que puder. E, só para o caso de sesentir de facto ansiosa... – Brilharam-lhe os olhos. – Eu tenho um namorado!

– Não se preocupe! Não sou assim tão insegura! – digo, acompanhando o seu riso alegre. Ela tem um namorado! Está tudo bem! Não sei como pude pensar que fosse outra coisa. Meu Deus, a gravidez está a deixar-me

paranoica. – Então – está Venetia Carter a dizer – pensem nisso, têm o meu número... – Não preciso de pensar. – Devolvo-lhe o sorriso. – Mostre-me onde estão todos os meus

presentes de boas-vindas!

3 Grime, em inglês, significa «porcaria». (N. da T.)

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros de Finanças Forward House

High Holborn, 394. Londres WC1V 7EX Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 24 de agosto de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigado pela sua carta. Sei da «aposta» de investimento entre a senhora e o seu marido. Porfavor, esteja tranquila, não lhe revelaremos nenhuma das suas estratégias de alocação de bens,nem vamos «vender-lhos a ele como um espião russo». Em resposta à sua pergunta, acho que um investimento em ouro seria uma escolha sensata parao seu filho. O ouro tem rendido bem nos últimos anos e, na minha opinião, continuará a render. Atenciosamente, Kenneth Prendesgast Especialista em Investimento de Família

SEIS

Meu Deus, o trabalho está deprimente. É o dia depois da nossa consulta na Venetia Carter e estou sentada à minha secretária na

receção do departamento de Personal Shopping. Jasmine, que trabalha comigo, está afundadano sofá. A nossa agenda está vazia, o telefone silencioso e o lugar continua morto comosempre. Olho em volta. Nenhum cliente. O único sinal de movimento no andar é Len, osegurança, a fazer as habituais rondas, e parece tão enfadado como nós.

Quando penso como era o Barneys, em Nova Iorque, todo luminoso, cheio de conversas epessoas a comprarem vestidos de mil dólares! Esta semana só vendi um par de meias de rede euma gabardina fora de estação. Este lugar é um desastre. E só o inaugurámos há dez semanas.

O The Look é propriedade do grande magnata Giorgio Laszlo. Devia ser um armazémfabuloso, movimentado, de alto conceito, que suplantaria o Selfridges e o Harvey Nichols. Masas coisas começaram a correr mal desde o primeiro dia. Na verdade, esta loja é uma piadanacional.

Em primeiro lugar, todo um armazém de stocks se incendiou e a inauguração teve de seradiada. Depois o suporte de um projetor caiu do teto e provocou uma concussão numaesteticista, exatamente a meio de uma demonstração de maquilhagem. Em seguida, houve umasuspeita de surto da doença dos legionários e mandaram-nos a todos para casa durante cincodias. Afinal, tratou-se de um alarme falso – mas o mal estava feito. Todos os jornais publicaramartigos sobre como o The Look era amaldiçoado e cartoons que mostravam os clientes adesmaiar e com pedaços do prédio a cair-lhes em cima. (Na verdade, eram bem engraçados,mas não temos autorização para dizer tal coisa.)

E ninguém voltou desde que reabrimos. Toda a gente parece pensar que a loja continuafechada, que é contagiosa ou assim. O Daily World, que é inimigo figadal de Giorgio Laszlo,manda constantemente fotógrafos disfarçados para tirar fotografias da loja e publica-as comtítulos como AINDA VAZIA! e QUANTO TEMPO PODE DURAR ESTA LOUCURA? Osboatos dizem que, se as coisas não melhorarem já, a loja vai fechar.

Com um suspiro lúgubre, Jasmine volta a página e começa a ler os horóscopos. Esse é ooutro problema: é difícil manter os funcionários motivados quando os negócios estão de rastos.(Jasmine é minha funcionária.) Antes de começar este trabalho, li um dos livros de gestão doLuke para ter umas dicas de como ser chefe – e nele dizia que «é crucial elogiar a sua equipanos tempos menos bons».

Já elogiei o cabelo, os sapatos e a carteira da Jasmine. Para ser franca, não resta muita coisa. – Gosto das tuas... sobrancelhas, Jasmine! – digo, animada. – Onde as arranjas? Jasmine olha para mim como se eu lhe tivesse pedido para comer as crias de uma baleia. – Não digo! – Porquê?

– É segredo. Se te contar, vais lá também e depois imitas o meu visual. Jasmine é magra, com fios de cabelos loiros oxigenados, um brinco no nariz, um olho azul e

o outro verde. Não poderia parecer-se menos comigo, nem que tentasse. – Não vou imitar o teu visual! – respondo em tom leve. – Só quero ter as sobrancelhas bem

arranjadas! Vá, diz lá. – Ah-hã. – Abana a cabeça. – Nem penses. Sinto-me frustrada. – Quando me perguntaste onde arranjava o cabelo, eu disse-te – recordo-lhe. – Dei-te um

cartão, recomendei o melhor cabeleireiro e consegui-te dez por cento de desconto no primeirocorte. Lembras-te?

Jasmine encolhe os ombros. – Isso é o cabelo. – E isto são sobrancelhas. É menos importante! – Nem penses. Ah, pelo amor de Deus. Estou quase a dizer-lhe que não importa onde ela arranja a porcaria

das sobrancelhas (o que é mentira, porque agora fiquei obcecada por elas) quando ouço passos.Passos firmes, pesados, do pessoal da administração.

Rapidamente, Jasmine mete a revista Heat debaixo de um monte de camisolas e eu finjoajeitar a echarpe de um manequim. Instantes depois, Eric Wilmot, diretor de marketing, apareceà esquina com dois homens de fatos elegantes que eu nunca tinha visto.

– E este é o departamento de Personal Shopping – diz aos homens com um ar falsamentejovial. – A Rebecca trabalhou no Barney’s, em Nova Iorque! Rebecca, quero que conheça oClive e o Graham, da Consultoria First Results. Vieram trazer-nos algumas ideias. – Esboça umsorriso tenso.

Eric foi promovido a diretor de marketing na semana passada, quando o anterior se demitiu.E, de facto, não parece gostar do novo cargo.

– Há dias que não temos clientes – diz Jasmine em voz monótona. – Isto aqui parece amorgue.

– Ahã. – Eric esboça um sorriso tenso. – Uma morgue vazia, sem mortos – esclarece. – É mais morto que uma morgue. Porque pelo

menos numa morgue... – Todos estamos ao corrente da situação, obrigado, Jasmine – interrompe Eric rapidamente. –

Do que precisamos é de soluções. – Como fazemos as pessoas passarem pelas portas? – Um dos consultores dirige-se a um

manequim. – É essa a questão. – Como mantemos a lealdade dos clientes? – entoa o outro, pensativo. Pelo amor de Deus. Acho que eu podia ser consultora, se tudo o que fazem é vestir um fato e

fazer perguntas totalmente óbvias. – Qual é a especialidade das vendas? – acrescenta o primeiro. – Não existe – digo, incapaz de manter a boca fechada por mais tempo. – Temos o mesmo

stock que os outros. Ah, aliás, quem fizer compras aqui pode ficar doente ou levar com umacoisa na cabeça. Precisamos de uma coisa diferente!

Os três homens encaram-me, surpreendidos. – A perceção pública do perigo é obviamente o nosso maior desafio – diz o primeiro

consultor, franzindo a testa. – Precisamos de contrapor a cobertura negativa, criar uma imagem

positiva, saudável... Não percebeu nada do que eu disse. – Não faria qualquer diferença! – interrompo. – Se tivéssemos alguma coisa especial, que as

pessoas realmente quisessem, então viriam de qualquer modo. Tipo, quando morava em NovaIorque, fui uma vez a uma venda de amostras num prédio que ameaçava ruir. Havia um montede avisos do lado de fora a dizer NÃO ENTRE, PERIGO, mas eu tinha ouvido que estavam avender sapatos Jimmy Choo com oitenta por cento de desconto. Então entrei!

– E estavam mesmo? – pergunta Jasmine, erguendo os olhos. – Não – respondo, com pena. – Tinham vendido todos. Mas encontrei uma fabulosa

gabardine Gucci por apenas setenta dólares! – Entrou num prédio que amaçava ruir? – Eric olha-me com os olhos arregalados. – Por

causa de um par de sapatos? Algo me diz que ele não vai ficar muito tempo neste emprego. – Claro! E havia cerca de outras cem mulheres também. E se tivéssemos alguma coisa

sensacional e exclusiva no The Look, elas também viriam aqui como loucas! Mesmo que o tetoestivesse a cair! Tipo uma linha exclusiva de um estilista sensacional.

Há que tempos andava a cozinhar isto na minha mente. Até tentei falar com Brianna, a chefede compras, na semana passada. Mas ela limitou-se a acenar com a cabeça e perguntou se eupodia levar-lhe o vestido de strass Dolce às oito porque ia a uma estreia naquela noite e oVersace vermelho estava-lhe muito apertado no rabo – podia ser?

Só Deus sabe como Brianna conseguiu o emprego. Bem, na verdade, toda a gente sabe. Éporque ela é mulher de Giorgio Laszlo e já foi modelo. No comunicado à imprensa, quando oThe Look abriu, dizia que isso a qualificava perfeitamente para ser a chefe de compras, já quetinha o «conhecimento e a sensatez de alguém dentro do mundo da moda».

Não acrescentava «infelizmente ela não tem um único neurónio». – Linha exclusiva... estilista... – Rabisca o primeiro consultor no seu caderninho. – Devíamos

falar disso com a Brianna. Ela deve ter os contactos necessários. – Acho que de momento está de férias – diz Eric. – Com Mister Laszlo. – Bem, quando ela voltar vamos trabalhar nesta ideia. – O consultor fecha o caderno. –

Vamos continuar. Saem todos outra vez e eu espero até terem virado a esquina para soltar uma exclamação de

frustração. – Que se passa? – pergunta Jasmine, que se afundou de novo no sofá e está a mandar uma

mensagem de texto pelo telemóvel. – Eles nunca vão conseguir nada! A Brianna só volta daqui a semanas, e, de qualquer modo,

não serve para nada. Só vão fazer reuniões e falar... e enquanto isso a loja vai ao ar. – Porque te importas? – Jasmine encolhe os ombros, indiferente. Como pode limitar-se a ver uma empresa desmoronar-se e não tentar fazer alguma coisa? – Importo-me porque... porque é aqui que trabalho! A loja podia ser um sucesso! – Acorda, Becky. Nenhum estilista vai querer uma linha exclusiva aqui. – A Brianna podia ligar a pedir um favor – protesto. – Quer dizer, já desfilou para o Calvin

Klein. Versace... Tom Ford... Podia convencer um deles, não? Meu Deus, se eu tivesse umamigo que fosse estilista famoso... – Paro a meio da frase.

Espera aí. Porque não pensei nisso antes? – O que é? – Jasmine levanta a cabeça.

– Eu conheço um estilista. Conheço o Danny Kovitz! Poderíamos conseguir que ele fizessealguma coisa.

– Conheces o Danny Kovitz? – Jasmine está desconfiada. – Ou tipo esbarraste com ele umavez?

– Conheço-o mesmo! Morava no apartamento por cima do meu, em Nova Iorque. E desenhouo meu vestido de casamento – não consigo deixar de acrescentar, presunçosa.

É tão giro ter um amigo famoso! Conheci o Danny quando era um zé-ninguém. Na verdade,ajudei-o no início. E agora ele é o menino querido da moda internacional! Saiu na Vogue,usaram vestidos dele nos Óscares e sei lá que mais. Foi entrevistado pela Women’s Wear Dailyno mês passado para falar da sua última coleção, que, segundo ele, foi baseada na interpretaçãoque faz da decadência da civilização.

Não acredito numa única palavra. Deve ter sido alguma coisa que no último momentoalinhavou à pressa com um monte de alfinetes e muito café e que outra pessoa costurou paraele.

Mas mesmo assim. Uma linha Danny Kovitz exclusiva seria uma publicidade fabulosa. Já devia ter pensado nisso. – Se conheces mesmo o Danny Kovitz, liga-lhe – diz Jasmine, a desafiar-me. – Liga já. Ela não acredita? – Ótimo, vou ligar! – Pego no telemóvel, encontro o número de Danny e ligo. A verdade é que não falo com o Danny há muito tempo. Mas, mesmo assim, passámos juntos

por muitas coisas enquanto morei em Nova Iorque e teremos sempre essa ligação. Esperoalgum tempo, mas não há resposta, só um bip. Provavelmente perdeu o telefone e cancelou-oou qualquer coisa do género.

– Algum problema? – Jasmine ergue uma imaculada sobrancelha. – O telemóvel dele não funciona – digo tranquila. – Vou ligar para o escritório. Telefono para as informações internacionais, consigo um número da Danny Kovitz

Enterprises em Nova Iorque e ligo. Lá são nove e meia da manhã, o que significa que não háqualquer hipótese de Danny estar acordado, a não ser que ainda não tivesse ido à cama. Masposso deixar recado.

– Danny Kovitz Enterprises – atende uma voz masculina. – Em que posso ajudar? – Ah, olá! – digo. – Aqui é Becky Brandon, Bloom de solteira. Gostaria de falar com Danny

Kovitz. – Por favor, não desligue – diz a voz educadamente. Um rap qualquer rebenta-me os

tímpanos durante alguns instantes. Em seguida, uma animada voz feminina atende. – Bem-vinda ao clube de fãs de Danny Kovitz! Para ser sócia integral, por favor, prima a

tecla um... Ah, pelo amor de Deus. Desligo e ligo para o número principal de novo, evitando o olhar de

Jasmine. – Danny Kovitz Enterprises. Em que posso ajudar? – Olá, sou uma velha amiga do Danny – afirmo rapidamente. – Por favor, passe-me a

secretária particular. O rap estoira de novo aos meus ouvidos, então uma mulher diz: – Escritório particular de Danny Kovitz, fala Carol, em que posso ajudar? – Olá, Carol! – digo no meu mais simpático tom de voz. – Sou uma velha amiga do Danny e

tentei contactá-lo pelo telemóvel, mas parece que não funciona. Podia passar-lhe a chamada?

Ou tomar nota de um recado? – Como se chama? – pergunta Carol, parecendo desconfiada. – Becky Brandon. Bloom de solteira. – E ele saberá do que se trata? – Sim! Somos amigos! – Bem, vou passar a sua mensagem a Mister Kovitz... De repente ouço uma voz familiar, fraca, ao fundo, a dizer: – Preciso de uma Diet Coke, okay? É Danny! – Ele está ai, não está? – pergunto. – Acabo de ouvir a voz dele! Podia passar-me para ele? A

sério, é rápido... – Mister Kovitz está... numa reunião – diz Carol. – Mas darei o recado, Mistress Bloom.

Obrigada por telefonar. – A linha fica muda. Desligo o telefone, furiosa. Ela não vai dar recado nenhum, claro. Nem anotou o meu

número! – E então – diz Jasmine, que me observou o tempo todo. – Amigos íntimos, é? – Somos – afirmo furiosa. Tudo bem. Pensa. Tem de haver um modo de falar com ele. Tem de haver. Esperem lá. Pego outra vez no telefone e ligo para as informações internacionais. – Olá – digo à telefonista. – O nome é Kovitz, o endereço é Apple Bay House, em Fairview

Road, Foxton, Connecticut. Se pude ligar diretamente... Uns instantes depois, uma voz atende. – Olá, Mistress Kovitz! – digo no meu tom mais simpático. – Aqui é Becky. Becky Bloom.

Lembra-se de mim? Sempre gostei da mãe de Danny. Conversámos mais um pouco, ela pergunta pelo bebé e eu

pergunto pelos seus jardins premiados e a conversa termina com ela exprimindo uma simpáticaindignação pelo modo como fui tratada pelos funcionários de Danny, em especial depois de tersido eu que apresentei o trabalho dele ao Barneys (lembrei-lho como que por acaso) eprometendo fazer com que Danny me ligasse.

E literalmente dois minutos depois de termos acabado de falar, o meu telemóvel toca. – Olá, Becky! A minha mãe disse que ligaste. – Danny! – Não consigo evitar um olhar triunfante na direção de Jasmine. – Ah, meu Deus,

há que séculos. Como estás? – Ótimo! Só que a minha mãe deu-me uma tremenda descompostura. Meu Deus! – Danny

parece um pouco abalado. – Disse-me qualquer coisa como: «Não deixes de dar valor aos teusamigos, menino.» E eu: « Do que está a mãe a falar?» E ela...

– As tuas secretárias não quiseram passar-te a minha chamada – explico. – Acharam que euera uma fã. Ou que te perseguia ou assim.

– Tenho perseguidores. – Danny parece muito orgulhoso de si. – De momento tenho dois,ambos chamados Joshua. Não é uma loucura?

– Uau! – Não consigo deixar de ficar impressionada, mesmo sabendo que não devia. –Então... o que tens andado a fazer?

– Estou a descansar um pouco para trabalhar na coleção nova – diz ele com umatranquilidade treinada. – Estou a reinterpretar toda a vibração do Extremo Oriente. Neste

momento, estou na fase do conceito. A reunir influências, esse tipo de coisas. Não me engana. «A reunir influências» significa «Estar de férias e ficar pedrado na praia». – Bom, estava a pensar – digo rapidamente. – Será que me podias fazer um favor enorme?

Podias preparar uma pequena linha de difusão para a loja onde trabalho em Londres? Ou atémesmo só uma peça exclusiva?

– Ah – diz ele e posso ouvi-lo a abrir a lata. – Claro. Quando? Boa. Eu sabia que ele diria sim. – Bem... em breve? – Cruzo os dedos. – Nas próximas semanas? Podias vir a Londres para

uma visitinha. Fazíamos uma festa! – Becky, não sei... – Faz uma pausa para beber um gole e imagino-o num elegante escritório

do Soho, esparramado numa poltrona, com aquelas calças de ganga velhíssimas que costumavausar. – Tenho uma viagem marcada ao Extremo Oriente...

– Vi o Jude Law na rua um dia destes – acrescento como que por acaso. – Mora bem perto denós.

Silêncio. – Ah, acho que posso passar por aí – responde Danny por fim. – Londres fica a caminho da

Tailândia, certo?

Pronto! Consegui um CRÉDITO total. Durante o resto do dia, Jasmine mal pronuncia palavra e lança-me olhares pasmados. E Eric

ficou totalmente impressionado ao saber que eu tinha feito alguns «avanços pró-ativos noprojeto», como lhes chamou.

No fim de contas, se ao menos tivéssemos alguns clientes, este emprego não seria tão mau.Mas o facto de não termos nada que fazer tem o seu lado positivo, pois tenho tido tempo paraler o novo número da revista Gravidez.

– Ei, tens o telefone a tocar na carteira – diz Jasmine, saindo da receção. – Na verdade, temestado a tocar o dia todo.

– Obrigada por me dizeres! – respondo, sarcástica. Corro à minha secretária, pego notelemóvel e ligo-o.

– Becky! – exclama a voz entusiasmada da minha mãe. – Até que enfim! Então, querida,como foi a consulta com a famosa obstetra celebridade? Estamos todos doidos para saber! AJanice tem andado para cá e para lá o dia inteiro!

– Ah, pois. Espera só... – Fecho a porta e sento-me na cadeira atrás da secretária, alinhavandoas ideias. – Bem... foi incrível! Adivinha só, conheci uma Bond Girl na sala de espera!

– Uma Bond Girl! – A minha mãe sustém a respiração. – Ouviste, Janice? A Becky conheceuuma Bond Girl na sala de espera!

– E o lugar é lindo e vou ter um parto holístico na água. E ofereceram-me um belo presentede boas-vindas cheio de vouchers para spas...

– Que maravilha! – exclama a minha mãe. – E ela é simpática, não? A médica? – Muito simpática. – Calo-me um momento e depois acrescento naturalmente: – Foi

namorada do Luke. Não é uma tremenda coincidência? – Foi namorada do Luke? – A voz da minha mãe soa um pouco aguda. – Como assim,

namorada do Luke? – Ora, então! Uma pessoa com quem ele namorou há séculos. Em Cambridge.

Há silêncio do outro lado do telefone. – Ela é bonita? Francamente. – É bem bonita. Mas não vejo o que isso tenha a ver. – Claro que não tem a ver, querida. – Segue-se uma espécie de pausa nervosa e tenho a

certeza de que posso ouvir a minha mãe a murmurar qualquer coisa para Janice. – Sabes porque razão ela e o Luke terminaram? – pergunta subitamente.

– Não. Não sei. – Não lhe perguntaste a ele? – Mãe – digo, tentando manter a paciência. – O Luke e eu temos um casamento muito seguro,

de confiança mútua. Não vou perguntar-lhe, pois não? O que acha ela que eu devia fazer, entregar um questionário a Luke? Quero dizer, sei que

afinal o meu pai tem um passado ligeiramente mais colorido do que se poderia suspeitar (casocom uma hospedeira de comboio; filha resultante de uma relação secreta; bigode de pontasreviradas). Mas Luke não é assim, sei que não é.

– E, de qualquer modo, foi há séculos – acrescento num tom mais desafiador do quepretendia. – E ela tem namorado.

– Não sei, Becky, minha querida. – A minha mãe respira com força. – Tens a certeza de que éboa ideia? A gravidez pode ser um tempo complicado para um homem. Que tal voltares aconsultar aquele médico simpático?

Começo a sentir-me um pouco insultada. Mas o que pensa a minha mãe, que não consigosegurar o meu marido?

– Agora estamos com a Venetia Carter – digo obstinada. – Está tudo assinado. – Ah, pronto, querida, se tens a certeza. O que foi, Janice? – Há mais murmúrios do outro

lado. – A Janice perguntou se foi a Halle Berry que conheceste. – Não, foi a nova. A loira campeã de patins em linha. Mãe, tenho de desligar. Estou com uma

chamada em espera. Dá beijinhos a todos. Tchau! – Desligo o telefone e um segundo depois eletoca de novo.

– Bex! Tenho tentado falar contigo o dia inteiro! Como foi? – A voz entusiasmada de Suzeatravessa a linha telefónica. – Conta-me tudo. Vais fazer o parto tailandês na água?

– Talvez! – Não consigo deixar de sorrir de orelha a orelha. – Ah, Suze, foi fabuloso! Hámassagem, reflexologia, conheci uma Bond Girl e havia paparazzi à espera do lado de fora efomos fotografadas juntas! Vamos sair na Hello!

– Que fixe! – A voz de Suze transforma-se num guincho. – Meu Deus, estou a morrer deinveja. Quero já outro bebé e quero tê-lo lá.

– Os bebés não nascem no centro – explico. – Todas as consultas são lá, mas o centro estáligado ao Hospital Cavendish.

– O Cavendish? Aquele com camas de casal e listas de vinho? – Sim. – Não consigo evitar um sorriso. – Tens tanta sorte, Bex! E como é a Venetia Carter? – Fantástica! É jovem, incrível e tem ideias realmente interessantes sobre parto e... – Hesito.

– E é uma ex-namorada do Luke. Não é incrível? – Ela é... o quê? – Suze não consegue acreditar nos seus ouvidos. – É ex do Luke. Os dois andaram em Cambridge. – Vais fazer o parto com a ex-namorada do Luke?

Primeiro a minha mãe, agora a Suze. O que se passa com as pessoas? – Vou! – digo, defendendo-me. – Porque não? Isso foi há anos e só durou cinco minutos. E

agora ela está com outra pessoa. Qual é o problema? – Parece-me um bocado... esquisito, não achas? – Não é esquisito! Suze, somos todos adultos. Somos todos maduros, profissionais. Creio que

podemos deixar de lado uma relação antiga e sem importância, não é verdade? – Mas, quero dizer, ela vai... tu sabes! Mexer em ti. Esse pensamento já atravessara a minha mente. Mas, afinal de contas, será pior do que ser o

Dr. Braine a mexer-me? Para ser franca, estou em fase de negação com toda esta história doparto. Espero que inventem um substituto para o parto quando chegar a altura de eu dar à luz.

– Eu ficaria paranoica! – refere Suze. – Uma vez encontrei uma ex do Tarkie... – O Tarquin tem uma ex? – pergunto, perplexa, antes de perceber o que estava a dizer. – Flissy Menkin. Dos Menkin do Somerset, sabes? – Claro – digo, como se fizesse a mínima ideia do que são os Menkin do Somerset. Parecem-me frascos de loiça. Ou um tipo de doença grave. – Eu sabia que ela ia a um casamento no ano passado e praticamente passei a semana inteira a

preparar-me. E olha que eu estava vestida! – Bom, vou depilar as virilhas – digo rapidamente. – E talvez faça cesariana. O caso é que ela

é a maior obstetra do país! Já deve estar habituada, não achas? – Acho que sim. – Suze continua na dúvida. – Mas, mesmo assim, Bex, se fosse a ti,

afastava-me. Volta para o outro médico. – Não quero afastar-me. – Tenho vontade de bater o pé. – Confio totalmente no Luke –

acrescento como se só então me lembrasse. – Claro – diz Suze imediatamente. – Claro que confias. E então?... Foi ele que acabou com

ela ou ao contrário? – Não sei – admito. – Ele não te contou? – Não lhe perguntei! É irrelevante! – Suze começa a incomodar-me com tantas perguntas. –

Adivinha só, ofereceram-me Crème de La Mer no presente de boas-vindas – conto para adistrair. – E um voucher para o Champneys!

– Uuuuh! – Suze anima-se. – Podes levar acompanhante? Não vou permitir que Suze e a minha mãe me deem volta à cabeça. Não percebem nada do

assunto! Luke e eu temos um relacionamento perfeitamente estável, de confiança. Vamos terum bebé.

Sinto-me totalmente segura. No caminho para casa, à tarde, paro por uns momentos na Hollis Franklin só para ver a roupa

de cama de bebé. A Hollis Franklin é uma loja incrível, tem Selo Real e parece que a própriarainha faz compras lá! Passo uma hora encantadora, a olhar para os tecidos com diferentescontagens de fios e, quando chego a casa, já passa das sete. Luke está na cozinha, a bebercerveja e a ver o noticiário.

– Olá! – digo, pousando os sacos de compras. – Comprei uns lençóis na Hollis Franklin parao bebé! – Pego num lençol de berço bordado com uma coroa em cada canto. – Não é lindo?

– Muito giro – concorda Luke, examinando-o. Em seguida, vê a etiqueta de preço eempalidece.

– Meu Deus. Pagaste isto por um lençol de bebé?

– São os melhores – explico. – O tecido é de quatrocentos fios! – O bebé precisa de quatrocentos fios? Já te apercebeste de que ele vai vomitar neste lençol? – O bebé nunca vomitaria num lençol Hollis Franklin! – respondo, indignada. – Sabe muito

bem que é melhor não fazer isso. – Dou uma palmadinha na barriga. – Não é, querido? Luke revira os olhos. – Se tu o dizes. – Larga o lençol. – E o que trazes nesse saco grande? – Lençóis iguais para nós. O edredão vem em separado e as fronhas assim que chegarem... –

Detenho-me diante da sua expressão de assombro. – Luke, o berço vai ficar no nosso quarto.Temos de combinar as cores!

– Combinar? – Claro! – Becky, francamente... – Luke para, atraído pela televisão. – Espera aí, é o Malcolm. –

Aumenta o volume e aproveito a oportunidade para pôr os lençóis Hollis Franklin atrás daporta, para que Luke se esqueça deles.

Malcolm Lloyd é o diretor do Arcodas e está a ser entrevistado na secção de negócios acercado motivo por que planeia apresentar uma proposta para a compra de uma companhia aérea.Luke olha atentamente, com a cerveja na mão.

– Não devia fazer aquele gesto brusco com a mão – digo, vendo também a entrevista. –Parece pouco à vontade. Deveria aprender a falar com os meios de comunicação.

– Já fez o curso – comenta Luke. – Pois olha, foi horroroso. Devias arranjar outra pessoa. – Dispo o casaco, atiro-o para cima

de uma cadeira e massajo os ombros doridos. – Vem cá, querida – diz Luke, olhando para mim. – Eu faço isso. Puxo uma cadeira e sento-me diante dele, e ele começa a massajar os meus músculos

doridos. – Luke, isto faz-me lembrar – digo, continuando a olhar para o Malcolm. – O Iain fala

sempre assim contigo? Os dedos de Luke param de se mover por um instante. – Assim como? – Como falou ontem no carro. Foi tão desagradável. – É só o seu estilo profissional. O Arcodas tem uma cultura de trabalho diferente. – Mas foi muito mau! – Bom, teremos simplesmente de nos habituar a isso. – Luke parece querer defender-se e

acrescenta um pouco irritado: – Agora jogamos com empresas importantes. Todos temos de... –Ele detém-se.

– O que é? – Volto a cabeça, tentando ver a expressão dele. – Nada – diz Luke depois de um momento. – Só estou... a pensar alto. Vamos desligar a

televisão. – Beija-me no alto da cabeça. – Os ombros estão melhor agora? – Muito melhor. Obrigada. Levanto-me, sirvo-me de um copo de sumo de laranja e arando e faço um zapping até

encontrar Os Simpsons. Entretanto, Luke pega no Evening Standard e começa a folheá-lo. Háuma tigela de azeitonas na bancada e passamo-la de um para o outro.

Pronto, não é bom? Uma noite calma em casa. Só nós os dois, descontraídos no nossorelacionamento estável. Sem pensar em antigas namoradas ou assim.

Na verdade, estou tão relaxada que talvez mencione o assunto. Só de modo natural. Para

mostrar que não me importo. – Pois... deve ter sido estranhíssimo para ti, ontem – digo em voz amena. – Encontrares a

Venetia outra vez, depois de tantos anos. – Ahã. – Luke a cena com a cabeça, distraído. – Porque romperam? – pergunto descontraída. – Só por curiosidade. – Sei lá. – Luke encolhe os ombros. – Foi há tanto tempo. Estão a ver? Foi há tanto tempo que ele nem se lembra. É história antiga. Realmente não me

importo com os pormenores sórdidos. Na verdade, vamos falar de outra coisa. Coisas atuais,por exemplo.

– Estavas apaixonado por ela? – ouvi dizer a minha voz. – Apaixonado? – Luke solta uma pequena gargalhada. – Éramos estudantes. Espero que ele aprofunde o tema, mas volta a página do jornal e franze a testa ao ler um

título. «Éramos estudantes» não é a resposta. Abro a boca para perguntar «que quer isso dizer?» Mas, depois de pensar por um momento,

fecho-a de novo. Que ridículo. Até ontem nem conhecia a Venetia Carter e a minha mãe e aSuze deixaram-me completamente paranoica. Claro que ele nunca esteve apaixonado por ela.

Não vou perguntar mais nada sobre esse relacionamento. Nem vou pensar mais nisso. Assunto oficialmente encerrado.

BREVE QUESTIONÁRIO PARA LUKE BRANDON 1. Como descreveria o relacionamento com a sua antiga namorada Venetia? (a) Romance passional, ao estilo Romeu e Julieta (b) Relacionamento muito chato (c) Na verdade, nunca gostei dela (d) Ela assediava-me 2. Em geral, prefere nomes de raparigas que começam por (a) R (b) S (c) V (d) Não sei 3. Já alguma vez esteve apaixonado? Em caso afirmativo, por quantas pessoas? (a) pela sua mulher e somente pela sua mulher, porque ela lhe ensinou o que é de facto o

amor (b) pela sua namorada idiota, Sacha, a cabra que roubou as malas (c) pela sua namorada dos tempos de estudante, Venetia, com quem teve um breve

relacionamento, mas que nunca mencionou, de modo que pode muito bem ter estadoapaixonado por ela

(d) Outras 4. Qual a sua opinião acerca do cabelo comprido ruivo? (a) É um pouco indiscreto e espalhafatoso (b) Abana muito

(Por favor, vire a página)

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros de Finanças Forward House

High Holborn, 394. Londres WC1V 7EX Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 28 de agosto de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigado pela sua carta. Creio que a senhora entendeu mal o significado de «investimentos de ouro». Recomendaria quecomprasse barras de ouro a um corretor recomendado, em vez de, como sugere, «o pendente deestrela-do-mar do catálogo da Tiffany e talvez um anel». Por favor, não hesite em contactar-me de novo, caso precise de mais orientações. Atenciosamente, Kenneth Prendergast Especialista em Investimentos de Família

SETE

Não vou dar o questionário a Luke. Na verdade, deitei-o no lixo por várias razões, entre asquais:

1. Temos um casamento adulto e de confiança, em que um não interroga o outro acerca dacor de cabelo que prefere.

2. Ele não teria tempo para o preencher (em especial a secção «descreva as qualidades quemais admira na sua mulher, utilizando quinhentas palavras»).

3. Tenho coisas muito mais importantes em que pensar. Suze e eu vamos hoje a umagrande feira de bebé em Earl’s Court, onde haverá cerca de quinhentos standes, além debrindes, e um desfile de moda mãe e bebé e a maior coleção de carrinhos de bebé sob omesmo teto em toda a Europa!

Quando saio do metro há já uma multidão a dirigir-se para as entradas. Nunca vi tantoscarrinhos na vida e ainda nem entrámos!

– Bex! Volto-me e vejo Suze, com um fantástico vestido de verão verde-limão, segurando as pegas

do seu carrinho duplo. Wilfrid e Clementine estão maravilhosos, também, com chapéus àsriscas giríssimos.

– Olá! – Corro para ela e dou-lhe um abraço enorme. – Não é fabuloso? – Tenho aqui os nossos bilhetes... – Suze mete a mão na carteira. – Além de vouchers de um

sumo para cada... – O Tarquin ficou com o Ernie hoje? – Não, a minha mãe ficou a tomar conta dele. Vão passar um dia maravilhoso juntos –

acrescenta Suze carinhosamente. – Ela vai ensinar-lhe como se depena um faisão. Não é só o Tarquin. Toda a família de Suze é estranhíssima. Quando entramos na feira, não consigo evitar uma exclamação abafada. O lugar é enorme.

Há fotografias gigantescas de bebés por toda a parte, expositores coloridos e promotoras aentregar sacos. A música de O Rei Leão sai pelos altifalantes e um palhaço com andas fazmalabarismos com bananas de plástico.

– E, então, fizeste uma lista? – pergunta Suze, em tom profissional, enquanto nos metemos nafila.

– Lista? – repito vagamente, não consigo deixar de olhar para os carrinhos de bebé, bolsas defraldas e roupinhas de bebé de toda a gente. Algumas pessoas sorriem ao ver Wilfris eClementine, sentados lado a lado com os seus olhos azuis brilhantes, e eu devolvo o sorriso,orgulhosa.

– A tua lista de coisas para o bebé – explica Suze paciente. – Do que precisas ainda? – Pegano envelope com as entradas. – Cá estamos. A lista do novo bebé. Já tens esterilizador?

– Ah... não. – Fixo os olhos num carrinho vermelho vivo com uma capota incrível às

bolinhas. Ficaria superelegante a passear na King’s Road. – Almofada de amamentação? – Não. – Pensas usar uma bomba elétrica para extrair o leite? – Aii. – Encolho-me ligeiramente. – É preciso? Aah, olha, têm minibotas de cobói! – Bex... – Suze espera que me vire. – Sabes que ter um bebé é mais do que comprar roupas,

não sabes? Tens... expetativas realistas? – Tenho expetativas totalmente realistas! – respondo com ligeira indignação. – E vou

comprar tudo o que está nesta lista. Vou ser a mãe mais bem preparada de todos os tempos.Anda, vamos começar.

Enquanto percorremos os expositores, a minha cabeça gira de um lado para o outro. Nunca vitantas coisas... e roupas de bebé... e brinquedos lindos.

– Precisas de uma cadeirinha para o carro – diz Suze. – Há umas que se fixam no carro eoutras que se prendem em rodas...

– Certo. – Concordo vagamente. Para ser franca, não consigo ficar assim tão entusiasmadacom cadeirinhas para o carro.

– E olha, aqui está, um sistema de esterilização de biberões – refere Suze. Detém-se perto dostande da Avent e pega num panfleto. – Têm para micro-ondas... elétricos... mesmo queamamentes, vais precisar...

A minha atenção foi atraída por um stande chamado Disco Baby. – Olha, Suze! – interrompo. – Perneiras de dança para bebé! – Sim – assente ela. – Queres um esterilizador para quatro biberões, para seis ou... – E guizos em forma de bolas de espelho de discoteca! Suze, olha! – Ah, meu Deus. – Suze explode numa gargalhada. – Tenho de comprar isso para os gémeos.

– Abandona os panfletos da Avent, pega no carrinho duplo e empurra-o. Há sweatshirts «DiscoGirl» e «Disco Boy» e bonezinhos lindos.

– Só queria saber o que vou ter – digo, pegando numa sainha cor-de-rosa e acariciando-a comar desejoso.

– Tentaste a antiga tabela chinesa? – pergunta Suze. – Tentei. Disse que eu ia ter um menino. – Um menino! – O rosto de Suze ilumina-se. – Mas depois encontrei um site chamado «Analise os seus Desejos» e, segundo ele, vou ter

uma menina. – Suspiro, frustrada. – Só queria saber. Suze fica perplexa, depois pega num chapéu. – Compra este. É unissexo. Compro um chapéu e um par das mais fabulosas botinhas kitsch de plataforma, bem como

um roupão miniatura Groove Baby. No stande seguinte, compro uma toalha e uma minibarracade praia para bebé e um móbile do ursinho Pooh com controlo remoto. Estou a ficar muitocarregada, para ser franca, mas Suze enfia simplesmente toda as coisas no carrinho duplo. Oscarrinhos de bebé são muito práticos para fazer compras! Nunca me tinha apercebido.

E temos todo o dia para passar aqui. – Suze, preciso de um carrinho – digo, tomando uma decisão imediata. – Bem sei. – Acena vigorosamente. – O stande da Pram City fica logo aqui, atrás da Zona C.

Provavelmente, vais precisar de todo um sistema para viagem e talvez queiras comprar umcarrinho ultraleve para viajar...

Mal a escuto enquanto me dirijo ao letreiro da Pram City. A entrada está decorada combandeiras e balões e, quando entro, vejo que os carrinhos se estendem à distância como uminterminável jardim de cromados.

– Olá! – digo a um homem de fato e distintivo da Pram City. – Preciso de um carrinhoimediatamente.

– Claro! – devolve-me o sorriso. – Normalmente entregamos em quatro semanas... – Não, preciso de um já – interrompo. – Para levar. Não importa de que tipo. – Ah! – exclama com uma expressão de espanto. – Estes são apenas do mostruário. – Por favor? – Lanço-lhe um sorriso mais cativante. – O senhor deve ter um que possa

vender-me. Só um carrinho? Um velho, de que o senhor já não precise? – Ah... pois – Olha nervoso para a minha barriga. – Eu... vou ver o que posso fazer. Afasta-se e olho em volta para os carrinhos modernos. Suze quase desmaia diante de um

duplo, de última geração, que está sobre uma base especial. E à minha direita uma grávida e omarido empurram uma coisa incrível, acolchoada em couro preto, com apoios para bebidaencastrados.

– Sabia que ias gostar. – A mulher resplandece de prazer. – Claro que gosto. – O homem beija a nuca da mulher, acaricia-lhe a barriga. – Vamos

encomendar um. Sinto uma pontada súbita dentro de mim, quero experimentar carrinhos com Luke. Quero que

os dois, como casal, empurremos carrinhos e que Luke me beije assim. Quero dizer, sei que este é um período de grande movimento para ele e que está ocupado com

o trabalho. Sei que nunca será uma espécie de Homem Novo que conhece todas as marcas defraldas e usa uma barriga falsa de gravidez. Mas mesmo assim. Não quero ter de fazer tudosozinha.

E aposto que ele adoraria aquele de couro preto. Provavelmente, tem até um suporte paraBlackBerry.

– Então, Bex. – Suze aproxima-se, empurrando os gémeos com uma das mãos e o carrinho deúltima geração com a outra. – Achas que preciso de um carrinho novo?

– Sim... – Olho para os gémeos. – O teu carrinho duplo não é praticamente novo? – É, mas, francamente, este aqui é realmente manobrável. Seria muito prático! Acho que

devo comprá-lo. Vê bem, os carrinhos nunca são de mais, não achas? Há uma espécie de desejo nos seus olhos. Desde quando Suze ficou tão viciada em

carrinhos? – Claro – respondo. – Talvez eu também deva comprar um desses! – Boa! – diz Suze, deliciada. – Assim ficaremos a condizer! Experimenta! – Entrega-me o

carrinho e empurro-o um pouco. Devo dizer que é ótimo. – Adoro estas partes de borracha macia na pega – comento, apertando-as. – Eu também! E o design giríssimo das rodas. É exatamente assim que agíamos nas lojas de roupas. Meu Deus, nunca achei que ficaria tão

entusiasmada com um carrinho como fico com um vestido. – Minha senhora? – O vendedor voltou. – Cá estou. Posso deixá-la comprar este modelo hoje.

Setenta libras. Empurra um carrinho antiquado, num tom cinza pouco inspirador, com almofada de renda

cor-de-rosa e manta. Suze olha-o, pasmada. – Não podes meter o bebé nisso!

– Não é para o bebé – digo. – É para as minhas compras! – Atiro todos os sacos lá paradentro e agarro-me à barra. – Assim está melhor!

Pago, arranco Suze da área de alta tecnologia e partimos para a área de alimentação,passando por um monte de standes. Compro uma piscina de plástico, uma caixa de blocos deconstrução, um urso de peluche enorme, e ponho simplesmente tudo dentro do carrinho. Eainda há espaço para mais um monte de coisas. Francamente, há anos que devia ter compradoum carrinho de bebé.

– Vou buscar café – diz Suze quando nos aproximamos da área de alimentação. – Já lá vou ter – respondo, distraída. Vi um stande com cavalinhos de brinquedo, estilo

antigo, simplesmente lindos. Vou comprar um para o bebé e um para cada um dos filhos daSuze.

O único problema é que há uma fila enorme. Manobro o carrinho o melhor que posso,entrando na fila, e apoio-me na barra com um suspiro. Estou bastante cansada, depois de andartanto. À minha frente há uma velha com uma gabardina vermelho-escura que se vira e emseguida faz uma expressão de horror ao ver-me apoiada ao carrinho.

– Deixem esta jovem passar! – exclama ela, batendo nas costas da mulher à frente dela. –Tem um bebé e está grávida! A pobrezinha está exausta, olhem só!

– Ah! – digo, atrapalhada. Todo a gente se afasta, como se eu fosse da realeza, e a mulher dagabardina insiste para que eu empurre o carrinho. – Ah... na verdade, eu não tenho...

– Passe, passe! Que idade tem o bebé? – A velha espreita para dentro do carrinho. – Não vejoo pequeno, com toda essa tralha!

– É... bem... O dono do stande chama-me com gestos de encorajamento. Todos esperam que eu passe à

frente. Tudo bem. Sei que devia ser sincera. Sei disso. Mas a fila é gigantesca e a Suze está à minha espera... e o que importa, realmente, se há um

bebé ou não? – É menino ou menina? – insiste a velha. – É uma... menina! – oiço-me a dizer. – Está a dormir – acrescento rapidamente. – Gostava

de quatro cavalinhos, por favor. – Ah, que coisinha mais linda – diz a mulher, carinhosa. – E qual é o nome? Aah! Nomes! – Tallulah – respondo impulsivamente. – Quero dizer... Phoebe. – Entrego o dinheiro ao dono

do stande, pego nos cavalinhos e lá consigo equilibrá-los no carro. – Muito obrigada. – Sê uma boa menina, Tallulah Phoebe. – A velha faz ruídos com a língua na direção do

carrinho. – Sê boazinha para a tua mãe e para o bebé que vai chegar. – Ah, vai ser! – digo entusiasmada. – Prazer em conhecê-la! Muito obrigada! – E empurro

depressa o carrinho para longe, sentindo a vontade de rir crescer dentro de mim. Volto aesquina e vejo imediatamente Suze ao balcão do café, conversando com uma mulher commadeixas no cabelo, um carrinho estilo off-road e três crianças com blusas iguais, às riscas,presas a ela com trelas.

– Olá, Bex! – grita ela – O que queres tomar? – Pode ser um cappuccino descafeinado e um queque com pedaços de chocolate? – respondo.

– E preciso de contar-te o que aconteceu... – Paro quando a mulher das madeixas se volta. Não acredito.

É a Lulu. Lulu, a horrível amiga de Suze, do campo. Cai-me o coração aos pés enquanto aceno,

animada. O que está ela a fazer aqui? Logo quando nos estávamos a divertir tanto. Agora vêm na minha direção, com todas as crianças atrás como papagaios arrastados pela

praia. Lulu parece uma mãe sensata como sempre, com calças de bombazina cor-de-rosa, blusabranca, brincos de pérola, tudo vindo provavelmente do mesmo catálogo para mães sensatas.

Ah, meu Deus, sei que é horrível da minha parte. Mas não consigo evitar. A Lulu caiu-memal desde a primeira vez em que nos vimos e ela me olhou de cima a baixo porque eu não tinhafilhos. (E também porque tirei o sutiã na frente de todas as crianças para as distrair. Mas euestava realmente desesperada, sabem? E os miúdos não viram nada.)

– Lulu! – Forço um sorriso. – Como estás? Não sabia que vinhas hoje! – Eu mesma não sabia! – A voz da Lulu é tão aguda e afetada que me faz estremecer. –

Ofereceram-me de repente uma oportunidade de divulgação. Para o meu livro novo de culináriapara crianças.

– Pois, a Suze contou-me. Parabéns! – E parabéns para ti! – Lulu olha para a minha barriga. – Va-mos ter de nos encontrar

qualquer dia! Para falar de coisas de bebé! A Lulu sempre foi má e teve atitudes de superioridade em relação à minha pessoa sempre que

estive com ela. Mas, de repente, só porque vou ter um bebé, devíamos ser amigas? – Seria ótimo! – digo, em tom agradável, e a Suze olha para mim de esguelha. – Há uma secção de gravidez no meu livro de culinária... – Lulu enfia a mão na mala e tira de

lá um livro brilhante, ilustrado com uma fotografia na qual ela aparece na cozinha com umabraçada de legumes. – Vou mandar-te um exemplar.

– Fala de desejos e assim? – Tomo um gole de café. – Adoraria algumas receitas de cocktailsnão alcoólicos.

– Dei ao capítulo o nome de «Pense no Bebé». – Franze ligeiramente a testa. – É chocante oque algumas pessoas metem dentro do corpo quando estão grávidas. Aditivos... açúcar...

– Pois. – Hesito com o queque de chocolate a meio caminho da boca, depois, com ar dedesafio, dou-lhe uma dentada. – Hum, nham.

Apercebo-me de que Suze tenta conter o riso. – Os teus filhos não querem um bocadinho? – acrescento, partindo-o em pedacinhos. – Eles não comem chocolate! – responde Lulu rispidamente, parecendo tão horrorizada como

se eu tivesse oferecido cocaína às crianças. – Trouxe-lhes uns snacks de banana seca. – Lulu, querida? – Uma jovem com fones no ouvido e microfone vem à nossa mesa. – Está

pronta para fazer a entrevista para a rádio? E depois gostávamos de tirar uma fotografia suacom todas as crianças.

– Sem dúvida. – Lulu mostra os dentes no seu sorriso cavalar. – Venham, Cosmo, Ivo, Ludo. – Vai, Fúria, vem Brilhante! – murmuro. – Encontramo-nos mais tarde! – diz Suze com um sorriso tenso enquanto se afastam. De

repente sinto-me um pouco envergonhada. A Lulu é amiga da Suze e eu devia fazer umesforço.

Vou ser simpática com ela, decido subitamente. Nem que isso dê cabo de mim. – Então... foi ótimo ver a Lulu! – Tento injetar um pouco de calor na voz. – Ela tem razão,

devíamos encontrar-nos para conversar. Talvez mais tarde para tomarmos um chá. – Não quero. – O tom baixo de Suze surpreende-me. Vejo-a olhar para o cappuccino. De

repente, lembro-me da reação dela em casa da minha mãe, quando falei na Lulu. Aquela tensãono seu rosto.

– Suze, tu e a Lulu desentenderam-se? – pergunto com cautela. – Não exatamente. – Suze não quer levantar os olhos. – Quero dizer... ela fez muito por mim.

Ajudou-me muito, em especial com as crianças... O problema da Suze é que nunca quer ser má. Assim, quando diz mal de alguém, começa

sempre com um pequeno discurso dizendo como a pessoa é maravilhosa. – Mas... – instigo-a. – Mas é tão maravilhosamente perfeita! – Quando Suze ergue a cabeça, tem as faces

totalmente vermelhas. – Faz com que eu me sinta um fracasso total. Principalmente quandosaímos juntas. Tem sempre um risotto feito em casa, ou coisa parecida, e os filhos comem.Nunca são mal-educados e são mesmo inteligentes...

– Os teus filhos são inteligentes! – retruco, indignada. – Todos os filhos da Lulu estão a ler o Harry Potter! – Suze parece desanimada. – E o Ernie

nem consegue falar bem, quanto mais ler. Tirando frases em alemão, de Wagner. E a Lulu estásempre a perguntar-me se toquei Mozart enquanto ele estava no útero, e se já pensei numprofessor particular, e simplesmente sinto-me tão inadequada...

Sinto uma onda de indignação. Como pode alguém atrever-se a fazer com que Suze se sintainadequada?

– Suze, és uma mãe incrível! – digo. – E a Lulu não passa de uma vaca. Apercebi-me desdeque a conheci. Não a oiças mais. E não leias a porcaria do livro de culinária. – Passo o braço aoredor dos ombros dela e aperto-lhos com força. – Se te sentes inadequada, como achas que eume sinto? Nem sei canções de embalar.

– Boa tarde! – A voz amplificada de Lulu explode atrás de nós e voltamo-nos as duas. Lulu está sentada numa plataforma elevada, diante de uma mulher de conjunto cor-de-rosa,

com uma pequena plateia a assistir. Tem dois filhos ao colo e atrás dela há cartazes enormes dolivro com um letreiro a dizer EXEMPLARES AUTOGRAFADOS DISPONÍVEIS.

– Muitos pais têm simplesmente preguiça quando se trata de alimentar os filhos – diz ela,com um sorriso de comiseração. – Segundo a minha experiência, todas as crianças gostam desabores como abacate, peixes de água doce ou uma boa polenta feita em casa.

Suze e eu trocamos olhares. – Tenho de dar de comer aos gémeos – murmura Suze. – Vou fazer isso na zona Mamã e

Bebé. – Faz isso aqui! – protesto. – Eles têm cadeiras altas... Ela abana a cabeça. – De maneira nenhuma, não com a Lulu por perto. E só trouxe dois frascos. Não posso

permitir que ela veja. – Queres ajuda? – Não, não te preocupes. – Ela olha para o meu carrinho com o monte enorme formado pelos

cavalos, a piscina e o urso. – Bex, porque não dás mais uma volta e desta vez procuras obásico? Sabes, as coisas de que o bebé vai realmente precisar?

– Claro, boa ideia. Vou pelos corredores o mais rapidamente que posso, tentando afastar-me da voz irritante da

Lulu. – A televisão é a coisa mais pavorosa – está ela a dizer. – Diria mais uma vez que é pura

preguiça da parte dos pais. Os meus filhos têm um programa de atividades estimulantes,educacionais...

Que mulher idiota. Tentando ignorá-la, pego no guia da feira e estou a tentar orientar-mequando um grande letreiro me atrai a atenção. KITS DE PRIMEIROS SOCORROS, 40LIBRAS. Bem, disto precisamos.

Sentindo-me adulta e responsável, estaciono o carrinho e começo a examinar os kits. Vêm todos em caixas elegantes, com coisas diferentes em secções. Adesivo... rolos de

ligaduras... e lindas tesourinhas cor-de-rosa. Nem acredito que nunca tenha comprado um kit deprimeiros socorros. São fabulosos!

Pego no kit e vou até à caixa, onde um homem de aparência lúgubre e bata branca estásentado num banco. Ele começa a tocar nas teclas da máquina registadora e eu agarro numcatálogo profissional da Medisupply, que é bem chato. Na maior parte, são rolos de fita elásticae fornecimentos industriais de paracetamol e...

Ooh. Um estetoscópio. Eu sempre quis ter um estetoscópio. – Quanto custa o estetoscópio? – pergunto com ar natural. – Estetoscópio? – O homem lança-me um olhar cheio de suspeita. – A senhora é médica? Francamente. Será que só os médicos podem comprar estetoscópios? – Não exatamente – admito por fim. – Mas posso comprar um? – Tudo no catálogo está disponível pela internet. – Encolhe os ombros, de má vontade. – Se

quiser pagar cento e cinquenta libras. Não são de brinquedo. – Sei que não são – digo com dignidade. – Na verdade, acho que cada pai e cada mãe deviam

ter um estetoscópio em casa para uma emergência. E um desfibrilhador – acrescento, voltandoa página. – E... – Paro a meio da frase. Estou a ver a fotografia de uma grávida sorridente com amão na barriga.

Kit de Previsão do Sexo do Bebé Faça um teste simples na privacidade do seu lar. Resultados precisos e anónimos. O meu coração dança uma espécie de tarantela. Eu podia descobrir. Sem ter de fazer outra

ecografia. Sem contar a Luke. – Hum... isto está disponível pela internet também? – pergunto, com a voz meio rouca. – Esses tenho aqui. – Remexe na gaveta e retira uma grande caixa branca. – Certo. – Engulo em seco. – Vou levar um. Obrigada. – Entrego o meu cartão de crédito e o

homem passa-o. – Como vai a pequena Talullah-Phoebe? – pergunta uma voz atrás de mim. É outra vez a

mulher da gabardina vermelho-escura. Tem na mão um cavalinho de brinquedo enrolado emplástico e espreita para o carrinho ainda mais atulhado que estacionei perto do mostruário decaixas de primeiro socorros. – Ela é uma boa menina, não é? Não solta nem um pio!

Sinto uma pontada de alarme. – Ela está, é... a dormir – acrescento depressa. – Será melhor deixá-la em paz. – Deixe-me espreitar! Não sei como ela consegue dormir com todos esses embrulhos no

carrinho. Consegues, Talullah-Phoebe? – cantarola a mulher, pondo para o lado todos os sacosde plástico.

– Por favor, deixe-a em paz! – Vou na direção do carrinho. – Ela é muito sensível... não gosta

de estranhos... – Ela desapareceu! – grita a mulher e levanta-se de um salto pálida de consternação. – O bebé

desapareceu! Só resta a mantinha! Merda. – Ah... – Começo imediatamente a corar. – Na verdade... – Minha senhora, o seu cartão de crédito não funciona – diz o homem da caixa registadora. – Tem de funcionar! – Volto-me, momentaneamente distraída. – Só o recebi na semana

passada... – Raptaram um bebé! Para meu horror, a mulher de gabardina saiu a correr do stande e abordou um vigilante, ainda

com a manta arrendada na mão. – A pequena Talullah-Phoebe desapareceu! Um bebé desapareceu! – Ouviram? – grita, horrorizada, uma loira. – Uma criança foi raptada! Alguém ligue para a

polícia! – Não foi, não! – grito. – Houve um... mal-entendido... – Mas ninguém me ouve. – Estava a dormir no carrinho! – balbucia a mulher da gabardina para quem a quer ouvir. – E

agora ficou apenas o cobertor! Estas pessoas são más! – Um bebé desapareceu! – Levaram-no simplesmente! Oiço a notícia espalhando-se como fogo na palha entre os visitantes. Os pais chamam os

filhos para junto de si, com gritos agudos. Para meu horror, vejo dois seguranças virem emdireção a mim, com os walkie-talkies a crepitarem.

– A esta hora, já lhe devem ter tingido o cabelo e mudado de roupa – diz a loira em tomhistérico. – Deve estar a caminho da Tailândia.

– Minhas senhoras, as entradas da feira foram fechadas assim que recebemos o alerta – dizum segurança, tenso. – Ninguém entra ou sai até encontrarmos o bebé.

Tudo bem, preciso de assumir o controlo. Tenho de dizer que é alarme falso e simplesmenteadmitir que inventei a Tallulah-Phoebe para passar à frente numa fila e tenho a certeza de quetodos vão entender...

Não vão, não. Vão linchar-me. – Passou. A senhora tem o número do PIN? – pergunta o homem da caixa, que parece

totalmente alheio à agitação. Entro em piloto automático e ele entrega-me o saco. – A filha desapareceu... e ela anda a fazer compras? – pergunta a loira, horrorizada. – Pode dar-me uma descrição completa da criança, minha senhora? – pede um dos

seguranças. – A polícia foi informada e mandámos um alerta a todos os aeroportos... Nunca mais vou mentir de novo... Nunca. – Eu... ah... – Nem consigo falar bem. – Provavelmente... devia explicar-vos uma coisa. – Sim? – Os dois olham-me cheios de expetativas. – Bex? – De repente, ouço a voz de Suze. – O que se passa? – Levanto os olhos e ali está ela,

empurrando o carrinho duplo com uma das mãos e com Clementine ao colo. Graças a Deus, graças a Deus, graças a Deus... – Aí estás tu! – digo, arrancando Clementine do colo, Suze, a voz aguda de alívio. – Vem cá,

Tallulah-Phoebe! Abraço Clementine com força, tentando esconder o facto de que ela está a inclinar-se para

fora dos meus braços numa tentativa desesperada de voltar para Suze.

– É a criança desaparecida? – Um segurança olha Clementine de cima a baixo. – Criança desaparecida? – Suze parece incrédula. Em seguida volta-se e vê a multidão em

redor. – Bex, o quê afinal... – Esqueci-me completamente de que tinhas levado a pequenina Tallulah-Phoebe para lhe

dares o lanche! – digo em voz aguda. – Que idiota sou! E toda gente pensou que ela tinha sidoraptada! – Imploro-lhe desesperadamente com os olhos para que ela entre no jogo.

Vejo que está a perceber tudo. É fantástico, Suze conhece-me perfeitamente. – Tallulah-Phoebe? – diz ela por fim, num tom de incredulidade, e eu encolho ligeiramente

os ombros com o rosto envergonhado. – A bebé Tallulah-Phoebe voltou. – A mulher da gabardina espalha alegremente a notícia

entre os visitantes. – Encontrámo-la. – A senhora conhece esta mulher? – O guarda olha para Suze com os olhos semicerrados. – Ela é minha amiga – respondo rapidamente antes que prendam Suze por ter raptado o seu

próprio bebé. – Na verdade, acho que devíamos ir... – Enfio Clementine no meu carrinho, domelhor modo possível, no meio de todos os pacotes, e manobro-o para a posição de partida.

– Mamã! – Clementine ainda está estendendo os braços para Suze. – Mamã! – Ah, meu Deus! – O rosto de Suze ilumina-se como um farol. – Ouviste? Ela disse mamã!

Menina esperta! – Vamos andando – digo depressa aos seguranças. – Muito obrigada pela ajuda, vocês têm

um sistema de segurança fantástico... – Espere um minuto – diz um deles, franzindo a testa, cheio de suspeitas. – Porque é que o

bebé chamou mamã a esta senhora? – Porque... o nome dela é Mamie – respondo, desesperada. – Espertinha, Tallulah-Phoebe.

Tia Mamã! Tia Mamã! Agora vamos para casa... Nem consigo olhar para Suze enquanto nos dirigimos à saída. Pelos altifalantes, o locutor

diz: – E a bebé Tallulah-Phoebe foi encontrada em segurança... – Então, queres contar-me o que se passou, Bex? – pergunta Suze por fim, sem voltar a

cabeça. – É... – aclaro a garganta. – Na verdade, não. Que tal irmos tomar uma chávena de chá?

OITO

Suze e eu passamos o resto do dia juntas, o que é simplesmente maravilhoso. Enfiamos todosos sacos no enorme Range Rover de Suze e em seguida ela dirige-se à King’s Road paratomarmos chá num enorme lugar, ótimo para crianças, com sundaes e tudo o mais. (A partir deagora vou ter sempre lápis de cera na mesa.) Depois vamos à Steinberg & Tolkien, ondecompro um casaco de malha vintage e Suze uma mala de cerimónia, e depois são horas dejantar, por isso vamos ao Pizza on the Park, onde ensaia um grupo de jazz que deixa os gémeosbaterem com os punhos no tambor.

E por fim colocamos os bebés adormecidos no Range Rover e Suze dá-me boleia até casa.São cerca de dez horas quando passamos pela guarita do porteiro e paramos na frente do prédio.Ligo para Luke, pelo telemóvel, pare ele me ajudar a levar todas as coisas para cima.

– Uau – diz ele ao ver o monte de sacos no chão. – Então está tudo? Agora o quarto do bebéestá completo?

– Bem... – Acaba de me ocorrer que não comprei o esterilizador. Nem a almofada paraamamentar ou creme para assaduras. Mas não faz mal. Ainda restam quinze semanas.

Tempo suficiente. Enquanto Luke se esforça para entrar no apartamento com a piscina de plástico, os

cavalinhos e mais seis sacos, pego rapidamente no saco com o Kit de Previsão de Sexo eescondo-o na minha gaveta de roupa interior. Terei de escolher um momento em que ele estejafora de casa.

Suze foi à casa de banho para mudar a fralda a um dos gémeos e, quando saio do quarto, levapelo corredor as duas cadeirinhas do carro.

– Vem beber um copo de vinho – diz Luke. – É melhor ir andando – responde ela, com pena. – Mas aceito um copo de água, por favor. Entramos na cozinha, onde um CD toca baixinho canções da Nina Simone. Está uma garrafa

de vinho aberta na bancada, com dois copos servidos. – Não vou beber vinho – digo. – Não era para ti – corrige Luke, enchendo um copo de água do frigorífico. – A Venetia

passou por aqui há bocado. Sinto um choque de surpresa. Venetia esteve aqui? – Havia mais uns papéis que precisamos de preencher – continua Luke. – De qualquer modo,

tinha de passar por aqui e parou a caminho de casa. – Claro – digo depois de uma pausa. – Foi... simpático. – Na verdade, ela acabou de sair. – Luke entrega o copo a Suze. – Não se cruzaram por coisa

de poucos minutos. Esperem lá. Já passa das dez. Isso significa que ela esteve aqui toda a tarde? Quero dizer, não que me importe, nada disso. Claro que não. Venetia é apenas amiga de

Luke. Uma velha amiga ex-namorada, linda e platónica. Percebo que Suze olha fixamente para mim e, rapidamente, desvio o olhar. – Bex, podes mostrar-me o quarto do bebé antes de eu sair? – pergunta ela com a voz

estranhamente aguda. – Vem. Empurra-me praticamente pelo corredor e entramos no quarto de hóspedes, a que agora

chamamos quarto do bebé, mesmo que já tenhamos mudado de casa quando ele chegar. – E então? – Suze fecha a porta e volta-se para mim, boquiaberta. – O que é? – Encolho os ombros, fingindo que não sei o que ela quer dizer. – Isto é normal? «passar» por casa do ex e ficar a noite toda? – Claro que é. Por que razão não podem pôr a conversa em dia? – Só os dois? A beber vinho? – Suze pronuncia a palavra como um pregador batista. – São amigos, Suze! – digo na defensiva. – Velhos amigos... muito bons amigos...

platónicos. Faz-se silêncio no quartinho. – Pronto, Bex – diz Suze por fim, levantando as mãos em sinal de rendição. – Se tens tanta

certeza. – Tenho! Totalmente, completamente, cem por cento... – Calo-me e começo a mexer num

aquecedor de biberões Christian Dior. Abro e fecho a tampa como se fosse obsessiva-compulsiva. Suze foi até ao cesto de verga para brinquedos e examina uma ovelhinha depeluche. Ficamos algum tempo em silêncio, sem mesmo olhar uma para a outra. – Pelomenos... – digo, por fim.

– O quê? Engulo em seco várias vezes, sem querer admitir. – Bem – digo finalmente, tentando parecer prática. – E se... só hipoteticamente... e se eu não

estivesse segura? Suze levanta a cabeça e olha-me de frente. – Ela é bonita? – pergunta num tom igualmente prático. – Não é só bonita. É estonteante. Tem cabelos ruivos luminosos, olhos verdes incríveis e

braços bem tonificados... – Uma vaca – diz Suze automaticamente. – E é inteligente, e usa roupas fantásticas, e o Luke gosta mesmo dela... – Quanto mais falo,

menos confiante me sinto. – O Luke ama-te! – interrompe Suze. – Bex, lembra-te, tu és a mulher dele. Foste tu que ele

escolheu. Ela é que foi rejeitada. Isto faz com que me sinta melhor. «Rejeitada» faz-me sentir muito melhor. – O que não significa que ela não ande atrás dele. – Suze começa a andar de um lado para o

outro, batendo na ovelha de peluche com ar pensativo. – Temos várias opções aqui. Primeira:ela é realmente só uma amiga e não tens de te preocupar.

– Certo – confirmo, séria. – Segunda: ela veio aqui esta noite para apalpar terreno. Terceira: anda, sem sombra de

dúvida, atrás dele. Quarta... – detém-se. – Qual é a quarta? – Não é a quarta – diz Suze rapidamente. – Acho que é a segunda. Ela veio apalpar terreno.

Ver o que se passa por aqui. – Então... o que faço?

– Deixa-lhe bem claro que estás de olho aberto – Suze ergue as sobrancelhassignificativamente. – De mulher para mulher.

