IESAE VIVER E MORRER NAS RUAS Um Estudo Sobre ...
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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM EDUCAÇÃO - IESAE
VIVER E MORRER NAS RUAS
Um Estudo Sobre Meninos e Meninas de
Rua do Rio de Janeiro
Eliana Rocha Oliveira
Rio de Janeiro
Janeiro de 1993
i ,
.~
I
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM EDUCAÇÃO -IESAE
VIVER E MORRER NAS RUAS
Um Estudo sobre Meninos e Meninas de Rua do Rio de Janeiro
Dissertação submetida como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação
Eliana Rocha Oliveira
Rio de Janeiro
Janeiro de 1993
\
NOTA
o IESAE \'em exercendo nas últimas duas décadas um rele\'ante
papel no campo da Educação brasileira. A qualidade de sua atuação é
atestada pelo alto nível de produção intelectual dos especialistas no
terreno pedagógico, bem como pela posição a qu~ ascendem muitos
dos mestres aqui formados, na administração e gestão da educação
nacional.
o IESAE consolidou, ao longo desses anos, o perfil de uma casa
onde a busca do conhecimento vincula-se à construçào de uma
sociedade mais justa e democrática.
o IESAE sucumbe aÍlora a uma ló\.!ica tecnicista e formal. baseada ..... '-'
na insensibilidade e no descaso que setores da burocracia nacional
atribuem à Educação, por nào reconhecerem que ela constitui um dos
pilares essenciais de um desem'olvimento social possível para nosso
país.
EPÍGRAFE
RAP DOS MENORES DE RUA
Na porta da escola às crianças
são oferecidas;' com maconha e cocaína
A primeira é de graça, a segunda tem que pagar
mas \'ocê não tem dinheiro
seu pensamento é roubar
No primeiro assalto você leva sorte,
escapa da polícia e também escapa da morte
No segundo assalto as coisas nào vào bem
escapa da polícia mas \'ai para a FUNABEM
No terceiro assalto seu destino está selado
e \'ocê pela polícia acaba sendo baleado.
Uma bala na cabeça e outra no coração , E é mais um fim de um ladrão
E os qUe não morrem continuam a roubar,
para não morrer começam a matar
Por onde você passa todo mundo te critica
e \'ocê anda assustado, com medo da polícia
Ela quando te pega não pensa em te ajudar
te joga contra o mundo e começa a te espancar
Você ali sem ter por onde fugir
Vira saco de pancada pra eles se divertir
Alô minha senhora, por favor escutar
que isso não é tudo que eu tenho prá falar
é do menor abandonado qUe não tem onde morar
suas casas são na rua. suas camas são no chão
e o resto de comida é sua alimentação.
Estes \'ersos são de autoria de Mílton, Paulo Henrique. Maurício.
Júlio César (Belfo!") e Valéria - meninos e menina que habitam as
ruas do Rio.
11
RESUMO
Este ~ um estudo sobre meninos e meninas que \'ivem e morrem nas
ruas da cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada com
aproximadamente setenta crianças e adolescentes. compondo dois
grupos separados, e te\'e como objetivo primordial a busca de um
conhecimento compreensi\'l) sobre a vida e a \'isào de lllundo que este
segmento marginalizado da população constrói. tendo como
referencial sócio-cultural condições de llllSerta. ad\ersidade e
exclud~ncia.
Para compor e dar sentido a essa \'isào. foram discutidas as di\'ersas
teorias sobre marginalidade. o quadro legalista e as soluções
clássicas que são repetidamente apresentadas por setores da sociedade
(internamentos elll instituições totais: sub-escolarização e sub-
emprego). Diante do testemunho do fracasso dessas sol uções. fica a
pergunta: por que Se insiste na adoção dessas medidas'!
Concluimos pela çxist~ncia de uma \'iol~ncia l11ultifacetada praticada
pela sociedade e pelo Estado. contra () segmento infantil que se
cOI1\'encionou rotular de meninos e meninas de rua: a \iokncia
física. policialesca e paramilitar: a \iokncia econômica. manifesta
pela impossibilidade de aCesso aos bens materiais e culturais
conquistados pelo conjunto da, sociedade brasileira: e a \'iol~ncia
imposta por uma ideologia autoritária. discriminatt1ria e
se!.!re!.!acionista. OUe exclui i!.!ualmente essas crianl'as do acesso aos ~ ..... ". "- "f
maIs ekmentares direitos da pessoa humana, Com eSSe estudo.
pretendemos contribuir para a consolidação de uma "i são teórica
comprometida com a transformação dessa realidade. na busca de
justiça social e da construção de uma sociedade plural. na qual
possam Se expressar de forma li\Te e criati,'a. os segmentos da
população não-pertencentes às claSSeS econômico e culturalmente
hegemônicas do país,
., -'
ABSTRACT
This is a study on ho\\' boys and girls li\'~ and di~ on th~ str~çts of thç
city of Rio de Jan~iro, Brazil. Th~ res~arch was mad~ \Vith about
s~\'çnty childrçn and te~nagers that form~d t\\'o distinct groups. Its
main purpose ",as to g~t a ckar and compr~hçnsi\"C pictur~ of th~ lif~
and th~ \\'orld\'i~\\' of this marginalized social group \\"hos~ basic
ti'am~s of ret~renc~ ar~ compos~d of mis~ry, social a(h~rsity. and
~xc\ud~nc~. To daborate this picturç and to mak~ sÇns~ of it. th~
study discussed se\'~ral th~ori~s of marginality. th~ kgal syst~m
in\'oh'~d. and th~ c\assical solutions that ar~ rep~at~dly propos~d by
th~ society in g~n~ral. such as int~rnm~nt in total institutions.
pr~carious schooling and und~r~mploym~nt. In \'i~\\' of th~ bilurç of
thçs~ solutions it is ask~d: \\'hat are th~ r~asons and moti\'ations for
insisting on th~m·.)
Th~ study conc\udçs that th~r~ is a g~nçraliz~d \'ioknc~ pratic~d upon
this young and hdpkss population group. thç so-call~d street kids: a
policç and para-military \'iokncç: an çconomic \'iolçncç. madç
ob\'ious by thç uttçr impossibility of accÇss to matçrial and cultural
goods a\'aiabk to Brazilian sociçty in gçn~ral: and th~ p~n'asi \'ç
\'iokncç which com~s from an authoritarian. discriminating. and
sçgr~gationist ideology that exc\udes these youngsters from their
minimal rights as human beings. This study is pen'aded by thç
intention to contribute to the consolidation of a thçoretical \'ie\\'
engaged \\'ith the ideal of social chang~. social .i lIsticç. and the
construction of a plural society in which the majority of the Brazilian
population - those that do not belong to the economically anJ
culturally hegemoneous classes - will ha\'e their places and the
chance to express themseh'es freely and creati\'ely,
6
\
SUMÁRIO RESUl\t10 ............. ............................ , ..................................................................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ..... I
ABSTRACT ........................................................................................................................ . . ... ~
SUI\l.Á..RIO ................. .
APRESENTAÇAo
.7
10
C APÍTULO I :OS RUMOS DA PESQUISA ..................... " .................................................................... 2~
HISTÓRICO DA PESQUISA ................................................................ . . ..... 32
CONVIVENDO COM OS ~lENINOS E MENINAS FOR.A DA RUA: A EXCURSAo A PAULO DE FRONTIN ..................................... . . .......................... ~O
UMA EXPERIÊNCIA DE PESQUISA-AÇAo ....................... . " ..... :'2
CAPÍTULO 2: UI\.lA SOCIEDADE EI\.I SITUAÇAO INFRACIONAL .......... . . ....... :'6
CAPÍTULO 3: MENINOS E ~lENINAS DE RUA: UI\.IA POPULAÇ.À.O MARGINAL ., .. . .. 66
RE\'ENDO OS CONCEITOS DE ~IARGINALIDADE
MARGINALIDADE E ~IE0íINOS E MENINAS DE RUA ...
MARGINALlZAÇAo ECONÓI\IlCA E CRIMINALIDADE RELAÇÕES HISTÓRICAS ....................... .. .................... .
NOVAS TRIBOS UR.BAi'-:AS '.' ................................... .
CAPÍTULO~: VIVER CRIANÇA NA RL\ ............................ .
OS VÍNCULOS COM A RUA.. ............................................ ..
67
". 7~
. ....... 75
. ..... 80
. ..... 8~
. ..... 85
A CONSTITUI( Ao DA IDENTIDADE......................................... . .. 86
O CONFLITUOSO RELACIONAMENTO COM A FAMÍLIA ORIGINAL.. 98
ESTRATÉGIAS DE SOBRE\'IVÊNCIA ...................................... ..
RELAÇÕES CULTURAIS
A CO~lU~IC:\(..\O ENTRE AS CRIANÇAS DE RUA ...
DISPARIDADE SOCIAL. ~"Ei\INOS DE RUA E CONSUf\10 ..
A \'IDA :\AS INSTITUIÇÕES ..
CAPÍTULO 5: ~10RRER CRIANÇA NA RL\
INTOLER . .\:-\CIA. TORTl'RA E \10RTE ........... .
CRI:\i\(.-\. POBRE U~I.-\. QL'ESTAO DE SEGUR.-\.N(.-\. \:.-\.CIO\.-\.L
A lI\lPRENS.-\. ...
A COI\lL'NIDADE ..
.. .... 117
..................... 128
. ...... 1.~2
. ...... 13~
I ' '7 . . ',
I~~
I~:,
I~l)
1:'2
. ............. I:':'
COI\IO .-\.S CRI.-\.NÇAS \'I\'HI SUA SITu.-\.çAo DE ESTIGI\IATIZADOS.... . .. 158
TORTL'RA lhO
.-\. DUR.-\. CONSCIÊ\:CI.-\. D.-\. \lORTE... .. [()~
MORTES ....................... . .. ..... 166
CAPÍTULO 6: ESCOLA E TRABALHO: RESPOSTAS AUTOMÁTICAS DA SOCIEDADE .. 176
I. O TRABALHO ................ . . ..... 178
2. A EDUCA(AO ........................................... . 19.1
CONCLUSÃO .......................................................... . . .............................................................. 205
ANEXO: FRAGtvlENTOS DE ESTÓRIAS DE VIDA
JOVENS MAES E GESTANTES ..................................... .
OUTROS FRAGMENTOS DE VIDA ..
BIBLIOGRAFIA ....................................... .
213
. .. 21~
226
APRESENTAÇÃO
Ao iniciar, no segundo semestre de 1991, a pesquisa com um grupo de
meninos c meninas de rua que ''\'i\'e'' na Cinelândia, cU tinha como
objeti\'l) principal comparar as expectativas desse grupo em relação à
escolarização c à possibilidade de ingresso no mercado de trabalho.
formal ou informal com a de um outro grupo de adokscentes tamb~m
oriundo das classes populares, mas com um maior grau de inserção
social. no caso, um grupo de adokscentes que participa\'a à ~poca de
um programa de menores-aprendizes da Cia. Vak do Rio Doce. llmk
cU atuei profissionalmente na área de formação profissional c
treinamento de recursos humanos.
Eu supunha que o grupo de lllel1lnOS c mel1lnas de rua. sendo um
segmento de uma classe trabalhadora pauperizada e socialmente
marginalizada. não busC<l\'a mais a inserção social \'ia escola. dando
soluções alternati\'as a questões econômicas - atra\~s do mercado
informal. c negando \'almes simbólicos das classes hegemônicas.
como a Escola.
Acontece que. desde os meus primeiros encontros com as cnanças.
que Se deram nas escadarias da Câmara Municipal. sempre em
companhia dos educadores do I BI SS, Carlos Bezerra c Sih·a. foi Se
e\'idenciando para mim uma grande distância entre as premissas que
trazia - colocadas por algumas teorias discutidas na etapa anterior do
curso de mestrado c que de forma unúnime apontam \) relllgresso
II
imediato na Escola e no mundo do trabalho como solução para o
problema - e a experi~ncia empírica com qUe cU então me depara\'a,
A fase de pesquisa de campo funcionou para mim como Ulll
\'erdadeiro ritual de iniciação (nas pala\Tas de Roberto Daivlatta).
onde eU precisei "perder" pedagogicamente Ulll grande tempo para
qUe de fato eU pudesse compreender como \'iVel11. ou sobrevivelll
essas crianças. submetidas a uma situação de misáia. \'iol~ncia e
exclud~ncia: como Se dão suas relações nos grupos de crianças que Se
formam e Se criam nas ruas: que relações estabelecem com a
comunidade em geraL e qUe \'isãn de mundo elaboram, Enfim. a
agudeza da realidade por mim testemunhada le\'UU-llle a adiar II
projeto inicial, c partir para essa no\'a \'ertellte. que consistiu elll
analisar alguns aspectos do comportamento manifesto das crianças.
que para mim indicavam um processo de rompimento dos vínculos.
não só SOCiaiS e economlCOS. que só Se estabelecelll pela sua
negati\'idade. mas at~ mesmo os \'Ínculos simbólicos e de
comunicaçào com a sociedade,
Este \'!eS antropológico qUe o trabalho tomou. me k\'t)u então a
buscar no\os referenciais teóricos. principalmente os estudos de
Foucault sobre as formas de poder qUe Se estabelecem nas
experi~ncias institucionais. ai incluindo nào só os degradados
internatos corretin)s. mas at~ mesmo a Escola akm de anúlises
históricas sobre a infância pobre no BrasiL baseadas numa ideologia
higienista e de controle da pobreza,
12
Em resumo, a estrutura final do trabalho ficou assim constituida:
Num primeiro capítulo foram apresentados os rumos qUe a Pesquisa
tomou. Hou\'e dois momentos distintos: um primeiro, que pode ser
caracterizado como pesquisa participante. em que eu interagi com as
crianças do grupo da Cinelândia, participando de sua rotina. das
ati\'idades pedagógicas desel1\'ol\'idas pelos educadores. e mesmo
acompanhando a atuação destes frente às múltiplas ocasiões de
arbitrariedade policial contra os j(wens. Nestas ocasiões pude
aprofundar com os meninos e meninas o significado que estas
experi~ncias adquirem nas suas \'idas. Nesta primeira etapa da
pesqUIsa. eu e\'identemente tamb~m me posiciona\'a frente a estas
experi~ncias, dando um caráter militante ao trabalho. 'Jum segundo
momento. que se deu a partir de dezembro de 199 L eu passei a atuar
na dupla função de educadora e pesquisadora. quando participei como
Super\'isora num projeto de educação integral para meninos e
meninas de rua. de iniciati\'a da Prefeitura do Município. Eu
caracterizaria este segundo momento como Pesquisa-Ação. porque
os jo\'ens - aqui já os dois grupos. da Tijuca e da Cinelúndia -
participaram ati\'amente na proposição das diretrizes do trabalho. Na
etapa de implantação deste projeto. \'i\'enciei na prática o enorme
preconceito que amplos setores da sociedade nutrem contra esse
segmento da população illt~lntil. destinando-lhes \'erdadeiramente um
lugar de desprestígio e submissão. Aqui se ressalta a distância entre
um discurso acadêmico pautado por princípios re\'olucionários de
igualdade e uma prática social di\orciada destes ideais.
No segundo capítulo do trabalho. apresento um resumo e bre\'e
análise do quadro jurídico que baliza a atuação do Estado brasileiro
frente à infância pobre. des\'alida. abandonada, carente e outros
rótulos que sào atribuídos ao segmento infantil no qual Se incluem os
hoje chamados meninos e meninas de rua, No campo da legislação
percebe-se com esperança. o posicionamento de setores da sociedade
ci\'i1 em prol do reconhecimento da criança e do adolescente como
sujeitos de direito e sua condição peculiar de pessoa em
desel1\'ol\'imento, Contudo.
consubstanciado no Estatuto da Criança e do Adolescente ainda nào
Se traduziu em práticas mais humanas e adequadas ao preCeito
constitucional do art, 227, A prútica mostra que toda sorte de
\'iolação aos direitos de cidadania e mais. aos direitos fundamentais
da pessoa humana são cometidas a toda hora contra esta população
pela comunidade em geral e principalmente por representantes dos
poderes públicos seJa a nível Federal. Estadual ou i\hll1icipal.
Constata-se assim uma grande distância entre o país legal e o pais
real.
No Capítulo três é realizada uma breve re\'isão dos conCeitos de
marginalidade. com o intuito de problematizar a categorizaçào da
população infantil estudada como uma população marginal. ou
população marginalizada e possivelmente reduzir imprecisões
Semânticas ou sociológicas no uso destas expressões, O Capítulo -L
intitulado SER CRIANÇA NA RUA. qUe poderia também Se chamar
A VI DA NA RE--\ é onde Se consubstanciam as principais
observações realizadas durante o período da pesquisa, Este capítulo e
1.+
o sçguintç, o capítulo 5, constituçm o qUç chamaria o núclço da
dissçrtação, Nele ÇU mÇ proponho a discorrçr sobrç os principais
aSPçctos comportamçntais, sociais, psicológicos ç outros qUç a
obsçr\'ação me aponta\'a como indicadores dç um çsboço dç
organização social original: de rompimento com \'alorçs tradicionais.
de rçcriação de laços culturais: de çstabelecimçnto dç um código dç
rçgras ç formas próprias dç Pçrcçpção do mundo físico ç social. Eu
dçstacaria alguns tópicos:
aI um pnmÇlro tópico intitula-sç os vínculos com a ."ua, Nçlç ÇU
procuro rçcolocar uma discussão quç mÇ parÇcÇ dçslocada. ç qUç
consistç Çm classificar as cnanças çntrç aquçlas qUç pnssuÇm
família. ç dçsen\'ol\,çriam apÇnas atividades de subsistência nas ruas.
dç outras qUç pçrdúam, por mortç ou abandono dos pais ou
substitutos. a relação familiar. Dç acordo com çsta classificação çstçs
últimos ~ que se çnquadrariam na categoria meninos de rua, Na
\'çrdadç. a cOI1\'i\'ência com os grupos de crianças mostrou qUç a
çxistência ou não dç um reprçsçntante familiar. sçja pai. mãç. a\'ó.
madrinha. irmão mais \'çlllO. çtc. não impçdç qUç Çssa criança
çstabçJçça fortes \'Ínculos com o grupo ç com a cultura da rua, Elçs
próprios não Sç diferçnciam çntrç aquelçs qUç possuem ou não
parçnks \'i\'os. nÇI11 tampouco rompÇm nçcçssariamçnk os \ Ínculos
afçti\os com a família, O qUç parÇcÇ ocolTÇr ~ a idçntificação
prdçrçncial com a vida da rua, Da mesma forma Çssas crianças não
Sç julgam abandonados pelas t~lmÍlias. quando das çxistçl11 (o que ~ a
situação mais freqüentç nos casos estudadosl, Ao contrário SÇus
dçpoimçntos são incisi\'os ao afirmar qUç eJçs ~ qUç abandonam a
1:'
\'ida familiar. Deixando para trás uma estória de \'iol~ncia c misáia.
b) um segundo tópico que cU destacaria \'ersa sobre as famílias de
rua. Neste item as crianças discorrem sobre o estabelecimento de
rdações de parentesco entre si. em substituição às rdaçi)es t~1I11iliares
originais: os fortes laços de solidariedade qUe os mant~m unidos em
meio a tantas ad\'ersidades: o estabdecimento de um \'erdadeiro e
surpreendente código de conduta moral. onde são quebrados
estereótipos sobre prostituição c licenciosidade scxuaL por exemplo:
sobre as uniões preferenciais entre meninos c meninas de rua. a
exist~ncia de uma segunda c at~ mesmo terceira geração de crianças
nascidas c criadas num \'ai-e-\'em entre a rua c instituições de
atendimento ao menor: os grupos adotam ainda \'erdadeiros ritos de
iniciação nos quais pÕem Ú pro\'a os iniciantes. ou seja. cnanças
pobres qUe \'~m engrossar a fikira dos grupos já estabekcidos na rua.
c) Em terceiro lugar arrolaria o tópico sobre estratégias de
sohreviyência. onde as crianças equacionam como podem as
soluções qUe darão para os problemas diário de subsist~ncia: meninos
c menlllas apdam para a mendicância ou para pequenos furtos.
\'isando a satisfação específica de uma necessidade (lazer.
medicamentos. ai imentação. roupas)e para aqu isição regular de
drogas. cujo consumo faz parte integrante de suas \'idas. Lma outra
estrat~gia passa pelo trabalho encomendado c supenisionado por
adultos qUe controlam as áreas onde os jO\'ens Se estabelecem (roubo
ou furto de carteiras. relógios. rádios c toca-fitas. por exemplo). As
crianças precisam dar uma determinada produção em troca de
proteção. ~a extremidade destas estrat~gias são confessadas as
práticas de atos infracionais mais gra\'es. sempre rdacionados ú
submissão de adolescentes ao trúfico de drogas. Aqui ressalta-se a
diferença de atitude daqueles adolescentes que ainda não sucumbiram
ao apelo dos representantes do CrIme organizado. (aliás
organizadíssimo na cidade e estado do Rio de Janeiro) e de outros que
já se submeteram à proteção de criminosos. Esses jO\·ens. que o
mercado de trabalho legal não recruta nem mesmo na categoria de
exércitos de mão-de-obra de reserva, são disputados pelo mercado
ilegal. com requintes t~cnicos de seleção. treinamento e um quadro
de carreiras.
d) um quarto item a destacar aborda a relação dos meninos e
meninas de rua com os valores de uma sociedade sohretudo
consumista. Esta relação deixa-nos entre\'er o desespero e a
frustração que o nã()-enq uadramento ao modelo ideal izado pnwoca
nos jo\'Cns excluídos. que passam a hipen'alorizar a est~tica
dominante. em nome da qual praticam furtos e roubos. inclusi\'e
declarando especializarem-se em produtos de marca. numa tentati\'a
con formi sta e i nfrutí fera de i nte!.!ração \'i sua I e 11101l1entúnea ao
padrão \'alorizado pela sociedade. e) por último. destacaria do
capitulo -+ o item que aborda a vida nas instituições: () dramático
efeito que as repetidas internações em instituiçôes totais pnwoca na
forrnação da personalidade das CrIanças. marcand()-as e
estigmatizando-as de maneira definiti\'a. abrindo assim caminho para
uma \ida ou morte na marginalidade. A explllsi\idade do sistema
institucional foi colocada na ordem do dia com os acontecimentos de
Carandiru e Tatuap~. Sobre estas recentíssimas e sintomáticas
rebeliiies testemunhei () eminente juiz Amaral e Si"a declarar que
li
incendiar esses infames presídios constitui-se num ato bend'icn para a
sociedade.( UERJ,no\' 92)
No Capítulo ), significati\'amente intitulado de Morrel' Criança na
rua, procureI, dolorosamente, condensar alguns dos fatos que
testemunhei, participei ou que me foram relatados pelas CrIanças e
que consistem em irrdutáveis práticas de intolerância social. em
exemplos de fortes manifestações de ideologias neo-facistas: de
tortura física e psicológica e de casos concretos de extermínio de
crianças. atingindo jo\'ens pertencentes ao grupo pesquisado. Julguei
imprescindí\'eI incluir um capítulo sobre essa face sombria da nossa
sociedade, qUe se concretiza. no presente estudo. em prúticas sociais
pautadas pela intolerância. repressão. preconceito racial.
discriminação de classe e de gênero. culminando com a total
des\'alorização da \'ida dessas crianças.
Procurei mostrar de que forma essa \'isão autoritária e preconceituosa
\'ai tomando corpo em di\'ersas instâncias da sociedade (por exemplo:
o discurso das Forças Armadas, dos meios de comunicação de cunho
reaClOnano. que pwmo\'eJ11 campanhas de formação de opinião
contraria à \'ida dos meninos: a atuação de associações de
comerciantes e outras entidades corporati\'as que Se julgam atingidas
pela existência de pivetes) e o espraiamento dessa \'is:lo IH1 senso
comum. rea fi rmado IllU i tí ssi mas \'czes por depoi mentos espontúnells
que a população em geral forneceu durante a pesquisa, Essas
atitudes. somadas às repetidas internações. selam n estigma social que
facilita a açào de extermínio. C,offmam conceitua estigma como um
18
atributo profundamente desabonador, capaz de proscre\'er da \'ida
social o indivíduo ou o grupo que o incorpora, A marca atribuída ao
grupo pode mesmo k\'ú-Io a uma condição de desumanidade,
Cabe ressaltar qUe o clima de medo e insegurança gerado pela ação
de torturadores e exterminadores de origem di\'ersa atormenta a \'ida
dos jovens. k\'ando algumas crianças à obsessão, Os educadores de
rua passam tamb~m a ser ai \'() de ameaças e outras formas de
intimidação,
O relato sobre as mortes de jo\'ens com os quais con\'i\'i no período
de um ano está. já no momento desse relato. defasado, De
no\embro 92 a janeiro 9:; mais dois adokscentes foram \'ítimas de
crimes de extermínio. e () descaso jurídico e a insensibilidade social
por eSSeS acontecimentos indicam com segurança que eSSeS crimeS Se
multiplicarão, Por último registro o grande abatimento psicológico
que atingiu os educadores e os meninos e menlllas com a morte
\'ioknta e suspeita de Ulll ex-pupilo de SeUS programas de educação.
transformado por SeUS máitos pessoais e pelo apoio de SeUS
educadores em mestre de capoeira e exemplo e esperança para outros
jovens, \.'0 Capitulo 6 - ESCOLA E TRABALHO: RESPOSTAS
AL'TO~lÁ TIC AS DA SOCIEDADE - retomo. agora em outras
bases. a problemática original da pesquisa: em ricos depoimentos.
crianças e adolescentes esclarecem suas razões para renegarem a
experi~ncia escolar, L'ma menina de onze anos nos manda um recado
preciso e desconcertante. fruto de suas frustradas tentati\;ls de Se
alfabetizar: "A escola não sabe ensinar ~"
19
A deSpeito de sofisticados debates pedagógicos sobre m~todos e
t~cnicas, os alunos reais da rede pública, dentre eles nossos pretos e
pobres meninos e meninas, denunciam qUe ainda pre,'alecem práticas
anacrônicas tais como, pUXÕeS de orelha, castigos "exatórios frente Ú
turma. e a rotulação dos alunos simplesmente como "burros". akm
de todo um aparato disciplinatório e hierárquico. em completa
dissonância com a "ida das crianças, qUe torna impossível a
perman~ncia delas na instituição escolar. Aliás as crianças não
abandonam a escola. das prd'crencialmente fogem da escola,
Como referencial teórico sobre o papd social da Escola. nada mais
fiz qUe ilustrar a aguda análiSe do Prof. Darcy Ribeiro quando
denuncia o caráter anti-popular da pedagogia brasileira. c1assificando
a como um eficiente (ainda qUe inexplícito) mecanismo de rejeição
social.
Sen'i-me mais uma \'CZ da análiSe de Foucault sobre o caráter de
dominação e controle de qUe Se re\'estem as instituiçÕes modernas,
Ainda neste capítulo. analiso o repetido fracasso das iniciati\'as de Se
"profissinnalizar" adolescentes qUe estão nas ruas. numa perspecti\a
histórica e cultural do trabalho li\Te no Brasil. AnáliSes como a de
Lúcio Ko\\'arick e \Iaria Carvalho remetem Ú ordem escra\ocrata.
qUe sobrevi"eu ao formalismo da Abolição dos Escravos. n caráter
degradado qUe Se impingiu ao trabalho. \'isto qUe ao trabalhador era
resenada a submissão e a perda da dignidade, Sohre n ensinn
industrial - para onde teoricamente cOl1\'ergJrlam as rdaçl)CS entre
20
Escola c Trabalho - temos a análise de Cdso Suco\\' da Fonseca a
confirmar o estigma de des\'alorizaçào: "O ensino necess<irio ú
indústria tinha sido. inicialmente destinado aos sih'ícolas. depois fora
aplicado aos escra\'os. em seguida aos órtàos c a outros desgraçados".
Os jO\'ens aqui aludidos parecem incorporar culturalmentç este \'alor
negati\'o do trabalho. AI~m desta origem histórica. outras causas
contribuem para a imagem negati\'a do trabalho: são causas
familiares. em primeiro lugar. Seus pais fracassaram na tard~l de
prn\'~-Ios materialmente c sào considerados contra-modelos . em
segundo lugar, as instituições pelas quais as crianças \'agam. impõem
a das a participação em projetos de profissionalização de sUCesso
impossi\d. já que des não poderiam utilizar o conhecimento
adquirido em prol da sua autonomia, porque \'oltam sem nenhum
apoio para as ruas. As instituições expressam claramente qUe o
trabalho faz parte do castigu c mais uma \'çz do controle imposto aos
menoreS. Há ainda a dificuldade de adaptação comportamental ao
trabalho industrial. que requer um grande discipl inall1ento e
organização, hábitos que le\'am tempo para serem interiorizados. Sem
contar os complicadllres impostos por uma economia recessi\'a e
intlacion<iria que atinge de forma dramática toda a população
trabalhadora do pais. \lo capítulo destinado ú COI\CL LSÀO. cU
apenas aponto. de forma pro\'isória. algumas considerações sobre
aspectos abordados nos capítulos precedentes: no úmbito mais
generJco. concluo. como não poderia deixar de ser. baseando-me na
pesquisa c na an<ilise de estudiosos de <ireas diwrsas (jurídica.
pedagógica. social. histórica) que as fórmulas tradicionais de
21
resolução do probkma. fórmulas estas baseadas esquematicamente no
trip~ subescolarizaçào, subemprego c submissào social. gerando os
não-cidadãos) já atingiram SeU mais alto grau de fal~ncia. impondo a
toda sociedade a discussão de mwos caminhos, quiçá mais justos c
humanos. Iniciativas qUe \'isem à solução desta chaga social. de\'em
Se propor não a cornglr o comportamento anômico c transgressor
que em geral Se atribui a esta populaçào. mas a agIr sobre as
condiçôes sociais que propiciam este comportamento.
Concluo ainda pela e\ist~ncia de uma \'iol~ncia lllultiLlcetada
praticada pda sociedade c pdo Estado, contra o segmento qUe Se
cOIl\'encionou rotular de meninos c meninas de rua: a \'iol~ncia física.
policiaksca c paramilitar: a viokncia econômica. manifesta pela
impossibilidade de aCesso aos bens materiais c culturais conquistados
pdo conjunto da sociedade brasileira. c a \'iol~ncia imposta por uma
ideologia autoritária. discriminatória c segregacionista. qUe e\clui
igualmente estes jo\ens do aCesso aos mais elementares direitos da
pessoa humana. Especificamente no âmbito da Pedagogia. a saída
para o impasse poderia ser tentada atra\'~s do desen\ohimento de
metodologias alternati\as. baseadas no conhecimento maIs
aprofundado das questôes culturais. sociais. históricas c psicológicas
que compõem a realidade destas crianças. Algumas e.\peri~ncias neste
Sentido podelll ser pontuadas em algumas das grandeS cidades
brasikiras. onde o fenômeno ~ mais alarmante. Embora ainda não Se
possa configurar um 111l)\'imellto. estas e\peri~ncias lllereCem
acompanhamento acad~mico. \'isando o fortakcimentn de práticas de
educaçào popular de cunho \'erdadeiramente integrati\() .
..,..,
Apresento como um ap~ndice à pesquIsa um Capítulo intitulado
FRAGMENTOS E HISTORIAS DE VIDA. no qual procurei reunir
algumas estórias praticamente "montadas" a partir do rdato de alguns
dos jO\'ens qUe acompanhei durante a pesquisa. dos aspectos
conhecidos por SeUS educadores e por informações quase casualmente
cedidas pdas instituições onde os jlwens permaneceram parte de suas
\'idas, Os dramas jU\'enis aqui relatados, acredito. ajudam a restituir a
dignidade humana que de modo geral negamos a essas tão sofridas
crianças brasileiras,
," _.'
OS RUMOS DA PESQUISA
Ao iniciar o curso de r-.:kstrado em Educação no Instituto de Estudos
A \ançados em Educação - IESAE - tomei como área de interesse
Central desses estudos um fenômeno característico da educação
brasileira. qUe consiste na exclusão de milhares de crianças oriundas
das classes populares do aCesso à escola ou da continuidade do
proCeSSO de ensino-aprendizagem \'eiculado pela rede oficial de
ensino no país. Desde o início do curso me pareceu rek\ante
aprofundar conhecimentos. procurar dados, refletir sobre as diwrsas
teorias que Se ocupam em explicar esse fenômeno tão contundente da
realidade educacional brasileira.
Deparei-me com LIma corrente clássica (quase diria oficial. pela
aceitação e difusão nos l)rgãos oficiais de planejamentu, pesquisa e de
execução das políticas educacionais), qUe telll como base
argumentati\'a o fato de qUe as crianças das claSSeS populares
brasileiras não possuem os requisitos m1ll1mOS para o
desen\ol\"imento da aprendizagelll. por sofrerem de uma ~indrnme de
car~ncias sociais. psicológicas. biológicas e culturais. A baixa
qualificação da clientela. em outros termos. responderia pelo fracasso
da instituição, Essa explicação. contudo. suscita muitas perguntas:
Estaria então a maioria da população brasileira incapacitada para
credenciar-se ú cultura letrada'.' A uni\"ersalizaçãll da ai fabetização.
uma realidade em quase todos os paises do mundo ocidental. teria
aqui encontrado SeUS limites'.' Ou estaria a nossa escola despreparada
para lidar com a criança brasileira. com a rt:alidade sócio-t:conômica
da população t:. por um processo histórico de distanciamento e
insensibilidade. teria optado na prática por um idealismo alienígena
e formal.
A Escola. desde o início da Idade Moderna. \'em funcionando como
uma instituição fundamental atrav~s da qual as nações trilham os
rumos do desem'oh'imento. t:m que seus membros assumem a
condição de sujeitos sociais de direitos e de\'eres. principalmente
pela identidade de trabalhador. À Escola preconizada pelos preceitos
da iv'lodt:rnidade. cabe formar este cidadão-trabalhador de acordo COI11
o princípio (formal) da igualdade de oportunidades que sustenta as
sociedadt:s liberais. O que imaginar de uma nação qut: inicia o
proct:sso de exclusão de milhares de crianças das classes pobres da
oportunidade de participação social exatamente por aqut:la instituição
que de\'Cria ser a porta de acesso a participação na "ida nacional'.'
Na ocasião de definição do objeto da pesqlllsa final do curso.
chamou-me a atenção alguns trabalhos que dt:tecta\am o desintert:sst:
de populações faveladas pela escolarização de suas crianças.
Relacionando t:scolarizaçào e trabalho qualificado. inferi que poderia
buscar no crescimento do mt:rcado informal de trabalho mais um
[ltor de desintert:sse de setores das c1asst:s populares pela escola. A
pesquisa que empret:ndi tinha inicialmt:ntt: por objetivo verificar se o
crescimento do mercado informal na cidade do Rio de Janeiro
contribui de maneira signific~1ti\'a para o crescente desinteresse clt:
cnanças ~ Jov~ns oriundos d~ c1ass~s popular~s pdo proc~sso d~
~scolarização.
A minha hipót~s~ básica ~ra. resumidam~nt~, qu~ ~ssas parcdas da
população não inclu~m mais ~m s~u proj~to d~ \'ida a atuação no
m~rcado formal de trabalho. por assumir uma id~Jltidad~ social d~
população marginal. N~st~ cont~:xto. a Escola não mais os atrairia.
porqu~ t~ria d~i:xado de funcionar como um canal d~ ins~rção ou d~
asc~nsào social.
Em outras pala\Tas. ~u ~sta\'a pr~t~ndendo p~squisar um caminho d~
mão-dupla no proc~sso d~ r~cusa à Escola, Mão-dupla porqu~ os
alarmantes índices de e\'asão e rep~t~ncia já d~i:xa\'am claro que a
nossa Escola \'~m d~s~mp~nhando um papel funcional a uma
soci~dade ac~ntuadam~nt~ ~:xclud~nt~, reduzindo as chanc~s d~ um
grand~ contingente de jO\'~ns das class~s popular~s S~ cr~d~nciar~m
ao ç:x~rcício d~ uma cidadania inspirada nos princípios do
lib~ralismo,
Com ~st~ questionam~nto inicial parti para uma p~squisa de campo
que pr~\'ia duas ~tapas: numa prim~ira t:1S~ s~riam entr~\'istados
jovens trabalhador~s oriundos de famílias d~ baixa renda - at~ ,:)
salários mínimos -. qu~ manti\~ss~m \"Ínculos com a Escola:
b) numa s~~unda fas~ d~\'~riam s~r ~ntr~\'istados io\~ns s~m \'Ínculo ~ .
~scolar. atuantes no m~rcado informal d~ trabalho.
27
Pensava aSSIm comparar duas amostras com diferentes graus de
inserção social, para \'erificar em que medida estes jo\'ens \'~m se
afastando dos \'alores propostos pelas camadas hegemônicas da
sociedade - entre eles a Escola e o Trabalho, e que no\'os \'alores e
projetos de classe \'êm se instituindo em substituição àqueles.
A primeira etapa da pesquisa foi realizada nos meses de abril e maio.
com um grupo de 15 menores aprendizes da Cia. Vale do Rio Doce.
Para cumprir a segunda etapa planejei entre\'istar um grupo de
adolescentes que buscam na rua sua sobre\'i\'ência. Fui apresentada a
um grupo de educadores que desel1\'oh'em um projeto de educação
informal com crianças e adolescentes de rua que \'ivem na
Cinelândia. Apresentei-lhes meu projeto de pesquisa e n grupo me
facilitou o acesso aos jovens.
o proceSSl) de aproximação com o grupo de meninos e menll1as de
rua demandou quase dois meses. quando me limitei a acompanhar os
educadores e tra\'ar conhecimento pessoal com os adolescentes.
buscando criar um clima de contiança que fa\'orecesse a fase das
entre\'i stas.
Já neste período surgiram minhas primeiras dificuldades de
desell\'oh'er o trabalho sistemático que havia planejado antes da
minha ida ao campo. Ao viwnciar na prática as precárias condições
em que vi\'em estes jovens. cOITstatei a distância existente entre os
problemas que a \'ida na rua lhes coloca e as formulações acad~l11icas
28
qUç apontam o (rç)ingrçsso imçdiato na Escola como a solução por
çxcçl~ncia para a vida das crianças (k rua. Em outras pala\Tas. com o
início do trabalho dç campo. outras quçstõçs Sç sobrçpusçram
àqudas qUç mÇ lç\'aram a 1I11Cl~H a pçsqUlsa. algumas claramçntç
ôprÇssas Pçlas próprias CrIanças ç outras qUç rçsultaram da
con\'i\'~ncia ç da obsçl'\'ação da \ida cotidiana do grupo.
Na \'çrdadç. çstç pçríodo inicial. qUç tçoricamçntç çsta\a lkstinado à
construção dç uma rdação dç confiança çntrç Pçsquisadora ç
Pçsquisados. fçz brotar uma sériç dç qUçstionamçntos sobrç o mÇu
trabalho. ou. Çm tçrmos técnicos. fui tomada por qUçstionamçntos
mdodológicos. Já nos primçiros çncontros com o grupo dç mçninos ç
l11çninas dç rua. suscitou-mç Ul11 sçntilllçnto dç ina(kquação. dç
lkslocamçnto da tarçfa a qual mÇ propunha. Estç sçntimçnto basça\a
Sç Çm princípio na pçrcçpção dç qUç os probkmas quç Tllç k\'aram a
procurar o grupo Pçrdçram a rçkdncia inicial quando da constatação
da compkxidadç do quadro social com o qual mÇ lkparçi. ParÇcÇu
mÇ também qUç o grupl) não atribuia a significação çspçrada a
quçstõçs tais como çscolarização ç trabalho. tantas Çram outras
circunstâncias qUç Sç supçrpunham a çstçs tçmas Çm urg~ncia.
Causou-mÇ ainda cçrta Pçrplçxidadç \'çrificar quç. por
insçnsibilidadç dç largos sçgll1çntos da sociçdadç ç absoluto (kscaso
da classç política brasikira. çstá Sç çstruturando sob nossos olhos
uma rçalidadç com a qual çstamos próximos dç rompÇr os \Ínculos
não só sociais ç çconómiclls. qUç só çxistçm çll1 sua nçgati\idadç.
mas os próprios \ínculos simbólicos dç idçntidadç comum ç até dç
cOlllunicação. E ainda mais. \'çrificar qUç ÇSSç mo\ill1çnto Sç dá com
um sçgmçnto infantil. supostamçntç o pnmÇlro a sa protçgido Çm
qualquçr sociçda(iç ç çll1 qualquçr ci\'ilização,
A aproximação paulatina com o grupo dç mçninos ç mçninas foi mÇ
apontando para a çxist~ncia dç formas próprias Jç rçlaçõçs
socioculturais do grupo Çm si: para um çsboço dç organização social
original: para um procÇsso dç rçcriação dç \alllrÇS ç rçpresentaçõçs
simbólicas, Em decorr~ncia dessas obsçr\'ações. o sçntido da pçsquisa
foi adquirindo um \'i~s antropológico. ainda que em princípio não
claramente explicitado, Por sua \'CZ. () trabalho de campo foi
tomando forma substanti\a. à medida que foi aprofundando-se o
contato direto com o grupo dç meninos e meninas de rua. Isto ~. a
con\'i\'~ncia pessoal e regular com os jO\'ens permitiu-me caminhar
no sentido da compreensão da \'is,ll1 do grupo sobre uma \'ariedade de
aspectos da vida social.
:\ postura mçtodológica adotada frente ao modo de \'ida dos meninos
e meninas ck rua foi. portanto. a de procurar compreender as formas
de interaç,lo social que estabelecem. pda ótica do grupo, ,-\prnximar
me da imagem que eles formam do lugar que ocupam na sociedade. e
tamb~m analisar quais as implicações que a condição de
marginalidade social pro\'oca na formação da idçntidade psicossocial
destes jO\'ens, A prática da pesquisa. mormente aquelas \'inculadas
ao nÍ\el de estudos de p()s-graduação tem como um de SeUS objeti\'os
primordiais le\'ar o pesquisador a pOSlClOnar-Sç frentç :lS tçorias
çstudadas atra\'~s de cxperi~ncias concretas, ,-\ pçsqulsa SerIa II
estúgio do aprendizado no qual ~ dada a oportunidade dç Se rçalizar
" ... a dial~tica da ~xp~n~nCIa concr~ta com as t~orias apr~ndidas na
Uniwrsidad~" (DaMatta. R~lati"izando. p.146l.
o \'alor da p~sqUlsa no UI1l\'~rso da Educação Popular ,,~m da
contribuição qu~ ~sta possa dar a um proc~sso d~ transformação
social. Num trabalho d~ rdl~xão sobr~ pesqUIsa participant~. Silva
conclui: "Mais qu~ conh~c~r para ~xplicar. a p~squisa pr~t~nd~
compr~~nd~r para s~gUlr aqUI apontando na dir~çào da
transformação da soci~dad~" (Rdl~tindo i1 P~squisa Participant~.
p.(1). Assumindo ainda outros postulados da p~squisa participant~.
como o carát~r político d~ qu~ s~ de\'~ re"~stir a ill\'~stigaçãn
ci~ntífica ~ ainda a postura d~ qu~ no caso da pres~nt~ p~squisa. o
grupo d~ m~ninos ~ meninas d~ rua não são m~ros obj~tos passivos
de conh~cimento. mas su.i~itos qu~ interag~1l1 na formulação da
r~alidad~. consider~i p~rtin~nt~ relatar os asp~ctos mais marcant~s
qu~ pud~ p~rc~b~r como r~sultado d~sta int~ração. Esta dir~ção do
trabalho t~1l1 como int~nção a contraposição a tantas práticas
p~dagógicas qu~ t~m como obj~ti"os formais o at~ndim~nto às
class~s popular~s. mas o t~lz~m atr~l\'~S d~ uma \'~rdad~ira "ill\'asão
cultural" (Fr~ir~. 1979): ill\'asão ~sta qu~. na anúlis~ d~ Sih'a. t~m sua
ong~m " ... na dicotomia ~ntr~ suj~ito ~ obj~tn. \'~rificando qu~ o
il1\'asor r~duz as p~ssoas. no ~spaço im'adido. a simples objeti\'l)s d~
sua ação. ~stab~kcend()-s~ relaçõ~s autoritúrias ~ntr~ ill\astll' ~
im'adidos ao s~ situar~m ~m posiçõ~s antagônicas" (Ibidem. pA3 ).
Tal"cz o ac~sso a algum conh~cim~nto qu~ possamos \'ir a t~r sobr~ o
outro possa diminuir a dist{lIlcia qu~ nos s~para. Tah'cz não. E. n~ss~
31
caso. de"eremos atribuir o desenrolar do dramático proCeSSO social do
qual somos todos atores. como um ato intencional. Os primeiros
meses de pesquisa de campo me descortinaram um extenso uni\'ÇI"so
de qUestões a in"estigar. Ie"ando-me enfim a concentrar os estudos
no grupo de meninos e meninas de rua. postergando as análises
comparativas a outros grupos de adolescentes. inicialmente pre\'istas.
para uma futura oportunidade.
HISTÓRICO DA PESQUISA
o aCesso ao primeiro grupo de meninos e meninas de rua objeto da
pesquisa. Se deu pela intermediação de t~cnicos atuantes no Instituto
Brasileiro de llll)\'ações em Saúde Social (daqui para frente chamado
IBISS I. O IBISS ~ uma organização nào-go\'ernamental qUe atua
regularmente no Rio de Janeiro desde 1989. sob a direção t~cnica do
psiquiatra holand~s Nanko Van Buuren. SeU objeti\"o e o
desel1\'ol\"imento de no\"as formas de cuidado em saúde social com
população infanto-ju\"enil de classes socialmente marginalizadas. O
enfoque de saúde ~ prioritariamente pre\'ellti\o e baseia-se em
pesquisas práticas e teóricas. propondo iniciati\"as a\"ançadas nas
questÕeS relati\'as à saúde social qUe mais afetam a população al\"o.
