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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE TECNOLOGIA

DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA

CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO

ADRIANO DANTAS DE MEDEIROS JÚNIOR

CIDADE EM RIMAS: Um estudo da representação da cidade de Carnaúba Dos Dantas

na literatura de cordel de Francisco Rafael Dantas

Natal, RN

2018

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ADRIANO DANTAS DE MEDEIROS JÚNIOR

CIDADE EM RIMAS: Um estudo da representação da cidade de Carnaúba Dos Dantas

na literatura de cordel de Francisco Rafael Dantas

Trabalho Final de Graduação apresentado à banca examinadora do curso de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof.º Drº George Alexandre Ferreira Dantas, como exigência para obtenção de grau de Arquiteto e Urbanista.

Natal,RN

2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Dr. Marcelo Bezerra de Melo Tinôco

- DARQ - CT

Júnior, Adriano Dantas de Medeiros.

Cidade em rimas: um estudo da representação da cidade de

Carnaúba dos Dantas na literatura de cordel de Francisco Rafael

Dantas / Adriano Dantas de Medeiros Júnior. - Natal, 2018.

65f.: il.

Monografia (Graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Tecnologia. Departamento de Arquitetura e

Urbanismo.

Orientador: George Alexandre Ferreira Dantas.

1. Literatura de cordel - Monografia. 2. Representação -

Monografia. 3. História urbana - Monografia. 4. História cultural

- Monografia. I. Dantas, George Alexandre Ferreira. II.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/BSE15 CDU 398.51

Elaborado por Ericka Luana Gomes da Costa Cortez - CRB-15/344

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ADRIANO DANTAS DE MEDEIROS JÚNIOR

CIDADE EM RIMAS: Um estudo da representação da cidade de Carnaúba Dos Dantas

na literatura de cordel de Francisco Rafael Dantas Trabalho Final de Graduação apresentado à banca examinadora do curso de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof.º Drº George Alexandre Ferreira Dantas, como exigência para obtenção de grau de Arquiteto e Urbanista.

Aprovação em 04 de dezembro de 2018.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

George Alexandre Ferreira Dantas Professor Orientador – UFRN

________________________________________________

Marizo Vitor

Professor – UFRN

________________________________________________

Rebeca Grilo de Souza Arquiteto(a) Convidado(a)

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe, Marluce Margarida Dantas de Medeiros; minhas

irmãs, Millena Dantas de Medeiros e Micarlla Dantas de Medeiros; e meus pais

de coração, Marinês Dantas e Iremar Dantas, por serem o princípio, meio e fim.

Aos meus amigos Alexandre Dantas, Bruna Hávilla e Richard Bivar, parte

essencial dessa jornada.

Aos meus colegas arquitetos que foram força e apoio nos momentos

mais escuros da caminhada, em especial Bárbara Rodrigues, Bruna

Mendonça, Evelyne Albuquerque, Joyce Kallyna, Natália Madruga, Rodrigo

Silva e Luiz Miguel, responsável pela ilustração na capa deste trabalho.

Por fim, à cidade e ao povo de Carnaúba dos Dantas, inspiração e força

motriz de todo o processo. A todas as pessoas que contribuíram direta ou

indiretamente com este trabalho, meu muito obrigado.

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RESUMO

As discussões e reflexões levantadas durante a graduação em Arquitetura e Urbanismo relacionadas à história urbana e memória despertaram um olhar sobre o espaço de Carnaúba dos Dantas, localizada na região do Seridó do Rio Grande do Norte. Reconhecida enquanto município na década de 1950, a cidade tem uma história ainda recente. Em busca de novas fontes que possam resgatar e contribuir para a história urbana da cidade, o presente trabalho apresenta uma discussão da literatura de cordel produzida pelo carnaubense Francisco Rafael Dantas enquanto representação da cidade pela perspectiva da História Cultural com base, principalmente, nas ideias de Roger Chartier e Sandra Pesavento; é lançado um olhar sobre os cordéis do autor a fim de identificar as características da Carnaúba dos Dantas construída pelo poeta em seus versos e traçar um paralelo com outras representações que registram a cidade com o intuito de provar o cordel como fonte da história urbana da cidade de Carnaúba dos Dantas. Palavras-chave: Literatura de Cordel; Representação; História Urbana; História Cultural;

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ABSTRACT The discussions and reflections raised during the graduation in Architecture and Urbanism related to the urban history and memory aroused a look on the space of Carnaúba dos Dantas, located in Seridó, region of Rio Grande do Norte. Recognized as a municipality in the 1950s, the city has a recent history. In the search for new sources that can rescue and contribute to the urban history of the city, the present work presents a discussion of cordel literature produced by Francisco Rafael Dantas as a representation of the city from the perspective of the Cultural History, based mainly on the ideas of Roger Chartier and Sandra Pesavento; is a look at the author's cordeis in order to identify the characteristics of the Carnaúba dos Dantas built by the poet in its verses and to draw a parallel with other representations that register the city to prove the cordel literature as source of the urban history of the city of Carnaúba dos Dantas. Keywords: Cordel literature; Representation; Urban History; Cultural History;

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURA 1: CARNAÚBA DOS DANTAS, S/D. 1 FIGURA 2: FOTO DO EDIFÍCIO PENTHOUSE, NO BAIRRO DO MORUMBI EM SÃO PAULO, S/D 8 FIGURA 3: OUTRO ÂNGULO DO EDIFÍCIO PENTHOUSE, LOCALIZADO AO LADO DA FAVELA

PARAISÓPOLIS, EM SÃO PAULO, S/D. 8 FIGURA 4: NA PRIMEIRA FOTO, DE CIMA PARA BAIXO, VÊ-SE A IGREJA MATRIZ DE SÃO JOSÉ E

O MONTE DO GALO AO FUNDO. 28 FIGURA 5: DA ESQUERDA PARA DIREITA E DE CIMA PARA BAIXO: 1- BIBLIOTECA DONATILLA

DANTAS; 2 - NÃO IDENTIFICADO; 3 - MONTE DO GALO; 4 - NÃO IDENTIFICADO; 5 - MONTE DO GALO; 6 - IMAGEM DE JESUS CRUCIFICADO, NO CIMO DO MONTE DO GALO. 28

FIGURA 6: NA CAPA: CASAS DO CENTRO HISTÓRICO DA CIDADE NA RUA ANTONIO AZEVÊDO, O CASTELO DI BIVAR E UMA IMAGEM DE JESUS CRUCIFICADO. 28

FIGURA 7: NA CAPA: IMAGEM DO MONTE DO GALO. 28 FIGURA 8: NA CAPA: PREFEITURA MUNICIPAL DA CIDADE E FOTO DE FRANCISCO RAFAEL. 28 FIGURA 9: NA CAPA: FRANCISCO RAFAEL E IMAGEM DE UMA CASA 28 FIGURA 10: MONTE DO GALO, S/D 29 FIGURA 11: INAUGURAÇÃO DO CRUZEIRO DO MONTE DO GALO EM 25 DE OUTUBRO DE 1928

36 FIGURA 12: SANTUÁRIO DE SANTA RITA DE CÁSSIA, 2005. 41 FIGURA 13: SANTUÁRIO DE SANTA RITA DE CÁSSIA, 2005 41 FIGURA 14: SANTUÁRIO DE SANTA RITA DE CÁSSIA, 2018. 42 FIGURA 15: “CASA DOS TIBÉ”, AO LADO DA PEDRA DO GAMBÃO, 2018. 44 FIGURA 16: BIBLIOTECA DONATILLA DANTAS, 2018. 45 FIGURA 17: PRÉDIO DO ANTIGO CINE SÃO PEDRO, 2018. 45 FIGURA 18: GRUPO ESCOLAR JOSÉ AZEVÊDO DANTAS, 2018. 46 FIGURA 19: LOJA DA REDE CASAS POTIGUAR, NA RUA MANOEL LÚCIO, ONDE FICAVA O

“FORRÓ DA MÃE NEGRINHA”. 47 FIGURA 20: RUA MANOEL LÚCIO, VÊ-SE A FACHADA DE DO PRÉDIO ONDE ACONTECIA O

CHAMADO “FORRÓ DA MÃE NEGRINHA”, S/D. 48 FIGURA 21: MARIA SABRINA DA CONCEIÇÃO, A “MÃE NEGRINHA”. 48 FIGURA 22: FACHADA DA PARTE DO PRÉDIO DO ANTIGO HOTEL ONDE FICAVAM OS QUARTOS, NA

RUA CASSIMIRO ALBERTO, 2018 49 FIGURA 23: PRÉDIO ONDE FICAVA A LOJA DE TOINHO LOPES, 1999 50 FIGURA 24: BODEGA DE BOLIM, S/D. 51 FIGURA 25: BODEGA DE BOLIM, S/D. 51

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LISTA DE CORDÉIS DE FRANCISCO RAFAEL DANTAS

1. 3º ATO: Carnaúba dos Dantas e seus apelidos, s/d

2. A história de dois reis poderosos, 2010

3. A história de Dom José Adelino Dantas, 2010

4. A verdadeira história do Monte do Galo, 2008

5. Carnaúba do passado ao presente, 2009

6. Carnaúba e seus homens sistemáticos, s/d

7. Carnaúba e seus valores do passado, 2009

8. Conheça as regras para fazer Poesia Popular, 2010

9. Conheça os prefeitos e vereadores de Carnaúba dos Dantas de 1954 a 2008, 2010

10. Eu e a reencarnação, s/d

11. Felinto Lúcio: um gênio da música, 2009

12. Histórias do passado, s/d

13. Lembrando as pessoas esquecidas, 2010

14. Me orgulho em ser filho desta terra, s/d

15. Modesto Ernesto Dantas: um herói enaltecido, 2009

16. Não zombe seu semelhante, s/d

17. O caboclo Clementino (Vaqueiro que nunca mentiu), 2009

18. O fim do orgulho, s/d

19. O primeiro milagre no Vale do Carnaúba, 2009

20. O Seridó, co-autor: Hilário Félix Dantas, s/d

21. O sofrimento de Joana Turuba: devota de Santa Rita de Cássia, s/d

22. Orgulhoso de ser nordestino, s/d

23. Pinto do monteiro: o gênio do repente, 2010

24. Poemas inéditos, 2010

25. Recordação sertaneja, 2009

26. Segredos da natureza, 2008

27. Sertão do Seridó, 2009

28. Sertão que a gente mora, s/d

29. Sertão que fui criado, 2008

30. Um sonho no deserto, s/d

31. Voltando ao passado, 2009

32. Zé Limeira: o poeta sem oração, 2010

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

1. O CORDEL COMO REPRESENTAÇÃO DA CIDADE 5

2. CIDADE EM RIMAS: CARNAÚBA DOS DANTAS NA OBRA DE FRANCISCO RAFAEL DANTAS 10

2.1 HISTÓRIAS DE ORIGEM 12

2.2 A CIDADE E A FÉ 15

2.3 RIQUEZAS DA TERRA 17

2.4 CARNAÚBA: BERÇO DE SEUS PERSONAGENS E CENÁRIO DE SUAS HISTÓRIAS 19

2.5 A VIDA NA ZONA RURAL 22

2.6 CARNAÚBA DO PASSADO E DO PRESENTE 24

2.7 A IMAGEM DE CARNAÚBA 27

3. OS DIFERENTES OLHARES: DO CORDEL À HISTORIOGRAFIA 29

3.1 A VERDADEIRA HISTÓRIA DO MONTE DO GALO 29

3.3 LEMBRANDO AS PESSOAS ESQUECIDAS 42

CONSIDERAÇÕES FINAIS 52

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INTRODUÇÃO

As várias reflexões e discussões levantadas ao longo da graduação em

Arquitetura e Urbanismo em relação a patrimônio despertaram-me o interesse

em memória e história da cidade, além de alimentar um olhar curioso sobre

como e de que diferentes maneiras essa história é contada e registrada, seja

através das marcas físicas e espaciais no ambiente urbano ou através das

várias e distintas maneiras de se registrar e representar o espaço e guardar

sua imagem, utilizando-se de diferentes linguagens, escritas ou não; cada

forma apresentando uma diferente visão sobre o mesmo objeto. Dessa forma,

o espaço urbano é foco de diferentes olhares sem que sejam uns mais

importantes que outros, esses olhares que traduzem-se em discursos

divergem, convergem ou justapõem-se de maneira que não há verdades

absolutas (PESAVENTO, 1999). Essas reflexões atingiram, aos poucos, meus

espaços de vivência, em especial o espaço da cidade de Carnaúba dos

Dantas, Seridó potiguar, onde nasci e cresci, fazendo surgir perguntas

relacionadas ao que se conhece da história de Carnaúba dos Dantas, ao

quanto não se sabe por falta de registros e sobre quanto dessa história e

memória residem em lugares pouco explorados.

Figura 1: Carnaúba dos Dantas, s/d.

Fonte: Horizonte, 2011, p. 1.

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Dentre as formas de se representar e registrar a cidade e suas

peculiaridades, as abordagens artísticas como o cinema, a música e a literatura

chamam atenção pelas infindas maneiras e estilos como podem contar suas

histórias, capazes de trazer informações e percepções feitas de uma maneira

que normalmente não se encaixam em registros e documentos históricos

formais, como observa Sandra Pesavento sobre o uso das representações

literárias do urbano como fonte:

Tal procedimento implica pensar a literatura como uma leitura específica do urbano, capaz de conferir sentidos e resgatar sensibilidades aos espaços citadinos, às ruas e formas arquitetônicas, aos seus personagens e às sociabilidade que nesse espaço têm lugar (PESAVENTO, 2002, p. 10).

Motivado pela curiosidade de estudar a literatura como fonte de

informações sobre o espaço urbano, a ideia de usar a obra do escritor

carnaubense Francisco Rafael Dantas pareceu quase óbvia, o autor é

provavelmente o maior expoente da cultura popular da cidade e possui uma

vasta produção em poesia publicada em livros e, em sua maior parte, no

formato de cordéis; é essa produção em cordel de Francisco Rafael que será

usada como base para este trabalho.

A literatura de cordel que descende da cultura europeia e encontrou no

sertão brasileiro e suas peculiaridades culturais e sociais outros significados e

forte relação com seu povo (BATISTA, 1977), tem como forte característica a

representação da realidade sertaneja, suas lendas, costumes, culturas e, claro,

o espaço em que está inserida, tendo sido, por isso, utilizada em outras

pesquisas, por exemplo, nas áreas da saúde, história e antropologia, como é o

caso da pesquisa conduzida por Julie Cavignac, onde ela se utiliza da literatura

de cordel como foco, e afirma a capacidade dos folhetos de revelar a realidade

da cultura e o saber sertanejo, “me servirão de fio condutor para uma viagem

na história, na vida quotidiana, nas práticas e representações de uma

população esquecida pelos políticos, as mídias e os antropólogos”

(CAVIGNAC, 2006, p 27).