De mulher para mulher? Desde quando Suze é tão sábia e cínica? Parece uma personagem desaia justa a soprar o fumo do cigarro num filme noir.

– Quando vais de novo à consulta? – pergunta. – Sexta-feira que vem. Temos uma consulta para um check-up. – Certo – Suze fala em tom firme. – Vai lá, Bex, e reafirmas o teu direito de posse. – Reafirmo o meu direito de posse? – pergunto insegura. – Como se faz isso? – Não sei se já

reafirmei o meu direito de posse alguma vez na vida. A não ser, talvez, sobre um par de botasna liquidação do Barneys.

– Com sinaizinhos discretos – responde Suze, como quem sabe das coisas. – Mostra que oLuke te pertence. Passa o braço em redor dele... fala da vida fantástica que têm... cortasimplesmente pela raiz qualquer intençãozinha que ela possa ter. E certifica-te que vais comuma aparência fabulosa. Mas não como se te tivesses esforçado para isso.

Sinaizinhos discretos. A nossa vida fantástica. Parecer fabulosa. É possível. – A propósito, como se sente o Luke em relação ao bebé? – pergunta Suze casualmente. –

Está entusiasmado? – Está, acho que sim. Porquê? – Ah, por nada. – Encolhe os ombros. – É que, um dia destes, li um artigo numa revista sobre

os homens que não suportam a ideia de ser pais. Parece que arranjam frequentemente casospara compensar.

– Frequentemente? – repito, consternada. – Com que frequência? – Pois... praticamente metade das vezes. – Metade? – Quero dizer... um décimo – emenda Suze rapidamente. – Na verdade, não me lembro de

qual a percentagem. E tenho a certeza de que o Luke não é desses. Mas, de qualquer modo,talvez valha a pena falar com ele sobre a paternidade. O artigo dizia que alguns homens pura esimplesmente não suportam as pressões e o stresse de ter um filho e as mulheres devem pintarum quadro positivo.

– Certo – concordo, tentando absorver todas as informações. – Claro, é o que farei. E, Suze...– Calo-me, pouco à vontade. – Obrigada por não dizeres «eu bem te disse». Avisaste-me parame afastar da Venetia Carter e... talvez estivesses certa.

– Nunca te diria «eu bem te disse»! – exclama Suze, horrorizada. – Bem sei que não. Mas muita gente fá-lo-ia. – Pois não devia fazer! E, de qualquer modo, talvez tivesses razão, Bex. Talvez a Venetia não

esteja interessada no Luke e tudo seja totalmente inocente. – Suze guarda a ovelha de peluchedepois de lhe dar uma palmadinha na cabeça. – Mas, mesmo assim, eu reivindicaria a posse. Sópara garantir.

– Ah, não te preocupes. – Aceno com a cabeça, decidida. – Farei isso. Suze está certíssima. Preciso de dar o recado a Venetia: Tira as mãos do meu marido. De

modo subtil, claro.

Quando chegamos à clínica, na sexta-feira, levo a minha melhor roupa tipo «tenha um aspetofabuloso sem esforço»: calças de ganga de grávida Seven (esgaçadas), um sensual top vermelho

de tecido elástico e os novos Moschino de salto alto, de arrasar. O que é um pouco exagerado,talvez, mas as calças de ganga compensam. Quando chegamos, a sala de espera estápraticamente vazia, sem nenhuma celebridade à vista, mas não me importo, de tão obcecadaque estou.

– Becky? – Luke olha para a minha mão agarrada à dele. – Sentes-te bem? Pareces tensa. – Ah... bem... são umas preocupações. – Tenho a certeza que sim – assente, compreensivo. – Porque não as contas à Venetia? Esse é o plano geral. Sentamo-nos nos sofás macios, pego numa revista e Luke abre ruidosamente o FT. Estou

para ir à procura do «Horóscopo do seu bebé» quando me lembro das palavras da Suze, ontem.Devia falar com Luke sobre paternidade e esta é a hora perfeita.

– E então... é emocionante, não é? – pergunto, largando a revista. – Tornarmo-nos pais. – Mmmm. – Luke assente e volta uma página. Não parece muito emocionado. Ah, meu Deus, e se Luke se sente secretamente assombrado

por uma vida com fraldas e se refugia nos braços de outra mulher? Tenho de pintar um quadropositivo da paternidade, como disse Suze. Uma coisa mesmo boa... uma coisa emocionante quedesejamos que aconteça depressa...

– Olha, Luke – digo numa inspiração súbita. – Imagina se o bebé ganhar uma medalha deouro nos jogos olímpicos!

– O quê? – Ergue o olhar do FT. – Nos jogos olímpicos! Imagina se o bebé ganhar uma medalha de ouro nos jogos. E nós

seremos os pais! – Olho para ele, à espera de uma reação. – Não seria fantástico? Ficaríamostão orgulhosos!

O meu pensamento ficou totalmente agarrado a essa ideia. Estou a ver-me no estádio em2030 ou sei lá quando, a ser entrevistada por Sue Barker, contando-lhe como sabia que o meufilho estava destinado à grandeza, mesmo no útero.

Luke parece achar divertido. – Becky... será que perdi alguma coisa? O que te faz pensar que o nosso filho vai ganhar uma

medalha de ouro nos jogos olímpicos? – Pode ganhar! Porque não? Temos de acreditar nos nossos filhos, Luke. – Ah. É justo. – Luke concorda e larga o jornal. – Então e que modalidade tens em mente? – Salto em comprimento – respondo, depois de pensar um pouco. – Ou talvez triplo salto,

porque é menos popular. Será mais fácil ganhar o ouro. – Ou luta livre – sugere Luke. – Luta livre? – olho para ele, indignada – O nosso filho não vai fazer luta livre! Pode magoar-

se! – E se o destino dele for ser o maior lutador de luta livre do mundo? – Luke ergue as

sobrancelhas. Por alguns instantes, fico atónita. – Não é – digo por fim. – Eu sou a mãe e sei. – Mister e Mistress Brandon? – chama a rececionista e levantamos os dois olhos. – A doutora

Venetia vai recebê-los agora, por favor. Sinto um tremor nos nervos. Certo, lá vou eu. Reivindicar o meu direito de posse. – Vem, querido! – Passo o braço pelos ombros de Luke e seguimos pelo corredor, eu a

cambalear ligeiramente porque estou um pouco desequilibrada. – Olá, pessoal! – Venetia sai do gabinete para nos receber. Veste um par de calças pretas e

uma camisa cor-de-rosa sem mangas, presa com o cinto de crocodilo preto e brilhante maisincrível deste mundo. Beija-nos duas vezes, nas faces, e eu capto o perfume Allure, da Chanel.– Que bom voltar a vê-los!

– Também é ótimo voltar a vê-la, Venetia – digo, erguendo a sobrancelha num irónico «setens algum plano para me roubar o marido, esquece».

– Fantástico. Venham... – Faz-nos entrar no gabinete. Não sei se ela notou a minha manobra com a sobrancelha. Talvez tenha de ser mais óbvia. Luke e eu sentamo-nos e Venetia empoleira-se na beira da secretária, balançando os sapatos

altos Yves Saint Laurent. Meu Deus, tem um belo guarda-roupa, para uma médica. Ou nemmesmo para uma médica.

– E então, Becky? – Abre os apontamentos e examina-os por momentos. – Em primeirolugar, temos os resultados das análises ao sangue. Estão ótimos... se bem que talvezdevêssemos vigiar essa hemoglobina. Como se sente?

– Ótima, obrigada – respondo imediatamente. – Muito feliz, muito amada... Cá estou, numcasamento maravilhoso, à espera de um bebé... e nunca me senti tão próxima de Luke comoagora. – Estendo a mão e pego na de Luke. – Não concordas, querido? Não estamosparticularmente próximos neste momento? Tanto espiritual quanto mental, emocional e... e...sexualmente!

Ora toma. – Pois... sim – balbucia Luke, ligeiramente perplexo. – Acho que sim. – É ótimo saber, Becky – diz Venetia, lançando-me um olhar estranho. – Se bem que, na

verdade, estava a falar do seu estado físico. Alguma sensação de desmaio, náuseas, esse tipo decoisas?

Ah, pois. – É... não, obrigada. Estou bem. – Então, pronto, vamos lá dar uma vista de olhos. – Indica a maca e, obediente, subo para ela.

– Deite-se, fique confortável... isso que estou a ver é uma pequena estria? – acrescenta, quandolevanto a blusa.

– Uma estria? – Horrorizada, agarro-me ao suporte metálico lateral e esforço-me por mesentar. – Não pode ser! Eu uso óleo especial todas as noites, uma loção de manhã e...

– Oops, foi engano meu! – diz Venetia. – É só uma fibra solta da sua T-shirt. – Ah! – Deixo-me cair num ligeiro choque pós-traumático e Venetia começa a apalpar-me a

barriga. – Se bem que, claro, as estrias normalmente apareçam à última hora – acrescenta em tom

despreocupado. – De modo que ainda as pode ter. As últimas semanas de gravidez podem sermuito cruéis. Vejo as minhas pacientes a bambolear-se, desesperadas para os bebés saírem...

A bambolear-se? – Não vou bambolear-me – digo com um risinho. – Acho que vai, sim. – Sorri também. – É o modo de a natureza a obrigar a diminuir a

velocidade. Sempre achei justo dar às minhas pacientes de primeira viagem uma visão clara darealidade da gravidez. Nem tudo é um mar de rosas, bem sabe!

– Sem dúvida – intervém Luke – e nós agradecemos, não é verdade, Becky? – É – murmuro enquanto Venetia enrola no meu braço o aparelho de tensão. É mentira. Não agradeço. E só para deixar tudo claro como água: nunca vou bambolear-me. – Tem a tensão um pouquinho alta... – Franze a testa para o visor. – Certifique-se de que vai

com calma, Becky. Tente descansar todos os dias ou pelo menos descansar os pés. E tente ficarbastante calma...

Ficar calma? Como será isso possível se ela me diz que vou ter estrias na barriga e que voubambolear-me?

– Agora vamos ouvir... – Passa um pouco de gel na minha, barriga, pega no Doppler edescontraio-me um pouco. Esta é a minha parte predileta de todas as consultas. Ficar deitada aouvir o coração do bebé a fazer «uau, uau, uau» por cima do ruído de fundo turvo. Lembrar quehá uma pessoa pequenina lá dentro.

– Parece-me tudo bem. – Venetia vai até à secretária e rabisca qualquer coisa na minha ficha.– Ah, Luke, agora me lembro, falei com o Matthew um dia destes e ele adorava que nosencontrássemos. E vi aquele artigo do Jeremy, de que falámos... – Remexe na gaveta dasecretária e estende um exemplar velho da New Yorker. – Ele foi longe, desde que saiu deCambridge. Leste o livro dele sobre o Mao?

– Ainda não – responde Luke, dirigindo-se à secretária e pegando também na revista. – Vouler quando tiver tempo, obrigado.

– Deves andar ocupado – diz Venetia, solidária. Em seguida, serve um copo de água dodispensador e oferece-o a Luke. – Como vão os novos escritórios?

– Bem. – Luke acena com a cabeça. – Com um ou outro problema, claro... – Mas é fabuloso teres o Arcodas como cliente. – Apoia-se na secretária, franzindo a testa de

modo inteligente. – Deve ser o caminho a seguir, diversificar para além da área financeira. E ataxa de expansão do Arcodas é fenomenal, estou a ler um artigo a esse respeito no FT. O IainWheeler parece-me impressionante.

Hum... olá? Abandonaram-me totalmente, deitada de costas, como uma carocha voltada de pernas para o

ar. Aclaro ruidosamente a garganta e Luke vira-se. – Desculpa, querida! Sentes-te bem? – Vem rapidamente ter comigo e dá-me a mão. – Desculpe, Becky! – diz Venetia. – Só vim buscar um pouco de água para si. Parece-me um

pouco desidratada. É vital manter os líquidos. Deveria beber pelo menos oito copos de água pordia. Aqui tem.

– Obrigada! – Sorrio também enquanto pego no copo, mas, quando me sento, as suspeitascirculam sombrias na minha cabeça. Venetia está muito à vontade a conversar com Luke.Demasiado. E tentou inventar que eu tinha uma estria, e o modo como lança o cabelo para tráscomo uma modelo de champô num anúncio da televisão. Não é exatamente próprio de umamédica, pois não?

– Pronto! – Venetia está de novo atrás da secretária, rabiscando anotações. – Tem algumapergunta? Algum assunto que queira abordar?

Olho para Luke, mas ele tirou o telemóvel do bolso. Oiço o zumbido fraco do aparelho. – Com licença – diz ele. – Vou dar um salto lá fora. Continuem sem mim. – Levanta-se e sai

da sala, fechando a porta. Então ficamos as duas. De mulher para mulher. Sinto a tensão dentro do gabinete. Pelo menos... do meu lado. – Becky? – Venetia mostra os dentes perfeitamente brancos num sorriso. – Há alguma coisa

de que queira falar? – Na verdade, não – respondo em tom agradável. – Como lhe disse está tudo ótimo. Eu estou

bem... o Luke está bem... o nosso relacionamento não poderia ser melhor. Sabe que este é um

bebé de lua de mel? – Não resisto a acrescentar. – Sim, ouvi contar tudo sobre a vossa maravilhosa lua de mel! – exclama Venetia. – Luke

disse que foram a Ferrara quando estavam em Itália? – Exatamente. – Esboço um sorriso ao recordar. – Foi tão romântico! Partilharemos sempre

essa maravilhosa recordação. – Quando Luke e eu visitámos Ferrara, não conseguimos afastar-nos daqueles frescos

fabulosos. Tenho a certeza de que ele lhe contou – diz com os olhos arregalados e inocentes. Luke e eu não fomos ver nenhum fresco em Ferrara. Ficámos sentados no mesmo restaurante

ao ar livre a tarde toda, a beber prosecco e a comer a comida mais maravilhosa do mundo. E elenunca mencionou que já ali estivera antes, com Venetia.

Mas de modo algum vou admitir isso. – Na verdade, não fomos ver os frescos – digo por fim, examinando as unhas. – O Luke

contou-me tudo sobre eles, claro. Mas disse que achava que estavam a ser sobrestimados. – Sobrestimados? – Venetia parece admirada. – Pois. – Fixo o olhar no dela. – Sobrestimados. – Mas... ele tirou um monte de fotografias deles. – Solta um riso incrédulo. – Falámos sobre

eles durante horas! – Pois, bem, nós falámos sobre eles a noite toda! – contra-ataco. – Sobre como são

sobrestimados. Remexo casualmente na minha aliança de casamento, certificando-me de que o diamante do

anel de noivado brilha sob as luzes. Sou a mulher dele. Sei o que ele acha dos frescos. Venetia abre a boca, depois fecha-a de novo, parecendo confusa. – Desculpem! – Luke entra novamente na sala, guardando o telemóvel, e Venetia vira-se

imediatamente para ele. – Luke, lembras-te daqueles frescos em... – Ai! – agarro-me à barriga. – Ai. – Becky! Querida! – Luke corre para junto de mim, alarmado. – Sentes-te bem? – É só uma pontada. – Esboço um sorriso corajoso. – Tenho a certeza de que não é nada de

preocupante. – Lanço um olhar triunfante a Venetia, que franze a testa como se não conseguisseentender-me.

– Já teve esse tipo de dor antes? – pergunta. – Pode descrevê-la? – Agora passou – digo jovial. – Acho que foi só uma pontada. – Avise-me se tiver outra dor – diz ela. – E lembre-se de ter calma. Essa tensão não deve ser

um problema, mas não queremos que fique mais alta. O seu médico anterior explicou oproblema da pré-eclampsia?

– Sem dúvida – responde Luke, olhando para mim, e eu confirmo com a cabeça. – Ótimo. Bem, cuide-se. Podem ligar-me a qualquer hora. E, antes de irem... – Venetia abre a

agenda. – Precisamos de marcar uma noite para nos encontrarmos. No dia dez.. ou doze? Desdeque eu não esteja a fazer um parto, claro!

– Doze? – Luke assente, consultando o seu BlackBerry. – Está bem para ti, Becky? – Ótimo! – digo docemente. – Lá estaremos. – Fantástico. Vou ligar aos outros. É ótimo contactarmos de novo depois de tanto tempo. –

Venetia suspira e pousa a caneta. – Para ser franca, tem sido muito difícil recomeçar emLondres. Os meus antigos amigos têm a sua vida; mudaram-se. Além disso, nem sempre tenho

horário para conviver e o Justin viaja bastante para fora do país, claro. – O seu sorriso luminosoapaga-se um pouco.

– O Justin é o namorado da Venetia – explica Luke. O namorado. Quase me esquecera de que ele existia. – Ah, sim? – digo educadamente. – O que faz ele? – É financeiro. – Venetia pega numa fotografia emoldurada de um homem com ar enfadonho,

de fato e, enquanto o observa, o seu rosto ilumina-se de novo. – Tem uma energia e umamotivação incríveis, um pouco como o Luke. Algumas vezes sinto-me esquecida quando eleestá a tratar de negócios. Mas o que posso fazer? Amo-o.

– A sério? – pergunto, surpreendida. Percebo então como aquilo soou. – Quero dizer... é...fantástico!

– É ele o motivo de eu ter vindo para Londres. – Continua com os olhos fixos na fotografia. –Conheci-o numa festa em Los Angeles e fiquei simplesmente encantada.

– Mudou-se de tão longe? – pergunto, incrédula. – Só por causa dele? – É isso o amor, não é? Fazemos as coisas mais loucas sem motivo – Venetia levanta a

cabeça, com os olhos verdes a brilhar. – Se o meu trabalho me ensinou alguma coisa, Becky, éque o amor é a coisa mais importante. O amor humano. Vejo-o sempre que coloco um bebé nosbraços da mãe... sempre que vejo um coração novo, de oito semanas, a bater no ecrã e olho parao rosto dos pais... sempre que as minhas pacientes voltam, pela segunda ou terceira vez. É oamor que faz os bebés. E sabe de uma coisa? Nada mais importa.

Boa. Fico desarmada. Afinal, não anda atrás do Luke. Está apaixonada pelo homem com ar enfadonho! E, para ser

franca, aquele pequeno discurso deixou-me praticamente com as lágrimas nos olhos. – Tem toda a razão! – digo, em voz rouca, agarrada ao braço de Luke. – O amor é tudo o que

importa neste mundo louco e conturbado a que chamamos... mundo. Não sei bem se foi uma boa frase, mas que importa? Avaliei muito mal Venetia. Não se trata

de uma devoradora de homens, é um ser humano enérgico, lindo e amoroso. – Só espero que o Justin consiga chegar até ao dia doze. – Finalmente, pousa de novo a

fotografia no seu lugar, com uma palmadinha carinhosa. – Adorava que o conhecessem. – Eu também! – digo com verdadeiro entusiasmo. – Estou ansiosa. – Adeus, Becky. – Venetia lança-me um sorriso caloroso e simpático. – Ah, quase me

esquecia. Não sei se estão interessados, mas uma jornalista da Vogue ligou-me ontem. Vãofazer um artigo enorme sobre as Futuras Mães Mais Deliciosas de Londres e pediram-mealguns nomes. Pensei em si.

– A Vogue? – Olho-a, imóvel. – Talvez não lhe interesse, claro. Isso implicaria uma foto sua no quarto do bebé, uma

entrevista, cabelo e maquilhagem... vão fornecer as roupas de marca, para grávidas... – Encolhevagamente os ombros. – Não sei... se gosta destas coisas.

Estou praticamente ofegante. Se gosto destas coisas? Maquilhagem, roupas de marca e sairna Vogue... se gosto destas coisas?

– Acho que é um sim – diz Luke, olhando-me divertido. – Fantástico! – Venetia toca na mão dele. – Deixem tudo comigo. Eu trato do assunto.

Rebecca Brandon Maida Vale Mansions, 37

Maida Vale Londres NW6 0YF

31 de agosto de 2003 Querida Fabia Gostaria apenas de dizer o quanto gostámos da sua maravilhosamente linda casa. É a KateMoss das casas!!* Na verdade, é tão incrível que acho que merece sair na Vogue, não éverdade? Recordo-me então de um pequeníssimo favor que lhe queria pedir. Por coincidência, vou serentrevistada pela Vogue – e gostaria de saber se poderei usar a sua casa para as fotografias. Também gostaria de saber se poderia colocar alguns objetos pessoais que mostrassem queLuke e eu já morámos aí. Afinal de contas, estaremos a morar quando a entrevista sair... demodo que faz sentido! Em troca, se houver algo que eu possa fazer por si ou algum item de moda que queira que euobtenha, ficarei feliz em ajudar! Com os meus cumprimentos, Becky Brandon * Não em tamanho, obviamente.

Delamain Road, 33 Maida Vale

Londres NW6 1TY

MENSAGEM DE FAX 1/9/03 DE: FABIA PASCHALI PARA: REBECCA BRANDON Becky 1. Mala Chloe Silverado, castanha. 2. Cafetã Matthew Williamson, roxo, com contas, tamanho 38. 3. Sapatos decotados Olly Bricknell, verdes, tamanho 39. Fabia

De: Bibliotecária Escolar Mrs. L. Hargreaves

Escola Oxshott para meninas

Marlin Road Oxshot Surrey

KT22 0JG

3 de setembro de 2003 Querida Becky Que bom ter notícias suas depois de tantos anos e, de facto, lembro-me de si quando aqui

estudava. Quem poderia esquecer a menina que deu início à loucura das «malas da amizade»em 1989?

Adorei saber que vai sair na Vogue – o que é, como diz, uma surpresa. Embora deva dizer-lhe que os professores nunca ficaram na sala dos professores a dizer «aposto que a BeckyBloom nunca vai sair na Vogue».

Sem dúvida, comprarei um exemplar, ainda que ache improvável que a diretora sancione acompra de um Exemplar Oficial Comemorativo para cada aluna, como sugere.

Cumprimentos, Lorna Hargreaves Bibliotecária PS: Ainda tem consigo o exemplar de In The Fifth at Malory Towers? Tem aqui uma multa

bastante grande para pagar.

NOVE

Vou sair na Vogue! Na semana passada, Martha, a jovem que vai escrever o artigo sobre asFuturas Mães Mais Deliciosas, telefonou-me e tivemos uma conversa maravilhosa.

Talvez eu tenha inventado umas pequenas coisas. Como o meu programa de exercíciosdiários. E que tomo sumo de framboesa acabado de fazer todas as manhãs, e que escrevo poesiapara o meu bebé. (Posso sempre tirar poemas de um livro.) Além disso, disse que já morava nacasa da Delamain Road porque parece melhor do que morar num apartamento.

Mas, afinal, vamos morar lá dentro de pouco tempo. A casa já é praticamente nossa. E ajornalista ficou realmente interessada nos quartos do bebé «dele» e «dela». Disse que achavaque seria um ponto muito interessante no artigo. Um ponto muito interessante!

– Becky? Uma voz atravessa-me os pensamentos. Levanto os olhos e vejo Eric a vir na minha direção.

Escondo rapidamente as minhas listas por baixo de um catálogo Maxmara e examino o piso daloja para garantir que não há clientes que eu não tenha notado. Mas não há. Não se pode dizerque as vendas tenham exatamente aumentado nos últimos dias.

Para dizer a verdade, tivemos mais um desastre. Alguém do marketing decidiu dar início auma campanha «boca a boca», contratando estudantes para falar sobre o The Look e distribuirfolhetos em cafés. O que seria fantástico se eles não os tivessem entregado a um gangue deladrões de lojas, que em seguida entraram e fanaram toda a linha de cosméticos BeneFit. Foramapanhados – mas mesmo assim. O Daily World teve um dia em cheio e publicou: «O The Lookestá tão desesperado que agora contrata criminosos condenados.»

O lugar está mais vazio que nunca e, para completar, cinco funcionários demitiram-se estasemana. Não é de espantar que o Eric pareça tão mal-humorado.

– Onde está a Jasmine? – Olha para a secção de Personal Shopping. – Está... no armazém – minto. Na verdade, Jasmine está a dormir no chão de um provador. A sua nova teoria é que, já que

não há nada para fazer no trabalho, bem pode aproveitar o tempo para dormir e ir para asdiscotecas toda a noite. Até agora, não se pode queixar.

– Bom, de qualquer forma, era contigo que queria falar. – Franze a testa. – Acabo de rever ocontrato do Danny Kovitz. É bem exigente, esse teu amigo. Especificou viagem em primeiraclasse, uma suíte no Claridge’s, uma limusina para uso pessoal, stock ilimitado de SanPellegrino «agitada para tirar as bolhas»...

Contenho uma gargalhada. Aquilo é típico do Danny. – É um estilista importante – lembro a Eric. – Todas as pessoas talentosas têm as suas

manias. – «Por toda a duração do processo criativo» – lê Eric em voz alta – Mister Kovitz exigirá

uma tigela de pelo menos vinte e cinco centímetros de diâmetro cheia de gomas. Sem as

verdes.» Mas que absurdo é este? – Eric folheia o documento, exasperado. – De que está ele àespera? Que alguém se sente durante horas a retirar as gomas verdes e a deitá-las fora?

Ooh. Adoro gomas verdes. – Não me importo de tratar disso – respondo em tom natural. – Ótimo. – Eric suspira. – Bom, só posso dizer que espero que todo esse esforço e dinheiro

deem resultado. – Vai dar! – respondo, batendo disfarçadamente na mesa de madeira para dar sorte. – Danny

é o estilista mais quente que existe! Vai aparecer com algo totalmente brilhante, original eatual. E toda a gente virá a correr visitar a loja. Garanto!

Espero estar mesmo, mesmo certa. Enquanto Eric se afasta, pergunto-me se devo ligar a Danny para lhe perguntar se já tem

alguma ideia. Mas, antes que o faça, o meu telemóvel toca. – Estou? – Olá – diz a voz de Luke. – Sou eu. – Ah, olá! – Recosto-me na cadeira, pronta para a conversa. – Olha, acabo de saber como é o

contrato do Danny. Não vais adivinhar o que... – Becky, acho que não vou poder ir esta tarde. – O quê? – O meu sorriso desaparece. Esta tarde é a nossa primeira aula pré-natal. Aquela em que os parceiros do parto também

vão, e fazemos respirações e amizades para toda a vida. E Luke prometeu que iria. Prometeu. – Desculpa. – Parece distraído. – Sei que te disse que iria. Mas há uma crise no trabalho. – Uma crise? – Endireito-me, cheia de preocupação. – Não é uma crise – emenda ele imediatamente. – Só que... aconteceu uma coisa que não é

muito boa. Vai ficar tudo bem. Foi só um pequeno problema. – O que aconteceu? – Só... uma pequena disputa interna. Não vamos falar disso. Mas lamento mesmo por esta

tarde. Eu queria ir. – Parece realmente abalado. Não faz sentido ficar aborrecida. – Tudo bem. – Disfarço um suspiro. – Vou bem sozinha. – Não há ninguém que possa ir contigo? Talvez a Suze? É uma ideia. Afinal de contas, fui parceira do parto de Suze. Somos amigas muito chegadas.

E seria bom ter companhia. – Talvez. – Aceno com a cabeça. – Então e podes ir esta noite? Esta noite vamos sair com a Venetia, o namorado dela e todos os antigos amigos de quando

Luke andava em Cambridge. Estou desejosa; na verdade, vou até arranjar o cabeloespecialmente para a ocasião.

– Espero que sim. Mantenho-te a par. – Está bem. Ligo-te mais tarde. Desligo e já estou a marcar o número da Suze quando me lembro de que ela esta tarde vai

levar o Ernie ao novo infantário. Por isso não poderá ir. Recosto-me na cadeira, pensativa. Eu podia ir sozinha. Quero dizer, não tenho medo de um grupo de mulheres grávidas ou

tenho? Ou então... Pego de novo no telefone e marco um número de cor. – Olá, mãe – digo assim que ela atende. – Vais fazer alguma coisa esta tarde?

A aula pré-natal vai realizar-se numa casa em Islington e chama-se «Escolhas, Poder, MentesAbertas», um nome que acho muito bom. Tenho definitivamente a mente aberta.

Enquanto vou andando em direção à casa, vejo a minha mãe chegar no seu Volvo eestacionar, depois de cerca de oito tentativas, uma pequena pancada num contentor e a ajuda deum motorista de camião que sai da cabina para a orientar.

– Olá, mãe! – grito quando ela por fim sai, parecendo um pouco abalada. Traz vestidas umaselegantes calças brancas, um blazer azul-escuro e sapatos baixos brilhantes.

– Becky! – O seu rosto ilumina-se. – Estás maravilhosa, querida. Vem, Janice! – Bate najanela do carro. – Trouxe a Janice. Não te importas, pois não, querida?

– Sim... não – respondo, surpreendida. – Claro que não. – Ela não tinha nada que fazer e pensamos ir ao Liberty’s depois ver tecidos para o quarto do

bebé. O teu pai pintou as paredes de amarelo, mas ainda não decidimos quanto às cortinas... –Olha para a minha barriga. – Alguma ideia se é menino ou menina?

Lembro-me então do Kit de Previsão de Sexo escondido na minha gaveta de roupa interior,duas semanas depois de ter sido comprado. Passo a vida a ir lá buscá-lo, mas depois perco acoragem e guardo-o outra vez. Talvez precise da Suze como apoio moral.

– Não – respondo. – Ainda não. A porta do passageiro abre-se e Janice sai, arrastando uma peça de tricô. – Becky, querida! – diz ela, sem fôlego. – É precisa trancar as portas, Jane? – Fecha, depois eu tranco – ordena a minha mãe. – Dá uma boa pancada. Vejo uma jovem grávida, de vestido castanho, a tocar à campainha de uma casa logo adiante.

Deve ser ali! – Eu estava a acabar de ouvir uma mensagem do Tom – diz Janice, enfiando o tricô num saco

de palha, juntamente com o telemóvel. – Vou ter com ele mais tarde. Só fala na Jess! É Jessisso, Jess aquilo...

– A Jess? – Olho para ela. – E o Tom? – Claro! – O rosto dela ilumina-se. – Formam um casal lindo. Não quero ficar com

esperanças, mas... – Ora, lembra-te, Janice – diz a minha mãe com firmeza. – Não podes pressionar esses

jovens. A Jess e o Tom andam? E ela nem me contou? Francamente. Na manhã depois da festa,

perguntei o que se passava com o Tom e ela só ficou toda atrapalhada e mudou de assunto. Porisso presumi que a coisa não tinha pegado.

Não consigo deixar de me sentir aborrecida. O único objetivo de se ter uma irmã é ligar paraela e contar sobre o namorado novo e não mantê-la numa ignorância total.

– Então... a Jess e o Tom namoram? – pergunto para ter a certeza. – São muito próximos – confirma Janice com toda a energia. – Muito, muito próximos. E

devo dizer que a Jess é uma bela rapariga. Damo-nos muitíssimo bem! – A sério? – Tento não parecer demasiado surpreendida, mas não consigo ver Janice e Jess

com coisas em comum. – Ah, sim! Todos nos sentimo como uma família. Na verdade, o Martin e eu adiámos o

cruzeiro do próximo verão só para o caso de termos um... – Detém-se. – Casamento –murmura.

Casamento? Tudo bem. Preciso falar com Jess. Já. – Cá estamos – diz a minha mãe quando nos aproximamos da porta, que tem um cartaz a

dizer: POR FAVOR, ENTRE E TIRE OS SAPATOS. – O que acontece exatamente numa aula pré-natal? – pergunta Janice, tirando as sandálias

Kurt Geiger. – Respiração e outras coisas – respondo vagamente. – Preparação para o parto. – Tudo mudou desde o nosso tempo, Janice – intervém a mãe. – Hoje têm treinadores para o

parto. – Treinadores! Como os jogadores de ténis! – Janice parece entusiasmada com a ideia.

Depois o sorriso desvanece-se e agarra-me por um braço. – Coitadinha da Becky. Não faz ideiadaquilo em que se está a meter.

– Certo – digo, um pouco assustada. – Bem... é... vamos entrar? A aula decorre no que parece uma sala de estar normal. Há almofadões dispostos em círculo,

e várias mulheres sentadas neles, com os maridos desajeitadamente empoleirados ao lado. – Olá. – Aproxima-se uma mulher magra, de cabelo escuro e calças de ioga. – Sou a Noura, a

sua professora de pré-natal – diz em voz baixa. – Bem-vinda. – Olá, Noura! – Sorrio e aperto-lhe a mão. – Sou a Becky Brandon. Esta é a minha mãe... e

esta é a Janice. – Ah! – Nora acena com a cabeça como quem entende as coisas e pega na mão de Janice. – É

um verdadeiro prazer conhecê-la, Janice... A senhora é... parceira da Becky? Temos outro casaldo mesmo sexo que vem mais tarde, de modo que, por favor, não se sintam...

Ah, meu Deus! Ela acha... – Não somos lésbicas! – interrompo apressadamente, tentando não rir da expressão perplexa

de Janice. – A Janice é nossa vizinha. Vai depois ao Liberty’s com a minha mãe. – Ah, pronto. – Noura parece um pouco frustrada. – Bom, sejam as três bem-vindas. Sentem-

se. – A Janice e eu vamos buscar café – diz a minha mãe, dirigindo-se a uma mesa do lado da

sala. – Senta-te, Becky querida. – Então, Becky – diz Noura quando me sento cautelosamente num almofadão. – Andamos a

circular pela sala e cada uma apresenta-se. A Laetitia acabou de explicar que vai fazer o partode casa. E você? Onde vai ter o bebé?

– Com a Venetia Carter, no Cavendish – respondo, tentando parecer natural. – Uau! – exclama uma jovem de vestido cor-de-rosa. – Ela não faz o parto a todas as

celebridades? – Faz. Na verdade, ela é minha amiga íntima. Vamos sair juntas esta noite – não resisto a

acrescentar. – E já pensou no parto que vai fazer? – prossegue Noura. – Vou fazer o parto na água com flores de lótus e massagem tailandesa – digo

orgulhosamente. – Maravilhoso! – Noura marca qualquer coisa na sua lista. – Então gostaria, idealmente, de

um parto ativo? – Bom... – Visualizo-me a flutuar numa bela piscina quente, com música a tocar e rodeada de

flores de lótus, e talvez com um cocktail na mão. – Não. Acho que provavelmente será atébastante inativo.

– Quer um... parto inativo? – Noura parece estupefacta. – Sim – confirmo. – Em termos ideais. – E com alívio da dor? – Tenho uma pedra maori especial para o parto – digo, cheia de confiança. – E fiz ioga. De

modo que provavelmente não haverá problema. – Entendo. – Noura parece querer acrescentar mais qualquer coisa. – Claro – diz por fim. –

Bem. Têm à vossa frente formulários para o planeamento do parto e gostaria que todas ospreenchessem. Vamos usar todas as ideias como pontos de discussão.

Ouve-se um murmúrio enquanto toda a gente pega nos lápis e começa a conversar com osparceiros.

– Também adoraria ouvir a mãe da Becky e Janice – acrescenta Noura quando a minha mãe eJanice regressam ao grupo. – É um privilégio ouvir mulheres mais velhas que passaram peloparto e maternidade e podem partilhar a sua sabedoria.

– Claro, querida! Vamos contar tudo. – A minha mãe pega num saquinho de rebuçados dehortelã-pimenta. – Alguém quer?

Pego no meu lápis. E pouso-o de novo. Preciso de mandar uma mensagem rápida à Jess edescobrir o que se passa. Pego no telemóvel, encontro o número dela e digito:

OMG Jess!!! Andas c o Tom??? Depois apago. Entusiasmo a mais. Ficará furiosa e não me vai responder. Olá, Jess. Tudo bem? Bex. Assim é melhor. Carrego no Enviar e volto a atenção para o plano do parto. É uma lista de

perguntas, com espaço para preencher as respostas. 1. Quais são as suas prioridades para o início de trabalho de parto? Penso bem por momentos e depois escrevo «Boa aparência». 2. Como pensa lidar com a dor nos primeiros estágios? (P. ex.: banho quente, balançar-se

de gatas.) Estou quase a escrever «sair para ir às compras» quando o meu telemóvel toca. É um SMS de

Jess! Bem, obrigada. É mesmo de Jess. Duas palavras, sem revelar nada. Mando imediatamente uma mensagem

em resposta: Andas c o Tom?? – Entreguem as folhas, pessoal – Noura bate as palmas. – Podem parar de escrever... Já? Meu Deus, é como uma prova na escola. Sou a última a entregar o papel, enfiando-o no

meio para que Noura não o veja. Mas ela folheia-os a todos, acenando com a cabeça enquantolê. Mas para a certa altura.

– Becky, em «prioridades no início do trabalho de parto», escreveu «boa aparência». – Erguea cabeça. – É uma piada?

Porque está toda a gente a olhar para mim? Claro que não é piada. – Uma pessoa que tenha boa aparência vai sentir-se bem! É um alívio natural para a dor.

Todas devíamos aplicar uma boa maquilhagem e ir ao cabeleireiro... Vejo testas franzidas e oiço tchh na sala, exceto de uma jovem com uma incrível blusa cor-

de-rosa, que acena com a cabeça. – Concordo consigo! – diz. – Prefiro isso a balançar-me de gatas. – Ou ir às compras – acrescento. – Cura o enjoo matinal, de modo que... – Ir às compras cura o enjoo matinal? – interrompe Noura. – Mas o que está a dizer? – Sempre que me sentia enjoada nas primeiras semanas, ia ao Harrod’s e comprava qualquer

coisinha para me esquecer daquilo – explico. – E dava resultado. – Eu costumava encomendar coisas pela internet – concorda a garota de cor-de-rosa. – Talvez pudesse mencioná-lo na lista dos tratamentos – sugiro, solícita. – Depois do chá de

gengibre. Noura abre a boca e fecha-a de novo. Vira-se para outra jovem, com a mão levantada, no

preciso momento em que o meu telemóvel avisa que há outra mensagem. Mais ou menos. Mais ou menos? O que significa isso? Escrevo rapidamente. Janice acha q vcs vão casar! Toco na tecla enviar. Pronto. Isto vai dar-lhe pica! – Muito bem. Vamos continuar. – Noura está de novo no meio da sala. – Depois de ler estas

respostas, está claro que muitas de vocês se preocupam com a ideia do trabalho de parto e decomo o vão enfrentar. – Olha em volta. – A minha resposta é: não se preocupem. Vãoconseguir. Todas vocês.

Há risos nervosos na sala. – Sim, as contrações podem ser muito intensas – continua Noura –, mas os vossos corpos

foram projetados para as suportar. E devem lembrar-se de que se trata de uma dor positiva.Tenho a certeza de que as duas senhoras vão concordar, não é verdade? – Olha para a minhamãe e para Janice, que se agarrou ao tricô e faz clic clic com as agulhas.

– Positiva? – Janice ergue os olhos, horrorizada. – Ah, não, querida. O meu foi uma agonia.Vinte e quatro horas no horrível calor do verão. Não o desejaria a nenhuma de vocês,pobrezinhas.

– E naqueles tempos não tínhamos medicamentos – comenta a minha mãe. – O meu conselhoé tomarem tudo o que puderem.

– Mas há métodos naturais, instintivos, que podem usar – intervém Noura rapidamente. –Tenho a certeza de que descobriram que balançando-se e mudando de posição seria uma ajudanas contrações, não é verdade?

A mãe e Janice trocam olhares duvidosos.

– Não diria tal coisa – responde a minha mãe. – Ou um banho quente? – sugere Noura, com o sorriso já um pouco tenso. – Um banho? – A minha mãe ri alegremente. – Minha querida, quando uma pessoa se sente

numa agonia em que só lhe apetece morrer, um banho não ajuda nada! Pelo modo como Noura respira fundo e fecha os punhos, percebo que se sente um pouco

frustrada. – Mas afinal valeu a pena? A dor acabou por ser um pequeno preço, comparado com o júbilo

da afirmação de uma nova vida? – Bom... – A minha mãe lança-me um olhar duvidoso. – Claro, eu adorei ter a minha

pequenina Becky. Mas fiquei-me por aí. Limitámo-nos as duas a ter só um bebé, não foi,Janice?

– Nunca mais – estremece Janice. – Nem que me pagassem um milhão de libras. Enquanto olho em redor, vejo imóveis os rostos de todas as jovens. E os da maioria dos

homens também. – Ora pronto! – diz Noura, fazendo um esforço óbvio para permanecer agradável. – Muito

obrigada por essas... palavras inspiradoras. – Ora essa! – Janice acena com o tricô, toda satisfeita. – Vamos agora tentar um pequeno exercício de respiração – prossegue Noura – que,

acreditem ou não, vai ajudar nas contrações do início do trabalho de parto. Quero que todas sesentem direitas e façam respirações curtas. Inspirem... expirem... isso mesmo...

Durante essa curta respiração, recebo um toque no telemóvel. O quê??? Ah! Contenho o riso e respondo: É amor? Instantes depois, o meu telemóvel soa mais uma vez com outra mensagem. Estamos com uns problemas. Ah, meu Deus. Espero que Jess esteja bem. Não pretendia meter-me com ela. É um bocado complicado fazer uma respiração curta e mandar mensagens ao mesmo tempo.

Por isso abandono a respiração curta e escrevo: Q problemas? Pq não me contaste? – Para quem estás a mandar mensagens, querida? – pergunta Janice, que também abandonou

a respiração curta e está a olhar para o padrão do tricô. – Ah... para uma amiga – digo em tom leve enquanto chega outra mensagem. A Jess também

deve ter abandonado o que estava a fazer. Não queria incomodar-te, é uma parvoíce.

Francamente. Como pode Jess pensar que me incomoda? Eu quero saber da vida amorosadela. «És minha irmã!!!», começo a escrever quando Noura bate palmas pedindo atenção.

– Descontraiam-se. Agora vamos experimentar um exercício simples, que deve descansar avossa mente. O vosso parceiro vai torcer-vos o braço com força e vocês vão respirar através dador. Concentrem-se, relaxem... Parceiros, não tenham medo de aumentar a pressão! E verãocomo são muito mais fortes do que imaginam! Becky, eu fico consigo, não se importa? –acrescenta, aproximando-se.

O meu estômago estremece de nervoso. Não gosto da ideia de me torcerem o braço. Nemcom força nem sem ela. Mas não posso recusar, toda a gente está a olhar para mim.

– Pois sim – digo, estendendo cautelosamente o braço. – Obviamente, a dor do parto será mais intensa, mas é só para vos dar uma ideia... Agarra no meu antebraço. – Agora respirem... – Ai! – digo quando ela torce de repente o meu braço. – Ai, isso dói! – Respire, Becky – instrui Noura. – Descontraia-se. – Estou a respirar! Aaaaaaaiiiiiiii! – Agora a dor torna-se cada vez mais forte... – Noura ignora-me. – Imagine que a contração

esta a chegar ao auge... Quase não consigo respirar enquanto ela torce ainda mais a minha pele. – E agora está a diminuir... passou. – Solta o meu braço e sorri. – Está a ver Becky? Viu

como conseguiu suportar a dor, apesar dos seus temores? – Uau. – Estou quase sem fôlego. – Acha que aprendeu alguma coisa importante? – Olha para mim com ar de quem sabe o que

está a fazer. – Uma coisa que põe os seus temores em perspetiva? – Acho – aceno afirmativamente. – Aprendi que definitivamente quero uma epidural. – Pede anestesia geral, querida – diz a minha mãe. – Ou uma bela cesariana! – Não pode ter anestesia geral. – Noura encara, incrédula. – Eles simplesmente não dão, sabe

muito bem! – A Becky vai para o hospital mais moderno de Londres! – responde a minha mãe. – Pode ter

aquilo que quiser! Agora, minha querida, se eu fosse a ti, faria a massagem tailandesa e o partona água antes do início das dores, depois a epidural e, em seguida, aromaterapia...

– Trata-se do trabalho de parto! – grita Noura, segurando o cabelo. – Vai ter um bebé e nãopedir a porcaria de um menu para o serviço de quartos.

Faz-se um silêncio escandalizado. – Desculpem – diz, com mais calma. – Não sei o que me deu. Vamos fazer um pequeno

intervalo. Bebem qualquer coisa. Sai da sala e começam as conversas em voz baixa. – Bom! – diz a minha mãe, erguendo as sobrancelhas. – Acho que alguém está a precisar de

fazer respirações curtas! Janice, vamos ao Liberty’s agora? – Deixa-me só acabar esta volta. – Janice mexe freneticamente as agulhas de tricô. – Pronto!

Já está. Vens, Becky? – Não sei – respondo, indecisa. – Talvez deva ficar até ao fim da aula. – Não creio que a Noura saiba do que está a falar! – diz a minha mãe em tom conspirativo. –

Nós contamos-te tudo o que precisas de saber. E podes ajudar-me a escolher uma mala nova! – Então está bem. – Levanto-me. – Vamos!

Quando acabo de fazer compras com a minha mãe e a Janice e saio do cabeleireiro, já passa dasseis. Chego a casa e encontro Luke no escritório. As luzes encontram-se apagadas e ele estásentado, às escuras.

– Luke? – Pouso os sacos no chão. – Tudo bem? Ele assusta-se com a minha voz e levanta a cabeça. Olho para ele, surpreendida. Tem o rosto

tenso e uma ruga funda entre as sobrancelhas. – Tudo bem – diz ele por fim. – Está tudo bem. Não me parece que esteja. Entro no escritório, empoleiro-me na secretária diante dele e

examino-lhe o rosto. – Luke, o que foi hoje a crise no trabalho? – Não é uma crise. – Consegue esboçar um sorriso. – Usei a palavra errada, foi só... um

incidente. Nada importante. Já foi resolvido. – Mas... – E tu como estás? – Acaricia-me o braço. – Como foi a aula? – Ah! – Volto à terra. – É... foi giro. Não perdeste grande coisa. Depois fui fazer compras

com a minha mãe e a Janice. Fomos ao Liberty’s e ao Browns... – Não exageraste, pois não? – Observa-me, preocupado. – Descansaste? Lembra-te do que a

Venetia disse sobre a tua tensão. – Estou ótima! – Levanto um braço. – Nunca me senti melhor! – Bom. – Luke olha para o relógio. – Temos de ir daqui a pouco. Vou tomar um banho rápido

e chamar um táxi – diz num tom de voz bastante animado, mas, quando se levanta, noto-lheuma certa tensão nos ombros.

– Luke... – Hesito. – Está tudo bem, não está? – Becky, não te preocupes. – Luke segura-me nas duas mãos. – Está tudo bem. Todos os dias

temos pequenas crises. É a natureza do trabalho, bem sabes. Lidamos com elas e seguimos emfrente. Talvez esteja mais preocupado que o normal. Neste momento, só estou muito ocupado.

– Bem, está bem – digo, mais calma. – Vai então tomar banho. Luke segue pelo corredor até ao nosso quarto e eu largo os sacos no corredor. Na verdade,

estou muito cansada, depois da tarde com a minha mãe e Janice. Talvez também tome umbanho depois de o Luke acabar. Posso usar o meu gel revitalizante de alecrim e fazer unsrevigorantes alongamentos de ioga.

Ou então posso ir comer um KitKat num instante. Entro na cozinha e pego na caixa quando acampainha toca. Não pode ser o táxi, já.

– Quem é? – pergunto pelo intercomunicador. – Olá, Becky? – responde uma voz cheia de estática. – É a Jess. A Jess? Primo o botão para abrir, perplexa. O que faz aqui Jess? Nem sabia que ela estava em

Londres. – O táxi está marcado para daqui a quinze minutos. – Luke mete a cabeça pela porta da

cozinha, coberto apenas com uma toalha. – É melhor vestires qualquer coisa – digo. – A Jess entrou no elevador. – A Jess? – admira-se Luke. – Não estávamos à espera dela, pois não? – Não. – Ouço o tilintar suave da campainha do apartamento e começo a rir. – Depressa,

veste-te! Abro a porta e vejo Jess que vem de calças de ganga, ténis e uma camisola de alças castanha

justa que parece muito gira à maneira retro dos anos 70. – Olá! – Dá-me um abraço desajeitado. – Como estás, Becky? Estive a conversar com o meu

orientador e pensei em passar por cá. Tentei ligar, mas dava sinal de ocupado. Não háproblema?

Parece ligeiramente nervosa. Francamente! Como se eu fosse dizer: «Há, sim, vai-teembora.»

– Claro! – Abraço-a também calorosamente. – É fantástico ver-te. Entra! – Trouxe um presente para o bebé. – Enfia a mão na mochila e tira de lá um macaquinho

bege com as palavras NÃO VOU POLUIR O MUNDO. – É... giríssimo! – digo, voltando-o nos dedos. – Obrigada! – É feito de cânhamo natural. Ainda estás a pensar num enxoval todo em cânhamo para o

bebé? Todo em cânhamo? Que, diabo, ela... Ah. Talvez eu tenha dito uma coisa assim na festa da minha mãe, só para lhe interromper o

sermão sobre os malefícios do algodão branqueado. – Vou fazer... parte em cânhamo, parte com outros tecidos – digo, por fim. – Pela... hum...

biodiversidade. – Excelente. – Acena com a cabeça. – Estava a pensar dizer-te que posso conseguir

emprestada uma mesa para mudar fraldas. Há uma cooperativa de estudantes que emprestaequipamentos e brinquedos para bebés. Trouxe o número de telefone.

– Certo! – Com o pé fecho rapidamente a porta do quarto do bebé, antes que ela veja o meuequipamento para mudar fraldas estilo Tenda de Circo, com marionetes, que chegou ontem daFunky Baba. – Vou... pensar nisso. Vem tomar qualquer coisa.

– Já fizeste as toalhitas para limpar o bebé? – Jess acompanha-me à cozinha. – Ah... ainda não... – Olho rapidamente à minha volta. – Mas fiz outras coisas. – Pego num

pano da loiça, às riscas, e dou-lhe um nó na ponta. – Este é um brinquedo orgânico feito emcasa – digo casualmente, girando. – Chama-se Nonó.

– Fantástico. – Jess examina-o. – Com um conceito simples. Muito melhor que qualquer lixofeito numa fábrica.

– E estou a pensar... pintar esta colher com tinta natural não tóxica. – Sentindo-me corajosa,retiro uma colher de madeira na gaveta. – Vou pintar-lhe uma cara e chamar-lhe Colherita.

Meu Deus, sou boa nesta conversa da ecorreciclagem. Talvez comece a fazer umanewsletter!

– Bom, deixa-me ir buscar-te uma bebida. – Sirvo-lhe um copo de vinho e sento-me diantedela. – Então, o que se passa? Não pude acreditar quando a Janice me disse que andavas com oTom!

– Bem sei. Sinto muito, devia ter-te contado. Mas tem sido tão... – Cala-se. – O quê? – pergunto, impaciente. Jess olha para o copo, sem beber. – Não está a dar resultado – diz finalmente. – Porquê? Jess cala-se de novo. Não aprendeu ainda a cena de falar sobre os namorados, pois não? – Vá lá – insisto. – O que me disseres não sai daqui. Quero dizer... gostas dele, não gostas?

– Claro que gosto. Mas... – Respira com força. – É simplesmente... – Becky? – Luke enfia a cabeça na porta. – Ah, olá, Jess. Não quero interromper, mas

precisamos de sair já... – Vocês têm planos – diz Jess, endireitando-se. – Vou andando. – Não! – Ponho-lhe a mão no braço. Na única vez em que Jess aparece para me pedir

conselho não vou mandá-la embora. É exatamente isso que imaginei que faríamos quando aconheci. Duas irmãs, indo a casa uma da outra, falando de homens...

– Luke – tomo uma decisão súbita. – Porque não vais andando e eu vou ter contigo ao bar? – Bem, se achas que sim... – Luke beija-me. – Foi bom ver-te, Jess! Sai da cozinha e oiço fechar-se a porta da frente. Abro um minipacote de Pringles. – Então. Gostas dele... – Ele é ótimo. – Jess puxa a pele áspera de um dos dedos. – É inteligente e interessante, tem

bons pontos de vista... e é giro. Bom, isso nem é preciso dizer. – Sem dúvida! – digo depois de uma pausa. Para ser sincera, Tom nunca me pareceu grande coisa. (Apesar da convicção de Janice e de

Martin de que estive perdidamente apaixonada por ele durante toda a vida.) Mas gostos não sediscutem.

– Então o problema é…? – Giro as mãos, instigando-a. – Ele é tão carente! Liga-me dez vezes por dia, manda cartões cobertos de beijos... – Jess

levanta os olhos com uma expressão de incredulidade e não consigo deixar de sentir um poucode pena do pobre Tom. – Na semana passada, tentou tatuar o meu nome no braço. Telefonou-me a dizer que ia fazer isso e eu fiquei tão zangada que ele parou depois do J.

– Ele tem um J no braço? – Não consigo evitar um risinho. – Perto do cotovelo – revira os olhos. – É ridículo. – Bem, talvez estivesse a tentar ter um ar fixe – sugiro. – Sabes, a Lucy quis que ele fizesse

uma tatuagem e ele não fez. Provavelmente, o Tom só queria impressionar-te. – Pois não estou impressionada. E quanto à Janice... – Jess passa os dedos pelo cabelo curto.

– Liga-me praticamente todos os dias, inventando qualquer assunto. Se já pensei no presente deNatal para o Tom? Se quero ir com eles numa viagem para provar vinhos em França? Fiqueifarta. Por isso estou a pensar em acabar com tudo.

Levanto os olhos, consternada. Acabar? Mas e então o bebé que deveria levar as alianças? – Não podes desistir só por causa desses pormenores insignificantes! – protesto. – Quero

dizer, tirando a tatuagem, vocês não se dão bem? Discutem? – Tivemos uma discussão bem grande um destes dias. – Sobre o quê? – Política social. Ah, isso prova que foram feitos um para o outro! – Jess, fala com o Tom – digo num impulso. – Aposto que conseguem resolver a situação. Só

por causa de uma tatuagem... – Não é só isso. – Jess abraça os joelhos. – Há... outra coisa. – O que é? Respirando fundo, percebo. Ela também está grávida. Tem de ser. Meu Deus, que maravilha!

Teremos bebés ao mesmo tempo e serão primos e vamos tirar-lhes fotografias lindas deles abrincar juntos na relva...

– Ofereceram-me um projeto de investigação de dois anos no Chile. – A voz de Jess faz-me

voltar à terra. – No Chile? – Abro a boca consternada. – Mas isso fica... a quilómetros daqui. – Doze mil – acena com a cabeça. – E tu vais? – Ainda não decidi. Mas é uma oportunidade fantástica. Trata-se de uma equipa de que há

anos quero fazer parte. – Claro – digo depois de um curto silêncio. – Bem, então... deves ir. Preciso de a apoiar. Trata-se da carreira de Jess. Mas não consigo deixar de me sentir um

pouco tristonha. Acabo de conhecer a minha irmã há muito perdida e agora ela vai desaparecerdo outro lado do mundo.

– Praticamente já decidi que vou. – Ergue a cabeça e dou por mim a olhar para os seus olhoscastanhos e matizados. Sempre achei que Jess tinha uns olhos lindos.

Talvez o bebé tenha olhos castanhos matizados. – Vais ter de me mandar um monte de fotografias da minha sobrinha ou sobrinho – diz Jess

como se lesse a minha mente. – Para eu o ver crescer. – Claro! Todas as semanas. – Mordo o lábio, tentando digerir tudo. – E... o Tom? – Ainda não lhe contei. – Curva os ombros. – Mas vai significar o fim para nós. – Não necessariamente! Podem ter um relacionamento à distância. Sempre existem os e-

mails... – Durante dois anos? – Bem... – Calo-me. Talvez ela esteja certa. Só se conheceram há algumas semanas. E dois

anos é muito tempo. – Não posso desistir de uma oportunidade destas por causa de um... homem. – Ela parece

discutir consigo mesma. Talvez esteja mais dividida do que parece. Talvez, afinal, estejarealmente apaixonada pelo Tom.

Mas até eu consigo perceber. O trabalho tem sido a vida de Jess. Agora não pode abandoná-lo assim.

– Tens de ir para o Chile – digo com firmeza. – Vai ser incrível para ti. E a coisa com o Tomvai dar certo. Seja lá como for.

As Pringles parecem ter desaparecido, por isso levanto-me e vou ao armário. Abro a porta eexamino as prateleiras, em dúvida.

– Estamos sem salgados... eu não devo comer frutos secos... temos umas bolachas Ritzvelhas...

– Por acaso, trouxe pipocas – comenta Jess, parecendo um pouco corada. – Com sabor acaramelo.

– Tu o quê? – olho-a boquiaberta. – Estão na minha mochila. A Jess trouxe pipocas com sabor a caramelo? Mas... não são orgânicas. Nem nutritivas. Nem

feitas com batatas da cooperativa. Olho atónita enquanto ela enfia a mão na mochila e tira de lá o pacote. Um DVD sai também,

todo brilhante na embalagem de celofane, e ela enfia-o outra vez com as faces ainda maisvermelhas.

Espera aí. – O que é isto? – Apanho-o. – Nove meses? Jess, esse não é o teu tipo de filme! Jess é apanhada totalmente desprevenida.

– Pensei que poderia ser o teu tipo de filme – diz ela por fim. – Em especial agora. – Trouxeste-o para o vermos juntas? – pergunto, incrédula. E, depois de um momento, ela

confirma com a cabeça. – Só pensei... – aclara a garganta. – Se não tivesses nada para fazer. Não posso acreditar como me sinto emocionada. A primeira vez que passámos uma noite

juntas tentei obrigar Jess a assistir a Pretty Woman e, acreditem, não foi um sucesso. Mas aquiestá ela, com pipocas e um filme do Hugh Grant. E a falar-me do namorado. Exatamente comoimaginei que seria ter uma irmã.

– Mas tens de sair. – Jess volta a meter o DVD na mochila. – Na verdade, devias ir já... Sinto uma onda de afeto por ela – e de repente não quero ir a lado nenhum. Porque passaria a

noite num bar apinhado, a falar com um monte de gente cheia de manias formada emCambridge, que eu nem conheço, quando posso passar algum tempo com a minha irmã? Possoconhecer o Senhor Maravilhoso da Venetia noutra altura. Luke não se vai importar.

– Não vou a lado nenhum – digo firmemente e abro o pacote das pipocas. – Vamos ficar aquie divertir-nos.

Temos a melhor das noites. Assistimos ao Nove Meses (Jess resolve quebra-cabeças de Sudokuao mesmo tempo, mas tudo bem, porque estou a ler a revista Hello!) e fazemos umateleconferência com Suze para lhe pedir conselho sobre Tom e depois encomendamos umapiza. E a Jess nem me diz que podíamos fazer a nossa própria piza quase de graça.

Sai lá de casa por volta das onze horas, dizendo que devo estar cansada e vou então para acama perguntando-me a que horas Luke chegará. Ele deve estar a divertir-se também, para ficarfora tanto tempo.

Quando por fim uma réstia de luz da porta cai sobre o meu rosto e me obriga a pestanejar,apercebo-me de que devo ter adormecido, porque poderia jurar que estava a receber um Óscardas mãos da rainha.

– Olá! – digo sonolenta. – Que horas são? – Uma e pouco – murmura Luke. – Desculpa se te acordei. – Tudo bem. – Estendo a mão para o candeeiro e acendo-o. – Então como foi? – Foi ótimo! – Há um inesperado entusiasmo na voz de Luke. Esfrego os olhos e concentro-

me nele. Parece cintilar e tem uma espécie de leveza e animação que não lhe via há semanas outalvez há meses.

– Tinha-me esquecido do muito que tinha em comum com aqueles meus amigos – comenta. –Falámos de coisas em que não pensava havia anos. Política... arte... o meu velho amigoMatthew tem agora uma galeria. Convidou-nos para uma exposição. Temos de ir!

– Uau! – Não consigo deixar de sorrir diante da ansiedade de Luke. – Incrível! – Foi ótimo poder fazer uma pausa nos negócios. – Luke acena pensativo com a cabeça. –

Devia fazer isto mais vezes. Colocar as coisas em perspetiva. Descontrair um pouco. – Começaa desabotoar a camisa. – Então, como foi a noite com a Jess?

– Ótima! Vimos um filme e comemos uma piza. E tenho de te contar as novidades... – Soltoum súbito bocejo. – Talvez amanhã. – Aninho-me de novo nas almofadas e fico a olhar para eleenquanto se despe. – Então, como é o famoso namorado da Venetia? Tão chato como parece nafotografia?

– Não foi – responde Luke.

Deixo de me aninhar e volto a cabeça, surpreendida. O namorado da Venetia não foi? E euque pensei que todo o objetivo da noite era apresentar-nos o Justin, o menino-prodígio dasfinanças.

– Ah, é? Então porquê? – Acabaram. – Luke pendura as calças no cabide. – Acabaram? – Sento-me na cama. – Mas... achei que ela amava o Justin mais do que tudo na

vida. Achei que tinha vindo do outro lado do mundo para ficar com ele e que eram o casal maisfeliz de todo o universo.

– Ela veio. – Luke encolheu os ombros. – E eram. Até há três dias. Ela ficou muito abalada. – Pois – digo após uma pausa. – Estou a perceber. De repente, a noite tomou uma tonalidade totalmente diferente. Já não era o Luke a ser

apresentado ao namorado da Venetia. Era uma Venetia outra vez solteira a chorar nos ombrosde Luke.

– Então... foi a Venetia que acabou com tudo? – pergunto em tom natural. – Ou foi ele? – Não sei qual dos dois acabou. – Luke entra na casa de banho. – Parece que agora ele voltou

para a mulher. – A mulher? – A minha voz dispara como um foguete. – Como a mulher? – A Venetia achava que os dois estavam separados, mas não oficialmente. – Luke abre as

torneiras e mal consigo ouvi-lo. – Coitada da Vem, não tem grande sorte aos amores. Pareceque se apaixona sempre por homens casados ou mete-se em situações complicadas.

Tento manter a calma. Respirações curtas. Não reagir com exagero. – Que tipo de situações? – pergunto como se estivesse pouco interessada. – Ah, não sei. – Luke espreme a pasta de dentes para a escova. – Uma ação de divórcio... Um

escândalo com um médico mais velho no hospital onde trabalhava... Houve um processo emLos Angeles... – Franze a testa e continua a espremer o tubo. – Isto está quase no fim.

Ação de divórcio? Processos? Escândalos? Não consigo responder. Abro e fecho a boca como se fosse um peixinho dourado. O meu

instinto fica em alerta vermelho. Ela anda atrás de Luke. Olho para Luke a lavar os dentes como se o fizesse através dos olhos de Venetia. Tem apenas

vestidas as calças do pijama e está ainda bronzeado do verão. Os músculos dos ombrosondulam ao de leve enquanto escova os dentes. Ah, meu Deus, ah, meu Deus. Claro que elaquer apanhá-lo. Ele é bonito e tem uma empresa multimilionária e os dois tiveram um romancequando eram muito mais jovens. Talvez fosse o primeiro amor dela e ela nunca mais quisesseentregar o coração a outro.

Talvez ela tivesse sido o primeiro amor dele. Sinto uma espécie de vazio no estômago. O que é ridículo, tendo em conta a quantidade de

coisas que o meu estômago contém. – Então! – Tento parecer confiante e tranquila. – Preciso de me preocupar? Luke está a passar água pelo rosto. – Com o quê? – Eu... – Não consigo dizer-lhe. Estarei a dar a entender que não confio nele? Mudo de tática.

– Talvez ela devesse tentar com homens solteiros. Assim a vida não seria tão complicada! –Solto uma pequena gargalhada, mas, quando se volta, Luke franze a testa.

– A Venetia fez algumas... escolhas pouco sensatas. Mas nenhuma foi deliberada ou por

malícia. Só que é uma romântica inveterada. Ele está a defendê-la. Parece-me que estou a começar mal. De repente soa um bip no casaco de Luke. Sai da casa de banho, limpa o rosto e tira o

telemóvel do bolso. – É uma mensagem da Venetia. – Olha e ri-se. – Vê. É uma fotografia desta noite. Pego no telefone e olho para o ecrã. Lá está Venetia, vestida sem ser para o trabalho, com

calças de ganga justas, blusão de cabedal e botas altas, de salto agulha. Tem um sorrisoconfiante e o braço em volta de Luke, como se fosse dona dele.

Destruidora de lares passa pelo meu cérebro sem que eu o possa impedir. Pois bem, este lar não vai ela destruir. De maneira nenhuma. Luke e eu passámos por muita

coisa ao longo dos anos e seria necessário mais do que uma médica de cabelos com volume esaltos agulha para acabar connosco. Tenho cento e dez por cento de confiança.

Comissão Bancária Internacional Percival House, Pisos 16.º e 18.º, Commercial Road, Londres EC1 4UL

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 10 de setembro de 2003 Cara Mrs. Brandon Lamento informá-la de que a sua proposta para fundar um banco on-line, o «Banco de Becky»,foi recusado pela comissão. Houve muitos motivos para a decisão, em particular a sua declaração de que, para se ter umbanco on-line, «só é preciso um computador e um lugar para colocar todo o dinheiro». Desejo-lhe sucesso em qualquer outro empreendimento, mas lembro-lhe que a atividadebancária não será certamente um deles. Atenciosamente, John Franklin Comissão de negócios na internet

DEZ

Talvez eu não esteja cento e dez por cento confiante. Talvez só cem por cento. Ou talvez... noventa e cinco. Passaram-se algumas semanas desde que Luke saiu naquela noite com Venetia e a minha

confiança ficou um pouco abalada. Não que tenha acontecido exatamente alguma coisa.Aparentemente, Luke e eu continuamos felizes como sempre e não há nada de errado. Só que...

