Filosofia do Direito

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2010 Filosof i a do Direito Josemar Soares

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Filosofia do DireitoJosemar Soares

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S 676f Soares, Josemar. / Filosofia do Direito. / Josemar Soares. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2010.

308 p.

ISBN: XXX-XX-XXX-XXXX-X

1. Justiça. 2. Filosofia. 3. Ética. 4. Direito. I. Título.

CDD 340.1

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pesquisas na Alemanha, França e Itália. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNI-VALI). Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. Graduado em Filosofia pelas Universidades Franciscanas.É professor das disciplinas de Filosofia do Direito e Ciência Política na graduação, Metodologia da Pesquisa e Didática do Ensino Superior na pós- -graduação.É professor colaborador do Mestrado em Ciên-cia Jurídica da UNIVALI. Coordena o Grupo de Pesquisa e Extensão PAIDEIA, que já possui 10 anos de existência. Consultor empresarial pela Vis Desenvolvimento de Liderança, prestando serviços em instituições públicas e privadas.

Josemar Soares

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Introdução ao pensamento filosófico 13

Introdução | 13

A filosofia grega | 21

Origens da filosofia grega: os poetas Homero e Hesíodo | 28

Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

53

Introdução | 53

Ésquilo | 54

Sófocles | 56

Eurípedes | 62

Conclusões sobre a tragédia | 64

A comédia de Aristófanes | 65

Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas 75

Introdução | 75

Escola Jônica | 76

Os pluralistas | 78

A Escola Atomística | 79

A Escola Pitagórica | 81

A Escola Eleata | 83

Heráclito de Éfeso | 85

Os sofistas | 88

A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

97

Introdução | 97

Sócrates e a importância do autoconhecimento | 97

A Justiça como paideia em Platão | 102

Justiça em Aristóteles 121

Introdução | 121

Justiça e Ética | 122

Justiça na polis: a Política | 129

Conclusões | 134

Helenismo e Idade Média 143

Introdução | 143

O pensamento filosófico no período helenístico | 143

Santo Agostinho | 148

Tomás de Aquino | 151

Duns Scott | 155

Guilherme de Ockham | 156

A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

169

Introdução | 169

Francis Bacon | 169

René Descartes | 171

Espinoza | 175

A filosofia iluminista | 177

A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

189

Introdução | 189

Thomas Hobbes | 189

John Locke | 194

Montesquieu | 200

Rousseau | 202

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Liberdade interna e externa em Kant 217

Introdução | 217

A crítica kantiana – juízos a priori e a posteriori, analíticos e sintéticos | 218

O pensamento político e jurídico de Kant | 221

Direito e Política na Dialética de Hegel 235

O sistema hegeliano | 235

As linhas fundamentais da Filosofia do Direito | 240

Considerações finais sobre a Filosofia do Direito e o sistema hegeliano | 249

O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

257

Introdução | 257

Karl Marx | 257

Sφren Kierkegaard | 260

Friedrich Nietzsche | 262

Edmund Husserl | 265

Martin Heidegger | 269

Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito 281

Max Scheler | 281

Carl Schmitt | 283

Hans Kelsen | 285

John Rawls | 287

Habermas | 290

Miguel Reale | 292

Anotações307

Filosofia do Direito

Apresentação

Que o mundo como conhecemos hoje é resul-tado de uma intensa evolução histórica, isso é algo que não se pode negar, mas o que pouco se sabe é o quanto o pensamento filosófico con-tribuiu para essa evolução.Os grandes fatos que marcaram a história e as principais decisões que alteraram os rumos da humanidade sempre tiveram como fundamen-to um determinado modo de compreender o mundo e de agir tendo em vista esse entendi-mento. Ora, a busca incessante pela compre-ensão do mundo e o anseio por encontrar a verdade das coisas é justamente o objetivo da Filosofia. Foram essas grandes mentes da his-tória que pensaram, idealizaram e discutiram aquilo que se tornaria realidade após anos, dé-cadas, ou até mesmo séculos da publicação de suas propostas.Esse gradativo processo não pode ser ignorado na atualidade, em especial no mundo do bu-siness, onde o conhecimento das bases pelas quais está construída a sociedade e o Direito, entendido como o sistema lógico-racional de determinação de conduta daquela sociedade, revela-se essencial quando tratamos do desen-volvimento de uma organização e de sua res-ponsabilidade social.Portanto, o conhecimento dos principais enten-dimentos da ideia de Justiça, da ordenação da conduta humana, seja no seu aspecto individu-al (Ética), seja coletivo (Direito, Política) são de suma importância, porque além de direcionar a relação de uma organização com a sociedade, beneficiam ao próprio businessman na cons-trução de sua vida pessoal e de sua carreira profissional.Tendo em vista a importância desse tema e a ca-rência de obras nesse sentido, a proposta deste curso é apresentar de maneira simplificada, sem

Filosofia do Direito

perder a profundidade do conteúdo trabalhado, as principais concepções de Justiça, tanto em seu aspecto particular quanto geral, bem como a disciplina do agir humano, demonstrando a importância do conhecimento das ideias desses pensadores para o líder de hoje, percorrendo desde os primeiros filósofos na Grécia até os pensadores contemporâneos.Trata-se de uma obra que interessa não somen-te às lideranças organizacionais, mas também àqueles que buscam uma compreensão mais profunda sobre a posição do homem na socie-dade e sobre o papel das organizações da socie-dade civil e do Estado na criação de uma socie-dade livre, justa e igualitária.

Introdução ao pensamento filosófico

IntroduçãoA Filosofia do Direito é uma parte da Filosofia. Assim, para se entender

adequadamente o movimento dos pensadores que articularam conceitos e ideias referentes à categoria Justiça, é importante antes esboçar algumas considerações preliminares acerca da Filosofia, para depois ser possível entrar com mais segurança no terreno da Filosofia do Direito.

Algumas questões são importantes: o que é Filosofia? A Filosofia é uma ciência? Qual a sua função? Qual o método que utiliza para analisar seus con-teúdos? Como a Filosofia pode contribuir com o Direito? Essas são questões que tentaremos responder neste primeiro capítulo.

O leitor verá no decorrer dos capítulos que os autores possuem visões muitas vezes até opostas em relação à mesma matéria, o que poderia ser uma desvantagem à Filosofia, sob a argumentação de que nem ela é exata e nem ela é capaz de ter unanimidade naquilo que se propõe a responder. Contudo, isso não vem a ser muito importante, como demonstraremos mais adiante.

Primeiramente, para se entender adequadamente o que seria a Filosofia, é preciso vê-la em sua totalidade de movimento, ou seja, em todo o seu per-curso, e não se atendo a este ou aquele filósofo. Talvez a melhor maneira de entender esse conceito é voltando justamente ao momento de sua criação, no tempo dos filósofos pré-socráticos na Grécia Antiga, pois, como se verá, a tônica que gerou a Filosofia será a mesma que atravessará os séculos, qual seja: a Filosofia como admiração ao saber.

O primeiro pensador a empregar o termo filosofia foi Pitágoras, que juntou as palavras philos (amor) e sophia (saber), ou seja, o amor ao saber, à sabedoria. “O termo é deveras expressivo. Os primeiros filósofos gregos não concordaram em ser chamados sábios, por terem consciência do muito que ignoravam. Preferiam ser conhecidos como amigos da sabedoria, ou seja, filósofos”1.

1 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 5.

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Introdução ao pensamento filosófico

O historiador Diôgenes Laêrtios nos lembra ainda que para os gregos a sabedoria era considerada algo supremo, que somente os deuses eram ca-pazes de possuir. Os homens nunca conseguiriam alcançar o completo en-tendimento do mundo, das coisas, do Universo, da vida, dos deuses ou de si mesmos.2 Contudo, isso não era desmotivador, pois a exigência de aprender, aliada à humildade de reconhecer que pouco se sabe, era a força que impul-sionava aqueles pensadores ao desconhecido, a tentar chegar cada vez mais próximo da sabedoria. Por certo, Pitágoras foi um dos maiores filósofos, pois essa noção de humildade e necessidade de conhecer nasceu da sua incrível estupefação diante das maravilhas que a natureza punha diante de si. Não por acaso essa estupefação o conduziu a pesquisar a Matemática, a Ética, a Teologia, a Astronomia, a Música, e tantas outras matérias do conhecimento. O completo entendimento de todo esse universo que nos rodeia é possível somente aos deuses, de forma que buscarmos avançar cada vez mais nesse anseio é também trilhar um caminho divino.

Na Metafísica3, Aristóteles afirma que a Filosofia era a admiração pelo saber, e por isso mesmo aqueles que amavam os mitos eram filósofos, porque nutriam nos mitos essa admiração pelo saber. Os mitos não eram, para os gregos, apenas um conjunto de crenças, aspectos culturais e religiosos de um povo, eram manifestações do íntimo humano na tentativa de explicar os fenômenos naturais, sociais, o cosmos, os deuses. Portanto, os mitos também exprimiam a admiração ao saber, e por isso é imprescindível que partamos deles para depois explorarmos a história do pensamento filosófico.

Nossa pesquisa pretende apresentar a concepção de Justiça na história da Filosofia, de forma que o princípio originário da Filosofia não se torna aqui tão fundamental. Partiremos do fato de que, mesmo já tendo sido despertado o pensamento acerca da verdade e a busca pela explicação da estruturação do Universo e da vida em geral anteriormente em outros povos, é somente com os gregos que ela recebe seus maiores contornos racionais, isto é, um estudo que diga como, de onde, e por que as coisas são como são. E essa forma de pensar é criação própria dos gregos.4 Nas culturas anteriores aos gregos,5 o pensamento e a verdade não eram refletidos e construídos pelo indivíduo comum, membro da comunidade, mas por sentenças irrefutáveis proferidas pelos grandes sacerdotes religiosos. Os gregos, por outro lado, trouxeram o estudo da verdade para a dimensão humana, para dentro da vida humana, e, como se verá, ainda mais além, para dentro da vida política.

2 LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2. ed. Tradução de: KURY, Mário da Gama. Brasília: Editora da UNB, 1987. p. 15.

3 ARISTÓTELES. Metafí-sica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentários de Gio-vanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. v.2.

4 Algumas reflexões sobre a importância da filosofia grega como perí-odo único na história do pensamento podem ser encontradas na obra de Hirschberger: HIRSCHBER-GER, Johannes. História da Filosofia na Antigui-dade. 2. ed. Tradução de CORREIA, Alexandre. São Paulo: Herder, 1969.5 Entre elas citamos os egíp-cios, indianos e os povos da antiga Mesopotâmia.

Introdução ao pensamento filosófico

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A filosofia grega, em sua forma racional e sistemática mais bem acabada, surge juntamente com as cidades-Estado. O filósofo surge junto com o polí-tico. As culturas anteriores possuíam a figura do político e suas organizações político-jurídicas, mas não eram analisadas sistematicamente e racional-mente tal como faziam os gregos. A Política como ciência, que concebia as formas de organização social, de governo, do problema da validade e da im-posição das leis, de quem e como deve governar, tudo isso é criação grega. Os gregos se atreveram a trazer o conceito de Justiça para o âmbito público, social, do cidadão da polis.

Contudo, a passagem do pensamento religioso para o filosófico se dá também na passagem do mito à Filosofia. Antes da Filosofia, eram os mitos que traziam os grandes ensinamentos morais e de conhecimento, de forma que entender essa mudança é entender o nascimento da racionalidade filosófica.

