Fragmentos amorosos de uma cidade

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João de Souza Leite | TEXTOS ESCOLHIDOS, 2013 1 1996 Artigo solicitado pelo então diretor do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, arquiteto Lauro Cavalcanti, para integrar a segunda edição da revista Eventual, ocasionalmente publicada pela instituição, sem periodicidade definida, como seu próprio nome indica. Àquela altura, ainda 1996, pouca ou nenhuma crítica era realmente praticada no campo do design. Nos anos recentes, com a implantação de uma produção acadêmica na área, ampliou-se, em muito, os estudos relativos ao design, embora ao exercício da crítica ainda não se tenha reservado o devido espaço. Nesse sentido, embora algum conceito pudesse ser atualizado, creio que as ideias aqui contidas ainda sejam válidas, muito embora os exemplois aos quais me refiro já estejam razoavelmente superados e a demonstração de uma boa prática de design tenha se modificado. Referência Souza Leite, João de. “Fragmentos amorosos de uma cidade”. In Eventual, número 2. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 1996. Fragmentos amorosos de uma cidade Algumas anotações sobre o design gráfico no Rio de Janeiro João de Souza Leite Que conhecimento é esse, o design gráfico? Pertencerá ao amplo campo da Arte? Qual o instrumental de crítica frente a seus objetos? A análise do design deve se valer das teorias da arte ou possui um corpus teórico próprio? Em outra direção, o que interessa observar na produção de design gráfico no definido território carioca e nessa exata circunstância brasileira? Para tanto, certamente é necessário ordenar algumas observações com o objetivo de melhor traçar o campo em questão. Em primeiro lugar, design não é, como querem alguns, pragmáticos por excelência e conservadores por fim, exclusivamente a aplicação de uma

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1996 Artigo solicitado pelo então diretor do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, arquiteto Lauro Cavalcanti, para integrar a segunda edição da revista Eventual, ocasionalmente publicada pela instituição, sem periodicidade definida, como seu próprio nome indica. Àquela altura, ainda 1996, pouca ou nenhuma crítica era realmente praticada no campo do design. Nos anos recentes, com a implantação de uma produção acadêmica na área, ampliou-se, em muito, os estudos relativos ao design, embora ao exercício da crítica ainda não se tenha reservado o devido espaço. Nesse sentido, embora algum conceito pudesse ser atualizado, creio que as ideias aqui contidas ainda sejam válidas, muito embora os exemplois aos quais me refiro já estejam razoavelmente superados e a demonstração de uma boa prática de design tenha se modificado. Referência Souza Leite, João de. “Fragmentos amorosos de uma cidade”. In Eventual, número 2. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 1996.

Fragmentos amorosos de uma cidade Algumas anotações sobre o design gráfico no Rio de Janeiro João de Souza Leite Que conhecimento é esse, o design gráfico? Pertencerá ao amplo campo da Arte? Qual o instrumental de crítica frente a seus objetos? A análise do design deve se valer das teorias da arte ou possui um corpus teórico próprio? Em outra direção, o que interessa observar na produção de design gráfico no definido território carioca e nessa exata circunstância brasileira? Para tanto, certamente é necessário ordenar algumas observações com o objetivo de melhor traçar o campo em questão. Em primeiro lugar, design não é, como querem alguns, pragmáticos por excelência e conservadores por fim, exclusivamente a aplicação de uma

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teoria de problem solving. A compreensão e a análise do design passam pela discussão de alguns modos de teorização. Uma teoria de problem solving tende a circunscrever o objeto em análise no cenário onde esse mesmo objeto se insere. Esse cenário, por si, não é questionado. Esse tipo de teorização implica no estabelecimento de regras e parâmetros em um território absolutamente visualizável, de modo a diminuir o número de variáveis em questão. E aí reside o que pode ser tomado como a sua qualidade. No entanto, o que aparentemente surge como universal naquelas regras e parâmetros, a bem da verdade, nada mais é do que uma representação do quadro institucional assumido de antemão pela própria teoria. Ou seja, a análise descreve um movimento circular, por vezes dogmatizado, impedindo a incorporação da novidade no circuito. Neste caso podemos situar boa parte dos ditames do pensamento moderno em design gráfico.

