IESAE VIVER E MORRER NAS RUAS Um Estudo Sobre ...

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM EDUCAÇÃO - IESAE VIVER E MORRER NAS RUAS Um Estudo Sobre Meninos e Meninas de Rua do Rio de Janeiro Eliana Rocha Oliveira Rio de Janeiro Janeiro de 1993 i , I

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM EDUCAÇÃO - IESAE

VIVER E MORRER NAS RUAS

Um Estudo Sobre Meninos e Meninas de

Rua do Rio de Janeiro

Eliana Rocha Oliveira

Rio de Janeiro

Janeiro de 1993

i ,

.~

I

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM EDUCAÇÃO -IESAE

VIVER E MORRER NAS RUAS

Um Estudo sobre Meninos e Meninas de Rua do Rio de Janeiro

Dissertação submetida como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação

Eliana Rocha Oliveira

Rio de Janeiro

Janeiro de 1993

\

NOTA

o IESAE \'em exercendo nas últimas duas décadas um rele\'ante

papel no campo da Educação brasileira. A qualidade de sua atuação é

atestada pelo alto nível de produção intelectual dos especialistas no

terreno pedagógico, bem como pela posição a qu~ ascendem muitos

dos mestres aqui formados, na administração e gestão da educação

nacional.

o IESAE consolidou, ao longo desses anos, o perfil de uma casa

onde a busca do conhecimento vincula-se à construçào de uma

sociedade mais justa e democrática.

o IESAE sucumbe aÍlora a uma ló\.!ica tecnicista e formal. baseada ..... '-'

na insensibilidade e no descaso que setores da burocracia nacional

atribuem à Educação, por nào reconhecerem que ela constitui um dos

pilares essenciais de um desem'olvimento social possível para nosso

país.

EPÍGRAFE

RAP DOS MENORES DE RUA

Na porta da escola às crianças

são oferecidas;' com maconha e cocaína

A primeira é de graça, a segunda tem que pagar

mas \'ocê não tem dinheiro

seu pensamento é roubar

No primeiro assalto você leva sorte,

escapa da polícia e também escapa da morte

No segundo assalto as coisas nào vào bem

escapa da polícia mas \'ai para a FUNABEM

No terceiro assalto seu destino está selado

e \'ocê pela polícia acaba sendo baleado.

Uma bala na cabeça e outra no coração , E é mais um fim de um ladrão

E os qUe não morrem continuam a roubar,

para não morrer começam a matar

Por onde você passa todo mundo te critica

e \'ocê anda assustado, com medo da polícia

Ela quando te pega não pensa em te ajudar

te joga contra o mundo e começa a te espancar

Você ali sem ter por onde fugir

Vira saco de pancada pra eles se divertir

Alô minha senhora, por favor escutar

que isso não é tudo que eu tenho prá falar

é do menor abandonado qUe não tem onde morar

suas casas são na rua. suas camas são no chão

e o resto de comida é sua alimentação.

Estes \'ersos são de autoria de Mílton, Paulo Henrique. Maurício.

Júlio César (Belfo!") e Valéria - meninos e menina que habitam as

ruas do Rio.

11

\

RESUMO

RESUMO

Este ~ um estudo sobre meninos e meninas que \'ivem e morrem nas

ruas da cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada com

aproximadamente setenta crianças e adolescentes. compondo dois

grupos separados, e te\'e como objetivo primordial a busca de um

conhecimento compreensi\'l) sobre a vida e a \'isào de lllundo que este

segmento marginalizado da população constrói. tendo como

referencial sócio-cultural condições de llllSerta. ad\ersidade e

exclud~ncia.

Para compor e dar sentido a essa \'isào. foram discutidas as di\'ersas

teorias sobre marginalidade. o quadro legalista e as soluções

clássicas que são repetidamente apresentadas por setores da sociedade

(internamentos elll instituições totais: sub-escolarização e sub-

emprego). Diante do testemunho do fracasso dessas sol uções. fica a

pergunta: por que Se insiste na adoção dessas medidas'!

Concluimos pela çxist~ncia de uma \'iol~ncia l11ultifacetada praticada

pela sociedade e pelo Estado. contra () segmento infantil que se

cOI1\'encionou rotular de meninos e meninas de rua: a \iokncia

física. policialesca e paramilitar: a \iokncia econômica. manifesta

pela impossibilidade de aCesso aos bens materiais e culturais

conquistados pelo conjunto da, sociedade brasileira: e a \'iol~ncia

imposta por uma ideologia autoritária. discriminatt1ria e

se!.!re!.!acionista. OUe exclui i!.!ualmente essas crianl'as do acesso aos ~ ..... ". "- "f

maIs ekmentares direitos da pessoa humana, Com eSSe estudo.

pretendemos contribuir para a consolidação de uma "i são teórica

comprometida com a transformação dessa realidade. na busca de

justiça social e da construção de uma sociedade plural. na qual

possam Se expressar de forma li\Te e criati,'a. os segmentos da

população não-pertencentes às claSSeS econômico e culturalmente

hegemônicas do país,

., -'

ABSTRACT

ABSTRACT

This is a study on ho\\' boys and girls li\'~ and di~ on th~ str~çts of thç

city of Rio de Jan~iro, Brazil. Th~ res~arch was mad~ \Vith about

s~\'çnty childrçn and te~nagers that form~d t\\'o distinct groups. Its

main purpose ",as to g~t a ckar and compr~hçnsi\"C pictur~ of th~ lif~

and th~ \\'orld\'i~\\' of this marginalized social group \\"hos~ basic

ti'am~s of ret~renc~ ar~ compos~d of mis~ry, social a(h~rsity. and

~xc\ud~nc~. To daborate this picturç and to mak~ sÇns~ of it. th~

study discussed se\'~ral th~ori~s of marginality. th~ kgal syst~m

in\'oh'~d. and th~ c\assical solutions that ar~ rep~at~dly propos~d by

th~ society in g~n~ral. such as int~rnm~nt in total institutions.

pr~carious schooling and und~r~mploym~nt. In \'i~\\' of th~ bilurç of

thçs~ solutions it is ask~d: \\'hat are th~ r~asons and moti\'ations for

insisting on th~m·.)

Th~ study conc\udçs that th~r~ is a g~nçraliz~d \'ioknc~ pratic~d upon

this young and hdpkss population group. thç so-call~d street kids: a

policç and para-military \'iokncç: an çconomic \'iolçncç. madç

ob\'ious by thç uttçr impossibility of accÇss to matçrial and cultural

goods a\'aiabk to Brazilian sociçty in gçn~ral: and th~ p~n'asi \'ç

\'iokncç which com~s from an authoritarian. discriminating. and

sçgr~gationist ideology that exc\udes these youngsters from their

minimal rights as human beings. This study is pen'aded by thç

intention to contribute to the consolidation of a thçoretical \'ie\\'

engaged \\'ith the ideal of social chang~. social .i lIsticç. and the

construction of a plural society in which the majority of the Brazilian

population - those that do not belong to the economically anJ

culturally hegemoneous classes - will ha\'e their places and the

chance to express themseh'es freely and creati\'ely,

6

\

SUMÁRIO

7

SUMÁRIO RESUl\t10 ............. ............................ , ..................................................................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ..... I

ABSTRACT ........................................................................................................................ . . ... ~

SUI\l.Á..RIO ................. .

APRESENTAÇAo

.7

10

C APÍTULO I :OS RUMOS DA PESQUISA ..................... " .................................................................... 2~

HISTÓRICO DA PESQUISA ................................................................ . . ..... 32

CONVIVENDO COM OS ~lENINOS E MENINAS FOR.A DA RUA: A EXCURSAo A PAULO DE FRONTIN ..................................... . . .......................... ~O

UMA EXPERIÊNCIA DE PESQUISA-AÇAo ....................... . " ..... :'2

CAPÍTULO 2: UI\.lA SOCIEDADE EI\.I SITUAÇAO INFRACIONAL .......... . . ....... :'6

CAPÍTULO 3: MENINOS E ~lENINAS DE RUA: UI\.IA POPULAÇ.À.O MARGINAL ., .. . .. 66

RE\'ENDO OS CONCEITOS DE ~IARGINALIDADE

MARGINALIDADE E ~IE0íINOS E MENINAS DE RUA ...

MARGINALlZAÇAo ECONÓI\IlCA E CRIMINALIDADE RELAÇÕES HISTÓRICAS ....................... .. .................... .

NOVAS TRIBOS UR.BAi'-:AS '.' ................................... .

CAPÍTULO~: VIVER CRIANÇA NA RL\ ............................ .

OS VÍNCULOS COM A RUA.. ............................................ ..

67

". 7~

. ....... 75

. ..... 80

. ..... 8~

. ..... 85

A CONSTITUI( Ao DA IDENTIDADE......................................... . .. 86

O CONFLITUOSO RELACIONAMENTO COM A FAMÍLIA ORIGINAL.. 98

ESTRATÉGIAS DE SOBRE\'IVÊNCIA ...................................... ..

RELAÇÕES CULTURAIS

A CO~lU~IC:\(..\O ENTRE AS CRIANÇAS DE RUA ...

DISPARIDADE SOCIAL. ~"Ei\INOS DE RUA E CONSUf\10 ..

A \'IDA :\AS INSTITUIÇÕES ..

CAPÍTULO 5: ~10RRER CRIANÇA NA RL\

INTOLER . .\:-\CIA. TORTl'RA E \10RTE ........... .

CRI:\i\(.-\. POBRE U~I.-\. QL'ESTAO DE SEGUR.-\.N(.-\. \:.-\.CIO\.-\.L

A lI\lPRENS.-\. ...

A COI\lL'NIDADE ..

.. .... 117

..................... 128

. ...... 1.~2

. ...... 13~

I ' '7 . . ',

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1:'2

. ............. I:':'

COI\IO .-\.S CRI.-\.NÇAS \'I\'HI SUA SITu.-\.çAo DE ESTIGI\IATIZADOS.... . .. 158

TORTL'RA lhO

.-\. DUR.-\. CONSCIÊ\:CI.-\. D.-\. \lORTE... .. [()~

MORTES ....................... . .. ..... 166

CAPÍTULO 6: ESCOLA E TRABALHO: RESPOSTAS AUTOMÁTICAS DA SOCIEDADE .. 176

I. O TRABALHO ................ . . ..... 178

2. A EDUCA(AO ........................................... . 19.1

CONCLUSÃO .......................................................... . . .............................................................. 205

ANEXO: FRAGtvlENTOS DE ESTÓRIAS DE VIDA

JOVENS MAES E GESTANTES ..................................... .

OUTROS FRAGMENTOS DE VIDA ..

BIBLIOGRAFIA ....................................... .

213

. .. 21~

226

APRESENTAÇÃO

10

APRESENTAÇÃO

Ao iniciar, no segundo semestre de 1991, a pesquisa com um grupo de

meninos c meninas de rua que ''\'i\'e'' na Cinelândia, cU tinha como

objeti\'l) principal comparar as expectativas desse grupo em relação à

escolarização c à possibilidade de ingresso no mercado de trabalho.

formal ou informal com a de um outro grupo de adokscentes tamb~m

oriundo das classes populares, mas com um maior grau de inserção

social. no caso, um grupo de adokscentes que participa\'a à ~poca de

um programa de menores-aprendizes da Cia. Vak do Rio Doce. llmk

cU atuei profissionalmente na área de formação profissional c

treinamento de recursos humanos.

Eu supunha que o grupo de lllel1lnOS c mel1lnas de rua. sendo um

segmento de uma classe trabalhadora pauperizada e socialmente

marginalizada. não busC<l\'a mais a inserção social \'ia escola. dando

soluções alternati\'as a questões econômicas - atra\~s do mercado

informal. c negando \'almes simbólicos das classes hegemônicas.

como a Escola.

Acontece que. desde os meus primeiros encontros com as cnanças.

que Se deram nas escadarias da Câmara Municipal. sempre em

companhia dos educadores do I BI SS, Carlos Bezerra c Sih·a. foi Se

e\'idenciando para mim uma grande distância entre as premissas que

trazia - colocadas por algumas teorias discutidas na etapa anterior do

curso de mestrado c que de forma unúnime apontam \) relllgresso

II

imediato na Escola e no mundo do trabalho como solução para o

problema - e a experi~ncia empírica com qUe cU então me depara\'a,

A fase de pesquisa de campo funcionou para mim como Ulll

\'erdadeiro ritual de iniciação (nas pala\Tas de Roberto Daivlatta).

onde eU precisei "perder" pedagogicamente Ulll grande tempo para

qUe de fato eU pudesse compreender como \'iVel11. ou sobrevivelll

essas crianças. submetidas a uma situação de misáia. \'iol~ncia e

exclud~ncia: como Se dão suas relações nos grupos de crianças que Se

formam e Se criam nas ruas: que relações estabelecem com a

comunidade em geraL e qUe \'isãn de mundo elaboram, Enfim. a

agudeza da realidade por mim testemunhada le\'UU-llle a adiar II

projeto inicial, c partir para essa no\'a \'ertellte. que consistiu elll

analisar alguns aspectos do comportamento manifesto das crianças.

que para mim indicavam um processo de rompimento dos vínculos.

não só SOCiaiS e economlCOS. que só Se estabelecelll pela sua

negati\'idade. mas at~ mesmo os \'Ínculos simbólicos e de

comunicaçào com a sociedade,

Este \'!eS antropológico qUe o trabalho tomou. me k\'t)u então a

buscar no\os referenciais teóricos. principalmente os estudos de

Foucault sobre as formas de poder qUe Se estabelecem nas

experi~ncias institucionais. ai incluindo nào só os degradados

internatos corretin)s. mas at~ mesmo a Escola akm de anúlises

históricas sobre a infância pobre no BrasiL baseadas numa ideologia

higienista e de controle da pobreza,

12

Em resumo, a estrutura final do trabalho ficou assim constituida:

Num primeiro capítulo foram apresentados os rumos qUe a Pesquisa

tomou. Hou\'e dois momentos distintos: um primeiro, que pode ser

caracterizado como pesquisa participante. em que eu interagi com as

crianças do grupo da Cinelândia, participando de sua rotina. das

ati\'idades pedagógicas desel1\'ol\'idas pelos educadores. e mesmo

acompanhando a atuação destes frente às múltiplas ocasiões de

arbitrariedade policial contra os j(wens. Nestas ocasiões pude

aprofundar com os meninos e meninas o significado que estas

experi~ncias adquirem nas suas \'idas. Nesta primeira etapa da

pesqUIsa. eu e\'identemente tamb~m me posiciona\'a frente a estas

experi~ncias, dando um caráter militante ao trabalho. 'Jum segundo

momento. que se deu a partir de dezembro de 199 L eu passei a atuar

na dupla função de educadora e pesquisadora. quando participei como

Super\'isora num projeto de educação integral para meninos e

meninas de rua. de iniciati\'a da Prefeitura do Município. Eu

caracterizaria este segundo momento como Pesquisa-Ação. porque

os jo\'ens - aqui já os dois grupos. da Tijuca e da Cinelúndia -

participaram ati\'amente na proposição das diretrizes do trabalho. Na

etapa de implantação deste projeto. \'i\'enciei na prática o enorme

preconceito que amplos setores da sociedade nutrem contra esse

segmento da população illt~lntil. destinando-lhes \'erdadeiramente um

lugar de desprestígio e submissão. Aqui se ressalta a distância entre

um discurso acadêmico pautado por princípios re\'olucionários de

igualdade e uma prática social di\orciada destes ideais.

No segundo capítulo do trabalho. apresento um resumo e bre\'e

análise do quadro jurídico que baliza a atuação do Estado brasileiro

frente à infância pobre. des\'alida. abandonada, carente e outros

rótulos que sào atribuídos ao segmento infantil no qual Se incluem os

hoje chamados meninos e meninas de rua, No campo da legislação

percebe-se com esperança. o posicionamento de setores da sociedade

ci\'i1 em prol do reconhecimento da criança e do adolescente como

sujeitos de direito e sua condição peculiar de pessoa em

desel1\'ol\'imento, Contudo.

consubstanciado no Estatuto da Criança e do Adolescente ainda nào

Se traduziu em práticas mais humanas e adequadas ao preCeito

constitucional do art, 227, A prútica mostra que toda sorte de

\'iolação aos direitos de cidadania e mais. aos direitos fundamentais

da pessoa humana são cometidas a toda hora contra esta população

pela comunidade em geral e principalmente por representantes dos

poderes públicos seJa a nível Federal. Estadual ou i\hll1icipal.

Constata-se assim uma grande distância entre o país legal e o pais

real.

No Capítulo três é realizada uma breve re\'isão dos conCeitos de

marginalidade. com o intuito de problematizar a categorizaçào da

população infantil estudada como uma população marginal. ou

população marginalizada e possivelmente reduzir imprecisões

Semânticas ou sociológicas no uso destas expressões, O Capítulo -L

intitulado SER CRIANÇA NA RUA. qUe poderia também Se chamar

A VI DA NA RE--\ é onde Se consubstanciam as principais

observações realizadas durante o período da pesquisa, Este capítulo e

1.+

o sçguintç, o capítulo 5, constituçm o qUç chamaria o núclço da

dissçrtação, Nele ÇU mÇ proponho a discorrçr sobrç os principais

aSPçctos comportamçntais, sociais, psicológicos ç outros qUç a

obsçr\'ação me aponta\'a como indicadores dç um çsboço dç

organização social original: de rompimento com \'alorçs tradicionais.

de rçcriação de laços culturais: de çstabelecimçnto dç um código dç

rçgras ç formas próprias dç Pçrcçpção do mundo físico ç social. Eu

dçstacaria alguns tópicos:

aI um pnmÇlro tópico intitula-sç os vínculos com a ."ua, Nçlç ÇU

procuro rçcolocar uma discussão quç mÇ parÇcÇ dçslocada. ç qUç

consistç Çm classificar as cnanças çntrç aquçlas qUç pnssuÇm

família. ç dçsen\'ol\,çriam apÇnas atividades de subsistência nas ruas.

dç outras qUç pçrdúam, por mortç ou abandono dos pais ou

substitutos. a relação familiar. Dç acordo com çsta classificação çstçs

últimos ~ que se çnquadrariam na categoria meninos de rua, Na

\'çrdadç. a cOI1\'i\'ência com os grupos de crianças mostrou qUç a

çxistência ou não dç um reprçsçntante familiar. sçja pai. mãç. a\'ó.

madrinha. irmão mais \'çlllO. çtc. não impçdç qUç Çssa criança

çstabçJçça fortes \'Ínculos com o grupo ç com a cultura da rua, Elçs

próprios não Sç diferçnciam çntrç aquelçs qUç possuem ou não

parçnks \'i\'os. nÇI11 tampouco rompÇm nçcçssariamçnk os \ Ínculos

afçti\os com a família, O qUç parÇcÇ ocolTÇr ~ a idçntificação

prdçrçncial com a vida da rua, Da mesma forma Çssas crianças não

Sç julgam abandonados pelas t~lmÍlias. quando das çxistçl11 (o que ~ a

situação mais freqüentç nos casos estudadosl, Ao contrário SÇus

dçpoimçntos são incisi\'os ao afirmar qUç eJçs ~ qUç abandonam a

1:'

\'ida familiar. Deixando para trás uma estória de \'iol~ncia c misáia.

b) um segundo tópico que cU destacaria \'ersa sobre as famílias de

rua. Neste item as crianças discorrem sobre o estabelecimento de

rdações de parentesco entre si. em substituição às rdaçi)es t~1I11iliares

originais: os fortes laços de solidariedade qUe os mant~m unidos em

meio a tantas ad\'ersidades: o estabdecimento de um \'erdadeiro e

surpreendente código de conduta moral. onde são quebrados

estereótipos sobre prostituição c licenciosidade scxuaL por exemplo:

sobre as uniões preferenciais entre meninos c meninas de rua. a

exist~ncia de uma segunda c at~ mesmo terceira geração de crianças

nascidas c criadas num \'ai-e-\'em entre a rua c instituições de

atendimento ao menor: os grupos adotam ainda \'erdadeiros ritos de

iniciação nos quais pÕem Ú pro\'a os iniciantes. ou seja. cnanças

pobres qUe \'~m engrossar a fikira dos grupos já estabekcidos na rua.

c) Em terceiro lugar arrolaria o tópico sobre estratégias de

sohreviyência. onde as crianças equacionam como podem as

soluções qUe darão para os problemas diário de subsist~ncia: meninos

c menlllas apdam para a mendicância ou para pequenos furtos.

\'isando a satisfação específica de uma necessidade (lazer.

medicamentos. ai imentação. roupas)e para aqu isição regular de

drogas. cujo consumo faz parte integrante de suas \'idas. Lma outra

estrat~gia passa pelo trabalho encomendado c supenisionado por

adultos qUe controlam as áreas onde os jO\'ens Se estabelecem (roubo

ou furto de carteiras. relógios. rádios c toca-fitas. por exemplo). As

crianças precisam dar uma determinada produção em troca de

proteção. ~a extremidade destas estrat~gias são confessadas as

práticas de atos infracionais mais gra\'es. sempre rdacionados ú

submissão de adolescentes ao trúfico de drogas. Aqui ressalta-se a

diferença de atitude daqueles adolescentes que ainda não sucumbiram

ao apelo dos representantes do CrIme organizado. (aliás

organizadíssimo na cidade e estado do Rio de Janeiro) e de outros que

já se submeteram à proteção de criminosos. Esses jO\·ens. que o

mercado de trabalho legal não recruta nem mesmo na categoria de

exércitos de mão-de-obra de reserva, são disputados pelo mercado

ilegal. com requintes t~cnicos de seleção. treinamento e um quadro

de carreiras.

d) um quarto item a destacar aborda a relação dos meninos e

meninas de rua com os valores de uma sociedade sohretudo

consumista. Esta relação deixa-nos entre\'er o desespero e a

frustração que o nã()-enq uadramento ao modelo ideal izado pnwoca

nos jo\'Cns excluídos. que passam a hipen'alorizar a est~tica

dominante. em nome da qual praticam furtos e roubos. inclusi\'e

declarando especializarem-se em produtos de marca. numa tentati\'a

con formi sta e i nfrutí fera de i nte!.!ração \'i sua I e 11101l1entúnea ao

padrão \'alorizado pela sociedade. e) por último. destacaria do

capitulo -+ o item que aborda a vida nas instituições: () dramático

efeito que as repetidas internações em instituiçôes totais pnwoca na

forrnação da personalidade das CrIanças. marcand()-as e

estigmatizando-as de maneira definiti\'a. abrindo assim caminho para

uma \ida ou morte na marginalidade. A explllsi\idade do sistema

institucional foi colocada na ordem do dia com os acontecimentos de

Carandiru e Tatuap~. Sobre estas recentíssimas e sintomáticas

rebeliiies testemunhei () eminente juiz Amaral e Si"a declarar que

li

incendiar esses infames presídios constitui-se num ato bend'icn para a

sociedade.( UERJ,no\' 92)

No Capítulo ), significati\'amente intitulado de Morrel' Criança na

rua, procureI, dolorosamente, condensar alguns dos fatos que

testemunhei, participei ou que me foram relatados pelas CrIanças e

que consistem em irrdutáveis práticas de intolerância social. em

exemplos de fortes manifestações de ideologias neo-facistas: de

tortura física e psicológica e de casos concretos de extermínio de

crianças. atingindo jo\'ens pertencentes ao grupo pesquisado. Julguei

imprescindí\'eI incluir um capítulo sobre essa face sombria da nossa

sociedade, qUe se concretiza. no presente estudo. em prúticas sociais

pautadas pela intolerância. repressão. preconceito racial.

discriminação de classe e de gênero. culminando com a total

des\'alorização da \'ida dessas crianças.

Procurei mostrar de que forma essa \'isão autoritária e preconceituosa

\'ai tomando corpo em di\'ersas instâncias da sociedade (por exemplo:

o discurso das Forças Armadas, dos meios de comunicação de cunho

reaClOnano. que pwmo\'eJ11 campanhas de formação de opinião

contraria à \'ida dos meninos: a atuação de associações de

comerciantes e outras entidades corporati\'as que Se julgam atingidas

pela existência de pivetes) e o espraiamento dessa \'is:lo IH1 senso

comum. rea fi rmado IllU i tí ssi mas \'czes por depoi mentos espontúnells

que a população em geral forneceu durante a pesquisa, Essas

atitudes. somadas às repetidas internações. selam n estigma social que

facilita a açào de extermínio. C,offmam conceitua estigma como um

18

atributo profundamente desabonador, capaz de proscre\'er da \'ida

social o indivíduo ou o grupo que o incorpora, A marca atribuída ao

grupo pode mesmo k\'ú-Io a uma condição de desumanidade,

Cabe ressaltar qUe o clima de medo e insegurança gerado pela ação

de torturadores e exterminadores de origem di\'ersa atormenta a \'ida

dos jovens. k\'ando algumas crianças à obsessão, Os educadores de

rua passam tamb~m a ser ai \'() de ameaças e outras formas de

intimidação,

O relato sobre as mortes de jo\'ens com os quais con\'i\'i no período

de um ano está. já no momento desse relato. defasado, De

no\embro 92 a janeiro 9:; mais dois adokscentes foram \'ítimas de

crimes de extermínio. e () descaso jurídico e a insensibilidade social

por eSSeS acontecimentos indicam com segurança que eSSeS crimeS Se

multiplicarão, Por último registro o grande abatimento psicológico

que atingiu os educadores e os meninos e menlllas com a morte

\'ioknta e suspeita de Ulll ex-pupilo de SeUS programas de educação.

transformado por SeUS máitos pessoais e pelo apoio de SeUS

educadores em mestre de capoeira e exemplo e esperança para outros

jovens, \.'0 Capitulo 6 - ESCOLA E TRABALHO: RESPOSTAS

AL'TO~lÁ TIC AS DA SOCIEDADE - retomo. agora em outras

bases. a problemática original da pesquisa: em ricos depoimentos.

crianças e adolescentes esclarecem suas razões para renegarem a

experi~ncia escolar, L'ma menina de onze anos nos manda um recado

preciso e desconcertante. fruto de suas frustradas tentati\;ls de Se

alfabetizar: "A escola não sabe ensinar ~"

19

A deSpeito de sofisticados debates pedagógicos sobre m~todos e

t~cnicas, os alunos reais da rede pública, dentre eles nossos pretos e

pobres meninos e meninas, denunciam qUe ainda pre,'alecem práticas

anacrônicas tais como, pUXÕeS de orelha, castigos "exatórios frente Ú

turma. e a rotulação dos alunos simplesmente como "burros". akm

de todo um aparato disciplinatório e hierárquico. em completa

dissonância com a "ida das crianças, qUe torna impossível a

perman~ncia delas na instituição escolar. Aliás as crianças não

abandonam a escola. das prd'crencialmente fogem da escola,

Como referencial teórico sobre o papd social da Escola. nada mais

fiz qUe ilustrar a aguda análiSe do Prof. Darcy Ribeiro quando

denuncia o caráter anti-popular da pedagogia brasileira. c1assificando­

a como um eficiente (ainda qUe inexplícito) mecanismo de rejeição

social.

Sen'i-me mais uma \'CZ da análiSe de Foucault sobre o caráter de

dominação e controle de qUe Se re\'estem as instituiçÕes modernas,

Ainda neste capítulo. analiso o repetido fracasso das iniciati\'as de Se

"profissinnalizar" adolescentes qUe estão nas ruas. numa perspecti\a

histórica e cultural do trabalho li\Te no Brasil. AnáliSes como a de

Lúcio Ko\\'arick e \Iaria Carvalho remetem Ú ordem escra\ocrata.

qUe sobrevi"eu ao formalismo da Abolição dos Escravos. n caráter

degradado qUe Se impingiu ao trabalho. \'isto qUe ao trabalhador era

resenada a submissão e a perda da dignidade, Sohre n ensinn

industrial - para onde teoricamente cOl1\'ergJrlam as rdaçl)CS entre

20

Escola c Trabalho - temos a análise de Cdso Suco\\' da Fonseca a

confirmar o estigma de des\'alorizaçào: "O ensino necess<irio ú

indústria tinha sido. inicialmente destinado aos sih'ícolas. depois fora

aplicado aos escra\'os. em seguida aos órtàos c a outros desgraçados".

Os jO\'ens aqui aludidos parecem incorporar culturalmentç este \'alor

negati\'o do trabalho. AI~m desta origem histórica. outras causas

contribuem para a imagem negati\'a do trabalho: são causas

familiares. em primeiro lugar. Seus pais fracassaram na tard~l de

prn\'~-Ios materialmente c sào considerados contra-modelos . em

segundo lugar, as instituições pelas quais as crianças \'agam. impõem

a das a participação em projetos de profissionalização de sUCesso

impossi\d. já que des não poderiam utilizar o conhecimento

adquirido em prol da sua autonomia, porque \'oltam sem nenhum

apoio para as ruas. As instituições expressam claramente qUe o

trabalho faz parte do castigu c mais uma \'çz do controle imposto aos

menoreS. Há ainda a dificuldade de adaptação comportamental ao

trabalho industrial. que requer um grande discipl inall1ento e

organização, hábitos que le\'am tempo para serem interiorizados. Sem

contar os complicadllres impostos por uma economia recessi\'a e

intlacion<iria que atinge de forma dramática toda a população

trabalhadora do pais. \lo capítulo destinado ú COI\CL LSÀO. cU

apenas aponto. de forma pro\'isória. algumas considerações sobre

aspectos abordados nos capítulos precedentes: no úmbito mais

generJco. concluo. como não poderia deixar de ser. baseando-me na

pesquisa c na an<ilise de estudiosos de <ireas diwrsas (jurídica.

pedagógica. social. histórica) que as fórmulas tradicionais de

21

resolução do probkma. fórmulas estas baseadas esquematicamente no

trip~ subescolarizaçào, subemprego c submissào social. gerando os

não-cidadãos) já atingiram SeU mais alto grau de fal~ncia. impondo a

toda sociedade a discussão de mwos caminhos, quiçá mais justos c

humanos. Iniciativas qUe \'isem à solução desta chaga social. de\'em

Se propor não a cornglr o comportamento anômico c transgressor

que em geral Se atribui a esta populaçào. mas a agIr sobre as

condiçôes sociais que propiciam este comportamento.

Concluo ainda pela e\ist~ncia de uma \'iol~ncia lllultiLlcetada

praticada pda sociedade c pdo Estado, contra o segmento qUe Se

cOIl\'encionou rotular de meninos c meninas de rua: a \'iol~ncia física.

policiaksca c paramilitar: a viokncia econômica. manifesta pela

impossibilidade de aCesso aos bens materiais c culturais conquistados

pdo conjunto da sociedade brasileira. c a \'iol~ncia imposta por uma

ideologia autoritária. discriminatória c segregacionista. qUe e\clui

igualmente estes jo\ens do aCesso aos mais elementares direitos da

pessoa humana. Especificamente no âmbito da Pedagogia. a saída

para o impasse poderia ser tentada atra\'~s do desen\ohimento de

metodologias alternati\as. baseadas no conhecimento maIs

aprofundado das questôes culturais. sociais. históricas c psicológicas

que compõem a realidade destas crianças. Algumas e.\peri~ncias neste

Sentido podelll ser pontuadas em algumas das grandeS cidades

brasikiras. onde o fenômeno ~ mais alarmante. Embora ainda não Se

possa configurar um 111l)\'imellto. estas e\peri~ncias lllereCem

acompanhamento acad~mico. \'isando o fortakcimentn de práticas de

educaçào popular de cunho \'erdadeiramente integrati\() .

..,..,

Apresento como um ap~ndice à pesquIsa um Capítulo intitulado

FRAGMENTOS E HISTORIAS DE VIDA. no qual procurei reunir

algumas estórias praticamente "montadas" a partir do rdato de alguns

dos jO\'ens qUe acompanhei durante a pesquisa. dos aspectos

conhecidos por SeUS educadores e por informações quase casualmente

cedidas pdas instituições onde os jlwens permaneceram parte de suas

\'idas, Os dramas jU\'enis aqui relatados, acredito. ajudam a restituir a

dignidade humana que de modo geral negamos a essas tão sofridas

crianças brasileiras,

," _.'

CAPíTULO I:

OS RUMOS DA PESQUISA

OS RUMOS DA PESQUISA

Ao iniciar o curso de r-.:kstrado em Educação no Instituto de Estudos

A \ançados em Educação - IESAE - tomei como área de interesse

Central desses estudos um fenômeno característico da educação

brasileira. qUe consiste na exclusão de milhares de crianças oriundas

das classes populares do aCesso à escola ou da continuidade do

proCeSSO de ensino-aprendizagem \'eiculado pela rede oficial de

ensino no país. Desde o início do curso me pareceu rek\ante

aprofundar conhecimentos. procurar dados, refletir sobre as diwrsas

teorias que Se ocupam em explicar esse fenômeno tão contundente da

realidade educacional brasileira.

Deparei-me com LIma corrente clássica (quase diria oficial. pela

aceitação e difusão nos l)rgãos oficiais de planejamentu, pesquisa e de

execução das políticas educacionais), qUe telll como base

argumentati\'a o fato de qUe as crianças das claSSeS populares

brasileiras não possuem os requisitos m1ll1mOS para o

desen\ol\"imento da aprendizagelll. por sofrerem de uma ~indrnme de

car~ncias sociais. psicológicas. biológicas e culturais. A baixa

qualificação da clientela. em outros termos. responderia pelo fracasso

da instituição, Essa explicação. contudo. suscita muitas perguntas:

Estaria então a maioria da população brasileira incapacitada para

credenciar-se ú cultura letrada'.' A uni\"ersalizaçãll da ai fabetização.

uma realidade em quase todos os paises do mundo ocidental. teria

aqui encontrado SeUS limites'.' Ou estaria a nossa escola despreparada

para lidar com a criança brasileira. com a rt:alidade sócio-t:conômica

da população t:. por um processo histórico de distanciamento e

insensibilidade. teria optado na prática por um idealismo alienígena

e formal.

A Escola. desde o início da Idade Moderna. \'em funcionando como

uma instituição fundamental atrav~s da qual as nações trilham os

rumos do desem'oh'imento. t:m que seus membros assumem a

condição de sujeitos sociais de direitos e de\'eres. principalmente

pela identidade de trabalhador. À Escola preconizada pelos preceitos

da iv'lodt:rnidade. cabe formar este cidadão-trabalhador de acordo COI11

o princípio (formal) da igualdade de oportunidades que sustenta as

sociedadt:s liberais. O que imaginar de uma nação qut: inicia o

proct:sso de exclusão de milhares de crianças das classes pobres da

oportunidade de participação social exatamente por aqut:la instituição

que de\'Cria ser a porta de acesso a participação na "ida nacional'.'

Na ocasião de definição do objeto da pesqlllsa final do curso.

chamou-me a atenção alguns trabalhos que dt:tecta\am o desintert:sst:

de populações faveladas pela escolarização de suas crianças.

Relacionando t:scolarizaçào e trabalho qualificado. inferi que poderia

buscar no crescimento do mt:rcado informal de trabalho mais um

[ltor de desintert:sse de setores das c1asst:s populares pela escola. A

pesquisa que empret:ndi tinha inicialmt:ntt: por objetivo verificar se o

crescimento do mercado informal na cidade do Rio de Janeiro

contribui de maneira signific~1ti\'a para o crescente desinteresse clt:

cnanças ~ Jov~ns oriundos d~ c1ass~s popular~s pdo proc~sso d~

~scolarização.

A minha hipót~s~ básica ~ra. resumidam~nt~, qu~ ~ssas parcdas da

população não inclu~m mais ~m s~u proj~to d~ \'ida a atuação no

m~rcado formal de trabalho. por assumir uma id~Jltidad~ social d~

população marginal. N~st~ cont~:xto. a Escola não mais os atrairia.

porqu~ t~ria d~i:xado de funcionar como um canal d~ ins~rção ou d~

asc~nsào social.

Em outras pala\Tas. ~u ~sta\'a pr~t~ndendo p~squisar um caminho d~

mão-dupla no proc~sso d~ r~cusa à Escola, Mão-dupla porqu~ os

alarmantes índices de e\'asão e rep~t~ncia já d~i:xa\'am claro que a

nossa Escola \'~m d~s~mp~nhando um papel funcional a uma

soci~dade ac~ntuadam~nt~ ~:xclud~nt~, reduzindo as chanc~s d~ um

grand~ contingente de jO\'~ns das class~s popular~s S~ cr~d~nciar~m

ao ç:x~rcício d~ uma cidadania inspirada nos princípios do

lib~ralismo,

Com ~st~ questionam~nto inicial parti para uma p~squisa de campo

que pr~\'ia duas ~tapas: numa prim~ira t:1S~ s~riam entr~\'istados

jovens trabalhador~s oriundos de famílias d~ baixa renda - at~ ,:)

salários mínimos -. qu~ manti\~ss~m \"Ínculos com a Escola:

b) numa s~~unda fas~ d~\'~riam s~r ~ntr~\'istados io\~ns s~m \'Ínculo ~ .

~scolar. atuantes no m~rcado informal d~ trabalho.

27

Pensava aSSIm comparar duas amostras com diferentes graus de

inserção social, para \'erificar em que medida estes jo\'ens \'~m se

afastando dos \'alores propostos pelas camadas hegemônicas da

sociedade - entre eles a Escola e o Trabalho, e que no\'os \'alores e

projetos de classe \'êm se instituindo em substituição àqueles.

A primeira etapa da pesquisa foi realizada nos meses de abril e maio.

com um grupo de 15 menores aprendizes da Cia. Vale do Rio Doce.

Para cumprir a segunda etapa planejei entre\'istar um grupo de

adolescentes que buscam na rua sua sobre\'i\'ência. Fui apresentada a

um grupo de educadores que desel1\'oh'em um projeto de educação

informal com crianças e adolescentes de rua que \'ivem na

Cinelândia. Apresentei-lhes meu projeto de pesquisa e n grupo me

facilitou o acesso aos jovens.

o proceSSl) de aproximação com o grupo de meninos e menll1as de

rua demandou quase dois meses. quando me limitei a acompanhar os

educadores e tra\'ar conhecimento pessoal com os adolescentes.

buscando criar um clima de contiança que fa\'orecesse a fase das

entre\'i stas.

Já neste período surgiram minhas primeiras dificuldades de

desell\'oh'er o trabalho sistemático que havia planejado antes da

minha ida ao campo. Ao viwnciar na prática as precárias condições

em que vi\'em estes jovens. cOITstatei a distância existente entre os

problemas que a \'ida na rua lhes coloca e as formulações acad~l11icas

28

qUç apontam o (rç)ingrçsso imçdiato na Escola como a solução por

çxcçl~ncia para a vida das crianças (k rua. Em outras pala\Tas. com o

início do trabalho dç campo. outras quçstõçs Sç sobrçpusçram

àqudas qUç mÇ lç\'aram a 1I11Cl~H a pçsqUlsa. algumas claramçntç

ôprÇssas Pçlas próprias CrIanças ç outras qUç rçsultaram da

con\'i\'~ncia ç da obsçl'\'ação da \ida cotidiana do grupo.

Na \'çrdadç. çstç pçríodo inicial. qUç tçoricamçntç çsta\a lkstinado à

construção dç uma rdação dç confiança çntrç Pçsquisadora ç

Pçsquisados. fçz brotar uma sériç dç qUçstionamçntos sobrç o mÇu

trabalho. ou. Çm tçrmos técnicos. fui tomada por qUçstionamçntos

mdodológicos. Já nos primçiros çncontros com o grupo dç mçninos ç

l11çninas dç rua. suscitou-mç Ul11 sçntilllçnto dç ina(kquação. dç

lkslocamçnto da tarçfa a qual mÇ propunha. Estç sçntimçnto basça\a­

Sç Çm princípio na pçrcçpção dç qUç os probkmas quç Tllç k\'aram a

procurar o grupo Pçrdçram a rçkdncia inicial quando da constatação

da compkxidadç do quadro social com o qual mÇ lkparçi. ParÇcÇu­

mÇ também qUç o grupl) não atribuia a significação çspçrada a

quçstõçs tais como çscolarização ç trabalho. tantas Çram outras

circunstâncias qUç Sç supçrpunham a çstçs tçmas Çm urg~ncia.

Causou-mÇ ainda cçrta Pçrplçxidadç \'çrificar quç. por

insçnsibilidadç dç largos sçgll1çntos da sociçdadç ç absoluto (kscaso

da classç política brasikira. çstá Sç çstruturando sob nossos olhos

uma rçalidadç com a qual çstamos próximos dç rompÇr os \Ínculos

não só sociais ç çconómiclls. qUç só çxistçm çll1 sua nçgati\idadç.

mas os próprios \ínculos simbólicos dç idçntidadç comum ç até dç

cOlllunicação. E ainda mais. \'çrificar qUç ÇSSç mo\ill1çnto Sç dá com

um sçgmçnto infantil. supostamçntç o pnmÇlro a sa protçgido Çm

qualquçr sociçda(iç ç çll1 qualquçr ci\'ilização,

A aproximação paulatina com o grupo dç mçninos ç mçninas foi mÇ

apontando para a çxist~ncia dç formas próprias Jç rçlaçõçs

socioculturais do grupo Çm si: para um çsboço dç organização social

original: para um procÇsso dç rçcriação dç \alllrÇS ç rçpresentaçõçs

simbólicas, Em decorr~ncia dessas obsçr\'ações. o sçntido da pçsquisa

foi adquirindo um \'i~s antropológico. ainda que em princípio não

claramente explicitado, Por sua \'CZ. () trabalho de campo foi

tomando forma substanti\a. à medida que foi aprofundando-se o

contato direto com o grupo dç meninos e meninas de rua. Isto ~. a

con\'i\'~ncia pessoal e regular com os jO\'ens permitiu-me caminhar

no sentido da compreensão da \'is,ll1 do grupo sobre uma \'ariedade de

aspectos da vida social.

:\ postura mçtodológica adotada frente ao modo de \'ida dos meninos

e meninas ck rua foi. portanto. a de procurar compreender as formas

de interaç,lo social que estabelecem. pda ótica do grupo, ,-\prnximar­

me da imagem que eles formam do lugar que ocupam na sociedade. e

tamb~m analisar quais as implicações que a condição de

marginalidade social pro\'oca na formação da idçntidade psicossocial

destes jO\'ens, A prática da pesquisa. mormente aquelas \'inculadas

ao nÍ\el de estudos de p()s-graduação tem como um de SeUS objeti\'os

primordiais le\'ar o pesquisador a pOSlClOnar-Sç frentç :lS tçorias

çstudadas atra\'~s de cxperi~ncias concretas, ,-\ pçsqulsa SerIa II

estúgio do aprendizado no qual ~ dada a oportunidade dç Se rçalizar

" ... a dial~tica da ~xp~n~nCIa concr~ta com as t~orias apr~ndidas na

Uniwrsidad~" (DaMatta. R~lati"izando. p.146l.

o \'alor da p~sqUlsa no UI1l\'~rso da Educação Popular ,,~m da

contribuição qu~ ~sta possa dar a um proc~sso d~ transformação

social. Num trabalho d~ rdl~xão sobr~ pesqUIsa participant~. Silva

conclui: "Mais qu~ conh~c~r para ~xplicar. a p~squisa pr~t~nd~

compr~~nd~r para s~gUlr aqUI apontando na dir~çào da

transformação da soci~dad~" (Rdl~tindo i1 P~squisa Participant~.

p.(1). Assumindo ainda outros postulados da p~squisa participant~.

como o carát~r político d~ qu~ s~ de\'~ re"~stir a ill\'~stigaçãn

ci~ntífica ~ ainda a postura d~ qu~ no caso da pres~nt~ p~squisa. o

grupo d~ m~ninos ~ meninas d~ rua não são m~ros obj~tos passivos

de conh~cimento. mas su.i~itos qu~ interag~1l1 na formulação da

r~alidad~. consider~i p~rtin~nt~ relatar os asp~ctos mais marcant~s

qu~ pud~ p~rc~b~r como r~sultado d~sta int~ração. Esta dir~ção do

trabalho t~1l1 como int~nção a contraposição a tantas práticas

p~dagógicas qu~ t~m como obj~ti"os formais o at~ndim~nto às

class~s popular~s. mas o t~lz~m atr~l\'~S d~ uma \'~rdad~ira "ill\'asão

cultural" (Fr~ir~. 1979): ill\'asão ~sta qu~. na anúlis~ d~ Sih'a. t~m sua

ong~m " ... na dicotomia ~ntr~ suj~ito ~ obj~tn. \'~rificando qu~ o

il1\'asor r~duz as p~ssoas. no ~spaço im'adido. a simples objeti\'l)s d~

sua ação. ~stab~kcend()-s~ relaçõ~s autoritúrias ~ntr~ ill\astll' ~

im'adidos ao s~ situar~m ~m posiçõ~s antagônicas" (Ibidem. pA3 ).

Tal"cz o ac~sso a algum conh~cim~nto qu~ possamos \'ir a t~r sobr~ o

outro possa diminuir a dist{lIlcia qu~ nos s~para. Tah'cz não. E. n~ss~

31

caso. de"eremos atribuir o desenrolar do dramático proCeSSO social do

qual somos todos atores. como um ato intencional. Os primeiros

meses de pesquisa de campo me descortinaram um extenso uni\'ÇI"so

de qUestões a in"estigar. Ie"ando-me enfim a concentrar os estudos

no grupo de meninos e meninas de rua. postergando as análises

comparativas a outros grupos de adolescentes. inicialmente pre\'istas.

para uma futura oportunidade.

HISTÓRICO DA PESQUISA

o aCesso ao primeiro grupo de meninos e meninas de rua objeto da

pesquisa. Se deu pela intermediação de t~cnicos atuantes no Instituto

Brasileiro de llll)\'ações em Saúde Social (daqui para frente chamado

IBISS I. O IBISS ~ uma organização nào-go\'ernamental qUe atua

regularmente no Rio de Janeiro desde 1989. sob a direção t~cnica do

psiquiatra holand~s Nanko Van Buuren. SeU objeti\"o e o

desel1\'ol\"imento de no\"as formas de cuidado em saúde social com

população infanto-ju\"enil de classes socialmente marginalizadas. O

enfoque de saúde ~ prioritariamente pre\'ellti\o e baseia-se em

pesquisas práticas e teóricas. propondo iniciati\"as a\"ançadas nas

questÕeS relati\'as à saúde social qUe mais afetam a população al\"o.