A passagem do mito à FilosofiaPrecisar o limiar transitório entre o pensamento mítico e o pensamento

filosófico é uma tarefa difícil. De fato, conforme atesta Aristóteles no primei-ro livro da Metafísica, os mitos gregos já eram um modo de se identificar o mundo racionalmente.

Sobre essa questão, conforme destaca Muñoz:

[...] a fronteira entre o pensamento mítico e o pensamento racional nunca foi inteiramente clara. Muitos procuraram indicar que as explicações dos primeiros “cientistas” eram o prosseguimento, se não em termos de conteúdo, ao menos de forma, das explicações oferecidas pelos mitos. As aspas são necessárias, pois suas investigações diferem daquelas produzidas pela comunidade científica de nossos dias por um aspecto crucial: não havia uma pesquisa experimental sistemática e, em muitos casos, sequer rudimentar. Se as fronteiras entre o pensamento racional e o pensamento mítico que o precedeu não são nítidas, havendo inúmeros pontos de continuidade entre ambos, isso não significa, porém, que não haja ruptura entre eles. O pensamento racional, aplicado para oferecer explicações sobre o funcionamento da comunidade política e do cosmo, é algo totalmente novo, ainda que sob alguns aspectos avance as características do pensamento mitológico que o precedeu. A originalidade desse novo pensamento [...] é algo fundamentalmente grego, inexistente até então.6

Entre os fatores que favoreceram os gregos a serem os protagonistas dessa importante passagem destaca-se que estes não possuíam um siste-ma religioso absolutamente definido, baseado em um livro de revelações ou com dogmas essenciais que somente eram dominados pela classe sa-cerdotal. Os principais escritos que fundamentavam sua religião eram os de Homero e Hesíodo, donde extraíram seus modelos de vida, matéria de refle-

6 MUÑOZ, Alberto Alonso. O nascimento da filoso-fia. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto (Coord.). Curso de Filosofia Polí-tica: do nascimento da Filosofia a Kant. São Paulo: Atlas, 2008. p. 57.

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Introdução ao pensamento filosófico

xão e estímulo à fantasia. Além disso, os sacerdotes gregos possuíam uma atuação muito mais limitada se comparados com os do Oriente.

Ademais, conforme assevera Reale, existem características que diferen-ciam os poemas homéricos daqueles que estão nas origens dos vários povos; nessas obras já se manifestam algumas das características do espírito grego que criaram a Filosofia. Primeiramente, os poemas gregos não se fixam na descrição do monstruoso e do disforme, ao contrário, se estruturam segundo o sentido da harmonia, eurritmia e proporção, do limite e da medida, uma constante da filosofia grega que erigirá a medida e o limite até mesmo em princípios metafisicamente determinantes. A arte da motivação também é uma constante; não se relata somente uma cadeia de fatos, mas busca-se em nível fantástico-poético as suas razões, busca-se determinar pelo mito a relação entre causa e efeito. Terceira característica é o retrato da realidade em sua totalidade de forma mítica. A posição do homem no universo estava presente no mito e será assunto marcante do pensamento filosófico, dessa vez sob bases puramente racionais.7

O contexto de liberdade em que os gregos viviam é também um dos ele-mentos que influenciaram a passagem do mito à Filosofia. Não havendo uma estrutura formal religiosa que limitasse a participação do cidadão, bem como a própria concepção do homem como essencialmente cidadão, são fatores que favoreceram a gênese do pensamento baseado na razão. Além disso, as condições socioeconômicas também foram importantes, tanto que a Fi-losofia nasce antes nas colônias, primeiramente na Ásia e depois na Magna Grécia, sul da Itália, para depois atingirem a península do Peloponeso.

Considerado todo esse contexto favorável, a passagem do mito à Filoso-fia, operada por Tales de Mileto, é marcada pela substituição da crença nas explicações dos relatos míticos pela compreensão racional do homem e do mundo que o rodeia. Os mitos já eram explicações do homem e do mundo baseadas em um profundo saber, contudo suas explicações das causas que geravam todos os efeitos no mundo baseavam-se na crença em um modelo que representava aquela situação.

A Filosofia, avançando nessa estrada já aberta, apresentou de modo nítido desde seu nascimento as seguintes características: quanto ao con-teúdo, busca explicar a totalidade das coisas, toda a realidade; quanto ao método, busca-se uma explicação puramente racional da totalidade, o que

7 REALE, Giovanni. Histó-ria da Filosofia Antiga: das origens a Sócrates. Tradução de: PERINE, Mar-celo. São Paulo: Loyola, 1993. v.1. p. 19-20.

Introdução ao pensamento filosófico

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vale para a Filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos; por fim, o escopo da Filosofia, seu caráter é puramente teórico, ou seja, contem-plativo, visa simplesmente à busca da verdade por si mesma, por isso é livre, não está vinculada a qualquer utilização pragmática, apesar de que de suas conclusões influencia-se todo o mundo prático.8

Buscar as explicações de modo racional não significa que a Filosofia disso-cie-se por completo do divino, posto que, através dela, possibilita-se alcançar a dimensão do divino racionalmente. Conforme Aristóteles, pode-se chamar a filosofia de “divina”, pois além de levar o homem a conhecer Deus, possui as mesmas características que deve possuir a própria ciência que Deus possui, a desinteressada, livre, total contemplação da verdade.9

Constata-se, portanto, que a busca da explicação do mundo através do logos é o que há de revolucionário com o nascimento da Filosofia, e quem pela primeira vez buscou conhecer a realidade desse modo, sendo, portanto, o primeiro filósofo, foi Tales de Mileto, o qual concluiu que a água é o ele-mento essencial de todas as coisas da natureza.

Após essa exposição acerca do surgimento da Filosofia, é importante agora apresentá-la de forma geral em suas principais disciplinas, que depois se aprofundam e fundamentam as grandes discussões sobre a verdade, o conhecimento, a Justiça, entre outras categorias fundamentais. Esse estudo introdutório é essencial para se compreender os pensamentos elaborados pelos filósofos que serão trazidos durante o restante do livro.

As principais disciplinas da FilosofiaA Filosofia pode ser dividida em três grandes disciplinas, partindo destas

todas as demais áreas do conhecimento filosófico e, por conseguinte, também todo o conhecimento científico, dada sua vinculação genealógica com a Filosofia. Estas três grandes áreas são a Ontologia, a Teoria do Conhe-cimento e a Ética.

A Ontologia10, estudo do ser, pode ser entendida como o estudo que busca conhecer o ser e seus modos. É a disciplina da Filosofia que busca identificar as essências dos seres e seus acidentes, aquilo que especifica qualquer coisa, individuando-a ante as demais, bem como os acidentes, os elementos que qualificam essa substância individuada. Trata-se da mais abstrata, porém mais

8 REALE, Miguel. História da Filosofia Antiga: das origens a Sócrates. p. 29.

9 ARISTÓTELES. Metafísi-ca. p.13.

10 Palavra composta pelas raízes gregas ontos, geniti-vo do particípio presente do verbo ser, e logos, ciên-cia, estudo.

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profunda das áreas da Filosofia, pois estuda os elementos que constituem toda a realidade, estando além dela. Por tal motivo, a Ontologia ocupa-se também do estudo das causas dos fenômenos, até encontrar um princípio primeiro, de onde partem todos os demais, sendo chamada, assim, de Filosofia Perene.

Outra grande área de estudo da Filosofia é a Teoria do Conhecimento11, também chamada de Epistemologia12 e de Gnoseologia13, que se ocupa do modo de conhecimento do homem e de como esse conhecimento poderá ou não ser considerado verdadeiro, científico (episteme), caracterizando-se nessa segunda situação meramente como uma opinião (doxa). Busca-se en-contrar a evidência que ateste a veracidade de um conhecimento, pressu-posto essencial para se fazer Filosofia ou ciência.

Além da compreensão de que o homem existe (Ontologia) e conhece (Teoria do Conhecimento), a Filosofia também compreende a Ética14, a qual enfrenta o problema de qual comportamento se deve adotar. A Ética é a doutrina da Filosofia que, centrada no próprio homem enquanto indivíduo e enquanto sociedade, e sua conduta, pressupondo a orientação da conduta humana a um padrão ideal, tem em vista simplesmente o agir ideal ou o al-cance de uma finalidade maior.

A Filosofia Prática, ramo onde encontra-se a Ética, compreende ainda a Filosofia Política, parte da Filosofia que orienta e organiza a vida do homem em sociedade, e a Filosofia do Direito, que toma para si a investigação sobre a Justiça, a legitimidade das normas jurídicas e a relação entre o Direito e os indivíduos e instituições.

A Filosofia do DireitoSendo o Direito uma realidade social, presente em qualquer sociedade e

cultura, não pode a Filosofia prescindir de analisar esse importante fenôme-no.15 A Filosofia do Direito não é disciplina jurídica, mas a aplicação da Filo-sofia ao campo jurídico. Miguel Reale delimita muito bem a diferença entre a pesquisa jurídica e a pesquisa filosófica do Direito:

Enquanto que o jurista constrói a sua ciência partindo de certos pressupostos, que são fornecidos pela lei e pelos códigos, o filósofo do Direito converte em problema o que para o jurista vale como resposta ou ponto assente e imperativo. Quando o advogado invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente tranquilo, porque a lei constitui ponto de partida seguro para o seu trabalho profissional; da mesma forma, quando um juiz prolata a sua sentença e a apoia cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar

11 Termo comumente usado na língua portu-guesa, francesa (théorie de la connaissance) e na língua alemã (Erkenntnis-theorie). Os pensadores ingleses utilizam comu-mente o termo Episte-mologia (Epistemology), enquanto os italianos e alguns franceses preferem a designação Gnoseologia (gnoseologia no italiano e gnoséologie no francês). (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. Tradução de: BOSI, Alfredo. Revisão da tradu-ção e tradução dos novos textos de: BENEDETTI, Ivone Castilho. São Paulo: Martins Fontes, 2003.)

12 Do grego episteme conhecimento, ciência) e logos. Esse termo é mais utilizado pelos filósofos ingleses.

13 Do grego gnosis (conhe-cimento) e logos. Termo mais usado na língua italiana.

14 Do grego ethos, cos- tume.

15 “O Direito é realidade universal. Onde quer que exista o homem, aí existe o Direito como expressão de vida e de convivência. É exatamente por ser o Direito fenômeno univer-sal que é ele suscetível de indagação filosófica. A Filosofia não pode cuidar senão daquilo que tenha sentido de universali-dade. Essa a razão pela qual se faz Filosofia da Vida, Filosofia do Direito, Filosofia da História ou Filosofia da Arte. Falar em Vida humana é falar também em Direito, daí se evidenciando os títulos existenciais de uma Filo-sofia Jurídica. Na Filosofia do Direito deve refletir-se, pois, a mesma necessi-dade de especulação do problema jurídico em suas raízes, independentemen-te de preocupações ime-diatas de ordem prática.” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. p. 10)

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cumprindo sua missão de ciência e de humanidade, porquanto assenta a sua convicção em pontos ou em cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios. O filósofo do Direito, ao contrário, converte tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por que o juiz deve apoiar-se na lei? Quais as razões lógicas e morais que levam o juiz a não se revoltar contra a lei, e a não criar solução sua para o caso que está apreciando, uma vez convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da lei vigente? Por que obriga a lei? Como obriga? Quais os limites lógicos da obrigatoriedade legal?16

A Filosofia do Direito, portanto, tem a missão de examinar criticamente o Direito, analisar as temáticas jurídicas não do ponto de vista legal ou ju-risprudencial, mas do universal, do próprio conhecimento. A Filosofia Jurí-dica busca encontrar a verdade no Direito, aqueles princípios primeiros que depois dão fundamento a todas as construções jurídicas. Pode-se dizer que o filósofo vê o Direito de cima, de uma certa distância, ou seja, ele não está envolvido no fenômeno jurídico, não dentro do problema, é antes um atento observador externo, que racionalmente e cautelosamente percebe as incoe-rências e formula os fundamentos que são capazes de contribuir com a evo-lução da estruturação do Direito.