Pronto, tudo bem. Eis as minhas provas até agora: 1. Luke recebe constantemente mensagens de texto e responde imediatamente. E sei que são

dela. Nunca mas mostra. 2. Saiu com ela mais três vezes. Sem mim. Uma vez quando eu já tinha combinado encontrar-

me com Suze e ele disse que poderia aproveitar a noite para ver alguns amigos e, por acaso, os«amigos» eram a Venetia. Uma vez com todo o grupo de Cambridge num grande jantarelegante com o antigo orientador, para o qual os parceiros não foram convidados. E outro paraalmoçar, aparentemente porque casualmente ela ia passar «perto do escritório dele». Pois sim.Fazer um parto num prédio de escritórios?

Foi então que tivemos a nossa primeira e minúscula discussão em que eu comentei (num tommuito ligeiro) se não seria exagerado andar tanto tempo com a Venetia? Ao que Lukerespondeu que ela agora estava em baixo e precisava de um velho amigo com quem conversar.«Bom, eu também me sinto em baixo quando vais a festas sem mim!» e Luke respondeu que oencontro com os velhos amigos da universidade tinha sido para ele o melhor acontecimento doano, e que era a sua oportunidade de se desligar dos problemas e que, se eu fosse também,entenderia. Então disse-lhe: «Iria se me convidasses.» E ele replicou que me tinha convidado eeu disse...

Pois. Dissemos algumas coisas. Estas são as provas que tenho. Nem sei porque lhes chamo provas, não que pense que se

passa alguma coisa. Isto é... é uma ideia ridícula. Estou a falar de Luke. Do meu marido. – Não acredito que se passe alguma coisa, Bex. – Suze abana a cabeça e mexe o smoothie de

framboesa com alperce. Veio cá passar a manhã para podermos fazer o teste de previsão desexo, mas até agora tudo o que fizemos foi falar de Luke. Por sorte, as crianças estão na sala deestar, a comer sandes e a ver os Teletubbies no mais completo transe. (Coisa que Suze só asdeixa fazer depois de eu ter feito um juramento de nunca, jamais, contar a Lulu.)

– Também não acredito! – Abro os braços. – Mas eles encontram-se constantemente, e elamanda-lhe mensagens constantemente, e não faço ideia do que falam...

– Reivindicaste o teu direito de posse da última vez que te encontraste com ela? – Suze dáuma dentada na bolacha de chocolate.

– Totalmente! Mas ela nem notou. – Hum. – Suze reflete durante algum tempo. – Já pensaste em consultar outro médico?

– Farto-me de pensar nisso. Mas não creio que faria diferença. Ela já contactou com o Luke,não? Provavelmente adoraria tirar-me do meio.

– E o Luke, o que diz? – Ora. – Começo a brincar com a minha palhinha. – Diz que ela está muito vulnerável e

sozinha desde que terminou com o namorado. Comporta-se como se ela fosse uma vítimatrágica. E fica sempre do lado dela. Um dia destes, chamei-lhe doutora Cruella de Venetia e eleficou mesmo ofendido.

– Cruella de Venetia! – Suze cospe as migalhas da bolacha na bancada. – Essa é boa! – Não é boa! Acabámos por discutir! Ela é uma... presença na nossa vida, mesmo que eu

nunca a veja. – Tens consultas marcadas com ela? – Suze parece surpreendida. – Não tenho há semanas. Nas últimas duas vezes em que estive na clínica, ela estava com

uma paciente em trabalho de parto e fui observada por uma das assistentes. – Anda a evitar-te. – Suze acena com a cabeça com ar entendido e chupa a palhinha, com a

testa franzida. – Bex, sei que é uma coisa pavorosa de sugerir... mas e se espreitasses asmensagens do Luke?

– Já espreitei – admito. – E? – Suze está boquiaberta. – São em latim. – Latim? – Os dois estudaram latim na universidade – digo ressentida. – É uma cena deles. Não

entendo uma palavra. Mas anotei uma. – Enfio a mão no bolso e desenrolo um pedacinho depapel. – Vê.

Olhamos as duas para as palavras em silêncio. Fac me laetam: mecum hodie bibe! – Não gosto do ar disto – afirma Suze por fim. – Nem eu. Olhamos as palavras por mais um momento, depois Suze suspira e devolve-me o papel. – Bex, odeio dizer-te... mas devias ficar alerta. Na verdade, devias contra-atacar. Se ela pode

passar tanto tempo com o Luke, tu também podes. Quando foi a última vez que fizeram umacoisa romântica, só os dois?

– Não sei. Há séculos. – Bem, então! – Suze bate na mesa triunfante. – Vais ao escritório dele e leva-o a almoçar, de

surpresa. Ele vai adorar. É uma boa ideia. Nunca quis incomodar Luke no trabalho porque ele anda sempre muito

ocupado. Mas se a Venetia pode fazê-lo, porque não eu? – Certo, vou tentar – digo mais animada. – E depois conto-te como foi. Obrigada, Suze. –

Termino o smoothie e pouso o copo com um floreado. – Vamos a isto. – Vamos. – Suze olha para mim. – Estás pronta? – Acho que sim. – Sinto um tremor nervoso. – Vamos! Vou buscar o kit de previsão de sexo e retiro o invólucro de plástico, com a mão a tremer um

pouco. Numa questão de minutos vou saber, o que é quase tão emocionante como o parto em

si! Secretamente acho que é um menino. Ou talvez uma menina. – Bex, espera – diz Suze de repente. – Como vais enganar o Luke? – Enganar como? – Na altura do parto! Como vais convencê-lo de que não sabias o sexo? Paro de rasgar o plástico. É um bom argumento. – Vou fingir que tenho uma surpresa – digo finalmente. – Sou ótima a representar, olha. –

Faço uma expressão atónita. – É um... menino! Suze faz uma careta. – Bex, foi terrível! – Não estava preparada – digo rapidamente. – Vamos tentar outra vez. – Concentro-me por

um momento e depois digo ofegante. – É uma menina! Suze abana a cabeça e estremece. – Totalmente falso! Bex, precisas de entrar na personagem. Precisas de usar um pouco de

Método. Ah, não. Lá vamos nós. A Suze fez um curso de teatro, antes da universidade, por isso acha

que é praticamente uma Judi Dench. (Não foi numa escola de teatro de verdade, como aRADA. Era uma particular, que o pai pagou e depois tinha aulas de culinária à tarde. Mas nãomencionemos isso.)

– Levanta-te – ordena. – Faz exercícios para te soltares... – Gira a cabeça e sacode os braços.Relutante, imito-a. – Agora, qual é a tua motivação?

– Enganar o Luke – lembro-lhe. – Não! A tua motivação interior. A tua personagem. – Suze fecha os olhos por um momento

como se estivesse a comunicar com os espíritos. – Acabaste de ser mãe. Estás a ver o bebé pelaprimeira vez. Estás deliciada... e ao mesmo tempo surpreendida... o sexo não é exatamente oque esperavas... nunca ficaste tão surpreendida na tua vida. Tens mesmo de sentir isso...

– É... um menino! – Aperto o peito. Suze agita os braços na minha direção. – Mais, Bex! De novo, com paixão! – É um menino! Meu Deus, é um MENINO!!! – A minha voz ecoa na cozinha e uma colher

cai da bancada para o chão. – Ei, foi bastante bom! – diz Suze impressionada. – Verdade? – Estou ofegante. – É! Vais conseguir enganá-lo. Vamos fazer o teste. Enquanto vou ao lava-loiça buscar um pouco de água, Suze abre a caixa e tira uma seringa. – Ah, olha – diz ela, alegre. – Vais ter de levar uma injeção. – Uma injeção? – Olho em volta, consternada. – «A análise de sangue é rápida e fácil de fazer» – lê Suze em voz alta. – «Peça a um médico,

enfermeira ou outra pessoa qualificada para lhe tirar um frasquinho de sangue de uma veia.»Aqui está a agulha – acrescenta, pegando numa caixa de plástico. – Eu serei a médica.

– Está bem – concordo, tentando esconder as dúvidas. – E... Suze... já deste alguma injeçãoantes?

– Ah, sim – afirma cheia de confiança. – Dei uma injeção a uma ovelha. Anda! – Coloca aagulha na seringa. – Arregaça a manga!

Uma ovelha? – E depois, o que fazemos com o frasco de sangue? – pergunto, tentando ganhar tempo.

– Mandamos para o laboratório – afirma, Suze, lendo a bula. – «Os seus resultados serãoenviados numa embalagem anónima e discreta. Por favor, espere-o dentro de... – volta a página– ... aproximadamente dez a doze semanas.»

O quê? – Dez a doze semanas? – Arranco-lhe a bula da mão. – De que adianta? Até lá já eu terei o

bebé. – Viro as páginas, tentando encontrar alguma «Opção de Entrega Rápida», mas não há.Por fim, desisto e deixo-me cair num banco, desapontada. – Doze semanas. Nem adianta fazer!

Suze suspira e senta-se a meu lado. – Bex, não leste as instruções antes de comprar o teste? Não procuraste saber como

funcionava? – Bem... não – admito. – Achei que seria como um teste de gravidez. Uma fita com uma linha

azul e outra cor-de-rosa. A porcaria do teste que me custou quarenta libras. Que aldrabice! Quero dizer, acham que as

grávidas ficam assim tão desesperadas para saber o sexo do bebé? São só uns meses de espera,pelo amor de Deus. E isso nem importa. Desde que o bebé seja saudável, qual é a...

– Vamos fazer o teste do anel de novo? – Suze interrompe os meus pensamentos. – Ver o queele diz?

– Aaah! – Levanto a cabeça animada. – Sim, vamos. Fazemos o teste cinco vezes e decidimos que as hipóteses são de três a duas para ser um

menino. Assim, fazemos uma grande lista de nomes de meninos e Suze tenta convencer-me a dar-lhe

o nome de Tarquin Wilfrid Susan. Pois, mas acho que não. Quando ela reúne as crianças e, depois de as encher com um monte de cápsulas de óleo de

fígado de bacalhau (para contrapor os efeitos imbecilizantes da televisão), se vai embora, sinto-me muito melhor. Suze tem razão, Luke e eu precisamos apenas de passar mais algum tempojuntos. E pensei num plano muito melhor do que levá-lo para almoçar. Quero dizer, ele temsempre almoços de negócios, chatos de morrer. Quero uma coisa diferente. Uma coisaromântica.

Assim, no dia seguinte, ligo do trabalho para a Food Hall e encomendo um cesto depiquenique com todos os petiscos prediletos de Luke. Já falei com a Mel, a secretária dele, enão há qualquer compromisso marcado para a hora do almoço. (Não lhe disse por que razão lheperguntava, pois ela não seria capaz de manter segredo.) O meu plano é surpreendê-lo e fazerum piquenique na sala dele, e vai ser uma coisa íntima e maravilhosa! Pedi até que incluíssemuma garrafa de champanhe, uma toalha de xadrez e um candelabro de plástico, para«piquenique», da Homewares, só para criar ambiente.

Quando à hora do almoço saio de casa em direção ao escritório de Luke sinto-me muitoentusiasmada. Há séculos que não fazemos uma coisa espontânea! Além disso, não vou àBrandon Communications há semanas e estou ansiosa para ver toda a gente. Tem havido umatremenda agitação na empresa desde que conseguiram a conta do Arcodas. O Grupo Arcodas égigantesco e muito diferente de todos os clientes da área financeira com quem habitualmentelidam e é o maior desafio que enfrentaram até agora. (Sei disso porque ajudo Luke a escreveros discursos motivacionais.)

Mas, afinal de contas, como seria a vida sem novas aventuras e novos sonhos? A BrandonCommunications é a melhor do ramo, cada vez mais forte e dinâmica, a prosperar com novosempreendimentos. Juntos podem enfrentar qualquer desafio, encará-lo e vencê-lo. Como

equipa. Como família. (Esta parte escrevi eu.) Chego pouco antes da uma hora e sigo pelo átrio de mármore até chegar a Karen, a

rececionista que fala com a sua colega Dawn, em voz baixa, e está corada e com ar preocupado.Espero que não haja problemas.

– Não está certo – oiço-a dizer, em voz contida, enquanto me aproximo da mesa. – Não estácerto. Ninguém devia comportar-se assim, sendo chefe ou não. Sei que sou antiquada...

– Não és – interrompe Dawn. – Trata-se do respeito pelos outros seres humanos. – Respeito. – Karen acena vigorosamente com a cabeça. – Como se sente ela, coitada... – Viste-a? Desde... – Dawn para de um jeito significativo. Karen abana a cabeça. – Ninguém a viu. Acompanho a conversa com leve inquietação. Do que estarão a falar? Quem será «ela»? – Olá! – digo e as duas dão um salto. – Becky! Valha-me Deus! – Karen parece agitada ao ver-me. – O que…? Sabíamos que

vinha hoje? – Começa a folhear os papéis em cima da mesa. – Dawn, está na agenda? Na agenda? Desde quando tenho de marcar hora para falar com o meu marido? – Só pensei em fazer uma surpresa ao Luke. Ele está livre na hora do almoço, já verifiquei.

Por isso pensei em fazer um belo piquenique na sala dele! – Faço um sinal com a cabeça emdireção ao cesto que trago pendurado no braço.

Espero que me digam: «Que ideia maravilhosa!», mas, pelo contrário, Karen e Dawnparecem um pouco nervosas.

– Claro! – diz Karen finalmente. – Bem. Vamos só... ver se... – Ela prime uns botões doPBX. – Olá, Mel? Aqui é a Karen, da receção. A Becky está aqui. A Becky Brandon. Ela veio...fazer uma surpresa ao Luke. – Segue-se um longo silêncio durante o qual Karen ouveatentamente. – Sim. Sim. Farei isso. – Levanta a cabeça e sorri. – Sente-se, Becky. Já vemalguém falar consigo.

Sentar? Alguém vem falar comigo? Que diabo aconteceu a esta gente? – Porque não subo já? – sugiro. – Nós... não sabemos bem onde está o Luke. – Karen não sabe definitivamente o que há de

fazer. – Provavelmente será melhor... – Aclara a garganta. – O Adam já desce. Não acredito. O Adam Farr é o chefe de comunicações da empresa, o fulano que chamam

sempre que há situações complicadas. O Luke diz que o Adam é um especialista consumadoem «manobrar» pessoas.

Estou a ser manobrada. Por que razão estou a ser manobrada? O que se passa? – Sente-se, Becky! – diz Karen. Mas não me mexo. – Não pude deixar de vos ouvir – digo com ar natural. – Há alguma coisa errada? – Claro que não! – A resposta de Karen é demasiado rápida, como se estivesse à espera de

que eu perguntasse. – Estávamos a falar sobre... uma coisa que passou na televisão ontem ànoite. Não foi, Dawn?

Dawn concorda, mas os seus olhos parecem agitados. – E como tem passado, Becky? – pergunta Karen. – Bem, não é verdade? Tento pensar numa resposta natural, simpática – mas como? Toda esta conversa é falsa.

Neste momento, a porta do elevador abre-se e Adam Farr sai. – Rebecca! – Traz no rosto o seu sorriso corporativo e enfia um BlackBerry no bolso. – Que

prazer em vê-la!

Este tipo pode ser o melhor «manobrador» da empresa. Mas não me vai enganar. – Olá, Adam – respondo quase bruscamente. – O Luke está por aí? – Está a acabar uma reunião – responde Adam sem se desmanchar. – Vamos lá acima tomar

um café, sei que vão todos ficar entusiasmados por saber que cá veio. – Que reunião? – interrompo e juro que vejo Adam estremecer. – Sobre finanças – diz ele depois de uma ínfima pausa. – Acho que muito chata. Vamos? Adam leva-me até ao elevador e subimos algum tempo em silêncio. Agora que estou ao lado

dele, deteto sinais de tensão por baixo dos seus confiantes modos profissionais. Está comolheiras e bate com as pontas dos dedos no mesmo padrão ritmado como se se tratasse de umtique nervoso.

– Então... como vai a vida? – pergunto. – Vocês devem andar mesmo ocupados com aexpansão e tudo mais.

– Sem dúvida – confirma. – E é divertido trabalhar em todos os diferentes projetos do Arcodas? Silêncio. Vejo que os dedos de Adam batem mais depressa e com mais força. – Claro – diz por fim e acena com a cabeça. A porta do elevador abre-se e faz-me sair antes

que eu possa dizer mais alguma coisa. Alguns funcionários da Brandon Communications estão ali, à espera dos elevadores, e eu

sorrio e digo «Olá!» para os rostos que conheço – mas ninguém me retribui os sorrisos. Pelomenos de uma forma genuína. Todos parecem admirados de me ver, aparecem alguns dentescom ar falso e duas pessoas dizem «Olá, Becky» e depois baixam os olhos, atrapalhadas. Masninguém para para falar comigo. Nem pergunta pelo bebé.

Porque será que estão todos tão esquisitos? Perto do dispensador de água, vejo até duasjovens a falar em voz baixa e a olhar para mim quando acham que não estou a ver.

Sinto o estômago às voltas. Ah, meu Deus. Será que fui totalmente ingénua? O que sabem eles? O que terão visto? Tenho uma visão súbita do Luke a conduzir a Venetia

pelo corredor até ao seu gabinete, a fechar a porta e a dizer: «Por favor, não nos incomodemdurante uma hora...»

– Becky! – A voz ressoante de Luke faz-me dar um pulo. – Sentes-te bem? O que estás aqui afazer? – Vem na minha direção pelo corredor, flanqueado por Gary, o seu adjunto, e por umfulano que não conheço, e várias pessoas atrás. Todos parecem bastante tensos.

– Estou bem! – respondo, tentando parecer animada. – Só pensei... em fazermos umpiquenique no teu gabinete.

Dito assim, na frente de todos os funcionários, parece uma coisa realmente idiota. Sinto-me uma inocente, com a porcaria do cesto de verga na mão. Tem até uma fita cor-de-

rosa atada na asa, que eu devia ter arrancado. – Becky, eu tenho uma reunião. – Luke abana a cabeça. – Sinto muito. – Mas a Mel disse-me que não tinhas nada marcado! – comento em voz mais aguda do que

pretendia. – Disse que estavas livre! Gary e os outros entreolham-se e afastam-se, deixando-nos sozinhos. Sinto nas faces um

formigueiro de humilhação. Mas porque me estarei a sentir tão idiota na frente de toda a gente,só porque vim ver o meu marido?

– Luke, o que se passa? – As palavras saem-me da boca antes que o possa impedir. – Toda agente olha para mim de um modo esquisito. Mandaste o Adam lá abaixo para me «manobrar».Há qualquer coisa que não está bem, eu sei que há!

– Becky, ninguém está a manobrar-te – responde Luke, paciente. – Ninguém está a olharpara ti de uma maneira esquisita.

– Está sim! É como no filme A Invasão dos Violadores! Ninguém sequer me sorri! Todosparecem tão tensos e stressados...

– Estão preocupados, só isso. – Apesar do seu verniz de tranquilidade, Luke parece abalado.– Estamos todos a trabalhar muito neste momento, inclusivamente eu. Tenho mesmo de ir. –Beija-me. – Faremos o piquenique em casa, sim? O Adam vai chamar um carro para te levar.

E, no minuto seguinte, desapareceu no elevador, deixando-me sozinha com o cesto epensamentos que saltam, inquietos.

Uma reunião. Que reunião? Por que razão a Mel não tinha conhecimento dela? Visualizo-o agora a correr para um restaurante onde Venetia o espera, com um copo de

vinho, enquanto todos os empregados a olham, admirando-a. Ela levanta-se, os dois beijam-se eele diz: «Desculpa o atraso, a minha mulher apareceu...»

Não. Para com isso. Para, Becky. Mas não consigo. Os pensamentos amontoam-se na minha cabeça, mais densos e mais

rápidos, como numa tempestade de neve. Agora encontram-se sempre à hora do almoço. Todosos funcionários do Luke sabem. Por isso a Karen e a Dawn estavam tão atrapalhadas, por issotentaram livrar-se de mim...

O outro elevador espera com as portas abertas e, num impulso, entro. Chego ao andar térreo esaio do átrio, o mais rapidamente que posso, ignorando a chamada de Karen e Dawn, mesmo atempo de ver Luke a ser levado pelo motorista da empresa no Mercedes. Chamo freneticamenteum táxi, entro e largo o cesto no banco.

– Para onde? – pergunta o motorista. Bato com a porta e inclino-me para a frente. – Está a ver aquele Mercedes ali à frente? – Engulo em seco. – Siga-o.

Não acredito que estou a fazer isto. A seguir Luke pelas ruas de Londres. Enquanto seguimospela Fleet Street com o Mercedes à vista, sinto-me dentro de um filme qualquer. Até dou pormim a olhar pelo vidro traseiro para ver se não há bandidos a perseguirem-me.

– É o seu namorado, não? – pergunta subitamente o motorista no seu forte sotaque do sul deLondres.

– Marido. – Foi o que pensei. Tem outra mulher, é? Sinto uma pontada horrível no peito. Como saberá? Será que pareço uma esposa enganada? – Não sei – admito. – Talvez. É o que quero descobrir. Recosto-me no banco e vejo um grupo de turistas acompanhando um guia pela rua. Então

ocorre-me que o motorista de táxi deve ser especialista em pessoas que seguem o companheiropara comprovar o adultério. Provavelmente está habituado a levá-las! Num impulso, inclino-mepara diante e faço deslizar a divisória.

– O senhor acha que eu devia confrontá-lo? O que faz a maioria das pessoas? – Depende. – Chegamos a uma zona engarrafada e o motorista volta-se para mim. Tem um

rosto comprido de cão pisteiro, olhos tristes. – Depende se desejar um casamento aberto efranco.

– Quero! – exclamo.

– É justo. O risco é que, se os apanhar em flagrante, pode lançá-lo nos braços da outra. – Pois – digo com ar de dúvida. – Então... qual é a outra opção? – Fingir-se cega e viver uma farsa durante o resto da vida. Nenhuma opção parece muito boa. Seguimos agora pela Oxford Street, lentamente por entre autocarros e peões. Estico o

pescoço, examinando a rua quando, de repente, vejo o Mercedes de Luke voltar numa rualateral.

– Ali! Eu vi! Ele foi por ali! – Eu vi. O motorista muda habilmente de faixa e, alguns instantes depois, entramos na mesma rua

lateral. O Mercedes está no fim, a voltar a esquina. As minhas mãos começam a suar. Quase parecia um jogo quando chamei o táxi. Mas agora

isto é sério. A qualquer momento, o carro dele vai parar, ele vai sair e... e depois, que vou eufazer?

Circulamos pelas ruas estreitas do Soho. É um dia luminoso e frio de outono e as pessoasmais corajosas estão sentadas nas esplanadas, com chávenas de café. De repente, o motoristatrava com força e para atrás de uma carrinha.

– Pararam. Olho, e vejo quase sem fôlego, o Mercedes parar do outro lado da rua. O motorista abre a

porta do passageiro e Luke sai sem sequer olhar na nossa direção. Consulta um pedaço depapel, depois entra por uma porta de aparência pouco saudável. Toca à campainha, abrem uminstante depois, e ele entra. Ergo o olhar até à velha placa pendurada numa janela do primeiroandar: QUARTOS.

Quartos? Luke alugou quartos? Sinto como se algo me apertasse o peito com força. Alguma coisa se estava a passar. A

Venetia está lá em cima à espera dele com um baby-doll debruado a pele. Mas porquê num quarto sujo no Soho? Porque não no Four Seasons, pelo amor de Deus? Porque seria visto. Veio aqui porque este lugar fica fora de mão. Tudo faz sentido... – Minha senhora? – Através de uma névoa, percebo que o motorista está a falar comigo. – Sim? – consigo responder. – Quer ficar aqui sentada à espera? – Não! – Pego no cesto de piquenique e abro a porta. – Obrigada. Eu... não se incomode.

Muito obrigada. – Espere um momento. – Sai e oferece-me a mão para me ajudar a sair do táxi. Remexo na carteira e dou-lhe um maço de notas sem nem mesmo as contar. O motorista

suspira, retira umas notas e entrega-me o resto. – Não está habituada a este jogo, pois não? – Na verdade, não. – Precisa de mais ajuda... – Enfia a mão no bolso e retira de lá um cartão de visita cinzento. –

O meu irmão Lou. Faz trabalhos para advogados de divórcios. Talvez queira arranjar um. Paragarantir o seu bem-estar e o da criança.

– Claro. Obrigada. – Guardo o cartão, praticamente sem perceber o que estou a fazer. – Boa sorte! – O motorista volta ao carro, ainda a abanar a cabeça e vai-se embora. Estou parada diante do prédio com a placa «Quartos». Podia tocar à campainha para ver o

que acontece.

Não. E se ela atende? De repente sinto as pernas bambas. Preciso de me sentar. O rés do chão do prédio é uma

gráfica e dou por mim a entrar e a atirar-me para cima de uma cadeira. O que vou fazer? Oquê?

– Olá! – Uma voz faz-me dar um salto, volto-me, e vejo um homem animado, com umacamisa às riscas, de manga curta. – Está interessada em imprimir alguma coisa? Temos umaoferta especial para cartões de visita. Veludo, laminado, texturizado...

– Ah... obrigada. – Aceno afirmativamente, tentando livrar-me dele. – Aqui tem! – O homem entrega-me um livro de amostras e eu começo a folhear, sem ver. Talvez devesse subir e... e entrar de repente. Mas e se realmente encontrar os dois juntos? Volto as páginas, cada vez mais nervosa. Não consigo acreditar que isto me esteja a

acontecer. Não acredito que estou aqui, no meio do Soho, e o meu marido lá em cima comoutra mulher.

– Aqui está o nosso formulário. Se a senhora preencher... – O homem voltou com umapapeleta e uma caneta, que me estende. Como navego com o piloto automático, aceito eescrevo em cima «Bloomwood Inc».

– Que tipo de empresa é a sua? – pergunta o homem para meter conversa. – Ah... de janelas de vidros duplos. – Janela de vidros duplos! – O homem franze a testa, pensativo. – Eu sugeria um belo cartão

laminado, branco, com borda. Com o endereço aqui e o lema da empresa aqui... têm um lema? – «Para... para todas as vítreas necessidades» – oiço-me a dizer. – Londres, Paris, Dubai. Não faço ideia do que digo. As palavras saem-me da boca. – Dubai! – O homem parece impressionado. – Aposto que há muitas janelas por lá. – Há, sim. – Aceno com a cabeça. – É a capital do mundo das janelas. – Ora, e eu que nunca soube disso! – diz o homem, cheio de interesse, quando me endireito. Acabei de ouvir um barulho tipo passos trovejantes. Alguém desce a escada. Luke. Tem de

ser. Só que... foi um pouco rápido de mais, não foi? – Pois sim... muito obrigada! Vou pensar... – Devolvo a papeleta ao homem e saio para a rua

a correr. Na minha frente, a porta castanha abre-se lentamente e escondo-me a toda a pressaatrás de uma pequena árvore.

Todo o meu corpo está rígido de pavor. Sinto o sangue a latejar nos ouvidos. Calma. O quequer que aconteça, com quem quer que ele esteja...

A porta abre-se – Luke sai seguido por dois homens de fato. – Vamos discutir isso ao almoço – diz. – Há alguns clientes que creio que podem beneficiar

com essa abordagem. Ele não está com a Venetia. Ele não está com a Venetia! Sinto vontade de dançar no passeio. Invade-me uma onda de alívio. Como pude pensar que

ele andaria a fazer alguma coisa? Sou tão paranoica! Tão idiota! Vou para casa e, a partir deagora, vou confiar totalmente...

– Mistress Bloom? O fulano da gráfica saiu e olha para mim, abrigando os olhos do sol. Raios. Talvez esta

árvore não tenha sido um esconderijo muito bom. Esqueci-me de que a barriga iria projetar-se. – Becky? – Luke volta-se e olha-me, perplexo. – És tu? Sinto as faces a ficarem cor de beterraba quando os três homens me olham.

– Ah... olá! – digo alegremente. – Fiz uma montagem com uma sugestão daquele cartão de visita, quer ver? – O homem da

gráfica avança na minha direção. – Becky, o que fazes aqui? – Luke aproxima-se da árvore. – Só... umas compras! Que coincidência! – Como disse, Mistress Bloom, recomendo um acabamento laminado. – O homem da gráfica

continua a falar, que porcaria. – Mas é mais caro, por isso coloquei uma lista de opções. – Obrigada! Na verdade, o meu marido está aqui, de modo que... mais tarde falo consigo. – Ah! – O homem da gráfica sorri a Luke. – Prazer em conhecê-lo. O senhor também

trabalha com janelas de vidro duplo? – Não, não trabalha – interrompo-o desesperada. – Muito obrigada. Adeus! Por fim, para meu alívio, o tipo da gráfica recua para a sua porta e há uma pequena pausa,

cheia de curiosidade. – Trabalho com janelas de vidro duplo? – pergunta Luke por fim. – Ele... fez uma confusão qualquer. – Enfio o projeto de cartão na carteira. – E então, o que

estás a fazer aqui? – Uma reunião com alguns possíveis especialistas em contactos com meios de comunicação

social para a empresa. – Luke continua perplexo. – Deixa-me apresentar-te o Nigel e o Richard.A minha mulher, Becky.

– Muito prazer em conhecê-la, Becky – diz Nigel, apertando-me mão. – Pelo que soubemos,foi a senhora que identificou a necessidade de um treino para lidar com os meios decomunicação social. O Luke disse que não ficou impressionada com o desempenho de umcliente.

– Ah, pois! – Sinto-me um pouco emocionada. Não sabia que o Luke aceitara o meuconselho, muito menos que falara dele a outras pessoas.

– Desculpe o nosso pouco sofisticado escritório – intervém o outro homem. – Acabámos demudar para cá.

– Nem tinha reparado! – comento com um risinho agudo. – De qualquer modo, tenho de ir.Só estava de passagem...

– Passa uma boa tarde. – Luke beija-me. – Passarei. – Seguro-lhe o braço por momentos. – Será que podemos fazer o piquenique mais

tarde? Luke estremece. – Não, sinto muito. Devia ter-te dito, vou voltar tarde esta noite. Vou jantar com um cliente

novo. – Ah! – Não consigo evitar o desapontamento. Mas cliente novo é cliente novo. – Bem, não

faz mal. Quem é ele? – A Venetia. O meu sorriso imobiliza-se. – A Venetia? – Venetia Carter – explica Luke aos outros. – Sabem, a obstetra celebridade? Parece que a

antiga agência de divulgação não estava a dar resultado. A Venetia vai contratar a Brandon Communications? Não acredito. – Quem vai ao jantar? – Só eu e ela. – Luke encolhe os ombros. – Vou ser eu a tratar da conta dela, já que somos

velhos amigos. – Então... então vais ter reuniões com ela e isso? – Enxugo o lábio superior, que está

húmido. – É essa a ideia, Becky. – Luke ergue a sobrancelha interrogativamente. – Vou dar-lhe

saudades tuas? – Claro! – consigo um sorriso. – Faz isso! Tudo bem, talvez hoje eu não tenha entendido bem as coisas. Mas não há dúvida. Ela anda

atrás do Luke. Sei-o, do fundo do coração, assim como sei que comprar o meu novo top cor delaranja no eBay foi um erro.

Venetia está a tentar conquistar o meu marido e tenho de a impedir.

Prendergast de Witt Connell Conselheiros de Finanças

RESUMO DE INVESTIMENTO

CLIENTE: «BEBÉ BRANDON»

RESUMO ATÉ 24 DE OUTUBRO DE 2003

Fundo A: «Portfólio de Luke» Investimentos até hoje: Fundo de investimento em ouro Wetherby’s 20% Fundo de Crescimento Europeu Somerset 20% Fundo Acumulador Star Right 30% O restante ainda não foi investido Fundo B: «Portfólio de Becky» Investimentos até hoje: Ouro (colar Tiffany, anel) 10% Cobre (pulseira) 5% Ações do Primeiro Banco Mútuo do Bangladesh 10% Ações de chicmalassonline.com 10% Casaco vintage Dior 5% Garrafa de champanhe de 1964 5% Participação no cavalo de corridas «Baby Avança» 5% Óculos escuros «usados por Grace Kelly» 1% O restante ainda não foi investido

ONZE

Decidi: vou falar com Luke. Vou ser madura, adulta e simplesmente encarar as coisas. Assim,perfeitamente decidida, sento-me na cama até ele chegar a casa à noite. E passa da meia-noitequando a porta se abre e ele cheira a fumo, bebida e... ah, meu Deus. Allure.

Tudo bem. Nada de pânico. O facto de ele cheirar a Allure não prova nada. – Olá! Como foi o jantar? – Certifico-me de que tenho um ar simpático e encorajador e não

pareço uma mulher ciumenta das novelas da televisão. – Foi ótimo. – Luke despe o casaco. – A Venetia é muito inteligente. E muito atualizada. – Pois, aposto que sim. – Torço as mãos por baixo do edredão, onde ele não as pode ver. – E

de que conversaram? À parte o trabalho. – Ah, não sei. – Luke alarga a gravata. – Arte... livros... – Mas tu nunca lês livros! – digo, sem conseguir conter-me. É verdade. Ele não lê, a não ser

livros tipo «Como administrar o seu magnífico império empresarial». – Talvez não – responde, olhando-me de esguelha. – Mas

lia. O que quer dizer aquilo? Antes de me conhecer? Então agora eu é que tenho culpa de ele não

ler livros, é isso? – E de que mais falaram? – insisto. – Becky, francamente, não me lembro. O telemóvel dele toca com uma mensagem de texto e ele lê. Sorri, responde e continua a

despir-se. Olho-o cada vez mais incrédula e furiosa. Com pode fazer aquilo na minha frente? – Era em latim? – pergunto sem conseguir conter-me. – O quê? – Luke volta-se, puxando ainda as mangas da camisa. – Por acaso vi... – Hesito e calo-me. Mas que merda, não vou fingir mais. Respiro fundo e

olho para Luke, de frente. – Ela manda-te mensagens em latim, não é? É o vosso códigosecreto?

– De que estás a falar? – Luke dá um passo adiante, franzindo a testa. – Leste as minhasmensagens?

– Sou a tua mulher! De que tratam as mensagens que ela te manda, Luke? – A minha vozsobe de volume, magoada. – De livros em latim? Ou... outras coisas?

– Como? – Parece perplexo. – Sabes que ela anda atrás de ti, não sabes? – O quê? – Luke dá uma pequena gargalhada. – Becky, sei que tens uma imaginação fértil,

mas realmente... – Despe a camisa e atira-a para o cesto da roupa suja. Como pode ser tão estúpido? Pensei que era um homem inteligente. – Ela anda atrás de ti! – Inclino-me para a frente, agitada. – Não percebes? É uma destruidora

de lares! É isso que ela é...

– Ela não anda atrás de mim! – interrompe Luke. – Para ser franco, Becky, sinto-memagoado. Nunca pensei que fosses possessiva. Creio que tenho permissão para ter amigos, peloamor de Deus. Só porque, por acaso, ela é mulher...

– Não é isso – interrompo-o, ofendida. É porque ela namorou com ele e tem cabelo ruivo, volumoso e comprido. Mas não vou dizer

tal coisa. – É que... – Hesito. – É que... somos casados, Luke. Devíamos partilhar tudo. Não devíamos

ter nada separados. Eu sou um livro aberto! Vê o meu telemóvel! – Faço gestos largos. – Abreas minhas gavetas! Não tenho segredos! Vá, vai lá ver!

– Becky, está a fazer-se tarde. – Luke passa a mão pelo rosto. – Será que podíamos fazer issoamanhã?

Olho para ele, indignada. O que será que quer dizer com «fazer isso amanhã»? Não estamos ajogar Monopólio, estamos no meio de uma discussão crucial sobre o estado do nossocasamento.

– Vá lá! Vai ver! – Está bem. – Luke levanta as mãos, rendido e dirige-se à minha cómoda. – Não tenho segredos para ti! Podes procurar onde quiseres, o que quiseres... – Detenho-me

subitamente. Merda. O Kit da Previsão de Sexo. Está na gaveta de cima, à esquerda. – Sim... mas menos aquela gaveta! – exclamo depressa. – Não toques na gaveta de cima à

esquerda. Luke para. – Não posso tocar naquela gaveta? – Não. É... uma surpresa. Nem no saco do Harrod’s que está em cima da cadeira – acrescento

imediatamente. Não quero que ele veja a fatura do novo hidratante de alta tecnologia. Eumesma quase morri ao ver o preço.

– Mais alguma coisa? – pergunta Luke. – Ah... umas coisinhas no guarda-fato. Presentes de aniversário que já comprei para ti –

acrescento em tom de desafio. Faz-se silêncio no quarto. Não sei bem o que Luke pensa. Por fim volta-se, com uma

expressão estranha no rosto. – Então o nosso casamento é um livro aberto, completamente sincero, a não ser aquela

gaveta, este saco da Harrod’s e a parte de trás do guarda-fato? Sinto que a minha posição moral não é assim tão forte. – A questão é... – Olho em volta. – A questão é que eu não estive fora toda a noite com outra

pessoa, a fazer sabe Deus o quê! Ah, meu Deus. Estou a parecer exatamente uma mulher chorona de uma telenovela. – Becky. – Luke suspira e senta-se na cama. – A Venetia não é «outra pessoa». É uma

cliente. É uma amiga. E gostaria de ser tua amiga. Volto-me para o outro lado, franzindo o edredão num pequeno leque. – Só não entendo qual é o problema. Foste tu que quiseste consultar a Venetia! – Sim, mas... Não posso dizer-lhe: «Mas não sabia que ela era uma ladra de maridos.» – Ela vai fazer o parto do nosso filho daqui a poucas semanas! Devias conhecê-la, sentir-te à

vontade com ela!

Não quero que ela faça o parto do bebé. – E, quanto a isso... – Luke levanta-se. – A Venetia perguntou se podíamos ir à consulta

amanhã. Não te vê há algum tempo e sente-se mal em relação a isso. Disse-lhe que iríamos osdois. Está bem? – Ele entra na casa de banho.

– Ótimo – respondo, em voz monótona, e afundo-me mais uma vez nas almofadas com umgrande suspiro. Sinto a cabeça às voltas com pensamentos confusos. Talvez eu esteja a serpouco razoável e paranoica. Talvez ela não ande atrás de Luke.

Praticamente é a melhor obstetra do mundo. Pronto, vou fazer um esforço a sério, mesmo asério, para ver se podemos ser amigas.

Quando chegamos ao Centro Holístico de Maternidade na sexta-feira, os paparazzi estão ali emforça e dá para ver porquê. A Bond Girl e o novo rosto da Lancôme posam juntas na escada,ambas com calças de cintura descaída, giríssimas, e blusas apertadas que lhes acentuam asbarrigas ainda incipientes.

– Becky, devagar! – Luke chama-me enquanto corro para me juntar a elas. Mas, quandochego, já elas entraram. Paro esperançosa nos degraus, mas nenhuma lente aponta para mim.Na verdade, os fotógrafos afastam-se, o que considero insultuoso. Sempre pensei que tirariamuma fotografia nem que fosse para serem educados.

Lá dentro, a Bond Girl está à minha frente, junto à receção, e oiço a rececionista dizer-lhe: – Recebeu o convite para o chá no Savoy? Precisa que lhe mandemos um carro? – Não, obrigada – diz a Bond Girl, acenando com a cabeça para a modelo da Lancôme. – A

Lula e eu vamos juntas. O meu coração dá um salto. Chá no Savoy? Nunca recebi um convite para tomar chá no

Savoy. Talvez me deem agora! Chego junto à rececionista com um sorriso de expetativa, jácom a minha agenda na mão para verificar a data. Mas ela não me entrega o convite.

– Sente-se, Mistress Brandon – diz também a sorrir. – A Venetia vai recebê-la dentro empouco.

– Sim... E há mais alguma coisa? – Demoro-me junto à secretária. – Alguma coisa que eudeva... ter?

– A senhora trouxe a amostra de urina? – A rececionista sorri. – É só disso que precisa. Não era disso que eu estava a falar. Espero mais alguns segundos só para garantir – e, por

fim, vou até à sala de espera, tentando esconder a frustração que sinto. Ela não me convidou. Todas as celebridades vão tomar chá juntas, trocar histórias de gravidez e perguntar umas às

outras onde compram os vestidos para as estreias e eu ficarei em casa, sozinha. – Becky? – Luke olha-me perplexo. – O que foi? – Nada. – Sinto o meu lábio inferior a tremer. – Só que ela não me convidou para o chá. Vão

todas ao Savoy. Todas! Menos eu. – Becky, não sabes se vai haver um chá no Savoy. Tenho a certeza... quero dizer... – Luke

para, obviamente perdido. – Olha, mesmo que assim fosse, isso importa? Tu não vens aomédico por causa dos chás.

Abro a boca. E fecho-a de novo. – Becky? – ressoa uma voz melodiosa. – Luke? Ah, meu Deus. É ela. Não vejo Venetia há semanas. Para ser sincera, alterou-se um pouco na minha mente.

Visualizei-a mais alta, com o cabelo mais comprido, mais feiticeira, olhos verdes cintilantes euma… espécie de garras. Mas aqui está ela, magra e bonita, vestida com uma blusa preta muitoelegante, de gola alta, e sorrindo como se eu fosse a sua melhor amiga.

– Que ótimo vê-la! – Beija-me. – Peço desculpa, desprezei-a de um modo vergonhoso. –Quando diz isso, olha para Luke como se estivessem a ter uma conversa particular.

Ou será que estou a ser paranoica? – Venham! – Leva-nos para o gabinete e sentamo-nos. – E então, Becky? – Venetia abre a

ficha. – Como se sente? – Bem. Obrigada. – O bebé mexe-se bem? – Sim, sempre. – Ponho a mão na barriga, mas, claro, ele está a dormir. – Bem, vamos ver. – Indica a maca e eu subo enquanto Venetia lava as mãos. – Ouvi dizer lá fora qualquer coisa sobre um chá, Ven? – pergunta Luke em tom tranquilo. –

Grande ideia de publicidade. – Encaro-o, espantada, e ele pisca-me o olho. Há vezes em que, de facto, adoro Luke. – Ah! – Venetia parece pouco à vontade. – É isso mesmo. É para as pacientes num estágio

ligeiramente mais avançado que o seu, Becky. Mas é claro que está na lista para o próximo! Ela é tão mentirosa! Eu não estava naquela lista. Enquanto as mãos dela apalpam a minha barriga, não consigo descontrair-me. Olho para as

mãos: magras e brancas com um enorme anel de diamante no dedo anelar da mão direita. Quemlho terá dado?

– É um bebé de bom tamanho. De momento, está sentado, o que significa que tem a cabeçaperto das suas costelas... – Venetia franze a testa, concentrada, enquanto sente o bebé. – Secontinuar nessa posição, teremos de discutir as opções para o parto, mas ainda é cedo. – Olhapara as anotações. – Está com trinta e duas semanas. Há bastante tempo para o bebé dar a volta.Agora vamos ouvir o coração... – Pega no Doppler, espreme gel na minha barriga e encosta-meo aparelho à pele. Um instante depois, o coração está a fazer «uau-uau-uau» pela sala.

– Batidas fortes, ótimo. – Venetia acena com a cabeça e eu imito-a o melhor que posso,estando deitada. Por alguns instantes, nós três ouvimos apenas as batidas regulares e turvas. Étão estranho! Cá estamos, todos hipnotizados pelo som; e o bebé não faz ideia de que estamos aouvi-lo.

– O teu filho. – Venetia olha para Luke. – Incrível, não é? – Inclina-se e ajeita-lhe a gravata.Sinto uma pontada de ressentimento. Como ousa fazer aquilo? É o nosso momento. E toda agente sabe que é a mulher que ajeita a gravata.

– E então, Venetia? – pergunto educadamente enquanto ela desliga o Doppler. – Fiquei tristepor saber que terminou com o seu namorado.

– Ah, bem. – Venetia abre as mãos. – Há coisas que não têm de ser. – Esboça um sorrisodoce. – Como vai a sua saúde, em termos gerais, Becky? Alguma dor? Azia? Hemorroidas?

Não acredito. Ela está deliberadamente a escolher os males menos sensuais. – Não, obrigada – respondo com firmeza. – Sinto-me ótima. – Então tem sorte. – Venetia faz sinal para nos sentarmos de novo. – Perto do fim da

gravidez, vai descobrir que o seu corpo começará a queixar-se do esforço. Pode aparecer acne...varizes... o sexo obviamente será difícil, se não impossível...

Aaah. Ela é uma verdadeira vaca. – Não temos problemas nesse campo, pois não, querido? – Pego na mão de Luke e aperto-a.

– Ainda é cedo. – O sorriso agradável de Venetia não vacila. – Muitas pacientes minhasperdem a libido de vez antes do parto. E, claro, infelizmente alguns homens acham a forma dacompanheira pouco... atraente...

Pouco atraente? Ela acabou de dizer que sou pouco atraente? Enrola-me no braço um aparelho de tensão e franze a testa enquanto aperta a borracha. – Está com a tensão muito mais alta, Becky. Não fico nada surpreendida! Olho para Luke, mas ele parece não suspeitar de nada. – Querida, deverias falar daquela dor na perna – diz ele. – Lembras-te, na outra noite? – Dor na perna? – Venetia levanta os olhos, alerta. – Não foi nada – respondo rapidamente. – Só uma pontada. Na semana passada calcei os meus novos Manolos de salto de doze centímetros e andei com

eles o dia inteiro no trabalho. O que talvez tenha sido um erro, já que, quando cheguei a casa,mal podia andar e pedi ao Luke para massajar o músculo da barriga da perna.

– Mesmo assim devias verificar. – Luke aperta-me a mão. – Todo o cuidado é pouco. – Sem dúvida! – Venetia empurra a cadeira para trás. – Vamos ver, está bem, Becky? Suba

de novo para a maca. Não gosto daquele brilho nos olhos dela. Com relutância, tiro as meias de licra e subo para a

maca. – Hum. – Venetia segura-me na perna, olha, depois esfrega-a. – Acho que sinto o início de

uma variz. Horrorizada, olho para a minha pele lisa. Está a mentir. Não há sequer uma sugestão de

variz. – Não vejo nada aí – respondo, tentando permanecer calma. – Pode parecer-lhe invisível, mas deteto essas coisas muito cedo. – Venetia dá-me uma

palmadinha no ombro. – O que recomendo, Becky, é que a partir de agora, use aquelas meiasmedicinais, elásticas. – Pega num pacote que tem em cima da secretária e tira um par do queparecem ser meias brancas e compridas, de malha. – Calce-as.

– Não vou calçar isso! – Encolho-me, horrorizada. Quase nem tocar-lhes, quanto mais usá-las. São as coisas mais repelentes que já vi.

– Becky, querida. – Luke inclina-se para a frente. – Se a Venetia diz que deves usá-las... – Tenho a certeza de que não tenho varizes! – exclamo em voz cada vez mais aguda. – Luke,

foram os sapatos, lembras-te? – Ah! – exclama Venetia em voz maviosa. – Talvez tenha razão. Deixe-me ver o que traz

calçado. Observa os meus novos sapatos de plataforma e abana a cabeça com ar triste. – Realmente não são adequados para a gravidez avançada. Tome, experimente estes. –

Procura na gaveta de baixo da secretária e tira de lá um par de horrorosas chinelas de borracha,castanhas. – São uma amostra ortopédica. Gostaria de saber o que lhe parece.

Observo-as, consternada. – Em vez das meias elásticas? – Ah, não! – sorri. – Julgo que também deve usar as meias elásticas. Pelo sim, pelo não. Vaca. Vaca. – Calça-as, querida – sugere Luke, encorajando-me com a cabeça. – A Venetia só está a

pensar na tua saúde. Não está, não!, quero gritar. Não vês o que ela está a fazer?

Mas não posso. Não tenho outra saída. Os dois olham para mim. Terei de o fazer. Sentindo-me enjoada, calço lentamente uma das meias elásticas e depois a outra. – Puxe-as bem para cima! – diz Venetia. – Isso, acima das coxas. – Afasto os sapatos e pego

nas sandálias horríveis. Depois agarro na minha nova mala Marc Jacobs enorme (amarelo-clara, totalmente incrível) para enfiar os sapatos lá dentro.

– Esta é a sua mala? – Os olhos brilhantes de Venetia iluminam-se e sinto um aperto depavor. A mala, não. Por favor, a mala, não.

– É demasiado pesada para uma grávida! – diz ela pegando-lhe, com a testa franzida. – Sabeo dano que pode causar à coluna? Sabes, trabalhei durante um ano com uma fisioterapeuta –acrescenta para Luke. – Os danos que ela presenciou em pessoas que andavam por aí commalas de tamanho absurdo!

– As malas grandes estão na moda – digo, tensa. – Moda! – Venetia esboça um sorriso luminoso. – A moda é prejudicial para a sua saúde.

Experimente isto, Becky. A minha fisioterapeuta fornece-as. – Abre um armário e tira de láuma pochete feita de cáqui. – É muito mais ergonómica para as costas. Pode até escondê-la porbaixo da T-shirt, para maior segurança...

– Fantástico! – exclama Luke, retirando a minha Marc Jacobs da mão de Venetia ecolocando-a no chão, onde não posso alcançá-la. – Venetia, és muita simpática.

Simpática? Ele não faz ideia do que se passa aqui. Nenhuma. – Vamos, Becky! – Venetia parece um gato a brincar com um rato meio morto, encantada

com o sofrimento. – Veja se lhe serve. Com as mãos trémulas, prendo o cinto de cáqui na cintura, aperto o fecho e deixo a T-shirt

cair. Quando me volto, capto um vislumbre de mim mesma no espelho de corpo inteiro, naparte de trás da porta.

Apetece-me chorar. Pareço um monstro grotesco. As minhas pernas são dois troncos deárvores brancos, bulbosos. Os meus pés parecem os de uma avó. Tenho uma barriga na frente eoutra atrás.

– Fica ótima, Becky! – Venetia senta-se na secretária e faz um alongamento ágil, tipo ioga,que mostra os seus braços compridos e em forma. – Então, Luke, aquele encontro que tivemosfoi maravilhoso. Fiquei realmente interessada nas tuas ideias sobre os links da internet...

Arrasada, arrasto os pés até à cadeira e espero que acabem de falar sobre o perfil empresarialde Venetia. Mas depois passaram a falar da brochura e de como podia ser melhorada.

– Ah, desculpe, Becky! – De repente, Venetia pareceu reparar em mim. – Isto deve ser muitoaborrecido. Bom, a consulta já terminou, de modo que, se não quiser ficar...

– Não vais encontrar-te com a Suze e a Jess para almoçar? – Luke ergue os olhos. – Porquenão vais já? Só quero recapitular umas coisas com a Venetia.

Fico pregada ao chão. Não quero deixá-lo sozinho com ela. O instinto diz-me que não o faça.Mas, se lhe digo isto, Luke pensará que me tornei possessiva e desconfiada e teremos outradiscussão enorme.

– Sim, claro – digo por fim. – Vou então. – Veja se leva tudo o que precisa – diz Venetia, apontando para a minha Marc Jacobs. – E

não quero ouvir dizer que usou outra vez essa mala! – exclama, abanando um dedo na minhadireção.

Apetece-me dar-lhe um tiro. Mas não faz sentido discutir, Luke vai ficar do lado de Venetia.Em silêncio, pego na mala, no telemóvel, nas chaves e em alguns itens essenciais de

maquilhagem. Coloco tudo na pochete de cáqui e fecho-a. – Até logo, querida. – Luke beija-me. – Depois telefono. – Até logo. Adeus, Venetia. – Mal consigo olhá-la de frente. Saio do gabinete e dirijo-me ao

átrio. Junto à receção está uma loira entusiasmada, com uma barriga minúscula, a dizer: – Estou tão emocionada porque consegui vaga com a Venetia! Pois sim, agora estás, penso, furiosa. Espera até que ela te faça parecer um monstro diante do

teu marido. Estou quase à porta quando uma lembrança súbita me faz parar. O telemóvel de Luke tocou hoje de manhã cedo enquanto ele estava na casa de banho e eu

atendi. Não por ser possessiva e cheia de suspeitas, mas porque... Bom, pronto. Pensei que pudesse ser a Venetia. Mas não era: era o John, da Brandon

Communications, e eu não disse ao Luke para lhe ligar. É melhor avisar. Volto à receção, tentando ignorar os olhares curiosos da loira e do marido. A porcaria das

meias vai desaparecer assim que eu sair daqui. Uma mulher com uniforme azul de enfermeira está à minha frente no corredor e, enquanto

vou andando, ela para junto à porta da Venetia. Bate duas vezes e abre. – Ah, desculpe! – ouço-a dizer. – Não queria incomodar... Incomodar o quê? Incomodar o quê? Com o coração subitamente a bater acelerado, sigo rapidamente pelo corredor e consigo

captar qualquer coisa pela porta enquanto a enfermeira recua. E vejo-os. Sentados junto à secretária, falando em voz baixa, a rir. O braço de Venetia está

pousado naturalmente sobre os ombros de Luke. A sua outra mão está entrelaçada na dele. Osdois parecem felizes, descontraídos e íntimos.

Parecem um casal.

Não sei como, chego ao restaurante onde me vou encontrar com a Suze e a Jess. Navego empiloto automático, como um zombie. Sinto vontade de vomitar sempre que penso naquilo.

Os dois estavam juntos. Estavam juntos. – Bex? Não sei como, passei a porta de vidro e estou parada, completamente atordoada, enquanto os

empregados circulam e as pessoas conversam. – Bex, sentes-te bem? – Suze vem rapidamente ter comigo. Aflita, baixa os olhos para as

minhas meias brancas. – O que tens calçado? O que aconteceu? Bex... consegues falar? – Eu... não. Preciso de me sentar. – Vou atrás dela até à mesa do canto, onde Jess está

sentada. – O que aconteceu? – Jess está admirada com a minha aparência. Rapidamente puxa uma

cadeira e ajuda-me a sentar. – Sentes-te bem? É o bebé? – Vi os dois – consigo dizer. – Quem? – O Luke e a Venetia. Juntos. – Juntos? – Suze tapa a boca com a mão. – Juntos, a fazer... o quê? – Estavam sentados, atrás da secretária, a conversar. – Mal consigo pronunciar as palavras. –

Ela tinha o braço por cima dos ombros dele. E ele estava de mão dada com ela. – Levanto os

olhos, procurando uma reação. Suze e Jess parecem esperar que eu diga mais. – Estavam... a beijar-se? – sugere Suze. – Não, estavam a rir. Pareciam completamente felizes. Eu simplesmente... tive de sair dali. –

Bebo um pouco de água. Suze e Jess olham uma para a outra. – E... foi por isso que calçaste meias brancas? – aventura-se Suze a perguntar,

cautelosamente. – Não! Claro que não! – Tiro os óculos, sentindo a humilhação invadir-me de novo. – Foi a Venetia! Tirou-me os sapatos, a mala e obrigou-me a calçar estas coisas medonhas só

para eu ficar horrorosa diante do Luke. Suze fica sufocada. – Grande vaca! – E não consigo tirá-las! – Agora estou à beira das lágrimas. – Estou presa nisto! – Anda cá! Eu ajudo. – Suze põe os óculos em cima da mesa e estende a mão para uma das

meias. Jess olha de testa franzida. – Becky... tens a certeza que não há algum motivo de saúde para as usares? – Não! Ela só o fez por ser má! Disse que a moda faz mal à saúde! Jess parece não se abalar. – A moda é má para a saúde. – A moda não é má para a saúde! – expludo. – É boa para a saúde! Faz-nos... faz-nos ficar

magras e direitas para os casacos caírem melhor... e faz com que nos interessemos por nóspróprias e não nos deixa ficar deprimidas. – Conto pelos dedos. – E os saltos altos são umexercício fantástico para os músculos da barriga da perna...

– Bex, bebe um pouco de vinho – diz Suze, tentando acalmar-me e empurrando o copo naminha direção. – Só um golinho não fará mal ao bebé. E pode... acalmar-te um pouco.

– Claro, obrigada. – Bebo um gole, agradecida. – O meu obstetra disse que eu podia beber um copo de vez em quando – acrescenta Suze. – É

francês. Bebo outro gole, sentindo o coração menos acelerado. Devia ter ido a França para ter o bebé.

Ou a qualquer lugar que não fosse com a Venetia Carter. Talvez devesse esquecer toda essahistória do hospital e ter o bebé numa loja, como sempre planeei. Pelo menos, iria sentir-medescontraída e feliz. Pelo menos, receberia roupas grátis.

– Não sei o que fazer. – Pouso o copo de vinho e olho arrasada para Suze e Jess. – Já tenteifalar com o Luke. Ele disse que não havia nada, que eram só amigos. Mas não me pareceram sóamigos.

– Como, exatamente, ele lhe dava a mão? – Suze franze a testa, consternada. – Podia serapenas amigável? A Venetia é uma pessoa do tipo que toca nos outros?

– Ela é... – Penso. Recordo-me de Venetia a apertar-me os ombros a passar-me a mão pelobraço. – Um bocado – admito por fim.

– Bom, talvez seja só isso! Talvez seja apenas uma dessas pessoas que se aproximamdemasiado.

– Tens mais alguma prova? – pergunta Jess. – Ainda não. – Brinco com uma embalagem de gressinos, perguntando a mim mesma se

deveria contar-lhes. – Um dia destes segui os dois. – Fizeste o quê? – Suze fica assombrada. – E se eles vissem?

– Ele viu-me. Fingi que andava a fazer compras. – Bex... – Suze apanha o cabelo. – E se não for nada? Vê-los de mãos dadas não é prova. Não

queres arruinar toda a confiança entre ti e o Luke. – Então o que devo fazer? – Olho de um rosto para o outro. – O que devo fazer? – Nada – responde Suze com firmeza. – Bex, sei que o Luke te ama. E ele não fez nada que

realmente o incrimine, ou fez? Seria diferente se ele tivesse mentido ou se os tivesses visto abeijarem-se...

– Concordo – assente Jess com vigor. – Acho que estás a entender tudo ao contrário, Becky. – Mas... – Paro, enrolando o papel com força em volta dos dedos. Não sei como explicar,

tenho uma sensação desagradável. Não são apenas as mensagens no telemóvel ou os jantares.Nem mesmo tê-los visto agora. É qualquer coisa nela. É qualquer coisa nos olhos dela. Ela éuma predadora.

Mas, se eu lhes disser isso, vão dizer que estou a imaginar coisas. – Está bem – respondo por fim. – Não vou fazer nada. – Vamos pedir – diz Suze decidida, entregando-me a lista. – Aqui têm um menu fixo – refere Jess, colocando uma folha datilografada em cima do à la

carte. – É mais económico, se pedirmos apenas dois pratos e não escolhermos nenhuma dessascoisas ridículas com trufas.

Quero responder-lhe imediatamente que as trufas são o meu alimento predileto, e quem seimporta com o preço delas? Mas o problema é que até concordo. Nunca estive muito de acordocom essa história de mil libras por uma trufa.

Ah, meu Deus. Por favor, não me digam que comecei a concordar com a Jess. – E podem ajudar-me a vingar-me da Lulu – acrescenta Suze, passando o cesto de pão. – Oh! – exclamo, animando-me. – Mas como? – Ela foi convidada a fazer um programa de televisão – diz Suze com desdém. – Um desses

programas em que as pessoas mudam de vida, em que ela vai à casa de uma mãe horrorosa paralhe dizer como deve fazer comida saudável para os filhos. E pediu que eu fosse a primeira mãehorrorosa!

– Não! – Já entregou o meu nome à produtora! – Suze levanta a voz, indignada. – Telefonaram-me a

perguntar se era verdade que eu dava comida enlatada aos meus filhos e se nenhum deles sabiafalar.

– Que desplante! – Pego num pãozinho e passo um pouco de manteiga. Não há nada como teroutra pessoa a quem odiar para nos fazer esquecer os problemas.

Temos um almoço fantástico, as três, e no fim sinto-me muito melhor. Todas decidimos que aLulu é a maior das megeras (a Jess não conhece a Lulu, mas eu faço-lhe uma boa descrição). Eentão Jess conta os seus problemas. Falou do Chile ao Tom e a coisa não correu bem.

– Primeiro, ele achou que eu estava a brincar – diz ela, desfazendo um pãozinho em pequenasmigalhas. – Depois, achou que eu estava a testar o amor que sente por mim. Então, pediu-meem casamento.

– Pediu-te em casamento? – exclamo num grito entusiasmado. – É óbvio que lhe disse que não fosse ridículo. E agora... não falamos – diz ela, em tom

natural, mas percebe-se a tristeza nos seus olhos. – É isso mesmo. – Bebe um generoso gole devinho, o que realmente não é próprio de Jess. Olho para Suze, que me franze a testa, ansiosa.

– Jess, tens a certeza disso do Chile? – pergunto, hesitando.

– Tenho – confirma. – Tenho de ir. Preciso. Nunca voltarei a ter outra oportunidade comoesta.

– E o Tom pode ir lá visitar-te – lembra Suze. – Exato. Se ele ao menos deixasse de ouvir a mãe! – Jess abana a cabeça, exasperada. – A

Janice está completamente histérica. Manda-me constantemente páginas que imprimiu dainternet, dizendo que o Chile é um país perigoso, cheio de doenças e minas terrestres.

– E é? – pergunto, temerosa. – Claro que não! – responde Jess. – Está a dizer um disparate completo. – Jess bebe mais um

gole de vinho. – Há apenas algumas minas terrestres, só isso. E um pequeno problema decólera.

Algumas minas terrestres? Cólera? – Jess, tens de ter muito cuidado por lá – digo, num impulso, e pego-lhe na mão. – Não

queremos que te aconteça nada. – Sim, tem cuidado – concorda Suze. – Terei. – O pescoço de Jess fica vermelho. – Vai correr tudo bem. Obrigada. De qualquer

modo... – Enquanto o empregado chega com o café, ela recolhe a mão, parecendo um poucoatrapalhada. – Eu... gosto do teu travessão, Becky.

Não há dúvida de que quer mudar de assunto. – Ah, obrigada. – Toco no travessão com orgulho. – Não é giríssimo? É da Miu Miu. Na

verdade, faz parte da carteira de investimentos do bebé. Há um silêncio e levanto os olhos para ver Suze e Jess a olharem fixamente para mim. – Bex, como é que um travessão de cabelo da Miu Miu pode fazer parte de uma carteira de

investimentos? – Porque é uma Antiguidade do Futuro! – digo com um floreado. – O que é uma Antiguidade do Futuro? – Suze parece perplexa. Ah! Veem? Estou mesmo avançada! – É um novo modo fantástico de investimento – explico. – Não custa nada! Compramos uma

coisa qualquer, guardamos a embalagem e, dentro de cinquenta anos, ganhamos uma fortunanum leilão!

– Pois sim – diz Suze, desconfiada. – Então, e o que mais compraste? – Bom... – Penso. – Na verdade, algumas coisas da Miu Miu. E uns bonecos do Harry Potter,

bonecas Barbie princesa... e esta pulseira fabulosa da Topshop... – Becky, uma pulseira da Topshop não é um investimento – afirma Jess, incrédula. Não há dúvida de que não percebeu nada. – Agora talvez não – explico pacientemente. – Mas vai ser. Vai aparecer no programa

Antiques Roadshow, vais ver! – Bex, qual o problema do banco? – pergunta Suze, ansiosa. – Não vou investir o dinheiro do bebé num banco qualquer, como toda a gente! Sou uma

profissional das finanças, lembra-te, Suze. É isso que faço. – Que fazias. – É como andar de bicicleta – garanto com ar superior. Não sou grande coisa a andar de

bicicleta, mas não preciso de o dizer. – Então é isso? – pergunta Jess. – Investiste o dinheiro todo? – Ah, não. Ainda tenho muito! – Bebo um gole de café, depois reparo numa pintura abstrata

na parede perto de mim. É apenas um grande quadrado azul de tinta a óleo sobre ecrã e há uma

pequena etiqueta indicando o preço de cento e noventa e cinco libras. – Olhem para aquilo! –digo, concentrando-me com interesse. – Acham que eu devia...

– Não! – gritam Jess e Suze em uníssono. Francamente. Nem sabiam o que eu ia dizer.

Chego a casa ao fim da tarde e encontro o apartamento frio e vazio, sem Luke. Ele está comela.

Não. Não está. Para com isso. Faço uma sandes, atiro os sapatos para longe e enrosco-me nosofá com o comando da televisão. Enquanto faço zapping pelos canais, à procura de BirthStories4, em que estou viciada (só que tenho de olhar a parte mais difícil através dos dedos), otelemóvel toca.

– Olá! – É Luke, parecendo apressado. – Becky, esqueci-me de te lembrar de que vou aosFinance Awards. Vou chegar tarde.

– Ah, está bem. – Agora me lembro de que sabia dos Finance Awards. Na verdade, Lukeconvidou-me, mas nem quis pensar em aguentar uma noite com gerentes de fundos, velhos echatos.