AI~m do atendimento direto à população int~1Ilto-ju\'enil. o IBISS

atua em \'Úrias instâncias da sociedade. num trabalho político \'oltado

para a transformação do quadro social. usando \'<Irias estrat~gias de

atuação. dentre as quais:

'-' .'-

a) a participação em mo\'imentos regionais ou nacionais de defesa da

criança. do adolescente e de população marginalizadas elll geral:

b) a difusão. entre os grupos atendidos, da história afro-brasileira e a

reafirmação dos \'alores da cultura negra nacional:

c) a formação de lideranças entre os jo\'ens. atra\'~s da prollloção de

encontros sobre a problemática das crianças de rua:

d) a denúncia intransigente dos atos de \'iol~ncia e de extermínio

cometidos contra as crianças e adolescentes e o acompanhamento

jurídico dos casos que ell\'oh'am crianças atendidas pcla Instituição:

e) a prática do lobby junto a \'ereadores. deputados estaduais e

federais sobre projetos de ki de interesse da população infanto-

ju\'enil:

f) a dintlgação no exterior. em fóruns de debate internacional de

defesa dos direitos humanos e das crianças, dos dados Ie\'antados pelo

Instituto relati\'os a situação da população atendida,

Nessa linha o [8ISS ~ respons<Í\el t~cnico pclos projetos EXCOLA e

SEi\IPRE VIVA. de atendimento direto a meninos e meninas de rua

do Rio de Janeiro. qUe a seguir caracterizarei bre\ell1ente. O projeto

EXCOL\. coordenado pcla Assistente Social Sil\'ia Regina dos

Santos e pelo pedagogo Carlos .. -\ntonio Bezerra da Sih'a. atende um

grupo composto por meninos e meninas que "\'i\'em" nas imediações

da Cinelândia e tem como principal objetivo a prevenção ao abuso de

drogas e a divulgação de informações quanto à prevenção de doenças

sexualmente transmissíveis e AIDS. Atuam igualmente na defesa dos

direitos civis e sociais, através de proteção emergencial contra a

violência física e psicológica de que as crianças e adolescentes são

\'ítimas constantes.

o programa SEl\1PRE VIVA. coordenado pelas psicólogas Mara

Cabral Monteiro Pontes e Marly Rose Benzaquem da Gama. atende

especificamente a um grupo de meninas que '\'ive" na zona sul da

cidade e tem como principal objetivo trabalhar questões específicas

da condição feminina enfrentadas cotidianamente pelo grupo, que se

somam às inúmeras discriminações e preconceitos sofridos pelas

crianças que habitam ~lS ruas. O programa \'isa também despertar nas

jovens a consciência de si mesmas e do grupo. e busca fortalecê-Ias

na luta pela superação das condições adversas a que estão submetidas.

Muito além dos objetivos declarados pelos projetos a que estão

afetos. estes educadores tornaram-se, pela dedicação e pela

capacidade de compreenderem os valores. as representações e enfim

a visão de mundo que elaboram os meninos e meninas que atendem.

em incansáveis defensores destes frente às incompreensões de setores

da sociedade. em seus interlocutores e certamente num dos poucos

referenciais positivos que o grupo encontra em suas relações com a

sociedade em geral. Através de um trabalho micro-político, os

educadores buscam t~1cilitar o acesso real ao direito de cidadania e o

resgate dos direitos fundamentais da pessoa humana. direitos estes

sistematicamente negados e ultrajados por amplos setores da nossa

coletividade.

o desenvolvimento do trabalho de pesquIsa levou-me

necessariamente a um estreito contato com os educadores e com a

direção do IBISS, os quais demonstraram sempre uma singular

generosidade em facilitar o presente trabalho. Esta atitude pode ser

percebida através das seguintes situações: inicialmente pela forma

positiva pela qual me introduziram às crianças, o que muito facilitou

o entrosamento com elas: o amplo acesso que me proporcionaram aos

fatos constitutivos da história do trabalho que desem'oh'em na rua: a

complementação de informações colhidas nas entrevistas e a

disponibilidade para discutir as impressões que eu ia elaborando

sobre o grupo e sobre a situação em geraL no decorrer da pesquisa.

Enfim, o clima criado entre pesquisadora e educadores proporcionou

amplos debates sobre aspectos culturais, psicológicos ou políticos que

compõem o quadro estudado. E, embora as observações do presente

trabalho sejam de minha responsabilidade pessoaL muitas refletirão a

síntese destas discussões. Ao iniciar a pesquisa de campo. contava

com um roteiro de entrevistas semi-estruturadas que "erS,l\'a sobre as

seguintes questões:

a) Dados pessoais (nome. idade)

b) Dados sobre a família: nome. idade e profissão dos pais

c) Informações sobre a comunidade de origem

d) Situação escolar (se freqüenta ou já freqüentou escola: em caso

afirmativo qual: qual a última série que cursou, que conceito tem

da escola, por que razão deixou de freqüentar a escola: que

expectativas tem'tinha em relação à escola, etc)

e) Planos quanto ao futuro: que tipo de trabalho gostaria de exercer,

que expectativas tem quanto a possibilidade de melhorar as

condições de vida. etc.

Desse planejamento inicial, contudo, o trabalho tomou características

mais próprias de uma pesquisa qualitativa, em que foram

privilegiadas informações, dados, observações e interpretações que

pudessem contribuir para o entendimento do quadro geral. Portanto,

não foram utilizados instrumentos convencionais como questionários

ou quadros estatísticos. Os fenômenos sociais que se descortinaram

nào poderiam ser captados por estes procedimentos tradicionais.

Dado a característica de entrevista aberta, aplicada no campo e ao

sabor das circunstâncias, o seu resultado não tem uma forma

sistemática. Em uns casos os assuntos tomaram rumos inesperados,

cheios de riqueza etnográfica. em outros emergiam discursos li\'l'es e

espontâneos, em outras mais, respostas padronizadas de meninos e

meninas acostumados ao assédio de entrevistadores.

Os encontros com as crianças foram realizados inicialmente à noite,

nas escadarias da Câmara Municipal - local onde se reúnem no final

do dia. e onde a maioria do grupo pernoita. É também ai. em pleno

centro da cidade que eles se sentem "em casa". onde eles se

reencontram com o grupo - que de dia se dispersa pela cidade -

trocam experi~ncias, di\'idem algum dinheiro ou comida que

conseguiram, aguardam a presença dos educadores, e, por vezes,

recebem o jantar de alguma instituição do go\"erno ou da sociedade

civil. Estes encontros, portanto, eram bastante tumultuados, sujeitos a

interferência de toda ordem, desde conjuntos religiosos tocando e

pregando, até a ida e vinda de pessoas que de alguma forma

interagem com os menores, como \'endedores ambulantes, policiais,

seguranças da Câmara, frequentadores dos bares e transeuntes que ora

param para criticar as crianças, ora se solidarizam com elas.

Contudo, considerei que este era o local mais apropriado para

entre\'istá-Ios, até porque já ficara claro para mim que esta dispersão

é constitutiva do modo de vida dos meninos e meninas de rua, e para

compreendê-los é preciso tomar em consideração o ambiente em que

atuam. Este é um ambiente essencialmente assistemático e dispersi\'o,

que exigiu-me um período de adaptação para que eu compreendesse

os limites geográficos do espaço onde os meninos "ficam", e

compreendesse as muitas idas e \'indas, as interferências ocasionais e

as relações cotidianas. distinguisse quem faz e quem não t:1Z parte do

grupo. Uma das educadoras me definiu inicialmente a rua como

sendo uma casa, só que com paredes imaginárias e com proporções

espaCIaiS próprias.

Além das condições propriamente físicas do ambiente, interferiram

ainda no rumo da pesquisa o fato de que os jl)\'ens freqüentemente

deambulam por pontos da cidade, dificultando a continuidade dos

37

depoimentos. Houve também impedimentos de ordem física causados

por uso de drogas, doenças ou simplesmente fome. Por último,

constatei ainda grande dificuldade por parte dos meninos e meninas

de rua em se referirem ao passado, geralmente marcado por

experiências traumáticas. As perguntas mais elementares já

colocavam graves problemas: o simples fato de perguntar o nome do

entrevistado desencadeou por vezes situações próximas a \'erdadeiras

catarses emocionais.

Por exemplo, numa das entre\'istas foi perguntado a um rapaz, de

aproximadamente 16 anos qual era seu nome, ao que ele respondeu

"Zoiào". O pesquisador insistiu para que ele dissesse o nome

verdadeiro, nào o apelido e ele respondeu que não sabia qual era seu

nome: "Acho que não tenho nome. meu nome ~ esse mesmo. Zoião".

Ele foi então incitado a tentar se lembrar do tempo em que \'ivia em

casa. quando pequeno. de que forma a mãe o chama\'a. Neste ponto o

jlwem aparentemente interrompeu a entrevista e foi se juntar a outros

rapazes que estavam perambulando pela Cinelândia. Após algum

tempo retornou. visivelmente emocionado dizendo que achava que

seu nome era Paulo.

Outra adolescente reagiu com muita agressividade ao ser indagada

sobre o nome dos pais. "Eu não tenho pai. eu não \'OU tàlar, eu

também não quero t~"dar mais nada". No dia seguinte esta mesma

jovem fez um longo depoimento sobre seu passado. e contou que o

pai a expulsou de casa por \'olta dos cinco anos. porque desconfiava

que ela não era filha dele.

Em consequência destes fatos, passei então a incluir depoimentos

espontâneos dos jo\'ens sobre temas referentes à vida na rua, tais

como: violência: formas de interação do grupo entre si: as

representações que eles vêm elaborando em relação às instituições da

sociedade com as quais se relacionam de alguma forma. Esses temas

elucidaram suas visões sobre família e o processo de desvinculação

familiar, sobre a experiência escolar, e sobre os internatos e outras

instituições corretivas e de guarda de menores.

AI~m das entre\'istas e da convivência com o grupo na rua. a pesquisa

incluiu a participação em uma excursão planejada pelos educadores

do IBISS e pelo [BRADES - Instituto Brasileiro de Desenvoh'imento

- no período de oito a onze de outubro de 1991, num acampamento

cedido pela Igreja Metodista, na cidade de Paulo de Frontin. A

excursão teve como principal objetivo discutir com o grupo de

adolescentes aspectos pre\'entivos ao abuso de drogas. A estratégia

utilizada combinava a realização de di\'ersas dinâmicas de grupo com

a prática de esportes.

Durante a excursão pude interagir com o grupo em um ambiente

mais estruturado. onde os jovens esta\'am temporariamente livres das

pressões do ambiente cotidiano da rua. e demonstraram um

comportamento mais descontraído em relação aos encontros iniciais.

Este segundo momento da pesquisa de campo ~ de tal importância

que requer uma breve descrição aqui.

39

CONVIVENDO COM OS MENINOS E MENINAS FORA

DA RUA: A EXCURSÃO A PAULO DE FRONTIN

Eram transcOlTidos quase dois meses que eu estava em trabalho de

campo, acompanhando os educadores do Projeto EXCO LA em suas

atividades cotidianas de atenção aos meninos e meninas da

Cinelândia, quando fui convidada por eles a participar de uma

excursão que o lBISS estava planejando em conjunto com o

[BRADES. Eu deveria cumprir o papel de observadora do encontro,

fazendo anotações sobre o desenrolar das atividades propostas, sobre

a participação das crianças, sobre o funcionamento da infra-estrutura,

e tudo mais que julgasse relevante para uma posterior reflexão e

avaliação dos educadores quanto à consecução dos objetivos

pretendidos.

o com'ite foi recebido com entusiasmo de minha parte, por \'anos

motivos: em primeiro lugar, demonstrava uma aceitação por parte dos

educadores da minha presença e do meu trabalho entre eles. Até então

eu me sentia meio constrangida, porque a aceitação da pesquisa \'eio

acompanhada de algumas críticas ao trabalho acadêmico com grupos

de meninos e meninas de rua. Na avaliação deles muita gente

procura\'a a instituição visando apoio e facil itação para suas

pesqlllsas, que, após concluídas ou não eram apresentadas aos

facilitadores ou, quando apresentadas, demonstravam análises

superficiais e nenhuma contrapartida, nenhuma contribuição para a

prática da educação na rua. Como nesta fase da pesquisa eu me

.+0

~ncontrava entre "chocada" ~ confusa frente às novas situaçõ~s de

vida com as quais iniciava um contato, ainda sem condiçõ~s d~ firmar

um posicionamento sobr~ os acont~cimentos, tom~i o convite como

um ato de generosidade ou como um voto de confiança no meu

trabalho.

Em segundo lugar, porqu~ ~u não havia ainda iniciado ~ntrevistas

formais, gravadas com os jO\'ens. pela minha in~xpai~ncia ~m agir

m~todologicamente no m~io da rua, com tanto barulho. com tantas

interferências com as crianças indo ~ vindo. int~rromp~ndo o assunto.

retornando drogadas. ~ tantas outras situaçõ~s qu~ m~ L'lziam ansiar

por ambi~ntes mais controlá\'~is. A ~xcursão m~ par~cia uma ótima

oportunidade de m~rgulhar d~ \'~Z na fas~ d~ ~ntr~\'istas.

Em terc~iro lugar. já s~ op~ra\'a ~m mim um s~ntim~nto ~xtra­

acadêmico. um des~jo. quase um impulso de ~streitar minhas relações

com as cnanças. A ~xcursão ocorreu no período d~ oito a dez de

outubro de 1991. O local escolhido foi o Acampamento Clay, da

Igreja M~todista de Paulo de Frontin - RJ. qu~ foi c~dido

graciosamente às instituições responsáv~is pela ~xcursã().

O IBISS participou atra\'~s dos projetos EXCOL\ e SE\tPRE

VIVA, com a presença dos r~sponsá\'~is pelos dois projetos. Carlos e

Sih'ia pelo primeiro. ~ as psicólogas Mara ~ Marly pelo segundo.

contando ainda com a presença do dir~tor da instituição. O

IBRADES participou com a pres~nça dos ~ducadores Maurício

Camilo. Nádia Bonfim e Lúcia Xavier de Castro (esta ap~nas na fase

-lI

de planejamento, já que no dia da excursão uma das menmas do

grupo que a Lúcia acompanha teve alta da maternidade onde acabara

de dar à luz seu primeiro filho, aos 13 anos, e a presença da

educadora junto à menina era imperiosa).

Os objetivos da excursão eram: a) proporcionar às crianças e jovens

atendidos pelas instituições acima a oportunidade de recreação

dirigida e de lazer: b )incentivar a prática de esportes, como tática de

pre\'enção ao abuso de drogas: c) desenvolver junto aos meninos e

menmas atividades informati\'as sobre doenças sexualmente

transmissíveis e especialmente a AIDS: d) discutir com os jovens as

questões sociais relativas a meninos e meninas de rua e e)

proporcionar a oportunidade de aprofundamento das relações entre

educadores e educandos.

A saída do Rio de Janeiro estava prevista em torno de meio-dia das

imediações do Museu de Arte Moderna, em õnibus cedido pelo

CBIA, com a presença de crianças e adolescentes atendidos pelos três

projetos de educação. Estima\'a-se o comparecimento de 30 a 35

meninos e meninas. Aí ocorreu a primeira grande surpresa do passeio,

e que acarretou várias consequ~ncias no período da excursão: as

crianças divulgaram o passeio para muitas outras crianças que não

fazem parte dos projetos e na hora do embarque ha\'ia 62 presentes,

á\'idos pelo fim de semana na serra. Frente à situação os educadores

decidiram pela participação de todos os presentes. e o ônibus partiu,

então, superlotado de alegres e barulhentos meninos e meninas.

-+2

Em \'irtude de algum atraso na saída do Rio e das condições precárias

da estrada, agravadas por uma constante chuva, o ônibus chegou ao

Acampamento pouco antes das dezoito horas. Os jovens chegaram

bastante eufóricos e excitados para conhecerem os detalhes do local.

Antes mesmo do jantar muitos foram tomar banho de piscina, a

despeito do clima frio e chu\'oso. Muitas meninas, entretanto,

optaram por antes se apossar dos quartos onde iriam se hospedar. O

diretor do IBISS e mais dois educadores ha\'iam chegado mais cedo

com mantimentos, roupas e outros equipamentos, de sorte que

quando os meninos( as) chegaram. já esta\'a pro\'idenciado o jantar e a

arrumação dos quartos, Por~m. toda a infra-estrutura estava

programada para. no máximo ~5 pessoas. incluindo educadores e

outros adultos presentes.

O jantar foi sen'ido por volta das dezenove horas. e. em \'irtude do

número de crianças ser muito grande. os educadores optaram por

ser"ir os pratos feitos. com as crianças fazendo fila para receberem a

refeição. ao contrário do que esta\'a planejado. que era ser\'ir o jantar

à mesa em grupos pequenos, que propiciasse um clima de maior

aconchego. O comportamento dos participantes na hora da refeiçào

foi de disputa par \'er quem receberia a refeição primeiro. burlando a

fila. criando algumas confusões entre si. entrando de \'olta na fila e

trocando \'árias \'ezes de lugar. para tentar ludibriar os educadores.

misturando-se àqueles que ainda não ha\'iam jantado, Este

comportamento repetiu-se em todas as ref'çições do passeio, e em

todas as ocasiões posteriores que pude obsen'ar meninos e meninas

recebendo algum tipo de refeição, Ao comentar com um pequeno

grupo de jovens que não havia necessidade desta disputa. já qUe ha\'ia

comida suficiente para todos, um menino contra argumentou: "É, tia.

a gente nunca sabe. a torneira pinga pouco prá gente, hoje tem.

amanhã não sei Se tem .. ,"

o resto da noite foi dedicado a atividades livres, ChO\'ia muito e t~1zia

frio, As crianças se dividiram espontaneamente, umas foram para o

salão principal, onde havia uma lareira, mesa de sinuca e vários

sot~ís, outras permaneceram no refeitório, fumando e conversando.

Algumas foram passear na área externa, jogar capoeira: um grupo foi

direto para os quartos. e ainda outras buscaram a companhia dos

educadores. Nada disto ocorreu num clima tão tranqüilo quanto possa

parecer nesta descrição. H,l\'ia a todo momento demandas dos

participantes em relação aos educadores, qUe Se dividiam em muitas e

complicadas tarefas. como tentar uma divisão dos cobertores

existenteS entre o total de crianças, já qUe não ha\'ia número

suficiente para todos. Mais uma vez vanos ddes reagIram

prontamente. fOSSe reclamando .. fOSSe tentando garantir de qualqUer

forma o SeU próprio atendimento. Por fim, chegOU-Se a ullla solução

negociada. pela qual as crianças menores dormiriam em duplas,

garantindo assim o atendimento a todos. Os educadores também

ti\'eram de abrir mão dos SeUS cobertores, e como esta\'a muito frio.

decidiram todos dormir no salão, próximo à lareira.

A hora de dormir foi antecipada pdo frio e cansaço da \·Iagelll. As

\'inte e duas horas quase todos procuraram Se alojar. A partir deste

momento sucederam-se situaçÕes muito ducidati\<ls sobre o

comportamento do grupo. Uma pnmelra observação t! que vanos

adolescentes pediam aos educadores que os acompanhassem do salão

att! a área dos quartos, que era numa outra edificação, distante uns

tantos metros. O caminho era de terra e cortado por um riacho,

coberto por uma pequena ponte de cimento. Naturalmente também

era pouco iluminado, já que era uma noite escura e chuvosa. Daí que

os adolescentes diziam não ter coragem de se dirigir para os quartos

sozinhos. A princípio pensei que fosse uma brincadeira. que a

solicitação era apenas por companhia, mas eles insistiam que não

tinham coragem, que só iriam com a proteção dos educadores. Os

educadores aproveitaram a ocasião para conversar sobre o

sentimento do medo. Num qUIosque a meio caminho entre o

alojamento e o salão. meninos e meninas discorreram sobre o medo

do escuro, de assombração. do barulho das matas e dos bichos da

floresta. Eu me sentia incr~dula. Eram jO\'ens acostumados a

enfrentar toda sorte de perigos urbanos, violência física. prisões e

fome, enfim uma \'ida de adversidades. Não podendo me conter

expressei ao grupo minha surpresa. pois supunha que todos fossem

muito corajosos. Em resposta. eles pacientemente argumentaram que

cada um tem medo do que não conhece. que eu posso ter medo da

rua. mas na rua ~ iluminado. e eles já estão acostumados. mas com

aquele lugar era diferente. nunca haviam estado ali. Pouco mais tarde.

quando a maioria já esta\'a nos alojamentos. surpreendo-me com

alguns rapazes deitados à beira da porta. do lado de fora dos quartos.

num chão úmido. e pegando um resto da chuva. Perguntei a eles

porque não se deitavam nas camas. mais quentinhas e acolhedoras. e

eles responderam que se sentiam mal nos quartos. muito fechados.

45

Nas alocaçõl!s dos jO\'l!ns pelos quartos, dl!ram-sl! algumas

discussões qUI! acabaram I!m agrl!ssão física. HOUVI! aSSIm,

nl!cl!ssidade de intl!rvl!nção dos I!ducadores, qUI! o faziam buscando

um I!quilíbrio I!ntre o grupo. Mais tarde, quando os I!ducadorl!s SI!

dl!sincumbiram de suas tardas I! do atendimento às muitas

solicitaçõl!s do grupo, rl!tornamos ao salão, ondl! prl!tl!ndíamos

colocar colchonl!tl!s I! nos aquecermos próximo à lareira. Eis que lá

já esta\'a uma dúzia de meninos, dormindo juntos fi moda da rua.

Convencl!mos alguns deles de pernoitarem nos quartos. Outros se

recusaram I! dividiram o salão conosco.

Na manhã sl!guinte o dia amanhecl!u totalml!ntl! chuvoso e frio.

Contudo a maioria das crianças acordou cedo. O cat~ da manhã foi

sl!rvido por volta das oito horas e constou de chocolatl! qUl!nte, café e

sanduiche de qUl!ijo, o qUI! muito agradou às crianças. Logo após o

café as atividadl!s SI! dividiram I!ntrl! banho de piscina I! jogos de

futebol. Os educadores pro\'idenciaram um torneio de futebol para o

período. com uniformes para os timl!s doados por clubes dI! futl!bol.

A iniciativa, que teve grande sucesso entre os meninos consistiu em

solicitar jogos de camisa e chuteiras de jogadorl!s famosos. para

incentivaI' os meninos a praticarem esporte. O esporte é um eIxo

central do trabalho de pre\'l!nção ao abuso de drogas. desl!ll\'oh'ido

pelo projl!to EXCOLA. A mdodologia do projl!to não prl!\'~

qualquer tipo de repressão: ao contrário, prl!tl!nde despertar nos

adolescentes a pl!rcepção física dos danos causados pela utilização de

drogas (no grupo da Cinelândia, a principal droga consumida é a cola

de sapateiro). Trabalhando as vantagens de um corpo sadio. através,

por exemplo, da performance no esporte, os menll10s são levados a

refletir sobre a prática do consumo de droga e sobre as possibilidades

de terem algumas recompensas ao desistirem dela. Esta ~ uma

metodologia original, adequada à situação do trabalho na rua, onde

qualquer tentativa de controle se torna inócua. e de base realmente

educativa, porque conta com uma mudança de percepção, com uma

conscientização dos jO\'ens,

As educadoras super\'isionaram o banho de piscina durante a manhã.

tamb~m muito concorrido pelas crianças. que muito raramente têm a

chance de Se comportarem como cOI1\'idados. com todos os direitos

ao lazer. sem preocupação de serem recriminados por algu~m, Ainda

durante a manhã as meninas Se dedicaram a ati\'idades de manicure e

embelczamento em, geral. As educadoras do SEMPRE VIVA

pro\'idenciaram os produtos de perfumaria necessários, como

shampoos. saboneteS. esmalteS. etc. As jovens mãe:s e: as grávidas Se

re\'czaram entre tomar conta das crianças e la\'ar as roupas. sempre

solicitando atenção das educadores. Nessas ocasiÕeS as educadoras

apro\'eita\'am para faZer o le\'antamento das condições pe:ssoais das

meninas. quanto à saúde e aos principais problemas da \'ida na rua.

Com as jO\'ens mães. que eram duas. e com as três grávidas. as

educadoras desen\'oh'iam um criterioso trabalho de informação. de

\'alorização do aleitamento materno e transmissão de informações

sobre os cuidados com a saúde dos bebês. num enfoque realista.

sugerindo ações possi\'eis nas condições de \'ida na rua, Ne:sta ocasião

pude constatar o orgulho que as meninas sentem por se: tornarem

mãeS e o forte desejo que nutrem por cuidar de SeUS filhos e dar a eles

.+7

uma \'ida melhor do que a que elas próprias puderam ter. Ainda que

a gravidez não tenha sido planejada, as meninas declararam que

nutriam o desejo de serem mães, praticamente sugerindo que esta era

uma forma de esperança numa vida melhor, a despeito das condições

objetivas de vida que enfrentavam.

No final deste relato encontram-se alguns depoimentos das meninas

grávidas e jovens mães. A respeito de prevenção da maternidade,

obsen'ei, em conversa com as adolescentes, que elas det~m algumas

informações sobre métodos preventivos, mas apontam razões pelas

quais raramente os utilizam. O máodo mais conhecido é o uso de

preservativo masculino. certamente porque é o que as meninas t~m

mais acesso. seja através do projeto SEMPRE VIVA. seja por

programas de saúde diversos que eventualmente trabalham com

populações de rua. Embora a forma de utilização e a eficácia possí\'el

do uso de preservatin)s na prevenção da gravidez e de doenças

sexualmente transmissíveis e AIDS seja de conhecimento de todas as

adolescentes presentes ao encontro. as grá\'idas e as mães

mencionadas declaram que não o utilizam porque os companheiros

não "gostam de usar camisinha". "porque meu marido diz que aperta

muito ele". "porque a gente se esquece" Uma adolescente. que

conta\'a 15 anos na ocasião da excursão. que nunca engra\'idou.

declarou que gostaria que seu companheiro usasse sempre a

camisinha. "mas \'oc~ sabe como é. né tia',) a gente que é mulher não

pode t:1zer nada. se eles quiser, eles não usam". Quanto ao uso de

pílula anticoncepcional as moças alegaram não utilizar por razões que

\·ão do esquecimento. da não compreensão do uso correto. do preço

48

do medicamento e sobretudo porque estão informadas que o uso

contínuo pode trazer efeitos colaterais. Outros m~todos, corno o uso

do diafragma e do dispositivo intra-uterino também foram citados

pdas meninas, mas nenhuma ddas tinha cogitado o uso de tais

m~todos, porque "são muito difíceis para quem vi\'e na rua".

Duas jo\'ens grávidas rdataram já ter sido consultadas por instituições

que desenvol\'eram ocasionalmente atendimento a população de rua

nos locais onde das vivem, sobre a possibilidade de ligadura de

trompas, a que elas se referiram como "operação para nunca mais ter

filhos". Registre-se que no decorrer da convi\'ência com meninas da

Zona SuL repetiram-se depoimentos que confirmam a proposta de

esterilização de jovens de apenas IJ anos de idade. f1to que requer

in\'estigação cuidadosa. O t:1to das jO\'ens repudiarem esta alternati\'a

~ mais um dado a confirmar a dimensào positi\'a que atribuem a

maternidade. O almoço transcorreu no mesmo clima tenso e agitado

das refeições anteriores. sendo o horário das refeições a única

ocasião em que pude obser\'ar alguma hostilidade das crianças para

COI11 os educadores, A única exceção durante a excursão foi na noite

deste segundo dia. em que o diretor do lBISS comprou algumas

tortas de chocolate para comemorar o aniversário do jo"em Jorge.

que completava neste dia 18 anos de idade ( ver entrevista gn1\'ada

com de em anexo). Nesta ocasião aproveitou-se para cantar parab~ns

para outras crianças que também aniversaria\'am em dias próximos.

As tortas foram ser\'idas no salão principal. pdas próprias crianças.

que nào fizeram a Illesllla confusào das outras refeiçl1es. Esperaram

com calma a sua própria vez, inclusive servindo em primeiro lugar os

49

e-:ducadores. Parece que-: aqui des se-: sentiram "donos da festa". talvez

por esta razão ~ que o comportamento tenha sido tão diferente.

No decorrer deste segundo dia aproveitei para Ü"lzer e-:ntrevistas com

todas as crianças que se dispuseram a responder. Alguns de-:poime-:ntos

foram muito ricos em informações e dados sobre-: o e-:stilo de \'ida do

grupo, e os transcrevo em anexo. As entrevistas gravadas não tiveram

a mesma riqueza das COI1\'ersas informais, onde o assunto fluia mais

naturalme-:nte. Assim. optei por fazer anotações de campo após os

depoimentos. Na segunda noite houve um início de tumulto,

provocado por uma briga de ciúmes entre dois jovens. Um deles. que

fazia o papd de galã do grupo. muito vaidoso. que diz fazer cooper

todas as manhãs no Aterro do Flamengo, teria paquerado uma das

adolescentes do t!rupo (\'er entrevista ~ravada em anexo). Essa ~ ~

menina mantinha nesta ~poca uma relação afeti\'a com outra menina

do grupo. Perce-:bendo o que-: ocorria. a companheira te\'e a reação

típica do macho traído: desafiou o rapaz para uma briga. já armada

com um pedaço de copo que da quebrou. O rapaz não havia

percebido até então o rdacionamento entre as duas meninas, e ficou

muito abalado com a situação, porque a menina "traída" mostrava-se

muito agre-:ssl\'a. ameaçando-o inclusive de morte-:. Embora

aparentando um certo medo. o rapaz não \'iu outra solução que não

aceitar o desafio. Naturalmente que a esta altura \'úrios educadores

inte-:rvieram e. com alguma dificuldade. dissuadiram a me-:nina

ofendida de levar a briga adiante (ver depoimento de Carmem em

anexo). Contudo. o clima ficou tenso entre os jo\'ens e mesmo entre

50

os educadores, que temiam uma retomada do conflito, durante o resto

da noite.

Na hora de dormir, repetiu-se o esquema da noite anterior, quando

alguns jovens insistiram para permanecer no salão, dormindo em

grupo. ao invés de Se dividirem nos quartos do alojamento. Mais uma

vez foi necessário muita argumentação dos educadores para que a

maioria \'oltasse para os alojamentos. Alguns. contudo. insistiram em

permanecer no salão. o qUe acabou sendo consentido.

Na manhã seguinte. último dia previsto da excursão. e mais uma vez

um dia chuvoso e frio. os educadores decidiram antecipar o retorno

ao Rio para logo depois do almoço, evitando assim problemas na

estrada, devido à chuva e à superlotação do ônibus. Logo após o café

da manhã. que transcorreu sem novidades, decidi retornar de carro

com o diretor do lBISS e outros dois educadores.

o convívio próximo com os meninos e meninas e a participação em

momento quase terapêuticos em que eles partilharam conosco seus

sentimentos. dramas, esperanças e desesperanças, me deslocaram

instantaneamente do papel de observadora-pesquisadora para uma

nova situação. fundada num compromisso que se firmara. o de

assumir o caráter politico da ati\'idade cientifica em que se inscreve

esse trabalho. direcionando-o para a defesa dos direitos e da vida

destas crianças.

51

UMA EXPERIÊNCIA DE PESQUISA-AÇÃO

Um terceiro momento da pesquIsa de campo deu-se a partir de

dezembro de 1991 e durante todo o primeiro semestre de 1992 quando

passei a trabalhar na função dupla de educadora e pesquisadora com

um grupo de aproximadamente quarenta meninos e meninas que

\'i\'em na Praça Saens Pena. O trabalho com este grupo foi bastante

sistemático e proporcionou uma convivênciã e um clima de

confiança que me permitiram compartilhar de muitas e importantes

experi~ncias de \'ida das crianças e adolescentes.

O trabalho começou por um convite formulado pela então Diretora

Geral de Ensino da Secretaria Estadual de Educação do Governo do

Estado do Rio de Janeiro, Profa. Nilda Teves Ferreira, para compor

um grupo de educadores formado por técnicos da Secretaria Estadual

de Educação e por representantes de entidades não-governamentais

atuantes em projetos de educação de meninos e meninas de rua. Foi

atribuído a este grupo a responsabilidade pela elaboração de uma

proposta pedagógica específica para o segmento da população

infanto-ju\'enil do Estado do Rio de Janeiro. composto por crianças e

adolescentes que fazem do espaço da rua seu meio de sobre\'iv~ncia.

Durante quase três meses o grupo debateu amplamente as

características desejá\'eis para o projeto, a necessidade de

atendimento multidisciplinar e a urgência de uma política de governo

capaz de possibilitar o resgate da imensa dí\'ida que o conjunto da

sociedade tem para com as crianças brasileiras. especialmente estas

52

oriundas das parcdas mais pauperizadas da classe trabalhadora. Após

a realização de diversos seminários, sob a orientação da Direção

Geral de Ensino da SEE, o grupo de trabalho apresentou uma

Proposta de Educação lntegral para Meninos e" Meninas de Rua, que

recebeu o nome de REPÚBLICA DAS CRIANÇAS.

o Projeto REPÚBLICA adotou como linha metodológica uma ampla

ação pedagógica, de caráter emergencial, conjugando aspectos de

atendimento às necessidades psicossociais dos meninos e meninas de

rua. a um planejamento educati,'o voltado para a conquista da

condição de cidadania de cada criança atendida.

Esta foi uma oportunidade pessoal de reflexão sobre os dados e

observações empíricàs desenvoh'idas no decorrer da pesquisa. A

compreensão que ,'inha então formulando acerca das dificuldades que

as crianças encontravam de serem reconhecidas nas suas demandas

específicas por parte da escola como instituição e de educadores nas

relações cotidianas, levando-as a nào reconhecerem, por outro lado.

qualquer positividade nestas experiências, levou-me - e naturalmente

ao grupo envoh'ido na tarefa - a refletir sobre ati"idades pedagógicas

alternativas visando a uma participação mais efeti"a das crianças no

processo eduéativo e na experiência escolar.

Resumidamente, o projeto REPÚBLICA se propunha a funcionar

como uma ponte entre a rua. a escola e o mundo do trabalho. Os

meninos e meninas que ingressassem no projeto. participariam. na

REPÚBLICA. de um processo de reconstrução da cidadania.

centrado na valorização de suas vivências culturais e psicológicas

que se expressariam atra\'és da utilização de técnicas de arte-educação

e expressão corporal.

o projeto REPÚBLICA, contudo, nào chegou a ser implementado

no âmbito da SEE, por razões alheias à esfera pedagógica. Em

nO\'embro de 1991 a Prefeitura do Rio de Janeiro con\'idou a Profa.

Nilda T eves e equipe a participarem de discussões visando à

implantação da metodologia proposta pelo Projeto REPÚBLICA,

num projeto de atendimento a meninas e meninos de rua

desen\'olvido por órgãos municipais.

Com \'istas à implantação de uma primeira unidade - experimental -

do projeto a ser estabelecida no baiITo da Tijuca, fui cOI1\'idada a

coordenar uma pesquisa. juntamente com os educadores do I BISS.

\'isando ao dimensionamento e caracterização da população de

meninos e meninas de rua que vIvIam na Praça Saens Pena e

adjacências. A pesquisa realizou-se nos meses de I1lwembro e

dezembro de 1991. O resultado da pesquisa e de toda essa experiência

de trabalho foi amplamente incorporado e analisado ao longo deste

estudo.

Na etapa de implantação da primeira unidade do projeto. atuei como

Super\'isora, tendo sob minha responsabilidade o treinamento da

equipe pedagógica e administrativa, bem como a conduçào do

processo de negociação com os futuros residentes sobre critérios de

moradia e regras de funcionamento do equipamento. Esta etapa do

54

trabalho foi muito fátil. pois exigiu a conjugação de conhecimentos

teóricos e experi~ncia empírica . Nas reuniões com os futuros

educadores, ti\'emos a oportunidade de discutir nt)\'as propostas

metodológicas, qUe e\'itassem abordagens tradicionais e

discriminatórias, já então bem conhecidas daqueles qUe lidavam

diretamente com a população al\'o do projeto, Com as crianças e

adolescentes hOU\'e oportunidadeS ímpares de conhecermos o

pensamento do grupo aCerca de instituições e da sociedade em geral.

e as opiniões sobre as formas de atuação qUe eles considera\'am mais

adequadas para as intel"\'enções qUe Se procederiam elll suas \'idas.

Esta experi~ncia constituiu-se numa modalidade de pesquisa-ação,

Thiollent assim define a pesquisa-ação: "É um tipo de pesquisa social

com base empírica que ~ concebida e realizada em estreita associação

com uma ação ou com a resolução de um problema coleti\'o. e no

qual os pesquisadores e os participantes representati\'os da situação

ou problema estão en\'oh'idos de modo cooperati\'o ou participati\'o."

(Thiollent, 1985: 11. apud Sih'a. 1986, p.49l. Acrescentaria ainda que.

Seguindo a tend~ncia de qUe re\'estiu-se a esta modalidade de

pesqll1sa nos pmses latino-americanos, a pesquisa pretendeu

IIlcorporar um engajamento sócio-político a sen'iço das classes

populares. Com a inauguração da primeira unidade da REPlJBLlCA.

optou-se por reformular a linha metodológica pre\'ista. quando então

encerrei minha participação no Projeto.

55

CAPíTULO 2:

UMA SOCIEDADE EM SITUAÇÃO INFRACIONAL

56

UMA SOCIEDADE EM SITUAÇÃO

INFRACIONAL

Por ób\'io que possa parecer, ~ mister reafirmar-se que a expressão

meninos e meninas de rua não se constitue em categoria social

autônoma, ou em unidade de conhecimento. A expressão ~ tão­

somente a designação atual que remete a um segmento da infância

pobre brasileira. Em outras pala \Tas, as crianças que hoje se

encontram \'ivendo nas ruas de grandes centros urbanos não brotaram

espontaneamente, nem ahistoricamente no solo das grandes cidades.

Percebe-se hoje. atra\'~s da imprensa, dos meios de cOlllunicação em

geral. a orquestração de Ulll discurso que encontra solo f~rtil no senso

comum. no qual Se naturaliza o fenômeno social urbano dos

meninos e meninas de rua. Esta naturalização tem gra\'es

consequ~ncias sociais, quais sejam a indiferença pelo drama \'i\'ido

por estas crianças. a culpabilização da vítima, a omissão dos poderes

públicos e, consequ~ncia extrema, a des\'alorizaçãn da \'ida e o

extermínio de crianças. Para que Se reverta esta \'isão insidiosamente

anti-humanista aCerca da \'ida de milhareS de crianças brasileiras.

de\'e-se recolocar a questão dos meninos e meninas de rua numa

dimensão histórica da infúncia pobre no Brasil.

As CrIanças e J0\'ens que hoje habitam as ruas em busca da

sobre\'i\'~ncia são os filhos dos segmentos mais pauperizados da

classe trabalhadora brasileira. A trajetória de SeUs pais e a\'l)s passa

57

indubita\'dmente pdo processo de empobrecimento e pauperização

de parcdas da população, submetidas às consequ~ncias impostas pelo

moddo de acumulação internacional do capital. As crianças de rua

retratam apenas uma face da situação em que se encontra a infância

pobre do país. Uma face certamente hoje mais \'isí\"el. por habitarem

as \'ias públicas e assim tornarem ine\'ita\'dmente de domínio público

a condição de mis~ria de suas \'idas. Mas milhões de outras crianças

brasileiras também são \'itimizadas pela pel"\'ersa distribuição da

renda e da terra. Morrem silenciosamente. por falta das mínimas

condições de saúde e pda impossibilidade de receberem o quantum

mínimo de proteínas necessárias ú manutenção da \'ida. Seus pais.

estes sim. são os filhos abandonados de uma pátria-mãe nada gentil.

Os dados do último relatório do IBGE. 1991. são altamente

re\"eladores deste estado. Este abandono pode ser mensurado

conjunturalmente pela aus~ncia de políticas públicas que garantam à

maioria das famílias brasileiras o acesso a condiçi)es de saúde.

educação. moradia e emprego. Estruturalmente e\"idencia-se o

descaso pda situação das classes populares. pela manutenção de um

modelo econõmico e fundiário que nào deixa entre\'er caminhos para

conquista dos direitos de cidadào.

Remeter o problema às suas OrIgens. no entanto. nào garante uma

solução para ele. porque ~ certo que as dites nacionais ao trilharem

historicamente uma linha política. econõmica e social que exclue do

acesso à riqueza nacional a quase totalidade das classes trabalhadoras.

nào o L'1zem por ignoráncia dos efeitos desta política. \.:Ias esta

remissão pode contribuir para um reposicionamento da sociedade

civil, ou pelo menos de parcelas da sociedade que direta ou

indiretamente se sentem desconfortáveis com a gra\'idade da situação

da população infantil. Outrossim, apenas situar o problema da

int:"incia pobre no quadro da desigualdade entre as classes não é

suficiente para a compreensão das especificidades e singularidades

que o tema comporta. Não é apenas econômica a \'iolência que se

pratica contra essa população: à esta forma fundamental de \'iol~ncia

se somam outras formas específicas de exercício do poder. que se

explicitam na resist~ncia por parte dos meninos e meninas de rua

contra a submissão a um certo padrão social, contra o assujeitamento

e as di\'ersas formas de subjetividade que lhes são impostas.

(Follcault. M, Porque estudar o poder: a questão do sujeito. mimeo).

O Estado brasileiro e a criança pobre Até o fim do século passado

a tutela da infância pobre, des\'alida ou exposta. este\'e a cargo da

Igreja e da caridade pública. Coube até então a estas instâncias da

sociedade nacional a tarefa de assistir aos órfãos. aos miserá\'eis e

aos abandonados. estes geralmente frutos de uniões consideradas

ilícitas.

Apenas a partir do início do século XX o Estado brasileiro chamou a

si a responsabilidade sobre OS desígnios da infância pobre. como

historia Esther Arantes. em estudo sobre o campo social no Brasil:

"As iniciati\'as do Estado neste setor só ganham reledncia a partir do

início do século atual. moti\'ado. entre outros fatores. pela pressão do

mo\'imento médico higienista que se propaga\'a por todos os cantos

do Brasil desde meados do século anterior e pelo crescente

59

movimento de constituição da rede de ensino profissionalizante

separada da assist~ncia à infância pobre." (Arantes: 1989)

Para gerir esta Illwa responsabilidade, a República construiu uma

fundamentação jurídica atrav~s do Código de Menores de 1927. A

partir de então sob a tutela do Estado, as crianças abandonadas e

delinquentes teriam corno destino internar-se em instituições onde

deveriam sobretudo aprender algum ofício, além de serem submetidas

a um disciplinamento padrão.

A tutela do Estado sobre a infância pobre se consolida atra\'~s do

instituto do internamento. que por sua vez tem como pressuposto a

necessidade de proteger o menor abandonado de· uma situação de

patologia social. Instala-se a doutrina da situação irregular. que e

um passo jurídico em direção à penalização e mesmo a

criminalização da pobreza. Nesta direçào. a legislação propna ao

menor não pre,'~ medidas de apoio à família da criança que se

encontra em situação de abandono. destinando a esta criança medidas

de ressocialização que não tem sido historicamente mais que penas

disfarçadas. Especificamente em relação à parcela da população

infantil que termina sua trajetória de pobreza nas ruas. os chamados

meninos e meninas de rua. a análise do Juiz Franciso Amaral

evidencia a inversão do processo legal, que pune em última instância

com a privação da liberdade a criança pobre:

"Se nós olharmos os nossos meninos de rua ,'amos "er ( ... ) que eles

são o atestado eloqüente da fal~ncia de todas as políticas públicas.

60

Em relação a ele falhou a política de saúde: sem dúvida é um menino

com problemas de saúde. Falhou a política de educação:

escolarização inten·ompida. Falhou a política de segurança social, do

trabalho. Todas as outras políticas básicas falharam. Ele está numa

subcidadania e vive no mundo do subemprego, da subhabitação e da

subescolarização ... É o subcidadão." (A Criança e seus Direitos

PUC'FUNABEM, 1990,p.27) Este entendimento da situação

conduziria indubita\'e1mente a uma inversão de papéis: quem deve ir

para o banco dos réus não é a criança, que sofre. sem condição de

defesa. os efeitos dessa conjuntura, mas sim o Estado e a sociedade

brasileira, que se encontram nesta questão, em situação infracional.

A Política Nacional do Bem Estar do Menor, inspirada em princípios

autoritários do regime que se implantara em 1964, consolidou em

amplos setores da sociedade a \'isão de que ao Estado restava a

tentati\'a de assistência. recuperação, e vigilância de menores

abandonados e infratores. numa política expressa de controle social.

Sob esta doutrina generalizou-se a prática do confinamento. mal

dist~lrçado de pena educativa, do tratamento discriminatório e abusi\'o

contra crianças e a destituição do pátrio-poder das famílias que

cometiam o crime de pobreza. Os resultados desta política foram

desastrosos. Os internamentos compulsórios de criança real izam-se

em instituições totais. embrutecedoras e despersonalizadoras. onde

\'Ia de regra as crianças sào desrespeitadas em seus direitos

indi\'iduais. de liberdade. dignidade e respeito. Nas ocasiões de

internamentos são submetidas a práticas de cunho correcional e

repreSSI\'O, a uma rotina despersonalizante e humilhante. Deodato

61

Rivi~ra, após acompanhar a rotina de um ~stabelçcimento d~ guarda

de m~nor~s, constata:

"M~ninos e adol~sc~nt~s ficam ali ~xpostos, sem defesa alguma, ao

cOn\'Í\'io ~ ao contágio de casos graves de d~sequilÍbrio m~ntal,

depra\'açõ~s e pen'ersidades, o que cria situações de alto risco de

degradação pessoal ~ social, capazes por si sós de traumatizar ~

comprometer a normal ~\'olução de um organismo ~ um psiquismo

em formação." (Ri\'i~ra: 1987) Marques assim analisa o fracasso do

sistema tutelar brasileiro:

(o sist~ma) "não dçf~nd~ a soci~dad~, não proteg~ o Jo\'em. não o

recup~ra. ~ncaminha-o à r~incid~ncia e prepara o delinqüente adulto."

(i\:larqu~s: 1976) A doutrina d~ tutela e control~ social da pobreza.

que, como resumimos, \'igora no país com algumas nuanc~s desde o

início do século. \'em fundamentando práticas de confinamento,

opr~ssão e assujeitam~nto de crianças e adolçscent~s. práticas ~stas

qu~ ocupam o ~spaço dúxado pela aus~ncla de medidas

go\'ernam~ntais principalm~nt~ nas áreas d~ saúde e educação,

capazes de garantir o acesso ao status d~ cidadania ao conjunto da

nossa sociedade, As conquistas do Estatuto da Cr'iança e do

Adolescente

Em contraposição à ~sta r~alidad~. a sociedade civil organizada

propôs uma !1lwa política de proteção integral à infância ~

adolesc~ncia, Esta política consubstancia-se no artigo 277 da

62

Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do

Adolescente.

A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n.