AI~m do atendimento direto à população int~1Ilto-ju\'enil. o IBISS
atua em \'Úrias instâncias da sociedade. num trabalho político \'oltado
para a transformação do quadro social. usando \'<Irias estrat~gias de
atuação. dentre as quais:
'-' .'-
a) a participação em mo\'imentos regionais ou nacionais de defesa da
criança. do adolescente e de população marginalizadas elll geral:
b) a difusão. entre os grupos atendidos, da história afro-brasileira e a
reafirmação dos \'alores da cultura negra nacional:
c) a formação de lideranças entre os jo\'ens. atra\'~s da prollloção de
encontros sobre a problemática das crianças de rua:
d) a denúncia intransigente dos atos de \'iol~ncia e de extermínio
cometidos contra as crianças e adolescentes e o acompanhamento
jurídico dos casos que ell\'oh'am crianças atendidas pcla Instituição:
e) a prática do lobby junto a \'ereadores. deputados estaduais e
federais sobre projetos de ki de interesse da população infanto-
ju\'enil:
f) a dintlgação no exterior. em fóruns de debate internacional de
defesa dos direitos humanos e das crianças, dos dados Ie\'antados pelo
Instituto relati\'os a situação da população atendida,
Nessa linha o [8ISS ~ respons<Í\el t~cnico pclos projetos EXCOLA e
SEi\IPRE VIVA. de atendimento direto a meninos e meninas de rua
do Rio de Janeiro. qUe a seguir caracterizarei bre\ell1ente. O projeto
EXCOL\. coordenado pcla Assistente Social Sil\'ia Regina dos
Santos e pelo pedagogo Carlos .. -\ntonio Bezerra da Sih'a. atende um
grupo composto por meninos e meninas que "\'i\'em" nas imediações
da Cinelândia e tem como principal objetivo a prevenção ao abuso de
drogas e a divulgação de informações quanto à prevenção de doenças
sexualmente transmissíveis e AIDS. Atuam igualmente na defesa dos
direitos civis e sociais, através de proteção emergencial contra a
violência física e psicológica de que as crianças e adolescentes são
\'ítimas constantes.
o programa SEl\1PRE VIVA. coordenado pelas psicólogas Mara
Cabral Monteiro Pontes e Marly Rose Benzaquem da Gama. atende
especificamente a um grupo de meninas que '\'ive" na zona sul da
cidade e tem como principal objetivo trabalhar questões específicas
da condição feminina enfrentadas cotidianamente pelo grupo, que se
somam às inúmeras discriminações e preconceitos sofridos pelas
crianças que habitam ~lS ruas. O programa \'isa também despertar nas
jovens a consciência de si mesmas e do grupo. e busca fortalecê-Ias
na luta pela superação das condições adversas a que estão submetidas.
Muito além dos objetivos declarados pelos projetos a que estão
afetos. estes educadores tornaram-se, pela dedicação e pela
capacidade de compreenderem os valores. as representações e enfim
a visão de mundo que elaboram os meninos e meninas que atendem.
em incansáveis defensores destes frente às incompreensões de setores
da sociedade. em seus interlocutores e certamente num dos poucos
referenciais positivos que o grupo encontra em suas relações com a
sociedade em geral. Através de um trabalho micro-político, os
educadores buscam t~1cilitar o acesso real ao direito de cidadania e o
resgate dos direitos fundamentais da pessoa humana. direitos estes
sistematicamente negados e ultrajados por amplos setores da nossa
coletividade.
o desenvolvimento do trabalho de pesquIsa levou-me
necessariamente a um estreito contato com os educadores e com a
direção do IBISS, os quais demonstraram sempre uma singular
generosidade em facilitar o presente trabalho. Esta atitude pode ser
percebida através das seguintes situações: inicialmente pela forma
positiva pela qual me introduziram às crianças, o que muito facilitou
o entrosamento com elas: o amplo acesso que me proporcionaram aos
fatos constitutivos da história do trabalho que desem'oh'em na rua: a
complementação de informações colhidas nas entrevistas e a
disponibilidade para discutir as impressões que eu ia elaborando
sobre o grupo e sobre a situação em geraL no decorrer da pesquisa.
Enfim, o clima criado entre pesquisadora e educadores proporcionou
amplos debates sobre aspectos culturais, psicológicos ou políticos que
compõem o quadro estudado. E, embora as observações do presente
trabalho sejam de minha responsabilidade pessoaL muitas refletirão a
síntese destas discussões. Ao iniciar a pesquisa de campo. contava
com um roteiro de entrevistas semi-estruturadas que "erS,l\'a sobre as
seguintes questões:
a) Dados pessoais (nome. idade)
b) Dados sobre a família: nome. idade e profissão dos pais
c) Informações sobre a comunidade de origem
d) Situação escolar (se freqüenta ou já freqüentou escola: em caso
afirmativo qual: qual a última série que cursou, que conceito tem
da escola, por que razão deixou de freqüentar a escola: que
expectativas tem'tinha em relação à escola, etc)
e) Planos quanto ao futuro: que tipo de trabalho gostaria de exercer,
que expectativas tem quanto a possibilidade de melhorar as
condições de vida. etc.
Desse planejamento inicial, contudo, o trabalho tomou características
mais próprias de uma pesquisa qualitativa, em que foram
privilegiadas informações, dados, observações e interpretações que
pudessem contribuir para o entendimento do quadro geral. Portanto,
não foram utilizados instrumentos convencionais como questionários
ou quadros estatísticos. Os fenômenos sociais que se descortinaram
nào poderiam ser captados por estes procedimentos tradicionais.
Dado a característica de entrevista aberta, aplicada no campo e ao
sabor das circunstâncias, o seu resultado não tem uma forma
sistemática. Em uns casos os assuntos tomaram rumos inesperados,
cheios de riqueza etnográfica. em outros emergiam discursos li\'l'es e
espontâneos, em outras mais, respostas padronizadas de meninos e
meninas acostumados ao assédio de entrevistadores.
Os encontros com as crianças foram realizados inicialmente à noite,
nas escadarias da Câmara Municipal - local onde se reúnem no final
do dia. e onde a maioria do grupo pernoita. É também ai. em pleno
centro da cidade que eles se sentem "em casa". onde eles se
reencontram com o grupo - que de dia se dispersa pela cidade -
trocam experi~ncias, di\'idem algum dinheiro ou comida que
conseguiram, aguardam a presença dos educadores, e, por vezes,
recebem o jantar de alguma instituição do go\"erno ou da sociedade
civil. Estes encontros, portanto, eram bastante tumultuados, sujeitos a
interferência de toda ordem, desde conjuntos religiosos tocando e
pregando, até a ida e vinda de pessoas que de alguma forma
interagem com os menores, como \'endedores ambulantes, policiais,
seguranças da Câmara, frequentadores dos bares e transeuntes que ora
param para criticar as crianças, ora se solidarizam com elas.
Contudo, considerei que este era o local mais apropriado para
entre\'istá-Ios, até porque já ficara claro para mim que esta dispersão
é constitutiva do modo de vida dos meninos e meninas de rua, e para
compreendê-los é preciso tomar em consideração o ambiente em que
atuam. Este é um ambiente essencialmente assistemático e dispersi\'o,
que exigiu-me um período de adaptação para que eu compreendesse
os limites geográficos do espaço onde os meninos "ficam", e
compreendesse as muitas idas e \'indas, as interferências ocasionais e
as relações cotidianas. distinguisse quem faz e quem não t:1Z parte do
grupo. Uma das educadoras me definiu inicialmente a rua como
sendo uma casa, só que com paredes imaginárias e com proporções
espaCIaiS próprias.
Além das condições propriamente físicas do ambiente, interferiram
ainda no rumo da pesquisa o fato de que os jl)\'ens freqüentemente
deambulam por pontos da cidade, dificultando a continuidade dos
37
depoimentos. Houve também impedimentos de ordem física causados
por uso de drogas, doenças ou simplesmente fome. Por último,
constatei ainda grande dificuldade por parte dos meninos e meninas
de rua em se referirem ao passado, geralmente marcado por
experiências traumáticas. As perguntas mais elementares já
colocavam graves problemas: o simples fato de perguntar o nome do
entrevistado desencadeou por vezes situações próximas a \'erdadeiras
catarses emocionais.
Por exemplo, numa das entre\'istas foi perguntado a um rapaz, de
aproximadamente 16 anos qual era seu nome, ao que ele respondeu
"Zoiào". O pesquisador insistiu para que ele dissesse o nome
verdadeiro, nào o apelido e ele respondeu que não sabia qual era seu
nome: "Acho que não tenho nome. meu nome ~ esse mesmo. Zoião".
Ele foi então incitado a tentar se lembrar do tempo em que \'ivia em
casa. quando pequeno. de que forma a mãe o chama\'a. Neste ponto o
jlwem aparentemente interrompeu a entrevista e foi se juntar a outros
rapazes que estavam perambulando pela Cinelândia. Após algum
tempo retornou. visivelmente emocionado dizendo que achava que
seu nome era Paulo.
Outra adolescente reagiu com muita agressividade ao ser indagada
sobre o nome dos pais. "Eu não tenho pai. eu não \'OU tàlar, eu
também não quero t~"dar mais nada". No dia seguinte esta mesma
jovem fez um longo depoimento sobre seu passado. e contou que o
pai a expulsou de casa por \'olta dos cinco anos. porque desconfiava
que ela não era filha dele.
Em consequência destes fatos, passei então a incluir depoimentos
espontâneos dos jo\'ens sobre temas referentes à vida na rua, tais
como: violência: formas de interação do grupo entre si: as
representações que eles vêm elaborando em relação às instituições da
sociedade com as quais se relacionam de alguma forma. Esses temas
elucidaram suas visões sobre família e o processo de desvinculação
familiar, sobre a experiência escolar, e sobre os internatos e outras
instituições corretivas e de guarda de menores.
AI~m das entre\'istas e da convivência com o grupo na rua. a pesquisa
incluiu a participação em uma excursão planejada pelos educadores
do IBISS e pelo [BRADES - Instituto Brasileiro de Desenvoh'imento
- no período de oito a onze de outubro de 1991, num acampamento
cedido pela Igreja Metodista, na cidade de Paulo de Frontin. A
excursão teve como principal objetivo discutir com o grupo de
adolescentes aspectos pre\'entivos ao abuso de drogas. A estratégia
utilizada combinava a realização de di\'ersas dinâmicas de grupo com
a prática de esportes.
Durante a excursão pude interagir com o grupo em um ambiente
mais estruturado. onde os jovens esta\'am temporariamente livres das
pressões do ambiente cotidiano da rua. e demonstraram um
comportamento mais descontraído em relação aos encontros iniciais.
Este segundo momento da pesquisa de campo ~ de tal importância
que requer uma breve descrição aqui.
39
CONVIVENDO COM OS MENINOS E MENINAS FORA
DA RUA: A EXCURSÃO A PAULO DE FRONTIN
Eram transcOlTidos quase dois meses que eu estava em trabalho de
campo, acompanhando os educadores do Projeto EXCO LA em suas
atividades cotidianas de atenção aos meninos e meninas da
Cinelândia, quando fui convidada por eles a participar de uma
excursão que o lBISS estava planejando em conjunto com o
[BRADES. Eu deveria cumprir o papel de observadora do encontro,
fazendo anotações sobre o desenrolar das atividades propostas, sobre
a participação das crianças, sobre o funcionamento da infra-estrutura,
e tudo mais que julgasse relevante para uma posterior reflexão e
avaliação dos educadores quanto à consecução dos objetivos
pretendidos.
o com'ite foi recebido com entusiasmo de minha parte, por \'anos
motivos: em primeiro lugar, demonstrava uma aceitação por parte dos
educadores da minha presença e do meu trabalho entre eles. Até então
eu me sentia meio constrangida, porque a aceitação da pesquisa \'eio
acompanhada de algumas críticas ao trabalho acadêmico com grupos
de meninos e meninas de rua. Na avaliação deles muita gente
procura\'a a instituição visando apoio e facil itação para suas
pesqlllsas, que, após concluídas ou não eram apresentadas aos
facilitadores ou, quando apresentadas, demonstravam análises
superficiais e nenhuma contrapartida, nenhuma contribuição para a
prática da educação na rua. Como nesta fase da pesquisa eu me
.+0
~ncontrava entre "chocada" ~ confusa frente às novas situaçõ~s de
vida com as quais iniciava um contato, ainda sem condiçõ~s d~ firmar
um posicionamento sobr~ os acont~cimentos, tom~i o convite como
um ato de generosidade ou como um voto de confiança no meu
trabalho.
Em segundo lugar, porqu~ ~u não havia ainda iniciado ~ntrevistas
formais, gravadas com os jO\'ens. pela minha in~xpai~ncia ~m agir
m~todologicamente no m~io da rua, com tanto barulho. com tantas
interferências com as crianças indo ~ vindo. int~rromp~ndo o assunto.
retornando drogadas. ~ tantas outras situaçõ~s qu~ m~ L'lziam ansiar
por ambi~ntes mais controlá\'~is. A ~xcursão m~ par~cia uma ótima
oportunidade de m~rgulhar d~ \'~Z na fas~ d~ ~ntr~\'istas.
Em terc~iro lugar. já s~ op~ra\'a ~m mim um s~ntim~nto ~xtra
acadêmico. um des~jo. quase um impulso de ~streitar minhas relações
com as cnanças. A ~xcursão ocorreu no período d~ oito a dez de
outubro de 1991. O local escolhido foi o Acampamento Clay, da
Igreja M~todista de Paulo de Frontin - RJ. qu~ foi c~dido
graciosamente às instituições responsáv~is pela ~xcursã().
O IBISS participou atra\'~s dos projetos EXCOL\ e SE\tPRE
VIVA, com a presença dos r~sponsá\'~is pelos dois projetos. Carlos e
Sih'ia pelo primeiro. ~ as psicólogas Mara ~ Marly pelo segundo.
contando ainda com a presença do dir~tor da instituição. O
IBRADES participou com a pres~nça dos ~ducadores Maurício
Camilo. Nádia Bonfim e Lúcia Xavier de Castro (esta ap~nas na fase
-lI
de planejamento, já que no dia da excursão uma das menmas do
grupo que a Lúcia acompanha teve alta da maternidade onde acabara
de dar à luz seu primeiro filho, aos 13 anos, e a presença da
educadora junto à menina era imperiosa).
Os objetivos da excursão eram: a) proporcionar às crianças e jovens
atendidos pelas instituições acima a oportunidade de recreação
dirigida e de lazer: b )incentivar a prática de esportes, como tática de
pre\'enção ao abuso de drogas: c) desenvolver junto aos meninos e
menmas atividades informati\'as sobre doenças sexualmente
transmissíveis e especialmente a AIDS: d) discutir com os jovens as
questões sociais relativas a meninos e meninas de rua e e)
proporcionar a oportunidade de aprofundamento das relações entre
educadores e educandos.
A saída do Rio de Janeiro estava prevista em torno de meio-dia das
imediações do Museu de Arte Moderna, em õnibus cedido pelo
CBIA, com a presença de crianças e adolescentes atendidos pelos três
projetos de educação. Estima\'a-se o comparecimento de 30 a 35
meninos e meninas. Aí ocorreu a primeira grande surpresa do passeio,
e que acarretou várias consequ~ncias no período da excursão: as
crianças divulgaram o passeio para muitas outras crianças que não
fazem parte dos projetos e na hora do embarque ha\'ia 62 presentes,
á\'idos pelo fim de semana na serra. Frente à situação os educadores
decidiram pela participação de todos os presentes. e o ônibus partiu,
então, superlotado de alegres e barulhentos meninos e meninas.
-+2
Em \'irtude de algum atraso na saída do Rio e das condições precárias
da estrada, agravadas por uma constante chuva, o ônibus chegou ao
Acampamento pouco antes das dezoito horas. Os jovens chegaram
bastante eufóricos e excitados para conhecerem os detalhes do local.
Antes mesmo do jantar muitos foram tomar banho de piscina, a
despeito do clima frio e chu\'oso. Muitas meninas, entretanto,
optaram por antes se apossar dos quartos onde iriam se hospedar. O
diretor do IBISS e mais dois educadores ha\'iam chegado mais cedo
com mantimentos, roupas e outros equipamentos, de sorte que
quando os meninos( as) chegaram. já esta\'a pro\'idenciado o jantar e a
arrumação dos quartos, Por~m. toda a infra-estrutura estava
programada para. no máximo ~5 pessoas. incluindo educadores e
outros adultos presentes.
O jantar foi sen'ido por volta das dezenove horas. e. em \'irtude do
número de crianças ser muito grande. os educadores optaram por
ser"ir os pratos feitos. com as crianças fazendo fila para receberem a
refeição. ao contrário do que esta\'a planejado. que era ser\'ir o jantar
à mesa em grupos pequenos, que propiciasse um clima de maior
aconchego. O comportamento dos participantes na hora da refeiçào
foi de disputa par \'er quem receberia a refeição primeiro. burlando a
fila. criando algumas confusões entre si. entrando de \'olta na fila e
trocando \'árias \'ezes de lugar. para tentar ludibriar os educadores.
misturando-se àqueles que ainda não ha\'iam jantado, Este
comportamento repetiu-se em todas as ref'çições do passeio, e em
todas as ocasiões posteriores que pude obsen'ar meninos e meninas
recebendo algum tipo de refeição, Ao comentar com um pequeno
grupo de jovens que não havia necessidade desta disputa. já qUe ha\'ia
comida suficiente para todos, um menino contra argumentou: "É, tia.
a gente nunca sabe. a torneira pinga pouco prá gente, hoje tem.
amanhã não sei Se tem .. ,"
o resto da noite foi dedicado a atividades livres, ChO\'ia muito e t~1zia
frio, As crianças se dividiram espontaneamente, umas foram para o
salão principal, onde havia uma lareira, mesa de sinuca e vários
sot~ís, outras permaneceram no refeitório, fumando e conversando.
Algumas foram passear na área externa, jogar capoeira: um grupo foi
direto para os quartos. e ainda outras buscaram a companhia dos
educadores. Nada disto ocorreu num clima tão tranqüilo quanto possa
parecer nesta descrição. H,l\'ia a todo momento demandas dos
participantes em relação aos educadores, qUe Se dividiam em muitas e
complicadas tarefas. como tentar uma divisão dos cobertores
existenteS entre o total de crianças, já qUe não ha\'ia número
suficiente para todos. Mais uma vez vanos ddes reagIram
prontamente. fOSSe reclamando .. fOSSe tentando garantir de qualqUer
forma o SeU próprio atendimento. Por fim, chegOU-Se a ullla solução
negociada. pela qual as crianças menores dormiriam em duplas,
garantindo assim o atendimento a todos. Os educadores também
ti\'eram de abrir mão dos SeUS cobertores, e como esta\'a muito frio.
decidiram todos dormir no salão, próximo à lareira.
A hora de dormir foi antecipada pdo frio e cansaço da \·Iagelll. As
\'inte e duas horas quase todos procuraram Se alojar. A partir deste
momento sucederam-se situaçÕes muito ducidati\<ls sobre o
comportamento do grupo. Uma pnmelra observação t! que vanos
adolescentes pediam aos educadores que os acompanhassem do salão
att! a área dos quartos, que era numa outra edificação, distante uns
tantos metros. O caminho era de terra e cortado por um riacho,
coberto por uma pequena ponte de cimento. Naturalmente também
era pouco iluminado, já que era uma noite escura e chuvosa. Daí que
os adolescentes diziam não ter coragem de se dirigir para os quartos
sozinhos. A princípio pensei que fosse uma brincadeira. que a
solicitação era apenas por companhia, mas eles insistiam que não
tinham coragem, que só iriam com a proteção dos educadores. Os
educadores aproveitaram a ocasião para conversar sobre o
sentimento do medo. Num qUIosque a meio caminho entre o
alojamento e o salão. meninos e meninas discorreram sobre o medo
do escuro, de assombração. do barulho das matas e dos bichos da
floresta. Eu me sentia incr~dula. Eram jO\'ens acostumados a
enfrentar toda sorte de perigos urbanos, violência física. prisões e
fome, enfim uma \'ida de adversidades. Não podendo me conter
expressei ao grupo minha surpresa. pois supunha que todos fossem
muito corajosos. Em resposta. eles pacientemente argumentaram que
cada um tem medo do que não conhece. que eu posso ter medo da
rua. mas na rua ~ iluminado. e eles já estão acostumados. mas com
aquele lugar era diferente. nunca haviam estado ali. Pouco mais tarde.
quando a maioria já esta\'a nos alojamentos. surpreendo-me com
alguns rapazes deitados à beira da porta. do lado de fora dos quartos.
num chão úmido. e pegando um resto da chuva. Perguntei a eles
porque não se deitavam nas camas. mais quentinhas e acolhedoras. e
eles responderam que se sentiam mal nos quartos. muito fechados.
45
Nas alocaçõl!s dos jO\'l!ns pelos quartos, dl!ram-sl! algumas
discussões qUI! acabaram I!m agrl!ssão física. HOUVI! aSSIm,
nl!cl!ssidade de intl!rvl!nção dos I!ducadores, qUI! o faziam buscando
um I!quilíbrio I!ntre o grupo. Mais tarde, quando os I!ducadorl!s SI!
dl!sincumbiram de suas tardas I! do atendimento às muitas
solicitaçõl!s do grupo, rl!tornamos ao salão, ondl! prl!tl!ndíamos
colocar colchonl!tl!s I! nos aquecermos próximo à lareira. Eis que lá
já esta\'a uma dúzia de meninos, dormindo juntos fi moda da rua.
Convencl!mos alguns deles de pernoitarem nos quartos. Outros se
recusaram I! dividiram o salão conosco.
Na manhã sl!guinte o dia amanhecl!u totalml!ntl! chuvoso e frio.
Contudo a maioria das crianças acordou cedo. O cat~ da manhã foi
sl!rvido por volta das oito horas e constou de chocolatl! qUl!nte, café e
sanduiche de qUl!ijo, o qUI! muito agradou às crianças. Logo após o
café as atividadl!s SI! dividiram I!ntrl! banho de piscina I! jogos de
futebol. Os educadores pro\'idenciaram um torneio de futebol para o
período. com uniformes para os timl!s doados por clubes dI! futl!bol.
A iniciativa, que teve grande sucesso entre os meninos consistiu em
solicitar jogos de camisa e chuteiras de jogadorl!s famosos. para
incentivaI' os meninos a praticarem esporte. O esporte é um eIxo
central do trabalho de pre\'l!nção ao abuso de drogas. desl!ll\'oh'ido
pelo projl!to EXCOLA. A mdodologia do projl!to não prl!\'~
qualquer tipo de repressão: ao contrário, prl!tl!nde despertar nos
adolescentes a pl!rcepção física dos danos causados pela utilização de
drogas (no grupo da Cinelândia, a principal droga consumida é a cola
de sapateiro). Trabalhando as vantagens de um corpo sadio. através,
por exemplo, da performance no esporte, os menll10s são levados a
refletir sobre a prática do consumo de droga e sobre as possibilidades
de terem algumas recompensas ao desistirem dela. Esta ~ uma
metodologia original, adequada à situação do trabalho na rua, onde
qualquer tentativa de controle se torna inócua. e de base realmente
educativa, porque conta com uma mudança de percepção, com uma
conscientização dos jO\'ens,
As educadoras super\'isionaram o banho de piscina durante a manhã.
tamb~m muito concorrido pelas crianças. que muito raramente têm a
chance de Se comportarem como cOI1\'idados. com todos os direitos
ao lazer. sem preocupação de serem recriminados por algu~m, Ainda
durante a manhã as meninas Se dedicaram a ati\'idades de manicure e
embelczamento em, geral. As educadoras do SEMPRE VIVA
pro\'idenciaram os produtos de perfumaria necessários, como
shampoos. saboneteS. esmalteS. etc. As jovens mãe:s e: as grávidas Se
re\'czaram entre tomar conta das crianças e la\'ar as roupas. sempre
solicitando atenção das educadores. Nessas ocasiÕeS as educadoras
apro\'eita\'am para faZer o le\'antamento das condições pe:ssoais das
meninas. quanto à saúde e aos principais problemas da \'ida na rua.
Com as jO\'ens mães. que eram duas. e com as três grávidas. as
educadoras desen\'oh'iam um criterioso trabalho de informação. de
\'alorização do aleitamento materno e transmissão de informações
sobre os cuidados com a saúde dos bebês. num enfoque realista.
sugerindo ações possi\'eis nas condições de \'ida na rua, Ne:sta ocasião
pude constatar o orgulho que as meninas sentem por se: tornarem
mãeS e o forte desejo que nutrem por cuidar de SeUS filhos e dar a eles
.+7
uma \'ida melhor do que a que elas próprias puderam ter. Ainda que
a gravidez não tenha sido planejada, as meninas declararam que
nutriam o desejo de serem mães, praticamente sugerindo que esta era
uma forma de esperança numa vida melhor, a despeito das condições
objetivas de vida que enfrentavam.
No final deste relato encontram-se alguns depoimentos das meninas
grávidas e jovens mães. A respeito de prevenção da maternidade,
obsen'ei, em conversa com as adolescentes, que elas det~m algumas
informações sobre métodos preventivos, mas apontam razões pelas
quais raramente os utilizam. O máodo mais conhecido é o uso de
preservativo masculino. certamente porque é o que as meninas t~m
mais acesso. seja através do projeto SEMPRE VIVA. seja por
programas de saúde diversos que eventualmente trabalham com
populações de rua. Embora a forma de utilização e a eficácia possí\'el
do uso de preservatin)s na prevenção da gravidez e de doenças
sexualmente transmissíveis e AIDS seja de conhecimento de todas as
adolescentes presentes ao encontro. as grá\'idas e as mães
mencionadas declaram que não o utilizam porque os companheiros
não "gostam de usar camisinha". "porque meu marido diz que aperta
muito ele". "porque a gente se esquece" Uma adolescente. que
conta\'a 15 anos na ocasião da excursão. que nunca engra\'idou.
declarou que gostaria que seu companheiro usasse sempre a
camisinha. "mas \'oc~ sabe como é. né tia',) a gente que é mulher não
pode t:1zer nada. se eles quiser, eles não usam". Quanto ao uso de
pílula anticoncepcional as moças alegaram não utilizar por razões que
\·ão do esquecimento. da não compreensão do uso correto. do preço
48
do medicamento e sobretudo porque estão informadas que o uso
contínuo pode trazer efeitos colaterais. Outros m~todos, corno o uso
do diafragma e do dispositivo intra-uterino também foram citados
pdas meninas, mas nenhuma ddas tinha cogitado o uso de tais
m~todos, porque "são muito difíceis para quem vi\'e na rua".
Duas jo\'ens grávidas rdataram já ter sido consultadas por instituições
que desenvol\'eram ocasionalmente atendimento a população de rua
nos locais onde das vivem, sobre a possibilidade de ligadura de
trompas, a que elas se referiram como "operação para nunca mais ter
filhos". Registre-se que no decorrer da convi\'ência com meninas da
Zona SuL repetiram-se depoimentos que confirmam a proposta de
esterilização de jovens de apenas IJ anos de idade. f1to que requer
in\'estigação cuidadosa. O t:1to das jO\'ens repudiarem esta alternati\'a
~ mais um dado a confirmar a dimensào positi\'a que atribuem a
maternidade. O almoço transcorreu no mesmo clima tenso e agitado
das refeições anteriores. sendo o horário das refeições a única
ocasião em que pude obser\'ar alguma hostilidade das crianças para
COI11 os educadores, A única exceção durante a excursão foi na noite
deste segundo dia. em que o diretor do lBISS comprou algumas
tortas de chocolate para comemorar o aniversário do jo"em Jorge.
que completava neste dia 18 anos de idade ( ver entrevista gn1\'ada
com de em anexo). Nesta ocasião aproveitou-se para cantar parab~ns
para outras crianças que também aniversaria\'am em dias próximos.
As tortas foram ser\'idas no salão principal. pdas próprias crianças.
que nào fizeram a Illesllla confusào das outras refeiçl1es. Esperaram
com calma a sua própria vez, inclusive servindo em primeiro lugar os
49
e-:ducadores. Parece que-: aqui des se-: sentiram "donos da festa". talvez
por esta razão ~ que o comportamento tenha sido tão diferente.
No decorrer deste segundo dia aproveitei para Ü"lzer e-:ntrevistas com
todas as crianças que se dispuseram a responder. Alguns de-:poime-:ntos
foram muito ricos em informações e dados sobre-: o e-:stilo de \'ida do
grupo, e os transcrevo em anexo. As entrevistas gravadas não tiveram
a mesma riqueza das COI1\'ersas informais, onde o assunto fluia mais
naturalme-:nte. Assim. optei por fazer anotações de campo após os
depoimentos. Na segunda noite houve um início de tumulto,
provocado por uma briga de ciúmes entre dois jovens. Um deles. que
fazia o papd de galã do grupo. muito vaidoso. que diz fazer cooper
todas as manhãs no Aterro do Flamengo, teria paquerado uma das
adolescentes do t!rupo (\'er entrevista ~ravada em anexo). Essa ~ ~
menina mantinha nesta ~poca uma relação afeti\'a com outra menina
do grupo. Perce-:bendo o que-: ocorria. a companheira te\'e a reação
típica do macho traído: desafiou o rapaz para uma briga. já armada
com um pedaço de copo que da quebrou. O rapaz não havia
percebido até então o rdacionamento entre as duas meninas, e ficou
muito abalado com a situação, porque a menina "traída" mostrava-se
muito agre-:ssl\'a. ameaçando-o inclusive de morte-:. Embora
aparentando um certo medo. o rapaz não \'iu outra solução que não
aceitar o desafio. Naturalmente que a esta altura \'úrios educadores
inte-:rvieram e. com alguma dificuldade. dissuadiram a me-:nina
ofendida de levar a briga adiante (ver depoimento de Carmem em
anexo). Contudo. o clima ficou tenso entre os jo\'ens e mesmo entre
50
os educadores, que temiam uma retomada do conflito, durante o resto
da noite.
Na hora de dormir, repetiu-se o esquema da noite anterior, quando
alguns jovens insistiram para permanecer no salão, dormindo em
grupo. ao invés de Se dividirem nos quartos do alojamento. Mais uma
vez foi necessário muita argumentação dos educadores para que a
maioria \'oltasse para os alojamentos. Alguns. contudo. insistiram em
permanecer no salão. o qUe acabou sendo consentido.
Na manhã seguinte. último dia previsto da excursão. e mais uma vez
um dia chuvoso e frio. os educadores decidiram antecipar o retorno
ao Rio para logo depois do almoço, evitando assim problemas na
estrada, devido à chuva e à superlotação do ônibus. Logo após o café
da manhã. que transcorreu sem novidades, decidi retornar de carro
com o diretor do lBISS e outros dois educadores.
o convívio próximo com os meninos e meninas e a participação em
momento quase terapêuticos em que eles partilharam conosco seus
sentimentos. dramas, esperanças e desesperanças, me deslocaram
instantaneamente do papel de observadora-pesquisadora para uma
nova situação. fundada num compromisso que se firmara. o de
assumir o caráter politico da ati\'idade cientifica em que se inscreve
esse trabalho. direcionando-o para a defesa dos direitos e da vida
destas crianças.
51
UMA EXPERIÊNCIA DE PESQUISA-AÇÃO
Um terceiro momento da pesquIsa de campo deu-se a partir de
dezembro de 1991 e durante todo o primeiro semestre de 1992 quando
passei a trabalhar na função dupla de educadora e pesquisadora com
um grupo de aproximadamente quarenta meninos e meninas que
\'i\'em na Praça Saens Pena. O trabalho com este grupo foi bastante
sistemático e proporcionou uma convivênciã e um clima de
confiança que me permitiram compartilhar de muitas e importantes
experi~ncias de \'ida das crianças e adolescentes.
O trabalho começou por um convite formulado pela então Diretora
Geral de Ensino da Secretaria Estadual de Educação do Governo do
Estado do Rio de Janeiro, Profa. Nilda Teves Ferreira, para compor
um grupo de educadores formado por técnicos da Secretaria Estadual
de Educação e por representantes de entidades não-governamentais
atuantes em projetos de educação de meninos e meninas de rua. Foi
atribuído a este grupo a responsabilidade pela elaboração de uma
proposta pedagógica específica para o segmento da população
infanto-ju\'enil do Estado do Rio de Janeiro. composto por crianças e
adolescentes que fazem do espaço da rua seu meio de sobre\'iv~ncia.
Durante quase três meses o grupo debateu amplamente as
características desejá\'eis para o projeto, a necessidade de
atendimento multidisciplinar e a urgência de uma política de governo
capaz de possibilitar o resgate da imensa dí\'ida que o conjunto da
sociedade tem para com as crianças brasileiras. especialmente estas
52
oriundas das parcdas mais pauperizadas da classe trabalhadora. Após
a realização de diversos seminários, sob a orientação da Direção
Geral de Ensino da SEE, o grupo de trabalho apresentou uma
Proposta de Educação lntegral para Meninos e" Meninas de Rua, que
recebeu o nome de REPÚBLICA DAS CRIANÇAS.
o Projeto REPÚBLICA adotou como linha metodológica uma ampla
ação pedagógica, de caráter emergencial, conjugando aspectos de
atendimento às necessidades psicossociais dos meninos e meninas de
rua. a um planejamento educati,'o voltado para a conquista da
condição de cidadania de cada criança atendida.
Esta foi uma oportunidade pessoal de reflexão sobre os dados e
observações empíricàs desenvoh'idas no decorrer da pesquisa. A
compreensão que ,'inha então formulando acerca das dificuldades que
as crianças encontravam de serem reconhecidas nas suas demandas
específicas por parte da escola como instituição e de educadores nas
relações cotidianas, levando-as a nào reconhecerem, por outro lado.
qualquer positividade nestas experiências, levou-me - e naturalmente
ao grupo envoh'ido na tarefa - a refletir sobre ati"idades pedagógicas
alternativas visando a uma participação mais efeti"a das crianças no
processo eduéativo e na experiência escolar.
Resumidamente, o projeto REPÚBLICA se propunha a funcionar
como uma ponte entre a rua. a escola e o mundo do trabalho. Os
meninos e meninas que ingressassem no projeto. participariam. na
REPÚBLICA. de um processo de reconstrução da cidadania.
centrado na valorização de suas vivências culturais e psicológicas
que se expressariam atra\'és da utilização de técnicas de arte-educação
e expressão corporal.
o projeto REPÚBLICA, contudo, nào chegou a ser implementado
no âmbito da SEE, por razões alheias à esfera pedagógica. Em
nO\'embro de 1991 a Prefeitura do Rio de Janeiro con\'idou a Profa.
Nilda T eves e equipe a participarem de discussões visando à
implantação da metodologia proposta pelo Projeto REPÚBLICA,
num projeto de atendimento a meninas e meninos de rua
desen\'olvido por órgãos municipais.
Com \'istas à implantação de uma primeira unidade - experimental -
do projeto a ser estabelecida no baiITo da Tijuca, fui cOI1\'idada a
coordenar uma pesquisa. juntamente com os educadores do I BISS.
\'isando ao dimensionamento e caracterização da população de
meninos e meninas de rua que vIvIam na Praça Saens Pena e
adjacências. A pesquisa realizou-se nos meses de I1lwembro e
dezembro de 1991. O resultado da pesquisa e de toda essa experiência
de trabalho foi amplamente incorporado e analisado ao longo deste
estudo.
Na etapa de implantação da primeira unidade do projeto. atuei como
Super\'isora, tendo sob minha responsabilidade o treinamento da
equipe pedagógica e administrativa, bem como a conduçào do
processo de negociação com os futuros residentes sobre critérios de
moradia e regras de funcionamento do equipamento. Esta etapa do
54
trabalho foi muito fátil. pois exigiu a conjugação de conhecimentos
teóricos e experi~ncia empírica . Nas reuniões com os futuros
educadores, ti\'emos a oportunidade de discutir nt)\'as propostas
metodológicas, qUe e\'itassem abordagens tradicionais e
discriminatórias, já então bem conhecidas daqueles qUe lidavam
diretamente com a população al\'o do projeto, Com as crianças e
adolescentes hOU\'e oportunidadeS ímpares de conhecermos o
pensamento do grupo aCerca de instituições e da sociedade em geral.
e as opiniões sobre as formas de atuação qUe eles considera\'am mais
adequadas para as intel"\'enções qUe Se procederiam elll suas \'idas.
Esta experi~ncia constituiu-se numa modalidade de pesquisa-ação,
Thiollent assim define a pesquisa-ação: "É um tipo de pesquisa social
com base empírica que ~ concebida e realizada em estreita associação
com uma ação ou com a resolução de um problema coleti\'o. e no
qual os pesquisadores e os participantes representati\'os da situação
ou problema estão en\'oh'idos de modo cooperati\'o ou participati\'o."
(Thiollent, 1985: 11. apud Sih'a. 1986, p.49l. Acrescentaria ainda que.
Seguindo a tend~ncia de qUe re\'estiu-se a esta modalidade de
pesqll1sa nos pmses latino-americanos, a pesquisa pretendeu
IIlcorporar um engajamento sócio-político a sen'iço das classes
populares. Com a inauguração da primeira unidade da REPlJBLlCA.
optou-se por reformular a linha metodológica pre\'ista. quando então
encerrei minha participação no Projeto.
55
UMA SOCIEDADE EM SITUAÇÃO
INFRACIONAL
Por ób\'io que possa parecer, ~ mister reafirmar-se que a expressão
meninos e meninas de rua não se constitue em categoria social
autônoma, ou em unidade de conhecimento. A expressão ~ tão
somente a designação atual que remete a um segmento da infância
pobre brasileira. Em outras pala \Tas, as crianças que hoje se
encontram \'ivendo nas ruas de grandes centros urbanos não brotaram
espontaneamente, nem ahistoricamente no solo das grandes cidades.
Percebe-se hoje. atra\'~s da imprensa, dos meios de cOlllunicação em
geral. a orquestração de Ulll discurso que encontra solo f~rtil no senso
comum. no qual Se naturaliza o fenômeno social urbano dos
meninos e meninas de rua. Esta naturalização tem gra\'es
consequ~ncias sociais, quais sejam a indiferença pelo drama \'i\'ido
por estas crianças. a culpabilização da vítima, a omissão dos poderes
públicos e, consequ~ncia extrema, a des\'alorizaçãn da \'ida e o
extermínio de crianças. Para que Se reverta esta \'isão insidiosamente
anti-humanista aCerca da \'ida de milhareS de crianças brasileiras.
de\'e-se recolocar a questão dos meninos e meninas de rua numa
dimensão histórica da infúncia pobre no Brasil.
As CrIanças e J0\'ens que hoje habitam as ruas em busca da
sobre\'i\'~ncia são os filhos dos segmentos mais pauperizados da
classe trabalhadora brasileira. A trajetória de SeUs pais e a\'l)s passa
57
indubita\'dmente pdo processo de empobrecimento e pauperização
de parcdas da população, submetidas às consequ~ncias impostas pelo
moddo de acumulação internacional do capital. As crianças de rua
retratam apenas uma face da situação em que se encontra a infância
pobre do país. Uma face certamente hoje mais \'isí\"el. por habitarem
as \'ias públicas e assim tornarem ine\'ita\'dmente de domínio público
a condição de mis~ria de suas \'idas. Mas milhões de outras crianças
brasileiras também são \'itimizadas pela pel"\'ersa distribuição da
renda e da terra. Morrem silenciosamente. por falta das mínimas
condições de saúde e pda impossibilidade de receberem o quantum
mínimo de proteínas necessárias ú manutenção da \'ida. Seus pais.
estes sim. são os filhos abandonados de uma pátria-mãe nada gentil.
Os dados do último relatório do IBGE. 1991. são altamente
re\"eladores deste estado. Este abandono pode ser mensurado
conjunturalmente pela aus~ncia de políticas públicas que garantam à
maioria das famílias brasileiras o acesso a condiçi)es de saúde.
educação. moradia e emprego. Estruturalmente e\"idencia-se o
descaso pda situação das classes populares. pela manutenção de um
modelo econõmico e fundiário que nào deixa entre\'er caminhos para
conquista dos direitos de cidadào.
Remeter o problema às suas OrIgens. no entanto. nào garante uma
solução para ele. porque ~ certo que as dites nacionais ao trilharem
historicamente uma linha política. econõmica e social que exclue do
acesso à riqueza nacional a quase totalidade das classes trabalhadoras.
nào o L'1zem por ignoráncia dos efeitos desta política. \.:Ias esta
remissão pode contribuir para um reposicionamento da sociedade
civil, ou pelo menos de parcelas da sociedade que direta ou
indiretamente se sentem desconfortáveis com a gra\'idade da situação
da população infantil. Outrossim, apenas situar o problema da
int:"incia pobre no quadro da desigualdade entre as classes não é
suficiente para a compreensão das especificidades e singularidades
que o tema comporta. Não é apenas econômica a \'iolência que se
pratica contra essa população: à esta forma fundamental de \'iol~ncia
se somam outras formas específicas de exercício do poder. que se
explicitam na resist~ncia por parte dos meninos e meninas de rua
contra a submissão a um certo padrão social, contra o assujeitamento
e as di\'ersas formas de subjetividade que lhes são impostas.
(Follcault. M, Porque estudar o poder: a questão do sujeito. mimeo).
O Estado brasileiro e a criança pobre Até o fim do século passado
a tutela da infância pobre, des\'alida ou exposta. este\'e a cargo da
Igreja e da caridade pública. Coube até então a estas instâncias da
sociedade nacional a tarefa de assistir aos órfãos. aos miserá\'eis e
aos abandonados. estes geralmente frutos de uniões consideradas
ilícitas.
Apenas a partir do início do século XX o Estado brasileiro chamou a
si a responsabilidade sobre OS desígnios da infância pobre. como
historia Esther Arantes. em estudo sobre o campo social no Brasil:
"As iniciati\'as do Estado neste setor só ganham reledncia a partir do
início do século atual. moti\'ado. entre outros fatores. pela pressão do
mo\'imento médico higienista que se propaga\'a por todos os cantos
do Brasil desde meados do século anterior e pelo crescente
59
movimento de constituição da rede de ensino profissionalizante
separada da assist~ncia à infância pobre." (Arantes: 1989)
Para gerir esta Illwa responsabilidade, a República construiu uma
fundamentação jurídica atrav~s do Código de Menores de 1927. A
partir de então sob a tutela do Estado, as crianças abandonadas e
delinquentes teriam corno destino internar-se em instituições onde
deveriam sobretudo aprender algum ofício, além de serem submetidas
a um disciplinamento padrão.
A tutela do Estado sobre a infância pobre se consolida atra\'~s do
instituto do internamento. que por sua vez tem como pressuposto a
necessidade de proteger o menor abandonado de· uma situação de
patologia social. Instala-se a doutrina da situação irregular. que e
um passo jurídico em direção à penalização e mesmo a
criminalização da pobreza. Nesta direçào. a legislação propna ao
menor não pre,'~ medidas de apoio à família da criança que se
encontra em situação de abandono. destinando a esta criança medidas
de ressocialização que não tem sido historicamente mais que penas
disfarçadas. Especificamente em relação à parcela da população
infantil que termina sua trajetória de pobreza nas ruas. os chamados
meninos e meninas de rua. a análise do Juiz Franciso Amaral
evidencia a inversão do processo legal, que pune em última instância
com a privação da liberdade a criança pobre:
"Se nós olharmos os nossos meninos de rua ,'amos "er ( ... ) que eles
são o atestado eloqüente da fal~ncia de todas as políticas públicas.
60
Em relação a ele falhou a política de saúde: sem dúvida é um menino
com problemas de saúde. Falhou a política de educação:
escolarização inten·ompida. Falhou a política de segurança social, do
trabalho. Todas as outras políticas básicas falharam. Ele está numa
subcidadania e vive no mundo do subemprego, da subhabitação e da
subescolarização ... É o subcidadão." (A Criança e seus Direitos
PUC'FUNABEM, 1990,p.27) Este entendimento da situação
conduziria indubita\'e1mente a uma inversão de papéis: quem deve ir
para o banco dos réus não é a criança, que sofre. sem condição de
defesa. os efeitos dessa conjuntura, mas sim o Estado e a sociedade
brasileira, que se encontram nesta questão, em situação infracional.
A Política Nacional do Bem Estar do Menor, inspirada em princípios
autoritários do regime que se implantara em 1964, consolidou em
amplos setores da sociedade a \'isão de que ao Estado restava a
tentati\'a de assistência. recuperação, e vigilância de menores
abandonados e infratores. numa política expressa de controle social.
Sob esta doutrina generalizou-se a prática do confinamento. mal
dist~lrçado de pena educativa, do tratamento discriminatório e abusi\'o
contra crianças e a destituição do pátrio-poder das famílias que
cometiam o crime de pobreza. Os resultados desta política foram
desastrosos. Os internamentos compulsórios de criança real izam-se
em instituições totais. embrutecedoras e despersonalizadoras. onde
\'Ia de regra as crianças sào desrespeitadas em seus direitos
indi\'iduais. de liberdade. dignidade e respeito. Nas ocasiões de
internamentos são submetidas a práticas de cunho correcional e
repreSSI\'O, a uma rotina despersonalizante e humilhante. Deodato
61
Rivi~ra, após acompanhar a rotina de um ~stabelçcimento d~ guarda
de m~nor~s, constata:
"M~ninos e adol~sc~nt~s ficam ali ~xpostos, sem defesa alguma, ao
cOn\'Í\'io ~ ao contágio de casos graves de d~sequilÍbrio m~ntal,
depra\'açõ~s e pen'ersidades, o que cria situações de alto risco de
degradação pessoal ~ social, capazes por si sós de traumatizar ~
comprometer a normal ~\'olução de um organismo ~ um psiquismo
em formação." (Ri\'i~ra: 1987) Marques assim analisa o fracasso do
sistema tutelar brasileiro:
(o sist~ma) "não dçf~nd~ a soci~dad~, não proteg~ o Jo\'em. não o
recup~ra. ~ncaminha-o à r~incid~ncia e prepara o delinqüente adulto."
(i\:larqu~s: 1976) A doutrina d~ tutela e control~ social da pobreza.
que, como resumimos, \'igora no país com algumas nuanc~s desde o
início do século. \'em fundamentando práticas de confinamento,
opr~ssão e assujeitam~nto de crianças e adolçscent~s. práticas ~stas
qu~ ocupam o ~spaço dúxado pela aus~ncla de medidas
go\'ernam~ntais principalm~nt~ nas áreas d~ saúde e educação,
capazes de garantir o acesso ao status d~ cidadania ao conjunto da
nossa sociedade, As conquistas do Estatuto da Cr'iança e do
Adolescente
Em contraposição à ~sta r~alidad~. a sociedade civil organizada
propôs uma !1lwa política de proteção integral à infância ~
adolesc~ncia, Esta política consubstancia-se no artigo 277 da
62
Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n.