13

Carnaúba dos Dantas foi reconhecida como município e teve sua

emancipação política da cidade de Acari em 11 de dezembro de 1953, sendo

uma cidade de história ainda muito recente aos seus 65 anos. Nos últimos vinte

anos, o historiador carnaubense Helder Alexandre Medeiros de Macedo figura

como principal nome a debruçar-se sobre a história de Carnaúba dos Dantas;

dentre sua rica produção acadêmica, duas obras destacam-se por tratarem de

um rico e detalhado levantamento do patrimônio cultural, material e imaterial,

da cidade: “Carnaúba dos Dantas: História e Patrimônio” (2012) e “Ritmos,

sons, gostos e tons do Patrimônio Imaterial de Carnaúba dos Dantas” (2005),

onde atua com organizador dos textos, maior parte de sua autoria. É a

produção de Helder Alexandre que abre os caminhos e serve de linha

condutora para a obra de outros carnaubenses como Mamede Azevêdo,

Donatilla Dantas, José Adelino Dantas e outros. Não há, até o momento,

estudos relacionados à história urbana da cidade que explorem a produção

artística local como fonte; em uma escala maior, não encontrou-se nenhum

estudo que explore a literatura de cordel como fonte de história urbana.

Para entender as visões literárias da cidade oferecidas pela literatura de

cordel de Francisco Rafael Dantas como parte da história urbana de Carnaúba

dos Dantas, foi lançado um olhar sobre os cordéis da perspectiva da História

Cultural, vertente da história que tem como proposta desvendar a realidade do

passado através de suas representações . Entende-se nesse contexto os 1

cordéis de Francisco Rafael como representação da cidade, admitindo o

sentido de representação enquanto:

...uma reapresentação de algo ou alguém que se coloca no lugar de um outro, distante no tempo e/ou no espaço. Aquilo/aquele que se expõe - o representante - guarda relações de semelhança, significado e atributos que remetem ao oculto - o representado. (Pesavento, 2004, p. 40).

É sobre a imagem criada pelo poeta carnaubense em seus cordéis que

se debruça esse estudo, buscando suas especificidades em relação às outras

representações de Carnaúba dos Dantas, construindo uma discussão que

1 (Pesavento, 2003). 14

objetiva revelar como a literatura de cordel pode conter elementos de

importância para o estudo do urbano. Quais as características da Carnaúba

dos Dantas descrita na obra do autor? Através de que espaços a cidade é

representada? Como ela é retratada e que tipo de relações são estabelecidas

entre seus espaços e as narrativas nas quais estão inseridos? Que

informações podem ser extraídas dos folhetos a respeito da história urbana de

Carnaúba dos Dantas? Perguntas levantadas de maneira a compreender a

cidade de uma perspectiva social oferecida pela arte popular do cordel, que

com sua informalidade e poesia podem trazer informações importantes para o

entendimento desses espaços e possíveis intervenções nos mesmos.

O trabalho está estruturado da seguinte maneira: 1. O Cordel Como

Representação da cidade, discute literatura de cordel pela perspectiva da

História Cultural com base nas ideias de Pesavento (2003) e Chartier (1990)

enquanto fonte relevante da história urbana, buscando entender a mesma

como uma forma singular de ver e registrar o espaço urbano; 2. Cidade em

Rimas: Carnaúba dos Dantas na Obra de Francisco Rafael Dantas, traz

uma visão geral da obra de Francisco Rafael Dantas e caracteriza a

representação de Carnaúba dos Dantas construída pelo poeta traçando um

panorama geral da cidade retratada nos versos do poeta; 3. Os Diferentes

Olhares: do Cordel à Historiografia, apresenta uma comparação entre os

cordéis “A Verdadeira História do Monte do Galo”, “O Sofrimento de Joana

Turuba” e “Lembrando As Pessoas Esquecidas” e os registros existentes dos

espaços sobre os quais falam as obras; e 4. Considerações Finais.

15

1. O CORDEL COMO REPRESENTAÇÃO DA CIDADE

Mil setecentos anos Depois de Cristo passado

O vale do Carnaúba Começou ser povoado

Pelos filhos de Caetano Um português respeitado

Diz um historiador

De grande potencial Que Caetano Dantas Correia

Fugiu lá de Portugal Junto com seus dois irmãos

Por motivo criminal

Nesse tempo no Brasil O governador geral

Dava direito a pessoa Com documento legal

A demarcar o sertão Distante do litoral

Por isso Caetano Dantas

Veio parar no sertão Trazendo escravo e dinheiro

Com muita disposição Dos picos até Picuí

Fez sua demarcação

E arranjou casamento Com uma moça solteira

Era filha de Tomaz De Araújo Pereira

Também grande fazendeiro Que morava na ribeira

Deste feliz casamento Grande família gerou

Ao passar de muitos anos A morte lhe procurou E uma légua de terra A cada filho deixou

Seu filho Simplício Dantas

Era seu legítimo herdeiro No vale do Carnaúba

Se tornou-se um fazendeiro Lá no sítio Xique-xique

Foi um morador primeiro

Junto com sua família Construiu sua morada Começou a criar gado Nas terras desabitadas

Mais sempre com fé em deus E na virgem imaculada

(O Primeiro Milagre no Vale do Carnaúba, 2009)

É através destes versos que abrem “O Primeiro Milagre no Vale do

Carnaúba” que Francisco Rafael Dantas nos descreve o processo de ocupação

portuguesa da região onde atualmente encontra-se Carnaúba dos Dantas.

Sabe-se que esse processo conta com muito mais variáveis do que as que

figuram no relato do poeta - a presença indígena no local, demarcação de

terras, padrão de ocupação exercido na região, dentre outras -, mas é notável a

proximidade com a narrativa construída por Macedo (2012) baseada em

diversos documentos e registros do período em questão.

A História Cultural, vertente da história que ganhou força nos últimos 50

anos, estabelece que a única maneira de acessarmos o passado é através de

suas representações, e é sobre elas que se debruçam e procuram construir

uma narrativa que se aproxime ao máximo do “real” ocorrido, sem, dessa

16

maneira, estabelecer verdades absolutas, mas sim questionáveis, procurando

desvendar o passado pelas imagens construídas (PESAVENTO, 2004).

Para entender melhor os registros que nos servem de fontes para a

história como representações de uma época produzidas a partir de uma

determinada realidade cultural com suas próprias especificidades tomaremos

como exemplo o relato de Roger Chartier (1990) sobre a caracterização das

leituras camponesas do século XVIII na França.

Ao descrever a disponibilidade de informações à respeito das leituras

camponesas no período em questão, Chartier chama atenção para a escassez

de testemunhos dos próprios camponeses devido à baixa escolaridade dessa

população, construindo a imagem das leituras camponesas da França no

século XVIII a partir dos textos direcionados ao abade Gregório. Esses textos,

por sua vez, partem de contatos do abade, pessoas letradas e, em geral,

distantes da realidade camponesa.

Levando em consideração a posição social das pessoas que forneceram

as informações para a pesquisa e o modo, muitas vezes generalista e sem

cuidados relacionados à quantificação dos dados, como responderam as

perguntas propostas pelo abade Gregório, o historiador chegou à conclusão

que a imagem criada a partir das correspondências recebidas misturam, além

do que foi visto e vivido pelos correspondentes, o saber, familiaridade e

estereótipos criados acerca da população camponesa. As variadas respostas

recebidas pelo abade apresentavam convergências e divergências, tornando

possível a construção de questionamentos a respeito das informações

fornecidas.

É preciso entender as representações como uma construção feita a

partir do real, não uma cópia dele:

Representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência. A idéia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e toma sensível uma presença. A representação é conceito ambíguo, pois na relação que se estabelece entre ausência e presença, a correspondência não é da ordem do mimético ou da transparência. A representação não é uma cópia do real, sua

17

imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele (PESAVENTO, 2004, p.40).

Para ilustrar como diferentes representações podem ser construídas

relacionadas a um mesmo espaço, tomemos como exemplo dois tipos de

imagens criadas com base na cidade de São Paulo. Primeiramente, as músicas

“Sampa”, de Caetano Veloso, e “Não Existe Amor em SP”, de Criolo:

Sampa Caetano Veloso (1978)

Não Existe Amor Em SP Criolo (2011)

Alguma coisa acontece no meu coração Que só quando cruzo a Ipiranga e Av. São João

É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi Da dura poesia concreta de tuas esquinas Da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee A tua mais completa tradução

Alguma coisa acontece no meu coração Que só quando cruza a Ipiranga e avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu

rosto Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau

gosto É que Narciso acha feio o que não é espelho

E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo Afasto o que não conheço

E quem vende outro sonho feliz de cidade Aprende depressa a chamar-te de realidade

Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas Da força da grana que ergue e destrói coisas belas

Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços

Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba

Mas possível novo quilombo de Zumbi E os Novos Baianos passeiam na tua garoa E novos baianos te podem curtir numa boa

Não existe amor em SP Um labirinto místico Onde os grafites gritam Não dá pra descrever Numa linda frase De um postal tão doce cuidado com doce São Paulo é um buquê Buquês são flores mortas Num lindo arranjo Arranjo lindo feito pra você Não existe amor em SP. Os bares estão cheios de almas tão vazias A ganância vibra, a vaidade excita Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel Aqui ninguém vai pro céu. Não precisa morrer pra ver Deus Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você Encontro tuas nuvens em cada escombro em cada esquina Me dê um gole de vida Não precisa morrer pra ver Deus

A partir da observação das letras das músicas que apresentam um olhar

sobre São Paulo, o que é possível concluir a respeito da cidade? Embora

tenham como base o mesmo espaço - a cidade de São Paulo -, em que pontos

18

os olhares do cantor baiano (Caetano Veloso) e do rapper crescido no Grajaú

(Criolo), periferia de São Paulo, encontram-se e divergem? Que imagem de

São Paulo é construída a partir de uma e outra perspectiva?

Como segundo exemplo, será utilizado um tipo de registro que tem

capacidade de capturar com maior fidelidade o real: a fotografia. Observando

as fotografias do Edifício Penthouse, também na cidade de São Paulo,

podemos perceber que mesmo a fotografia tem uma visão limitada da realidade

baseada nas perspectivas e ângulos escolhidos para a construção da imagem.

Figura 2: Foto do Edifício Penthouse, no bairro do Morumbi em São Paulo, s/d

Fonte:Conteúdo, 2015, p. 1.

19

Figura 3: Outro ângulo do Edifício Penthouse, localizado ao lado da favela Paraisópolis, em São Paulo, s/d.

Fonte: Conteúdo, 2015, p. 1.

É esse tipo de reflexão que objetiva-se tecer sobre a literatura de cordel:

enxergá-la como uma das infindas maneiras de capturar o espaço citadino

através de sua linguagem característica. Tendo como base a obra de forte tom

memorialista do carnaubense Francisco Rafael Dantas, é preciso levar em

consideração que ao relatar as memórias de sua juventude, é o Francisco

Rafael adulto quem as narra , trazendo o peso de sua bagagem carregada de 2

vivências, o que não invalida o uso dessas informações para a ciência como

propõe Sandra Pesavento:

É a partir da experiência histórica pessoal que se resgatam emoções, sentimentos, idéias, temores ou desejos, o que não implica abandonar a perspectiva de que essa tradução sensível da realidade seja historicizada e socializada para os homens de uma determinada época. Os homens aprendem a sentir e a pensar, ou seja, a traduzir o mundo em razões e sentimentos. As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como um reduto de tradução da realidade por meio das emoções e dos sentidos. Nessa medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de representação do mundo, como cor respondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a capturar no passado, à própria energia da vida. (PESAVENTO, 2004, p. 57).

2 (CHARTIER, 1990). 20

A partir do que foi posto, procuraremos entender mais a fundo a

representação de Carnaúba dos Dantas construída nas narrativas dos cordéis

de Francisco Rafael Dantas, buscando suas principais características e

peculiaridades que a divergem de outras representações da cidade a fim de

revelar as contribuições que a literatura de cordel do poeta podem oferecer

para a história urbana da cidade.

2. CIDADE EM RIMAS: CARNAÚBA DOS DANTAS NA OBRA DE FRANCISCO RAFAEL DANTAS

Nascido no sítio Volta do Rio, zona rural da cidade de Carnaúba dos

Dantas, Francisco Rafael Dantas (1935 - 2011) foi um importante carnaubense.

Conhecido popularmente entre os habitantes da cidade por França - ou Mestre

França, como costumam chamá-lo seus ex alunos -, alcunha com a qual

assinou alguns de seus cordéis, o escritor desempenhou papel chave na cena

cultural da cidade. Francisco Rafael exerceu diversas profissões ao longo de

sua vida: agricultor, minerador, pedreiro, vereador e até vice prefeito da cidade;

mas foi na arte que obteve mais forte reconhecimento. Pupilo do compositor

carnaubense Felinto Lúcio, o talentoso musicista realizou entre a década de

1990 e 2000 notável trabalho enquanto professor de música, formando várias

gerações de jovens músicos na Filarmônica 11 de Dezembro de Carnaúba dos

Dantas, sendo constantemente relembrado por essa contribuição. Aqui,

entretanto, será explorada sua produção em outra vertente artística dominada

por França: a poesia.

Francisco Rafael frequentou a escola na zona rural onde morava e não

chegou a concluir o ensino fundamental, aos quinze anos começou a escrever

poesias matutas e descobrir-se poeta; em 1958, iniciou o projeto conhecido

como “Os Conselhos de Judas” em que, aos sábados de aleluia, recitava um

poema improvisado com base nos acontecimentos, fofocas, brigas e causos

envolvendo os carnaubenses ao longo daquele ano, causando grande

movimentação e alvoroço entre os ouvintes (MACEDO, 2005). Essa tradição

21

perdurou por muito tempo e foi registrada por Cavignac (2006) durante sua

passagem pela cidade na década de 90:

De noite, os moradores se reúnem na praça central para escutar França (C. dos Dantas, RN) declamar sua sentença, retransmitida através de todos os alto-falantes e pela rádio local: esses versos tão esperados, preparados pra ocasião, contam os escândalos, mexericos, furtos, adultérios, brigas familiares e entre vizinhos (CAVIGNAC, 2006, p. 197).