8.069, de 13 de julho de 1990) vem implantar no país uma nova

doutrina em relação à infância brasileira. "A base doutrinária sobre a

qual se assenta o novo Estatuto ~ o reconhecimento da criança e do

adolescente como sujeitos de direito e sua condição peculiar de

pessoa em desenvolvimento" (Relatório do projeto de lei n. 5172, de

1990, Senado Federal\. Este no,'o ordenamento jurídico tem como

base a promoção e a defesa dos direitos da criança e do adolescente e

a responsabilidade do Estado e da sociedade civil quanto à proteção e

à garantia de acesso a esses direitos. O Estatuto introduz ainda, como

principais avanços em relação à legislação anterior, o fato de dirigir­

se a toda a população infanto-juvenil do país, ao contrário do Código

de Menores que restringia seu raio de açào à criança em situação

iITegular, e o alargamento dos horizontes de atuação previstos, que

tem por fim modificar os fatos geradores do abandono, a superação

do estado de extrema carência das famílias, atrav~s da adoção de

políticas sociais básicas.

Contudo, passados quatro anos de ,'igência da Illwa Constituição e

dois anos da apnwação do Estatuto, constatamos dolorosamente

durante um ano inteiro de cOI1\'i,'ência com meninos e meninas de rua

do Rio de Janeiro, que empiricamente não se fazem notar os

benefícios conquistados pela nova legislação. E notório o pouco

empenho que os governantes a nÍ\'el federal, estadual e municipal

\'~m dispensando à regularização dos dispositivos pre\'istos na

Constituição e no Estatuto. Neste sentido o próprio autor da lei

atentava para as possíveis consequ~ncias do " ... hiato que ainda separa

entre nós o país legal do país real - hiato que é destinação deste

Estatuto contribuir decisivamente para eliminar." (Senador Ronan

Tito, Justificati\'as sobre o Projeto de Lei, apud Labanca,199I )

No presente trabalho serão apresentados alguns aspectos da vida

cotidiana de meninos e meninas de rua do Rio de Janeiro: como eles

elaboram seus projetos de vida em meio às limitações que lhe são

impostas: que significado atribuem às experiências institucionais a

que sào compulsoriamente submetidos: que \'alores atribuem à Escola

e ao Trabalho, categorias unanimemente evocadas para recuperá-los:

como reagem à \'iolência e ao preconceito sociais de que são ah'o:

como é enfim, construído o seu destino'!

A importância fundamental de estudos e pesqlllsas nessa area é a

possibilidade de se le\'antar as reais condições de \'ida da criança

brasileira. A partir da realidade empírica do drama \'i\'ido por essas

crianças, poderemos construir um conhecimento fecundo. capaz de

orientar ações políticas e inten'enções pedagógicas em consonância

com a Constituição brasileira e com o Estatuto da Criança e do

Adolescente.

Objeti\'amos ainda contribuir para a consolidaçào de uma !1lwa

postura e uma n(wa consci~ncia social sobre a questão dos meninos

e meninas de rua. Entendemos que a sociedade brasileira conseguiu

6-1.

nesta matéria grandes a\'anços na esfera jurídica, mas muito ainda há

que se caminhar na efeti\'açào de novas relações sociais.

65

CAPíTULO 3:

MENINOS E MENINAS DE RUA:

UMA POPULAÇÃO MARGINAL?

66

MENINOS E MENINAS DE RUA:

UMA POPULAÇÃO MARGINAL?

REVENDO OS CONCEITOS DE MARGINALIDADE

Freqüentemente se atribui às populações urbanas de baixa renda, ou

de nenhuma renda. a classificação de populações marginais ou

populações marginalizadas. Os significados atribuídos a estas

expressões, contudo, estão muitas vezes atravessados por

ambigüidades e por conotações acentuadamente negati\'as. A bre\'e

re\'isão dos principais conceitos acadêmicos atribuídos à categoria

marginalidade. que a seguir enumeramos, tem como objeti\'o reduzir

possí\'eis imprecisões semânticas ou sociológicas.

O conceito de marginalidade tem sido objeto de inúmeros estudos. e

\'aria tanto no plano histórico quanto no plano ideológico. Há

correntes que atribuem a existência de grupos marginais a problemas

de integração social de ordens di\'ersas: problemas de personalidade.

desajustamentos culturais. inadaptação a no\'os padrões sociais. etc.

São as chamadas correntes funcionalistas. que tratam do fenômeno da

marginalidade como sendo um problema em si. que pode ser

superado por inter\'enções pontuais. sem se abalar a estrutura social.

Dentre os autores que \'êm estudando as populações marginais da

Am~rica Latina. podemos citar Luiz Pereira e o grupo cepalino.

Aníbal Quijano (197R I. representante da Cepa!. nos dá duas

67

abordagens que resumem as diferentes discussões sobre a

marginalidade: o enfoque individual e o enfoque social. Na \'ertente

individual, as formulações versam sobre a personalidade marginal.

Neste sentido, está na pessoa o problema de ajustamento ou desvio de

comportamento esperado socialmente. Reconhecendo ou nào

influências sociais sobre o indivíduo, esta COITente nào se afasta da

\'isão psicológica do problema.

Sem desconsiderar a questão da personalidade marginal. a \'ertente

social concentra sua atenção no sistema social como tal, e trata mais

dos grupos sociais do que dos indivíduos. A preocupação com esses

grupos acentuou-se a partir do crescimento das aglomerações

urbanas. É evidente que os problemas decorrentes da urbanização

desenfreada acentuam nào só a pobreza. mas afetam diretamente as

condições de \'ida de grandes massas humanas. Hoje colwi\'emos com

elas e não sabemos exatamente nem como nem o que fazer. a fim de

ajudar a incorporá-Ias na sociedade moderna, com um quantum de

exigência de bem estar social. Quijano ( 1978). em suas notas.

agrupa oito postulações básicas sobre a marginalidade como

fenômeno social:

I. A marginalidade como situação ecológica: esta concepção ~ a mais

genáica. e remete a um processo específico de urbanização. ocorrido

notadamente nos países latino-americanos após a Segunda Guerra.

quando grandes massas de migrantes originários do campo passaram

a se instalar na periferia das cidades. atraídas pelas t~1cilidades da \'ida

urbana. O termo marginal tem. portanto. sua primeira acepção

68

referida às condições geográficas de instalação de populações pobres,

à margem das cidades.

2. A marginalidade como cidadania limitada: derivada dos estudos de

Marshall, identifi·ca os limites dos direitos do cidadão. O conceito de

cidadania de Marshall postula que todos os membros de uma nação

dewm gozar dos direitos civis, econômicos, políticos e sociais que a

sociedade houver conquistado num determinado momento histórico.

Nesta acepção qualquer limitação desses direitos provocaria a

situação de marginalidade.

3. A marginalidade como participação na cultura da pobreza. Aqui a

marginalidade ~ tratada como fenômeno psicossocial. como um

sentimento de não-pátencimento e de depend~ncia. Nesse sentido,

t~1lta às pessoas marginais consciência de classe que lhes permita ,'er

seus problemas individuais como problemas de um grupo ou classe.

Para os autores da cultura da pobreza, essa situação engendra uma

sensação de impot~ncia e desamparo.

~. A marginalidade como atraso no desenvolvimento econômico.

Segundo essa visào, com o desenvolvimento econômico pode

coexistir o desem'oh'imento de uma população marginal. Ela consiste

na completa falta de participação de alguns setores da população nos

benefícios materiais e culturais proporcionados pelo desell\'olvimento

econômico da sociedade.

69

5. A marginalidade como falta de participação no processo de

integração social. Os autores que advogam esta tese centralizam sua

atenção na questão da participação como fundamento da eliminação

da marginalidade. São considerados marginais, neste caso. os grupos

que não participam dos bens. ser\'iços e valores da sociedade. e ao

mesmo tempo não t~m nenhuma forma de atuação politica na

sociedade. A solução do problema da marginalidade estaria atrdada à

integração desses grupos nas estruturas organizativas e institucionais.

6. A marginalidade como situação inconsistentemente estruturada na

sociedade. Refere-se à situação de grupos resultantes do processo de

integração e conflito de determinadas sociedades formadas por uma

pluralidade de grupos culturais. Esse enfoque certamente não se

\'erifica no caso em estudo. Com efeito. essa concepção caracteriza.

mais comumente. minorias ~tnicas em contlito com a cultura

hegemônica de um país. Entretanto. no caso de populações jU\'enis

que praticamente se criam nas ruas de grandes cidades. parece estar

se \"erificando um processo de rompimento dos padrões culturais

predominantes nas sociedades industriais. que t~rn por pilar o

desel1\'oh'imento econômico e a criação da riqueza atra\'~s de uma

modalidade específica de trabalho - o trabalho assalariado.

A aus~ncia de um disciplinamento indispensá\'e1 à organização do

trabalho industrial caracteriza o modo de \'ida de crianças e jovens

longe dos \'Ínculos t~1miliares e institucionais. A partir da nào­

con\'i\'~ncia com estes valores sociais. geralmente fOljados desde

70

muito cedo por instituições sociais primordiais como a tàmília e a

escola, tendem a construir uma identidade social própria.

Ao mesmo tempo que introjetam valores e comportamentos típicos

das classes hecemõnicas da sociedade brasileira, desenvolvem --também certos modos de vida que podem ser caracterizados como

uma cultura de resistência.

Oli\'en observa este comportamento dual nas classes pobres

brasikiras:

"Especificamente em relaçào aos pobres poder-se-ia sugenr que

existe um processo dialético pelo qual compartilham simultaneamente

traços de cultura dominante e apresentam elementos nào pertencentes

a esta cultura. Assim, enquanto as classes altas das cidades brasileiras

se identificam prontamente com os valores e costumes dominantes, as

classes baixas desen\'olvem mecanismos adaptativos que lhes

permitem lidar com as relações capitalistas de produção e. ao mesmo

tempo. manter sua identidade."

A população em estudo, no entanto, se distingue desta parcela

genérica que se caracteriza como classe pobre. Os meninos e meninas

de rua \'ão mais longe no rompimento de padrões culturais.

especificamente em relação ao modo de produção capitalista. pois

demonstram uma forte inadaptação ao trabalho industrial. Já em

relação a outros aspectos culturais. pudemos também obsen'ar o

processo dialético de que fala o autor citado.

71

7. A marginalidade como não-pertencimento a um sistema dominante

numa sociedade. Esses grupos podem ser reconhecidos como vivendo

em condições abaixo da classe baixa urbana, ou seja, em condições de

miséria absoluta. Em geral sào grupos originários do fenômeno de

migraçào.

8. Outras variantes. Quijano (1978) aqUI enumera alHumas ::o

formulações sobre o conceito de marginalidade e que, segundo ele. a

identificam com a pobreza, com o isolamento cultural, com a situação

de dominados nas relações de poder das classes dominantes, com

condições de minorias de grupos de classe alta que, no entanto, estão

afastados dos padrões de conduta social vigentes.

Finalizando, o autor ~onclui que, qualquer que seja a concepção que

os estudiosos do problema adotem sobre marginalidade, embora

diferindo em alguns pontos, todos eles concorrem para a questão da

integração e da participação. A partir daí Quijano conceitua, embora

genericamente. marginalidade como "Um modo limitado e

inconsistentemente estruturado de pertencimento e de participação na

estrutura geral da sociedade, seja a respeito de certas áreas dentro de

sua estrutura dominante ou básica. seja a respeito do conj unto destas.

em todos ou em parte de seus setores institucionais." (p.43)

Assim, para o autor a principal característica de um grupo marginal é

a forma de participação que se estabelece entre este e o conjunto da

sociedade.

72

Outro estudioso da questão ~as populações margmals, Lúcio

Kovarick, relaciona a marginalidade à forma de inserção destas

populações a um quadro sócio-econômico específico, dentro de um

sistema produtivo global. Nas palavras do autor, "A marginalidade é

uma forma de articulação estrutural necessária e intrínseca a um

modelo específico de acumulação capitalista qUe se dá no quadro de

uma economia dependente e monopolista" (Kowarick:1977)

Nesta ótica o fenômeno da marginalidade urbana é produzido pelo

modelo econômico adotado notadamente por países latino-

amencanos em razão de uma grande dependência política e

econômica aos países que hoje compôem o Primeiro Mundo. Mais

do que um problema de falta de integração cultural, social e

econômica, a existência de grandes contingentes de populações

marginais é consequência do modelo de capitalismo periférico. que

privilegia um estrito desenvolvimento econômico (baseado em

índices) em detrimento de questões sociais como qualidade de vida

da população, traduzidas pelo acesso a conquistas sociais mínimas

como educação, saúde, moradia, transporte e trabalho.

Esta realidade sócio-econômica está estruturada na sociedade

brasileira. O contingente populacional inserido na categoria de

marginalidade é inegavelmente relevante em termos das relações

sociais que estabelecem com o conjunto da sociedade. a ponto de ser

considerado pelos estudiosos como "pólo marginal" da estrutura

econômica global. (Quijano, 1978)

7" -'

Na opinião desses autores, esse pólo é inerente a um modelo sócio­

econômico como o brasileiro, caracterizado como de capitalismo

periférico e dependente, e com todos os problemas de uma

industrialização baseada em tecnologia externa, portanto com

capacidade limitada de gerar empregos propriamente industriais: com

problemas específicos de crescimento urbano, em consequência de

uma estrutura fundiária retrógrada, que impossibilita qualquer

iniciativa e distribuição de renda, alijando populações inteiras do

acesso à ten'a: e com uma herança escravista e oligárquica que

dificulta a integração de setores populares ao modo de produção

industrial, contribuem para a conformação do quadro crítico de

marginalidade urbana no qual discutiremos a problemática de

crianças de rua.

MARGINALIDADE E MENINOS E MENINAS DE RUA

Rudolf Strahm (1991), um autor alemão que estudou os problemas

dos impasses do desenvolvimento de países do Terceiro Mundo,

concluiu que a única coisa que os países em desenvol \'imento têm

conhecido é o desenvolvimento do subdesem'olvimento. Haveria

exemplo mais ilustrati\'o desta afirmação que a produção social da

categoria meninos e meninas de rua e de seu extermínio sistemático

pelo mesmo processo de degeneração social que engendra as

condições de existência dessa realidade'!

74

Ao descrevermos resumidamente essas diversas concepções de

marginalidade, constatamos que a situaçào de meninos e meninas de

rua enquadra-se em quase todas essas visões teóricas do fenômeno de

marginal idade.

É especialmente em razão da notória caratcterística concentradora,

por um lado, e excludente, por outro, da formação econômica

brasileira, que atinge níveis inimagináveis de perversidade, que o

quadro da população infantil oriunda das classes populares ganha os

contornos atuais.

No caso de populações urbanas, a consequência maIs imediata da

falência do modelo econômico adotado - incapaz de desenvolver

minimamente políticas públicas e de promover a integração de uma

crescente massa marginal - ~ o surgimento de crianças abandonadas à

própria sorte, vivendo por conta própria pelas ruas dos grandes

centros urbanos.

MARGINALIZAÇÃO ECONÔMICA E CRIMINALlDADE:

RELAÇÕES HISTÓRICAS

Na discussào sobre marginalidade e cnanças de rua há ainda um

tópico extremamente contundente a acrescentar: ~ o que conceitua

marginalidade no sentido vulgar de criminal idade. Isto porque, a

população infanto-juvenil que ,'ive nas ruas, longe do alcance de

políticas públicas e cada vez mais distante do convívio da família e

75

de uma possível integração social, está sob forte intluência do

chamado mundo do crime, conforme observado na fase de

entrevistas. Os meninos e meninas de rua são com frequência levados

a optar por padrões de comportamento propostos por toda sorte de

aliciadores, vendo na escalada do crime praticamente sua única

esperança de ascensão social ou, como eles dizem, "de ser alguém na

vida".

Ao serem levados à criminalidade, cujos perigos inerentes só são um

pouco maiores dos perigos que já enfrentam na miséria das ruas,

surge-lhes a oportunidade de participação num grupo social

estruturado e que \'aloriza de alguma forma suas existências,

atribuindo-lhes um IUl.!ar de sujeito social. .... .

O problema da criminal idade infanto-juvenil não é no\'o, e tem sido

relacionado por estudiosos do assunto a sociedades com senos

problemas de desequilíbrio econômico e social. Alberto Passos

Guimarães, em seu clássico estudo sobre as chamadas "classes

perigosas" (1982), verifica uma onda crescente de criminal idade

infantil na Inglaterra do século XIX e atribui este tàto à incapacidade

estrutural daquele país. em sua t~1se inicial de industrialização. de

oferecer empregos nas cidades à crescente população que I1llgra\'a

dos campos.

A ausência de empregos. os baixos salários e a tàlta de condições

sociais de manutenção das famílias oriundas de uma situação rural e

de parte do proletariado urbano. provocou a desagregação de parte

76

das classes populares, que, de um processo de pauperismo extremo,

caminharam para uma saída anti social.

Este fenômeno tomou tal proporção na pnmelra metade do século

XIX que esta população foi classificada de "classe perigosa", que

denominava um expressivo contingente populacional vivendo à

margem da sociedade e adotando padrões anti sociais de conduta.

A participação de crianças e jovens no mundo do crime mobilizou

setores da sociedade inglesa da época. Guimarães localiza na

literatura jurídica a estimativa de 30.000 crianças abandonadas no ano

de 1876, só na cidade de Londres. Já naquela época a situação da

infância era atribuída ao processo de industrialização.

Vale a pena transcrever parte do texto de uma comissão parlamentar

dos idos de 1816-1818 sobre a criminal idade infantil. que para nós

parece de extrema atualidade. visto que a sociedade brasileira, quase

dois séculos mais tarde, vive com grande intensidade problemas

sociais decOlTentes de uma estrutura político-econômica tàlida.

"É muito fácil acusar essas pobres crianças e atribuir sua má conduta

a uma propensão inata para o \'Ício: mas a questão principal é saber se

qualquer ser humano, nas circunstâncias em que muitos deles se

acham, pode razoa\'e1mente proceder de outra maneira: grande

número deles são le\'ados ao roubo como se fosse a um ofício ( ... )

77

outros sào órfãos e outros completamente abandonados por seus pais:

eles só sobrevivem ou mendigando ou furtando, e à noite eles \'ão

abrigar-se em telheiros existentes em qualquer rua, em locais vagos

nos mercados e quando estào presos ninguém vai lhes \'isitar, como

se não possuissem amigos em nenhuma parte: sào alvo de tratamento

severo, freqüentemente condenados ao açoite, prática que concorre a

enrijecer sua posição e a ainda mais degradá-los. Muito pode ser feito

com esses rapazes usando a bondade: raramente alguém os trata sem

arrogância e sem o emprego da força e eles estão de tal modo

habituados a que os tratem como seres sem moral e sem sentimentos

que quando recebem promessas de gestos de bondade, dificilmente

acreditam que elas sejam sinceras."

Mesmo a prática de infanticídio é relatada como um fenômeno

obsel'\'á\'e1 historicamente em condições de miséria social. No ano de

1863 o extermínio de crianças, da mais variada forma, chegou a ser

denunciado pela imprensa inglesa como "o mais comum dos crimes".

Na história brasileira c,'idenciam-se as condições sócio-econômicas

que propiciam o crescimento da criminal idade urbana. Segundo

Guimaràes, pode-se arrolar duas conclusões de ordem geral para este

fenômeno: " primeiro ... a de que quanto maior a concentração

demooráfica tanto mais numerosas tendem a ser as ocorrenClas e '

criminais, quer em números absolutos, quer em números relati\'l)s. E

em se!.!undo lu!.!ar ... a de que a incidência de maiores taxas de ... ...

criminal idade acompanha o agra\'amento das condições de \'ida da

classe trabalhadora. e. em particular das classes mais pobres. que

78

incluem num conceito as populações de baixa renda e as populações

sem nenhuma renda."

Este debate está se acinoando atualmente nas grandes cidades

brasileiras. Há uma grande mobilização por parte de setores das

classes médias e altas que se sentem ameaçadas pelo avanço da

criminal idade e vêem na repressão o único caminho para a paz

social. Este ponto de vista, entretanto, revela a profunda cisão

existente na sociedade já que a paz social que pudesse advir desse

comportamento seria em benefício exclusivo e imediato de uma

mínima parcela da população. De forma perversa e contraditória é

mesmo possível que só tendo atingido níveis tão altos que

praticamente nenhuma pessoa que habita grandes centros urbanos

pode ignorar as degradantes condições de vida da população infanto­

juvenil, ainda que seja por sentir-se pessoalmente ameaçada, é que se

vislumbra hoje possibilidades de reversão deste quadro. Em outras

palavras, só quando chegou a adotar práticas criminosas é que o

drama desta população veio a sensibilizar alguns setores da

sociedade. Enquanto se comportaram como uma geração de

mendigos, como seres humanos descartáveis, removíveis e objeto de

toda sorte de cOITupção assistencialista, poucos olhares se voltaram à

questão, a ponto de se poder classificar essas crianças e jovens que

vi\'em nas lUas como uma população "invisível".

A educadora Ana Vasconcellos, que se dedica a um trabalho com

meninas de rua de Recife. relata a observação de que crianças que

viviam desde muito pequenas como pedintes no centro da cidade

79

compreender porque só eram vistas quando roubavam ...

Pode-se perfeitamente ampliar esta observação para as relações que a

sociedade em geral estabelece com a população de rua.

NOVAS TRIBOS URBANAS?

A partir da presente revisão do conceito de marginalidade, cremos ter

configurado a existência de uma população intànto-juvenil de rua

como uma decOlTência do modelo econômico adotado no país. Mas,

embora reconhecendo a origem econômica do fenômeno, podemos

supor que ele já se revestiu de características mais abrangentes, e

tende para uma situação de enraizamento cultural nas grandes cidades

brasileiras. Talvez pelo longo tempo de descaso oficial pelo drama

das populações miserá\·eis que terminam por habitar estes espaços

urbanos, tempo este suficiente para o estabelecimento de duas

gerações - em alguns casos já estudados, até três gerações de rua - já

se possa reconhecer nos grupos de crianças e adolescentes a formação

de uma minoria cultural. Isto significaria que não bastaria mais, para

reverter o quadro, apenas oferecer oportunidades de inserçào no

processo produtivo e social dominante, porque este grupo se

comporta de acordo com padrões culturais e código de valores

específicos, desenvolvidos ao longo das vivências à margem dos

padrões dominantes.

80

Fdix Guattari, no seu livro Revolução Molecular, enxerga aspectos

positivos e transformadores na constituição de grupos marginais por

ele observados:

"A marginalidade ~ o lugar onde se podem ler os pontos de ruptura

nas estruturas sociais da economia desejante coletiva. Trata-se de

analisar a marginalidade não como uma manifestação

psicopatológica, mas como a parte mais \'iva, a mais móvel das

coletividades humanas nas suas tentativas de encontrar respostas às

mudanças nas estruturas sociais e materiais" (p.46).

Um enfoque desta natureza, que reconheça nestes grupos uma

identidade social própria, capaz de propor, ou indicar saídas originais

para si próprios, poderá abrir caminhos para o atual impasse

verificado na nossa sociedade.

As iniciativas de integração social de menores de rua à sociedade

têm estado a cargo de instâncias corretivas ou assistencialistas.

Pouco se tem feito nas esferas gO\'ernamentais. que, \'ia de regra.

batem na tecla de expansão de vagas na rede pública de ensino e em

tentativas de profissionalização a curto prazo, como resposta quase

automática aos desafios da marginalidade infanto-ju\'enil.

É de se notar a pressa com que as autoridades. ao proporem qualquer

açào de recuperação de menores, passam a informar à sociedade em

geral que a medida prevê a profissionalizaçào imediata destes jo\'ens.

Embora a quase totalidade de experiências oticiais nào deixem

81

dúvidas quanto ao fracasso da Pedagogia do Trabalho Imediato como

metodologia de integração social, o trabalho, geralmente

desqualificado socialmente e des\'alorizado economicamente continua

sendo o único caminho vislumbrado. Pretendemos desenvolver este

argumento mais demoradamente quando enfocarmos questões

relativas ao Trabalho. Ao mesmo tempo, procuraremos refletir, com

base nas informações fornecidas por meninos e meninas de rua, sobre

a causa do freqüente fracasso de iniciativas de ressocialização atra\'~s

da escola e do trabalho.

As propostas de ressocialização \'Ia de regra apenas camuflam

atitudes de enquadramento das camadas marginais a um suposto

destino de classe. atrav~s da aceitação de uma condição social.

cultural e principalm~nte econômica de segunda categoria, Em sã

consciência nào se haverá de propor a uma I1lwa geração de

brasileiros que se "integrem" a uma sociedade em franca crise de

valores ~ticos. Alberto Passos Guimaràes ( 1982) lembra-nos uma \'ez

mais que nas sociedades capitalistas "a moral dominante ~ a moral

das classes possuidoras" e neste caso os representantes brasileiros

deste segmento deixam muito a desejar como exemplos a serem

seguidos. Guimarães desenvoh'e a seguinte análise sobre as classes

pauperizadas que adotam estrat~gias de vida não sancionadas

socialmente: "Uma obsen'ação maIS atenta das ocorrências

criminosas nos leva à cOIl\'icção de que elas não se geram. nem se

mO\'em num modo anômico. sem obediência a nenhuma direçào

normativa, a nenhum conjunto de regras ou valores, Ao contrário. o

banditismo urbano aparece e se expande como forma organizada de

82

um comportamento social divergente ou discordante (evito o termo

desviante) da ordem e do comportamento social estabelecido

segundo regras, conceitos e valores ditados pelas classes que detém o

poder." (As Classes Perigosas, Graal, 1982, p.l88)

Esta observação é fa11amente comprovada aqUi para o caso dos

meninos e meninas de rua na cidade do Rio de Janeiro.

83

CAPíTULO 4:

VIVE.R CRIANÇA NA RUA

84

VIVER CRIANÇA NA RUA

OS VíNCULOS COM A RUA

Os estudos mais recentes que analisam crianças e adolescentes que se

encontram nas ruas os distingue em dois grupos: . . .

o pnmeIro e

caracterizado por cnanças que possuem família e desenvolvem

alguma atividade econômica na rua, mas retornam regularmente para

o convívio familiar: o segundo é constituído por crianças e

adolescentes que, possuindo ou não família, permanecem na rua e lá

estabelecem formas próprias de relação social, de trabalho e de

sobrevivência. Quanto a esta distinção, ambos os grupos pesquisados

(Cinelândia e Tijuça) se caracterizam, na maioria dos seus

componentes, pelo rompimento dos vínculos familiares: os demais

apresentam sinais de estarem em franco processo de desvinculação

familiar. Todos têm nas ruas seu maior referencial de vida.

Romper com a família não pode ser considerado um gesto formal,

nem iIl'evogável. O rompimento se dá quando as crianças não mais

se submetem à autoridade e à proteção familiar, nem habitam

regulmmente a casa dos pais ou substitutos. Isto nào significa,

entretanto, que as crianças e adolescentes percam de forma definitiva

o contato com a família ou nào mais existam laços afetivos entre os

seus membros (quando ela existe naturalmente). O rompimento

enunciado é sobretudo em relação à convivência regular e às regras

de compOltamento familiares.

85

A CONSTITUiÇÃO DA IDENTIDADE

Grande parte dos jovens se identifica por apelidos e alguns têm muita

dificuldade em se lembrar de seus nomes. Outros simplesmente

inventam um nome para substituir o nome familiar, que não

conhecem ou não valorizam. Esta prática se distancia dos padrões

civis que balizam as relações numa sociedade contratual, e que

instituem a categoria de indivíduo como um de seus pilares.

Na sociedade moderna, formalmente o processo de constituição da

pessoa em indivíduo inicia-se com o registro civil de nascimento e é

reforçado desde a infância pelas instituições da família e da escola.

Porém, o segmento da população que este grupo integra tem sido

historicamente alijado dos direitos civis. À semelhança de outros

brasileiros, como, por exemplo, largos segmentos da população rural,

estes meninos e meninas "inexistem" civilmente, e podem levar uma

vida inteira sem estabelecer relações formais com a sociedade civil.

Perversamente muitos deles só são reconhecidos oficialmente como

cidadãos ou quando são tlagrados em atos infracionais (cidadãos de

deveres, não de direitos), ou quando morrem. Surpreendentemente.

esta é uma realidade compartilhada por um contingente de 38%, de

brasileiros que, segundo pesquisa do IBGE realizada em 1990, não

possuem sequer registro civil de nascimento. Se comparada esta

realidade com o processo relativo à formação para a cidadania que se

oferece às crianças de classes média e alta, constataremos uma grande

distância. Muitos hábitos familiares e práticas pré-escolares

86

reforçam a imp0l1ância do reconhecimento do nome como fator

fundamental da formação da identidade pessoal.

Já nos grupos de rua estudados; receber um apelido funciona como

um ritual de iniciação, uma forma de aceitação do novo membro pelo

grupo. No caso dos meninos, este apelido na maior parte das vezes

refere-se a algum traço caricatural da aparência física (beiçola,

mãozinha, neguinho, careca, etc). Esta prática, que não foge a uma

tradição brasileira popular, sugere uma facilidade de identificação

entre os integrantes de grupos diferentes, já que as cnanças

freqüentam vários pontos de encontro na cidade, em decolTência do

que alguns não estabelecem relação pessoal com todos os demais

membros. Quanto às meninas, os nomes que adotam geralmente têm

conotação positiva. .

o novo nome é normalmente valorizado pela cliança, sugerindo uma

f0l1e relação com o grupo da rua. Muitas vezes a criança não se refere

mais ao nome familiar, ou incorpora o novo a outros que já possue.

Exemplos: Nilda (Joselaine)

Aninha (Lucilene)

Chinesa (Valdicéia)

Adriana (Rosemary)

Fora do contexto da cultura dominante, poderia se supor, como

hipótese, que o processo de formação de identidade desses jovens se

dá por etapas, ritual mente reconhecidas. como acontece entre

87

algumas culturas indígenas, onde em diferentes fases da vida o índio

adota novos e diferentes nomes para, simbolicamente, representar

um novo status social ou etário adquirido.

Há, neste sentido, o exemplo de uma moça de 16 anos que, ao dar à

luz um bebê, numa maternidade para onde fora encaminhada por

suas educadoras, informou no seu registro de entrada no hospital um

nome adotado na rua, diferente do que consta na certidão de

nascimento, e este nome constou da certidão do bebê como sendo o

nome da mãe.

Ao ser interpelada pelas educadoras sobre o motivo que a levou a

declarar um nome que não era o seu, ela argumentou que achava o

outro nome mais bonito, e que não podia imaginar que isso fosse

complicar o registro de nascimento da própria filha. A jovem em

questão só teve conhecimento do nome dos pais e data de seu

nascimento aos quinze anos, pelo esforço das educadoras em

recuperá-lo numa das muitas instituições de abrigo de menores pelas

quais ela havia passado. Fenômeno semelhante ocorre em relação à

idade. Por não conhecerem as datas de nascimento, pela inexistência

ou por ignorarem o paradeiro do registro de nascimento, eles

declaram uma idade presumível. Grande parte das crianças nào sabe

quando faz aniversário e ignora ainda informações precisas com

respeito ao nome dos pais e parentes, local de nascimento e outros

dados.

88

Por ironia, essa condição pré-civil acaba por facilitar algumas

estratégias de sobrevivência. Em relação à idade, todos os

adolescentes temem a passagem à maiOlidade, quando nào terão nem

mesmo a proteção formal da legislação, e tentam se beneficiar de

possuirem geralmente aspecto franzino para permanecerem na

condição de menores. A ausência de documentação, os múltiplos

nomes, a incerteza da idade funcionam como uma válvula de escape

aos mecanismos de controle estabelecidos pelas instituições sociais

que, via de regra, tendem a criminalizar o comportamento dessa

população.

Eis alguns exemplos registrados em entrevistas:

a)Multiplicidade de nomes:

Entrev.: Qual o seu nome?

Menino: Valdenir, não, Valdenir não. Meu nome é Marcelo ...

b )Ince11eza Quanto ª idade:

Entrev.: Quantos anos você tem'!

Menino: Tenho onze anos.

Entrev.: Você sabe o dia que você nasceu, a data do seu aniversário'!

Menino: Faço aniversário dia 27 de setembro

Entrev.: De que ano?

Menino: Isso eu nào sei ...

Entrev.: E como você sabe que tem onze anos'?

89

Menino: Eu não tenho onze anos, eu tenho quinze anos. Eu nasci em

1975, não é'?

Entre\'.: Então você fez 16 anos em setembro ..

Menino: Não, não, eu ainda vou fazer quinze anos ...

Durante a fase de entrevistas sobressairam-se alguns depoimentos

onde meninos e meninas deixam perceber que valorizam o fato de

possuirem documentação pessoal, e que isso os diferencia daqueles

que ainda nào possuem os documentos. Um menino de doze anos, ao

dar entrevista, não titubeou em aconselhar o companheiro a inventar

os dados pessoais que não conhecia, apenas para não parecer em

desvantagem .

Entre\': Qual o nome ~o seu pai e da sua mãe?

Menino: Meu pai eu não sei não, meu pai já mOlTeu ... Minha mãe é

Maria Emília Cabreiro de Albuquerque.

Segundo menino: o nome do pai dele é ...

Terceiro menino: fala qualquer nome, cara ... ~. '. I.. ,

Menino: Ah é Joni, é Jonas ...

Entrev.: (para o terceiro menino) Você também falou qualquer nome

para o seu pai?

Terceiro menino: Eu não, tia, eu tenho até prova, mas quando não

sabe, fala qualquer nome ...

Há também o exemplo de um rapaz que havia completado dezoito

anos recentemente e estava muito preocupado com a sua situação na

rua, porque não se dispunha a trabalhar para os traficantes da área.

90

Ele tentava conseguir um atendimento em instituições para menores,

com o at1ifício de utilizar a ceI1idão de nascimento do irmão, que

tinha de fato dezessete anos. Como o irmão havia conseguido um

trabalho com carteira assinada, no qual precIsara comprovar

maioridade, os dois trocaram de documentação e um passou a

responder pelo nome do outro.

Comportamentos desta natureza, que superficialmente poderiam ser

classificados como uma indesejável burla às regras sociais, ou mesmo

à generalização do "jeitinho" para se fugir à severidade da lei,

encontra uma interessante análise no pensamento de Calligaris: "A

tradição do jeitinho é um epifenômeno da marginalidade. Mas a sua

nobreza tem que ser considerada numa estrutura onde a origem da lei

aparece como uma prepotência escravizante e o ato nas margens é o

lugar de onde se espera uma dignidade do sujeito. Deste ponto de

vista, o jeitinho nào parece ser o símbolo de um crônico

subdesenvolvimento simbólico: ele é também uma esperança"

( Hello Brasil, Ed. Escuta, 199I.p.113)

No exemplo aqui citado, o comp0l1amento do jovem foi motivado

exatamente pelo desejo de "ganhar" mais um ano, durante o qual ele

buscava desesperadamente conseguir mudar o curso de sua vida. A

iminência da condição de maioridade provoca uma grande apreensão

entre os adolescentes que vivem na rua, e eles resumem as opções de

vida que os aguarda: "virar bandido, mendigo ou defunto". A

relação com o tempo e com o espaço

91

Com a sucessào das entrevistas, pude verificar que os jovens nunca

respondiam com precisào a perguntas que incluiam contagem de

tempo. Por exemplo: há quanto tempo você saiu de casa? Quanto

tempo você estudou nesta escola? Com que frequência você visita sua

mãe'?, são sempre respondidas com um "não sei", ou com uma

expressão do tipo "faz muito, muito tempo".

Mesmo em relação a situações no presente foi possível verificar essa

dificuldade. Por exemplo, na excursào já mencionada, que tinha

duração prevista de três dias, e as crianças sabiam disso, pois haviam

participado do planejamento, houve uma reclamação generalizada na

hora de retornar, pois eles afirmavam que ainda nào havia passado o

tempo combinado.

o tempo parece ser tomado numa perspectiva diversa da adotada por

um padrão burguês a que estão submetidas desde cedo as crianças de

classes sociais mais favorecidas, incutida fundamentalmente através

da escola. Sem horários a cumprir, sem a rigidez de uma rotina pré­

estabelecida, as crianças quantificam o tempo de acordo com fatores

que interferem e modificam sua vida cotidiana.

A dimensão psicológica do tempo torna-se maiS evidente nas

observações dos meninos e meninas. As experiências agradáveis

"duram" pouco, como nas observações sobre a excursão, já algumas

horas passadas na delegacia, à espera da liberdade, são contabilizadas

como "muitos dias, muito tempo".

92

Em relação à contagem do tempo, pode-se distinguir algumas

categorias contrastantes que são relevantes para o gmpo: tempo de

menoridade versus tempo de maioridade; tempo de frio versus tempo

de calor; a noite versus o dia; tempo de internamento (ou prisão, ou

clausura) em relação ao tempo de liberdade.

Os gmpos de jovens que são atendidos por projetos de educadores de

ma vão aos poucos introjetando a contagem do tempo, pela

identificação de eventos sociais como Natal, Carnaval, etc e pela

repetição de eventos nos locais onde "ficam". "Puxa, tio, já passou

um tempão que eu estou na Cinelândia, se lembra da outra feira do

livro que teve aqui?" A contagem das horas, uma dificil percepção

para quem passa todo o tempo na rua, é percebida com a mudança

dos plantões dos policiais da área. "Deve ser cedo, porque aquele

guarda ainda não chegou ... "

Uma interessante observação é a referência que o gmpo faz ao tempo

de vida na rua. Quando se formula genericamente a pergunta "há

quanto tempo você vive na rua?" geralmente as crianças informam o

que elas supõem quantificar o último período de retorno às ruas.

Exemplifica esta observação a primeira entrevista realizada com uma

jovem que é "cria de instituições", ou ~eja, jamais conheceu pai, mãe

ou substitutos, e passou a infância "no colégio interno".

Entre\': Qual a sua idade?

Menina: Dezoito

Entrev.: Como é o nome de sua mãe'?

93

Menina: Não tenho, aliás, não conheço

Entrev: E pai, você conheceu'!

Menina: Não. Eu nào conheço ninguém da minha família.

Entrev: Quem você conheceu, quem te criava'?

Menina: Minha madrinha

Entrev.: Há quanto tempo você está na rua'!

Menina: Cinco, seis meses.

Entrev: Você morava com sua madrinha'?

Menina: Não, morava nos colégio interno, fugi ...

Amiga: A madrinha só ia lá no colégio, visitar ela.

Com a convivência maIS prolongada com esta memna, pude

recompor os fatos. Na verdade da "vive" em Copacabana há muitos

anos, pelo menos cinco, de acordo com o programa SEMPRE VIVA.

o período de "cinco, seis meses" a que ela se referiu na primeira

entrevista relacionava-se ao último período em que a adolescente

esteve internada.

Um menino também respondeu com a mesma lógica. Ele deixou a

casa dos pais há pelo menos dois anos, mas respondeu que está na rua

"mais de um mês". Ao recapitular com ele o tempo passado na rua,

compreendi que ele se referia a mais r~cente fuga que empreendeu de

uma instituiçào de f.!uarda de crianças. '-' .

As respostas sugerem que a permanência na rua parece ter um caráter

provisório na percepção das crianças. Basta utilizar na pergunta

verbos que conotem maior grau de sedentarismo, como morar, viver,

94

que eles passam a se referir à casa dos pais ou a comunidade de

origem. Para a vida na rua eles selecionam utilizar as expressões

ficar, dormir ou estar, mesmo que em alguns casos estejam se

referindo há períodos de até dez anos de permanência na rua.

Menino: Eu moro no Recreio, mas eu fugi, tem dois anos.

Entrev: E agora, você mora qui na praça?

Menino: Não, eu fico lá no Leme

Visto que o tempo é o principal regulador da vida moderna, ou como

resume a máxima: "tempo é dinheiro", a flagrante diferença no trato

da questão temporal aCaITeta importantes consequências nas relações

que se tentam estabelecer entre os meninos e meninas de rua e

instituições diversas da sociedade ..

o Espaço A relação que os meninos e meninas têm com o espaço da

rua, como local de vida e residência, é marcada pela forte influência

da dispersividade, característica de um ambiente público e aberto. O

condicionamento que o espaço da rua impõe às relações que lá se

estabelecem, forçou-me a um verdadeiro estágio de adaptação para

que pudesse atuar com alguma naturalidade em tal ambiente, onde

tudo acontece ao mesmo tempo e .milhares de interferências e

imprevistos modificam a toda hora o rumo dos acontecimentos. Atuar

nesta imprevisibilidade eXIge celtamente um disciplinamento

específico. Rapidamente se percebe a utilização de gestos largos, voz

alta e dura e formas discursivas adequadas às constantes

interferências ao redor.

95

Esta constatação, com referência a imp0l1ância do espaço no

comportamento dos meninos e meninas, auxiliou-me, meses depois

de iniciada a pesquisa, a compreender a dificuldade das crianças em

atuar em espaços fechados. Esta experiência se deu nos primeiros

momentos de convivência na República, quando educadores ficavam

perplexos com o comportamento das crianças. Logo no primeiro dia

de visita à futura residência alguns meninos mais novos, entre dez,

doze anos, simplesmente não conseguiam respeitar os limites

impostos pelas paredes e janelas. Dois deles entraram pela porta de

uma sala e imediatamente sairam pela janela disposta à frente, que

estava, diga-se de passagem, no segundo andar do prédio. Mais tarde,

avaliando o local, um dos meninos explicou que "achei muito

ape11ado, pensei que tinha mais (espaço) depois da janela".

Já durante a excursão a Paulo de Frontin pude observar a dificuldade

das clianças em se "confinarem" nos quartos. Nesta segunda

expenenCla confirmou-se esta tendência: muitas crianças não

conseguem adaptar-se rapidamente aos pequenos cômodos,

acostumadas que estão a dormir ao ar livre.

Outro condicionamento em relaçào a ambientes fechados sugere um

temor já instalado nos meninos e meninas quanto ao aprisionamento.

Um menino de dez anos demonstrou· pavor em tomar banho num

banheiro fechado, provavelmente porque se sentia indefeso ou

guardava alguma lembrança de castigo físico. Um outro menino, de

treze anos, muito esperançoso com a nova residência, fez uma

observaçào crítica de beleza metafórica: "Tia, aqui é muito bom, tem

96

capoeira, tem tudo, mas parece uma gaiola". Tal observação sugere

duas realidades vivenciadas: uma, os limites físicos, a

compàrtimentação, a divisão de atividades, enfim, o inevitável

disciplinamento concretizado pelas paredes; e a outra, um

pressentimento do controle, do assujeitamento que acompanha as

experiências institucionais.

Na verdade as crianças de lUa vIvem um drama ao optarem pela

proteção de um abrigo, com as vantagens de terem garantidas uma

noite de sono tranqüilo e uma boa refeição: elas são levadas a abrirem

mão da Liberdade, de todos os aspectos lúdicos e da autonomia que

são próprios do espaço da rua . É muito complexa e contraditória a

vida das crianças no espaço da rua. Em princípio a rua se lhes

afigura como uma s~lvação, como um espaço de liberdade e como

alternativa a uma vida sempre miserável e. marcada pela violência.

Mas a rua é também o último espaço que lhes resta, e neste sentido,

não pode ser tomada como uma alternativa, seria talvez mais próprio

entendê-la como uma falta de alternativa.

Se a opção pela vida na lUa significa muitas vezes um ato de saúde

(expressão utilizada pelo programa SEMPRE VIVA, ao analisar as

razões pelas quais as crianças deixam suas casas), por representar a

busca de uma vida melhor, .é igualmente verdade que,

metaforicamente, este espaço aos poucos se transforma num labirinto,

onde as crianças e adolescentes não conseguem entrever a saída.

97

Em relação à antinomia espaço público versus espaço privado,

opera-se uma curiosa inversão. A rua, espaço público por excelência,

funciona para o grupo como um local onde os membros

individualmente conseguem manter alguma privacidade quanto aos

hábitos e comportamentos (a despeito do controle policial, que de

toda forma não desce a essas minúcias). Já nas instituições,

alternativa de espaço privado que o grupo conhece, a vida íntima

torna-se de conhecimento geral. Os hábitos, a sexualidade, a relação

com as drogas, tudo é conhecido, esquadrinhado e controlado.

o CONFLITUOSO RELACIONAMENTO COM A

FAMíLIA ORIGINAL

É indiscutível que a situação de mlsena econômica é fator

determinante no processo de rompimento dos laços familiares. Mas o

motivo imediato alegado pelos entrevistados, que os leva a opção

final de viver na rua, são os conflitos familiares.

A quase totalidade dos depoimentos das crianças aponta motivos de

ordem familiar para o abandono de seus lares. Os depoimentos

relativos à vida familiar desenham uma situação de violência física,

abusos sexuais (meninas), ausência d,e ap0l1e afetivo, dificuldades no

relacionamento entre enteados e companheiros (as) do pai ou da mãe

e cobrança excessiva por parte de responsáveis substitutos dos pais.

Abaixo reproduzo alguns depoimentos ilustrativos:

98

Menino, 14 anos

Menino: "Eu vim prá rua porque o meu pai colocou fogo no neném

da minha irmã, eu fiquei com medo, não quero mais ir lá não."

Entrev.: "E porque seu pai fez isso, você sabe?"

Menino: "Foi porque ela se perdeu, e ele não queria aquele neném."

Menino, 12 anos

"Eu não quis ficar na minha casa, não. Minha mãe é nervosa, ela

jogou água fervendo em mim" (mostrando as pernas e pés bastante

marcados por queimadura).

Menino, 16 anos

Menino: "Eu não posso ir lá em casa não. Meu padrasto não gosta de

mim. Ele já mandou nego me dar tiro. Eu tenho duas balas alojadas,

no braço e na costela" (mostrando as marcas).

Entrev.: "E sua mãe sabe que seu padrasto fez isto'?"

Menino: "Eu falei prá ela, eu contei, mas ela não quis acreditar. Só

depois, quando os vizinhos contaram também é que ela acreditou.

Agora eu não vou mais lá não, se não ele vai me matar. Ele diz que

eu não presto, que só dou preocupação prá minha mãe."

Entrev.: "E você tem pai?"

Menino: "Tenho, mas ele é peligoso, ele trabalha no movimento (de

tráfico de drogas) lá em Ricardo de Albuquerque. Ele não pode tomar

conta de filho ... "

99

Menina, 16 anos

Menina: "Eu gostava da minha casa. Eu gosto da minha vó, mas aí

meu avô me estrupou quando eu tinha onze anos. Eu não pude mais

morar lá. Eu tive que sair."

Entrev.: "E sua mãe'?"

Menina: "Ela ficou lá, tia, ela não ia ter onde morar..."

Meninas de 11 e 13 anos, irmãs, vivem juntas na rua

Menina: "Nós não podemos viver na nossa casa. Meu pai é muito

ruim. Ele tem ódio da gente."

Com referência ao caso destas irmãs, presenciei certa vez uma delas

ter uma fOlte reação emocional (suores,' tremedeira, etc) apenas

porque confundiu a voz de um educador com a do pai.