O Direito examina e formula suas leis, suas normas jurídicas. Mas a Filoso-fia examina esse exercício, a Filosofia busca o conceito de Direito, contextu-alizando sua função ao movimento social e cultural da humanidade. A Filo-sofia tem prerrogativa para afirmar se uma lei é justa ou injusta, porque sua crítica não parte de um dado posto, mas do universal, ela entende o Direito como um enorme processo histórico, que se adéqua de modo diferente a cada espaço e tempo. O direito positivo, o direito natural, o ordenamento jurídico, a necessidade, função, surgimento e conceito do Direito, tudo isso é temática da Filosofia do Direito.

Ademais, a ciência que dá fundamento ao Direito, a Ética, é disciplina es-sencial ao pensamento filosófico. O agir humano sempre foi objeto de dis-cussão da Filosofia. Como deve agir o homem? Quais os critérios que deter-minam um agir correto? Há leis que regulam a existência? Qual a finalidade da ação humana?

Desde Sócrates não há mais como separar o Direito da Ética. A Ética está acima das normas e leis jurídicas, ela é o exame das ações humanas. A Ética tem prerrogativa para analisar o Direito, porque a Ética estuda a natureza humana, e tenta formular princípios para que o indivíduo se desenvolva e se realize tendo em vista essa natureza humana. Com efeito, o Direito deve prestar atenção à Ética, pois ambos trabalham com o agir humano e todas as consequências que advêm disso para a sociedade.

16 REALE, Miguel. Filoso-fia do Direito. p. 10.

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Introdução ao pensamento filosófico

Filosofia e businessSe a Filosofia pode examinar criticamente e universalmente o Direito,

dando contribuições diferenciadas através da Filosofia do Direito, é certo que ela pode realizar o mesmo em outros campos da vida humana, e aqui incluímos o mundo do business. Os filósofos, quando buscam entender a na-tureza humana, dando princípios para a sua realização existencial, em geral não se esquecem de um importante aspecto: o econômico. Da poesia ho-mérica aos contemporâneos, os pensadores colocam a questão econômica como essencial para o indivíduo conduzir bem a sua vida. Nesse sentido, este livro pretende trazer implicações ao business de cada pensador, ou seja, quais ideias formuladas pelos filósofos podem contribuir com a atividade do empresário e do empreendedor no aspecto tanto da Ética quanto da funda-mentação do Direito, que tenha relação com as questões que envolvem o mundo dos negócios.

No decorrer dos capítulos o leitor acompanhará que, por exemplo, nossas concepções de atitude no trabalho foram objeto de discussão por filósofos como Hegel e Marx, e mesmo de Hesíodo, um poeta que se tornou célebre quase 3 000 anos atrás. Além disso, as questões econômicas sempre foram te-máticas entendidas como essenciais para a manutenção do bem-estar social.

Por fim, destaca-se que a Filosofia trabalha a reorientação da racionalidade, de forma que entendimentos adequados permitem desenvolver intuições e raciocínios que conduzem melhor a vida cotidiana. O business também é ra-cionalidade. E a Filosofia, desde seus primeiros pensadores gregos, foi criada para, acima de tudo, ajudar o homem a pensar e agir melhor. Daí a valiosa contribuição filosófica: “A Filosofia reflete no mais alto grau essa paixão pela verdade, o amor pela verdade que se quer conhecida sempre com maior per-feição, tendo-se em mira os pressupostos últimos daquilo que se sabe”17.

A Filosofia como admiração ao saberA Filosofia nasce da perplexidade. Portanto, são justamente os grandes

questionamentos que suscitam o progresso filosófico, a íntima necessidade de penetrar cada vez mais a essência do problema.

A Filosofia, por ser a expressão mais alta da amizade pela sabedoria, tende a não se contentar com uma resposta, enquanto esta não atinja a essência, a razão última de um dado “campo” de problemas. Há certa verdade, portanto, quando se diz que a Filosofia é a ciência das causas primeiras ou das razões últimas: trata-se, porém, mais de uma inclinação ou orientação perene para a verdade última, do que a posse da verdade plena.18

17 REALE, Miguel. Filoso-fia do Direito. p. 5.

18 REALE, Miguel. Filoso-fia do Direito. p. 6.

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Essa paixão pela verdade se torna uma incansável busca por encontrar as causa primeiras de todas as coisas, aquelas causas que respondem os gran-des questionamentos e ainda geram todos os outros questionamentos.

A necessidade de responder com maior perfeição é aquilo que gera o caminho histórico percorrido pela Filosofia. A história nos coloca novas in-terrogações, seja por determinados eventos, por mudanças culturais, por avanços das ciências, por mudanças de concepções das próprias pessoas, todo esse universo influencia o exercício do pensar filosófico, exigindo do filósofo novas respostas, novas indagações. Podemos nos arriscar a dizer que enquanto o homem não conhecer com plenitude a verdade última das coisas, a Filosofia prosseguirá sua marcha histórica.

A história da Filosofia tem o grande valor de mostrar que esta não pode se estiolar em um sistema cerrado, onde tudo já esteja pensado, muitas vezes antecipadamente resolvido. Quando um filósofo chega ao ponto de não ter mais dúvidas, passa a ser a história acabada das suas ideias, o que não quer dizer que não gere a Filosofia nos espíritos uma serenidade fecunda, apesar da incessante pesquisa19.20

E este é o grande mérito da história da Filosofia: apresentar o panorama geral da estupefação diante do saber, da necessidade existencial, talvez até metafísica, de o homem conhecer, chegar mais próximo da verdade última das coisas, inclusive aquilo que é idêntico, útil e funcional.

Acompanhando o percurso histórico, o que nos ocupa aproximadamen-te 28 séculos de esforço intelectual em busca da verdade e do que é justo, adequado, de direito, nos ajudará ainda a pensar melhor quais são as nossas grandes questões contemporâneas, a que nível chegamos nas problemáti-cas metafísicas, e, já que esta obra é voltada ao Direito: como é o Direito atual? E como ele deve ser no futuro?

Talvez nenhuma frase seja tão ilustrativa para essa condição humana como aquela empregada por Aristóteles para abrir a obra que, para ele, era dedicada ao conhecimento do saber supremo: a Metafísica. “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”21.

A filosofia gregaA admiração pelo saber tornou-se maior, sobretudo, com os gregos an-

tigos, que viviam um período de profunda busca pelo saber. Da Teologia à Política, passando pelas várias artes e ciências, tudo era objeto de grandes investigações e reflexões. Fervilhava o espírito crítico, reflexivo e investiga-

19 REALE, Miguel. Filoso-fia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 8-9.

20 As palavras de Miguel Reale foram também pro-feridas com base na leitura de Karl Jaspers, que foi um importante pensador exis-tencialista que se dedicou a várias áreas do conheci-mento. Na Filosofia escre-veu também uma impor-tante obra de introdução ao pensamento filosófico: JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófi-co. Tradução de: HEGEN-BERG, Leônidas; MOTA, Octanny Silveira da. São Paulo: Cultrix, 1993.

21 ARISTÓTELES. Metafí-sica. p. 3.

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dor da natureza no espírito grego. Esse momento, talvez único na história humana, surge juntamente com a figura do homem político. O fato de tanto a Filosofia como a Política terem nascido no mesmo período e no mesmo lugar merece algumas reflexões, pois ajuda a demonstrar que, no fundo, os gregos viviam uma época de liberdade de pensamento.

Filosofia e Política na Grécia AntigaPara se compreender o percurso histórico da Filosofia do Direito, acom-

panhando a construção de conceitos como Direito, Justiça, Liberdade, Cida-dania, Ética, Igualdade, é importante partir desde o momento que lançou as bases para a formação da racionalidade ocidental: o mundo grego. Pois foi na Grécia que surgiram os primeiros filósofos do Ocidente, que influenciam inclusive os pensadores contemporâneos.

Os primeiros filósofos foram os chamados pré-socráticos, que se tornaram célebres por realizarem grandiosas argumentações sobre a ordem e o prin-cípio das coisas, pela tentativa de explicar a natureza, a existência humana, e mesmo questões divinas e transcendentais. É com os pré-socráticos que a Ontologia se origina. Esses filósofos serão estudados no Capítulo III do nosso trabalho.

Antes, é importante compreender os movimentos que influenciaram e contribuíram enormemente para a criação do pensamento filosófico. Pois os pré-socráticos não poderiam conceber seus grandes conceitos sem a influ-ência dos poetas, em especial Homero e Hesíodo. Depois haveriam outros poetas que também seriam importantes, como Tirteu, Arquíloco, Alceu, Safo e inclusive o grande Sólon, que também foi célebre político ateniense.22

Para se compreender a origem da filosofia grega, é preciso, além de re-correr aos poetas, buscar também entender o processo cultural e político enfrentado pelos gregos, que apresentaremos brevemente neste capítulo, juntamente com a exposição dos poetas. Não há como separar, a filosofia grega, em sua forma racional e sistemática mais bem acabada, surge jun-tamente com as cidades-Estado. O filósofo surge junto com o político. As culturas anteriores possuíam a figura do político e suas organizações polí-tico-jurídicas, mas não eram analisadas sistematicamente e racionalmente tal como faziam os gregos. A Política como ciência, que concebia as formas de organização social, de governo, do problema da validade e da imposição das leis, de quem e como deve governar, tudo isso é criação grega. Não há

22 Para maiores informa-ções sobre esses outros poetas, interessante obser-var o capítulo dedicado a eles na Paideia, de Jaeger, e também a obra de Do-naldo Schüler, Literatura Grega (SCHÜLER, Donaldo. Literatura Grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.).

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entre os hebreus, entre os egípcios, entre os chineses ou entre os indianos um estudo tão sistemático da Política como aquele realizado por Aristóteles, nem uma preocupação da união indissolúvel entre política e educação como faz Platão na República. Os gregos se atreveram a trazer o conceito de Justiça para o âmbito público, social, do cidadão da polis, situação essa impensável no mundo anterior, que remetia a uma divindade transcendente toda a pro-blemática da Verdade e da Justiça, de forma que o homem, como adorador dos deuses, existia para praticá-la e aperfeiçoá-la no mundo terreno, sem contudo ter poder para contestá-la ou mesmo modificá-la. No mesmo pe-ríodo e no mesmo lugar nasceram a Filosofia e a Ciência Política. Vejamos agora como se dá esse processo e a que tal ponto o político contribui com o surgimento do pensamento filosófico.