Francisco Rafael teve, ainda em vida, dois livros publicados: “Retalhos

dos Meus Poemas” (1996) e “Carnaúba dos Dantas em Quatro Atos” (2006),

trazendo poemas que abordam os mais diversos temas, dentre eles a cidade

de Carnaúba dos Dantas, uma de suas grandes paixões; além dessas

publicações, o escritor também dedicou-se a escrever cordéis.

Estima-se entre os familiares que França tenha publicado mais de 50

folhetos, boa parte de forma independente, vendendo-os pessoalmente na feira

livre dominical carnaubense. É nessa produção de livretos de cordel que

mergulharemos. Todas as obras utilizadas nesse trabalho foram cedidas por

Rosângela Dantas, sua filha, entre arquivos físicos e digitais, cópias do material

comercializado por Francisco Rafael nas feiras, mantidas em acervo pelos

familiares em sua própria casa. Foram reunidos, ao todo, uma variedade de 32

livretos. Das obras, 13 foram disponibilizadas em formato físico e 19 em

formato digital; todos os cordéis são impressos em tamanho A5, cada um

contendo 7 páginas em média. Em cada livreto foram publicadas de uma a

cinco poesias.

Adentrar na obra de Francisco Rafael é descobrir um universo. Em suas

histórias, o poeta passeia pelos mais diversos temas: a simplicidade da vida na

zona rural, os saberes do homem do campo, religiosidade, política, críticas

sociais, lendas e histórias populares, relatos baseados em acontecimentos

reais e histórias fictícias envolvendo reis e castelos. Dentre todos os

elementos evocados pela literatura de Francisco Rafael, a cidade de Carnaúba

dos Dantas recebe destaque e é tema constante em sua escrita.

22

Orgulhoso e apegado às suas origens, o poeta dedica muitas obras à

vida na cidade de Carnaúba dos Dantas: seus espaços, costumes e,

principalmente, seus personagens; traz relatos sobre as personalidades

carnaubenses com quem conviveu ou de quem ouviu falar, transformando suas

histórias em narrativas de cordel. Francisco Rafael nos apresenta a Carnaúba

dos Dantas de sua juventude e de sua velhice, antigas tradições que permeiam

seus espaços; suas rimas trazem a bagagem da vivência e o olhar do homem

do campo e da cidade, trabalhador e político, músico e poeta; é esse olhar

sobre a cidade, norteado por suas relações sociais, que procurou-se explorar

na leitura de seus cordéis.

A identificação da cidade de Carnaúba nos cordéis de Francisco Rafael

foi feita de maneira simples. O escritor, quando não traz o nome da cidade nos

títulos (“O Primeiro Milagre no Vale do Carnaúba”, “Carnaúba e Seus Valores

do Passado”, “Carnaúba e Seus Filhos Geniais”), fala diretamente ou faz

alusão aos seus espaços (Sítio Ermo, Monte do Galo, Serra da Rajada, etc.).

Considerando o tamanho dos poemas utilizados, foram transcritos, para essa

parte do estudo, os trechos que melhor representam e ilustram o argumento

apresentado, que foram reproduzidos como encontram-se nas publicações, e

torna-se importante destacar que, nos últimos anos de sua vida, em

decorrência de uma deficiência visual importante, a digitalização dos textos era

feita num processo em que o poeta ditava os versos para que outra pessoa os

digitasse, e isso acarretou notáveis erros de digitação.

As leituras dos textos dos cordéis revelam uma Carnaúba dos Dantas

construída a partir das memórias e vivências do autor, das quais fazem parte

fatos reconhecidos e registrados pela historiografia local, narrativas que

estiveram, ou estão até hoje, presentes na tradição popular e, principalmente,

as experiências vividas pelo poeta. Levando isso em consideração, foi possível

montar um panorama geral da cidade retratada por França em seus poemas.

2.1 HISTÓRIAS DE ORIGEM

23

O processo de surgimento de importantes espaços da cidade é tema de

alguns cordéis de Francisco Rafael. A própria origem desta é retratada em

diferentes histórias, sempre relacionadas à figura de Caetano Dantas Corrêa

(1710-1797), popularmente reconhecido como fundador da cidade, tendo sido

o primeiro colonizador a habitar as terras onde hoje fica Carnaúba dos Dantas

(MACEDO, 2005). As narrativas construídas pelo poeta, convergindo com o

que aponta a historiografia local, atribuem à vinda de Caetano Dantas um

importante passo para o processo de ocupação colonizadora que culminou na

criação do município, anos mais tarde; entretanto, as narrativas invisibilizam

completamente a presença indígena anterior à essa colonização, retratando o

Vale do Carnaúba como “região desabitada” antes da chegada dos

portugueses.

Pelo século dezessete Os tropeiros viajavam Do sertão até o brejo

Com quinze dias voltavam O caminho era diserto

Mais havia os cantos certos Onde eles se arranchavam

Onde hoje é Carnaúba

Um grande rancho existia Pelo Rancho Pé do Monte

O matuto conhecia Mais, começaram a notar

Que ali naquele lugar Um grande mistério havia

(...) O tempo foi se passando Caetano Dantas chegou

Junto com sua família A trabalhar começou

Cada ano que passava Uma família chegada

E o lugar se povoou

Mil e setecentos anos Depois de Cristo passado

O vale do Carnaúba Começou ser povoado Pelos filhos de caetano

Um português respeitado (…)

Seu filho Simplício Dantas Era seu legítimo herdeiro

No vale do Carnaúba Se tornou-se fazendeiro

Lá no Sítio Xique-Xique Foi um morador primeiro

(O Primeiro Milagre no Vale do

Carnaúba, 2009)

Pelo século dezessete Em época muito

atrasada No Vale do Carnaúba

Região desabitada Chegou um Caetano

Dantas Entre as selvagens e

plantas Construiu sua morada

Daí abriu-se o

caminho Para o progresso

chegar Do Ermo até a Rajada

Começou se povoar Cada ano que passava Uma família Chegava

Unida pra trabalhar

(Carnaúba e Seus Apelido, s/d)

(A Verdadeira História do Monte do Galo, 2008)

Em “A Verdadeira História do Monte do Galo” e “O Sofrimento de Joana

Turuba”, o escritor dedica-se a contar em detalhes a história de dois

importantes espaços ligados à romaria e à fé católica: o Monte do Galo, como o

próprio título aponta, e o santuário de Santa Rita de Cássia. Ambas as histórias

24

vão além de narrar a sequência de fatos que levaram ao surgimento dos

santuários, hoje reconhecidos como patrimônio da cidade (MACEDO, 2005),

trazendo para os relatos as histórias de fé dos personagens envolvidos, contos

e lendas da tradição oral que fazem parte do imaginário criado acerca desses

ambientes e ajudam a compreender a relação das pessoas com os mesmos.f

Um dia de madrugada Começaram a escutar

Em cima daquele monte Um triste galo cantar

Sem ter morada por perto Naquele lugar deserto

Era de admirar

Muitos matutos pensavam Que o monte era sagrado

Outros diziam que não Que era um reino encantado

Sem sentir pequeno abalo E pelo Monte do Galo

Começou a ser chamado

(A Verdadeira História do Monte do Galo, 2008)

Hoje na cova de Joana Muita gente reza nela

A população devota Construiu uma capela

Pra Santa Rita de Cassia Que era a protetora dela

(...) Elas fizeram campanhas

Com toda população Com os donos das cerâmicas

Também frestinhas e leilão Com a ajuda recebida

Aumentou a construção.

Junto a Maria de Lourdes Chefe da Tesouraria

Fizeram o tumulo de Joana Santuario de alvenaria

Com apoio da população Foi feito o que merecia.

(O Sofrimento de Joana Turuba, s/d)

Em “A História de Dom José Adelino Dantas”, após contar com detalhes

a biografia desta importante figura religiosa e política, homem de personalidade

forte e muito admirado até hoje pelo trabalho desenvolvido na cidade, França

tece uma relação entre o bairro Dom Adelino - localizado no sopé do Monte do

Galo - e a pessoa que lhe deu o nome.

A vinte e quatro de março De oitenta e três o ano A nossa igreja católica Sofreu um golpe tirano Faleceu Dom Adelino

Exemplo de ser humano

Até o Monte do Galo Acabrunhado ficava

Ao saber que lá embaixo Aquela voz se calava

Que muitas vezes arrogante Nas suas rochas bradava

25

O Bairro Dom Adelino O pé do monte é chamado

Chegando lá você ver Uma igrejinha ao lado

A direita do altar Dom José tá sepultado

(A História de Dom José Adelino Dantas, 2010)

2.2 A CIDADE E A FÉ

Carnaúba é uma terra De gente religiosa

Um povo pobre humilde E pessoa caridosa

É a cidade da música E da Santa Milagrosa.

(O Sofrimento de Joana Turuba, s/d)

A cidade de Carnaúba dos Dantas relaciona-se fortemente com a fé

católica, penetrando sua história e relações. O próprio surgimento da cidade

está diretamente ligado à fé: uma promessa feita a São José para que

mandasse chuvas durante uma seca no final do século XIX resultou na

construção de uma capela dedicada ao santo, que deu início ao povoamento

em suas redondezas, onde hoje fica a Igreja Matriz de São José, centro

histórico da cidade (Macedo, 2005). Francisco Rafael, católico, traz essa

crença em seus versos e retrata Carnaúba dos Dantas como a “terra de gente

religiosa”. Assim como no caso da capela de São José, o escritor conta

histórias de fé de seus personagens reais, que materializaram-se em espaços

da cidade. Em “A Verdadeira História do Monte do Galo”, a promessa de Pedro

Alberto Dantas para que Nossa Senhora das Vitórias o ajudasse a voltar para

sua terra é o que dá início à construção do santuário em cima do monte; em “O

Sofrimento de Joana Turuba”, a devoção de Joana Turuba pela santa dos

Impossíveis é o que motiva a construção do Santuário de Santa Rita de Cássia.

Aí naquele momento Pedro Alberto a santa implora

Pedindo pra ela ajudar Pra ele vir embora

E trazia na bagagem Aquela pequena imagem

Da virgem Nossa Senhora

Quando ele chegou em casa A sua história contou

E a senhora das vitória Para o povo ele mostrou

E disse, eu cheguei com vida Ma minha terra querida

Porque ela me ajudou

26

E lá no monte do galo

Colocava aquela imagem Logo ele arranjou serviço

E comprou a sua passagem Pelo voto que ele fez

Viajou no fim do mês E trouxe a santa na bagagem

Aí convidou o povo Para juntos levantar

Um cruzeiro lá no monte Onde a santa ia ficar

E o povo com alegria Começou no outro dia

Todos juntos a trabalhar

(A Verdadeira História do Monte do Galo, 2008)

Severino estava ao seu lado De sua avó estimada

Saiu pra fazer um chá Vendo ela agoniada

Voltando achou a avó morta Com Santa Rita abraçada

(...) A jovem Ivaneide Lopes Começou com devoção

Zelando aquele local Como peregrinação

Todos os dia ia lá E rezava uma oração

Devota de Santa Rita E a fé que tinha nela

Com ato de penitência Comprou a imagem dela

E com a ajuda do povo Construiu uma capela

(O Sofrimento de Joana Turuba, s/d)

A relação entre a cidade e a espiritualidade do seu povo também se

expressa nos cordéis através de lendas e histórias que envolvem o

sobrenatural. Do aparecimento de Nossa Senhora das Vitórias para salvar uma

criança aos milagres alcançados no Monte do Galo, o autor apresenta

Carnaúba dos Dantas como um espaço rodeado pelo místico. Ao estabelecer a

relação desses espaços com forças sobrenaturais é possível influenciar a

relação das pessoas com os mesmos. Como nos relacionamos, por exemplo,

com lugares que são tidos como “assombrados”? Sentimentos de natureza

semelhante podem ser despertados ao entendermos um local com o espaço de

milagres.

27

Assim foi o sofrimento Até o romper da aurora

Ao amanhecer do dia Viu chegar uma senhora Vestida num manto azul

E mandou a onça embora

E olhando para a criança E alegremente sorria E disse pode descer

Que a onça já saiu Vou levar você em casa Que sua mãe me pediu

O menino perguntou E a senhora quem é

Eu sou a mãe de Jesus Esposa de São José

Tou lhe dando a Proteção Porque sua mãe tem fé

(...) Já faz uns duzentos anos

Que isso aconteceu E foi o primeiro milagre

Que aqui apareceu Depois no Monte do Galo

Outros milagres se deu

(O Primeiro Milagre no Vale do Carnaúba, 2009)

“Milagre, sempre milagre Todo ano ele aparece

Quando a pessoa tem fé Esse fenômeno acontece Mais dois acontecimento

Que eu tive conhecimento Que o povo não conhece

No ano cinquenta e oito

Uma mulher adoeceu Só andava de moleta

Quase suas perna morreu E ela sem ter melhora

Um dia de Nossa Senhora Das Vitórias se valeu

A mulher subiu o monte No seu marido agarrada

Nos pés de Nossa Senhora Rezou muito ajoelhada

Implorando a sua bença Para que sua doença Fosse por ela curada

Quando ela se levantou

Deu fé que estava curada Saiu andando sozinha

Em em nada ser agarrada Sua alegria era tanta

Que ela gritava pra santa Senhora, muito obrigado

O outro foi uma mulher Quando seu filho nasceu

Com poucos anos de idade De repente adoeceu

E ela na mesma hora Também de Nossa Senhora

Das Vitórias se valeu

Ela fez uma promessa Para seu filho pagar

Se ele ficasse bom Ao o monte visitar

Vestindo um manto azulado E subir o monte pelado

E nos pés da santa deixar

Mais o menino foi crescendo E a promessa não pagou

Ele já um homem feito Uma noite ele chegou Para a promessa pagar

Quando a roupa foi tirar A luz do monte apagou

E subiu o monte nu

Pelado como nasceu Colocou a roupa lá

No canto que prometeu Foi vistir uma que trazia Pois enquanto ele vestia

De novo a luz acendeu

(A Verdadeira História do Monte do Galo, 2008)

28

As relações traçadas pelo escritor entre a cidade e a fé restringem-se

apenas à fé católica, criando um universo muito particular que desconsidera a

prática e a marca espacial e cultural deixada por outras religiões na cidade.

São nesses aspectos que é possível notar os limites traçados pelas vivências e

intenções particulares de Francisco Rafael na representação da cidade

construída por ele em seus versos.