– Tudo bem. Até logo, Luke... Detenho-me, com o coração descompassado. Não sei o que quero dizer, quanto mais como

dizer. – Tenho de ir. – Luke nem notou o meu silêncio perturbado. – Até logo. – Luke... – tento de novo, mas a linha já caiu. Fico a olhar para o espaço durante um certo tempo, imaginando a conversa perfeita, em que

Luke me perguntaria o que se passava e eu diria: ah, nada, e ele diria: há, sim, e terminava comele a dizer que me amava incondicionalmente e que a Venetia era muito feia e que tal sefôssemos amanhã a Paris?

O barulho do programa da televisão arranca-me ao aturdimento, e olho para o ecrã. Não seicomo, mas avancei nos canais e fui parar a um obscuro canal de negócios e finanças. Tentolembrar-me do número do Living Channel quando a minha atenção é atraída por um tipoelegante, de smoking, que aparece no ecrã. Reconheço-o. É Alan Proctor, da ForelandInvestiments. E ali está aquela miúda, a Jill, da Portfolio Management, sentada ao lado dele.Que diabo...

Não acredito. O Finance Awards está a ter cobertura televisiva! Num canal por cabo queninguém vê... mas, mesmo assim! Endireito-me e concentro-me no ecrã. Talvez veja Luke!

– ... e cá estamos, em direto, da Grosvenor House, para o Finance Awards deste ano... – diz oapresentador. – O local da atribuição do prémio foi mudado este ano devido ao crescentenúmero...

Só por graça, pego no telemóvel e ligo para Luke. A câmara gira pelo salão de baile eexamino atentamente o ecrã, olhando para todas as pessoas de fato de cerimónia sentadas àsmesas. Lá está Philip, o meu antigo editor da Successful Savings, a emborcar um copo de vinho.E aquela miúda do Lloyd’s que usava sempre o mesmo fato verde nas conferências deimprensa...

– Olá, Becky! – atende Luke de repente. – Está tudo bem? – Olá! – digo. – Liguei só para saber como estavam a correr as coisas no Finance Awards. Estou à espera de que a câmara faça uma panorâmica até onde Luke se encontra. Então

poderei dizer: «Adivinha só, estou a ver-te!» – Ah, a mesma velharia de sempre – diz Luke depois de uma pausa. – O salão do Dorchester

apinhado... uma multidão insuportável... Do Dorchester? Olho para o telemóvel por um momento, sentindo-me quente e fria ao mesmo tempo e depois

encosto-o com força contra o ouvido. Não consigo ouvir qualquer conversa de fundo. Ele nãoestá num salão cheio de gente, pois não?

Está a mentir. – Becky? Estás aí? – Eu... ah... estou. – Sinto-me tonta do choque. – Então, quem está sentado ao pé de ti? – Estou ao pé da... Mel. É melhor eu desligar, querida. – Claro – respondo, entorpecida. – Até logo. A câmara acaba de mostrar Mel, espremida entre dois homens enormes, de fato. Não há

nenhuma cadeira vazia em volta da mesa. Luke mentiu-me. Está noutro lado. Com outra pessoa. As luzes brilhantes e o barulho da cerimónia da atribuição de prémios irritam-me os nervos e

desligo a televisão. Fico por momentos a olhar para o vazio e em silêncio. Depois, atordoada,pego no telefone e marco o número da minha mãe. Preciso de falar com alguém.

– Estou? – Assim que ouço a voz segura e familiar, apetece-me desatar a chorar. – Mãe, é a Becky. – Becky! Como estás, minha querida? E o bebé? Aos pontapés? – O bebé está ótimo. – Toco automaticamente na barriga. – Mas estou com... um problema. – Que tipo de problema? – A minha mãe parece perturbada. – Becky, não é outra vez aquela

gerente da Mastercard? – Não! É... pessoal. – Pessoal? – É... é – Mordo o lábio, desejando ter pensado antes de ligar. Não posso contar à minha mãe

o que se passa. Não posso preocupá-la. Não depois de ela me ter alertado exatamente sobre apossibilidade de isso acontecer.

Talvez lhe possa pedir conselho sem revelar a verdade. Tipo quando as pessoas escrevempara o correio sentimental e falam sobre «um amigo», quando, na verdade, eles é que foramapanhados a usar o fato de banho da mulher.

– É... uma colega de trabalho – digo em tom hesitante. – Acho que está a pensar... mudar paraoutro departamento. Falou com eles nas minhas costas e almoçou com eles e acabei dedescobrir que me mentiu... – Uma lágrima desce-me pela face. – Podes dar-me um conselho?

– Claro que posso dar-te um conselho! – exclama a minha mãe, entusiasmada. – Querida, elaé apenas uma colega! As colegas vêm e vão. Vais esquecer-te completamente dela daqui a umasemana e estarás já a pensar noutra pessoa!

– Claro – respondo, depois de uma pausa. Para ser sincera, não foi uma grande ajuda. – Olha… – diz a minha mãe – Já tens uma bolsa para as fraldas? Porque vi uma linda no John

Lewis... – O que se passa, mãe... – faço outro tentativa. – O que se passa é que gosto realmente dessa

colega. E não sei se ela está de facto a falar com as outras pessoas nas minhas costas... – Querida, quem é essa colega? – A minha mãe parece perplexa. – Já alguma vez me falaste

nela? – Ela é só... uma pessoa de quem eu gosto. Divertimo-nos, e temos um... projeto em

conjunto... e, bem, parecia que estava tudo bem... – Sinto um nó gigantesco na minha garganta.– Não suporto a ideia de a perder.

– Não vais perdê-la! – diz a minha mãe, rindo. – Mesmo que ela passe para outrodepartamento, ainda podem ir tomar café juntas...

– Tomar café juntas? – exclamo, perturbada. – De que adiante tomar café? As lágrimas começam a correr-me pelas faces ao pensar que Luke e eu nos encontramos só

para tomar um café enquanto Venetia fica sentada a um canto a tamborilar com os dedos. – Becky? – exclama a minha mãe, alarmada. – Querida? Sentes-te bem? – Sim. – Fungo e esfrego o rosto. – Só que fiquei um pouco... perturbada. – Essa amiga é mesmo tão importante para ti? – Não há dúvida de que a minha mãe está

assombrada. Oiço o meu pai dizer ao fundo: «O que se passa?», e há um ruído de papéisquando a minha mãe se afasta do telefone. – É a Becky – oiço-a dizer baixinho. – Acho que elaestá com uma crise hormonal, coitadinha...

Francamente. Não estou com uma crise hormonal. O meu marido tem um caso. – Becky, escuta. – A minha mãe voltou ao telefone. – Já falaste com a tua amiga sobre o

assunto? Já lhe perguntaste diretamente se ela pensa mudar para outro departamento? E aomenos tens a certeza de que conhece os factos?

Faz-se silêncio enquanto tento imaginar-me a confrontar Luke quando ele chegar a casa estanoite. E se ele se irritar e tentar fingir que estava na cerimónia da atribuição de prémios? E sedisser que ama a Venetia e que me vai deixar para ficar com ela?

De qualquer modo, sinto-me totalmente enjoada diante da perspetiva. – Não é fácil – digo por fim. – Ah, Becky – suspira a minha mãe. – Nunca foste boa a encarar as coisas, pois não? – Não. – Passo o pé pelo tapete. – Acho que não. – Agora és adulta, querida – diz a mãe suavemente. – Tens de enfrentar os teus problemas.

Sabes o que precisas de fazer. – Pois sim. – Solto um enorme suspiro, sentindo parte da tensão sair-me do corpo. –

Obrigada, mãe. – Cuida-te, querida. Não fiques perturbada. O pai está a dizer que também gosta muito de ti. – Adeus, mãe. E obrigada. Desligo o telefone com uma nova decisão. É óbvio que as mães sabem das coisas. Pela

primeira vez, a minha mãe fez-me ver as coisas com clareza. Decidi exatamente o que voufazer.

Vou contratar um detetive particular.

4 Série de documentários da televisão canadiana. (N. da T.)

FACULDADE DE CLÁSSICAS UNIVERSIDADE DE OXFORD

OXFORD OX1 6TH

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 3 de novembro de 2003 Cara Mrs. Brandon Agradeço a sua mensagem, que a minha secretária me transmitiu o melhor que lhe foi possível. Lamento muito saber que o seu marido está «a ter um caso em latim» como a senhora disse.Posso entender como se sente ansiosa e ficarei satisfeito em traduzir qualquer mensagem detexto que me mandar. Espero que assim a possa esclarecer. Atenciosamente, Edmund Fortescue Professor de Clássicas PS. Por sinal, «latin lover» geralmente não significa uma pessoa que fala com o amante emlatim; espero que isto sirva para a tranquilizar um pouco.

Denny and George Floral Street, 44 Covent Garden

Londres W1

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions Maida Vale Londres NW6 0YF 4 de novembro de 2003 Cara Rebecca Agradecemos a sua carta. Lamentamos saber que se tenha desentendido com a sua obstetra. Ficámos emocionados por saber que teve momentos fantásticos aqui e que considera este o«lugar perfeito para trazer um bebé ao mundo». Mas, infelizmente, não podemos converter anossa loja numa sala de parto temporária, nem mesmo para uma cliente antiga que tantoprezamos. Agradecemos que se tenha oferecido para chamar ao bebé «Denny George Brandon», maslamento dizer que isso em nada altera a nossa decisão. Boa sorte para o parto. Desejando-lhe as maiores felicidades, Francesca Goodman Gerente de Loja

R E G A L A I R L I N E S Escritório Central

Preston House KINGSWAY, 354 • LONDRES WC2 4TH

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 OYF 4 de novembro de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigada pela sua carta. Aparentemente, há um enorme mal-entendido. Se a senhora der à luz durante um voo da Regal,o seu filho não receberá «passagens de primeira classe para toda a vida» nem a senhora opoderia acompanhar como «sua guardiã». O nosso pessoal de cabina não «ajudou a nascer milhões de bebés» e devo sublinhar que apolítica da empresa nos proíbe de deixar uma mulher com mais de trinta e seis semanas degravidez embarcar num voo da Regal. Espero que volte em breve a ser cliente da Regal Airlines. Atenciosamente, Margaret Mcnair Gerente de Atendimento ao Cliente

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros de Finanças Forward House

High Holborn, 394. Londres WC1V 7EX

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 5 de novembro de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigada pela sua carta. Fiquei preocupado ao ter conhecimento de seu «novo plano geral». Recomendo vivamente quenão invista o resto da poupança do seu filho em supostas «Antiguidades do Futuro» e devolvo-lhe a fotografia do biquíni Topshop edição limitada, sobre o qual não posso comentar. Essascompras não são um «lucro garantido» e ninguém pode beneficiar «comprando simplesmenteum grande número de coisas». Gostaria de a orientar para investimentos mais convencionais, tais como títulos do tesouro eações de empresas. Atenciosamente, Kenneth Prendergast Especialista em Investimentos de Família

DOZE

Não sei porque não o fiz antes. É como diz a minha mãe: preciso de encarar os factos. Sópreciso de descobrir a resposta a uma pergunta simples: o Luke tem um caso com a Venetia?Sim ou não?

E se tiver... O meu estômago sofre um espasmo só de pensar, por isso faço mais respirações curtas.

Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar. Ignorar a dor. Vou tratar desse assunto quando chegar omomento.

Estou parada na estação de metro de West Ruislip, a consultar o A-Z de Londres. Não teriaimaginado que no West Ruislip haveria detetives particulares. (Mas, afinal, suponho que estavaa pensar na baixa de Chicago nos anos 40.)

Sigo pela rua principal e quando passo olho para o meu reflexo numa vitrina. Demorei séculos a decidir o que vestir nessa manhã, mas, por fim, escolhi um vestido preto

estampado, simples, sapatos vintage e óculos escuros, enormes, opacos, ainda que, por acaso,os óculos escuros sejam uma porcaria de disfarce. Se alguém que eu conhecesse me visse, nãopensaria «Ali está uma mulher misteriosa, de preto», mas sim: «Ali está a Becky, de óculosescuros, à procura de um detetive particular.»

Sentindo-me nervosa, começo a andar mais depressa. Não consigo acreditar o que vou fazer.Foi tão fácil como marcar uma pedicure. Telefonei para o número do cartão que o motorista detáxi me deu, mas infelizmente aquele detetive particular ia partir para a Costa Del Sol. (Parajogar golfe nas férias e não para seguir um bandido.) Por isso procurei detetives particulares nainternet – e casualmente existem montes deles! Por fim, escolhi um chamado Dave Sharpness,Detetive Particular (Especialidade Principal: Problemas Matrimoniais), marquei hora e aquiestou eu. No West Ruislip.

Entro numa rua secundária e vejo o prédio à minha frente. Examino-o por alguns instantes.Realmente não é como eu havia imaginado. Não se trata de um escritório sujo, num beco, comuma única lâmpada pendurada na janela e talvez buracos de bala na porta. Trata-se de umprédio bem cuidado, baixo, com persianas e um pequeno relvado à frente, com um cartaz quediz POR FAVOR, NÃO DEITAR LIXO.

Bom. Os detetives particulares não têm de ser sujos, pois não? Enfio o livro na carteira, vouaté à entrada e empurro uma porta de vidro. Uma mulher pálida, com cabelos mal pintados, corde beringela, está sentada a uma secretária. Olha-me por trás do livro de bolso e sinto umasúbita pontada de humilhação. A mulher deve ver constantemente gente como eu.

– Estou aqui para falar com Dave Sharpness – digo, tentando manter o aprumo. – Com certeza, minha senhora. – Faz descer os olhos inexpressivos até à minha barriga. –

Sente-se. Sento-me numa cadeira de espuma castanha e apanho um exemplar do Reader’s Digest da

mesinha baixa. Instantes depois, abre-se uma porta e um homem entre os cinquenta e muitos eos sessenta e poucos anos aproxima-se de mim. Tem alguma barriga, olhos azuis, cabelo brancoluminoso espetado por cima da testa bronzeada e uma grande papada.

– Dave Sharpness – diz ele, com pieira de fumador, e aperta-me a mão. – Entre, entre. Acompanho-o até uma pequena sala com estores e uma secretária de mogno. Há uma estante

cheia de livros aparentemente jurídicos e uma série de caixas de arquivo com nomes escritos.Vejo que uma, com «Brandon» escrito, está aberta sobre a secretária e sinto-me um poucoalarmada. É àquilo que chamam discrição? E se Luke viesse ao West Ruislip para uma reuniãode negócios, passasse pela janela e visse aquilo?

– Então, Mistress Brandon. – Dave Sharpness espremera-se atrás da secretária e falava emvoz rouca. – Primeiro, deixe que me apresente. Passei trinta anos no ramo de automóveis antesde passar para a investigação particular. Por ter tido várias experiências pessoais dolorosas,conheço perfeitamente o trauma por que a senhora está a passar. – Inclina-se para diante e apapada balança. – Fique tranquila, comprometo-me cento e cinquenta por cento a fornecer-lheresultados.

– Pronto. Ótimo. – Engulo em seco. – É que... estava a pensar, se o senhor não poderiaesconder mais o meu dossiê da vista, por favor? Qualquer um pode vê-lo nessa prateleira.

– Estes são a fingir, Mistress Brandon – diz Dave Sharpness, indicando a prateleira. – Porfavor, não se preocupe. O seu dossiê ficará guardado, em segurança, no nosso depósito paraclientes.

– Ah, percebo – digo, sentindo-me um pouco mais tranquila com o «depósito para clientes»que me parece bastante bom. Talvez um sistema subterrâneo com trancas codificadas e lasersinfravermelhos. – Então... em que consiste isso, exatamente?

– É um arquivo na sala das traseiras. – Enxuga o rosto brilhante com um lenço. – É trancadotodas as noites pela Wendy, a gerente do nosso escritório. Agora, vamos ao que interessa. –Pega num bloco. – Vamos começar pelo princípio. A senhora está preocupada com o seumarido. Acha que ele pode andar a traí-la.

Sinto uma ânsia súbita de gritar «Não! O Luke nunca me trairia!», em seguida levantar-me esair a correr.

O que destruiria ligeiramente o sentido de ter vindo aqui. – Eu... não sei – obrigo-me a dizer. – Talvez. Estamos casados há um ano e tudo parecia

ótimo. Mas há uma... mulher, a Venetia Carter. Tiveram um relacionamento no passado e agoraela veio para Londres. Ele encontra-se muitas vezes com ela e anda muito distante e irritadiço,e os dois mandam mensagens um ao outro em código, e ontem à noite ele... – Paro, respirandocom força. – De qualquer modo, só queria descobrir o que se passa.

– Claro – diz Dave Sharpness, rabiscando. – Porque haveria a senhora de continuar a aceitar aincerteza e o desgosto?

– Exato – confirmo com a cabeça. – A senhora quer respostas. O seu instinto diz-lhe que há algo errado, mas não consegue

identificar exatamente do que se trata. – É isso mesmo! – Meu Deus, ele entende perfeitamente. – A senhora só quer provas fotográficas desse caso ilícito. – Eu... é... – Fico sem saber o que fazer. Não tinha de facto pensado em provas fotográficas.

Só em receber uma resposta tipo «sim» ou «não». – Ou vídeo. – Dave Sharpness levanta a cabeça. – Podemos colocar-lhe todas as provas em

DVD. – DVD? – repito, chocada. Talvez eu não tenha pensado bem nesse plano. Irei mesmo

contratar alguém para seguir o Luke com uma câmara de vídeo? E se ele descobrir? – O senhornão poderia dizer-me apenas se ele tem ou não um caso? – sugiro. – Sem tirar fotografias oufazer um vídeo?

Dave Sharpness levanta as sobrancelhas. – Mistress Brandon, acredite, quando descobrirmos a prova, a senhora vai querer ver com os

seus próprios olhos. – Quer dizer... se descobrirem alguma prova. Posso ter percebido tudo mal! É provável que

seja tudo perfeitamente... – Paro diante da expressão dele. – Primeira regra da investigação matrimonial – diz ele, com um sorriso lúgubre. – As

senhoras raramente se enganam. Intuição feminina, percebe? O homem é especialista. Deve saber. – Então o senhor pensa... – Humedeço os lábios subitamente secos. – O senhor realmente

pensa... – Eu não penso – diz Dave Sharpness com um pequeno floreado. – Eu descubro. Quer ele

ande a divertir-se com uma mulher, com duas ou com um monte delas, eu e os meuscolaboradores descobriremos e dar-lhe-emos a prova que a senhora necessitar.

– Ele não anda a divertir-se com um monte de mulheres! – digo, horrorizada. – Sei que não!É só uma mulher específica, a Venetia Carter... – Paro quando Dave Sharpness levanta o dedocom ar reprovador.

– Vamos então descobrir, sim? Agora preciso do máximo de informações que me possafornecer. Todas as mulheres que ele conhece, tanto amigas dele como suas. Gostaria de fazerum serviço meticuloso, Mistress Brandon. Vou elaborar um dossiê completo da vida do seumarido, além do passado de qualquer mulher ou outras pessoas consideradas relevantes. Nofinal da minha investigação, não haverá nada que a senhora não saiba.

– Olhe. – Tento manter a paciência. – Eu já sei tudo sobre Luke. Menos esta coisinha. Ele émeu marido.

– Se eu recebesse uma libra de cada mulher que já me disse a mesma coisa! – DaveSharpness solta um riso rouco. – A senhora preenche os detalhes. Nós fazemos o resto.

Estende-me um bloco. Pego-lhe e folheio-o, inquieta. – É preciso... dar-lhe uma fotografia? – Nós tratamos do assunto. Fale apenas das mulheres. Não deixe ninguém de fora. Amigas...

colegas... a senhora têm alguma irmã? – Bem... tenho – digo, abalada. – Mas ele nunca... quero dizer, nunca na vida... Dave Sharpness abana a cabeça com uma expressão ao mesmo tempo divertida e pensativa. – Ficaria surpreendida, Mistress Brandon. Na minha experiência, quem tem um segredinho,

tem um monte deles. – Entrega-me uma caneta. – Não se preocupe. Em breve a informamos. Escrevo «Venetia Carter» no cimo da página. E paro. O que estou a fazer? – Não posso fazer isto. – Largo a caneta. – Desculpe. É demasiado estranho. E não está certo.

Espiar o meu próprio marido! – Empurro a cadeira para trás e levanto-me. – Não devia tervindo. Nem devia estar aqui!

– Não precisa de decidir já hoje – diz Dave Sharpness, estendendo a mão para um pacote decaramelos, sem se abalar. – Só direi que, das clientes que reagem como a senhora, noventa por

cento voltam dentro de uma semana. Continuam com a investigação, mas perdem uma semana.Como a senhora está em estado avançado... – Baixa intencionalmente os olhos para a minhabarriga. – Bem, se fosse a senhora começaria quanto antes.

– Ah! – Lentamente afundo-me na cadeira. – Não tinha pensado nas coisas dessa maneira. – E não usamos a palavra «espiar» – acrescenta, franzindo o nariz proeminente. – Ninguém

gosta de pensar que está a espiar um ente querido. Preferimos a expressão «observação àdistância».

– Observação à distância. – De facto, parece melhor. Brinco com a minha pedra do parto enquanto penso. Talvez ele tenha razão. Se me for

embora agora, acabarei por voltar dentro de uma semana. Talvez devesse assinar já na linhapontilhada.

– Mas e se o meu marido o vê? – Levanto os olhos. – E se ele estiver totalmente inocente edescobrir que contratei um detetive? Nunca mais vai confiar em mim...

– Deixe-me garantir. – Dave Sharpness levanta a mão. – Todos os meus agentes atuam comabsoluta cautela e discrição. Ou o seu marido é inocente, caso em que nenhum mal acontece, oué culpado, caso em que a senhora tem a prova de que precisa para agir. Para ser perfeitamentefranco, Mistress Brandon, a senhora não tem nada a perder

– Então será impossível ele descobrir? – pergunto, só para ter toda a certeza. – Por favor. – Dave Sharpness solta outra gargalhada. – Mistress Brandon, eu sou

profissional. Francamente, nunca tinha pensado que contratar um investigador particular daria tanto

trabalho. Demoro cerca de quarenta minutos a preencher todas as informações que DaveSharpness quer. Sempre que tento explicar que só estou interessada em saber se Luke se anda aencontrar com a Venetia, ele levanta a mão e diz:

– Acredite em mim, Mistress Brandon, se encontrarmos alguma coisa, a senhora ficaráinteressada.

– Pronto – digo por fim, estendendo-lhe o papel. – Não consigo pensar em mais ninguém. – Excelente. – Dave Sharpness pega no bloco e passa uma unha pelos nomes. – Vamos

examinar esta gente. Entretanto, colocaremos o seu marido no que chamamos vigilância debaixo grau.

– Certo – digo, nervosa. – O que implica isso? – Um dos meus agentes altamente qualificados acompanhará o seu marido por um período

inicial de duas semanas e depois encontrar-nos-emos de novo. Qualquer informação obtidaentretanto ser-lhe-á comunicada diretamente por mim. Devo pedir-lhe um depósito...

– Ah! – digo, tateando na bolsa. – Claro. – E, como nova cliente... – Remexe na gaveta e retira de lá um pequeno panfleto –, a senhora

tem direito à nossa oferta especial. Oferta especial? Mas ele acreditará mesmo que eu esteja interessada numa oferta especial? O

meu casamento está ameaçado. Na verdade, sinto-me até insultada por ele mencionar uma coisadessas.

– Só é válida hoje – continua Dave Sharpness, entregando-me o folheto. – Compre uma eganhe a segunda pela metade do preço. É uma oportunidade única para novos clientes. Umapena perder uma pechincha assim.

Faz-se silêncio. Mesmo sem querer, sinto uma minúscula, uma insignificante onda deinteresse.

– O que quer dizer? – encolho os ombros, relutante. – Só pago metade do segundo detetive? – A senhora tem piada! – Dave Sharpness ri, ofegante. – Não, a senhora pede uma segunda

investigação e paga metade do preço. Economiza aqui, entende? Junta todas as suasnecessidades investigativas numa só.

– Mas eu não tenho mais nenhuma necessidade investigativa. – Tem a certeza? – Ergue uma sobrancelha. – Pense bem, Mistress Brandon. Não há outro

pequeno mistério que precise de esclarecer? Nenhuma pessoa desaparecida que gostasse deencontrar? A oferta só é válida hoje. Vai lamentar, se a perder. – Entrega-me o folheto. – Vejatoda a nossa lista de serviços...

Abro a boca para dizer que não estou interessada e dou por mim a fechá-la de novo. Talvez devesse pensar mais um pouco no assunto. Quero dizer, é um bom negócio. E talvez

haja outra pessoa sobre quem eu queira descobrir alguma coisa. Dou uma vista de olhos aostítulos do folheto. Poderia encontrar um antigo amigo da escola... ou seguir um veículo porsatélite... ou simplesmente descobrir mais sobre um amigo ou vizinho...

Ah, meu Deus. Já sei!

Não sei se Dave realmente percebeu todo a história das sobrancelhas. Mas expliquei-lhe damelhor maneira possível e fiz um desenho e por fim ele ficou bastante entusiasmado. Disse que,se não descobrisse onde e como a Jasmine depilava as sobrancelhas, já não seria o VendedorRegional do Ano de 1989 (do sudoeste). Não sei o que terá isso a ver com o trabalho dedetetive particular – mas tudo bem. Continua com o caso. Com os dois casos.

Então está feito. O problema é que me sinto agora horrivelmente culpada. Quanto mais perto estou de casa, mais culpada me sinto – até que não suporto mais. Entro a

correr na loja da esquina da nossa rua e compro um pequeno ramo de flores e chocolates e, noúltimo momento, junto uma miniatura de uísque.

O carro dele está no nosso lugar de parque, o que significa que deve estar em casa. Enquantosubo no elevador, começo a construir a minha história. O plano é dizer simplesmente que passeia tarde a trabalhar.

Não. Ele pode ter ligado para lá por qualquer motivo e descoberto que tirei a tarde de folga. Vou dizer que fui fazer compras. Num lugar longe de West Ruislip. Mas e se alguém me viu em West Ruislip? Se alguma das empregadas de Luke vive em West

Ruislip e estava a trabalhar em casa? E se telefonou a Luke e lhe disse: «Adivinhe uma coisa,acabo de ver a sua mulher!»

Tudo bem, estava em West Ruislip. Fui lá por... por outro motivo. Fui ver umahipnoterapeuta de gravidez. Sim. Perfeito.

Agora cheguei à nossa porta e, quando a abro, sinto o coração acelerado de nervosismo. – Olá! – Luke aparece no corredor com um enorme ramo de flores e eu olho para ele,

hipnotizada. Os dois com flores? Ah, meu Deus. Ele sabe. Não. Não sejas idiota. Como poderia saber? E se soubesse porque compraria flores? Luke parece também um pouco confuso. – São para ti – diz depois de uma pausa. – Pois – respondo, com a garganta apertada. – Bom... e estas são para ti. Atrapalhados, trocamos os ramos e eu entrego a Luke os chocolates e a miniatura de uísque.

– Vamos... – Luke acena em direção à cozinha e eu acompanho-o até onde temos um sofá euma mesinha baixa. O sol do fim da tarde entra pela janela e quase parece que estamos noverão.

Luke deixa-se cair no sofá ao meu lado e ingere um gole da garrafa de cerveja que está sobrea mesa.

– Becky, só queria dizer-te que lamento muito. – Esfrega a testa, como se quisesse organizaros pensamentos. – Sei que andei distante nos últimos dias. Tem sido um tempo um poucoestranho. Mas... creio que consegui livrar-me de uma coisa que me andava a preocupar.

Por fim levanta a cabeça e sinto que o compreendo. Está a falar nas entrelinhas! Não poderiaser mais claro. Uma coisa que me andava a preocupar. É ela. A Venetia atirou-se a dele e elerejeitou-a. É o que está a tentar dizer-me! Pô-la a andar!

E aqui estou eu, a contratar detetives particulares como se não confiasse nele. Como se não oamasse.

– Luke, desculpa, também! – digo, cheia de remorsos. – A sério. – Porquê? – parece perplexo. – Porque... é... – Cala-te, Becky. – Porque... daquela vez esqueci-me de encomendar as

compras do supermercado. Sempre me senti mal por isso. – Anda cá. – Luke ri e puxa-me para me dar um beijo. Durante algum tempo, ficamos ali

sentados, com o sol quente a dar-nos no rosto. O bebé remexia-se dentro de mim cheio deenergia e ficámos os dois a ver o meu vestido a saltar com o movimento. É estranho,exatamente como disse a Suze. Mas é, ao mesmo tempo, emocionante.

– E então – diz Luke, pondo a mão na minha barriga – quando vamos à procura dos carrinhosde bebé?

– O mais depressa possível! – aperto-o nos meus braços, aliviada. Luke ama-me. Voltou afelicidade. Eu bem sabia. Para: Dave Sharpness De: Rebecca Brandon Assunto: Luke Brandon Caro Mr. Sharpness Só para repetir a mensagem que deixei no seu atendedor de chamadas. Gostaria que o senhorCANCELASSE a investigação sobre o meu marido. Repito: CANCELASSE. Ele não tem umcaso. Em breve contactarei consigo acerca do adiantamento que lhe paguei. Atenciosamente, Rebecca Brandon

FACULDADE DE LÍNGUAS CLÁSSICAS UNIVERSIDADE DE OXFORD

OXFORD OX1 6TH

Mrs. Rebecca Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 11 de novembro de 2003 Cara Mrs. Brandon Tenho o enorme prazer de anexar as traduções das mensagens de texto em latim que me envioue que espero ajudem a descansá-la. São todas perfeitamente inócuas. Por exemplo, «sum suciplena» significa «estou cheia de vida» e não o significado mais pitoresco que a senhora supôs. Também acho que pode ter ficado indevidamente preocupada com as expressões «licitum dic»,«fac me» e «sex», que, em latim, significa «seis». Se puder ajudá-la de futuro, por favor, não hesite em dizer. Talvez necessite de algumas aulasde latim? Com os melhores cumprimentos. Atenciosamente, Edmund Fortescue Professor de Línguas Clássicas

TREZE

O mundo inteiro parece diferente quando o nosso marido não tem um caso. De repente, um telefonema é apenas um telefonema. Uma mensagem de texto, apenas uma

mensagem de texto. Chegar tarde uma noite não é motivo para discussões. Por acaso, «Fac me»não significa... o que eu achei que significava..

Graças a Deus cancelei o detetive particular, é só o que posso dizer. Até queimei todos osdocumentos e recibos para que não haja a mínima possibilidade de Luke descobrir. (E inventeirapidamente uma história sobre o ferro de desfrisar avariado quando o alarme de fumo foiacionado.)

Ultimamente, Luke anda muito mais descontraído! E nem falou nela durante duas semanas.Só quando chegou o convite para uma festa em Cambridge é que ele disse naturalmente: «Ah,sim, a Ven falou-me disso.» É um baile black-tie no Guildhall em Londres, e estou decidida aaparecer o mais fabulosa e elegante que puder, como a Catherine Zeta-Jones no Óscar. Ontemcomprei o melhor vestido, muito justo e sensual, de seda azul-meia-noite, e agora preciso deuns sapatos de salto alto a combinar. (E a Venetia pode engasgar-se à vontade com o frangoque comer.)

De modo que tudo vai maravilhosamente bem. Vamos assinar o contrato da casa na semanaque vem e ontem à noite falámos acerca de dar uma enorme festa de inauguração da casa, o queseria o máximo! E a melhor notícia é que Danny chega hoje! Chega de avião hoje de manhã evem diretamente à loja para conhecer toda a gente e anunciar a sua colaboração com a TheLook. Depois, eu e ele vamos almoçar, só os dois. Estou desejosa!

Quando chego à The Look, às nove e meia, já está tudo na maior agitação. No rés do chão foimontada uma zona de receção, com uma mesa cheia de taças de champanhe e um ecrã enorme,mostrando o último desfile de Danny. Chegaram jornalistas para a conferência de imprensa etodo o departamento de relações públicas circula de olhos brilhantes, distribuindo dossiês deimprensa.

– Rebecca. – Eric avança para mim mesmo antes de eu tirar o casaco. – Uma palavrinha, porfavor. Alguma novidade sobre o projeto?

Este é o único e mínimo problema. Danny disse que apresentaria um projeto provisório nasemana passada. E ainda não o fez. Falei com ele há dias e garantiu-me que estava praticamentepronto, só precisava da inspiração final. O que pode significar qualquer coisa. Provavelmenteque nem o começou. Não que eu vá dizer tal coisa a Eric.

– Está praticamente no fim – respondo do modo mais convincente que posso. – Já viste alguma coisa? – Sem dúvida! – Cruzo os dedos atrás das costas. – E como é? – Franze as sobrancelhas. – É uma blusa? Um vestido? O que é? – É... super inovador. – Aceno vagamente com a mão. – É uma espécie de... Só vendo.

Quando estiver pronto. Eric não parece convencido. – O teu amigo, Mister Kovitz, fez mais um pedido – diz ele. – Dois bilhetes para a

Eurodisney. – Lança um olhar perverso. – Porque quer ele ir à Eurodisney? Não posso deixar de insultar interiormente Danny. Porque não haverá ele de comprar os seus

próprios bilhetes para a Eurodisney? – Inspiração! – digo por fim. – Provavelmente, vai fazer algum comentário satírico sobre a...

cultura moderna. Eric não parece impressionado. – Rebecca, esse teu plano está a custar muito mais tempo e dinheiro do que eu havia previsto

– diz ele, aborrecido. – Dinheiro que podia ter ido para o marketing convencional. Será melhorque dê resultado.

– Vai dar! Prometo que vai! – E se não der? Sinto-me repentinamente frustrada. Porque terá ele de ser tão negativo? – Se não der... demito-me! – digo com um floreado. – Certo? Ficas satisfeito? – Não me vou esquecer, Rebecca – afirma Eric com um olhar de mau agouro. – Não te esqueças! – respondo, confiante, sem desviar os olhos até ele se afastar. Merda. Acabo de lhe oferecer a demissão. Por que diabo o fiz? Pergunto a mim mesma se

não devia ir a correr atrás dele e dizer-lhe: «Olha, olha, estava a brincar» quando o meutelemóvel toca. Abro-o.

– Estou? – Becky? É a Buffy. Contenho um suspiro. Buffy é a assistente de Danny e tem-me ligado todas as noites só para

conferir pormenores sem importância. – Olá, Buffy! – Faço um esforço para falar num tom animado. – Em que posso ajudá-la? – Só queria confirmar se o quarto de hotel de Mister Kovitz foi arranjado como ele pediu. «Vinte e seis graus, a televisão ligada na MTV, três latas de Dr Pepper junto à cama? – Sim. Pedi tudo isso. – De repente, ocorre-me uma coisa. – Buffy, que horas são em Nova

Iorque? – Quatro da manhã – informa ela alegremente e eu olho para o telefone, pasmada. – Levantou-se às quatro da manhã só para confirmar se o Danny vai ter latas de Dr Pepper no

quarto do hotel? – Não há problema! – parece-me perfeitamente desperta. – Faz parte da indústria da moda! – Ele chegou! – grita alguém junto da porta. – O Danny Kovitz está aqui! – Buffy, tenho de desligar – digo rapidamente e desligo o telefone. Dirijo-me à porta e vejo

uma limusina lá fora e sinto-me emocionada. É incrível como Danny ficou importante. Então a porta abre-se – e ali está ele! Magro como sempre, com umas calças de ganga velhas

e o casaco preto mais giro que já vi, com uma das mangas feita de forro de colchão. Parececansado e tem o cabelo encaracolado revolto, mas os olhos azuis iluminam-se assim que me vêe vem a correr ter comigo.

– Becky! Ah, meu Deus, olha para ti. – Dá-me um abraço enorme. – Estás fabulosa! – Então e tu? – replico. – O Senhor Famoso! – Qual quê! Não sou famoso... – Durante dois segundos, Danny tenta depreciar-se. – Bem...

okay. Pois sou, sim. Não é uma loucura?

Não consigo evitar uma gargalhada. – Então, é este o teu séquito? – Aponto com o queixo para a mulher com auriculares e

microfone, que entrou com um tipo gigantesco e careca, género serviços secretos. – Esta é a minha assistente, Carla. – Pensei que a Buffy fosse a tua assistente. – A minha segunda assistente – explica Danny. – E aquele é o Stan, o meu guarda-costas. – Precisas de um guarda-costas? – pergunto, espantada. Nem eu me apercebera de que Danny

era agora tão famoso. – Bom, para falar verdade não preciso dele – admite Danny. – Mas achei que seria fantástico.

Olha, encomendaste Dr Pepper para o meu quarto? – Três latas. – Vejo Eric aproximar-se e rapidamente conduzo Danny até à mesa do

champanhe. – Então... como está o projeto? – pergunto em tom natural. – É que o meu chefeanda a fazer pressão...

Uma expressão defensiva que bem conheço surge no rosto de Danny. – Estou a trabalhar nele, okay? – diz. – A minha equipa teve algumas ideias, mas não estou

satisfeito com elas. Preciso de absorver o feeling da loja... no ambiente de Londres... talvezinspirar-me noutras cidades europeias.

Outras cidades europeias? – Pronto. E... quanto tempo achas que isso vai demorar? Mais ou menos? – Deixe que me apresente – interrompe Eric, que por fim nos alcançou. – Eric Wilmot. Chefe

de marketing dos armazéns The Look. Bem-vindo a Inglaterra. – Aperta a mão de Danny comum sorriso sério. – É um prazer enorme ter a colaboração de um estilista jovem e talentoso numprojeto de moda tão atraente.

A frase saiu, palavra por palavra, do comunicado para a imprensa. Sei porque fui eu que oescrevi.

– O Danny estava a dizer que está perto do projeto final! – informo Eric, rezando para queDanny fique de boca fechada. – Não é fantástico? Se bem que ainda não haja uma escala detempo exata...

– Mister Kovitz? – Uma miúda na casa dos vinte, de botas verdes e um casaco muito estranhofeito do que parece ser película aderente, aproxima-se tímida. – Sou da Fashion StudentGazette. Só queria dizer que sou uma enorme fã sua. Todos somos, no meu ano na CentralSaint Martin’s. Será que podia fazer-lhe algumas perguntas sobre a sua inspiração?

Ah! Estás a ver? Lanço um olhar triunfante a Eric, que simplesmente responde com um gestoamuado.

É extremamente emocionante fazer parte de um grande lançamento de moda num grandearmazém! Mesmo que seja um grande armazém quase falido e vazio.

Todo a gente discursa, até eu. Brianna anuncia a iniciativa e agradece a presença de todos osjornalistas. Eric diz mais uma vez que estamos encantados por podermos trabalhar com Danny.Eu explico que conheço Danny desde que ele apresentou a sua primeira coleção no Barneys(não menciono que todas as T-shirts se desfizeram e eu quase fui despedida). Danny refere queestá encantado por ser estilista residente do The Look e que tem a certeza de que, em seismeses, este será o único local para fazer compras em Londres.

No fim, toda a gente está com um humor super animado. Toda a gente menos Eric. – Estilista residente? – pergunta assim que me apanha a sós. – O que significa isso? Ele acha

que vamos aguentá-lo durante a merda do ano inteiro?

– Não! – respondo. – Claro que não. Acho que terei de ter uma pequenina conversa com Danny. Por fim, depois de engolir todo o champanhe, os jornalistas de moda vão-se embora. Brianna e Eric desaparecem nas suas salas e fico sozinha com Danny. Ou, pelo menos, com

Danny e o seu pessoal. – E então, vamos almoçar? – sugiro. – Claro! – responde Danny e olha para Carla, que imediatamente fala ao microfone. – Travis?

Travis, é a Carla. Podes trazer o carro, por favor? Boa! Vamos de limusina! – Há um lugar muito simpático aqui na esquina... – digo, mas Carla interrompe-me. – A Buffy fez reservas em três restaurantes recomendados pelo Zagat. Japonês, francês, acho

que o terceiro é italiano... – Que tal um marroquino? – pergunta Danny enquanto o motorista abre a porta. – Vou ligar para a Buffy – diz Carla sem sequer pestanejar. Toca numa tecla de atalho do

telemóvel enquanto entramos na limusina. – Buffy, aqui Carla. Poderias, por favor, cancelar asreservas que fizeste e pesquisar um restaurante marroquino para o almoço? Marroquino –repete, enunciando com clareza. – Na zona ocidental de Londres. Obrigada, querida.

– Apetece-me um café com leite – diz Danny de repente. – Um mocha latte. Sem se atrapalhar, Carla fala de novo ao telefone. – Estou, Travis, aqui é a Carla. Por favor, será que poderíamos parar num Starbucks? Sim,

Starbucks. Trinta segundos depois, a limusina para diante de um Starbucks. Carla abre a porta. – Só um mocha latte? – pergunta ela. – Ahã – responde Danny, esticando-se, preguiçoso. – Queres alguma coisa, Stan? – Carla olha para o guarda-costas, afundado no banco, ligado

ao iPod. – Hein? – Ele abre os olhos. – Ah, certo, Starbucks. Traz-me um cappuccino. Com muita

espuma. A porta do carro fecha-se e volto-me para Danny, incrédula. Terá pessoas a correr atrás dele

assim o dia inteiro? – Danny... – Hein? – Danny levanta os olhos da Cosmo Girl. – Estás com frio aqui dentro? Eu estou. –

Pega no telefone e carrega na tecla de atalho. – Carla, o carro está um pouco frio. Certo,obrigado.

E pronto. – Danny, isto é ridículo! – exclamo. – Não podes ser tu a falar com o motorista? Não podes ir

buscar o teu café? Danny parece genuinamente perplexo. – Bem... poder, podia – diz. – Acho eu. – O telemóvel toca e ele atende. – É, com canela. Ah,

que pena. – Tapa o bocal. – A Buffy não nos consegue encontrar um restaurante marroquino.Que tal um fusion libanês?

– Danny... – Estou a sentir-me de outro planeta. – Há um restaurante muito simpático aquimesmo. – Aponto para o lado de fora do carro. – Não podíamos simplesmente entrar ali? Sónós dois, sem mais ninguém?

– Ah! – Danny parece estar a aperceber-se da ideia. – Bem... claro. Vamos.

Saímos do carro no momento em que Carla se aproxima com uma bandeja da Starbucks. – Passa-se alguma coisa? – observa-nos, preocupada. – Vamos almoçar – respondo. – Só o Danny e eu. Ali. – Okay. – Carla assente vigorosamente como se avaliasse a situação. – Fantástico. Vou fazer-

vos uma reserva... – Para meu espanto absoluto, ele liga de novo o telefone. – Olá, Buffy,poderias, por favor, reservar uma mesa num restaurante chamado Annie’s, deixa-me soletrar...

A Buffy está em Nova Iorque. Nós estamos a três metros do restaurante. Como pode istofazer sentido?

– Francamente, estamos bem, obrigada! – digo a Carla. – Até logo! – Em seguida, arrastoDanny pelo passeio e entramos no restaurante.

Temos de esperar um pouco por uma mesa. Mas eu espeto a barriga o máximo possível,suspiro ansiosa para o maître – e alguns minutos depois estamos abrigados numa mesinha decanto, mergulhando pão num azeite delicioso. O que é um alívio. De contrário, teria de admitira minha derrota e ligar à Buffy.

– É fantástico estar aqui – comenta Danny enquanto um empregado lhe serve um copo devinho. – À tua, Becky!

– À tua! – Brindo também com o meu copo. – E ao teu fabuloso projeto para o The Look! –Forço-me a fazer uma pausa natural. – Então, ias dizer-me quando terias qualquer coisa paranos mostrar?

– Ia? – Danny parece surpreendido. – Olha, queres ir a Paris comigo na semana que vem? Oambiente gay por lá é do melhor...

– O máximo! – confirmo com a cabeça. – O que se passa, Danny, é que nós mais... oumenos... precisamos de ter qualquer coisa... rapidamente.

– Rapidamente? – Danny arregala os olhos, parecendo traído. – Como assim rapidamente? – Ora, sabes muito bem! O mais depressa possível, realmente. Estamos a tentar salvar a loja,

de modo que, quanto mais cedo tivermos alguma coisa, melhor... – Deixo no ar a fraseenquanto Danny olha para mim com ar reprovador.

– Eu podia ser «rápido» – diz, pronunciando a palavra com desdém. – Podia juntar umasideias merdosas em cinco minutos. Ou podia fazer alguma coisa significativa. O que pode levartempo. É assim o processo criativo. Desculpa se sou artista. – Bebe um gole e pousa o copo.

Não posso dizer que algumas ideias merdosas em cinco minutos parece ótimo ou posso? – Não há um meio-termo? – sugiro por fim. – Tipo... umas ideias razoavelmente boas em

mais ou menos... uma semana? – Uma semana? – Danny parece ainda mais ofendido que antes. – Ou... sei lá – recuo. – És tu o criativo, sabes como trabalhar. E então! O que queres comer? Pedimos penne (eu), lagosta (Danny), a salada especial de ovos de codorniz (Danny) e um

cocktail de champanhe (Danny). – Então, e tu, como estás? – pergunta Danny quando o empregado por fim se retira. – Passei

por um pesadelo total com o meu namorado, o Nathan. Achei que ele andava a encontrar-secom outra pessoa.

– Eu também – confesso. – O quê? – Danny larga o pãozinho, atónito. – Achavas que o Luke estava... – A ter um caso – confirmo. – Estás a brincar. – Parece genuinamente chocado. – Mas vocês os dois são tão perfeitos! – Agora está tudo bem – tranquilizo-o. – Sei que não há nada. Mas quase o mandei seguir por

um detetive particular. – Estás a brincar! – Danny inclina-se para a frente, os olhos iluminados. – E o que

aconteceu? – Cancelei. – Meu Deus. – Danny mastiga o pãozinho enquanto absorve a ideia. – Então, porque achavas

que ele te traía? – Há uma mulher. A nossa obstetra, que foi namorada do Luke. – Oooh! – Danny estremece. – A ex-namorada. Safa! E como é ela? Tenho um súbito flashback da Venetia a obrigar-me a vestir aquelas nojentas meias de

descanso, os olhos a reluzir de triunfo. – É uma vaca ruiva e odeio-a – respondo com maior veemência do que pretendia. – Chamo-

lhe Cruella de Venetia. – E ela vai fazer o parto? – Danny começa a rir. – Isso é mesmo verdade? – Não tem graça nenhuma! – Mas também não consigo evitar uma gargalhada. – Tenho de assistir a esse parto. – Danny deita um pouco de azeite num gressino. – «Faça

força!» «Não faço, sua cabra!» Devia vender bilhetes. – Para com isso! – Dói-me a barriga de tanto rir. Na mesa, o meu telemóvel dá sinal de

mensagem e eu pego-lhe para a ler. – Olha, é o Luke! Ele vai passar por aqui para te dizer olá!– Mandei uma mensagem a Luke enquanto fazíamos os pedidos para o avisar que íamosalmoçar.

– Fantástico. – Danny bebe um grande gole de seu cocktail de champanhe. – Então, agoraestão numa boa?

– Estamos ótimos. Na verdade, as coisas andam maravilhosas. Amanhã vamos ver carrinhosde bebé. – Lanço a Danny um sorriso de êxtase.

– Ele nem sabe que pensavas que ele te andava a trair? – Puxei a conversa algumas vezes – digo lentamente, passando manteiga noutro pãozinho. –

Mas ele sempre negou que houvesse alguma coisa. Não vou falar outra vez no assunto. – Nem no detetive particular. – Os olhos de Danny reluzem. – Obviamente nem no detetive particular. – Franzo os olhos. – E não digas uma palavra,

Danny. – Nunca diria! – exclama Danny, inocente, e bebe mais um gole do cocktail de champanhe. – Olá, pessoal! – Viro-me e vejo Luke a abrir caminho pelo restaurante apinhado. Veste o seu

fato novo Paul Smith e tem o BlackBerry na mão. Pisca-me o olho ao de leve, e esforço-me pornão perder a compostura, embora me apeteça lançar-lhe um sorriso malicioso ao lembrar-medesta manhã. E não, não vou explicar. Digamos apenas que, se estou tão «pouco atraente» e tão«pouco sensual» como disse a Venetia, então porque é que o Luke...

Mas adiante. – Danny! Há quanto tempo. – Luke! – Danny põe-se de pé num salto e dá-lhe uma palmada nas costas. – Que bom ver-

te! – Parabéns pelo sucesso! – Luke puxa uma cadeira da mesa vizinha. – Não posso ficar muito

tempo, mas queria dar-te as boas-vindas a Londres. – À tua, amigo. – Danny faz o pior sotaque cockney que jamais ouvi. Acaba o cocktail de

champanhe e faz sinal ao empregado que traga outro. – E parabéns aos dois! – Passa a mão aode leve na minha barriga e depois encolhe-se quando sente um pontapé. – Meu Deus. O que foi

isso? – É fascinante! – concorda Luke, com um sorriso. – Só faltam algumas semanas. – Meu Deus. – Danny continua a olhar para a minha barriga. – E se estiver uma menina, aí

dentro? Outra pequenina Becky Bloom? É melhor voltares para o escritório e ganhares umpouco mais de dinheiro, Luke, porque vais precisar.

– Cala-te! – Bato-lhe no braço. Mas Luke já está a levantar-se da cadeira. – De qualquer modo, só passei por aqui. O Iain está à minha espera no carro. Vemo-nos

depois, Danny. Até logo, querida. – Dá-me um beijo na testa, depois espreita pela montra dorestaurante com se procurasse alguma coisa.

– O que foi? – pergunto, acompanhando-lhe o olhar. – É... – Luke franze a testa. – Não ia dizer nada. Mas nos últimos dias sinto-me como se

estivesse a ser seguido. – Seguido? – Vejo sempre o mesmo fulano. – Luke encolhe os ombros. – Estava em frente ao meu

escritório ontem e vi-o agora mesmo. – Mas quem, afinal... – Detenho-me. Merda. Não. Não pode ser. Eu cancelei. Sei que cancelei. Telefonei e deixei recado no atendedor de chamadas do Dave

Sharpness. E mandei-lhe um e-mail. Levanto a cabeça e vejo o ar deliciado de Danny enquanto olha para mim. – Achas que anda alguém a seguir-te, Luke? – pergunta, erguendo as sobrancelhas. – Tipo...

um detetive particular, talvez? Vou matá-lo. – Provavelmente não é nada! – A minha voz sai um pouco estrangulada. – É só coincidência! – Provavelmente – confirma Luke. – Mas é estranho. Até logo. – Toca na minha mão e

ficamos a vê-lo abrir caminho por entre as mesas. – A confiança é uma coisa linda num casal – comenta Danny. – Vocês os dois têm muita

sorte. – Cala a boca! – pego no telefone. – Tenho de os mandar cancelar! – Pensei que já o tinhas feito. – E fiz! Há dias! É tudo um equívoco! – Encontro o cartão de Dave Sharpness e marco o

número, com os dedos agitados. – Como achas que o Luke vai reagir quando descobrir que mandaste segui-lo? – pergunta

Danny em tom natural. – Eu ficaria furioso, se fosse comigo. – Não me estás a ajudar nada. – Olho para ele, furiosa. – E obrigada por teres mencionado

detetives particulares! – Ah, desculpa! – Danny tapa a boca com a mão numa desculpa fingida. – Pois, ele nunca

teria deduzido sozinho. A chamada vai para o voicemail e respiro fundo. – Mister Sharpness, aqui é a Becky Brandon. Parece ter havido alguma confusão. Gostaria

que o senhor deixasse de seguir o meu marido, Luke. Não quero nenhuma investigação. Porfavor, mande chamar imediatamente os seus agentes. Obrigada. – Desligo o telefone e bebo umgole do cocktail de champanhe de Danny, respirando ofegante. – Pronto. Está feito.

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros de Finanças Forward House

High Holborn, 394. Londres WC1V 7EX

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 20 de novembro de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigado pela sua carta. Vi uma nova compra de ações da London Cappuccino Company. Recomendaria que não fizesse mais compras de ações simplesmente por causa de«extraordinárias vantagens para o acionista» como café grátis. A senhora deveria procurarperspetivas sólidas, a longo prazo. Em resposta à sua outra pergunta, não conheço nenhuma empresa de joias que dê diamantesgrátis aos seus acionistas. Atenciosamente, Kenneth Prendergast Especialista em Investimentos de Família

CATORZE

Só espero que tenham recebido a mensagem. Ou a que deixei naquele fim de tarde. Ou a quedeixei hoje, de manhã cedo. Devo ter atulhado completamente o voicemail de Dave Sharpness,com ordens para que pare a investigação. Mas, até falar pessoalmente com ele, não posso ter acerteza de que a mensagem foi recebida.

O que significa que a vigilância ainda pode continuar. Quando saímos juntos do apartamento na manhã seguinte para ir ao centro dos carrinhos de

bebé, tenho os sentidos em alerta máximo. De certeza que alguém nos segue. Mas onde?Escondido nas árvores? Sentado num carro estacionado com uma teleobjetiva apontada paranós? Desço os degraus do prédio olhando rapidamente para um e outro lado. Oiço um ruídoeletrónico à minha esquerda e instintivamente cubro o rosto com a mão até que percebo quenão é uma máquina fotográfica, mas sim alguém a abrir um carro.

– Sentes-te bem, querida? – Luke olha-me, perplexo. O carteiro aparece e lanço-lhe um olhar de suspeita. Será que é realmente o carteiro? Ah, sim. É. Vou rapidamente ter com Luke. – Pronto, vamos já para o carro. Depressa. Devíamos ter comprado um carro com vidros fumados. Eu disse a Luke. E um frigorífico

incorporado. O meu telemóvel toca no momento em que chegamos ao portão do nosso prédio, fazendo-me

saltar de susto. É coincidência a mais. Deve ser o detetive particular a dizer que está no porta-bagagens do carro. Ou que está no prédio do outro lado, com uma arma de atirador furtivoapontada a Luke...

Para com isso. Não contratei um assassino. Está tudo bem. Mesmo assim, quando pego no telemóvel, tenho as mãos a tremer. – Ah... estou? – digo, nervosa. – Olá, sou eu! – diz a voz fresca e animada de Suze, com o clamor de vozes de crianças ao

fundo. – Escuta, se tiverem um Urban Baby duplo com saco e forro vermelho, compras-me? Eupago.

– Ah... claro. – Pego na caneta e anoto. – Mais alguma coisa? – Não, só isso. Tenho de desligar. Falamos depois! Guardo o telemóvel, ainda nervosa. Estamos a ser seguidos, sei que estamos. – Então, onde fica esse sítio? – Luke consulta o folheto e começa a tocar nos botões do GPS.

Aparece o mapa e ele faz uma careta. – Fica a quilómetros de distância. Temos mesmo de láir?

– É o melhor lugar de Londres! Olha! – Leio no panfleto. – «Pode experimentar todos oscarrinhos de alta qualidade numa variedade de terrenos e um consultor ajudá-lo-á a atravessar o

labirinto.» – O labirinto da compra de um carrinho ou um labirinto de verdade? – pergunta Luke. – Não sei – admito depois de procurar no folheto. – Mas, de qualquer modo, tem o maior

número de opções, e a Suze disse que devíamos lá ir. – Pois. – Luke ergue a sobrancelha e faz inversão de marcha. Então franze a testa para o

retrovisor. – Parece-me que conheço aquele carro. Merda. Tentando parecer natural, volto a cabeça para ver. É um Ford castanho, conduzido por um

homem. Um sujeito com tipo de detetive particular, cabelo escuro, rosto cheio de marcas. Merda merda merda. – Vamos ligar o rádio! – digo. Começo a sintonizar diferentes estações, aumentando o

volume, tentando distraí-lo. – De qualquer modo, qual é o problema? Há um monte de Fordscastanhos no mundo. Quem sabe quantos? Provavelmente... cinco milhões. Não, dez...

– Ford castanho? – Luke lança-me um olhar estranho. – O quê? Volto a cabeça de novo. O Ford castanho desapareceu. Para onde foi? – Estava a falar daquele BMW descapotável por que passámos – diz Luke, baixando o volume

do rádio. – Parecia o carro do marido da Mel. – Ah, sim – digo, depois de uma pausa, e não digo mais nada. Talvez seja melhor ficar de

boca fechada por um tempo. Não tinha percebido que iria demorar uma hora para chegar ao Pram City. É um armazém no

norte de Londres e há um esquema especial em que é preciso estacionar o carro e apanhar umautocarro. Também não tinha percebido isso. Mas mesmo assim vai valer a pena quandotivermos o über-carrinho mais chique do mundo!

Quando descemos do autocarro, olho disfarçadamente em redor – mas não vejo ninguém quese pareça com um investigador particular. Na maioria, são casais grávidos como nós. A nãoser... talvez Dave Sharpness tenha contratado outro casal grávido para nos seguir.

Não. Estou a ficar paranoica. Não posso continuar obcecada com isto. De qualquer forma,seria a pior coisa do mundo se Luke descobrisse? Pelo menos, importo-me com o nossocasamento. De certo modo, deveria sentir-se lisonjeado porque mandei segui-lo.

Exatamente. Dirigimo-nos a umas portas enormes com todos os outros casais e, quando entramos, não

consigo evitar sentir um certo prazer. Cá estamos, a escolher o carrinho juntos. Como sempre imaginei! – Então! – Sorrio para Luke. – O que achas? Por onde vamos começar? – Meu Deus – diz Luke, olhando em volta. É um enorme edifício com teto abobadado, ar

condicionado defeituoso e canções de embalar a tocar no sistema de som. Faixas coloridas detrês metros de comprimento, penduradas do teto, anunciam «Carrinhos de passeio», «Todo-o-Terreno», «Sistemas de viagem», «Gémeos e outros».

– Do que precisamos? – Luke coça a testa. – Um sistema de viagem? Um carrinho depasseio?

– Depende. – Tento parecer que entendo do assunto. Mas a verdade é que ainda estou muitoverde nesta história de carrinhos e cadeirinhas. Suze tentou explicar-me o sistema, mas eracomo ir às conferências de imprensa quando era jornalista de finanças. Passei por cima dos próse contras das rodas com controlo de direção à frente e, quando ela terminou, fiquei atrapalhadapor ter de admitir que não entendera uma única palavra.

– Fiz alguma pesquisa – acrescento e enfio a mão na mala para retirar de lá a Lista deCarrinhos, que entrego a Luke com orgulho. Nas últimas semanas, sempre que via um carrinhode bebé giro, anotava o nome; não foi fácil. Tive de andar atrás deles por toda a High StreetKensington.

Luke folheia as páginas, incrédulo. – Becky, aqui há cerca de trinta carrinhos. – Bem, a lista é longa! Só precisamos de a reduzir um pouco... – Posso ajudá-los? – Levantamos os olhos e vemos um homem de cabeça redonda e cabelo

curto que se aproxima. Veste uma camisa de manga curta e tem um distintivo da Pram City quediz «O meu nome é Stuart» e empurra habilmente um carrinho roxo apenas com uma mão.

– Precisamos de um carrinho – diz Luke. – Ah! – O olhar de Stuart baixa para a minha barriga. – Parabéns! É a primeira vez que vêm

aqui? – Primeira e única – diz Luke com firmeza. – Não quero ser grosseiro, mas gostaríamos de

resolver tudo numa única visita, não é verdade, Becky? – Sem dúvida! – concordo. – Claro. Glenda? Encarregue-se disto, por favor. Devolva-o à secção D. – Stuart empurra o

carrinho roxo pelo piso brilhante até uma jovem que está a uns dez metros de distância, depoisvolta para perto de nós. – Bom, que tipo de carrinho procuram?

– Não temos bem a certeza – respondo, olhando para Luke. – Creio que precisamos de ajuda. – Claro! – Stuart acena afirmativamente. – Venham por aqui. Leva-nos para o centro da zona dos sistemas de viagem, depois para, como um guia de

museu. – Cada casal é diferente – diz ele em voz cantarolada. – Cada bebé é único. Assim, antes de

avançarmos, gostaria de fazer algumas perguntas sobre o vosso estilo de vida para melhor guiara vossa escolha. – Pega num pequeno bloco de papel que tem preso ao cinto por uma mola. –Vamos avaliar o terreno. O que irão exigir do vosso veículo? Passeios na rua e compras?Caminhadas no campo? Escaladas radicais?

– Tudo – digo ligeiramente hipnotizada por aquela voz. – Tudo? – exclama Luke. – Becky, desde quando fazes escaladas radicais? – Posso vir a fazer! – respondo. – Posso começar, como passatempo! – Imagino-me a

empurrar um carrinho no sopé do Everest enquanto o bebé arrulha todo feliz. – Acho que, nestafase, não devíamos descartar nada.

– Ahã. – Stuart rabisca algumas anotações. – Bom, vão querer que o carrinho se dobre rápidae facilmente para ser posto no carro? Quererão que se converta numa cadeirinha para o carro?Procuram algo leve e manobrável ou forte e seguro?

Olho para Luke que parece tão perplexo como eu. – Vamos ver alguns modelos. – Stuart compadece-se de nós. – Assim poderão começar. Meia hora depois, tenho a cabeça às voltas. Vemos carrinhos que se transformam em

cadeirinhas para carro, carrinhos que se dobram com ação hidráulica, carrinhos com rodas debicicletas, carrinhos com colchões especiais de molas alemãs e uma coisa incrível que mantémo bebé longe da poluição e é «ideal para ir fazer compras e beber um latte». (Adorei esse.)Vimos suporte para pés, capas para chuva, bolsas de fraldas e capotas.

Para ser franca, neste ponto, estou pronta para um latte, mas Luke continua totalmentefascinado. Examina a estrutura de um carrinho com as rodas maiores e mais fortes que já vi. É

acolchoado com tecido de camuflagem cáqui e parece um enorme brinquedo Action Man. – Então este tem chassis articulado – diz interessado. – Como afeta isso as rotações? Pelo amor de Deus. Não se trata de um carro. – Não se podem superar as rotações deste modelo. – Os olhos de Stuart brilham enquanto ele

demonstra. – O Guerreiro é o Humvee dos carrinhos fora-de-estrada. Está a ver o eixo dasmolas?

– Guerreiro? – repito, pasmada. – Não vamos comprar um carrinho chamado Guerreiro! Os dois homens ignoram-me. – É uma fantástica peça de engenharia. – Luke aperta as pegas. – A sensação é boa. – Isso é um carrinho para homem. Não é um carrinho da moda. – Stuart olha com ligeiro

desdém para o carrinho com estampas Lulu Guinness que tenho na mão. – Outro dia esteve aquium sujeito que já foi das forças especiais, Mister Brandon – baixa a voz. – Foi este o carrinhoque escolheu.

– Gosto muito. – Luke empurra-o para trás e para a frente. – Becky, acho que devemoscomprar este.

– Está bem. – Reviro os olhos. – Esse pode ser o teu. – Como, o meu? – Luke olha-me fixamente. – Eu quero comprar este! – digo em tom de desafio. – Tem uma etiqueta da Lulu Guinness

em edição limitada e suporte para iPod. E olha a capota para o sol. É fabuloso! – Não podes estar a falar a sério. – Luke lança um olhar de desdém ao carrinho. – Parece um

brinquedo. – Bom, o teu parece um tanque! Não vou empurrar isso pela rua! – Gostaria apenas de fazer notar – intervém Stuart delicadamente – que, embora aplauda

ambas as escolhas, nenhum destes modelos serve de cadeirinha para o carro ou tem a facilidadede se dobrar completamente, conforme de início desejavam.

– Ah! – Olho para o carrinho Lulu Guinness. – Ah, pois. – Será que poderia sugerir que voltem atrás, tomem um café e pensem nas vossas

necessidades? Talvez precisem de mais de um veículo. Um fora-de-estrada, outro para andarpelas lojas.

É uma ideia. Stuart dirige-se apressadamente a outro casal e Luke e eu seguimos para o café. – Okay – digo quando chegamos às mesas. – Vai buscar os cafés. Vou ficar aqui sentada a

pensar no que precisamos exatamente. Puxo uma cadeira, sento-me e pego na caneta e na minha Lista de Carrinhos. No verso,

escrevo «Prioridades de Carrinho» e desenho uma tabela. O único modo de fazer isto é sertotalmente rigorosa e científica.

Minutos depois, Luke aproxima-se com uma bandeja de bebidas. – Avançaste alguma coisa? – pergunta, sentando-se à minha frente. – Sim! – Levanto os olhos, o rosto ruborizado com o esforço. – Pronto. Estive a pensar

logicamente e… precisamos de cinco carrinhos. – Cinco? – Luke quase deixa cair o seu café. – Becky. Um único bebé não pode precisar de

cinco carros. – Precisa! Olha. – Mostro-lhe a tabela. – Precisamos de um sistema de viagem com ovo e

cadeirinha de carro para enquanto for pequenino. – Conto pelos dedos. – Precisamos de outroapropriado para fazermos caminhadas. Precisamos daqueles para as compras e lattes na cidade.