Quase todos os depoimentos enumeram estórias de todo tipo de

violência, física e psicológica. Contudo, as crianças declaram sentir

falta dos irmãos que ficaram em casa e principalmente nutrem um

sentimento de proteção em relação às màes.

Menina, 18 anos

"Minha mãe nào teve culpa, ela não tinha como cnar nos. Ela foi

trabalhar de doméstica, a patroa não deixou nós morar lá. De vez em

100 8 •• UOTECA

.... AcAo GETÚLIO .......

quando eu vou lá em Madureira, perto do serviço dela e espero ela

passar, aí eu dou algum dinheiro prá ela."

Menino, 16 anos

"Eu não vou mentir, tia, eu roubo mesmo, mas como ~ qUe eU ia viver

na rua'! O que eu ganho eU levo lá em Austin, prá minha màe e pros

meus irmãos pequenos, que vi\'em com ela. Só não dou se o marido

dela está lá. Uma parte eu tiro prá mim, prá comprar roupa, qualquer

coisa."

Menino, 15 anos

"Eu penSei em terminar o curso da São Martinho e fazer um curso lá

em Caxias (curso de' pedreiro), perto da casa da minha mãe. Aí ia

fazer um quarto lá perto da minha mãe, prá mim morar lá."

l\lenina 16 anos (mãe de dois filhos, nascidos na rua)

"Eu \'ivo aqui na rua, mas nunca parei de pensar na minha mãe. As

\'ezes no Dia das Mães eU compro at~ um presente prá ela. Mas nunca

ti\'e coragem de ir lá le\'ar prá ela. Não sei se ela ia me receber."

l\1enino~ 12 anos, na rua com o irmão de 14 anos

Menino: "Antigamente eu fugia de casa porque meu pai batia muito

na gente, ainda bate ... "

101

Entrev.: Ainda bate'.' Quando você vai em casa'.'

Menino: "Quase sempre eu \'OU na minha casa, mas tem \'ezes que a

gente leva dinheiro prá minha mãe."

Além da violência física cometida pelos próprios pais e familiares, a

situaçào da criança no âmbito doméstico se agrava em decorrência de

problemas causados pela dificuldade de relacionamento entre as

crianças e os pais substitutos. Muitas crianças sào órfãs de um ou dos

dois genitores, e sào entregues à guarda de avós, tios, irmãos mais

velhos, madrinhas, padrinhos. Estes substitutos geralmente se sentem

sacrificados pelo encargo extra de criar estas crianças. e tornam-se

\'iolentos ou responsabilizam-nas pelo sacrifício com o qual têm de

arcar. Mais contundente ainda é a incompatibilidade dos meninos e

meninas com o companheiro da màe ou companheira do pai. No caso

das meninas, geralmente é impossível a convivência com padrastos

assim que entram na adolescência, pelos constantes assédios sexuais.

o caso de uma menma. de 14 anos, considerada particularmente

bonita. estava preocupando os educadores. porque despertava o

interesse de policiais e transeuntes. A moça era recém-chegada ao

grupo de rua. quando a entre\'istei. Ela contou que te\'e de deixar a

casa da família, porque a mãe passou a viwr com um companheiro,

que a assediava com propostas sexuais. A menina contou para a mãe

que era vítima de intimidações. mas a reação da mãe não a

beneficiou: a mãe mostrou-se infeliz com a situação. mas disse à filha

que a única solução era a menina deixar de \'i\'er com eles. porque.

caso contrário, toda a família (havia irmãos mais no\,os) poderia

102

perder a moradia. A menIna, então, foi VIver na rua, onde a mãe

freqüentemente a \'isitava. Meses mais tarde a mãe conseguiu para a

filha um barraco que fora desocupado na fa\'e1a em que moravam,

porque o proprietário fora expulso de lá. Para não perder a posse da

propriedade, o proprietário negociou com a mãe da menina que esta

poderia \'i\'er lá, enquanto a situação nào se resolvesse. A menina

obte\'e assim uma solução bastante satisfatória, ainda que prO\'isória:

conseguira independência e abrigo. Várias vezes a reencontrei junto

ao grupo. com'idando amigas da rua a irem pernoitar na sua casa.

Já no caso dos menInOs. os no\'os companheiros das mães quase

sempre rechaçam os filhos que não são deles. e a submissão das

mulheres geralmente as faz optar por manter os companheiros e

preterir os filhos. Em menor proporção entre as crianças estudadas,

há casos de adoção que se deram a partir das instituições onde

\·i\'iam. e que resultaram na fuga das crianças porque estas se diziam

tratadas como empregadas da fàmília.

É significati\"o notar que os meninos e meninas sempre relacionam a

situação específica de que se sentem \'ítimas com a situação sócio­

econômica da família. As informações aqui relatadas são unilaterais,

já que a pesquisa não pretendeu estudar os grupos familiares. mas

sim conhecer as representações do grupo sobre a situação familiar.

É preciso contextualizar a problemática da criança na esfera familiar.

Já ~ clássica a remissào do abandono de crianças pobres a uma

suposta desestrutllração familiar. Esta análise mecanicista de\'ohe

103

para as famílias vitimizadas por um desequilíbrio social a

responsabilidade pela situação, como analisa Arantes: "Não raro o

poder técnico também se engana, ao remeter a irregularidade jurídica

da criança a uma abstrata "família desestruturada". É porque pensa as

famílias populares a partir do modelo da família burguesa que aquela

aparece como tal. Aquilo que se torna visível, pela atuação técnica,

como "desestruturação" (crianças na rua ou separadas em diferentes

lares e internatos; màes solteiras ou distante geograficamente dos seus

companheiros; pais ou màes desempregados ou internados em

hospitais psiquiátricos ou encarcerados em presídios I é, muitas vezes,

a própria condição de existência e sobrevivência, senào da família

enquanto um grupo, pelo menos de seus membros individualmente."

(Documento pue n.7, p.421

Problematizando ainda esta questão, considero relevante tecer

algumas observações acerca de um possível paralelismo entre os

problemas familiares apontados por menínos e meninas de rua na

presente pesquisa e alguns dados relativos à situação t:'lOliliar de

adolescentes de classe média do Rio de Janeiro.

No primeIro semestre de 1991 atuei como pesquisadora do

Laboratório do Imaginário Social em Educação. da Faculdade de

Educação da UFRJ. A pesquisa tinha como objeti\'o captar as

representações que alunos do segundo grau da rede pública e privada

da cidade do Rio de Janeiro formulavam sobre cidadania.

104

As entrevistas, semi-estruturadas, introduziam perguntas iniciais

sobre a situação familiar do entre\'istado, com o duplo objetivo de

caracterizar o grupo e de pesquisar as representações sobre a

categoria autoridade. Os depoimentos dos adolescentes apontaram

para uma situação familiar conflituosa, embora não havendo registro

de violência física, citando principalmente a dificuldade de

relacionamento entre enteados e companheiros( as) do pai ou da mãe,

devido a predominância de uniões desfeitas seguidas de

reorganizações familiares por parte de um ou dos dois cônjuges. As

recomposições t:lmiliares, de certa forma, impõem aos jl)\'ens a

conviv~ncia com padrastos e madrastas e com os filhos de outras

uniões, com'ivência esta, de acordo com os adolescentes, pouco

harmoniosa. Aqui tamb~m os meninos e meninas de classe m~dia

insinuam a exist~nciade uma instabilidade emocional. deri\'ada ainda

de prolongadas aus~ncias do pai e da mãe, em virtude de

compromissos profissionais. Alguns jl)\'ens, inclusive, expressaram

em seus relatos que os pais incentivam a autonomia dos filhos em

\'irtude de não disporem de tempo para estarem a seu lado.

Numa inevitável comparação entre as duas situações, nào serIa

impróprio deduzir que elas se assemelham na percepção que a

criança fOIja de seu lugar no grupo familiar. Contudo. e\"idencia-se a

diferença no encaminhamento de soluções que cada grupo social

encontra para os con tl itos fam i I iares, e esta di ferença ~ obviamente

em razão da condição de classe de cada grupo. Um fator a contribuir

para a c1assificaçào da família pobre como desestruturada ~ a

\'isibilidade que adquire sua \'ida privada em razào da necessidade de

10:'

recOlTência a instâncias diversas de assistência. Quanto aos conflitos

vividos pelas famílias de classe m~dia. Arantes conclui:

"Nào se postulará a desordem do lado da família burguesa. Seus

problemas se resoh'erào de outra forma e numa outra rede" (idem. p.

5~).

Há ainda algumas interpretações da esfera da Psicologia que se

ocupam do quadro familiar como o lugar de laços sociais básicos. e

das relações simbólicas que se estabelecem a partir da imagem do

pai. Estas análises contribuem para situar as relações familiares sob

condições de miséria. Ver. por exemplo. o que fala Calligaris a

respeito:

"Há outros casos: por exemplo. o de uma extrema miséria familiar. na

qual o pai não ~ reconhecivel socialmente como cidadão. Será então

impossí\'el que ele \'alha simbolicamente para o filho. e só poderá

\·aler. realmente como simples genitor ou d~spota. Em um tal quadro.

onde os laços sejam reais. eles nào poderiam garantir ao sujeito um

\'alor simbólico - nem que sejam os valores mínimos de filiação e

cidadania. De repente a filiação e a cidadania de\eriam ser

conquistadas pelo sujeito graças aos seus atos. E estes atos seriam

necessariamente margll1als. fora da lei. pOIS eles estariam

respondendo a uma ausência de lei simbólica. procurando encontrá­

la. suscitá-Ia. de uma certa forma fundá-Ia." (Calligaris. 1991. p.lll)

Dada essa rápida comparação entre comportamentos de adolescentes

106

de famílias de classes sociais tão distintas, verifica-se um aspecto de

congruência que requer um maior aprofundamento.

A fàmília tem sido denunciada como a maior responsável por atos de

\'iolência contra a criança. Os registros documentados no SOS

Criança'ABRAPIA. do Rio de Janeiro, e no relatório da Secretaria do

Menor do Estado de São Paulo referente ao mês de Setembro de

1992, publicado no Jornal do Brasil, edição de 8/9'92, são

demonstrativos dessa \'isão. No caso em estudo, em que as fàmílias

podem ser classificadas como as primeiras vítimas de uma longa

cadeia de violência social, não nos ajuda remeter a elas a

responsabilidade sobre o destino de suas CrIanças. nem tampouco

atribuir-lhes, a não ser com o auxílio especializado de órgãos

assistenciais, a tarefa de reabilitar psicológica e socialmente as

crianças \'ítimas de violência.

Recente pesquisa realizada nos Estados Unidos, com crianças \'ítimas

de violência sexual. conclui que estas crianças lograram sucesso na

superação de problemas psicológicos e de conduta resultantes de

experiências traumáticas. na medida em que a comunidade se

posicionou claramente sobre a situação da criança. "Como afirmam

os pesquisadores. nos casos em que a lei se fez presente sem

ambigüidades, as crianças parecem ter se recuperado mais facilmente.

Por outro lado, os casos que tiveram as denúncias questionadas. que a

lei não se mostrou tão a fa\'l)r. o desenrolar dos tratamentos foi mais

lento. A lei, nesta questão. não parece ter apenas o aspecto jurídico.

mas tamb~m, o de exercer a função paterna." (Gold\'ag: 1991. p. 10)

107

A atuação do aparato jurídico ou assistencial contra os atos de

violência expressa, em grande medida, de acordo com as conclusões

do estudo, de que forma a comunidade se posiciona frente à questão,

e este posicionamento \'ai determinar em grande medida as chances

das crianças superarem as experiências traumáticas e retomarem um

desenvolvimento sadio.

As famílias de rua

Na rua, distantes do com'lvlO familiar, as cnanças enfrentam um

ambiente de franca hostilidade por parte das pessoas com as quais

com'ivem (os transeuntes, os comerciantes, a polícia). Neste ambiente

eles estreitam os laços afetivos entre si, buscando mútua proteção e

solidariedade. É praticamente impossível a uma criança. ou mesmo a

um adolescente, sobre\'i\'er sozinho em circunstâncias tão inóspitas.

Os grupos de rua permitem a garantia da sobre\'ivência física e

principalmente a cOl1\'ivência social.

Moura (1991), em estudo sobre grupos familiares de classes

populares. tece a seguinte análise: "Viver o grupo é sentir a

reciprocidade do outro. É ter presente a interdependência das ações. É

ter consciência da \'inculaçào ao outro ( ... ). O grupo representa a

experiência de solidariedade. a \'ivência da experiência comum"

(Moura. 1991, p. ).

108

Os meninos e meninas que permanecem ligados a um grupo por um

determinado período de tempo, autodenominam-se famílias de rua e

recriam relações afetivas e sociais em bases originais.

Essas famílias se constituem por papéis diferenciados, os mais fortes

protegem os mais fracos, os mais antigos ensinam as regras de

sobrevivências para aqueles recém-chegados à rua. Há rituais

precisos de iniciação no grupo e na rua que se constituem em

verdadeira provação para o novato, que pode inclusive vir a ser

"reprovado" pelos demais. São atitudes constitutivas deste

comportamento: provas sexuaIS - os menInos novatos são testados

sexualmente pelos outros, "para ver se vai virar mulher": provas

quanto à coragem e esperteza: o novato tem que ficar à frente do

roubo e torna-se responsável durante um período por adquirir a cola

ou outra droga. Neste período de iniciação os novatos sofrem até

restrições de acesso aos educadores. Enquanto não forem

incorporados ao grupo. os antigos se interpõem na relação entre os

novos e os educadores. Os Jovens mais débeis são

indeterminadamente expostos a situações vexatórias. ou vivem

"rodando" - termo que significa ser pego pela polícia - mas se

resistem por certo tempo. ou desenvolvem laços afetivos com outros

jovens, acabam sendo protegidos pelo grupo. Estas provações com os

novatos se repetem, segundo relato dos jovens, nas instituições de

guarda de menor.

109

Passado o período inicial, as crianças são solidárias e tolerantes entre

si, dividindo o pouco que têm - a comida, o cobertor, a droga - com

aqueles que não conseguiram obter para si.

As mães-de-rua dividem as tarefas entre as outras crianças do grupo,

que podem ter a mesma idade que ela, ou serem até mais \'e1hos. Ela

determina, por exemplo, quando o grupo deve voltar a se reunir e se

vai haver mudança no local de pernoite, divide as roupas que recebem

pelos mais necessitados. etc. Observa-se também que quando nasce

um bebê, todo o grupo - inclusive os meninos e as crianças pequenas

- ajuda a tomar conta da criança. Esta não é uma tarefa exclusiva da

mãe.

A ascendência das mães e pais-de-rua sobre as outras cnanças do

grupo e muito forte. Duas meninas conseguiram \'aga num

equipamento do Estado, mas em \'isita ao local a mãe-de-rua não o

apro\'ou e mandou recado para as duas deixarem o local. o que elas

obedeceram prontamente.

As relações de parentesco de rua sào reconhecidas e reafirmadas

pelas crianças e adolescentes. Eles explicam que o pai e a mãe de rua

não precisam constituir necessariamente um casal entre si. Nem a

família precisa necessariamente viver junto. Citam casos em que a

mãe-de-rua vive num ponto da cidade e a filha, ou neta \'ive em

outro. O dnculo não se desfaz, segundo explicação do grupo. com a

saída de algum membro da rua. para uma instituição ou para outra

situação de vida. Uma mãe-de-rua cita como exemplo o caso de uma

110

de suas muitas filhas de rua que está há seIs meses vivendo com

parentes (originais) mas que isto nào constitui um rompimento do

laço com ela.

Os casaIs sào formados muito cedo, aos dez, onze anos já se

estabelecem, e há muitos deles que permanecem juntos há cinco, seis

anos. Ti\'e a oportunidade de presenciar o diálogo de um menino de

onze anos, com a sua namorada, também de onze anos, em que de

propunha a ela que ficassem juntos, que ele iria proteg~-Ia de muitas

coisas. Era uma cena romântica, em que os dois dividiam o cobertor e

uma ponta de cigarro, e agiam com a graça dos casais de namorados.

As moças se declaram compromissadas com seus companheiros.

permanecendo sozinhas nos períodos em que eles ficam presos. Os

rapazes não declaram a mesma fiddidade, mas assumem a proteção

de suas companheiras.

Há um controle expresso do grupo sobre o comportamento das

meninas em relação a seus parceiros. Durante o 11 Encontro

Internacional de Meninos e Meninas de Rua, uma das menmas que

iria compor a mesa foi sumariamente "barrada" por um dos meninos

integrantes do grupo. e te\'e que se contentar em ficar na platéia.

Perguntei à menina (1-1- anos, mãe de um bebê de 4 meses) porque ela

não iria participar e da declinou de responder. Mais tarde o menino

esclareceu que "ontem ela deu bola prum home na rua, e o marido

dela está preso. I sso não é legal não, tia."

11 I

Ainda sobre comportamento das menmas, os depoimentos, as

observações e a convivência com elas não confirmam o estereótipo

de prostituição que lhes ~ imputado.

Menina, 17 anos:

Menina I: "Porque tem gente que se troca por uma brizola, por uma

maconha, por uma dormida no hotel. ..

Menina 2: "Eu nunca me troquei, sai prá rua com 12 anos. era

novinha. moça, virgem. e fiquei até 14. Nunca fui esculachada por

vagabundo. Nunca. nunca vendi meu corpo por nada. Nem por

tóxico, nem por dinheiro. nem por casa e comida. Por nada."

Ainda contrariando as \'ersões de que as meninas de rua encontram

na prostituição um meio mais conveniente de sobreviver do que, por

exemplo. o roubo. o grupo de adolescentes pesquisado inverte esta

lógica. Prostituir-se ~ tornar-se desvalorizada pela família de rua. As

práticas de furto são mais bem recebidas. são vistas como

participação ativa na luta pela sobrevivência. como um ato de

coragem da menina.

Menina: "Porque tem muita garota de mente fraca. PÔ. não tá

conseguindo dinheiro. não tem disposição prá roubar. porque tem

muita menina que não tem disposição, morre de medo. Ah, não, não

quero. não \'OU entrar. Fica grilada, então procura o meio mais fácil."

112

Entre\',: "A prostituição então. \'ender o corpo ~ um meio mais t~icil

do que roubar','"

:-V'knina: "É um meio mais fácil do que roubar porque roubar tem que

aguentar o pau com os home. porque se nào aguentar \'ai \'irar

cagoete. ningu~m \'ai querer sair contigo. arriscando a morrer.

\'agabundo sacudir. Entào tem que \'ender o corpo. que ~ a coisa mais

t:lcil. Vende o corpo. ganha dinheiro. pronto",

Cabe aqui ressaltar a necessidade de Se empreender pesquisas

específicas sobre o uni\erso feminino. aí incluindo-se os \'almes. as

representações simbólicas. as interações sociais e as dificuldades

específicas que as meninas enfrentam. pela sua condição de g~nero,

1\:ota-se que as questões relati\'as ao comportamento e participação

feminina estão marcadas por posicionamentos preconceituosos. que

\'~m encobrindo a possibilidade de uma compreensão aut~ntica dos

problemas sociais em que estão implicadas as mulhereS.

Principalmente Se Se conl!rel!am ao !.!ênero. discriminações raciais e ~ ~ ~

de classe. como Se \'erifica claramente no grupo pesquisado, Há no

grupo casos de união homossexual. como o caso de duas moças. uma

de dezessete anos e outra já com dezoito. que \'i\'em juntas há

aproximadamente um ano. ambas com \'anas passagens por

instituições correcionais. e que confessam \'i\'er apenas de furtos. já

que na idade delas não há como obter solidariedade, A mais \'elha

das moças engra\'idou de uma relação e\'entual e. durante a gra\'idez

e no nascimento da criança. te\'e todo o apoio da outra jo\em. que

assumiu o papel de protetora da no\'a família. pnH'endo-a de

alimentos. indo buscar um "enxo\'al" ganho e inclusi\'e conseguindo

I '-~

abrigo junto à sua própria família. com a qual não con\'i\'ia mais há

muitos anos. para a mãe e o filho, As outras moças do grupo e mesmo

as educadoras criaram um termo de parentesco curioso "pãe"

(aliteraçào de pai com màe) da criança,

Há exemplos insuspeitos de solidariedade, se considerarmos as

circunstâncias de misáia em que vivem estas crianças. como pode ser

visto nesses exemplos:

Próximo a ~poca da Conferência de Meio Ambiente e

Desen\'oh'imento - a Rio 92 - uma família de rua que encontra\'a-se

alojada sob um \'iaduto da zona sul da cidade foi com'idada por

assistentes sociais da Fundação Leão Xfll a se transferir para a

Fazenda Modelo - instituição estadual para abrigo de população de

rua, Embora a "família" fosse composta de mãe. dois filhos

\'erdadeiros. \'ários filhos de rua. todos menores de idade. as

assistentes sociais limitaram o cOIn'ite à mãe e aos dois filhos

\'erdadeiros. sendo que as demais crianças pequenas poderiam ser

encaminhadas para outras instituições, A mãe ficou indignada com a

proposta. e embora esti\'esse muito amedrontada com a iminência de

recolhimento. procurando algum lugar para alojar pn,)\'isoriamente o

grupo. recusou prontamente o com'ite. alegando que não iria

abandonar os outros filhos sozinhos. para eles serem di\'ididos e

ficarem sem proteção, "Ou \'ai nós todos. ou não \'ai ningu~m", E.

para a pesquisadora. completou que toma\a essa decisào com pena

dos filhos dela. que insistiam em acompanhar as assistentes. mas ela

se julga\'a responsá\el por todos. e não iria desampará-los,

114

Outra situação comO\'ente "cio de um menino de apenas dez anos.

qUe \'i"e na rua há cerca de cinco anos. quando sua mãe foi morta

pela chamada polícia mineira. de acordo com SeU depoimento, Esse

menino conseguiu uma \'aga num equipamento da Prefeitura e. ao ser

informado qUe iria morar lá. imediatamente colocou a condição de

qUe só poderia Ir se o sobrinho dele fosse tamb~m. Ele foi então

informado que o sobrinho não consta"a da lista de candidatos.

portanto não fora contemplado com a vaga. Diante da recusa da

educadora em admitir tamb~m a outra criança. ele propôs trocar de

lugar com o sobrinho. Ele perderia a \'aga c a cederia ao menino mais

nOH). de cinco anos. que ele apresenta\'a como sobrinho. com a

seguinte argumentação: "Tia. ele ~ pequeno e eu sou grande. eu já sei

me \'irar na rua. eu não posso deixar ele sozinho aqui não. quem \'ai

dar comida prá ele','" A educadora perguntou se ele não tinha mãe ou

outra pessoa que pudesse cuidar dele em casa. e ele respondeu: "Ter

tem. tia. ela ~ minha irmã. mas ~ muito má. jú furou ele com faca no

braço e na casa dela nãl) tem nadinha prá comer. Quem le\a\a era cu.

Agora se eu for morar aqui. ela \'ai botar ele na rua de uma \'ez.,,"

As bmílias de rua demonstram tolerância e tlexibilidade em relação

àqueles que adotam comportamento desviante. Os qUe demonstram

alguma debi I idade menta I. os que se comportam de ma nei ra mui to

agreSSI\a. os que se drogam em excesso. são em geral protegidos

pelos demais,

Hú um forte compromisso entre os membros da família de rua. como

mostra o depoimento de um jovem - que foi assassinado no final dn

1 I:'

ano de 1990 - a um cineasta europeu: "A nossa relação entre nós.

tudo é amizade. principalmente amizade, na hora de dormir e

solidariedade, a proteção de um e de outro. Violência também é o que

mais surge. Um briga com o outro, um esculachando o outro. De

quem que nós consegue amor e carinho'! De nós mesmo. Um do

outro. A gente não tem carinho de ninguém nào! Só de nós mesmo.

Se a gente nào fizer. ninguém vai fazer pela gente." (Gosses in Rio.

fita de vídeo)

Rizzini. em artigo intitulado "Menores institucionalizados e meninos

de rua: os grandes temas de pesquisa da década de oitenta". comenta

"o fato de os estudos nào retratarem o relacionamento entre crianças

que estão nas ruas" ( 198'./. p. 86).

A autora \"ai buscar em pesquisa realizada no ano de 1979 indicações

de como se dá este relacionamento:

"Ferreira indica que as relações entre as cnanças no grupo são

marcadas pelo indi\"idualismo. onde cada um responde por si. dadas

as condições de ,'iolência e insegurança que têm de enfrentar" (idem.

p.861. Podemos afirmar. com base na con\"ivência com os grupos de

meninos e meninas de rua pesquisados. que as condições de \"inlência

e insegurança são t~1tores que contribuem para o estreitamento dos

laços de solidariedade entre eles.

Os exemplos acima. e muitas outras atitudes de solidariedade entre

cnanças. nào condizem com a Imagem que é difundida na

116

coletividade, com o apoio da imprensa e de setores conservadores e

até de reacionários defensores da prática de extermínio.

As mesmas crianças e adolescentes que tanto temor despertam entre

os transeuntes. retribuem generosamente a atenção que recebem dos

educadores e de outra pessoas que se solidarizam com eles. Durante o

con\'Í\'io com eles. recebi inúmeras demonstrações de afeto e até de

preocupação com a minha vida t:lmiliar. Embora ostentando tão

poucas posses. as crianças nào abandonam o hábito de retribuir com

presentes a atenção que recebem.

\1as certamente a maior manifestação de carinho veio de uma jl)\'em

com a qual havia passado umas duas horas, cOll\'ersando sobre os

perigos da rua. quando ela me contava como se sentia cansada e

como era estressante \'iver de furtos. correndo da polícia. Sem

\'islumbrar nenhuma alternativa concreta que pudesse incutir

esperanças na jo\em. eu me limitava a ou\'ir seus casos. \!a hora da

despedida ela me entregou um pedaço de caco de \'idrn: "Toma. tia,

leva isso com \'oc~". num gesto simbólico do desejo de mudar de

\·ida. Recebi também l: gesto como uma "dica" de que tahez a

compreensão. a solidariedade possa ser um bom caminho.

ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA

Quando solicitados a falar sobre seus projetos para (l futunl.

raríssimas \'ezes foram feitas refer~ncias espontâneas au desejo de

117

s~guir uma profissão. ou d~ realizar um trabalho como forma d~

sup~rar a situação d~ mls~na ~m qu~ vi\'~m. A solução para os

probkmas d~ sobr~vivência não passam n~c~ssariam~nt~ pela

\'alcirização das formas d~ trabalho sancionadas pela sociedade.

1\:ão s~ pod~ esqu~cer que ~stes jovens são. em primeiro lugar. filhos

de pais abandonados por todas as instâncias gt)\'~rnamentais.

políticas. econômicas e sociais que deveriam garantir aos cidadãos

condições mínimas d~ s~ mant~rem e às suas famílias em condições

de dignidade. O fracasso familiar. a miséria d~ s~us lares está inscrito

fort~m~nte na vida d~st~s jtwens. ~ o trabalho desvalorizado.

d~squalificado ~ o d~samparo social d~ qu~ foram \'ítimas s~us pais ~

mais ainda suas mã~s. é negado ~ ren~gado por ~ks. assim como um

destino de resignação ~ pobreza absoluta. Esta situação é o qu~ ~m

grand~ part~ moti\'ou-os. ainda que muitas \'ez~s s~m a clareza dos

moti\'os. a deixar para trás as histórias familiares ~ irem \'i\'er na rua.

Alguns jo\'ens deixam transpar~c~r um misto d~ d~sprezo ~ pi~dadc

pelos pais. por ~st~s não cons~guir~m cumprir o papd d~ pn)\'çdor

da família. Est~ d~spr~zo é ~xtensi\'o ao trabalho. g~n~rical11~nt~. ou

às oportunidad~s d~ trabalho qu~ t~riam pela sua condição social.

"ivku pai ~ra p~dr~iro. não ganhava nada. nào tinha nada prá nós. Eu

\'im prá rua prá roubar. prá p~dir. prá ajudar minha mãe e prá

comprar coisas prá mim". Os meninos e m~ninas qu~ \'i\'~111 na rua.

quando questionados sobre a ~stratégia d~ sobr~\'i\'ência que

empr~end~m. já qu~ não têm garantida n~m mesmo a alim~ntaçào.

mostraram-s~ inicialmente d~sconfiados ou constrangidos. citando

IIS

apenas a mendicáncia ou a frequ~ncia a instituições onde podem

garantir algumas refeições.

\las logo qUe Se estabeleceu uma relaçào de confiança com o

pesquisador. eles passaram a depor li\Temente sobre as formas de

sobre\·i\"~ncia. Algumas \'çzeS oll\'i justificati\'as espontâneas sobre

as práticas de furto. como no seguinte desabafo: "Às \çzeS. quando a

gente não qUer roubar. sabe. porqUe a gente às \'çzeS pensa. a gente

estimula em pensamento que a gente não qUer roubar. aí a gente \ai e

pede. pede no meio da rua. ~'las aí dá a maior re\'olta. qUe a gente

pede: Aí. me dá um dinheiro prá eu comprar um pão ali ... - Ah. \'ai

trabalhar. .. nào sei mais n qu~. Aí dá a maior \'Olltade de roubar

mesmo. sabe."

As estrat~gias sào \"ariadas: a mais generalizada consiste na Imítica

de pequenos furtos. praticados com o objeti\'o de conseguir algulll

dinheiro para suprir ullla necessidade imediata. como medicamentos.

alimentação ou lazer.

o juiz Amaral e Sil\"a define sua compreensão sobre as práticas

infracionais dos meninos e meninas de rua:

"O infrator geralmente nün passa do abandonado surpreendido na luta

pela sobre\'i\'~ncia" (1989:80). Eis alguns exemplos registrados em

entre\ i stas:

\ \9

Exemplo 1:

Entre\': O qUe qUe \'OC~ faz durante o dia. prá arrumar grana. como ~

qUe \'OC~ \'i\'e'!

Menino: Bom, posso falar mesmo'.'

Entre\': Pode, Se \'OC~ quiser.

Segundo menino: Pode falar',1

Menino: (para o amigo) Fala prá mim, que eu tenho vergonha".

Segundo menino: Falar o quê'.'

Menino: Ela tá perguntando o qUe fàço de dia",

Segundo menino: De dia a gente arruma dinheiro prá jogar tlipper

\1enino: iV'kntira. tia.

Segundo menino: Então bla a \'erdade, \'amos tàlar a \'erdade."

~knino: A gente roub~l.

Segundo menino: A gente rouba. joga tlipper

Exemplo 2:

Uma jO\'el11 Sentia-Se incomodada por estar descalça. passou o dia

pedindo um trocado. Sem lograr SUCeSSO, Contou-me qUe no fim da

tarde furtou algu~m qUe esta\'a lanchando num bar. "pró arrumar

cinco mil e comprar o chindo no camdô".

Há também momentos em que as cnanças e adolescentes parecem

simplesmente eXercitar a habilidade de conseguir algum dinheiro.

atnl\'~S do furto. da coação ou intimidaçào, Em geral eSSeS

"exercícios" ocorrem quando eleS. atuando em grupo. pedem algum

120

trocado. usando atitud~s variadas qu~ pod~m sug~rir agr~ssi\'idad~.

p~na ou retaliação. ~ são obs~r\'ados ~ a\'aliados p~lo grupo. como

num \'~rdad~iro tr~inam~nto,

Os m~nmos ~ m~lllnas confessam \'anar a tática d~ acordo com a

a\'aliação qu~ faz~m do "fr~gu~s": s~ ~ uma s~nhora. com "cara d~

boazinha". eI~s apelam para a fom~: se ~ um d~scuidado. praticam ()

furto: s~ a p~ssoa d~monstra p~lo g~sto ou olhar alguma simpatia.

~ks contam suas n~c~ssidades ~ suplicam por ajuda ~Ill roupa.

bijut~ria. ou brinqu~do,

Outra situação distinta ~ a dos adol~sc~nt~s. ~m alguns casos há

crianças b~m p~qu~nas tamb~m n~sta situação. qu~ praticam furtos

r~gularrn~nt~ sob o' comando d~ algum adulto. qu~ controla o

mo\'im~nto da ár~a, Est~s adultos são algumas \'çz~s talllb~1l1

chamados "pais-d~-rua". ~mbora não t~nham nada a \'~r com a

conc~pçào da familia de rua. São adultos qu~ \'l\'~m na

marginalidad~. alguns foragidos da polícia. int~rc~ptador~s d~

m~rcadorias. tais como r~lógios. jóias ~ toca-fitas d~ carros. ~ qu~ dào

prot~ção ús crianças ~m troca d~ uma c~rta "produção", Vúrios d~ks

s~ ~stabel~c~m próximo ú ár~a ond~ os m~ninos ~ m~ninas atuam.

como camelôs. biscat~iros ou guardador~s d~ carros, \i~st~s casos os

jo\'~ns ~ntr~gam o produto do furto para o "pai" ~ r~c~b~m uma part~

~m dinh~iro. As crianças diz~m s~ subm~t~r a ~st~s interceptadores

porqu~ não conseguem sozinhas \'~nder o produto do furto, :-\ atuação

dest~s quadrilheiros ~ ost~nsi\'a. ~ pode ser confirmada por qualqu~r

pessoa que se disponha a acompanhar a rotina das crianças,

12 I

Há ainda constant~ d~núncia dos jo\'~ns quanto à cobrança d~ dízimo

por part~ dos policiais da área. Esta situação também é facilm~nt~

comprová\'d, pois mais de uma v~z a pesquisadora pr~senciou

guarda fardado, ~m pl~no s~l"\'iço. tirar relógio supostam~nt~ furtado

p~lo menino ~ colocar no seu próprio pulso, ou confiscar o dinh~iro

qu~ o m~nino trazia consigo com a simplória ~xplicação qu~ "~st~

dinh~iro não pod~ s~r s~u".

N~nhum menino ou m~nina d~ rua, do grupo pesquisado, acumula

dinh~iro ou qualqu~r b~m mat~rial. O dinh~iro é im~diatal11~nt~

gasto ~m refeiçõ~s. \'estuário, fotografias, pr~s~nt~s para os d~mais.

Os obj~tos furtados ou sào im~diatam~nte trocados por dinh~iro ou

rd~içõ~s - já t~st~munh~i a troca d~ um relógio d~ pulso por um

cachorro qu~nt~ ~ uma Coca-Cola numa barraquinha d~ ambulant~ -.

ou sào rapidament~ confiscados p~la polícia ou seguranças qu~ atuam

na úr~a. C~rta \'çz pr~s~nci~i um guarda ek plantão inquirir alguns

adol~sc~nt~s qu~ obser\'a\'am uma fotogratia recém-tirada do grupo.

O guarda p~diu a máquina. os rapaz~s diss~ram qu~ ha\'iam tirado a

fotografia num fotógrafo da praça. ~ I~\'aram o guarda até d~. para

confirmar a ~stória. inc\lIsi\'~ o pagam~nto pdo s~n·iço. Após a

contirmação. o guarda tomou a foto, al~gando qu~ o dinh~iro do

pagam~nto só pod~ria t~r sido roubado. am~açou ainda utilizar a foto

para r~conh~cim~nto das crianças na d~\çgacia.

I\'ksmo as roupas ~ t~nis qu~ adquir~m são rapidam~nt~ furtadas.

confiscadas ou p~rdidas pdos jo\'~ns. por não ~xistir n~nhum local

s~guro na rua para guardar mudas d~ roupa ou quaisqu~r p~rt~nc~s

122

peSSOaJs. A prática. a prinCipIO muito estranha. de usarem \'<mas

roupas umas sobre as outras, muitas "CZeS tem a função de cabide.

Por~m. não ~ esta a única razão para esta prática: algumas meninas

contam qUe dormem com três. quatro camadas de roupa para

dificultar atos de \'iokncia sexual.

Uma terceira situação ~ a dos jO\'ens - e aqui tamb~m hú casos de

crianças com dcz anos de idade - qUe sào \'iciados em cocaína. e qUe

praticam furtos e roubos com o objeti\'o exclusi\'o de conseguir a

droga. \:esta situação os JO\'ens geralmente agem maIS

a!.!ressi\amente. al11ea,'ando as \'ítimas com cacos de \·idro. !.!iletes e ~ ~ ~

pedras. embora todos os relatos neste sentido confirmem a intenção

de apenas amedrontar a \'ítima. e em nenhum dos registros a criança

admitiu ter de fato pro\'ocado lesões físicas nos transeuntes ou

motoristas. Esta modalidade pode Ser eXemplificada pelp relato de

uma .Ít)\'em qUe praticou assalto. munida de caco de \·idro. a um

ciclista. Ela conta qUe a "bicicleta era nt)\'a. muito linda". A jO\'em

seguiu montada na bicicleta diretamente para () morro do Chapál

\'Iangueira. onde "desta \CZ () cara deu \'inte gramas (de cocaína) bem

pesadas".

\:a extremidade destas estrat~gias estão aqueles adoleScentes qUe

confessam já ter mergulhado no chamado mundo do crime. A porta

para esta ati\'ídade ~ il1\'aria\'elmente. nos casos estudados. o

comácio de drogas. com o qual algumas crianças tr<1\ <Im clllltato

desde a mais tenra infância.

12:;

o rl!sumo simplificado do rotl!iro da criminalidadl! coml!ça com a

participação da criança pdas mãos dos próprios pais. parl!ntl!s

próximos ou vizinhos. como "avião" (uma I!sp~cil! dI! portador. qUI!

k\"a a droga at~ o c1il!ntl!). Em sl!guida a criança passa a Sl!r

consumidora I! precisa \'I!nder a droga para mantl!r o \·ício. Daí.

pegar I!m armas é quasl! UI11 ato contínuo. Algumas crianças são mais

rl!bl!ldl!s. ou apenas dl!satl!ntas. I! por isso não cumprl!lll suas funçõl!s

com prl!cisão. I! são I!ntão I!xpulsas de suas cOlllunidadl!s. com

<lml!aças dI! mork I! vingança t:1miliar. Uma \'I!Z na rua. dl!dicam-sl! a

criml!s mais pl!sados. como assalto a mão-armada. assalto a

rl!sidências I! a lojas. Há \'ários dl!poil11l!ntos ilustrati\()s da situação

dI! I!xpulsão da comunidadl!:

Exemplo 1:

Entrl!\': Você I!stá na rua hú muito tl!mpo'.'

Entrl!\"istado: Tô. não posso ir prú casa

Entrl!\': Por qUI!'.'

Entrl!\"istado: Porqul! hou\'1! uma confusão lá

Entrl!\: \:a sua casa Illl!smo. ou lá pl!rto'.'

Entrl!\"istado: Li pl!rto. I!ll!s I11I! acusaram dI! cl!rtos roubos no

mo\'iml!l1to (dI! tráfico l. aí I!U tivl! dI! sair. Foi os da P~I mineira que

fizeram isto. Botaram pressão ni mim prá podl!r ml! matar.

Exemplo 2:

Entrl!\': O que ~ qUI! \'ocê bz durante o dia'.'

12~

Entre\'istado: Roubo. cheiro. fumo. peço.

Entre\': Voc~ t:1Z algum trabalho. tamb~m'.'

Entre\'istado: Às \'ÇleS \'endo chiclete.

Entre\':: E \'oc~ \'ai sempre \'er sua mãe','

Entre\'istado: Não. cU nunca \'OU lá. não posso, Arrumei confusão llll

mo\'imento,

Exemplo J:

t\'knino 1: Por causa de qu~ tu não pode ir na tua casa','

~'knino 2: (rindo) O qu~',) Tu ~ maluco "rapá", Eu \'OU ir prü casa. ell

\'ou ... Eu não qUero ir prá casa não. amigo .. ,

Menino 3: Fala aí. fala .. ,

i'v'knino 2: Eu não \'OU prú casa. senão cU \'OU morrer. amigo. o cara

qUer me matar lá na fa\ela.

Jvlenino 3: Ahnnn, .. qual o nome dele','

Menino 2: 01'\01\0:'\0:'\

Menino 1: Ele qUer t:1zer o qUe contigo','

i\'knino 3: Não. ele ~ oposição. o pagodeiro ~ dele

\'knino 1: Ele quer fazer o qUe contigo','

\'knino 2: Ahnn. porque cU tinha formação de quadrilha. lú com os

cara. cumpade.

\,'knino 1: Ele qUer arrancar teu pescoço. arrancar teu sacu c botar na

tua boca',' (risos)

\,'knino 2: Não. ele só quer me matar com tiro. cumpade,"

12:'

Sobr~ as fr~qü~nt~s ~xpulsõ~s d~ cnanças ~ adoksc~nks d~ suas

comunidad~s d~ orig~m, \'erifica-se mais uma perversidade contra a

população de renda mais baixa. A prática d~ loteamento das

comunidad~s por traficantes e quadrilhas de contraventor~s contribui

significati\'am~nte para o aumento do número de crianças nas ruas.

Esta cad~ia d~ \'iol~ncia social inicia-s~ numa CrIS~ d~ atuação dos

pod~r~s públicos. incluindo-s~ a s~gurança, qu~ teoricam~nt~ d~\'eria

s~r garantida a toda a população. Como pairam div~rg~ncias sobr~ os

atributos n~c~ssários para s~ alcançar o status d~ cidadania. o qu~ d~

fato ocorr~ ~ qu~ uma parcela da população. constituída p~las class~s

m~dia ~ alta. ~ prot~gida contra outra part~ da população. qu~ pod~

\'ir a tornar-s~ p~ngosa ~ instabilizar a \'ida cotidiana nos ~spaços

urbanos.

A t:1lta d~ segurança ~ dos s~n'iços sociais básicos. a população qu~

habita as fa\'e1as e outros locais d~s\'alorizados da cidad~ \'~-s~ no

dikma d~ cOIl\'i\'~r com o crim~ organizado - principalll1~nt~ o

comácio d~ drogas. como s~ d~pr~~nd~ das informaçi)~s forn~cidas

pelas crianças - ~ ~stabd~c~ uma rdação ambi\'alent~ com aqud~s

qu~ s~ apossam das comunidades. Eks são. ao m~smo t~mpo. uma

grand~ am~aça para as famílias. p~lo constant~ ass~dio ú participação

d~ crianças ~ jo\'~ns ~m ati\'idad~s criminosas. ~ tamb~m funcionam

como protetores da comunidade. atuando no \'azio deixado pela

aus~ncia ou ind'ici~ncia d~ s~n'iços públicos.

126

o mÇsmo sçntido ambi\'alçntç contamina a rdaçào das comunidadçs

com os órgãos rçsponsá\'çis Pçla sçgurança. reprçsçntados pdos

policiais. Aquçlçs qUç dçvçrial1l garantir os dirçitos indi\iduais ç a

manutçnção da orckm são muitas \'çzçS os primçiros a lksrçsPçitá-lns

ç a transgrdi-Ios, As rçgras impostas pdos donos dos tçrritórins

mostram-sç dç grandç intlçxibilidadç. Os .I0\,çns rçgistram Çm

cOll\'Çrsas informais - poucos Sç disp()çm a discorrçr sobrç n assunto

Çm çntrçvistas - qUç algumas \'çzçS a rua podç sÇr mÇnos Pçngosa

qUç a vida nas cnmunidadçs,

O dilçma das famílias na dçlicada relação dç moradia foi

tçstçmunhado durantç a pçsquisa çl11 Pçlo l11çnos duas ncasiõçs: a

primçira dçlas dçu-sç quando a Pçsquisadora acompanhava a

audi~ncia dç uma adokscçntç. na 2a, Vara da Infúncia ç

Adolçsc~ncia. A mik ç a irmã mais \'dha da mçnina foram chamadas

ú prÇsÇnça do Juiz. qUç dâiniria uma mçdida sócio-çducati\'a para a

Jo\Çm. Enquanto aguardava a audi~ncia. a mãç. muito nçl"\nsa.

rçlatou quç çncontr~l\a-Sç Çm çstado dç aprççnsào com a situaçàl\

quç Sç criara para a família. a partir do comportamçnto da filha.

Sçgundo a mãç. o Juiz teria mandado ú sua rçsid~ncia lima \'iatura

com l) l)bjçti\'() dç garantir a prÇsÇnça do rçspnnsú\'çl na alldi~ncia çlll

qUç dçtçrminaria o çncaminhalllçntn do futuro da mçnina, ..... simpló

prÇsÇnça dç uma \'iatura oficial na t:wçla nndç mora\a a família

acarrçtoll grandçs transtornos. porquç havia uma on,km ÇxprÇssa na

comunidadç qUç nil1gu~m dç\'çria atrair para Iú a prÇsÇnça da polícia

ou dç outras autoridadçs. sob PÇna dç sÇr sumariamçntç çxpulsll do

Incal. O lksçsPçro da màç ç da irmã da jO\çm. qUç ch\lra\'am ç

discutiam as POSSI\'eIS consequ~ncias da "visita", somavam-se ao

desgosto com o "desencaminhamento" da filha.

Numa segunda ocasião. \'eritlcou-se a situação similar: uma jo\'em.

sob a tutela do juizado. e\'adiu-se do local onde cumpria medida de

ressocialização, e procurou refúgio em casa de parentes. em local

próximo à instituição onde esta\'a internada. Por ordem judicial. uma

\'iatura dirigiu-se ao endereço familiar. com um mandato de busca e

apreensão da jovem. Ao retornar ao internato. a adolescente

mostrava-se transtornada. porque causara s~rios problemas para a

perman~ncia da família na comunidade, pela presença de oficiais de

justiça no local.

RELAÇÕES CULTURAIS

Ao mesmo tempo qUe os JO\'ens e cnanças do grupo pesquisado

adotam certas práticas culturais qUe tenderiam a caracterizá-lo

como um subgrupo cultural (relações socIaIs ongll1als. como as

fam ílias de rua. certas regras de comportamento e sol idariedade.

\'ocabulúrio específico. etC). sentem-se fortemente atraídos por

padrÕeS difundidos pela indústria cultural moderna. e

especificamente a americana. Assim. ao lado de e'\pressl1cs qUe

lembram dialeto popular de origem africana. qUe caracteriza sua fala.

os jll\'enS desejam aprender ingl~s. \'luitos reclamam da escola por

não transmitir-lhes este conhecimento.

128

"Aquçla çscola ~ ruim. só çnsina brasikiro. ÇU quçria falar ingl~s."

~:luitos dçdicalll boa partç do tçlllpO a dçcorar Pçlo som as musIcas

qUç do tocar nos baiks dç fim dç sçmana. Na dança çks imprm'isam

uma mistura dç dança afro-brasilçira com çstilo Michaçl Jackson.

akm do popularíssimo çstilo funk. At~ na \'çstilllçnta (isto nbsçr\'<1\'çl

çlll rçlaçüo às moças I podç-sç obsçJ"\'ar uma indçcisüo Çm Sç

idçntificarçm com o çstilo afro. dç roupas mais amplas. çstampadas.