2.3 RIQUEZAS DA TERRA O sentimento de orgulho por sua terra natal é constante na obra de

França. A grande admiração por Carnaúba dos Dantas apresenta-se nos

cordéis ao dedicar muitos de seus versos à exaltação de seus atributos,

retratando a cidade como um lugar de riquezas das mais diversas naturezas:

minerais, arqueológicas e, principalmente, culturais; exaltando a cidade como

reduto de pessoas talentosas e grandes artistas. Em “Carnaúba e Seus

Apelidos”, por exemplo, ao fazer um levantamento dos apelidos das pessoas

da cidade, Francisco Rafael também lista os apelidos de lugares, trazendo à

luz esses espaços.

Carnaúba é uma cidade

Que tem sítio arqueológico Deu homens superdotados

Deu até um astrológico Apelidos tem demais

Com nome dos animais Que dá um jardim zoológico

(...) Apelido de lugar

Tem o Sítio Pau Caído O Riacho dos Cachorro

Grota do Arrependido O Salgadinho e Melado

Tira Crioula e Pelado O Carrasco e Escondido

Tem a Baixa da MadeiraCarcará e o Fundão

Riacho do CabeludoA Garganta e o CardãoA Baixa da Barriguda

Serra Nova e Serra AgudaBoa Sorte e Gavião

A Grota do CriminosoChapeu de Sol e Picote

A Tábua e o RecantoSaco do Nego e Garrote

As Pinturas e o QuarentaO Riacho da Cinzenta

O Xique-xique e o Pote

Mufumbá, Cabeço LisoJoão de Fogo e Minador

A Baixa do AmojadoA Espera e Corredor

Maracujá, GamelinhaInxetado e Caiçarinha

Os Balanço e Mirador

(Carnaúba e Seus Apelidos, s/d)

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Carnaúba é rica em minerais Temos ouro, urano e tantalita

Antrimônio, estanho e scheelita Feu de espato, granadas e cristais

Berilo, bismuto e outros mais Exportamos até para o estrangeiro Em garimpo nós fomos pioneiros

Principalmente em nossa região Explorando minério da nação

Fomos nós os primeiros garimpeiros

(Sertão Que a Gente Mora, s/d)

Em Carnaúba dos Dantas,

Deus fez tudo o quanto quis: Fez músico, pintor e poeta,

Padre, escritor e juiz; De tudo fazendo um pouco,

Pra o povo ficar feliz

Lembrando as Pessoas Esquecidas, 2010)

É a história de um seridoense De talento de fibra e de respeito Homem assim está em extinção

Pois são poucos que possuem este conceito Felinto é conhecido no país

E Carnaúba dos Dantas está feliz Por tem um filho famoso desse jeito

Mil novecentos e oitenta

Onze de setembro felinto faleceu Sua terra natal ficou de luto

Carnaúba dos Dantas entristeceu Pela perca de um gênio musical

Muitas bandas tocaram o funeral Homenageando um gênio que morreu

(Felinto Lúcio Um Gênio da Música, 2009)

Até os bisnetos de Mamede São mecânicos e trabalham consciente

Também em outras famílias tem mecânico Como João Cândido Neto é competente

É a prova que na arte de mecânico Carnaúba tem um povo inteligente

(Carnaúba e Seus Valores do Passado, 2009)

30

Você vindo a Carnaúba Vá fazer uma visita

Lá na Pedra do Dinheiro Pra ver como ela é bonita Reze no túmulo de Joana E também pra Santa Rita

(O Sofrimento de Joana Turuba, s/d)

A diversidade dos atributos da cidade exaltados por Francisco Rafael

tem a capacidade de proporcionar o descobrimento e redescobrimento deste

espaço ao revelar características e riquezas pouco conhecidas e exploradas

por estrangeiros ou até mesmo pela população de Carnaúba dos Dantas, além

de reforçar a importância das já conhecidas. Não foram encontradas, por

exemplo, menções a espaços como a Grota do Criminoso e o Riacho da

Cinzenta em nenhum tipo de registro.

2.4 CARNAÚBA: BERÇO DE SEUS PERSONAGENS E CENÁRIO DE SUAS HISTÓRIAS

De todas as riquezas de Carnaúba dos Dantas sobre as quais o poeta

escolhe rimar, uma em particular tem grande destaque em seus textos: os

carnaubenses. Francisco Rafael faz parecer que há algo de diferente e

inexplicável sobre as pessoas que nascem em Carnaúba dos Dantas, como se

a terra favorecesse o nascimento, ali, de grandes mentes e personalidades.

Carnaúba dos Dantas é uma terra Dos músicos e dos compositores

Dos poetas e dos grandes mecânicos Dos profetas, artesãos e pintores

Por isso resolvi escrever Carnaúba dos Dantas e seus valores

Me orgulho de ser filho desta terra

É uma honra falar de nossa gente Povo pobre, feliz hospitaleiro

Corajoso, fiel, inteligente Diz até que a divina natureza Semeou o saber no ambiente

(...) Esses são os nossos carnaubenses

Cada um com a arte diferente Sem escola, sem mestre e sem estudo

Todos eles já nasceram inteligente

31

Parece que a divina natureza Semeou sabedoria na gente

(Carnaúba e Seus Valores do Passado, 2009)

Para além dos carnaubenses que receberam reconhecimento além dos

limites da cidade, como Tonheca Dantas (Antônio Pedro Dantas), músico e

compositor da famosa valsa “Royal Cinema”, tocada pela rádio BBC de

Londres no século passado para anunciar notícias durante a Segunda Guerra

Mundial; e Felinto Lúcio, agricultor e musicista que escrevia suas composições

na areia às margens do Rio Carnaúba e, ao chegar em casa, as transcrevia

para as partituras específicas para cada instrumento sem antes executar

nenhum teste (MEMÓRIA, 1982); Francisco Rafael revela os carnaubenses

“superdotados” e seus grandes feitos, de quem pouco se ouviu falar. São

pessoas comuns, muitos com baixo grau de escolaridade, que faziam parte de

seu convívio e chegaram a realizar coisas incríveis, atribuídas ao talento

natural que acompanha os que nascem em Carnaúba dos Dantas. São artistas

talentosos, pessoas tão próximas da natureza, que eram capazes de identificar

o sexo dos animais apenas pelos seus rastros, mecânicos que desvendavam

problemas pelo ronco do motor e inventores de todos os tipos.

Mamede fez bomba puxar água Sem ter energia e nem motor

Fez máquina de pé pra costurar Pra descaroçar algodão fez um vapor

Fez um clarinete de pereiro Até avião ele inventor

Mamede comprou um carro For

Ele viu que a roda tinha um defeito Toda vez que ele todava se quebrava

Ele fez uma roda do seu jeito Nunca mais se quebrou mandou pra fábrica

E por Henrique For foi bem aceito

Geraldo Gama esse é superdotado Aprendeu tudo sem ter um professor

Não sabia ler nem escrever Consertava rádio e também televisor

Motor bomba, elétrica e injetoura Motor de carro, máquina e de trator

Geraldo nasceu na Volta do Rio

Somente o seu nome ele assinava Fez uma bicicleta de três rodas

Que até 200 quilos carregava De um guarda sol fez um para quedas

Que de cima das pedras ele pulava

(Carnaúba e Seus Valores do Passado, 2009)

Mesmo os que não possuíam nenhum dom especial ou grande talento

têm espaço nas rimas do escritor. França traz, em cordel, biografias de vários

carnaubenses, preocupa-se em contar suas histórias, amigos próximos ou

pessoas com quem conviveu, a quem homenageia com seus versos, onde

32

ficariam eternizados, como bem observa Humberto Dantas no prefácio de

Carnaúba dos Dantas em Quatro Atos (2006): “nos sentimos gratificados em

saber que alguém se interessou em ressuscitar as memórias daquelas

pessoas, muitas delas, jamais citadas em qualquer escritura” (DANTAS, 2006,

p. 18). Ainda que não fossem gênios e inventores, em geral são pessoas de

personalidades excêntricas e interessantes histórias de vida das quais o poeta

extrai causos e episódios marcantes, histórias que têm como cenário a cidade

de Carnaúba dos Dantas e que acabam por se tornar parte da memória do

local.

O homem mais rico do mundo, um glutão insaciável capaz de comer dez

pratos de coalhada por cima de quarenta mangas espadas; o matuto bravo que

sobreviveu e viu seus familiares morrerem após ingerirem veneno de formiga

misturado à comida; o morador do sítio Ermo que foi à Itália lutar na Segunda

Guerra Mundial ao lado do ex-presidente Castelo Branco e voltou vivo para

contar a história e subir o Monte do Galo em agradecimento à Nossa Senhora

das Vitórias por proteger sua vida; todos eles carnaubenses.

Zé Elias foi na bodega Dez rapadura comprou

Ali ao escurecer Mané Gama chegou

A mesa estava repleta E a disputa começou

Mané Timote, o juiz

Enchia os pratos e contava E Zé Timote, seu filho

A rapadura rapava E assim de noite adentro

A aposta continuava

Já ia nos dez pratos Que cada um já comia

Mané Gama levantou-se Perguntou com alegria

Se coalhada em cima de manga Alguma coisa ofendia

Mané timote gritou É veneno camarada

Mané Gama respondeu Dando mais uma risada

Pois inda agora eu chupei Foi quarenta manga espada

(Carnaúba e Seus Filhos Geniais, s/d)

No sertão do Seridó No Rio Grande do Norte

No sítio Ermo de Cima No Pé da Serra do forte

Nasceu um menino herói Que desafiava a morte

(...) Subiu o Monte do Galo

Pra rezar uma oração Nos pés de nossa senhora

Falo em José Silvestre De Medeiros boa gente

Sistemático, opinioso Cabeça dura e prudente

Se ele dissesse vou passar Podia sair da frente.

Por que sua família

Morreu toda envenenada Com veneno de formiga

33

Com a fé e devoção Pois todo dia na guerra

Lhe pedia a proteção

Na comida misturada Escapou apenas ele

Com a vida amargurada

(Modesto Ernesto Dantas Um Herói Enaltecido, 2009)

(Carnaúba e Seus Homens Sistemáticos, s/d)

As narrativas criadas pelo poeta envolvendo a cidade e seus

personagens contribuem para a construção de um imaginário acerca da

população que habita o local e, dessa maneira, para a formação de uma

identidade carnaubense. Para entender como isso afeta a relação com o

espaço, basta refletirmos: que características que nos vêm à cabeça ao

pensarmos sobre a população da Itália, por exemplo? Ou sobre a população da

região Norte do país. Ou sul. A ideia que construímos à respeito das pessoas

que habitam esses locais muda de alguma forma a maneira como interagimos

e nos relacionamos com esses espaços? Muito provavelmente sim. Nesse

sentido é que se dá a importância da imagem da população carnaubense

criada por Francisco Rafael nos cordéis.

2.5 A VIDA NA ZONA RURAL

Morador da zona rural de Carnaúba dos Dantas durante muitos anos -

em sua velhice, alternava sua morada entre a cidade e o sítio Volta do Rio -,

sendo então esperado que a vida nesse espaço seja tema recorrente em sua

poesia, explorada sob várias perspectivas. Vindo de família humilde de

agricultores, Francisco Rafael retrata com detalhes a sua visão da morada do

camponês sertanejo daquela época, desde a espacialização de ambientes e

caracterização de seus elementos estéticos e construtivos até a relação familiar

com os animais domésticos.

Uma casa de caboclo É emblema no sertão

Onde o luxo é muito pouco Mais tem muito é devoção

Lá o saber vive ausente Pois é tudo diferente

Dos costumes da cidade Do orgulho tem pavor

O puleiro da galinha Do caboclo do sertão

É sempre atrás da cozinha Num grande pé de pião

Para espantar gavião Um pano branco no pau Lá na dispensa um giral

E um fugãozim fumaçando

34

O que existe é amor Respeito e felicidade

Uma casa no sertão

De caboclo é diferente Num tem sote nem batente

Nem também televisão Mais tem um rádio de mão

Para escutar cantador Um papagaio falador E um pote na furquia

E um coração de Maria E a imagem do senhor

Lá no terreiro da frente Num arvoredo copado

Tem um jumento amarrado Às vezes até indecente

Uma cadela valente E uma latada de palha

Aonde guarda a cangalha Barrio, cassuá, cambitos E num chiqueiro de vara

Um bode cheio de tara Uma cabra e dois cabritos

Numa casa de cabolco

Se escuta de manhãzinha Um galo cantando rôco

Ciscando atrás da galinha Um grito dum papagaio

E um cachorro num burraio Latindo fora de moda

Dorme um gato num fogão Um porco fuçando o chão

E um peru fazendo roda

Com água no fogo esquentando Para fazer café ou mingau

A cozinha do caboclo A mubilha é um pilão

Urupemba, quenga de coco Prato de barro e fogão

A marmita de café A cumbuca de cuité A panela e o agridá

Numa mesinha quadrada Uma tigela intirnada

Pra fazer mugunzá

No quarto da camarinha A cama e rede mijada No lugar da lamparina Fica a parede intirnada

Lá na sala de visita Toda enfeitada de fita

O coração de Jesus Num quadro Frei Damião

E o símbolo da devoção Um rosário e uma cruz

Se você for no sertão

E ver um casebre baixo As biqueiras quase o chão

E encostado a um riacho A porta fora de esquadro

E o capote selado E as paredes sem reboco Vai lá sem ser conhecido

Que será bem recebido Pois é casa de caboclo

(Voltando ao Passado, 2009)

A dificuldade de acesso a determinados serviços causada pela distância

dos centros urbanos também é retratada nos cordéis. Morador do sítio Volta do

Rio, Francisco Rafael tinha de se locomover a pé até o sítio Xique-Xique, onde

ficava a escola daquela área, além de relatar as dificuldades causadas pela

distância dos hospitais.

Comecei a estudar Aos dez anos de idade

Lá no sítio Xique-xique Com muita felicidade

Para conhecer as letras

No meu tempo de menino Quando a gente adoecia

Numa cama ou numa rede Um mês a gente sofria

E chá de mato e compressa

35

Era a minha ansiedade (...)

Eu saía pra escola Todo dia bem cedinho Andando com alegria

Uma légua de caminho Junto com meus irmãos

E o colega vizinho (...)

Mais ou meno onze horas A escola terminada

Uma légua de caminho No sol quente a gente andava

Às doze horas do dia Em casa a gente chegava

Era o remédio que havia

Mortalidade infantil No passado era demais Nas cidades do interior Não existiam hospitais

Se a criança adoecia Assistência não havia

Só sofrimento para os pais (...)