Precisamos do que se dobra todo, para o carro. E precisamos do Lulu Guinness com iPod. – Porquê? – Porque... é o máximo – digo na defensiva. – E todas as outras mães deliciosas também vão

ter um. – As outras mães deliciosas? – Luke lança-me um olhar vago. Francamente. Será que não se

lembra de nada? – Na Vogue! Eu tenho de ser a mais deliciosa de todas. Stuart passa pela área do café e Luke chama-o. – Com licença. A minha mulher está a dizer que quer comprar cinco carrinhos. Por favor,

pode explicar-lhe que tal coisa é totalmente irracional? – O senhor ficaria surpreendido – diz Stuart, piscando-me confidencialmente o olho –, mas

recebemos clientes que repetem a visita. E se o senhor quer resolver toda a compra de uma sóvez, pode fazer sentido... – detém-se diante da expressão empedernida de Luke e aclara agarganta. – Porque não experimentar alguns modelos na nossa pista todo-o-terreno? Ficarãocom uma ideia real.

A pista todo-o-terreno fica nas traseiras da loja e Stuart ajuda-nos a levar até lá todas asnossas «possibilidades».

– Nós, na Pram City, temos muito orgulho na nossa pista de carrinhos – diz, empurrando semesforço seis carrinhos em linha reta. – Enquanto circularem por ela, encontrarão todo o tipo desuperfícies desde o mármore brilhante de um centro comercial até à praia de seixos de umasférias de verão e a escadaria de uma catedral... cá estamos!

Uau. Estou impressionada. A pista de carrinhos tem uns trinta metros de comprimento,parece uma pisca de corridas, e por todo o caminho há pessoas a empurrar carrinhos e a gritarumas às outras. Na zona dos seixos, uma jovem ficou totalmente bloqueada com o carrinhocom uma sombrinha cor-de-rosa, e, na zona da praia, há duas criancinhas a atirar areia uma àoutra.

– Que máximo! – Pego no carrinho «latte e compras» e dirijo-me à partida. – Apostamos acorrida, senhor Guerreiro.

– Vamos nessa. – Luke segura as enormes pegas de cáqui, depois franze a testa. – Comodestravo?

– Ah! Já perdeste! – Começo a rodar na zona da «calçada» com o meu carrinho elegante.Instantes depois, vejo Luke começar a empurrar o monstro para rapidamente se aproximar demim.

– Não te atrevas! – digo, por cima do ombro, e acelero o passo. – O Guerreiro é invencível – afirma Luke, numa voz de trailer de cinema. – O Guerreiro não

admite derrota. – O Guerreiro consegue fazer uma volta completa? – pergunto. Estamos agora na superfície

de mármore e o meu carrinho é incrível! Empurro-o com um dedo e ele faz praticamente umoito. – Estás a ver? É absolutamente... – Levanto os olhos e vejo Luke já na gravilha. – Nãofizeste as voltas obrigatórias! – grito, ofendida. – Vinte segundos de penalidade!

Devo dizer que o Guerreiro é ótimo sobre a gravilha. Esmaga simplesmente as pedras,obrigando-as a submeterem-se. Ao passo que o meu carrinho é um pouco... merdoso.

– Precisas de ajuda? – pergunta Luke quando vê que tento continuar. – Há problema comesse teu carrinho inferior?

– Não penso levar o bebé para um poço de cascalho – respondo, delicada. Chego à relva e,

acidentalmente-de-propósito, bato com o meu carrinho no de Luke. – Problemas de direção? – Ergue as sobrancelhas. – Só estou a experimentar os teus airbags – respondo. – Parece que não funcionam. – É muito simpático da tua parte. Posso experimentar o teu? – Bate com o carrinho dele no

meu e, com um risinho, empurro-o também. Junto à proteção lateral, vejo que Stuart olha paranós com ligeira preocupação.

– Já tomaram alguma decisão? – grita. – Ah, sim – grita Luke, acenando com a cabeça. – Queremos três Guerreiros. – Cala-te! – Bato em Luke com as costas da mão e ele solta uma gargalhada. – Ou melhor,

quatro... – Detém-se quando o telemóvel toca. – Espera um segundo. – Pega no telefone e leva-o ao ouvido. – Luke Brandon. Ah, olá.

Larga o carrinho e volta-se. Talvez agora fosse altura de eu experimentar o Guerreiro. Seguroa enorme pega e empurro-o, hesitando.

– Estás a brincar – ouço Luke dizer incisivamente. Volto o Guerreiro até ficar de frente paraele. Tem o rosto tenso e pálido e escuta com a testa franzida. Está tudo bem?, murmuro, masLuke volta-se imediatamente e afasta-se de mim vários passos.

– Certo – oiço-o dizer. – Temos de... pensar nisso. – Despenteia o cabelo enquanto caminhapela pista dos carrinhos, sem sequer reparar que um casal com um carrinho de três rodas tem dese desviar dele.

Ligeiramente ansiosa, sigo-o com o Guerreiro. O que aconteceu? Quem está ao telefone?Bato com as rodas nos degraus e por fim alcanço-o na zona da areia da praia. Quando meaproximo, sinto-me invadida pelo nervosismo. Ele levanta-se, segurando o telemóvel comforça, o rosto marcado pela tensão.

– Isso nem sequer é uma opção – diz Luke sempre em voz baixa. – Não existe. – De repente,repara em mim, e o seu rosto fica rígido.

– Luke... – Estou ao telefone, Becky. – Parece irritado. – Será que posso ter um pouco de privacidade,

por favor? – Levanta-se e vai andando pela areia, deixando-me a olhar para ele, sentindo-mecomo se tivesse levado um soco na cara.

Privacidade? Em relação a mim? Sinto as pernas a tremer enquanto o vejo afastar. O que correu mal? Há uns instantes

empurrávamos os carrinhos, a rir e a provocar-nos um ao outro e agora... De repente, percebo que o meu telemóvel começou a tocar dentro da mala. Tenho uma

convicção súbita e louca de que é Luke para pedir desculpa, mas vejo-o do outro lado da pistade carrinhos, ainda a falar.

Pego no telefone e atendo. – Estou? – Mistress Brandon? – diz uma voz entrecortada. – Daqui fala Dave Sharpness. Ah, pelo amor de Deus. Precisamente agora! – Até que enfim! – respondo, com rispidez, atirando a minha preocupação para cima dele. –

Escute, eu cancelei-o! Mas o que está a fazer, continuando a seguir o meu marido? – Mistress Brandon. – Dave Sharpness solta uma gargalhada. – Se eu ganhasse um cêntimo

por cada mulher que me telefona a cancelar no dia seguinte e depois se arrepende... – Mas eu queria que o senhor cancelasse! – Frustrada tenho vontade de atirar com o

telemóvel para bem longe. – O meu marido sabe que está a ser seguido! Viu um dos seus

homens! – Ah. – Dave Sharpness parece abalado. – Bom, não devia ter acontecido. Vou falar com o

agente em questão... – Cancele-os a todos! Cancele-os a todos imediatamente, antes que o meu casamento seja

arruinado! E não volte a telefonar-me! O telemóvel emite cada vez mais ruídos. – Não a oiço bem, Mistress Brandon – diz ao longe a voz de Dave Sharpness. – Desculpe.

Vou a caminho de Liverpool. – Disse-lhe que terminasse a investigação! – exclamo o mais alto e claro que me atrevo. – E em relação ao que descobri? Foi por isso que lhe liguei. Mistress Brandon, temos um

relatório completo à sua disposição... – A voz dele desaparece num mar de estática. – O que descobriu? – Olho para o telemóvel, com o coração subitamente acelerado. – O que

foi que… ainda aí está Mister Sharpness? – ... de facto creio que devia ver as fotografias. De repente, os estalos transformam-se num som contínuo. A chamada caiu. Fiquei paralisada, de pé na areia, uma das mãos agarrada ao Guerreiro. Fotografias?

Certamente não queria dizer... – Becky. – A voz de Luke assusta-me de tal forma que dou um salto e atiro o telemóvel ao ar.

Ele baixa-se, apanha-o da areia e entrega-mo. Não consigo olhar para ele enquanto o apanhocom as mãos trémulas e o enfio no bolso.

Fotografias de quê? – Becky, tenho de ir. – Luke parece tão tenso como eu. – Era a... Mel. Uma pequena

emergência no escritório. – Ótimo. – Aceno com a cabeça e empurro o Guerreiro até ao início da pista. Fixo o olhar em

frente. Sinto-me entorpecida. Fotografias de quê? – Vamos comprar o carrinho Lulu Guinness – diz Luke quando chegamos ao início. – Não

me importo, de verdade. – Não. Leva o Guerreiro. – Engulo em seco, tentando engolir o nó que me sobe na garganta.

– Não tem importância. Toda a graça e tranquilidade desapareceram. Sinto-me fria e apreensiva. Dave Sharpness tem

provas de que Luke anda a fazer... qualquer coisa. E não tenho ideia do que seja.

QUINZE

Desta vez, não me preocupo em pôr os óculos escuros. Nem em sorrir para a rececionista.Sento-me muito direita na mesma poltrona de espuma de borracha castanha, rasgando um lençode papel em pedacinhos e a pensar: não acredito.

Não consegui fazer nada durante o fim de semana. Tive de esperar que Luke saísse para otrabalho hoje de manhã cedo. Certifiquei-me de que realmente saíra (olhando pela janela edepois ligando duas vezes para ele no carro, para garantir que não regressara) e a seguir enchi-me de coragem para ligar para o escritório de Dave Sharpness. Mesmo assim, fi-lo numsussurro. Falei com a rececionista, que se recusou a dar-me pelo telefone qualquer pormenoracerca do que fora descoberto. De modo que aqui estou, às onze da manhã, mais uma vez noWest Ruislip.

Tudo isto me parece irreal. Devia ter sido cancelado. Não deviam ter descoberto coisaalguma.

– Mistress Brandon. Levanto os olhos, sentindo-me uma paciente num consultório médico. Ali está Dave

Sharpness, mais sepulcral que nunca. – Quer entrar, por favor? Enquanto me leva para dentro da sala, parece ter pena de mim. Não o suporto. Decido imediatamente pôr uma expressão corajosa e fingir que não estou minimamente

incomodada se Luke tiver um caso. Só queria saber por curiosidade. Na verdade, fico atésatisfeita se ele tiver um caso, porque há muito que queria o divórcio. E pronto.

– Descobriu, então, alguma coisa – digo, em tom natural, enquanto me sento. – Interessante.– Tento esboçar um sorriso despreocupado.

– É um momento difícil para si. – Dave Sharpness inclina-se pesadamente para a frente,apoiando-se nos cotovelos.

– Não, não é! – digo num tom demasiado animado. – Realmente não me importo. Naverdade, tenho um namorado e vamos fugir os dois para o Mónaco, de modo que estouperfeitamente bem em relação a tudo isso.

Dave Sharpness parece não engolir. – Creio que se importa – diz em voz ainda mais grave. – Creio que se importa e muito. – Os

olhos dele, congestionados, lamentam tanto que não consigo olhar para eles. – Está bem, importo-me! – digo a fungar. – Então diga-me depressa! Ele anda a encontrar-se

com ela? Dave Sharpness abre um envelope pardo e examina o conteúdo, abanando a cabeça. – Esta parte do trabalho nunca é fácil. – Suspira, folheia os papéis e depois levanta os olhos.

– Mistress Brandon, o seu marido tem levado uma vida dupla. – Vida dupla? – Encaro-o, boquiaberta.

– Devo dizer que não é o homem que a senhora imaginava. Como pode Luke não ser o homem que eu imaginava? Mas o que está este homem a dizer? – Como assim? – digo um tanto agressiva. – Na quarta-feira passada, um dos meus agentes seguiu o seu marido quando ele saiu do local

de trabalho. Hospedou-se num hotel usando um nome falso. Pediu cocktails para várias...mulheres. De... um determinado tipo. Se é que entende o que quero dizer, Mistress Brandon.

Estou tão assombrada que nem consigo falar. O Luke? Mulheres de um determinado tipo? – O meu agente extraordinariamente competente investigou a falsa identidade do seu marido.

– Dave Sharpness lança-me um olhar impressionante. – Descobriu que nesse hotel houve certosproblemas, no passado. Houve... incidentes lamentáveis com mulheres. – Dave Sharpness olhapara as suas notas com uma expressão de desagrado. – Todos foram abafados e pagos. O seumarido é claramente um homem poderoso. O meu agente também descobriu várias acusaçõesde assédio sexual que jamais se transformaram em processos... uma queixa de intimidaçãocontra ele e um colega, de novo abafada...

– Pare com isso! – grito, incapaz de ouvir mais. – O senhor deve ter recebido informaçõeserradas! O senhor ou o seu agente. O meu marido não toma cocktails com mulheres dedeterminado tipo! Nunca intimidaria quem quer que fosse! Eu conheço-o!

Dave Sharpness suspira. Recosta-se na cadeira e pousa as mãos na enorme barriga. – Sinto muita pena de si, de verdade. Nenhuma mulher quer saber que o marido é menos do

que perfeito. – Não digo que ele seja perfeito, mas... – Se a senhora soubesse a quantidade de homens falsos que por aí há. – Olha-me com ar

lúgubre. – E a mulher é sempre a última a saber. – O senhor não entende! – Tenho vontade de lhe bater. – Não pode ser o Luke. Simplesmente

não pode ser! – É difícil aceitar a verdade – diz Dave Sharpness inexorável. – Requer uma grande

coragem. – Deixe de ser condescendente! – digo, furiosa. – Eu tenho coragem. Mas também sei que o

meu marido não intimida os outros. Mostre-me essas notas! – Arranco-lhe o dossiê e um montede fotografias brilhantes, a preto e branco, caem sobre a mesa.

Olho para elas, confusa. São todas fotos de Iain Wheeler. Iain à entrada da BrandonCommunications. Iain a subir a escada de um hotel.

– Este não é o meu marido – levanto os olhos. – Este não é o meu marido. – Agora começamos a entender-nos – declara Dave Sharpness, satisfeito. – O seu marido tem

dupla personalidade, como se fosse... – Cale-se, seu idiota! – grito, exasperada. – É o Iain! Seguiram a pessoa errada! – O quê? – Dave Sharpness endireita-se. – Literalmente a pessoa errada? – Este é um dos clientes do meu marido. Iain Wheeler. Dave Sharpness agarra numa das fotografias e olho-a por alguns segundos. – Este não é o seu marido? – Não! – De repente, vejo uma foto de Iain a entrar na limusina. Pego nela e aponto para

Luke, que está ao fundo, do outro lado do carro, um pouco desfocado. – Este é o Luke! Este é omeu marido.

A respiração de Dave Sharpness fica mais pesada enquanto olha para a imagem embaciada dacabeça de Luke, para as fotografias de Iain, para as suas notas e de novo para Luke.

– Lee! Vem cá! – grita, subitamente parecendo muito menos um profissional tranquilo eatencioso e mais um velho furioso do sul de Londres.

Instantes depois, a porta abre-se e um sujeito magro, de cerca de dezassete anos, enfia acabeça pela porta, com um Gameboy na mão.

– Ah... sim? – diz. Este é o agente altamente capaz? – Lee, estou farto de ti. – Dave Sharpness bate furiosamente com a mão na mesa. – É a

segunda vez que me estragas tudo. Seguiste a porcaria do homem errado. Este não é LukeBrandon. – Bate nas fotografias. – Este é o Luke Brandon!

– Ah. – Lee coça o nariz, com ar despreocupado. – Merda. – Pois, merda! É, estou decidido a dar-te um pontapé no rabo. – O pescoço de Dave

Sharpness ficou vermelho. – Como seguiste o homem errado? – Não sei! – diz Lee em tom defensivo. – Tirei a fotografia dele do jornal. – Enfia a mão no

dossiê e retira um recorte do Times. Conheço a fotografia. É uma imagem simples de Luke e Iain, conversando numa conferência

de imprensa do Arcodas. – Não vê? – pergunta Lee. – Aí diz «Luke Brandon, à direita, à conversa com Iain Wheeler, à

esquerda». – Enganaram-se na legenda! – quase que cuspo em cima dele. – No dia seguinte publicaram

um pedido de desculpas! Não verificou? Os olhos de Lee voltavam já para o Gameboy. – Responde à senhora! – berra David Sharpness. – Lee, és um inútil. – Olha, pai, foi um erro, certo? – geme Lee. Pai? Esta é a última vez que contrato um detetive particular pelas páginas amarelas. – Mistress Brandon... – Dave Sharpness tenta obviamente acalmar-se. – Só posso pedir

desculpa. Claro que reiniciaremos a nossa investigação sem qualquer custo adicional, desta vezfocando a pessoa certa...

– Não! – interrompo. – Pare com isso, ouviu? Já estou farta! De repente sinto-me trémula. Como posso ter contratado alguém para espiar Luke? O que

faço eu neste sítio foleiro? Levanto-me abruptamente. – Vou-me embora. Por favor, nunca mais me contacte. – Claro. – Dave Sharpness empurra rapidamente a cadeira para trás. – Lee, sai do caminho!

Será que lhe posso entregar as outras descobertas, Mistress Brandon...? – Outras descobertas? – Volto-me para ele, incrédula. – Realmente, acha que quero ouvir

mais alguma coisa que o senhor tem a dizer? – Havia a questão das sobrancelhas, não é verdade? – Dave Sharpness tosse delicadamente. – Ah. Ah, pois. – Detenho-me. Tinha-me esquecido. – Está tudo aqui. – Dave Sharpness aproveita a oportunidade para colocar o envelope pardo

nas minhas mãos. – Detalhes da esteticista e do tratamento, fotos, anotações de vigilância... Apetece-me atirara-lhe o envelope à cara e sair a toda a pressa. Só que... Jasmine tem as sobrancelhas ótimas. – Talvez dê uma olhadela nesta parte – digo por fim do modo mais sério de que sou capaz. – A senhora também vai encontrar aí algumas informações – refere Dave Sharpness,

correndo atrás de mim até à porta – que foram descobertas em relação ao caso do seu marido. A

sua amiga Suze Cleath-Stuart, por exemplo. Bem, ela é uma jovem muito rica. Sinto-me enjoada. Ele investigou Suze? – Parece que a fortuna dela foi calculada em... – Cale-se! – Dou meia volta, furiosa. – Nunca mais quero vê-lo nem saber de si! E se alguém

do seu escritório seguir Luke ou algum amigo meu, vou ligar para a polícia. – Sem dúvida – diz Dave Sharpness, assentindo como se eu lhe tivesse apresentado uma ideia

brilhante. – Entendi. Sigo até ao fim da rua e apanho um táxi. Ele parte e deixo-me ficar sentada, agarrando a pega

por cima da porta, incapaz de me descontrair até estarmos bem longe de West Ruislip. Malsuporto olhar para o envelope pardo pousado no meu colo como um segredo horrível e culpado.Se bem que, agora que penso nisso, provavelmente foi melhor tê-lo trazido. Vou agarrar emtodas as informações e metê-las diretamente na destruidora de papel. E depois rasgar as tiras.Não quero que Luke saiba o que fiz.

Nem acredito como pude entrar nessa. Luke e eu somos casados. Não deveríamos espiar-nos.É o que praticamente está nos votos de casamento: «Amar, respeitar e nunca contratar umdetetive particular em West Ruislip.»

Devíamos confiar um no outro. Devíamos acreditar um no outro. Num impulso, pego nomeu telemóvel e marco o número de Luke.

– Olá, querido! – digo assim que a ligação é feita. – Sou eu. – Olá! Está tudo... – Está tudo ótimo. Só fiquei a pensar – respiro fundo. – Aquele telefonema que recebeste no

outro dia, na loja dos carrinhos. Pareceste tão perturbado. Está tudo bem? – Becky, lamento muito o que se passou. – Parece de facto ter remorsos. – Lamento de

verdade. Eu... perdi as estribeiras por um momento. Houve um pequeno problema aqui. Masvai resolver-se, tenho a certeza. Não te preocupes.

– Certo. – Respiro fundo. Nem percebera que estava a suster o fôlego. É o trabalho. Só isso. O Luke tem sempre pequenos problemas e coisinhas que precisam de

ser resolvidas e algumas vezes fica stressado. É o que acontece quando se dirige uma empresaenorme.

– Até logo, querida. Tudo preparado para a grande noite? Esta noite é a reunião da faculdade. Quase me tinha esquecido. – Mal posso esperar! Tchau, Luke. Guardo o telemóvel e respiro fundo algumas vezes. O principal é que Luke não faz a menor

ideia de que fui a um detetive particular. E nunca vai descobrir. Quando chegamos a terreno familiar do oeste de Londres, abro o envelope e começo a

folhear as fotografias e notas de vigilância. É melhor descobrir a história das sobrancelhas deJasmine antes de destruir tudo. Chego a uma foto turva de Suze a caminhar pela High StreetKensington e fecho os olhos, sentindo outra onda de vergonha. Cometi alguns erros terríveis navida, mas este é o pior, milhões e milhões de vezes. Como posso ter exposto a minha melhoramiga a um detetive particular de má qualidade?

As dez fotografias seguintes, mais ou menos, são da Venetia, e passo por elas rapidamente.Não quero vê-la. Depois há uma ou duas da Mel, a secretária de Luke, a sair do escritório, eentão... ah, meu Deus, é a Lulu?

Olho para a fotografia, perplexa. Então lembro-me de a ter mencionado na lista de mulheresque Luke conhece. E disse que Luke não se dava bem com ela, e Dave Sharpness confirmou

como quem sabe das coisas, e disse: – Essa costuma ser a cortina de fumo. Idiota, obviamente lembrou-se de que Luke e Lulu teriam um caso escaldante em segredo ou

algo assim. Espera aí. Pestanejo e olho com mais atenção para a fotografia. Não pode ser... Ela não pode estar... Tapo a boca com a mão, um pouco chocada, mas tentando não me rir. OK, sei que contratar

um detetive particular foi uma coisa idiota. Mas a Suze vai ficar toda contente. Enfio as fotografias e papéis no envelope quando o meu telemóvel toca. – Sim? – digo, com cautela. – Becky, é a Jasmine! – diz uma voz animada. – Vens ou não? Endireito-me, surpreendida. Em primeiro lugar, nem pensei que alguém reparasse que eu

estava atrasada. E, em segundo, quando foi que Jasmine ergueu a voz além de um tommonossilábico e entediado?

– Estou a caminho – respondo. – Que se passa? – É o teu amigo, Danny Kovitz. Sinto uma onda de alarme. Por favor, não me digam que perdeu o interesse. Por favor, não

me digam que se foi embora. – Houve... algum problema? – Mal consigo falar. – De maneira nenhuma! Ele terminou o projeto! Está tudo aqui agora. E é incrível!

Finalmente, por fim, alguma coisa corre bem! Chego ao The Look e vou diretamente para a salade reuniões, no sexto andar, onde toda a gente se reuniu para ver o projeto.

Jasmine encontra-me no elevador com os olhos a brilhar. – É o máximo! – diz ela. – Parece que ele trabalhou a noite inteira para terminar. Disse que a

vinda a Inglaterra lhe deu exatamente a inspiração final de que precisava. Toda a gente estámesmo entusiasmada. Vai vender até esgotar! Mandei mensagens a todas as minhas amigas etodas querem uma.

– Fantástico! – exclamo, atónita. Não sei o que mais me surpreende: se Danny ter terminado o projeto tão depressa ou se a

Jasmine parecer estar viva. – Aqui... – Abre a pesada porta de madeira clara e ouço a voz de Danny enquanto entramos

na sala. Ele está sentado à mesa comprida, a falar com Eric, Brianna e todo o pessoal domarketing e da comunicação.

– Era apenas o conceito final que eu precisava de resolver – está ele a dizer. – Mas assim queconsegui...

– É tão diferente! – exclama Brianna. – É tão original. – Becky! – De repente, Danny dá por mim. – Vem ver o projeto! Carla, vem cá – chama-a. E

eu fico ofegante. – Tu o quê? – grito, horrorizada, sem poder conter-me. O projeto é uma T-shirt com costuras arrepanhadas e as mangas características do Danny,

rasgadas e pregueadas. O fundo é em azul-claro e na frente há um pequeno desenho estilizado,tipo anos 60, de uma boneca ruiva. Por baixo há uma frase impressa:

É UMA VACA RUIVA E EU ODEIO-A Olho para Danny, de novo para a T-shirt e outra vez para Danny. – Não podes... – A minha boca não funciona bem. – Danny, tu não podes... – Não é fantástica? – pergunta Jasmine. – As revistas vão adorar. – Uma jovem da comunicação assente entusiasmada. – Já demos

uma pequena amostra à InStyle e vai sair na coluna das peças imprescindíveis. E com um saco acondizer... Todo a gente vai querer uma.

– É um slogan brilhante! – diz outra pessoa. – «É uma vaca ruiva e eu odeio-a!» Toda a sala ri à gargalhada. Menos eu. Ainda estou em choque. O que dirá Venetia? O que

dirá Luke? – Vamos pô-la nas paragens de autocarros, em cartazes, em revistas... – continua a jovem da

comunicação. – O Danny teve uma ideia incrível, que é fazer também uma T-shirt paragrávidas.

Ergo a cabeça, horrorizada. Ele o quê? – Grande ideia, Danny! – digo, furiosa com ele. – Foi o que pensei – ri com ar inocente. – Olha, podias usar uma durante o parto! – Então, onde conseguiu a inspiração, Mister Kovitz? – pergunta um ansioso jovem assistente

de marketing. – Quem é a vaca ruiva? – pergunta a jovem da comunicação, com um riso fácil. – Espero que

ela não se importe por haver mil T-shirts impressas a falar dela! – O que achas, Becky? – Danny ergue a sobrancelha com ar malicioso. – A Becky conhece-a? – pergunta Brianna, surpreendida. – É uma pessoa de verdade? De repente, todos parecem interessar-se. – Não! – grito, alarmada. – Não! De maneira nenhuma! Ela não é... quero dizer... eu só

estava... a pensar. Porque não ampliamos o projeto? Podíamos ter versões loiras e morenastambém.

– Boa ideia – diz Brianna. – O que acha, Danny? Por um aflitivo momento, penso que ele vai dizer: «Não, tem de ser ruiva porque a Venetia é

ruiva.» Mas graças a Deus ele concorda. – Agrada-me. Escolhe a tua vaca. – De repente, solta um gigantesco bocejo felino. – Há mais

café? Graças a Deus. Desastre evitado. Vou levar para casa a versão «loira» e Luke nunca saberá

da original. – Bem precisamos! – diz Carla, servindo o café. – Ficámos acordados a noite toda. O Danny

finalizou o projeto por volta das duas da manhã. Depois encontrámos em Hoxton uma oficinade serigrafia que fica aberta a noite toda e fizeram-nos as amostras.

– Bem, agradecemos o vosso esforço – diz Eric em tom imponente. – Em nome do The Look,gostaria de lhe agradecer, Danny, e à sua equipa.

– Agradecimento aceite – responde Danny em tom encantador. – E eu gostaria de agradecer aBecky Bloom, responsável por esta colaboração. – Começa a aplaudir e, relutante, sorriotambém. Nunca ninguém consegue ficar aborrecido com Danny por muito tempo. – À Becky, aminha musa – acrescenta, levantando a chávena de café que Carla lhe serviu. – E à pequenamusette.

– Obrigada! – Levanto também a minha chávena. – À tua, Danny.

– És a musa dele? – pergunta Jasmine ofegante a meu lado. – Que máximo! – Bom... – Encolho os ombros, com ar desinteressado. Mas por dentro rejubilo. Sempre quis

ser musa de um estilista!

E pronto. Sempre que a vida parece um lixo total, há uma reviravolta. O dia de hoje foiaproximadamente um milhão de vezes melhor do que eu esperava. Luke não leva a vida dupla,afinal de contas. O projeto de Danny vai vender como pãezinhos quentes. E eu sou uma musa!

No fim do dia, troquei de roupa várias vezes, porque as musas da moda gostam deexperimentar a aparência. Por fim decido-me por um vestido de chiffon cor-de-rosa, linhaimpério, por baixo do qual mal consigo espremer a barriga, com um dos protótipos das T-shirtsde Danny por cima, e mais um casaco de veludo verde e um chapéu de pluma preto.

Preciso de começar a usar chapéu mais vezes, se vou ser uma musa. E alfinetes de peito. Às cinco e meia, Danny aparece na entrada do departamento de Personal Shopping. Levanto

os olhos, surpreendida. – Ainda aí estás? Por onde tens andado? – Ah... só a fazer tempo na secção masculina – diz ele com naturalidade. – Aquele rapaz que

lá trabalha, o Tristan. É bem giro, hein? – O Tristan não é gay – lanço um olhar a Danny. – Ainda – diz Danny e pega num vestido de noite cor-de-rosa da nossa linha «roupas de

cruzeiro». – Isto é um nojo. Becky, não devias ter este vestido em armazém. Neste momento, ele está excitadíssimo, como sempre acontece quando termina um projeto.

Lembro-me disso, de Nova Iorque. – Onde está todo o teu «pessoal»? – pergunto, revirando os olhos. Mas Danny não capta a

ironia. – A redigir contratos – responde vagamente. – E o Stan levou o carro para ir ver as vistas.

Nunca esteve em Londres. Olha, vamos tomar qualquer coisa? – Tenho de ir para casa. – Olho relutante para o relógio. – Tenho uma festa esta noite. – Só uma bebida rápida? – geme Danny. – Praticamente nem te vi. Ei, que chapéu é esse? – Gostas? – Toco-lhe, um pouco atrapalhada. – É que apeteceu-me usar plumas. – Plumas. – Danny examina-me com a testa franzida. – Grande ideia. – Verdade? – Fico inchada de orgulho. Talvez ele baseie toda a sua nova coleção em plumas

e terá sido ideia minha. – Ei, se quiseres fazer um pequeno desenho da minha pessoa... – digoem tom casual, mas Danny não está a ouvir. Anda à minha volta, com uma expressão atenta.

– Devias usar um boá de plumas – diz subitamente. – Tipo muito grande. Tipo... enorme. Um boá de plumas enorme. É brilhante. Pode ser a próxima grande jogada da moda! Poderia ser a nova baguete da Fendi! – Há boás de plumas na secção de Acessórios! – digo. – Anda! – Pego na minha mala e

fecho-a, primeiro certificando-me de que o envelope pardo está em segurança lá dentro. Voudestruí-lo assim que chegar a casa. Quando Luke não estiver a ver.

Descemos as escadas rolantes até ao rés do chão, onde fica o departamento de Acessórios. – Vamos fechar... – começa Jane, a chefe dos acessórios, até ver que somos nós. – Desculpa – digo, ofegante, enquanto Danny se dirige ao mostruário de boás e echarpes. –

Não vamos demorar. Só que estamos a ter um momento fashion muito importante... – Pronto – diz Danny, envolvendo-me em coloridos boás de plumas. – Tipo: a maior boá que

já viste. – Amarra oito boás, formando uma enorme, em forma de salsicha. – É um lookfantástico.

Sinto um arrepio enquanto enrola a boá à minha volta. Estamos a fazer a história da moda,aqui mesmo! Estamos a lançar uma nova tendência! No ano que vem, toda a gente usarágigantescas boás Danny Kovitz. As celebridades vão usá-las nos Óscares, as lojas chiques vãovender...

– A Boá Gigante – diz Danny, amarrando uma que estava um pouco solta. – O Gigante. Éfabuloso. Espreita! – Faz-me dar a volta em frente do espelho e quase me falta a respiração.

– É... uau! – Fantástico, não é? – Danny ri de orelha a orelha. Para ser absolutamente sincera, faltou-me a respiração porque pareço uma perfeita idiota. A

minha cabeça mal se vê no meio das plumas. Pareço um enorme espanador grávido. Mas não devo ser tão tacanha. Isto é moda. As pessoas provavelmente achavam as calças de

ganga skinny ridículas quando as viram pela primeira vez. – Incrível – digo ofegante, tentando tirar as plumas da boca. – És um génio, Danny. – Vamos tomar a tal bebida – Danny está muito animado. – Apetecem-me martinis. – Podes, por favor, pôr essas boás na minha conta? – digo a Jane. – São oito. Obrigada! Saímos da loja numa loucura total e levo Danny até à esquina com a Portman Square. As

luzes da rua estão acesas e algumas pessoas de smoking saem do Hotel Templeton. Olham-mecom estranheza enquanto passamos e ouço alguns risinhos, mas ergo a cabeça bem alta. Quemquiser andar à última moda, receberá uns quantos olhares estranhos.

– Vamos a este bar aqui? – sugiro, parando. – É um bocado chato, mas está perto. – Desde que consigam preparar uma bebida... – Danny abre a pesada porta de vidro e deixa-

me passar à sua frente. O Templeton Bar é muito bege; carpete bege, cadeiras fofas eempregados de uniforme bege. Está apinhado de pessoas com cara de executivos, mas avistoum espaço perto do piano.

– Vamos apanhar aquela mesa ali – digo a Danny. Mas detenho-me imediatamente. É a Venetia. Sentada no canto a alguns metros, o cabelo brilhando sob as luzes, com um

fulano de fato e outra mulher elegante. Não reconheço nenhum dos dois. – O que é? – Danny espreita para a minha cara. – Passa-se alguma coisa? – Pois... – Engulo em seco e volto a cabeça discretamente na direção dela. Danny segue o

meu olhar e teatralmente respira ofegante e deliciado. – É a tal Cruella de Venetia? – Cala-te! – grito. Demasiado tarde. Venetia voltou-se e viu-nos. Levanta-se e aproxima-se, uma figura

impossivelmente elegante com um casaco e calça preto e saltos altos, o cabelo imaculado comosempre.

Tudo bem, digo para comigo. Calma. Não sei por que razão tenho o coração tão acelerado eos dedos a suar.

Ora, ora. Talvez porque na minha mala haja um envelope com dez fotografias de Venetiatiradas de uma grande angular. Mas ela não sabe, pois não?

– Becky! – Sorri e beija-me nas duas faces. – A minha cliente predileta. Como tem passado?Agora não falta muito! Quatro semanas, não é verdade?

– Isso mesmo. E então... como está, Venetia? – pergunto em voz trémula, com o rostovermelho. Mas, fora isso, creio que estou bastante natural. – Deixe-me apresentar-lhe o meu

amigo, Danny Kovitz. – Danny Kovitz! – Os olhos dela iluminam-se, ao reconhecê-lo. – É uma honra. Comprei

recentemente uma peça sua em Milão. Na Corso Como. Um casaco com contas. – Já sei qual é! – diz Danny, ansioso. – Aposto que lhe fica esplendidamente. Mas porque estará Danny a ser tão simpático com ela? Devia estar do meu lado. – Comprou as calças? – pergunta-lhe agora. – Porque fizemos em dois estilos: capri e boot

cut. As capri ficar-lhe-iam a matar. – Não, só comprei o casaco. – Sorri-lhe e, depois, olha para mim. – Becky, você parece-me

que deve ter calor com todas essas... plumas. Sente-se bem? – Estou... ótima! – Sopro algumas plumas que se prenderam ao batom. – Este é o novo

conceito de moda do Danny. – Pois. – Venetia lança um olhar dúbio para a minha gigantesca boá. – Só que, como sabe,

não é saudável ficar com demasiado calor durante a gravidez. Típico. De novo a dar-me ordens. A dizer que a moda não é saudável. Mas a verdade é que

estou a suar com todas estas camadas, por isso, com certa relutância, tiro a boá e o casaco. Faz-se um silêncio estranho. Por momentos, não percebo por que razão Venetia olha para o

meu peito. Quando percebo sinto um aperto no estômago. Vesti a T-shirt de Danny. Olho para baixo – e ali está, claro como água.

É UMA VACA RUIVA E EU ODEIO-A Merda. – Na verdade, estou cheia de frio! – Enrolo de novo a boá ao pescoço, tentando

desesperadamente cobrir as palavras. – Brrr! Está um gelo aqui dentro. Não está frio para estaépoca do ano?

– O que está escrito na sua T-shirt? – pergunta Venetia em voz peculiar. – Nada – respondo, agitada. – Nada! É só uma... piada! Quero dizer, obviamente não é você.

É outra vaca ruiva... é... outra mulher... outra pessoa. Isso não está a correr nada bem. – Bom trabalho, Becky – diz-me Danny ao ouvido. – Com muito tato. Venetia respira fundo, como que a tentar controlar-se. Começo a perceber que parece muito

aborrecida. – Becky – diz por fim. – Podemos ter uma pequena conversa? – Conversa? – repito, nervosa. – Sim, conversa. Nós as duas. Falar uma com a outras a sós. Se não se importar. – Olha para

Danny. – Claro. Vou buscar as bebidas. – E desaparece em direção ao balcão e sinto-me arrasada por

dentro quando me viro para Venetia. Tem uma ruga entre os olhos e toca com os dedos no pédo copo. Parece uma diretora jovem, super elegante, que vai dizer que eu prejudiquei o nomede toda a escola.

– Então! – consigo dizer em tom alegre. – Como tem passado? Ela não consegue ler a tua mente, digo para comigo mesma em tom febril. Ela não sabe que

a mandaste seguir. Não pode provar que a T-shirt tem a ver com ela. Faz-te de inocente. – Olhe, Becky. – Venetia engole a bebida de um só trago. – Vamos acabar com esta merda. Olho-a, chocada. Ela disse «merda»?

– Estávamos a tentar poupá-la a qualquer coisa desagradável. – Aprofunda-se a ruga na testade Venetia. – Queríamos ser o mais... não sei... amigáveis possível. Mas se esta é a atitude quevai tomar... – Aponta para a T-shirt.

Há aqui qualquer coisa que não estou a perceber. Na verdade, não percebo nada. – «Nós» quem? – pergunto. Venetia olha-me como se suspeitasse de um truque. Então, muito lentamente, muda de

expressão. Ela respira fundo e esfrega a testa. – Ah, meu Deus – diz quase para si mesma. Lá no fundo surge um pressentimento. Uma espécie de náusea quente sobe devagar dentro de

mim. Venetia não pode estar a dizer o que eu... Não pode. O barulho e as conversas do bar diminuíram, transformando-se num sussurro nos meus

ouvidos. Engulo em seco várias vezes, tentando controlar-me. Sabia que alguma coisa podiaestar a acontecer. Falei do assunto a Suze, Danny e Jess.

Mas, de repente, aqui parada, percebo que realmente não pensava que fosse verdadeiro. Não.Nunca.

– O que está a dizer exatamente? – Não consigo controlar a voz. Um empregado passa com uma bandeja de bebidas e Venetia estende a mão para o fazer

parar. – Vodca tónica com gelo, por favor – pede. – Rápido. Quer alguma coisa, Becky? – Só... que me diga. – Cravo o olhar no dela. – Que me diga do que está a falar. O empregado afasta-se e Venetia passa a mão pelo cabelo. Parece abalada com a minha

reação. – Becky... isso tinha de ser difícil. Deve saber que o Luke se sente muito mal com o que está

a acontecer. Ele gosta muito de si. Ficaria horrorizado só de imaginar que falei consigo. Por alguns instantes, não consigo responder. Limito-me a olhar para ela, com o corpo rígido.

Sinto que vou saltar para um universo paralelo. – O que está a dizer-me? – repito, rouca. – Ele de facto não a quer magoar. – Venetia inclina-se mais e sinto um cheiro enjoativo a

Allure. – Como ele costuma dizer... cometeu um erro. Pura e simplesmente. Casou-se com apessoa errada. Mas a culpa não é sua.

Começo a sentir pontadas no peito. Por momentos, não sei se consigo falar, de tão chocada. – O Luke não se casou com a pessoa errada – consigo dizer por fim. – Casou-se com a pessoa

certa. Ele ama-me, sabe? Ele ama-me. – Vocês conheceram-se logo depois de ele terminar com a Sacha, não é verdade? – Venetia

acena com a cabeça, mesmo sem eu ter respondido. – Ele contou-me tudo. Becky, você foi umamudança revigorante para ele. Fê-lo rir. Mas nem de longe estava no mesmo nível. Nem porsombras o compreende.

– Compreendo, sim. – Sinto que a minha garganta não funciona bem. – Compreendoperfeitamente o Luke! Viajámos por todo o mundo em lua de mel...

– Becky, eu conheço o Luke desde os dezanove anos – interrompe-me ela, invencível,inexorável. – Eu conheço-o. O que tivemos em Cambridge foi poderoso. Foi inebriante. Foi omeu primeiro amor verdadeiro. Eu fui o dele. Éramos como Odisseu e Penélope. Quando nosvimos de novo no meu consultório... – Detém-se. – Desculpe. Mas soubemos instantaneamente.Era apenas uma questão de quando e onde.

As minhas pernas parecem de pó. Sinto o rosto entorpecido. Agarro-me às plumas idiotas,tentando encontrar um pensamento, uma ideia... qualquer coisa. Mas a minha cabeça pareceuma bola de flanela. Tenho uma sensação horrível de que as lágrimas me correm pelas faces.

– O momento é que foi desagradável. – Venetia recebe a bebida do empregado. – O Luke nãoqueria dizer nada senão depois do nascimento do bebé. Mas creio que você merece saber averdade.

– Ontem fomos os dois à procura de carrinhos – digo em voz pesada e apressada. – Entãoporque foi comigo ver os carrinhos,?

– Ah, ele está entusiasmado com o bebé! – diz Venetia, surpreendida. – Quer ver o filho omáximo possível, depois... – Ela faz uma pausa delicada. – Quer que tudo seja amigável. Mas,obviamente, isso depende de si.

Não posso continuar a ouvir aquela voz doce e venenosa. Tenho de me ir embora. – Está enganada, Venetia – digo, esforçando-me desajeitadamente para vestir o casaco. – Está

iludida. O Luke e eu temos um casamento forte e amoroso! Rimos, conversamos, fazemossexo...

Venetia limita-se a olhar para mim com uma pena infinita. – Becky, o Luke está a fingir só para a manter feliz. Vocês não têm um casamento. Acabou.

Nem espero para me despedir do Danny. Saio diretamente do bar, aos tropeções, e chamo umtáxi. Durante todo o caminho para casa, as palavras de Venetia giram-me constantemente nocérebro até que sinto vontade de vomitar.

Não pode ser verdade, digo para comigo. Não pode. Claro que pode, responde uma vozinha dentro de mim. É disso que suspeitavas. Entro no apartamento e imediatamente ouço Luke na cozinha. – Olá! – grita ele. Tenho a garganta demasiado apertada para responder. Sinto-me paralisada. Por fim, Luke

mete a cabeça na porta. Já está com as calças do fato e uma impecável camisa Armani. Tem olaço ao pescoço, pronto para que eu lho faça, como sempre.

Encaro-o sem palavras. Vais deixar-me pela Venetia? Todo o nosso casamento é uma farsa? – Olá, querida. – Bebe um gole de vinho. Sinto-me à beira de um penhasco. No momento em que ele falar, tudo estará acabado. – Becky? Querida? – Luke dá alguns passos na minha direção, com ar perplexo. – Sentes-te

bem? – Olha curioso para as plumas. Não o posso fazer. Não posso perguntar. Estou apavorada com o que vou ouvir. – Vou arranjar-me – sussurro, incapaz de o encarar. – Temos de sair em breve. Vou até ao quarto e dispo-me, enfiando a T-shirt de Danny no fundo do armário, onde Luke

nunca a irá encontrar. Depois tomo um duche rápido, esperando ficar melhor. Mas não. Quandome vejo no espelho, enrolada numa toalha, estou apavorada e pálida.

Vamos, Becky. Levanta o queixo, pensa no glamour, pensa na Catherine Zeta-Jones. Apanhoo meu esguio vestido azul-meia-noite e visto-o, pensando que ao menos ficaria mais animada.Mas, de modo nenhum, o vestido não parece tão bem como antes. Não está justo; está apertado.Puxo o fecho, mas não sobe.

É demasiado pequeno. O meu vestido perfeito está apertado. Devo ter inchado mais. Na barriga, nas coxas, seja

onde for. Todo o meu corpo ficou subitamente enorme. Sinto o queixo a tremer, mas, desesperada, aperto os lábios com força. Não vou chorar. Tiro

o vestido do melhor modo que posso e vou até ao armário procurar outra coisa. E então vejo-me ao espelho – e fico imóvel. Estou a oscilar.

Sou uma coisa branca, gorda, oscilante, uma... monstruosidade. Sento-me na cama, tonta. Sinto a cabeça a latejar e vejo manchas diante dos olhos. Não é de

espantar que ele tenha escolhido a Venetia. – Becky, sentes-te bem? – Luke está junto à porta, a olhar para mim, alarmado. Nem tinha

dado pela presença dele. – Eu... – As lágrimas bloqueiam-me a garganta. – Eu... – Não me pareces bem. Porque não te deitas? Vou buscar um copo de água. Enquanto o vejo afastar-se, a voz de Venetia é como uma cobra enrolada na minha cabeça. O

Luke só está a fingir para a manter feliz. – Pronto. – A voz de Luke faz-me dar um salto. Entrega-me um copo de água e duas bolachas

de chocolate. – Acho que devias descansar um pouco. Pego no copo mas não o bebo. De repente, tudo me parece teatro. Ele está a representar. Eu

estou a representar. – E a festa? – digo por fim. – Temos de sair depressa. – Podemos chegar tarde. Ou podemos não ir. Querida, bebe um pouco de água, deita-te... Relutante, bebo a água, depois pouso a cabeça na almofada. Luke puxa o edredão por cima

de mim e sai do quarto em silêncio. Não sei quanto tempo fico ali deitada. Parecem trinta segundos. Ou seis horas. Depois

deduzo que foram uns vinte minutos. E então ouço as vozes. A voz dele. E a voz dela. A aproximarem-se pelo corredor, – ... espero que não te importes... – ... não, de maneira nenhuma. Luke, fizeste o que devias. Então. Como vai a paciente? Abro os olhos – e é um pesadelo que se realiza. Ali, parada, à minha frente, está Venetia. Traz um vestido de baile, comprido, de tafetá preto, sem alças, com uma saia ampla. Tem o

cabelo apanhado e diamantes a brilhar nas orelhas. Parece uma princesa. – O Luke disse-me que não se sente bem, Becky – diz com um sorriso doce como melaço. –

Vamos lá ver isso. – O que está aqui a fazer? – pergunto, ríspida. – O Luke ligou-me. Estava preocupado! – Venetia põe-me a mão na testa e estremeço. –

Deixe-me ver se tem febre. – Senta-se na cama com um roçagar de tafetá e abre a maleta. – Luke, não a quero aqui! – Sem qualquer aviso, as lágrimas saltam-me dos olhos. – Não

estou doente! – Abra! – Venetia avança com o termómetro em direção à minha boca. – Não! – volto a cabeça, como um bebé a recusar a papa. – Vá lá, Becky – diz Venetia em tom adulador. – Só quero ver se tem febre. – Becky… – Luke segura a minha mão. – Vá lá. Não podemos arriscar. – Não estou doente... – As minhas palavras são interrompidas quando Venetia me enfia o

termómetro na boca e se levanta. – De facto, não creio que ela deva ir esta noite – diz ela, em voz baixa, falando à parte com

Luke. – Não podes convencê-la a ficar a descansar? – Claro. – Luke concorda. – Por favor, apresenta as nossas desculpas.

– Também vais ficar? – Venetia franze a testa. – Luke, realmente, creio... – Chama Luke parafora do quarto e oiço os murmúrios no corredor.

Instantes depois, Luke aparece de novo à porta, com um jarro de água. Alguém lhe fez o laço, noto subitamente. Apetece-me desatar a chorar. – Becky, minha querida, a Venetia acha que deves levar as coisas com calma. Olho-o em silêncio, com o termómetro ainda na boca. – Claro que se quiseres fico contigo – hesita, atrapalhado. – Mas... se não te importares que

eu saia só por meia hora, há muita gente nesta festa com quem gostaria de estar. Sinto a garganta apertada. Sinto mais uma vez as lágrimas nos olhos. Vejo tudo claramente.

Ele quer ir à festa com Venetia. Provavelmente os dois combinaram tudo. O que vou fazer, implorar para que não vá? Sou demasiado orgulhosa para o fazer. – Tudo bem – murmuro, voltando a cabeça para que ele não veja as minhas lágrimas. – Vai. – O quê? – Não há problema. – Tiro o termómetro da boca. – Vai. Oiço o roçagar do vestido de Venetia quando ela entra de novo no quarto. – Então vamos lá ver. – Examina o termómetro com a testa franzida. – Sim, está ligeiramente

febril. Vou dar-lhe um pouco de paracetamol. Dá-me dois comprimidos, que eu engulo com a água que Luke trouxe. – Tens a certeza de que ficas bem? – pergunta ele, olhando-me com ansiedade. – Sim. Diverte-te. – Puxo o edredão para a cabeça e sinto as lágrimas encharcarem a

almofada. – Até logo, querida. – Sinto Luke bater no edredão. – Descansa um pouco. Oiço vozes abafadas e então, ao longe, a porta bate. Pronto. Já saíram.

Passa-se cerca de meia hora sem que me mexa. Afasto o edredão e limpo os olhos molhados.Saio da cama, cambaleio até à casa de banho e vejo-me ao espelho.

Estou pavorosa. Tenho os olhos vermelhos e inchados. As faces manchadas de lágrimas. Ocabelo todo despenteado.

Salpico o rosto com água e sento-me na borda da banheira. O que vou fazer? Não posso ficaraqui a noite toda a pensar, preocupada e a imaginar o pior. Prefiro apanhá-los em flagrante.Prefiro ver com os meus próprios olhos.

Vou lá. A ideia acerta-me como uma bala. Vou à festa agora mesmo, imediatamente. Quem me vai impedir? Não estou doente. Estou

bem. Volto para o quarto com uma nova determinação. Abro as portas do armário e tiro de lá um

cafetã de grávida, de chiffon preto, que comprei no verão e que nunca usei porque me sentiauma tenda. OK. Acessórios. Colares compridos, cheios de brilho... sapatos de salto alto,brilhantes... brincos de diamante... abro o estojo de maquilhagem e aplico o máximo, o maisrapidamente possível.

Recuo um passo e olho-me da cabeça aos pés no espelho. Pareço... bem. Não será exatamentea minha roupa mais elegante, mas não estou nada mal.

Sinto a adrenalina invadir-me quando agarro numa mala e meto nela as chaves, o telemóvel ea carteira. Coloco um xaile nos ombros e saio pela porta da frente, espetando o queixo decidida.Vou ver. Ou apanho-os. Ou... outra coisa qualquer. Não sou uma vítima impotente que vai

ficar quietinha na cama enquanto o marido sai com outra mulher. Consigo apanhar um táxi logo à porta do prédio e, já dentro dele, recosto-me e ensaio o que

hei de dizer-lhes. Preciso de manter a cabeça erguida e ser sarcástica, mas, ao mesmo tempo,nobre. E não desatar a chorar ou bater em Venetia.

Bom, talvez pudesse bater em Venetia. Um bom estalo na cara dela depois de descompor oLuke.

– Por sinal ainda estás casado – ensaio em surdina. – Esqueceste-te de alguma coisa, Luke?Talvez da tua mulher?

Estamos a chegar e sinto-me tonta de nervosismo... mas não me importo. Vou tratar do assunto seja como for. Vou ser forte. Quando o táxi se aproxima, estendo ao

motorista um maço de notas amarrotadas e saio. Começou a chover e uma brisa fria penetra omeu cafetã de chiffon. Tenho de entrar. Atravesso a praça aberta em direção à grandiosa entradade pedra do Guildhall e entro pelas pesadas portas de carvalho. Lá dentro, a receção está cheiade balões de hélio azul-claros e faixas a dizer «Reunião de Cambridge» bem como um enormequadro de avisos coberto de antigas fotografias de alunos. À minha frente, quatro homensbatem nas costas uns dos outros e exclamam: «Nem acredito que ainda estás vivo, meucamelo!» Enquanto hesito, perguntando-me para onde vou, uma miúda de vestido de bailevermelho, sentada atrás de uma mesa coberta por uma toalha, sorri-me.

– Olá! A senhora tem convite? – Tem-no o meu marido. – Tento parecer calma, como uma convidada normal. – Ele chegou

mais cedo. Luke Brandon. – A miúda passa o dedo pela lista e detém-se. – Claro! – diz a sorrir. – Entre, Mistress Brandon. Sigo atrás do grupo de fulanos que contam aldrabices, entro no Grande Salão e aceito uma

taça de champanhe em piloto automático. Nunca estive aqui e não sabia que o lugar eraenorme. Há vitrais gigantescos, antigas estátuas de pedra e uma orquestra a tocar na galeria,amplificada acima do ruído das conversas. Pessoas em traje de gala reúnem-se, conversam evão buscar comida a um bufê. Algumas dançam valsas antiquadas, como se tivessem saído deum filme. Olho em volta, tentando ver Luke ou Venetia, mas a sala está muito movimentada,com mulheres envergando vestidos lindos, homens de smoking, e até alguns particularmenteencantadores, de casaca.

É então que os vejo. A dançar. Luke tinha razão: dança de facto a valsa como o Fred Astaire. Como um especialista faz

Venetia deslizar pelo salão. A saia dela gira e ela lança a cabeça para trás, sorrindo para Luke,juntos, num ritmo perfeito. O casal mais glamoroso do salão.

Fico pregada ao chão enquanto os observo, com o meu cafetã húmido colado às pernas.Todas as frases sarcásticas e irónicas que preparei morrem-me nos lábios. Não sei se consigorespirar, muito menos falar.

– A senhora sente-se bem? – pergunta-me um empregado, mas a sua voz parece vir dequilómetros de distância e vejo-lhe o rosto desfocado. Nunca dancei uma valsa com Luke. Eagora é demasiado tarde.

– Ela vai cair! – Sinto que mãos me seguram enquanto as minhas pernas cedem. Sinto quebato com um braço em qualquer coisa e oiço um zumbido nos ouvidos e a voz de uma mulher agritar:

– Tragam um copo de água! Está aqui uma grávida! E então fica tudo escuro.

DEZASSEIS

Julgava que o casamento era para sempre. De verdade. Pensava que Luke e eu envelheceríamosjuntos e o nosso cabelo ficaria grisalho. Ou pelo menos envelheceríamos. (Não tenciono ficargrisalha alguma vez na vida. Nem usar aqueles vestidos horrorosos com cós elástico.)

Mas não vamos envelhecer juntos. Não vamos sentar-nos juntos nos bancos, nem ver osnossos netos brincarem. Nem vou passar os meus trinta anos com ele. O nosso casamentofracassou.

Sempre que tento falar, acho que vou chorar, por isso não falo. Felizmente não há ninguém com quem falar. Estou num quarto particular do Hospital

Cavendish, para onde me trouxeram ontem à noite. Se quiser atenção num hospital, bastachegar com uma médica celebridade de vestido de cerimónia. Nunca vi tantas enfermeiras àminha volta. Primeiro acharam que eu podia estar em trabalho de parto, depois que podia estarcom pré-eclampsia, por fim decidiram que estava apenas exausta e desidratada. Meteram-menesta cama, com soro intravenoso. Devo ir para casa hoje, depois de receber alta.

Luke ficou comigo toda a noite. Mas não consegui obrigar-me a falar com ele. Por isso fingiestar a dormir, até de manhã cedo, quando ele disse baixinho:

– Becky? Estás acordada? Agora ele foi tomar banho e eu abri os olhos. É um quarto bem giro, com paredes verde-

claras e até um pequeno sofá. Mas quem se importa, quando a minha vida acabou? O queimporta tudo aquilo?

Sei que dois em cada três casamentos fracassam ou qualquer coisa assim. Mas sinceramentepensava...

Pensava que éramos... Afasto uma lágrima com força. Não vou chorar. – Bom dia! – A porta abre-se e uma enfermeira entra a empurrar um carrinho. – Pequeno-

almoço? – Obrigada – digo, em voz rouca, e sento-me enquanto me ajeita as almofadas. Bebo um gole

de chá e como um pedaço de torrada só para que o bebé se alimente. Em seguida, olho-me aoespelho da caixa do compacto. Meu Deus, estou um horror. Ainda tenho os restos damaquilhagem de ontem e o cabelo frisado por causa da chuva. E o soro supostamente«hidratante» nada fez pela minha pele.

Pareço uma rejeitada. Olho para mim sentindo-me infeliz. É o que acontece a toda a gente. Uma pessoa casa e acha

que está tudo ótimo e, afinal, o marido tem um caso e troca-nos por outra mulher com beloscabelos ruivos. Devia ter percebido. Nunca devia ter confiado.

Dei àquele homem os melhores anos da minha vida e agora sou deitada fora em troca de ummodelo mais novo.

Bem, é certo, dei-lhe ano e meio da minha vida. E ela é mais velha do que eu. Mas mesmoassim…

Oiço movimento à porta e sinto-me rígida. Um instante depois, a porta abre-se e Luke entracauteloso. Tem umas leves olheiras e cortou-se a fazer a barba.

Ótimo. Fico feliz por isso. – Já acordaste! – diz. – Como te sentes? Aceno com a cabeça, apertando os lábios com força. Não vou dar-lhe a satisfação de me ver

perturbada. Manterei a dignidade, mesmo que isso signifique só falar em monossílabos. – Pareces estar melhor. – Senta-se na cama. – Fiquei preocupado. De novo ouço a voz tranquila e segura de Venetia: O Luke está só a fingir para a manter

feliz. Levanto a cabeça e olho-o nos olhos, procurando uma fenda na sua fachada. Mas elerepresenta melhor que ninguém. Um marido preocupado, amoroso, ao lado da cama da mulher.

Sempre soube que Luke era muito bom em relações públicas. É o trabalho dele, o que otornou milionário. Mas nunca percebi que podia ser tão bom. Nunca soube que podia terassim... duas caras.

– Becky? – Agora examina-me o rosto. – Está tudo bem? – Não. Não está. – Faz-se silêncio enquanto junto todas as minhas forças. – Luke... eu sei. – Sabes? – Luke fala em tom tranquilo, mas ao mesmo tempo há uma expressão cautelosa

nos seus olhos. – Sabes o quê? – Não finjas. – Engulo em seco. – A Venetia contou-me. Contou o que está a acontecer. – Ela contou-te? – Luke levanta-se com uma expressão no rosto. – Ela não tinha o direito... –

Para e volta-se. Sinto de repente um enorme enjoo. Dói-me tudo. A cabeça, os olhos, osmembros.

Não me apercebera da força com que me agarrava a um último fiapo de esperança. De que,de algum modo, Luke fosse envolver-me nos braços, explicar tudo e dizer que me amava. Masesse fiapo dissolveu-se. Tudo acabou.

– Talvez ela achasse que eu devia saber – consegui dizer num tom de cortante sarcasmo. –Talvez pensasse que eu estaria interessada!

– Becky... estava a tentar proteger-te. – Luke volta-se e parece verdadeiramente arrasado. – Obebé. A tua tensão.

– Então, quando pensavas contar-me? – Não sei. – Luke respira com força, vai até à janela e volta. – Depois do bebé. Ia ver como

corriam as coisas... – Estou a perceber. De repente, não consigo continuar. Não consigo ser digna e adulta. Quero gritar e berrar com

ele. Quero explodir em soluços e atirar coisas ao ar. – Luke, por favor... vai-te embora – digo em pouco mais que um sussurro. – Não quero falar

disso. Estou cansada. – Tudo bem. – Não se mexe um centímetro. – Becky... – O que é? Luke esfrega o rosto com força, como se tentasse arrancar os problemas. – Eu devia ir a Genebra. Para o lançamento do fundo de investimentos De Savatier. Isto não

poderia ter acontecido numa hora pior. Posso cancelar... – Vai. Eu fico bem. – Becky...

– Vai para Genebra. – Volto-me e olho para a parede verde do hospital. – Temos de falar do assunto – insiste. – Preciso de te explicar. Não. Não, não, não. Não vou ouvi-lo contar tudo o que sente em relação a Venetia, que ele

não pretendia magoar-me, mas simplesmente não pôde evitar e que ainda me considera umaboa amiga.

Preferia não saber de nada, nunca. – Luke, deixa-me sozinha! – digo rispidamente, sem voltar a cabeça. – Já te disse que não

quero falar do assunto. E, de qualquer modo, eu devo manter-me calma por causa do bebé. Nãodevias perturbar-me.

– Claro. Ótimo. Bom, então vou andando. Luke parece agora aflito. Ainda bem. Oiço-o a caminhar pelo quarto, o passo lento e relutante. – A minha mãe está na cidade – diz. – Mas não te preocupes, falei com ela para te deixar em

paz. – Ótimo – murmuro para a almofada. – Vemo-nos quando eu voltar. Deve ser na sexta, por volta da hora do almoço. Sim? Não respondo. O que quer dizer com aquilo? Quando voltar para levar todas as coisas para o

apartamento de Venetia? Quando marcar uma reunião com os advogados para o divórcio? Há um longo silêncio e sei que Luke ainda está ali, à espera. Mas ouço, por fim, a porta abrir

e fechar-se e o som fraco dos seus passos desaparece pelo corredor. Espero dez minutos antes de levantar a cabeça. Sinto-me estranha e meio confusa, como se

estivesse no meio de um sonho. Não consigo acreditar que tudo isto está mesmo a acontecer.Estou grávida de oito meses, Luke tem um caso com a nossa obstetra e o nosso casamentoacabou.

O nosso casamento acabou. Repito as palavras, mas elas não me parecem verdadeiras. Nãoconsigo fazer com que se fixem. Parece que há apenas cinco minutos estávamos em lua de mel,a preguiçar numa praia. Que dançávamos no nosso casamento no quintal dos meus pais, eu como velho vestido de casamento da minha mãe, cheio de folhos, e com uma grinalda torta. Queuma conferência de imprensa era interrompida para ele me dar uma nota de vinte e eu podercomprar uma echarpe Denny and George. Nos dias em que mal o conhecia, quando ele era osensual e misterioso Luke Brandon e eu nem tinha a certeza de que ele sabia o meu nome.

Sinto uma dor lancinante e, de repente, as lágrimas escorrem-me pelas faces e enterro acabeça para soluçar na almofada. Como pode ele deixar-me? Não gostou de estar casadocomigo? Não nos divertimos juntos?

Antes que possa impedi-lo, a voz de Venetia penetra na minha cabeça. Você foi umamudança revigorante, para ele, Becky. Fê-lo rir. Mas nem de longe estava no mesmo nível.

Vaca estúpida... estúpida. Cabra. Esquelética... horrível... pretensiosa... Limpo os olhos, sento-me e respiro fundo três vezes. Não vou pensar nela. Nem em nada do

género. – Mistress Brandon? – Batem à porta. Parece ser uma das enfermeiras. – Hã... espere um pouco. – Rapidamente salpico um pouco de água do jarro no rosto e limpo

com o lençol. – Sim? A porta abre-se e a enfermeira bonita que me trouxe o pequeno-almoço aparece a sorrir. – A senhora tem uma visita. A minha mente salta alegremente para Luke. Ele voltou, arrependeu-se, foi tudo um erro.

– Quem é? – Tiro o pó compacto do armário, faço uma careta ao espelho e repuxo o cabelofrisado.

– Uma tal Mistress Sherman. Quase deixo cair a caixa do compacto, consternada. Elinor? Elinor está aqui? Pensei que

Luke lhe tinha dito para me deixar em paz. Não vejo Elinor desde o nosso casamento em Nova Iorque. Ou pelo menos... o nosso

«casamento» em Nova Iorque. (Foi tudo um pouco complicado no final.) Nunca nos demosmuito bem, principalmente por ela ser uma cabra preconceituosa e gélida, que abandonou Lukequando ele era pequenino e se lixou completamente para ele. E pela maneira como foi grosseiracom a minha mãe. E pelo modo como não me deixou entrar na minha própria festa de noivado!E...

– Sente-se bem, Rebecca? – A enfermeira olha-me com ligeira preocupação e percebo querespiro cada vez com mais força. – Se quiser posso dizer que está a dormir.

– Sim, por favor. Diga-lhe para se ir embora. Não estou em condições de ver ninguém agora. Ainda por cima com o rosto vermelho e os

olhos ainda lacrimejantes. E porque deveria eu fazer um esforço para ver Elinor? Sem dúvida a única vantagem de se romper com o marido é não precisar de voltar a ver a

sogra. Não vou sentir falta dela e ela não vai sentir a minha. – Ótimo. – A enfermeira aproxima-se e olha para o soro. – Um médico virá vê-la. Depois

acho que pode ir para casa. Devo dizer a Mistress Sherman que se vai embora? – Na verdade... Tive uma ideia. Há uma vantagem ainda maior em se romper com o marido. Já não é preciso

ser educada com a sogra. – Mudei de ideias. Vou recebê-la, afinal de contas. Mas deixe-me preparar... – Pego no estojo

de maquilhagem e, desajeitadamente, deixo-o cair no chão. A enfermeira apanha-o e lança-meum olhar ansioso.

– Sente-se bem? Parece muito tensa. – Sinto. Só fiquei um pouco... perturbada. Tudo bem. A enfermeira desaparece e eu abro o estojo. Passo um pouco de gel e um blush bronzeador.

Não vou ter ar de vítima. Não vou parecer uma esposa ridícula e enganada. Não faço ideia doque sabe Elinor, mas se ela sequer mencionar a minha separação de Luke, ou se ousar parecersatisfeita com isso, eu... eu vou dizer-lhe que o bebé não é do Luke, que o pai é o Wayne, oprisioneiro com quem me correspondo, e que todo o escândalo vai sair nos jornais de amanhã.Ela vai ficar maluca de todo.