8.069, de 13 de julho de 1990) vem implantar no país uma nova
doutrina em relação à infância brasileira. "A base doutrinária sobre a
qual se assenta o novo Estatuto ~ o reconhecimento da criança e do
adolescente como sujeitos de direito e sua condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento" (Relatório do projeto de lei n. 5172, de
1990, Senado Federal\. Este no,'o ordenamento jurídico tem como
base a promoção e a defesa dos direitos da criança e do adolescente e
a responsabilidade do Estado e da sociedade civil quanto à proteção e
à garantia de acesso a esses direitos. O Estatuto introduz ainda, como
principais avanços em relação à legislação anterior, o fato de dirigir
se a toda a população infanto-juvenil do país, ao contrário do Código
de Menores que restringia seu raio de açào à criança em situação
iITegular, e o alargamento dos horizontes de atuação previstos, que
tem por fim modificar os fatos geradores do abandono, a superação
do estado de extrema carência das famílias, atrav~s da adoção de
políticas sociais básicas.
Contudo, passados quatro anos de ,'igência da Illwa Constituição e
dois anos da apnwação do Estatuto, constatamos dolorosamente
durante um ano inteiro de cOI1\'i,'ência com meninos e meninas de rua
do Rio de Janeiro, que empiricamente não se fazem notar os
benefícios conquistados pela nova legislação. E notório o pouco
empenho que os governantes a nÍ\'el federal, estadual e municipal
\'~m dispensando à regularização dos dispositivos pre\'istos na
Constituição e no Estatuto. Neste sentido o próprio autor da lei
atentava para as possíveis consequ~ncias do " ... hiato que ainda separa
entre nós o país legal do país real - hiato que é destinação deste
Estatuto contribuir decisivamente para eliminar." (Senador Ronan
Tito, Justificati\'as sobre o Projeto de Lei, apud Labanca,199I )
No presente trabalho serão apresentados alguns aspectos da vida
cotidiana de meninos e meninas de rua do Rio de Janeiro: como eles
elaboram seus projetos de vida em meio às limitações que lhe são
impostas: que significado atribuem às experiências institucionais a
que sào compulsoriamente submetidos: que \'alores atribuem à Escola
e ao Trabalho, categorias unanimemente evocadas para recuperá-los:
como reagem à \'iolência e ao preconceito sociais de que são ah'o:
como é enfim, construído o seu destino'!
A importância fundamental de estudos e pesqlllsas nessa area é a
possibilidade de se le\'antar as reais condições de \'ida da criança
brasileira. A partir da realidade empírica do drama \'i\'ido por essas
crianças, poderemos construir um conhecimento fecundo. capaz de
orientar ações políticas e inten'enções pedagógicas em consonância
com a Constituição brasileira e com o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Objeti\'amos ainda contribuir para a consolidaçào de uma !1lwa
postura e uma n(wa consci~ncia social sobre a questão dos meninos
e meninas de rua. Entendemos que a sociedade brasileira conseguiu
6-1.
nesta matéria grandes a\'anços na esfera jurídica, mas muito ainda há
que se caminhar na efeti\'açào de novas relações sociais.
65
MENINOS E MENINAS DE RUA:
UMA POPULAÇÃO MARGINAL?
REVENDO OS CONCEITOS DE MARGINALIDADE
Freqüentemente se atribui às populações urbanas de baixa renda, ou
de nenhuma renda. a classificação de populações marginais ou
populações marginalizadas. Os significados atribuídos a estas
expressões, contudo, estão muitas vezes atravessados por
ambigüidades e por conotações acentuadamente negati\'as. A bre\'e
re\'isão dos principais conceitos acadêmicos atribuídos à categoria
marginalidade. que a seguir enumeramos, tem como objeti\'o reduzir
possí\'eis imprecisões semânticas ou sociológicas.
O conceito de marginalidade tem sido objeto de inúmeros estudos. e
\'aria tanto no plano histórico quanto no plano ideológico. Há
correntes que atribuem a existência de grupos marginais a problemas
de integração social de ordens di\'ersas: problemas de personalidade.
desajustamentos culturais. inadaptação a no\'os padrões sociais. etc.
São as chamadas correntes funcionalistas. que tratam do fenômeno da
marginalidade como sendo um problema em si. que pode ser
superado por inter\'enções pontuais. sem se abalar a estrutura social.
Dentre os autores que \'êm estudando as populações marginais da
Am~rica Latina. podemos citar Luiz Pereira e o grupo cepalino.
Aníbal Quijano (197R I. representante da Cepa!. nos dá duas
67
abordagens que resumem as diferentes discussões sobre a
marginalidade: o enfoque individual e o enfoque social. Na \'ertente
individual, as formulações versam sobre a personalidade marginal.
Neste sentido, está na pessoa o problema de ajustamento ou desvio de
comportamento esperado socialmente. Reconhecendo ou nào
influências sociais sobre o indivíduo, esta COITente nào se afasta da
\'isão psicológica do problema.
Sem desconsiderar a questão da personalidade marginal. a \'ertente
social concentra sua atenção no sistema social como tal, e trata mais
dos grupos sociais do que dos indivíduos. A preocupação com esses
grupos acentuou-se a partir do crescimento das aglomerações
urbanas. É evidente que os problemas decorrentes da urbanização
desenfreada acentuam nào só a pobreza. mas afetam diretamente as
condições de \'ida de grandes massas humanas. Hoje colwi\'emos com
elas e não sabemos exatamente nem como nem o que fazer. a fim de
ajudar a incorporá-Ias na sociedade moderna, com um quantum de
exigência de bem estar social. Quijano ( 1978). em suas notas.
agrupa oito postulações básicas sobre a marginalidade como
fenômeno social:
I. A marginalidade como situação ecológica: esta concepção ~ a mais
genáica. e remete a um processo específico de urbanização. ocorrido
notadamente nos países latino-americanos após a Segunda Guerra.
quando grandes massas de migrantes originários do campo passaram
a se instalar na periferia das cidades. atraídas pelas t~1cilidades da \'ida
urbana. O termo marginal tem. portanto. sua primeira acepção
68
referida às condições geográficas de instalação de populações pobres,
à margem das cidades.
2. A marginalidade como cidadania limitada: derivada dos estudos de
Marshall, identifi·ca os limites dos direitos do cidadão. O conceito de
cidadania de Marshall postula que todos os membros de uma nação
dewm gozar dos direitos civis, econômicos, políticos e sociais que a
sociedade houver conquistado num determinado momento histórico.
Nesta acepção qualquer limitação desses direitos provocaria a
situação de marginalidade.
3. A marginalidade como participação na cultura da pobreza. Aqui a
marginalidade ~ tratada como fenômeno psicossocial. como um
sentimento de não-pátencimento e de depend~ncia. Nesse sentido,
t~1lta às pessoas marginais consciência de classe que lhes permita ,'er
seus problemas individuais como problemas de um grupo ou classe.
Para os autores da cultura da pobreza, essa situação engendra uma
sensação de impot~ncia e desamparo.
~. A marginalidade como atraso no desenvolvimento econômico.
Segundo essa visào, com o desenvolvimento econômico pode
coexistir o desem'oh'imento de uma população marginal. Ela consiste
na completa falta de participação de alguns setores da população nos
benefícios materiais e culturais proporcionados pelo desell\'olvimento
econômico da sociedade.
69
5. A marginalidade como falta de participação no processo de
integração social. Os autores que advogam esta tese centralizam sua
atenção na questão da participação como fundamento da eliminação
da marginalidade. São considerados marginais, neste caso. os grupos
que não participam dos bens. ser\'iços e valores da sociedade. e ao
mesmo tempo não t~m nenhuma forma de atuação politica na
sociedade. A solução do problema da marginalidade estaria atrdada à
integração desses grupos nas estruturas organizativas e institucionais.
6. A marginalidade como situação inconsistentemente estruturada na
sociedade. Refere-se à situação de grupos resultantes do processo de
integração e conflito de determinadas sociedades formadas por uma
pluralidade de grupos culturais. Esse enfoque certamente não se
\'erifica no caso em estudo. Com efeito. essa concepção caracteriza.
mais comumente. minorias ~tnicas em contlito com a cultura
hegemônica de um país. Entretanto. no caso de populações jU\'enis
que praticamente se criam nas ruas de grandes cidades. parece estar
se \"erificando um processo de rompimento dos padrões culturais
predominantes nas sociedades industriais. que t~rn por pilar o
desel1\'oh'imento econômico e a criação da riqueza atra\'~s de uma
modalidade específica de trabalho - o trabalho assalariado.
A aus~ncia de um disciplinamento indispensá\'e1 à organização do
trabalho industrial caracteriza o modo de \'ida de crianças e jovens
longe dos \'Ínculos t~1miliares e institucionais. A partir da nào
con\'i\'~ncia com estes valores sociais. geralmente fOljados desde
70
muito cedo por instituições sociais primordiais como a tàmília e a
escola, tendem a construir uma identidade social própria.
Ao mesmo tempo que introjetam valores e comportamentos típicos
das classes hecemõnicas da sociedade brasileira, desenvolvem --também certos modos de vida que podem ser caracterizados como
uma cultura de resistência.
Oli\'en observa este comportamento dual nas classes pobres
brasikiras:
"Especificamente em relaçào aos pobres poder-se-ia sugenr que
existe um processo dialético pelo qual compartilham simultaneamente
traços de cultura dominante e apresentam elementos nào pertencentes
a esta cultura. Assim, enquanto as classes altas das cidades brasileiras
se identificam prontamente com os valores e costumes dominantes, as
classes baixas desen\'olvem mecanismos adaptativos que lhes
permitem lidar com as relações capitalistas de produção e. ao mesmo
tempo. manter sua identidade."
A população em estudo, no entanto, se distingue desta parcela
genérica que se caracteriza como classe pobre. Os meninos e meninas
de rua \'ão mais longe no rompimento de padrões culturais.
especificamente em relação ao modo de produção capitalista. pois
demonstram uma forte inadaptação ao trabalho industrial. Já em
relação a outros aspectos culturais. pudemos também obsen'ar o
processo dialético de que fala o autor citado.
71
7. A marginalidade como não-pertencimento a um sistema dominante
numa sociedade. Esses grupos podem ser reconhecidos como vivendo
em condições abaixo da classe baixa urbana, ou seja, em condições de
miséria absoluta. Em geral sào grupos originários do fenômeno de
migraçào.
8. Outras variantes. Quijano (1978) aqUI enumera alHumas ::o
formulações sobre o conceito de marginalidade e que, segundo ele. a
identificam com a pobreza, com o isolamento cultural, com a situação
de dominados nas relações de poder das classes dominantes, com
condições de minorias de grupos de classe alta que, no entanto, estão
afastados dos padrões de conduta social vigentes.
Finalizando, o autor ~onclui que, qualquer que seja a concepção que
os estudiosos do problema adotem sobre marginalidade, embora
diferindo em alguns pontos, todos eles concorrem para a questão da
integração e da participação. A partir daí Quijano conceitua, embora
genericamente. marginalidade como "Um modo limitado e
inconsistentemente estruturado de pertencimento e de participação na
estrutura geral da sociedade, seja a respeito de certas áreas dentro de
sua estrutura dominante ou básica. seja a respeito do conj unto destas.
em todos ou em parte de seus setores institucionais." (p.43)
Assim, para o autor a principal característica de um grupo marginal é
a forma de participação que se estabelece entre este e o conjunto da
sociedade.
72
Outro estudioso da questão ~as populações margmals, Lúcio
Kovarick, relaciona a marginalidade à forma de inserção destas
populações a um quadro sócio-econômico específico, dentro de um
sistema produtivo global. Nas palavras do autor, "A marginalidade é
uma forma de articulação estrutural necessária e intrínseca a um
modelo específico de acumulação capitalista qUe se dá no quadro de
uma economia dependente e monopolista" (Kowarick:1977)
Nesta ótica o fenômeno da marginalidade urbana é produzido pelo
modelo econômico adotado notadamente por países latino-
amencanos em razão de uma grande dependência política e
econômica aos países que hoje compôem o Primeiro Mundo. Mais
do que um problema de falta de integração cultural, social e
econômica, a existência de grandes contingentes de populações
marginais é consequência do modelo de capitalismo periférico. que
privilegia um estrito desenvolvimento econômico (baseado em
índices) em detrimento de questões sociais como qualidade de vida
da população, traduzidas pelo acesso a conquistas sociais mínimas
como educação, saúde, moradia, transporte e trabalho.
Esta realidade sócio-econômica está estruturada na sociedade
brasileira. O contingente populacional inserido na categoria de
marginalidade é inegavelmente relevante em termos das relações
sociais que estabelecem com o conjunto da sociedade. a ponto de ser
considerado pelos estudiosos como "pólo marginal" da estrutura
econômica global. (Quijano, 1978)
7" -'
Na opinião desses autores, esse pólo é inerente a um modelo sócio
econômico como o brasileiro, caracterizado como de capitalismo
periférico e dependente, e com todos os problemas de uma
industrialização baseada em tecnologia externa, portanto com
capacidade limitada de gerar empregos propriamente industriais: com
problemas específicos de crescimento urbano, em consequência de
uma estrutura fundiária retrógrada, que impossibilita qualquer
iniciativa e distribuição de renda, alijando populações inteiras do
acesso à ten'a: e com uma herança escravista e oligárquica que
dificulta a integração de setores populares ao modo de produção
industrial, contribuem para a conformação do quadro crítico de
marginalidade urbana no qual discutiremos a problemática de
crianças de rua.
MARGINALIDADE E MENINOS E MENINAS DE RUA
Rudolf Strahm (1991), um autor alemão que estudou os problemas
dos impasses do desenvolvimento de países do Terceiro Mundo,
concluiu que a única coisa que os países em desenvol \'imento têm
conhecido é o desenvolvimento do subdesem'olvimento. Haveria
exemplo mais ilustrati\'o desta afirmação que a produção social da
categoria meninos e meninas de rua e de seu extermínio sistemático
pelo mesmo processo de degeneração social que engendra as
condições de existência dessa realidade'!
74
Ao descrevermos resumidamente essas diversas concepções de
marginalidade, constatamos que a situaçào de meninos e meninas de
rua enquadra-se em quase todas essas visões teóricas do fenômeno de
marginal idade.
É especialmente em razão da notória caratcterística concentradora,
por um lado, e excludente, por outro, da formação econômica
brasileira, que atinge níveis inimagináveis de perversidade, que o
quadro da população infantil oriunda das classes populares ganha os
contornos atuais.
No caso de populações urbanas, a consequência maIs imediata da
falência do modelo econômico adotado - incapaz de desenvolver
minimamente políticas públicas e de promover a integração de uma
crescente massa marginal - ~ o surgimento de crianças abandonadas à
própria sorte, vivendo por conta própria pelas ruas dos grandes
centros urbanos.
MARGINALIZAÇÃO ECONÔMICA E CRIMINALlDADE:
RELAÇÕES HISTÓRICAS
Na discussào sobre marginalidade e cnanças de rua há ainda um
tópico extremamente contundente a acrescentar: ~ o que conceitua
marginalidade no sentido vulgar de criminal idade. Isto porque, a
população infanto-juvenil que ,'ive nas ruas, longe do alcance de
políticas públicas e cada vez mais distante do convívio da família e
75
de uma possível integração social, está sob forte intluência do
chamado mundo do crime, conforme observado na fase de
entrevistas. Os meninos e meninas de rua são com frequência levados
a optar por padrões de comportamento propostos por toda sorte de
aliciadores, vendo na escalada do crime praticamente sua única
esperança de ascensão social ou, como eles dizem, "de ser alguém na
vida".
Ao serem levados à criminalidade, cujos perigos inerentes só são um
pouco maiores dos perigos que já enfrentam na miséria das ruas,
surge-lhes a oportunidade de participação num grupo social
estruturado e que \'aloriza de alguma forma suas existências,
atribuindo-lhes um IUl.!ar de sujeito social. .... .
O problema da criminal idade infanto-juvenil não é no\'o, e tem sido
relacionado por estudiosos do assunto a sociedades com senos
problemas de desequilíbrio econômico e social. Alberto Passos
Guimarães, em seu clássico estudo sobre as chamadas "classes
perigosas" (1982), verifica uma onda crescente de criminal idade
infantil na Inglaterra do século XIX e atribui este tàto à incapacidade
estrutural daquele país. em sua t~1se inicial de industrialização. de
oferecer empregos nas cidades à crescente população que I1llgra\'a
dos campos.
A ausência de empregos. os baixos salários e a tàlta de condições
sociais de manutenção das famílias oriundas de uma situação rural e
de parte do proletariado urbano. provocou a desagregação de parte
76
das classes populares, que, de um processo de pauperismo extremo,
caminharam para uma saída anti social.
Este fenômeno tomou tal proporção na pnmelra metade do século
XIX que esta população foi classificada de "classe perigosa", que
denominava um expressivo contingente populacional vivendo à
margem da sociedade e adotando padrões anti sociais de conduta.
A participação de crianças e jovens no mundo do crime mobilizou
setores da sociedade inglesa da época. Guimarães localiza na
literatura jurídica a estimativa de 30.000 crianças abandonadas no ano
de 1876, só na cidade de Londres. Já naquela época a situação da
infância era atribuída ao processo de industrialização.
Vale a pena transcrever parte do texto de uma comissão parlamentar
dos idos de 1816-1818 sobre a criminal idade infantil. que para nós
parece de extrema atualidade. visto que a sociedade brasileira, quase
dois séculos mais tarde, vive com grande intensidade problemas
sociais decOlTentes de uma estrutura político-econômica tàlida.
"É muito fácil acusar essas pobres crianças e atribuir sua má conduta
a uma propensão inata para o \'Ício: mas a questão principal é saber se
qualquer ser humano, nas circunstâncias em que muitos deles se
acham, pode razoa\'e1mente proceder de outra maneira: grande
número deles são le\'ados ao roubo como se fosse a um ofício ( ... )
77
outros sào órfãos e outros completamente abandonados por seus pais:
eles só sobrevivem ou mendigando ou furtando, e à noite eles \'ão
abrigar-se em telheiros existentes em qualquer rua, em locais vagos
nos mercados e quando estào presos ninguém vai lhes \'isitar, como
se não possuissem amigos em nenhuma parte: sào alvo de tratamento
severo, freqüentemente condenados ao açoite, prática que concorre a
enrijecer sua posição e a ainda mais degradá-los. Muito pode ser feito
com esses rapazes usando a bondade: raramente alguém os trata sem
arrogância e sem o emprego da força e eles estão de tal modo
habituados a que os tratem como seres sem moral e sem sentimentos
que quando recebem promessas de gestos de bondade, dificilmente
acreditam que elas sejam sinceras."
Mesmo a prática de infanticídio é relatada como um fenômeno
obsel'\'á\'e1 historicamente em condições de miséria social. No ano de
1863 o extermínio de crianças, da mais variada forma, chegou a ser
denunciado pela imprensa inglesa como "o mais comum dos crimes".
Na história brasileira c,'idenciam-se as condições sócio-econômicas
que propiciam o crescimento da criminal idade urbana. Segundo
Guimaràes, pode-se arrolar duas conclusões de ordem geral para este
fenômeno: " primeiro ... a de que quanto maior a concentração
demooráfica tanto mais numerosas tendem a ser as ocorrenClas e '
criminais, quer em números absolutos, quer em números relati\'l)s. E
em se!.!undo lu!.!ar ... a de que a incidência de maiores taxas de ... ...
criminal idade acompanha o agra\'amento das condições de \'ida da
classe trabalhadora. e. em particular das classes mais pobres. que
78
incluem num conceito as populações de baixa renda e as populações
sem nenhuma renda."
Este debate está se acinoando atualmente nas grandes cidades
brasileiras. Há uma grande mobilização por parte de setores das
classes médias e altas que se sentem ameaçadas pelo avanço da
criminal idade e vêem na repressão o único caminho para a paz
social. Este ponto de vista, entretanto, revela a profunda cisão
existente na sociedade já que a paz social que pudesse advir desse
comportamento seria em benefício exclusivo e imediato de uma
mínima parcela da população. De forma perversa e contraditória é
mesmo possível que só tendo atingido níveis tão altos que
praticamente nenhuma pessoa que habita grandes centros urbanos
pode ignorar as degradantes condições de vida da população infanto
juvenil, ainda que seja por sentir-se pessoalmente ameaçada, é que se
vislumbra hoje possibilidades de reversão deste quadro. Em outras
palavras, só quando chegou a adotar práticas criminosas é que o
drama desta população veio a sensibilizar alguns setores da
sociedade. Enquanto se comportaram como uma geração de
mendigos, como seres humanos descartáveis, removíveis e objeto de
toda sorte de cOITupção assistencialista, poucos olhares se voltaram à
questão, a ponto de se poder classificar essas crianças e jovens que
vi\'em nas lUas como uma população "invisível".
A educadora Ana Vasconcellos, que se dedica a um trabalho com
meninas de rua de Recife. relata a observação de que crianças que
viviam desde muito pequenas como pedintes no centro da cidade
79
compreender porque só eram vistas quando roubavam ...
Pode-se perfeitamente ampliar esta observação para as relações que a
sociedade em geral estabelece com a população de rua.
NOVAS TRIBOS URBANAS?
A partir da presente revisão do conceito de marginalidade, cremos ter
configurado a existência de uma população intànto-juvenil de rua
como uma decOlTência do modelo econômico adotado no país. Mas,
embora reconhecendo a origem econômica do fenômeno, podemos
supor que ele já se revestiu de características mais abrangentes, e
tende para uma situação de enraizamento cultural nas grandes cidades
brasileiras. Talvez pelo longo tempo de descaso oficial pelo drama
das populações miserá\·eis que terminam por habitar estes espaços
urbanos, tempo este suficiente para o estabelecimento de duas
gerações - em alguns casos já estudados, até três gerações de rua - já
se possa reconhecer nos grupos de crianças e adolescentes a formação
de uma minoria cultural. Isto significaria que não bastaria mais, para
reverter o quadro, apenas oferecer oportunidades de inserçào no
processo produtivo e social dominante, porque este grupo se
comporta de acordo com padrões culturais e código de valores
específicos, desenvolvidos ao longo das vivências à margem dos
padrões dominantes.
80
Fdix Guattari, no seu livro Revolução Molecular, enxerga aspectos
positivos e transformadores na constituição de grupos marginais por
ele observados:
"A marginalidade ~ o lugar onde se podem ler os pontos de ruptura
nas estruturas sociais da economia desejante coletiva. Trata-se de
analisar a marginalidade não como uma manifestação
psicopatológica, mas como a parte mais \'iva, a mais móvel das
coletividades humanas nas suas tentativas de encontrar respostas às
mudanças nas estruturas sociais e materiais" (p.46).
Um enfoque desta natureza, que reconheça nestes grupos uma
identidade social própria, capaz de propor, ou indicar saídas originais
para si próprios, poderá abrir caminhos para o atual impasse
verificado na nossa sociedade.
As iniciativas de integração social de menores de rua à sociedade
têm estado a cargo de instâncias corretivas ou assistencialistas.
Pouco se tem feito nas esferas gO\'ernamentais. que, \'ia de regra.
batem na tecla de expansão de vagas na rede pública de ensino e em
tentativas de profissionalização a curto prazo, como resposta quase
automática aos desafios da marginalidade infanto-ju\'enil.
É de se notar a pressa com que as autoridades. ao proporem qualquer
açào de recuperação de menores, passam a informar à sociedade em
geral que a medida prevê a profissionalizaçào imediata destes jo\'ens.
Embora a quase totalidade de experiências oticiais nào deixem
81
dúvidas quanto ao fracasso da Pedagogia do Trabalho Imediato como
metodologia de integração social, o trabalho, geralmente
desqualificado socialmente e des\'alorizado economicamente continua
sendo o único caminho vislumbrado. Pretendemos desenvolver este
argumento mais demoradamente quando enfocarmos questões
relativas ao Trabalho. Ao mesmo tempo, procuraremos refletir, com
base nas informações fornecidas por meninos e meninas de rua, sobre
a causa do freqüente fracasso de iniciativas de ressocialização atra\'~s
da escola e do trabalho.
As propostas de ressocialização \'Ia de regra apenas camuflam
atitudes de enquadramento das camadas marginais a um suposto
destino de classe. atrav~s da aceitação de uma condição social.
cultural e principalm~nte econômica de segunda categoria, Em sã
consciência nào se haverá de propor a uma I1lwa geração de
brasileiros que se "integrem" a uma sociedade em franca crise de
valores ~ticos. Alberto Passos Guimaràes ( 1982) lembra-nos uma \'ez
mais que nas sociedades capitalistas "a moral dominante ~ a moral
das classes possuidoras" e neste caso os representantes brasileiros
deste segmento deixam muito a desejar como exemplos a serem
seguidos. Guimarães desenvoh'e a seguinte análise sobre as classes
pauperizadas que adotam estrat~gias de vida não sancionadas
socialmente: "Uma obsen'ação maIS atenta das ocorrências
criminosas nos leva à cOIl\'icção de que elas não se geram. nem se
mO\'em num modo anômico. sem obediência a nenhuma direçào
normativa, a nenhum conjunto de regras ou valores, Ao contrário. o
banditismo urbano aparece e se expande como forma organizada de
82
um comportamento social divergente ou discordante (evito o termo
desviante) da ordem e do comportamento social estabelecido
segundo regras, conceitos e valores ditados pelas classes que detém o
poder." (As Classes Perigosas, Graal, 1982, p.l88)
Esta observação é fa11amente comprovada aqUi para o caso dos
meninos e meninas de rua na cidade do Rio de Janeiro.
83
VIVER CRIANÇA NA RUA
OS VíNCULOS COM A RUA
Os estudos mais recentes que analisam crianças e adolescentes que se
encontram nas ruas os distingue em dois grupos: . . .
o pnmeIro e
caracterizado por cnanças que possuem família e desenvolvem
alguma atividade econômica na rua, mas retornam regularmente para
o convívio familiar: o segundo é constituído por crianças e
adolescentes que, possuindo ou não família, permanecem na rua e lá
estabelecem formas próprias de relação social, de trabalho e de
sobrevivência. Quanto a esta distinção, ambos os grupos pesquisados
(Cinelândia e Tijuça) se caracterizam, na maioria dos seus
componentes, pelo rompimento dos vínculos familiares: os demais
apresentam sinais de estarem em franco processo de desvinculação
familiar. Todos têm nas ruas seu maior referencial de vida.
Romper com a família não pode ser considerado um gesto formal,
nem iIl'evogável. O rompimento se dá quando as crianças não mais
se submetem à autoridade e à proteção familiar, nem habitam
regulmmente a casa dos pais ou substitutos. Isto nào significa,
entretanto, que as crianças e adolescentes percam de forma definitiva
o contato com a família ou nào mais existam laços afetivos entre os
seus membros (quando ela existe naturalmente). O rompimento
enunciado é sobretudo em relação à convivência regular e às regras
de compOltamento familiares.
85
A CONSTITUiÇÃO DA IDENTIDADE
Grande parte dos jovens se identifica por apelidos e alguns têm muita
dificuldade em se lembrar de seus nomes. Outros simplesmente
inventam um nome para substituir o nome familiar, que não
conhecem ou não valorizam. Esta prática se distancia dos padrões
civis que balizam as relações numa sociedade contratual, e que
instituem a categoria de indivíduo como um de seus pilares.
Na sociedade moderna, formalmente o processo de constituição da
pessoa em indivíduo inicia-se com o registro civil de nascimento e é
reforçado desde a infância pelas instituições da família e da escola.
Porém, o segmento da população que este grupo integra tem sido
historicamente alijado dos direitos civis. À semelhança de outros
brasileiros, como, por exemplo, largos segmentos da população rural,
estes meninos e meninas "inexistem" civilmente, e podem levar uma
vida inteira sem estabelecer relações formais com a sociedade civil.
Perversamente muitos deles só são reconhecidos oficialmente como
cidadãos ou quando são tlagrados em atos infracionais (cidadãos de
deveres, não de direitos), ou quando morrem. Surpreendentemente.
esta é uma realidade compartilhada por um contingente de 38%, de
brasileiros que, segundo pesquisa do IBGE realizada em 1990, não
possuem sequer registro civil de nascimento. Se comparada esta
realidade com o processo relativo à formação para a cidadania que se
oferece às crianças de classes média e alta, constataremos uma grande
distância. Muitos hábitos familiares e práticas pré-escolares
86
reforçam a imp0l1ância do reconhecimento do nome como fator
fundamental da formação da identidade pessoal.
Já nos grupos de rua estudados; receber um apelido funciona como
um ritual de iniciação, uma forma de aceitação do novo membro pelo
grupo. No caso dos meninos, este apelido na maior parte das vezes
refere-se a algum traço caricatural da aparência física (beiçola,
mãozinha, neguinho, careca, etc). Esta prática, que não foge a uma
tradição brasileira popular, sugere uma facilidade de identificação
entre os integrantes de grupos diferentes, já que as cnanças
freqüentam vários pontos de encontro na cidade, em decolTência do
que alguns não estabelecem relação pessoal com todos os demais
membros. Quanto às meninas, os nomes que adotam geralmente têm
conotação positiva. .
o novo nome é normalmente valorizado pela cliança, sugerindo uma
f0l1e relação com o grupo da rua. Muitas vezes a criança não se refere
mais ao nome familiar, ou incorpora o novo a outros que já possue.
Exemplos: Nilda (Joselaine)
Aninha (Lucilene)
Chinesa (Valdicéia)
Adriana (Rosemary)
Fora do contexto da cultura dominante, poderia se supor, como
hipótese, que o processo de formação de identidade desses jovens se
dá por etapas, ritual mente reconhecidas. como acontece entre
87
algumas culturas indígenas, onde em diferentes fases da vida o índio
adota novos e diferentes nomes para, simbolicamente, representar
um novo status social ou etário adquirido.
Há, neste sentido, o exemplo de uma moça de 16 anos que, ao dar à
luz um bebê, numa maternidade para onde fora encaminhada por
suas educadoras, informou no seu registro de entrada no hospital um
nome adotado na rua, diferente do que consta na certidão de
nascimento, e este nome constou da certidão do bebê como sendo o
nome da mãe.
Ao ser interpelada pelas educadoras sobre o motivo que a levou a
declarar um nome que não era o seu, ela argumentou que achava o
outro nome mais bonito, e que não podia imaginar que isso fosse
complicar o registro de nascimento da própria filha. A jovem em
questão só teve conhecimento do nome dos pais e data de seu
nascimento aos quinze anos, pelo esforço das educadoras em
recuperá-lo numa das muitas instituições de abrigo de menores pelas
quais ela havia passado. Fenômeno semelhante ocorre em relação à
idade. Por não conhecerem as datas de nascimento, pela inexistência
ou por ignorarem o paradeiro do registro de nascimento, eles
declaram uma idade presumível. Grande parte das crianças nào sabe
quando faz aniversário e ignora ainda informações precisas com
respeito ao nome dos pais e parentes, local de nascimento e outros
dados.
88
Por ironia, essa condição pré-civil acaba por facilitar algumas
estratégias de sobrevivência. Em relação à idade, todos os
adolescentes temem a passagem à maiOlidade, quando nào terão nem
mesmo a proteção formal da legislação, e tentam se beneficiar de
possuirem geralmente aspecto franzino para permanecerem na
condição de menores. A ausência de documentação, os múltiplos
nomes, a incerteza da idade funcionam como uma válvula de escape
aos mecanismos de controle estabelecidos pelas instituições sociais
que, via de regra, tendem a criminalizar o comportamento dessa
população.
Eis alguns exemplos registrados em entrevistas:
a)Multiplicidade de nomes:
Entrev.: Qual o seu nome?
Menino: Valdenir, não, Valdenir não. Meu nome é Marcelo ...
b )Ince11eza Quanto ª idade:
Entrev.: Quantos anos você tem'!
Menino: Tenho onze anos.
Entrev.: Você sabe o dia que você nasceu, a data do seu aniversário'!
Menino: Faço aniversário dia 27 de setembro
Entrev.: De que ano?
Menino: Isso eu nào sei ...
Entrev.: E como você sabe que tem onze anos'?
89
Menino: Eu não tenho onze anos, eu tenho quinze anos. Eu nasci em
1975, não é'?
Entre\'.: Então você fez 16 anos em setembro ..
Menino: Não, não, eu ainda vou fazer quinze anos ...
Durante a fase de entrevistas sobressairam-se alguns depoimentos
onde meninos e meninas deixam perceber que valorizam o fato de
possuirem documentação pessoal, e que isso os diferencia daqueles
que ainda nào possuem os documentos. Um menino de doze anos, ao
dar entrevista, não titubeou em aconselhar o companheiro a inventar
os dados pessoais que não conhecia, apenas para não parecer em
desvantagem .
Entre\': Qual o nome ~o seu pai e da sua mãe?
Menino: Meu pai eu não sei não, meu pai já mOlTeu ... Minha mãe é
Maria Emília Cabreiro de Albuquerque.
Segundo menino: o nome do pai dele é ...
Terceiro menino: fala qualquer nome, cara ... ~. '. I.. ,
Menino: Ah é Joni, é Jonas ...
Entrev.: (para o terceiro menino) Você também falou qualquer nome
para o seu pai?
Terceiro menino: Eu não, tia, eu tenho até prova, mas quando não
sabe, fala qualquer nome ...
Há também o exemplo de um rapaz que havia completado dezoito
anos recentemente e estava muito preocupado com a sua situação na
rua, porque não se dispunha a trabalhar para os traficantes da área.
90
Ele tentava conseguir um atendimento em instituições para menores,
com o at1ifício de utilizar a ceI1idão de nascimento do irmão, que
tinha de fato dezessete anos. Como o irmão havia conseguido um
trabalho com carteira assinada, no qual precIsara comprovar
maioridade, os dois trocaram de documentação e um passou a
responder pelo nome do outro.
Comportamentos desta natureza, que superficialmente poderiam ser
classificados como uma indesejável burla às regras sociais, ou mesmo
à generalização do "jeitinho" para se fugir à severidade da lei,
encontra uma interessante análise no pensamento de Calligaris: "A
tradição do jeitinho é um epifenômeno da marginalidade. Mas a sua
nobreza tem que ser considerada numa estrutura onde a origem da lei
aparece como uma prepotência escravizante e o ato nas margens é o
lugar de onde se espera uma dignidade do sujeito. Deste ponto de
vista, o jeitinho nào parece ser o símbolo de um crônico
subdesenvolvimento simbólico: ele é também uma esperança"
( Hello Brasil, Ed. Escuta, 199I.p.113)
No exemplo aqui citado, o comp0l1amento do jovem foi motivado
exatamente pelo desejo de "ganhar" mais um ano, durante o qual ele
buscava desesperadamente conseguir mudar o curso de sua vida. A
iminência da condição de maioridade provoca uma grande apreensão
entre os adolescentes que vivem na rua, e eles resumem as opções de
vida que os aguarda: "virar bandido, mendigo ou defunto". A
relação com o tempo e com o espaço
91
Com a sucessào das entrevistas, pude verificar que os jovens nunca
respondiam com precisào a perguntas que incluiam contagem de
tempo. Por exemplo: há quanto tempo você saiu de casa? Quanto
tempo você estudou nesta escola? Com que frequência você visita sua
mãe'?, são sempre respondidas com um "não sei", ou com uma
expressão do tipo "faz muito, muito tempo".
Mesmo em relação a situações no presente foi possível verificar essa
dificuldade. Por exemplo, na excursào já mencionada, que tinha
duração prevista de três dias, e as crianças sabiam disso, pois haviam
participado do planejamento, houve uma reclamação generalizada na
hora de retornar, pois eles afirmavam que ainda nào havia passado o
tempo combinado.
o tempo parece ser tomado numa perspectiva diversa da adotada por
um padrão burguês a que estão submetidas desde cedo as crianças de
classes sociais mais favorecidas, incutida fundamentalmente através
da escola. Sem horários a cumprir, sem a rigidez de uma rotina pré
estabelecida, as crianças quantificam o tempo de acordo com fatores
que interferem e modificam sua vida cotidiana.
A dimensão psicológica do tempo torna-se maiS evidente nas
observações dos meninos e meninas. As experiências agradáveis
"duram" pouco, como nas observações sobre a excursão, já algumas
horas passadas na delegacia, à espera da liberdade, são contabilizadas
como "muitos dias, muito tempo".
92
Em relação à contagem do tempo, pode-se distinguir algumas
categorias contrastantes que são relevantes para o gmpo: tempo de
menoridade versus tempo de maioridade; tempo de frio versus tempo
de calor; a noite versus o dia; tempo de internamento (ou prisão, ou
clausura) em relação ao tempo de liberdade.
Os gmpos de jovens que são atendidos por projetos de educadores de
ma vão aos poucos introjetando a contagem do tempo, pela
identificação de eventos sociais como Natal, Carnaval, etc e pela
repetição de eventos nos locais onde "ficam". "Puxa, tio, já passou
um tempão que eu estou na Cinelândia, se lembra da outra feira do
livro que teve aqui?" A contagem das horas, uma dificil percepção
para quem passa todo o tempo na rua, é percebida com a mudança
dos plantões dos policiais da área. "Deve ser cedo, porque aquele
guarda ainda não chegou ... "
Uma interessante observação é a referência que o gmpo faz ao tempo
de vida na rua. Quando se formula genericamente a pergunta "há
quanto tempo você vive na rua?" geralmente as crianças informam o
que elas supõem quantificar o último período de retorno às ruas.
Exemplifica esta observação a primeira entrevista realizada com uma
jovem que é "cria de instituições", ou ~eja, jamais conheceu pai, mãe
ou substitutos, e passou a infância "no colégio interno".
Entre\': Qual a sua idade?
Menina: Dezoito
Entrev.: Como é o nome de sua mãe'?
93
Menina: Não tenho, aliás, não conheço
Entrev: E pai, você conheceu'!
Menina: Não. Eu nào conheço ninguém da minha família.
Entrev: Quem você conheceu, quem te criava'?
Menina: Minha madrinha
Entrev.: Há quanto tempo você está na rua'!
Menina: Cinco, seis meses.
Entrev: Você morava com sua madrinha'?
Menina: Não, morava nos colégio interno, fugi ...
Amiga: A madrinha só ia lá no colégio, visitar ela.
Com a convivência maIS prolongada com esta memna, pude
recompor os fatos. Na verdade da "vive" em Copacabana há muitos
anos, pelo menos cinco, de acordo com o programa SEMPRE VIVA.
o período de "cinco, seis meses" a que ela se referiu na primeira
entrevista relacionava-se ao último período em que a adolescente
esteve internada.
Um menino também respondeu com a mesma lógica. Ele deixou a
casa dos pais há pelo menos dois anos, mas respondeu que está na rua
"mais de um mês". Ao recapitular com ele o tempo passado na rua,
compreendi que ele se referia a mais r~cente fuga que empreendeu de
uma instituiçào de f.!uarda de crianças. '-' .
As respostas sugerem que a permanência na rua parece ter um caráter
provisório na percepção das crianças. Basta utilizar na pergunta
verbos que conotem maior grau de sedentarismo, como morar, viver,
94
que eles passam a se referir à casa dos pais ou a comunidade de
origem. Para a vida na rua eles selecionam utilizar as expressões
ficar, dormir ou estar, mesmo que em alguns casos estejam se
referindo há períodos de até dez anos de permanência na rua.
Menino: Eu moro no Recreio, mas eu fugi, tem dois anos.
Entrev: E agora, você mora qui na praça?
Menino: Não, eu fico lá no Leme
Visto que o tempo é o principal regulador da vida moderna, ou como
resume a máxima: "tempo é dinheiro", a flagrante diferença no trato
da questão temporal aCaITeta importantes consequências nas relações
que se tentam estabelecer entre os meninos e meninas de rua e
instituições diversas da sociedade ..
o Espaço A relação que os meninos e meninas têm com o espaço da
rua, como local de vida e residência, é marcada pela forte influência
da dispersividade, característica de um ambiente público e aberto. O
condicionamento que o espaço da rua impõe às relações que lá se
estabelecem, forçou-me a um verdadeiro estágio de adaptação para
que pudesse atuar com alguma naturalidade em tal ambiente, onde
tudo acontece ao mesmo tempo e .milhares de interferências e
imprevistos modificam a toda hora o rumo dos acontecimentos. Atuar
nesta imprevisibilidade eXIge celtamente um disciplinamento
específico. Rapidamente se percebe a utilização de gestos largos, voz
alta e dura e formas discursivas adequadas às constantes
interferências ao redor.
95
Esta constatação, com referência a imp0l1ância do espaço no
comportamento dos meninos e meninas, auxiliou-me, meses depois
de iniciada a pesquisa, a compreender a dificuldade das crianças em
atuar em espaços fechados. Esta experiência se deu nos primeiros
momentos de convivência na República, quando educadores ficavam
perplexos com o comportamento das crianças. Logo no primeiro dia
de visita à futura residência alguns meninos mais novos, entre dez,
doze anos, simplesmente não conseguiam respeitar os limites
impostos pelas paredes e janelas. Dois deles entraram pela porta de
uma sala e imediatamente sairam pela janela disposta à frente, que
estava, diga-se de passagem, no segundo andar do prédio. Mais tarde,
avaliando o local, um dos meninos explicou que "achei muito
ape11ado, pensei que tinha mais (espaço) depois da janela".
Já durante a excursão a Paulo de Frontin pude observar a dificuldade
das clianças em se "confinarem" nos quartos. Nesta segunda
expenenCla confirmou-se esta tendência: muitas crianças não
conseguem adaptar-se rapidamente aos pequenos cômodos,
acostumadas que estão a dormir ao ar livre.
Outro condicionamento em relaçào a ambientes fechados sugere um
temor já instalado nos meninos e meninas quanto ao aprisionamento.
Um menino de dez anos demonstrou· pavor em tomar banho num
banheiro fechado, provavelmente porque se sentia indefeso ou
guardava alguma lembrança de castigo físico. Um outro menino, de
treze anos, muito esperançoso com a nova residência, fez uma
observaçào crítica de beleza metafórica: "Tia, aqui é muito bom, tem
96
capoeira, tem tudo, mas parece uma gaiola". Tal observação sugere
duas realidades vivenciadas: uma, os limites físicos, a
compàrtimentação, a divisão de atividades, enfim, o inevitável
disciplinamento concretizado pelas paredes; e a outra, um
pressentimento do controle, do assujeitamento que acompanha as
experiências institucionais.
Na verdade as crianças de lUa vIvem um drama ao optarem pela
proteção de um abrigo, com as vantagens de terem garantidas uma
noite de sono tranqüilo e uma boa refeição: elas são levadas a abrirem
mão da Liberdade, de todos os aspectos lúdicos e da autonomia que
são próprios do espaço da rua . É muito complexa e contraditória a
vida das crianças no espaço da rua. Em princípio a rua se lhes
afigura como uma s~lvação, como um espaço de liberdade e como
alternativa a uma vida sempre miserável e. marcada pela violência.
Mas a rua é também o último espaço que lhes resta, e neste sentido,
não pode ser tomada como uma alternativa, seria talvez mais próprio
entendê-la como uma falta de alternativa.
Se a opção pela vida na lUa significa muitas vezes um ato de saúde
(expressão utilizada pelo programa SEMPRE VIVA, ao analisar as
razões pelas quais as crianças deixam suas casas), por representar a
busca de uma vida melhor, .é igualmente verdade que,
metaforicamente, este espaço aos poucos se transforma num labirinto,
onde as crianças e adolescentes não conseguem entrever a saída.
97
Em relação à antinomia espaço público versus espaço privado,
opera-se uma curiosa inversão. A rua, espaço público por excelência,
funciona para o grupo como um local onde os membros
individualmente conseguem manter alguma privacidade quanto aos
hábitos e comportamentos (a despeito do controle policial, que de
toda forma não desce a essas minúcias). Já nas instituições,
alternativa de espaço privado que o grupo conhece, a vida íntima
torna-se de conhecimento geral. Os hábitos, a sexualidade, a relação
com as drogas, tudo é conhecido, esquadrinhado e controlado.
o CONFLITUOSO RELACIONAMENTO COM A
FAMíLIA ORIGINAL
É indiscutível que a situação de mlsena econômica é fator
determinante no processo de rompimento dos laços familiares. Mas o
motivo imediato alegado pelos entrevistados, que os leva a opção
final de viver na rua, são os conflitos familiares.
A quase totalidade dos depoimentos das crianças aponta motivos de
ordem familiar para o abandono de seus lares. Os depoimentos
relativos à vida familiar desenham uma situação de violência física,
abusos sexuais (meninas), ausência d,e ap0l1e afetivo, dificuldades no
relacionamento entre enteados e companheiros (as) do pai ou da mãe
e cobrança excessiva por parte de responsáveis substitutos dos pais.
Abaixo reproduzo alguns depoimentos ilustrativos:
98
Menino, 14 anos
Menino: "Eu vim prá rua porque o meu pai colocou fogo no neném
da minha irmã, eu fiquei com medo, não quero mais ir lá não."
Entrev.: "E porque seu pai fez isso, você sabe?"
Menino: "Foi porque ela se perdeu, e ele não queria aquele neném."
Menino, 12 anos
"Eu não quis ficar na minha casa, não. Minha mãe é nervosa, ela
jogou água fervendo em mim" (mostrando as pernas e pés bastante
marcados por queimadura).
Menino, 16 anos
Menino: "Eu não posso ir lá em casa não. Meu padrasto não gosta de
mim. Ele já mandou nego me dar tiro. Eu tenho duas balas alojadas,
no braço e na costela" (mostrando as marcas).
Entrev.: "E sua mãe sabe que seu padrasto fez isto'?"
Menino: "Eu falei prá ela, eu contei, mas ela não quis acreditar. Só
depois, quando os vizinhos contaram também é que ela acreditou.
Agora eu não vou mais lá não, se não ele vai me matar. Ele diz que
eu não presto, que só dou preocupação prá minha mãe."
Entrev.: "E você tem pai?"
Menino: "Tenho, mas ele é peligoso, ele trabalha no movimento (de
tráfico de drogas) lá em Ricardo de Albuquerque. Ele não pode tomar
conta de filho ... "
99
Menina, 16 anos
Menina: "Eu gostava da minha casa. Eu gosto da minha vó, mas aí
meu avô me estrupou quando eu tinha onze anos. Eu não pude mais
morar lá. Eu tive que sair."
Entrev.: "E sua mãe'?"
Menina: "Ela ficou lá, tia, ela não ia ter onde morar..."
Meninas de 11 e 13 anos, irmãs, vivem juntas na rua
Menina: "Nós não podemos viver na nossa casa. Meu pai é muito
ruim. Ele tem ódio da gente."
Com referência ao caso destas irmãs, presenciei certa vez uma delas
ter uma fOlte reação emocional (suores,' tremedeira, etc) apenas
porque confundiu a voz de um educador com a do pai.
Quase todos os depoimentos enumeram estórias de todo tipo de
violência, física e psicológica. Contudo, as crianças declaram sentir
falta dos irmãos que ficaram em casa e principalmente nutrem um
sentimento de proteção em relação às màes.