Se houvesse um acidente Em lugar desabitado O socorro era difícil

Para aquele acidentado Vinha com dificuldade Numa rede pra cidade

Pelo povo carregado

(Carnaúba do Passado ao Presente, 2009)

Em “Recordação Sertaneja”, França fala com pesar da migração da

população do campo para a cidade e como isso se refletia na paisagem

sertaneja através das casas abandonadas que ficavam para trás, trazendo um

pouco da relação que foi construída pelas pessoas com essas construções

desabitadas.

Aqui ali se encontra Um deserto casarão

Outrora era divertido Um forró tero e leilão

Morreu seu legítimo dono Hoje vive o abandono Nos braços da solidão

(...) Quem passar pelo sertão

Só se vê casa fechada E as terras boas de plantas

Vão ficando abandonada É o homem se aposentando

E a lavoura desprezando E na cidade faz morada

No sertão uma casa abandonada Que morou muita gente e morreu nela

Existindo uma cruz ao lado dela De pessoa que foi assassinada

Basta isso pra ser malassombrada E hoje quem passar nesse casarão

Vê pessoas de branco no oitão Ouve grito e até luz aparece

São as coisas incríveis que acontece Numa casa deserta no sertão

(Recordação Sertaneja, 2009)

36

2.6 CARNAÚBA DO PASSADO E DO PRESENTE

Francisco Rafael viveu por 76 anos, todos eles em Carnaúba dos

Dantas. Durante todo esse tempo trabalhou em diferentes áreas do município e

pôde testemunhar sua transformação. Essas mudanças na cidade transpassam

suas narrativas de várias formas, do micro ao macro; fala da transformação da

paisagem a partir da intervenção do homem e de como o Monte do Galo sofreu

alterações físicas no seu espaço com o passar dos anos; também da

precariedade nas construções das casas das pessoas mais humildes em sua

juventude, fruto de um trabalho comunitário, que provavelmente se refletia na

estética das construções da época (a falta de reboco, por exemplo), e de como

esse cenário mudou nos anos 1970 com apoio do Estado.

Pela margem esquerda mais na frente O marimbondo lhe pede uma carona

Seu percurso é curto mais funciona No inverno formando grande enchente Dali por diante ele segue calmamente

Rodeado de lindos coqueirais Nesse trecho há muitos anos atrás

Quando ali era mata virgem Ele recebeu seu nome de origem Pois tinha ali grandes carnaubais

O rio carnaúba cenário diferente

Cordilheiras e cachoeiras que admiram Xique-xique, jurema e macambira

Do ermo até sua nascente Depois ele ruma ao poente

Recebendo outro tipo de paisagem Que o homem plantou em sua margem

E as nativas baraúnas e caubeiras Jaramataias, taquaris e faveleiras

E mais outras que embelezam sua imagem

“Quem conheceu nosso monte A cinquenta anos atrás

Chegando lá hoje em dia É diferente demais

A ladeira toda calçada Além disso iluminada

E varanda em vários locais

Tem o bairro Dom Adelino Com quase mil habitantes

E tem uma encenação Com uns cem participantes

Mostrando a paixão de Cristo Na sexta feira santa é visto

Por trinta mil visitantes

(Sertão que a gente mora, s/d) (A Verdadeira História do Monte do Galo, 2008)

37

Naquele tempo pra se construir a casa Não tinha ajuda de governo, nem prefeito Aquelas pessoas que tinham mais recurso

Fazia um serviço mais bem feito E o pobre que não tinha condição

Levantava a sua construção Devagar, mais ou menos desse jeito

O tijolo ele mesmo é quem fazia

A madeira na serra ele tirava E o resto de mais necessidade

Com o dinheiro que sobrava ele comprava Mais ou menos um ano isso rendia

E no final uma ajuda ele pedia E com os amigos a construção começava

Nesse tempo o pedreiro trabalhava Da segunda ao sábado ao meio dia

Se na semana ele tivesse um convite Pra se ajudar numa casa a gente ia

Pedreiro e servente se juntava E o domingo inteiro trabalhava

E a casa do amigo construía

E assim a casa era construida Com alegria e a perfeita união

Se trabalhava todo domingo do mês Para poder terminar a construção E o prefeito nem o serviço olhava

A única coisa que a prefeitura dava Era simplesmente o documento do chão

Em mil novecentos e setenta Começou o governo federal

Mandar verbas para todos municípios Construir conjunto habitacional

E aqueles que em rancho residia E uma casa de tijolo recebia Feita pelo poder municipal

E aqueles que já tinham feito a casa

Mas não puderam a obra terminar A prefeitura mandava uma equipe

De pedreiro, as paredes rebocar Fazia muro, banheiro acimentava

E a casa pronta ao dono ele entregava Sem despesa nenhuma a lhe cobrar

(Carnaúba do Passado ao Presente, 2009)

A forma de acesso aos equipamentos de educação e saúde

mencionadas no tópico anterior também sofre mudanças.

Eu saia pra escola Todo dia bem cedinho Andando com alegria

Uma légua de caminho Junto com meus irmãos

E o colega vizinho (…)

Mais ou menos onze horas A escola terminava

Uma légua de caminho No sol a gente andava Às doze horas do dia

Em casa a gente chegava (...)

Na escola tem comida Da mais boa qualidade

Tem carro pra transportar Do sítio até a cidade

Parece que o aluno Hoje tem Prioridade

(...)

Mortalidade infantil No passado era demais Nas cidades do interior Não existiam hospitais

Se a criança adoecia Assistência não havia

Só sofrimento para os pais (...)

Se houvesse um acidente Em lugar desabitado O socorro era difícil

Para aquele acidentado Vinha com dificuldade Numa rede pra cidade

Pelo povo carregado (...)

Hoje se acontecer Um acidente fatal

Logo, logo a assistência Se encontra no local

Com a hora do ocorrido Já está sendo atendido Num leito do hospital

(Carnaúba do Passado ao Presente, 2009)

38

Em “Lembrando As Pessoas Esquecidas”, que também será discutido

mais a fundo no próximo capítulo, Francisco Rafael escreve sobre a Carnaúba

de sua juventude e fala de como a cidade mudou, sequenciando em seus

versos uma série de lugares, pessoas e costumes que, em sua maioria, já não

existem mais.

O forró de Mãe Negrinha, O povo lembra demais,

Lá na rua Manoel Lúcio, Com os lampiões de gás;

Neguinho na sua sanfona. E no fole Zé Tomás!

Da loja de Toinho Lopes, Eu guardo recordação;

Papai comprava tecido, No fim do mês de São João,

Para pagar em outubro, Na venda do algodão!

O campo de futebol, Esse aí, me dá saudade;

Ficava detrás da rua, Onde é a maternidade;

E chico Cunha jogando, No seco, era novidade!

(Lembrando As Pessoas Esquecidas, 2010)

2.7 A IMAGEM DE CARNAÚBA A importância das imagens trazidas nas capas dos cordéis vem da

origem europeia do formato, em que a capa buscava resumir o conteúdo dos

livretos de cordel, exercendo, dessa maneira, influência sobre a compreensão

do texto. Os espaços de Carnaúba dos Dantas figuram em várias capas dos

cordéis de Francisco Rafael, sendo o Monte do Galo o que aparece com mais

frequência, presente na capa de 6 dos 26 livretos usados para o estudo. Nas

capas onde o nome da cidade aparece presente no título, torna-se mais forte a

associação entre Carnaúba e as imagens apresentadas. São ainda variadas,,

embora o Monte do Galo ainda figure em 3 das 6 capas em questão.

39

Figura 4: Na primeira foto, de cima para baixo, vê-se a

Igreja Matriz de São José e o Monte do Galo ao fundo.

Fonte: (Carnaúba e Seus Homens Sistemáticos, s/d)

Figura 5: Da esquerda para direita e de cima para baixo:

1- Biblioteca Donatilla Dantas; 2 - Não identificado; 3 - Monte do Galo; 4 - Não identificado; 5 - Monte do

Galo; 6 - Imagem de Jesus crucificado, no cimo do Monte

do Galo.

Fonte: (Carnaúba e Seus Apelidos, s/d)

Figura 6: Na capa: Casas do centro histórico da cidade na

Rua Antonio Azevêdo, o Castelo di Bivar e uma

imagem de Jesus crucificado.

Fonte: (Carnaúba do Passado ao Presente, 2009).

Figura 7: Na capa: Imagem do Monte do Galo.

Fonte: (Carnaúba e Seus Valores do Passado, 2009)

Figura 8: Na capa: Prefeitura municipal da cidade e foto de

Francisco Rafael.

Fonte: (Conheça os Prefeitos e Vereadores de Carnaúba dos Dantas de 1954 à 2008,

2010)

Figura 9: Na capa: Francisco Rafael e imagem de uma

casa

Fonte: (O Primeiro Milagre no

Vale do Carnaúba, 2009)

40

3. OS DIFERENTES OLHARES: DO CORDEL À HISTORIOGRAFIA

A fim de verificar como o que é posto à respeito da história urbana de

Carnaúba dos Dantas por França em seus poemas se relaciona com o que

registra a historiografia local existente, foram selecionados três cordéis: “A

Verdadeira História do Monte do Galo”, “O Sofrimento de Joana Turuba” e

“Lembrando pessoas esquecidas”. Os textos foram escolhidos por

dedicarem-se de forma mais direta a tratar de espaços de Carnaúba dos

Dantas, possibilitando traçar um paralelo entre os cordéis e outros possíveis

registros da cidade relacionado a esses lugares.

3.1 A “VERDADEIRA” HISTÓRIA DO MONTE DO GALO

O Monte do Galo é, indiscutivelmente, o principal cartão postal da

Cidade de Carnaúba dos Dantas. A formação rochosa que abriga o Santuário

de Nossa Senhora das Vitórias se destaca, imponente, na paisagem; desde

sua inauguração é destino de romarias, um lugar diretamente ligado à fé.

Francisco Rafael Dantas narra em “A Verdadeira História do Monte do Galo” a

história do local desde antes da ocupação portuguesa nas terras onde hoje

encontram-se a cidade de Carnaúba dos Dantas até os tempos atuais.

Figura 10: Monte do Galo, s/d

Fonte: Soares, 2014, p. 1.

41

Pelo século dezessete Os tropeiros viajavam Do sertão até o brejo

Com quinze dias voltavam O caminho era diserto

Mais havia os cantos certos Onde eles se arranchavam

Onde hoje é Carnaúba

Um grande rancho existia Pelo Rancho Pé do Monte

O matuto conhecia Mais, começaram a notar

Que ali naquele lugar Um grande mistério havia

Um dia de madrugada Começaram a escutar

Em cima daquele monte Um triste galo cantar

Sem ter morada por perto Naquele lugar deserto

Era de admirar

Muitos matutos pensavam Que o monte era sagrado

Outros diziam que não Que era um reino encantado

Sem sentir pequeno abalo E pelo o Monte do Galo Começou a ser chamado

O tempo foi se passando Caetano Dantas chegou

Junto com sua família A trabalhar começou

Cada ano que passava Uma família chegava

E o lugar se povoou

Ai o monte do galo Começo ser visitado

Uns diziam que ali Havia um galo encantado

Outros faziam visitas Pra ver a vista bonita De dia pra todo lado

Por dentro da macambira

Uma vareda existia Por esse caminho estreito

Todo pessoal subia Não havia devoção

Era só por distração Ninguém tinha romaria

Foi em mil e novecentos De vinte e cinco pra cá

Pedro Alberto Dantas tava Lá em Belém do Pará Vinha doente demais

Da banda dos seringais Do estado do Amapá

Ele andando na cidade

Leu um anúncio num jornal Que no final de semana

Saia da capital Um navio passageiro Para o Rio de Janeiro

E passava por Natal

O seu dinheiro não dava Para a passagem comprar

Ele saiu na cidade Meio triste a passear

Mais sempre com fé em Jesus

Que aparecia uma luz Para ele viajar

Ele era um homem devoto

Pensou em Deus nessa hora Numa casa santuária

Entrou ali sem demora Avistou numa vitrina

Uma imagem pequenina Da virgem Nossa Senhora

Ele disse para o homem

Eu sei de várias histórias Sobre a nossa mãe de Deus

Só uma é cheia de glória O homem disse essa imagem

Está fazendo uma homenagem

A senhora das vitórias

Aí naquele momento Pedro Alberto a santa

implora Pedindo pra ela ajudar

Para ele vir embora E trazia na bagagem

Aquela pequena imagem Da virgem Nossa Senhora

E lá no Monte do Galo

Colocava aquela imagem Logo ele arranjou serviço

E comprou a sua passagem Pelo voto que ele fez

Viajou no fim do mês E trouxe a santa na bagagem

Quando ele chegou em casa

A sua história contou E a Senhora das Vitórias Para o povo ele mostrou

E disse, eu cheguei com vida Na minha terra querida

Porque ela me ajudou

Aí convidou o povo Para juntos levantar

Um cruzeiro lá no monte Onde a santa ia ficar

E o povo com alegria Começou no outro dia

Todos juntos a trabalhar

Quando foi no outro dia Começou o mutirão

Abriram logo a estrada E outros varrendo o chão

Uns com tijolo subia E na maior alegria

Começou a construção

Fizeram logo um cruzeiro De ferro, pedra e cimento

Pesando uma tonelada Seis metros de comprimento

Feito estirado no chão Pois foi levado a mão

Com o maior sofrimento

Ocupou mais de cem homens Para levar o cruzeiro

Uns puxavam uma corda E trabalharam o dia inteiro Mais conseguiram chegar

Lá no alto e colocar No maior despenhadeiro

Ao levantar o cruzeiro Um milagre aconteceu Para o lado do abismo A enorme cruz pendeu