çtc. ç com o çstilo Xuxa. colantç, curto, rçtilínço.

Rçgistrç-sç a nítida intlu~ncia da atuaçüo dç grupos dç cultura afro­

brasilçira com as crianças dç rua. sçja atra\"~s dç ahordagçns dirçtas

com os mçninos ç mçninas. sçja atra\'~s da militância dç çducadorçs

dç rua nos mo\"imçntns dç cultura afro. A fala das crianças dçmonstra

uma mudança. ainda qUç incipiçl1tç. na auto-imagçm do grupo. Após

ullla tçmporada no Rio dç Jançiro do grupo dç tçatro ç dança afro

Olodum. da Bahia. a qUç o grupo Pçsquisado tç\'ç acçsso. algumas

adokscçntçs passaram a \'alorizar a aparÇncla adotada pçlos

\'isitantçs (Pçntçados. trajçs. çtc I .

. -\ ati\idadç cultural mais popular çntrç as crianças dç rua parÇCÇ sÇr

as rodas dç capoçira. Hú \úrios mçstrçs qUç fazçm trahallw \ oluntúrio

na rua. nutros çstüo i ntçgrados a projçtos in sti tuc inna i s. .-\ rnda dç

capoÇlra funciona claramçntç como um canal dç \az:lll dç

agrçssi\'idadç ç dç distçnsionamçntn dos gruplls, Os j(\\çns aprçci<lln

o ritual ç Sç disciplinam l) suficiçntç para sçgui-Io. acçitando a

lidçrança dos mçstrçs .. -\Igumas mçninas tamb~1ll participam da roda.

129

mas a grand~ maioria ~ d~ meninos, Numa s~\ta-f~ira Ú noit~. dia que

s~gundo os m~ninos(as) "o bicho p~ga". ou mdhor os {lIlimos ~stão

~\altados. porqu~ des qu~rem t~r algum dinheiro para ir para os

baiks funks ~ pagod~s. e. ainda s~gundo d~s. a polícia estú mais

ati,'a. o Proj~to EXCOL\ adotou a prática da capoeira. ,'isando

cont~r a violência, A d~c1araçào de um rapaz par~c~ confirmar o

suc~sso da iniciati,'a, Ao constatar a animação da "roda" o rapaz

d~cidiu: "S~ ~ssa roda ficar boa assim. cU n~m roubo mais .. ,"

Nos ~sport~s um t~1to CUrIOSO mostra o pod~r da mídia ~ da

padronização da cultura dominante: um menino d~ dez anos. que

s~mpre ,'i,'~u nos arr~dor~s de Campos. \'~io para o Rio de Janeiro de

carona c1and~stina ~nl um caminhão. com o objeti\'o de m~ndigar

para juntar dinh~iro prá comprar um skate. ~sporte p~lo qual

d~c1arou-s~ "vidrado", Est~ m~nino acabara d~ ganhar uma camisa do

Flam~ngo. com a qual estava ,'~stido. mas diss~ d~sconh~cer o time c

não Se identificar com tim~s (:k futebol.

Há uma produção cultural ,'oltada para um público transgressl1r. qu~

inCellti\'a claram~nt~ uma id~ntificação imaginária com os ,alnres da

marginalidad~. como mostram as letras dos s~guint~s partidos-altos

~ntoados pdos m~ninos ~ m~ninas:

I) Pintou suj~ira. alô malandragem. tlagrante .. ,( Bis)

A cama dura chegou. o sarg~nto. o ten~nt~.

S~lI comandant~ olha aí .. ,

Cago~taram qUe ha,'ia malandro

uo

Os "homç" \'içram armado dç macaco. çscoPçta ç pastor akmào

( Bisl

Sç marcar bobçira \'ai sÇr grampçado

E dçpois çxplicar o cçrto pro Dr. "adç\'ogado"

qUç nào \'ai dar na di"idida.

çstou jú na ( ... 1. "OU sair batido.

Quando o malandro ~ dç \'çrdadç

na briga nào "ai sair krido.

Quçm cagoçtou foi a filha ( , .. I da rapazçada

Já çstú fçdçndo. qUç só tçm malandro da barra Pçsada.

:\ão ha\'çndo tlagrantç os "homç" \'ão \'çr qUç tá tudo COITçtL).

Pçdç dçsculpa prú rapaziada.

não prçndç ningu~m ç çstú tudo cçrto.

21 ~'ku \'izinho jogou um macçtç no mÇu quintal

Dç rçPçl1tç brotou Ulll trçlllçndo matagal

E quando algu~1ll mÇ Pçrgunt;na.

qUç mato ~ ÇSSç qUç ÇU nunca \ i'.'

Eu só rçspondia.

qUç mato ~ çssç. isso nascÇu aí .. ,

Vias foi pintando sujçira

:\ palalllo çsta\'a sÇmprÇ na jogada

porquç o chçiro Çra bom

ç ali çsta\'a sÇmprÇ uma rapaziada.

Os "homç" dçsconfiaram

ha\ia todo dia uma aglnmçraçãn.

:; I :\uma loja da cidadç ÇU fui cOlllprar o ( ... 1

mas mÇ assustçi com o prÇço ç fiquçi SçTll solução.

I :; I

Eu queria um oitão. quando ia desistir,

um amigo me indicou a feira de Acari ...

Ele disse que na feira. pelo preço de um oitão.

eu compra\'a uma pistola, um oitão e um bagulhão.

Tudo isso se encontra numa rua logo alí.

~ molinho de achar. ~ na feira de Acari ...

É sim. lá em Acari

Eu conheço um barraqueiro que atende por Man~.

ele \'ende muita coisa. sempre tem o que tu quer.

A barraca ~ muito grande, nela \'ocê sempre tem

uma merreca pal!as as balas e o oitão le\'a de l!raça ... ~ ~

Tudo isso tu encontra numa rua logo ali.

~ molinho de achar. ~ na feira de Acari.

Sobre esta última letra. \'ários adolescentes confirmam a \'eracidade

do exposto. Um deles conta inclusive que ganhou sua primeira arma

lá. Nas artes plásticas. as crianças confirmam essa tendência de

\'alorizar aspectos e situações de transgressão. Vúrios desenhos e

pinturas giram em torno de situações de assalto. sangue. morte. al~m

de ser prática comum usarem o "logotipo" do Comando Vermelho.

A COMUNICAÇÃO ENTRE AS CRIANÇAS DE RUA

Ainda com referências às relações dos grupos entre si. ~ interessante

notar que as crianças estabekcem uma rede de informaç{io que lhes

permite saber quem estú preso. em que local. qual o moti\'() da prisão.

\ "'., -'-

quando s~rá a possí\'~1 lib~rtação ~ at~ as datas d~ audi~llcia com o

JUIZ.

Para não ficar~m isolados nos p~ríodos d~ int~rnal11~nto ~m

instituiçõ~s. s~m notícias d~ s~us coJl1panh~iros. os jO\'~ns instituiram

a prática d~ mandar r~cados para o grupo. EI~s al~galll qu~ pod~1ll

s~r \'ítimas d~ \'iol~ncia ou m~SJl1O d~ ~xtçrmínio. ~ por isso o grupo

d~\'~ ~star s~mpr~ ci~nt~ do local para ond~ foi ~ncaminhado o

companh~iro( a) ~ o t~l11pO pr~\'isto d~ int~rnam~nto. Os r~cados ao

grupo ou aos ~ducador~s ~ transmitido \"Ia d~ r~gra por outro

companh~iro qu~ ~st~ja d~ passag~m na instituição. ou por

t~kfon~l11as dir~tal11~nt~ aos ~ducador~s. Os jO\'~ns contam qu~ S~

algum funcionário t~ntar il11p~dir ~sta col11unicaç;io. ~I~s r~ag~1ll

prontalll~nt~. s~ pr~ciso at~ COIll uma r~b~lião.

Esta r~d~ informal d~ comunicação ~ muito dlci~nt~. \i~nhum jO\'~m

s~ subtrai à tarâa d~ transmitir um r~cado d~ um cOlllpanh~iro.

m~smo qu~ a tarâa Ih~ torn~ dias. ~ s~ja r~alizada indir~tam~nt~. ou

s~ja atr~l\'~s d~ outra criança. qu~ conh~ça algu~m do grupo ond~ a

Ill~nsag~m d~\"~rá ch~gar. Por di\'~rsas \'çz~s a p~squisadnra foi

int~rp~lada por adol~sc~nt~s. ~111 ~ncontrns casuais. a transmitir

algum r~cado aos ~ducador~s ou a outros m~ninos COI11 os quais

~stana ~111 contato. A apar~nt~ L11ta d~ ~strutura na \id;l da rua ~

totallll~nte d~sf~ita assim qu~ s~ l11~rgulha n~sta dinúl11ica instituída

p~lns grupos. Os ~ducador~s participam com d~s~n\oltura d~ssa

dinúmica. localizando rapidam~nt~. atra\ ~s d;l cad~ia (k

I "'"' .' .'

cOll1unicaçõ~s. uma criança ou adol~sc~nt~ com a qual pr~CISal1l

l1lant~r contato.

As comunicaçõ~s não s~ limitam. ~ntretanto. à função d~ prot~ção do

grupo à \'iolência ou isolam~nto. Funcionam como um \'~rdad~iro

telefone sem fio. ~m qu~ s~ manda igualm~nt~ Ill~nsag~ns silllpl~s ~

inflntis como "amanhã ~ m~u ani\'~rsário". "~stou do~nt~. \'~m m~

\'~r". "ganh~i roupa 11\1\"a". '\'ou \'isitar minha mã~". "~ntr~i pra

~scola".

DISPARIDADE SOCIAL, MENINOS DE RUA E

CONSUMO

Eis qu~ ess~s jO\'ens que há anos \'i\'~m nas ruas. por um complexo

processo d~ rebeldia. aliado ao fracasso do modelo familiar. à

ausência de autoridade que se interpusesse àquela. ao distanciamento

de \alores tradicionais de uma cultura originalmente rural e arcaica. e

à mercê de uma incessante produção d~ d~s~jo de consumo que paira

nos centros urbanos. representam. aos olhos da classes m~dia urbana.

a sua própria caricatura.

A sofreguidão pelo consumo não ~. e\'identemente. pri\ikgio dos

melllnos e m~llInas de rua. eles apenas se arriscam e se frustram

infinitamente mais pela realização d~sses desejos. Arrisco dizer que

a enorme \'alorização que atribuem ú posse sempre transit()ria de

qualquer mercadoria. seja um tênis. uma camisa ou um reklgill de

marca (h,) meninas qUe dizem Se "especializar" em furtar roupas e

aCessórios de marca I tem origem num sentimento ele integraçilo

momentânea ao padrilo est~tico das classes dominantes. Pela \'ia do

consumo integram-se \"isualmente à sociedade. Próximo ao Natal de

1991. um rapaz. em companhia de um educador. eXpreSSOU SeU

desespero quanto ú "necessidade" de mergulhar no consumislllo qUe

nesta ~poca eletriza a população de modo geral. Ao passar frente às

\'itrines de um grande magazin. onde brilha\',1Il1 as mais tentadoras

mercadorias. ele diSSe qUe ia acabar Se jogando contra a \·itrine.

"mesmo qUe Se cortasse todinho. ou então fOSSe preSo". Illas ele ia ter

aquelas coisas de qualquer jeito.

A análise Iacaniana de Calligaris sobre o consumisll1() me pareceu de

extraordinária pertin~ncia Ú situação obser\"ada: (O consumo) "~ um

círculo \'icioso qUe aliás eXCede de longe as fronteiras do Brasil.

Simplificando por eXemplo: II o ideal social dominante parece ~e

situar do lado do aCesso a bens de consumo: 21 qUe o \'alor do sujeito

seja suspenso à sua riqueza exibida. por exelllplo. destitui de possí\ el

paternidade qUem está na pobreza. e - coisa mais gra\e e mais geral -

deixa pre\'alecer o real nos laços qUe organizam a nossa \ida social.

pois ser "algu~m" nilo parece Ser mais um efeito de nome. mas (l

efeito da possessilo real de coisas: :; I o~ atos pretensamente

simbólicos com os quais Se tentarú ser "algu~m" perseguirão (l mesmo

ideal social dominante. ou seja. a captura de bens na bolsa ou nos

bolsos: 4) por consequ~ncia. esteS atos fracassarão em ser silllbl)licos.

pois produzirão um \alor qUe sustenta do lado do real. confirmando II

qUe estú no item I). E Se reCLlllleça. DeSSe ponto de \ ista. a

~sp~cificidad~ brasikira consistiria so numa ~xtraordinária

d~sigualdad~ na distribuição dos b~ns ~ uma subs~qü~nt~ hip~rtrofia

da criminalidad~."

o autor conclui qu~ "a marginalidade é sempr~ d~s~sp~radam~nt~

conformista" (Calligaris. id~m. p. 118, 119).

Esta dim~nsào conformista do comportam~nto dos Jlw~ns ~

~xplicitada quando, m~smo \'i\'~ndo ~m condiçi)çs abaixo do ~xigido

por padrõ~s mínimos de b~m-~star social. d~s expr~ssal11 o J~s~jo d~

d~sfrutar d~ pri\'ilégios sociais ost~ntados por s~us dOll1inador~s.

A afirmação d~ um m~nino d~ tra~ anos. qu~ \'i\'~ nas ruas "d~sd~

qu~ nasci". ilustra b~m o çf~ito p~r\'erso dessas contradiçõ~s. Ek. qu~

já s~ ~squ~c~u do qu~ é dormir numa cama. qu~ nunca t~\~ ac~sso a

qualqu~r b~m social. d~c1arou ~m bom tom qu~ não ~studa pnrqu~

"\)ào gosto da ~scola pública. minha mà~ (qu~ no pró~nt~ caso é

alcoólatra. ~ \'i\'~ de m~ndicância no centro da cidad~) \'ai m~ botar

no colégio particular". Há inúmeros ~xemplos similar~s colhidos dos

d~poim~ntos das crianças. Há moças qu~. analt:1b~tas aos da~ss~t~

anos. sonham ~m s~r prof~ssoras ~ por isto não ac~itall1 as "chancçS

d~ trabalhar como catadoras de papd". Há rapaz~s qu~ aguardam a

oportunidad~ d~ \'irar~1l1 piloto d~ avião. ~ d~scartam a carr~ira d~

~ngraxat~.

São facillll~nte obs~rd\~is as r~açõ~s d~ crítica ~ r~pnwaçào qu~

atitud~s dest~ tipo provocam nas p~ssoas qu~ t~11l com d~s uma

U6

relação casual ou indireta (transeuntes. dono do bar. policial.

autoridades do go\'erno. técnicos de projdOS. médicos. dc I, Ti\'e a

oportunidade de listar expressões tais como: "presunçoso". "não

reconhecem SeU lugar". "das não querem é pegar no batente". "não

está \'endo que esta profissão não é para ela'.'" Ou seja. há no senso

comum uma ideologia instalada de que os pobres devam conformar-

Se com sua pobraa. e de que os miserá\'eis de\'am aceitar

misericordiosamente as "chances de recuperação que lhes são

oferecidas". E essa forma de rebeldia. essa ousadia de desejar o que

lheS é impossí\'el alcançar fere aquele princípio que garante uma certa

estabilidade nas relações entre pessoas de classes sociais tão

diferentes, Ou taha sugira uma distante competição. a qual os

SetoreS pri\'ilegiados da sociedade não tolerariam. ou sugere ainda

que para Se firmar a SeUS próprios olhos como classe. não basta Ser

detentora de tantos privilégios. É necessário que Se mantenha o

contraste, A auto-sustentação parece Se basear na diferença. no

contraste entre aquele que tem e aqueles que não t~m.

A VIDA NAS INSTITUiÇÕES

\:este item está sendo abordado as passagens de meninos e menInas

de rua Pl)I' algumas instituições do Rio de .Ianeirn. \:ãl1 me referirei ú

problemL1tica especifica da cnança do adulescente

institucionalizado. porque o perfil do grupo pesquisado não remete a

esta questão. (Para uma \'isiill sobre a criança que \i\e em

,".., " I

instituiçõ~s oficiais. \'~r Altoé. Angda Valladar~s, Wilson Moura ~

outros. cujos trabalhos ~stão na Bibliografia.l

A amostra de crianças qu~ s~ pod~ consid~rar "crias de instituiçõ~s"

no grupo (cinco registros). confirma o fracasso do obj~ti\'l) de

int~gração à soci~dad~. Ap~nas uma jo\'~m s~ alt~lbetizoll nos longos

anos ~m qu~ vi\'~u sob a tutda d~ órgãos oficiais. No mais. o grupo

não se profissionalizou. não des~n"oh'~u interaçõ~s sociais que

possibilitasse uma "ida adulta autônoma, e todos salram das

instituiçõ~s para \'i\'~rem nas ruas.

A "ida de todo melllno ou menllla de rua está r~cheada de estórias

sobre as instituições pelas quais passaram, Conclui-se de s~us relatos

que as crianças e adolesc~nt~s d~ rua passam a maior parte de suas

\'idas numa int~rminá\el ~ inútil \'ia crucis ~ntre as mais \ariadas

instituições ~ num eterno retorno à \'ida da rua,

As crianças map~iam com desem'oltura os nomes. as características

os pontos n~gati\'os e positi\'l)s d~ cada um dos ~quipamentos

disponíwis na cidade. faz~ndo inclusi\'e avaliação sobre a arquitetura

dos no\'os ~quipamentos qu~ são inaugurados, Um adolescente. ao

conhecer a nO\'a casa para m~ninas. inaugurada no Estácio.

comparou-a com a arquit~tura da escola Tia Ciata e fez <l <l\aliação

de que não ~nt~nde porque "~ks ficam construindo casas tudo igual.

Era melhor cada lugar s~r d~ um j~ito. difer~nte", Os meninos e

meninas lidam indistintamente com as instituições para as quais são

~ncaminhados complllsoriam~nt~ e com aqll~las de freqll~ncia

\'oluntária. Repetidas \'ezes oll\'i solicitação de jovens para internação

em akum CRIAt\:1 - Centro de Recursos Inte!.!rados de Atendimento ~ ~

ao \Ienor - que ~ um órgão destinado a ressocialização de crianças

infratoras. para onde são le\'ados compulsoriamente. por decisão do

Juiz. As solicitações tinham como objeti\'() fugir temporariamente da

\'iol~ncia da rua.

As instituições em geral - de caráter compulsório ou não - podem ser

procuradas espontaneamente pelos meninos quando a situação na rua

lhes parece extremamente perigosa. ou quando se sentem muito

debilitados fisicamente e precisam descansar. Da mesma forma. (1S

abrigos alternati\'l)s. de frequ~ncia \'oluntária - aqui se inclui a

experi~ncia escolar - sào confundidos com os primeiros. tahez

porque as regras de- con\'i\'~ncia estabelecidas por estes projetos

sejam igualmente discricionárias em relação ao comportamento das

crianças e adolescentes. De urna forma ou de outra. a \'ida no

interior das instituiçi'les torna-se insuportl\el para os Jo\ens. que

termlllam por retornar para as ruas.

As internações compulsórias. de tào repetidas sào percebidas corno

situações ine\'itá\eis. corno parte da rotina de \'ida deles. As crianças

e jo\'ens expressam graus \'ariados de reaçào às internações: algumas

\'ezes mostram indiferença à detenção: outras \'ezes procuram

re\erter a situação de prisão em algum benefício própriu. quando eles

apro\'eitam a ocasi,lo para conseguir uma consulta m~dica ou um

documento: já em nutras ocasii'les expressam uma re\nlta imediata e

buscam a fuga.

1-' l)

Ilustra ~ssa relaçào inusitada qu~ os jo\'~ns ~stabel~c~m com o local

destinado ao castigo o r~lato d~ uma adol~sc~ntç d~ quinz~ anos,

numa ocasião ~m qu~ fui visitá-la numa instituição para m~ninas

infratoras. Ela contou qu~ foi pr~sa numa festa, ond~ ~sta\'a com o

namorado (também m~nino de rua). O rapaz não foi detido, mas a

acompanhou à delegacia ~ lá diss~ ter participado da infraç<1o. com o

intuito d~ s~r int~rnado no mesmo compkxo qu~ a namorada, no

órgão destinado aos m~ninos. Assim poderia ~ncontrá-Ia nas

ati \'idad~s recreati \'as durante o tim-de-s~mana.

Com relaç<1o às fugas, uma m~nllla de dez~sseis anos contou qu~.

após s~r bem suc~dida numa fuga que lh~ custou muito plan~jal11~nto.

ligou d~ um orelhão para o dir~tor da instituiçào ~ pergulltou s~ ~k

ha\'ia gostado d~ sua ~'fuga sagaz".

Há também o depoim~nto d~ um m~nIno d~ ap~nas doz~ anos qu~

declara já ha\'~r passado pelo "Padr~" ([nstituto Padr~ S~\'~rino.

c~ntro d~ tria!.!~m para m~ninos tla!.!rados ~m atos infracionais) "mais ~ ~

d~ dez \'ez~s". E outros rapazes, mais irônicos. qu~ s~ d~claram

"sócio-atktas" da Instituição, ref~rindo-se às constantes fugas qu~

~mpr~~nd~m.

Os jO\'~ns qu~ cumpriram p~nas mais longas informam qu~ fiz~ram

cursos profissionalizant~s. Mas ~ntr~ todos os ~ntr~\'istados não h:1

um so r~lato d~ apn1\'~itam~nto do conh~cilllento adquirido nos

cursos. após o r~torno a rua. Isto porqu~. na a\'aliaç<1o dos

~ntr~\'istados. não há oportunidad~ d~ utilização do conh~cim~nto

14()

adquirido. qu~ r~sulta inútil. No caso ~specífico das m~nInas - CUJa

int~rnação s~ dá ~m instituiçõ~s s~paradas - muito poucas \'a~s ouvi

r~lato sobr~ ati\'idad~s profissionalizant~ d~s~m'oh'idas na Escola

Santos Dumont ~ nos CRlAMs. R~corri à dir~ção da Escola Santos

Dumont para obt~r informações sobr~ o assunto. ~ a resposta foi qu~

as m~ninas internas têm acesso a alguns cursos como manicure.

cabeleireira e corte e costura, para "ocupar o tempo" na instituição, O

ócio. o tempo não-produtivo. como sabemos. apavora e desconcerta

tanto o espírito religioso quanto o espírito capitalista. Pelas

representações que os meninos e meninas de rua elaboram acerca

destas instituiçõ~s. conclui-se inevitavelmente pelo fracasso das

mesmas em relação aos objetivos declarados. quais sejam. de

ressocialização. educação e integração de crianças e adolescentes à

\'ida social. Na prática. a cada período de internação nessas

entidades cOITecionais os Jo\'ens se distanciam mais de reais

possibilidades de integração na sociedade.

Por outro lado. é igualmente negativa a imagem que a coleti\'idade

elabora sobre a criança que tem passagens por instituições deste tipo.

"A marca da FEBE!\1 e da polícia dá a certeza d~ qu~ e1~ é

intrins~cament~ criminoso. tornando-o para s~mpre culpado p~rant~ a

soci~dad~. Portanto. a passag~m pelo int~rnato t~nd~ a piorar a sua

situação. dificultando suas possibilidades de int~gração social por

outra \'ia qu~ não a da marginalidad~" (Rizzini: 1991)

As instituiçõ~s d~ at~ndim~nto - s~JJm ~scolas. prnj~tos d~

profissionalização ou ~quipam~ntos d~ abrigo - por sua \'a.

1.+ 1

selecionam informalmente a clientela atendida, pelo comportamento

adotado pelas crianças, argumentando que não têm condições de

atendimento especializado. Restam, portanto, a um contingente

especialmente rebelde e difícil repetidas passagens por instituições

repressivas e con'ecionais e um eterno retorno às ruas. Há um

processo não declarado de facilitação de fuga, pelo qual estes órgãos

se livram do con\'Ívio com as crianças as quais não conseguem

submeter ao esquema disciplinar, ou que necessitariam de cuidados

especiais para os quais nenhuma instituição se diz preparada.

Há. entre os grupos de rua, um considerável número de crianças e

jo\'ens que se enquadrariam em diagnósticos de distúrbios de

comportamento. distúrbios mentais ou neurológicos. São crianças que

a família. num primeiro momento. desistiu de atender. e agora são

igualmente rejeitadas pelas instituições, porque são incontroláveis,

não se submetendo nem mesmo a autoridade policial (leia-se

violência física). Esse quadro sugere que as famílias. sem apoio de

equipamentos públicos e de serviços sociais adequados para orientá­

las no trato com esses problemas específicos e ainda sem condições

financeiras de arcar com tratamento adequado às necessidades da

criança. terminam por incenti\'ar o rompimento dos laços familiares.

A forma pela qual a questão ~ colocada pela sociedade. ou seJa

recuperar, reintegrar. ressocializar menores infratores, pivetes,

delinquentes juvenis e tantas outras expressões que refletem de

antemão o julgamento da situação. deslocam o problema da própria

formação sócio-econômica e ideológica da sociedade brasileira, para

142

localizá-lo num segmento desviante, e portanto culpado pda própria

situação de marginalidade. Desse suposto caminha-se naturalmente

para ações de punição, correção e privação de liberdade.

Cumprida a trajetória de cnança pobre a menor infrator. que se

materializa pelas internações em instituições totais. instala-se

definitivamente o estigma de excluído, ilTecuperá\'d e futuro bandido

que se atribui às crianças de rua.

Goffman ( 1988) conceitua estigma como um atributo profundamente

depreciativo e desabonador, capaz de proscre"er da \'ida social, o

indi\'Íduo ou o grupo que o incorpora. A marca atribuída ao grupo

pode mesmo Ie"á-Io a uma condição de desumanidade:

"Por definição. ~ claro. acreditamos que algu~m com um estigma não

seja completamente humano. Com base nisso fazemos \'ários tipos de

discriminações. atra\'~s das quais efetivamente. e muitas \,çzes sem

pensar. reduzimos suas chances de \·ida. Construímos uma teoria do

estigma. uma ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do

pengo que da representa. racionalizando algumas \'çzes uma

animosidade baseada em outras diferenças. tais como as de classe

social." (GOFFrvIAl\'. En'ing. Estigma: Notas sobre ª manipulação

da identidade deteriorada. Ed. Guanabara. 1988. p. )

Por esta "Ia de análise. abre-se caminho para um comportamento

social de intolerância e rejeição contra as crianças. A dupla face da

realidade social está assim constituída.

I·l.)

CAPíTULO 5:

MORRER CRIANÇA NA RUA

144

MORRER CRIANÇA NA RUA

INTOLERÂNCIA, TORTURA E MORTE

o presente estudo Se dirige a um segmento específico da população

infantil socialmente marginalizada no país. ou seja. crianças que

terminam por \'i\'er nas ruas de grandes centros. para lá empurradas

por uma escalada de insensí"eis medidas gO\'ernamentais e omissõeS

da sociedade ci\'il. Por uma infeliz conjuntura de miséria e estigma

social essas crianças constituem hoje o segmento populacional mais

dramaticamente atingido por um conjunto de t~ltores que as t~m

k\'ado à morte precoce. :\ksmo assim. faz-se necess,1rio dizer que

elas não são as úniós \'Ítimas fatais do modelo neoliberal que se

implantou no pais com características particularmente excludentes. É

preciso mais uma \'ez contextualizar o drama dos meninos e meninas

de rua numa realidade social que abrange grande parte da int~1ncia

pobre brasilçira e que culmina em índices de mortalidade int~lntil

inaceitá"eis Se comparados aos padrões econômicos globais atingidos

pelo país.

Recentes índices referentes à situação da infância e da adnlesc~ncia

no Brasil atestam que o modelo econômico e a atuação dos go\ernos

,'em ceifando a "ida de milhares de crianças. A regiilo Sudeste. na

qual Se localiza o fenômeno estudado. considerada a região mais

desen\'oh'ida do país. apresentou em 1989 um índice de mortalidade

no primeiro ano de "ida de .:n mortes para cada mil nascimentos - o

triplo do verificado em países desem'oh'idos. A população infantil

carente (renda famil iar até 1/2 salário mínimo) na mesma região, no

ano de 1990 figurava em torno de 9 milhões de crianças.( Ver Crianças

e Adolescentes: Indicadores Sociais. Fundaçào IBGE, 1989) A

situação da infância pobre vai ainda se agudizando pelo extermínio

sistemático de que os meninos e meninas de rua tem sido vítimas.

com especial intensidade no Estado do Rio de Janeiro. onde. de

acordo com dado divulgado pela Segunda Vara de Menores do

Juizado da Infância e Adolescência. a média mensal de assassinatos

de menores de 18 anos foi de trinta e nove casos no prin1l;~iro semestre

de 1992.

Uma economIa incri\'e1mente excludente aliada a "uma orientação

ideológica fundamentada no autoritarismo" (Relatório da Comissão

Parlamentar de Inquáito sobre extermínio de cnanças e

adolescentes,l992). uma cultura fortemente marcada pela experiência

ditatorial e por práticas sociais caracterizadas pela intolerância com

os des\'iantes fornecem as condições para a prática impune do

extermínio. Na história recente do Brasil abundam exemplos de

segmentos populacionais relegados à condição de subcidadãos ou

não-cidadãos. por interesses de setores dominantes da sociedade.

Fragilizados. estes segmentos se transformam em al\'l)s fáceis de

uma política inconfessa de extermínio. São exemplos os sem-terras.

os seringueiros. os índios. os posseiros em áreas de fronteira agrícola.

Oriundos de classes ruraIs. de t:lmílias espoliadas em seus direitos

básicos. sào agora as cnanças. que do para as ruas.

146

fundamçntalmçnte para procurarçm garantir a propna subsist~ncia,

o al\'o dç procÇssos dç çxtçrminio sistemáticos ç organizados,

A nÍ\'d nacional. o çxtçrmÍnio dç cnanças çstá documçntado no

Rdatório tinal da Comissão Parlamentar de Inquérito acima citado,

Outros documçntos dç igual substância são: "Vidas Çm Risco:

Assassinatos dç crianças ç adokscentes no Brasil":( :\'IN~vll\1 R,

IBASE, NEV-USP) ç "Extermínio de Crianças ç Adolçscçntçs no

Brasil", CEAP (Cçntro dç Estudo de Populaçõçs Marginalizadas),

1989,

A inclusào de um itçm sobrç \'iol~ncia e mortç no prçsçntç çstudo

tornou-sç imprçscindÍ\'d no dçcorrçr da Pçsquisa, dç\idn a dois

Lttorçs: o primçiro dçles é qUç ticou atestado qUç o mçdo da mortç é

um Lttor marcantç na \'ida das crianças, As constantçs amÇaças ç a

\'iol~ncia física ç psicológica qUç caractçrizam o cotidiano do grupo

produzçm Çm grandç partç o comportamçnto \'ioknto ç o

rçssçntimento contra a sociçdadç, Não se podç comprççndçr as açõÇs

infracionais ou comportamentos classificados como anti-sociais por

wZÇS adotados pdas crianças, fora deste contexto dç afronta aos

direitos da PÇssoa humana, ç, ainda mais gra\,ç, contra Pçrsonalidadçs

Çm procÇsso dç dçsçll\'oh'imçnto, Em sçgundo lugar. porquç ç

nçcçssário traur à luz çsta facç sombria da nossa sociçdadç para qUç

possamos denunciá-Ia ç combatê-Ia, Práticas sociais pautadas pçlo

prçconcçito racial. discriminaçào dç classç ç dç gênçrn t~1ll sido

cuidadosamentç ocultadas por \'çrdadçs embkmáticas do tipo "nào há

racismo no Brasil", "somos um povo pacato ç solidário", "há uma

1~7

comWencIa harmoniosa entre as elites e o pO\'O brasileiro", Se

qUeremos uma nação pautada pelos princípios de solidariedade e

justiça. nào podemos nos esquivar de encararmos os resquícios de

autoritarismo. intolerância e preconceitos que sustentam as práticas

as quais exemplificaremos.

Foucault propÕe qUe. para nos aproxImarmos da concepçào qUe a

sociedade fOlja sobre si própria. de\'emos nos deter num " ... proCeSSO

de im'estigação qUe consiste em tomar as formas de resistência aos

diferentes tipos de poder."

"Para Se compreender o qUe a sociedade entende por sanidade. por

eXemplo. talvez seja preciso analisar o qUe Se passa no campo da

insanidade. E. da mes"ma forma. analisar o qUe Se passa no campo da

ilegalidade para compreender o qUe queremos diZer quando falamos

da legalidade, Quanto às relações de poder. Se qUIsermos

compreendê-Ias. talvez tenhamos qUe analisar as formas de

resistência e os esforços dispendidos para tentar dissoh'ê-las""

("Porque estudar o poder: a questão do sujeito". mimeo)

~o caso presente. em qUe enfocamos a oposição entre um segmento . da população int~lnto-ju\'eniI. destituida do aCesso aos bens materiais

e culturais do país e parcelas dominantes da sociedade. temos que a

indiferença. a intolerância. e a repressão afloram como caracteres

constitutiH)s da cultura nacional.

148

Algumas instâncias da soci~dad~ ori~ntam-s~ ~xpr~ssament~ ~m fan)J"

da política de ~xt~rmínio como solução para a qu~stão dos meninos ~

m~ninas de rua. Citarei alguns posicionam~ntos aos quais ti\'~ ac~sso.

pela grand~ capacidad~ d~ r~percussão qu~ ~ste discurso encontra na

soci~dade ~m g~ral.

CRIANÇA POBRE: UMA QUESTÃO DE SEGURANÇA

NACIONAL

o docum~nto Estrutura do Poder Nacional para o ano 2001.

elaborado pela Escola Sup~rior d~ Guerra no ano de 1990. trata o

probkma da pobreza ~ do menor abandonado no it~m destinado à

S~guranca Pública. S~ndo um documento oficial. ~ lícito inferir qu~

ele expr~ss~ uma dir~triz qu~ Yá balizar açõ~s di\'ersas nesta úrea.

"0114 - Da Segurança Pública

\'0 úmbito int~rno. como fort~ al1l~aça futura ao ob.i~ti\o nacional

p~rmanente Paz Social e à própria paz. há uma situação compkxa qu~

\~111 af~tando ~. at~. pod~rá at~ntar contra a Segurança Pública d~

modo d(lminant~. com rdl~xos e. m~smo. atingim~nt() do campo da

S~gurança. gerando um estado d~ insegurança gen~ralizada tal qu~ os

pod~r~s constituídos. nos t~rmos da Constituição. \'~nhal11 a pedir o

concurso das Forças Armadas para restaurar a lei e a ordem.

1.+9

Este quadro antevisto decorre de dois problemas interligados. os

cinturões de miséria. que envolvem as grandes cidades. e a questão do

menor abandonado,

a) os cinturões de pobreza

o pnmeuo problema faz proliferar e interage com ofertas de

"empregos informais". ocupações bem remuneradas a adultos. jowns

e. mesmo crianças. de organizações criminosas com aparentemente.

fortes suportes no meio da sociedade. Há \'erdadeira rede. cada vez

mais nítida, que explora jogo. tóxicos e, possivelmente. outras

mazelas sociais.

Na medida em que Estado e Sociedade não conseguem oferecer

trabalho. bem estar e segurança. essas estruturas clandestinas de

\'irtual poder paralelo v~m criando condições de melhoria para cada

coletividade local. no micro-espaço onde a estrutura atual. o que lhes

enseja junto à população moradora local. se não uma atitude de

participação ou mesmo. de cumplicidade, pelo menos enseJa um

ambiente de simpatia e. até de solidariedade, quando IH) confronto

com forças da lei,

o exemplo atual da Colômbia (]989) aponta um quadro possível de

ocorrer. com presença de subversão e contestação aos \'almes

democráticos no contexto deste problema. o que poderá levar um dos

150

poderes. Executi\'o. Legislati\'o ou Judiciário. a tomar a iniciativa

quanto ao emprego das Forças Armadas para restaurar (ação

posterior) ou garantir (açào preventiva) a Lei ou a Ordem ameaçada.

b) o menor abandonado:

Este segundo problema. qUe pode trazer ameaças à paz social. ~ o do

menor abandonado. Sem pais. com pais qUe ddes se desinteressaram

ou que não têm quem ddes cuidem enquanto trabalham. na \'erdade

\'i\'em ou sobrevivem nas ruas. Aos poucos \'ai se criando entre des e

os marginais adultos que os exploram. um código moral próprio. cuja

síntese ~: o crime compensa.

E difícil avaliar-Se quantos são. As estimativas do desde muitos

milhares e até milhão. ou milhões. Se. apenas para conjecturar.

supusermos que. hoje. este uni\'erso já seja de uns 200.000 menores

(que é um número modesto. em faCe da amplidão das estimati\'as)

temos que no início do próximo século haverá um contingente de

marginais. malfeitores e. mesmo. de assassinos de efetivo semdhante

ao atual do Exácito. O que nos orientará. nesse quadro prospecti\'(.)

dos lllennres de rua. lra1l.\mulado,\ em mlullo.\ ha/l(lido.\. sed a falta

de respeito ao direito alhein e. mesmo. à \'ida.( grifo meu)

.·U ellu;o. quando tI.\ Polícias fallarem condiçries para enli-enlar lal

siwa('üo. o que ti ra::oál'el imaginar que ocorrerá fatalmenle, os

poderes con,wituído.\ Execllfil'O, Legislali\'(} ou Judiciário, podeJ'{;o

pedir o ('o/l(:ur.'iO da.\ Forra.'i Armada.'i. para que .\e in cu 111 h a 111 do

I ~ I

dum el1cargo de e'~/i'el1tar es.Wl horda de h{l/ulidos, I1eutralizá-lo.\ e,

",esmo, destruí-los, para ser malltida a Lei e a Orde",. (gri fo meU)

Con\'t!m pOIS impedir que tal cenano se concretize. As Forças

Armadas, como missão complementar assumida, poderão, desde logo.

cooperar com as autoridades e a sociedade para a sol ução deste

problema que, hoje, t! da competência do Minist~rio da Justiça e das

Secretarias Estaduais da Justiça. mas que, no longo prazo. poderú \'ir

a ser da competência das Forças Armadas, Se elas forem obrigadas a

agir em atendimento de pedido dos poderes constituídos. nos termos

da Constituição." (Presidência da República. Estado Maior das Forças

Armadas. Escola Superior de Guerra. Estrutura ~ Poder ~acional para

.Q ano 2001. Rio de Janeiro, 20. \'01.. 1990, p.2SJ-285)

A IMPRENSA

Os meios de comunicação, de modo geral. têm tido um papel

destacado na fabricação da identidade social dos meninos de rua

como pivetes irrecuperáveis e ameaçadores da ordem pública. Na

cidade do Rio de Janeiro, praticamente todos os grandes jornais

promo\'em sáies de reportagens sobre "Violência Urbana". "~\'Iis~ria"

e "Segurança Pública". itens nos quais incluem anúlises sobre a

atuação e a "ida de crianças e jovens que habitam as ruas. quase

sempre responsabilizando essas crianças pela situação de insegurança

qUe desespera a população carioca. O Movimento 0.'acional de

Meninos e Meninas de Rua do Rio de Janeiro. o !BASE e outros

152

órgãos qu~ s~ d~dicam à atuaçào dir~ta com as crianças ou à anális~

da situação da infância pobr~. dispõ~m d~ catálogos atualizados

sobr~ as matérias ~stigmatizantes publicadas na impr~nsa ~scrita.

Limitar-m~-~i a transcr~\'~r uma r~portag~m publicada no jornal O

POVO. no ano d~ 1991. pda inacreditá\'e1 campanha ~m fa\'()J' do

~xt~rmínio d~ crianças.

:\Ieninos ou demônios de rua

"Imagin~rnos uma cidad~ im'adida por milhõ~s d~ ratos. EI~s sa~m

dos ~sgotos. ad~ntram nas lojas. atacam as casas. inwstem contra as

p~ssoas. ~ão há como resistir-lhes. Prim~iro são chamados os

garis (*). logo postos para corr~r. afug~ntados pdos dent~s afiados

dos mamít~ros t~1mintns ~ furiosos. D~pois chega a Polícia. com

bombas d~ gás ~ m~tralhadoras. Até m~smo lança-chamas são

utilizados ~. ao final d~ algum t~mpo. as forças da ki recuam. Os

roedor~s \·~nc~ram. A cidad~ está domínada."

Essa é a imag~m qu~ faz~m()s d~poís de I~r o t~xto e d~ \er as fotos

da r~portagem produzida por \:Iário T eix~ira e Eduardo Faustini

sobre os meninos (ou demônios'.') d~ rua d~ nossa cidade. \kninos e

meninas qu~ arr~ganham os d~ntes no mom~nto ~m que arrem~t~m

contra uma s~nhora no Largo da Carioca ou quando assaltam um

casal de turistas na A \'~nida Atlântica. Garotos ~ garotas qu~

arrancam o tênis de uma adolescente. às 11 horas. nas imediaçôes da

Central do Brasil. diante de policiais qu~. a 20 m~tros de distúncia

I -., :- .'

assistem à cena de violência. O Rio de Janeiro foi dividido pelos

meninos e meninas (ou demônios'.') de rua em áreas de perigo onde

não se deve passar a qualquer hora do dia ou da noite. sob o risco de

um ataque ou at~ mesmo de um ferimento grave. produzido por

facada ou golpe com caco de garrafa. A partir de amanhã e nos cinco

sábados seguintes. O POVO na Rua estará mostrando como \'I\'em

nas ruas do Rio de Janeiro estes pequenos demônios que cheiram

cola. t:1zem amor nos bancos de jardins. crescem e se reproduzem

como ratos. ameaçando a segurança de toda uma cidade.

(*) De fato. vanas \'ezes testemunhei a ação da Companhia de

Limpeza Urbana da Cidade do Rio de Janeiro na remoção de crianças

e outros segmentos da população de rua do município,

O COl'vlÉRCIO Os comerciantes estabelecidos em bairros onde a

cada dia aumenta a chamada população de rua se sen tem

prejudicados porque tendem a perder a freguesia. amedrontada com a

cOl1\i\'ência com esta população. e porque se dizem \'Ítimas de furtos.

roubos. assaltos e intimidação por parte daqueles. Para se defenderem

destas in\'estidas. considerando que não contam com a atuaç;lo dos

órgãos públicos. nem na forma de proteção aos direitos dl) cidadã().

nem como repressão à ação de justiceiros. os comerciantes da cidade

adotam a prática de contratarem "seguranças encarregados de dar

conta do problema, Associações comerciais de bairros. hoteleirlls e

outros apregoam na imprensa e em outros fóruns a necessidade de

reprimir a população de rua, Encorajado certamente pelo respaldn

de amplos setores da sociedade tluminense. o então presidente do

Clube de Diretores Lojista de Duque de Caxias. proferiu

publicamente uma sentença de morte a crianças socialmente

marginal izadas:

"Quando se mata um pintinho, está se fazendo um benefício à

sociedade." (abril91 jornal O DIA)

Esta declaração te\e ampla repercussão na imprensa e foi objeto de

ill\estigação da Comissão Parlamentar de [nqu~rito que ill\estigou o

extermínio de crianças no país.

A COMUNIDADE

Não ~ apenas pela omissão dos órgãos governamentais qUe Se acirram

as iniciati\'as de \'iol~ncia contra os meninos e meninas de rua. Há. na

\'crdade. um "olhar exterminador" da sociedade. conforme denunciou

a presidente da Comissão Parlamentar de Inquáito que il1\estigou o

exterminio de crianças e adolescentes no país.

[nconformada em ter de con\'l\'er com esta face sombria da

sociedade. sentindO-se cerceada em SeU direito de ir c \ir. obrigada a

encarar diariamente a misáia exposta nas ruas c encurralada em

\'erdadeiras fortakzas. uma expressi\'a parCela das classes máiia e

alta urbanas busca argumentos que justifiquem sua omissüo c mesmo

sua aquiesc~ncia ao processo de extermínio dessas crianças. ,-\Igumas

expressões são classicamente repetidas nas ruas. corno parte desta

argumentação. Por exemplo: "estes jO\'ens não tem jeito mesmo".

"essas crianças estão perdidas". "está se gastando \'ela boa com

defunto ruim" foram expressões usadas por comerciantes a respeito

da instalação de um projeto de atendimento a meninos de rua nas

imediações de seus estabdecimentos comerciais. Outras expressões

como: "é melhor o gO\'erno gastar recursos com as famílias, com

aqueles que não delinqüiram", "não adianta dar casa e comida para

eles. \'ocês estão é alimentando bandidos para depois ir assaltar

nossos filhos" são apenas alguns exemplos dos muitos depoimentos

espontâneos que a população presta aos educadores durante a

. . . permanencla na rua com as cnanças.

As reações de hostilidade. ódio e preconceito seriam inumer{l\·eis. e

se deram praticamente em todas as ocasiões em que acompanhei os

jO\'ens em ambientes como transporte público. bares ou lanchonetes.

equipamentos de saúde. ou seja, em locais freqüentados pela

população em geral. Algumas ilustrações:

I ):\um fim de tarde. quando o mo\·imento de pedestres da Praça

Saens Pena se intensifica com o fim da jornada de trabalho. um

policial que da\"a plantão na cabine da Praça tenta\'a controlar um

menino. de doze anos de idade. que debatia-se desesperadamente

nas mãos do policial. Uma roda de transeuntes assistia à cena.

Quando me aproximei do local o guarda soltou o menino. que correu

em busca de proteção. Perguntei o que esta\'a acontecendo e o

policial me fez o seguinte relato: o menino esta\'a lanchando num bar

em frente. quando o dono do bar pediu que de se retirasse. porque ali

156

não era lugar para pi\'etes. O menmo retorquiu. dizendo que uma

moça lhe havia pago o lanche, qUe de não esta\'a roubando, c

portanto não iria sair. Com a recusa do menino. o dono do bar teria

lhe tomado o copo de suco c o colocado à força na rua. O menino

então passou a atirar pedras para o interior do bar, quebrando uma

\'itrine de alimentos. O policial concluiu que teria de autuar a criança.

porque ela pro\'ocara prejuízos ao patrimônio.

À \'ista do rdato perguntei ao policial Se era lícito tomar da mão do

mel1lno um lanche qUe de ha\'ia comprado. c se o dono do bar

poderia escolher Seus fregueses. Elc disse qUe Se cU me

responsabilizasse. ele liberaria o menino em minha companhia. para

encerrar o assunto. :-\ população passou então a insultar o menlllo.

inclusi\'e sugerindo qUe cU estaria "dando força prá pi\'ete".

O menino chora\'a muito. c cU perguntei se de gostaria de sair dali. c

ir comigo lanchar em outro lugar. ao que de aquiesceu. Saímos sob

um clima de hostilidade c mesmo sob xingamentos de cidadãos que

repetiam que "o jeito ~ acabar com des".