Menina, 18 anos
"Minha mãe nào teve culpa, ela não tinha como cnar nos. Ela foi
trabalhar de doméstica, a patroa não deixou nós morar lá. De vez em
100 8 •• UOTECA
.... AcAo GETÚLIO .......
quando eu vou lá em Madureira, perto do serviço dela e espero ela
passar, aí eu dou algum dinheiro prá ela."
Menino, 16 anos
"Eu não vou mentir, tia, eu roubo mesmo, mas como ~ qUe eU ia viver
na rua'! O que eu ganho eU levo lá em Austin, prá minha màe e pros
meus irmãos pequenos, que vi\'em com ela. Só não dou se o marido
dela está lá. Uma parte eu tiro prá mim, prá comprar roupa, qualquer
coisa."
Menino, 15 anos
"Eu penSei em terminar o curso da São Martinho e fazer um curso lá
em Caxias (curso de' pedreiro), perto da casa da minha mãe. Aí ia
fazer um quarto lá perto da minha mãe, prá mim morar lá."
l\lenina 16 anos (mãe de dois filhos, nascidos na rua)
"Eu \'ivo aqui na rua, mas nunca parei de pensar na minha mãe. As
\'ezes no Dia das Mães eU compro at~ um presente prá ela. Mas nunca
ti\'e coragem de ir lá le\'ar prá ela. Não sei se ela ia me receber."
l\1enino~ 12 anos, na rua com o irmão de 14 anos
Menino: "Antigamente eu fugia de casa porque meu pai batia muito
na gente, ainda bate ... "
101
Entrev.: Ainda bate'.' Quando você vai em casa'.'
Menino: "Quase sempre eu \'OU na minha casa, mas tem \'ezes que a
gente leva dinheiro prá minha mãe."
Além da violência física cometida pelos próprios pais e familiares, a
situaçào da criança no âmbito doméstico se agrava em decorrência de
problemas causados pela dificuldade de relacionamento entre as
crianças e os pais substitutos. Muitas crianças sào órfãs de um ou dos
dois genitores, e sào entregues à guarda de avós, tios, irmãos mais
velhos, madrinhas, padrinhos. Estes substitutos geralmente se sentem
sacrificados pelo encargo extra de criar estas crianças. e tornam-se
\'iolentos ou responsabilizam-nas pelo sacrifício com o qual têm de
arcar. Mais contundente ainda é a incompatibilidade dos meninos e
meninas com o companheiro da màe ou companheira do pai. No caso
das meninas, geralmente é impossível a convivência com padrastos
assim que entram na adolescência, pelos constantes assédios sexuais.
o caso de uma menma. de 14 anos, considerada particularmente
bonita. estava preocupando os educadores. porque despertava o
interesse de policiais e transeuntes. A moça era recém-chegada ao
grupo de rua. quando a entre\'istei. Ela contou que te\'e de deixar a
casa da família, porque a mãe passou a viwr com um companheiro,
que a assediava com propostas sexuais. A menina contou para a mãe
que era vítima de intimidações. mas a reação da mãe não a
beneficiou: a mãe mostrou-se infeliz com a situação. mas disse à filha
que a única solução era a menina deixar de \'i\'er com eles. porque.
caso contrário, toda a família (havia irmãos mais no\,os) poderia
102
perder a moradia. A menIna, então, foi VIver na rua, onde a mãe
freqüentemente a \'isitava. Meses mais tarde a mãe conseguiu para a
filha um barraco que fora desocupado na fa\'e1a em que moravam,
porque o proprietário fora expulso de lá. Para não perder a posse da
propriedade, o proprietário negociou com a mãe da menina que esta
poderia \'i\'er lá, enquanto a situação nào se resolvesse. A menina
obte\'e assim uma solução bastante satisfatória, ainda que prO\'isória:
conseguira independência e abrigo. Várias vezes a reencontrei junto
ao grupo. com'idando amigas da rua a irem pernoitar na sua casa.
Já no caso dos menInOs. os no\'os companheiros das mães quase
sempre rechaçam os filhos que não são deles. e a submissão das
mulheres geralmente as faz optar por manter os companheiros e
preterir os filhos. Em menor proporção entre as crianças estudadas,
há casos de adoção que se deram a partir das instituições onde
\·i\'iam. e que resultaram na fuga das crianças porque estas se diziam
tratadas como empregadas da fàmília.
É significati\"o notar que os meninos e meninas sempre relacionam a
situação específica de que se sentem \'ítimas com a situação sócio
econômica da família. As informações aqui relatadas são unilaterais,
já que a pesquisa não pretendeu estudar os grupos familiares. mas
sim conhecer as representações do grupo sobre a situação familiar.
É preciso contextualizar a problemática da criança na esfera familiar.
Já ~ clássica a remissào do abandono de crianças pobres a uma
suposta desestrutllração familiar. Esta análise mecanicista de\'ohe
103
para as famílias vitimizadas por um desequilíbrio social a
responsabilidade pela situação, como analisa Arantes: "Não raro o
poder técnico também se engana, ao remeter a irregularidade jurídica
da criança a uma abstrata "família desestruturada". É porque pensa as
famílias populares a partir do modelo da família burguesa que aquela
aparece como tal. Aquilo que se torna visível, pela atuação técnica,
como "desestruturação" (crianças na rua ou separadas em diferentes
lares e internatos; màes solteiras ou distante geograficamente dos seus
companheiros; pais ou màes desempregados ou internados em
hospitais psiquiátricos ou encarcerados em presídios I é, muitas vezes,
a própria condição de existência e sobrevivência, senào da família
enquanto um grupo, pelo menos de seus membros individualmente."
(Documento pue n.7, p.421
Problematizando ainda esta questão, considero relevante tecer
algumas observações acerca de um possível paralelismo entre os
problemas familiares apontados por menínos e meninas de rua na
presente pesquisa e alguns dados relativos à situação t:'lOliliar de
adolescentes de classe média do Rio de Janeiro.
No primeIro semestre de 1991 atuei como pesquisadora do
Laboratório do Imaginário Social em Educação. da Faculdade de
Educação da UFRJ. A pesquisa tinha como objeti\'o captar as
representações que alunos do segundo grau da rede pública e privada
da cidade do Rio de Janeiro formulavam sobre cidadania.
104
As entrevistas, semi-estruturadas, introduziam perguntas iniciais
sobre a situação familiar do entre\'istado, com o duplo objetivo de
caracterizar o grupo e de pesquisar as representações sobre a
categoria autoridade. Os depoimentos dos adolescentes apontaram
para uma situação familiar conflituosa, embora não havendo registro
de violência física, citando principalmente a dificuldade de
relacionamento entre enteados e companheiros( as) do pai ou da mãe,
devido a predominância de uniões desfeitas seguidas de
reorganizações familiares por parte de um ou dos dois cônjuges. As
recomposições t:lmiliares, de certa forma, impõem aos jl)\'ens a
conviv~ncia com padrastos e madrastas e com os filhos de outras
uniões, com'ivência esta, de acordo com os adolescentes, pouco
harmoniosa. Aqui tamb~m os meninos e meninas de classe m~dia
insinuam a exist~nciade uma instabilidade emocional. deri\'ada ainda
de prolongadas aus~ncias do pai e da mãe, em virtude de
compromissos profissionais. Alguns jl)\'ens, inclusive, expressaram
em seus relatos que os pais incentivam a autonomia dos filhos em
\'irtude de não disporem de tempo para estarem a seu lado.
Numa inevitável comparação entre as duas situações, nào serIa
impróprio deduzir que elas se assemelham na percepção que a
criança fOIja de seu lugar no grupo familiar. Contudo. e\"idencia-se a
diferença no encaminhamento de soluções que cada grupo social
encontra para os con tl itos fam i I iares, e esta di ferença ~ obviamente
em razão da condição de classe de cada grupo. Um fator a contribuir
para a c1assificaçào da família pobre como desestruturada ~ a
\'isibilidade que adquire sua \'ida privada em razào da necessidade de
10:'
recOlTência a instâncias diversas de assistência. Quanto aos conflitos
vividos pelas famílias de classe m~dia. Arantes conclui:
"Nào se postulará a desordem do lado da família burguesa. Seus
problemas se resoh'erào de outra forma e numa outra rede" (idem. p.
5~).
Há ainda algumas interpretações da esfera da Psicologia que se
ocupam do quadro familiar como o lugar de laços sociais básicos. e
das relações simbólicas que se estabelecem a partir da imagem do
pai. Estas análises contribuem para situar as relações familiares sob
condições de miséria. Ver. por exemplo. o que fala Calligaris a
respeito:
"Há outros casos: por exemplo. o de uma extrema miséria familiar. na
qual o pai não ~ reconhecivel socialmente como cidadão. Será então
impossí\'el que ele \'alha simbolicamente para o filho. e só poderá
\·aler. realmente como simples genitor ou d~spota. Em um tal quadro.
onde os laços sejam reais. eles nào poderiam garantir ao sujeito um
\'alor simbólico - nem que sejam os valores mínimos de filiação e
cidadania. De repente a filiação e a cidadania de\eriam ser
conquistadas pelo sujeito graças aos seus atos. E estes atos seriam
necessariamente margll1als. fora da lei. pOIS eles estariam
respondendo a uma ausência de lei simbólica. procurando encontrá
la. suscitá-Ia. de uma certa forma fundá-Ia." (Calligaris. 1991. p.lll)
Dada essa rápida comparação entre comportamentos de adolescentes
106
de famílias de classes sociais tão distintas, verifica-se um aspecto de
congruência que requer um maior aprofundamento.
A fàmília tem sido denunciada como a maior responsável por atos de
\'iolência contra a criança. Os registros documentados no SOS
Criança'ABRAPIA. do Rio de Janeiro, e no relatório da Secretaria do
Menor do Estado de São Paulo referente ao mês de Setembro de
1992, publicado no Jornal do Brasil, edição de 8/9'92, são
demonstrativos dessa \'isão. No caso em estudo, em que as fàmílias
podem ser classificadas como as primeiras vítimas de uma longa
cadeia de violência social, não nos ajuda remeter a elas a
responsabilidade sobre o destino de suas CrIanças. nem tampouco
atribuir-lhes, a não ser com o auxílio especializado de órgãos
assistenciais, a tarefa de reabilitar psicológica e socialmente as
crianças \'ítimas de violência.
Recente pesquisa realizada nos Estados Unidos, com crianças \'ítimas
de violência sexual. conclui que estas crianças lograram sucesso na
superação de problemas psicológicos e de conduta resultantes de
experiências traumáticas. na medida em que a comunidade se
posicionou claramente sobre a situação da criança. "Como afirmam
os pesquisadores. nos casos em que a lei se fez presente sem
ambigüidades, as crianças parecem ter se recuperado mais facilmente.
Por outro lado, os casos que tiveram as denúncias questionadas. que a
lei não se mostrou tão a fa\'l)r. o desenrolar dos tratamentos foi mais
lento. A lei, nesta questão. não parece ter apenas o aspecto jurídico.
mas tamb~m, o de exercer a função paterna." (Gold\'ag: 1991. p. 10)
107
A atuação do aparato jurídico ou assistencial contra os atos de
violência expressa, em grande medida, de acordo com as conclusões
do estudo, de que forma a comunidade se posiciona frente à questão,
e este posicionamento \'ai determinar em grande medida as chances
das crianças superarem as experiências traumáticas e retomarem um
desenvolvimento sadio.
As famílias de rua
Na rua, distantes do com'lvlO familiar, as cnanças enfrentam um
ambiente de franca hostilidade por parte das pessoas com as quais
com'ivem (os transeuntes, os comerciantes, a polícia). Neste ambiente
eles estreitam os laços afetivos entre si, buscando mútua proteção e
solidariedade. É praticamente impossível a uma criança. ou mesmo a
um adolescente, sobre\'i\'er sozinho em circunstâncias tão inóspitas.
Os grupos de rua permitem a garantia da sobre\'ivência física e
principalmente a cOl1\'ivência social.
Moura (1991), em estudo sobre grupos familiares de classes
populares. tece a seguinte análise: "Viver o grupo é sentir a
reciprocidade do outro. É ter presente a interdependência das ações. É
ter consciência da \'inculaçào ao outro ( ... ). O grupo representa a
experiência de solidariedade. a \'ivência da experiência comum"
(Moura. 1991, p. ).
108
Os meninos e meninas que permanecem ligados a um grupo por um
determinado período de tempo, autodenominam-se famílias de rua e
recriam relações afetivas e sociais em bases originais.
Essas famílias se constituem por papéis diferenciados, os mais fortes
protegem os mais fracos, os mais antigos ensinam as regras de
sobrevivências para aqueles recém-chegados à rua. Há rituais
precisos de iniciação no grupo e na rua que se constituem em
verdadeira provação para o novato, que pode inclusive vir a ser
"reprovado" pelos demais. São atitudes constitutivas deste
comportamento: provas sexuaIS - os menInos novatos são testados
sexualmente pelos outros, "para ver se vai virar mulher": provas
quanto à coragem e esperteza: o novato tem que ficar à frente do
roubo e torna-se responsável durante um período por adquirir a cola
ou outra droga. Neste período de iniciação os novatos sofrem até
restrições de acesso aos educadores. Enquanto não forem
incorporados ao grupo. os antigos se interpõem na relação entre os
novos e os educadores. Os Jovens mais débeis são
indeterminadamente expostos a situações vexatórias. ou vivem
"rodando" - termo que significa ser pego pela polícia - mas se
resistem por certo tempo. ou desenvolvem laços afetivos com outros
jovens, acabam sendo protegidos pelo grupo. Estas provações com os
novatos se repetem, segundo relato dos jovens, nas instituições de
guarda de menor.
109
Passado o período inicial, as crianças são solidárias e tolerantes entre
si, dividindo o pouco que têm - a comida, o cobertor, a droga - com
aqueles que não conseguiram obter para si.
As mães-de-rua dividem as tarefas entre as outras crianças do grupo,
que podem ter a mesma idade que ela, ou serem até mais \'e1hos. Ela
determina, por exemplo, quando o grupo deve voltar a se reunir e se
vai haver mudança no local de pernoite, divide as roupas que recebem
pelos mais necessitados. etc. Observa-se também que quando nasce
um bebê, todo o grupo - inclusive os meninos e as crianças pequenas
- ajuda a tomar conta da criança. Esta não é uma tarefa exclusiva da
mãe.
A ascendência das mães e pais-de-rua sobre as outras cnanças do
grupo e muito forte. Duas meninas conseguiram \'aga num
equipamento do Estado, mas em \'isita ao local a mãe-de-rua não o
apro\'ou e mandou recado para as duas deixarem o local. o que elas
obedeceram prontamente.
As relações de parentesco de rua sào reconhecidas e reafirmadas
pelas crianças e adolescentes. Eles explicam que o pai e a mãe de rua
não precisam constituir necessariamente um casal entre si. Nem a
família precisa necessariamente viver junto. Citam casos em que a
mãe-de-rua vive num ponto da cidade e a filha, ou neta \'ive em
outro. O dnculo não se desfaz, segundo explicação do grupo. com a
saída de algum membro da rua. para uma instituição ou para outra
situação de vida. Uma mãe-de-rua cita como exemplo o caso de uma
110
de suas muitas filhas de rua que está há seIs meses vivendo com
parentes (originais) mas que isto nào constitui um rompimento do
laço com ela.
Os casaIs sào formados muito cedo, aos dez, onze anos já se
estabelecem, e há muitos deles que permanecem juntos há cinco, seis
anos. Ti\'e a oportunidade de presenciar o diálogo de um menino de
onze anos, com a sua namorada, também de onze anos, em que de
propunha a ela que ficassem juntos, que ele iria proteg~-Ia de muitas
coisas. Era uma cena romântica, em que os dois dividiam o cobertor e
uma ponta de cigarro, e agiam com a graça dos casais de namorados.
As moças se declaram compromissadas com seus companheiros.
permanecendo sozinhas nos períodos em que eles ficam presos. Os
rapazes não declaram a mesma fiddidade, mas assumem a proteção
de suas companheiras.
Há um controle expresso do grupo sobre o comportamento das
meninas em relação a seus parceiros. Durante o 11 Encontro
Internacional de Meninos e Meninas de Rua, uma das menmas que
iria compor a mesa foi sumariamente "barrada" por um dos meninos
integrantes do grupo. e te\'e que se contentar em ficar na platéia.
Perguntei à menina (1-1- anos, mãe de um bebê de 4 meses) porque ela
não iria participar e da declinou de responder. Mais tarde o menino
esclareceu que "ontem ela deu bola prum home na rua, e o marido
dela está preso. I sso não é legal não, tia."
11 I
Ainda sobre comportamento das menmas, os depoimentos, as
observações e a convivência com elas não confirmam o estereótipo
de prostituição que lhes ~ imputado.
Menina, 17 anos:
Menina I: "Porque tem gente que se troca por uma brizola, por uma
maconha, por uma dormida no hotel. ..
Menina 2: "Eu nunca me troquei, sai prá rua com 12 anos. era
novinha. moça, virgem. e fiquei até 14. Nunca fui esculachada por
vagabundo. Nunca. nunca vendi meu corpo por nada. Nem por
tóxico, nem por dinheiro. nem por casa e comida. Por nada."
Ainda contrariando as \'ersões de que as meninas de rua encontram
na prostituição um meio mais conveniente de sobreviver do que, por
exemplo. o roubo. o grupo de adolescentes pesquisado inverte esta
lógica. Prostituir-se ~ tornar-se desvalorizada pela família de rua. As
práticas de furto são mais bem recebidas. são vistas como
participação ativa na luta pela sobrevivência. como um ato de
coragem da menina.
Menina: "Porque tem muita garota de mente fraca. PÔ. não tá
conseguindo dinheiro. não tem disposição prá roubar. porque tem
muita menina que não tem disposição, morre de medo. Ah, não, não
quero. não \'OU entrar. Fica grilada, então procura o meio mais fácil."
112
Entre\',: "A prostituição então. \'ender o corpo ~ um meio mais t~icil
do que roubar','"
:-V'knina: "É um meio mais fácil do que roubar porque roubar tem que
aguentar o pau com os home. porque se nào aguentar \'ai \'irar
cagoete. ningu~m \'ai querer sair contigo. arriscando a morrer.
\'agabundo sacudir. Entào tem que \'ender o corpo. que ~ a coisa mais
t:lcil. Vende o corpo. ganha dinheiro. pronto",
Cabe aqui ressaltar a necessidade de Se empreender pesquisas
específicas sobre o uni\erso feminino. aí incluindo-se os \'almes. as
representações simbólicas. as interações sociais e as dificuldades
específicas que as meninas enfrentam. pela sua condição de g~nero,
1\:ota-se que as questões relati\'as ao comportamento e participação
feminina estão marcadas por posicionamentos preconceituosos. que
\'~m encobrindo a possibilidade de uma compreensão aut~ntica dos
problemas sociais em que estão implicadas as mulhereS.
Principalmente Se Se conl!rel!am ao !.!ênero. discriminações raciais e ~ ~ ~
de classe. como Se \'erifica claramente no grupo pesquisado, Há no
grupo casos de união homossexual. como o caso de duas moças. uma
de dezessete anos e outra já com dezoito. que \'i\'em juntas há
aproximadamente um ano. ambas com \'anas passagens por
instituições correcionais. e que confessam \'i\'er apenas de furtos. já
que na idade delas não há como obter solidariedade, A mais \'elha
das moças engra\'idou de uma relação e\'entual e. durante a gra\'idez
e no nascimento da criança. te\'e todo o apoio da outra jo\em. que
assumiu o papel de protetora da no\'a família. pnH'endo-a de
alimentos. indo buscar um "enxo\'al" ganho e inclusi\'e conseguindo
I '-~
abrigo junto à sua própria família. com a qual não con\'i\'ia mais há
muitos anos. para a mãe e o filho, As outras moças do grupo e mesmo
as educadoras criaram um termo de parentesco curioso "pãe"
(aliteraçào de pai com màe) da criança,
Há exemplos insuspeitos de solidariedade, se considerarmos as
circunstâncias de misáia em que vivem estas crianças. como pode ser
visto nesses exemplos:
Próximo a ~poca da Conferência de Meio Ambiente e
Desen\'oh'imento - a Rio 92 - uma família de rua que encontra\'a-se
alojada sob um \'iaduto da zona sul da cidade foi com'idada por
assistentes sociais da Fundação Leão Xfll a se transferir para a
Fazenda Modelo - instituição estadual para abrigo de população de
rua, Embora a "família" fosse composta de mãe. dois filhos
\'erdadeiros. \'ários filhos de rua. todos menores de idade. as
assistentes sociais limitaram o cOIn'ite à mãe e aos dois filhos
\'erdadeiros. sendo que as demais crianças pequenas poderiam ser
encaminhadas para outras instituições, A mãe ficou indignada com a
proposta. e embora esti\'esse muito amedrontada com a iminência de
recolhimento. procurando algum lugar para alojar pn,)\'isoriamente o
grupo. recusou prontamente o com'ite. alegando que não iria
abandonar os outros filhos sozinhos. para eles serem di\'ididos e
ficarem sem proteção, "Ou \'ai nós todos. ou não \'ai ningu~m", E.
para a pesquisadora. completou que toma\a essa decisào com pena
dos filhos dela. que insistiam em acompanhar as assistentes. mas ela
se julga\'a responsá\el por todos. e não iria desampará-los,
114
Outra situação comO\'ente "cio de um menino de apenas dez anos.
qUe \'i"e na rua há cerca de cinco anos. quando sua mãe foi morta
pela chamada polícia mineira. de acordo com SeU depoimento, Esse
menino conseguiu uma \'aga num equipamento da Prefeitura e. ao ser
informado qUe iria morar lá. imediatamente colocou a condição de
qUe só poderia Ir se o sobrinho dele fosse tamb~m. Ele foi então
informado que o sobrinho não consta"a da lista de candidatos.
portanto não fora contemplado com a vaga. Diante da recusa da
educadora em admitir tamb~m a outra criança. ele propôs trocar de
lugar com o sobrinho. Ele perderia a \'aga c a cederia ao menino mais
nOH). de cinco anos. que ele apresenta\'a como sobrinho. com a
seguinte argumentação: "Tia. ele ~ pequeno e eu sou grande. eu já sei
me \'irar na rua. eu não posso deixar ele sozinho aqui não. quem \'ai
dar comida prá ele','" A educadora perguntou se ele não tinha mãe ou
outra pessoa que pudesse cuidar dele em casa. e ele respondeu: "Ter
tem. tia. ela ~ minha irmã. mas ~ muito má. jú furou ele com faca no
braço e na casa dela nãl) tem nadinha prá comer. Quem le\a\a era cu.
Agora se eu for morar aqui. ela \'ai botar ele na rua de uma \'ez.,,"
As bmílias de rua demonstram tolerância e tlexibilidade em relação
àqueles que adotam comportamento desviante. Os qUe demonstram
alguma debi I idade menta I. os que se comportam de ma nei ra mui to
agreSSI\a. os que se drogam em excesso. são em geral protegidos
pelos demais,
Hú um forte compromisso entre os membros da família de rua. como
mostra o depoimento de um jovem - que foi assassinado no final dn
1 I:'
ano de 1990 - a um cineasta europeu: "A nossa relação entre nós.
tudo é amizade. principalmente amizade, na hora de dormir e
solidariedade, a proteção de um e de outro. Violência também é o que
mais surge. Um briga com o outro, um esculachando o outro. De
quem que nós consegue amor e carinho'! De nós mesmo. Um do
outro. A gente não tem carinho de ninguém nào! Só de nós mesmo.
Se a gente nào fizer. ninguém vai fazer pela gente." (Gosses in Rio.
fita de vídeo)
Rizzini. em artigo intitulado "Menores institucionalizados e meninos
de rua: os grandes temas de pesquisa da década de oitenta". comenta
"o fato de os estudos nào retratarem o relacionamento entre crianças
que estão nas ruas" ( 198'./. p. 86).
A autora \"ai buscar em pesquisa realizada no ano de 1979 indicações
de como se dá este relacionamento:
"Ferreira indica que as relações entre as cnanças no grupo são
marcadas pelo indi\"idualismo. onde cada um responde por si. dadas
as condições de ,'iolência e insegurança que têm de enfrentar" (idem.
p.861. Podemos afirmar. com base na con\"ivência com os grupos de
meninos e meninas de rua pesquisados. que as condições de \"inlência
e insegurança são t~1tores que contribuem para o estreitamento dos
laços de solidariedade entre eles.
Os exemplos acima. e muitas outras atitudes de solidariedade entre
cnanças. nào condizem com a Imagem que é difundida na
116
coletividade, com o apoio da imprensa e de setores conservadores e
até de reacionários defensores da prática de extermínio.
As mesmas crianças e adolescentes que tanto temor despertam entre
os transeuntes. retribuem generosamente a atenção que recebem dos
educadores e de outra pessoas que se solidarizam com eles. Durante o
con\'Í\'io com eles. recebi inúmeras demonstrações de afeto e até de
preocupação com a minha vida t:lmiliar. Embora ostentando tão
poucas posses. as crianças nào abandonam o hábito de retribuir com
presentes a atenção que recebem.
\1as certamente a maior manifestação de carinho veio de uma jl)\'em
com a qual havia passado umas duas horas, cOll\'ersando sobre os
perigos da rua. quando ela me contava como se sentia cansada e
como era estressante \'iver de furtos. correndo da polícia. Sem
\'islumbrar nenhuma alternativa concreta que pudesse incutir
esperanças na jo\em. eu me limitava a ou\'ir seus casos. \!a hora da
despedida ela me entregou um pedaço de caco de \'idrn: "Toma. tia,
leva isso com \'oc~". num gesto simbólico do desejo de mudar de
\·ida. Recebi também l: gesto como uma "dica" de que tahez a
compreensão. a solidariedade possa ser um bom caminho.
ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA
Quando solicitados a falar sobre seus projetos para (l futunl.
raríssimas \'ezes foram feitas refer~ncias espontâneas au desejo de
117
s~guir uma profissão. ou d~ realizar um trabalho como forma d~
sup~rar a situação d~ mls~na ~m qu~ vi\'~m. A solução para os
probkmas d~ sobr~vivência não passam n~c~ssariam~nt~ pela
\'alcirização das formas d~ trabalho sancionadas pela sociedade.
1\:ão s~ pod~ esqu~cer que ~stes jovens são. em primeiro lugar. filhos
de pais abandonados por todas as instâncias gt)\'~rnamentais.
políticas. econômicas e sociais que deveriam garantir aos cidadãos
condições mínimas d~ s~ mant~rem e às suas famílias em condições
de dignidade. O fracasso familiar. a miséria d~ s~us lares está inscrito
fort~m~nte na vida d~st~s jtwens. ~ o trabalho desvalorizado.
d~squalificado ~ o d~samparo social d~ qu~ foram \'ítimas s~us pais ~
mais ainda suas mã~s. é negado ~ ren~gado por ~ks. assim como um
destino de resignação ~ pobreza absoluta. Esta situação é o qu~ ~m
grand~ part~ moti\'ou-os. ainda que muitas \'ez~s s~m a clareza dos
moti\'os. a deixar para trás as histórias familiares ~ irem \'i\'er na rua.
Alguns jo\'ens deixam transpar~c~r um misto d~ d~sprezo ~ pi~dadc
pelos pais. por ~st~s não cons~guir~m cumprir o papd d~ pn)\'çdor
da família. Est~ d~spr~zo é ~xtensi\'o ao trabalho. g~n~rical11~nt~. ou
às oportunidad~s d~ trabalho qu~ t~riam pela sua condição social.
"ivku pai ~ra p~dr~iro. não ganhava nada. nào tinha nada prá nós. Eu
\'im prá rua prá roubar. prá p~dir. prá ajudar minha mãe e prá
comprar coisas prá mim". Os meninos e m~ninas qu~ \'i\'~111 na rua.
quando questionados sobre a ~stratégia d~ sobr~\'i\'ência que
empr~end~m. já qu~ não têm garantida n~m mesmo a alim~ntaçào.
mostraram-s~ inicialmente d~sconfiados ou constrangidos. citando
IIS
apenas a mendicáncia ou a frequ~ncia a instituições onde podem
garantir algumas refeições.
\las logo qUe Se estabeleceu uma relaçào de confiança com o
pesquisador. eles passaram a depor li\Temente sobre as formas de
sobre\·i\"~ncia. Algumas \'çzeS oll\'i justificati\'as espontâneas sobre
as práticas de furto. como no seguinte desabafo: "Às \çzeS. quando a
gente não qUer roubar. sabe. porqUe a gente às \'çzeS pensa. a gente
estimula em pensamento que a gente não qUer roubar. aí a gente \ai e
pede. pede no meio da rua. ~'las aí dá a maior re\'olta. qUe a gente
pede: Aí. me dá um dinheiro prá eu comprar um pão ali ... - Ah. \'ai
trabalhar. .. nào sei mais n qu~. Aí dá a maior \'Olltade de roubar
mesmo. sabe."
As estrat~gias sào \"ariadas: a mais generalizada consiste na Imítica
de pequenos furtos. praticados com o objeti\'o de conseguir algulll
dinheiro para suprir ullla necessidade imediata. como medicamentos.
alimentação ou lazer.
o juiz Amaral e Sil\"a define sua compreensão sobre as práticas
infracionais dos meninos e meninas de rua:
"O infrator geralmente nün passa do abandonado surpreendido na luta
pela sobre\'i\'~ncia" (1989:80). Eis alguns exemplos registrados em
entre\ i stas:
\ \9
Exemplo 1:
Entre\': O qUe qUe \'OC~ faz durante o dia. prá arrumar grana. como ~
qUe \'OC~ \'i\'e'!
Menino: Bom, posso falar mesmo'.'
Entre\': Pode, Se \'OC~ quiser.
Segundo menino: Pode falar',1
Menino: (para o amigo) Fala prá mim, que eu tenho vergonha".
Segundo menino: Falar o quê'.'
Menino: Ela tá perguntando o qUe fàço de dia",
Segundo menino: De dia a gente arruma dinheiro prá jogar tlipper
\1enino: iV'kntira. tia.
Segundo menino: Então bla a \'erdade, \'amos tàlar a \'erdade."
~knino: A gente roub~l.
Segundo menino: A gente rouba. joga tlipper
Exemplo 2:
Uma jO\'el11 Sentia-Se incomodada por estar descalça. passou o dia
pedindo um trocado. Sem lograr SUCeSSO, Contou-me qUe no fim da
tarde furtou algu~m qUe esta\'a lanchando num bar. "pró arrumar
cinco mil e comprar o chindo no camdô".
Há também momentos em que as cnanças e adolescentes parecem
simplesmente eXercitar a habilidade de conseguir algum dinheiro.
atnl\'~S do furto. da coação ou intimidaçào, Em geral eSSeS
"exercícios" ocorrem quando eleS. atuando em grupo. pedem algum
120
trocado. usando atitud~s variadas qu~ pod~m sug~rir agr~ssi\'idad~.
p~na ou retaliação. ~ são obs~r\'ados ~ a\'aliados p~lo grupo. como
num \'~rdad~iro tr~inam~nto,
Os m~nmos ~ m~lllnas confessam \'anar a tática d~ acordo com a
a\'aliação qu~ faz~m do "fr~gu~s": s~ ~ uma s~nhora. com "cara d~
boazinha". eI~s apelam para a fom~: se ~ um d~scuidado. praticam ()
furto: s~ a p~ssoa d~monstra p~lo g~sto ou olhar alguma simpatia.
~ks contam suas n~c~ssidades ~ suplicam por ajuda ~Ill roupa.
bijut~ria. ou brinqu~do,
Outra situação distinta ~ a dos adol~sc~nt~s. ~m alguns casos há
crianças b~m p~qu~nas tamb~m n~sta situação. qu~ praticam furtos
r~gularrn~nt~ sob o' comando d~ algum adulto. qu~ controla o
mo\'im~nto da ár~a, Est~s adultos são algumas \'çz~s talllb~1l1
chamados "pais-d~-rua". ~mbora não t~nham nada a \'~r com a
conc~pçào da familia de rua. São adultos qu~ \'l\'~m na
marginalidad~. alguns foragidos da polícia. int~rc~ptador~s d~
m~rcadorias. tais como r~lógios. jóias ~ toca-fitas d~ carros. ~ qu~ dào
prot~ção ús crianças ~m troca d~ uma c~rta "produção", Vúrios d~ks
s~ ~stabel~c~m próximo ú ár~a ond~ os m~ninos ~ m~ninas atuam.
como camelôs. biscat~iros ou guardador~s d~ carros, \i~st~s casos os
jo\'~ns ~ntr~gam o produto do furto para o "pai" ~ r~c~b~m uma part~
~m dinh~iro. As crianças diz~m s~ subm~t~r a ~st~s interceptadores
porqu~ não conseguem sozinhas \'~nder o produto do furto, :-\ atuação
dest~s quadrilheiros ~ ost~nsi\'a. ~ pode ser confirmada por qualqu~r
pessoa que se disponha a acompanhar a rotina das crianças,
12 I
Há ainda constant~ d~núncia dos jo\'~ns quanto à cobrança d~ dízimo
por part~ dos policiais da área. Esta situação também é facilm~nt~
comprová\'d, pois mais de uma v~z a pesquisadora pr~senciou
guarda fardado, ~m pl~no s~l"\'iço. tirar relógio supostam~nt~ furtado
p~lo menino ~ colocar no seu próprio pulso, ou confiscar o dinh~iro
qu~ o m~nino trazia consigo com a simplória ~xplicação qu~ "~st~
dinh~iro não pod~ s~r s~u".
N~nhum menino ou m~nina d~ rua, do grupo pesquisado, acumula
dinh~iro ou qualqu~r b~m mat~rial. O dinh~iro é im~diatal11~nt~
gasto ~m refeiçõ~s. \'estuário, fotografias, pr~s~nt~s para os d~mais.
Os obj~tos furtados ou sào im~diatam~nte trocados por dinh~iro ou
rd~içõ~s - já t~st~munh~i a troca d~ um relógio d~ pulso por um
cachorro qu~nt~ ~ uma Coca-Cola numa barraquinha d~ ambulant~ -.
ou sào rapidament~ confiscados p~la polícia ou seguranças qu~ atuam
na úr~a. C~rta \'çz pr~s~nci~i um guarda ek plantão inquirir alguns
adol~sc~nt~s qu~ obser\'a\'am uma fotogratia recém-tirada do grupo.
O guarda p~diu a máquina. os rapaz~s diss~ram qu~ ha\'iam tirado a
fotografia num fotógrafo da praça. ~ I~\'aram o guarda até d~. para
confirmar a ~stória. inc\lIsi\'~ o pagam~nto pdo s~n·iço. Após a
contirmação. o guarda tomou a foto, al~gando qu~ o dinh~iro do
pagam~nto só pod~ria t~r sido roubado. am~açou ainda utilizar a foto
para r~conh~cim~nto das crianças na d~\çgacia.
I\'ksmo as roupas ~ t~nis qu~ adquir~m são rapidam~nt~ furtadas.
confiscadas ou p~rdidas pdos jo\'~ns. por não ~xistir n~nhum local
s~guro na rua para guardar mudas d~ roupa ou quaisqu~r p~rt~nc~s
122
peSSOaJs. A prática. a prinCipIO muito estranha. de usarem \'<mas
roupas umas sobre as outras, muitas "CZeS tem a função de cabide.
Por~m. não ~ esta a única razão para esta prática: algumas meninas
contam qUe dormem com três. quatro camadas de roupa para
dificultar atos de \'iokncia sexual.
Uma terceira situação ~ a dos jO\'ens - e aqui tamb~m hú casos de
crianças com dcz anos de idade - qUe sào \'iciados em cocaína. e qUe
praticam furtos e roubos com o objeti\'o exclusi\'o de conseguir a
droga. \:esta situação os JO\'ens geralmente agem maIS
a!.!ressi\amente. al11ea,'ando as \'ítimas com cacos de \·idro. !.!iletes e ~ ~ ~
pedras. embora todos os relatos neste sentido confirmem a intenção
de apenas amedrontar a \'ítima. e em nenhum dos registros a criança
admitiu ter de fato pro\'ocado lesões físicas nos transeuntes ou
motoristas. Esta modalidade pode Ser eXemplificada pelp relato de
uma .Ít)\'em qUe praticou assalto. munida de caco de \·idro. a um
ciclista. Ela conta qUe a "bicicleta era nt)\'a. muito linda". A jO\'em
seguiu montada na bicicleta diretamente para () morro do Chapál
\'Iangueira. onde "desta \CZ () cara deu \'inte gramas (de cocaína) bem
pesadas".
\:a extremidade destas estrat~gias estão aqueles adoleScentes qUe
confessam já ter mergulhado no chamado mundo do crime. A porta
para esta ati\'ídade ~ il1\'aria\'elmente. nos casos estudados. o
comácio de drogas. com o qual algumas crianças tr<1\ <Im clllltato
desde a mais tenra infância.
12:;
o rl!sumo simplificado do rotl!iro da criminalidadl! coml!ça com a
participação da criança pdas mãos dos próprios pais. parl!ntl!s
próximos ou vizinhos. como "avião" (uma I!sp~cil! dI! portador. qUI!
k\"a a droga at~ o c1il!ntl!). Em sl!guida a criança passa a Sl!r
consumidora I! precisa \'I!nder a droga para mantl!r o \·ício. Daí.
pegar I!m armas é quasl! UI11 ato contínuo. Algumas crianças são mais
rl!bl!ldl!s. ou apenas dl!satl!ntas. I! por isso não cumprl!lll suas funçõl!s
com prl!cisão. I! são I!ntão I!xpulsas de suas cOlllunidadl!s. com
<lml!aças dI! mork I! vingança t:1miliar. Uma \'I!Z na rua. dl!dicam-sl! a
criml!s mais pl!sados. como assalto a mão-armada. assalto a
rl!sidências I! a lojas. Há \'ários dl!poil11l!ntos ilustrati\()s da situação
dI! I!xpulsão da comunidadl!:
Exemplo 1:
Entrl!\': Você I!stá na rua hú muito tl!mpo'.'
Entrl!\"istado: Tô. não posso ir prú casa
Entrl!\': Por qUI!'.'
Entrl!\"istado: Porqul! hou\'1! uma confusão lá
Entrl!\: \:a sua casa Illl!smo. ou lá pl!rto'.'
Entrl!\"istado: Li pl!rto. I!ll!s I11I! acusaram dI! cl!rtos roubos no
mo\'iml!l1to (dI! tráfico l. aí I!U tivl! dI! sair. Foi os da P~I mineira que
fizeram isto. Botaram pressão ni mim prá podl!r ml! matar.
Exemplo 2:
Entrl!\': O que ~ qUI! \'ocê bz durante o dia'.'
12~
Entre\'istado: Roubo. cheiro. fumo. peço.
Entre\': Voc~ t:1Z algum trabalho. tamb~m'.'
Entre\'istado: Às \'ÇleS \'endo chiclete.
Entre\':: E \'oc~ \'ai sempre \'er sua mãe','
Entre\'istado: Não. cU nunca \'OU lá. não posso, Arrumei confusão llll
mo\'imento,
Exemplo J:
t\'knino 1: Por causa de qu~ tu não pode ir na tua casa','
~'knino 2: (rindo) O qu~',) Tu ~ maluco "rapá", Eu \'OU ir prü casa. ell
\'ou ... Eu não qUero ir prá casa não. amigo .. ,
Menino 3: Fala aí. fala .. ,
i'v'knino 2: Eu não \'OU prú casa. senão cU \'OU morrer. amigo. o cara
qUer me matar lá na fa\ela.
Jvlenino 3: Ahnnn, .. qual o nome dele','
Menino 2: 01'\01\0:'\0:'\
Menino 1: Ele qUer t:1zer o qUe contigo','
i\'knino 3: Não. ele ~ oposição. o pagodeiro ~ dele
\'knino 1: Ele quer fazer o qUe contigo','
\'knino 2: Ahnn. porque cU tinha formação de quadrilha. lú com os
cara. cumpade.
\,'knino 1: Ele qUer arrancar teu pescoço. arrancar teu sacu c botar na
tua boca',' (risos)
\,'knino 2: Não. ele só quer me matar com tiro. cumpade,"
12:'
Sobr~ as fr~qü~nt~s ~xpulsõ~s d~ cnanças ~ adoksc~nks d~ suas
comunidad~s d~ orig~m, \'erifica-se mais uma perversidade contra a
população de renda mais baixa. A prática d~ loteamento das
comunidad~s por traficantes e quadrilhas de contraventor~s contribui
significati\'am~nte para o aumento do número de crianças nas ruas.
Esta cad~ia d~ \'iol~ncia social inicia-s~ numa CrIS~ d~ atuação dos
pod~r~s públicos. incluindo-s~ a s~gurança, qu~ teoricam~nt~ d~\'eria
s~r garantida a toda a população. Como pairam div~rg~ncias sobr~ os
atributos n~c~ssários para s~ alcançar o status d~ cidadania. o qu~ d~
fato ocorr~ ~ qu~ uma parcela da população. constituída p~las class~s
m~dia ~ alta. ~ prot~gida contra outra part~ da população. qu~ pod~
\'ir a tornar-s~ p~ngosa ~ instabilizar a \'ida cotidiana nos ~spaços
urbanos.
A t:1lta d~ segurança ~ dos s~n'iços sociais básicos. a população qu~
habita as fa\'e1as e outros locais d~s\'alorizados da cidad~ \'~-s~ no
dikma d~ cOIl\'i\'~r com o crim~ organizado - principalll1~nt~ o
comácio d~ drogas. como s~ d~pr~~nd~ das informaçi)~s forn~cidas
pelas crianças - ~ ~stabd~c~ uma rdação ambi\'alent~ com aqud~s
qu~ s~ apossam das comunidades. Eks são. ao m~smo t~mpo. uma
grand~ am~aça para as famílias. p~lo constant~ ass~dio ú participação
d~ crianças ~ jo\'~ns ~m ati\'idad~s criminosas. ~ tamb~m funcionam
como protetores da comunidade. atuando no \'azio deixado pela
aus~ncia ou ind'ici~ncia d~ s~n'iços públicos.
126
o mÇsmo sçntido ambi\'alçntç contamina a rdaçào das comunidadçs
com os órgãos rçsponsá\'çis Pçla sçgurança. reprçsçntados pdos
policiais. Aquçlçs qUç dçvçrial1l garantir os dirçitos indi\iduais ç a
manutçnção da orckm são muitas \'çzçS os primçiros a lksrçsPçitá-lns
ç a transgrdi-Ios, As rçgras impostas pdos donos dos tçrritórins
mostram-sç dç grandç intlçxibilidadç. Os .I0\,çns rçgistram Çm
cOll\'Çrsas informais - poucos Sç disp()çm a discorrçr sobrç n assunto
Çm çntrçvistas - qUç algumas \'çzçS a rua podç sÇr mÇnos Pçngosa
qUç a vida nas cnmunidadçs,
O dilçma das famílias na dçlicada relação dç moradia foi
tçstçmunhado durantç a pçsquisa çl11 Pçlo l11çnos duas ncasiõçs: a
primçira dçlas dçu-sç quando a Pçsquisadora acompanhava a
audi~ncia dç uma adokscçntç. na 2a, Vara da Infúncia ç
Adolçsc~ncia. A mik ç a irmã mais \'dha da mçnina foram chamadas
ú prÇsÇnça do Juiz. qUç dâiniria uma mçdida sócio-çducati\'a para a
Jo\Çm. Enquanto aguardava a audi~ncia. a mãç. muito nçl"\nsa.
rçlatou quç çncontr~l\a-Sç Çm çstado dç aprççnsào com a situaçàl\
quç Sç criara para a família. a partir do comportamçnto da filha.
Sçgundo a mãç. o Juiz teria mandado ú sua rçsid~ncia lima \'iatura
com l) l)bjçti\'() dç garantir a prÇsÇnça do rçspnnsú\'çl na alldi~ncia çlll
qUç dçtçrminaria o çncaminhalllçntn do futuro da mçnina, ..... simpló
prÇsÇnça dç uma \'iatura oficial na t:wçla nndç mora\a a família
acarrçtoll grandçs transtornos. porquç havia uma on,km ÇxprÇssa na
comunidadç qUç nil1gu~m dç\'çria atrair para Iú a prÇsÇnça da polícia
ou dç outras autoridadçs. sob PÇna dç sÇr sumariamçntç çxpulsll do
Incal. O lksçsPçro da màç ç da irmã da jO\çm. qUç ch\lra\'am ç
discutiam as POSSI\'eIS consequ~ncias da "visita", somavam-se ao
desgosto com o "desencaminhamento" da filha.
Numa segunda ocasião. \'eritlcou-se a situação similar: uma jo\'em.
sob a tutela do juizado. e\'adiu-se do local onde cumpria medida de
ressocialização, e procurou refúgio em casa de parentes. em local
próximo à instituição onde esta\'a internada. Por ordem judicial. uma
\'iatura dirigiu-se ao endereço familiar. com um mandato de busca e
apreensão da jovem. Ao retornar ao internato. a adolescente
mostrava-se transtornada. porque causara s~rios problemas para a
perman~ncia da família na comunidade, pela presença de oficiais de
justiça no local.
RELAÇÕES CULTURAIS
Ao mesmo tempo qUe os JO\'ens e cnanças do grupo pesquisado
adotam certas práticas culturais qUe tenderiam a caracterizá-lo
como um subgrupo cultural (relações socIaIs ongll1als. como as
fam ílias de rua. certas regras de comportamento e sol idariedade.
\'ocabulúrio específico. etC). sentem-se fortemente atraídos por
padrÕeS difundidos pela indústria cultural moderna. e
especificamente a americana. Assim. ao lado de e'\pressl1cs qUe
lembram dialeto popular de origem africana. qUe caracteriza sua fala.
os jll\'enS desejam aprender ingl~s. \'luitos reclamam da escola por
não transmitir-lhes este conhecimento.
128
"Aquçla çscola ~ ruim. só çnsina brasikiro. ÇU quçria falar ingl~s."
~:luitos dçdicalll boa partç do tçlllpO a dçcorar Pçlo som as musIcas
qUç do tocar nos baiks dç fim dç sçmana. Na dança çks imprm'isam
uma mistura dç dança afro-brasilçira com çstilo Michaçl Jackson.
akm do popularíssimo çstilo funk. At~ na \'çstilllçnta (isto nbsçr\'<1\'çl
çlll rçlaçüo às moças I podç-sç obsçJ"\'ar uma indçcisüo Çm Sç
idçntificarçm com o çstilo afro. dç roupas mais amplas. çstampadas.