A Justiça como questão filosóficaCom a explosão do comércio marítimo e a expansão dos domínios gregos,

a vida pública tornou-se cada vez mais importante com as discussões polí-ticas e jurídicas ocupando grandes centros de debate da polis. O novo cená-rio ampliou os horizontes dos gregos, sendo propício para o surgimento de novas ideias e discussões sobre questões éticas, jurídicas e políticas. Embora a esfera religiosa jamais tenha deixado de influenciar a sociedade grega, vi-via-se um momento em que o homem cada vez mais ousava a contrair para si diversos assuntos.

Entre essas ideias ousadas está a alta estima dada tanto pelos poetas como depois também pelos filósofos acerca dos conceitos de Direito e Jus-tiça, e a atribuição da importância dessas categorias para a organização da comunidade. A grande novidade trazida pelos gregos está no fato de conce-ber a comunidade como uma organização essencialmente humana, tendo suas concepções e determinações político-jurídicas como materialização da vontade de seus próprios cidadãos.

Ainda que nos séculos seguintes a administração do Direito permanecesse nas mãos dos nobres, que controlavam leis não escritas e aplicadas a toda a população, a nova concepção humanista de Direito permitiu aos cidadãos em geral contestarem esse abuso político por parte dos magistrados. A oposição entre nobres e cidadãos livres acabou gerando o movimento de positivação dos direitos, em que as leis passaram de não escritas a escritas, de forma que poderia valer igualmente para todos. “Direito escrito era direito igual para

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todos, grandes e pequenos”23. Nesse processo, os grandes porta-vozes da vio-lência causada pelos magistrados foram justamente os poetas, em particular Hesíodo. A luta pela diké seria então a luta pela aplicação do Direito, o que envolveria inclusive a luta de classes. “Hoje, como outrora, podem continuar a ser os nobres, e não os homens do povo, os juízes. Mas estão submetidos no futuro, nas suas decisões, às normas estabelecidas na diké”24. Contudo, inclu-sive antes de Hesíodo, a vontade de conceber a Justiça como uma fonte indis-pensável para a organização social já se via nos poemas homéricos.

Homero representa ainda o início desse longo processo que é a passa-gem do Direito de sua condição essencialmente divina para uma construção humana. Em Homero, o Direito é designado com o termo themis, um “compên-dio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologi-camente significa ‘lei’”25. A themis era concedida por Zeus aos reis nos tempos homéricos.26 Tão antigo quanto o conceito de themis é também o de diké.

O conceito de diké não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto themis. Dizia-se das partes contenciosas que “dão e recebem diké”. Assim se compendiava numa só palavra a decisão e o cumprimento da pena. O culpado “dá diké”, o que equivale originariamente a uma indenização, ou compensação. O lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, “recebe diké”. O juiz “reparte diké”. Assim, o significado fundamental de diké equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. Significa ao mesmo tempo, concretamente, o processo, a decisão e a pena.27

Nesse sentido, enquanto a themis está relacionada à autoridade da lei, à sua validade e aplicabilidade a todos os cidadãos, a diké se refere à sua pró-pria aplicação. Na themis observa-se muito mais um princípio primeiro da fundamentação jurídica, da qual se provém a legitimidade para imposição da lei, enquanto que na diké se vê o próprio movimento de realização do Direito, e por isso abrange na mesma palavra as ideias de processo, sentença e pena. Ademais, a aproximação da diké a uma ideia de equidade, em que o Direito se reparte de forma justa a todos os cidadãos, tornou-se o fundamen-to principal para as lutas de todos em nome de seus direitos. Como cada um possui parte nessa ideia de Justiça, possuem também o direito de lutar por seu direito. Dessa forma, a diké representa também o direito de cada cidadão a lutar contra a hybris, que por sua vez equivale à ação contrária ao Direito.

Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se poderá apoiar quem for prejudicado pela hybris – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária ao Direito. Enquanto themis refere-se principalmente à autoridade do Direito, à sua legalidade e à sua validade, diké significa o cumprimento da Justiça. Assim se compreende que a palavra diké se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do Direito a uma classe que até então o recebera apenas como themis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à diké tornou-se de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.28

23 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego. p. 134.

24 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Formação do Homem Grego, p. 134.

25 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Formação do Homem Grego, p. 134.

26 Exemplo é esta cita-ção da própria Ilíada: “Os reis, alunos de Zeus, reu-nidos à volta do Atrida [...]” (HOMERO. Ilíada. 5. ed. Tradução de: NUNES, Carlos Alberto. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. Canto II, verso 445, p. 67.). Os reis, alunos de Zeus, seriam os nobres chefes guerreiros gregos, reu-nidos à volta do Atrida Agamemnon.

27 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 134-135.

28 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 135.

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Na diké o cidadão encontrava o fundamento para poder reclamar a Justi-ça, o que significa enfrentar o próprio Direito estabelecido naquele momen-to. O Direito dessa forma já não era algo consolidado como uma manifes-tação divina, que não podia ser contestado pelo cidadão comum, mas um movimento, em que a luta pelo Direito29 era também parte desse processo. Como síntese, o Direito entre os gregos tornou-se um processo de formação, o homem desenvolvia-se ao mesmo tempo em que desenvolvia a ideia de Direito.

A igualdade é o conteúdo principal da diké, o objetivo de se dar a cada um o que é seu, uma prerrogativa de fazer todos os cidadãos livres iguais perante o Direito. A partir daí a igualdade ocuparia sempre lugar central nas discussões jurídicas e políticas, chegando a influenciar os grandes filósofos Platão e Aristóteles: “A exigência de um Direito igualitário constitui a mais alta meta para os tempos antigos”30.

Nessa nova concepção de Direito, os nobres tiveram que também se sub-meter a igualdade de todos. Essa igualdade, contudo, não poderia ser resu-mida numa igualdade de todos perante a lei, mas sim da própria acepção de Direito. O Direito assemelha-se a uma medida para decidir as questões entre o “‘meu’ e o ‘teu’”31, de tal forma que se possa fixar o Direito, atribuindo a cada um o que é seu. Essa mudança, visando uma igualdade jurídica e política, operou-se ao mesmo tempo em que se delimitava, na esfera econômica, a fixação de medidas e pesos para o intercâmbio de mercadorias. Assim como a economia fixava a medida e o peso, o Direito fixava as normas. Logo, trata- -se de um movimento amplo no qual o que se apresenta é a própria forma-ção do povo grego, um desenvolvimento cultural sem o qual seria impen-sável o surgimento, por exemplo, da democracia, que para ser instituída de-pende do princípio de que todos são iguais perante a lei. “Procurava-se uma ‘medida’ justa para a atribuição do Direito e foi na exigência de igualdade, implícita no conceito de diké, que se encontrou essa medida”32.

A delimitação de medidas foi essencial para a construção do Direito, não somente no sentido positivo, da produção e aplicação de normas, mas também na própria esfera moral, na delimitação e fixação de condutas que não poderiam ser praticadas. Desde os tempos primitivos encontram-se na literatura e na mitologia menções a delitos, como o assassínio, o adultério, o furto e o rapto.33 Essa delimitação de condutas, de limites às ações humanas, inclusive anteriores à fixação de normas, provém de um conceito ligado à ideia de diké, o termo díkayosine, que não possui uma tradução moderna

29 Percebe-se já entre os gregos o fundamento principal para a luta pelo Direito como condição para a existência do pró-prio Direito, antecipando em muitos séculos a con-cepção do Direito como luta de Jhering.

30 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Formação do Homem Grego, p. 136.

31 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 136.

32 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 136.

33 Ésquilo narra em Prometeu Acorrentado a história do furto do fogo dos deuses por Prometeu, que entregou aos mortais, assim como na Ode a De-méter vemos o relato do rapto de Perséfone por Hades, e inclusive a con-clusão do Direito como uma medida justa, em que a vítima permaneceria metade do ano na Terra e a outra metade no mundo dos mortos, gerando as quatro estações. Percebe- -se como as noções de medida e delimitação já estavam desde sempre presentes na mentalidade grega.

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equivalente. A dikayosine representa a medida abstrata, mas amplamente efetiva, que constituía o conteúdo essencial das primeiras leis escritas.

O novo termo proveio da progressiva intensificação do sentimento da Justiça e da sua expressão num determinado tipo de homem, numa certa arete. Originariamente, as aretai eram tipos de excelência que se possuíam ou não. Nos tempos em que a arete de um homem equivalia à sua coragem, colocava-se no centro esse elemento ético, e todas as outras excelências que um homem possuísse se subordinavam a ele, e deviam pôr ao seu serviço. A nova dikayosine era mais objetiva. Tornou-se a arete por excelência, desde o instante em que se julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e injusto. Pela fixação escrita do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações, ganhou conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como mais tarde a “virtude cristã” consistiria na obediência às ordens do divino.34

A dikayosine, nesse sentido, era a expressão positiva e mesmo ética de um ideal de homem, de um elevado tipo de homem dotado de certas virtudes, tal como o guerreiro antigo deveria guiar-se pela coragem. As leis do Estado não seriam obedecidas simplesmente por sua autoridade coercitiva, mas por serem a expressão desse sentimento de Justiça, dessa fixação do justo e do injusto ao qual o homem grego se submetia. As leis escritas refletiam os costumes, que por sua vez representavam esse critério criado num processo histórico e espiritual da Justiça como uma virtude. Nessa perspectiva, o Di-reito era resultado da Justiça, da medida e do critério que delimita o justo e o injusto, e seguir o Direito significaria viver conforme esse ideal virtuoso de homem. Delineia-se aqui o essencial papel que cumpre o ideal de formação de homem na cultura grega, em que mesmo o Direito deveria ser utilizado para a formação do homem, do cidadão, do membro da polis. Com a Justi-ça sendo inserida como virtude central da polis, abandonou-se a concepção anterior da valentia como arete máxima, advinda da sociedade espartana, voltada principalmente às guerras, mas abriu a necessidade de cultivar um novo tipo de homem, aquele relacionado essencialmente às atividades pú-blicas, sejam elas jurídicas, políticas, artísticas ou intelectuais em geral. Não era mais a guerra o centro das disposições de vontade do homem grego, mas a cultura e a organização social. “O conceito de Justiça, tida como a forma de arete que engloba e satisfaz todas as exigências do perfeito cidadão, supera naturalmente todas as formas anteriores”35.

A Justiça como virtude cardeal, que resume todas as demais, tal como afir-mariam posteriormente Platão e Aristóteles, apresenta essa nova forma de pensar criada pelo homem grego, derivada do crescimento tanto econômico como cultural da polis. E esse desenvolvimento está ligado principalmente ao surgimento do Estado constitucional, isto é, do período antigo da forma-ção do homem grego em que as cidades passaram a ser reguladas por leis

34 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 137-138.

35 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 139.

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escritas, por uma constituição. A constituição garantia o princípio da igual-dade a todos os cidadãos e simbolizava o ideal de homem daquele povo; ela era regulada e aplicada conforme a arete que se desenvolvia, sua medida de Justiça estava na dikayosine. Desse processo advém todo o valor de o homem grego sentir-se parte de seu Estado; seu sentimento pátrio estava em viver conforme aquelas virtudes preceituadas por ele e inseridas no espí-rito da constituição. Também por esse motivo o Estado deveria promover a educação a todos os jovens, um ensino público, porque somente assim teria a certeza de que a juventude seria formada dentro do seu ideal de homem, conforme as virtudes que determinavam o conteúdo de sua constituição. O ensino público não existia simplesmente por ser uma obrigação estatal, mas por essa necessidade pedagógica.36 É por essa razão que Platão e Aristóteles afirmam que cada Estado, pela lei, expressa e interioriza nos seus cidadãos o seu ideal de homem. Para os gregos, como se vê, a legislação possuía por conteúdo sua mais elevada condição. Sua existência não estava apenas na regulamentação da sociedade, mas essencialmente na educação, no cultivo de seu tipo ideal de homem.