Quinhentos metro de altura Em estado de loucura

O povo todo correu

Aí Euclides Francisco Mais Abilio seu irmão

Se agarraram na cruz Com maior devoção

Gritando assim, meu Jesus

42

Que também morreu na cruz Quero a sua proteção

Aí naquele momento

Um forte vento soprou A cruz que tava arriando

Neste momento parou E o povo todo gritando

Nas cordas puxando E a cruz pra trás voltou

Pobre, rico, preto e branco Trabalharam o ano inteiro Uns ajudavam em serviço

Outros ajudavam em dinheiro E na maior devoção

Terminou a construção Da capelinha e cruzeiro

Foi no ano vinte e oito

Do próximo século passado Vinte e cinco de outubro Foi o monte inaugurado

Carna´ba hoje em dia Tem a maior romaria

Que possui o nosso estado

Milagre, sempre milagre Todo ano ele aparece

Quando a pessoa tem fé Esse fenômeno acontece Mais dois acontecimento

Que eu tive conhecimento Que o povo não conhece

No ano cinquenta e oito

Uma mulher adoeceu Só andava de moleta

Quase suas perna morreu E ela sem ter melhora

Um dia de Nossa Senhora Das Vitórias se valeu

A mulher subiu o monte No seu marido agarrada

Nos pés de Nossa Senhora Rezou muito ajoelhada

Implorando a sua bença Para que sua doença Fosse por ela curada

Quando ela se levantou

Deu fé que estava curada Saiu andando sozinha

Em em nada ser agarrada Sua alegria era tanta

Que ela gritava pra santa Senhora, muito obrigado

O outro foi uma mulher

Quando seu filho nasceu Com poucos anos de idade

De repente adoeceu E ela na mesma hora

Também de Nossa Senhora Das Vitórias se valeu

Ela fez uma promessa

Para seu filho pagar Se ele ficasse bom Ao o monte visitar

Vestindo um manto azulado E subir o monte pelado

E nos pés da santa deixar

Mais o menino foi crescendo E a promessa não pagou

Ele já um homem feito Uma noite ele chegou Para a promessa pagar

Quando a roupa foi tirar A luz do monte apagou

E subiu o monte nu

Pelado como nasceu Colocou a roupa lá

No canto que prometeu Foi vistir uma que trazia Pois enquanto ele vestia

De novo a luz acendeu

Foi esses e outros milagres Que não posso lhe narrar

Sei que até hoje os romeiros Vem a promessa pagar

Sei que na casa do milagre Tem litro até de vinagre

E tudo que procurar

Quem conheceu nosso monte A cinquenta anos atrás

Chegando lá hoje me dia É diferente demais

A ladeira toda calçada

Além disso iluminada E varanda em vários locais

Tem o bairro Dom Adelino

Com quase mil habitantes E tem uma encenação

Com uns cem participantes Mostrando a paixão de Cristo

Na sexta feira santa é visto Por trinta mil visitantes

Tem as quatorze estações

Na subida do cruzeiro Gruta senhora de lourdes A pousada dos romeiros

Nossa senhora do socorro Numa igreja ao pé do morro

É aberta o ano inteiro

Festa de Santa Luzia Em dezembro é devoção

Gente de todo nordeste Vem pedir uma benção

Em um museu instalado Mostra as coisas do passado

De toda essa região

O Monte do Galo deve A um grande pioneiro

Antônio Felinto Dantas Homem honesto e verdadeiro

Um exemplo dos humanos Que há mais de cinquenta

anos É do monte tesoureiro

Essa é a verdadeira história Que o Monte do Galo tem

Todo dia tem visita Que de todo Brasil vem E se você não conhece Venha fazer sua prece E nos visitar também

Esse é o Monte do Galo

Que o seridó contém Contei dele o que sabia

Não perguntei a ninguém Quem pensar que foi assim

Bata palma pra mim Que eu bato pra você

também

(A Verdadeira História do Monte do Galo, 2008)

43

A poetisa carnaubense Auta Rodrigues de Carvalho também registrou

em detalhes a história do Monte do Galo no seu cordel “Histórico do Monte do

Galo”, que apresenta uma estrutura semelhante a da narrativa escrita por

Francisco Rafael, traçando um histórico do local desde o século XVIII até a

contemporaneidade; os versos foram transcritos abaixo. A terceira fonte a ser

usada é a documentação organizada por Donatilla Dantas em seu livro

“Carnaúba dos Dantas - Terra da Música” (DANTAS, 2989), que constrói sua

narrativa a partir de documentos históricos , entrevistas que resgatam a história 3

na tradição oral e memórias da própria autora.

3 Cópias dos discursos realizados pelos irmãos Antônio Alberto Dantas e José Alberto Dantas na inauguração do cruzeiro do Monte do Galo e recortes de jornal, por exemplo.

44

Carnaúba a minha terra Num vale localizada,

Lindas montanhas lhe cercam,

Uma delas bem destacada Entre vegetação majestoso,

Serrote do Galo denominado Em tempos passado pelo

povo.

A uns dois quilometros da cidade

É que está localizado O Monte do Galo que por

uma lenda Ficou assim denominado, Vou tentar descrever tudo

Com muito esforço e carinho O que contaram os

antepassados.

A primeira versão que sabemos

É que os tropeiros alí passando

Ou pernoitando em barracas próximas ao Monte

Ouviram um galo cantando, Lá no pico do Serrote,

E isto lhes causava espanto, Pois alí não tinha casa, não

havia habitantes

A segunda versão vem do casarão

Da Fazenda Monte Alegre De Antônio Dantas Correia

em 1800 ou antes Vejamos o que aqui segue

Seus vaqueiros arrebanhando o gado

Também ouviram vindo lá do cimo

O cantar vibrante de um galo.

Por tais razões se perguntavam

Com espanto ou com surpresa

Porque cantava o galo acolá! Um mistério da Natureza?

E a estória começou a se espalhar,

Foi assim que de Monte do Galo começaram a chamar.

Decorridos muitos anos

Ninguém nunca imaginou, Surgiu uma bela idéia

Até que a data chegou, Subir o Serrote do Galo

Roçando e fazendo atalho, Nada ali dificultou.

Pique-nique era novidade

Alí na povoação A caravana partiu

Com cuidado e animação Reinava muita alegria,

Festejava-se naquele dia Uma véspera de São João.

Entre outros lá no pé do

serrote Pedro Alberto e Jacó

chamava atenção, Dr. Maroja, Zé Vitor e João

Arapucão Cesario, Zé Domingos e

Chico Marinho João Cabrinha, Zé Amaro e

Zé Paizinho Todos foram da povoação.

João Cândido Filho na época

Nosso chefe municipal, Católico paciente e moderado

Dava seu apoio total, Quase me esquecia de Zé

Leite e Saló João Luiz, Tavares e Joaquim

Majó, Dentro da farra geral.

Zé Dantas abria caminhos

O sol começou a esquentar, Na folia ouvia-se estouros

Com pedras a rebolar, Na montanha misteriosa A comunidade religiosa,

Desejava um marco plantar.

No pico do monte unidos Fizeram uma queimagem

Quanta coisa aparecia Despontando a paisagem

Rios, riachos, corregos Pássaros voando, que

aragem! Tudo isto descoberto com

muita força e coragem.

Era gratificante o momento E também a atração,

Panorama deslumbrante Alegrava o coração,

O sinal seria plantado, Um galo planejado gravava

O cantar e a tradição.

Em vez de colocar o galo Resolveram fazer um

cruzeiro, Lutou nossa gente da terra

Com coragem e amor verdadeiro,

Toda a população do lugar A verdade querendo falar

Pedro Alberto é o pioneiro.

Na união religiosa de todos Veio a força do querer,

Não existia dinheiro Precisava a entrada fazer,

Assim foi iniciada Na pá, carroça, picareta,

enxada Numa quarta-feira ao

amanhecer.

Aberta a vereda ingreme Subiam para trabalhar

Construindo no cimo do monte

O pedestal para colocar O cruzeiro idealizado

Que acabavam de ajeitar Sonhando chegar a hora

Da grande cruz elevar

Difícil foi colocar nas pedras Os andaimes para levar

O cruzeiro até o cimo do Monte

Foi mesmo de admirar, Nos andaimes inseguros

viam-se Homens subindo com a cruz

devagar Arriscando até a vida outros

de cima a puxar.

No mutirão ali acompanhando

O cruzeiro vagarosamente se elevar,

As mulheres choravam, rezavam

Quando os andaimes envergavam,

45

O mais belo observado em tudo isto

É que os homens diziam não chores,

Pois, se morrermos será abraçados com a cruz de

Cristo.

Chegou afinal o cruzeiro Ao pedestal destinado Já estava escurecendo E a cruz mal colocada

Foi esbirrada, por segurança E disse o Padre Bianor para

todos Voltem amanhã com

confiança.

No outro dia volta a multidão curiosa

Que vê o esforço dos homens lutando

E não conseguindo o cruzeiro deixar firma

Foi então que Manoel Torres brincando

Levemente pôs a alavanca em movimento

Grande espanto, desmaiou, pois deu-se o primeiro

milagre A cruz foi no encaixe de

repente se adaptando.

No topo do Monte estava a cruz fixada,

O povo de fé chorava e ria Dava vivas, batia palmas

Os foguetões no ar subiam Cantava oferecendo louvores

A Deus que tudo aquilo permitia

Se transformando em júbilo toda aquela agonia.

Vou falar agora da Santa

Imagem que aqui chegou, No dito ano de 1909

Trazida por Pedro Alberto Dantas

Do Pará e aqui colocou, Na capelinha de São José

Com toda veneração e amor .

Ele era pobre e na época Resolveu sua terra deixar

E partiu para os Amazonas

Nos seringais foi trabalhar, No pensamento de um dia Voltar em melhor situação

E com o seu povo aqui ficar.

Pouco tempo trabalhou E sentiu-se atacado

De Beriberi sofrendo gravemente,

Só lhe restando a saudade De sua terra natal,

E pouca ou nenhuma esperança

Ele tinha de poder aqui voltar.

Nessa tristeza, em febre alta Conseguiu dormir e sonhou

Vendo uma imagem de santa E ao mesmo tempo uma voz

lhe falou Ele escutou o que dizia:

“Se queres viver mais, quanto antes

Deve a sua terra voltar”.

E continuou falando para ele: “Deixe Amazonas e vá ao

Pará; É lá que conseguirá o

dinheiro para voltar Procure e Belém uma

imagem Igual a que vês, para ser

levada A sua terra, e lá disse a voz,

Pelo povo ser venerada”.

Obedeceu tudo como ela disse

Foi embora chegou no Pará, Em Belém achou emprego Foi condutor do bonde até

somar A quantia necessária para

poder viajar Veio embora e de outra vez

A imagem foi comprar.

Uma e outras lojas ele viu De artigos religiosos por lá,

Mas revendo os seus estoques

Não conseguiu encontrar. Foi quando um dos

vendedores Indicou-lhe outra loja,

Mais uma vez foi tentar.

Lá chegando descreveu o sonho

E o vendedor a escutar, `Procurou atento e lhe disse:

“Não temos, mas pode entrar!

Esta é a nova remessa que de Lisboa chegou”.

Foi aí que Pedro Alberto com surpresa

A linda imagem encontrou.

O mais interessante é o fato De nas relações não está

O nome da Santa que escolhia,

E sem conhecê-la, o vendedor exclamou:

“É Nossa Senhora das Vitórias,

Pois o que aconteceu agora É para você, uma grande

vitória!”

Levantado o Cruzeiro do Monte

Chega afinal o grande dia 25 de outubro de 1928, festa

de grande alegria Em procissão deslumbrante

Levam a Virgem das Vitórias Até o monte do Galo

Sua nova moradia.

Na inauguração muito alarido,

Ai meu Deus a cruz vai tombar!

Ao som de cinco bandas de música

Os foguetes a estourar, Arrepios, palmas, canto e

moções Tomavam conta de todos os

corações Abraçados a soluçar.

Neste dia o Serrote do Galo

ou Cruzeiro Teve seu nome mudado

Pois o intendente do Acari Eneas Pires chamou de

Monte do Galo Fugindo da tradição, mas

Deus

46

Pela Virgem vem curando e a igreja alí orando

Dando glória, agradecendo, pedindo graças e perdão

No pé da ladeira havia

Uma fonte de água límpida Que curava doenças, mas

secou. Talvez porque vendiam água

O povo idoso assim falou Isto é contrário a religião

E por isto penalizada a população ficou.

Uma árvore umburana

Alí existia e se deu por ela A cura de João de Tibé, E por isto acreditavam,

Milagrosa a árvore é, E de tanto tirarem as cascas,

Morreu da umburana o pé.

Zé Dantas contava este fato De um homem que

arrebanhando as cabras, Viu uma lançar-se do cimo

abaixo E lá caindo sã e salva

Admirado, ficou e muito sério

Falou em alta voz que ressoava

“Neste monte existe um mistério”!

Crescia de modo espantoso

Vindos de toda parte, O número de romeiros

devotos A pé, a cavalo e de outros

transportes Gente simples de todo sertão

Que vinha agradecer à virgem

Suas graças, sua proteção.

Muitos milagres aconteceram O da cruz que se firmou, o

primeiro Lá no depósito vê-se

arrumados, Pés, cabeças, braços, pernas

talhados Em madeira e outras provas

Dos pedidos à Virgem feitos Pelas pessoas curadas.

Na Revolução Comunista de

1935 Nos conflitos, nos tiroteios,

Vendo tanta coisa metralhada,

Nossa Senhora das vitórias do Monte

Foi com confiança lembrada Fez Monsenhor Walfredo

após a vitória Vir ao Monte agradecer, uma

missa foi celebrada.

Numa manhã bem serena O sol começava a raiar

A população carnaubense Surpresa estava com os

carros a buzinar Transportando católicos do

Seridó Do município de Caicó Para a promessa pagar.

A mais linda das romarias

Frei Casanova realizou, Juntando todas as cidades

Do querido Seridó. Lá no topo do Monte

rendendo A Nossa Senhora o louvor. Cerimônia encantadora, em

nossa mente ficou.

Vários costumes observam Pagando suas promessas

Romeiros de pés descalços Fazendo alí penitência

Xique-xique espinhoso E pedra sobre a cabeça

Parece ser brincadeira, mas a verdade é esta.

Trajados de túnicas

compridas Que deixam lá no altar,

Cumprindo suas promessas Cantam versos a rimar,

Louvando a Virgem das Vitórias,

De joelhos sobem o monte Ou o degraus a cantar.

Todo ano se repete

A festa de Nossa Senhora das Vitórias,

De 15 a 25 de outubro

É tradicional na história. Cresce o número de romeiros

Vindos do Brasil inteiro Cantar de Deus e da Virgem

toda glória.

O primeiro Tesoureiro do Monte Foi Pedro Alberto o

idealizador Do cruzeiro e da primeira

imagem doador, Vindo após João Cândido

Filho, Luiz Bernardo Joel Baltazar de Macedo e o

dedicado Antonio Felinto, o grande

lutador.

Aos três anteriores a Antonio Póstuma homenagem

merecida, Agradecendo seus trabalhos

Que gozem feliz a eterna vida,

Recebendo de Deus o prêmio Pela fé e pelo exemplo de

devoção A Nossa Senhora das

Vitórias, nossa mãe do céu tão querida.

O trabalho de Antonio

Felinto É importante salientar

Fez o que os outros não puderam,o Cristo

Crucificado. Estrada especial, balustrada e

altar. Por Frei Casanova

idealizada, ele fez a Via Sacra

Construiu degraus, museu e banheiros,

De Dom Adelino a idéia, ele construiu a Praça.