Salpico-me de perfume e rapidamente passo um pouco de brilho nos lábios enquanto ouçopassos a aproximarem-se. Batem à porta e eu grito:

– Entre. Um instante depois, a porta abre-se e ali está ela. Traz um conjunto verde-menta e os mesmos sapatos Ferragamo que compra todas as

estações e na mão uma mala de crocodilo Kelly. Está mais magra que nunca, o cabelo é umcapacete cheio de laca, o rosto pálido e esticado. Quando trabalhei no Barneys, em NovaIorque, via todos os dias mulheres como Elinor. Mas aqui ela parece... bom, não há outrapalavra: esquisita.

Move a boca um milímetro e percebo que é o seu cumprimento. – Olá, Elinor. – Nem me preocupo em tentar sorrir. Pensará que também pus botox. – Bem-

vinda a Londres. – Londres está muito possidónia ultimamente – diz ela com ar reprovador. – Não tem o

mínimo gosto! Mas o que diz ela? Londres inteira é possidónia? – Sim, especialmente a rainha – digo. – Não faz ideia de nada. Ignorando-me, Elinor aproxima-se da cadeira e senta-se na beira. Examina-me com rosto de

pedra por alguns instantes. – Soube que deixou o médico que recomendei, Rebecca. Quem a segue agora? – O nome dela é... Venetia Carter. Sinto uma facada de dor ao dizer o nome. Mas Elinor não reage minimamente. Claro que não

pode saber. – Esteve com o Luke? – Faço o teste. – Ainda não. – Descalça as luvas de pelica e olha para a minha figura vestida com a camisa

de dormir do hospital. – Aumentou bastante de peso, Rebecca. Essa nova médica aprova? – Estou grávida – respondo rispidamente. – E vou ter um bebé grande. A expressão de Elinor não se suaviza. – Não demasiado grande, espero. Os bebés muito grandes são vulgares. Vulgares? Como se atreve ela a chamar vulgar ao meu lindo bebé? – Pois eu fico muito contente por ele ser grande – digo em tom de desafio. – Assim haverá

mais lugar para... as tatuagens. Quase posso ver o choque passar-lhe pelo rosto praticamente imóvel. Vai rebentar as

costuras. Ou os grampos. O que quer que a mantenha inteira. – O Luke não lhe falou dos nossos planos de tatuagens? – Adoto um tom surpreendido. –

Mandámos vir um tatuador especializado em recém-nascidos, que vem diretamente à sala departo. Pensamos em fazer-lhe uma águia nas costas, com os nossos nomes em sânscrito.

– Vocês não vão tatuar o meu neto – diz com voz parecida com um canhão. – Ah, vamos pois. O Luke tomou de facto gosto pelas tatuagens quando estávamos em lua de

mel. Fez quinze! – Lanço-lhe um sorriso afável. – E, assim que o bebé nascer, o Luke vai tatuaro nome dele no braço. Não é uma doçura?

Elinor está a agarrar a mala Kelly com tanta força que as veias se destacam. Percebe-se quenão sabe se deve ou não acreditar.

– Já se decidiram quanto ao nome? – pergunta por fim. – Sim, sim – afirmo. – Armageddon, se for menino, e Pomegranate, se for menina. Por momentos, ela parece incapaz de responder. Vê-se que está desesperada para levantar as

sobrancelhas, ou franzir a testa, ou outra coisa qualquer. Quase sinto pena do seu verdadeirorosto, preso por baixo do botox como um animal enjaulado.

– Armageddon? – consegue dizer por fim. – Não é ótimo? Masculino, mas elegante. E pouco comum! Elinor parece em vias de explodir. Ou implodir. – Não vou admitir uma coisa dessas! – irrompe ela subitamente, levantando-se. – Tatuagens!

Esses nomes! Vocês são... irresponsáveis além de qualquer... – Irresponsáveis? – interrompo, incrédula. – Fala a sério? Bom, pelo menos não planeamos

abandonar... – Paro abruptamente, sentindo que as palavras são exageradas para a minha boca.Não posso fazê-lo. Para começar, não tenho energia. Não posso lançar um ataque assim aElinor, de qualquer modo... sinto-me distraída. De repente, a minha cabeça está a zumbir, cheia

de ideias. – Rebecca. – Elinor aproxima-se da cama, com olhos saltitantes. – Não faço ideia se está a

ser franca comigo. – Cale-se! – Levanto a mão sem me importar se sou grosseira. Tenho de me concentrar.

Tenho de pensar bem. De repente, começo a ver as coisas com clareza, como uma música quese vai encaixando.

Elinor abandonou Luke. Agora Luke abandona o nosso filho. É a história que se repete. Seráque Luke se apercebe? Se ao menos visse... se ao menos entendesse o que está a fazer...

– Rebecca! Levanto os olhos, com se saísse de um atordoamento. Elinor parece querer rebentar de

desespero. – Ah, Elinor... sinto muito – digo, já sem qualquer rancor. – Foi muito simpático da sua parte

ter vindo, mas agora estou um pouco cansada. Por favor, apareça quando quiser para tomar umchá.

Parece que o vento desenfunou as velas de Elinor. Acho que também ela provavelmente sepreparara para uma discussão.

– Muito bem – diz em tom gélido. – Estou hospedada no Claridge’s. Aqui tem os detalhes daminha exposição.

Entrega-me o convite para a Private View, juntamente com uma brochura em papel couchéintitulada «Coleção Elinor Sherman». É ilustrada com a fotografia de um elegante pedestalbranco, sobre o qual há outro pedestal branco, mas menor.

Meu Deus, não entendo a arte moderna. – Obrigada – digo, olhando para aquilo. – Com certeza compareceremos. Obrigada por ter

vindo. Tenha um bom dia! Elinor olha-me, semicerrando os olhos, depois pega nas luvas e na mala Kelly e sai do

quarto. Assim que se vai embora, enterro a cabeça nas mãos, tentando pensar. Preciso de falar com

Luke, seja como for. Ele não deseja isto. No fundo do coração, sei que ele não o quer. Sei quefoi atraído pelas fadas malignas e basta-me quebrar o feitiço.

Mas como? Como vou fazer? Se lhe ligar, desligará, dizendo que depois me telefona e nuncao fará. Os e-mails são lidos pelas secretárias... e não se trata exatamente de um assunto paratratar por SMS...

Tenho de escrever uma carta. Sinto-me atingida por um raio. Tenho de escrever uma carta, como nos tempos antigos, antes

dos telefones e dos e-mails. Meu Deus, é isso mesmo. Vou escrever a melhor carta da minhavida. Vou explicar-lhe os meus sentimentos e os dele (por vezes, precisa que lhe expliquem ossentimentos). Vou expor-lhe o caso com clareza.

Vou salvar o nosso casamento. Ele não deseja uma família dividida, sei que não. Sei quenão.

Uma enfermeira passa pela porta e eu chamo-a: – Por favor! – Sim? – Ela olha-me com um sorriso. – Seria possível arranjar papel de carta? – Há na loja do hospital ou... – Franze a testa, a pensar. – Uma das minhas colegas tem, creio

eu. Espere um momento.

Um instante depois volta com um bloco Basildon Bond. – Basta uma folha? – Talvez precise de mais – digo, impetuosa. – Posso ficar com... três?

Não acredito no quanto escrevi a Luke. Assim que comecei, não consegui parar. Não fazia ideiade que havia tanta coisa sufocada dentro de mim.

Comecei por falar do nosso casamento e de como éramos felizes. Depois falei de todas ascoisas que adorámos fazer juntos, como nos divertimos, e como ficámos emocionados ao saberque íamos ter um bebé. Depois passei a Venetia. Não mencionei o nome dela, mas sim «AAmeaça ao Nosso Casamento». Ele saberá ao que me refiro.

Estou na página 17 (uma enfermeira foi a correr lá a baixo e comprou-me um bloco BasildonBond) e a chegar à parte principal. O pedido para ele dar outra oportunidade ao nossocasamento. As lágrimas escorrem-me pelo rosto e tenho de parar várias vezes para me assoarnum lenço de papel.

Nos nossos votos matrimoniais, prometeste amar-me para sempre. Sei que pensas que jánão me amas. Sei que há outras mulheres neste mundo, que talvez sejam mais inteligentese saibam falar latim. Sei que tiveste um... Não consigo escrever a palavra «caso»: simplesmente não consigo. Passo um traço, como se

fazia nos livros antigos. Sei que tiveste um –, o que não precisa de arruinar tudo. Estou preparada para esquecer opassado, Luke, porque acredito, acima de tudo, que devemos ficar juntos. Tu, eu e o bebé.

Podemos ser uma família feliz, sei que podemos. Por favor, não desistas de nós. Talveztenhas um medo secreto de ser pai, mas podemos fazê-lo juntos! Como disseste, é a maioraventura do mundo. Interrompo a escrita para limpar os olhos. Preciso de terminar. Tenho de descobrir a maneira

de ele me mostrar... de responder... de fazer com que eu saiba... De repente, ocorre-me. Precisamos de uma torre grande e alta, como nos filmes românticos.

E vamo-nos encontrar no cimo à meia-noite... Não. À meia-noite estarei muito cansada. Vamos encontrar-nos no cimo às... seis horas. O

vento soprará ao som de Gershwin e verei nos olhos dele que deixou Venetia para sempre.Depois direi simplesmente: «Vens para casa?» E ele dirá...

– Sente-se bem, Becky? – A enfermeira espreita pela porta. – Como vai isso? – Quase a acabar. – Assoo o nariz. – Onde há uma torre alta em Londres? Se eu quisesse

encontrar-me com uma pessoa. – Não sei. – A enfermeira franze o nariz. – A Oxo Tower é muito alta. Fui lá no outro dia. Há

uma plataforma de observação e um restaurante... – Obrigada! Luke, se me amas e queres salvar o nosso casamento, encontra-te comigo no cimo da OxoTower às seis horas de sexta-feira. Espero-te na plataforma de observação.

A tua mulher que muito te ama, Becky Pouso a caneta, sentindo-me totalmente exaurida, como se tivesse acabado de compor uma

sinfonia de Beethoven. Agora só preciso de mandar esta carta pela FedEx para o escritório deGenebra... e esperar até sexta-feira à noite.

Dobro as dezassete páginas ao meio e tento sem êxito enfiá-las no envelope Basildon Bondquando o meu telemóvel toca no armário.

Luke! Ah, meu Deus. Mas ele ainda não leu a carta! Com as mãos trémulas, pego no telefone – mas não é Luke. É um número que não reconheço.

Não será a Elinor a ligar-me para me pregar um sermão, pois não? – Estou? – pergunto, com cautela. – Estou. Becky? Aqui é a Martha. – Ah. – Afasto o cabelo do rosto, tentando situar o nome. – Pois... olá. – Só venho verificar se está tudo preparado para as fotos na sexta – diz ela. – Mal posso

esperar para ver a sua casa! A Vogue. Merda. Tinha-me esquecido completamente. Como pude esquecer-me de uma sessão de fotos para a Vogue? Meu Deus, a minha vida deve

estar mesmo aos pedaços. – Então, está tudo bem? – A voz de Martha soa feliz pelo telefone. – Ainda não teve o bebé,

pois não? – Bom, não... – Hesito. – Mas estou no hospital. – Quando pronuncio estas palavras, percebo

que não devia estar com o telemóvel no hospital. Mas foi a Vogue que ligou. Deve haver uma exceção para a Vogue, com certeza. – Ah, não! – A voz dela parece agora consternada. – Sabe, estamos com um azar tremendo

com este artigo! Uma das mães deliciosas teve os gémeos antes do tempo, o que foi mesmochato, e a outra teve pré-eclampsia ou sei lá o quê, e está de repouso! Não podemos fazer aentrevista nem nada! E o que se passa consigo? Está também de repouso?

– Eu... espere um minuto... Pouso o telefone na cama, tentando fortalecer o ânimo. Nunca senti menos vontade de tirar

uma fotografia na vida. Estou gorda, manchada das lágrimas, o meu cabelo está horroroso, omeu casamento a desmoronar-se... Solto um profundo e trémulo suspiro e vejo então o meureflexo turvo num armário com porta de vidro. Curvada, a cabeça baixa. Pareço derrotada.Tenho um aspeto horrível.

Numa ação reflexa imediata, endireito-me um pouco. O que estou eu a dizer? A minha vidatambém acabou? Só porque o meu marido teve um caso?

De maneira nenhuma. Não vou sentir pena de mim. Não vou desistir. Talvez a minha vidaesteja em frangalhos. Mas ainda posso ser deliciosa. Serei a mãe mais deliciosa que já viram.

Levo de novo o telefone ao ouvido. – Estou, Martha? – digo, tentando parecer despreocupada. – Desculpe. Está tudo bem para a

sessão fotográfica na sexta. Vou sair hoje do hospital, de modo que lá estarei! – Fantástico! – Apercebo-me do alívio na voz de Martha. – Mal posso esperar! Só vai

demorar duas ou três horas e prometo que não a cansaremos! Tenho a certeza de que temmontes de roupas lindas, mas as nossas estilistas vão levar também umas peças... agora deixe-me confirmar o seu endereço. Mora na Delamain Road, 33?

De repente, ocorre-me que não consegui as coisas para a Fabia. Mas ainda tenho tempo. Vaicorrer tudo bem.

– Isso mesmo. – Que sorte, aquelas casas são incríveis! Então até lá, às onze horas. – Até lá! Desligo o telefone e respiro fundo. Vou aparecer na Vogue. Vou ser deliciosa. E vou salvar o

meu casamento.

De: Becky Brandon Para: Fabia Paschali Assunto: Amanhã Olá, Fabia! Só para confirmar que vou aí amanhã com uma equipa da Vogue e a sessão fotográfica vaidurar mais ou menos das 11 da manhã até às três da tarde. Consegui o top roxo e a mala Chloe, mas, infelizmente, mesmo tendo tentado em toda a parte,não consigo localizar os sapatos Olly Bricknell que deseja. Haverá outra coisa de que goste? Mais uma vez, muito obrigada – e estou desejosa de vê-la amanhã. Becky De: Fabia Paschali Para: Becky Brandon Assunto: Re: Amanhã Becky Sem sapatos, não há casa. Fabia.

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros Financeiros Forward House

High Holborn, 394. Londres WC1V 7EX

26 de novembro de 2003 Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 26 de Novembro de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigado pela sua carta. Apercebi-me das suas novas aquisições de ações da Sweet Confectionery, Inc, da Estelle RodinCosmetics e da The Urban Spa plc. Mas não concordo que sejam os «melhores investimentosdo mundo». Por favor, permita-me reiterar. Chocolates grátis, amostras de perfume e tratamentos comdesconto em spas – ainda que agradáveis – não são uma base sólida para investimentos. Insisto em que a senhora reconsidere a sua atual estratégia de investimentos e teria todo oprazer em prestar-lhe uma maior assistência. Atenciosamente, Kenneth Prendergast Especialista em Investimentos de Família

DEZASSETE

Porcaria, porcaria de sapatos. Não resta um único par deles em Londres. Especialmente emverde. Não é de espantar que Fabia os queira: são como o Santo Graal ou uma coisa assim, sóque não há qualquer pista em quadros. Passei todo o dia de ontem a tentar todos os meuscontactos, todos os fornecedores que conheço, todas as lojas, tudo. Até liguei para a minhaantiga colega Erin, do Barneys de Nova Iorque, mas ela limitou-se a rir cheia de pena.

Por fim, Danny entrou para me ajudar. Fez alguns telefonemas e acabou por descobrir um parcom uma modelo que conhece e que está a fotografar em Paris. Em troca de um casaco demostruário, entregou os sapatos a um amigo que vinha para Londres ontem à noite. Eleencontrou-se com Danny, que agora mos vai trazer.

É este o plano. Só que Danny ainda não chegou. Já são dez e cinco e começo a entrar empânico. Estou na esquina da Delamain Road, com a minha roupa mais deliciosa, um vestidoenvelope de estampado vermelho, sapatos de salto Prada e uma estola de pele falsa, estilovintage, e todos os carros abrandam para olhar para mim.

Pensando bem, este não é o melhor lugar para marcar encontro. Devo parecer uma prostitutagrávida de oito meses a todos os pervertidos.

Levanto o telemóvel e marco mais uma vez o número de Danny. – Danny? – Estamos aqui! Estamos a chegar. Acabamos de passar numa ponte... uau! Danny devia ter entregado os sapatos ontem à noite – só que, em vez disso, foi para uma

discoteca com um fotógrafo que conheceu nas férias. (Não me perguntem. Começou a contar-me a noite que os dois passaram juntos em Marraquexe e, francamente, tive de tapar os ouvidosdo bebé.) Está às gargalhadas, e oiço o rugido da Harley Davidson do amigo. Como conseguedivertir-se? Não sabe como estou tensa?

Mal dormi desde que Luke foi embora. E, quando consegui adormecer, ontem à noite, tiveum sonho pavoroso. Sonhei que estava no cimo da Oxo Tower, mas Luke não aparecia.

Fiquei ali durante quatro horas num vendaval, com a chuva a cair em cima de mim, e por fimLuke apareceu – mas, não sei como, transformara-se na Elinor e ela começou a gritar comigo. Eentão o meu cabelo caiu...

– Com licença! Aproxima-se uma mulher, com duas crianças pela mão, que me lança um olhar estranho. – Ah. Desculpe. – Volto a mim e saio do caminho. Na vida real, não falei com Luke desde que ele partiu. Ele tentou ligar várias vezes, mas

limitei-me a enviar-lhe mensagens curtas a dizer que lamentava muito não ter podido atender eque tudo está bem. Não queria falar com ele até que lesse a minha carta – o que só aconteceuontem à noite, segundo o sistema de localização. Alguém do escritório de Genebra assinou emcomo a recebera às 18.11, de modo que ele já a deve ter lido.

Os dados estão lançados. De qualquer modo, saberei hoje às seis horas. Ou ele estará lá, àminha espera, ou...

A náusea invade-me e sacudo rapidamente a cabeça. Não vou pensar nisso. Primeiro vou resolver esta sessão fotográfica. Dou uma dentada num KitKat para ganhar

energia e olho de novo para a página impressa que Martha mandou por e-mail. É uma entrevistacom uma das futuras mães deliciosas do artigo, que, segundo ela, me «daria uma ideia». Aoutra deliciosa chama-se Amelia Gordon-Barraclough. Posa num enorme quarto de bebé emKensington, usando um cafetã com contas e umas cinquenta e nove pulseiras, e todas as suascitações parecem absurdamente presunçosas.

«Encomendámos todos os nossos móveis do quarto do bebé a artesãos da Provença.» E então? Direi que mandámos fazer os nossos a artesãos do... interior da Mongólia. Não, nós

descobrimo-los. As pessoas das revistas elegantes nunca se limitam a comprar uma coisa numaloja, descobrem-na, desencantam-na num ferro-velho ou herdam de uma famosa avódecoradora.

«O meu marido e eu fazemos ioga para casais duas vezes por dia na nossa “sala de refúgio”.Achamos que assim criamos harmonia no nosso relacionamento.»

Com uma ferroada, lembro-me subitamente de que Luke e eu fizemos ioga para casais nanossa lua de mel.

Pelo menos, fazíamos ioga e éramos um casal. Sinto um nó na garganta. Não. Para com isso. Pensa com confiança. Pensa delícia. Direi que

Luke e eu fazemos uma coisa muito mais chique do que ioga. Tipo aquela coisa que li um diadestes. Qi-qualquer-coisa.

Os meus pensamentos são interrompidos pelo ronco de uma mota. Levanto os olhos e vejouma Harley a acelerar pela discreta rua residencial.

– Olá! – agito os braços. – Aqui! – Olá, Becky! – A mota para ao meu lado. Danny tira o capacete e salta de trás, com uma

caixa de sapatos na mão. – Aqui estão eles! – Ah, Danny, obrigada. – Dou-lhe um abraço enorme. – Salvaste-me a vida. – Tudo bem! – responde Danny, montando de novo. – Depois contas-me! A propósito, este é

o Zane. – Olá! – Aceno ao Zane, que está vestido de couro da cabeça aos pés e levanta a mão para

cumprimentar. – Obrigada pela entrega! A mota parte de novo. Pego na asa da minha mala, que está cheia de roupas e acessórios, e no

ramo de flores que comprei hoje de manhã para fazer com que a casa fique bonita. Sigo emdireção ao número 33, lá consigo levar a mala escada acima e tocar à campainha. Não háresposta.

Depois de uma pausa, toco de novo e chamo «Fabia!» Mas não há resposta. Não pode ter-se esquecido de que é hoje. – Fabia! Está a ouvir? – Bato à porta. – «FA-BI-A!» Há um silêncio mortal. Não está ninguém. Sinto uma pontada de pânico. O que vou fazer? A

Vogue vai chegar a qualquer... – Olááá! – chama-me uma voz da rua. Volto-me e vejo uma jovem inclinar-se à janela de um

Mini Cooper. É magra, de cabelos brilhantes, uma pulseira Kabbala e um anel de noivado comuma pedra gigantesca. Tem de ser da Vogue.

– É a Becky? – grita.

– Sou! – Forço um sorriso luminoso. – Olá! É a Martha? – Exato! – Os olhos dela sobem e descem pelos andares da casa. – Tem uma casa fantástica!

Mal posso esperar para a ver por dentro! – Ah. Pois... obrigada. Há uma pausa cheia de expetativas e eu encosto-me naturalmente a uma das colunas, como se

estivesse a fazer tempo na escada da frente. Como as pessoas fazem. – Está tudo bem? – pergunta Martha, algo perplexa. – Ótimo! – Tento fazer um gesto tranquilo. – Só... bem... a apreciar o ar puro... Penso freneticamente. Talvez pudéssemos fazer toda a sessão fotográfica aqui na escada.

Pois. Poderia dizer que a porta da frente é a melhor coisa da casa e que não vale a penapreocupar-se com o resto...

– Becky, perdeu a sua chave? – pergunta Martha, parecendo perplexa. Genial. Claro. Porque não pensei nisso? – Pois! Sou mesmo idiota! – Bato na testa. – E nenhum dos vizinhos tem uma cópia e não há

ninguém em... – Ah, não! – Martha fica consternada. – Bem sei. – Encolho os ombros, lamentando. – Sinto muitíssimo. Mas se não pudermos

entrar... Enquanto pronuncio estas palavras, a porta da frente abre-se e quase caio dentro da casa.

Fabia apareceu, esfregando os olhos e usando um vestido Marni laranja. – Olá, Becky. – Parece aérea. Como se tivesse tomado tranquilizantes ou qualquer coisa

assim. – Uau! – O rosto de Martha ilumina-se. – Havia alguém em casa! Que sorte! Quem é ela? – Esta é a Fabia. A nossa... hóspede. – Hóspede? – Fabia franze o nariz. – Hóspede e muito boa amiga – emendo depressa, passando-lhe o braço pela cintura. –

Somos muito próximas... Graças a Deus, do outro lado da rua, um carro parou atrás do Mini e começa a buzinar. – Ah, cala-te! – diz Martha. – Becky, nós vamos buscar café, quer que lhe traga alguma

coisa? – Não, estou ótima, obrigada! Vou esperar aqui em casa. Na minha casa. – Ponho a mão no

puxador da porta num gesto de proprietária. – Até logo! Vejo o carro desaparecer, depois volto-me para Fabia. – Pensei que não estivesse! Pronto, temos de nos despachar, consegui as suas coisas. Aqui

está a carteira e a blusa... – Entrego-lhe os sacos. – Fantástico – os olhos dela, gananciosos, concentram-se nos objetos. – Conseguiu os

sapatos? – Claro! – digo. – O meu amigo Danny conseguiu que uma modelo lhos cedesse e trouxesse

de Paris. Danny Kovitz, o estilista, conhece? Quando pego na caixa, sinto uma pontada de triunfo. Ninguém mais neste mundo conseguiria

estes sapatos. Tenho tantos conhecimentos! Espero que Fabia fique sem respirar ou diga «Queincrível!» Mas, em vez disso, ela abre a caixa de sapatos, olha para dentro um instante e depoisfranze a testa.

– Não é esta cor. – Fecha a tampa e devolve-me a caixa. – Queria verde. Será que é daltónica? Os sapatos são de um fantástico verde-claro, além disso está impresso

«Verde», em letras grandes na tampa. – Fabia, os sapatos são verdes. – Eu queria mais um... – agita o braço. – Verde-azulado. Esforço-me tremendamente para manter a paciência. – Quer dizer... turquesa? – É isso! – O rosto dela ilumina-se. – Turquesa. Era o que eu queria dizer. Esta cor é

demasiado clara. Não acredito. Os sapatos viajaram desde Paris, através de uma modelo e de um estilista

mundialmente famoso e ela não os quer? Bem, fico eu com eles. – Ótimo – digo, recebendo a caixa. – Vou conseguir-lhe os turquesa. Mas, de facto, preciso

de entrar na casa... – Não sei. – Fabia encosta-se à ombreira da porta e examina um fio solto na manga. – Para

ser franca, não é muito conveniente. Não é conveniente? Tem de ser conveniente! – Mas combinámos que seria hoje, lembra-se? O pessoal da Vogue já chegou! – Não pode mandá-los embora? – Ninguém manda embora a Vogue! – Elevo o tom de voz, agitada. – É a Vogue! Ela encolhe os ombros, despreocupada, e de repente fico lívida. Ela sabia que eu vinha. Foi

tudo planeado. Não pode fazer isto comigo. – Fabia. – Inclino-me mais, ofegante. – Não vai destruir a minha única oportunidade de

aparecer na Vogue. Arranjei-lhe a blusa. Arranjei a mala. Arranjei os sapatos! Tem de medeixar entrar nesta casa ou... ou...

– Ou o quê? – pergunta Fabia. – Ou... telefono para o Barneys e faço com que a ponham na lista negra! – sibilo numa súbita

inspiração. – Não vai ser muito divertido quando for morar para Nova Iorque, pois não? Fabia fica pálida. Ora pronto. Apanhei-a. – Bem, e para onde vou? – pergunta, carrancuda, tirando o braço da ombreira. – Não sei! Vá fazer uma massagem com pedras quentes ou sei lá o quê! Mas saia! – Atiro a

mala para dentro de casa e passo por ela, entrando no corredor. Pronto. Tenho de ser rápida. Abro a mala, tiro uma moldura de prata com uma fotografia

minha e do Luke no dia do casamento e coloco-a com destaque sobre a mesa do corredor.Pronto. Já parece a minha casa!

– Afinal, onde está o seu marido? – pergunta Fabia, olhando-me de braços cruzados. – Nãodevia estar aqui a fazer isto? Parece-me uma espécie de mãe solteira.

As palavras dela apanham-me desprevenida. Por segundos, não confio na minha capacidadede responder.

– O Luke está... fora do país – digo por fim. – Mas vou ter com ele mais tarde. Às seis horas.Na plataforma de observação da Oxo Tower. Ele vai lá estar. – Respiro fundo. – Sei que vai.

Sinto os olhos a arder e pestanejo furiosamente. Não vou desintegrar-me. – Sente-se bem? – Fabia olha-me de frente. – É só... um dia importante para mim. – Pego num lenço de papel e enxugo os olhos. – Será

que posso beber um copo de água? – Meus Deus – oiço Fabia murmurar enquanto vai à cozinha. – É só a porcaria da Vogue.

Tudo bem. Está quase. Passaram-se vinte minutos, Fabia por fim saiu e a casa parece realmenteminha. Retirei todas as fotografias de Fabia e substituí-as por outras minhas e da minha família.Coloquei almofadas com iniciais «B» e «L» no sofá da sala de estar. Arranjei as flores emvasos em toda a parte. Memorizei o conteúdo dos armários da cozinha e até colei Post-its nofrigorífico, dizendo coisas como «Precisamos de mais quinoa biológica, querido» e «Luke –não esqueças o Qi-gong para casais no sábado!».

Agora guardo rapidamente alguns pares de sapatos meus no closet de sapatos de Fabia,porque eles podem perguntar acerca dos meus acessórios. Estou a contar quantos pares desapatos Jimmy Choo existem quando a campainha toca subitamente e dou um salto quase empânico. Enfio o resto dos sapatos no armário, verifico a minha imagem no espelho e desço aescada com as pernas trémulas.

É isto! Toda a minha vida quis falar das minhas roupas numa revista! Quando chego ao corredor, faço uma rápida recapitulação. Vestido: Diane Von Furstenburg.

Sapatos: Prada. Meias: Topshop. Brincos: prenda da mãe. Não, não é suficientemente elegante. Vou chamar-lhes... modelo próprio. Não. Vintage. Direi

que os encontrei presos num espartilho dos anos 30 que comprei num velho ateliê numaruazinha de Paris. Perfeito.

Abro a porta da frente, colando um sorriso luminoso no rosto – e fico imóvel. Não é a Vogue. É Luke. Vem de sobretudo, traz a mala de viagem, e parece que hoje não fez a barba. – Que diabo se passa? – pergunta, sem preâmbulos, com a minha carta na mão. Olho-o, admirada. Isto não está certo. Ele devia estar na Oxo Tower, todo romântico e

amoroso. Não aqui à porta, desgrenhado e mal-humorado. – Eu... – Engulo em seco. – O que estás a fazer aqui? – O que estou a fazer aqui? – repete ele, incrédulo. – Estou a reagir a isto! Não atendeste

nenhum dos meus telefonemas, não fazia a mínima ideia do que estava a acontecer...«Encontra-te comigo no cimo da Oxo Tower.» – Ele agita a carta na minha direção. – Quemerda é esta?

Merda? – Não é merda nenhuma! – grito, ferida. – Estava a tentar salvar o nosso casamento, se é que

não percebeste... – Salvar o nosso casamento? – Olha-me de frente. – Na Oxo Tower? – Funciona nos filmes! Tu devias aparecer e tudo devia ser lindo. Como em Sintonia de

Amor... Sinto a voz embargada de desapontamento. Achei que ia correr tudo bem! Pensei que ele estaria lá e que cairíamos nos braços um do outro e seríamos de novo uma

família feliz! – Okay. É óbvio que há qualquer coisa que não estou a entender. – Luke franze a testa e olha

de novo para a carta. – Esta carta nem faz sentido: «Sei que tiveste um _.» E mais nada. O quefoi que tive? Um enfarte?

Ele está a troçar de mim e não o suporto. – Um caso! – grito. – Um caso! O teu caso com a Venetia! Eu sei, lembras-te? E só pensei

que talvez quisesses dar outra oportunidade ao nosso casamento, mas é óbvio que não, de modoque, por favor, vai-te embora. Tenho uma sessão fotográfica para a Vogue. – E passo a mão

com raiva pelos olhos lacrimosos. – O meu quê? – Luke parece genuinamente ofendido. – Becky, estás a brincar. – Ah, pois estou. – Faço menção de fechar a porta, mas ele segura-me o pulso com força. – Para. – A voz de Luke parece um trovão. – Não sei que raio está a acontecer. Esta carta

caiu de para quedas... estás a acusar-me de ter um caso... não podes fugir sem me dares umaexplicação.

Será que ele se mudou para um universo paralelo? Será que alguém lhe acertou na cabeçacom alguma coisa?

– Tu mesmo o admitiste, Luke! – grito, frustrada. – Disseste que estavas a tentar «proteger-me» por causa da minha tensão ou sei lá o quê. Lembras-te?

Luke examina-me o rosto de alto a baixo, como se procurasse resposta. – A conversa que tivemos no hospital – diz ele de súbito.

– Antes de me ir embora. – Ah, pois! Lembraste-te de repente? – Não consigo evitar o sarcasmo. – Pensavas contar-me

depois da chegada do bebé. Ias ver como as coisas «se passavam». Tu mesmo admitiste... – Não estava a falar de nenhum caso, que raio! – explode Luke. – Estava a falar da crise do

Arcodas! E de súbito caio em mim. – O... o quê? De repente, reparo que há duas crianças no passeio, a olhar para nós. Creio que estamos

muito visíveis, com a minha barriga e tudo o mais. – Vamos entrar – digo num tom digno. Luke acompanha-me o olhar. – Claro. Pois. É... isso mesmo. Ele entra em casa e eu fecho a porta. Por um momento, faz-se silêncio no corredor. Não sei o

que dizer. Sinto-me totalmente abalada. – Becky... não sei que confusão fizeste. – Luke expira longamente e com força. – Houve

problemas no trabalho e tentei manter-te afastada. Mas não tenho nenhum caso. Com aVenetia?

– Mas ela disse-me que tinham. Luke parece confuso. – Não pode ter feito uma coisa dessas. – Mas fez! Disse que me ias deixar para ficares com ela. Disse... – Mordo o lábio. É doloroso

lembrar-me de tudo o que a Venetia me disse. – Não passa da... mais completa... loucura. – Luke abana a cabeça, exasperado. – Não sei que

conversa tiveste com a Venetia, que... linha cruzada ou desinformação... – Estás a dizer-me que não há nada entre vocês? Absolutamente nada? Luke mete os dedos por entre o cabelo e fecha os olhos por breves instantes. – Porque pensarias que se passa alguma coisa? – Porquê? – Encaro-o. – Luke, falas a sério? Por onde queres que comece? Pelas vezes que

saíste com ela, só os dois. Todas aquelas mensagens em latim de que não me querias contarnada. E, no escritório, todos ficaram muito esquisitos comigo... vi-te sentado com ela àsecretária, no consultório... e mentiste-me na noite do Finance Awards... – A minha voz começaa falhar. – Sabia que não estavas lá...

– Menti porque não te queria preocupar! – Nunca tinha visto Luke tão abalado e furioso. –Os meus funcionários pareceram-te estranhos porque mandei um e-mail a todos dizendo que

ninguém, absolutamente ninguém, deveria falar contigo do problema da empresa sob pena deser demitido. Becky... eu tentava proteger-te.

Lembro-me subitamente dele sentado à secretária às escuras, de testa franzida. Há semanas.Desde então anda pensativo e ausente.

Mas por que razão a Venetia teria dito... Porque teria... – Disse-me que me ias deixar para ficares com ela – digo em voz realmente trémula. – Disse

que mesmo assim quererias visitar o bebé. – Solto um súbito soluço. – Deixar-te? Becky, anda cá. – Luke envolve-me com força nos braços e de repente enterro a

cabeça no peito dele, com as lágrimas a escorrerem-lhe pela camisa. – Amo-te – diz comfirmeza. – Nunca te vou deixar. Nem ao pequeno Birkin.

Como foi que ele... Ah. Deve ter encontrado a minha lista de nomes. – Agora é Armageddon – corrijo por entre os soluços. – Ou Pomegranate. Foi o que disse à

tua mãe. – Excelente. Espero que ela tenha desmaiado. – Quase. – Tento sorrir, mas não posso. Sinto-me ainda muito dorida. Passei semanas e

semanas de preocupações, imaginando e temendo o pior. Não consigo estalar simplesmente osdedos e agir de novo com naturalidade.

– Pensei que seria mãe solteira. – Engulo em seco. – Pensei que a amavas. Não sabia porqueandavas tão estranho. Tem sido horrível. Se tinhas problemas no trabalho, devias ter-mecontado.

– Sei que sim. – Fica por momentos em silêncio, pousando o queixo na minha cabeça. – Paraser franco, Becky... tem sido bom ter um lugar para onde fugir daquilo tudo.

Levanto a cabeça e examino Luke. Parece triste. E cansado, percebo. Realmente, realmentecansado.

– Que se passa? – limpo o rosto. – Qual é o problema? Tens de me contar já. – O Arcodas. – Mas pensei que ia tudo muito bem! – respondo, confusa. – Achei que era por isso que

abrias as novas sucursais. – Gostava de nunca me ter candidatado para trabalhar com eles. – Luke parece tão arrasado

que me sinto um pouco assustada. – Luke, o que aconteceu? – pergunto, nervosa. – Vamos sentar-nos. – Dirijo-me à sala de

estar de Fabia afundo-me num fofo sofá de camurça. – Muitas coisas – diz Luke, acompanhando-me. Ergue brevemente as sobrancelhas para as

almofadas com o «B» e o «L», depois senta-se, com a cabeça entre as mãos. – Não vais querersaber.

– Quero. Quero saber tudo. Desde o princípio. – Tem sido um pesadelo. – Volta-se para mim. – O maior pesadelo é uma acusação de

assédio. – Assédio? – Olho-o, boquiaberta. – Sally-Ann Davies. Lembras-te de quem ela é? – Claro. O que aconteceu? Sally-Ann trabalha para a empresa desde que conheço Luke. É bastante reservada, mas muito

doce e de confiança. – Houve... incidentes entre ela e o Iain. Ela diz que ele se meteu com ela de modo agressivo e

desagradável. A Sally-Ann apresentou uma queixa. E ele riu-se do assunto. – Meu Deus, que horror – digo ofegante. – Então... e tu...? – Acredito cem por cento na Sally-Ann. – Luke parece totalmente resoluto. Fico em silêncio. Lembrei-me imediatamente do envelope pardo do escritório de Dave

Sharpness. O dossiê que ele reuniu acerca de Iain. Todos aqueles casos «abafados». Será que devo contar a Luke? Não. A não ser que seja necessário. Provocaria muitas perguntas incómodas e ele poderia

ficar furioso por saber o que fiz. De qualquer modo, destruí tudo o que havia no envelope,portanto, nem tenho mais provas.

– Pois – digo lentamente. – Também eu acreditaria nela. Então... e o que disse o Iain? – Nada que eu gostasse de repetir. – Luke tem o rosto tenso. – Acusou-a de ter inventado a

história para conseguir ser promovida. A opinião dele sobre as mulheres é simplesmenteexecrável.

Franzo a testa, tentando pensar nas semanas anteriores. – Foi quando não pudeste ir à minha aula de preparação para o parto? – Foi o início, sim. – Massaja a testa. – Becky, não podia contar-te. Acredita, que queria, mas

sabia que irias ficar aborrecida. E a Venetia tinha acabado de me dizer que precisavas decalma.

Calma. Pois, não há dúvida de que o plano de facto funcionou. – Então o que aconteceu? – A Sally-Ann foi de um espírito incrivelmente generoso. Disse que não levaria adiante a

queixa se fosse transferida para outra conta. Coisa que, obviamente, fizemos. Mas toda acompanhia ficou aborrecida com aquilo. – Suspira. – Para ser franco, tem sido difícil trabalharcom o Arcodas desde o início.

– O Iain é estranho, não é verdade? – digo, cortante. – Não é só ele. – Luke abana a cabeça. – É a ética. São todos eles agressivos. – Passa-lhe uma

sombra pelo rosto. – E agora... voltou a acontecer. – Com a Sally-Ann? Luke abana a cabeça. – A Amy Hill, uma das nossas secretárias, ficou lavada em lágrimas por causa de outro tipo

da equipa do Arcodas. Ele ficou furioso e violento e ela disse que se sentiu fisicamenteameaçada.

– Estás a brincar. – Andam pela minha empresa como se fossem donos... – Luke expira com força, como se

tentasse manter o autodomínio. – Convoquei uma reunião e exigi que o funcionário do Arcodaspedisse desculpas à Amy.

– E ele pediu? – Não. – O rosto de Luke contorce-se. – Quer que ela seja demitida. – Demitida? – Estou assombrada. – Diz que ela é incompetente e que, se fizesse o trabalho como deve ser, ele não precisaria de

se ter irritado. Entretanto, tenho todos os funcionários em pé de guerra. Escrevem-me e-mails aprotestar, recusando-se a tocar na conta do Arcodas, ameaçando demitirem-se... – Luke passa amãos pelos cabelos, parecendo totalmente arrasado. – Como te disse, é um pesadelo.

Enterro-me no sofá da Fabia, tentando absorver tudo aquilo. Não acredito que Luke tenhaandado por aí com tantas preocupações durante tanto tempo, sem dizer nada. Tentando

proteger-me. E sem afinal ter um caso. Observo-lhe o rosto que voltou para mim. Ocorre-me que ainda assim pode estar a mentir.

Mesmo que a história do Arcodas seja verdade, pode andar a encontrar-se com Venetia. Pelamilésima vez passa-me pela cabeça a frase O Luke está a fingir só para a manter feliz.

– Luke, por favor – digo rapidamente. – Por favor. Diz-me a verdade de uma vez por todas.Andas a encontrar-te com ela?

– O quê? – Luke volta-se para mim, espantado. – Becky, achei que tínhamos resolvido esseassunto…

– Ela disse que estavas a representar. – Torço os dedos, aflita. – Tudo poderia ser só umesquema. Para... para me manter feliz.

Luke volta-se para mim e segura-me as mãos, com força. – Becky, não nos encontramos. Nada disso aconteceu. Não sei como posso explicar-te de um

modo mais claro. – Então, porque me disse ela que vocês se encontravam? – Não sei. – Luke parece à beira de um esgotamento. – Francamente, não faço ideia do que

ela estava a falar. Olha, Becky, terás de confiar em mim. És capaz? Há um silêncio. A verdade é que não sei. Não sei se posso confiar nele. – Quero uma chávena de chá – murmuro por fim e levanto-me. Pensei que tudo ficaria melhor depois de falarmos; quando ficasse tudo esclarecido; mas

agora que tudo está claro como uma exposição num pódio, ainda não sei em que acreditar. Sem olhar Luke nos olhos, vou até à cozinha e começo a abrir todos os armários feitos à mão

da Fabia, à procura do chá. Meu Deus, esta devia ser a minha casa e devia saber onde está ochá.

– Experimenta aquele – diz Luke enquanto abro um armário cheio de panelas e bato de novoa porta com força, só que ela não bate porque o armário é muito caro e muito bem feito. – O docanto.

– Ah, pronto. – Abro-o e encontro uma caixa de saquinhos de chá. Ponho-os na bancada eencosto-me a ela, sem energia. Entretanto, Luke foi até à gigantesca porta de vidro das traseirase olha para o jardim, com os ombros rígidos.

Não foi assim que planeei o nosso encontro. De maneira nenhuma. – O que vais fazer em relação ao Arcodas? – pergunto por fim, torcendo o fio de um

saquinho de chá. – Não podes demitir a Amy. – Claro que não vou demitir a Amy. – Então, quais são as opções? – Primeira opção: conserto as coisas – diz Luke, sem mover a cabeça. – Aguento o embate,

sacudo a pó e dou a volta por cima. – Até que a coisa aconteça de novo – digo. – Exatamente. – Luke volta-se, muito sério acenando com a cabeça. – Segunda opção:

convoco uma reunião com o Arcodas. Digo-lhes com toda a franqueza que não permitirei queos meus funcionários sejam intimidados. Consigo um pedido de desculpas para a Amy. Façocom que sejam razoáveis.

– E a terceira opção? – Pela expressão dele, percebo que existe uma. – Terceira opção: se não cooperarem... – detém-se por muito tempo. – Recusamo-nos a

trabalhar para eles. Rescindimos o contrato.

– Isso será possível? – Será possível. – Aperta as palmas das mãos contra os olhos e esfrega-os. – Seria caro como

o caraças. Há uma multa, caso desistamos no primeiro ano. Além disso, abrimos escritórios emtoda a Europa com base nesse contrato. Devia ser o nosso admirável mundo novo. A nossapassagem para as coisas maiores e melhores.

Apercebo-me do grande desapontamento na voz dele. E, de repente, tenho vontade de oabraçar com força. Foi tão emocionante quando a Brandon Communications conseguiu a contado Arcodas!

Trabalharam muito. Parece-me um prémio desgraçado. – Então, o que vais tentar fazer? – pergunto, hesitante. Luke agarrou o quebra-nozes antigo que estava numa mesa lateral. Começa a girar o cabo,

com o rosto sério. – Ou posso dizer aos meus funcionários que têm simplesmente de aguentar. Alguns podem

ir-se embora, mas outros vão submeter-se. As pessoas precisam dos empregos. Vão aceitar estaporcaria.

– E terão uma empresa de porcaria. – Uma empresa de porcaria mas lucrativa. – Não gosto da tensão que percebo na voz dele. –

Estamos nisto para ganhar dinheiro, lembras-te? De repente, o bebé dá-me um pontapé e eu estremeço. É tudo tão difícil. Eu. O Luke. Toda

aquela horrível situação. – Não vais querer isso. Luke não move um músculo. Tem o rosto duro como uma pedra. Quem estivesse a assistir

pensaria que ele não concordara, não ouvira ou não se importava. Mas eu sabia o que sepassava na cabeça dele. Adora a empresa. Adora quando ela prospera e é bem-sucedida e feliz.

– Luke, os funcionários da Brandon Communications... são a tua família. – Dou um passo emdireção a ele. – Foram leais para contigo durante todos estes anos. Pensa em como te sentiriasse a Amy fosse tua filha. Desejarias que o patrão tomasse uma posição. Quero dizer... tu és oteu próprio patrão! A questão é que não precisas de trabalhar para ninguém.

– Vou falar com eles. – Luke ainda tem os olhos baixos. – Vou resolver o assunto. Talvezconsigamos fazer com que tudo dê certo.

– Talvez. – Aceno com a cabeça, tentando parecer mais esperançosa do que realmente mesinto.

De repente, Luke volta a colocar o quebra-nozes na mesa e levanta os olhos. – Becky, se eu cancelar o contrato com o Arcodas... não seremos multimilionários,

entendes? Sinto uma pontada. Foi tão emocionante enquanto tudo corria tão bem e íamos conquistar o

mundo e viajar em jatos particulares. E eu planeava comprar aquelas incríveis botas de saltoagulha Vivienne Westwood, de mil libras.

Tanto faz. Há uma versão de cinquenta libras na Topshop. Compro antes essa. – Agora talvez não. – Ergo o queixo em desafio. – Mas seremos, quando fizeres o teu

próximo grande contrato. E entretanto... – Olho a fabulosa cozinha de marca em meu redor. –Estamos a ir muito bem. Podemos comprar uma ilha noutro ano qualquer. – Penso por ummomento. – Na verdade, as ilhas estão completamente fora de moda e por isso já não queremoster uma.

Luke encara-me por um momento, depois solta uma gargalhada.

– Sabes uma coisa, Becky Bloom? Vais ser uma mãe fantástica. – Ah! – Fico vermelha, totalmente apanhada de surpresa. – Verdade? No bom sentido? Luke atravessa a cozinha e pousa-me suavemente as mãos na barriga. – Esta pessoazinha tem muita sorte – murmura. – Só que não sei canções de embalar – digo um pouco triste. – Não poderei adormecer o

bebé. – Dão demasiada importância às canções de embalar – reage Luke, cheio de confiança. – Eu

ler-lhe-ei os artigos do Financial Times, o que vai fazer com que adormeça imediatamente. Ficamos algum tempo a olhar para a minha enorme barriga. Ainda não consigo aceitar

completamente que haja um bebé dentro do meu corpo. Um bebé que tem de sair... seja comofor.

Bom, não vamos pensar nisso. Ainda há tempo para inventarem qualquer coisa. Depois, Luke levanta a cabeça. Tem uma expressão estranha, ilegível, no rosto. – Então... Becky – diz ele em tom alegre. – É Armageddon ou Pomegranate? – O quê? – Olho para ele, confusa. – Hoje de manhã, quando cheguei a casa e tentava descobrir para onde tinhas ido, revirei as

tuas gavetas tentando descobrir alguma pista... – Hesita. – E encontrei o Kit de Previsão deSexo. Descobriste, não?

Sinto um enorme baque no coração. Merda. Devia ter deitado o teste fora. Sou mesmoestúpida!

Luke sorri, mas posso ver uma leve ofensa nos seus olhos. E, de repente, sinto-me muito mal.Não sei como pude querer deixar Luke de fora de um momento tão importante. Já nem sei porque estava desesperada para descobrir o sexo. Quem se importa?

Ponho a minha mão na dele e aperto. – Na verdade, Luke, não fiz o teste. Não fiz. A expressão pensativa de Luke não muda. – Então, Becky! Abre o jogo. Se só um de nós vai ficar surpreendido, não parece fazer muito

sentido esperar. – Eu não fiz o teste! – insisto. – Palavra de honra! Demoraria muito tempo e era preciso levar

uma injeção... Ele não acredita. Apercebo-me pela sua expressão. Vamos estar na sala de parto e vão dizer:

«É um menino» ou seja o que for – e ele vai pensar: «A Becky já sabia.» Sinto de repente um nó na garganta. Não quero que seja assim. Quero que descubramos ao

mesmo tempo. – Luke, eu não sei – digo, desesperada, com lágrimas a arderem nos olhos. – Eu realmente,

sinceramente, não fiz o teste! Não te mentiria. Tens de acreditar. Vai ser uma surpresaincrível... maravilhosa. Para nós os dois.

Olho para ele, com o corpo tenso, as mãos a apertar a saia. Os olhos de Luke observam-me orosto.

– Okay. – A testa dele descontrai-se finalmente. – Pronto. Acredito em ti. – Eu também acredito em ti. – As palavras saem-me da boca, sem aviso. Mas, agora que as

digo, percebo que são verdadeiras. Poderia exigir mais provas de que Luke não anda comVenetia. Poderia mandar segui-lo de novo. Poderia ser para sempre paranoica e sofredora.

Por fim, precisamos de escolher se confiamos em alguém. E eu escolho. Escolho. – Anda cá. – Luke puxa-me para si para me abraçar. – Tudo bem, meu amor. Vai correr tudo

bem. Algum tempo depois, afasto-me de Luke. Respiro fundo, tentando recompor-me e tomo duas

chávenas de chá. Depois volto-me para ele. – Luke, por que razão a Venetia disse que vocês tinham um caso, se não tinham? – Não faço ideia. – Luke parece confuso. – Tens a certeza absoluta de que foi isso que ela

quis dizer? Não podes ter interpretado mal o que ela te disse? – Não! – respondo, irritada. – Não sou assim tão estúpida! Foi totalmente óbvio o que ela

quis dizer. – Rasgo um pedaço de papel de cozinha da Fabia e assoo o nariz. – E, só para quesaibas, não vou fazer o parto com ela. Nem vamos a nenhum daqueles estúpidos chás.

– Ótimo – concorda Luke. – Tenho a certeza de que podemos voltar para o doutor Braine.Sabes, mandou-me uns e-mails, só para saber como estás.

– A sério? Que simpático da parte dele... A campainha toca e eu assusto-me. São eles. Quase me tinha esquecido. – Quem é? – pergunta Luke. – É a Vogue! – respondo, agitada. – É esse o motivo para eu aqui estar! Para a sessão

fotográfica. Vou rapidamente ao corredor e, quando vejo a minha imagem no espelho, sinto uma pontada

de aflição. Tenho o rosto cheio de manchas; os olhos, vermelhos e congestionados; o sorrisotenso. Não me lembro das voltas dentro da casa. Esqueci-me totalmente das minhas deixasdeliciosas. Nem consigo lembrar-me de que marca são as minhas cuecas. Não posso fazer isto.

A campainha toca de novo. Duas vezes. – Não vais abrir? – Luke acompanhou-me até ao corredor. – Vou ter de cancelar! – Volto-me para ele com ar triste. – Olha para mim. Estou um horror!

Não posso aparecer assim na Vogue! – Vais ficar maravilhosa – responde ele, com firmeza, e vai até à porta da rua. – Eles acham que a casa é nossa! – sussurro-lhe, em pânico. – Disse-lhes que morávamos

aqui. Luke lança-me um olhar tipo «quem achas tu que eu sou?», olha por cima do ombro e abre a

porta. – Olá! – diz ele, no seu tom mais confiante de chefe de uma empresa enorme e

importantíssima. – Bem-vindos a nossa casa.

Os maquilhadores deveriam receber o prémio Nobel por ajudar na felicidade humana. Assimcomo os cabeleireiros.

E Luke também. Passaram-se três horas e a sessão está a ser brilhante. Luke encantou todo o pessoal da Vogue

assim que chegaram e foi totalmente convincente enquanto mostrava a casa. Acham que, defacto, moramos aqui.

Sinto-me uma pessoa diferente. Pareço uma pessoa diferente. As manchas na minha caraforam cobertas e a maquilhadora foi realmente amorosa.

Disse-me que tinha visto coisas muito piores e que, pelo menos, eu não estava entupida decocaína. Nem estava seis horas atrasada. E, pelo menos, não tinha trazido um cão estúpido queladrasse continuamente. (Tenho a impressão de que ela não gosta muito das modelos.)

O meu cabelo parece simplesmente fabuloso e brilhante e trouxeram as roupas mais incríveis

para eu vestir, tudo num trailer que estacionaram do lado de fora. E agora estou junto à amplaescadaria, com um vestido Missoni, a sorrir enquanto a câmara dispara, sentindo-me a ClaudiaSchiffer ou alguém como ela.

E Luke está ao fundo da escada, a sorrir-me encorajador. Esteve sempre ali. Cancelou o restodas reuniões da manhã, participou da entrevista e tudo o mais. Disse que ter um bebé colocavaas coisas em perspetiva e que achava que a paternidade iria mudá-lo como pessoa. Disse queme achava mais linda agora do que nunca (o que é uma mentira completa, mas mesmo assim).Disse...

Pois é, disse um monte de coisas. E sabia quem pintou o quadro que estava sobre a lareira dasala de estar, quando lhe perguntaram. É incrível!

– Vamos para fora agora? – O fotógrafo olha interrogativamente para Martha. – Boa ideia – concorda e eu desço a escada, segurando com cuidado o vestido. – Que tal se eu usasse o vestido Oscar de la Renta? A estilista trouxe o vestido de noite roxo mais incrível, com uma capa, aparentemente feito

para uma estrela de cinema grávida usar numa estreia, mas isso nunca aconteceu. Tenho, simplesmente, de o experimentar. – Sim, vai ficar espetacular com o fundo de relva. – Martha volta-se para o fundo do corredor

e olha através da porta de vidro com os olhos semicerrados. – Que jardim incrível!Desenharam-no vocês?

– Sem dúvida! – Olho para Luke. – Contratámos uma empresa de jardinagem, obviamente – diz ele –, mas o conceito foi todo

nosso. – Isso mesmo – concordo. – A nossa inspiração foi tipo um casamento de zen... com... a

estrutura urbana... – O posicionamento das árvores foi crucial para o projeto – acrescenta Luke. – Mudámo-las

de lugar pelo menos três vezes. – Uau. – Martha acena com ar inteligente e rabisca no caderno. – Vocês são mesmo

perfecionistas! – Importamo-nos com o design – diz Luke, sério. Em seguida, pisca-me rapidamente o olho e

eu tento não rir. – Então devem estar ansiosos para ver o bebé ali no relvado. – Ergue os olhos com um

sorriso. – A aprender a gatinhar... a andar... – Sim. – Luke pega-me mão. – Claro que sim. Vou acrescentar qualquer coisa, mas de repente sinto que a minha barriga endurece, como se

alguém a tivesse apertado com as duas mãos. Agora que penso no assunto, isto já me acontecehá algum tempo, só que desta vez foi muito mais forte.

– Aaah – digo sem conseguir conter-me. – O que foi? – Luke parece alerta. – Nada – respondo imediatamente. – Então, devo colocar a capa? – Vamos retocar a maquilhagem – diz Martha. – E vamos distribuir as sandes? Sigo pelo corredor, chego à porta da rua e paro. A minha barriga endureceu de novo. É

inconfundível. – Que se passa? – Luke olha para mim. – Becky, o que se passa? Tudo bem. Não entres em pânico. – Luke – digo o mais calmamente possível. – Creio que estou em trabalho de parto. Já está a

acontecer há algum tempo. Sinto a barriga endurecer mais uma vez e começo a ofegar com respirações curtas,

exatamente como fizemos na aula de pré-natal. Meu Deus, é incrível como enfrento istoinstintivamente.

– Há algum tempo? – Luke vem para perto de mim, parecendo assustado. – Há exatamentequanto tempo?

Penso quando foi que me apercebi pela primeira vez das sensações. – Há umas cinco horas? O que significa que provavelmente estou com dilatação de... cinco

centímetros, talvez? – Dilatação de cinco centímetros? – Luke olha para mim. – E isso o que significa? – Significa que estou a meio do caminho. – A minha voz treme subitamente de emoção. –

Significa que vamos ter um bebé! – Jesus Cristo. – Luke pega rapidamente no telemóvel e marca. – Estou? Serviço de

ambulâncias, por favor. Depressa! Enquanto ele diz a morada, sinto os joelhos subitamente trémulos. Isto só deveria acontecer

lá pelo dia dezanove. Achei que ainda tinha três semanas. – O se passa? – pergunta Martha, levantando os olhos das suas notas. – Vamos agora fazer as

fotografias no jardim? – A Becky está em trabalho de parto – diz Luke, fechando o telemóvel. – Acho que temos de

ir. – Em trabalho de parto? – Martha larga o caderno e a caneta e baixa-se para os apanhar. –

Ah, meu Deus! Mas ainda não estava no tempo, pois não? – Só devia ser daqui a três semanas – diz Luke. – Deve estar adiantado. – Sente-se bem, Becky? – Martha observa-me. – Precisa de algum medicamento? – Estou a usar métodos naturais – respiro, pegando no meu colar. – Esta é uma antiga pedra

de parto maori. – Uau! – diz Martha e escreve. – Pode soletrar maori? A minha barriga endurece de novo e agarro-me à pedra com mais força. Apesar da dor, não

consigo evitar um certo entusiasmo. Não há dúvida, o parto é uma experiência incrível. Sintoque todo o meu corpo trabalha em harmonia, como se estivesse desde sempre destinado a fazê-lo.

– Tem uma mala pronta? – pergunta Martha, olhando-me alarmada. – Não devia ter umamala?

– Tenho uma mala – digo, ofegante. – Certo – diz Luke, guardando o telefone. – Vamos buscá-la. Depressa. Onde está? E as tuas

anotações para levar para o hospital. – Está... – Detenho-me. Está tudo em casa. Na nossa casa de verdade. – Sim... está tudo no

quarto. Junto do toucador. – Olho para ele com ligeiro desespero. Os olhos de Luke brilham desúbita compreensão.

– Claro – diz ele. – Bem... tenho a certeza que podemos fazer uma paragem, se precisarmos. – Vou parar com isto e vou buscar a mala – diz Martha, solicita. – De que lado do toucador? – Não! Quero dizer... é... na verdade, está ali! – Aponto para um saco Mulberry que vi no

armário do corredor. – Esqueci-me que a tinha deixado ali para estar pronta. – Okay. – Luke vai buscar o saco ao armário, com algum esforço, e uma bola de ténis cai lá

de dentro.

– Vai levar bolas de ténis para o hospital? – pergunta Martha, perplexa. – Para... pois... massagem. Ah, meu Deus... – Aperto mais a pedra maori e respiro fundo. – Sentes-te bem, Becky? – pergunta Luke, ansioso. – Parece que isso está a piorar – Olha

para o relógio. – E a porcaria da ambulância? – Estão a ficar mais fortes – consigo dizer através da dor. – Acho que já devo estar com uns

seis ou sete centímetros de dilatação. – Pronto, a ambulância chegou. – Um fotógrafo enfia a cabeça pela porta da rua. – Está a

estacionar. – Vamos então. – Luke estende-me o braço. – Consegues andar? – Acho que sim. Devagar. Saímos pela porta e paramos no primeiro degrau. A ambulância bloqueia toda a rua, com a

luz azul a piscar e a girar. Vejo que algumas pessoas olham para mim, do outro lado da rua. É isso. Quando sair do hospital... terei um bebé! – Boa sorte! – grita Martha. – Espero que tudo corra bem! – Becky, amo-te. – Luke aperta-me o braço com força. – Estou tão orgulhoso de ti! Estás a

sair-te incrivelmente. Estás tão calma, tão tranquila... – A sensação é totalmente natural – digo, com uma espécie de espanto humilde, como Patrick

Swayze a dizer a Demi Moore como é o céu, no final de Ghost – Espírito do Amor. – Édoloroso... mas lindo, também.

Dois paramédicos saem pelas portas de trás da ambulância e vêm na minha direção. – Pronta? – Luke olha para mim. – Claro – respiro fundo e começo a descer a escada. – Vamos a isto.

DEZOITO

Hum. Não acredito. Afinal não estava em trabalho de parto. Não tenho um bebé nem nada. Não faz qualquer sentido; na verdade, ainda acho que se podem ter enganado. Tive todos os

sintomas! As contrações regulares e a dor nas costas (bem, uma sensação ligeiramentedolorosa), como diz o livro. Mas mandaram-me para casa e disseram que não estava emtrabalho de parto, em pré-trabalho de parto nem em nada que ao menos se aproximasse doparto. Disseram-me que não eram as verdadeiras dores do parto.

Foi tudo um pouco embaraçoso. Em especial quando pedi a epidural e eles riram. Não precisavam de ter rido. Nem de ter telefonado aos amigos a contar. Ouvi uma parteira

embora o fizesse a sussurrar. Também aquilo me obrigou repensar toda a história do parto. Quer dizer, se não foi a sério...

como, diabo, é a sério? De modo que, depois de voltarmos do hospital, tive uma conversa longae franca com Luke. Disse que tinha pensado bem e chegado à conclusão de que não aguentariao trabalho de parto e que teríamos de arranjar outra solução.

Ele foi um amor e não disse apenas: «Querida, vai correr tudo bem» (como aquele serviçoidiota de aconselhamento de parteiras). Disse que devia candidatar-me a todas as formas dealívio da dor que pudesse, independentemente do custo. Por isso contratarei um reflexologista,uma massagista que trabalha com pedras quentes, uma aromaterapeuta, um técnico deacupuntura, um homeopata e uma doula. Além disso, passei a telefonar para o hospital todos osdias, só para confirmar que os anestesistas não ficaram todos doentes, nem ficaram fechadosnum armário ou coisa parecida.

E deitei fora aquela estúpida pedra de parto. Sempre achei que era uma parvoíce. Passou-se uma semana – e nada aconteceu desde então, a não ser que estou maior e mais

bamboleante que nunca. Fomos ontem ao consultório do Dr. Braine, ele disse que tudo pareciabem e que o bebé estava na posição correta, o que era uma boa notícia. Sim. Boa notícia para obebé, talvez. Não para mim. Praticamente já não consigo andar nem dormir. Ontem à noiteacordei às três da madrugada e sentia-me tão desconfortável que nem consegui ficar deitada nacama, por isso fui ver um programa na TV cabo chamado Partos na Vida Real: Quando oTrauma Acontece.

Pensando bem, talvez tenha sido um erro. Mas, felizmente, Luke também estava acordado efez-me uma chávena de chocolate quente para me acalmar e afirmou que era improvável queficássemos presos numa tempestade de neve com gémeos quase a nascer e sem médicos numraio de trezentos quilómetros. E que, pelo menos, saberíamos o que fazer, se isso acontecesse.

Luke também não anda a dormir bem, tudo por causa da situação do Arcodas. Tem faladocom os advogados todos os dias e consultado os funcionários, sempre a tentar marcar umareunião com a direção do Arcodas para decidir tudo. Mas Iain cancelou duas vezes sem avisar –e depois foi de viagem e desapareceu. De modo que nada está resolvido e, quanto mais aquilo

demora, mais tenso o Luke fica. É como se estivéssemos os dois sobre uma bomba-relógio, sóque... à espera.

Nunca fui boa em esperas. Bebés, telefonemas, liquidações ou... qualquer outra coisa. A única coisa positiva é que Luke e eu estamos cerca de um milhão de vezes mais próximos

do que há meses. Falámos de tudo na semana que passou. Da empresa, de planos para ofuturo... uma noite, até fomos buscar todas as fotografias da lua de mel para as vermos denovo.

Falámos de tudo... menos de Venetia. Bem tentei. Durante o jantar, depois de termos voltado do hospital naquele dia, tentei dizer

como ela realmente foi. Mas Luke ficou simplesmente incrédulo. Disse que ainda nãoacreditava que Venetia tivesse dito que os dois tinham um caso. Disse que eram apenas velhosamigos – e que talvez eu tivesse cometido um erro ou interpretado mal o que ela quisera dizer.

Aquilo deu-me vontade de atirar o prato à parede e gritar: «Até que ponto achas que souestúpida?» Mas... não fiz isso. Porque teria havido uma enorme discussão e eu não queriaarruinar a noite.

Desde então não voltei a falar do assunto. Luke está tão atormentado que não consegui fazê-lo. Como me disse, se não quisermos, nunca mais precisamos de ver Venetia. Cancelou otrabalho de RP com ela, o Dr. Braine aceitou-me de novo como paciente e Luke prometeu quenão combinará nunca mais encontrar-se com ela. Para ele, é um breve capítulo que se encerrouda nossa vida.

Só que... não consigo encerrá-lo. Lá no fundo, continuo obcecada. Eu não me equivoquei.Ela disse que tinha um caso com Luke. Quase arruinou o nosso casamento – e agora está numaboa.

Se eu apenas a pudesse ver... se eu pudesse dizer-lhe o que penso dela... – Bex, andas outra vez a ranger os dentes – diz Suze paciente. – Para com isso. – Chegou há

meia hora, carregada de presentes de Natal feitos em casa, na feira da escola de Ernie. Agoratraz uma chávena de chá de framboesa e um biscoito de Pai Natal com cobertura de açúcar quecoloca sobre a bancada. – Tens de parar com esse stresse em relação à Venetia. Não é bom parao bebé.

– Para ti está tudo certo! Não sabes como ela é. Ninguém te obrigou a usar meias horrorosasnem te disse que já não tinhas casamento ou que o teu marido te ia abandonar...

– Olha, Bex. – Suze suspira. – Independentemente do que a Venetia disse... quer ela tenhadito ou não...

– Ela disse! – Levanto os olhos indignada. – Foi o que ela disse, palavra por palavra!Também não acreditas?