A herança de normas jurídicas e morais do povo grego encontrou na lei a sua forma mais universal e permanente. Platão culminou a sua obra, de Filosofia Pedagógica com a sua conversão em legislador, na última e maior das suas obras; e Aristóteles conclui a Ética com o apelo a um legislador que lhe realize o ideal. A lei é também uma introdução à Filosofia, na medida em que, entre os Gregos, a sua criação era obra de uma personalidade superior. Com razão, o legislador era considerado educador de seu povo, e é característico do pensamento grego que ele seja frequentemente colocado ao lado do poeta, e as determinações da lei junto das máximas da sabedoria poética. Ambas as atividades são estreitamente afins.37

Ética e Direito entrelaçam-se a tal maneira que quase passam a entender- -se como sinônimos. Pela Ética, o Estado tinha a garantia à educação de seu Direito, de suas leis; e pelas leis, pelo Direito, o Estado garantia também a formação do seu ideal de homem, cultivado naquelas virtudes que sua Ética consagrou. Nessa comunidade ética, o cidadão vivia conforme a vida políti-ca, cívica, em que o cidadão existia no Estado e participava do bem comum, dos interesses gerais da polis. Essa existência pública e política imprimia no espírito do cidadão um dever ético de realizar e viver também para a evolu-ção do Estado, da comunidade. Como o Estado lhe concedia inúmeros direi-tos, oriundos da antiga diké e o seu princípio da igualdade, entre eles a edu-cação pública, era seu dever contribuir com o crescimento do Estado. Dessa necessidade resultou o crescimento intelectual, profissional e espiritual do homem grego. Em sentido prático, isso inclui a grande transformação na so-ciedade grega, a passagem da antiga sociedade rural dos tempos hesiódicos

36 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 141.

37 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 143.

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à uma polis urbana, voltada essencialmente aos interesses citadinos. A habi-litação profissional não era apenas dever por ser o trabalho uma atividade que desenvolve a si próprio, mas também para contribuir com a polis. Se o ci-dadão recebia a educação, sentia-se no dever de tornar-se cada vez mais um melhor profissional. O Estado é a essência do cidadão grego para onde diri-gem todas as suas atividades espirituais. Para esse modelo de homem, fazer parte do Estado era sentimento de felicidade, de viver conforme o ethos.

É um cosmos legal segundo esse velho modelo helênico – onde o Estado seria o próprio espírito e a cultura espiritual visaria o Estado como seu fim último – o que Platão esboça nas Leis. Ali ele define como oposta ao saber especializado dos homens de ofícios, negociantes, merceeiros, armadores, a essência de toda a verdadeira educação ou paideia, a qual é educação na arete que enche o homem do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina a mandar e obedecer, sobre o fundamento da Justiça.38

A educação política, ou ainda a techné política, não pode ser ensinada como se faz com o ensino das profissões especializadas em uma atividade, porque nesses casos exige-se sobretudo a parte técnica, enquanto que na arte política não basta o caráter técnico, os saberes teóricos e práticos, mas a educação do ethos, da arete. Não se pode medir o cidadão pelo seu conheci-mento, mas pelo seu caráter, pelo cultivo que fez das virtudes e da educação político-humanista concedida pelo Estado.

Apresentado esse relato histórico, passaremos agora a tratar das caracte-rísticas essenciais de nossos estudos nas poesias de Homero e Hesíodo.

Origens da filosofia grega: os poetas Homero e Hesíodo

HomeroHomero é certamente o maior nome da literatura grega. As duas epo-

peias que a sua autoria são creditadas, Ilíada e Odisseia39, repercutirão na formação do espírito grego como nenhum outro autor tão longe alcançou. A Ilíada imortalizou-se como, possivelmente, a mais impressionante guerra já retratada literariamente. A força com que o autor apresenta os emocionan-tes combates, as inesperadas e precisas intervenções divinas, os dramas dos heróis envolvidos, as grandes questões que movimentam ambos os exérci-tos combatentes (gregos e troianos), tudo isso torna a Ilíada obra de caráter único na literatura universal.

38 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 146-147.

39 A discussão sobre se Homero de fato escre-veu ambas as epopeias já alcança mais de um século. Entre os eruditos surgem as mais diversas opiniões, desde aqueles que afirmam que Homero sequer existiu, e que as epopeias seriam compi-lações de autores poste-riores de versos passados oralmente de geração a geração; outros afirmam que ele existiu sim ,mas que apenas escreveu ou compilou uma das poe-sias, já que ambas contém construções e estilos literários diferentes; por fim, existem aqueles sim acreditam na real autoria de ambas as epopeias ao poeta Homero. Para este trabalho, tais questões não chegam a ser de vital importância, pois o essen-cial aqui é captar a influ-ência dessas epopeias no espírito grego, como au-xiliaram nas construções dos conceitos de Ética, Justiça, Direito etc.

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A Ilíada apresenta a narração da célebre Guerra de Troia40. Páris, príncipe troiano, raptou Helena, esposa de Menelau, famoso monarca grego, levan-do-a para suas terras. Decidido a recuperar sua esposa, Menelau pede auxí-lio ao seu irmão Agamemnon. Em pouco tempo, a raiva que se apossou de Menelau tomou conta de todo o povo grego, e os grandes chefes e guerrei-ros de todos os reinos foram convocados a participarem da guerra contra os troianos. Entre esses ilustres guerreiros estavam, além de Menelau e Agame-mnon, o enorme e forte Ajax, o sábio e velho Nestor, o astuto e protegido dos deuses Ulisses e o célebre personagem principal da obra, Aquiles, filho da deusa Tétis.

A Ilíada inicia-se já no nono ano de combates, no famoso episódio da dis-cussão entre Agamemnon e Aquiles, que resultou na retirada do segundo do campo de batalha. São 24 cantos, que terminam com os funerais de Heitor, o troiano que matou Pátroclo, melhor amigo de Aquiles, e morto por este por vingança. A violência final de Aquiles é a explosão de sua ira, tema central de toda a obra. Aquiles estava fora das batalhas, foi apenas quando seu amigo morreu que violentamente retornou aos campos e vingou Pátroclo.

Já a Odisseia narra as aventuras enfrentadas por Ulisses em seu retorno após a Guerra de Troia. Ulisses comete um grande erro, devido à soberba, ao declarar não necessitar da ajuda dos deuses, o que irritou profundamen-te Posêidon, o deus dos mares. Diante disso, o deus decide causar o maior número possível de problemas ao herói, atrasando seu retorno em 10 anos. Entre as aventuras enfrentadas por Ulisses e sua tripulação estão a ilha do Ciclope, gigante de um olho só, a ilha de Circe, a feiticeira que transforma a todos em animais, as belíssimas sereias, que com seus cantos irresistíveis atraem todos os marinheiros à morte, o célebre estreito dos monstros de Posêidon, Cila e Caribdes, entre outros problemas naturais. Ao término da saga, Ulisses ainda precisa enfrentar os pretendentes de sua esposa, Penélo-pe, que tentavam usurpar sua mulher e o reino.

Acima expomos o resumo geral das obras. Agora apresentaremos algu-mas análises de como esses versos influenciam na Filosofia e no Direito.

Para Schüler, a Ilíada é produzida numa época em que o homem ainda não havia tomado completamente consciência de si mesmo, de forma que mais lhe impressiona as façanhas de heróis e deuses, no campo externo, que os dilemas psicológicos que aterrorizam a dimensão interna do indivíduo.

40 Aqui também os estu-diosos se dividem. Seria a Guerra de Troia apenas uma construção literária, uma epopeia elaborada para enaltecer o povo grego? Ou poderia de fato ter acontecido? Algumas descobertas arqueológi-cas desde o século passa-do alimentam a discussão, abrindo a possibilidade de as famosas muralhas de Troia se localizarem no que hoje é território turco.

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Para esse autor, seria um período histórico em que o homem ainda se mara-vilhava com o mundo que o rodeia, entusiasmava-se por participar dele.41

Isso não significa que contornos psicológicos e pessoais não estejam pre-sentes na obra. Por exemplo, a epopeia inicia e termina com a ira de Aqui-les, a emoção que lhe impulsiona e dá a tônica dos relatos. A arrogância de Agamemnon nos primeiros cantos desperta preocupação e resistência em seus próprios aliados, ao verem como ele enfrentou e permitiu facilmente que o valente Aquiles se retirasse do combate. Até mesmo os deuses, como já é frequente nas lendas gregas, não escapam de questões psicológicas, opi- niões e preferências que por vezes os aproximam dos humanos. Logo no início, Apolo, o deus Sol, lança epidemia aos gregos, devido à rejeição de Agamemnon em devolver sua escrava Criseida, filha de Criseis, sacerdote de Apolo.42 Depois, vendo Aquiles, seu filho, sendo humilhado perante os gregos, Tétis implora a Zeus que dê a vitória aos troianos, até que se arrependam e peçam perdão a Aquiles.43 Também por várias vezes Atena é enviada ao campo de batalha, ora aconselhando um ou outro guerreiro. Logo no canto II, inclusive, vemos Zeus tendo dificuldades para dormir diante das reflexões que lhe vinham à mente, provocadas pelo inesperado pedido de Tétis.

Contudo, é somente na Odisseia que se verão sinais mais evidentes dos dilemas humanos, vestígios de aspectos psicológicos que circundam aquela obra; na Ilíada, não obstante, ainda se presencia tão somente o fascínio do homem pela descoberta de si mesmo e do mundo. Na Ilíada não se pensa em limites para a ação heroica, mas na vontade e no ato de conquistar por inteiro esse mundo. É nesse cenário que surge a figura do herói, a clássica imagem da poesia homérica. Num primeiro momento, como o próprio Schü-ler observou, é importante notar que no proêmio, o objeto principal da nar-ração da Ilíada, a causa primeira da história heroica, é a ira de Aquiles, e so-mente secundariamente aparece como causa a vontade de Zeus. O homem ainda não havia olhado para dentro de si completamente, de forma que seus limites não estavam completamente estruturados. Não tão dependente de Zeus, o homem aparecia a si mesmo como ilimitado, e nisso consistia a faça-nha heroica. O significado de colocar a causa principal do ciclo da Ilíada na ira humana, e não na vontade divina, revela que o destino, ainda que existen-te na cultura helênica, não absorvia completamente o homem, de forma que suas ações e resultados eram responsabilidades suas.