2) Lma menma de I:; anos foi encontrada em precano estado de

saúde pda educadora. por ter consumido uma grande quantidade de

cola de sapateiro. A educadora acompanhou-a a um Hospital Estadual

em busca de atendimento m~dico. Após aguardar mais de tr~s horas

pdo atendimento. a m~dica de plantão dirigiu-se à educadora

perguntando Se ela não tinha mais nada o que hlZer. para estar

naquele local de madrugada. com uma menina de rua, ,--,\ educadora

157

r~spond~u qu~ ~st~ ~ra o s~u trabalho (d~ ~ducadora) ~ qu~ o da

m~dica ~ra d~ at~nd~r Ú população qu~ a procurass~. A m~dica ~ntão.

ignorando a pr~s~nça da m~nina. ~scre\'~u no prontuário. ao m~smo

tempo qu~ repetia ~m \'OZ alta: "m~nina qu~ ch~ira cola" no local

d~stinado ao nom~ do paci~nt~. A m~nina reagiu. informando qu~

tinha nom~. qu~ s~u nom~ ~ra "Aninha". A m~dica disse que tanto

fazia. qu~ para da basta\'a aqu~la id~ntificação .

.3) Eu acompanhava um grupo d~ crianças ~ adolesc~nt~s. quando fui

int~rpdada por uma s~nhora qu~ p~dia ~xplicaçõ~s sobr~ o trabalho

qu~ ~ra d~s~n\'oh'ido com o grupo. Ao discorr~r sobr~ os obj~tivos

do trabalho. a senhora diss~ qu~ a da interessa\'a sab~r s~ o dinh~iro

qu~ da pagava d~ imposto ~sta\"a s~ndo gasto com "isto". Alguns

adol~sc~nt~s propus~ram-s~ eles mesmos a r~sponder. A s~nhora

diss~ qu~ nào cOI1\'~rsa\'a com "pi\"~t~s" ~ m~ qu~stionou sobr~ o tipo

d~ educaçào qu~ ~u m~ propunha a dar. já qu~ consid~ra\'a um

d~sr~speito um dos meninos ~star fumando. Alegou ainda qu~ a

conc~ntração d~ crianças próximo ao ~stab~l~cimento com~rcial d~

sua propri~dad~ "d~s\'aloriza\'a n IPTLJ qu~ da pag;l\·a".

COMO AS CRIANÇAS VIVEM SUA SITUAÇÃO DE

ESTIGMATIZADOS

Durant~ o período d~ p~sqU1sa com os J0\"~ns ficou claro que a

constant~ am~aça d~ mort~ sob a qual '\'i\'em" t~m Ulll ~f~ito

psicológico d~t~rminant~ nas suas açõ~s cotidianas. A \'iol~ncia

policial ~ parapolicial. as am~aças implícitas ~ ~xplícitas d~

assassinato transtornam a \'ida do grupo, af~tando algumas crianças

at~ à obs~ssào.

A tortura contra cnanças ~ J()\'~ns de rua ~ uma prática cotidiana,

Policiais ~ parapoliciais, seguranças contratados por lojistas.

simpatizantes d~ ideologias d~ ultra-direita ou mesmo matadores

profissionais atuam com total d~st:1çat~z. praticando crim~s contra os

direitos humanos qu~ variam da am~aça verbal. passando por ensaios

de assassinato at~ a ~x~cução sumúria, na c~rtçza ck contar~m com a

simpatia ou a omissão da soci~dad~ e com a impllnidad~ legal. A

pr~s~nça de ~ducador~s. p~squisador~s ou outros adultos junto as

crianças pouco ou nada modifica ~stas im'~stidas. Ao contrúrio. ~ss~s

adultos passam a S~r d~s tamb~m objeto de intimidação ~ m~slllo d~

am~aça implícita ou ~xplícita por parte dos agr~ssor~s,

A alls~ncia de p~rsp~cti\'as d~ \'ida futura dita. ~m grand~ part~. o

comportam~nto pr~s~nt~ dos jO\'~ns. Há d~poim~ntos ç1oqu~nt~s qu~

ilustram essa afirmação:

Corria a ~ntr~\'ista com um rapaz d~ dçzess~t~ anos. \:0 it~m sobr~

saúd~. p~rguntei como ~I~ s~ s~ntia fisicam~nt~. s~ ~Ie tinha qu~ixas

quanto ao seu estado de saúd~. A resposta à p~rgunta foi

dçsconc~rtante: "'\ão. tia. ~u nào t~nho nada. Ill~U corpo so dói

quando a polícia bat~."

1:'9

Numa ocasião I!m qUI! os I!ducadorl!s do EXCOLA oril!ntavam os

adoll!scl!ntl!s sobrl! formas de se prl!\'l!nirl!m contra o contágio da

AI DS, um menino dI! apl!nas traI! anos refletiu: "Nào sl!i prá que

I!SSI! negócio contra AIDS. a gente nào vai mOlTer mesmo'!"

Uma jovem de 16 anos. com uma I!stória de vida particularml!ntl!

trágica, conta qUI! procura realizar algum ato glorioso. qUI! a destaque.

a tornl! lider I!ntrl! os grupos. busca o "SUCI!SSO" iml!diato porqul!

" .. .já I!stou no fim da linha, não posso pensar I!m coisas prá dl!pois.

pro futuro, .. " Um rapaz de 15 anos. consultado sobre planos para o

futuro, disparou:

"Futuro. que futuro'.' minha vida ~ COlTl!r deks (polícia) e a "ida deks

~ COITl!r atrás dI! mini." Nào cabl! aqui tecl!r maiorl!s considerações

sobre a gênese dessas a\'iltantes práticas sociais. Limitar-me-ei a

relatar fatos que presenciei ou que constaram de depoimentos das

crianças durante estes meses de con\'lvenclU. fatos estes que

constroem o destino destas crianças.

TORTURA

1) um jovem de 15 anos. flagrado numa tentati\'a de assalto por um

P~L conta que o policial disse a ele que nào o conduziria à Dekgacia

de Protl!ção à Infância I! Adokscência porque. na a\'aliaçào do

policial. isto tomaria muito tempo e nào adiantaria nada. \'isto que

logo o rapaz seria liberado por falta de testemunhas. O P\1 dl!cidiu.

160

por conta própria, aplicar uma pena que considerava justa para o ato

cometido pelo rapaz: 1ç\'OU-O para um local ermo e obrigou-o a

caminhar várias vezes sobre lima trilha de cacos de vidro que o

próprio menino ajudou a construir, esmigalhando galTat:1s \'azias.

Esti\'e com este menino no dia seguinte do ocorrido, e os seus p~s

esta\'am bastante infeccionados, estando e\ç inclusi\'e com t'çbre.

2} Presenciei uma tentativa de recolhimento de populares de rua. por

integrantes da PM. COMLURB e Fundaçào Lâo XIII. Os guardas

tomavam os pertences das crianças para colocá-los num caminhào da

CO~lL URB. Um menino de aproximadamente sete anos segura\'a um

pote de cosm~tico. um creme para cabdos e não queria entregá-lo. O

guarda pisou "acident~lmente" (conforme se justificou para mim} na

mão do menino, ferindo-lhe os dedos e arrancando-lhe uma unha.

Antes de partir. o policial disse que castiga\'a o menino porque elç

tamb~m era pai. e não suporta\'a \'er crianças usando drogas.

C ertamente de imaginou que o pote continha cola de sapateiro. o que

não era \'erdade. De qualquer forma. sendo coslll~tico ele poderia

alegar que era pro\'a\'dmente furtado, porque ~ certo que o menino

não possuia renda própria.

O ar~umento da paternidade I)ara Iç~itimar uma a~ressào física a _ t..........

meninos e meninas de rua foi e\'l1Cado algumas \'çzes. por policiais de

batalhões diferentes e em pontos di\ersos da cidade .

.)) Dois jo\'ens foram le\'ados, à \'ista dos educadores para uma cabine

policial no Largo da Carioca. sob suspeita de estarem escondendo em

161

suas roupas dinheiro produto de furto. Os educadores não puderam se

aproximar da cabine, porque o local esta\'a em obras e cercado por

grades. Enquanto procura\'am contatar advogados para interferir no

caso, os memnos le\'avam golpes de cacetete nos joelhos. inclusi\'e

um sendo obrigado a bater no outro, sob as ordens dos policiais. O

requinte de crueldade absurda e humilhação inusitada foi chegar ao

ponto de obrigar os meninos a comer meleca que tinl\'am de seus

nanzes.

-+) Um grupo de adolescentes dormia sob um \'iaduto na zona sul.

quando foram acordados por um policial armado que os obrigou, sob

a mira do re\'óh'er. a segui-lo até a cabine mais próxima. ;-";a cabine.

onde se encontrava outro policial. informaram aos jo\'ens que eles

esta\'am proibidos dé residir naquele local, e para que eles não

reincidissem na tentati\'a, os submeteram ao seguinte ritual: cada um

dos meninos (9 no total) era obrigado, sob pancadas. a entrar na

cabine. Lá. era forçado a arriar as calças. e passa\'a então a apanhar

nas nádegas com um facão. sendo a surra acompanhada de ameaças.

As meninas foram obrigadas a assistirem a cena, Após torturarem

todos os meninos. os mandaram embora e passaram a agir com as

meninas (3). Estas foram agredi das física e \'erbalmente com tapas e

insultos. após o que os guardas mandaram-nas tirar a roupa. para

fazer uma "revista". Durante a "re\'ista" na adolescente de dezessete

anos. esta gritou. atraindo duas senhoras até a cabine. quando os

guardas então liberaram o grupo, ~a noite seguinte. entretanto. outros

policiais \'oltaram para "terminar o trabalho": os rapazes de\'el'iam

162

sustl!ntar I!norml!s pl!dras, como nào conseguiam, I!ram obrigados a

ml!rgulhar na Lagoa. com roupa I! tudo.

5) Meninas da Praça Sal!ns Pena contaram, na sl!mana I!m qUI!

inicia\'a o trabalho dI! pesquisa com as crianças dI! rua daqul!ll! local,

que, à \'éspera de nossa \'isita, policiais do dekgado "Eu\'igio" as

tinha transportado dI! carro até o Alto da Boa Vista. durantl! a

madrugada. e I!nsaiado com das o SI!U futuro assassinato. 6) Um

ml!nino de trezl! anos, qUI! I!m maio de 1992 dormia junto a um grupo

dI! crianças, contou-ml! qUI! na noite anterior da nossa \'isita "uns

meganhas" haviam chutado as crianças durante a noitl! I! prl!\'l!nido-as

a não mais dormir naqudl! local. por orientação dos comerciantes.

Nessa ocasião o grupo de educadores contratados pela Prefeitura

acompanha\'a as crianças em três plantões noturnos semanais. Os

meninos nos ad\'ertiram para que fizéssemos os plantões em dias não

estipulados, porque os guardas e os seguranças já conheciam nossos

horários. e deixa\'am para "agir" nos outros dias.

7) A assistente social do Projeto EXCOLA encerrara suas ati\idades

com um grupo de crianças e adolescentes na Cinelândia. e

encaminha\'a-se. acompanhada de \'árias crianças do grupo. ao ponto

de ônibus. Um hOll1l!m à paisana sacou uma arma. engatilhou-a na

presl!nça da educadora e I!ncostou-a na nuca de um jo\'em de 16 anos.

A educadora pediu desesperadamente ao homem que não atirasse. que

o menino esta\'a sob sua tutda. que da esta\'a trabalhandn com eles.

O homem então apontou a arma para a I!ducadora e disse que ela seria

rl!sponsabilizada pelas infrações que o grupo \'iesse a cometer. já que

16~

I!sta va "dâendl!ndo band ido". A rguml!ntou ai nda q UI! da dl!\'l!ria

agradl!cê-Io por I!star na rua. dando proteção à população. O ocorrido

foi denunciado a rl!prl!sl!ntantl!s da Anistia Intl!rnacional.

A DURA CONSCIÊNCIA DA MORTE

No dia 10 de dezl!mbro de 1991, como parte da coml!moração do Dia

Internacional da Declaração dos Direitos Humanos. vanas

organizações não-gO\'l!rnaml!ntais programaram um ato na Cindândia

para denunciar o I!xtermínio dI! crianças I! adokscl!ntl!s no Estado do

Rio dI! Janl!iro.

Tral!ntas I! oitenta I! SI!IS (*) pl!qul!nas cruZI!S dI! madl!ira foram

dispostas na I!scadaria da Câmara Municipal. simbolizando as mortl!s

rl!gistradas at~ aquda data no ano dI! 1991. Vários cartazl!s. com

manchetl!s de jornais I! outras publicaçõl!s nacionais I! intl!rnacionais

qUI! noticiavam as mortl!s das crianças foram afixadas I!m grandl!s

pain~is, como suporte das denúncias.

Constava ainda da programação discursos dI! rl!prl!sl!ntantl!S dI!

I!ntidadl!s ligadas à dâesa dI! dirl!itos humanos. políticos. I! parl!ntl!s

das \'ítimas. Um sho\\' dI! música. com artistas convidados encerraria

o ato. Os ml!ninos e ml!ninas qUI! "ficam" nas adjacências da

Cinelândia se reuniram mais cl!do que o habitual para participarl!m

dos I!\'entos. A princípio I!utl)ricos com a programação extra. os

jovens aos poucos pareciam tomar consciência que não ha\'ia muito o

164

que comemorar ali. As cnanças pega\'am as crUZeS. conta\'am.

confirma\'am junto aos educadores se aquilo tudo representa\'a

meninos e meninas de rua que foram assassinados. Checa\'am com os

companheiros e atribuiam uma cruz para cada nome que lhes \'inha à

lembrança. Algumas. perplexas diante das fotos sensacionalistas.

reconheciam companheiros trucidados e se pergunta\'am se elçs

próprios morreriam daquela forma. Mães de filhos assassinados,

alguns. segundo seus depoimentos, a1Tancados do próprio lar,

chora\'am indignadas as mortes para as quaIs nunca conseguIram

justiça.

Tudo isto acontecia sob quase total indiferença da população. que Se

apressa\'a em não Se defrontar com tão delicada questão. A omissão.

como muito bem sabem aqueles que já sofreram injustiças. ~ uma

forma de posicionamento quanto à questão.

Durante o sho\\' de encelTamento. uma forte chu\'a caIU sobre a

cidade. le\'ando os meninos e meninas a se recolherem mais cedo.

precariamente protegidos sob o palanque que ser\'ira para denunciar

as condições subhumanas de suas \'idas. A concretude da morte.

pretáita mas também anunciada pelas crUZeS. empresta \'a às

fisionomias dos jlwens uma profunda melancolia. e eles procuram

algum consülo para aquela "O\'erdose" de consci~ncia. aconchegando­

se uns aos outros. buscando na cola ou no sono alguma esperança.

(*) O numero de assassinatos oficialmente reconhecido pela

Secretaria de Polícia Ci\'il no período citado ~ de 285. A diferença do

165

numero apontado pelas entidades de defesa dos direitos humanos

de\'e-se à inclusào dos casos de morte de jo"ens com dezoito anos

completos. quando a Secretaria só computa as mortes de j(wens até

dezessete anos.

MORTES

Relato da morte do Luciano - 2 mcses

Luciano era o segundo filho de um casal de adolescentes que Se

conheceram há quatro anos, ambos integrantes de uma "f:1mília de

rua" qUe à época \'i \'ia em Copacabana.

o casal-\'i\'ia. no ano de 1991. em Copacabana. em companhia de

outras crianças c jo\'ens. A filha mais "elha conta\'a um ano c quatro

meses quando do nascimento do menino. Ambos esta\'am sendo

amamentados pela màe. qUe submeteu-se a tratamento ~)I"é-natal. Da

mesma forma, os pais le\'a\'am regularmente as crianças ao Posto de

Saúde para \'acinação c atendimento médico. \:0 domingo. dia ~ de

maio. o bebê apresentou febre c esta\'a muito encatarrado. Os pais

procuraram o Hospital ~'Iiguel Couto. onde a criança foi atendida c o

médico prescre\'eu comprimidos de AAS infantil. O m~dico informou

qUe não poderia fazer outros exames. segundo o registro da mãe.

porque o Hospital esta\'a muito cheio. A família retornou ao local de

costume c ministrou a medicação ao bebê. que apresentou melhora.

166

Conta a mãe que a morte do menino sobreveio durante a madrugada

seguinte, quando a família dormia, acompanhada de outros

integrantes do grupo, quando começou a chover, já de manhãzinha. A

mãe e o pai levantaram-se e abrigaram as crianças com algumas peças

de roupa. A mãe colocou o bebê num carrinho e cobriu-o com um

plástico, para que ele não pegasse chuva. Seguiram pai. mãe e filhos

em busca de um local coberto. Solicitaram alojamento na entrada de

um clube próximo. Lá perceberam que o bebê esta\'a muito quieto. O

pai tirou-o do carrinho e sacudiu. já percebendo que ele esta\"a imóvel

e arroxeado. Fala a mãe:

"Aí. tia. mesmo sem saber direito. sem ter certeza de nada. ele

começou a chorar. a dizer que uma coisa ruim tinha acontecido. que

eu nem ia acreditar. Aí eu chorei também, sem saber nada direito. só

via a barriguinha do neném que não queria se mexer. Entào ele (o

pai) disse prá mim: Aí. acho que o nosso filho está morto. e agora'.} O

que será que aconteceu . .' Tudo isso aconteceu no dia quatro. no dia

cinco. cinco de maio. era o dia do meu aniversário. se lembra. tia'! 16

anos. e eu ta\"a lá. fazendo aquelas coisas. pra \'er se enteITa\';} o meu

filho ... "

Continuando o relato a menll1a disse que um empregado do clube

\'CIO \'Cr o que esta\"a acontecendo, e prestou auxílio à família.

Ie\'ando-a para o interior do clube. Lá a màe sacudiu a criança mais

uma \'ez e constatou que ele esta\'a de fato morta. Orientados pelo

empregado. telefonaram para a polícia dando conta do acontecido.

167

Quando o dia amanheceu, ligaram tamb~111 para as educadoras do

SEMPRE VIVA, solicitando auxílio.

o corpo da criança foi encaminhado ao Instituto M~dico Legal, onde,

realizada a autópsia, constatou-se a morte por pneumonia sufocante.

A partir daí os pais e as educadoras empreenderam uma \'erdadeira

maratona para dar à criança um entelTO digno. Já na manhã em qUe

ocorrera o óbito, alguns moradores das adjacências, qUe Se

relacionavam com os jovens. principalmente com as meninas e SeUS

bebês, aconselharam aos pais a deixar qUe a criança fOSSe enterrada

como indigente, porque "já estava morto mesmo, ~ melhor ter

trabalho com quem esta\'a \'i\'o". AI~m dos pais, todo o grupo de

cnanças Se empenhou nos prOCedimentos para o enterro. o qUe

ocorreu cinco dias ~pós o óbito. Ainda segundo a jm'em mãe:

" ... tinha muita gente lá, perto da gente, no dia do enterro. as tias e nós

mesmos. Foi o segundo enterro de criança qUe eu fui ... o primeiro

tamb~m foi de um bebê de cinco meS. do nosso grupo, filho da Maria

e do João. tamb~m mOITeu de pneumonia. que dá muita pneumonia

na rua ... Tamb~m. porque qUe ~ qUe nosso filho não tem qUe ser

enterrado'.' Tem sim. tem direito. Queria ver se aquela dona nào ia

querer enterrar o filho dela. se ela tem filho. n~. não sei".

(O resumo da estória de \'ida da mãe do Luciano encontra-se em

anexo)

168

Paulo Henrique

Paulo Henrique, assassinado o dia 17 de julho de 1992. aos 14 anos de

idade, integrava um grupo de adolescentes que vivia em Copacabana.

Embora a pesquisa não se estendesse àquela região da cidade. travei

contato com o menino através do grupo que \'elo a residir na

REPÚBLICA. localizada na Tijuca. O acirramento de ações

repressl\'as por parte de policiais e seguranças contratados por

hoteleiros da orla marítima, a partir do ano de 1991. praticamente

desbaratou o grupo de crianças e adolescentes que "vivia" no Posto 6.

Vários jo\'ens foram encaminhados pelas educadoras do programa

SEMPRE VIVA a no\'os abrigos inaugurados na cidade do Rio de

Janeiro para atendimçnto a crianças de rua. Entretanto. parte do grupo

inicial permaneceu nas ruas. por impossibilidade de \'agas nas

instituições recém-inauguradas.( *)

As cnanças remanescentes adotaram a tática de circularem de um

ponto para outro da cidade. como forma de proteção contra o aparato

repressivo. Paulo Henrique. um dos meninos que continua\'a nas ruas.

a\'isara às educadoras que havia sido jurado de morte por policiais da

área. As educadoras procura\'am deslocá-lo do ponto onde foi feita a

ameaça. e aguardavam vaga num abrigo para retirá-lo das ruas, O

menino reagiu aos cuidados da educadora dizendo que ela nào

precisava se preocupar. por que ele esta\'a planejando trabalhar no

comércio de drogas. "para juntar dinheiro e comprar um barraco

longe disso tudo", Ao argumento de que havia outras ati vidades nas

169

quais de poderia ganhar algum dinheiro, sem o risco de ingressar na

criminalidade. o menino respondeu que nunca viu, "no morro, só

quem trabalha pro mo\'imento ~ que compra casa."

Dois dias antes de efetivado o assassinato, duas adolescentes

residentes na REPÚBLICA visitaram sua família de rua e ao

retornar contaram que "uns policiais avisaram que a batata do PH já

esta\'a assando", expressão que significa que de seria o próximo a ser

atingido pda açào dos policiais.

Na ante\'~spera do assassinato (noite do dia 15'07'92l. \'árias

testemunhas. entre das alguns jo\'ens atendidos pelo SEM PRE

VIV A estavam reunidos no local de permanência. quando foram

interrompidos por um policial. que solicitou ao menino que o

acompanhasse para "um giro", e explicou aos demais que "iria dar

uns consdhos pro garoto". Paulo Henrique seguiu num carro.

acompanhado de dois Pfvls. e não mais voltou ao local de reuniào do

grupo. Na manhà do dia 17 o menino ~ encontrado morto.

assassinado com \'ários tiros na cabeça.

o grupo de jovens. companheiros do menino. sofreu um grande abalo

psicológico com a morte de Paulo Henrique. e acompanhou os passos

seguintes. de preparativos para o funeral. O enterro do menino foi

bastante dificultado. porque o Instituto M~dico Legal n,lo se dispunha

a aceitar a única cópia disponÍ\'d do registro de nascimento da

criança. que estava em poder da 2a. Vara do Juizado da Int:'incia e

Adolescência e não ha\'ia nenhuma dado que indicasse relações

170

familiares. As providências para regularizar a documentação, a

tentativa de localização da família, e outros procedimentos

necessários para que se efetivasse o entelTo do menino fora da pecha

de indigência, delongaram-se por cinco dias, ao final dos quais o

IML já havia classificado o corpo como sendo o de "rapaz

aparentando entre 15 e 20 anos", quando o menino completaria 14

anos em setembro, e não tinha ainda nem mesmo os traços físicos da

adolescência. Este procedimento ~ um indício de que o registro da

morte não seria computado nas estatísticas oficiais de assassinato de

cnanças.

A participação do grupo nas pro\'idências para o funeral. e depois no

próprio ritual funerário, foi um fator de união entre eles. inclusive

firmando um sentimento de pertencimento a uma comunidade. Meses

mais tarde, durante o II Encontro Internacional de Meninos e

Meninas de Rua, uma das jovens, ao referir-se às discriminações de

que são vítimas, ressaltou que " ... quando a gente morre, quando a

gente morre nem querem dar um caixão prá gente. um enterro prá

gente. A gente tem que lutar até prá ter isso."

Ouvindo essa inesperada referência às recentes expenenclas de

enlutamento do grupo (dois enterros no período de três meses),

comparei-a a um representante de um clã, reclamando a perda de seus

ente queridos. O crime foi objeto de manchete do jornal

sensacionalista O POVO, no dia 177'92, onde se pode ler. como uma

j ustificati \'a do crime: "SeKllIltlo 0.\' policiai.\', m;o "m'ia 11 ;/lKuém /lO

local que pudesse da,. qualquer ÍI~/in·III(/( ... fio. Eles acreditam que o

171

atlole!ticente morreu plJrque I'OUblH'a ou enU;o tinha enl'o/l'imento

com trl~/icante!i." (grifo meu)

(*)No decOlTer dos anos de 1991 e 1992 vários abrigos para meninos

e meninas de rua foram inaugurados na cidade. Crianças e

adolescentes do grupo pesquisado já freqüentaram ou pleitearam

vagas nos seguintes abrigos: Casa e Companhia, localizado no Bairro

de Ipanema, zona sul da cidade (Fundação C&A - iniciativa privada):

Casa da Meninas, localizada no Estácio, zona central da cidade

(Governo do Estado do Rio de Janeiro): República das Crianças,

localizada no baÍlTo da Tijuca, zona norte da cidade (Secretaria

Municipal de Desenvolvimento Social do Município do RJ): Abrigo

de meninos da Fundação São Martinho, localizado na Lapa, zona

central da cidade ( Arquidiocese do Rio de Janeiro) Projeto Flor do

Amanhã, localizado no bairro da Saúde. zona central da cidade

(iniciativa privada).

Robson

A trágica experiência \'i\'ida por Robson OCOlTeu em dezembro de

1991. O adolescente. que contava 16 anos na ocasião encontra\'a-se na

Cinelândia. próximo ao bar Amarelinho, em companhia de uma

menina grávida, de aproximadamente 14 anos e de outro adolescente.

de 17 anos. Segundo relato do menino, era de madrugada. os bares

esta\'am quase vazios. quando um Opala amarelo, ocupado por três

homens. parou bem próximo ao grupo. Dois homens saltaram do

carro. e um permaneceu no interior do \'eículo. Pelo menos um dos

172

que se dirigiu ao grupo estava ostensivamente armado, segundo o

menino, com uma metralhadora. Este homem dirigiu-se diretamente

ao Robson, perguntando se ele sabia onde ele poderia "conseguir

brizola". O menino, já assustado com a situação, respondeu que não.

Em seguida os dois homens dirigiram-se ao bar e orientaram os

garçons a entrarem imediatamente. Retornaram ao grupo disparando

tiros contra os três adolescentes.

Os acontecimentos que se segUIram a cena aCIma narrada foram

recuperados cerca de seis meses passados do ocorrido. quando

Robson reapareceu no local onde costuma\'a reunir-se com o grupo

de meninos e meninas atendidos pelos educadores.

O menino reapareceu muito magro e abatido, com uma lesão na face,

onde perdeu parte do osso maxilar. Parecia vagar entre os antigos

companheiros, com o olhar distante, causando forte impressão aos

educadores e à pesquisadora. Ele contou então. que acordou um dia

num Hospital. sem saber o que lhe ha\'ia acontecido. Uma

enfermeira, que solidarizou-se com o sofrimento do rapaz. recuperou­

lhe parte do oCOlTido naqueles meses. Ele teria sido encaminhado ao

Hospital Miguel Couto. após uma passagem pelo Instituto ~:rédico

Legal. para onde teria sido levado junto com os outros dois

adolescentes. que mOlTeram na chacina. No IML. perceberam que o

menino não havia mOITido. embora tivesse sido ah'ejado em seis

pontos do corpo. O menino chegou em coma ao hospital. e

permaneceu neste estado por alguns meses. sem que nmguem o

procurasse. Quando recuperou a consciência ele diz que havia

173

esquecido o ocorrido, e até mesmo perdera temporariamente a

memória sobre sua vida.

Restabelecido, o menino saiu do hospital diretamente para a rua, pois

não mantém vínculos familiares. Na ocasião os educadores tentaram

encaminha-lo para um abrigo, mas o rapaz recusou a ajuda,

mostrando-se indiferente quanto ao seu destino.

Dondinho

A trajetória deste memno reúne particularmente todas as

características de uma vida sem esperanças, da sina daqueles que

muito cedo se vêem em'oh'idos num caminho sem \'olta. Quando se

incorporou ao grupo' atendido pelos educadores do IBISS (mais

precisamente o menino freqüentava outro projeto de atendimento no

centro da cidade), Dondinho havia recém-saído do hospital do

AndaraL onde permanecera internado por dois meses, recuperando-se

de uma tentativa de homicídio em que fora alvejado por quatro tiros.

em circunstâncias nào conhecidas. O fato foi dado ao conhecimento

dos educadores atra\'és da namorada do menino. que presenciara a a

cena. Pnwavelmente tI'agilizado pelo ocorrido. o menino aproximou­

se dos educadores e passou a tI'eqüentar algumas atividades

promovidas por estes. Numa das poucas ocasiões em que falou de si.

Dondinho confidenciou que praticava roubos. em parceria com um

PM da área, com o qual di\'idia o produto do "trabalho". Detalhou

ainda que o PM havia recentemente "virado crente" e não podia mais

receber sua parte. O PM passou entào a perseguir o rapaz e certa \'ez.

174

na presença dos educadores, iniciou seu plantão levando o menIno

para a cabine e dando-lhe uma surra. Poucos dias depois do episódio

da SUl,.a, o menino foi alvejado, durante o sono, com um tiro no pé. O

agressor nào foi identificado.

A anunciação da morte próxima veio pelo aparecimento do nome do

menino "no poste". Há um ritual muito conhecido pelos meninos e

meninas do centro da cidade, que consiste em aparecer um nome (ou

uma lista de nomes) de jo\'ens que estariam marcados para mOlTer.

Ois) nome(s) é (sào) escrito(s) num pedaço de papel que amanhece

grudado sempre no mesmo poste do Largo da Carioca. Normalmente

esta advertência é suficiente para que o eleito abandone a área por

uns tempos. No caso do Dondinho, ele parecia indiferente as

ameaças. Disse mesmo aos educadores que eles não deveriam se

arriscar. se expor protegendo-o. "Tô nessa vida é prá ISSO mesmo.

Mas vocês nào. Tá cheio de X-9 (alcagoete) por aí". Com o

acilTamento das ameaças à \'ida do rapaz, o IBISS entrou em contato

com outros projetos de atendimento a crianças. em outra região do

país. visando a transferência do menino. Neste periodo uma

instituição que atua no centro da cidade procurou os educadores para

dizer que receberam uma denúncia anônima de que os dias do menino

esta\'am contados.

No dia 13 de junho de 1991 Dondinho foi baleado no Aterro do

Flamengo. enquanto soltava pipa em companhia de outros meninos

do grupo. em plena luz do dia, na presença de drias pessoas. Desta

\'ez ele mOlTeu.

175

CAPÍTULO 6:

ESCOLA E TRABALHO:

RESPOSTAS AUTOMÁTICAS DA SOCIEDADE

176

ESCOLA E TRABALHO:

RESPOSTAS AUTOMÁTICAS DA SOCIEDADE

E certo que as modernas sociedades reconhecem na Escola o

principal veículo para a formação da cidadania e da consciência

crítica das gerações. Da mesma forma concebemos o Trabalho como

um direito fundamental de todos os homens e a via por excelência

para se alcançar o bem-estar da família e o progresso da coleti\'idade.

Entretanto, a realidade da escola brasileira e do trabalho acessí\'e1 à

maIOna do PO\'O distancia-se imensamente dessas \'erdades

enunciadas. A solução quase unânime, de dar escola e pro\'er

trabalho. que ~ proposta pela sociedade para a questão social que

apontamos nos capítulos precedentes. insiste em não considerar as

dramáticas consequ~ncias que a exclusão continuada das camadas

mais pauperizadas da população do acesso aos bens materiais e

culturais da sociedade \'~m pnwocando: a mais crucial destas

consequ~ncias tah'ez seja a negação dos \'alores simbólicos que

atribuimos às categorias Educação e Trabalho.

Por entender que ~ urgente e necessano que se recoloque estas

questões em patamares mais aproximados da situação empírica com

que deparamos no decorrer da pesquisa, esboçamos no presente

capítulo algumas considerações sobre os sentidos que os menlllos e

meninas de rua atribuem ao Trabalho e à Escola.

177

I. O TRABALHO

As classes populares e o trabalho industrial

A implantação do trabalho industrial no Brasil çncontrou rçsistências

e só se efetivou após um longo e tortuoso processo de adaptação.

Excluída da rígida antinomia senhor versus Çscravo, rdação dç

trabalho dominante até o século XIX, crescia uma significativa

parcela da população formada por pobres livres. Estç segmento

populacional exçrcia atividades di\'ersas de subsistência. não Sç

constituindo como uma força de trabalho, já qUç o trabalho rçgular ç

disciplinado çsta\'a a cargo dos çscra\'os.

Sçgundo Lúcio Ko\\"arick, Çm seu çstudo Trahalho ~ Vadia:,:em, ª Ori:,:em do Trabalho Livre no Brasil, mesmo com o fim da

escra\'idão ç o início da industrialização. o dçmçnto nacional não foi

considçrado como uma opção vantajosa para tocar a indústria do

café, porquç as Pçquçnas margçns de lucro do nçgócio. ç os

consçqüçntes baixos salários que seriam oferecidos aos trabalhadores,

não compensariam qUç esta população deixassç suas ati"idadçs de

subsistência para ingressarem Çm no\'a relação de trabalho. A solução

mais lucrativa \'isualizada Pçla oligarquia foi a utilização dç mào-de­

obra pre\'iamente expropriada de terra ç de mçios de trabalho. como

os çscra\'os e os imigrantes euroPçus. Além do quç. tanto uns quanto

outros ofereciam a \'antagçm de já estarem disciplinados para o

178

trabalho regular. Sob a ótica capitalista então emergente, a

população livre e pobre era tida como imprestável e vadia, inadaptada

às novas relações de trabalho. Da ordem econômica escravocrata,

superexploradora e excludente, " ... forma-se um conjunto de homens

livres e expropriados que não conhecem os rigores do trabalho

forçado e não se proletarizam. Formou-se, antes, uma 'ral~' que

cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor

dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais da sociedade."

(Can'alho: 1969)

Mas é interessante ressaltar que L. Kowarick não atribui apenas ao

processo econômico excludente a não-inserção desse segmento da

população brasileira às fileiras do trabalho organizado. Há. por parte

dos livres uma resistência em se submeter à ordem escravocrata. Esta

ordem perdura nas relações senhoriais mesmo após o t~rmino da

escravatura, já que persistia a exploração extensiva da mão-de-obra e

o trabalho cativo.

"Os li\Tes. na medida em que o cativeiro fosse o referencial do

processo produti\'o, só poderiam conceber o trabalho organizado

como a forma mais degradada de existência." (p,47) A resistência \'ai

contaminar todo tipo de trabalho manual, mecânico. imediatamente

relacionado ao trabalho escravo, tido como um trabalho degradado. já

que supunha a submissào e a perda da dignidade.

"O importante nesse processo de rejeiçào causado pela ordem

escra\'ocrata ~ que qualquer trabalho manual passa a ser considerado

179

uma cOIsa de escravo e, portanto,

poderia ser diferente numa ordem

aviltante e repugnante. Não

em que o elemento vivo que

levava adiante as tarefas produtivas era tratado como coisa,

desprovido de vontade, que não tinha escolha de onde morar ou

quando e quanto deveria trabalhar, e que, brutalizado por toda sorte

de violências, no mais das vezes, monia em cativeiro." (p.47-48)

A delicada relação entre educação e trabalho no Brasil

As relações entre Educação e Trabalho, ou mais especificamente a

profissionalizaçào do trabalho, suscitam um amplo debate nos nossos

círculos acadêmicos e está longe de ser um ponto de concórdia entre

educadores. O que está posto na base dessa discussào é o suposto

dilema que a Escola brasileira enfrenta entre formar as novas

gerações para o li\Te exercício da cidadania social (liberdade de

pensamento, autonomia intelectual, consciência crítica) e a

necessidade de formação de mão-de-obra a curto e médio prazo para

atuar nos setores produtivos da economia.

Esse debate fundamenta-se ideologicamente nas gritantes

desigualdades de classes que dividem a nação entre a maioria do

PO\'o. que busca precocemente entrar no mercado de trabalho. em

ati\'idades ou ofícios que proporcionem a subsistência imediata. e

uma pequena parcela das classes médias e alta. que podem submeter

seus filhos durante anos a um processo educativo sistemático. Um

olhar superficial sobre a realidade brasileira parece direcionar o papel

da Escola para o caminho do Trabalho. com a justificati\a de que é

180

necessário e urgente instrumentalizar os jovens das classes populares

para a profissionalização. Esta visão recomenda uma terminal idade

antecipada da fase educativa para o ingresso no mundo produtivo,

hipoteticamente trazendo benefício tanto para o aluno quanto para a

economia em geral. O resultado é que, na prática, a educação pública

brasileira sucumbe à enorme disparidade sócio-econômica do país,

ao abrir mão da dimensão formativa, humanista, cultural das n(was

gerações oriundas das classes populares, em favor de uma opção

profissionalizante, em bases pouco sólidas (Cabe aqui obser\'ar que

mesmo esta opção é puramente formal, já que nem esse objetivo é

atingido pela escola fundamental). Nesse processo a escola passa a

desempenhar um papel social secundário, já que as instâncias sociais

interessadas na formação de futuros trabalhadores, tais como

empresas, órgãos ligados à indústria, ao comércio desencumbem-se

dessa função com maior grau de eficiência e com maior precisão de

objetivos. Além do que o atrelamento da escola fundamental ao

processo produtivo comprometeria o caráter de uni\'ersalizaçào do

ensino. já que por força da lógica, deveria formar trabalhadores para

o mercado de trabalho, restritivo e altamente competitivo.

À escola cabe, com maior propriedade, o desenvoh'imento de uma

ciência do trabalho, e nào a prática da profissionalização. O trabalho

industrial (e mais ainda o trabalho da era pós- industrial, por exemplo

as ciências da informação e de comunicação) abre grandes

oportunidades para que o desenvolvimento de tecnologias se

transforme na espinha dorsal da educação moderna. Entretanto. a

despeito da riqueza possível na relação Educação e Trabalho, o

181

debate fica empobrçcido pela prática, que insistç em transformar

apressadamente o aluno pobre me trabalhador semi- qualificado,

aprisionando-o a um suposto destino de classe, enquanto qUç ao filho

das classes mais favorecidas caberá o questionamento, a pesquisa ç a

utilização de tecnologias mais sofisticadas.

Paolo Nosella, analisando a visão de Gramsci sobrç a relação

Educação ç Trabalho, pontua cIaramentç o qUç vem a ser a

positividadç do trabalho como princípio educativo, tomando como

horizonte o desçn\'olvimçnto da classe trabalhadora. Enfoca a

necessidade dessa classe se apoderar das novas tecnologias, da nO\'a

forma de disciplinamçnto, das novas relações sociais postas pelo

trabalho industrial. mas sÇmpre sobre uma sólida basç dç formação

gçral ç humanista, a que chama de educação desinteressada. ou sçja,

uma çducação qUç não se preocupa imediatamçnte Çm trçinar futuros

trabalhadorçs, mas sim Çm dar as basçs culturais, filosóficas,

tecnológicas para que o jovem se apropriç autonomamçnte do

conhecimento até çntão produzido. Somente numa fase posterior é

qUç a formação çspçcífica para o trabalho, para uma dçtçrminada

Profissão canha priot'idade na pedacocia cramsciniana. Unificar o '-' '-' "-' ~

mundo do trabalho com o mundo da cultura. çstç o objçti \'0 maior dç

uma çducação que se propõe voltada aos intçresses do plWO. Mas

çsta unificação não se dá pela justaposição dç oficinas dç carpintaria ç

mecânica às escolas destinadas aos filhos dos pobres, Nçstas çscolas

profissionalizantes. \'ia dç regra apenas se acresce o horário çscolar

para qUç a criança dçsen\'oh'a alguma ati\'idadç extra. dç cunho

prático. SÇm qUç esta çsteja orgânica ç intimamente rdacionada a um

182

processo de aprendizagem tecnológica ou de desenvolvimento de

pesqUIsa.

o lugar do Trabalho nas representações dos meninos e meninas

de rua

As crianças e os jovens que estão nas ruas parecem saber, maIs por

intuição que por informação, que a via do Trabalho, ao menos da

modalidade de trabalho a que teriam acesso formal. não lhes abriria

horizontes, não os credenciaria ao exercício pleno da cidadania e nem

mesmo assegurar-lhes-ia uma participação mais qualificada no

mercado de trabalho.

A história do trabalho no Brasil lhes confirma este conhecimento

empmco.

o enSInO industrial no paIS te\'e sua ongem atrelada à oferta de

ofícios a setores marginalizados da população. (ver Celso Suco\\' da

Fonseca. História do Ensino Industrial no Brasil - Escola Técnica

Nacional do Rio de Janeiro, 1961. Citado por ... ) O estigma do

trabalho manual marcou fortemente o processo de industrialização

brasileiro até o início do século XX. Fonseca resume o desprestígio

que os senhores de telTa dispensavam a esta modalidade de trabalho:

"o ensino necessário à indústria tinha sido, inicialmente destinado aos

sih'ícolas, depois foi aplicado aos escravos, em seguida aos órfãos e

aos mendigos. Passaria em bre\'e a atender também. a outros

desgraçados." (p. 137)

183

A infância pobre constitui-se, como podemos observar, em herdeira

direta dessa corrente, que adquiriu, sob a tutela do Estado, um caráter

assistencial ou correcional.

Observamos com frequência o fracasso nas tentati\'as de integração

de meninos e meninas de rua ao segmento produtivo da sociedade

através de projetos de profissionalização imediata. Ao com'iver com

esses adolescentes em seus di\'ersos espaços de interação social e

após longos depoimentos prestados por eles sobre suas experiências

pessoais de profissionalização, podemos definir e analisar algumas

causas para este fracasso. Em primeiro lugar estão as causas

relacionadas com o fato desses jovens negarem o padrão de trabalho

que seus pais ou familiares tradicionalmente desem'oh'eram -

subemprego, biscates de toda ordem e toda sorte de ocupações

desqualificadas que remetem a rendas instáveis e insuficientes e a um

total desprestígio social. Acresce-se que as famílias têm geralmente

origens rurais, cuja cultura é também desvalorizada na cidade. Isto

faz com que os filhos depreciem a orientação dos pais. porque

buscam se identificar com a cultura urbana.

Em suma. o trabalho não constitui uma categoria positiva na vida

desses jovens. Raramente é mencionado de forma espontânea pelos

Jlwens como uma solução desejada para suas \·idas. e quando

mencionam alguma profissão. geralmente esta é inviáveL \'isto que a

criança não vislumbra possibilidades de mudança num prazo possível

para o encaminhamento profissional desejado (como frequência à

escola. incentivo. material necessário. etc). Muitas vezes a mençào ao

184

trabalho tem apenas uma conotação formal, como pode-se perceber

pelo uso de um discurso que as crianças "tomam emprestado" ao

ideário do trabalhador: "eu queria trabalhar, ser alguém na vida ... "

Quando questionados especificamente sobre a profissão que

~ostariam de senuir as respostas variaram do desinteresse à to...; e 'I

formalidade, como se percebe nas respostas abaixo:

"Nunca pensei, não quero trabalhar" (menino de 14 anos, cursou a

segunda série primária, e está "há muito tempo na rua") "Sou muito

novo, não sei, nunca pensei" (menino de 15 anos, analfabeto)

Alguns ironizam a relação de trabalho:

"Quero ser motorista, ''ou sair batendo com os carros por aí" (menino

de 14 anos, sabe ler "um pouquinho") "Queria trabalhar no banco, prá

roubar dinheiro" (menina, 13 anos, analfabeta)

"Queria ser polícia. pra roubar sem ser preso" (menino. 16 anos,

primeira série)

Outros declaram seus sonhos:

"Queria ser professora" (menina, 17 anos, cursou a quarta série) Esta

moça declarou que não consegue ficar na escola porque sempre briga

e desrespeita os professores. "Tenho vontade de ser marinheira"

(menina, 16 anos. nunca foi à escola)

185

"Queria ser jogador de futebol, que nem o Romário." "Eu queria era

ser atriz, mas sei que não vou ser mesmo" (menina, 13 anos, já

participou de um \'Ídeo sobre meninos de rua)

"Eu queria ser ginecologista" (menina, 17 anos, segunda série)

Em segundo lugar. saindo da experiência familiar. o contato que os

meninos de rua travam com o trabalho, se dá através das instituições

pelas quais circulam. quase sempre compulsoriamente. Estas

instituições apresentam o trabalho como uma forma de castigo ou

como forma de controle do tempo livre. Durante o período que

permanecem internados os meninos e meninas têm que aprender um

ofício, ofício este sempre desqualificado e fora do alcance deles

virem a desem'olver na situação de rua, para a qual \'oltam após o

período da pena. Sobre esse aspecto. constata-se vários depoimentos

de meninos que desfiam uma longa lista de habilitações que

adquiriram nas repetidas passagens por instituições de guarda de

menores. Quanto mais tempo passam nessas instituições. mais cursos

fazem. É até possível inferir a duração das penas de acordo como

número de cursos realizados.

Menino: Ah. tia. eu já fiz silk-screen. estamparia em tecido. auxiliar

de mecânica, empalhador e negócio de \'assouras ...

Entre\'.: E você já teve chance de trabalhar nessas profissões. você já

ganhou algum dinheiro como mecânico, como empalhador'.'

Menino: Não, como é que eu ia trabalhar, fazer alguma coisa na rua'.'

Ninguém quer dar trabalho prá menor. não ...

186

o trabalho faz, portanto, parte do castigo, da pena de detenção. Não

há desdobramentos, nem programas conseqüentes de utilização e

valorização do conhecimento adquirido pelos jo\'ens que retornam

para as ruas.

Obsen'ação: esta análise refere-se aos jovens que vivem nas ruas, nào

incluindo aqueles institucionalizados, cuja rotina de vida é de outra

natureza. A argumentos de natureza pedagógica, soma-se ainda um

importante dado econômico a depor contra as iniciativas de

ressocialização através de projetos profissionalizantes: não há

trabalho a se oferecer para grande parcela da população que ainda

insiste em se inserir no mercado formal de trabalho. Além disso, nas

camadas mais pobres aumenta o índice de rotatividade de mào-de­

obra, o que desvaloriza aos olhos do trabalhador a dedicação e o

empenho para a manutenção do emprego. E há ainda o \'alor real que

se atribui ao trabalho, isto é, o salário real do trabalhador, que de tào

baixo se constitui num contra-argumento para aqueles muitos que já

nào consideram o trabalho em si como um princípio norteador de

vida, seja religioso ou moral.