çtc. ç com o çstilo Xuxa. colantç, curto, rçtilínço.
Rçgistrç-sç a nítida intlu~ncia da atuaçüo dç grupos dç cultura afro
brasilçira com as crianças dç rua. sçja atra\"~s dç ahordagçns dirçtas
com os mçninos ç mçninas. sçja atra\'~s da militância dç çducadorçs
dç rua nos mo\"imçntns dç cultura afro. A fala das crianças dçmonstra
uma mudança. ainda qUç incipiçl1tç. na auto-imagçm do grupo. Após
ullla tçmporada no Rio dç Jançiro do grupo dç tçatro ç dança afro
Olodum. da Bahia. a qUç o grupo Pçsquisado tç\'ç acçsso. algumas
adokscçntçs passaram a \'alorizar a aparÇncla adotada pçlos
\'isitantçs (Pçntçados. trajçs. çtc I .
. -\ ati\idadç cultural mais popular çntrç as crianças dç rua parÇCÇ sÇr
as rodas dç capoçira. Hú \úrios mçstrçs qUç fazçm trahallw \ oluntúrio
na rua. nutros çstüo i ntçgrados a projçtos in sti tuc inna i s. .-\ rnda dç
capoÇlra funciona claramçntç como um canal dç \az:lll dç
agrçssi\'idadç ç dç distçnsionamçntn dos gruplls, Os j(\\çns aprçci<lln
o ritual ç Sç disciplinam l) suficiçntç para sçgui-Io. acçitando a
lidçrança dos mçstrçs .. -\Igumas mçninas tamb~1ll participam da roda.
129
mas a grand~ maioria ~ d~ meninos, Numa s~\ta-f~ira Ú noit~. dia que
s~gundo os m~ninos(as) "o bicho p~ga". ou mdhor os {lIlimos ~stão
~\altados. porqu~ des qu~rem t~r algum dinheiro para ir para os
baiks funks ~ pagod~s. e. ainda s~gundo d~s. a polícia estú mais
ati,'a. o Proj~to EXCOL\ adotou a prática da capoeira. ,'isando
cont~r a violência, A d~c1araçào de um rapaz par~c~ confirmar o
suc~sso da iniciati,'a, Ao constatar a animação da "roda" o rapaz
d~cidiu: "S~ ~ssa roda ficar boa assim. cU n~m roubo mais .. ,"
Nos ~sport~s um t~1to CUrIOSO mostra o pod~r da mídia ~ da
padronização da cultura dominante: um menino d~ dez anos. que
s~mpre ,'i,'~u nos arr~dor~s de Campos. \'~io para o Rio de Janeiro de
carona c1and~stina ~nl um caminhão. com o objeti\'o de m~ndigar
para juntar dinh~iro prá comprar um skate. ~sporte p~lo qual
d~c1arou-s~ "vidrado", Est~ m~nino acabara d~ ganhar uma camisa do
Flam~ngo. com a qual estava ,'~stido. mas diss~ d~sconh~cer o time c
não Se identificar com tim~s (:k futebol.
Há uma produção cultural ,'oltada para um público transgressl1r. qu~
inCellti\'a claram~nt~ uma id~ntificação imaginária com os ,alnres da
marginalidad~. como mostram as letras dos s~guint~s partidos-altos
~ntoados pdos m~ninos ~ m~ninas:
I) Pintou suj~ira. alô malandragem. tlagrante .. ,( Bis)
A cama dura chegou. o sarg~nto. o ten~nt~.
S~lI comandant~ olha aí .. ,
Cago~taram qUe ha,'ia malandro
uo
Os "homç" \'içram armado dç macaco. çscoPçta ç pastor akmào
( Bisl
Sç marcar bobçira \'ai sÇr grampçado
E dçpois çxplicar o cçrto pro Dr. "adç\'ogado"
qUç nào \'ai dar na di"idida.
çstou jú na ( ... 1. "OU sair batido.
Quando o malandro ~ dç \'çrdadç
na briga nào "ai sair krido.
Quçm cagoçtou foi a filha ( , .. I da rapazçada
Já çstú fçdçndo. qUç só tçm malandro da barra Pçsada.
:\ão ha\'çndo tlagrantç os "homç" \'ão \'çr qUç tá tudo COITçtL).
Pçdç dçsculpa prú rapaziada.
não prçndç ningu~m ç çstú tudo cçrto.
21 ~'ku \'izinho jogou um macçtç no mÇu quintal
Dç rçPçl1tç brotou Ulll trçlllçndo matagal
E quando algu~1ll mÇ Pçrgunt;na.
qUç mato ~ ÇSSç qUç ÇU nunca \ i'.'
Eu só rçspondia.
qUç mato ~ çssç. isso nascÇu aí .. ,
Vias foi pintando sujçira
:\ palalllo çsta\'a sÇmprÇ na jogada
porquç o chçiro Çra bom
ç ali çsta\'a sÇmprÇ uma rapaziada.
Os "homç" dçsconfiaram
ha\ia todo dia uma aglnmçraçãn.
:; I :\uma loja da cidadç ÇU fui cOlllprar o ( ... 1
mas mÇ assustçi com o prÇço ç fiquçi SçTll solução.
I :; I
Eu queria um oitão. quando ia desistir,
um amigo me indicou a feira de Acari ...
Ele disse que na feira. pelo preço de um oitão.
eu compra\'a uma pistola, um oitão e um bagulhão.
Tudo isso se encontra numa rua logo alí.
~ molinho de achar. ~ na feira de Acari ...
É sim. lá em Acari
Eu conheço um barraqueiro que atende por Man~.
ele \'ende muita coisa. sempre tem o que tu quer.
A barraca ~ muito grande, nela \'ocê sempre tem
uma merreca pal!as as balas e o oitão le\'a de l!raça ... ~ ~
Tudo isso tu encontra numa rua logo ali.
~ molinho de achar. ~ na feira de Acari.
Sobre esta última letra. \'ários adolescentes confirmam a \'eracidade
do exposto. Um deles conta inclusive que ganhou sua primeira arma
lá. Nas artes plásticas. as crianças confirmam essa tendência de
\'alorizar aspectos e situações de transgressão. Vúrios desenhos e
pinturas giram em torno de situações de assalto. sangue. morte. al~m
de ser prática comum usarem o "logotipo" do Comando Vermelho.
A COMUNICAÇÃO ENTRE AS CRIANÇAS DE RUA
Ainda com referências às relações dos grupos entre si. ~ interessante
notar que as crianças estabekcem uma rede de informaç{io que lhes
permite saber quem estú preso. em que local. qual o moti\'() da prisão.
\ "'., -'-
quando s~rá a possí\'~1 lib~rtação ~ at~ as datas d~ audi~llcia com o
JUIZ.
Para não ficar~m isolados nos p~ríodos d~ int~rnal11~nto ~m
instituiçõ~s. s~m notícias d~ s~us coJl1panh~iros. os jO\'~ns instituiram
a prática d~ mandar r~cados para o grupo. EI~s al~galll qu~ pod~1ll
s~r \'ítimas d~ \'iol~ncia ou m~SJl1O d~ ~xtçrmínio. ~ por isso o grupo
d~\'~ ~star s~mpr~ ci~nt~ do local para ond~ foi ~ncaminhado o
companh~iro( a) ~ o t~l11pO pr~\'isto d~ int~rnam~nto. Os r~cados ao
grupo ou aos ~ducador~s ~ transmitido \"Ia d~ r~gra por outro
companh~iro qu~ ~st~ja d~ passag~m na instituição. ou por
t~kfon~l11as dir~tal11~nt~ aos ~ducador~s. Os jO\'~ns contam qu~ S~
algum funcionário t~ntar il11p~dir ~sta col11unicaç;io. ~I~s r~ag~1ll
prontalll~nt~. s~ pr~ciso at~ COIll uma r~b~lião.
Esta r~d~ informal d~ comunicação ~ muito dlci~nt~. \i~nhum jO\'~m
s~ subtrai à tarâa d~ transmitir um r~cado d~ um cOlllpanh~iro.
m~smo qu~ a tarâa Ih~ torn~ dias. ~ s~ja r~alizada indir~tam~nt~. ou
s~ja atr~l\'~s d~ outra criança. qu~ conh~ça algu~m do grupo ond~ a
Ill~nsag~m d~\"~rá ch~gar. Por di\'~rsas \'çz~s a p~squisadnra foi
int~rp~lada por adol~sc~nt~s. ~111 ~ncontrns casuais. a transmitir
algum r~cado aos ~ducador~s ou a outros m~ninos COI11 os quais
~stana ~111 contato. A apar~nt~ L11ta d~ ~strutura na \id;l da rua ~
totallll~nte d~sf~ita assim qu~ s~ l11~rgulha n~sta dinúl11ica instituída
p~lns grupos. Os ~ducador~s participam com d~s~n\oltura d~ssa
dinúmica. localizando rapidam~nt~. atra\ ~s d;l cad~ia (k
I "'"' .' .'
cOll1unicaçõ~s. uma criança ou adol~sc~nt~ com a qual pr~CISal1l
l1lant~r contato.
As comunicaçõ~s não s~ limitam. ~ntretanto. à função d~ prot~ção do
grupo à \'iolência ou isolam~nto. Funcionam como um \'~rdad~iro
telefone sem fio. ~m qu~ s~ manda igualm~nt~ Ill~nsag~ns silllpl~s ~
inflntis como "amanhã ~ m~u ani\'~rsário". "~stou do~nt~. \'~m m~
\'~r". "ganh~i roupa 11\1\"a". '\'ou \'isitar minha mã~". "~ntr~i pra
~scola".
DISPARIDADE SOCIAL, MENINOS DE RUA E
CONSUMO
Eis qu~ ess~s jO\'ens que há anos \'i\'~m nas ruas. por um complexo
processo d~ rebeldia. aliado ao fracasso do modelo familiar. à
ausência de autoridade que se interpusesse àquela. ao distanciamento
de \alores tradicionais de uma cultura originalmente rural e arcaica. e
à mercê de uma incessante produção d~ d~s~jo de consumo que paira
nos centros urbanos. representam. aos olhos da classes m~dia urbana.
a sua própria caricatura.
A sofreguidão pelo consumo não ~. e\'identemente. pri\ikgio dos
melllnos e m~llInas de rua. eles apenas se arriscam e se frustram
infinitamente mais pela realização d~sses desejos. Arrisco dizer que
a enorme \'alorização que atribuem ú posse sempre transit()ria de
qualquer mercadoria. seja um tênis. uma camisa ou um reklgill de
marca (h,) meninas qUe dizem Se "especializar" em furtar roupas e
aCessórios de marca I tem origem num sentimento ele integraçilo
momentânea ao padrilo est~tico das classes dominantes. Pela \'ia do
consumo integram-se \"isualmente à sociedade. Próximo ao Natal de
1991. um rapaz. em companhia de um educador. eXpreSSOU SeU
desespero quanto ú "necessidade" de mergulhar no consumislllo qUe
nesta ~poca eletriza a população de modo geral. Ao passar frente às
\'itrines de um grande magazin. onde brilha\',1Il1 as mais tentadoras
mercadorias. ele diSSe qUe ia acabar Se jogando contra a \·itrine.
"mesmo qUe Se cortasse todinho. ou então fOSSe preSo". Illas ele ia ter
aquelas coisas de qualquer jeito.
A análise Iacaniana de Calligaris sobre o consumisll1() me pareceu de
extraordinária pertin~ncia Ú situação obser\"ada: (O consumo) "~ um
círculo \'icioso qUe aliás eXCede de longe as fronteiras do Brasil.
Simplificando por eXemplo: II o ideal social dominante parece ~e
situar do lado do aCesso a bens de consumo: 21 qUe o \'alor do sujeito
seja suspenso à sua riqueza exibida. por exelllplo. destitui de possí\ el
paternidade qUem está na pobreza. e - coisa mais gra\e e mais geral -
deixa pre\'alecer o real nos laços qUe organizam a nossa \ida social.
pois ser "algu~m" nilo parece Ser mais um efeito de nome. mas (l
efeito da possessilo real de coisas: :; I o~ atos pretensamente
simbólicos com os quais Se tentarú ser "algu~m" perseguirão (l mesmo
ideal social dominante. ou seja. a captura de bens na bolsa ou nos
bolsos: 4) por consequ~ncia. esteS atos fracassarão em ser silllbl)licos.
pois produzirão um \alor qUe sustenta do lado do real. confirmando II
qUe estú no item I). E Se reCLlllleça. DeSSe ponto de \ ista. a
~sp~cificidad~ brasikira consistiria so numa ~xtraordinária
d~sigualdad~ na distribuição dos b~ns ~ uma subs~qü~nt~ hip~rtrofia
da criminalidad~."
o autor conclui qu~ "a marginalidade é sempr~ d~s~sp~radam~nt~
conformista" (Calligaris. id~m. p. 118, 119).
Esta dim~nsào conformista do comportam~nto dos Jlw~ns ~
~xplicitada quando, m~smo \'i\'~ndo ~m condiçi)çs abaixo do ~xigido
por padrõ~s mínimos de b~m-~star social. d~s expr~ssal11 o J~s~jo d~
d~sfrutar d~ pri\'ilégios sociais ost~ntados por s~us dOll1inador~s.
A afirmação d~ um m~nino d~ tra~ anos. qu~ \'i\'~ nas ruas "d~sd~
qu~ nasci". ilustra b~m o çf~ito p~r\'erso dessas contradiçõ~s. Ek. qu~
já s~ ~squ~c~u do qu~ é dormir numa cama. qu~ nunca t~\~ ac~sso a
qualqu~r b~m social. d~c1arou ~m bom tom qu~ não ~studa pnrqu~
"\)ào gosto da ~scola pública. minha mà~ (qu~ no pró~nt~ caso é
alcoólatra. ~ \'i\'~ de m~ndicância no centro da cidad~) \'ai m~ botar
no colégio particular". Há inúmeros ~xemplos similar~s colhidos dos
d~poim~ntos das crianças. Há moças qu~. analt:1b~tas aos da~ss~t~
anos. sonham ~m s~r prof~ssoras ~ por isto não ac~itall1 as "chancçS
d~ trabalhar como catadoras de papd". Há rapaz~s qu~ aguardam a
oportunidad~ d~ \'irar~1l1 piloto d~ avião. ~ d~scartam a carr~ira d~
~ngraxat~.
São facillll~nte obs~rd\~is as r~açõ~s d~ crítica ~ r~pnwaçào qu~
atitud~s dest~ tipo provocam nas p~ssoas qu~ t~11l com d~s uma
U6
relação casual ou indireta (transeuntes. dono do bar. policial.
autoridades do go\'erno. técnicos de projdOS. médicos. dc I, Ti\'e a
oportunidade de listar expressões tais como: "presunçoso". "não
reconhecem SeU lugar". "das não querem é pegar no batente". "não
está \'endo que esta profissão não é para ela'.'" Ou seja. há no senso
comum uma ideologia instalada de que os pobres devam conformar-
Se com sua pobraa. e de que os miserá\'eis de\'am aceitar
misericordiosamente as "chances de recuperação que lhes são
oferecidas". E essa forma de rebeldia. essa ousadia de desejar o que
lheS é impossí\'el alcançar fere aquele princípio que garante uma certa
estabilidade nas relações entre pessoas de classes sociais tão
diferentes, Ou taha sugira uma distante competição. a qual os
SetoreS pri\'ilegiados da sociedade não tolerariam. ou sugere ainda
que para Se firmar a SeUS próprios olhos como classe. não basta Ser
detentora de tantos privilégios. É necessário que Se mantenha o
contraste, A auto-sustentação parece Se basear na diferença. no
contraste entre aquele que tem e aqueles que não t~m.
A VIDA NAS INSTITUiÇÕES
\:este item está sendo abordado as passagens de meninos e menInas
de rua Pl)I' algumas instituições do Rio de .Ianeirn. \:ãl1 me referirei ú
problemL1tica especifica da cnança do adulescente
institucionalizado. porque o perfil do grupo pesquisado não remete a
esta questão. (Para uma \'isiill sobre a criança que \i\e em
,".., " I
instituiçõ~s oficiais. \'~r Altoé. Angda Valladar~s, Wilson Moura ~
outros. cujos trabalhos ~stão na Bibliografia.l
A amostra de crianças qu~ s~ pod~ consid~rar "crias de instituiçõ~s"
no grupo (cinco registros). confirma o fracasso do obj~ti\'l) de
int~gração à soci~dad~. Ap~nas uma jo\'~m s~ alt~lbetizoll nos longos
anos ~m qu~ vi\'~u sob a tutda d~ órgãos oficiais. No mais. o grupo
não se profissionalizou. não des~n"oh'~u interaçõ~s sociais que
possibilitasse uma "ida adulta autônoma, e todos salram das
instituiçõ~s para \'i\'~rem nas ruas.
A "ida de todo melllno ou menllla de rua está r~cheada de estórias
sobre as instituições pelas quais passaram, Conclui-se de s~us relatos
que as crianças e adolesc~nt~s d~ rua passam a maior parte de suas
\'idas numa int~rminá\el ~ inútil \'ia crucis ~ntre as mais \ariadas
instituições ~ num eterno retorno à \'ida da rua,
As crianças map~iam com desem'oltura os nomes. as características
os pontos n~gati\'os e positi\'l)s d~ cada um dos ~quipamentos
disponíwis na cidade. faz~ndo inclusi\'e avaliação sobre a arquitetura
dos no\'os ~quipamentos qu~ são inaugurados, Um adolescente. ao
conhecer a nO\'a casa para m~ninas. inaugurada no Estácio.
comparou-a com a arquit~tura da escola Tia Ciata e fez <l <l\aliação
de que não ~nt~nde porque "~ks ficam construindo casas tudo igual.
Era melhor cada lugar s~r d~ um j~ito. difer~nte", Os meninos e
meninas lidam indistintamente com as instituições para as quais são
~ncaminhados complllsoriam~nt~ e com aqll~las de freqll~ncia
\'oluntária. Repetidas \'ezes oll\'i solicitação de jovens para internação
em akum CRIAt\:1 - Centro de Recursos Inte!.!rados de Atendimento ~ ~
ao \Ienor - que ~ um órgão destinado a ressocialização de crianças
infratoras. para onde são le\'ados compulsoriamente. por decisão do
Juiz. As solicitações tinham como objeti\'() fugir temporariamente da
\'iol~ncia da rua.
As instituições em geral - de caráter compulsório ou não - podem ser
procuradas espontaneamente pelos meninos quando a situação na rua
lhes parece extremamente perigosa. ou quando se sentem muito
debilitados fisicamente e precisam descansar. Da mesma forma. (1S
abrigos alternati\'l)s. de frequ~ncia \'oluntária - aqui se inclui a
experi~ncia escolar - sào confundidos com os primeiros. tahez
porque as regras de- con\'i\'~ncia estabelecidas por estes projetos
sejam igualmente discricionárias em relação ao comportamento das
crianças e adolescentes. De urna forma ou de outra. a \'ida no
interior das instituiçi'les torna-se insuportl\el para os Jo\ens. que
termlllam por retornar para as ruas.
As internações compulsórias. de tào repetidas sào percebidas corno
situações ine\'itá\eis. corno parte da rotina de \'ida deles. As crianças
e jo\'ens expressam graus \'ariados de reaçào às internações: algumas
\'ezes mostram indiferença à detenção: outras \'ezes procuram
re\erter a situação de prisão em algum benefício própriu. quando eles
apro\'eitam a ocasi,lo para conseguir uma consulta m~dica ou um
documento: já em nutras ocasii'les expressam uma re\nlta imediata e
buscam a fuga.
1-' l)
Ilustra ~ssa relaçào inusitada qu~ os jo\'~ns ~stabel~c~m com o local
destinado ao castigo o r~lato d~ uma adol~sc~ntç d~ quinz~ anos,
numa ocasião ~m qu~ fui visitá-la numa instituição para m~ninas
infratoras. Ela contou qu~ foi pr~sa numa festa, ond~ ~sta\'a com o
namorado (também m~nino de rua). O rapaz não foi detido, mas a
acompanhou à delegacia ~ lá diss~ ter participado da infraç<1o. com o
intuito d~ s~r int~rnado no mesmo compkxo qu~ a namorada, no
órgão destinado aos m~ninos. Assim poderia ~ncontrá-Ia nas
ati \'idad~s recreati \'as durante o tim-de-s~mana.
Com relaç<1o às fugas, uma m~nllla de dez~sseis anos contou qu~.
após s~r bem suc~dida numa fuga que lh~ custou muito plan~jal11~nto.
ligou d~ um orelhão para o dir~tor da instituiçào ~ pergulltou s~ ~k
ha\'ia gostado d~ sua ~'fuga sagaz".
Há também o depoim~nto d~ um m~nIno d~ ap~nas doz~ anos qu~
declara já ha\'~r passado pelo "Padr~" ([nstituto Padr~ S~\'~rino.
c~ntro d~ tria!.!~m para m~ninos tla!.!rados ~m atos infracionais) "mais ~ ~
d~ dez \'ez~s". E outros rapazes, mais irônicos. qu~ s~ d~claram
"sócio-atktas" da Instituição, ref~rindo-se às constantes fugas qu~
~mpr~~nd~m.
Os jO\'~ns qu~ cumpriram p~nas mais longas informam qu~ fiz~ram
cursos profissionalizant~s. Mas ~ntr~ todos os ~ntr~\'istados não h:1
um so r~lato d~ apn1\'~itam~nto do conh~cilllento adquirido nos
cursos. após o r~torno a rua. Isto porqu~. na a\'aliaç<1o dos
~ntr~\'istados. não há oportunidad~ d~ utilização do conh~cim~nto
14()
adquirido. qu~ r~sulta inútil. No caso ~specífico das m~nInas - CUJa
int~rnação s~ dá ~m instituiçõ~s s~paradas - muito poucas \'a~s ouvi
r~lato sobr~ ati\'idad~s profissionalizant~ d~s~m'oh'idas na Escola
Santos Dumont ~ nos CRlAMs. R~corri à dir~ção da Escola Santos
Dumont para obt~r informações sobr~ o assunto. ~ a resposta foi qu~
as m~ninas internas têm acesso a alguns cursos como manicure.
cabeleireira e corte e costura, para "ocupar o tempo" na instituição, O
ócio. o tempo não-produtivo. como sabemos. apavora e desconcerta
tanto o espírito religioso quanto o espírito capitalista. Pelas
representações que os meninos e meninas de rua elaboram acerca
destas instituiçõ~s. conclui-se inevitavelmente pelo fracasso das
mesmas em relação aos objetivos declarados. quais sejam. de
ressocialização. educação e integração de crianças e adolescentes à
\'ida social. Na prática. a cada período de internação nessas
entidades cOITecionais os Jo\'ens se distanciam mais de reais
possibilidades de integração na sociedade.
Por outro lado. é igualmente negativa a imagem que a coleti\'idade
elabora sobre a criança que tem passagens por instituições deste tipo.
"A marca da FEBE!\1 e da polícia dá a certeza d~ qu~ e1~ é
intrins~cament~ criminoso. tornando-o para s~mpre culpado p~rant~ a
soci~dad~. Portanto. a passag~m pelo int~rnato t~nd~ a piorar a sua
situação. dificultando suas possibilidades de int~gração social por
outra \'ia qu~ não a da marginalidad~" (Rizzini: 1991)
As instituiçõ~s d~ at~ndim~nto - s~JJm ~scolas. prnj~tos d~
profissionalização ou ~quipam~ntos d~ abrigo - por sua \'a.
1.+ 1
selecionam informalmente a clientela atendida, pelo comportamento
adotado pelas crianças, argumentando que não têm condições de
atendimento especializado. Restam, portanto, a um contingente
especialmente rebelde e difícil repetidas passagens por instituições
repressivas e con'ecionais e um eterno retorno às ruas. Há um
processo não declarado de facilitação de fuga, pelo qual estes órgãos
se livram do con\'Ívio com as crianças as quais não conseguem
submeter ao esquema disciplinar, ou que necessitariam de cuidados
especiais para os quais nenhuma instituição se diz preparada.
Há. entre os grupos de rua, um considerável número de crianças e
jo\'ens que se enquadrariam em diagnósticos de distúrbios de
comportamento. distúrbios mentais ou neurológicos. São crianças que
a família. num primeiro momento. desistiu de atender. e agora são
igualmente rejeitadas pelas instituições, porque são incontroláveis,
não se submetendo nem mesmo a autoridade policial (leia-se
violência física). Esse quadro sugere que as famílias. sem apoio de
equipamentos públicos e de serviços sociais adequados para orientá
las no trato com esses problemas específicos e ainda sem condições
financeiras de arcar com tratamento adequado às necessidades da
criança. terminam por incenti\'ar o rompimento dos laços familiares.
A forma pela qual a questão ~ colocada pela sociedade. ou seJa
recuperar, reintegrar. ressocializar menores infratores, pivetes,
delinquentes juvenis e tantas outras expressões que refletem de
antemão o julgamento da situação. deslocam o problema da própria
formação sócio-econômica e ideológica da sociedade brasileira, para
142
localizá-lo num segmento desviante, e portanto culpado pda própria
situação de marginalidade. Desse suposto caminha-se naturalmente
para ações de punição, correção e privação de liberdade.
Cumprida a trajetória de cnança pobre a menor infrator. que se
materializa pelas internações em instituições totais. instala-se
definitivamente o estigma de excluído, ilTecuperá\'d e futuro bandido
que se atribui às crianças de rua.
Goffman ( 1988) conceitua estigma como um atributo profundamente
depreciativo e desabonador, capaz de proscre"er da \'ida social, o
indi\'Íduo ou o grupo que o incorpora. A marca atribuída ao grupo
pode mesmo Ie"á-Io a uma condição de desumanidade:
"Por definição. ~ claro. acreditamos que algu~m com um estigma não
seja completamente humano. Com base nisso fazemos \'ários tipos de
discriminações. atra\'~s das quais efetivamente. e muitas \,çzes sem
pensar. reduzimos suas chances de \·ida. Construímos uma teoria do
estigma. uma ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do
pengo que da representa. racionalizando algumas \'çzes uma
animosidade baseada em outras diferenças. tais como as de classe
social." (GOFFrvIAl\'. En'ing. Estigma: Notas sobre ª manipulação
da identidade deteriorada. Ed. Guanabara. 1988. p. )
Por esta "Ia de análise. abre-se caminho para um comportamento
social de intolerância e rejeição contra as crianças. A dupla face da
realidade social está assim constituída.
I·l.)
MORRER CRIANÇA NA RUA
INTOLERÂNCIA, TORTURA E MORTE
o presente estudo Se dirige a um segmento específico da população
infantil socialmente marginalizada no país. ou seja. crianças que
terminam por \'i\'er nas ruas de grandes centros. para lá empurradas
por uma escalada de insensí"eis medidas gO\'ernamentais e omissõeS
da sociedade ci\'il. Por uma infeliz conjuntura de miséria e estigma
social essas crianças constituem hoje o segmento populacional mais
dramaticamente atingido por um conjunto de t~ltores que as t~m
k\'ado à morte precoce. :\ksmo assim. faz-se necess,1rio dizer que
elas não são as úniós \'Ítimas fatais do modelo neoliberal que se
implantou no pais com características particularmente excludentes. É
preciso mais uma \'ez contextualizar o drama dos meninos e meninas
de rua numa realidade social que abrange grande parte da int~1ncia
pobre brasilçira e que culmina em índices de mortalidade int~lntil
inaceitá"eis Se comparados aos padrões econômicos globais atingidos
pelo país.
Recentes índices referentes à situação da infância e da adnlesc~ncia
no Brasil atestam que o modelo econômico e a atuação dos go\ernos
,'em ceifando a "ida de milhares de crianças. A regiilo Sudeste. na
qual Se localiza o fenômeno estudado. considerada a região mais
desen\'oh'ida do país. apresentou em 1989 um índice de mortalidade
no primeiro ano de "ida de .:n mortes para cada mil nascimentos - o
triplo do verificado em países desem'oh'idos. A população infantil
carente (renda famil iar até 1/2 salário mínimo) na mesma região, no
ano de 1990 figurava em torno de 9 milhões de crianças.( Ver Crianças
e Adolescentes: Indicadores Sociais. Fundaçào IBGE, 1989) A
situação da infância pobre vai ainda se agudizando pelo extermínio
sistemático de que os meninos e meninas de rua tem sido vítimas.
com especial intensidade no Estado do Rio de Janeiro. onde. de
acordo com dado divulgado pela Segunda Vara de Menores do
Juizado da Infância e Adolescência. a média mensal de assassinatos
de menores de 18 anos foi de trinta e nove casos no prin1l;~iro semestre
de 1992.
Uma economIa incri\'e1mente excludente aliada a "uma orientação
ideológica fundamentada no autoritarismo" (Relatório da Comissão
Parlamentar de Inquáito sobre extermínio de cnanças e
adolescentes,l992). uma cultura fortemente marcada pela experiência
ditatorial e por práticas sociais caracterizadas pela intolerância com
os des\'iantes fornecem as condições para a prática impune do
extermínio. Na história recente do Brasil abundam exemplos de
segmentos populacionais relegados à condição de subcidadãos ou
não-cidadãos. por interesses de setores dominantes da sociedade.
Fragilizados. estes segmentos se transformam em al\'l)s fáceis de
uma política inconfessa de extermínio. São exemplos os sem-terras.
os seringueiros. os índios. os posseiros em áreas de fronteira agrícola.
Oriundos de classes ruraIs. de t:lmílias espoliadas em seus direitos
básicos. sào agora as cnanças. que do para as ruas.
146
fundamçntalmçnte para procurarçm garantir a propna subsist~ncia,
o al\'o dç procÇssos dç çxtçrminio sistemáticos ç organizados,
A nÍ\'d nacional. o çxtçrmÍnio dç cnanças çstá documçntado no
Rdatório tinal da Comissão Parlamentar de Inquérito acima citado,
Outros documçntos dç igual substância são: "Vidas Çm Risco:
Assassinatos dç crianças ç adokscentes no Brasil":( :\'IN~vll\1 R,
IBASE, NEV-USP) ç "Extermínio de Crianças ç Adolçscçntçs no
Brasil", CEAP (Cçntro dç Estudo de Populaçõçs Marginalizadas),
1989,
A inclusào de um itçm sobrç \'iol~ncia e mortç no prçsçntç çstudo
tornou-sç imprçscindÍ\'d no dçcorrçr da Pçsquisa, dç\idn a dois
Lttorçs: o primçiro dçles é qUç ticou atestado qUç o mçdo da mortç é
um Lttor marcantç na \'ida das crianças, As constantçs amÇaças ç a
\'iol~ncia física ç psicológica qUç caractçrizam o cotidiano do grupo
produzçm Çm grandç partç o comportamçnto \'ioknto ç o
rçssçntimento contra a sociçdadç, Não se podç comprççndçr as açõÇs
infracionais ou comportamentos classificados como anti-sociais por
wZÇS adotados pdas crianças, fora deste contexto dç afronta aos
direitos da PÇssoa humana, ç, ainda mais gra\,ç, contra Pçrsonalidadçs
Çm procÇsso dç dçsçll\'oh'imçnto, Em sçgundo lugar. porquç ç
nçcçssário traur à luz çsta facç sombria da nossa sociçdadç para qUç
possamos denunciá-Ia ç combatê-Ia, Práticas sociais pautadas pçlo
prçconcçito racial. discriminaçào dç classç ç dç gênçrn t~1ll sido
cuidadosamentç ocultadas por \'çrdadçs embkmáticas do tipo "nào há
racismo no Brasil", "somos um povo pacato ç solidário", "há uma
1~7
comWencIa harmoniosa entre as elites e o pO\'O brasileiro", Se
qUeremos uma nação pautada pelos princípios de solidariedade e
justiça. nào podemos nos esquivar de encararmos os resquícios de
autoritarismo. intolerância e preconceitos que sustentam as práticas
as quais exemplificaremos.
Foucault propÕe qUe. para nos aproxImarmos da concepçào qUe a
sociedade fOlja sobre si própria. de\'emos nos deter num " ... proCeSSO
de im'estigação qUe consiste em tomar as formas de resistência aos
diferentes tipos de poder."
"Para Se compreender o qUe a sociedade entende por sanidade. por
eXemplo. talvez seja preciso analisar o qUe Se passa no campo da
insanidade. E. da mes"ma forma. analisar o qUe Se passa no campo da
ilegalidade para compreender o qUe queremos diZer quando falamos
da legalidade, Quanto às relações de poder. Se qUIsermos
compreendê-Ias. talvez tenhamos qUe analisar as formas de
resistência e os esforços dispendidos para tentar dissoh'ê-las""
("Porque estudar o poder: a questão do sujeito". mimeo)
~o caso presente. em qUe enfocamos a oposição entre um segmento . da população int~lnto-ju\'eniI. destituida do aCesso aos bens materiais
e culturais do país e parcelas dominantes da sociedade. temos que a
indiferença. a intolerância. e a repressão afloram como caracteres
constitutiH)s da cultura nacional.
148
Algumas instâncias da soci~dad~ ori~ntam-s~ ~xpr~ssament~ ~m fan)J"
da política de ~xt~rmínio como solução para a qu~stão dos meninos ~
m~ninas de rua. Citarei alguns posicionam~ntos aos quais ti\'~ ac~sso.
pela grand~ capacidad~ d~ r~percussão qu~ ~ste discurso encontra na
soci~dade ~m g~ral.
CRIANÇA POBRE: UMA QUESTÃO DE SEGURANÇA
NACIONAL
o docum~nto Estrutura do Poder Nacional para o ano 2001.
elaborado pela Escola Sup~rior d~ Guerra no ano de 1990. trata o
probkma da pobreza ~ do menor abandonado no it~m destinado à
S~guranca Pública. S~ndo um documento oficial. ~ lícito inferir qu~
ele expr~ss~ uma dir~triz qu~ Yá balizar açõ~s di\'ersas nesta úrea.
"0114 - Da Segurança Pública
\'0 úmbito int~rno. como fort~ al1l~aça futura ao ob.i~ti\o nacional
p~rmanente Paz Social e à própria paz. há uma situação compkxa qu~
\~111 af~tando ~. at~. pod~rá at~ntar contra a Segurança Pública d~
modo d(lminant~. com rdl~xos e. m~smo. atingim~nt() do campo da
S~gurança. gerando um estado d~ insegurança gen~ralizada tal qu~ os
pod~r~s constituídos. nos t~rmos da Constituição. \'~nhal11 a pedir o
concurso das Forças Armadas para restaurar a lei e a ordem.
1.+9
Este quadro antevisto decorre de dois problemas interligados. os
cinturões de miséria. que envolvem as grandes cidades. e a questão do
menor abandonado,
a) os cinturões de pobreza
o pnmeuo problema faz proliferar e interage com ofertas de
"empregos informais". ocupações bem remuneradas a adultos. jowns
e. mesmo crianças. de organizações criminosas com aparentemente.
fortes suportes no meio da sociedade. Há \'erdadeira rede. cada vez
mais nítida, que explora jogo. tóxicos e, possivelmente. outras
mazelas sociais.
Na medida em que Estado e Sociedade não conseguem oferecer
trabalho. bem estar e segurança. essas estruturas clandestinas de
\'irtual poder paralelo v~m criando condições de melhoria para cada
coletividade local. no micro-espaço onde a estrutura atual. o que lhes
enseja junto à população moradora local. se não uma atitude de
participação ou mesmo. de cumplicidade, pelo menos enseJa um
ambiente de simpatia e. até de solidariedade, quando IH) confronto
com forças da lei,
o exemplo atual da Colômbia (]989) aponta um quadro possível de
ocorrer. com presença de subversão e contestação aos \'almes
democráticos no contexto deste problema. o que poderá levar um dos
150
poderes. Executi\'o. Legislati\'o ou Judiciário. a tomar a iniciativa
quanto ao emprego das Forças Armadas para restaurar (ação
posterior) ou garantir (açào preventiva) a Lei ou a Ordem ameaçada.
b) o menor abandonado:
Este segundo problema. qUe pode trazer ameaças à paz social. ~ o do
menor abandonado. Sem pais. com pais qUe ddes se desinteressaram
ou que não têm quem ddes cuidem enquanto trabalham. na \'erdade
\'i\'em ou sobrevivem nas ruas. Aos poucos \'ai se criando entre des e
os marginais adultos que os exploram. um código moral próprio. cuja
síntese ~: o crime compensa.
E difícil avaliar-Se quantos são. As estimativas do desde muitos
milhares e até milhão. ou milhões. Se. apenas para conjecturar.
supusermos que. hoje. este uni\'erso já seja de uns 200.000 menores
(que é um número modesto. em faCe da amplidão das estimati\'as)
temos que no início do próximo século haverá um contingente de
marginais. malfeitores e. mesmo. de assassinos de efetivo semdhante
ao atual do Exácito. O que nos orientará. nesse quadro prospecti\'(.)
dos lllennres de rua. lra1l.\mulado,\ em mlullo.\ ha/l(lido.\. sed a falta
de respeito ao direito alhein e. mesmo. à \'ida.( grifo meu)
.·U ellu;o. quando tI.\ Polícias fallarem condiçries para enli-enlar lal
siwa('üo. o que ti ra::oál'el imaginar que ocorrerá fatalmenle, os
poderes con,wituído.\ Execllfil'O, Legislali\'(} ou Judiciário, podeJ'{;o
pedir o ('o/l(:ur.'iO da.\ Forra.'i Armada.'i. para que .\e in cu 111 h a 111 do
I ~ I
dum el1cargo de e'~/i'el1tar es.Wl horda de h{l/ulidos, I1eutralizá-lo.\ e,
",esmo, destruí-los, para ser malltida a Lei e a Orde",. (gri fo meU)
Con\'t!m pOIS impedir que tal cenano se concretize. As Forças
Armadas, como missão complementar assumida, poderão, desde logo.
cooperar com as autoridades e a sociedade para a sol ução deste
problema que, hoje, t! da competência do Minist~rio da Justiça e das
Secretarias Estaduais da Justiça. mas que, no longo prazo. poderú \'ir
a ser da competência das Forças Armadas, Se elas forem obrigadas a
agir em atendimento de pedido dos poderes constituídos. nos termos
da Constituição." (Presidência da República. Estado Maior das Forças
Armadas. Escola Superior de Guerra. Estrutura ~ Poder ~acional para
.Q ano 2001. Rio de Janeiro, 20. \'01.. 1990, p.2SJ-285)
A IMPRENSA
Os meios de comunicação, de modo geral. têm tido um papel
destacado na fabricação da identidade social dos meninos de rua
como pivetes irrecuperáveis e ameaçadores da ordem pública. Na
cidade do Rio de Janeiro, praticamente todos os grandes jornais
promo\'em sáies de reportagens sobre "Violência Urbana". "~\'Iis~ria"
e "Segurança Pública". itens nos quais incluem anúlises sobre a
atuação e a "ida de crianças e jovens que habitam as ruas. quase
sempre responsabilizando essas crianças pela situação de insegurança
qUe desespera a população carioca. O Movimento 0.'acional de
Meninos e Meninas de Rua do Rio de Janeiro. o !BASE e outros
152
órgãos qu~ s~ d~dicam à atuaçào dir~ta com as crianças ou à anális~
da situação da infância pobr~. dispõ~m d~ catálogos atualizados
sobr~ as matérias ~stigmatizantes publicadas na impr~nsa ~scrita.
Limitar-m~-~i a transcr~\'~r uma r~portag~m publicada no jornal O
POVO. no ano d~ 1991. pda inacreditá\'e1 campanha ~m fa\'()J' do
~xt~rmínio d~ crianças.
:\Ieninos ou demônios de rua
"Imagin~rnos uma cidad~ im'adida por milhõ~s d~ ratos. EI~s sa~m
dos ~sgotos. ad~ntram nas lojas. atacam as casas. inwstem contra as
p~ssoas. ~ão há como resistir-lhes. Prim~iro são chamados os
garis (*). logo postos para corr~r. afug~ntados pdos dent~s afiados
dos mamít~ros t~1mintns ~ furiosos. D~pois chega a Polícia. com
bombas d~ gás ~ m~tralhadoras. Até m~smo lança-chamas são
utilizados ~. ao final d~ algum t~mpo. as forças da ki recuam. Os
roedor~s \·~nc~ram. A cidad~ está domínada."
Essa é a imag~m qu~ faz~m()s d~poís de I~r o t~xto e d~ \er as fotos
da r~portagem produzida por \:Iário T eix~ira e Eduardo Faustini
sobre os meninos (ou demônios'.') d~ rua d~ nossa cidade. \kninos e
meninas qu~ arr~ganham os d~ntes no mom~nto ~m que arrem~t~m
contra uma s~nhora no Largo da Carioca ou quando assaltam um
casal de turistas na A \'~nida Atlântica. Garotos ~ garotas qu~
arrancam o tênis de uma adolescente. às 11 horas. nas imediaçôes da
Central do Brasil. diante de policiais qu~. a 20 m~tros de distúncia
I -., :- .'
assistem à cena de violência. O Rio de Janeiro foi dividido pelos
meninos e meninas (ou demônios'.') de rua em áreas de perigo onde
não se deve passar a qualquer hora do dia ou da noite. sob o risco de
um ataque ou at~ mesmo de um ferimento grave. produzido por
facada ou golpe com caco de garrafa. A partir de amanhã e nos cinco
sábados seguintes. O POVO na Rua estará mostrando como \'I\'em
nas ruas do Rio de Janeiro estes pequenos demônios que cheiram
cola. t:1zem amor nos bancos de jardins. crescem e se reproduzem
como ratos. ameaçando a segurança de toda uma cidade.
(*) De fato. vanas \'ezes testemunhei a ação da Companhia de
Limpeza Urbana da Cidade do Rio de Janeiro na remoção de crianças
e outros segmentos da população de rua do município,
O COl'vlÉRCIO Os comerciantes estabelecidos em bairros onde a
cada dia aumenta a chamada população de rua se sen tem
prejudicados porque tendem a perder a freguesia. amedrontada com a
cOl1\i\'ência com esta população. e porque se dizem \'Ítimas de furtos.
roubos. assaltos e intimidação por parte daqueles. Para se defenderem
destas in\'estidas. considerando que não contam com a atuaç;lo dos
órgãos públicos. nem na forma de proteção aos direitos dl) cidadã().
nem como repressão à ação de justiceiros. os comerciantes da cidade
adotam a prática de contratarem "seguranças encarregados de dar
conta do problema, Associações comerciais de bairros. hoteleirlls e
outros apregoam na imprensa e em outros fóruns a necessidade de
reprimir a população de rua, Encorajado certamente pelo respaldn
de amplos setores da sociedade tluminense. o então presidente do
Clube de Diretores Lojista de Duque de Caxias. proferiu
publicamente uma sentença de morte a crianças socialmente
marginal izadas:
"Quando se mata um pintinho, está se fazendo um benefício à
sociedade." (abril91 jornal O DIA)
Esta declaração te\e ampla repercussão na imprensa e foi objeto de
ill\estigação da Comissão Parlamentar de [nqu~rito que ill\estigou o
extermínio de crianças no país.
A COMUNIDADE
Não ~ apenas pela omissão dos órgãos governamentais qUe Se acirram
as iniciati\'as de \'iol~ncia contra os meninos e meninas de rua. Há. na
\'crdade. um "olhar exterminador" da sociedade. conforme denunciou
a presidente da Comissão Parlamentar de Inquáito que il1\estigou o
exterminio de crianças e adolescentes no país.
[nconformada em ter de con\'l\'er com esta face sombria da
sociedade. sentindO-se cerceada em SeU direito de ir c \ir. obrigada a
encarar diariamente a misáia exposta nas ruas c encurralada em
\'erdadeiras fortakzas. uma expressi\'a parCela das classes máiia e
alta urbanas busca argumentos que justifiquem sua omissüo c mesmo
sua aquiesc~ncia ao processo de extermínio dessas crianças. ,-\Igumas
expressões são classicamente repetidas nas ruas. corno parte desta
argumentação. Por exemplo: "estes jO\'ens não tem jeito mesmo".
"essas crianças estão perdidas". "está se gastando \'ela boa com
defunto ruim" foram expressões usadas por comerciantes a respeito
da instalação de um projeto de atendimento a meninos de rua nas
imediações de seus estabdecimentos comerciais. Outras expressões
como: "é melhor o gO\'erno gastar recursos com as famílias, com
aqueles que não delinqüiram", "não adianta dar casa e comida para
eles. \'ocês estão é alimentando bandidos para depois ir assaltar
nossos filhos" são apenas alguns exemplos dos muitos depoimentos
espontâneos que a população presta aos educadores durante a
. . . permanencla na rua com as cnanças.
As reações de hostilidade. ódio e preconceito seriam inumer{l\·eis. e
se deram praticamente em todas as ocasiões em que acompanhei os
jO\'ens em ambientes como transporte público. bares ou lanchonetes.
equipamentos de saúde. ou seja, em locais freqüentados pela
população em geral. Algumas ilustrações:
I ):\um fim de tarde. quando o mo\·imento de pedestres da Praça
Saens Pena se intensifica com o fim da jornada de trabalho. um
policial que da\"a plantão na cabine da Praça tenta\'a controlar um
menino. de doze anos de idade. que debatia-se desesperadamente
nas mãos do policial. Uma roda de transeuntes assistia à cena.
Quando me aproximei do local o guarda soltou o menino. que correu
em busca de proteção. Perguntei o que esta\'a acontecendo e o
policial me fez o seguinte relato: o menino esta\'a lanchando num bar
em frente. quando o dono do bar pediu que de se retirasse. porque ali
156
não era lugar para pi\'etes. O menmo retorquiu. dizendo que uma
moça lhe havia pago o lanche, qUe de não esta\'a roubando, c
portanto não iria sair. Com a recusa do menino. o dono do bar teria
lhe tomado o copo de suco c o colocado à força na rua. O menino
então passou a atirar pedras para o interior do bar, quebrando uma
\'itrine de alimentos. O policial concluiu que teria de autuar a criança.
porque ela pro\'ocara prejuízos ao patrimônio.
À \'ista do rdato perguntei ao policial Se era lícito tomar da mão do
mel1lno um lanche qUe de ha\'ia comprado. c se o dono do bar
poderia escolher Seus fregueses. Elc disse qUe Se cU me
responsabilizasse. ele liberaria o menino em minha companhia. para
encerrar o assunto. :-\ população passou então a insultar o menlllo.
inclusi\'e sugerindo qUe cU estaria "dando força prá pi\'ete".