Também situa-se aqui o episódio do Canto II, em que Zeus envia um sonho a Agamemnon, na forma do confiável Nestor, no qual este aconselha o herói

41 Sintaticamente o objeto (ira, o herói, Ílion) precede o sujeito. A aten-ção, tanto a do poeta como a do ouvinte, está presa no objeto. O objeto mantém o sujeito oculto. Vive-se num período em que o homem ainda não tomou inteira consciência de si mesmo. Entusiasma- -se pelo grande espetácu-lo do mundo. Fascinam-no as obras dos deuses e dos heróis. Sente prazer em nomear o mundo rico que se desdobra diante de seus olhos. E não se apercebe de si. Não lhe ocorrem suas dúvidas, dores ou conflitos pessoais. Não olha para dentro de si mesmo. O mundo o absorve intei-ro. Na cultura em que o homem só tem olhos e ou-vidos para o mundo e para o outro, nasce a epopeia com as estupendas faça-nhas dos heróis e deuses. (SCHÜLER, Donaldo. A Construção da Ilíada: uma análise de sua elabo-ração. 2. ed. Porto Alegre: LP&M, 2004. p. 13.)

42 “O coração indignado, se atira dos cumes do Olimpo; atravessado nos ombros leva o arco e o carcás bem lavrado. A cada passo que dá, cheio de ira, ressoam-lhe as flechas nos ombros largos” (HOMERO. Ilíada. 5. ed. Tradução de: NUNES, Carlos Alberto. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. Canto I, versos 44-46, p. 44.).

43 “Se já algum dia, Zeus pai, te fui grata entre os deuses eternos, seja por meio de ações ou pala-vras, atende-me agora: honra concede a meu filho, fadado a tão curta existência, a quem o Atrida Agamemnom, rei poderoso, de ultraje ino-minável cobriu: de seu prêmio, ora, ufano, se goza. Compensação lhe concede, por isso, Zeus sábio e potente; presta aos Troianos o máximo apoio, até quando os Acaios distingui-lo retornem e de honras condignas o cer-quem”. (HOMERO. Ilíada, Canto II, versos 503-510, p. 54.)

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a invadir imediatamente Troia, pois aí teria a vitória. Porém, Agamemnon, após uma breve exaltação, deu-se conta da falsidade da mensagem, que na verdade tratar-se-ia de uma armadilha. Zeus preferia Aquiles a Agamemnon, e o chefe dos gregos era consciente disso. Os deuses sim interferem, mas os humanos são livres para aceitar ou mudar seus destinos.

Na exaltação do herói encontramos ainda outra característica marcante da poesia homérica, em especial a Ilíada: a presença do destino. Contudo, a ideia homérica de destino não se confunde com um ciclo fechado, em que a vida do indivíduo está previamente estabelecida. Para Homero, o destino, as moiras44, se assemelha a uma ordem superior em que não somente os huma-nos, mas inclusive os deuses submetem-se. E é por isso que tanto na Ilíada como na Odisseia, nem os deuses podem criar o destino por suas próprias vontades, mas agir e criar caminhos. Na ideia de destino dos gregos está aberta a responsabilidade do indivíduo, da livre-escolha, o homem pode criar uma nova via dentro do cenário predeterminado pelo destino, não é, portanto, um roteiro inflexível. Esse destino possui relação com a ordem das coisas, e aqueles que adentram seus mistérios são de fato os homens mais corajosos, heroicos e sábios.45

Nesse sentido, os poemas homéricos não estão situados tanto no conhe-cimento do homem a si mesmo, mas no desvelar de seu espírito impetuoso e heroico. A Homero não interessa tanto os dilemas que afetam a vida humana, embora reconheça que existam, mas a necessidade de estender o domínio do homem nesse mundo que serve de palco e cenário para conquistas. E é por isso que a figura que se glorifica é a do herói, que não pode temer o destino, nem enfrentar a ordem natural das coisas, mas adentrá-la, e ali criar a história. Homero cria um mundo limitado, mas que permite atitudes ilimitadas nesse círculo, ainda que o homem não possa tudo fazer, pode dentro do seu possí-vel atitudes heroicas. Homero “[...] louva e exalta o que no mundo é digno de elogio e de louvor. Assim como os heróis de Homero reclamam, já em vida, a devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a estima que tem direi-to, assim todo o autêntico feito heroico é sedento de honra”46. Como se vê, Homero enaltece e louva a atitude heroica, porque esta é digna de honra, de forma que o herói passa a constituir o ideal de homem para o grego em geral. As palavras de Homero ecoaram por toda a história helênica, transformando-o num educador de toda a Grécia. E a educação homérica47 baseava-se justa-mente na educação do herói, de sua honra e coragem, da sua nobreza de es-pírito ao deixar-se guiar pelas virtudes e atitudes de louvor, que somente o homem ativo e criador é capaz de realizar, ao contrário do herói passivo, que

44 Na mitologia grega eram as três Parcas, di-vindades do mundo dos mortos, governado por Hades, que fiavam o des-tino dos homens, e a qual-quer momento poderiam extinguir a vida de qual-quer mortal, bastando que para isso cortassem determinado fio.

45 A preocupação com o destino e com a ordem imanente do Universo inspiraria vários fenôme-nos sociais e religiosos no mundo grego, como as fa-mosas sentenças do Orá-culo de Delfos, a religião dos Mistérios de Elêusis e a seita órfica. Era comum a compreensão de que havia uma ordem natu-ral, na qual nem homens nem deuses poderiam escapar. O espírito grego aspirava a compreender essa realidade. Relembre-mos, também, que tanto Platão como Aristóteles situavam a máxima felici-dade na contemplação da realidade, no pleno enten-dimento do mundo.

46 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 68.

47 Posteriormente, na República, Platão direcio-nará diversas críticas a esse consenso de Homero como absoluto educador da Grécia. O argumen-to platônico baseia-se, essencialmente, na dis-sociação entre Estética e Ética na poesia homérica. Para Platão, a arte jamais poderia perder de vista seu objetivo pedagógico ligado à Ética, e as diver-sas passagens tanto da Ilíada como da Odisseia retratando heróis em seus momentos de comidas, bebidas e sexo não seriam louváveis eticamente falando. Platão argumen-ta colando trechos dos poemas. Para maiores aprofundamentos na crí-tica platônica à estética homérica, ver: RODRIGO, Lidia Maria. Platão contra as pretensões educativas da poesia homérica. Re-vista Educação e Socie-dade, v. 27, n. 95, maio/ago. 2006.

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somente deixa viver, conforme foi citado anteriormente. Jaeger, ao comentar a proposta pedagógica de Homero, assinala que “[...] os mitos e as lendas heroi-cas constituem um tesouro inesgotável de exemplos e modelos da nação, que neles bebe o seu pensamento, ideais e normas para a vida”48.

Esse ideal de herói se tornaria, posteriormente, uma espécie de lei para o cidadão grego, pois a poesia e o mito, antes mesmo da lei, foram as primei-ras manifestações da educação. Antes mesmo de o membro da polis obe-decer o Direito, ele já havia se habituado a cultivar-se no ideal de homem difundido pela poesia homérica, que tem na ira de Aquiles sua mais alta representação.

A Ilíada celebra a glória da maior aristeia da guerra de Troia, o triunfo de Aquiles sobre o poderoso Heitor, em que a tragédia da grandeza heroica votada à morte se mistura com a submissão do homem ao destino e às necessidades da sua própria ação. É o triunfo do herói, não a sua ruína, que pertence à autêntica aristeia.49

E é nessa ação ousada e deliberada, de colocar a própria vida em risco para elevar-se à glória heroica, em que consiste toda a força educadora da Ilíada. Os gregos não viam em Aquiles um herói comum, realizador de gran-des feitos mas que perece no ato de tentar mais uma ação, mas o mais nobre dos heróis, aquele que é capaz de antecipadamente saber que o maior dos feitos exige também o maior dos sacrifícios. E é essa moral, centrada essen-cialmente na figura heroica, no Aquiles da Ilíada homérica, que consolida-rá historicamente o ideal de homem da cultura grega. A moral grega não estava preocupada com o cidadão comum, desejante tão somente de uma vida prazerosa e tranquila, como teria sido a vida de Aquiles, mas a do herói, e mais do que o herói, aquele herói que é capaz de entregar a própria vida pelo ato heroico. Pátroclo não morreu devido à luta, mas à ociosidade de Aquiles; é na luta e na realização que se situa a ação heroica.

O heroísmo e o destino do herói ligado à morte50 revelam ainda outro traço marcante de Homero, que influenciaria o pensamento grego em geral: a ideia de uma lei superior e universal. Há um ritmo uniforme, permanente, em que todo o movimento se realiza por ação própria, e nisso entram as ações de homens e deuses, heróis e não heróis, trata-se de uma lei maior que governa a vida em geral, e que se situa no limiar da Moral e da Ética. Homero preenche seus poemas com temas morais e naturalistas, descreve não somente as lutas, mas também a natureza, o cenário dos episódios, e a passagem dos tempos, demonstrando que além das façanhas humanas existe um limite imposto por uma lei universal. E dentro desse limite situa-se a Ética, como ciência que estuda a conduta humana.

48 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 68.

49 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 75.

50 Contudo, há uma pas-sagem importante na Odisseia, de um diálogo entre Ulisses e a psykhé de Aquiles no mundo dos mortos. Nesse trecho, constante no Canto XI, a sombra de Aquiles decla-ra, quase num alento de saudade, que as honras e lembranças dos grandes feitos só possuem valida-de entre os vivos, e tudo não passaria de sombras entre os mortos. Por esse pensamento, qualquer vida, ainda que miserável, poderia ser entendida como superior à morte. Seria preferível uma vida longa e sem glórias a um reinado no mundo dos mortos. Tal interpretação modificaria a visão de um Aquiles resoluto por uma vida trágica. (ASSUNÇÃO, Teodoro Rennó. Ulisses e Aquiles repensando a morte – Odisseia, XI, 478-491 v. Revista Kriterion, 44, n. 107, jun./2003.)

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Para Homero, como para os gregos em geral, as últimas fronteiras da Ética não são convenções do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por esse amplo sentido da realidade, em relação ao qual todo “realismo” aparece como irreal, que se baseia a força ilimitada da epopeia homérica.51

Há uma ligação do humano com o divino que permeia os poemas homé-ricos, tanto nas inúmeras interferências dos deuses na Guerra de Troia como nas inspirações provocadas por Atena na viagem de Ulisses. Homero não está preocupado em invadir o mundo interior de suas personagens, explo-rando suas emoções, mas as ações, os movimentos do mundo exterior que constituem a realização heroica. Cada ação, mesmo a cólera de Aquiles, tem dois lados: um humano, a motivação psicológica da personagem, e outro divino, que em geral se baseiam em vontades dos deuses ou na causa pri-meira de tudo, a vontade de Zeus, o deus supremo. Há, portanto, uma ordem estável, que na Ilíada chega inclusive a ser descrita na forma de concílios entre os deuses, que, ainda que em alguns momentos se revele conflituo-sa entre as próprias figuras divinas, demonstra como além do protagonista existe sempre uma outra ordem a julgar e decidir o futuro.

Também a Odisseia é repleta delas. Toda a saga de Ulisses é permea-da tanto pelo dilema psicológico, a sua soberba contra os deuses, como também pela vontade divina, de Posêidon, em prejudicar o herói. Contu-do, nesse limiar do humano com o divino existe uma ordem que supera inclusive tal ligação. Por exemplo, mesmo Posêidon desejando aniquilar Ulisses por sua soberba, assim não pode fazê-lo, pois o destino do herói já estava traçado, já estava determinado que ele deveria retornar à sua terra natal. Nesse contexto, Posêidon poderia apenas causar-lhe mais problemas e atrasar sua viagem.