Distanciado de suas formulações de origem, hoje o design adquire estatuto próprio e já não pode mais ser analisado em termos da viabilização do artista no tempo contemporâneo, como concebido nos anos 20. Essa concepção pertence ao passado e já não nos interessa mais. Questões como o processo de projetar, a adequação da solução à natureza multifacetada do problema, vêm se alinhar à questão estética, esta sim passando a se submeter ao contexto gerando uma infinitude de expressões possíveis ao sabor e ao gosto de autores e públicos variados.

Para ampliar o horizonte e tornar mais consistente nossa observação, necessário é operar com uma teoria crítica. Crítica no sentido de colocar o observador na posição de quem se afasta e não se compromete com nenhuma ordem prevalente, mantendo em aberto um questionamento contínuo sobre a construção de qualquer ordem. Significa sobretudo se comprometer, na análise, com a ideia de dinâmica própria à História, incorporando ao objeto dimensões como historicidade e organicidade, e se propondo a compreender os atos, e os fatos, não a partir de regras apriorísticas mas pelo que se apresenta no presente com os dados caracterizadores de cada circunstância.

Aquele ponto de vista — da compreensão do design unicamente como problem solving — implica em privilegiar parâmetros estabelecidos no plano do absoluto.

Não é por outra via, portanto, que devemos prosseguir. A ideia de processo multidisciplinar contida na conceituação do projeto em design,

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que vai por sua vez se estabelecer como sua característica diferencial, reforça a opção por uma teoria crítica.

Fazer design significa operar com a ideia de sistema. Há, na ação projetual, uma função sistematizadora intrínseca que se realiza sobre o objeto. Sistematizadora no sentido da construção do problema por intermédio de uma visão caleidoscópica, sistematizadora em seu aspecto transdisciplinar.

O sujeito do design, propositalmente não nominado aqui como designer para evitar um engajamento corporativista, elabora em si a capacidade de conhecer um problema a partir do que não está exposto, do que não é aparente. E dessa multiplicidade informacional, que diz respeito a intenções diversas, seja por parte do cliente, seja por parte do assunto em questão, que também diz respeito aos limites oferecidos em termos da técnica e dos meios de produção, serão destacados elementos a serem conjugados e ordenados segundo parâmetros com diferentes graus de relevância. Aí reside a necessidade absoluta da função sistematizadora do design.

Entretanto, atenção! Não nos confundamos em acreditar que se trata de algo aplicável somente a complexos e superdimensionados problemas, com inúmeras peças de comunicação a serem projetadas. Não. Essa função pode se evidenciar no projeto de um único objeto gráfico.

É justamente através desse processo que o designer constrói sua abordagem ao problema: um conceito que trafega do abstrato em direção ao concreto, ao qual se agrega de forma inequívoca o que vai se caracterizar como exercício de linguagem e de expressão pessoal do designer.

Incorre em êrro aquele que acredita que o traço singular do design é atribuído pela forma. A singularidade do design se expressa naquele somatório, naquela tarefa de conjugar dados de natureza diversa e a necessidade própria de expressão.

Nesse território, a linguagem é o eixo — o designer nos aparece como senhor da linguagem e não como submisso servo da linguagem, não mais acreditando em normas absolutas da estética mas na necessidade de lidar com questões como gosto, contexto, cultura e público.

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Em segundo lugar, há que se tratar da relação entre o nacional e o cosmopolita. Trafegando pelas cidades do mundo, o design ganha linguagem própria, de qualidade absoluta, comum ao ambiente urbano, cada vez mais homogêneo e soberano frente a veleidades regionais. Ora, essa tendência a uma evolução uniforme dos objetos e das formas comunicacionais se alia à “democratização” do fazer promovida pelo computador pessoal, compondo uma estética sem autoria e sem singularidade. Nesse espaço, a cada usuário informatizado é facilitado o acesso já decodificado aos elementos constituintes da linguagem gráfica e a uma sintaxe préestabelecida pelos programas. Qualquer um torna-se um potencial construtor de imagens gráficas.

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Em terceiro lugar, a quem interessa essa conversa? A designers? Claro, há uma questão crítica na relação entre a quantidade de profissionais oficialmente formados em cursos de nível superior se incorporando anualmente ao mercado de trabalho e a demanda. Há que se multiplicar o debate acerca do design, saindo das colunas do glamour e do charme em direção às páginas mais relacionadas ao sistema das trocas econômico-sociais. Há que se vulgarizar, no bom sentido, a dimensão atual do trabalho de design.