O menino chora\'a muito. c cU perguntei se de gostaria de sair dali. c
ir comigo lanchar em outro lugar. ao que de aquiesceu. Saímos sob
um clima de hostilidade c mesmo sob xingamentos de cidadãos que
repetiam que "o jeito ~ acabar com des".
2) Lma menma de I:; anos foi encontrada em precano estado de
saúde pda educadora. por ter consumido uma grande quantidade de
cola de sapateiro. A educadora acompanhou-a a um Hospital Estadual
em busca de atendimento m~dico. Após aguardar mais de tr~s horas
pdo atendimento. a m~dica de plantão dirigiu-se à educadora
perguntando Se ela não tinha mais nada o que hlZer. para estar
naquele local de madrugada. com uma menina de rua, ,--,\ educadora
157
r~spond~u qu~ ~st~ ~ra o s~u trabalho (d~ ~ducadora) ~ qu~ o da
m~dica ~ra d~ at~nd~r Ú população qu~ a procurass~. A m~dica ~ntão.
ignorando a pr~s~nça da m~nina. ~scre\'~u no prontuário. ao m~smo
tempo qu~ repetia ~m \'OZ alta: "m~nina qu~ ch~ira cola" no local
d~stinado ao nom~ do paci~nt~. A m~nina reagiu. informando qu~
tinha nom~. qu~ s~u nom~ ~ra "Aninha". A m~dica disse que tanto
fazia. qu~ para da basta\'a aqu~la id~ntificação .
.3) Eu acompanhava um grupo d~ crianças ~ adolesc~nt~s. quando fui
int~rpdada por uma s~nhora qu~ p~dia ~xplicaçõ~s sobr~ o trabalho
qu~ ~ra d~s~n\'oh'ido com o grupo. Ao discorr~r sobr~ os obj~tivos
do trabalho. a senhora diss~ qu~ a da interessa\'a sab~r s~ o dinh~iro
qu~ da pagava d~ imposto ~sta\"a s~ndo gasto com "isto". Alguns
adol~sc~nt~s propus~ram-s~ eles mesmos a r~sponder. A s~nhora
diss~ qu~ nào cOI1\'~rsa\'a com "pi\"~t~s" ~ m~ qu~stionou sobr~ o tipo
d~ educaçào qu~ ~u m~ propunha a dar. já qu~ consid~ra\'a um
d~sr~speito um dos meninos ~star fumando. Alegou ainda qu~ a
conc~ntração d~ crianças próximo ao ~stab~l~cimento com~rcial d~
sua propri~dad~ "d~s\'aloriza\'a n IPTLJ qu~ da pag;l\·a".
COMO AS CRIANÇAS VIVEM SUA SITUAÇÃO DE
ESTIGMATIZADOS
Durant~ o período d~ p~sqU1sa com os J0\"~ns ficou claro que a
constant~ am~aça d~ mort~ sob a qual '\'i\'em" t~m Ulll ~f~ito
psicológico d~t~rminant~ nas suas açõ~s cotidianas. A \'iol~ncia
policial ~ parapolicial. as am~aças implícitas ~ ~xplícitas d~
assassinato transtornam a \'ida do grupo, af~tando algumas crianças
at~ à obs~ssào.
A tortura contra cnanças ~ J()\'~ns de rua ~ uma prática cotidiana,
Policiais ~ parapoliciais, seguranças contratados por lojistas.
simpatizantes d~ ideologias d~ ultra-direita ou mesmo matadores
profissionais atuam com total d~st:1çat~z. praticando crim~s contra os
direitos humanos qu~ variam da am~aça verbal. passando por ensaios
de assassinato at~ a ~x~cução sumúria, na c~rtçza ck contar~m com a
simpatia ou a omissão da soci~dad~ e com a impllnidad~ legal. A
pr~s~nça de ~ducador~s. p~squisador~s ou outros adultos junto as
crianças pouco ou nada modifica ~stas im'~stidas. Ao contrúrio. ~ss~s
adultos passam a S~r d~s tamb~m objeto de intimidação ~ m~slllo d~
am~aça implícita ou ~xplícita por parte dos agr~ssor~s,
A alls~ncia de p~rsp~cti\'as d~ \'ida futura dita. ~m grand~ part~. o
comportam~nto pr~s~nt~ dos jO\'~ns. Há d~poim~ntos ç1oqu~nt~s qu~
ilustram essa afirmação:
Corria a ~ntr~\'ista com um rapaz d~ dçzess~t~ anos. \:0 it~m sobr~
saúd~. p~rguntei como ~I~ s~ s~ntia fisicam~nt~. s~ ~Ie tinha qu~ixas
quanto ao seu estado de saúd~. A resposta à p~rgunta foi
dçsconc~rtante: "'\ão. tia. ~u nào t~nho nada. Ill~U corpo so dói
quando a polícia bat~."
1:'9
Numa ocasião I!m qUI! os I!ducadorl!s do EXCOLA oril!ntavam os
adoll!scl!ntl!s sobrl! formas de se prl!\'l!nirl!m contra o contágio da
AI DS, um menino dI! apl!nas traI! anos refletiu: "Nào sl!i prá que
I!SSI! negócio contra AIDS. a gente nào vai mOlTer mesmo'!"
Uma jovem de 16 anos. com uma I!stória de vida particularml!ntl!
trágica, conta qUI! procura realizar algum ato glorioso. qUI! a destaque.
a tornl! lider I!ntrl! os grupos. busca o "SUCI!SSO" iml!diato porqul!
" .. .já I!stou no fim da linha, não posso pensar I!m coisas prá dl!pois.
pro futuro, .. " Um rapaz de 15 anos. consultado sobre planos para o
futuro, disparou:
"Futuro. que futuro'.' minha vida ~ COlTl!r deks (polícia) e a "ida deks
~ COITl!r atrás dI! mini." Nào cabl! aqui tecl!r maiorl!s considerações
sobre a gênese dessas a\'iltantes práticas sociais. Limitar-me-ei a
relatar fatos que presenciei ou que constaram de depoimentos das
crianças durante estes meses de con\'lvenclU. fatos estes que
constroem o destino destas crianças.
TORTURA
1) um jovem de 15 anos. flagrado numa tentati\'a de assalto por um
P~L conta que o policial disse a ele que nào o conduziria à Dekgacia
de Protl!ção à Infância I! Adokscência porque. na a\'aliaçào do
policial. isto tomaria muito tempo e nào adiantaria nada. \'isto que
logo o rapaz seria liberado por falta de testemunhas. O P\1 dl!cidiu.
160
por conta própria, aplicar uma pena que considerava justa para o ato
cometido pelo rapaz: 1ç\'OU-O para um local ermo e obrigou-o a
caminhar várias vezes sobre lima trilha de cacos de vidro que o
próprio menino ajudou a construir, esmigalhando galTat:1s \'azias.
Esti\'e com este menino no dia seguinte do ocorrido, e os seus p~s
esta\'am bastante infeccionados, estando e\ç inclusi\'e com t'çbre.
2} Presenciei uma tentativa de recolhimento de populares de rua. por
integrantes da PM. COMLURB e Fundaçào Lâo XIII. Os guardas
tomavam os pertences das crianças para colocá-los num caminhào da
CO~lL URB. Um menino de aproximadamente sete anos segura\'a um
pote de cosm~tico. um creme para cabdos e não queria entregá-lo. O
guarda pisou "acident~lmente" (conforme se justificou para mim} na
mão do menino, ferindo-lhe os dedos e arrancando-lhe uma unha.
Antes de partir. o policial disse que castiga\'a o menino porque elç
tamb~m era pai. e não suporta\'a \'er crianças usando drogas.
C ertamente de imaginou que o pote continha cola de sapateiro. o que
não era \'erdade. De qualquer forma. sendo coslll~tico ele poderia
alegar que era pro\'a\'dmente furtado, porque ~ certo que o menino
não possuia renda própria.
O ar~umento da paternidade I)ara Iç~itimar uma a~ressào física a _ t..........
meninos e meninas de rua foi e\'l1Cado algumas \'çzes. por policiais de
batalhões diferentes e em pontos di\ersos da cidade .
.)) Dois jo\'ens foram le\'ados, à \'ista dos educadores para uma cabine
policial no Largo da Carioca. sob suspeita de estarem escondendo em
161
suas roupas dinheiro produto de furto. Os educadores não puderam se
aproximar da cabine, porque o local esta\'a em obras e cercado por
grades. Enquanto procura\'am contatar advogados para interferir no
caso, os memnos le\'avam golpes de cacetete nos joelhos. inclusi\'e
um sendo obrigado a bater no outro, sob as ordens dos policiais. O
requinte de crueldade absurda e humilhação inusitada foi chegar ao
ponto de obrigar os meninos a comer meleca que tinl\'am de seus
nanzes.
-+) Um grupo de adolescentes dormia sob um \'iaduto na zona sul.
quando foram acordados por um policial armado que os obrigou, sob
a mira do re\'óh'er. a segui-lo até a cabine mais próxima. ;-";a cabine.
onde se encontrava outro policial. informaram aos jo\'ens que eles
esta\'am proibidos dé residir naquele local, e para que eles não
reincidissem na tentati\'a, os submeteram ao seguinte ritual: cada um
dos meninos (9 no total) era obrigado, sob pancadas. a entrar na
cabine. Lá. era forçado a arriar as calças. e passa\'a então a apanhar
nas nádegas com um facão. sendo a surra acompanhada de ameaças.
As meninas foram obrigadas a assistirem a cena, Após torturarem
todos os meninos. os mandaram embora e passaram a agir com as
meninas (3). Estas foram agredi das física e \'erbalmente com tapas e
insultos. após o que os guardas mandaram-nas tirar a roupa. para
fazer uma "revista". Durante a "re\'ista" na adolescente de dezessete
anos. esta gritou. atraindo duas senhoras até a cabine. quando os
guardas então liberaram o grupo, ~a noite seguinte. entretanto. outros
policiais \'oltaram para "terminar o trabalho": os rapazes de\'el'iam
162
sustl!ntar I!norml!s pl!dras, como nào conseguiam, I!ram obrigados a
ml!rgulhar na Lagoa. com roupa I! tudo.
5) Meninas da Praça Sal!ns Pena contaram, na sl!mana I!m qUI!
inicia\'a o trabalho dI! pesquisa com as crianças dI! rua daqul!ll! local,
que, à \'éspera de nossa \'isita, policiais do dekgado "Eu\'igio" as
tinha transportado dI! carro até o Alto da Boa Vista. durantl! a
madrugada. e I!nsaiado com das o SI!U futuro assassinato. 6) Um
ml!nino de trezl! anos, qUI! I!m maio de 1992 dormia junto a um grupo
dI! crianças, contou-ml! qUI! na noite anterior da nossa \'isita "uns
meganhas" haviam chutado as crianças durante a noitl! I! prl!\'l!nido-as
a não mais dormir naqudl! local. por orientação dos comerciantes.
Nessa ocasião o grupo de educadores contratados pela Prefeitura
acompanha\'a as crianças em três plantões noturnos semanais. Os
meninos nos ad\'ertiram para que fizéssemos os plantões em dias não
estipulados, porque os guardas e os seguranças já conheciam nossos
horários. e deixa\'am para "agir" nos outros dias.
7) A assistente social do Projeto EXCOLA encerrara suas ati\idades
com um grupo de crianças e adolescentes na Cinelândia. e
encaminha\'a-se. acompanhada de \'árias crianças do grupo. ao ponto
de ônibus. Um hOll1l!m à paisana sacou uma arma. engatilhou-a na
presl!nça da educadora e I!ncostou-a na nuca de um jo\'em de 16 anos.
A educadora pediu desesperadamente ao homem que não atirasse. que
o menino esta\'a sob sua tutda. que da esta\'a trabalhandn com eles.
O homem então apontou a arma para a I!ducadora e disse que ela seria
rl!sponsabilizada pelas infrações que o grupo \'iesse a cometer. já que
16~
I!sta va "dâendl!ndo band ido". A rguml!ntou ai nda q UI! da dl!\'l!ria
agradl!cê-Io por I!star na rua. dando proteção à população. O ocorrido
foi denunciado a rl!prl!sl!ntantl!s da Anistia Intl!rnacional.
A DURA CONSCIÊNCIA DA MORTE
No dia 10 de dezl!mbro de 1991, como parte da coml!moração do Dia
Internacional da Declaração dos Direitos Humanos. vanas
organizações não-gO\'l!rnaml!ntais programaram um ato na Cindândia
para denunciar o I!xtermínio dI! crianças I! adokscl!ntl!s no Estado do
Rio dI! Janl!iro.
Tral!ntas I! oitenta I! SI!IS (*) pl!qul!nas cruZI!S dI! madl!ira foram
dispostas na I!scadaria da Câmara Municipal. simbolizando as mortl!s
rl!gistradas at~ aquda data no ano dI! 1991. Vários cartazl!s. com
manchetl!s de jornais I! outras publicaçõl!s nacionais I! intl!rnacionais
qUI! noticiavam as mortl!s das crianças foram afixadas I!m grandl!s
pain~is, como suporte das denúncias.
Constava ainda da programação discursos dI! rl!prl!sl!ntantl!S dI!
I!ntidadl!s ligadas à dâesa dI! dirl!itos humanos. políticos. I! parl!ntl!s
das \'ítimas. Um sho\\' dI! música. com artistas convidados encerraria
o ato. Os ml!ninos e ml!ninas qUI! "ficam" nas adjacências da
Cinelândia se reuniram mais cl!do que o habitual para participarl!m
dos I!\'entos. A princípio I!utl)ricos com a programação extra. os
jovens aos poucos pareciam tomar consciência que não ha\'ia muito o
164
que comemorar ali. As cnanças pega\'am as crUZeS. conta\'am.
confirma\'am junto aos educadores se aquilo tudo representa\'a
meninos e meninas de rua que foram assassinados. Checa\'am com os
companheiros e atribuiam uma cruz para cada nome que lhes \'inha à
lembrança. Algumas. perplexas diante das fotos sensacionalistas.
reconheciam companheiros trucidados e se pergunta\'am se elçs
próprios morreriam daquela forma. Mães de filhos assassinados,
alguns. segundo seus depoimentos, a1Tancados do próprio lar,
chora\'am indignadas as mortes para as quaIs nunca conseguIram
justiça.
Tudo isto acontecia sob quase total indiferença da população. que Se
apressa\'a em não Se defrontar com tão delicada questão. A omissão.
como muito bem sabem aqueles que já sofreram injustiças. ~ uma
forma de posicionamento quanto à questão.
Durante o sho\\' de encelTamento. uma forte chu\'a caIU sobre a
cidade. le\'ando os meninos e meninas a se recolherem mais cedo.
precariamente protegidos sob o palanque que ser\'ira para denunciar
as condições subhumanas de suas \'idas. A concretude da morte.
pretáita mas também anunciada pelas crUZeS. empresta \'a às
fisionomias dos jlwens uma profunda melancolia. e eles procuram
algum consülo para aquela "O\'erdose" de consci~ncia. aconchegando
se uns aos outros. buscando na cola ou no sono alguma esperança.
(*) O numero de assassinatos oficialmente reconhecido pela
Secretaria de Polícia Ci\'il no período citado ~ de 285. A diferença do
165
numero apontado pelas entidades de defesa dos direitos humanos
de\'e-se à inclusào dos casos de morte de jo"ens com dezoito anos
completos. quando a Secretaria só computa as mortes de j(wens até
dezessete anos.
MORTES
Relato da morte do Luciano - 2 mcses
Luciano era o segundo filho de um casal de adolescentes que Se
conheceram há quatro anos, ambos integrantes de uma "f:1mília de
rua" qUe à época \'i \'ia em Copacabana.
o casal-\'i\'ia. no ano de 1991. em Copacabana. em companhia de
outras crianças c jo\'ens. A filha mais "elha conta\'a um ano c quatro
meses quando do nascimento do menino. Ambos esta\'am sendo
amamentados pela màe. qUe submeteu-se a tratamento ~)I"é-natal. Da
mesma forma, os pais le\'a\'am regularmente as crianças ao Posto de
Saúde para \'acinação c atendimento médico. \:0 domingo. dia ~ de
maio. o bebê apresentou febre c esta\'a muito encatarrado. Os pais
procuraram o Hospital ~'Iiguel Couto. onde a criança foi atendida c o
médico prescre\'eu comprimidos de AAS infantil. O m~dico informou
qUe não poderia fazer outros exames. segundo o registro da mãe.
porque o Hospital esta\'a muito cheio. A família retornou ao local de
costume c ministrou a medicação ao bebê. que apresentou melhora.
166
Conta a mãe que a morte do menino sobreveio durante a madrugada
seguinte, quando a família dormia, acompanhada de outros
integrantes do grupo, quando começou a chover, já de manhãzinha. A
mãe e o pai levantaram-se e abrigaram as crianças com algumas peças
de roupa. A mãe colocou o bebê num carrinho e cobriu-o com um
plástico, para que ele não pegasse chuva. Seguiram pai. mãe e filhos
em busca de um local coberto. Solicitaram alojamento na entrada de
um clube próximo. Lá perceberam que o bebê esta\'a muito quieto. O
pai tirou-o do carrinho e sacudiu. já percebendo que ele esta\"a imóvel
e arroxeado. Fala a mãe:
"Aí. tia. mesmo sem saber direito. sem ter certeza de nada. ele
começou a chorar. a dizer que uma coisa ruim tinha acontecido. que
eu nem ia acreditar. Aí eu chorei também, sem saber nada direito. só
via a barriguinha do neném que não queria se mexer. Entào ele (o
pai) disse prá mim: Aí. acho que o nosso filho está morto. e agora'.} O
que será que aconteceu . .' Tudo isso aconteceu no dia quatro. no dia
cinco. cinco de maio. era o dia do meu aniversário. se lembra. tia'! 16
anos. e eu ta\"a lá. fazendo aquelas coisas. pra \'er se enteITa\';} o meu
filho ... "
Continuando o relato a menll1a disse que um empregado do clube
\'CIO \'Cr o que esta\"a acontecendo, e prestou auxílio à família.
Ie\'ando-a para o interior do clube. Lá a màe sacudiu a criança mais
uma \'ez e constatou que ele esta\'a de fato morta. Orientados pelo
empregado. telefonaram para a polícia dando conta do acontecido.
167
Quando o dia amanheceu, ligaram tamb~111 para as educadoras do
SEMPRE VIVA, solicitando auxílio.
o corpo da criança foi encaminhado ao Instituto M~dico Legal, onde,
realizada a autópsia, constatou-se a morte por pneumonia sufocante.
A partir daí os pais e as educadoras empreenderam uma \'erdadeira
maratona para dar à criança um entelTO digno. Já na manhã em qUe
ocorrera o óbito, alguns moradores das adjacências, qUe Se
relacionavam com os jovens. principalmente com as meninas e SeUS
bebês, aconselharam aos pais a deixar qUe a criança fOSSe enterrada
como indigente, porque "já estava morto mesmo, ~ melhor ter
trabalho com quem esta\'a \'i\'o". AI~m dos pais, todo o grupo de
cnanças Se empenhou nos prOCedimentos para o enterro. o qUe
ocorreu cinco dias ~pós o óbito. Ainda segundo a jm'em mãe:
" ... tinha muita gente lá, perto da gente, no dia do enterro. as tias e nós
mesmos. Foi o segundo enterro de criança qUe eu fui ... o primeiro
tamb~m foi de um bebê de cinco meS. do nosso grupo, filho da Maria
e do João. tamb~m mOITeu de pneumonia. que dá muita pneumonia
na rua ... Tamb~m. porque qUe ~ qUe nosso filho não tem qUe ser
enterrado'.' Tem sim. tem direito. Queria ver se aquela dona nào ia
querer enterrar o filho dela. se ela tem filho. n~. não sei".
(O resumo da estória de \'ida da mãe do Luciano encontra-se em
anexo)
168
Paulo Henrique
Paulo Henrique, assassinado o dia 17 de julho de 1992. aos 14 anos de
idade, integrava um grupo de adolescentes que vivia em Copacabana.
Embora a pesquisa não se estendesse àquela região da cidade. travei
contato com o menino através do grupo que \'elo a residir na
REPÚBLICA. localizada na Tijuca. O acirramento de ações
repressl\'as por parte de policiais e seguranças contratados por
hoteleiros da orla marítima, a partir do ano de 1991. praticamente
desbaratou o grupo de crianças e adolescentes que "vivia" no Posto 6.
Vários jo\'ens foram encaminhados pelas educadoras do programa
SEMPRE VIVA a no\'os abrigos inaugurados na cidade do Rio de
Janeiro para atendimçnto a crianças de rua. Entretanto. parte do grupo
inicial permaneceu nas ruas. por impossibilidade de \'agas nas
instituições recém-inauguradas.( *)
As cnanças remanescentes adotaram a tática de circularem de um
ponto para outro da cidade. como forma de proteção contra o aparato
repressivo. Paulo Henrique. um dos meninos que continua\'a nas ruas.
a\'isara às educadoras que havia sido jurado de morte por policiais da
área. As educadoras procura\'am deslocá-lo do ponto onde foi feita a
ameaça. e aguardavam vaga num abrigo para retirá-lo das ruas, O
menino reagiu aos cuidados da educadora dizendo que ela nào
precisava se preocupar. por que ele esta\'a planejando trabalhar no
comércio de drogas. "para juntar dinheiro e comprar um barraco
longe disso tudo", Ao argumento de que havia outras ati vidades nas
169
quais de poderia ganhar algum dinheiro, sem o risco de ingressar na
criminalidade. o menino respondeu que nunca viu, "no morro, só
quem trabalha pro mo\'imento ~ que compra casa."
Dois dias antes de efetivado o assassinato, duas adolescentes
residentes na REPÚBLICA visitaram sua família de rua e ao
retornar contaram que "uns policiais avisaram que a batata do PH já
esta\'a assando", expressão que significa que de seria o próximo a ser
atingido pda açào dos policiais.
Na ante\'~spera do assassinato (noite do dia 15'07'92l. \'árias
testemunhas. entre das alguns jo\'ens atendidos pelo SEM PRE
VIV A estavam reunidos no local de permanência. quando foram
interrompidos por um policial. que solicitou ao menino que o
acompanhasse para "um giro", e explicou aos demais que "iria dar
uns consdhos pro garoto". Paulo Henrique seguiu num carro.
acompanhado de dois Pfvls. e não mais voltou ao local de reuniào do
grupo. Na manhà do dia 17 o menino ~ encontrado morto.
assassinado com \'ários tiros na cabeça.
o grupo de jovens. companheiros do menino. sofreu um grande abalo
psicológico com a morte de Paulo Henrique. e acompanhou os passos
seguintes. de preparativos para o funeral. O enterro do menino foi
bastante dificultado. porque o Instituto M~dico Legal n,lo se dispunha
a aceitar a única cópia disponÍ\'d do registro de nascimento da
criança. que estava em poder da 2a. Vara do Juizado da Int:'incia e
Adolescência e não ha\'ia nenhuma dado que indicasse relações
170
familiares. As providências para regularizar a documentação, a
tentativa de localização da família, e outros procedimentos
necessários para que se efetivasse o entelTo do menino fora da pecha
de indigência, delongaram-se por cinco dias, ao final dos quais o
IML já havia classificado o corpo como sendo o de "rapaz
aparentando entre 15 e 20 anos", quando o menino completaria 14
anos em setembro, e não tinha ainda nem mesmo os traços físicos da
adolescência. Este procedimento ~ um indício de que o registro da
morte não seria computado nas estatísticas oficiais de assassinato de
cnanças.
A participação do grupo nas pro\'idências para o funeral. e depois no
próprio ritual funerário, foi um fator de união entre eles. inclusive
firmando um sentimento de pertencimento a uma comunidade. Meses
mais tarde, durante o II Encontro Internacional de Meninos e
Meninas de Rua, uma das jovens, ao referir-se às discriminações de
que são vítimas, ressaltou que " ... quando a gente morre, quando a
gente morre nem querem dar um caixão prá gente. um enterro prá
gente. A gente tem que lutar até prá ter isso."
Ouvindo essa inesperada referência às recentes expenenclas de
enlutamento do grupo (dois enterros no período de três meses),
comparei-a a um representante de um clã, reclamando a perda de seus
ente queridos. O crime foi objeto de manchete do jornal
sensacionalista O POVO, no dia 177'92, onde se pode ler. como uma
j ustificati \'a do crime: "SeKllIltlo 0.\' policiai.\', m;o "m'ia 11 ;/lKuém /lO
local que pudesse da,. qualquer ÍI~/in·III(/( ... fio. Eles acreditam que o
171
atlole!ticente morreu plJrque I'OUblH'a ou enU;o tinha enl'o/l'imento
com trl~/icante!i." (grifo meu)
(*)No decOlTer dos anos de 1991 e 1992 vários abrigos para meninos
e meninas de rua foram inaugurados na cidade. Crianças e
adolescentes do grupo pesquisado já freqüentaram ou pleitearam
vagas nos seguintes abrigos: Casa e Companhia, localizado no Bairro
de Ipanema, zona sul da cidade (Fundação C&A - iniciativa privada):
Casa da Meninas, localizada no Estácio, zona central da cidade
(Governo do Estado do Rio de Janeiro): República das Crianças,
localizada no baÍlTo da Tijuca, zona norte da cidade (Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Social do Município do RJ): Abrigo
de meninos da Fundação São Martinho, localizado na Lapa, zona
central da cidade ( Arquidiocese do Rio de Janeiro) Projeto Flor do
Amanhã, localizado no bairro da Saúde. zona central da cidade
(iniciativa privada).
Robson
A trágica experiência \'i\'ida por Robson OCOlTeu em dezembro de
1991. O adolescente. que contava 16 anos na ocasião encontra\'a-se na
Cinelândia. próximo ao bar Amarelinho, em companhia de uma
menina grávida, de aproximadamente 14 anos e de outro adolescente.
de 17 anos. Segundo relato do menino, era de madrugada. os bares
esta\'am quase vazios. quando um Opala amarelo, ocupado por três
homens. parou bem próximo ao grupo. Dois homens saltaram do
carro. e um permaneceu no interior do \'eículo. Pelo menos um dos
172
que se dirigiu ao grupo estava ostensivamente armado, segundo o
menino, com uma metralhadora. Este homem dirigiu-se diretamente
ao Robson, perguntando se ele sabia onde ele poderia "conseguir
brizola". O menino, já assustado com a situação, respondeu que não.
Em seguida os dois homens dirigiram-se ao bar e orientaram os
garçons a entrarem imediatamente. Retornaram ao grupo disparando
tiros contra os três adolescentes.
Os acontecimentos que se segUIram a cena aCIma narrada foram
recuperados cerca de seis meses passados do ocorrido. quando
Robson reapareceu no local onde costuma\'a reunir-se com o grupo
de meninos e meninas atendidos pelos educadores.
O menino reapareceu muito magro e abatido, com uma lesão na face,
onde perdeu parte do osso maxilar. Parecia vagar entre os antigos
companheiros, com o olhar distante, causando forte impressão aos
educadores e à pesquisadora. Ele contou então. que acordou um dia
num Hospital. sem saber o que lhe ha\'ia acontecido. Uma
enfermeira, que solidarizou-se com o sofrimento do rapaz. recuperou
lhe parte do oCOlTido naqueles meses. Ele teria sido encaminhado ao
Hospital Miguel Couto. após uma passagem pelo Instituto ~:rédico
Legal. para onde teria sido levado junto com os outros dois
adolescentes. que mOlTeram na chacina. No IML. perceberam que o
menino não havia mOITido. embora tivesse sido ah'ejado em seis
pontos do corpo. O menino chegou em coma ao hospital. e
permaneceu neste estado por alguns meses. sem que nmguem o
procurasse. Quando recuperou a consciência ele diz que havia
173
esquecido o ocorrido, e até mesmo perdera temporariamente a
memória sobre sua vida.
Restabelecido, o menino saiu do hospital diretamente para a rua, pois
não mantém vínculos familiares. Na ocasião os educadores tentaram
encaminha-lo para um abrigo, mas o rapaz recusou a ajuda,
mostrando-se indiferente quanto ao seu destino.
Dondinho
A trajetória deste memno reúne particularmente todas as
características de uma vida sem esperanças, da sina daqueles que
muito cedo se vêem em'oh'idos num caminho sem \'olta. Quando se
incorporou ao grupo' atendido pelos educadores do IBISS (mais
precisamente o menino freqüentava outro projeto de atendimento no
centro da cidade), Dondinho havia recém-saído do hospital do
AndaraL onde permanecera internado por dois meses, recuperando-se
de uma tentativa de homicídio em que fora alvejado por quatro tiros.
em circunstâncias nào conhecidas. O fato foi dado ao conhecimento
dos educadores atra\'és da namorada do menino. que presenciara a a
cena. Pnwavelmente tI'agilizado pelo ocorrido. o menino aproximou
se dos educadores e passou a tI'eqüentar algumas atividades
promovidas por estes. Numa das poucas ocasiões em que falou de si.
Dondinho confidenciou que praticava roubos. em parceria com um
PM da área, com o qual di\'idia o produto do "trabalho". Detalhou
ainda que o PM havia recentemente "virado crente" e não podia mais
receber sua parte. O PM passou entào a perseguir o rapaz e certa \'ez.
174
na presença dos educadores, iniciou seu plantão levando o menIno
para a cabine e dando-lhe uma surra. Poucos dias depois do episódio
da SUl,.a, o menino foi alvejado, durante o sono, com um tiro no pé. O
agressor nào foi identificado.
A anunciação da morte próxima veio pelo aparecimento do nome do
menino "no poste". Há um ritual muito conhecido pelos meninos e
meninas do centro da cidade, que consiste em aparecer um nome (ou
uma lista de nomes) de jo\'ens que estariam marcados para mOlTer.
Ois) nome(s) é (sào) escrito(s) num pedaço de papel que amanhece
grudado sempre no mesmo poste do Largo da Carioca. Normalmente
esta advertência é suficiente para que o eleito abandone a área por
uns tempos. No caso do Dondinho, ele parecia indiferente as
ameaças. Disse mesmo aos educadores que eles não deveriam se
arriscar. se expor protegendo-o. "Tô nessa vida é prá ISSO mesmo.
Mas vocês nào. Tá cheio de X-9 (alcagoete) por aí". Com o
acilTamento das ameaças à \'ida do rapaz, o IBISS entrou em contato
com outros projetos de atendimento a crianças. em outra região do
país. visando a transferência do menino. Neste periodo uma
instituição que atua no centro da cidade procurou os educadores para
dizer que receberam uma denúncia anônima de que os dias do menino
esta\'am contados.
No dia 13 de junho de 1991 Dondinho foi baleado no Aterro do
Flamengo. enquanto soltava pipa em companhia de outros meninos
do grupo. em plena luz do dia, na presença de drias pessoas. Desta
\'ez ele mOlTeu.
175
ESCOLA E TRABALHO:
RESPOSTAS AUTOMÁTICAS DA SOCIEDADE
E certo que as modernas sociedades reconhecem na Escola o
principal veículo para a formação da cidadania e da consciência
crítica das gerações. Da mesma forma concebemos o Trabalho como
um direito fundamental de todos os homens e a via por excelência
para se alcançar o bem-estar da família e o progresso da coleti\'idade.
Entretanto, a realidade da escola brasileira e do trabalho acessí\'e1 à
maIOna do PO\'O distancia-se imensamente dessas \'erdades
enunciadas. A solução quase unânime, de dar escola e pro\'er
trabalho. que ~ proposta pela sociedade para a questão social que
apontamos nos capítulos precedentes. insiste em não considerar as
dramáticas consequ~ncias que a exclusão continuada das camadas
mais pauperizadas da população do acesso aos bens materiais e
culturais da sociedade \'~m pnwocando: a mais crucial destas
consequ~ncias tah'ez seja a negação dos \'alores simbólicos que
atribuimos às categorias Educação e Trabalho.
Por entender que ~ urgente e necessano que se recoloque estas
questões em patamares mais aproximados da situação empírica com
que deparamos no decorrer da pesquisa, esboçamos no presente
capítulo algumas considerações sobre os sentidos que os menlllos e
meninas de rua atribuem ao Trabalho e à Escola.
177
I. O TRABALHO
As classes populares e o trabalho industrial
A implantação do trabalho industrial no Brasil çncontrou rçsistências
e só se efetivou após um longo e tortuoso processo de adaptação.
Excluída da rígida antinomia senhor versus Çscravo, rdação dç
trabalho dominante até o século XIX, crescia uma significativa
parcela da população formada por pobres livres. Estç segmento
populacional exçrcia atividades di\'ersas de subsistência. não Sç
constituindo como uma força de trabalho, já qUç o trabalho rçgular ç
disciplinado çsta\'a a cargo dos çscra\'os.
Sçgundo Lúcio Ko\\"arick, Çm seu çstudo Trahalho ~ Vadia:,:em, ª Ori:,:em do Trabalho Livre no Brasil, mesmo com o fim da
escra\'idão ç o início da industrialização. o dçmçnto nacional não foi
considçrado como uma opção vantajosa para tocar a indústria do
café, porquç as Pçquçnas margçns de lucro do nçgócio. ç os
consçqüçntes baixos salários que seriam oferecidos aos trabalhadores,
não compensariam qUç esta população deixassç suas ati"idadçs de
subsistência para ingressarem Çm no\'a relação de trabalho. A solução
mais lucrativa \'isualizada Pçla oligarquia foi a utilização dç mào-de
obra pre\'iamente expropriada de terra ç de mçios de trabalho. como
os çscra\'os e os imigrantes euroPçus. Além do quç. tanto uns quanto
outros ofereciam a \'antagçm de já estarem disciplinados para o
178
trabalho regular. Sob a ótica capitalista então emergente, a
população livre e pobre era tida como imprestável e vadia, inadaptada
às novas relações de trabalho. Da ordem econômica escravocrata,
superexploradora e excludente, " ... forma-se um conjunto de homens
livres e expropriados que não conhecem os rigores do trabalho
forçado e não se proletarizam. Formou-se, antes, uma 'ral~' que
cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor
dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais da sociedade."
(Can'alho: 1969)
Mas é interessante ressaltar que L. Kowarick não atribui apenas ao
processo econômico excludente a não-inserção desse segmento da
população brasileira às fileiras do trabalho organizado. Há. por parte
dos livres uma resistência em se submeter à ordem escravocrata. Esta
ordem perdura nas relações senhoriais mesmo após o t~rmino da
escravatura, já que persistia a exploração extensiva da mão-de-obra e
o trabalho cativo.
"Os li\Tes. na medida em que o cativeiro fosse o referencial do
processo produti\'o, só poderiam conceber o trabalho organizado
como a forma mais degradada de existência." (p,47) A resistência \'ai
contaminar todo tipo de trabalho manual, mecânico. imediatamente
relacionado ao trabalho escravo, tido como um trabalho degradado. já
que supunha a submissào e a perda da dignidade.
"O importante nesse processo de rejeiçào causado pela ordem
escra\'ocrata ~ que qualquer trabalho manual passa a ser considerado
179
uma cOIsa de escravo e, portanto,
poderia ser diferente numa ordem
aviltante e repugnante. Não
em que o elemento vivo que
levava adiante as tarefas produtivas era tratado como coisa,
desprovido de vontade, que não tinha escolha de onde morar ou
quando e quanto deveria trabalhar, e que, brutalizado por toda sorte
de violências, no mais das vezes, monia em cativeiro." (p.47-48)
A delicada relação entre educação e trabalho no Brasil
As relações entre Educação e Trabalho, ou mais especificamente a
profissionalizaçào do trabalho, suscitam um amplo debate nos nossos
círculos acadêmicos e está longe de ser um ponto de concórdia entre
educadores. O que está posto na base dessa discussào é o suposto
dilema que a Escola brasileira enfrenta entre formar as novas
gerações para o li\Te exercício da cidadania social (liberdade de
pensamento, autonomia intelectual, consciência crítica) e a
necessidade de formação de mão-de-obra a curto e médio prazo para
atuar nos setores produtivos da economia.
Esse debate fundamenta-se ideologicamente nas gritantes
desigualdades de classes que dividem a nação entre a maioria do
PO\'o. que busca precocemente entrar no mercado de trabalho. em
ati\'idades ou ofícios que proporcionem a subsistência imediata. e
uma pequena parcela das classes médias e alta. que podem submeter
seus filhos durante anos a um processo educativo sistemático. Um
olhar superficial sobre a realidade brasileira parece direcionar o papel
da Escola para o caminho do Trabalho. com a justificati\a de que é
180
necessário e urgente instrumentalizar os jovens das classes populares
para a profissionalização. Esta visão recomenda uma terminal idade
antecipada da fase educativa para o ingresso no mundo produtivo,
hipoteticamente trazendo benefício tanto para o aluno quanto para a
economia em geral. O resultado é que, na prática, a educação pública
brasileira sucumbe à enorme disparidade sócio-econômica do país,
ao abrir mão da dimensão formativa, humanista, cultural das n(was
gerações oriundas das classes populares, em favor de uma opção
profissionalizante, em bases pouco sólidas (Cabe aqui obser\'ar que
mesmo esta opção é puramente formal, já que nem esse objetivo é
atingido pela escola fundamental). Nesse processo a escola passa a
desempenhar um papel social secundário, já que as instâncias sociais
interessadas na formação de futuros trabalhadores, tais como
empresas, órgãos ligados à indústria, ao comércio desencumbem-se
dessa função com maior grau de eficiência e com maior precisão de
objetivos. Além do que o atrelamento da escola fundamental ao
processo produtivo comprometeria o caráter de uni\'ersalizaçào do
ensino. já que por força da lógica, deveria formar trabalhadores para
o mercado de trabalho, restritivo e altamente competitivo.
À escola cabe, com maior propriedade, o desenvoh'imento de uma
ciência do trabalho, e nào a prática da profissionalização. O trabalho
industrial (e mais ainda o trabalho da era pós- industrial, por exemplo
as ciências da informação e de comunicação) abre grandes
oportunidades para que o desenvolvimento de tecnologias se
transforme na espinha dorsal da educação moderna. Entretanto. a
despeito da riqueza possível na relação Educação e Trabalho, o
181
debate fica empobrçcido pela prática, que insistç em transformar
apressadamente o aluno pobre me trabalhador semi- qualificado,
aprisionando-o a um suposto destino de classe, enquanto qUç ao filho
das classes mais favorecidas caberá o questionamento, a pesquisa ç a
utilização de tecnologias mais sofisticadas.
Paolo Nosella, analisando a visão de Gramsci sobrç a relação
Educação ç Trabalho, pontua cIaramentç o qUç vem a ser a
positividadç do trabalho como princípio educativo, tomando como
horizonte o desçn\'olvimçnto da classe trabalhadora. Enfoca a
necessidade dessa classe se apoderar das novas tecnologias, da nO\'a
forma de disciplinamçnto, das novas relações sociais postas pelo
trabalho industrial. mas sÇmpre sobre uma sólida basç dç formação
gçral ç humanista, a que chama de educação desinteressada. ou sçja,
uma çducação qUç não se preocupa imediatamçnte Çm trçinar futuros
trabalhadorçs, mas sim Çm dar as basçs culturais, filosóficas,
tecnológicas para que o jovem se apropriç autonomamçnte do
conhecimento até çntão produzido. Somente numa fase posterior é
qUç a formação çspçcífica para o trabalho, para uma dçtçrminada
Profissão canha priot'idade na pedacocia cramsciniana. Unificar o '-' '-' "-' ~
mundo do trabalho com o mundo da cultura. çstç o objçti \'0 maior dç
uma çducação que se propõe voltada aos intçresses do plWO. Mas
çsta unificação não se dá pela justaposição dç oficinas dç carpintaria ç
mecânica às escolas destinadas aos filhos dos pobres, Nçstas çscolas
profissionalizantes. \'ia dç regra apenas se acresce o horário çscolar
para qUç a criança dçsen\'oh'a alguma ati\'idadç extra. dç cunho
prático. SÇm qUç esta çsteja orgânica ç intimamente rdacionada a um
182
processo de aprendizagem tecnológica ou de desenvolvimento de
pesqUIsa.
o lugar do Trabalho nas representações dos meninos e meninas
de rua
As crianças e os jovens que estão nas ruas parecem saber, maIs por
intuição que por informação, que a via do Trabalho, ao menos da
modalidade de trabalho a que teriam acesso formal. não lhes abriria
horizontes, não os credenciaria ao exercício pleno da cidadania e nem
mesmo assegurar-lhes-ia uma participação mais qualificada no
mercado de trabalho.
A história do trabalho no Brasil lhes confirma este conhecimento
empmco.
o enSInO industrial no paIS te\'e sua ongem atrelada à oferta de
ofícios a setores marginalizados da população. (ver Celso Suco\\' da
Fonseca. História do Ensino Industrial no Brasil - Escola Técnica
Nacional do Rio de Janeiro, 1961. Citado por ... ) O estigma do
trabalho manual marcou fortemente o processo de industrialização
brasileiro até o início do século XX. Fonseca resume o desprestígio
que os senhores de telTa dispensavam a esta modalidade de trabalho:
"o ensino necessário à indústria tinha sido, inicialmente destinado aos
sih'ícolas, depois foi aplicado aos escravos, em seguida aos órfãos e
aos mendigos. Passaria em bre\'e a atender também. a outros
desgraçados." (p. 137)
183
A infância pobre constitui-se, como podemos observar, em herdeira
direta dessa corrente, que adquiriu, sob a tutela do Estado, um caráter
assistencial ou correcional.
Observamos com frequência o fracasso nas tentati\'as de integração
de meninos e meninas de rua ao segmento produtivo da sociedade
através de projetos de profissionalização imediata. Ao com'iver com
esses adolescentes em seus di\'ersos espaços de interação social e
após longos depoimentos prestados por eles sobre suas experiências
pessoais de profissionalização, podemos definir e analisar algumas
causas para este fracasso. Em primeiro lugar estão as causas
relacionadas com o fato desses jovens negarem o padrão de trabalho
que seus pais ou familiares tradicionalmente desem'oh'eram -
subemprego, biscates de toda ordem e toda sorte de ocupações
desqualificadas que remetem a rendas instáveis e insuficientes e a um
total desprestígio social. Acresce-se que as famílias têm geralmente
origens rurais, cuja cultura é também desvalorizada na cidade. Isto
faz com que os filhos depreciem a orientação dos pais. porque
buscam se identificar com a cultura urbana.
Em suma. o trabalho não constitui uma categoria positiva na vida
desses jovens. Raramente é mencionado de forma espontânea pelos
Jlwens como uma solução desejada para suas \·idas. e quando
mencionam alguma profissão. geralmente esta é inviáveL \'isto que a
criança não vislumbra possibilidades de mudança num prazo possível
para o encaminhamento profissional desejado (como frequência à
escola. incentivo. material necessário. etc). Muitas vezes a mençào ao
184
trabalho tem apenas uma conotação formal, como pode-se perceber
pelo uso de um discurso que as crianças "tomam emprestado" ao
ideário do trabalhador: "eu queria trabalhar, ser alguém na vida ... "
Quando questionados especificamente sobre a profissão que
~ostariam de senuir as respostas variaram do desinteresse à to...; e 'I
formalidade, como se percebe nas respostas abaixo:
"Nunca pensei, não quero trabalhar" (menino de 14 anos, cursou a
segunda série primária, e está "há muito tempo na rua") "Sou muito
novo, não sei, nunca pensei" (menino de 15 anos, analfabeto)
Alguns ironizam a relação de trabalho:
"Quero ser motorista, ''ou sair batendo com os carros por aí" (menino
de 14 anos, sabe ler "um pouquinho") "Queria trabalhar no banco, prá
roubar dinheiro" (menina, 13 anos, analfabeta)
"Queria ser polícia. pra roubar sem ser preso" (menino. 16 anos,
primeira série)
Outros declaram seus sonhos:
"Queria ser professora" (menina, 17 anos, cursou a quarta série) Esta
moça declarou que não consegue ficar na escola porque sempre briga
e desrespeita os professores. "Tenho vontade de ser marinheira"
(menina, 16 anos. nunca foi à escola)
185
"Queria ser jogador de futebol, que nem o Romário." "Eu queria era
ser atriz, mas sei que não vou ser mesmo" (menina, 13 anos, já
participou de um \'Ídeo sobre meninos de rua)
"Eu queria ser ginecologista" (menina, 17 anos, segunda série)
Em segundo lugar. saindo da experiência familiar. o contato que os
meninos de rua travam com o trabalho, se dá através das instituições
pelas quais circulam. quase sempre compulsoriamente. Estas
instituições apresentam o trabalho como uma forma de castigo ou
como forma de controle do tempo livre. Durante o período que
permanecem internados os meninos e meninas têm que aprender um
ofício, ofício este sempre desqualificado e fora do alcance deles
virem a desem'olver na situação de rua, para a qual \'oltam após o
período da pena. Sobre esse aspecto. constata-se vários depoimentos
de meninos que desfiam uma longa lista de habilitações que
adquiriram nas repetidas passagens por instituições de guarda de
menores. Quanto mais tempo passam nessas instituições. mais cursos
fazem. É até possível inferir a duração das penas de acordo como
número de cursos realizados.
Menino: Ah. tia. eu já fiz silk-screen. estamparia em tecido. auxiliar
de mecânica, empalhador e negócio de \'assouras ...
Entre\'.: E você já teve chance de trabalhar nessas profissões. você já
ganhou algum dinheiro como mecânico, como empalhador'.'
Menino: Não, como é que eu ia trabalhar, fazer alguma coisa na rua'.'
Ninguém quer dar trabalho prá menor. não ...
186
o trabalho faz, portanto, parte do castigo, da pena de detenção. Não
há desdobramentos, nem programas conseqüentes de utilização e
valorização do conhecimento adquirido pelos jo\'ens que retornam
para as ruas.
Obsen'ação: esta análise refere-se aos jovens que vivem nas ruas, nào
incluindo aqueles institucionalizados, cuja rotina de vida é de outra
natureza. A argumentos de natureza pedagógica, soma-se ainda um
importante dado econômico a depor contra as iniciativas de
ressocialização através de projetos profissionalizantes: não há
trabalho a se oferecer para grande parcela da população que ainda
insiste em se inserir no mercado formal de trabalho. Além disso, nas
camadas mais pobres aumenta o índice de rotatividade de mào-de
obra, o que desvaloriza aos olhos do trabalhador a dedicação e o
empenho para a manutenção do emprego. E há ainda o \'alor real que
se atribui ao trabalho, isto é, o salário real do trabalhador, que de tào
baixo se constitui num contra-argumento para aqueles muitos que já
nào consideram o trabalho em si como um princípio norteador de
vida, seja religioso ou moral.