Assim o Monte do Galo

Se tornou uma grande atração

Para romeiros e turistas Para quem tem devoção

É local convidativo à reza, à reflexão

E a Virgem das Vitórias nos acolhendo

No seu manto, no seu

47

coração.

Para finalizar apresento O Hino de Nossa Senhora

Letra de Abel Rodrigues de

Carvalho Música de Felinto Lúcio

Dantas Ambos de saudosa memória

O primeiro meu irmão

O segundo compositor musical, regente do coral,

Nas festa de Nossa Senhora das vitórias.

(CARVALHO, Histórico do Monte do Galo, 1990)

As três fontes concordam em vários pontos. Além da inauguração do

Monte do Galo na data de 25/10/1928 e da origem do seu nome relacionada à

lenda vinda do século XVIII onde ouviu-se um galo cantar no cimo do monte,

todos os registros apontam Pedro Alberto Dantas como principal figura

responsável pelo início da movimentação popular para a construção do

cruzeiro; entretanto, apenas Francisco Rafael e Auta Rodrigues abordam as

motivações do carnaubense em suas narrativas; no relato do primeiro, Pedro

Alberto Dantas, em 1925, faz uma promessa a Nossa Senhora das Vitórias de

pôr sua imagem no cimo do Monte do Galo para que consiga voltar à sua terra

natal, enquanto Auta Rodrigues registra que, na verdade, Pedro Alberto teria

tido um sonho em que a própria Nossa Senhora das Vitórias o pedia para

colocar sua imagem na cidade de Carnaúba para ser adorada, prometendo

ajudá-lo a voltar pra casa; a imagem comprada por Pedro Alberto teria chegado

em Carnaúba no ano de 1909, não em 1925 como propõe Francisco Rafael.

48

Figura 11: Inauguração do cruzeiro do Monte do Galo em 25 de outubro de 1928

Fonte: Foto de Thomaz Alberto Dantas.

Além da sua importância como marco religioso, a construção do cruzeiro

do Monte do Galo é apontada pela documentação organizada por Donatilla

Dantas como marco político na história da cidade, comemorando a fundação

de Carnaúba. A ocasião de comemoração da fundação é explícita nos

discursos de Antônio Alberto Dantas e José Alberto Dantas na data da

inauguração (DANTAS, 1989). Donatilla Dantas, entretanto, não registra a

maior parte da história contada nos cordéis.

O relato das visitas ao monte por lazer, sem nenhum cunho religioso; a

mobilização popular dos habitantes para a construção da capela e do cruzeiro

e as lendas relacionadas a milagres ocorridos no Monte do Galo figuram

apenas nas narrativas dos cordéis. Em relação ao misticismo ligado ao espaço,

as histórias se complementam: enquanto Francisco Rafael relata dois milagres

ocorridos no local, a mulher que voltou a andar e as luzes que apagaram-se

para que um homem pudesse cumprir sua promessa; Auta Rodrigues traz as

histórias da fonte de água e da árvores com propriedades de cura que existiam

no Monte do Galo; ambos concordam ao retratar o episódio de erguimento do

cruzeiro de concreto que firmou-se sozinho como o primeiro milagre de que se

tem registro no local. Ao registrar as mudanças ocorridas no espaço, “O

49

Histórico do Monte do Galo” atribui à gestão do tesoureiro Antônio Felinto

Dantas a construção de várias estruturas que hoje fazem parte do santuário: o

calçamento do percurso, estabelecimento da via sacra, construção de

banheiros e “balustrada”, dentre outros, como é possível verificar no poema.

3.2 O SOFRIMENTO DE JOANA TURUBA

Assim como em “A Verdadeira História do Monte do Galo”, em “O

Sofrimento de Joana Turuba” o surgimento da Capela de Santa Rita de Cássia,

importante espaço religioso carnaubense, é contado com detalhes por França,

desde a biografia de Joana Faustino da Silva, conhecida como Joana Turuba,

que tornou-se uma espécie de mártir no imaginário popular devido ao

sofrimento pelo qual passou em vida, até as motivações de cidadãos

carnaubenses que levaram à construção da capela. O texto foi transcrito na

íntegra por considerarmos toda a construção de um contexto importante para o

entendimento da significância e memória que guarda este espaço.

A pessoa quando nasce O seu destino é traçado

Pela mão da natureza O supremo advogado Que ordena um viver

sofrendo Outro é menos castigado.

Quem sofre com paciência

Sem blasfêmia e sem clamores

Deus está sempre ao seu lado E alivia suas dores

No fim de sua existência É coroada de flores.

Vou falar de uma mulher

Uma amável genitora Seu nome Joana Türuba

Mulher pobre e sofredora Devota de Santa Rita

Como a sua protetora.

Há muitos anos atrás Joana Turuba viveu Lá na serra de Cuité

Junto com o povo seu

Cinco filhos e o marido Que de desgraça morreu.

Aconteceu numa feira

No Povoado Melão Que mataram meu marido Por vingança ou discussão

Com cinco peixeiradas Em cima do coração

Joana ficando viúva

Sem ter pra quem apelar Com cinco filhos pequenos

Sem ninguém pra lhe ajudar Resolveu sair da serra Em Picuí veio morar.

Na cidade de Picuí

Não encontrou remissão Saiu de lá sem destino

Em triste situação Veio ficar em Parelhas

Lá no sítio do Boqueirão.

Ficou trabalhando ali Naquela comunidade

Para sustentar seus filhos

Passando necessidade Trabalhava dia e noite

Com muita dificuldade

Mas uma vez o destino De Joana lhe castigou

Quando apanhava feijão Uma fumaça avistou

Quando ele chegou em casa Tudo queimado encontrou.

Outra vez a pobre Joana

Se sentia angustiada Vendo todos os seus

pertences Sendo em cinzas

transformada Novamente o sofrimento

Estava em sua morada.

Seu filho Cícero Turuba Resolveu a se mudar

Pra Carnaúba dos Dantas Onde vieram morar

Sem saber que o triste fim De Joana ia chegar.

50

Joana Turuba era baixa Morena clara era cor

Conversava muito pouco Sinal de um sofredor

No seu ambiente se via Amargura e muita dor.

Uma forte epidemia

Em Carnaúba chegava De bexiga verdadeira

A todo mundo assombrava De Ermo até a Rajada A doença se alastrava.

Joana Turuba, coitada

De repente adoeceu A bexiga era tão forte Que a todos comoveu

Como a época era atrasada Nenhum médico apareceu.

O medo ficou rodando

Em toda a população Com medo de não haver

Uma contaminação Deixaram ela no mato Na mais triste solidão

Prra Serra do Marimbondo

Levaram a pobre coitada Na sombra de uma pedra Construíram uma latada Em uma cama de varas

Deixaram ela deitada.

Joana Turuba ficou Exposta à chuva e ao vento

Na mais triste solidão Entre gemidos e lamentos

Mais uma vez se encontrava Nos braços do sofrimento.

A imagem de Santa Rita

Ao seu lado ficava Para aliviar suas dores Com a Santa abraçava Era seu único conforto

Que talvez lhe consolava.

Ninguém tinha coragem De ir lá lhe visitar

Pra não ver seu sofrimento Ou ela se lastimar

Outros não iam com medo De não se contaminar.

Cada dia que passava

Aumentava sua dor Seu corpo todo chagado A pele mudando de cor Cristão nenhum resistia De ouvir o seu clamor.

Passava as noites sozinha

Naquela serra esquisita Só tinha ela ao seu lado

A imagem de Santa Rita Ou os animais noturnos

Que lhe faziam visita.

Vejam bem caros leitores Como essa mulher sofria Com bexiga e febre forte

E o lugar que ela vivia Numa serra e no relento Enfrentando a noite fria.

Eu acho que muitas vezes

Na madrugada gelada Ela pensando consigo

Por que sou tão castigada? Tanto bem que eu já fiz

E hoje vivo abandonada.

Mas Santa Rita de Cássia Permanecia ao seu lado

Talvez dizia pra ela No momento angustiado

Quem sofre com paciência Entra no Reino Sagrado

Um dos netos de Joana

Que sempre lhe visitava Era Severino Turuba

Que todos os dias levava Algum alimento e chá Pra ver se ela tomava.

Passaram-se duas semanas

Ela já toda chagada Em folhas de bananeira Estava sendo enrolada

Só mesmo esperando a hora De Deus fazer-lhe a

chamada.

Severino estava ao seu lado De sua avó estimada

Saiu pra fazer um chá Vendo ela agoniada

Voltando achou a avó morta Com Santa Rita abraçada.

Voltou chorando à cidade

Aos seus parentes avisar Saiu convidando o povo

Pra seu corpo ir buscar Ninguém ia lá com medo

Da doença não pegar

Os únicos que foram lá Sem medo da catapora

Foi Antônio de Tibé E Branco de Tia Dora

Também Chico Frutuoso Com fé em Nossa Senhora.

Também Chico Murumbeca

Muito triste e abalado Por ser parente da vítima

Junto com Antonio de Torado

Foi lá João de Teodora E também Chico Bernardo

Antonio Bico, o coveiro

Foi lá pela obrigação Chegaram encontraram o

corpo Em completa putrefação

Se diluindo e com mau-cheiro

Em triste situação.

Os presentes se vexaram Para uma cova cavar

No lugar que ela morreu Ali mesmo a sepultar

Mas o chão era só pedra Procuraram outro lugar.

Saíram levando o corpo

Sem suportar o mau-cheiro Só conseguiram chegar

Lá na Pedra do Dinheiro Cavaram outra sepultura Com clamor e desespero.

Só dois palmos de fundura

Foi o que eles cavaram Também é pedra ela rasa

Mesmo assim a sepultaram Cobrindo a cova com pedras

Nem a cruz colocaram.

Assim terminou de Joana Seu doloroso sofrer

Nem um enterro católico Ela não pôde obter

Mas sei que Deus lhe deu tudo

51

Que ela tinha a merecer.

Toda pessoa na terra Que sofre com paciência

Reconhecendo o sofrer Como uma penitência

Estará Deus ao seu lado No fim da sua existência.

Joana era sofredora

Desde sua mocidade Com tragédia e amargura

Passando necessidades Mas agora está feliz

Na Santa eternidade.

A Senhora Joana Major Morando perto do lugar Que Joana foi sepultada Começou logo a sonhar

Ela pedindo no sonho Pra sua cova aguar.

Assim ela começou

Com amor e devoção A aguar a cova dela

Também fazendo oração Mostrando para os presentes

Que tinha bom coração

Depois Josefa Leandro Com sacrifício levava Uma lata d’água cheia

Na cabeça carregava Aguando a cova dela

Todo dia que Deus dava.

Carnaúba é uma terra De gente religiosa

Um povo pobre e humilde

E pessoa caridosa É a cidade da música E da Santa Milagrosa

Hoje na cova de Joana Muita gente reza nela

A população devota Construiu uma capela

Pra Santa Rita de Cássia Que era protetora dela.

A jovem Ivaneide Lopes Começou com devoção

Zelando aquele local Como peregrinação Todos os dias ia lá

E rezava uma oração.

Devota de Santa Rita E a fé que tinha nela

Com ato de penitência Comprou a imagem dela

E com a ajuda do povo Construiu uma capela.

Ivaneide batalhou

Com o povo da Região Mais Felinto Dantas Neto

O mestre da construção Assim foi feita a capela

Um horto de oração.

Desde outubro de noventa Duas mulheres se emanam

Pra zelar o santuário Também da cova de Joana

Elas vão lá bem cedinho Todos os dias da semana.

É Tereza de Jesus

Com Zé Firmino casada E Inácia Maria Dantas Outra mulher dedicada

Por Inácia de Felinto É conhecida e chamada.

Elas fizeram campanhas

Com toda população Com os donos das cerâmicas

Também festinhas e leilão Com a ajuda recebida

Aumentou a construção.

Junto a Maria de Lourdes Chefe da tesouraria

Fizeram o túmulo de Joana Santuário de alvenaria

Com apoio da população Foi feito o que merecia.

Na festa de Santa Rita Ela vem em procissão Da Matriz de São José

Há novenas e oração Depois volta ao santuário

Com a maior devoção.

Você vindo a Carnaúba Vá fazer uma visita

Lá na Pedra do Dinheiro Pra ver como ela é bonita Reze no túmulo de Joana E também pra Santa Rita.

Faço aqui ponto final

Revendo um triste passado Ao sofrimento de Joana Naquele tempo atrasado

Contei o que achei escrito Há todos muito obrigado.

(O Sofrimento de Joana Turuba, s/d, grifo nosso).

Foram encontrados apenas dois registros que contam a história do

surgimento desse espaço: a dissertação de mestrado de Maria Isabel Dantas -

que trata das festividades religiosas carnaubenses -, e o texto transcrito acima,

ambos utilizados como fontes para Macedo (2005). A narrativa construída por

Maria Isabel Dantas a partir do resgate da tradição oral popular entra em

concordância com a construída por Francisco Rafael: a história da mulher

devota de Santa Rita de Cássia, vítima da chamada Bexiga Verdadeira que,

52

devido à doença, foi isolada próximo à Serra do Marimbondo e no local de seu

sepultamento construiu-se a capela em homenagem a Santa Rita.

Há, entretanto, uma pequena divergência. Enquanto na narrativa de

Francisco Rafael o início das visitas ao lugar de sepultamento de Joana Turuba

se dá a partir do sonho que a senhora Severina Major teve, onde a falecida

devota de Santa Rita de Cássia pediu para que ela cuidasse de sua cova;

Dantas (2002) traz um fato diferente, não citado pelo poeta:

Logo após a sua morte, três moças pastoreando seu gado, nas encostas da Serra do Marimbondo, começaram a sentir um cheiro de rosas. Como no local não existiam roseiras, associaram o fenômeno à alma da mulher enterrada naquelas proximidades. Conforme as narrativas orais, alguns agricultores acostumados a caminhar até suas roças no sítio Marimbondo, sabendo do fenômeno, começaram a pedir intercessão daquela mulher/alma na resolução de seus problemas, entre eles, a falta de chuvas. A partir daí, o local passou a receber a visita de muitos moradores. (DANTAS, 2002, p. 90).