Em terceiro lugar. há os complicadores comportamentais que vào

sugerir o fracasso das incipientes e superficiais iniciativas de inserção

social pelo trabalho. É suposto que àqueles a quem é dada a chance

de trabalho (e não o direito ... ) vençam de imediato as dificuldades de

adaptação ao aparato disciplinar e os temores e inabilidades de

relacionamento com o lado normal da sociedade . .lá vimos que o

trabalho organizado exige um grande esforço de adaptação. e que sua

187

implantação modificou os hábitos culturais das sociedades modernas.

Nosel!a observa: "O trabalho industrial, como novo demiun!O, ... modela o homem integralmente, desde criança, determinando seus

brinquedos, seus hábitos e suas habilidades até a idade adulta: fOlja

suas necessidades, seu físico e seus músculos, seus princípios e seus

sonhos ... " (Rev. Educação e Realidade,jul.ldez 89, p.7)

Estes meninos, como parte de uma população à margem dessa nova

ordem social, nào foram introduzidos nestes hábitos necessários à

preparação para o trabalho organizado. Pode-se perceber. atra\'~s das

preferências declaradas pelos meninos, uma tentativa de se engajarem

em ofícios nào tipicamente industriais. Os adolescentes em geral

dizem preferir as ocupações ao ar livre. Vários meninos citam cursos

de jardinagem, outros dizem preferir tomar conta de calTOs: trabalhar

com animais: empregarem-se como "mecânicos de posto" ou "rapazes

de entregas". Suponho que estas preferências se relacionem com o

menor aparato disciplinar e com a possibilidade de permanecerem em

ambientes abertos e, portanto. menos controlados. Ainda assim os

jovens têm grande dificuldade em freqüentar regularmente os cursos

e mais tarde em honrarem os horários e compromissos profissionais.

Eis alguns exemplos que ilustram as dificuldades aCima arroladas:

Um rapaz. em seu depoimento. declarou-se "muito a fim" de manter a

vaga de jardineiro que havia conseguido, mas mesmo assim quase

nunca conseguia chegar lá na hora. Já havia tentado inclusive dormir

numa praça "mais perto do trabalho", mas te\'e medo porque nào

conhecia "aquele pedaço" Alguns dias depois o seu caso saiu numa

188

reportagem de jornal, onde o responsável pelo programa dizia que os

rapazes não souberam aproveitar a chance que lhes fora oferecida.

Declarava ainda que aquilo não era um programa de caridade e que as

pessoas não podiam ficar esperando a boa-vontade dos meninos.

Outro exemplo da distância entre a lógica do empregador e a lógica

do menino de rua trabalhador veio de um rapaz de 15 anos que se

dizia "vidrado" no curso de mecânica que estava fazendo num

Batalhão da Polícia Militar. Ele vinha se esforçando por nào faltar,

pedia ajuda aos educadores, guardava tickets de passagem para o

trabalho, etc. Mesmo assim chegou repetidas vezes após o horário em

que era servido o café da manhã para os alunos (que se encerrava às

6:30 horas) e irritado por perder o díreito à alimentação. acabou

deixando o curso. Há também o depoimento patético de uma jovem

de 13 anos que, cansada de estar exposta à violência da rua, sol icitara

às educadoras que a encaminhassem para uma unidade do CRIAM,

"Só por uns tempos, prá descansar", dizia. Depois de algumas

tentativas, no dia em que a educadora foi confirmar a audiência com

o juiz, para que fosse providenciada sua internaçào, a menina sentiu­

se desesperada, antecipando o que a aguardaria: "Tia eu não vou não,

não vai adiantar nada, o juiz vai me mandar trabalhar. arranjar

emprego em casa de família ... ninguém liga prás meninas, só pensam

que elas sào domésticas. Só tem projetos pros meninos. Eu quero é

morrer, é melhor morrer mesmo. Eu não vou trabalhar em casa de

família ... "

189

Tal atitude não ~ subjetiva. Basta ver que recentemente uma iniciativa

de órgãos municipais sugeria que sena "muito interessante

profissionalizar as moças que estão nas ruas, tàzer uns exames de

saúde... Elas poderiam se tornar faxineiras, domésticas e ganhar

muito bem ... " (reunião em janeiro/92 com a diretora da Obra Social

da Cidade do Rio de Janeiro)

Tal como a moça que "prefere mOlTer do que vIrar dom~stica"

(profissão que a mãe exerceu e pela qual optou abandonar de vez os

filhos maiores, por não haver como compatibilizar os pap~is), um

rapaz de 17 anos, há pelo menos dez anos na rua, insiste em manter

uma altivez que ~ decifrada quase sempre como petulância ou como

"desculpa para não pegar no pesado". Ele sustenta-se com o dinheiro

que recebe vigiando carros estacionados, e é considerado por outros

do grupo, e segundo ele pelos PMs da área, como um bobo, porque

raramente "faz uns ganhos" e quase nào tem o que dividir com os

guardas. Este rapaz teve a chance de, durante uma das muitas

internações, fazer um curso de serigrafia, que lhe despertou grande

interesse. Mas nunca teve a oportunidade de trabalhar nesta área. O

seu depoimento demonstra nitidamente as dificuldades de ordem

prática de transformar o trabalho num veículo de integração social.

Ele foi encaminhado para uma Assistente Social do município, que ao

entrevistá-lo perguntou se ele aceitaria qualquer ocupação que ela

conseguIsse. Ele foi firme em responder que não, perguntando em

seguida à Assistente Social se ela gostava da profissão que exercia.

Ela respondeu afirmativamente e ainda disse que não saberia

190

trabalhar noutra coisa. Entào ele concluiu "pois é, eu sou profissional

de serigrafia, eu gosto disso, só nunca consigo trabalhar. .. outra coisa

eu nào queria ... "

Os limites impostos pela conjuntura econômica

Uma economia receSSiva, com

dependente de capital externo

altos índices de desemprego,

e com uma dívida externa

aparentemente impagávd, não autoriza a supor que haverá

oportunidades em futuro próximo para a inserção no processo

produtivo da grande parcela da população que se encontra à margem

dde, seja como trabalhadora, seja como consumidora.

Vive-se um impasse. na sociedade brasileira, decorrente do modelo

econômico vigente, e a situação das crianças e jovens aqui apontada é

um exemplo contundente da perversidade das premissas desse

modelo. A solução para essa situação, já estruturalmente enraizada na

sociedade brasileira certamente não é simples, e eXige um

compromisso político meqUlvoco por parte dos representantes dos

poderes constituídos e de um posicionamento claro por parte da

sociedade civil.

Entretanto, sem perder de vista a imperiosa necessidade de atuar na

superação do atual quadro político econômico e social, é possível

que se encontre, mesmo na situação presente, formas que se mostrem

mais eficazes em oportunizar a essas crianças o acesso aos bens

191

SOCIaIS que garantam as condições de uma existência digna e os

direitos de cidadania que até agora repousam na letra da lei.

A compreensão da atual realidade sócio-econômica como principal

vitimizadora dessa população poderá dar lugar a políticas públicas

que desloquem o enfoque que hoje prevalece - de incapacidade desses

jovens para a vida produtiva e para o convívio social - e de medidas

conseqüentemente coercitivas e punitivas, para programas de natureza

lúdica, cultural ou esportiva, capazes de atraí-los para novas

perspectivas de desenvolvimento de suas personalidades. Para que

esses meninos e meninas venham a formar uma imagem positiva

sobre o Trabalho, uma imagem capaz de reacender-lhes a esperança e

o desejo de construirem um projeto pessoal de vida, é indispensável

que possam antes enxergar a SI próprios como pertencentes a essa

sociedade: que recebam dela o que lhes era de direito e lhes foi

negado - a chance de viverem as experiências próprias da infância,

onde se constroem e se reafirmam os laços de afeto, os padrões

morais e a confiança nas instituições. Só então poderão perceber o

trabalho social como fonte de riqueza, dignidade e progresso.

Nas iniciativas de iniciação ao trabalho, deve-se procurar novas

opções de profissionalização, fora do estrito círculo de ocupações de

segunda categoria, que não contribuem para a integração social nem

para a autonomia econômica.

192

2. A EDUCAÇÃO

A dimensão ne~ativa da escola

Nas entrevistas muitos jovens alegaram como principal motivo de não

permanecerem na escola o fato de não conseguirem cumprir horários

estabekcidos, serem forçados a permanecer tanto tempo sentados, se

sentirem obrigados a cumprir uma sucessão de atividades ditadas pela

professora, serem expostos a situações que lhes parecem

constrangedoras e faltarem com o respeito às autoridades escolares.

Entre\': Você gostava da escola'?

Menino: Mais ou menos, serve prá merendar (risos)

Entrev: O que você gostava e o que você não gostava na escola'.'

Menino: Eu gostava da professora, tem vez que eu não gostava muito,

que ela mandava muito, tinha que ir no quadro, tàzer dever, eu não

gostava.

As relações destes jovens com as instituições públicas se revestem de

um caráter acentuadamente negativo, e a experiência escolar não é

exceção a essa regra. O fracasso na escola é atribuído pelas crianças a

fatores que remetem mais ao aparato disciplinar que a problemas de

aprendizagem.

193

Exemplo 1)

Entr~v: Você já ~studou'!

Menino: Já

Entrev: Aonde'!

Menino: Escola Municipal Tiradentes

Entrev: E por que você saiu da escola'!

Menino: Xinguei a professora ... (risos)

Entr~v: E aí, você não quis mais ir lá'!

Menino: É, ela ficou puxando minha orelha, xinguei ela.

Entre\': E você gostava da escola'!

Menino: Eu gostava da ~scola. Gostava "as pampa". Aí xIngueI a

prof~ssora, saí da escola ...

Exemplo 2)

Entr~v: Você já ~studou'!

Menino: Já. Num ClEro CIEr 14 de Julho

Entr~v: Você gostava da ~scola·.'

Menino: Não gostava muito não porqu~ tinha um cara lá, pã, que

puxava a minha orelha. O inspetor lá no Brizolão. Ele poxa, toda vez

qu~ ~u fazia uma baguncinha assim, ele puxava minha orelha, assim,

m~ xingava de burro, toda hora. Não gostava del~ não.

Os depoimentos sobre a ~xperiência escolar inúmeras vezes incluem

a expressão "eu fugi da ~scola", o que equipara essa experiência, na

perc~pção dos entrevistados, a suas passagens por instituições

correti vas ou d~ guarda d~ m~nor~s. A permanência na ~scola ~

194

dificultada pela resistência em submeterem-se a regras disciplinares e

pelo sentimento de incapacidade e de inadequação para a vida

escolar, incutido por uma sucessào de fracassos nas tentativas que

empreendem.

Exemplo 1)

Entre\': Você já foi à escola'!

Menino: Já

Entre\': Por que você saiu da escola'!

Menino: Por causa que todo, todo meio de ano entrava em greve. Aí

ficou, ficou ruim, eu não passava de ano, aí fui e saí.

Exemplo 2)

Entrev: Você já foi à escola'.'

Menino: Já

Entre\': Você gostava da escola'.'

Menino: Gostava, "craro", era muito "bào".

Entre\': E por que você saiu de lá'.'

Menino: Sai porque eu não aprendi ... (risos)

A Escola irreal

A distância que separa os padrões disciplinares adotados pelas

crianças e adolescentes no ambiente da rua, daqueles exigidos por

instituições como a escola. vem claramente impedindo a participação

195

deles em projetos de ressocialização a que vez por outra alguns

procuram se engajar. Isto porque as instituições que geralmente se

dispõem a oferecer a essa população uma chance de se reintegrar à

sociedade, têm um cunho fortemente disciplinador, e adotam como

princípio do seu trabalho a exigência de comportamentos

padronizados, socialmente aceitáveis, como condição de

participação, seja em projetos educacionais, seja em projetos de

trabalho. As tentativas e experiências novas, ao fracassarem, acabam

por reforçar nas crianças um sentimento de incapacidade, e ainda

passam para setores da sociedade a informação de que "eles não tem

jeito mesmo", porque não conseguem cumprir horários, porque

desconhecem regras hierárquicas, porque não se adaptam ao

emaranhado de pequenas regras que compõem o comportamento

desejado pela escola, -etc.,- construindo, assim, uma visão circular do

problema.

Ademais, uma observação mais acurada das relações sociais do grupo

e da convivência cotidiana entre seus membros, demonstra que não se

trata de ausência de regras de comportamento ou de padrões de

conduta moral, sendo mais pertinente concluir que essa população

desenvolve um comportamento transgressivo em relação a um código

oficial, e adota regras e padrões de comportamento ditados pelas

interações sociais que se estabelecem no ambiente da rua. Sobre a

função organizativa do disciplinamento, que embasa o funcionamento

das instituições modernas, Foucault denuncia seu caráter de

dominação e controle:

196

"Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como

encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper

as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um,

apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades e os méritos." (Foucault:

1988)

Especificamente no interior da Escola, o disciplinamento VaI

"organizar uma nova economia do tempo de aprendizagem" (idem,

p.134), através da ação do professor hierarquizante e classificatória.

Observa-se que a reação do grupo de meninos e meninas de rua se

volta contra o padrão disciplinar imposto pela escola. As exigências

disciplinares (naturalmente somadas às culturais, sociais, econômicas)

se interpõem como uma balTeira entre a criança e o processo de

aprendizagem.

A estas razões soma-se ainda um fator objetivo, qual seja, de que a

escola é funcional a um projeto de sociedade, e esta população é posta

à margem deste projeto. A prática cotidiana, nos períodos em que

algumas crianças de rua se dispõem a freqüentar a escola, vai refletir

esta situação, levando-os quase sempre a concluir que a frequência à

escola, além de demandar grandes sacrifícios, nào oferece estímulo

nem incentivo a uma mudança de comportamento. Estas rápidas

experiências acabam por instaurar nos meninos e meninas de rua a

desconfiança de que não pertencem a este círculo social. Há

depoimentos de crianças de dez, onze anos, que demonstram uma

grande lucidez em relação ao papel caduco que a escola fundamental

197

desempenha - sempre em relação a uma população hipotética e

idealizada - que, se humildade e interesse houvesse, ser\'iriam de

lições cabais àqueles que são responsáveis pelo seu planejamento.

"Eu não vou nunca mais à escola, a escola não sabe ensinar nada."

"Eu não gosto de escola, a escola nào é prá gente. Eu nào aprendo

nada lá." "Eu queria uma escola diferente". Ressalte-se que esta

menina analisa o fracasso escolar sob outra ótica, atribuindo a

responsabilidade pelo insucesso à própria instituição, e não a SI

mesma.

Sobre o papel que a escola fundamental vem desempenhando junto às

crianças das classes populares brasileiras nas últimas décadas, nada há

a acrescentar às análises e críticas que a instituição têm recebido de

eméritos educadores brasileiros.

Darcy Ribeiro (1992) assim percebe o drama da cnança brasileira

frente à escola:

"O certo é que a maioria das nossas crianças sofre a escola como uma

experiência frustrante em que é punida, porque fala a sua língua

materna: é discriminada porque anda descalça e se veste pobremente:

é humilhada, porque não pode comprar material didático exigido

pela professora: e, por fim, é sucessivamente reprovada, sem mesmo

saber o que é isso." (Apresentação do Projeto de Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional, Senado Federal, 1992, p.8.) Como

contirmação empírica da análise, registramos:

198

Entrevista 1)

Entrev: E o que você faz na rua. Você já foi à escola?

Menino: Já, eu tõ na quarta série.

Entre\': Em que escola você estuda'!

Menino: Já sei ler, sei escrever. Eu estudei na Costa e Silva, na

Alberto Barthes. A Costa e Silva é em Botafogo. Eu vinha lá do

Recreio (dos Bandeirantes) prá estudar. A Alberto é no Flamengo.

Entrev: E agora'!

Menino: Não, agora eu não tõ estudando em mais nenhuma não ... Saí,

poxa. Eu vivo na rua, eu durmo na rua, como é que eu vou estudar,

sem roupa, sem material ...

Entrev: Você queria continuar estudando?

Menino: Eu queria, se tivesse um lugar prá ficar tranqüilo, porque

prás minhas irmãs eu não vou, que elas não vai me querer.

Entrev: (para dois irmãos) Vocês estão na escola'!

Menino: Eu já, no Brizolão, mas só que eu fugi do Brizolão.

Entrev: Onde fica o Brizolão'!

Menino: Lá em Nova Aurora

Entrev: Você estava em que série'!

Menino: Segunda

Entrev: E por que você fugiu'!

Menino: Ah, lá só dava merenda, nào dava nem ABCD, só dava

AEIOU

Entrev: Você já sabia isso'! O que você queria aprender'!

Menino: Matemática.

Entrev: (para o irmão) E você, estudava lá no Brizolão também'!

199

Irmão: Tamb~m. O CIEP qUe cU estudei ~ Ministro Gustavo

Capanema. Eu estudei lá em 89. A gente começou estudando na

primeira s~rie. A gente era da mesma sala. Aí, ele passou c cU não

passei, depois cU passei c de não passou.

Entre\': Aí \'oc~s ficaram juntos de novo '!

Irmão: Aí a gente começou a fugir de casa. aí minha mik não mandou

E lamentá\'el constatar qUe Se deixe de apn)\"eitar o potencial

instituinte. criativo c inovador demonstrado pdas crianças nas suas

ati\'idades cotidianas. pela incapacidade de Se lidar com a criança

encarnada. real. A tecnocracia responsável pdo planejamento

didático dos cursos atua numa esfera idealizada. distante. presa a

teorias c moddos em qUe as crianças c jovens teimam em não Se

encaixar. Quanto à crucial relaçào entre professor-aluno. onde de

t:lto a educação acontece. interpõe-se toda ordem de obstáculos.

"A professora. por sua vcz. participa desse processo como sua

segunda \·ítima. Primacialmente porque Se \.~ condenada a eXercer

seu ofício. sem condições mínimas de alcançar eficácia. em razão de

sua precaríssima formação docente. Tambón ~ \·ítima. porque Se \·iu

degradada profissionalmente Pela deterioração da própria carreira do

magistáio. O ~. ainda. porque está ell\'oh'ida c alienada por uma

pedagogia anti-popular. em grande parte inexplícita. mas muito eficaz

como mecanismo de rejeição social. Mesmo porque ~ apoiada no

preconceito de raça c na hostilidade. corrente nas claSSeS m~dias de

onde elas são oriundas. com respeito às camadas pobreS de que saem

...... 200 .... AcAo GElOU. 9A ...

seus alunos." (Ribeiro, idem, p.8) Ilustrando esse sentimento de

hostilidade, hou\'e, no decorrer da pesquisa, um episódio em que,

educadores dispostos a promover a incorporação de meninos e

meninas de rua aos padrões comportamentais ditados pela recém­

criada instituição, após algumas tentativas frustradas de que os

mesmos adotassem as regras de utilização de espaço "pedagógico",

declararam que "eles não vão nos vencer". O uso de tal expressão

leva a supor que, em primeiro lugar, as crianças de\'eriam aceitar as

tais regras como \'álidas, por bem ou por mal: e em segundo lugar (e

tal\'ez até mais importante), que este processo se parece com uma

guerra, em que um lado de\'e \'encer o outro.

As representações que os menlllos e menlllas atribuem à escola

seguem um padrão semelhante ao esboçado em relaçào às instituições

de caráter cOlTeti"o ou assistencial. São inúmeras passagens. por

inúmeras escolas. sem que se cumpra a funçào elementar de

introduzi-los no universo da leitura e da escrita.

Ainda fazendo um paralelo entre a escola e as demais instituições de

guarda ou abrigo. as crianças parecem não perceber a diferenciação

metodológica ou as peculiaridades pedagógicas entre os

estabelecimentos de ensino que freqüentam (e deixam de freqüentar).

Citam indiferentemente as escolas municipais tradicionais. os CIEPs -

de linha expressamente popular - e até mesmo projetos educacionais

centrados no atendimento de meninos e meninas de rua - como é o

caso da escola Tia Ciata.

201

Entrev: Quantos anos você tem'!

Menino: Treze

Entrev: Você já estudou'.'

Menino: Já. Na Tia Ciata

Entrev: E você aprendeu a ler'!

Menino: Não. Eu saí de lá porque briguei. Também estudei em

Quinina, mas saí de lá porque cheirei cola.

Entrev: Tem outras escolas que você freqüentou'.'

Menino: No Brizolão do Estácio. Eu saí de lá porque quis. Agora eu

quero estudar no CIEP.

Conclusão

Os dados levantados na pesqUIsa evidenciam um incontestável

fracasso da escola como símbolo de justiça social e como instrumento

de inserção social, no que se refere a este segmento da população

infantil, especialmente marginalizado.

Entrev: Você saiu da escola por quê?

Menino: Porque eu quis. eu achei a rua melhor do que a escola. vim

pra rua.

A grave questão social em que se inscreve a realidade destas crianças

requer um posicionamento urgente, um debate que amplie

posicionamentos cristalizados em relação ao papel social que cabe à

Escola cumprir. A freqüente remissào por parte da imprensa, de

políticos e dos cidadãos em geral, colocando a Escola como uma

instituição salvadora. capaz de por si só reverter o estágio de pré-

202

rompimento do tecido social, encobre outras questões fundamentais.

Uma delas é a falta de clareza quanto ao projeto que a sociedade

brasileira almeja para suas novas gerações de ricos, de pobres, de

pretos e de brancos. Há que se perguntar quaIs sào os reaIs

im'estimentos que se está fazendo para a construção de uma

sociedade mais justa, mais democrática e mais plural. O que se tem

de fato é que os índices de acesso, permanência, apnwação e

reprovação escolar: a existência de projetos educacionais distintos

para as diferentes classes: a inoperância da escola pública - refletem

em grande medida em que direção caminhamos,

Em contraposição ao ambiente estáil que em geral as CrIanças das

classes populares encontram na rede escolar oficial, pode-se detectar.

no caso das crianças de rua, algumas iniciati\"as de educadores e

organizações da sociedade civil no sentido de buscar alternativas

metodológicas mais adequadas à realidade sócio-cultural dessas

crianças. Estas iniciativas têm sido noticiadas por órgãos de imprensa

e apresentadas em encontros regulares de entidades militantes dos

mo\'imentos sociais. Há exemplos desses trabalhos em cidades de

diferentes regiões do país, e podemos citar. à guisa de exemplo, o

grupo Daruê Malungo, em Recife: o Projeto Axé e o grupo de teatro

Olodum, em Sah"ador: a Associação de Meninos e Meninas de Rua

de Curitiba, em com"ênio com a prefeitura da cidade: Projeto

Renascer, em Recife: Projeto de Alfabetização da Coordenação

Regional do M(wimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do

Rio Grande do Sul: Projeto Flor do Amanhã, na cidade do Rio de

Janeiro e vários projetos em andamento da Secretaria do ivlenor, em

São Paulo. A citação desses projetos não implica que a pesquisadora

os tenha avaliado, apenas aponta que a sociedade começa a buscar

soluções para a questão da inserção social dessas crianças e jovens,

fora do estreito círculo tradicional de subescolarização, subemprego e

submissão. Essas iniciativas têm ainda um caráter assistemático e

pontual, mas parecem possuir em comum a característica de

buscarem o caminho da ludicidade, da expressão artística e corporal.

da arte-educação, da dramaturgia. como forma de re\'alorizar as

práticas culturais e sociais das crianças a que se destinam. A

academia poderia, a meu ver, participar desse movimento atra\'és do

incremento de pesquisas, acompanhamento e avaliação desses

projetos. direcionando a discussão para a formulação teórica de uma

nova pedagogia.

204

CONCLUSÃO

205

CONCLUSÃO

Os dados apresentados ao longo deste trabalho e a análise que deles

se faz, levam-nos a concluir, com segurança, que as fórmulas

tradicionais de resoluçào do problema da chamada infância

abandonada e carente, centradas no internamento e em pedagogias

de enquadramento dessas crianças a uma lógica de submissão

cultural, apregoada por elite patrimonialista e consen'adora, com

metodologias repressivas e impositivas, já atingiu o mais alto grau de

falência. Não é outra a conclusão de trabalhos que vem vindo a lume

em anos recentes, como, por exemplo, o de Sonia Altoé e do [BASE,

entre outros. A realidade \'ivida e culturalizada por meninos e

meninas de rua é tal que podemos antecipar o fracasso de quaisquer

iniciativas que CIrcunscrevam a necessidade de mudança ao

comportamento individual dessas cnanças e adolescentes, sem

considerar a necessidade de mudanças profundas nas políticas sociais.

que venham de fato trazer alguma possibilidade de justiça social.

No âmbito da Pedagogia, a saída para o impasse poderia ser buscada

no desem'olvimento de metodologias alternativas, baseadas no

conhecimento mais aprofundado das questões culturais. sociais,

históricas e psicológicas que compõem a realidade dessas crianças.

Algumas experiências neste sentido podem ser pontuadas em algumas

das grandes cidades brasileiras, onde o fenõmeno meninos e meninas

de rua é mais alarmante. Embora ainda nào se possa configurar um

movimento, estas expenenCIaS merecem acompanhamento

206

acadêmico, visando o fortalecimento de práticas de educação popular

de cunho verdadeiramente integrativo. Em resumo, iniciativas que

visem à solução deste grave problema social, de\'em Se propor não a

corrigir o comportamento transgressor e anômico que de modo geral

se atribui a esta população, mas a agir sobre as condições sociais que

propiciam esse comportamento.

Não ha"erá. contudo. re\'ersão no quadro de injustiça social e do

extermínio sistemático do qual centenas de crianças brasileiras são

\'ítimas anualmente. se não hou\'er um posicionamento firme da

sociedade civil, atra,,~s de todos os segmentos organizados, a exigir

dos poderes públicos. em SeUS di"ersos ní"eis. o resgate. ainda que

tardio, da imensa dÍ\'ida que a nação tem para com SeUS filhos. Nào

podemos supor que se consiga re"erter esta situação. que macula a

sociedade brasileira pela crueldade e insensibilidade. apenas com

medidas de cunho assistencialista e correcional. Políticas desta

natureza, adotadas ao longo de um s~culo. \'isando ao controle da

população pobre e a consel'\'ação de um status quo social baseado no

pri"i1~gio. dominação e autoritarismo, simplesmente não dão conta

mais de cumprir esteS objetivos,

As esferas go"ernamentais. por sua \'ez. perdem-se entre discursos e

wrbas assistencialistas e. nas poucas iniciativas concretas que

empreendem, titubeam "isi\'e1mente entre a adoção de tradicionais

medidas repressi"as que nenhum benefício trazem à sociedade. dando

um tratamento policialesco à questão. ou, em pólo oposto. adotam a

retórica idealizada da boa índole do povo, Assim. propõem-se

207

intervenções que igualmente tendem ao fracasso, pelo despreparo em

lidar com a complexidade de aspectos culturais, psicológicos e outros

que a realidade dos meninos e meninas de rua apresenta.

Uma história de degradação econômica e social Um enfoque mais

abrangente nos deixaria entrever uma pesada e antiga

responsabilidade não assumida pela nação na composição da

lamentável situação em que se encontram nossas crianças e jovens de

ongem pobre, especialmente de ascendência negra. (Para

aprofundamento da herança escravocrata, ver Ligia Costa Leite: 1991 )

o mo\'imento brasileiro de concentração de renda e de terra: o

conseqüente inchamento e ocupação desordenada dos centros

urbanos: uma economia que se reduz à participação de uma minoria

de cidadãos, descartando tanto da produção. quanto do consumo e

do acesso aos bens sócio-culturais um imenso contingente de

brasileiros: e o enraizamento de uma cultura autoritária, cultuada

pelas últimas décadas de regime militar geraram o quadro que ora

explode em diversas modalidades de violência urbana. Violência esta

de que crianças e jovens são \'ítimas em primeiro lugar.

o Brasil figura como o país líder em desigualdade social. de acordo

com dados do Banco Mundial. em relatório que analisa a distribuição

de renda nacional dos países no ano de 1989. (V. índice GINI, que

mede a intensidade das desigualdades de renda)

208

"Enquanto o contingente dos 60'X, maiS pobres da população

brasileira detém apenas 16,4% da renda interna nacional, os 20% mais

ricos acumulam quase 70% do total" (Jornal do Brasil, 25/9/89),

o país é igualmente detentor dos piores índices de desenvolvimento

humano (IOH), conforme o Relatório Sobre Desenvolvimento

Humano, lançado pela Organização das Nações Unidas em 1990,

Este índice substitui aqueles que registram tão-somente o crescimento

econômico e "procura revelar a real qualidade de vida de uma

população, medida pela possibilidade de acesso à educação, à saúde,

ao consumo, à higiene" (Jornal do Brasil, 24/6/90),

l'v'lesmo com estas e\'id~ncias, as parcelas da população que se

beneficiam das disparidades denunciadas não dão mostras de se

sensibilizarem com os problemas sociais que decorrem dessa

realidade, comportando-se unidimensional mente como \'ítimas da

\'iol~ncia urbana, caracterizada por constantes furtos e outros delitos

contra o patrimônio, É importante registrar que, quanto a esses

propalados crimes praticados por meninos e meninas de rua, os dados

da 2a, Vara da Infância e Jll\'entude da cidade do Rio de Janeiro não

confirmam as características de extrema viol~ncia e \'andalismo que

se lhes atribuem: no m~s de março de 1992 foram registrados 295 atos

infracionais cometidos por crianças e adolescentes. dos quais 80'~O

referiam-se a pequenos furtos, sem uso de qualquer tipo de anna ou

ocolT~ncia de \'iol~ncia física, Neste mesmo m~s não hOll\'e nenhum

registro de tentativa de homicídio ou estupro: no m~s de setembro de

1992 foram registradas 200 ocolT~ncias de atos infracionais.

209

mantendo-se a proporção de 80(~) de casos de pequenos furtos - p.ex.

furto de chocolate em supermercado e outros que mais que podem ser

caracterizados como furtos famélicos. Quanto a crimes de natureza

violenta, houve, no mês citado, o registro de I homicídio tentado.

Rebeldes transversais O comportamento manifesto pelos meninos e

meninas de rua que compõem os grupos estudados caracteriza-se, de

modo geral, pela rebeldia, agressividade e desesperança frente a uma

sociedade que os hostiliza e os exclui. Os grupos de jovens parecem

viver uma luta desesperada contra a opressão, contra o domínio que a

sociedade lhes impõem. Esta luta se inscreve no que Foucault

classifica como lutas de resistência, de oposição a formas específicas

de poder. São lutas trans\'ersais. porque não se voltam contra um

país ou um regime político: são lutas imediatas, porque se voltam não

contra um poder central, mas contra aqueles que são imediatamente

identificados como opressores: a polícia, os consumidores: são lutas

anárquicas: não há um alvo, um objetivo definido a alcançar, as

cnanças apenas clamam como podem ou como conseguem, pelo

direito à expressão de sua humanidade, pelo reconhecimento de seu

jeito próprio de perceber o mundo, e pelo direito de participarem,

como cidadãos, da sociedade brasileira.

Teimosamente, os menmos e menmas não aceitam desempenhar o

papel social que lhes está traçado. não incorporam a "boa índole do

PO\'O brasileiro", conformado em suplicar o assistencialismo do

Estado. "Filhos da mis~ria", como tantas vezes são rotulados, mas

tamb~m do desejo: filhos do abandono, mas tamb~m da rebeldia,

210

ainda que uma rebeldia sem canais de expressão coletiva. Estes

jovens desnudam atrav~s de seu comportamento (anti )social as

enormes contradições de uma sociedade muito próxima a um

esgarçamento de seu tecido social, em função do distanciamento

sócio-econômico entre as classes que participam efetivamente da

civilização moderna e a maioria da população dela excluída. O rótulo

de rebeldes essas crianças merecem de fato. Essa tah'ez seja a

característica mais marcante que se possa atribuir aos grupos de

crianças que renegam um destino miserável para \'iver uma aventura

que quase sempre tem um fim trágico.

Como resposta à mlsena. à submissão. ao conformismo. à fome

crônica, eles oferecem suas próprias existências, tornam público seu

desespero, oferecendo um espetáculo deprimente, exibindo seus

corpos marcados pela \'iolência de uma sociedade que não quer

reconhecê-los como sujeitos sociais, como cnanças a quem foram

roubadas as chances de futuro e as esperanças.

Seus espíritos buscam na droga uma fugaz sensação de prazer. de

potência. A droga integra-se em suas \'idas com função psíquica de

mantê-los \'ivos, como seres desejantes, mas ~ quase sempre a partir

da relação com a droga que acelera-se a entrada para o mundo do

crime. do qual esta população muito cedo se torna ref~m.

Mas a cena que se desenrola aos olhos dos passantes - os corpos

inebriados e desconexos - causam antes horror e repulsa do que

solidariedade e um chamamento à defesa e proteção dessas crianças.

211

atingidas por um desnecessário ~ profundo drama orqu~strado por

toda a sociedade, seja pela omissão s~ja pela muda aqui~scência à

violência institucionalizada. Para qu~m de alguma forma compartilha

da experiência de vidas destes meninos e meninas, sua meninice se

ressalta, em meio a gestos de desespero. Os relatos pessoais aqui

apresentados, d~nunciam o precário estado psicológico ~m qu~ se

encontram estes jov~ns, a carência material, as condições insalubres e

perigosas em que vivem, a total falta de proteção e de aporte afetivo,

o não atendimento às mais elementares necessidades pSlqUlcas,

morais ~ socIaIs para um des~nvol\'imento sadio d~ suas

personalidades. Estas circunstâncias projetam um futuro sombrio

para suas vidas, tão precoc~mente ~xpostas a toda sort~ de mazelas

sociais. Ou, mais pr~cisam~nt~, ~stes jovens não constro~m para si

mesmos um projeto d~ "ida. A crueza da realidade pres~nte par~c~

Ih~s tirar a esp~rança ~ a disposição de ~mpr~~nder algum proj~to

para o futuro, impingindo-Ih~s, ~m alguns casos. uma subj~ti\'idade

marginal.

Pen'ersamente, desumanamente, inac~ita\'e1m~nt~, ren~gamos.

estigmatizamos e pummos com a morte psíquica e mesmo com a

morte física, uma geração de jo\'~ns brasikiros qu~ ousa d~safiar a

mis~ria que lhes r~s~r\'amos como d~stino in~xorá"e1.

212

ANEXO:

FRAGMENTOS DE ESTÓRIAS DE VIDA

21:;

FRAGMENTOS DE ESTÓRIAS DE VIDA

JOVENS MÃES E GESTANTES

MARIA

A trajetória para a rua começou em Vitória, quando ela tinha cinco

anos e a màe morreu. Os familiares a mandaram para o Rio de

Janeiro, juntamente com a irmã mais nova, para vIver com a

madrinha. O pai verdadeiro era alcoólatra .. No Rio de Janeiro ela

lembra-se que chegou muito doente dos pulmões, "quase morrendo",

e a mãe (como ela se refere à mãe adotiva) cuidou e teve muito

trabalho com ela. Mas as relações entre elas eram muito conflituosas,

porque a mãe "cuidava, mas nào dava carinho". tratava-a muito mal,

aplicava severos castil!os e, sel!undo a J' ovem, não l!ostava dela. A .... '-' '-'

menina, por sua \'ez nutre, até hoje, um sentimento de amor e ódio

pela mãe. Um dia, revoltada por não se sentir aceita, resoh'eu fugir de

casa, e foi parar na praia de Copacabana, segundo ela. aos oito anos

de idade. Lá ela se criou, junto a outras crianças.

Durante o depoimento, que começou quase por acaso e foi tomando

um clima de verdadeira catarse psicológica, a menina reviveu

emoções que dizia não saber mais que existiam, comovendo as

educadoras, que apenas ouviam o depoimento, incentivando-a com

olhares e gestos.

214

Continuando suas memórias ela contou que passava noites e noites

acordadas, pensando como a mãe estaria reagindo à ausência dela,

queria saber se ela sentia saudades ... No Dia das Mães, ela comprava

presente, pensando em voltar em casa, mas nunca teve coragem de

fazê-lo. Anos depois, quando Maria se encontrava grávida de seu

primeiro filho, foi internada numa instituição, que localizou a mãe,

sem o seu conhecimento. Quando deparou com a \'isita tào

inesperada, disse ter quase desmaiado de emoção. A mãe não sabia

que ela estava grávida, pois ela ainda não tinha contado isso na

instituição. A mãe convidou-a para voltar para casa, disse nunca ter

entendido os motivos que levaram a meni"na a fugir. Maria. por sua

vez não conseguiu dizer nada. porque "sentia muita dor", Contudo

concordou em ir para casa com a mãe, pensando em ter o bebê em

melhores condições,

Uma vez em casa, a menina deu-se conta que a mãe havia mentido

para parentes e vizinhos. sobre o seu verdadeiro paradeiro. dizendo

que ela tinha ido viver em Vitória, com outros parentes. Maria sentiu­

se traída e desvalorizada. "Ela não me aceitava como eu era. menina

de rua, ela tinha vergonha de mim", e por isso decidiu nào vi\'er lá,

retornando para a rua. onde nasceu seu filho. Este foi seu último

contato com a mãe, O pai da criança esta\'a preso. e meses após o

nascimento o bebê, chamado Rafael, foi entregue a familiares do pai.

À ~poca da excursão a criança estava, segundo a mãe com dois anos

de idade.

215

Maria contava então dezesseis anos incompletos, e estava no oitavo

m~s de gestação do segundo filho. Ela conta que se sentiu muito só,

após a separação do primeiro beb~, mas "era para o bem dde",

conforme tantos adultos sugeriram. Na ocasião as educadoras do

SEMPRE VIVA haviam conseguido uma \'aga para da num

equipamento dirigido por freiras, só para meninas. Ela esta\'a feliz lá,

sabendo que o filho nasceria em mdhores condições, se identificava

com as freiras e assumia grande parte do trabalho dom~stico e ainda

tomava conta de beb~s de outras jovens que estavam trabalhando

fora.

Em profundo desrespeito à estória de vida desta e de outra meninas

que \'ivem nas ruas de Copacabana, o jornal O GLOBO publicou em

17.'04/91 uma reportagem sobre prostituição nas ruas, com foto não

autorizada das moças, traçando um perfil discriminatório, pn)\'ocando

inclusive grande mal-estar nas rdações tàmiliares.

As memnas fotografadas ficaram indignadas responderam a

reportagem atra\'~s de uma carta entregue às educadoras, que at~ hoje

não conseguiram o direito de resposta, nem no mesmo jornal que a

publicou. nem em outro órgão da imprensa.

216

GISLENE

Gislcnç ~ uma jO\'çm atçndida dçsdç 1990 pçlo projçto SEM PRE

VIVA, ç conta hojç 16 anos. Em outubro de 1991 da çsta\'a grá\'ida

do segundo filho ç cuidando da primçira filha. Luciana, dç apÇnas

da mÇsÇs de idadç. Ela tamb~m rdatou um pouco da sua çstória. Çm

cOIl\'Çrsa informal com as çducadoras. Sua participação nas ati\'idadçs

da çxcursão ficou prçjudicada por fortçs dorçs dç dçntç qUç a

incomoda\'am à ~poca ..

Ela conta qUç \'I\'ç Çm Copacabana dçsdç Pçquçna. uns no\'ç. da

anos dç idadç. quando fugiu dç casa por causa do ass~dio do padrasto.

Uma \'a na rua. da juntou-sç a um grupo (k mçninas quç Sç

constituiu como família dç rua ç permanÇcÇ ligado por fortçs laços dç

at'çto. Aos dozç anos conhçcçu SÇU "marido" ç mant~m com dç uma

relação çstá\'d. SÇus dois filhos são ddç ç çla ÇxprÇssa um

sçntimçnto dç orgulho Çm mantçr um casamçnto por tanto tçmpo.

inclusi\,ç quçstionando as çducadoras sobrç suas rdaçõçs akti\'as. ç

comparando as çxpçri~ncias com a dda. quç julga sÇr bçm sucçdida.

Sobrç a matçrnidadç da fala com firmaa, dizçndo-sç "dit'çrçntç".

após o nascimçnto do bçb~. ç não dçixa dú\'idas quanto à acçitação do

papçl dç mãç. Ela. como as outras moças grá\'idas do grupo. não

plançjou a matçrnidadç. mas tanto da quanto o companhçiro la

sonha\'am Çm tçr filhos. indçpçn(kntç da situação dç \'ida do casal.

217

Mais tarde uma educadora me contou que, apos longo Jrabalho de

recuperação da estória da menina. descobriu que a Gislene. que de

fato tinha outro nome. iniciou sua trajetória para rua a partir de muito

pequena. provavelmente por volta dos três anos. quando foi

encontrada sozinha na rua, provavelmente porque teria se perdido da

a\'ó. e fora encaminhada à Febem, onde passou grande parte da

infância sem qualquer notícia de parentes. Casualmente. quando a

menina tinha perto de no\'e anos. uma outra criança. levada para a

mesma unidade da entidade a reconheceu, perguntando à Gislene se

nào se lembrava dela. da família que vivia em Duque de Caxias. ao

que ela respondia negativamente. dizendo não ter nenhuma

lembrança familiar.

Esta segunda criança. ao sair da instituição. contou para a tàmília da

Gislene. que era vizinha da dela. que a havia encontrado lá. A màe da

menina então localizou-a e a le\'l)u para viver em casa. Segundo as

psicólogas do SEMPRE VIVA. a menina nunca t:1Z mençào a estes

tàtos. sugerindo algum bloqueio psicológico, inclusive negando o

nome tàmiliar, que consta da sua certidão de nascimento. A partir

deste retorno ao COlwí\'io familiar ~ que ela conta as desavenças com

o padrasto e a decisào de fugir de casa. Gislene demonstra atribuir

grande valor à \'ida familiar. tanto da tàmília composta por ela.

companheiro e filhos. quanto a preservação dos laços interpessoais

da sua tàmília de rua.

Tanto a mentna. quanto seu companheiro já empreenderam \'anas

tentati\'as de sair das ruas. \'iver numa casa. mas ambos cresceram nas

218

ruas. sem qualquer chance de integração sociaL de educação. saúde

ou trabalho. As relações institucionais se limitaram às internações

compulsórias em abrigos correcionais. Por uma vez. já grá\'ida do

primeiro filho. e atrav~s da mediação do programa SEMPRE VIVA.

o casal conseguiu a posse de um barraco localizado numa das muitas

fawlas da zona sul. Este período. por~m. durou pouco. porque ha\'ia

no local sáia di\'isão de territórios por parte de traficantes de tóxico.

o que im'Íabilizou a perman~ncia do casal no local. que \'oltou então

para as ruas de Copacabana. O motivo imediato da expulsão da

t:1mília da comunidade ~ inusitado. A menina conta que um dos

grupos que disputa\'am a hegemonia da liderança local supôs que a

t:1mília estivesse recebendo auxílio do grupo adversário. porque o

casal obte\'e material de construção para reforma do barraco. 1'\a

\'erdade. o material fora doado pelo IBISS. como forma de incentivo

à nova \'ida do casal. \-'!esmo explicitando a origem do material. a

t:1mília passou a ser "suspeita". e em dois meses foi expulsa do local.

Hoje Gislene está morando. em companhia da filha Luciana. de dois

anos. numa instituição municipal para crianças de rua. Seu

companheiro ainda vive em Copacabana. fazendo biscates e

trabalhando como guardado r de automóveis. Ele \'isita a família

regularmente. O filho mais novo do casal morreu com apenas

quatro meses de idade. de infecção de causa indeterminada. alguns

dias antes de ser aceita na instituição.

Reproduzo a seguir parte de uma entre\'ista realizada com a Gislene.

no meio de outras crianças. em que ela fala da \'ida na rua:

219

Entrev.: Seu nome, sua idade:

G: Meu nome é Gislene, tenho 15 anos.

Entre\': Porque ,'ocê veio para a rua'.'

G: Porque eu gosto de ficar na rua.

Entre\': O que tem de bom na rua'.'

G: Eu gosto de ficar na rua porque tem a praia, eu tenho liberdade.

gosto de ficar andando.

Entre\': E em casa, como é'.1 Você tem casa'.1

G: Tenho, eu moro lá em Caxias, lá em Gramacho (risos dos

presentes) Entre,': E porque \'ocê não fica lá na sua casa'.1

G: Por causa do meu padrasto.

Entre\': O que é que tem seu padrasto'.'

G: Ah, quando eu tinha dez anos ele tentou me estuprar. Aí eu fugi de

casa.

Entre\': E de lá prá cá. ,'ocê ,'i\'e na rua',l

G: Aí. quando eu fugi de casa. eu \'oltei prá casa, aí meu pai foi. meu

pai e minha mãe brigou, aí minha mãe foi trabalhar. aí meu pai me

botou no colégio interno. do colégio interno eu fugi. fiquei na rua

desde os dez anos.

Entre,': Em que colégio interno você esteve?

G: O colégio que eu ti\'e foi no CERTRlN de Niterói

Entre": E como é que era lá'.1

G: A gente fica\'a em pé o dia inteiro, de castigo, nào comia bem. nào

comia direito.

Entre": E aí, o que \'ocês ficavam t~1zendo na escola'.1

220

G: A gente arruma\'a nosso quarto. nossa cama. passa\'a pano no

chão. aí depois a gente brinca\'a. ia pro parque que a gente brinca\'<1.

depois a gente toma\'a banho. a gente almoça\'a.

SOBREINTERNA(ÀO

Entre\': Você já rodou'.' (Obs.: "rodar" significa "ser internado". "ser

preso" )

G: Já

Entre\': Quantas \CZes'.'

G: Fui pro Santos Dumont. não. primeiro fui pro Paula Cândido. do

Paula Cindido fui pro Santos Dumont. do Santos Dumont minha mãe

me tirou. aí cU fugi de casa. Entre\: E lá no Santos Dumont. como foi

lá prú \'ocê'.'

G: At~ qUe no Santos Dumont. .. não \'OU falar qUe ~ bom. ~ ruim prá

caramba. sabe por que'.' É ruim porque a gente fica presa. assim. a

gente fica presa. a gente come bem. sabe'.' A única coisa ruim ~ qUe a

gente fica presa. qUe a gente tem o seJ"\'iço da gente. a gente aprende

a t:1zer comida. bolinho assim. eSSeS negúcios para \ender. faz

crochê. costura para aprender. coisa de cabelo. essas coisas assim

para aprender. pintar unha.

Entre\: Bem. tem uma parte boa e uma parte ruim. Ruim porque fica

presa e boa porqUe aprende essas coisas todas. Estuda. E \'ocê

gostaria de \oltar a uma escola que não ficaSSe presa'.'

G: '\ão. cU não qUero mais não.

221

SONHOS

Entre\': O que \'oc~ mais queria qUe aconteceSSe com \'nc~. no futuro'.'

G: Eu quero qUe eu fico rica, rica, rica, prá mim sair dessa vida.

Entre\': Voc~ qUer sair dessa \·ida'.'

G: Eu qUero ficar rica.

Entre\': E Se voc~ ficasse rica. o que \'ocê ia fazer'.'