Em terceiro lugar. há os complicadores comportamentais que vào
sugerir o fracasso das incipientes e superficiais iniciativas de inserção
social pelo trabalho. É suposto que àqueles a quem é dada a chance
de trabalho (e não o direito ... ) vençam de imediato as dificuldades de
adaptação ao aparato disciplinar e os temores e inabilidades de
relacionamento com o lado normal da sociedade . .lá vimos que o
trabalho organizado exige um grande esforço de adaptação. e que sua
187
implantação modificou os hábitos culturais das sociedades modernas.
Nosel!a observa: "O trabalho industrial, como novo demiun!O, ... modela o homem integralmente, desde criança, determinando seus
brinquedos, seus hábitos e suas habilidades até a idade adulta: fOlja
suas necessidades, seu físico e seus músculos, seus princípios e seus
sonhos ... " (Rev. Educação e Realidade,jul.ldez 89, p.7)
Estes meninos, como parte de uma população à margem dessa nova
ordem social, nào foram introduzidos nestes hábitos necessários à
preparação para o trabalho organizado. Pode-se perceber. atra\'~s das
preferências declaradas pelos meninos, uma tentativa de se engajarem
em ofícios nào tipicamente industriais. Os adolescentes em geral
dizem preferir as ocupações ao ar livre. Vários meninos citam cursos
de jardinagem, outros dizem preferir tomar conta de calTOs: trabalhar
com animais: empregarem-se como "mecânicos de posto" ou "rapazes
de entregas". Suponho que estas preferências se relacionem com o
menor aparato disciplinar e com a possibilidade de permanecerem em
ambientes abertos e, portanto. menos controlados. Ainda assim os
jovens têm grande dificuldade em freqüentar regularmente os cursos
e mais tarde em honrarem os horários e compromissos profissionais.
Eis alguns exemplos que ilustram as dificuldades aCima arroladas:
Um rapaz. em seu depoimento. declarou-se "muito a fim" de manter a
vaga de jardineiro que havia conseguido, mas mesmo assim quase
nunca conseguia chegar lá na hora. Já havia tentado inclusive dormir
numa praça "mais perto do trabalho", mas te\'e medo porque nào
conhecia "aquele pedaço" Alguns dias depois o seu caso saiu numa
188
reportagem de jornal, onde o responsável pelo programa dizia que os
rapazes não souberam aproveitar a chance que lhes fora oferecida.
Declarava ainda que aquilo não era um programa de caridade e que as
pessoas não podiam ficar esperando a boa-vontade dos meninos.
Outro exemplo da distância entre a lógica do empregador e a lógica
do menino de rua trabalhador veio de um rapaz de 15 anos que se
dizia "vidrado" no curso de mecânica que estava fazendo num
Batalhão da Polícia Militar. Ele vinha se esforçando por nào faltar,
pedia ajuda aos educadores, guardava tickets de passagem para o
trabalho, etc. Mesmo assim chegou repetidas vezes após o horário em
que era servido o café da manhã para os alunos (que se encerrava às
6:30 horas) e irritado por perder o díreito à alimentação. acabou
deixando o curso. Há também o depoimento patético de uma jovem
de 13 anos que, cansada de estar exposta à violência da rua, sol icitara
às educadoras que a encaminhassem para uma unidade do CRIAM,
"Só por uns tempos, prá descansar", dizia. Depois de algumas
tentativas, no dia em que a educadora foi confirmar a audiência com
o juiz, para que fosse providenciada sua internaçào, a menina sentiu
se desesperada, antecipando o que a aguardaria: "Tia eu não vou não,
não vai adiantar nada, o juiz vai me mandar trabalhar. arranjar
emprego em casa de família ... ninguém liga prás meninas, só pensam
que elas sào domésticas. Só tem projetos pros meninos. Eu quero é
morrer, é melhor morrer mesmo. Eu não vou trabalhar em casa de
família ... "
189
Tal atitude não ~ subjetiva. Basta ver que recentemente uma iniciativa
de órgãos municipais sugeria que sena "muito interessante
profissionalizar as moças que estão nas ruas, tàzer uns exames de
saúde... Elas poderiam se tornar faxineiras, domésticas e ganhar
muito bem ... " (reunião em janeiro/92 com a diretora da Obra Social
da Cidade do Rio de Janeiro)
Tal como a moça que "prefere mOlTer do que vIrar dom~stica"
(profissão que a mãe exerceu e pela qual optou abandonar de vez os
filhos maiores, por não haver como compatibilizar os pap~is), um
rapaz de 17 anos, há pelo menos dez anos na rua, insiste em manter
uma altivez que ~ decifrada quase sempre como petulância ou como
"desculpa para não pegar no pesado". Ele sustenta-se com o dinheiro
que recebe vigiando carros estacionados, e é considerado por outros
do grupo, e segundo ele pelos PMs da área, como um bobo, porque
raramente "faz uns ganhos" e quase nào tem o que dividir com os
guardas. Este rapaz teve a chance de, durante uma das muitas
internações, fazer um curso de serigrafia, que lhe despertou grande
interesse. Mas nunca teve a oportunidade de trabalhar nesta área. O
seu depoimento demonstra nitidamente as dificuldades de ordem
prática de transformar o trabalho num veículo de integração social.
Ele foi encaminhado para uma Assistente Social do município, que ao
entrevistá-lo perguntou se ele aceitaria qualquer ocupação que ela
conseguIsse. Ele foi firme em responder que não, perguntando em
seguida à Assistente Social se ela gostava da profissão que exercia.
Ela respondeu afirmativamente e ainda disse que não saberia
190
trabalhar noutra coisa. Entào ele concluiu "pois é, eu sou profissional
de serigrafia, eu gosto disso, só nunca consigo trabalhar. .. outra coisa
eu nào queria ... "
Os limites impostos pela conjuntura econômica
Uma economia receSSiva, com
dependente de capital externo
altos índices de desemprego,
e com uma dívida externa
aparentemente impagávd, não autoriza a supor que haverá
oportunidades em futuro próximo para a inserção no processo
produtivo da grande parcela da população que se encontra à margem
dde, seja como trabalhadora, seja como consumidora.
Vive-se um impasse. na sociedade brasileira, decorrente do modelo
econômico vigente, e a situação das crianças e jovens aqui apontada é
um exemplo contundente da perversidade das premissas desse
modelo. A solução para essa situação, já estruturalmente enraizada na
sociedade brasileira certamente não é simples, e eXige um
compromisso político meqUlvoco por parte dos representantes dos
poderes constituídos e de um posicionamento claro por parte da
sociedade civil.
Entretanto, sem perder de vista a imperiosa necessidade de atuar na
superação do atual quadro político econômico e social, é possível
que se encontre, mesmo na situação presente, formas que se mostrem
mais eficazes em oportunizar a essas crianças o acesso aos bens
191
SOCIaIS que garantam as condições de uma existência digna e os
direitos de cidadania que até agora repousam na letra da lei.
A compreensão da atual realidade sócio-econômica como principal
vitimizadora dessa população poderá dar lugar a políticas públicas
que desloquem o enfoque que hoje prevalece - de incapacidade desses
jovens para a vida produtiva e para o convívio social - e de medidas
conseqüentemente coercitivas e punitivas, para programas de natureza
lúdica, cultural ou esportiva, capazes de atraí-los para novas
perspectivas de desenvolvimento de suas personalidades. Para que
esses meninos e meninas venham a formar uma imagem positiva
sobre o Trabalho, uma imagem capaz de reacender-lhes a esperança e
o desejo de construirem um projeto pessoal de vida, é indispensável
que possam antes enxergar a SI próprios como pertencentes a essa
sociedade: que recebam dela o que lhes era de direito e lhes foi
negado - a chance de viverem as experiências próprias da infância,
onde se constroem e se reafirmam os laços de afeto, os padrões
morais e a confiança nas instituições. Só então poderão perceber o
trabalho social como fonte de riqueza, dignidade e progresso.
Nas iniciativas de iniciação ao trabalho, deve-se procurar novas
opções de profissionalização, fora do estrito círculo de ocupações de
segunda categoria, que não contribuem para a integração social nem
para a autonomia econômica.
192
2. A EDUCAÇÃO
A dimensão ne~ativa da escola
Nas entrevistas muitos jovens alegaram como principal motivo de não
permanecerem na escola o fato de não conseguirem cumprir horários
estabekcidos, serem forçados a permanecer tanto tempo sentados, se
sentirem obrigados a cumprir uma sucessão de atividades ditadas pela
professora, serem expostos a situações que lhes parecem
constrangedoras e faltarem com o respeito às autoridades escolares.
Entre\': Você gostava da escola'?
Menino: Mais ou menos, serve prá merendar (risos)
Entrev: O que você gostava e o que você não gostava na escola'.'
Menino: Eu gostava da professora, tem vez que eu não gostava muito,
que ela mandava muito, tinha que ir no quadro, tàzer dever, eu não
gostava.
As relações destes jovens com as instituições públicas se revestem de
um caráter acentuadamente negativo, e a experiência escolar não é
exceção a essa regra. O fracasso na escola é atribuído pelas crianças a
fatores que remetem mais ao aparato disciplinar que a problemas de
aprendizagem.
193
Exemplo 1)
Entr~v: Você já ~studou'!
Menino: Já
Entrev: Aonde'!
Menino: Escola Municipal Tiradentes
Entrev: E por que você saiu da escola'!
Menino: Xinguei a professora ... (risos)
Entr~v: E aí, você não quis mais ir lá'!
Menino: É, ela ficou puxando minha orelha, xinguei ela.
Entre\': E você gostava da escola'!
Menino: Eu gostava da ~scola. Gostava "as pampa". Aí xIngueI a
prof~ssora, saí da escola ...
Exemplo 2)
Entr~v: Você já ~studou'!
Menino: Já. Num ClEro CIEr 14 de Julho
Entr~v: Você gostava da ~scola·.'
Menino: Não gostava muito não porqu~ tinha um cara lá, pã, que
puxava a minha orelha. O inspetor lá no Brizolão. Ele poxa, toda vez
qu~ ~u fazia uma baguncinha assim, ele puxava minha orelha, assim,
m~ xingava de burro, toda hora. Não gostava del~ não.
Os depoimentos sobre a ~xperiência escolar inúmeras vezes incluem
a expressão "eu fugi da ~scola", o que equipara essa experiência, na
perc~pção dos entrevistados, a suas passagens por instituições
correti vas ou d~ guarda d~ m~nor~s. A permanência na ~scola ~
194
dificultada pela resistência em submeterem-se a regras disciplinares e
pelo sentimento de incapacidade e de inadequação para a vida
escolar, incutido por uma sucessào de fracassos nas tentativas que
empreendem.
Exemplo 1)
Entre\': Você já foi à escola'!
Menino: Já
Entre\': Por que você saiu da escola'!
Menino: Por causa que todo, todo meio de ano entrava em greve. Aí
ficou, ficou ruim, eu não passava de ano, aí fui e saí.
Exemplo 2)
Entrev: Você já foi à escola'.'
Menino: Já
Entre\': Você gostava da escola'.'
Menino: Gostava, "craro", era muito "bào".
Entre\': E por que você saiu de lá'.'
Menino: Sai porque eu não aprendi ... (risos)
A Escola irreal
A distância que separa os padrões disciplinares adotados pelas
crianças e adolescentes no ambiente da rua, daqueles exigidos por
instituições como a escola. vem claramente impedindo a participação
195
deles em projetos de ressocialização a que vez por outra alguns
procuram se engajar. Isto porque as instituições que geralmente se
dispõem a oferecer a essa população uma chance de se reintegrar à
sociedade, têm um cunho fortemente disciplinador, e adotam como
princípio do seu trabalho a exigência de comportamentos
padronizados, socialmente aceitáveis, como condição de
participação, seja em projetos educacionais, seja em projetos de
trabalho. As tentativas e experiências novas, ao fracassarem, acabam
por reforçar nas crianças um sentimento de incapacidade, e ainda
passam para setores da sociedade a informação de que "eles não tem
jeito mesmo", porque não conseguem cumprir horários, porque
desconhecem regras hierárquicas, porque não se adaptam ao
emaranhado de pequenas regras que compõem o comportamento
desejado pela escola, -etc.,- construindo, assim, uma visão circular do
problema.
Ademais, uma observação mais acurada das relações sociais do grupo
e da convivência cotidiana entre seus membros, demonstra que não se
trata de ausência de regras de comportamento ou de padrões de
conduta moral, sendo mais pertinente concluir que essa população
desenvolve um comportamento transgressivo em relação a um código
oficial, e adota regras e padrões de comportamento ditados pelas
interações sociais que se estabelecem no ambiente da rua. Sobre a
função organizativa do disciplinamento, que embasa o funcionamento
das instituições modernas, Foucault denuncia seu caráter de
dominação e controle:
196
"Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como
encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper
as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um,
apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades e os méritos." (Foucault:
1988)
Especificamente no interior da Escola, o disciplinamento VaI
"organizar uma nova economia do tempo de aprendizagem" (idem,
p.134), através da ação do professor hierarquizante e classificatória.
Observa-se que a reação do grupo de meninos e meninas de rua se
volta contra o padrão disciplinar imposto pela escola. As exigências
disciplinares (naturalmente somadas às culturais, sociais, econômicas)
se interpõem como uma balTeira entre a criança e o processo de
aprendizagem.
A estas razões soma-se ainda um fator objetivo, qual seja, de que a
escola é funcional a um projeto de sociedade, e esta população é posta
à margem deste projeto. A prática cotidiana, nos períodos em que
algumas crianças de rua se dispõem a freqüentar a escola, vai refletir
esta situação, levando-os quase sempre a concluir que a frequência à
escola, além de demandar grandes sacrifícios, nào oferece estímulo
nem incentivo a uma mudança de comportamento. Estas rápidas
experiências acabam por instaurar nos meninos e meninas de rua a
desconfiança de que não pertencem a este círculo social. Há
depoimentos de crianças de dez, onze anos, que demonstram uma
grande lucidez em relação ao papel caduco que a escola fundamental
197
desempenha - sempre em relação a uma população hipotética e
idealizada - que, se humildade e interesse houvesse, ser\'iriam de
lições cabais àqueles que são responsáveis pelo seu planejamento.
"Eu não vou nunca mais à escola, a escola não sabe ensinar nada."
"Eu não gosto de escola, a escola nào é prá gente. Eu nào aprendo
nada lá." "Eu queria uma escola diferente". Ressalte-se que esta
menina analisa o fracasso escolar sob outra ótica, atribuindo a
responsabilidade pelo insucesso à própria instituição, e não a SI
mesma.
Sobre o papel que a escola fundamental vem desempenhando junto às
crianças das classes populares brasileiras nas últimas décadas, nada há
a acrescentar às análises e críticas que a instituição têm recebido de
eméritos educadores brasileiros.
Darcy Ribeiro (1992) assim percebe o drama da cnança brasileira
frente à escola:
"O certo é que a maioria das nossas crianças sofre a escola como uma
experiência frustrante em que é punida, porque fala a sua língua
materna: é discriminada porque anda descalça e se veste pobremente:
é humilhada, porque não pode comprar material didático exigido
pela professora: e, por fim, é sucessivamente reprovada, sem mesmo
saber o que é isso." (Apresentação do Projeto de Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, Senado Federal, 1992, p.8.) Como
contirmação empírica da análise, registramos:
198
Entrevista 1)
Entrev: E o que você faz na rua. Você já foi à escola?
Menino: Já, eu tõ na quarta série.
Entre\': Em que escola você estuda'!
Menino: Já sei ler, sei escrever. Eu estudei na Costa e Silva, na
Alberto Barthes. A Costa e Silva é em Botafogo. Eu vinha lá do
Recreio (dos Bandeirantes) prá estudar. A Alberto é no Flamengo.
Entrev: E agora'!
Menino: Não, agora eu não tõ estudando em mais nenhuma não ... Saí,
poxa. Eu vivo na rua, eu durmo na rua, como é que eu vou estudar,
sem roupa, sem material ...
Entrev: Você queria continuar estudando?
Menino: Eu queria, se tivesse um lugar prá ficar tranqüilo, porque
prás minhas irmãs eu não vou, que elas não vai me querer.
Entrev: (para dois irmãos) Vocês estão na escola'!
Menino: Eu já, no Brizolão, mas só que eu fugi do Brizolão.
Entrev: Onde fica o Brizolão'!
Menino: Lá em Nova Aurora
Entrev: Você estava em que série'!
Menino: Segunda
Entrev: E por que você fugiu'!
Menino: Ah, lá só dava merenda, nào dava nem ABCD, só dava
AEIOU
Entrev: Você já sabia isso'! O que você queria aprender'!
Menino: Matemática.
Entrev: (para o irmão) E você, estudava lá no Brizolão também'!
199
Irmão: Tamb~m. O CIEP qUe cU estudei ~ Ministro Gustavo
Capanema. Eu estudei lá em 89. A gente começou estudando na
primeira s~rie. A gente era da mesma sala. Aí, ele passou c cU não
passei, depois cU passei c de não passou.
Entre\': Aí \'oc~s ficaram juntos de novo '!
Irmão: Aí a gente começou a fugir de casa. aí minha mik não mandou
E lamentá\'el constatar qUe Se deixe de apn)\"eitar o potencial
instituinte. criativo c inovador demonstrado pdas crianças nas suas
ati\'idades cotidianas. pela incapacidade de Se lidar com a criança
encarnada. real. A tecnocracia responsável pdo planejamento
didático dos cursos atua numa esfera idealizada. distante. presa a
teorias c moddos em qUe as crianças c jovens teimam em não Se
encaixar. Quanto à crucial relaçào entre professor-aluno. onde de
t:lto a educação acontece. interpõe-se toda ordem de obstáculos.
"A professora. por sua vcz. participa desse processo como sua
segunda \·ítima. Primacialmente porque Se \.~ condenada a eXercer
seu ofício. sem condições mínimas de alcançar eficácia. em razão de
sua precaríssima formação docente. Tambón ~ \·ítima. porque Se \·iu
degradada profissionalmente Pela deterioração da própria carreira do
magistáio. O ~. ainda. porque está ell\'oh'ida c alienada por uma
pedagogia anti-popular. em grande parte inexplícita. mas muito eficaz
como mecanismo de rejeição social. Mesmo porque ~ apoiada no
preconceito de raça c na hostilidade. corrente nas claSSeS m~dias de
onde elas são oriundas. com respeito às camadas pobreS de que saem
...... 200 .... AcAo GElOU. 9A ...
seus alunos." (Ribeiro, idem, p.8) Ilustrando esse sentimento de
hostilidade, hou\'e, no decorrer da pesquisa, um episódio em que,
educadores dispostos a promover a incorporação de meninos e
meninas de rua aos padrões comportamentais ditados pela recém
criada instituição, após algumas tentativas frustradas de que os
mesmos adotassem as regras de utilização de espaço "pedagógico",
declararam que "eles não vão nos vencer". O uso de tal expressão
leva a supor que, em primeiro lugar, as crianças de\'eriam aceitar as
tais regras como \'álidas, por bem ou por mal: e em segundo lugar (e
tal\'ez até mais importante), que este processo se parece com uma
guerra, em que um lado de\'e \'encer o outro.
As representações que os menlllos e menlllas atribuem à escola
seguem um padrão semelhante ao esboçado em relaçào às instituições
de caráter cOlTeti"o ou assistencial. São inúmeras passagens. por
inúmeras escolas. sem que se cumpra a funçào elementar de
introduzi-los no universo da leitura e da escrita.
Ainda fazendo um paralelo entre a escola e as demais instituições de
guarda ou abrigo. as crianças parecem não perceber a diferenciação
metodológica ou as peculiaridades pedagógicas entre os
estabelecimentos de ensino que freqüentam (e deixam de freqüentar).
Citam indiferentemente as escolas municipais tradicionais. os CIEPs -
de linha expressamente popular - e até mesmo projetos educacionais
centrados no atendimento de meninos e meninas de rua - como é o
caso da escola Tia Ciata.
201
Entrev: Quantos anos você tem'!
Menino: Treze
Entrev: Você já estudou'.'
Menino: Já. Na Tia Ciata
Entrev: E você aprendeu a ler'!
Menino: Não. Eu saí de lá porque briguei. Também estudei em
Quinina, mas saí de lá porque cheirei cola.
Entrev: Tem outras escolas que você freqüentou'.'
Menino: No Brizolão do Estácio. Eu saí de lá porque quis. Agora eu
quero estudar no CIEP.
Conclusão
Os dados levantados na pesqUIsa evidenciam um incontestável
fracasso da escola como símbolo de justiça social e como instrumento
de inserção social, no que se refere a este segmento da população
infantil, especialmente marginalizado.
Entrev: Você saiu da escola por quê?
Menino: Porque eu quis. eu achei a rua melhor do que a escola. vim
pra rua.
A grave questão social em que se inscreve a realidade destas crianças
requer um posicionamento urgente, um debate que amplie
posicionamentos cristalizados em relação ao papel social que cabe à
Escola cumprir. A freqüente remissào por parte da imprensa, de
políticos e dos cidadãos em geral, colocando a Escola como uma
instituição salvadora. capaz de por si só reverter o estágio de pré-
202
rompimento do tecido social, encobre outras questões fundamentais.
Uma delas é a falta de clareza quanto ao projeto que a sociedade
brasileira almeja para suas novas gerações de ricos, de pobres, de
pretos e de brancos. Há que se perguntar quaIs sào os reaIs
im'estimentos que se está fazendo para a construção de uma
sociedade mais justa, mais democrática e mais plural. O que se tem
de fato é que os índices de acesso, permanência, apnwação e
reprovação escolar: a existência de projetos educacionais distintos
para as diferentes classes: a inoperância da escola pública - refletem
em grande medida em que direção caminhamos,
Em contraposição ao ambiente estáil que em geral as CrIanças das
classes populares encontram na rede escolar oficial, pode-se detectar.
no caso das crianças de rua, algumas iniciati\"as de educadores e
organizações da sociedade civil no sentido de buscar alternativas
metodológicas mais adequadas à realidade sócio-cultural dessas
crianças. Estas iniciativas têm sido noticiadas por órgãos de imprensa
e apresentadas em encontros regulares de entidades militantes dos
mo\'imentos sociais. Há exemplos desses trabalhos em cidades de
diferentes regiões do país, e podemos citar. à guisa de exemplo, o
grupo Daruê Malungo, em Recife: o Projeto Axé e o grupo de teatro
Olodum, em Sah"ador: a Associação de Meninos e Meninas de Rua
de Curitiba, em com"ênio com a prefeitura da cidade: Projeto
Renascer, em Recife: Projeto de Alfabetização da Coordenação
Regional do M(wimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do
Rio Grande do Sul: Projeto Flor do Amanhã, na cidade do Rio de
Janeiro e vários projetos em andamento da Secretaria do ivlenor, em
São Paulo. A citação desses projetos não implica que a pesquisadora
os tenha avaliado, apenas aponta que a sociedade começa a buscar
soluções para a questão da inserção social dessas crianças e jovens,
fora do estreito círculo tradicional de subescolarização, subemprego e
submissão. Essas iniciativas têm ainda um caráter assistemático e
pontual, mas parecem possuir em comum a característica de
buscarem o caminho da ludicidade, da expressão artística e corporal.
da arte-educação, da dramaturgia. como forma de re\'alorizar as
práticas culturais e sociais das crianças a que se destinam. A
academia poderia, a meu ver, participar desse movimento atra\'és do
incremento de pesquisas, acompanhamento e avaliação desses
projetos. direcionando a discussão para a formulação teórica de uma
nova pedagogia.
204
CONCLUSÃO
Os dados apresentados ao longo deste trabalho e a análise que deles
se faz, levam-nos a concluir, com segurança, que as fórmulas
tradicionais de resoluçào do problema da chamada infância
abandonada e carente, centradas no internamento e em pedagogias
de enquadramento dessas crianças a uma lógica de submissão
cultural, apregoada por elite patrimonialista e consen'adora, com
metodologias repressivas e impositivas, já atingiu o mais alto grau de
falência. Não é outra a conclusão de trabalhos que vem vindo a lume
em anos recentes, como, por exemplo, o de Sonia Altoé e do [BASE,
entre outros. A realidade \'ivida e culturalizada por meninos e
meninas de rua é tal que podemos antecipar o fracasso de quaisquer
iniciativas que CIrcunscrevam a necessidade de mudança ao
comportamento individual dessas cnanças e adolescentes, sem
considerar a necessidade de mudanças profundas nas políticas sociais.
que venham de fato trazer alguma possibilidade de justiça social.
No âmbito da Pedagogia, a saída para o impasse poderia ser buscada
no desem'olvimento de metodologias alternativas, baseadas no
conhecimento mais aprofundado das questões culturais. sociais,
históricas e psicológicas que compõem a realidade dessas crianças.
Algumas experiências neste sentido podem ser pontuadas em algumas
das grandes cidades brasileiras, onde o fenõmeno meninos e meninas
de rua é mais alarmante. Embora ainda nào se possa configurar um
movimento, estas expenenCIaS merecem acompanhamento
206
acadêmico, visando o fortalecimento de práticas de educação popular
de cunho verdadeiramente integrativo. Em resumo, iniciativas que
visem à solução deste grave problema social, de\'em Se propor não a
corrigir o comportamento transgressor e anômico que de modo geral
se atribui a esta população, mas a agir sobre as condições sociais que
propiciam esse comportamento.
Não ha"erá. contudo. re\'ersão no quadro de injustiça social e do
extermínio sistemático do qual centenas de crianças brasileiras são
\'ítimas anualmente. se não hou\'er um posicionamento firme da
sociedade civil, atra,,~s de todos os segmentos organizados, a exigir
dos poderes públicos. em SeUS di"ersos ní"eis. o resgate. ainda que
tardio, da imensa dÍ\'ida que a nação tem para com SeUS filhos. Nào
podemos supor que se consiga re"erter esta situação. que macula a
sociedade brasileira pela crueldade e insensibilidade. apenas com
medidas de cunho assistencialista e correcional. Políticas desta
natureza, adotadas ao longo de um s~culo. \'isando ao controle da
população pobre e a consel'\'ação de um status quo social baseado no
pri"i1~gio. dominação e autoritarismo, simplesmente não dão conta
mais de cumprir esteS objetivos,
As esferas go"ernamentais. por sua \'ez. perdem-se entre discursos e
wrbas assistencialistas e. nas poucas iniciativas concretas que
empreendem, titubeam "isi\'e1mente entre a adoção de tradicionais
medidas repressi"as que nenhum benefício trazem à sociedade. dando
um tratamento policialesco à questão. ou, em pólo oposto. adotam a
retórica idealizada da boa índole do povo, Assim. propõem-se
207
intervenções que igualmente tendem ao fracasso, pelo despreparo em
lidar com a complexidade de aspectos culturais, psicológicos e outros
que a realidade dos meninos e meninas de rua apresenta.
Uma história de degradação econômica e social Um enfoque mais
abrangente nos deixaria entrever uma pesada e antiga
responsabilidade não assumida pela nação na composição da
lamentável situação em que se encontram nossas crianças e jovens de
ongem pobre, especialmente de ascendência negra. (Para
aprofundamento da herança escravocrata, ver Ligia Costa Leite: 1991 )
o mo\'imento brasileiro de concentração de renda e de terra: o
conseqüente inchamento e ocupação desordenada dos centros
urbanos: uma economia que se reduz à participação de uma minoria
de cidadãos, descartando tanto da produção. quanto do consumo e
do acesso aos bens sócio-culturais um imenso contingente de
brasileiros: e o enraizamento de uma cultura autoritária, cultuada
pelas últimas décadas de regime militar geraram o quadro que ora
explode em diversas modalidades de violência urbana. Violência esta
de que crianças e jovens são \'ítimas em primeiro lugar.
o Brasil figura como o país líder em desigualdade social. de acordo
com dados do Banco Mundial. em relatório que analisa a distribuição
de renda nacional dos países no ano de 1989. (V. índice GINI, que
mede a intensidade das desigualdades de renda)
208
"Enquanto o contingente dos 60'X, maiS pobres da população
brasileira detém apenas 16,4% da renda interna nacional, os 20% mais
ricos acumulam quase 70% do total" (Jornal do Brasil, 25/9/89),
o país é igualmente detentor dos piores índices de desenvolvimento
humano (IOH), conforme o Relatório Sobre Desenvolvimento
Humano, lançado pela Organização das Nações Unidas em 1990,
Este índice substitui aqueles que registram tão-somente o crescimento
econômico e "procura revelar a real qualidade de vida de uma
população, medida pela possibilidade de acesso à educação, à saúde,
ao consumo, à higiene" (Jornal do Brasil, 24/6/90),
l'v'lesmo com estas e\'id~ncias, as parcelas da população que se
beneficiam das disparidades denunciadas não dão mostras de se
sensibilizarem com os problemas sociais que decorrem dessa
realidade, comportando-se unidimensional mente como \'ítimas da
\'iol~ncia urbana, caracterizada por constantes furtos e outros delitos
contra o patrimônio, É importante registrar que, quanto a esses
propalados crimes praticados por meninos e meninas de rua, os dados
da 2a, Vara da Infância e Jll\'entude da cidade do Rio de Janeiro não
confirmam as características de extrema viol~ncia e \'andalismo que
se lhes atribuem: no m~s de março de 1992 foram registrados 295 atos
infracionais cometidos por crianças e adolescentes. dos quais 80'~O
referiam-se a pequenos furtos, sem uso de qualquer tipo de anna ou
ocolT~ncia de \'iol~ncia física, Neste mesmo m~s não hOll\'e nenhum
registro de tentativa de homicídio ou estupro: no m~s de setembro de
1992 foram registradas 200 ocolT~ncias de atos infracionais.
209
mantendo-se a proporção de 80(~) de casos de pequenos furtos - p.ex.
furto de chocolate em supermercado e outros que mais que podem ser
caracterizados como furtos famélicos. Quanto a crimes de natureza
violenta, houve, no mês citado, o registro de I homicídio tentado.
Rebeldes transversais O comportamento manifesto pelos meninos e
meninas de rua que compõem os grupos estudados caracteriza-se, de
modo geral, pela rebeldia, agressividade e desesperança frente a uma
sociedade que os hostiliza e os exclui. Os grupos de jovens parecem
viver uma luta desesperada contra a opressão, contra o domínio que a
sociedade lhes impõem. Esta luta se inscreve no que Foucault
classifica como lutas de resistência, de oposição a formas específicas
de poder. São lutas trans\'ersais. porque não se voltam contra um
país ou um regime político: são lutas imediatas, porque se voltam não
contra um poder central, mas contra aqueles que são imediatamente
identificados como opressores: a polícia, os consumidores: são lutas
anárquicas: não há um alvo, um objetivo definido a alcançar, as
cnanças apenas clamam como podem ou como conseguem, pelo
direito à expressão de sua humanidade, pelo reconhecimento de seu
jeito próprio de perceber o mundo, e pelo direito de participarem,
como cidadãos, da sociedade brasileira.
Teimosamente, os menmos e menmas não aceitam desempenhar o
papel social que lhes está traçado. não incorporam a "boa índole do
PO\'O brasileiro", conformado em suplicar o assistencialismo do
Estado. "Filhos da mis~ria", como tantas vezes são rotulados, mas
tamb~m do desejo: filhos do abandono, mas tamb~m da rebeldia,
210
ainda que uma rebeldia sem canais de expressão coletiva. Estes
jovens desnudam atrav~s de seu comportamento (anti )social as
enormes contradições de uma sociedade muito próxima a um
esgarçamento de seu tecido social, em função do distanciamento
sócio-econômico entre as classes que participam efetivamente da
civilização moderna e a maioria da população dela excluída. O rótulo
de rebeldes essas crianças merecem de fato. Essa tah'ez seja a
característica mais marcante que se possa atribuir aos grupos de
crianças que renegam um destino miserável para \'iver uma aventura
que quase sempre tem um fim trágico.
Como resposta à mlsena. à submissão. ao conformismo. à fome
crônica, eles oferecem suas próprias existências, tornam público seu
desespero, oferecendo um espetáculo deprimente, exibindo seus
corpos marcados pela \'iolência de uma sociedade que não quer
reconhecê-los como sujeitos sociais, como cnanças a quem foram
roubadas as chances de futuro e as esperanças.
Seus espíritos buscam na droga uma fugaz sensação de prazer. de
potência. A droga integra-se em suas \'idas com função psíquica de
mantê-los \'ivos, como seres desejantes, mas ~ quase sempre a partir
da relação com a droga que acelera-se a entrada para o mundo do
crime. do qual esta população muito cedo se torna ref~m.
Mas a cena que se desenrola aos olhos dos passantes - os corpos
inebriados e desconexos - causam antes horror e repulsa do que
solidariedade e um chamamento à defesa e proteção dessas crianças.
211
atingidas por um desnecessário ~ profundo drama orqu~strado por
toda a sociedade, seja pela omissão s~ja pela muda aqui~scência à
violência institucionalizada. Para qu~m de alguma forma compartilha
da experiência de vidas destes meninos e meninas, sua meninice se
ressalta, em meio a gestos de desespero. Os relatos pessoais aqui
apresentados, d~nunciam o precário estado psicológico ~m qu~ se
encontram estes jov~ns, a carência material, as condições insalubres e
perigosas em que vivem, a total falta de proteção e de aporte afetivo,
o não atendimento às mais elementares necessidades pSlqUlcas,
morais ~ socIaIs para um des~nvol\'imento sadio d~ suas
personalidades. Estas circunstâncias projetam um futuro sombrio
para suas vidas, tão precoc~mente ~xpostas a toda sort~ de mazelas
sociais. Ou, mais pr~cisam~nt~, ~stes jovens não constro~m para si
mesmos um projeto d~ "ida. A crueza da realidade pres~nte par~c~
Ih~s tirar a esp~rança ~ a disposição de ~mpr~~nder algum proj~to
para o futuro, impingindo-Ih~s, ~m alguns casos. uma subj~ti\'idade
marginal.
Pen'ersamente, desumanamente, inac~ita\'e1m~nt~, ren~gamos.
estigmatizamos e pummos com a morte psíquica e mesmo com a
morte física, uma geração de jo\'~ns brasikiros qu~ ousa d~safiar a
mis~ria que lhes r~s~r\'amos como d~stino in~xorá"e1.
212
FRAGMENTOS DE ESTÓRIAS DE VIDA
JOVENS MÃES E GESTANTES
MARIA
A trajetória para a rua começou em Vitória, quando ela tinha cinco
anos e a màe morreu. Os familiares a mandaram para o Rio de
Janeiro, juntamente com a irmã mais nova, para vIver com a
madrinha. O pai verdadeiro era alcoólatra .. No Rio de Janeiro ela
lembra-se que chegou muito doente dos pulmões, "quase morrendo",
e a mãe (como ela se refere à mãe adotiva) cuidou e teve muito
trabalho com ela. Mas as relações entre elas eram muito conflituosas,
porque a mãe "cuidava, mas nào dava carinho". tratava-a muito mal,
aplicava severos castil!os e, sel!undo a J' ovem, não l!ostava dela. A .... '-' '-'
menina, por sua \'ez nutre, até hoje, um sentimento de amor e ódio
pela mãe. Um dia, revoltada por não se sentir aceita, resoh'eu fugir de
casa, e foi parar na praia de Copacabana, segundo ela. aos oito anos
de idade. Lá ela se criou, junto a outras crianças.
Durante o depoimento, que começou quase por acaso e foi tomando
um clima de verdadeira catarse psicológica, a menina reviveu
emoções que dizia não saber mais que existiam, comovendo as
educadoras, que apenas ouviam o depoimento, incentivando-a com
olhares e gestos.
214
Continuando suas memórias ela contou que passava noites e noites
acordadas, pensando como a mãe estaria reagindo à ausência dela,
queria saber se ela sentia saudades ... No Dia das Mães, ela comprava
presente, pensando em voltar em casa, mas nunca teve coragem de
fazê-lo. Anos depois, quando Maria se encontrava grávida de seu
primeiro filho, foi internada numa instituição, que localizou a mãe,
sem o seu conhecimento. Quando deparou com a \'isita tào
inesperada, disse ter quase desmaiado de emoção. A mãe não sabia
que ela estava grávida, pois ela ainda não tinha contado isso na
instituição. A mãe convidou-a para voltar para casa, disse nunca ter
entendido os motivos que levaram a meni"na a fugir. Maria. por sua
vez não conseguiu dizer nada. porque "sentia muita dor", Contudo
concordou em ir para casa com a mãe, pensando em ter o bebê em
melhores condições,
Uma vez em casa, a menina deu-se conta que a mãe havia mentido
para parentes e vizinhos. sobre o seu verdadeiro paradeiro. dizendo
que ela tinha ido viver em Vitória, com outros parentes. Maria sentiu
se traída e desvalorizada. "Ela não me aceitava como eu era. menina
de rua, ela tinha vergonha de mim", e por isso decidiu nào vi\'er lá,
retornando para a rua. onde nasceu seu filho. Este foi seu último
contato com a mãe, O pai da criança esta\'a preso. e meses após o
nascimento o bebê, chamado Rafael, foi entregue a familiares do pai.
À ~poca da excursão a criança estava, segundo a mãe com dois anos
de idade.
215
Maria contava então dezesseis anos incompletos, e estava no oitavo
m~s de gestação do segundo filho. Ela conta que se sentiu muito só,
após a separação do primeiro beb~, mas "era para o bem dde",
conforme tantos adultos sugeriram. Na ocasião as educadoras do
SEMPRE VIVA haviam conseguido uma \'aga para da num
equipamento dirigido por freiras, só para meninas. Ela esta\'a feliz lá,
sabendo que o filho nasceria em mdhores condições, se identificava
com as freiras e assumia grande parte do trabalho dom~stico e ainda
tomava conta de beb~s de outras jovens que estavam trabalhando
fora.
Em profundo desrespeito à estória de vida desta e de outra meninas
que \'ivem nas ruas de Copacabana, o jornal O GLOBO publicou em
17.'04/91 uma reportagem sobre prostituição nas ruas, com foto não
autorizada das moças, traçando um perfil discriminatório, pn)\'ocando
inclusive grande mal-estar nas rdações tàmiliares.
As memnas fotografadas ficaram indignadas responderam a
reportagem atra\'~s de uma carta entregue às educadoras, que at~ hoje
não conseguiram o direito de resposta, nem no mesmo jornal que a
publicou. nem em outro órgão da imprensa.
216
GISLENE
Gislcnç ~ uma jO\'çm atçndida dçsdç 1990 pçlo projçto SEM PRE
VIVA, ç conta hojç 16 anos. Em outubro de 1991 da çsta\'a grá\'ida
do segundo filho ç cuidando da primçira filha. Luciana, dç apÇnas
da mÇsÇs de idadç. Ela tamb~m rdatou um pouco da sua çstória. Çm
cOIl\'Çrsa informal com as çducadoras. Sua participação nas ati\'idadçs
da çxcursão ficou prçjudicada por fortçs dorçs dç dçntç qUç a
incomoda\'am à ~poca ..
Ela conta qUç \'I\'ç Çm Copacabana dçsdç Pçquçna. uns no\'ç. da
anos dç idadç. quando fugiu dç casa por causa do ass~dio do padrasto.
Uma \'a na rua. da juntou-sç a um grupo (k mçninas quç Sç
constituiu como família dç rua ç permanÇcÇ ligado por fortçs laços dç
at'çto. Aos dozç anos conhçcçu SÇU "marido" ç mant~m com dç uma
relação çstá\'d. SÇus dois filhos são ddç ç çla ÇxprÇssa um
sçntimçnto dç orgulho Çm mantçr um casamçnto por tanto tçmpo.
inclusi\,ç quçstionando as çducadoras sobrç suas rdaçõçs akti\'as. ç
comparando as çxpçri~ncias com a dda. quç julga sÇr bçm sucçdida.
Sobrç a matçrnidadç da fala com firmaa, dizçndo-sç "dit'çrçntç".
após o nascimçnto do bçb~. ç não dçixa dú\'idas quanto à acçitação do
papçl dç mãç. Ela. como as outras moças grá\'idas do grupo. não
plançjou a matçrnidadç. mas tanto da quanto o companhçiro la
sonha\'am Çm tçr filhos. indçpçn(kntç da situação dç \'ida do casal.
217
Mais tarde uma educadora me contou que, apos longo Jrabalho de
recuperação da estória da menina. descobriu que a Gislene. que de
fato tinha outro nome. iniciou sua trajetória para rua a partir de muito
pequena. provavelmente por volta dos três anos. quando foi
encontrada sozinha na rua, provavelmente porque teria se perdido da
a\'ó. e fora encaminhada à Febem, onde passou grande parte da
infância sem qualquer notícia de parentes. Casualmente. quando a
menina tinha perto de no\'e anos. uma outra criança. levada para a
mesma unidade da entidade a reconheceu, perguntando à Gislene se
nào se lembrava dela. da família que vivia em Duque de Caxias. ao
que ela respondia negativamente. dizendo não ter nenhuma
lembrança familiar.
Esta segunda criança. ao sair da instituição. contou para a tàmília da
Gislene. que era vizinha da dela. que a havia encontrado lá. A màe da
menina então localizou-a e a le\'l)u para viver em casa. Segundo as
psicólogas do SEMPRE VIVA. a menina nunca t:1Z mençào a estes
tàtos. sugerindo algum bloqueio psicológico, inclusive negando o
nome tàmiliar, que consta da sua certidão de nascimento. A partir
deste retorno ao COlwí\'io familiar ~ que ela conta as desavenças com
o padrasto e a decisào de fugir de casa. Gislene demonstra atribuir
grande valor à \'ida familiar. tanto da tàmília composta por ela.
companheiro e filhos. quanto a preservação dos laços interpessoais
da sua tàmília de rua.
Tanto a mentna. quanto seu companheiro já empreenderam \'anas
tentati\'as de sair das ruas. \'iver numa casa. mas ambos cresceram nas
218
ruas. sem qualquer chance de integração sociaL de educação. saúde
ou trabalho. As relações institucionais se limitaram às internações
compulsórias em abrigos correcionais. Por uma vez. já grá\'ida do
primeiro filho. e atrav~s da mediação do programa SEMPRE VIVA.
o casal conseguiu a posse de um barraco localizado numa das muitas
fawlas da zona sul. Este período. por~m. durou pouco. porque ha\'ia
no local sáia di\'isão de territórios por parte de traficantes de tóxico.
o que im'Íabilizou a perman~ncia do casal no local. que \'oltou então
para as ruas de Copacabana. O motivo imediato da expulsão da
t:1mília da comunidade ~ inusitado. A menina conta que um dos
grupos que disputa\'am a hegemonia da liderança local supôs que a
t:1mília estivesse recebendo auxílio do grupo adversário. porque o
casal obte\'e material de construção para reforma do barraco. 1'\a
\'erdade. o material fora doado pelo IBISS. como forma de incentivo
à nova \'ida do casal. \-'!esmo explicitando a origem do material. a
t:1mília passou a ser "suspeita". e em dois meses foi expulsa do local.
Hoje Gislene está morando. em companhia da filha Luciana. de dois
anos. numa instituição municipal para crianças de rua. Seu
companheiro ainda vive em Copacabana. fazendo biscates e
trabalhando como guardado r de automóveis. Ele \'isita a família
regularmente. O filho mais novo do casal morreu com apenas
quatro meses de idade. de infecção de causa indeterminada. alguns
dias antes de ser aceita na instituição.
Reproduzo a seguir parte de uma entre\'ista realizada com a Gislene.
no meio de outras crianças. em que ela fala da \'ida na rua:
219
Entrev.: Seu nome, sua idade:
G: Meu nome é Gislene, tenho 15 anos.
Entre\': Porque ,'ocê veio para a rua'.'
G: Porque eu gosto de ficar na rua.
Entre\': O que tem de bom na rua'.'
G: Eu gosto de ficar na rua porque tem a praia, eu tenho liberdade.
gosto de ficar andando.
Entre\': E em casa, como é'.1 Você tem casa'.1
G: Tenho, eu moro lá em Caxias, lá em Gramacho (risos dos
presentes) Entre,': E porque \'ocê não fica lá na sua casa'.1
G: Por causa do meu padrasto.
Entre\': O que é que tem seu padrasto'.'
G: Ah, quando eu tinha dez anos ele tentou me estuprar. Aí eu fugi de
casa.
Entre\': E de lá prá cá. ,'ocê ,'i\'e na rua',l
G: Aí. quando eu fugi de casa. eu \'oltei prá casa, aí meu pai foi. meu
pai e minha mãe brigou, aí minha mãe foi trabalhar. aí meu pai me
botou no colégio interno. do colégio interno eu fugi. fiquei na rua
desde os dez anos.
Entre,': Em que colégio interno você esteve?
G: O colégio que eu ti\'e foi no CERTRlN de Niterói
Entre": E como é que era lá'.1
G: A gente fica\'a em pé o dia inteiro, de castigo, nào comia bem. nào
comia direito.
Entre": E aí, o que \'ocês ficavam t~1zendo na escola'.1
220
G: A gente arruma\'a nosso quarto. nossa cama. passa\'a pano no
chão. aí depois a gente brinca\'a. ia pro parque que a gente brinca\'<1.
depois a gente toma\'a banho. a gente almoça\'a.
SOBREINTERNA(ÀO
Entre\': Você já rodou'.' (Obs.: "rodar" significa "ser internado". "ser
preso" )
G: Já
Entre\': Quantas \CZes'.'
G: Fui pro Santos Dumont. não. primeiro fui pro Paula Cândido. do
Paula Cindido fui pro Santos Dumont. do Santos Dumont minha mãe
me tirou. aí cU fugi de casa. Entre\: E lá no Santos Dumont. como foi
lá prú \'ocê'.'
G: At~ qUe no Santos Dumont. .. não \'OU falar qUe ~ bom. ~ ruim prá
caramba. sabe por que'.' É ruim porque a gente fica presa. assim. a
gente fica presa. a gente come bem. sabe'.' A única coisa ruim ~ qUe a
gente fica presa. qUe a gente tem o seJ"\'iço da gente. a gente aprende
a t:1zer comida. bolinho assim. eSSeS negúcios para \ender. faz
crochê. costura para aprender. coisa de cabelo. essas coisas assim
para aprender. pintar unha.
Entre\: Bem. tem uma parte boa e uma parte ruim. Ruim porque fica
presa e boa porqUe aprende essas coisas todas. Estuda. E \'ocê
gostaria de \oltar a uma escola que não ficaSSe presa'.'
G: '\ão. cU não qUero mais não.
221
SONHOS
Entre\': O que \'oc~ mais queria qUe aconteceSSe com \'nc~. no futuro'.'
G: Eu quero qUe eu fico rica, rica, rica, prá mim sair dessa vida.
Entre\': Voc~ qUer sair dessa \·ida'.'