Desse modo, há que se compreender a quem reverte positivamente essa discussão, ou seja, exatamente ao agente social, esteja ele em sua posição de usuário, de consumidor, de cidadão ou de empresário. É justamente na trama das trocas econômico-sociais que a atuação consistente do designer traz mais benefícios. Benefícios a quem é informado, benefícios a quem informa.

Como o sistema de trocas é perpassado pelo intercâmbio de informações, cabe ao designer agregar valores aos produtos em circulação, sejam esses serviços, objetos ou eventos. Como a vida se dá no campo da comunicação, o designer passa a ser um ativo agente de interação social: um agente que opera em um espaço entre outros espaços, simultâneamente elaborando a linguagem visual engajada desse mundo. Operando-a sob seus mais variados sistemas para e entre as diversas tribos sociais.

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Um bom projeto de design acaba por contruir uma polifonia: através do objeto projetado se explicitam inúmeras vozes — a voz do cliente expondo sua ideologia empresarial, a voz do usuário se auto nomeando, a voz do designer dispondo à discussão sua opção de linguagem, as múltiplas vozes possíveis do tema que se informa estabelecendo identidades e relações no espaço e no tempo.

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Tendo essas observações como balizamento, é possível destacar alguns nichos de excelência na produção de design gráfico no Rio de Janeiro. Assim ficam afastados, por um lado, toda a parafernália visual que pulula nas ruas da cidade, fruto da ação indiscriminada de agentes da desinformação, por outro, os frutos da ação de micreiros mais ou menos informados que, apesar de muitas vezes atender a alguma ordem estética, ainda assim não se configuram como trabalhos de design.

É possível observar que em todos os setores onde as relações entre produção e consumo estão circunscritas em território permeado por um certo grau de competitividade cresce, a cada dia, a participação do design como disciplina viabilizadora de valores de diferenciação e de efetiva comunicação.

Onde se encontra essa produção?

No comércio sofisticado da cidade, esteja ele situado dentro ou fora dos grandes complexos comerciais espalhados pela cidade, e em restaurantes: abordagens criteriosas onde a arquitetura muitas vezes é conduzida em consonância aos projetos de design, quando são desenvolvidos programas completos de comunicação visual.

Na indústria editorial, onde o objeto livro gradualmente vem sofrendo uma elaboração mais cuidadosa, contradizendo a visão presidencial recente de que nossas editoras fazem livros chinfrins. Ainda nesse setor, um grande jornal elaborou, recentemente, campanha de divulgação centrada em seu novo status de objeto de design.

Na indústria fonográfica, onde veio a se desenvolver uma tradição de qualidade em design gráfico.

Na geração da imagem eletrônica, onde predominam centrais de redes de televisão com toda a sua notável produção.

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Em sistemas de identificação, sinalização e orientação para complexos comerciais e institucionais.

E, por fim, no setor cultural onde, ao longo dos últimos 20 anos, as instituições sediadas na cidade propiciaram condições para o desenvolvimento de um conjunto absolutamente espetacular de objetos gráficos como cartazes, folhetos e catálogos, assim como de exposições. Ainda aqui, nas paredes da cidade onde, de tempos em tempos, potentes imagens se espalham anunciando eventos de todo tipo.

Por outro lado, no setor público, onde a demanda do contibuinte não é devidamente recortada, a presença do design gráfico ainda se demonstra incipiente. Caberia ao design analisar as relações presentes na visualidade urbana, traçando estudos e projetos sobre a presença de letreiros comerciais em espaços públicos, sobre a orientação do cidadão, para citar alguns exemplos.

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O Rio de Janeiro, ao se inserir no quadro das grandes metrópoles do planeta, abriga um sem número de outras explicitações do design gráfico, seja esse de procedência carioca, nacional ou internacional. Cosmopolita, sem dúvida. E desse modo, constitui um palco de encenações as mais diversas, permanentemente sujeitas à crítica e à avaliação. Neste cenário cabe eventualmente o debate sobre o espaço de vida em nossas cidades.

João de Souza Leite

Designer, professor e Vice-Diretor da Escola Superior de Desenho Industrial – ESDI da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJ.

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PS: sugestão para ilustração — cartaz de rua para o grupo Timbalada, onde aparece um par de seios, cada um pintado com uma espiral.