Apesar disso, é notável a discrepância na riqueza de detalhes entre uma

narrativa e outra. Enquanto a história do santuário resume-se no trabalho de

Maria Isabel Dantas a um relato de aproximadamente uma página, onde a

construção da capela é descrita apenas em “Posteriormente, onde foi

sepultado o corpo de Joana Turuba, foi construído o santuário de Santa Rita de

Cássia.” (DANTAS, 2002, p. 90), o cordel de Francisco Rafael traz uma

narração em detalhes dos atores responsáveis pela transformação da cova em

túmulo, posteriormente em capela, e sua transformação ao longo do tempo,

com aumento da construção, muito embora apenas Maria Isabel Dantas aponte

aproximadamente a data do surgimento do santuário, em meados dos anos

1970. É importante também destacar o relato da sofrida vida de Joana Turuba

nos versos do poeta, parte essencial para o entendimento do espaço dedicado

à sua fé na “Santa das Causas Impossíveis”.

Não foram encontrados registros fotográficos do espaço quando ainda

era apenas o túmulo de Joana Turuba, nem mesmo com as famílias de Inácia

53

Maria Dantas e Maria de Lourdes Dantas. Algumas outras informações à

respeito do santuário podem ser encontradas em Macedo (2005).

Figura 12: Santuário de Santa Rita de Cássia, 2005.

Fonte: Acervo pessoal de Maria de Lourdes Dantas.

Figura 13: Santuário de Santa Rita de Cássia, 2005

Fonte: Acervo pessoal de Maria de Lourdes Dantas.

54

Figura 14: Santuário de Santa Rita de Cássia, 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

3.3 LEMBRANDO AS PESSOAS ESQUECIDAS

Francisco Rafael, em “Lembrando as pessoas esquecidas”, convida o

leitor a uma viagem pela Carnaúba dos Dantas de sua juventude. São pessoas,

lugares e costumes da Carnaúba dos Dantas de meados do século passado

que o poeta traz à tona para que não caiam, como o próprio título diz, no

esquecimento. Os versos não foram transcritos em sua totalidade, embora

reconheçamos a importância de manter registrada a memória das pessoas

55

presentes no poema para que sejam sempre lembradas, foram mantidos, pelo

teor do trabalho, apenas os trechos referentes aos espaços de Carnaúba dos

Dantas, seus usos e histórias.

Nasci na Volta do Rio,

Longe de luxo e nobreza… Mas alegre por viver,

Num cenário de beleza, Assistindo os espetáculos,

Que fazia a natureza!

Fui criado trabalhando, Ganhei o nome de França;

Ao conhecer Carnaúba, Ainda era criança;

Tem coisa do seu passado, Que não me sai da

lembrança.

Eu lembro, muito pequeno, Do vapor de algodão,

Construído por Mamede, O mestre da invenção;

E quem puxava o engenho, Era João Arapucão.

Lembro a casa dos Tibé,

Com a frente para o Norte; O hotel de tia Rita,

Onde o café era forte; E a banca de Quinca Moura,

Onde se tentava a sorte.

Lembro dos ranchos de palha,

Da velha rua do Pelo: Do velho Chico Tavares,

Barbeiro que tinha zelo… Passava mais de uma hora,

Para cortar o meu cabelo!

Ai que saudade me dá! Da difusora tocando;

Os casais de namorados, Pela praça passeando;

E os amigos reunidos, Lá nas calçadas, escutando.

O bazar de Pedro Alberto,

Que ainda hoje é lembrado; Martins Cruz moendo cana,

Com um bisaco do lado; Pedro Alberto despachando,

Carrancudo e engraçado.

O forró de Mãe Negrinha, O povo lembra demais,

Lá na rua Manoel Lúcio, Com os lampiões de gás;

Neguinho na sua sanfona. E no fole Zé Tomás!

Da loja de Toinho Lopes,

Eu guardo recordação; Papai comprava tecido,

No fim do mês de São João, Para pagar em outubro,

Na venda do algodão!

O campo de futebol, Esse aí, me dá saudade;

Ficava detrás da rua, Onde é a maternidade;

E chico Cunha jogando, No seco, era novidade!

(...) Me lembro daqueles filmes,

Que todo sábado passava, Ali na biblioteca,

Que nem rebocada estava; Duranquirque e Rock

Lane, A casa superlotava!

Da minha primeira escola Essa me doi na lembrança

Lá no sítio Xique-xique,

Eu era muito criança, Dona Amélia, a professora

Alma cheia de bonança. (...)

Do velho Cine São Pedro, Vou lembrar a vida inteira Dos filmes de Teixeirinha,

Django e Toni Vieira; E a difusora tocando,

As músicas de roedeira! (...)

Da saudade do hotel, De Paulinha e Zé Romão;

Da sinuca de Lalau; Do fusquinha de Dandão;

Bolim na sua bodega, Cochilando no balcão.

(...) Eu me lembro do forró,

Lá na casa de Judi; Ela com seu cafezin,

Vendendo bolo e siqui; Dos fregueses só não

dançava Zélhia, Goga e Vivi.

(...) Lembro a venda de lavoura;

Na esquina do mercado A bodega de Bolim,

E Zé Marreca encostado; E a venda de João Cabrinha,

Ficava do outro lado. (...)

Essas são minhas lembranças,

Desses meus entes queridos…

Que habitaram Carnaúba, Em tempos bons ou sofridos;

Construíram nossa história, E jamais serão esquecidos!

(Lembrando as Pessoas Esquecidas, 2010, grifo nosso).

Dos espaços citados por Francisco Rafael em seus versos nostálgicos,

alguns ainda existem fisicamente na malha urbana, como a “Casa dos Tibé”. A

56

praça mencionada pelo poeta onde os casais de namorados passeavam,

acredita-se que seja a Praça Caetano Dantas, a mais antiga da cidade

(Macedo, 2005), que ainda se mantém como importante espaço de

sociabilidade. A Biblioteca Donatilla Dantas também ainda existe e mantém-se

em funcionamento, com poucas alterações em sua estrutura física. A equipe da

biblioteca guarda diversos registros das atividades culturais realizadas em seu

espaço, sobretudo a partir dos anos 1980, através, principalmente, de fotos;

entretanto, não encontrou-se nenhum à respeito das exibições de filmes

citadas pelo escritor. Hoje, do antigo Cine São Pedro, do qual Francisco Rafael

foi o proprietário, restam apenas as ruínas após a ocorrência de um incêndio.

Não foi possível encontrar nenhum tipo de registro relacionado ao cinema,

embora esteja fortemente vivo na memória da população que viveu a época; a

família do poeta não dispõe de nenhuma foto do prédio durante o

funcionamento do cinema, tampouco registro de alguma sessão, apesar de

acreditar-se que haja alguma fotografia em acervos pessoais pela cidade.

Figura 15: “Casa dos Tibé”, ao lado da Pedra do Gambão, 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

57

Figura 16: Biblioteca Donatilla Dantas, 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 17: Prédio do antigo Cine São Pedro, 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

O prédio da primeira escola onde Francisco Rafael estudou, o Grupo

Escolar José Azevêdo Dantas, no sítio Xique-Xique, ainda existe, mas devido à

falta de uso encontra-se abandonado. No poema “A Educação de Ontem e a 4

de Hoje” o poeta lembra a vivência nesse espaço durante sua infância, por

4 Alunos que residem na zona rural passaram a transportar-se até as escolas da cidade. 58

volta dos anos 1940, levando em consideração o ano de seu nascimento

(1935).

Comecei a estudar Aos dez anos de idade

Lá no sítio Xique-xique Com muita felicidade

Para conhecer as letras Era a minha ansiedade

Meu pai comprou pra mim

Uma carta de ABC Um lápis e apaga borrão

E um caderno de escrever E disse pra mim assim: O restante é com você!

Eu saía pra escola

Todo dia bem cedinho Andando com alegria

Uma légua de caminho Junto com meus irmãos

E o colega vizinho

E levava uma sacola Com batata cozinhada

Uma manga, uma goiaba E rapadura quebrada E na hora do recreio Se fazia a misturada.

A primeira professora Que começou me ensinar

Era Amélia Eulália Dantas Mulher espetacular

Emsomava com carinho A quem queria estudar

Era muito carinhosa

Todo mundo lhe adorava Porém, se algum aluno

Com respeito faltava Ia logo pra o castigo

E na palmatória pagava

Eu só errei uma vez Também tive de pagar Mas eu era obediente

Pois queria estudar Por isso que todas provas

Era o primeiro lugar

Oito horas era o recreio Quando a sirete batia Nu juazeiro frondoso

Que no terreiro existia Todo mundo ia lanchar

Da comida que trazia

Mais ou menos onze horas

A escola terminava Uma légua de caminho

No sol quente a gente andava

Às doze horas do dia Em casa a gente

chegava

Aluno era obediente Prestava bem atenção

Na hora que a professora

Ia passar a lição Ali só faltava luxo

Mas sobrava educação

Às vezes lá no terreiro Algum aluno arengava Mas a professora vinha

E só uma vez reclamava

E os meninos obedeciam

E a discursão terminava

As lá dentro da escola Era silêncio e respeito

O que a professora ensinava

Se escutava direito Será que isso hoje em

dia Ainda está do mesmo

jeito?

(Carnaúba do passado ao presente, 2009)

59

Figura 18: Grupo Escolar José Azevêdo Dantas, 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

O “Forró de Mãe Negrinha” que acontecia na Rua Manoel Lucio, como

descrito por Francisco Rafael, tinha espaço em um prédio de propriedade de

Maria Sabrina da Conceição, conhecida como Mãe Negrinha. O prédio já não

existe e atualmente é onde encontra-se uma das lojas da rede Casas Potiguar.

A neta de Maria Sabrina, Eliete Silva pôde confirmar o local da casa e falou

sobre ouvir, durante a infância, sobre das festas promovidas por sua avó, mas

não guarda nenhum registro do espaço; é possível, entretanto, ver a fachada

da edificação em fotos da rua antes da construção da atual loja.

60

Figura 19: Loja da rede Casas Potiguar, na Rua manoel Lúcio, onde ficava o “Forró da Mãe Negrinha”.

FONTE: Acervo pessoal.

Figura 20: Rua Manoel Lúcio, vê-se no lado esquerdo da foto, em frente ao segundo poste, a fachada de do prédio onde acontecia o chamado “Forró da Mãe Negrinha”

s/d.

FONTE: Acervo pessoal de Maria de Lourdes Dantas, editada pelo autor

61

Figura 21: Maria Sabrina da Conceição, a “Mãe Negrinha”.

Fonte: Acervo pessoal de Eliete Silva.

Do espaço onde funcionava o “Hotel de Paulina e Zé Romão, também

lembrado como “Hotel de Tia Rita”, apenas parte ainda existe. A área da

edificação onde ficavam os quartos do hotel, na Rua Cassimiro Alberto, hoje de

uso residencial, mantém a fachada original; já a entrada do antigo hotel,

localizada na Rua José Azevêdo, onde também ficava o café, segundo o

proprietário, foi reformada e hoje é a Churrascaria Central. <Netinho>, parente

dos proprietários do hotel, não guarda nenhuma foto da antiga fachada do

prédio. Levando em consideração a proximidade com a Biblioteca Donatilla

Dantas, buscou-se uma foto do prédio da biblioteca em que fosse possível ver

a entrada do hotel, mas sem sucesso.

62

Figura 22: Fachada da parte do prédio do antigo hotel onde ficavam os quartos, na Rua Cassimiro Alberto, 2018

Fonte: Acervo pessoal.

O levantamento fotográfico dos centros históricos da região do Seridó do

Rio Grande do Norte realizado pelo MuSA-UFRN registrou o prédio onde 5

funcionava a “Loja de Toinho Lopes” do poema; a edificação que estava

localizada na Rua João Cândido Medeiros deu lugar ao prédio onde hoje é o

Comercial Manoel Sabino. Em conversa com Hilário Félix Dantas, amigo de

Francisco Rafael com quem dividia a escrita dos Conselhos de Judas, o

carnaubense lembrou a loja de Toinho Lopes: “Foi onde tive o meu primeiro

emprego”; também falou sobre a localização do campo de futebol onde

costumava jogar que, segundo ele, ficava exatamente onde, hoje, fica a

maternidade, na Rua Treze de Maio, e não “detrás da rua onde é a

maternidade”, como escreveu o poeta. Hilário Félix também disse não guardar

nenhum tipo de registro do campo de futebol nem indicar alguém que o

pudesse ter feito.

5 <http://musaufrn.wixsite.com/serido>. 63

Figura 23: Prédio onde ficava a loja de Toinho Lopes, 1999

FONTE: Fotógrafo: Paulo Heider, <acervo musa>

A “Bodega de Bolim” e a “Banca de Quinca Moura” foram as últimas das

quais encontrou-se algum registro. Dos demais lugares lembrados por

Francisco Rafael no poema não foi possível resgatar nada além de memórias

das pessoas procuradas em busca de possíveis registros, as quais não é o

objetivo deste trabalho guardar. Foram procurados familiares e pessoas que

pudessem estar relacionadas a estes espaços, mas vale fixar que, embora não

tenham sido encontrados durante esta pesquisa, esses registros podem existir,

mas provavelmente fazem parte de acervos de memórias particulares.

64

Figura 24: Bodega de Bolim, s/d.

Fonte: Acervo pessoal de Valéria Maria de Medeiros Santos.

Figura 25: Bodega de Bolim, s/d.

Fonte: Acervo pessoal de Amarilis Gomes da Silva.

65

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a discussão realizada nessa pesquisa, é possível estabelecer a

obra em cordel do poeta Francisco Rafael como fonte importante da história e

memória urbana de Carnaúba dos Dantas onde residem, possivelmente, os

únicos registros existentes relacionados a determinados espaços e tempos. Os

cordéis do carnaubense resgatam suas lembranças e vivências que estão

ligadas diretamente aos espaços da cidade e suas configurações, tornando

possível entender e conhecer, para além da história da cidade, a maneira como

as pessoas relacionam-se com ela, tudo isso através de uma linguagem

simples e acessível.

Levando em consideração estudos que apontam um caminho de

preocupação em relação à preservação do patrimônio cultural edificado na

região do Seridó potiguar (OLIVEIRA, 2015), da qual faz parte a cidade de

Carnaúba dos Dantas, e unindo a qualidade didática da linguagem utilizada no

cordel explorada em outros trabalhos (BARBOSA, 2011; SILVA, 2009) à sua

capacidade de informar sobre a história urbana, revelam-se várias

possibilidades para a continuação do presente estudo, dentre elas o uso da

literatura de cordel em ações de educação patrimonial, estratégia pela qual o

IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tem buscado

aproximar a população de seu patrimônio cultural (GRUNBERG, 2007).

Assim, fica clara a necessidade de buscar cada vez mais as diferentes

maneiras de enxergar-se o espaço urbano de forma a entender sua

complexidade nas mais variadas dimensões.

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REFERÊNCIAS

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