G: Eu qUero ficar rica.
Entre\': E Se voc~ ficasse rica. o que \'ocê ia fazer'.'
G: Se cU ficar rica. cU sumo daqui do Rio de Janeiro. \'ou pro Japão.
apw\'eito, fico lá no Japão .. nunca mais \'enho prú d. nunca mais
vejo ningu~m mais pobre. ningu~m (risos).
ANDREA
E - Qual a sua idadç. Andrça','
A_ - Oçzoito. (As amigas riçm muito: Viu tia. não ~ mÇnor dç rua. ~
maior .. , )
E - Como ~ o nomÇ da sua mãç','
A - Não tçnho, aliás. não conhçço,
E - Nunca conhecçu','
A - Não,
E - E pai. \'ocê conhçcçu'.'
A - Não. Eu não conhçço ningu~m da minha família. tia.
E - Quçm \'ocê conhçcçu. qUçm tç criava'!
A - tvlinha madrinha.
E - Quanto tempo voc'ê çstá na rua'.'
A - Cinco. seis mÇsÇs,
E - Você morava com a sua madrinha','
A - Não. ÇU tava no Col~t!io intçrno. fut!Í. ~ ~
Amiga - Mas a madrinha dda ~ qUç ia visitar da. sabç. final dç
sçmana.
E - Qual o col~gio'.'
A - CEOIT. lá dç )\(wa Iguaçu,
E - Então \'ocê já çstudou bastantç,
A - Estmki at~ a quarta. Eu sçi \çr ç çscre\'çr Pçlo mÇnos,
E - Você já trabalhou Çm alguma coisa'!
A - Já trabalhei Çm casa dç família ...
Amiga - Ah. lá Çm Nitçrói. n~. trabalhou Çm casa dç família. saiu no
mÇsmo dia .. , (risos) Saiu no mÇsmo dia, tia.
A - Nem recebi ...
Amiga - Claro, não trabalhou nem um dia, garota. Ela foi hoje e saiu
hoje mesmo.(risos) Vai receber o quê'.'
A - Eu queria ser professora ...
Amigas - Prá ser professora tem que estudar, você fugiu da escola.
(risos)
E - Você fugiu por quê'.'
A - Ah, porque eu perdi a paClenCIa, não aguento maIs. Eu sou
agressiva, aí eu xingo todo mundo.
E - E por que que você ~ agressiva'.'
Amigas - Revolta, não conhece nem màe nem pai. e aí desconta na
gente. É a realidade, ora.
E - É por isso que você ~ agressiva'.'
A - É por causa disso mesmo.
E - O que você fez de agressivo na Escola'!
A - Eu'! Discuto com a professora, brigo com todo mundo. (risos)
E - Com qualquer professora você discute'.' Com qualquer pessoa
você briga'.' Por quê'.'
A - Revolta. Eu fiquei dez dias na cadeia. Segurei roubo de outra
menor.
E - Você faz o que da vida entào. Passa o dia inteiro fazendo o quê'.'
A - Eu passo o dia inteiro dormindo (risos)
Ami\las - O dia inteiro dormindo na rua e perturbando a \lente. ~ ~
Amiga: Às \'ezes quando a gente não quer roubar, sabe. porque a
gente as vezes pensa, a gente estimula em pensamento que a gente
nào quer roubar. aí a gente vai e pede. pede no meio da rua. Mas aí dá
a maior revolta, que a gente pede, Aí me dá um dinheiro prá eu
224
comprar um pão ali ... Ah, vai trabalhar. .. não sei mais o que. Aí dá a
maior \'ontade de roubar mesmo. sabe. Mas eU não gosto de ficar na
rua não.
E - Você preferia trabalhar'.' Em qUe'.'
amiga: Em qualquer coisa.
A Andréa esta\'a grá\'ida de quatro meses. do primeiro filho. mas. ao
contrário das outras grávidas. não participou das conversas do grupo.
e durante a entre\'ista não Se referiu à gravidez. embora já esti\'esse
recebendo orientação específica sobre a maternidade. MeSeS mais
tarde encontrei-a no escritório do lBISS, justamente no dia em que
saíra da maternidade com o beb~. um menino. Só então soube qUe da
mantinha um relacionamento homossexual com outra moça do grupo.
qUe demonstrou grande preocupação com o beb~ e k\'l)u mãe e filho
para passar uns tempos na casa da família da Luciana na Baixada.
Ainda hoje a Andréa está \'i\'endo lá com o beb~.
A Andréa foi criada desde sempre em instituições. não tem
informações a respeito de parentes. a não ser uma mulher que Se diz
sua madrinha e qUe a \'isita\'a com alguma regularidade enquanto da
este\'e interna.
OUTROS FRAGMENTOS DE VIDA
Um herói pelo avesso
mãe: Selene (mOlTeu há seis anos)
pai: Jorge Luiz
irmãos: 1 itmàos mais no\'os (9 anos, 14 anos) Os irmãos estão na rua
desde que a mãe morreu.
onde mora: Campo Grande. Só fui em casa uma vez.
Escola: já estudei na Escola Municipal Prof. Firmo Costa (Padre
Miguel). Já estive na Funabem da Ilha do Governador.
Esta moça deu um extenso depoimento sobre sua \'ida. Ela assume-se
como homossexual. e valoriza o comportamento masculino.
demonstrando preferência pelas atividades dos me11\nos . A sua
companheira estava também na excursão, e também deu um
com()\'ente depoimento, relatado mais adiante. Ela \'i\'ia em
Copacabana na época que prestou o presente depoimento, e diz que
"Minha vida é Copacabana. Aqui no passeio é bom. mas nào estou
gostando tanto. queria ficar em Copacabana. lá tem tudo o que eu
quero. Se eu quiser comer alguma coisa, não tem problema. eu tomo
de um entregador de quentinha. que ele carrega tantas que nào \'ai
querer parar só por causa de uma. e perder tudo. Também entro no
bar. ou num restaurante. com cara de quem \'ai pagar. como o que eu
quero, e depois \'OU embora. Um dia o cara gritou. pega. pega. mas é
ruim de alguém me pegar".
116
Ela diz se divertir nas ocasiões em que consegue furtar com
facilidade "algumas velhinhas em Copacabana". e em seguida
detalhou a estratégia que adota para escolher a \'ítima, Fica na rua.
esperando passar "uma velhinha com cara de quem vai entregar prá
polícia" (com cara de quem tem raiva de menor de rua, explicou) e aí
dá uma rasteira nela. toma bolsa. ou tira outro pertence qualquer. Ela
acredita que assim se vinga de quem nào gosta de menino e menina
de rua,
Esta menina se autodefine como "muito mú", Ela procura. conforme
confessou. amedrontar as pessoas. se impor pelo medo. "mandar no
pedaço", Ela nos contou com detalhes vários assaltos que praticou,
Num deles, na Praça Serzedelo Correia ela assaltou uma turista.
levando mais de duzentos dólares, Fez o assalto orientada por um
\'endedor de barraca de artesanato." que \'iu que a gringa ta\'a com
muita grana na bolsa", A mulher gritou por socorro e ela foi
perseguida por um bom tempo. até que entrou no banheiro de um
botequim. tirou a jaqueta que a identificava e saiu pedindo esmola
para outro lado. passando desapercebida pela polícia, Dali foi
comprar tênis Redley para ela e para algumas companheiras, Depois
foi para o morro. comprar maconha e cocaína,
A aH) dela mora num morro da periferia da cidade. e trabalha no
mo\'imento de trúfico de drogas, É com a an) que a menina mantém
algum \'Ínculo. e esta é. aos seus olhos. uma espécie de protetora,
227
A jovem contou também que tem uma coleção de tênis, de todas as
cores e modelos, que ela rouba de umas "playboyzinhas em
Copacabana". Curioso é que ela não usava na ocasião nenhum deles.
Eu perguntei porque ela nào trouxe um tênis para o passeio, já que
estava frio e chovendo e ela estava de chinelo de borracha. Ela disse
que está com um machucado no pé há muito tempo, que não quer
sarar, e por isso ela não pode calçar nada.
A mãe dela foi morta num fim de ano ou Natal. por bandidos de
tráfico de drogas, que queriam proteção. Ela conta que a mãe ajudava
os traficantes que iam presos. "assim, igual as tias ajudam a gente
quando a gente ,'ai preso". A mãe teria saído de casa. para
cumprimentar vizinhos durante a festa de fim de ano. e. como
demorasse muito a ,'oltar, já pela madrugada Carmen foi atrás dela.
saber porque demorava tanto. Já amanhecendo o dia encontrou o
corpo da mãe esquartejado, "sem estar nem coberto, no meio da rua".
Ela se diz revoltada desde então. O pai nunca ,'iveu com a mãe, tem
outra mulher, que não gosta dela. O irmão mais no\'o morreu logo
depois da mãe. também assassinado por traficantes. Ela conta que um
dos irmãos disse que a mataria. aí ela arquitetou um plano de matá-lo
primeiro. Esse irmão dormia nas imediações da casa da avó. Ela disse
a ele que passaria a noite em Copacabana. No meio da madrugada ela
foi para o local em que o irmão se encontrava. Dai amarrou jornais
com barbante nas pernas e nos braços dele, e em seguida ateou fogo.
Para ele não desconfiar que foi ela, ela deitou-se ao lado dele e fingiu
dormir. Ele acordou aos berros, e segundo ela tem os braços e as
228
pernas marcados pdas queimaduras, Ele nunca soube que foi da
quem fez isso, e até se \'ingou de outros meninos que dormem na
praça, Ela diz que ria por dentro ao \'er o irmão se queimando,
Outro episódio rdatado por da foi o atropdamento da companheira,
Elas estavam no local habitual. em companhia de outra menina do
grupo, Quando foram atra\'essar a pista, um carro, dirigido por uma
mulher atropelou a amiga, A mulher parou muito nel'\'osa, mas ao \'er
a menina ensangüentada e com fratura exposta. te\'e medo de socorrer
e, segundo o relato, tentou fugir. Ela obrigou a mulher a socorrer a
amIga. e foi junto com a terceira menina para o Hospital. No
percurso da pegou a bolsa da mulher e tirou uns setenta mil
cruzeiros, Confessou que também nessa ocasião lhe acometia o riso
ao ver a companheira toda quebrada. "parecia que ia morrer", Só
depois da pensou que precis~l\'a socorr~-Ia, que da esta\'a \'i\'a,
Depois que da deixou a amiga no hospital mendigou algumas roupas.
porque a dda esta\'a suja de sangue, Trocou de bermuda e camisa e
foi comprar t~nis, Comprou um prá da e outro para a amIga
internada,
Em outra ocasião ela conta que estava em algum lugar da Zona Sul e
decidiu ganhar uma bicicleta, Disse que escolheu um bom local e
sentou-se sem pressa. esperando a melhor oportunidade de assaltar.
Enquanto isso cheirou um pouco de cocaína para dar coragem, Aí
\'islumbrou "um rapaz subindo a ladeira com uma bicicleta de último
tipo. muito linda", Ele não podia correr porque esta\'a ladeira acima,
Ela pegou um caco de \'idro e aproximou-se do rapaz. deu-lhe uma
229
chave de braço e ameaçou-lhe com o vidro. Ele entregou a bicicleta
sem esboçar reação, mas ela voltou a ameaça-lo caso de desse parte à
polícia, que estava em dupla, bem pertinho, logo abaixo da ladeira.
Ela disse que se ele falasse, ela o pegaria dessa vez "prá valer". Ela
seguiu o rapaz, já montada na bicicleta e foi direto pro morro, trocar a
bicicleta por cocaína. Disse que dessa vez o cara lhe deu vinte gramas
bem pesadas.
Terminado esses relatos, uma das educadoras perguntou se da não
tem vontade de largar esta vida. Ela respondeu que não, de jeito
nenhum. A vida dela ~ esta, e ela já está quase no fim da linha.
porque tem dezesseis anos e daqui há pouco será maior, daí nào vai
mais escapar da polícia. Ela disse que já "rodou" \'árias vezes, mas
não tem medo de políçia, encara qualquer guarda.
Outra educadora perguntou o que ela espera do futuro. o que ela
gostaria de fazer. Ela disse que o que ela mais quer nessa vida ~
aprender a ler e escrever. Ela sabe assinar o nome. e me pediu para
ensinar qualquer coisa para ela. Durante a tarde treinamos alguma
leitura, ela se mostrou muito interessada e por certo tem grande
t:1cilidade para a aprendizagem. embora diga não ter vontade de ir
para escola.
No relacionamento com os educadores ela se mostra cordial e afeti"a.
muito prestativa quer ajudar nos preparativos, carregar coisas,
transmitir recados. A grande segurança que quer demonstrar sobre
sua condição de "bandida" só foi abalada quando a educadora disse
230
não concordar com ela quando ela se declara muito ma.
Naturalmente, se!!undo a educadora, ela não sena muito má com '-'
qualquer pessoa, porque podíamos perceber a amizade e o carinho
que ela tinha, por exemplo, com suas companheiras e com as
educadoras. Continuando, a educadora afirmou que talvez ela fizesse
este papel de má de propósito, para vingar-se de pessoas ou de
situações que lhe provocavam muita revolta. A moça neste ponto
mostrou-se confusa, enfraquecendo o tom de voz, até aqui muito
firme, e quase balbuciando, "não, tia, eu sou ma mesmo, eu sou
má ... "
Às vésperas do Natal de 1991 esta jovem sofreu um sério acidente ao
tentar praticar um assalto num prédio, o qual ela tentava escalar.
Quando chegou à altura do sexto andar, muito nervosa, como depois
relatou, ela despencou lá de cima, sofrendo várias contusões pelo
corpo e perdendo vários dentes. Após ser internada para avaliação do
estado clínico, a jovem \'oltou para as ruas, e bastante deprimida com
o OCOlTido, principalmente por ter perdido os dentes, da contou que
sempre tinha que tàzer alguma coisa perto do Natal, porque era muito
triste, porque ela se lembrava da morte da mãe, ocorrida nessa época
e toda a revolta que sentia tornava-se ainda mais forte.
231
o menino regenerado
Um dos adolescentes participava da excursão num papel misto de
menino de rua e educador. Comportava-se frente a outros meninos
como um "superior", dando orientação e repreendendo algumas vezes
os mais novos. Ele juntou-se ao grupo que estava gravando entrevista
e pediu-me para gravar também. Após contar parte de sua trajetória
de vida, alTependeu-se e pediu-me que desgravasse a entrevista, que
não tinha importância eu saber a estória dele, não, que gostaria de
gravar "coisas mais bonitas".
Na ocasião da entrevista ele estava trabalhando numa instituição de
atendimento a crianças de rua como um educador-auxiliar. Mas
entrou na instituição .como um dos atendidos por ela. Sua trajetória
começou em Minas Gerais, onde deixou a cidade natal (que ele não
disse qual era) e foi viver em Belo Horizonte, após a morte da mãe.
Segundo ele, foi para uma cidade grande procurar uma chance de
vida melhor do que a que lhe aguardava no interior. Chegando na
cidade, sozinho, com aproximadamente treze anos, tudo o que
encontrou foi a rua e outros meninos para coO\'iver. Nào pode
\'islumbrar nenhuma maneIra de conseguir moradia ou trabalho.
Junto com os colegas passou ine\'itavelmente a cometer pequenos
furtos e, mais tarde, ao consumo e venda de dro\!as. Um certo dia. '-'
muito tempo depois de estar \'ivendo na rua, decidiu participar, junto
com outros três colegas, do furto de um automóvel. Conta que todos
cheiraram cocaína para dar coragem e rumaram para um shopping
center que se localizava na saída da cidade. O furto se deu com muita
facilidade, segundo de. De posse do carro os jovens decidiram pegar
a estrada, viajar para outros lugares, mas logo provocaram um sério
acidente de can'o, "por causa de estarem drogados". Todos ficaram
seriamente feridos, e ele permaneceu um tempo indefinido internado
num hospital para menores infratores.
Saindo de lá resolveu abandonar a cidade, e deixar para trás aquela
estória toda. Conseguiu carona para Sào Paulo, onde viveu algum
tempo, também nas ruas, numa vida bem parecida com a anterior.
Sem explicar as circunstâncias, conta que decidiu conhecer o Rio de
Janeiro, onde chegou já com dezesseis anos e onde começou, pouco
tempo depois, a freqüentar algumas instituições de atendimento a
crianças de rua, buscando sobreviver sem participar de furtos. Daí
encontrou algum apoto numa delas. onde foi chamado a participar da
daboraçào de um vídeo sobre infância pobre. Neste processo
conheceu "algumas pessoas que confiaram em mim. me deram uma
chance" e, de menino de rua transformou-se em educador. A seguir
transcrevo parte do relato que o jovem gravou, onde percebe-se
claramente o tom da regeneração cristã:
"Eu estou feliz, eu sei que realmente existem pessoas. ao nosso lado.
que trabalham em prol dos meninos de rua. Que realmente existem
pessoas que estão dando um pouquinho de si para este trabalho. E que
um dia estas crianças possam surpreender a sociedade. e a sociedade
ver neles uma nova esperança. Que a esperança para um mundo
mdhor está neles. É muito bom ser criança, é muito bom ser
adolescente, mas é muito ruim ser olhado como um marginal. é muito
233
rUIm ser olhado como bandido. Eles não são, nós não somos
bandidos, nós simplesmente dependemos de um carinho que não foi
dado na infância. Até mesmo eu não me lembro de ter dado um
SOlTiso na infância, aquele travesseiro, aquele cobertor que me faltou,
eu não quero que falte prá eles não. Eu quero que eles tenham em
abundância este cobertor, este travesseiro, este carinho que nós damos
prá eles. Quero que eles se dediquem mais para o trabalho, pela
amizade um ao outro, pelo amor. E que assim conseguiremos chegar
lá, desta forma conseguiremos. Como eu disse antes, eu nào tenho as
palavras bonitas, eu apenas falo as coisas de coração, se é engraçado,
se deixa de ser engraçado, que seja, mas o que eu falo, é o que eu
sinto, vem do mais puro sentimento que eu tenho por cada um deles.
É a maior forma de ser amado por alguém, é amando.
Muito obrigado pelo carinho, pelo amor, pela atenção e que um dia
nós possamos conseguir o que nós realmente queremos, o que nós
realmente desejamos, porque na subida para a felicidade não existe
escada rolante, mas lute, nunca pise numa escada humana, ok'.) Sejam
felizes, porque realmente existem pessoas que os amam.
Um abraço, Paulista".
Fica ainda patente no discurso do adolescente a dubiedade de papéis
que ele assume, ora ainda como menino de rua, ora no papel de
conselheiro. Este comportamento foi observado também na prática.
Por exemplo, na hora das refeições ele agia tal qual os outros jovens,
disputando a prioridade. Já durante os jogos, ele assumia o papel de
134
coordenador. Um incidente na primeira noite da excursão envolveu a
participação deste jovem, quando ele teria tentado estuprar um
menino mais novo que dormia no alojamento que ele "coordenava",
235
A menina fraca
Alguns dados:
Idade: 16 anos
Mãe: Marlene (nunca \·iveu com o pai)
Pai: Gem)\'aldo Felipe da Sih'a (morto há uns dois anos)
irmãos: 7 irmãos mais novos
onde mora: está na rua desde os onze anos. Fica em Copacabana. A
a\'ó mora em Araruama. Tem um ano que da não \'~ a a\'ó. Ela
queria uma passagem para ir em Araruama. A mãe mora em Ricardo
de Albuquerque.
irmãos: ~ irmãos estão na rua. os outros com a mãe.
escola: nunca estudou. Só sabe escre\'er o nome. Já foi interna na llha
do Go\'ernador. Escola Santos Dumont. Não aprendeu nada.
Profissão: tem vontade de ser marinheira.
Depoimento:
"Tia. eu queria uma casa prá mim ficar. por causa de que eu tô na
rua. e não aguento mais ficar na rua. com este braço operado. Tia. por
favor me ajuda, tia. (risos das amigas l. Eu nunca conheci meu pai,( as
amigas: Ah pára de brincar. n~)
o dia que eu fui conhecer meu pai ele tava morto no chão. Eu sou
muito revoltada da minha \'ida. meu a\'ô me estuprou quando eu tinha
onze anos de idade. em Araruama. Eu não sei mais o que t~1zer. eu
2~6
quero um lugar prá mim ficar porque eu nào quero mais ficar na rua.
Por favor me ajude".
Este apelo dramático feito pela jovem entrevistada coincide com o o
estado de espírito que a menina demonstrava na ocasiào. Ela havia
sofrido recentemente um grave acidente, tendo sido atropelada nas
proximidades do local onde "fica". (Ver entrevista Carmen) Após o
acidente ela passou quase um m~s internada num hospital municipal.
aguardando restabelecer-se dos ferimentos, que incluíram fratura
exposta de braço e c1a\'ícula. Numa visita à adolescente, logo após o
ocorrido, suas educadoras contam que encontraram-na chupando
chupeta, tal era o seu estado psicológico.
Sobre sua estória de vida, o fato que mais me chamou a atenção foi a
passagem em que a .iO\·em assegura que, casualmente, no dia em que
convenceu a avó de levá-Ia a uma cidadezinha próxima a Araruama,
onde \'ivia o pai, a quem ela sonhava conhecer pessoalmente,
encontrou-o morto. Ela teria chegado exatamente no velório do pai,
que acabara de morrer assassinado. Essa trágica experi~ncia teria
marcado a vida da menina, que \'árias vezes disse não ter forças para
empreender qualquer iniciativa na sua vida. Não há de ser por acaso
que se submeteu exatamente à outra menina, a Carmen, de
personalidade forte, heróica, recebendo dela proteção, alimento e em
troca submetendo-se às decisões da companheira.
Alguns meses passados da excursão, recebi notícias atrav~s da
educadora de que a Patrícia restabelecera-se completamente do
acidente e estava tentando conseguir uma vaga de residência num
projeto do Governo do Estado para meninas de rua. Longe da forte
ascendência da antiga companheira, ela parecia aos olhos da
educadora, mais firme, tentando entrosar-se com o novo grupo em
que Ingressava.
238
A bola da vez
João
Alguns dados:
rdad~: 17 anos data nasc: 09/ I 0/73 (ou s~ja, completa,'a 18 anos
justam~nte no dia da ~ntrevista. Ele sabia qu~ ~sta\'a completando
daoito anos, mas apar~ntem~nte nào quis diz~r d~ saída, porqu~ já
nào ~ra mais m~nor. Quando ~u disse, então hoje ~ o dia do seu
ani\'~rsário. Ele respond~u: Pois ~, agora eu sou maior. tia.)
Mãe: Maria Apar~cida
Pai: Jorge (morto quando ele tinha 2 anos)
irmãos: 6 irmãos mais no\'os
onde mora: Itaguaí.
Escola: Escola Venc~slau Brás - Caxambu MG. Foi interno dos s~te
aos doz~ anos. Estudou na Escola Estadual Agrícola Xaperó - Itaguaí.
o adolesc~nte conta que não pode ir prá casa, pois está jurado pela
Polícia \!lineira. tv[ora na rua, cada dia dorm~ num lugar. com medo
da polícia. Está há dois meses fora de casa. Era camelô e \'~ndia doc~
e picol~ no trem.
D~pois qu~ ~u dei os parab~ns pelo al1l\'~rsano. ~le declarou para
todos qu~ ~ra ani\'ersário d~le, ~ pediu ao diretor do IBISS para lhe
comprar um bolo. A noite o rapaz foi com o educador à padaria e
trouxe dois bolos de chocolate. Ele ficou ,'isi,'elmente emocionado
com a comemoração.
239
Eis parte da entrevista gra\'ada com de:
E - Porque \'ocê foi parar em Caxambu, Minas'.'
J - Porque minha mãe me internou lá, quando eu tinha sete anos. Saí
com doze anos
E - Então \'ocê sabe ler e escrever'.'
J - Sei.
E - Você tá na rua há muito tempo'.'
J - Tô, não posso ir prá casa.
E - Por que'.'
J - Porque houve uma confusão em casa ...
E - Na sua casa ou lá perto'.'
J - Lá perto, aí eles me acusaram de certos roubos. aí eu tiw de sair
de casa. Foi os prvl, Mineira mesmo que fizeram isso. Botaram
pressão ni mim prá poder me matar.
E - Aí \'ocê tá morando aonde'.'
J - Tô morando na rua.
E - Na Cindândia. na Carioca. aonde'.'
J - Em qualquer lugar. onde dá prá eu dormir. eu tô dormindo.
E - você trabalha. faz alguma coisa durante o dia'.'
J - Não ...
E - Você ainda quer estudar'.'
J - Claro, quero estudar no ClEP.
E - Você já foi prá algum ClEP'.' J - Não. Queria estudar a noite no
CIEP
E - Você gostaria de trabalhar em quê'.'
J - Quem eu'.' Prontas entregas.
240
E - O que ~ isso'.) O que você quer entregar'!
J - É esse negócio que eu já vi esses garotos entregar, igual office
boy.
E - Você quer ser office-boy'! Você nunca trabalhou'.)
J - É. Não
Este rapaz tem o perfil típico do que na rua chama-se "bola da vez".
ou seja, pn)\'a\'e1mente encontra-se na mira de algum matador. Ele
não fazia parte do grupo atendido pelos projetos organizadores da
excursão, Pro\'awlmente imiscuiu-se entre os outros meninos para
poder passar três dias sem ser perseguido. Depreende-se de seu relato
que \'i\'ia mudando de lugar, sem \'incular-se a nenhum grupo, numa
tentati\'a de não ser localizado pela chamada Polícia Mineira, a quem
ele "esta\'a de\'endo alguma coisa", Acresce-se que ele esta\'a
justamente completando a maioridade, marco tão temido pelos
adolescentes que não conseguem se encaminhar para uma alternati\'a
à \'ida do crime, ou ao extermínio, Ele ficou surpreso ao ser bem
tratado pelo grupo, tanto de meninos quanto pelos educadores. Disse
após a comemoração de seu ani\'ersário que queria muito \'I\'eL
mudar de \'ida, que nesta festa ele esta\'a achando que podia.
Após o retorno ao Rio, nunca mais ti\'e notícias do rapaz. que não
retornou aos locais usuais de atendimento dos educadores,
241
Uma entrevista padrão
A ~ntr~\'ista qu~ se s~gu~ foi realizada em dez~mbro de 1991, pela
pesquisadora e pelo pedagogo Carlos Bezerra, como part~ do
levantamento da população infantil de rua da Praça Saens Pena ~
adjacências, solicitado pela Prefeitura do Rio d~ Janeiro. Julgu~i
int~ressante inclui-Ia na íntegra, porque em primeiro lugar, da pod~
ser tomada como padrão das entrevistas gravadas no período da
pesquisa: ~m segundo lugar porqu~ a considero particularm~nt~
indicativa do comportam~nto infantil ~ espontân~o qu~ as cnanças
demonstram junto aos educadores ~ ainda porque, por pura
casualidade, o ~ducador citado pr~s~nciou, mom~ntos ant~s do
~ncontro com os m~ninos, dois dos ~ntre\'istados ser~m usados por
um adulto durant~ um assalto. O ~ducador ~ ~u nos ~ncontramos na
Praça, ~ procuramos os locais ond~ normalm~nte as crianças s~
reuniam. Próximo ao Tijuca Off Shopping vimos alguns adokscent~s
~ngraxat~s, havia um grupo d~ 4 ou 5 m~ninos. Quando nos
dirigíamos a des, outro grupo de meninos m~nores se aproximou.
Eram 4 meninos ~ ~sta\'am pedindo dinheiro para o Natal. com uma
caixa tipo ~stas qu~ t~m nos bar~s com cartão d~s~jando Fd iz Natal a
q u~m aj udar.
O Carlos reconh~c~u dois dos m~nInOS, qu~ ~stavam no m~smo
ônibus qu~ ele apanhou de Copacabana para a Tijuca. Est~s m~ninos
participaram de um assalto que hou\'~ no ônibus, s~gurando a arma
para um homem at~ o mom~nto do assalto. No final das ~ntr~vistas o
Carlos dá um depoim~nto do qu~ ocorTeu. Os m~ninos tamb~m o
242
reconheceram e ficaram assustados, cochicharam entre si que este era
o cara que estava no ônibus. Perguntaram o que a gente queria com
eles. Sei.!ue a i.!ravação: ~ '-'
Carlos: A gente trabalha na Cinelândia, com aquela molecada de lá.
conheço muitos moleques ali na cidade. Eles me chamam de Gordo.
menino: Ah, eu sei tio, fica todo mundo ali naquela escadaria
menino: Já sei, já sei quem \'oc~ ~. Fala deles tio. Eles cheiram cola e
tudo ...
menino: Calma aí, deixa o moço tàlar, depois \'oc~ tàla.
Carlos: Aí, a gente foi chamado pelo Prefeito prá saber assim quantos
meninos tem na região da Saens Pena, porque ele tá querendo fazer
uma casa pros meninos e agora de acordo com o número de menino
que tem ele \'ai tàzú uma casa. ou duas casas. prá não ficar muito
moleque junto, aquela bagunça ... Um lugar que seja legal prá turma
ficar. Então ~ isso que a gente veio fazer aqui. Saber o nome de
\'oc~s. fazer algumas perguntas ... que ~ prá quando fazer a casa fazer
assIm ...
menino: Olha só. aqui na Saens Pena não dá não. aqui só tem muita
garota. Copacabana acho que tão tàzendo um negocIo desses. uma
casa nova.
menino: Ah. eles fazem ruindade. os grandes fazem ruindade ...
Eliana: quem ~ que t:1Z ruindade'.}
menino: os moleques. querem comer o coisa do outro ...
Eliana: Vocês ficam aqui?
menino: Não a gente fica em Copacabana
Eliana: Vocês dormem lá'.}
menino: Hum, hum. menino:(para Carlos) Você tava no ônibus, não
~'.) A \.!ente ta\'a com'ersando e você tava do lado da \.!ente ... ~ ~
Eliana: Bom vamos começar entào. O que que a gente quer saber: o
nome ou apdido, quantos anos vocês têm ...
menino: Eu quero falar primeiro ...
Eliana: Então tá bem, de fala, depois vocês falam. Qual e o seu
nome'!
menmo: Ricardo Constantino da Costa, tenho 12 anos
Eliana: Como é o nome do seu pai e da sua mãe'.)
Ricardo: Wilson, meu pai e minha màe Maria Eunice Mendonça
Eliana: Você sabe que dia \'ocê nasceu'.)
Ricardo: 1979.
E: Que dia, que mês'.)
Ricardo: Ah, nào sei ...
E: Que dia que você L1Z anos'.)
Ricardo: julho.
E: Que dia de julho'.'
Ricardo: Ah. dia 23 (muito alegre por ter se lembrado)
E: dia 23 de julho de 1979. Você ~ Leão'!
Ricardo: Isso mesmo. eu sou Leão ...
menino: eu sou de Libra ... Eu fiz aniversário. eu tenho 13 anos ...
E: Tã. daqui a pouco chega a sua \'a ...
E: Onde ~ que a sua màe mora. cadê seu paI. cadê sua mãe. onde
moram, você tem irmãos'.)
Ricardo: Minha mãe morreu e meu pai mora em Recife. mas não sei
o lugar.
E: Você nasceu em Recife'!
Ricardo: Não eu sou carioca.
E: Sua mãe morreu há muito tempo'!
Ricardo: Não, faz ... quando eu tinha uns dez anos, faz dois anos.
E: E você morava aonde quando a sua mãe era \'iva'!
Ricardo: Eu morava com as minhas irmãs mas elas me espanca\'am
muito. í, passa a mão prá senhora ver, nào sai nunca mais. Aqui (no
braço), nas pernas ...
E: Suas irmãs sào grandes'.) Você mora\'a aonde com elas'.)
Ricardo: Eu morava no Recreio ... Aí eu fugi, tem dois anos.
E: E aí \'ocê mora aqui na Praça'!
Ricardo: Não, eu fico lá no Leme. Eu também venho aqui ...
E: Quantos irmãos \'ocê tem?
Ricardo: Tenho sete. Cinco irmãs e dois homens. Um comigo e outro
já tá casado.
E: Então \'ocê é o mais novinho?
Ricardo: Sou. o caçula. E a outra minha irmã que não casou é caçula
também. Ela já tá noiva.
E: E você \'ai \'isitar seus irmãos'.)
Ricardo: Não.
E: Você nunca vai em casa'.)
R: Não.
E: E o que que você faz na rua. Você já foi à escola'.)
Ricardo: Já, eu tô na quarta série.
E: Na quarta série ... Qual escola'.)
Ricardo: Já sei ler, sei escrever. .. Eu estudei na Costa e Silva, na
Alberto (Bate .... ). A Costa e Sil\'a é em Botafogo. Eu \'inha lá do
Recreio prá estudar. .. e a Alberto é no Flamengo.
145
E: E agora ...
Ricardo: Não, agora cU não tô estudando em mais nenhuma não ... Sai
pôxa, cU moro na rua, durmo na rua, como ~ que cU \'OU estudar, sem
roupa, sem material...
E: Você queria continuar estudando'.'
Ricardo: Eu queria, se cU tivesse um lugar prá ficar tranqüilo, porque
prás minhas irmãs cU não vou, que das não \'ai querer.
E: Elas não tomam conta de \'ocê ...
Ricardo: Não, das bate muito, cara ...
E: E você já este\'e em alguma destas instituições, Ja este\'e
internado'.'
Ricardo: Já, olha, cU tenho problema de coração. tenho sopro no
coração. c tenho probkmas de ner\'os ...
E: Que problema'.'
Ricardo: Eu desmaio à toa ... eu cal de muitos metros ... Eu fui pro
Hospital e fiquei dez dias internado.
E: É mesmo'.'
Ricardo: Quebrei eSSe dente aqui. oh. (mostrando os dentes da frente
quebrados)
E: E o que você faz durante o dia. o que você faz prá arrumar grana.
como ~ que você \'i\'e'.'
Ricardo: Bom, posso falar mesmo'.'
E: Pode, Se \'ocê quiser. ..
outro menino: Pode Falar'.'
Ricardo (para o amigo): Fala prá mim, que cU tenho \'ergonha ...
outro menino: Falar o que'.'
Ricardo: Ela tá perguntando o que que cU faço de dia ...
246
menmo: De dia, a gente arruma dinheiro prá jogar tlipper, vai jogar
tlipper
outro menino, interrompendo: mentira, tia
Ricardo: Não, fala a verdade, vamos falar a verdade ...
menino: então fala, pode falar. ..
Ricardo: A gente rouba ...
outro menino: a gente cheira brizola ...
Carlos: Lá na Cinelândia eles tamb~m fazem isso ...
Ricardo: a gente rouba. fuma brizola ...
E: Voc~ cheira cola também'.'
menino: Tia, quando ele fuma, cheira brizola, o coração dele vem
aqui. fica inchado aqui. grandão
E: Onde ~ que incha. Ricardo'.'
Ricardo: Quando ele começa a bater muito forte. tem hora que eu
sinto que o meu coração começa a bater muito forte. Eu começo a
sentir um negócio aqui ...
Carlos: Deixa esse aqui falar tamb~m ...
E: Fala gordo. fala \"oc~ a!..!ora .... '-'
Carlos: Como ~ o seu nome'.'
menino: Alex Pereira de Almeida
Carlos: E o apelido'.'
Alex: índio
E: E \'oc~ tem quantos anos'.'
Alex: doze anos
E: Como ~ o nome de seus pais'.'
Alex: Meu pai ~ João e minha màe ~ Lúcia
E: E eles moram aonde'.'
247
Al~x: M~u pai ~m Jap~ri ~ minha mã~ na Rocinha ...
E: Você t~m irmãos'.' Al~x: T ~nho, doz~
E: Doze irmãos'!
Akx: irmàos e irmãs também ...
E: Você é mais novo, mais velho ou do meio'.'
Akx: sou mais nO\'o. Não, agora sou mais velho, porque nasceu mais
dois da minha mã~ com o m~u padrasto ...
E: Sua mãe casou de nlWO'!
Akx: Não casou não, mas é como s~ fosse casada ... El~s s~ dão muito
bem ...
E: E porque você não mora nem com a sua mãe nem com o seu pai'.'
Alex: Eu não me dou com eles. Com o meu pai ainda m~ dou um
pouco. mas com minha mã~ não. Eu só ''ou só na casa da minha tia.
E: Onde é a casa da sua tia'.'
Akx: Jap~ri.
E: Ond~ mora seu pai. S~u pai faz o qu~. ele trabalha'!
Al~x: Meu pai é dono de roça.
E: E sua mãe. trabalha'.1
Akx: faxina ...
Carlos: Você ~stá na ~scola'.'
Alex: Não. Mas ~u já ~stud~i. Eu s~i kr. ~scr~\'er. ..
outro menino: L~r não. é mentira. d~ não sabe ler. ..
Akx: S~i \çr mais ou menos ...
Carlos: Lê aquilo lá
Alex: Fo to ma ... ma ni .. fotografia. sei lá ...
E: Fotomania, tá c~rto. tá ótimo
E: Você estudou até qu~ série'!
2.+8
Alex: Primeira
Ricardo: Eu sei ler e escrever COITetamente: FOTOMANIA
IVrDEO/INFORMÁ TICA.
E: Muito Bem ...
Carlos: Você estuda atualmente'!
Alex: Não.
E: Voc~ dorme aonde, no Leme'.'
Alex: É, no Leme. Todo mundo aqui dorme no Leme.
E: Ah, vocês dormem juntos ...
menino: Anda tia, se não vai acabar e eu não vou falar nada ...
E: E você já esteve na FEEM ...
Carlos: Vocês já pararam em alguma instituição, DSPM ...
Ricardo: Já. Eu parei em Cantinos ... fugi ...
menino: Quintino, cara ...
Ricardo: É, Quintino. Foram só dez vezes ...
E: Dez vezes, em dois anos'.'
Ricardo: É, dez vezes, sem brincadeira, mas eu fujo assim em tr~s
dias ...
E: Por que \'ocê fugiu'.'
Ricardo: Ah, eu \'OU ficar lá'.' outro menino: Lá os caras que tomam
conta batem. Olha só aqui (mostrando o braço)
Alex: Isso não ~ nada olha só esse aqui ...
E: Quem te deu essa pancada'!
Alex: Ué, os moleques da rua. Eles são ...
E: E \'ocê Alex ...
Alex: Eu já tive no Padre.
E: Padre ~ aonde'.'
249
Carlos: Padre Se\'erino.
Akx: Já ti\'e no CRIAM.
Carlos: No CRIAM tamb~m'.' Qual'.'
Alex: CRIAM de No\'a Iguaçu, lá perto de casa.
E: Agora ~ a vez desse rapaz aqui. Como ~ o seu nome'.'
Menino: Jorge Luiz Albuquerque de Castro
outro menino: Paraíba.
E: Quantos anos \'oc~ tem'.'
Jorge: U anos ...
menino: mentira ...
E: Voc~ nasceu aonde'.1
Jorge: nào sei ...
outro menino: eu nasci no Rio.
E: Qual o nome da suá mãe e do seu pai'.'
Jorge: Meu pai não sei não, meu pai já morreu ... Minha mãe ~ Maria
Emília Cabreiro de Albuquerque.
outro menino: O nome do pai dele ~ ....
Ricardo: fala qualquer nome ...
menino: ... é Joni. ~ Jonas ...
E: (rindo) Fala qualquer nome ... \'oc~ falou qualquer nome para o seu
"1 paI.
Ricardo: Eu não. tia. mas quando não sabe, fala qualquer nome ... eu
tenho at~ prova.
E: E Jonas o nome do seu pai'.'
Jorge: É. Jonas.
E: Quantos irmãos \oc~ tem'.'
250
Jorgç: tenho quatro", Não, não, tia, tenho seiS, Um quç mora em
Minas Gçrais, já ~ casado. já tem botequim, Minha irmã já ~ casada,
tem dois filhos, T Çm Çsse aqui (apontando o mçnino do lado) quç ~
mais velho do quç çu .. ,ç meu outro irmào quasç do mÇu tamanho e
tçm um menorzinho, São três qUç estão na rua, Jorgç: Um qUç çstá
Çm Minas Gçrais, a minha irmã que fugiu de casa. mas agora ela
\'oltou prá casa, deixou minha sobrinha ç mÇu sobrinho. na casa da
minha sogra .. , aí minha irmã foi prá casa da minha \'Ó,
E: E seu irmão qUç foi prá Minas, Você nào quçr morar com ç\ç ','
Jorgç: Não, Meu irmão já era casado, Não sei nem se e\ç tá \'i\'o ou se
tá morto .. , irmão (interrompendo): Ele nem conhece minha mãe
direito .. ,
E: E seu nome. como ~','
menino: Leandro,
E: Leandro de quê','
Leandro: Albuquçrque de Castro,
Jorge: A mesma coisa do que eu .. ,
E: E quantos anos \'ocê tem, Leandro'!
Leandro: 14,
E: E \'ocês estão na rua há quanto tempo','
Ricardo: ÇU estou há pouco tempo,
Leandro: Minha mãe ~ anão. minha mãe e anão, Quç tamanho ç
minha mãe. minha mãe não tem o teu tamanho','
menino: Ela tá na Praça Tiradentes. trabalhando na Praça Tiradentes,
E: E onde ~ que a sua mãe dorme','
Leandro: Minha mãe dorme em Belfort Roxo .. ,
Carlos: Vocês estão na escola','
25\
Leandro: Eu já, no Brizolão, mas só qUe cU fugi do Brizolão.
E: Onde fica o Brizolão'.'
Leandro: Lá em Nova Aurora.
E: Você estava em que sáie no Brizolào'.'
Leandro: Segunda
E: E por que qUe \'ocê fugiu do Brizolào'.'
Leandro: Ah, lá só da\'a só merenda, não dava nem ABCD, só dava
só A, E I OU ...
E: Você já sabia isso'.' O que que você queria aprendd.'
Alex: Matemática ...
Ricardo: Eu sei Português, um pouco.
E: E aÍ, você achou o Brizolào ruim'!
Leandro: Eu achei, aí a minha mãe falou que \'al me botar num
cokgio pago ...
menino: Eu Sei inglês, inglês ...
Jorge: O CrEP que cu estudei c Ministro Gusta\'o Capanema. Eu
estudei lá em 89.
E: Você estudava lá tamb~m, Leandro'!
Leandro: cU tamb~m. A gente começou estudando na primeira sáie.
A gente cra da mesma sala. Aí ele passou c cU nào passei, depois cU
passei c de não passou. Eu passei prá segunda.
E: Aí vocês ficaram juntos de no\·o ...
Leandro: Aí a gente começou a fugir de casa, ai a minha mãe não
mandou mais a gente pro col~gio ...
E: Por que que \'ocês começaram a fugir de casa'.1
Leandro: Antigamente cU fugia de casa porque meu pai me batia
muito, ainda bate ...
252
E: Ainda bate quando você vai lá'! Você vai sempr~ na sua casa'!
L~andro: Quase sempre ~u vou na minha casa, mas t~m va~s qu~ a
g~nt~ le\'a dinheiro prá minha mã~ ...
Jorge: Aí tia, nào tem passagem prá eu ir pro Pará não, prá Belém do
Pará'.'
E: Por que que você quer ir prá Belém do Pará'.'
Carlos: Lá tá matando m~nor prá caramba. É o lugar qu~ tá maIs
matando ... m~nino: a g~nt~ tem sorte ...
E: Por qu~ qu~ \'ocês têm sorte'! Ninguém implica com \'ocês não'!
L~andro: B~lém do Pará não tinha nem molçque d~ rua, agora tá
criando muito, não é'! Não ~xistia ladrão ~m Belém do Pará ... Lá m~u
irmão é dono d~ firma. Jorg~: Pro outro grupo é melhor, tia, pro
outro grupinho, ninguém \'ai acabar com a \'ida.
Carlos: Você conhec~' mais molçqu~ aqui'!
AI~x: Conh~ço, t~m uma porção d~ pi\'~te ...
Ricardo: Tem a minha namorada ...
Alex: tia, quanto \'al~ ~ssa nota aqui " (Mostrando uma nota d~ I
dólar)
E: Valç quas~ mil pratas.
Ricardo: Tia, eI~ \'ai aum~ntando, s~ eI~ guardar, não é'.'
Im~diatam~nte apar~c~ um hom~m, qu~ nós nem tínhamos \'isto qu~
~sta\'a por perto ~ p~rguntou: "Qu~r v~nder o dólar, m~nor'.'"
Depoim~nto do ~ducador Carlos Baerra sobre o assalto: "Hoj~ é dia
16 d~ da~mbro d~ 1991 às s~t~ ~ m~ia ~u tom~i o ônibus na A \'.
Nossa S~nhora d~ Copacabana. Eu ~sta\'a no ônibus ~ entraram duas
253
crianças, dois adolescentes. Um deles com um revolver na mão, quer
dizer na cintura. Todo mundo deu prá ver que ele tava com o revolver
na cintura. Do meu lado sentou um sujeito adulto de bigode, sem
camisa. Eu comecei a olhar prá ele e aí o sujeito olhou prá mim, prá
outras pessoas, aí tirou o dinheiro que ele tinha no bolso e botou
dentro das calças. Aí me veio uma pequena intuição que aquele cara
era o assaltante e não aquelas crianças.
Quando ônibus chegou no aterro do Flamengo aí os dois meninos Se
le\'antaram e um deles puxou o re\'oh'er da cintura e entregou ao
cara. Ele levantou e ordenou o assalto. Como na hora que ele
disfarçou que escondia o dinheiro três pessoas tamb~m esconderam
dinheiro: uma mulher soltou o relógio no chão. uma outra senhora
tirou o dinheiro que tinha no bolso e colocou na sacola e um outro
senhor colocou dentro da meia. E aí quando ele ordenou o assalto ele
foi nas três pessoas que tinham escondido o dinheiro. Foi um gesto
que ele fez prá todo mundo copiar.
Eu parei no Castelo. depois tomei o metrô prá Saens Penha, aí
quando dei a volta na Rua Uruguai. eu e a Eliana fomos lá fazer
entrevistas com os meninos. quando vi que eram eles. eles fizeram
que nada tinha acontecido. ficaram meio assustados. Eliana: mas eles
perguntaram Se era \'ocê ... Carlos: É. eles perguntaram Se era eU que
estava no ônibus agora há pouco. Eu falei que era. mas tamb~m a
gente não ficou muito à \'ontade prá perguntar quem era aquele cara
que tinha assaltado junto com eles. Eliana: Detalhe: eles esta\'am
254
duros. só esta\'am com uma nota de I dólar. Carlos: É parece que eles
nào ficaram com dinheiro."
255
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