– Claro que acredito! – afirma Suze, recuando. – Claro. Mas, sabes, quando uma mulher estágrávida, as coisas podem parecer piores do que na realidade são. Podemos exagerar...

– Não estou a exagerar! Ela tentou roubar-me o marido! O quê? Também pensas que estou adelirar? Achas que inventei tudo?

– Não! – diz Suze rapidamente. – Olha, desculpa. Talvez ela se tenha atirado a ele. Mas nãoconseguiu, pois não?

– Bem... não. – Então não penses mais nisso. Vais ter um bebé, Bex. Isso é que é importante ou não? Suze parece tão ansiosa que não consigo contar-lhe a minha fantasia secreta de invadir o

Centro Holístico de Maternidade sem me fazer anunciar e contar a toda a gente a destruidora de

lares, a falsa, que Venetia Carter é na realidade. Então quero ver como ela ia ser holística. – Claro – digo por fim. – Vou esquecer o assunto. – Bom. – Suze dá-me uma palmadinha no braço. – Então, a que horas temos de sair? Vou voltar ao The Look hoje, mesmo que já esteja oficialmente de licença de maternidade,

porque vão abrir a lista de espera para a nova linha Danny Kovitz. Danny estará lá a partir domeio-dia, a assinar as T-shirts para as pessoas que se inscreverem, e a loja já recebeu centenasde pedidos de informações.

Tudo aquilo se transformou subitamente numa novidade gigantesca – ajudada pelo facto deum dia destes Danny ter sido fotografado na marmelada com o novo ator de Coronation Street.De repente, todos os jornais publicaram a história e recebemos um monte de publicidade.

Danny apareceu até no Morning Coffee hoje de manhã para avaliar a moda da primavera(disse que todas as roupas eram horrorosas, o que eles adoraram) e mandou toda a gente ir aoThe Look.

Boa! E a ideia de o trazer foi minha. – Vamos daqui a uns minutinhos – digo, olhando para o relógio. – Não há pressa. Eles não

podem despedir-me pelo atraso, pois não? – Pois não. – Suze volta ao lava-loiça, passa pelo nosso carrinho Guerreiro novo em folha,

que está a um canto, ainda na embalagem. Não havia espaço para ele no quarto do bebé e ocorredor está atulhado com um Bugaboo (estava em promoção), além de um de três rodas,muito fixe, que tem cadeirinha para carro integrada. – Bex, quantos carrinhos encomendaste?

– Alguns – digo vagamente. – Mas onde vais guardá-los todos? – Tudo bem – garanto. – Vou arranjar um quarto especial para eles na casa nova. Vou

chamar-lhe o Quarto dos Carrinhos. – Quarto dos Carrinhos? – Suze olha para mim. – Vais ter um Quarto de Sapatos e um Quarto

de Carrinhos? – Porque não? As pessoas não têm quartos suficientes. Talvez eu tenha um Quarto de Malas

também. Um pequenino... – Bebo um gole de chá de folhas de framboesa, que, segundo Suze,ajuda a acelerar o trabalho de parto, e estremeço por causa do gosto repulsivo.

– Olá, o que foi isso? – pergunta Suze, alerta. – Sentiste uma pontada? Francamente. É a terceira vez que me pergunta sobre pontadas desde que chegou de manhã

cedo. – Suze, ainda faltam duas semanas – lembro. – Isso não quer dizer nada! Essas datas são uma conspiração dos médicos. – Observa-me

atentamente. – Sentes vontade de varrer o chão ou limpar o frigorífico? – O frigorífico está limpo! – respondo um pouco ofendida. – Não, parva! É o instinto do ninho. Quando os gémeos estavam para nascer, apanhei de

repente a mania de passar as camisas do Tarkie. E a Lulu começa sempre a aspirar a casainteira.

– Aspirar? – Olho para ela, incrédula. Não me imagino com uma ânsia de passar a aspirar. – A sério! Há mulheres que lavam o chão... – Suze para quando a campainha toca e pega no

intercomunicador. – Sim, residência dos Brandon! – Ouve durante um momento e depois apertao botão. – É uma entrega. Estás à espera de alguma coisa?

– Aaah, estou! – Pouso a minha chávena. – Devem ser as minhas coisas do Natal.

– Presentes? – Suze alegra-se. – Tens um para mim? – Não são presentes. Decorações lindas. Foi estranho. Ontem tive uma ânsia repentina, tipo,

precisava de resolver tudo do Natal antes do nascimento do bebé. Por isso encomendei anjosnovos para a árvore, uma vela do advento e um presépio lindíssimo... – Dou uma dentada numabolacha e mastigo. – Planeei tudo para a casa nova. Teremos uma árvore de Natal gigantesca nohall, e grinaldas em toda a parte, e biscoitos de gengibre em forma de homenzinhos quepodemos pendurar em fitas vermelhas...

A campainha toca e vou à porta. Abro-a e vejo dois homens com enormes caixas de papelão,além de um pacote gigantesco que devem ser as imagens de Maria e José em tamanho natural.

– Valha-me Deus! – diz Suze, olhando para aquilo. – Também vais precisar de um Quarto deEnfeites de Natal.

Olha, não é má ideia! – Olá! – Sorrio para os homens. – Deixem isso em qualquer parte. Muito obrigada... –

Rabisco a assinatura e volto-me para Suze quando os homens saem. – Tenho de te mostrar asmeias de Natal do bebé...

Paro. Suze está a olhar para mim, para as caixas, e outra vez para mim, com uma expressãoestranha e animada.

– O que é? – Bex, é isso mesmo – diz. – Estás a fazer o ninho! Encaro-a. – Mas não limpei nada. – Cada mulher é diferente! Talvez não limpes e encomendes coisas de catálogos! Foi tipo...

um desejo súbito e realmente forte, contra o qual não conseguiste lutar? – Foi! – Não posso evitar suster a respiração quando me apercebo. – Exato! O catálogo

entrou pela porta... e eu tive de encomendar as coisas. Não pude evitar! – Aí está! – diz Suze, satisfeita. – Tudo faz parte do grande plano da natureza. – Uau! – grito. Faço parte do grande plano da natureza. – E não sentes mesmo vontade de limpar nada? – acrescenta Suze curiosamente. – Nem de

arrumar? – Não – examino os meus sentimentos. – Não creio. –Não te apetece lavar estes pratos? – Suze aponta para as coisas do pequeno-almoço que

estão dentro do lava-loiça. – Não – digo terminantemente. – Mesmo nada. – É isso. – Suze abana a cabeça, maravilhada. – Cada gravidez é diferente. Surge-me de súbito uma ideia. – Olha, Suze, se estou a fazer o ninho, talvez tenha o bebé logo! Tipo esta tarde! – Não podes! – diz Suze, consternada. – Não antes da festa! – Aperta imediatamente a boca

com a mão. Festa? Ela quer dizer... uma festa pré-mamã? – Vais fazer-me uma festa pré-mamã? – Não consigo evitar um sorriso de entusiasmo. – Não! – responde Suze imediatamente. – Eu... não é... não era... eu não vou... Ficou com o rosto vermelho vivo e enrola uma perna na outra. A Suze é uma péssima

mentirosa. – Vais, pois!

– Pronto, está bem – diz imediatamente. – Mas é surpresa. Não te vou contar quando vai ser. – É hoje? – pergunto imediatamente. – Aposto que é hoje! – Não vou contar! – responde ela, muito agitada. – Para de falar nisso. Finge que eu não disse

nada. Anda, vamos.

Apanhamos um táxi para o The Look e, quando nos aproximamos, não acredito nos meusolhos. Isto é melhor do que eu podia ter esperado.

Há filas de pessoas a darem a volta ao quarteirão, pelo que me parece. Devem ser centenas,na sua maioria miúdas de roupas coloridas, a conversar em grupos ou ao telemóvel.

Todos têm na mão um balão de gás onde está escrito «The Look – Danny Kovitz» e hámúsica a sair dos altifalantes e uma das jovens do departamento de relações públicas distribuigarrafas de Diet Coke e chupa-chupas Danny Kovitz.

Toda a atmosfera é de festa. Uma equipa de televisão do London Tonight filma a cena, e umapresentador de rádio entrevista a primeira miúda da fila e, quando saio, vejo uma mulherapresentando-se a uma jovem alta como caçadora de talentos da Models One.

– Isto é incrível! – comenta Suze ao meu lado, sustendo a respiração. – Eu sei! – Tento parecer tranquila, mas um sorriso gigantesco espalha-se no meu rosto. –

Anda, vamos entrar! Abrimos caminho até ao início da fila e mostro a minha identificação ao segurança. Quando

ele abre a porta para nos deixar entrar, sinto a pressão das miúdas atrás de mim. – Viram aquela mulher? – reclamam vozes furiosas lá atrás. – Entrou sem mais nem menos!

Pode dar o golpe na fila, só porque está grávida? Talvez devêssemos ter entrado por uma porta lateral. Lá dentro, há outra fila de miúdas entusiasmadas, a conversar. Serpenteia pelo departamento

dos Acessórios, passa por ecrãs enormes que apresentam a coleção de Danny e chegam a umamesa espelhada, art déco, atrás da qual Danny se senta numa gigantesca cadeira tipo trono.Acima dele uma faixa diz EXCLUSIVO – CONHEÇA DANNY KOVITZ! E, diante dele, três adolescentescom casacos militares idênticos e de rabos-de-cavalo olham-no boquiabertas, num espantocompleto, enquanto ele lhe assina T-shirts brancas e lisas. Danny vê-me e pisca-me o olho.

– Obrigada – murmuro e mando-lhe um beijo. Ele é uma estrela, cem por cento. Além disso, sabia que ele iria adorar tudo isto. A uma pequena distância da mesa, Eric é entrevistado por outra equipa de televisão e, quando

me aproximo, oiço-o dizer: – Sempre senti que o The Look devia pensar em iniciativas de design em conjunto... – diz em

tom importante. De repente, repara que estou a olhar para ele. Detém-se, ligeiramenteruborizado, e aclara a garganta. – Deixem-me apresentar-vos Rebecca Brandon, a chefe dodepartamento de Personal Shopping, que deu origem à ideia.

– Olá! – Enfrento a câmara com um enorme sorriso de confiança. – Eric e eu trabalhámos emequipa neste projeto, que anuncia um novo dia para o The Look. E todas as pessoas que se riamde nós podem engolir as suas palavras.

Faço mais algumas declarações ao entrevistador, peço licença e deixo-o com Eric. Para meu grande espanto, vejo Jess, atrapalhada, junto aos óculos escuros, sozinha,

envergando calças de ganga e uma parca. Disse-lhe que o lançamento seria hoje – mas nãosabia que ela viria.

– Jess! – exclamo ao aproximar-me. – Vieste! – Isto é incrível, Becky. – Jess olha para a multidão. – Parabéns. – Obrigada! – Sorrio. – Não é o máximo? Viste as equipas da televisão? – Lá fora estava um fulano do Times – diz Jess, acenando com a cabeça. – E do Standard. A

cobertura mediática vai ser enorme. – Esboça um pequeno sorriso. – Becky Brandon ataca denovo.

– Bom… – Encolho os ombros, ruborizada. – E por aí, como vão as coisas? Como estão ospreparativos para o Chile?

– Tudo bem. – Jess suspira. O problema com Jess é que pode ser difícil descobrir a disposição com que está. Tem um ar

levemente aborrecido mesmo quando se sente feliz (e ela é mesmo assim, não estou a ser má).Mas, quando olho para ela, apercebo-me de que se sente muito triste.

– Jess, o que se passa? – Ponho-lhe a mão no braço. – As coisas não vão bem. – Não. Não vão. – Ergue os olhos e, para meu horror, vejo-lhe os olhos brilhantes e trémulos.

– O Tom desapareceu. – Desapareceu? – pergunto, confusa. – Nem ia dizer-te nada. Não queria preocupar-te. Mas ninguém o vê há dias. Acho que está

muito em baixo. – Porque te vais embora? Ela confirma com a cabeça e sinto uma onda de fúria em relação a Tom. Porque terá de ser

tão chato e tão egoísta? – Mandou uma mensagem aos pais, a dizer que está tudo bem. Pode estar em qualquer lugar

e a Janice culpa-me, claro. – A culpa não é tua! Ele não passa de um... – Calo-me. – Tens alguma ideia de onde ele possa estar, Becky? – Franze a testa. – Tu conhece-lo de

toda a vida. Encolho os ombros, sem saber. Conhecendo Tom, ele pode ter feito qualquer coisa. Pode ter

ido a um gabinete de tatuagens e pedido uma a dizer «Jess, não te vás embora» nos órgãosgenitais.

– Olha, ele vai aparecer – digo por fim. – Não é completamente idiota. Provavelmente foiembebedar-se em qualquer lado.

– Olá, Becky. – Levanto a cabeça e vejo Jasmine vir direita a nós, com uma braçada deecharpes e chapéus, as faces vermelhas do esforço.

– Então, Jasmine! Não é incrível? Como estão as coisas lá em cima? – O fim do mundo. – Revira os olhos. – Clientes por toda a parte. Graças a Deus contratámos

mais pessoal. – Não é fantástico? – Sorrio, mas Jasmine faz má cara sem entusiasmo. – Preferia como estava. Vamos ter de ficar até tarde hoje, sabes? Não tive um momento de

sossego. – Assim, talvez a loja não vá à falência – comento, mas Jasmine não parece impressionada. – Pois. – De repente, no rosto dela surge uma expressão chocada. Por um instante, fica sem

fala. – Becky... arranjaste as sobrancelhas? Eu já tinha imaginado quando ela ia notar. – Ah! – respondo naturalmente. – Arranjei. Ficaram boas, não ficaram? – Aliso uma com um

dedo.

– Onde foste? – pergunta ela. – Infelizmente não posso dizer – respondo, em tom sentido. – É segredo. Desculpa. Jasmine espeta o queixo furiosa. – Diz-me onde foste. – Não! – Jasmine! – Uma jovem chama-a da escada rolante. – Foste buscar as echarpes para a

cliente? – Descobriste onde eu vou, não foi? – pergunta ela, furiosa. – Deves ter-me espiado. – Como podia ter feito uma coisa dessas? – respondo, inocente, olhando para o meu reflexo

num espelho próximo. As minhas sobrancelhas estão de facto espetaculares, mesmo sendo eu adizê-lo. É uma indiana em Crouch End. Vai-se a casa dela e ela arranja, arranca, e tudo aquilodemora uma eternidade. Mas vale a pena.

– Jasmine! – A jovem chama mais alto. – Tenho de ir! – Jasmine lança-me um último olhar furioso. – Então tchau – digo, animada. – Depois trago o bebé para verem. Jess acompanhou toda a conversa, absolutamente perplexa. – Que vem a ser isso das sobrancelhas? – pergunta enquanto Jasmine se afasta, irritada. Reparo nas sobrancelhas de Jess. São castanhas, peludas, e é óbvio que nenhuma pinça,

escova ou pincel esteve jamais perto delas. – Um dia mostro-te – digo enquanto o meu telemóvel começa a tocar. Apanho-o e abro-o. –

Estou? – Olá – diz-me a voz de Luke ao ouvido. – Sou eu. Soube que o lançamento está a ter um

sucesso gigantesco. Apareceu no noticiário. Parabéns, querida! – Obrigada! É incrível... – Dou uns passos para me afastar de Jess e volto-me atrás de um

expositor de lenços de chiffon com contas. – E então, quais são as últimas? – acrescento em vozbaixa.

– Tivemos a reunião. Acabo de sair dela. – Ah, meu Deus. – Aperto o telefone com mais força. – E como foi? – Não podia ter sido pior. – Foi assim tão boa? – Tento brincar. Mas o meu coração estremeceu. Tinha tantas

esperanças de que Luke pudesse salvar a situação! – Não creio que alguém tenha alguma vez enfrentado o Iain. Ele não gostou. Meu Deus, eles

são um grupo de bandidos desagradáveis. – A voz de Luke tem um tom irado. – Acham que sãodonos do mundo.

– Eles são praticamente donos do mundo – desabafo. – Não são os meus donos. – Luke parece decidido. – Nem da minha empresa. – Então, o que vais fazer? – Vou falar com todos os funcionários esta tarde. – Cala-se e eu imagino-o à secretária, em

mangas de camisa, a puxar a gravata para a alargar. – Mas parece que vamos ter de rescindir ocontrato. Não podemos continuar a trabalhar com essa gente.

Então é isso. Todo o sonho do contrato com o Arcodas para conquistar o mundo terminou.Todas as esperanças e os planos de Luke foram arruinados. Sinto uma fúria crescente,avassaladora, contra Iain Wheeler. Como se atreve a tratar tão mal as pessoas e sair impune?Precisa de alguém que o denuncie.

– Luke, tenho de desligar – digo com uma decisão súbita. – Até logo. À noite conversamos

sobre o assunto. Desligo. Em seguida, procuro rapidamente um número de telefone e marco. Depois de quatro

toques, há uma resposta. – Dave Sharpness. – Ah, olá, Mister Sharpness – digo. – Aqui é Becky Brandon. – Mistress Brandon! – Oiço a voz dele, rouca, aumentar de volume. – Que prazer falar de

novo consigo! Espero que esteja bem! – Sim... bem, obrigada. – Passam duas miúdas e eu esgueiro-me para um lugar vazio atrás de

um expositor de perucas. – Há outro assunto em que possamos ajudá-la? – pergunta Dave Sharpness. – Gostará de

saber que os nossos agentes de vigilância passaram por um treino de reciclagem completo. Eposso oferecer-lhe vinte por cento de desconto em todas as investigações...

– Não! – interrompo-o. – Obrigada. – O que preciso é daquele dossiê que o senhor meentregou. Destruí-o, mas agora... preciso dele. O senhor tem uma cópia que me possa arranjar?

Dave Sharpness solta uma gargalhada gutural. – Mistress Brandon, se eu pudesse contar o número de senhoras que conheço e que destroem

provas vitais num acesso de raiva! Então, quando o divórcio se aproxima, telefonam aperguntar se mantemos cópias...

– Eu não me vou divorciar! – digo, tentando manter a paciência. – Preciso dele por outromotivo. Tem uma cópia?

– Bom. Normalmente, Mistress Brandon, eu teria uma cópia para lhe entregar pronta dentrode uma hora. Mas... – Detém-se.

– O que se passa? – pergunto, ansiosa. – Infelizmente, houve um pequeno problema com a instalação de segurança para clientes. –

Dave Sharpness expira com força. – Wendy, a gerente do nosso escritório e uma cafeteira decafé. Não entrarei em pormenores, mas alguns dos nossos arquivos estão... Bem, para serdireto, numa confusão total. Tivemos de deitar fora uma grande parte.

– Mas preciso dele! Preciso de tudo o que o senhor descobriu sobre Iain Wheeler. Sabe, ohomem que pensou que era meu marido? Qualquer fotografia ou prova daqueles casosabafados... qualquer porcaria.

– Mistress Brandon, farei o possível. Farei uma busca detalhada e verei o que consigo. – E pode mandar-me por um estafeta o mais depressa possível? – Assim farei. – Obrigada. Agradeço-lhe muito. Desligo o telefone com o coração a bater. Vou conseguir aquelas provas. E se estiver tudo

estragado... encomendo simplesmente outra investigação. Vamos derrotar Iain Wheeler. Jess aparece de novo no meio da multidão, com um balão Danny Kovitz. Parece um pouco

surpreendida ao ver-me escondida atrás das perucas. – Olá, Becky – diz, quando me junto ao resto da multidão. – Acabo de ver a Suze e ela está a

experimentar um monte de coisas. Queres um chá? – Na verdade, estou um pouco cansada – digo, quando uma cliente quase me dá uma

cotovelada na barriga. – Acho que vou já para casa descansar. Vou só despedir-me do pessoal. – Boa ideia. – Jess acena com a cabeça. – Guarda as energias para aman... – Ela cala-se. – Amanhã? – pergunto, curiosa. – O que vai acontecer amanhã? – Quero dizer... para o bebé. – Os olhos de Jess desviam-se, evasivos. – Para o parto. Ou seja

o que for. Que diabo estará ela... E então percebo. Ela também sabe do segredo. Foi isso que deixou escapar! A minha festa pré-mamã surpresa é amanhã!

FESTA PRÉ-MAMÃ SURPRESA — ROUPAS POSSÍVEIS 1. T-shirt brilhante «Festa» cor-de-rosa, calças de ganga de grávida, sapatos prateados. Prós: Vou ficar linda Contras: Não parecerei surpreendida 2. Camisa de dormir e roupão, sem maquilhagem, cabelo desgrenhado Prós: Vou parecer surpreendida Contras: Vou estar um horror 3. Equipamento de jogging Juicy Couture Prós: Vou parecer informal e ao mesmo tempo magra. Tipo celebridade de Hollywood a

descansar em casa. Contras: Não consigo meter-me no equipamento de jogging Juicy Couture 4. Vestido de grávida com a bandeira inglesa «Ginger Spice» e peruca a condizer, tudo

comprado nos saldos de verão com 90% de desconto. Prós: Ainda não tive hipótese de usar Contras: Mais ninguém vai aparecer mascarada

KENNETH PRENDERGAST Prendergast de Witt Connell

Conselheiros de Finanças Forward House

High Holborn, 394. Londres WC1V 7EX

Mrs. R. Brandon Maida Vale Mansions, 37 Maida Vale Londres NW6 0YF 5 de dezembro de 2003 Cara Mrs. Brandon Obrigado pela sua carta. Não posso concordar com os seus pontos de vista e vou apenas responder dizendo que osinvestimentos não devem ser «divertidos». Garanto que não mudaria de ideias se pudesse ver a sua coleção de ímanes para o frigorífico daAudrey Hepburn. E duvido muito que eles – ou que qualquer elemento da sua carteira deinvestimentos – lhe «renda um milhão». Atenciosamente, Kenneth Prendergast Especialista em Investimentos de Família

DEZANOVE

Se eu ao menos soubesse a que horas iria ter a surpresa! São oito da manhã e estou vestida, maquilhada e pronta. Por fim, escolhi um vestido cruzado

cor-de-rosa e botas de camurça. Além disso, arranjei as unhas ontem à noite, comprei algumasflores e arrumei um pouco o apartamento.

O melhor de tudo é que remexi em todas as minhas caixas e coisas até encontrar um cartãolindo que comprei uma vez em Nova Iorque. Tem um bercinho, com minúsculos presentes emvolta – e letras brilhantes a dizer «Obrigada por me fazerem uma festa pré-mamã surpresa,amigas!» Bem sabia que um dia precisaria dele.

Também encontrei um cinzento e sombrio a dizer «Lamento saber dos teus problemasprofissionais», mas esse rasguei. Cartão estúpido.

Ainda não tive notícias do Dave Sharpness. E não falei do assunto ao Luke, mesmo estando amorrer de vontade. Não quero dar-lhe esperanças até saber que tenho provas.

Luke está na cozinha, a tomar um café forte antes de ir trabalhar. Entro e olho para ele porum momento. Tem o maxilar tenso e mexe o açúcar na chávena de expresso. Só faz issoquando precisa de um choque de cinco mil volts.

Ele dá por mim e aponta para o banco do bar do outro lado. Empoleiro-me e apoio oscotovelos no granito.

– Becky, precisamos de conversar. – Estás a fazer o que está certo – respondo imediatamente. – Sabes que sim. Luke acena afirmativamente. – Queres saber? Já me sinto livre. Estavam a oprimir-me. A oprimir toda a empresa. – Exato! E não precisas deles, Luke! Não precisas de andar atrás de uma empresa arrogante

que acha que é dona do mundo... Luke levanta a mão. – Não é assim tão simples. Há uma coisa que preciso de te dizer. – Cala-se, mexendo o café

sem parar, o rosto concentrado. – O Arcodas não nos pagou. – O quê? – Olho-o, sem compreender. – Quer dizer... não pagou nada? – Só o adiantamento, logo no início. Mas, desde então, nada. Devem-nos... Bem, bastante. – Mas não podem deixar de pagar! As pessoas têm de pagar as contas! Quero dizer, é contra

a... Paro e fico vermelha. Acabo de me lembrar de umas contas de cartão de crédito enfiadas na

gaveta da cómoda que talvez ainda não tenha pago totalmente. Mas isto é diferente. Não sou uma gigantesca empresa multinacional, pois não? – São conhecidos por isso. Andámos atrás deles, ameaçámo-los... – Luke coça a testa. –

Enquanto ainda trabalhávamos com eles, confiávamos em que receberíamos o dinheiro. Agoratalvez tenhamos de os processar.

– Bem, então processem! – digo em tom de desafio. – Não podem livrar-se assim! – Mas, nesse meio-tempo... – Luke levanta a chávena e em seguida pousa-a de novo. –

Becky, para ser franco, as coisas não estão fantásticas. Expandimo-nos rapidamente. Pensandobem, com demasiada rapidez. Tenho empréstimos a pagar, salários... estamos a sofrer umahemorragia de dinheiro. Até conseguirmos ficar de pé outra vez, as finanças vão serproblemáticas.

– Muito bem. – Engulo em seco. Hemorragia de dinheiro. Deve ser a pior expressão queouvi. Tenho uma visão súbita e horrível de dinheiro a sair por um buraco enorme, dia após dia.

– Teremos de pedir um empréstimo maior do que eu pensava para comprar a casa. – Lukeestremece e bebe um gole de café. – O que talvez atrase as coisas por algumas semanas. Vouligar hoje para o corretor. Devo ser capaz de resolver as coisas com toda a gente.

Termina o café e noto-lhe uma profunda ruga de tensão por entre as sobrancelhas, que antesnão estava ali. Sacanas. Foi o que lhe fizeram.

– Mesmo assim, fizeste o que devias, Luke. – Pego-lhe na mão e aperto-a com força. – E seisso significa perder algum dinheiro, bem... e então?

Espera pela pancada, Iain Wheeler desgraçado. Num impulso, desço do banco, aproximo-me de Luke dando a volta ao balcão e abraço-o o

melhor que posso. O bebé é tão gigantesco que já não tem espaço para saltar, mas de vez emquando espreme-se.

Olha, bebé – telegrafo em silêncio. – Não saias até que me façam a festa, certo? Outro dia li que muitas mães conseguem de facto comunicar com os bebés em gestação, por

isso tento mandar-lhe uma pequena mensagem de encorajamento. Amanhã será ótimo. Que tal à hora do almoço? Se saíres em menos de seis horas, dou-te um prémio! – Deveria ter-te dado ouvidos, Becky – surpreende-me a voz cansada de Luke. – Protestaste

contra o Arcodas. E nunca gostaste do Iain. – Desprezo-o. Não vou dizer qual é o prémio. Espera só para ver. A campainha toca e Luke pega no interfone. – Sim, pode trazer. É uma encomenda – diz ele. Fico imóvel. – É um estafeta? – Sim. – Veste o casaco. – Estás à espera de alguma coisa? – Mais ou menos. – Engulo em seco. – Luke... talvez queiras ver esta encomenda. Pode ser

importante. – Não é mais roupa de cama, pois não? – Luke não parece entusiasmado. – Não! Não é roupa de cama. É... – Paro quando a campainha toca. – Já vais ver. – Vou

rapidamente até ao corredor. – Encomenda para a senhora; por favor, assine aqui – murmura o estafeta, assim que abro a

porta. Rabisco a papeleta eletrónica, recebo o pacote e volto-me quando o Luke entra nocorredor.

– Luke, tenho aqui uma coisa muito importante. – Aclaro a garganta. – Uma coisa quepoderia... mudar a situação. E precisas de compreender a forma como a consegui...

– Não devias entregar isto à Jess? – Luke franze a testa olhando para o pacote. – Jess? – Sigo o olhar dele e vejo, pela primeira vez, «Miss Jessica Bertram» escrito na

etiqueta. Sinto um choque de frustração. Não é de Dave Sharpness, afinal de contas; é qualquer

porcaria para a Jess. – Porque vêm para aqui encomendas para a Jess? – pergunto, incapaz de esconder a

frustração. – Ela não mora aqui! – Sabe-se lá! – Luke encolhe os ombros. – Querida, tenho de ir. – Olha para a minha barriga

enorme. – Mas vou ter o telemóvel e o bip ligados. Se houver algum sinal... – Eu ligo – concordo, revirando o envelope nos dedos. – E o que devo fazer com isto? – Podes entregar à Jess... – Luke detém-se. – Numa altura qualquer. Quando te encontrares

com ela. Espera lá. O modo exageradamente natural com que Luke disse... – Luke, sabes, sabes? – exclamo. – Sei o quê? – Torce a boca de um modo muito suspeito, enquanto pega na pasta. – Sabes. Do... tu sabes! – Não faço ideia do que estás a falar. – Luke parece ter vontade de rir. – Por sinal, Becky,

uma coisa que não tem nada a ver com isto... será que podias estar em casa por volta das onzeda manhã? Estamos à espera do homem do gás.

– Não estamos, não! – Aponto para ele, acusando-o, a rir. – Vais fazer alguma das tuas. – Diverte-te. – Luke dá-me um beijo, em seguida sai e eu fico sozinha.

Demoro algum tempo no corredor, a olhar para a porta. Quase gostaria de ir com Luke hoje,para lhe dar apoio moral. Parece tão stressado! E agora tem de encarar todos os funcionários. Eo pessoal do departamento de finanças.

Hemorragia de dinheiro. Sinto o estômago apertado. Não. Para com isso. Não penses nisso. Ainda faltam duas horas para as onze, ponho então o DVD de Harry Potter, para me distrair,

e abro uma lata de Quality Street, só porque estamos na época das festas. Chego à parte em queHarry vê os pais mortos no espelho e vou apanhar um lenço de papel quando, por acaso, olhopela janela – e vejo Suze, parada diante do prédio, no pequeno estacionamento perto do jardim,a olhar diretamente para a janela.

Baixo-me logo. Espero que ela não me tenha visto. Alguns instantes depois, levanto cautelosamente a cabeça e ela ainda ali está parada. Só que

Jess também apareceu! Com alguma emoção, olho para o relógio. Dez e quarenta. Já não faltamuito!

A única coisa é que as duas parecem bastante perturbadas. Suze gesticula com a testafranzida e Jess acena com a cabeça. Devem ter algum problema. O que será? E nem possoajudar.

Enquanto olho, Jess pega no telemóvel. Marca e, quando o telefone do apartamento toca, douum salto, cheia de remorsos, e afasto-me da janela.

Tudo bem. Age de modo casual. Respiro fundo e pego no auscultador. – Ah, olá, Suze! – digo em tom muito natural. – Como estás? Provavelmente estarás no

Hampshire, a andar a cavalo, ou noutro lugar assim. – Como sabias que era eu? – pergunta Suze, cheia de suspeitas. Merda. – Temos... identificador de chamadas – minto. – Então, como estás?

– Ótima! – diz Suze, parecendo muito abalada. – Na verdade, Bex, acabo de ler um artigosobre grávidas, que diz que se deve fazer uma caminhada de vinte minutos todos os dias,porque faz bem à saúde. De modo que estava a pensar que devias caminhar um pouco. Tipo...agora. Só uma volta ao quarteirão.

Ela quer tirar-me do caminho! Certo. Vou concordar, mas não de modo tão óbvio. – Uma caminhada de vinte minutos – digo, pensativa. – Parece uma boa ideia. Talvez o faça. – Não mais que vinte minutos – acrescenta Suze, apressada. – Só vinte minutos exatamente. – Pois sim! – digo. – Vou agora mesmo. – Ótimo! – Suze parece aliviada. – Pois... então... até logo! – Tchau! Vou rapidamente ao corredor, ponho o casaco e desço de elevador. Quando saio, Suze e Jess

desapareceram. Devem estar escondidas! Tentando parecer uma grávida normal a fazer uma caminhada de vinte minutos, vou até ao

portão, olhando avidamente para a direita e para a esquerda. Ah, meu Deus, acabo de ver Suze atrás daquele carro! E ali está Jess, acocorada atrás do

muro! Não podem saber que as vi. Não posso rir. Mantenho a compostura, chego ao portão –

quando vejo um cabelo castanho encaracolado, familiar, atrás de um arbusto de rododendro. Não. Não acredito. Aquela é a minha mãe? Saio pelo portão e solto uma gargalhada, abafando o som com as mãos. Ando rapidamente

pelo passeio, encontro um banco na rua seguinte e folheio a revista Heat, que escondi no casacopara a Suze não ver. Então, quando passam exatamente vinte minutos, levanto-me e vou paracasa.

Quando passo outra vez pelo portão, não há sinal de ninguém. Entro e subo no elevador atéao último andar, sentindo bolhinhas de antecipação. Chego ao nosso apartamento, meto a chavena fechadura e abro.

– Surpresa! – Sou recebida por um coro de vozes quando abro a porta de par em par. E oestranho é que, mesmo esperando aquilo, sinto um choque genuíno ao ver tantos rostos amigosjuntos.

Suze, Jess, a minha mãe, o Danny... e aquela é a Kelly? – Uau? – Largo a Heat, mesmo sem querer. – Que coisa... – É a tua festa pré-mamã! – Suze está vermelha de prazer. – Surpresa! Enganámos-te! Entra e

bebe um copo de Buck’s Fizz... Leva-me à sala de jantar – e não acredito na transformação. Há balões cor-de-rosa e azuis em

toda a parte, um bolo enorme num suporte de prata, e um monte de presentes, garrafas dechampanhe no gelo...

– Isso é simplesmente... – digo, de súbito com a voz entrecortada. – É simplesmente... – Não chores, Bex! – diz Suze. – Bebe qualquer coisa, querida! – A minha mãe mete-me um copo na mão. – Eu sabia que não devíamos fazer uma surpresa! – Janice parece alarmada. – Bem disse que

seria um choque demasiado grande para o organismo dela! – Surpreendida por me ver? – Kelly veio até mim, com o rosto a brilhar de emoção e

maquilhagem luminosa Stila. – Kelly! – Envolvo-a com o braço que não tem a bebida. Conheci Kelly em Cumbria, quando

andava à procura de Jess. Nessa altura, já estava grávida, mas nem sabia. Parece que foi há

anos. – Ficaste mesmo surpreendida, Bex? – Suze olha-me, o rosto cheio de alegria contida. – Totalmente! E é verdade. Sim. Sabia que iria acontecer. Mas não tinha ideia de que alguém faria um

esforço tão grande! Sempre que olho em volta, noto outra coisa qualquer, como os enfeitesprateados com «é menino» e «é menina» espalhados pela mesa, ou sapatinhos pendurados emtodos os quadros.

– Ainda não viste nada – diz Danny, tomando um gole de champanhe. – Vamos lá, toda agente, em fila. Desabotoem os casacos. Vou contar até três...

Fico a olhar, espantada, enquanto elas formam uma espécie de fila de coristas mal-amanhada.

– Um... dois... três! Todas, desde a minha mãe até Jess e Kelly, abrem os casacos. E por baixo têm todas T-shirts

Danny Kovitz, exatamente a que foi desenhada para o The Look. Só que a imagem é de umagrávida pequenina, como uma boneca. E por baixo está escrito:

ELA É UMA MÃE DELICIOSA

E NÓS ADORAMO-LA Nem consigo falar. – Ela está emocionada! – exclama a minha mãe, agitada. – Senta-te, querida. Come qualquer

coisa. – Estende um prato de minúsculas panquecas de pato chinesas. – São do Waitrose. Muitoboas!

– Abre as prendas– ordena Suze, batendo as palmas. – Depois vamos fazer jogos. Ei, todos,sentem-se, a Bex vai abrir as prendas... – Põe todos os embrulhos num monte à minha frente,depois bate com um garfo no copo. – Bom, tenho um pequeno discurso a fazer sobre asprendas. Atenção!

Voltam-se todos para Suze cheios de expetativa e ela faz uma pequena vénia. – Obrigada! Bom, quando planeava esta festa, perguntei à Jess o que achava que devíamos

comprar para a Becky. E a Jess disse: «Não há mais nada, ela já comprou Londres inteira.» Há uma gargalhada gigantesca e sinto as faces cor de beterraba. Bom, talvez tenha passado

um pouco dos limites. Mas de facto precisava. Quero dizer, vou estar demasiado ocupada parafazer compras depois do nascimento do bebé. Provavelmente, vai passar um ano sem queconsiga chegar ao pé de uma loja.

– Então – prossegue Suze, com os olhos a brilhar –, a Jess sugeriu que fizéssemos coisas. Efoi o que fizemos.

Fizeram coisas? Ah, meu Deus, elas não terão feito toalhitas para limpar o bebé, pois não? – Vamos começar pelo meu. – Suze põe um embrulho retangular à minha frente e começo a

rasgar o papel prateado com ligeira apreensão. – Ah, uau! – Ofego ao ver o que é. – Uau. Não são toalhitas. É uma moldura exótica, feita de madeira pintada de creme, com

espelhinhos minúsculos e madrepérola. Dentro, em vez de uma foto, há um desenho tosco deuma mulher com um bebé ao colo em frente a uma casa.

– Podes colocar uma foto do bebé – explica Suze. – Mas, por enquanto, desenhei-vos em

frente à casa nova. Olho para o desenho com mais atenção e não consigo evitar uma gargalhada. A casa foi

dividida em quartos e cada um tem um rótulo: Quarto dos Carrinhos, Quarto das Fraldas,Quarto dos Batons, Quarto das Contas do Visa (na cave), Quarto das Antiguidades do Futuro.

Um Quarto das Antiguidades do Futuro! Na verdade, é uma ideia brilhante. À medida que abro os outros presentes, vou ficando emocionada. O da Kelly é uma

pequenina colcha, com retalhos oferecidos por todos os queridos amigos que fiz em Scully. Oda Janice é um minúsculo macacão vermelho, de tricô, com «Primeiro Natal do Bebé» bordadoà frente. O da mãe é um gorro e umas botinhas do Pai Natal. O de Danny é um macacãoesgaçado, de estilista, mas super chique.

– Agora o meu – diz Jess, pondo o maior presente de todos à minha frente. Está embrulhadocom uma colcha de retalhos de papéis de presentes velhos e amarrotados, um deles impressocom as palavras «Feliz 2000!» – Tem cuidado ao tirares o papel! – recomenda Jess, quandocomeço a desembrulhar. – Posso usá-lo outra vez.

– Sim... tudo bem! – Retiro suavemente o papel e dobro-o. Por baixo há uma camada depapel de seda. Retiro-o também e vejo uma caixa com cerca de setenta centímetros de altura,feita de madeira clara e lisa. Perplexa, volto-a para mim. E não é uma caixa, afinal. É umpequeno armário com duas portas e minúsculos puxadores de louça. E na frente está gravado«Sapatos do Bebé».

– O que... – Levanto os olhos. – Abre. – O rosto de Jess parece iluminado. – Vá lá! Puxo a porta. E há prateleiras minúsculas, inclinadas e forradas de camurça. Numa delas está

o menor par de botas de basebol vermelhas que já vi. É um Quarto dos Sapatos Minúsculos. – Jess... – Sinto as lágrimas no rosto. – Fizeste isto? – O Tom ajudou. – Encolhe os ombros, como se não desse importância a si mesma. –

Fizemos os dois. – Mas a ideia foi da Jess – intervém Suze. – Não é incrível? Gostava de ter pensado nisso. – É perfeito. – Estou totalmente zonza. – Olhem como as portas se encaixam... e como as

prateleiras estão inseridas... – O Tom sempre foi bom com as mãos. – Janice leva um lenço aos olhos. – Este pode ser o

seu memorial. Provavelmente nunca teremos uma lápide. – Janice, tenho a certeza de que ele não está morto... – começa Jess. – Podemos gravar as datas de nascimento e morte dele na parte de trás – continua Janice. –

Se não se importar, Becky querida. – Sim... bem, não – digo, hesitante. – Claro que não. – Ele não está morto, Janice! – exclama Jess. – Sei que não está! – Bom, então onde está? – Janice retira o lenço dos olhos que ficaram manchados de sombra

cor de malva. – Partiste o coração daquele menino! – Esperem! – Lembro-me subitamente. – Jess, recebi hoje uma encomenda para ti. Talvez

seja dele. Vou rapidamente até ao corredor e trago o embrulho. Jess abre-o e cai dele um CD onde está

escrito simplesmente «Do Tom». Por momentos ficamos todos a olhar. – É um DVD – diz Danny, pegando nele. – Põe-no.

– É o testamento dele! – grita Janice, histérica. – É uma mensagem do além-túmulo! – Não é do além-túmulo – reage Jess bruscamente, mas quando se aproxima do DVD, vejo

que está pálida. Carrega no play e baixa-se. Todos esperamos em silêncio enquanto o ecrã treme. Então,

subitamente, ali está o Tom, diante da câmara, contra um céu azul. Tem vestido um velho polocinzento e o cabelo desgrenhado.

– Olá, Jess – diz ele, com ar importante. – Quando vires isto, estarei no Chile. Porque... éonde estou agora.

Jess endireita-se. – No Chile? – No Chile? – berra Janice. – O que está ele a fazer no Chile? – Amo-te – diz Tom – e vou para o outro lado do mundo, se for necessário. Ou mais além. – Ah, isto é tão romântico! – suspira Kelly. – É um perfeito idiota – diz Jess, batendo o punho na testa. – Só vou para lá daqui a três

meses! Mas noto que tem os olhos brilhantes. – Olha o que encontrei para ti. – Tom tem na mão um pedaço de uma rocha preta brilhante,

que mostra diante da câmara. – Vais adorar este país, Jess. – Ele vai apanhar cólera! – diz Janice, agitada. – Ou malária! O Tom sempre teve um

organismo fraco. – Posso trabalhar como carpinteiro – está Tom a dizer. – Posso escrever o meu livro. Seremos

felizes aqui. E se a minha mãe se meter contigo, lembra-lhe do que eu te disse sobre ela. – Disse? – Janice levanta a cabeça rapidamente. – O que disse ele? – Ah... nada. – Jess carrega na pausa e retira rapidamente o DVD do aparelho. – Depois vejo

o resto. – E então! – diz a minha mãe, alegremente. – Ele está vivo, Janice querida. É uma boa

notícia! – Vivo? – Janice continua histérica. – De que adianta estar vivo no Chile? – Pelo menos está fora de casa, no mundo! – declara Jess, com súbita paixão. – Pelo menos

está a fazer alguma coisa da vida! Sabes como ele estava deprimido, Janice. É exatamente distoque ele precisa.

– Eu sei do que o meu filho precisa! – responde Janice, indignada, enquanto a campainhatoca. Levanto-me com dificuldade, feliz por ter uma desculpa para sair do campo de batalha.

– Vou ver quem é... – Vou ao corredor e pego no intercomunicador. – Sim? – Tenho uma encomenda para a senhora – diz uma voz entrecortada. O meu coração falha por um segundo. Uma encomenda. Tem de ser. Tem de ser. Quando

aperto o interfone, mal consigo respirar. Digo a mim mesma para não ter esperanças, deve seroutra encomenda para Jess, ou um catálogo, ou uma peça de computador para Luke.

Mas, quando abro a porta, vejo um estafeta, vestido de couro, com um grande envelopealmofadado, e já reconheci a letra de Dave Sharpness escrita com um marcador preto e grosso.

Fecho-me no bengaleiro e rasgo o envelope febrilmente. Há um envelope de papel pardo ládentro, com o nome «Brandon» escrito. À frente está colado um Post-it, com uma mensagemrabiscada. Espero que ajude. Se precisar de mais alguma coisa não hesite. Atenciosamente,Dave S.

Abro-o – e está tudo ali. Cópias de todas as anotações, transcrições de conversas,

fotografias... folheio com o coração acelerado. Tinha-me esquecido dos dados que tinhamrecolhido sobre Iain Wheeler. Para uma agência de detetives perdida em West Ruislip, fizeramum trabalho fantástico.

Guardo tudo rapidamente e vou até à cozinha fresca e vazia. Estou prestes a pegar no telefonequando ele toca, fazendo-me dar um salto.

– Estou? – Estou, Mistress Brandon – diz uma voz masculina desconhecida. – Aqui é Mike Enwright,

da Press Association. – Ah, sim. – Olho para o telefone, perplexa. – Gostaria de saber se a senhora podia comentar os boatos de que a empresa do seu marido

está prestes a ir ao fundo. Estremeço com o choque. – Não está a ir ao fundo – respondo solenemente. – Não faço a mínima ideia do que está a

falar. – A notícia que corre é que ele perdeu a conta do Arcodas. E o último boato é que a Foreland

Investment vai pelo mesmo caminho. – Ele não perdeu o Arcodas! – exclamo, furiosa. – Separaram-se por motivos que não posso

discutir. E, para sua informação, a empresa do meu marido continua forte como sempre. Maisforte ainda! Luke Brandon sempre foi procurado por clientes de alto nível durante toda a suacarreira, e sempre o será. É um homem de imensa integridade, talento, inteligência, beleza e...elegância na maneira de vestir.

Paro, respirando ofegante. – Muito bem! – Mike Enwright ri. – Percebi a ideia. – Vai citar tudo isso? – Duvido. – Ri de novo. – Mas gosto da sua atitude. Obrigado pelo seu tempo, Mistress

Brandon. Desliga e bebo um copo de água, abalada. Tenho de falar com Luke. Ligo para a linha direta

e ele atende-me ao terceiro toque. – Becky! – Luke parece alerta. – Há alguma coisa... – Não, não é isso. – Olho pela porta da cozinha e baixo a voz. – Luke, a Press Association

acaba de ligar. Queriam uma declaração sobre tu... – Engulo em seco – estares a ir ao fundo.Disseram que a Foreland vos vai abandonar.

– Isso é uma treta! – A voz de Luke explode de raiva. – Aqueles merdas do Arcodas estão apassar boatos para a imprensa.

– Eles não podem prejudicar-te ou podem? – pergunto, assustada. – Não se eu puder fazer alguma coisa. – Luke parece decidido. – Acabaram-se os paninhos

quentes. Se querem luta, vamos lutar. Vamos levá-los a tribunal, se for necessário. Acusá-los deassédio. Expô-los a todos.

Sinto um enorme orgulho ou ouvi-lo falar. Parece o Luke Brandon que conheci. Seguro e adominar a situação. E sem andar a correr atrás do Iain Wheeler, como um lacaio.

– Luke, tenho uma coisa para ti – digo de repente. – Consegui um... material sobre o IainWheeler.

– O que disseste? – pergunta Luke, depois de uma pausa. – Houve alguns casos antigos de assédio e intimação que foram abafados. Tenho um dossiê

inteiro sobre ele, na minha posse.

– Tens o quê? – Luke parece assombrado. – Becky... de que estás a falar? Talvez eu não entre imediatamente na história da contratação do detetive particular de

Ruislip. – Não me perguntes como – digo rapidamente. – Mas tenho. – Mas como... – Disse-te que não me perguntasses! Mas é verdade. Vou mandar por um estafeta para o

escritório. Provavelmente devias ter os advogados a postos para dar uma olhadela. Háfotografias, anotações, todo o tipo de provas... francamente, Luke, se tudo isto vier à tona, eleestá acabado.

– Becky. – Luke parece incrédulo. – Surpreendes-me constantemente. – Amo-te – digo num impulso. – Arrasa-os. – Desligo o telefone e afasto o cabelo para trás

com as mãos suadas. Bebo uns goles de água, depois ligo para a empresa de estafetas que Lukehabitualmente usa.

Em cerca de meia hora o envelope estará na posse do Luke. Só gostaria de ver a cara delequando o abrir.

– Olá, Bex! – Dou um pulo quando a Suze entra de repente à cozinha. A expressão delaaltera-se quando me vê. – Bex, está tudo bem?

– Estou... ótima! – esboço imediatamente um sorriso. – Estou a descansar um pouco. – Agora vamos fazer uns jogos! – Suze abre o frigorífico e pega num pacote de sumo de

laranja. – Adivinhar a Comida do Bebé... Caça ao Alfinete de Fraldas... Nomes de Bebés deCelebridades...

Não acredito no trabalho que ela teve para organizar tudo isto. – Suze... muito obrigada – digo. – É tudo incrível. E a minha moldura! – Ficou gira, não ficou? – Suze parece satisfeita. – Sabes, aquilo inspirou-me mesmo. Estou a

pensar em recomeçar o negócio das molduras. – Devias fazê-lo! – digo, entusiasmada. Suze fazia molduras fantásticas até nascerem os

filhos. Eram vendidas no Liberty’s e tudo! – Quero dizer, se a Lulu pode escrever livros de culinária, porque não posso eu fazer

molduras? – pergunta Suze. – As crianças não vão morrer se eu trabalhar umas horas porsemana, pois não? Ainda serei uma boa mãe.

Leio-lhe a ansiedade nos olhos. A culpa é unicamente daquela cabra da Lulu. A Suze nuncase preocupou se era ou não uma boa mãe até que a conheceu.

Muito bem. Chegou a hora da vingança. – Suze... tenho uma coisa para ti – digo, enfiando a mão na gaveta da cozinha. – Mas não

podes mostrar à Lulu, nunca. Nem contar-lhe. Nem contar a ninguém. – Não vou contar! – Suze fica intrigada. – O que é? – Olha. Entrego a Suze a fotografia feita com teleobjetiva. Foi a única coisa que guardei do envelope

original. É de Lulu na rua com os filhos. Está bastante agitada – na verdade, parece gritar comum deles. Tem nas mãos quatro tabletes de Mars, que distribui por eles. E também duas latas deCoca-Cola e, debaixo dos braços, há um pacote gigante de batatas fritas.

– Não! – Suze fica demasiado abalada para falar. – Não. Isso são... – Tabletes de Mars – confirmo com a cabeça. – E batatas com sabor a queijo. – E Coca-Cola! – Suze solta uma enorme gargalhada e tapa a boca com a mão. – Bex, ganhei

o dia com isto. Como foi que... – Não me perguntes. – Também não consigo evitar um risinho. – Que vaca hipócrita! – Bom... – Encolho os ombros de um modo adulto e compreensivo. – Não te vou dizer que

sempre disse que ela era uma vaca. Ou que as raízes dos cabelos dela estão a aparecer. Porque isso seria uma patifaria. – Sabes, ela criticava-me tanto. – Suze continua a olhar para a fotografia, incrédula. – Eu

sentia-me tão... inferior! – Creio que afinal devias ir ao programa de televisão – digo. – Podias levar essa fotografia. – Bex! – Suze solta uma pequena gargalhada. – És mesmo má! Só vou guardá-la numa

gaveta e olhar para ela quando precisar de me animar. De repente, o telemóvel toca e sinto-me tensa. E se forem outra vez os meios de comunicação

social? E se for Luke com mais notícias? – Olha, Suze – digo em tom natural –, porque não vais ver se toda a gente está bem? Volto

num minuto. – Claro. – Suze assente e pega no seu sumo, os olhos ainda fixos na foto. – Vou guardar isto

em lugar seguro... Espero até ela ter saído e a porta estar fechada com firmeza e depois concentro-me e pego no

telefone. – Estou? – Olá, Becky. – A voz familiar e aérea atravessa a linha. – É a Fabia. – Fabia! – exclamo, aliviada. – Como está? Muito obrigada por nos ter deixado usar a sua

casa no outro dia. O pessoal da Vogue achou-a fantástica! Recebeu as minhas flores? – Ah, maravilhoso – diz Fabia vagamente. – Sim, recebemos as flores. Ouça, Becky,

acabámos de saber que não vão poder pagar a casa em dinheiro. Luke deve ter ligado para o corretor a dizer-lhe. As novidades viajam depressa. – Exatamente – confirmo, tentando manter-me animada. – Houve uma ligeira mudança nas

nossas circunstâncias, mas isso só nos deve atrasar cerca de duas semanas. – Pois.– Fabia parece distraída. – O problema é que decidimos fechar negócio com os outros

compradores. Por momentos creio estar com alucinações. – Outros compradores? – Não lhes falámos dos outros compradores? Os americanos. Eles fizeram a mesma oferta.

Na verdade, antes da vossa, de modo que, falando legalmente... – deixa a frase no ar. – Mas... vocês aceitaram a oferta! Disseram que a casa era nossa. – Pois, mas os outros compradores podem agir mais depressa, portanto... Sinto-me tonta de fúria. Fomos lixados. – Estiveram então a enganar-nos todo este tempo? – Tento manter o controlo. – A ideia não foi minha. – Fabia parece lamentar-se. – Foi do meu marido. Ele gosta de ter

uma segunda opção. De qualquer modo, boa sorte na procura da casa... Não. Fabia não pode fazer isto. Não pode deixar-nos descalços. – Fabia, ouça. – Limpo o rosto húmido. – Por favor. Estamos prestes a ter um bebé. Não

temos para onde ir. O nosso apartamento foi vendido... – Pois... Espero que corra tudo bem. Adeus, Becky. – Mas e as botas Archie Swann? – Quase choro de raiva. – Fizemos um contrato! Deve-me

uma bota! – Percebo que estou a falar para o vazio. Desligou. Não quer saber. Pouso o telemóvel. Lentamente vou até ao frigorífico e encosto a mão no aço frio, sentindo-

me tonta. Já não temos a casa dos nossos sonhos. Já não temos casa. Levanto o telefone para ligar para Luke. Mas pouso-o. De momento ele já tem problemas a

mais. Dentro de algumas semanas, teremos de sair do apartamento. Para onde vamos? – Becky? – Kelly irrompe na cozinha, a rir. – Pusemos velas no teu bolo. Sei que não fazes

anos, mas tens de soprar já! – Pois! – Volto à realidade. – Já vou. De alguma forma, consigo recompor-me enquanto sigo Kelly até à sala de estar. Aí, Danny e

Janice jogam a Adivinhe a Comida do Bebé e anotam as respostas em folhas de papel. A minhamãe e Jess vêm fotografias de bebés de celebridades.

– É a Lourdes! – diz a minha mãe. – Jess, querida, devias saber mais coisas sobre o mundo. – Puré de beterraba – diz Danny, como quem sabe das coisas enquanto prova uma colherada

de argamassa roxa. – Só precisa de uma dose de vodca. – Becky! – A minha mãe levanta os olhos. – Está tudo bem, querida? Estás sempre a sair

daqui para atender o telemóvel! – É verdade, Bex, o que se passa? – A testa de Suze enruga-se. – É... Enxugo o lábio superior, que está molhado, tentando manter-me firme. Nem sei por onde

começar. Luke está a esforçar-se para salvar a empresa. Está com uma hemorragia de dinheiro.

Perdemos a casa. Não posso dizer. Não posso estragar a festa; toda a gente está a divertir-se! Conto... mais

tarde. Amanhã. – Está tudo ótimo! – Esboço o meu sorriso mais luminoso e feliz. – Não podia estar melhor!

– E vou soprar as minhas velas.

Por fim, todo o chá e o champanhe foram bebidos e os convidados saem gradualmente. Foi umafesta pré-mamã fantástica. E toda a gente se saiu bem! Janice e Jess acabaram por fazer aspazes e Jess prometeu cuidar de Tom no Chile e não deixar que os guerrilheiros o apanhem.Suze e Kelly tiveram uma longa conversa enquanto jogavam Adivinhe a Comida do Bebé, queterminou com Suze a oferecer a Kelly um trabalho de governanta durante o seu ano sabático.Mas a coisa mais incrível foi que Jess e Danny se deram bem! Danny começou a falar com elasobre a nova coleção que quer fazer, usando lascas de pedras – e agora ela vai levá-lo a ummuseu para ver algumas amostras.

O estafeta chegou enquanto comíamos o bolo e o envelope partiu. Mas não tive notícias de Luke. Acho que está a falar com os advogados, ou sei lá o quê. Por

isso ainda não sabe nada da casa. – Sentes-te bem, Becky? – pergunta a minha mãe, dando-me um abraço perto da porta da rua.

– Queres que fique aqui até o Luke voltar para casa? – Não, está tudo bem. Não te preocupes. – Bem, descansa esta tarde. Poupa as energias, querida. – Vou poupar – concordo. – Tchau, mãe.

O lugar fica silencioso e sem vida depois de todos saírem. Sou apenas eu e todas as coisas.Entro no quarto do bebé, tocando suavemente na alcofa feita à mão e no bercinho branco, debaloiço. E o ovinho com a capota de tecido, lindíssima. (Eu queria ter várias opções para o sonodo bebé.)

É como um cenário. Só estamos à espera que chegue a personagem principal. Toco na barriga, perguntando a mim mesma se o bebé estaria acordado. Talvez ponha uma

música para ele ouvir, pois poderá ser um génio musical quando nascer! Dou corda ao móbilque encomendei ao catálogo Intelligent Baby e encosto-o à barriga.

Bebé, escuta. É Mozart. Creio. Ou Beethoven ou outro qualquer. Meu Deus, agora confundi tudo. Olho para a caixa para ver se a música é de Mozart quando

oiço um som fraco de qualquer coisa a cair no corredor. Cartões de Natal. Vou sentir-me melhor. Abandonando o móbil Intelligent Baby, vou até à

porta da rua, apanho do tapete o enorme monte de correspondência e bamboleio-me de volta atéao sofá, examinando os envelopes.

Paro. Há um pequeno pacote escrito com letras nítidas, floreadas. Da Venetia. Está endereçado a Luke, mas não me importo. Com mãos trémulas, rasgo-o e encontro uma

minúscula caixa de couro Duchamp. Abro-a e vejo um par de botões de punho de prata eesmalte. Porque lhe mandará botões de punho?

Um pequeno cartão creme cai, com uma nota escrita na mesma letra. L Há quanto tempo! Nunc est bibendum? V Olho para o bilhete, com o sangue a disparar-me na cabeça. Todo o stresse do dia parece

concentrar-se num laser de fúria. Já estou farta. Vou mandar o pacote de volta, devolver aoremetente...

Não. Vou devolver-lho eu mesma. Atordoada, levanto-me e apanho o casaco. Vou procurarVenetia e acabar com isto. De uma vez por todas.

VINTE

Nunca tive tanta vontade de armar um escândalo. Não demorei muito a descobrir Venetia. Telefonei para o Centro Holístico de Maternidade,

fingindo estar desesperada para falar com ela e a perguntar onde está. Depois de dizer que elaestava «indisponível», a rececionista deixou escapar que ela está agora no Hospital Cavendish,numa reunião. Ofereceu-se para a avisarem pelo pager, já que ainda estou no sistema comopaciente, mas disse que não a incomodassem, que na verdade já me estava a sentir melhor. Oque eles engoliram. Obviamente estão habituados a grávidas espalhafatosas a telefonar e adesmarcar.

Portanto, agora estou diante do Serviço de Maternidade do Hospital Particular de Cavendish,com o coração acelerado, e um saco do The Look na mão. Nele estão não só os botões depunho, mas as meias elásticas, a pochete, todos os bilhetes que ela mandou ao Luke, os folhetose as anotações médicas daquele centro holístico idiota... até os brindes. (Foi com certo esforçoque lá coloquei o Crème de la Mer; na verdade, tirei a maior parte e coloquei-a num frasco deLancôme. Mas a Venetia não precisa de saber.)

É como uma caixa de rompimento de namoro. Vou entregar-lha e dizer muito calmamente:«Deixe-nos em paz, Venetia. Luke, eu e o bebé não queremos nada consigo.» Depois disso, elatem de perceber que perdeu.

Além disso, telefonei para o meu adorável professor de latim enquanto vinha para cá e eleensinou-me um fantástico insulto em latim, que decorei. «Utinam barbari provinciam tuaminvadant!» que significa «Que os bárbaros invadam a tua província!».

Boa. Assim vai perceber. – Sim? – diz uma vozinha pelo intercomunicador. – Olá! – respondo para a grelha. – Sou Becky Brandon, uma paciente. – Não direi mais. Vou

entrar e improvisar a partir daí. Abrem a porta e empurro-a. Normalmente, o local é muito calmo, mas hoje está cheio de

atividade. As cadeiras estão cheias de mulheres em vários estágios de gravidez, conversandocom os companheiros e tendo nas mãos panfletos intitulados «Porquê escolher o Cavendish?»Duas parteiras caminham rapidamente pelo corredor falando acerca de «operar» e «entalado», ede facto não gosto do que estou a ouvir, e ainda por cima oiço também os gritos de uma mulher,vindos de um quarto distante. O meu estômago revolta-se com aquele som e luto contra avontade de tapar os ouvidos com as mãos.

De qualquer modo, não era necessariamente um grito de agonia. Provavelmente, gritaria pornão poder ver televisão ou qualquer coisa do género.

Vou até à receção, ofegante. – Olá – digo. – Chamo-me Rebecca Brandon e preciso de falar imediatamente com a doutora

Venetia Carter, por favor.

– A senhora marcou hora? – pergunta a rececionista. Nunca a tinha visto ali. Tem cabelosgrisalhos encaracolados, óculos numa corrente prateada, e modos bastante bruscos para alguémque lida com grávidas todo o santo dia.

– Bem... não. Mas é muito importante. – Infelizmente, a doutora Venetia está ocupada. – Não me importo de esperar. Se a senhora pudesse dizer-lhe que estou aqui... – Terá de marcar consulta. – A rececionista bate no teclado como se eu não existisse. Não há dúvida de que a mulher está a passar dos limites. Venetia está numa reunião idiota. E

aqui estou eu, praticamente com nove meses de gravidez... – Não pode avisá-la pelo pager? – Tento permanecer calma. – Só o posso fazer se a senhora estiver em trabalho de parto. – A mulher encolhe os ombros,

como se isto não fosse problema dela. Olho-a através de uma fina névoa de fúria. Vim aqui resolver as coisas com Venetia e não

vou deixar que uma mulher de casaco de malha cor de malva me impeça de o fazer. – Pois bem... eu estou em trabalho de parto! – ouço-me dizer. – A senhora está em trabalho de parto? – Olha-me desconfiada. Ela não acredita, pois não? Que desplante! Porque mentiria eu sobre uma coisa dessas? – Estou. – Levo as mãos às ancas. – Estou. – Está com contrações regulares? – pergunta em tom de desafio. – Desde ontem, de três em três minutos – contra-ataco. – E tenho dores nas costas, andei todo

o dia a aspirar... e... e ontem rebentaram-me as águas. Pronto. Agora ela que diga que eu não estou em trabalho de parto. – Pois. – A mulher parece uma pouco abalada. – Bem... – Só quero falar com a doutora Venetia, mais ninguém – acrescento, aproveitando a

vantagem. – Portanto, pode chamá-la, por favor? A mulher enfrenta-me de olhos semicerrados. – As suas contrações são de três em três minutos? – Ah, pois. – De repente, apercebo-me de que devo estar na receção há pelo menos três

minutos. – Suporto-as em silêncio – informo com dignidade. – Sou cientologista. – Cientologista? – repete ela, pousando a caneta e olhando-me de frente. – Pois – sustento o olhar dela, sem me abalar. – E preciso de falar urgentemente com a

doutora Venetia. Mas se não quer deixar entrar uma mulher cujas águas rebentaram ontem eque está a sofrer em silêncio uma dor enorme... – Ergo um pouco a voz, de modo a ser ouvidapor todas as grávidas.

– Muito bem! – A rececionista percebe claramente que foi derrotada. – Pode esperar. –Observa a zona da receção que está apinhada. – Espere naquela sala – diz por fim, e indica-meum quarto onde está escrito Sala de Parto Três.

– Obrigada! – dou uma volta e vou para a Sala de Parto Três. É uma sala grande, com umacama de metal de aparência assustadora, uma casa de banho e até um leitor de DVD. Mas semfrigorífico.

Sento-me na cama e pego rapidamente na caixa de maquilhagem. Toda a gente sabe que aprimeira regra dos negócios é Parecer Bonita Durante os Confrontos. Ou, se não é, devia ser.Ponho um pouco de blush e aplico batom e pratico ao espelho a minha expressão mais duraquando oiço bater à porta.

É ela. Com o mais enorme tremor de nervosismo, pego no Saco do Rompimento de Namoro

e levanto-me. – Entre – digo, com a maior calma possível, e instantes depois a porta abre-se. – Olá, minha querida! – diz uma parteira afro-caribenha, de aparência alegre, entrando

rapidamente. – Sou a Esther. Como se sente? As contrações ainda são muito fortes? – O quê? – Olho-a de frente. – Sim... não. Quero dizer, sim... – Paro, confusa. – Ouça,

preciso de falar com a doutora Venetia Carter. – Ela já vem – diz a parteira, em tom tranquilizador. – Entretanto, vou prepará-la. Sinto uma leve suspeita. Não avisaram Venetia, pois não? Estão a tentar sondar-me. – Não preciso de preparação – digo educadamente. – Mesmo assim, obrigada. – A senhora vai ter um bebé! – A parteira solta uma gargalhada. – Precisa de vestir uma

camisa de dormir. Ou trouxe uma T-shirt? E tenho de a examinar, para ver como vão as coisas. Tenho de me livrar desta mulher o mais depressa possível. Aperta-me o abdómen e encolho-

me. – Na verdade, já fui examinada! – digo rapidamente. – Por outra parteira. De modo que estou

pronta... – Outra parteira? Quem? A Sarah? – Pois... talvez. Não me lembro. Ela saiu de repente, disse que precisava de ir ao teatro ou

qualquer coisa assim? – Pestanejo com ar inocente. – Vou abrir uma nova ficha. – Esther abana a cabeça e suspira. – Terei de a observar outra

vez. – Não! – grito sem poder conter-me. – Quero dizer... tenho fobia destes exames. Disseram-

me que eu podia ter exames mínimos. A doutra Venetia sabe. Preciso realmente de falar comela, com mais ninguém. Não podia deixar-me sozinha até ela chegar? Quero concentrar-me naminha... no meu interior feminino.