Tal situação poderia parecer ao leitor contraditória, pois para quê Posêi- don provocaria tantos problemas se Ulisses estava destinado a triunfar? Porém, foi somente quando alcançou o limite de seu sofrimento existencial é que Ulisses compreendeu que era sua soberba quem lhe provocava tantos problemas. Ao realizar a passagem de humildade tornou-se novo homem, mais preparado para os novos desafios. Há uma justiça superior em Homero, que liga o humano ao divino, e inclusive apresenta consequências além dessa dimensão. Tal Justiça surge ainda em sua mais profunda acepção, aquela em que a Ética se preocupa com a formação do homem.

É nesse sentido espiritual, que inclusive antecipa muitas ideias da filosofia grega em geral, que se encontra a ideia de Justiça em Homero. A justiça ho-mérica está estabelecida num patamar elevado em que se liga o humano ao

51 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 78.

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divino, nos limites éticos da ação humana que, embora motivada a expandir- -se ao infinito e à arete do herói, chega sempre a um momento que a ordem natural e superior das coisas, a lei universal, põe um fim. A ação Ética não pode ser separada do movimento natural do Universo, da fluidez do mundo exterior. O homem grego cultuado por Homero é aquele que dentro desse cenário aparentemente limitado é capaz de, através das virtudes do herói, realizar e construir uma vida sublime. A Justiça está nesse agir ético, é uma concepção de Justiça que se define a partir de um ideal de homem formado pelo cultivo das virtudes do herói, tendo a coragem como cerne. Nesse sen-tido, a Justiça é uma virtude interna, e sua prática não é uma obediência às leis, mas o ato de se guiar pelas virtudes éticas do herói e do ideal de homem grego, do homem nobre.

HesíodoDepois de Homero houve outro grande poeta que influenciaria bastante

a formação do ideal grego de homem justo e ético: Hesíodo. Contudo, havia diferenças marcantes entre os dois. Hesíodo vivia em um tempo que não era tão dourado quanto o de Homero. Se em Homero era essencial cantar as façanhas dos heróis, em Hesíodo era mais importante cantar mensa-gens que ajudassem o povo agricultor e trabalhador a levar uma vida mais digna. Em Hesíodo se vê o segundo grande educador, agora não dos heróis e nobres, mas do povo e dos cidadãos comuns. O ideal de heroísmo trazido por Homero persiste, mas agora não revelado apenas as lutas e guerras gran-diosas, mas também no árduo trabalho cotidiano.

De Hesíodo nos chegaram duas poesias: a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias. A primeira narra em forma de mitos a origem genealógica dos deuses, desde os deuses primordiais, que participaram da criação do Universo segundo a visão religiosa da Grécia Antiga, e depois as gerações seguintes de deuses, até os deuses olímpicos, como Zeus, Posêidon, Hades, Hera, Atena, entre outros. Também apresenta a lenda que dá origem aos humanos: o roubo do fogo sa-grado por Prometeu e a criação de Pandora, a primeira mulher.

Já Os Trabalhos e os Dias possui conotação bastante diversa. Aqui, é o pró-prio poeta, falando em primeira pessoa, com o dom da palavra e da verdade inspirados pelas Musas52, que procura dizer algumas verdades ao seu irmão Perses, com quem o poeta discute alguns bens a serem distribuídos em su-cessão. Hesíodo procura demonstrar ao seu irmão como Zeus deseja a Justi-

52 Na mitologia grega, as Musas eram as nove filhas da união de Zeus com Mnemósina, que personi-fica a Memória. Nasceram logo após a grande vitó-ria dos deuses olímpicos contra os titãs, para justa-mente cantar as enormes façanhas dos vencedores. “As musas são apenas as cantoras divinas, cujos coros e hinos alegram o coração dos Imortais, já que sua função era presidir ao pensamento sob todas as suas formas: sabedoria, eloquencia, persuasão, história, mate-mática, astronomia. Para Hesíodo, são as Musas que acompanham os reis e ditam-lhes as palavras de persuasão, capazes de serenar as querelas e restabelecer a paz entre os homens. Do mesmo modo, acrescenta o poeta de Ascra, é suficiente que um cantor, um servidor das Musas celebre as faça-nhas dos homens do pas-sado ou os deuses felizes, para que se esqueçam as inquietações e ninguém mais se lembre de seus so-frimentos. [...] Embora em Hesíodo já apareçam as nove Musas, seus nomes e funções variam muito, até que, na época clássi-ca, seu número, nomes e atributos se fixaram: Calíope, preside à poesia épica; Clio, à história; Érato, à lírica coral; Euter-pe, à música; Melpômene, à tragédia; Polímnia, à retórica; Tália, à comédia; Terpsícore, à dança; Urânia, à astronomia”. Etimologi-camente, Música significa “o que concerne às Musas” e Museu é o “templo das Musas”, ou o local onde alguém se adestra nas artes. (BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimo-lógico. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. v. II. p. 150-151.)

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ça e pune os injustos, de como a Justiça está pautada na medida, e a hýbris (excesso) é aquilo que os deuses não aceitam. O poeta também fala a seu irmão do valor do trabalho, que representa a vitória pessoal dentro de um caminho honesto. Tudo isso traz o poeta através de relatos míticos: as duas lutas, Prometeu e Pandora, e o mito das cinco raças.

É, portanto, em Os Trabalhos e os Dias que concentraremos os nossos es-tudos, sobretudo na importância que o poeta dedicou às categorias justiça e trabalho, e como elas se entrelaçam numa conotação pedagógica para seu povo.

Em Hesíodo revela-se a segunda fonte de cultura: o valor do trabalho. O título de Os Trabalhos e os Dias dado pela posterioridade ao poema rústico didático de Hesíodo, exprime isso perfeita, mente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do Homem. Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho. A vida despreocupada da classe senhorial em Homero não deve induzir-nos em erro: a Grécia exige dos seus habitantes uma vida de trabalho.53

Hesíodo centra seus esforços na formação do cidadão comum, o cida-dão de seu tempo, ligado a uma época ainda agrária da história helênica. A região grega não possui um solo rico, os benefícios que se podem tirar dele somente surgem se arrancados mediante o trabalho árduo, uma verdadeira luta do homem com a natureza. Hesíodo narra a “idade do ferro”, um período distante dos tempos dourados, e que em sua passagem cronológica teve como resultado a “subversão do direito, da moral e da felicidade humana nos duros tempos atuais”54. A passagem da história das cinco idades do mundo, que Hesíodo narra em Os Trabalhos e os Dias, revela esse sentimento pessi-mista que tem na idade do ferro seu ápice.55 Existiram cinco raças de huma-nos: a raça de ouro, a raça de prata, a raça de bronze, a raça dos heróis e a raça de ferro. Cada raça possui uma vida mais breve e mais sofrida, mais abalada pelas misérias do mundo do que a raça anterior.

Ainda assim, esses camponeses a quem Hesíodo se dirigia de modo algum devem ser confundidos com sujeitos incultos. Na Grécia hesiódica, em particular a Beócia, região onde vivia o poeta, ainda não existiam as gran-des metrópoles. As cidades eram ainda bastante rurais, o que não impediu que a população já cultivasse o espírito político, ético e jurídico. Na região da Beócia os cidadãos reuniam-se em grande número nas cidades para discu-tir as questões políticas, e impedir a opressão das classes mais elevadas da sociedade. Exemplo disso está no poema de Hesíodo, em que o autor critica

53 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 85.

54 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 87.

55 Um rápido resumo das cinco raças é importante também para compreen-der a diferença de “eras” que Hesíodo via na sua, em comparação àquela narrada por Homero. A primeira raça é a de ouro, nela os homens viviam com os deuses, e por isso não conheciam miséria nem dor. A segunda raça é a de prata, bastante inferior à primeira, pois aqui os homens vivem 100 anos como crianças junto às mães, e logo quando alcançam a ado-lescência morrem porque não conseguem conter a louca hýbris dentro de si, o excesso provocado pelas paixões arrebatado-ras. A terceira raça é a de bronze, dedicada às prá-ticas de guerra e à violên-cia; trabalham o bronze na confecção de armas, e vivem e morrem lutan-do; a quarta raça é a dos heróis, dos semideuses, que perecem como heróis mas depois suas almas habitam tranquilas a Ilha dos Bem-Aventurados; aqui se situam os heróis da Ilíada, por exemplo, e por isso a poesia homérica situa-se nessa era; por fim, a quinta raça é a do ferro, aquela em que vive Hesío- do, quando os homens são obrigados a trabalhar durante toda a vida para não morrerem de fome e miséria. (LAFER, Mary de Camargo Neves. Co-mentários. In: HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Tradução de: LAFER, Mary de Camargo Neves. São Paulo: Iluminuras, 1996. p. 79-80.)

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severamente o seu irmão Perses, que entregava a vida à preguiça, à inveja e às reclamações.56

Em outra passagem, não menos incisiva, o poeta denuncia os corruptos juízes de seu tempo, utilizando-se de uma fábula, a do gavião e do rouxinol. Essa fábula abre a seção de seu texto intitulada “A Justiça”:

Agora uma fábula falo aos reis mesmo que isso saibam. Assim disse o gavião ao rouxinol de colorido colo no muito alto das nuvens levando-o cravado nas garras; ele miserável varado todo por recurvadas garras gemia enquanto o outro prepotente ia lhe dizendo: “Desafortunado, o que gritas? Tem a ti um bem mais forte; tu irás por onde eu te levar, mesmo sendo bom cantor; alimento, se quiser, de ti farei ou até te soltarei. Insensato quem com mais fortes queira medir-se, de vitória é privado e sofre, além de penas, vexame.57

É uma crítica feroz de Hesíodo, que tornando-se porta-voz de seu tempo denuncia a opressão que vivia grande parte da população diante daqueles que mantinham os poderes políticos e econômicos. A denúncia é pontual, direta aos corruptos. Tal crítica não pode ser resumida a uma classe da comuni-dade, mas a todos aqueles indivíduos que detêm mais poder e representação, sejam posições sociais, jurídicas, econômicas, políticas, e por essa vantagem se aproveitam e brincam com as vidas dos demais indivíduos tal como o gavião brinca com o rouxinol. Outra mensagem importante nessa citação é que Hesí-odo aconselha a não medir-se com aqueles considerados mais fortes, pois se assim como o rouxinol nada pode fazer com o gavião, um homem comum só tem a perder se decidir enfrentar alguém de maior poder e influência social. Hesíodo reprova o caminho dos conflitos e das intrigas, e aconselha a todos a percorrerem o caminho do trabalho, que é mais digno, honesto, e os frutos são merecidos, pois são conquistados pelo próprio esforço e mérito, e não exige a necessidade de se medir com indivíduos mais poderosos.

O leitor percebe então como a Ética de Hesíodo distancia-se da ética homérica por tentar situá-la num plano mais terreno, material, diferente da grandiosidade da Ilíada e da Odisseia, que buscam um ideal elevado de homem, talvez difícil de ser alcançado. O ideal de Hesíodo relaciona-se dire-tamente à situação histórica de seu povo, tem efeitos práticos imediatos, é a luta cotidiana contra o solo, contra a natureza, contra a opressão, é a luta dos cidadãos comuns pela aplicação do Direito. Nesse sentido, Hesíodo diferen-cia-se ainda mais de Homero, sua poesia abandona a objetividade da epo-peia e encarna o ideal de seu povo, passando a defender o Direito e atacar a injustiça em primeira pessoa.58

Tal como o poeta da Ilíada e da Odisseia, Hesíodo também concebe o Direito e a Justiça como bens divinos, relacionados a Zeus, e as injustiças

56 Vejamos um trecho de Hesíodo: “trabalha, ó Perses, divina progênie, para que a fome te de-teste e te queira a bem coroada e veneranda De-méter, enchendo-te de alimentos o celeiro; pois a fome é sempre do ocioso companheira; deuses e homens se irritam com quem ocioso vive”. (HESÍ-ODO. Os Trabalhos e os Dias, p. 45.)