G: Se cU ficar rica. cU sumo daqui do Rio de Janeiro. \'ou pro Japão.

apw\'eito, fico lá no Japão .. nunca mais \'enho prú d. nunca mais

vejo ningu~m mais pobre. ningu~m (risos).

ANDREA

E - Qual a sua idadç. Andrça','

A_ - Oçzoito. (As amigas riçm muito: Viu tia. não ~ mÇnor dç rua. ~

maior .. , )

E - Como ~ o nomÇ da sua mãç','

A - Não tçnho, aliás. não conhçço,

E - Nunca conhecçu','

A - Não,

E - E pai. \'ocê conhçcçu'.'

A - Não. Eu não conhçço ningu~m da minha família. tia.

E - Quçm \'ocê conhçcçu. qUçm tç criava'!

A - tvlinha madrinha.

E - Quanto tempo voc'ê çstá na rua'.'

A - Cinco. seis mÇsÇs,

E - Você morava com a sua madrinha','

A - Não. ÇU tava no Col~t!io intçrno. fut!Í. ~ ~

Amiga - Mas a madrinha dda ~ qUç ia visitar da. sabç. final dç

sçmana.

E - Qual o col~gio'.'

A - CEOIT. lá dç )\(wa Iguaçu,

E - Então \'ocê já çstudou bastantç,

A - Estmki at~ a quarta. Eu sçi \çr ç çscre\'çr Pçlo mÇnos,

E - Você já trabalhou Çm alguma coisa'!

A - Já trabalhei Çm casa dç família ...

Amiga - Ah. lá Çm Nitçrói. n~. trabalhou Çm casa dç família. saiu no

mÇsmo dia .. , (risos) Saiu no mÇsmo dia, tia.

A - Nem recebi ...

Amiga - Claro, não trabalhou nem um dia, garota. Ela foi hoje e saiu

hoje mesmo.(risos) Vai receber o quê'.'

A - Eu queria ser professora ...

Amigas - Prá ser professora tem que estudar, você fugiu da escola.

(risos)

E - Você fugiu por quê'.'

A - Ah, porque eu perdi a paClenCIa, não aguento maIs. Eu sou

agressiva, aí eu xingo todo mundo.

E - E por que que você ~ agressiva'.'

Amigas - Revolta, não conhece nem màe nem pai. e aí desconta na

gente. É a realidade, ora.

E - É por isso que você ~ agressiva'.'

A - É por causa disso mesmo.

E - O que você fez de agressivo na Escola'!

A - Eu'! Discuto com a professora, brigo com todo mundo. (risos)

E - Com qualquer professora você discute'.' Com qualquer pessoa

você briga'.' Por quê'.'

A - Revolta. Eu fiquei dez dias na cadeia. Segurei roubo de outra

menor.

E - Você faz o que da vida entào. Passa o dia inteiro fazendo o quê'.'

A - Eu passo o dia inteiro dormindo (risos)

Ami\las - O dia inteiro dormindo na rua e perturbando a \lente. ~ ~

Amiga: Às \'ezes quando a gente não quer roubar, sabe. porque a

gente as vezes pensa, a gente estimula em pensamento que a gente

nào quer roubar. aí a gente vai e pede. pede no meio da rua. Mas aí dá

a maior revolta, que a gente pede, Aí me dá um dinheiro prá eu

224

comprar um pão ali ... Ah, vai trabalhar. .. não sei mais o que. Aí dá a

maior \'ontade de roubar mesmo. sabe. Mas eU não gosto de ficar na

rua não.

E - Você preferia trabalhar'.' Em qUe'.'

amiga: Em qualquer coisa.

A Andréa esta\'a grá\'ida de quatro meses. do primeiro filho. mas. ao

contrário das outras grávidas. não participou das conversas do grupo.

e durante a entre\'ista não Se referiu à gravidez. embora já esti\'esse

recebendo orientação específica sobre a maternidade. MeSeS mais

tarde encontrei-a no escritório do lBISS, justamente no dia em que

saíra da maternidade com o beb~. um menino. Só então soube qUe da

mantinha um relacionamento homossexual com outra moça do grupo.

qUe demonstrou grande preocupação com o beb~ e k\'l)u mãe e filho

para passar uns tempos na casa da família da Luciana na Baixada.

Ainda hoje a Andréa está \'i\'endo lá com o beb~.

A Andréa foi criada desde sempre em instituições. não tem

informações a respeito de parentes. a não ser uma mulher que Se diz

sua madrinha e qUe a \'isita\'a com alguma regularidade enquanto da

este\'e interna.

OUTROS FRAGMENTOS DE VIDA

Um herói pelo avesso

mãe: Selene (mOlTeu há seis anos)

pai: Jorge Luiz

irmãos: 1 itmàos mais no\'os (9 anos, 14 anos) Os irmãos estão na rua

desde que a mãe morreu.

onde mora: Campo Grande. Só fui em casa uma vez.

Escola: já estudei na Escola Municipal Prof. Firmo Costa (Padre

Miguel). Já estive na Funabem da Ilha do Governador.

Esta moça deu um extenso depoimento sobre sua \'ida. Ela assume-se

como homossexual. e valoriza o comportamento masculino.

demonstrando preferência pelas atividades dos me11\nos . A sua

companheira estava também na excursão, e também deu um

com()\'ente depoimento, relatado mais adiante. Ela \'i\'ia em

Copacabana na época que prestou o presente depoimento, e diz que

"Minha vida é Copacabana. Aqui no passeio é bom. mas nào estou

gostando tanto. queria ficar em Copacabana. lá tem tudo o que eu

quero. Se eu quiser comer alguma coisa, não tem problema. eu tomo

de um entregador de quentinha. que ele carrega tantas que nào \'ai

querer parar só por causa de uma. e perder tudo. Também entro no

bar. ou num restaurante. com cara de quem \'ai pagar. como o que eu

quero, e depois \'OU embora. Um dia o cara gritou. pega. pega. mas é

ruim de alguém me pegar".

116

Ela diz se divertir nas ocasiões em que consegue furtar com

facilidade "algumas velhinhas em Copacabana". e em seguida

detalhou a estratégia que adota para escolher a \'ítima, Fica na rua.

esperando passar "uma velhinha com cara de quem vai entregar prá

polícia" (com cara de quem tem raiva de menor de rua, explicou) e aí

dá uma rasteira nela. toma bolsa. ou tira outro pertence qualquer. Ela

acredita que assim se vinga de quem nào gosta de menino e menina

de rua,

Esta menina se autodefine como "muito mú", Ela procura. conforme

confessou. amedrontar as pessoas. se impor pelo medo. "mandar no

pedaço", Ela nos contou com detalhes vários assaltos que praticou,

Num deles, na Praça Serzedelo Correia ela assaltou uma turista.

levando mais de duzentos dólares, Fez o assalto orientada por um

\'endedor de barraca de artesanato." que \'iu que a gringa ta\'a com

muita grana na bolsa", A mulher gritou por socorro e ela foi

perseguida por um bom tempo. até que entrou no banheiro de um

botequim. tirou a jaqueta que a identificava e saiu pedindo esmola

para outro lado. passando desapercebida pela polícia, Dali foi

comprar tênis Redley para ela e para algumas companheiras, Depois

foi para o morro. comprar maconha e cocaína,

A aH) dela mora num morro da periferia da cidade. e trabalha no

mo\'imento de trúfico de drogas, É com a an) que a menina mantém

algum \'Ínculo. e esta é. aos seus olhos. uma espécie de protetora,

227

A jovem contou também que tem uma coleção de tênis, de todas as

cores e modelos, que ela rouba de umas "playboyzinhas em

Copacabana". Curioso é que ela não usava na ocasião nenhum deles.

Eu perguntei porque ela nào trouxe um tênis para o passeio, já que

estava frio e chovendo e ela estava de chinelo de borracha. Ela disse

que está com um machucado no pé há muito tempo, que não quer

sarar, e por isso ela não pode calçar nada.

A mãe dela foi morta num fim de ano ou Natal. por bandidos de

tráfico de drogas, que queriam proteção. Ela conta que a mãe ajudava

os traficantes que iam presos. "assim, igual as tias ajudam a gente

quando a gente ,'ai preso". A mãe teria saído de casa. para

cumprimentar vizinhos durante a festa de fim de ano. e. como

demorasse muito a ,'oltar, já pela madrugada Carmen foi atrás dela.

saber porque demorava tanto. Já amanhecendo o dia encontrou o

corpo da mãe esquartejado, "sem estar nem coberto, no meio da rua".

Ela se diz revoltada desde então. O pai nunca ,'iveu com a mãe, tem

outra mulher, que não gosta dela. O irmão mais no\'o morreu logo

depois da mãe. também assassinado por traficantes. Ela conta que um

dos irmãos disse que a mataria. aí ela arquitetou um plano de matá-lo

primeiro. Esse irmão dormia nas imediações da casa da avó. Ela disse

a ele que passaria a noite em Copacabana. No meio da madrugada ela

foi para o local em que o irmão se encontrava. Dai amarrou jornais

com barbante nas pernas e nos braços dele, e em seguida ateou fogo.

Para ele não desconfiar que foi ela, ela deitou-se ao lado dele e fingiu

dormir. Ele acordou aos berros, e segundo ela tem os braços e as

228

pernas marcados pdas queimaduras, Ele nunca soube que foi da

quem fez isso, e até se \'ingou de outros meninos que dormem na

praça, Ela diz que ria por dentro ao \'er o irmão se queimando,

Outro episódio rdatado por da foi o atropdamento da companheira,

Elas estavam no local habitual. em companhia de outra menina do

grupo, Quando foram atra\'essar a pista, um carro, dirigido por uma

mulher atropelou a amiga, A mulher parou muito nel'\'osa, mas ao \'er

a menina ensangüentada e com fratura exposta. te\'e medo de socorrer

e, segundo o relato, tentou fugir. Ela obrigou a mulher a socorrer a

amIga. e foi junto com a terceira menina para o Hospital. No

percurso da pegou a bolsa da mulher e tirou uns setenta mil

cruzeiros, Confessou que também nessa ocasião lhe acometia o riso

ao ver a companheira toda quebrada. "parecia que ia morrer", Só

depois da pensou que precis~l\'a socorr~-Ia, que da esta\'a \'i\'a,

Depois que da deixou a amiga no hospital mendigou algumas roupas.

porque a dda esta\'a suja de sangue, Trocou de bermuda e camisa e

foi comprar t~nis, Comprou um prá da e outro para a amIga

internada,

Em outra ocasião ela conta que estava em algum lugar da Zona Sul e

decidiu ganhar uma bicicleta, Disse que escolheu um bom local e

sentou-se sem pressa. esperando a melhor oportunidade de assaltar.

Enquanto isso cheirou um pouco de cocaína para dar coragem, Aí

\'islumbrou "um rapaz subindo a ladeira com uma bicicleta de último

tipo. muito linda", Ele não podia correr porque esta\'a ladeira acima,

Ela pegou um caco de \'idro e aproximou-se do rapaz. deu-lhe uma

229

chave de braço e ameaçou-lhe com o vidro. Ele entregou a bicicleta

sem esboçar reação, mas ela voltou a ameaça-lo caso de desse parte à

polícia, que estava em dupla, bem pertinho, logo abaixo da ladeira.

Ela disse que se ele falasse, ela o pegaria dessa vez "prá valer". Ela

seguiu o rapaz, já montada na bicicleta e foi direto pro morro, trocar a

bicicleta por cocaína. Disse que dessa vez o cara lhe deu vinte gramas

bem pesadas.

Terminado esses relatos, uma das educadoras perguntou se da não

tem vontade de largar esta vida. Ela respondeu que não, de jeito

nenhum. A vida dela ~ esta, e ela já está quase no fim da linha.

porque tem dezesseis anos e daqui há pouco será maior, daí nào vai

mais escapar da polícia. Ela disse que já "rodou" \'árias vezes, mas

não tem medo de políçia, encara qualquer guarda.

Outra educadora perguntou o que ela espera do futuro. o que ela

gostaria de fazer. Ela disse que o que ela mais quer nessa vida ~

aprender a ler e escrever. Ela sabe assinar o nome. e me pediu para

ensinar qualquer coisa para ela. Durante a tarde treinamos alguma

leitura, ela se mostrou muito interessada e por certo tem grande

t:1cilidade para a aprendizagem. embora diga não ter vontade de ir

para escola.

No relacionamento com os educadores ela se mostra cordial e afeti"a.

muito prestativa quer ajudar nos preparativos, carregar coisas,

transmitir recados. A grande segurança que quer demonstrar sobre

sua condição de "bandida" só foi abalada quando a educadora disse

230

não concordar com ela quando ela se declara muito ma.

Naturalmente, se!!undo a educadora, ela não sena muito má com '-'

qualquer pessoa, porque podíamos perceber a amizade e o carinho

que ela tinha, por exemplo, com suas companheiras e com as

educadoras. Continuando, a educadora afirmou que talvez ela fizesse

este papel de má de propósito, para vingar-se de pessoas ou de

situações que lhe provocavam muita revolta. A moça neste ponto

mostrou-se confusa, enfraquecendo o tom de voz, até aqui muito

firme, e quase balbuciando, "não, tia, eu sou ma mesmo, eu sou

má ... "

Às vésperas do Natal de 1991 esta jovem sofreu um sério acidente ao

tentar praticar um assalto num prédio, o qual ela tentava escalar.

Quando chegou à altura do sexto andar, muito nervosa, como depois

relatou, ela despencou lá de cima, sofrendo várias contusões pelo

corpo e perdendo vários dentes. Após ser internada para avaliação do

estado clínico, a jovem \'oltou para as ruas, e bastante deprimida com

o OCOlTido, principalmente por ter perdido os dentes, da contou que

sempre tinha que tàzer alguma coisa perto do Natal, porque era muito

triste, porque ela se lembrava da morte da mãe, ocorrida nessa época

e toda a revolta que sentia tornava-se ainda mais forte.

231

o menino regenerado

Um dos adolescentes participava da excursão num papel misto de

menino de rua e educador. Comportava-se frente a outros meninos

como um "superior", dando orientação e repreendendo algumas vezes

os mais novos. Ele juntou-se ao grupo que estava gravando entrevista

e pediu-me para gravar também. Após contar parte de sua trajetória

de vida, alTependeu-se e pediu-me que desgravasse a entrevista, que

não tinha importância eu saber a estória dele, não, que gostaria de

gravar "coisas mais bonitas".

Na ocasião da entrevista ele estava trabalhando numa instituição de

atendimento a crianças de rua como um educador-auxiliar. Mas

entrou na instituição .como um dos atendidos por ela. Sua trajetória

começou em Minas Gerais, onde deixou a cidade natal (que ele não

disse qual era) e foi viver em Belo Horizonte, após a morte da mãe.

Segundo ele, foi para uma cidade grande procurar uma chance de

vida melhor do que a que lhe aguardava no interior. Chegando na

cidade, sozinho, com aproximadamente treze anos, tudo o que

encontrou foi a rua e outros meninos para coO\'iver. Nào pode

\'islumbrar nenhuma maneIra de conseguir moradia ou trabalho.

Junto com os colegas passou ine\'itavelmente a cometer pequenos

furtos e, mais tarde, ao consumo e venda de dro\!as. Um certo dia. '-'

muito tempo depois de estar \'ivendo na rua, decidiu participar, junto

com outros três colegas, do furto de um automóvel. Conta que todos

cheiraram cocaína para dar coragem e rumaram para um shopping

center que se localizava na saída da cidade. O furto se deu com muita

facilidade, segundo de. De posse do carro os jovens decidiram pegar

a estrada, viajar para outros lugares, mas logo provocaram um sério

acidente de can'o, "por causa de estarem drogados". Todos ficaram

seriamente feridos, e ele permaneceu um tempo indefinido internado

num hospital para menores infratores.

Saindo de lá resolveu abandonar a cidade, e deixar para trás aquela

estória toda. Conseguiu carona para Sào Paulo, onde viveu algum

tempo, também nas ruas, numa vida bem parecida com a anterior.

Sem explicar as circunstâncias, conta que decidiu conhecer o Rio de

Janeiro, onde chegou já com dezesseis anos e onde começou, pouco

tempo depois, a freqüentar algumas instituições de atendimento a

crianças de rua, buscando sobreviver sem participar de furtos. Daí

encontrou algum apoto numa delas. onde foi chamado a participar da

daboraçào de um vídeo sobre infância pobre. Neste processo

conheceu "algumas pessoas que confiaram em mim. me deram uma

chance" e, de menino de rua transformou-se em educador. A seguir

transcrevo parte do relato que o jovem gravou, onde percebe-se

claramente o tom da regeneração cristã:

"Eu estou feliz, eu sei que realmente existem pessoas. ao nosso lado.

que trabalham em prol dos meninos de rua. Que realmente existem

pessoas que estão dando um pouquinho de si para este trabalho. E que

um dia estas crianças possam surpreender a sociedade. e a sociedade

ver neles uma nova esperança. Que a esperança para um mundo

mdhor está neles. É muito bom ser criança, é muito bom ser

adolescente, mas é muito ruim ser olhado como um marginal. é muito

233

rUIm ser olhado como bandido. Eles não são, nós não somos

bandidos, nós simplesmente dependemos de um carinho que não foi

dado na infância. Até mesmo eu não me lembro de ter dado um

SOlTiso na infância, aquele travesseiro, aquele cobertor que me faltou,

eu não quero que falte prá eles não. Eu quero que eles tenham em

abundância este cobertor, este travesseiro, este carinho que nós damos

prá eles. Quero que eles se dediquem mais para o trabalho, pela

amizade um ao outro, pelo amor. E que assim conseguiremos chegar

lá, desta forma conseguiremos. Como eu disse antes, eu nào tenho as

palavras bonitas, eu apenas falo as coisas de coração, se é engraçado,

se deixa de ser engraçado, que seja, mas o que eu falo, é o que eu

sinto, vem do mais puro sentimento que eu tenho por cada um deles.

É a maior forma de ser amado por alguém, é amando.

Muito obrigado pelo carinho, pelo amor, pela atenção e que um dia

nós possamos conseguir o que nós realmente queremos, o que nós

realmente desejamos, porque na subida para a felicidade não existe

escada rolante, mas lute, nunca pise numa escada humana, ok'.) Sejam

felizes, porque realmente existem pessoas que os amam.

Um abraço, Paulista".

Fica ainda patente no discurso do adolescente a dubiedade de papéis

que ele assume, ora ainda como menino de rua, ora no papel de

conselheiro. Este comportamento foi observado também na prática.

Por exemplo, na hora das refeições ele agia tal qual os outros jovens,

disputando a prioridade. Já durante os jogos, ele assumia o papel de

134

coordenador. Um incidente na primeira noite da excursão envolveu a

participação deste jovem, quando ele teria tentado estuprar um

menino mais novo que dormia no alojamento que ele "coordenava",

235

A menina fraca

Alguns dados:

Idade: 16 anos

Mãe: Marlene (nunca \·iveu com o pai)

Pai: Gem)\'aldo Felipe da Sih'a (morto há uns dois anos)

irmãos: 7 irmãos mais novos

onde mora: está na rua desde os onze anos. Fica em Copacabana. A

a\'ó mora em Araruama. Tem um ano que da não \'~ a a\'ó. Ela

queria uma passagem para ir em Araruama. A mãe mora em Ricardo

de Albuquerque.

irmãos: ~ irmãos estão na rua. os outros com a mãe.

escola: nunca estudou. Só sabe escre\'er o nome. Já foi interna na llha

do Go\'ernador. Escola Santos Dumont. Não aprendeu nada.

Profissão: tem vontade de ser marinheira.

Depoimento:

"Tia. eu queria uma casa prá mim ficar. por causa de que eu tô na

rua. e não aguento mais ficar na rua. com este braço operado. Tia. por

favor me ajuda, tia. (risos das amigas l. Eu nunca conheci meu pai,( as

amigas: Ah pára de brincar. n~)

o dia que eu fui conhecer meu pai ele tava morto no chão. Eu sou

muito revoltada da minha \'ida. meu a\'ô me estuprou quando eu tinha

onze anos de idade. em Araruama. Eu não sei mais o que t~1zer. eu

2~6

quero um lugar prá mim ficar porque eu nào quero mais ficar na rua.

Por favor me ajude".

Este apelo dramático feito pela jovem entrevistada coincide com o o

estado de espírito que a menina demonstrava na ocasiào. Ela havia

sofrido recentemente um grave acidente, tendo sido atropelada nas

proximidades do local onde "fica". (Ver entrevista Carmen) Após o

acidente ela passou quase um m~s internada num hospital municipal.

aguardando restabelecer-se dos ferimentos, que incluíram fratura

exposta de braço e c1a\'ícula. Numa visita à adolescente, logo após o

ocorrido, suas educadoras contam que encontraram-na chupando

chupeta, tal era o seu estado psicológico.

Sobre sua estória de vida, o fato que mais me chamou a atenção foi a

passagem em que a .iO\·em assegura que, casualmente, no dia em que

convenceu a avó de levá-Ia a uma cidadezinha próxima a Araruama,

onde \'ivia o pai, a quem ela sonhava conhecer pessoalmente,

encontrou-o morto. Ela teria chegado exatamente no velório do pai,

que acabara de morrer assassinado. Essa trágica experi~ncia teria

marcado a vida da menina, que \'árias vezes disse não ter forças para

empreender qualquer iniciativa na sua vida. Não há de ser por acaso

que se submeteu exatamente à outra menina, a Carmen, de

personalidade forte, heróica, recebendo dela proteção, alimento e em

troca submetendo-se às decisões da companheira.

Alguns meses passados da excursão, recebi notícias atrav~s da

educadora de que a Patrícia restabelecera-se completamente do

acidente e estava tentando conseguir uma vaga de residência num

projeto do Governo do Estado para meninas de rua. Longe da forte

ascendência da antiga companheira, ela parecia aos olhos da

educadora, mais firme, tentando entrosar-se com o novo grupo em

que Ingressava.

238

A bola da vez

João

Alguns dados:

rdad~: 17 anos data nasc: 09/ I 0/73 (ou s~ja, completa,'a 18 anos

justam~nte no dia da ~ntrevista. Ele sabia qu~ ~sta\'a completando

daoito anos, mas apar~ntem~nte nào quis diz~r d~ saída, porqu~ já

nào ~ra mais m~nor. Quando ~u disse, então hoje ~ o dia do seu

ani\'~rsário. Ele respond~u: Pois ~, agora eu sou maior. tia.)

Mãe: Maria Apar~cida

Pai: Jorge (morto quando ele tinha 2 anos)

irmãos: 6 irmãos mais no\'os

onde mora: Itaguaí.

Escola: Escola Venc~slau Brás - Caxambu MG. Foi interno dos s~te

aos doz~ anos. Estudou na Escola Estadual Agrícola Xaperó - Itaguaí.

o adolesc~nte conta que não pode ir prá casa, pois está jurado pela

Polícia \!lineira. tv[ora na rua, cada dia dorm~ num lugar. com medo

da polícia. Está há dois meses fora de casa. Era camelô e \'~ndia doc~

e picol~ no trem.

D~pois qu~ ~u dei os parab~ns pelo al1l\'~rsano. ~le declarou para

todos qu~ ~ra ani\'ersário d~le, ~ pediu ao diretor do IBISS para lhe

comprar um bolo. A noite o rapaz foi com o educador à padaria e

trouxe dois bolos de chocolate. Ele ficou ,'isi,'elmente emocionado

com a comemoração.

239

Eis parte da entrevista gra\'ada com de:

E - Porque \'ocê foi parar em Caxambu, Minas'.'

J - Porque minha mãe me internou lá, quando eu tinha sete anos. Saí

com doze anos

E - Então \'ocê sabe ler e escrever'.'

J - Sei.

E - Você tá na rua há muito tempo'.'

J - Tô, não posso ir prá casa.

E - Por que'.'

J - Porque houve uma confusão em casa ...

E - Na sua casa ou lá perto'.'

J - Lá perto, aí eles me acusaram de certos roubos. aí eu tiw de sair

de casa. Foi os prvl, Mineira mesmo que fizeram isso. Botaram

pressão ni mim prá poder me matar.

E - Aí \'ocê tá morando aonde'.'

J - Tô morando na rua.

E - Na Cindândia. na Carioca. aonde'.'

J - Em qualquer lugar. onde dá prá eu dormir. eu tô dormindo.

E - você trabalha. faz alguma coisa durante o dia'.'

J - Não ...

E - Você ainda quer estudar'.'

J - Claro, quero estudar no ClEP.

E - Você já foi prá algum ClEP'.' J - Não. Queria estudar a noite no

CIEP

E - Você gostaria de trabalhar em quê'.'

J - Quem eu'.' Prontas entregas.

240

E - O que ~ isso'.) O que você quer entregar'!

J - É esse negócio que eu já vi esses garotos entregar, igual office­

boy.

E - Você quer ser office-boy'! Você nunca trabalhou'.)

J - É. Não

Este rapaz tem o perfil típico do que na rua chama-se "bola da vez".

ou seja, pn)\'a\'e1mente encontra-se na mira de algum matador. Ele

não fazia parte do grupo atendido pelos projetos organizadores da

excursão, Pro\'awlmente imiscuiu-se entre os outros meninos para

poder passar três dias sem ser perseguido. Depreende-se de seu relato

que \'i\'ia mudando de lugar, sem \'incular-se a nenhum grupo, numa

tentati\'a de não ser localizado pela chamada Polícia Mineira, a quem

ele "esta\'a de\'endo alguma coisa", Acresce-se que ele esta\'a

justamente completando a maioridade, marco tão temido pelos

adolescentes que não conseguem se encaminhar para uma alternati\'a

à \'ida do crime, ou ao extermínio, Ele ficou surpreso ao ser bem

tratado pelo grupo, tanto de meninos quanto pelos educadores. Disse

após a comemoração de seu ani\'ersário que queria muito \'I\'eL

mudar de \'ida, que nesta festa ele esta\'a achando que podia.

Após o retorno ao Rio, nunca mais ti\'e notícias do rapaz. que não

retornou aos locais usuais de atendimento dos educadores,

241

Uma entrevista padrão

A ~ntr~\'ista qu~ se s~gu~ foi realizada em dez~mbro de 1991, pela

pesquisadora e pelo pedagogo Carlos Bezerra, como part~ do

levantamento da população infantil de rua da Praça Saens Pena ~

adjacências, solicitado pela Prefeitura do Rio d~ Janeiro. Julgu~i

int~ressante inclui-Ia na íntegra, porque em primeiro lugar, da pod~

ser tomada como padrão das entrevistas gravadas no período da

pesquisa: ~m segundo lugar porqu~ a considero particularm~nt~

indicativa do comportam~nto infantil ~ espontân~o qu~ as cnanças

demonstram junto aos educadores ~ ainda porque, por pura

casualidade, o ~ducador citado pr~s~nciou, mom~ntos ant~s do

~ncontro com os m~ninos, dois dos ~ntre\'istados ser~m usados por

um adulto durant~ um assalto. O ~ducador ~ ~u nos ~ncontramos na

Praça, ~ procuramos os locais ond~ normalm~nte as crianças s~

reuniam. Próximo ao Tijuca Off Shopping vimos alguns adokscent~s

~ngraxat~s, havia um grupo d~ 4 ou 5 m~ninos. Quando nos

dirigíamos a des, outro grupo de meninos m~nores se aproximou.

Eram 4 meninos ~ ~sta\'am pedindo dinheiro para o Natal. com uma

caixa tipo ~stas qu~ t~m nos bar~s com cartão d~s~jando Fd iz Natal a

q u~m aj udar.

O Carlos reconh~c~u dois dos m~nInOS, qu~ ~stavam no m~smo

ônibus qu~ ele apanhou de Copacabana para a Tijuca. Est~s m~ninos

participaram de um assalto que hou\'~ no ônibus, s~gurando a arma

para um homem at~ o mom~nto do assalto. No final das ~ntr~vistas o

Carlos dá um depoim~nto do qu~ ocorTeu. Os m~ninos tamb~m o

242

reconheceram e ficaram assustados, cochicharam entre si que este era

o cara que estava no ônibus. Perguntaram o que a gente queria com

eles. Sei.!ue a i.!ravação: ~ '-'

Carlos: A gente trabalha na Cinelândia, com aquela molecada de lá.

conheço muitos moleques ali na cidade. Eles me chamam de Gordo.

menino: Ah, eu sei tio, fica todo mundo ali naquela escadaria

menino: Já sei, já sei quem \'oc~ ~. Fala deles tio. Eles cheiram cola e

tudo ...

menino: Calma aí, deixa o moço tàlar, depois \'oc~ tàla.

Carlos: Aí, a gente foi chamado pelo Prefeito prá saber assim quantos

meninos tem na região da Saens Pena, porque ele tá querendo fazer

uma casa pros meninos e agora de acordo com o número de menino

que tem ele \'ai tàzú uma casa. ou duas casas. prá não ficar muito

moleque junto, aquela bagunça ... Um lugar que seja legal prá turma

ficar. Então ~ isso que a gente veio fazer aqui. Saber o nome de

\'oc~s. fazer algumas perguntas ... que ~ prá quando fazer a casa fazer

assIm ...

menino: Olha só. aqui na Saens Pena não dá não. aqui só tem muita

garota. Copacabana acho que tão tàzendo um negocIo desses. uma

casa nova.

menino: Ah. eles fazem ruindade. os grandes fazem ruindade ...

Eliana: quem ~ que t:1Z ruindade'.}

menino: os moleques. querem comer o coisa do outro ...

Eliana: Vocês ficam aqui?

menino: Não a gente fica em Copacabana

Eliana: Vocês dormem lá'.}

menino: Hum, hum. menino:(para Carlos) Você tava no ônibus, não

~'.) A \.!ente ta\'a com'ersando e você tava do lado da \.!ente ... ~ ~

Eliana: Bom vamos começar entào. O que que a gente quer saber: o

nome ou apdido, quantos anos vocês têm ...

menino: Eu quero falar primeiro ...

Eliana: Então tá bem, de fala, depois vocês falam. Qual e o seu

nome'!

menmo: Ricardo Constantino da Costa, tenho 12 anos

Eliana: Como é o nome do seu pai e da sua mãe'.)

Ricardo: Wilson, meu pai e minha màe Maria Eunice Mendonça

Eliana: Você sabe que dia \'ocê nasceu'.)

Ricardo: 1979.

E: Que dia, que mês'.)

Ricardo: Ah, nào sei ...

E: Que dia que você L1Z anos'.)

Ricardo: julho.

E: Que dia de julho'.'

Ricardo: Ah. dia 23 (muito alegre por ter se lembrado)

E: dia 23 de julho de 1979. Você ~ Leão'!

Ricardo: Isso mesmo. eu sou Leão ...

menino: eu sou de Libra ... Eu fiz aniversário. eu tenho 13 anos ...

E: Tã. daqui a pouco chega a sua \'a ...

E: Onde ~ que a sua màe mora. cadê seu paI. cadê sua mãe. onde

moram, você tem irmãos'.)

Ricardo: Minha mãe morreu e meu pai mora em Recife. mas não sei

o lugar.

E: Você nasceu em Recife'!

Ricardo: Não eu sou carioca.

E: Sua mãe morreu há muito tempo'!

Ricardo: Não, faz ... quando eu tinha uns dez anos, faz dois anos.

E: E você morava aonde quando a sua mãe era \'iva'!

Ricardo: Eu morava com as minhas irmãs mas elas me espanca\'am

muito. í, passa a mão prá senhora ver, nào sai nunca mais. Aqui (no

braço), nas pernas ...

E: Suas irmãs sào grandes'.) Você mora\'a aonde com elas'.)

Ricardo: Eu morava no Recreio ... Aí eu fugi, tem dois anos.

E: E aí \'ocê mora aqui na Praça'!

Ricardo: Não, eu fico lá no Leme. Eu também venho aqui ...

E: Quantos irmãos \'ocê tem?

Ricardo: Tenho sete. Cinco irmãs e dois homens. Um comigo e outro

já tá casado.

E: Então \'ocê é o mais novinho?

Ricardo: Sou. o caçula. E a outra minha irmã que não casou é caçula

também. Ela já tá noiva.

E: E você \'ai \'isitar seus irmãos'.)

Ricardo: Não.

E: Você nunca vai em casa'.)

R: Não.

E: E o que que você faz na rua. Você já foi à escola'.)

Ricardo: Já, eu tô na quarta série.

E: Na quarta série ... Qual escola'.)

Ricardo: Já sei ler, sei escrever. .. Eu estudei na Costa e Silva, na

Alberto (Bate .... ). A Costa e Sil\'a é em Botafogo. Eu \'inha lá do

Recreio prá estudar. .. e a Alberto é no Flamengo.

145

E: E agora ...

Ricardo: Não, agora cU não tô estudando em mais nenhuma não ... Sai

pôxa, cU moro na rua, durmo na rua, como ~ que cU \'OU estudar, sem

roupa, sem material...

E: Você queria continuar estudando'.'

Ricardo: Eu queria, se cU tivesse um lugar prá ficar tranqüilo, porque

prás minhas irmãs cU não vou, que das não \'ai querer.

E: Elas não tomam conta de \'ocê ...

Ricardo: Não, das bate muito, cara ...

E: E você já este\'e em alguma destas instituições, Ja este\'e

internado'.'

Ricardo: Já, olha, cU tenho problema de coração. tenho sopro no

coração. c tenho probkmas de ner\'os ...

E: Que problema'.'

Ricardo: Eu desmaio à toa ... eu cal de muitos metros ... Eu fui pro

Hospital e fiquei dez dias internado.

E: É mesmo'.'

Ricardo: Quebrei eSSe dente aqui. oh. (mostrando os dentes da frente

quebrados)

E: E o que você faz durante o dia. o que você faz prá arrumar grana.

como ~ que você \'i\'e'.'

Ricardo: Bom, posso falar mesmo'.'

E: Pode, Se \'ocê quiser. ..

outro menino: Pode Falar'.'

Ricardo (para o amigo): Fala prá mim, que cU tenho \'ergonha ...

outro menino: Falar o que'.'

Ricardo: Ela tá perguntando o que que cU faço de dia ...

246

menmo: De dia, a gente arruma dinheiro prá jogar tlipper, vai jogar

tlipper

outro menino, interrompendo: mentira, tia

Ricardo: Não, fala a verdade, vamos falar a verdade ...

menino: então fala, pode falar. ..

Ricardo: A gente rouba ...

outro menino: a gente cheira brizola ...

Carlos: Lá na Cinelândia eles tamb~m fazem isso ...

Ricardo: a gente rouba. fuma brizola ...

E: Voc~ cheira cola também'.'

menino: Tia, quando ele fuma, cheira brizola, o coração dele vem

aqui. fica inchado aqui. grandão

E: Onde ~ que incha. Ricardo'.'

Ricardo: Quando ele começa a bater muito forte. tem hora que eu

sinto que o meu coração começa a bater muito forte. Eu começo a

sentir um negócio aqui ...

Carlos: Deixa esse aqui falar tamb~m ...

E: Fala gordo. fala \"oc~ a!..!ora .... '-'

Carlos: Como ~ o seu nome'.'

menino: Alex Pereira de Almeida

Carlos: E o apelido'.'

Alex: índio

E: E \'oc~ tem quantos anos'.'

Alex: doze anos

E: Como ~ o nome de seus pais'.'

Alex: Meu pai ~ João e minha màe ~ Lúcia

E: E eles moram aonde'.'

247

Al~x: M~u pai ~m Jap~ri ~ minha mã~ na Rocinha ...

E: Você t~m irmãos'.' Al~x: T ~nho, doz~

E: Doze irmãos'!

Akx: irmàos e irmãs também ...

E: Você é mais novo, mais velho ou do meio'.'

Akx: sou mais nO\'o. Não, agora sou mais velho, porque nasceu mais

dois da minha mã~ com o m~u padrasto ...

E: Sua mãe casou de nlWO'!

Akx: Não casou não, mas é como s~ fosse casada ... El~s s~ dão muito

bem ...

E: E porque você não mora nem com a sua mãe nem com o seu pai'.'

Alex: Eu não me dou com eles. Com o meu pai ainda m~ dou um

pouco. mas com minha mã~ não. Eu só ''ou só na casa da minha tia.

E: Onde é a casa da sua tia'.'

Akx: Jap~ri.

E: Ond~ mora seu pai. S~u pai faz o qu~. ele trabalha'!

Al~x: Meu pai é dono de roça.

E: E sua mãe. trabalha'.1

Akx: faxina ...

Carlos: Você ~stá na ~scola'.'

Alex: Não. Mas ~u já ~stud~i. Eu s~i kr. ~scr~\'er. ..

outro menino: L~r não. é mentira. d~ não sabe ler. ..

Akx: S~i \çr mais ou menos ...

Carlos: Lê aquilo lá

Alex: Fo to ma ... ma ni .. fotografia. sei lá ...

E: Fotomania, tá c~rto. tá ótimo

E: Você estudou até qu~ série'!

2.+8

Alex: Primeira

Ricardo: Eu sei ler e escrever COITetamente: FOTOMANIA

IVrDEO/INFORMÁ TICA.

E: Muito Bem ...

Carlos: Você estuda atualmente'!

Alex: Não.

E: Voc~ dorme aonde, no Leme'.'

Alex: É, no Leme. Todo mundo aqui dorme no Leme.

E: Ah, vocês dormem juntos ...

menino: Anda tia, se não vai acabar e eu não vou falar nada ...

E: E você já esteve na FEEM ...

Carlos: Vocês já pararam em alguma instituição, DSPM ...

Ricardo: Já. Eu parei em Cantinos ... fugi ...

menino: Quintino, cara ...

Ricardo: É, Quintino. Foram só dez vezes ...

E: Dez vezes, em dois anos'.'

Ricardo: É, dez vezes, sem brincadeira, mas eu fujo assim em tr~s

dias ...

E: Por que \'ocê fugiu'.'

Ricardo: Ah, eu \'OU ficar lá'.' outro menino: Lá os caras que tomam

conta batem. Olha só aqui (mostrando o braço)

Alex: Isso não ~ nada olha só esse aqui ...

E: Quem te deu essa pancada'!

Alex: Ué, os moleques da rua. Eles são ...

E: E \'ocê Alex ...

Alex: Eu já tive no Padre.

E: Padre ~ aonde'.'

249

Carlos: Padre Se\'erino.

Akx: Já ti\'e no CRIAM.

Carlos: No CRIAM tamb~m'.' Qual'.'

Alex: CRIAM de No\'a Iguaçu, lá perto de casa.

E: Agora ~ a vez desse rapaz aqui. Como ~ o seu nome'.'

Menino: Jorge Luiz Albuquerque de Castro

outro menino: Paraíba.

E: Quantos anos \'oc~ tem'.'

Jorge: U anos ...

menino: mentira ...

E: Voc~ nasceu aonde'.1

Jorge: nào sei ...

outro menino: eu nasci no Rio.

E: Qual o nome da suá mãe e do seu pai'.'

Jorge: Meu pai não sei não, meu pai já morreu ... Minha mãe ~ Maria

Emília Cabreiro de Albuquerque.

outro menino: O nome do pai dele ~ ....

Ricardo: fala qualquer nome ...

menino: ... é Joni. ~ Jonas ...

E: (rindo) Fala qualquer nome ... \'oc~ falou qualquer nome para o seu

"1 paI.

Ricardo: Eu não. tia. mas quando não sabe, fala qualquer nome ... eu

tenho at~ prova.

E: E Jonas o nome do seu pai'.'

Jorge: É. Jonas.

E: Quantos irmãos \oc~ tem'.'

250

Jorgç: tenho quatro", Não, não, tia, tenho seiS, Um quç mora em

Minas Gçrais, já ~ casado. já tem botequim, Minha irmã já ~ casada,

tem dois filhos, T Çm Çsse aqui (apontando o mçnino do lado) quç ~

mais velho do quç çu .. ,ç meu outro irmào quasç do mÇu tamanho e

tçm um menorzinho, São três qUç estão na rua, Jorgç: Um qUç çstá

Çm Minas Gçrais, a minha irmã que fugiu de casa. mas agora ela

\'oltou prá casa, deixou minha sobrinha ç mÇu sobrinho. na casa da

minha sogra .. , aí minha irmã foi prá casa da minha \'Ó,

E: E seu irmão qUç foi prá Minas, Você nào quçr morar com ç\ç ','

Jorgç: Não, Meu irmão já era casado, Não sei nem se e\ç tá \'i\'o ou se

tá morto .. , irmão (interrompendo): Ele nem conhece minha mãe

direito .. ,

E: E seu nome. como ~','

menino: Leandro,

E: Leandro de quê','

Leandro: Albuquçrque de Castro,

Jorge: A mesma coisa do que eu .. ,

E: E quantos anos \'ocê tem, Leandro'!

Leandro: 14,

E: E \'ocês estão na rua há quanto tempo','

Ricardo: ÇU estou há pouco tempo,

Leandro: Minha mãe ~ anão. minha mãe e anão, Quç tamanho ç

minha mãe. minha mãe não tem o teu tamanho','

menino: Ela tá na Praça Tiradentes. trabalhando na Praça Tiradentes,

E: E onde ~ que a sua mãe dorme','

Leandro: Minha mãe dorme em Belfort Roxo .. ,

Carlos: Vocês estão na escola','

25\

Leandro: Eu já, no Brizolão, mas só qUe cU fugi do Brizolão.

E: Onde fica o Brizolão'.'

Leandro: Lá em Nova Aurora.

E: Você estava em que sáie no Brizolào'.'

Leandro: Segunda

E: E por que qUe \'ocê fugiu do Brizolào'.'

Leandro: Ah, lá só da\'a só merenda, não dava nem ABCD, só dava

só A, E I OU ...

E: Você já sabia isso'.' O que que você queria aprendd.'

Alex: Matemática ...

Ricardo: Eu sei Português, um pouco.

E: E aÍ, você achou o Brizolào ruim'!

Leandro: Eu achei, aí a minha mãe falou que \'al me botar num

cokgio pago ...

menino: Eu Sei inglês, inglês ...

Jorge: O CrEP que cu estudei c Ministro Gusta\'o Capanema. Eu

estudei lá em 89.

E: Você estudava lá tamb~m, Leandro'!

Leandro: cU tamb~m. A gente começou estudando na primeira sáie.

A gente cra da mesma sala. Aí ele passou c cU nào passei, depois cU

passei c de não passou. Eu passei prá segunda.

E: Aí vocês ficaram juntos de no\·o ...

Leandro: Aí a gente começou a fugir de casa, ai a minha mãe não

mandou mais a gente pro col~gio ...

E: Por que que \'ocês começaram a fugir de casa'.1

Leandro: Antigamente cU fugia de casa porque meu pai me batia

muito, ainda bate ...

252

E: Ainda bate quando você vai lá'! Você vai sempr~ na sua casa'!

L~andro: Quase sempre ~u vou na minha casa, mas t~m va~s qu~ a

g~nt~ le\'a dinheiro prá minha mã~ ...

Jorge: Aí tia, nào tem passagem prá eu ir pro Pará não, prá Belém do

Pará'.'

E: Por que que você quer ir prá Belém do Pará'.'

Carlos: Lá tá matando m~nor prá caramba. É o lugar qu~ tá maIs

matando ... m~nino: a g~nt~ tem sorte ...

E: Por qu~ qu~ \'ocês têm sorte'! Ninguém implica com \'ocês não'!

L~andro: B~lém do Pará não tinha nem molçque d~ rua, agora tá

criando muito, não é'! Não ~xistia ladrão ~m Belém do Pará ... Lá m~u

irmão é dono d~ firma. Jorg~: Pro outro grupo é melhor, tia, pro

outro grupinho, ninguém \'ai acabar com a \'ida.

Carlos: Você conhec~' mais molçqu~ aqui'!

AI~x: Conh~ço, t~m uma porção d~ pi\'~te ...

Ricardo: Tem a minha namorada ...

Alex: tia, quanto \'al~ ~ssa nota aqui " (Mostrando uma nota d~ I

dólar)

E: Valç quas~ mil pratas.

Ricardo: Tia, eI~ \'ai aum~ntando, s~ eI~ guardar, não é'.'

Im~diatam~nte apar~c~ um hom~m, qu~ nós nem tínhamos \'isto qu~

~sta\'a por perto ~ p~rguntou: "Qu~r v~nder o dólar, m~nor'.'"

Depoim~nto do ~ducador Carlos Baerra sobre o assalto: "Hoj~ é dia

16 d~ da~mbro d~ 1991 às s~t~ ~ m~ia ~u tom~i o ônibus na A \'.

Nossa S~nhora d~ Copacabana. Eu ~sta\'a no ônibus ~ entraram duas

253

crianças, dois adolescentes. Um deles com um revolver na mão, quer

dizer na cintura. Todo mundo deu prá ver que ele tava com o revolver

na cintura. Do meu lado sentou um sujeito adulto de bigode, sem

camisa. Eu comecei a olhar prá ele e aí o sujeito olhou prá mim, prá

outras pessoas, aí tirou o dinheiro que ele tinha no bolso e botou

dentro das calças. Aí me veio uma pequena intuição que aquele cara

era o assaltante e não aquelas crianças.

Quando ônibus chegou no aterro do Flamengo aí os dois meninos Se

le\'antaram e um deles puxou o re\'oh'er da cintura e entregou ao

cara. Ele levantou e ordenou o assalto. Como na hora que ele

disfarçou que escondia o dinheiro três pessoas tamb~m esconderam

dinheiro: uma mulher soltou o relógio no chão. uma outra senhora

tirou o dinheiro que tinha no bolso e colocou na sacola e um outro

senhor colocou dentro da meia. E aí quando ele ordenou o assalto ele

foi nas três pessoas que tinham escondido o dinheiro. Foi um gesto

que ele fez prá todo mundo copiar.

Eu parei no Castelo. depois tomei o metrô prá Saens Penha, aí

quando dei a volta na Rua Uruguai. eu e a Eliana fomos lá fazer

entrevistas com os meninos. quando vi que eram eles. eles fizeram

que nada tinha acontecido. ficaram meio assustados. Eliana: mas eles

perguntaram Se era \'ocê ... Carlos: É. eles perguntaram Se era eU que

estava no ônibus agora há pouco. Eu falei que era. mas tamb~m a

gente não ficou muito à \'ontade prá perguntar quem era aquele cara

que tinha assaltado junto com eles. Eliana: Detalhe: eles esta\'am

254

duros. só esta\'am com uma nota de I dólar. Carlos: É parece que eles

nào ficaram com dinheiro."

255

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262

\ ,

Nome dos

Componentes da

Banca Examinadora

Dissertação apresentada aos Srs.:

Esther Maria de Magalhães Arantes

(Orientadora)

Victor Vincent ValIa

Visto e permitida a impressão

Rio de Janeiro,~/~/ _1_9_9~3 ____ __

plra

Coordenador Geral do rESAE