Esther revira os olhos, depois vai até à porta e põe a cabeça de fora. – Pam, temos aqui outra paciente amalucada da doutora Venetia. Podes avisá-la pelo pager?

Certo. – Ela volta para a sala. – Vamos avisar a doutora Venetia. Só vou preencher isto. Então,rebentaram-lhe as águas em casa?

– Sim. – A outra parteira disse-lhe a dilatação? – Ah... quatro centímetros – digo ao acaso. – Aguenta a dor? – Até agora, tudo bem – respondo, corajosa. Batem à porta e uma mulher espreita. – Esther? Podes chegar aqui? – Hoje estamos com muito movimento. – Esther pendura a ficha à cabeceira da cama. – Já

volto. Desculpe. – Tudo bem! Obrigada! A porta fecha-se atrás dela e estendo-me outra vez na cama. Por alguns minutos, nada

acontece e começo a fazer zapping pelos canais da televisão. Estou a pensar se não terão DVDspara alugar quando batem outra vez à porta.

Desta vez, tem de ser Venetia. Agarro na Caixa do Rompimento, esforço-me para melevantar e respiro fundo, preparando-me.

– Entre! A porta abre-se e uma miúda de cerca de vinte anos olha para dentro, usando uniforme de

enfermeira. Tem cabelos loiros finos amarrados atrás e parece muito apreensiva. – Ah, olá – diz ela. – Chamo-me Paula e sou estudante de enfermagem. Importava-se que eu

entrasse e a observasse nos primeiros estágios do trabalho de parto? Agradecia-lhe muito,muito mesmo.

Ah, pelo amor de Deus. Estou para dizer «Não, vá-se embora», mas ela parece tão tímida enervosa que não consigo fazê-lo. Afinal de contas, posso livrar-me dela quando Venetiachegar.

– Claro. – Aceno com a cabeça. – Entre. Chamo-me Becky. – Olá. – Esboça um sorriso tímido, entra na ponta dos pés e senta-se numa cadeira a um

canto. Durante um ou dois minutos, nenhuma de nós diz nada. Voltei a acomodar-me nas almofadas

e olho para o teto, tentando esconder a minha frustração. Cá estou, pronta para o confronto, enão há quem confrontar. Se Venetia não aparecer nos próximos cinco minutos, simplesmentevou-me embora.

– A senhora parece muito... serena. – Paula ergue os olhos depois de rabiscar no seu caderno.– Tem algum mecanismo especial para enfrentar a dor?

Ah, claro. Devia estar em trabalho de parto. É melhor representar, caso contrário ela não teráo que escrever.

– Sem dúvida – aceno com a cabeça. – Na verdade, vou mexer-me um pouco. Acho querealmente ajuda. – Levanto-me e ando em volta da cama, balançando os braços para trás e paraa frente, de modo profissional. Depois giro as ancas algumas vezes e faço um alongamento queaprendi no iogalates.

– Uau – diz, Paula, impressionada. – A senhora é muito flexível. – Fiz ioga – digo, com um sorriso modesto. – Acho que vou comer um KitKat. Só para

manter elevado o nível de energia. – Boa ideia – assente Paula. Enquanto vou à minha mala, vejo-a anotar «Come KitKat» e por

baixo «Usa ioga para o alívio da dor». Em seguida, folheia o caderno para trás e levanta osolhos com simpatia. – Durante as contrações, onde se situa a maior parte da dor?

– E... assim... em volta – digo vagamente, mastigando o KitKat. – Por... aqui... e aqui... –Indico o corpo. – É difícil de explicar.

– Parece-me incrivelmente calma, Becky. – Paula observa-me enquanto espreito os dentes noespelhinho em busca de migalhas de KitKat. – Nunca vi uma mulher tão controlada no trabalhode parto.

– Bem, sou cientologista – não resisto a dizer. – Por isso tento manter-me o mais serenapossível, obviamente.

– Cientologista! – Arregala os olhos. – Que incrível. – Em seguida, franze a testa, alarmada.– Não devia estar em silêncio total?

– Sou do tipo que tem permissão para falar – explico. – Mas não grito nem nada. – Uau. Sabe, creio que nunca tivemos aqui uma cientologista! – Parece-me bastante animada.

– Importa-se que eu diga a umas colegas? – Esteja à vontade! – concordo, distraída. Enquanto ela sai apressadamente, enrolo o papel do KitKat e atiro-o para o lixo, frustrada.

Isto é uma estupidez. Venetia não vem, não é verdade? Nunca a vão chamar pelo pager. E jánem me apetece falar com ela. Acho que vou para casa.

– Ela está aqui! – A porta é escancarada e uma multidão de jovens enfermeiras entra no

quarto, chefiadas por Paula. – Esta é Rebecca Brandon – diz ao grupo, em voz baixa. – Estácom dilatação de quatro centímetros e usa ioga para lidar com a dor. Como é cientologista,mantém-se muito quieta e calma. Mal se percebe que está com contrações.

Olham-me todas como se eu fosse um animal em vias de extinção. Quase sinto pena de asdesiludir.

– Na verdade, acho que talvez seja um alarme falso. – Pego na mala e visto o casaco. – Voupara casa. Muito obrigada pela ajuda...

– A senhora não pode ir para casa! – diz Paula, com um risinho. Consulta a minha ficha eacena afirmativamente. – Foi o que pensei. Rebecca, já lhe rebentaram as águas. Arrisca-se ater uma infeção! – Tira-me o casaco e pega na minha mala. – Vai ter de ficar aqui até o bebénascer!

– Oh! – digo, atrapalhada. O que faço agora? Será que devo dizer que inventei que as águas me rebentaram? Não. Vão achar que sou totalmente lunática. O que vou fazer é esperar até que me deixem a

sós e sair discretamente. Sim. Bom plano. – Pode estar em transição. – Está um das estudantes a dizer, com ar entendido. – Muitas

vezes querem ir para casa nesta fase. Ficam bastante irracionais. – Rebecca, tem mesmo de vestir a camisa de dormir do hospital. – Paula observa-me,

ansiosa. – O bebé pode estar a caminho. Como estão as contrações? Mais rápidas? Possoexaminá-la?

– Ela exigiu um mínimo de monitorização e exames – declara outra estudante, verificando aminha ficha. – Quer tudo natural. Acho que devíamos trazer uma enfermeira parteira-chefe,Paula.

– Não, não! – digo rapidamente. – Quero dizer... gostava de ser deixada a sós um pouco. Senão houver problema.

– A senhora é muito corajosa, Rebecca – diz Paula, pousando a mão simpaticamente no meuombro. – Mas não podemos deixá-la sozinha! Nem tem um acompanhante para o parto!

– Vou ficar bem, a sério. – Tento parecer natural. – Só uns minutos. Pois... faz parte dasminhas crenças. A mulher em trabalho de parto precisa de ficar sozinha uma vez por hora, parafazer um cântico especial.

Vá lá, desejo, em silêncio. Deixem-me sozinha de uma vez... – Bem, acho que devemos respeitar as suas crenças – diz Paula, duvidosa. – Tudo bem,

vamos sair algum tempo, mas, se sentir qualquer coisa mexer, toque à campainha. – Esteja descansada! Obrigada! A porta fecha-se e eu deito-me, aliviada. Graças a Deus. Vou sair daqui assim que a costa

ficar livre. Pego na mala e no casaco e abro uma fresta na porta. Fecho-a rapidamente, tentandonão fazer barulho. Terei de esperar mais uns instantes. Devem afastar-se dentro em pouco e euvou sair a correr.

Não acredito que estou nesta situação. Nunca devia ter dito que estou em trabalho de parto.Nunca devia ter fingido que me rebentaram as águas. Meu Deus, é uma lição. Nunca mais voufazer isto, nunca.

Depois de um pouco mais de tempo, olho para o relógio. Passaram três minutos. Acho quevou espreitar mais uma vez o corredor. Pego no casaco... mas, antes que consiga esgueirar-me,a porta abre-se de novo.

– Ah, meu Deus, Bex! – Suze irrompe com os seus cabelos loiros e casaco Miu Miu bordado.

– Estás bem? Vim assim que soube! – Suze? – Encaro-a, atónita. – O que... – A tua mãe já aí vem – diz ela, ofegante, atirando o casaco para longe e revelando a T-shirt

de Mãe Deliciosa de Danny. – Estávamos todas juntas num táxi quando recebemos a notícia. AJanice foi buscar umas revistas e bebidas e a Kelly disse que vai esperar na receção...

– Mas como... Não entendo. Será que Suze é paranormal ou isso? – Liguei para o teu telemóvel e a mulher que atendeu disse que era da Maternidade do

Cavendish. – Suze fala sem parar, agitada. – Disse que tinhas deixado o telemóvel na receção eque estavas em trabalho de parto! Ficámos malucas! Dissemos ao motorista que desse meiavolta e eu cancelei o jantar que íamos dar... – Para abruptamente ao notar a minha aparência. –Becky, porque estás com o casaco na mão? Está tudo bem?

– A Rebecca está a ser fantástica! – diz Paula. Entra no quarto e tira-me o casaco das mãos. –Quatro centímetros de dilatação e não precisou de nada para a dor!

–Não precisou de nada para a dor? – Suze parece abalada. – Bex, achei que ias pedir umaepidural!

– Ah... – engulo em seco. – Mas não quis vestir a camisa de dormir do hospital – acrescenta Paula, em tom reprovador. – Claro que não quis! – responde Suze, indignada. – São horrorosas. Bex, trouxeste o saco?

Não te preocupes, vou comprar-te uma T-shirt. E precisamos de música aqui e talvez algumasvelas... – Ela olha em redor, com ar crítico.

– Ah... Suze... – Tenho o estômago às voltas de tantos nervos. – Na verdade... – Toc Toc! – Há uma voz nova à porta. – Aqui é a Louisa! Podemos entrar? Louisa? Isso não pode estar a acontecer. É a aromaterapeuta que contratei para o parto. Como diabo soube ela... – A tua mãe não perdeu tempo: ligou para toda a gente da tua lista, só para garantir que todos

soubessem! – Suze ri de orelha a orelha. – É tão eficiente! Vêm todos para cá. Não aguento. Está tudo a andar demasiado depressa. Louisa já pegou nalguns frascos de óleo

e esfrega-me na nuca qualquer coisa com cheiro a laranja. – Pronto! – diz. – A sensação é boa? – Ótima – consigo dizer. – Becky! – A voz aguda da minha mãe soa do lado de fora do quarto. – Querida! – Entra de

rompante, com um ramo de flores e um saco de papel cheio de croissants. – Senta-te! Vai comcalma! Onde está a tua epidural?

– Ela está a conseguir sem! – exclama Suze. – Não é incrível? – Sem? – A minha mãe fica admirada. – A Rebecca está a usar ioga e técnicas de respiração para enfrentar a dor – diz Paula, com

orgulho. – Não é, Rebecca? E já está com quatro centímetros! – Querida, não passes por isto. – A minha mãe agarra-me o braço, parecendo à beira das

lágrimas. – Aceita o alívio da dor! Toma os medicamentos. Sinto a língua colada ao fundo da boca. – Bom, isto é óleo de jasmim – diz a voz suave de Louisa junto ao meu ouvido. – Vou

esfregar-lhe as têmporas... – Becky! – diz a minha mãe, ansiosa. – Estás a ouvir? – Talvez esteja com uma contração! – exclama Suze, pegando-me na mão. – Becky,

respira... – Tu consegues, querida! – O rosto da minha mãe franze-se cada vez mais, como se ela é que

estivesse em trabalho de parto. – Concentre-se no bebé. – Os olhos de Paula fixam-se nos meus. – Concentre-se nesse bebé

lindo que vai vir ao mundo. – Olhem – consigo dizer por fim. – Eu... o facto é que não estou em trabalho de parto... – Becky, claro que está. – Paula põe as mãos nos meus ombros. – Bex, conserva a energia! – Suze enfia-me uma palhinha na boca. – Bebe um pouco de

Lucozade. Vais sentir-te melhor! – Desamparada, sugo a bebida enjoativa e paro quando ouçopassos rápidos a aproximarem-se. Conheço aqueles passos. A porta abre-se e desta vez é Luke,pálido, os olhos escuros e tensos enquanto examina a sala.

– Graças a Deus. Graças a Deus que não cheguei demasiado tarde... – parece quase sem falaquando vem até mim, junto à cama. – Becky, amo-te tanto... tenho tanto orgulho em ti...

– Olá, Luke – digo em voz débil. Agora, que porra faço?

O facto é que, em vários sentidos, este é o parto perfeito. Passaram-se vinte minutos e o quarto está cheio de gente. Felicity, a reflexologista, chegou e

massaja-me os dedos dos pés. Maria, a homeopata, arranja umas pílulas para eu tomar. Louisaestá a colocar queimadores de óleos essenciais em todos os cantos.

Tenho a minha mãe e a Suze sentadas de um dos lados e Luke do outro. Tenho uma flanelana testa, um spray de água na mão e vesti uma T-shirt comprida e larga que Suze e a minhamãe me enfiaram praticamente à força. Estou relaxada, há música a tocar, estou a conseguirsem epidural...

Só há um pequeno problema. Ainda não arranjei coragem para contar a ninguém. – Becky, precisa de um pouco de oxigénio? – Paula aproxima-se com uma máscara presa a

um tubo. – Só para aliviar um bocadinho a dor. – Sim... – Hesito. Vou parecer grosseira se recusar. – Bom, está bem. Obrigada! – Respire assim que sentir a contração começar – diz Paula, entregando-me a máscara. – Não

deixe para muito tarde. – Certo! – Ponho a máscara sobre o nariz e inspiro fundo. Uau. Isto é fantástico! Parece que

acabei de beber uma taça de champanhe! – Ei – tiro a máscara e esboço um sorriso beatífico para Luke. – Isto é ótimo. Devias

experimentar. – Becky, estás a sair-te muito bem. – Aperta-me a mão com força, sem afastar os olhos de

mim. – Está tudo bem? Tudo está a correr segundo o teu plano de parto? – Sim... a maior parte das coisas! – digo, evitando o olhar dele e sugando um pouco de

oxigénio. Ah, meu Deus. Tenho de lhe dizer. Tenho. – Luke... – Inclino-me para a frente, umpouco aturdida por causa do oxigénio. – Ouve – sussurro-lhe ao ouvido. – Eu não vou ter obebé.

– Querida, não te preocupes. – Luke acaricia-me a testa. – Leva o tempo que levar. Ninguémestá com pressa.

Na verdade... essa é uma ideia. Quero dizer, o bebé vai sair mais tarde ou mais cedo, não é?Eu podia ficar aqui, não dizer nada, beber Lucozade e ver televisão. E, com o tempo, alguma

coisa irá acontecer e eles vão dizer: «A Becky ficou em trabalho de parto durante duassemanas, coitadinha!»

– A propósito, falei com o doutor Braine – acrescenta Luke. – E ele vem de Portland. – Ah! – Tento esconder a minha aflição. – Ótimo! Desesperada, respiro de novo oxigénio, tentando pensar num plano. Talvez a casa de banho

tenha uma janela e possa fugir por ela. Ou podia dizer que quero andar no corredor e talvezencontre um bebé recém-nascido e pedi-lo emprestado por pouco tempo...

– Pensava que a Venetia Carter ia fazer o parto. – Paula deixa de anotar. – Ela não vem paracá? – Paula olha para o relógio. – Se não, uma das enfermeiras terá de a examinar. Está a sentiralguma pressão. Becky?

– Ah... um pouco, sim! Ela não faz ideia. – Tome. – Louisa dá-me um frasco de óleo para cheirar. – Sálvia, para o stresse. – Então, Paula, alguma vez o trabalho de parto anda... para trás? – pergunto com ar natural,

tentando esconder uma súbita fagulha de esperança. – Não. – Paula ri. – Mas algumas vezes parece que é o que vai acontecer! – Ah! Ah! – Rio-me com ela e afundo-me novamente nas almofadas, inalando a sálvia para o

stresse. Do que preciso é de um óleo essencial para dizer às pessoas que não estou em trabalhode parto e que todos têm de ir para casa.

Batem à porta e Suze levanta os olhos. – Ah. Deve ser a Jess. Disse que vinha a caminho. – Entre! – diz Paula. A porta abre-se. E sinto-me gelar. É Venetia. Traz vestida a bata da sala de operações, tem o cabelo enfiado num gorro verde e

parece totalmente glamurosa e importante, como se salvasse vidas todos os dias. Cabra. Por um instante, Venetia parece muito espantada, mas, quase imediatamente vem até à cama,

com um sorriso profissional nos lábios. – Becky! Não fazia ideia de que era a paciente para quem me tinham chamado. Deixe-me ver

como está... Tira o gorro verde, o cabelo cai radiante pelas costas. – Luke, há quanto tempo chegou ela? Põe-me a par do que se passa. Está a fazer tudo de novo. A excluir-me. E a tentar enfeitiçar Luke. – Deixe-me em paz! – exclamo, furiosa. – Já não sou sua paciente e não vai ver coisíssima

alguma, muito obrigada. De repente, não me importo se entrei em trabalho de parto ou se estou a fingir o trabalho de

parto. Ou sei lá o quê. Não é demasiado tarde, ainda posso ter o meu grande confronto.Enquanto todos ficam boquiabertos, tiro a máscara de oxigénio e levanto-me da cama.

– Suze, podes dar-me aquela mala, por favor? – peço, com voz trémula. – O saco que estádebaixo da cama.

– Pronto! Aqui está. – Suze entrega-me o saco. – É ela? – pergunta-me ao ouvido. – Sim – confirmo. – Vaca. – Boa ideia, Becky! – diz Paula num tom animado e seguro. – Manter-se levantada vai ajudar

a bebé a descer... – Venetia, tenho uma coisa para lhe devolver.

Tenho a voz ligeiramente empastada por culpa daquele gás idiota. E continuo a sorrir, o que éum pouco irritante. Mas, de qualquer modo, ela vai perceber a mensagem.

– O Luke não quer isto. Enfio a mão no saco e deito fora as meias elásticas. Elas caem no chão e toda a gente olha. Ah. Estou meio confusa. – Isto, quero eu dizer... – atiro com força a caixa dos botões de punho, que acerta na testa de

Venetia – Ai! Merda! – Agarra-se à cabeça. – Becky! – censura Luke. – Ela continua atrás de ti, Luke! Mandou-te um presente de Natal! – De repente, lembro-me

do latim. – Uti... barberi... – Tenho a língua enrolada. – Nam... quero dizer, tui... Caraças. O latim é uma língua idiota. – Querida, estás a delirar? – A minha mãe parece ansiosa. – Becky, não faço ideia do que está a dizer. – Venetia parece ter vontade de rir. – Deixe-nos em paz. – Tremo de raiva. – Deixe-me em paz a mim e ao Luke. – Não me mandou chamar? – lembra Venetia e retira a ficha da mão de Paula, que está

nervosa. – Bom, em que pé estamos com este bebé? – Não mude de assunto! – berro. – Disse que tinha um caso com o Luke. Tentou

enlouquecer-me. – Um caso? – Venetia arregala os olhos. – Becky, o Luke e eu somos apenas amigos! – Solta

o seu riso cristalino. – Desculpe, Luke. Percebo que a Becky tem um problema em relação amim. Mas não fazia ideia de que ela era tão possessiva...

Venetia parece totalmente razoável, ali parada com o seu uniforme de autoridade médica. Eeu sou a grávida transtornada e embriagada com uma enorme T-shirt.

– Ven, está tudo certo – diz Luke, parecendo pouco à vontade. – Ouve, o Charles Braine vemsupervisionar. Talvez devesses... sair.

– Isso mesmo. – Venetia assente com a cabeça, olhando para Luke com ar de conspiração eeu sinto-me invadida por uma fúria incandescente.

– Luke, não deixes que ela se livre assim! Ela disse-me que vocês eram amantes! Disse-meque me ias abandonar para ficar com ela!

– Becky... – É verdade. – Lágrimas de raiva escorrem-me pelo rosto. – Ninguém acredita em mim, mas

é verdade! Ela disse que, assim que se viram de novo, era apenas uma questão de quando eonde. Disse que os dois ficaram inebriados um com o outro e que foi como Penélope e... nemsei quem. Otelo.

– Penélope e Odisseu? – Luke olha para mim. – Sim! Isso mesmo. E que eram feitos para ficar juntos. E que o meu casamento já não

existia... – Limpo o nariz à manga da T-shirt. – E agora está a fingir que sou uma psicóticatotalmente alucinada...

Algo mudou nos olhos de Luke. – Penélope e Odisseu? – pergunta ele, com voz tensa. – Ven? Faz-se um silêncio incómodo. – Não sei do que ela está a falar – diz Venetia em tom afá-vel. – Quem são Penélope e Odisseu? – pergunta-me Suze ao ouvido e encolho os ombros

impotente. – Venetia. – Luke olha diretamente para ela. – Nós nunca fomos Penélope e Odisseu. Pela primeira vez, vejo Venetia hesitar. Não diz nada, apenas olha para Luke com uma

expressão de desafio. Como se quisesse dizer: fomos sim. Pois, eu preciso de saber. – Luke, quem são Penélope e Odisseu? Esperando francamente que não seja um RP e uma obstetra que se juntaram depois de a

esposa ter saído de cena. – Odisseu deixou Penélope para fazer uma longa viagem – responde Luke, os olhos ainda

colados nos de Venetia. – A Odisseia. E Penélope esperou fielmente por ele. Durante vinteanos.

– Ora, ela não esperou fielmente por ti! – diz Suze, apontando um dedo indignado a Venetia.– Teve casos em todos os cantos!

– Venetia, disseste à Becky que tínhamos um caso? – A voz estrondosa de Luke faz toda agente dar um salto. – Disseste-lhe que eu a ia deixar para ficar contigo? Tentaste destruir-lhe aconfiança?

– Claro que não – responde Venetia friamente. Tem uma expressão dura nos olhos, mas notoque o queixo lhe treme ligeiramente.

– Ótimo – diz Luke num tom ainda de desprezo. – Bem, vamos deixar tudo claro como águade uma vez por todas. Nunca teria um caso contigo, Venetia. Não teria um caso com ninguém.– Volta-se para mim e segura-me nas mãos. – Becky, não há absolutamente nada entre mim e aVenetia, independentemente do que ela possa ter dito. Namorámos durante um ano. Naadolescência. Mais nada. Okay?

– Okay – digo num sussurro. – Porque acabaram? – pergunta Suze, com interesse, ficando vermelha quando toda a gente

olha para ela. – É relevante! – diz na defensiva. – As pessoas devem ser abertas acerca derelacionamentos passados! O Tarkie e eu sabemos tudo sobre os casos antigos um do outro. Secontasses à Bex, em vez de... – detém-se.

– Talvez tenhas razão – concorda Luke. – Becky, talvez eu devesse ter explicado o queaconteceu entre nós. Como terminou. – Contorce rapidamente o rosto. – Venetia assustou-secom uma gravidez.

– Ela estava grávida? – Sinto-me enjoada só de pensar. – Não! Não. – Luke abana a cabeça com força. – Pensou que podia estar, por pouco tempo.

Mas, de qualquer modo, isso... aclarou as coisas. E terminámos. – Entraste em pânico. – Subitamente a voz de Venetia parece latejar, como se não pudesse

controlar uma raiva enterrada há muito. – Entraste em pânico, Luke, e perdemos o melhorrelacionamento que já tive. Todos nos invejavam em Cambridge. Todos. Éramos perfeitosjuntos.

– Não éramos perfeitos! – Ele olha-a, incrédulo. – E eu não entrei em pânico... – Entraste! Não pudeste suportar o compromisso! Ficaste apavorado. – Não fiquei apavorado! – grita Luke, exasperado. – Apercebi-me de que não eras a pessoa

com quem queria ter filhos. Nem passar o resto da vida. E foi por isso que acabei! Venetia parece ter levado um soco. Por segundos, fica sem fala. Depois concentra os olhos

em mim com tamanha agressividade que estremeço. – E ela é? – pergunta, com um gesto violento – Essa coisinha desmiolada, consumista... é

com ela que vais passar o resto dos teus dias? Luke, ela não tem profundidade! Não temcérebro! Só se importa com as compras, as roupas... e as amigas...

O sangue desaparece-me do rosto e sinto-me trémula. Nunca ouvi tanto veneno. Olho paraLuke, que tem as narinas abertas e uma veia a latejar-lhe na cabeça.

– Não te atrevas a falar assim da Becky – diz numa voz tão dura que até eu fico um poucoassustada. – Não te atrevas.

– Qual quê, Luke! – Venetia solta um riso de troça. – Admito que ela é bonita... – Venetia, não sabes do que estás a falar – diz Luke, interrompendo-a. – Ela é mais do que frívola! – grita Venetia. – Ela não é nada! Por que diabo te casaste com

ela? No quarto, todos sustêm a respiração. Ninguém se move durante uns trinta segundos. Luke

parece um pouco atordoado por lhe fazerem uma pergunta tão explícita. Meu Deus, o que seráque vai dizer? Talvez diga que foi por causa da minha maravilhosa capacidade culinária e dasminhas respostas espirituosas.

Não. É pouco provável. Talvez diga... Para ser sincera, não sei o que dizer. E se eu não sei, Luke pode também não saber. – Porque casei com a Becky? – repete ele por fim, numa voz tão estranha que subitamente

julgo que deve estar também a perguntar a si próprio, e a aperceber-se de que cometeu um erroterrível.

De repente, sinto-me fria e um pouco assustada. E Luke ainda não disse nada. Vai até ao lavatório e serve-se de um copo de água enquanto todos o olham, nervosos. Por

fim volta-se. – Passaste algum tempo com a Becky? – Eu passei! – diz Suze, como se fosse ganhar um prémio. Todos se voltam para ela, que fica

vermelha. – Desculpa – murmura. – Da primeira vez que vi a Becky Bloom... – Detém-se, com um pequeno sorriso nos lábios –

perguntava ela ao responsável pelo marketing de um banco por que razão não produziramlivros de cheques com capas de cores diferentes.

– Estás a ver? – Venetia abana a mão, impaciente, mas Luke nem repara. – No ano seguinte, produziram livros de cheques com capas de diferentes cores. O instinto da

Becky não tem comparação. A Becky tem ideias que ninguém tem. A mente dela vai a lugaresonde a de mais ninguém vai. E algumas vezes tenho a sorte de a acompanhar. – Os olhos deLuke encontram os meus, suaves e calorosos. – Sim, ela faz compras e faz coisas malucas. Masfaz-me rir. Faz com que eu desfrute a vida. E eu amo-a mais do que tudo no mundo.

– Também te amo – murmuro, com um nó na garganta. – Ótimo – diz Venetia, pálida. – Ótimo, Luke! Se queres uma desmiolada, superficial... – Porra, já que não fazes a mínima ideia, cala-te, raios! – Subitamente, a voz de Luke parece

uma metralhadora. A minha mãe abre a boca para protestar contra aquela linguagem, mas eleestá tão lívido que ela a fecha, nervosa. – A Becky tem muito mais princípios do que tu algumavez tiveste. – Olha para Venetia com desprezo. – Ela é corajosa. Põe os outros à frente de siprópria. Não teria podido passar estes últimos dias sem ela. Provavelmente, sabem do problemapor que a minha empresa está a passar neste momento... – Olha para Suze e para a minha mãe.

– Problema? – A minha mãe fica alarmada. – Que tipo de problema? A Becky não disse

nada! – Eu sabia que se passava alguma coisa – diz Suze ofegante. – Eu sabia. Todos aqueles

telefonemas. Mas ela não queria dizer o que era... – Não queria estragar a festa. – Coro quando todos se viram para mim. – Estavam todos a

divertir-se tanto... – Paro, percebendo que ainda não lhe contei. – Luke... há outra coisa.Perdemos a casa.

Quando pronuncio estas palavras, sinto de novo uma esmagadora onda de frustração. A lindacasa para a nossa família foi-se.

– Estás a brincar. – O rosto de Luke parece sombrio do choque. – Vão vender a outra pessoa. Mas... deixa lá! – Obrigo-me a esboçar um sorriso luminoso. –

Podemos alugar um apartamento. Estive a ver na internet, vamos encontrar um facilmente... – Becky. – Posso ler-lho nos olhos. Os nossos sonhos destruídos. – Bem sei. – Pestanejo para conter as lágrimas. – Vai correr tudo bem, Luke. – Ah, Becky. – Olho e vejo que Suze está praticamente a chorar. – Podes ficar com o nosso

castelo na Escócia. Nunca o usamos! – Suze – não consigo evitar um risinho –, não sejas parva. – Vêm morar connosco, querida! – declara a minha mãe. – Não vão alugar um apartamento

horroroso! E, quanto a si, menina... Como se atreve a perturbar a minha filha que está emtrabalho de parto?

Merda. Esquecera-me de que estava em trabalho de parto. – Meu Deus, claro! – Suze tapa a boca com a mão. – Bex, tu nem piaste. És incrível! – Querida, és sensacional. – Luke está absolutamente impressionado. – Tudo isto e tu estás

em trabalho de parto! – Ah... pois... não tem importância! – Tento parecer modesta. – É que... – Não tem importância? É incrível. Não é? – Luke apela às estudantes de enfermagem. – Ela é muito especial – concorda Paula, que acompanhava boquiaberta a discussão com

Venetia. – Por isso estávamos a observá-la. – Especial, é? – pergunta Venetia subitamente. Aproxima-se e olha-me de cima a baixo, com

os olhos semicerrados. – Becky, quando foi, exatamente, a sua última contração? – Bom... – Aclaro a voz. – Bom.. foi... agora mesmo. – Ela é cientologista – intervém Paula, ansiosa. – Está a aguentar a dor em silêncio. É

maravilhoso de ver. – Cientologista? – repete Luke. – É o meu novo passatempo! – digo alegremente. – Não vos contei? – Nunca soube que eras cientologista, Bex! – diz Suze, surpreendida. – É aquela gente do reverendo Moon? – pergunta a minha mãe a Luke, assustada. – A Becky

entrou para a gente do reverendo Moon? – Ora, ora. – Os olhos de Venetia brilham. – Vamos lá examiná-la, Becky. Talvez o bebé

esteja pronto para nascer. Afasto-me um pouco. Se ela me examinar, estou basicamente perdida. – Não seja tímida! – Venetia avança para mim e, em pânico, corro para o outro lado da

cama. – Vejam essa mobilidade! – diz, admirada, uma das estudantes. – Venha, Becky...

– Vá-se embora! Deixe-me em paz! – Pego na máscara de oxigénio e começo a respirarfundo para dentro dela. Assim está melhor. Meu Deus, devíamos ter um tanque desta coisa láem casa.

– Chegámos! – A porta abre-se e vemos Danny irromper, seguido de Jess. – Já acabou tudo? Jess traz vestida a T-shirt que diz «Ela é uma Mãe Deliciosa e Nós Amamo-la», fazendo

conjunto com a de Suze. Danny traz uma blusa curta, de caxemira azul, com «Ela é uma VacaRuiva e eu Odeio-a» impresso em cáqui na parte da frente.

– Onde está o bebé? – Danny olha ao redor com os olhos brilhantes, absorvendo a atmosferatensa. Os olhos dele iluminam-se ao ver Venetia. – Ei, quem convidou a doutora Cruella?

Luke olha para a frase da T-shirt de Danny e solta uma súbita gargalhada de compreensão. – Vocês são tão infantis – diz rispidamente Venetia, que também viu a T-shirt. – Todos. E se

a menina Becky está realmente em trabalho de parto, então eu... – Ah! – grito. – Ah! Estou a vazar! Meu Deus, que sensação tão esquisita. Qualquer coisa, algures, simplesmente rebentou e uma

poça de água forma-se aos meus pés. Não consigo parar. – Meu Deus! – diz Danny, tapando os olhos. – Okay... informação a mais. – Pega no cotovelo

de Jess. – Anda, Jess, vamos beber qualquer coisa. – Rebentaram-lhe as águas – diz Paula, perplexa. – Pensei que isso tinha acontecido ontem. – Podem ter sido as pré-águas – anuncia outra estudante, parecendo muito esclarecida e

contente consigo mesma. – E estas podem ser as pós-águas. Estou em choque. Rebentaram-me as águas. Isso significa... que estou em trabalho de parto. Estou genuína e verdadeiramente em trabalho de parto. Aiiii. Oh, meu Deus. Vamos ter um bebé! – Luke. – Agarro-me a ele em pânico. – Está a acontecer! – Bem sei, querida. – Luke passa a mão pela minha testa. – Estás a sair-te incrivelmente... – Não! – gemo. – Não entendes! – Paro, subitamente sem fôlego. O que foi isso? Sinto como se alguém tivesse apertado a minha barriga, e depois apertado mais, e em seguida

apertado ainda com mais força, mesmo que eu estivesse a implorar que parassem. Isto é que é uma contração? – Luke... – fico subitamente com a respiração entrecortada. – Não sei se consigo fazer... A dor aperta ainda mais e estou ofegante, agarrada ao antebraço de Luke. – Vai correr tudo bem. Vai correr maravilhosamente. – Acaricia-me ritmadamente as costas.

– O doutor Braine já vem. A cabra ruiva vai-se já embora. Não vais, Venetia? – Ele não afastaos olhos dos meus.

A contração parece ter acabado. A sensação de aperto desapareceu. Mas sei que vai voltar,como o homem assustador de Pesadelo em Elm Street.

– Acho que, no fim de contas, vou querer uma epidural! – Engulo em seco. – E depressa. – Claro! – diz Paula, aproximando-se rapidamente. – Vou mandar um pager ao anestesista.

Suportou isto durante muito tempo, Becky. – ... ridículo... – ouço a última palavra de um insulto em surdina pronunciado antes de

Venetia fechar a porta com estrondo. – Que vaca! – diz Suze. – Vou contar a todas as minhas amigas grávidas a vaca que ela é. – Já se foi embora. – Luke beija-me na testa. – Acabou. Sinto muito, Becky. Sinto muito

mesmo. – Não tem importância – digo automaticamente. E na verdade... estou a ser sincera. Sinto que Venetia é já irrelevante e se vai afastar de nós como fumo. O que importa é Luke e

eu. E o bebé. Ah, meu Deus, lá vem outra contração. Toda aquela conversa acerca do parto resume-se a

dor. Pego na máscara de oxigénio e todas as estudantes de enfermagem se reúnem à minhavolta, encorajando-me enquanto começo a inalar.

– Vai conseguir, Becky... descontraia-se... respire... Vá lá, bebé. Quero conhecer-te. – Está a portar-se muitíssimo bem... continue a respirar, Becky. Claro que consegues. Vamos. Conseguimos os dois.

VINTE E UM

É uma menina. É uma menina pequenina, com lábios de pétala amarrotada, e um tufo de cabelo escuro,

mãozinhas minúsculas encostadas às orelhas. Durante todo aquele tempo, era ela que ali estava.E é esquisito, mas, no instante em que a vi, pensei simplesmente: és tu. Claro que és.

Está agora deitada num berço de plástico ao lado da minha cama, com um babygrowgiríssimo Baby Dior branco. (Eu queria experimentar roupas diferentes só para ver o que lheficava melhor, mas a parteira ficou com ar sério e disse que precisávamos as duas de dormir.) Eestou aqui a olhar para ela, meio tonta por causa da noite mal passada, observando cadamovimento da respiração dela, cada aperto dos dedos.

O parto foi... Bem, foi o que eles chamam «rápido e fácil». O que realmente me faz pensar. Pareceu-me

um trabalho muito complicado, duro e sangrento. Mas tudo bem. Certas coisas é melhor serempouco nítidas. Partos e contas do Visa.

– Olá. Estás acordada. – Luke levanta a cabeça da poltrona em que esteve a dormitar eesfrega os olhos. Tem a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e a camisa toda amarrotada.

– Estou. – Como está ela? – Bem. – Não consigo evitar que um sorriso se espalhe no meu rosto quando olho para ela. –

Perfeita. – Ela é mesmo perfeita. Tu és perfeita. – O rosto dele mostra uma espécie de euforia distante

quando olha para mim e sei que Luke está a reviver a noite passada. No fim, ficou só ele no quarto e todos saíram para esperar lá fora. Depois foram para casa,

porque o Dr. Braine disse que iria demorar até que alguma coisa acontecesse. Mas nãodemorou! Era uma e meia da madrugada quando ela nasceu, com os olhos brilhantes e alerta. Jápercebi que vai gostar de festas.

Ainda não tem nome. A lista que fiz está no chão ao lado da cama. Fi-la ontem à noitequando a parteira perguntou como lhe iríamos chamar – mas todos os nomes em que pensei nãoficam bem. São... simplesmente errados. Até mesmo Dolce. Até Tallulah-Phoebe.

Batem suavemente à porta. Esta abre-se muito devagar e Suze espreita. Tem na mão umgigantesco ramo de lírios e um balão de gás cor-de-rosa.

– Olá – murmura e, quando o seu olhar pousa no berço, tapa a boca com a mão. – Ah, meuDeus, Bex, vê só! Ela é linda.

– Eu sei. – Sem aviso, as lágrimas saltam-me dos olhos. – Eu sei que é. – Bex? – Parecendo ansiosa, Suze corre até à cama com um farfalhar de flores. – Estás bem? – Estou ótima. Só... – Engulo em seco, enxugando o nariz. – Não fazia ideia. – O quê? – Suze senta-se na beira da cama, com um ar assustado. – Bex... foi realmente

horroroso? – Não, não é isso. – Abano a cabeça, esforçando-me por encontrar as palavras. – Não fazia

ideia de que me iria sentir tão... feliz. – Ah, é, isso. – O rosto de Suze ilumina-se como que a recordar-se. – É isso. Aproveita que

não dura para sempre... – Parece pensar de novo e dá-me um abraço apertado. – É incrível.Parabéns. Parabéns, Luke.

– Obrigado. – Ele sorri. Mesmo parecendo de rastos, Luke parece reluzir. Olha para mim esinto um aperto no coração. É como se tivéssemos um segredo juntos, que ninguém mais podeentender.

– Olha os dedinhos dela! – Suze inclina-se sobre o berço. – Olá, querida! – E levanta osolhos. – Já tem nome?

– Ainda não. – Ajeito-me nas almofadas, encolhendo-me um pouco. Estou a sentir-me doridadepois da noite passada. Mas o bom é que o efeito da epidural ainda não passou totalmente e jáme deram uma dose de analgésicos.

A porta abre-se de novo e aparece a minha mãe. Já conheceu o bebé, às oito da manhã,quando chegou com brioches e café quente num termo. Traz agora um monte de sacos depresentes e o meu pai vem atrás.

– Pai... apresento-te a tua neta! – digo. – Ah, Becky querida, parabéns. – O meu pai dá-me o abraço maior e mais apertado do

mundo. Depois olha para o berço, piscando os olhos um pouco mais do que o normal. – Oraentão olá, velhinha.

– Aqui estão algumas roupas para ti, Becky, minha querida. – A mãe levanta um enorme sacode viagem, cheio de roupa, e põe-no numa cadeira. – Eu não sabia o que querias, de maneiraque apanhei aqui e ali...

– Obrigada, mãe. – Abro o fecho e tiro um grosso casaco de malha que não usava há unscinco anos. Depois vejo outra coisa. Um brilho familiar, azul-claro, com contas, uma maciez develudo.

A minha echarpe. A minha preciosa echarpe Danny and George. Ainda me lembro doinstante em que pus os olhos nela.

– Ei, olhem! – Tiro-a, com cuidado para não arrancar nenhuma conta. Também não a uso háanos. – Lembras-te disto, Luke?

– Claro que me lembro! – O rosto de Luke suaviza-se ao olhá-la. Depois acrescenta, comtodo o descaramento: – Compraste-a para a tua tia Ermintrude, pelo que me lembro.

– Isso mesmo. – Foi uma tragédia ela ter morrido antes de a poder usar. O braço dela caiu, não foi? – A perna – corrijo-o. A minha mãe esteve a ouvir a conversa, perplexa. – Tia quê? – pergunta e não consigo evitar um risinho. – Uma velha amiga – responde Luke, enrolando-me a echarpe ao pescoço. Olha-a por

momentos, com uma espécie de espanto, depois olha para o bebé. – Quem imaginaria... – Bem sei. – Apalpo a ponta da echarpe. – Quem imaginaria? O meu pai continua totalmente concentrado no bebé. Pôs um dedo no berço. E ela apertou-

lho com a mão minúscula. – Então, velhinha – pergunta. – Como te vamos chamar? – Ainda não decidimos – respondo. – É tão difícil!

– Eu trouxe-te um livro! – diz a minha mãe, procurando na carteira. – Que tal Grisabella? – Grisabella? – repete o pai. – É um nome lindo! – diz a minha mãe na defensiva, pegando no 1000 Nomes de Meninas e

colocando-o na cama. – E invulgar. – Vão chamar-lhe Grisu no infantário! – responde o meu pai. – Não necessariamente! Podem chamar-lhe Bella... ou Grizzy... – Grizzy? Jane, enlouqueceste? – Bom, de que nome gostas? – pergunta a minha mãe, ofendida. – Estava a pensar quem sabe em.... – O meu pai aclara a garganta. – Rhapsody. Olho para Luke, que murmura Rhapsody com tamanha expressão de dúvida e horror que

sinto vontade de rir. – Olhem, tive uma ideia – entoa Suze. – Os nomes dos frutos estão já muito batidos, mas os

de ervas. Podiam chamar-lhe Tarragon! – Tarragon! – exclama a minha mãe horrorizada. – Era melhor chamar-lhe Chilly Powder!

Bom, trouxe um pouco de champanhe para lhe molhar a cabecinha... Não será demasiado cedo,pois não? – Pega na garrafa, juntamente com um pedaço de papel. – Ah, sim, e recebi umrecado do vosso corretor de imóveis, que telefonou enquanto eu estava no apartamento. Dissepoucas e boas: «Por sua causa, neste Natal há um bebé recém-nascido sem abrigo.» Calou-selogo! E disse que queria pedir desculpa. Depois começou a falar de uns disparates sobre vilasem Barbados! Imaginem. – Abana a cabeça. – Bom, quem quer champanhe? – Pousa a garrafae começa a procurar nos armários por baixo da televisão.

– Não sei se eles têm copos de champanhe – digo. – Ora, pelo amor de Deus! – A mãe estala a língua e levanta-se outra vez. – Vou falar com a

governanta. – Mãe, aqui não há governantas. Só porque temos menus elegantes e televisores, a minha mãe acha que isto é uma espécie de

Ritz-Carlton. – Vou arranjar qualquer coisa – diz ela com firmeza e vai até à porta. – Quer ajuda? – Suze levanta-se pé. – Tenho mesmo de ligar para o Tarkie. – Obrigada, Suzie! – A minha mãe sorri-lhe. – E, Graham, vai buscar a máquina fotográfica

ao carro. Esqueci-me de a trazer. A porta fecha-se atrás do meu pai – e Luke e eu ficamos de novo sozinhos. Com a nossa

filha. Meu Deus, que ideia estranha! Ainda não acredito que temos uma filha. Apresento-lhes a nossa filha, Tarragon Parsley Sage e Onion. Não. – E então… – Luke passa a mão pelos cabelos desgrenhados. – Dentro de duas semanas

seremos sem abrigo. – Vamos viver na rua! – digo em tom leve. – Não faz mal. – Acho que estavas à espera de casar com alguém que pudesse pôr um teto sobre a tua

cabeça, não é verdade? Ele está a brincar – mas há uma certa aflição na sua voz. – Deixa lá. – Encolho os ombros, vendo a mão do bebé abrir-se como uma pequena estrela-

do-mar. – Terei mais sorte da próxima. Faz-se silêncio e eu levanto os olhos. Luke parece verdadeiramente abalado. – Luke, estou a brincar! – Pego-lhe na mão. – Vai correr tudo bem. Vamos fazer um lar onde

quer que estejamos. – Vou arranjar uma casa para nós – diz ele quase com violência. – Becky, vamos ter uma

casa maravilhosa, prometo... – Sei que vamos. – Aperto-lhe a mão com força. – Mas, francamente, não importa. Não estou a dizer isto só para lhe dar apoio. (Mesmo sendo eu uma esposa que apoia muito.)

Realmente não importa. Neste momento, sinto-me numa espécie de bolha. A vida real está dooutro lado, a quilómetros de distância. Só importa o bebé.

– Olha! – exclamo, quando ela boceja de repente. – Só tem oito horas de vida e já sabebocejar! Que inteligência!

Ficamos a olhar para o berço durante algum tempo, estarrecidos, à espera que ela faça outracoisa.

– Olha, talvez um dia seja primeira-ministra! – digo baixinho. – Não seria chique? Podíamosconseguir que ela fizesse tudo o que quiséssemos!

– Mas ela não fará. – Luke abana a cabeça. – Se lhe dissermos uma coisa, vai fazerexatamente o contrário.

– É tão rebelde! – Passo o dedo pela testa minúscula. – Tem vontade própria – corrige Luke. – Olha como agora nos ignora. – Senta-se na cama. –

Então, que nome lhe pomos? Grisabella não. – Nem Rhapsody. – Nem Parsley. – Pega no 1000 Nomes de Meninas e folheia. Enquanto isso, olho apenas para o rosto adormecido do bebé. Um nome salta-me na cabeça

enquanto olho para ela. É quase como se estivesse a dizer-me. – Minnie – digo em voz alta. – Minnie – repete Luke para experimentar. – Minnie Brandon. Sabes, gosto. – Ergue os olhos

com um sorriso. – Gosto mesmo. – Minnie Brandon. – Não posso deixar de sorrir também. – Parece-me bem, não é verdade?

Miss Minnie Brandon. – Que recebeu este nome por causa da tua tia Ermintrude, obviamente? – Luke ergue as

sobrancelhas. Ah, meu Deus! Nem me tinha ocorrido. – Claro! – Não consigo deixar de rir. – Só que ninguém saberá senão nós. A honorável Minnie Brandon, agraciada com a Ordem do Império Britânico, Membro do

Conselho da Rainha. Miss Minnie Brandon dançou, radiante, com o príncipe, envergando um vestido de baile

Valentino... Minnie Brandon conquistou o mundo... – Sim. – Aceno com a cabeça. – É esse o nome. – Inclino-me sobre o berço e vejo o peito

dela a subir e a descer a cada respiração. Então aliso-lhe o tufo de cabelos e beijo-lhe aminúscula bochecha.

Bem-vinda ao mundo, Minnie Brandon.

VINTE E DOIS

E aconteceu. Os Karlsson mudaram-se para o nosso apartamento. Toda a nossa mobília foiempacotada e retirada. Somos oficialmente sem abrigo.

Mas não de verdade, porque os meus pais vão hospedar-nos por algum tempo. Como disse aminha mãe, têm muito espaço, e Luke pode apanhar o comboio na estação de Oxshott, e elapode ajudar a cuidar da Minnie, e podemos jogar brídege todas as noites depois do jantar. Tudoisto é verdade, menos a parte do brídege. De maneira nenhuma. Nunca. Nem com as cartas debrídege da Tiffany que a minha mãe comprou para me subornar. Diz ela que é «divertidíssimo»e que «hoje em dia toda a gente joga brídege». Pois sim.

De qualquer forma, estou demasiado ocupada a cuidar da Minnie para ficar sentada a jogarbrídege. Estou demasiado ocupada a ser mãe.

A Minnie já tem quatro semanas e é uma miúda de festas. Eu bem sabia. A sua hora preferidaé a uma da manhã, quando começa a dizer «Ra Ra Ra» e esforço-me para me levantar da cama,sentindo que acabara de adormecer três segundos antes.

Além disso, gosta também muito das três da madrugada. E das cinco. E de alguns horáriospelo meio. Para ser franca, todas as manhãs me sinto completamente de rastos e ressacada.

Mas o lado positivo é que a TV cabo funciona a noite toda. E Luke costuma acordar para mefazer companhia. Ele escreve e-mails, e eu vejo o Friends com o volume baixo, e a Minniemama como se fosse um bebé esfomeado, carente, que não se alimentara há apenas uma hora.

O problema com os bebés é que eles realmente sabem o que querem. O que eu respeitoimenso. Tipo: a Minnie pura e simplesmente não gosta do berço feito à mão. Fica muitoaborrecida e contorce-se, o que é uma pena, tendo em conta que custou quinhentas libras. Nemficou impressionada com o berço de baloiço. Nem com o ovo, nem mesmo com os lençóisHollis Franklin de quatrocentos fios. O que mais gosta é de ficar aninhada no colo de alguémdia e noite. E, em segundo lugar, no meu velho berço portátil que a minha mãe foi buscar aosótão. É todo macio e com ar de usado, mas muito confortável. Por isso devolvi todos os outrose consegui reaver parte do dinheiro.

Devolvi também a Barraca de Circo para Troca de Fraldas. E o Bugaboo e o Guerreiro. Naverdade, um monte de coisas. Já não precisamos delas. Nem temos casa para colocar tudoaquilo. E dei todo o dinheiro a Luke, porque... bem, queria ajudar. Nem que fosse só umbocadinho.

A boa notícia é que as coisas estão a melhorar um pouco para o lado do Luke. E a melhorparte de tudo é que o Iain Wheeler perdeu o emprego! Luke não perdeu tempo – um dia depoisde ter nascido a Minnie, fez uma visita aos chefes de Iain, levando o advogado, e tiveram uma«conversa rápida», como disse Luke. A seguir soubemos que o Iain Wheeler anunciava a suadecisão de sair do Arcodas. Passou-se quase um mês e Gary, que sabe das coisas, disse que eleainda não recebeu uma única oferta de trabalho. Aparentemente, porque todos ouviram os

boatos sobre um dossiê que o incriminava. Boa! Mas Luke não quer trabalhar com o Arcodas, mesmo sem o Iain. Diz que a atitude deles é

detestável como sempre. E ainda não recebeu o dinheiro. Acabou de fechar mais três escritóriosno resto da Europa e as coisas andam bastante tensas. Mas ele está bem, com pensamentospositivos, a planear novas propostas, novas estratégias. Algumas vezes falamos sobre elas ànoite e eu digo tudo o que penso. E, de algum modo, a conversa passa sempre para a Minnie epara como ela é incrível, linda e maravilhosa.

Estou agora no atalho para a casa da minha mãe, a embalar a Minnie no colo e a ver oshomens da transportadora descarregarem as nossas coisas. A maior parte foi para um armazém,mas obviamente havia alguns objetos essenciais que precisávamos de trazer.

– Becky! – A minha mãe aproxima-se com um enorme monte de revistas. – Onde vou pôristo, querida? No lixo?

– Não é lixo! – protesto. – Talvez eu queira lê-las! Não podem ficar no nosso quarto? – Já está um pouco cheio... – A minha mãe olha para as revistas e parece tomar uma decisão

súbita. – Creio que vamos ter de vos ceder também o quarto azul. – Okay – concordo. – Obrigada, mãe. Não desistimos da casa sem luta. O Luke telefonou para Fabia, para implorar, e eu também, e

o corretor. Mas eles assinaram o contrato com o outro casal dois dias depois do nascimento daMinnie. O único ponto positivo, mas mínimo, foi que consegui que ela me devolvesse a botaArchie Swann, depois de lhe mandar uns cinco e-mails ameaçadores. Caso contrário, teriahavido sarilhos.

– Mais sapatos. – O homem da transportadora passa com uma enorme caixa de papelão. – Asenhora sabe que aquele armário já está cheio.

– Tudo bem! – diz rapidamente a minha mãe. – Comecem a encher o quarto azul. Voumostrar-lhe...

– Como estás? – Luke aparece em mangas de camisa, com a minha bola de pilates e duascaixas de chapéus.

– Ótima. – Aceno, ao ver outro homem chegar com o meu necessaire. – Isto é estranho, nãoé?

– Muito estranho. – Envolve-me com o braço e aninho-me no ombro dele. A noite passada foi ainda mais estranha, com toda a mobília atulhada na carrinha e um

grande apartamento vazio cheio de caixas. Mais ou menos às quatro da madrugada, Minnie nãoqueria dormir, por isso dei corda ao móbile com a «Canção de Embalar» de Brahms e meti-a nocanguru. Luke abraçou-nos a ambas e dançámos na sala, ao luar.

Nunca me apercebera de que aquela música era uma valsa. – Luke! – O meu pai aproxima-se, com um monte de correio. – Tens aqui uma carta. – Há por aí alguém muito eficiente – diz Luke, surpreendido. – Dei esta morada a muito

poucas pessoas. – Olha para o logótipo na parte de trás. – Ah. É de Kenneth Prendergast. – Que bom! – Finjo-me entusiasmada e faço uma careta a Minnie. Luke rasga o envelope e examina o texto. Um segundo depois, lê com mais atenção. – Não acredito – diz lentamente. Por fim, levanta a cabeça e olha-me incrédulo. – É a teu

respeito. – A meu respeito? – Há também um duplicado para ti. O Kenneth diz que é um assunto muito importante, por

isso queria contactar-nos aos dois.

Ah, é exatamente disso que preciso. Cartas de reclamação do Kenneth. – Ele odeia-me! – digo tentando defender-me. – A culpa não é minha. Eu só disse que ele

tinha vistas curtas... – Não é isso. – Luke torce a boca num sorriso. – Becky... parece que me venceste. – O quê? – pergunto, atónita. – Um dos teus investimentos rendeu excecionalmente. Para ser franco, não sei se o Kenneth

pode aceitar a notícia. Eu sabia. Eu sabia que ia vencer. – O que é? – pergunto, entusiasmada. – O que foi que rendeu? Talvez as Barbies, não? Não:

o casaco Dior. – O site chicmalassonline.com vai ser vendido. Vais receber uma pipa de massa. Agarro na carta e leio-a, absorvendo umas palavras aqui e outras ali. Lucro de três mil por

cento... extraordinário... impossível de prever... Uau! Venci o Luke! – E então: sou a pessoa mais esperta e financeiramente astuta da família? – Levanto os olhos,

triunfante. – As tuas Antiguidades do Futuro ainda são um monte de porcaria sem valor – diz Luke, mas

a rir. – E então? Mesmo assim venci! Tens um belo dinheirinho, minha querida! – Beijo a testa de

Minnie. – Quando ela tiver vinte e um anos – intervém Luke. Francamente, Luke é um chato! Quem quer esperar até aos vinte e um anos? – Bom, isso logo se vê – murmuro-lhe ao ouvido, puxando-lhe a mantinha para a cabeça para

que Luke não ouça. – Pronto! – A minha mãe aparece à porta, com uma chávena de chá na mão. – O vosso quarto

está praticamente cheio, mas creio que precisa de ser arrumado. Está numa confusão. – Não há problema – grita Luke. – Obrigado, Jane! – A minha mãe desaparece de novo

dentro de casa e ele agarra na bola de Pilates. – Então, vamos começar? Odeio escolher coisas. E arrumar. Como hei de livrar-me disto? – Olha, sabes, pensei levar a Minnie a passear – digo como que por acaso. – Acho que

precisa de um pouco de ar puro. Ficou dentro de casa o dia inteiro... – Boa ideia – assente Luke. – Até logo. – Até logo! Adeus, pai! – Aceno com a mãozinha da Minnie enquanto Luke desaparece

dentro de casa. Nunca tinha percebido, mas ter um bebé é simplesmente a melhor desculpa. Para qualquer

coisa! Ponho a Minnie no carrinho, toda aconchegada, e enfio o Knotty ao lado, para lhe fazer

companhia. Acho que a Minnie gosta do Knotty. E do Double-Knotty que a Jess lhe deu. Utilizo o carrinho cinzento, antiquado, que comprei na feira dos bebés. Em primeiro lugar,

porque talvez me tenha apressado de mais ao devolver todos os outros e, em segundo, porque aminha mãe acha que é melhor para as costas da Minnie, «não é como esses modernos». Estou apensar mandá-lo pintar de cor-de-rosa assim que puder – só que não é fácil encontrar tinta parao forro de carrinhos de bebé na temporada das festas e fim do ano.

Enrolo-a na linda manta cor-de-rosa e branca que os pais do Luke lhe deram quando nosvisitaram no Natal. Foram tão amorosos! Trouxeram um cesto de bolinhos e convidaram-nos

para ficar na casa deles (só que Devon é muito longe) e disseram que a Minnie era o bebé maislindo que já tinham visto. O que mostra o bom gosto que têm. Ao contrário de Elinor, que aindanem a veio ver e só mandou a Minnie uma horrorosa boneca antiga, de porcelana, com canudose olhos assustadores, como se tivesse saído de um filme de terror. Vou leiloá-la no eBay e pôr odinheiro na conta da Minnie.

Visto o meu novo casaco Marc Jacobs, que o Luke me ofereceu no Natal, e ponho a echarpeDenny and George ao pescoço. Tenho-a usado desde que saí do hospital. Seja como for, nãotenho vontade de usar outra echarpe neste momento.

Sempre soube que seria um bom investimento. Há algumas lojas perto da casa dos meus pais e, sem intenção, vou até lá. Não porque esteja a

pensar fazer compras nem nada disso. Só porque é um bom passeio. Quando chego à loja dos jornais, lá dentro está calor e um ambiente luminoso e acolhedor,

por isso entro com o carrinho. Minnie adormeceu e vou até à parte das revistas. Poderiacomprar uma para a minha mãe, ela há de gostar. Escolho a Good Housekeeping, mas a minhamão imobiliza-se. Está ali a Vogue.

O último exemplar da Vogue. Com um título azul berrante: AS MAIS DELICIOSAS FUTURAS MÃESDE LONDRES.

Com as mãos agitadas, pego nela, arranco o suplemento de viagem grátis e folheio-a. Ah, meu Deus! É a minha fotografia, enorme! Estou na escadaria, com o vestido Missoni e a

legenda diz: «Rebecca Brandon, guru de compras e mulher do empresário de RP LukeBrandon, espera o seu primeiro bebé.»

Residente em Maida Vale, o estilo da ex-apresentadora de televisão Becky Brandon éóbvio em toda a sua enorme casa de seis quartos. Ela própria projetou os fantásticosquartos de bebé «dele» e «dela», sem se poupar a despesas. «Tudo do melhor para o meu bebé», diz ela. «Encomendámos os móveis a uma tribo deartesãos da Mongólia.» Volto a página – e ali está outra fotografia minha, a sorrir no quarto de fada-princesa, com as

mãos pousadas na barriga, e a caixa diz: «Tenho cinco carrinhos de bebé. Acho que não é demais.»

Becky planeia um parto natural na água, com flores de lótus, e está sob os cuidados dafamosa obstetra Venetia Carter. «Venetia e eu somos boas amigas», diz Beckyentusiasmada. «Temos uma grande ligação. Talvez a convide para madrinha.» Tudo aquilo parece ter acontecido há séculos. Num mundo diferente. Enquanto olho para o lindo quarto de bebé, não posso deixar de me sentir um pouco

angustiada. Sei que a Minnie teria adorado, sei que teria. Pois. Mas um dia ela terá um belo quarto. Melhor até do que aquele. Levo a Vogue, ponho-a no balcão, e a vendedora levanta os olhos da revista que está a ler. – Olá! – digo. – Gostaria de levar esta, por favor. Há um novo mostruário num canto com uma placa a dizer «Presentes» e, enquanto a

vendedora abre a caixa registadora, vou espreitar. São principalmente molduras, pequenosvasos e alfinetes de peito estilos anos 30.

– Já esteve aqui, não é verdade? – diz a vendedora enquanto observa a minha revista. – NoNatal, vinha cá a toda a hora.

A toda a hora. Francamente. As pessoas exageram. – Acabei de me mudar para aqui perto. – Lanço-lhe um sorriso simpático. – Chamo-me

Becky. – Já reparámos em si. – Mete a Vogue num saco plástico. – Chamamos-lhe A Rapariga d... –

Ela detém-se e fico imóvel. O que irá ela dizer? – Chiu! – diz a outra vendedora, corada e dando uma cotovelada na primeira. – Não se preocupem, não me importo! – Lanço o cabelo para trás, num gesto natural. –

Chamam-me... A Rapariga da Echarpe Denny and George? – Não. – A vendedora olha-me sem qualquer expressão. – Chamamos-lhe A Rapariga do

Carrinho Velho. Ah! Bem. Não é assim tão velho. E esperem só até estar pintado de cor-de-rosa. Vai ficar

simplesmente incrível. – São três libras, por favor – diz ela e estende a mão. Vou apanhar o saco quando vejo um

expositor de colares de quartzo rosa no meio dos outros presentes. Aah. Adoro coisas de quartzo cor-de-rosa. – Estão em saldo – diz a vendedora, seguindo o meu olhar. – São lindos. – É verdade – concordo, pensativa. O problema é que devíamos estar a apertar o cinto neste momento. Tivemos uma grande

conversa quando voltámos do hospital, em relação ao dinheiro da empresa, dívidas e coisasassim. E concordámos que, até que a empresa de Luke estivesse mais estável, não iríamoscomprar nada que não fosse necessário.

Mas eu queria um colar de quartzo rosa há séculos. E este custa apenas quinze libras, o que éuma pechincha. E mereço uma pequena recompensa por ter ganho a competição deinvestimentos, não é verdade?

Além disso, posso usar o meu novo cartão especial on-line da Indonésia, cuja existência Lukeignora.

– Vou levar um – digo, num impulso, e pego no colar de contas cor-de-rosa iridescentes. Se Luke o encontrar, vou dizer-lhe que se trata de um brinquedo educativo que a mãe tem de

usar ao pescoço. Entrego o cartão Visa, digito o código e ponho o saco com a Vogue na prateleira do carrinho.

Depois meto o meu lindo colar por baixo da manta da Minnie, onde ninguém o pode ver. – Não digas nada ao pai! – murmuro-lhe ao ouvido. Ela não dirá uma palavra. Claro que não sabe falar. Mas, mesmo que soubesse, sei que ficaria de boca fechada. Minnie

e eu já temos uma ligação especial. Saio da loja a empurrar o carrinho e olho para o relógio. Não há pressa em voltar,

especialmente se ainda estiverem a arrumar as coisas. De qualquer modo, em breve a Minniequererá mamar. Vou ao café italiano onde ninguém se incomoda com isso.

– Vamos tomar um cafezinho? – Volto o carrinho naquela direção. – Só tu e eu, Min. Quando passamos pelo antiquário, vislumbro o meu reflexo e não consigo evitar um pequeno

estremecimento. Sou uma mãe a empurrar um carrinho. Eu. Becky Brandon (nascida Bloom),sou mãe.

Entro no café, sento-me a uma mesa e peço um cappuccino descafeinado. Então,devagarinho, tiro a Minnie do carrinho e aninho-lhe a cabeça macia. Desenrolo a manta cor-de-rosa e branca e sinto uma onda de orgulho quando duas senhoras idosas espreitam da mesa aolado e começam a falar uma com a outra.

– Que coisinha linda! E – Que roupa tão elegante! E – Achas que é um verdadeiro casaco de caxemira? Minnie começa a fazer ruídos que significam «Onde está a comida?» e dou-lhe um beijo nas

bochechinhas. Sou a Mãe do Bebé mais Incrível do Mundo. E vamos divertir-nos imenso. Eusei.

BAMBINO King’s Road, 975

Londres SW3 ... para crianças de todas as idades...

Miss Minnie Brandon The Pines Elton Road, 43 Oxshott Surrey 5 de janeiro de 2004 Cara Miss Brandon Parabéns por ter nascido! Nós, da Bambino, estamos felicíssimos por comemorar a sua chegada ao mundo – egostaríamos de a celebrar com uma oferta especial. Portanto, convidamo-la a participar noClube Bambino com um Cartão Dourado do Clube Bambino. Como membro do Cartão Dourado, terá direito a: • tardes de estreia para experimentar os nossos brinquedos (com uma pessoa para tomar contade si!) • um sumo grátis em cada visita • 25% de desconto no primeiro dia de compras com o seu Cartão Dourado • festa de Natal anual para todos os portadores do Cartão Dourado ... e muito mais! A participação não podia ser mais simples. A mãe ou o pai devem preencher o formulárioanexo – e a princesinha Minnie terá o seu primeiro cartão dourado! Estamos ansiosos por receber notícias suas. Atenciosamente, Ally Edwards

Gerente de Marketing

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a Linda Evans, Laura Sherlock e a todas as pessoas maravilhosas daTransworld – um número demasiado grande para poder citá-las a todas, mas às quais me sintoem dívida.

Gostaria de agradecer à minha agente, Araminta Whitley, sempre incrível e apoiando-me esem a qual não conseguiria funcionar. Um gigantesco obrigado a Lizzie Jones, Lucinda Cook,Nicki Kennedy, Sam Edenborough, Valerie Hoskins e Rebecca Watson.

Como sempre, um enorme cumprimento à diretoria e à minha família em expansão: Henry,Freddy, Hugo e Oscar. E, claro, a Mr. Patrick Plokington-Smythe; sem ele estesagradecimentos não estariam completos.

E, por fim, obrigada ao verdadeiro obstetra «imprescindível», Nick Wales, que ajudou noparto do último bebé e do livro – e à «imprescindível» enfermeira da maternidade, MichelleVaughan.