57 HESÍODO. Os Traba-lhos e os Dias, p. 39-40.

58 “Em Hesíodo introduz--se pela primeira vez o ideal que serve como ponto de cristalização a todos esses elementos e adquire uma elabora-ção poética em forma de epopeia: a ideia do Di-reito. A propósito da luta pelos próprios Direitos, contra as usurpações do seu irmão e a venalidade dos nobres, expande-se no mais pessoal dos seus poemas, “Os Erga”, uma fé apaixonada pelo Direito. A grande novidade dessa obra está em o poeta falar na primeira pessoa. Abandona a tradicional objetividade da epopeia e torna-se porta-voz de uma doutrina que maldiz a injustiça e bendiz o di-reito. É o enlace imediato do poema com a disputa jurídica sustentada contra o seu irmão Perses, que justifica essa ousada ino-vação. Fala com Perses e dirige a ele admoesta-ções. Procura convencê-lo de mil maneiras de que Zeus ampara a justiça, ainda que os juízes da Terra a espezinhem, e de que os bens mal adqui-ridos nunca prosperam”. (JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a Formação do Homem Grego, p. 91.)

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terrenas como meros fatos existenciais humanos. Hesíodo se põe como in-terlocutor das Musas, e não o autor propriamente dito, de forma que em várias partes de seu poema acompanha-se prodigiosas preces a Zeus e ar-gumentos tentando convencer Perses da condição divina da justiça, por ser esta obra do senhor do Olimpo.

O fato de se pôr ainda em primeira pessoa revela esse caráter apelativo, de compreender os Os Trabalhos e os Dias não somente como poema didático, mas também como clamores de todo um povo por Justiça. A veemência com que Hesíodo maldiz a injustiça e as condutas de Perses corroboram essa ideia.

Àqueles que a forasteiros e nativos dão sentenças retas, em nada se apartando do que é justo, para eles a cidade cresce e nela floresce o povo; sobre esta terra está a paz nutriz de jovens e a eles não destina penosa guerra o longevidente Zeus: nem a homens equânimes a fome acompanha nem a desgraça: em festins desfrutam dos campos cultivados; a terra lhes traz muito alimento; nos montes, o carvalho no topo traz bálanos e em seu meio, abelhas; [...] Àqueles que se ocupam do mau excesso, de obras más, a eles a Justiça destina o Cronida, Zeus longevidente. Amiúde pega a cidade toda por um único homem mau que se extravia e que maquina desatinos. Para eles do céu envia o Cronida grande pesar: fome e peste juntas, e assim consomem-se os povos [...].59

Um governante corrupto, portanto, atrai sozinho toda a desgraça para o seu povo, pois pratica atos injustos que são odiados por Zeus. Hesíodo pontua aqui a responsabilidade maior dos líderes, que por representarem in-teresses de toda uma população não devem pensar somente em si mesmos, mas na coletividade, pois o fracasso dele é também fracasso de muitas outras pessoas. Hesíodo lamenta ter nascido em um momento histórico em que vigora unicamente o direito do mais forte, e não a justiça em seu sentido pleno e divino.

Essa passagem também pode ser transportada para a esfera jurídica da contemporaneidade, como crítica aos juízes que não exercem suas profis-sões com a devida ética que deles se espera. Em muitos casos impera o di-reito do mais forte, dos juízes que, comandando o Direito, fazem da Justiça um instrumento para alcançar seus interesses e satisfações. O gavião não está preocupado com a vida e destino do rouxinol, assim como muitos juízes não se interessam pela vida das partes as quais chegam até ele querendo resolver um conflito. Essa atitude autoritária reduz o Direito a um simples ins-trumento, longe de sua antiga acepção divina e nobre que tanto sustentou Homero ao enaltecer as virtudes do herói. Salienta-se, porém, que o objetivo de Hesíodo é pedagógico, é demonstrar a fraqueza do Direito de seu tempo, ensinando aos indivíduos comuns como interagir no processo judicial, e ten-tando romper com o autoritarismo dos juízes e senhores do poder.

59 HESÍODO. Os Traba-lhos e os Dias, p. 39-41.

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Ainda na temática Justiça, Hesíodo trabalha a questão do Direito na ideia de um processo. Nesse sentido, a luta divina dos heróis em Homero converte- -se na luta pelo Direito em Hesíodo, representada na forma do processo. Porém, a luta divina em Hesíodo é diferente daquela em Homero, no que con-cerne à participação dos deuses nos grandes eventos. Pois se na Ilíada e na Odisseia os deuses faziam intervenções no decorrer da história, favorecendo esse ou aquele personagem, Hesíodo se limita a rogar a Zeus para que se faça a justiça, pois sua condição humana, pertencente à raça de ferro, não lhe ga-rante acesso a esse nível de conhecimento, o das ações e intenções divinas. Os heróis podiam recorrer e pedir auxílio aos deuses, os homens da raça de ferro não, por se situarem numa posição inferior, se comparada às raças anteriores.

Entretanto, a ação judicial também pode ser compreendida como um con-flito divino. Ainda que de fato um processo não receba dos deuses a mesma atenção que merece uma epopeia, a ação judicial envolve a aplicação humana da Justiça, ou seja, a aplicação daquilo que deseja Zeus para os humanos. A poesia desenvolve-se na história de um processo resultante de uma herança, em que Perses, após subornar o juiz, consegue contrair para si mais da metade dos bens a que tinha direito. Hesíodo desfere severas críticas a Perses, devido à sua cobiça, assinalando ainda que o único caminho aceitável para a obten-ção de riquezas é pelo trabalho. “O trabalho é, de fato, uma necessidade dura para o Homem, mas uma necessidade. E quem por meio dele provê sua mo-desta subsistência recebe bênçãos maiores do que aquele que cobiça injusta-mente os bens alheios”60. O trabalho não constitui por si só uma benção, mas seus resultados consentem realização e paz. Ainda que árduos e cansativos, é somente pelo trabalho que o homem pode conquistar seus bens sem ferir a justiça divina implementada por Zeus. Esse caráter aparentemente contraditó-rio, de sofrimento de um lado e tranquilidade de outro, revela-se em Hesíodo também de forma religiosa e mítica, através do mito de Prometeu61. Para Hesí-odo, o sofrimento advindo do labor não pode ser algo natural ao homem, pois a dor e o sofrimento não condizem com a natureza divina, nem com a ordem das coisas. Sendo assim, o trabalho e o sofrimento só podem ter surgido em algum dado momento da história da humanidade.

Hesíodo aplica a forma “causal” de pensar, própria da Teogonia, à história de Prometeu, nos Erga, e aos problemas éticos e sociais do trabalho. O trabalho e os sofrimentos devem ter aparecido algum dia no mundo. Não podem ter feito parte, desde a origem, da ordem divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-lhes que encara do ponto de vista moral. Como castigo, Zeus criou a primeira mulher, a astuta Pandora, mãe de todo o gênero humano. Da caixa de Pandora saíram os demônios da doença, da velhice, e outros males mil que hoje povoam a Terra e mar.62

Como se percebe, o sofrimento provocado pelo trabalho advém desse fato anterior cometido, que possui também relação com o mundo jurídico

60 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 93.

61 O Prometeu Acorren-tado, de Ésquilo, depois receberia algumas modi-ficações em relação a essa primeira versão do mito que narra o roubo do fogo dos deuses e sua entre-ga aos mortais. Quando focarmos nos tragedió-grafos, realçaremos essas mudanças no mito.

62 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 95.

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– o roubo do fogo sagrado cometido por Prometeu. É devido a esse espírito religioso que o trabalho recebe a conotação de ser exaltado; para o homem comum trabalhar não significa somente o árduo esforço de se livrar de uma vida preguiçosa e desviante, mas também vivenciar a humildade dos mor-tais perante os deuses do Olimpo. Aqui clareia-se ainda mais o ideal peda-gógico da poesia hesiódica. O primeiro mito narrado nos Erga, a narração das cinco idades do mundo, com suas cinco raças, demonstra o processo de degeneração do homem através dos tempos, passando de uma raça feliz e sem a necessidade de recorrer ao trabalho até a raça de ferro, a humanidade do período em que vive Hesíodo. Esse mito depois é seguido pelo mito de Prometeu, que narra o início do trabalho e do sofrimento do homem.

Como síntese, então, Hesíodo vê o trabalho como uma condição sofrida e árdua aos humanos, mas que é a única via aberta pelos deuses à rique-za justa. Aquele que enriquece pelo próprio esforço é agraciado por Zeus, aquele que procura enriquecer com base na injustiça é desgraçado pelo senhor dos deuses. Concluindo essa análise, cita-se o final da obra:

Não faças maus ganhos, maus ganhos granjeiam desgraça.

Ama a quem te ama e frequenta quem te frequenta;

Dá a quem te dá e a quem não te dá, não dês.

Ao que dá se dá e ao que não dá, não se dá.

Doar é bom, roubar é mau e doador de morte;

Pois o homem que dá de bom grado, mesmo doando muito,

Alegra-se com o que tem e em seu ânimo se compraz.

Confiando na impudência, quem para si próprio furta,

Mesmo sendo pouco, deste se enrijece o coração,

Pois se um pouco sobre um pouco puseres

E repetidamente o fizeres logo grande ficará.

Quem acrescenta ao que já tem ardente fome afastará;

O armazenado em caso desassossego ao homem não traz;

Melhor é o de casa, o de fora danoso é.

Bom é pegar do que se tem; para o ânimo é provação

Precisar do que não há; convido-te a nisto pensar!

[...]

Facilmente imensa fortuna forneceria Zeus a muitos:

Quanto maior for o cuidado de muitos, maior o ganho.

Se nas entranhas riqueza desejar teu ânimo,

Assim faze: trabalho sobre trabalho trabalha.63 63 HESÍODO. Os Traba-lhos e os Dias, p. 49-51,

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Implicações de Homero e Hesíodo para o mundo do business

Nos poemas homéricos pode-se encontrar diversos exemplos de pers-pectivas de conhecimentos, habilidades e atitudes que possam implicar con-tribuições para o mundo empresarial. Os personagens da Ilíada e da Odisseia são ricas fontes para análises nesse sentido. Já foi comentado como Homero louva o heroísmo de seus personagens, como enaltece a coragem e as ações grandiosas, a capacidade de realizar grandes empreendimentos. Agamem-non, por exemplo, na Ilíada incorpora a figura do verdadeiro líder, aquele que é capaz de unir os vários lados de uma equipe, que é capaz de aprovei-tar ideias dos companheiros e estimulá-los a darem o melhor de si mesmos. Quando os gregos encontravam-se divididos entre a vontade de lutar de Ulisses e a retirada de Aquiles, acometeu-se o temor a todos os guerreiros de que não poderiam vencer os troianos sem a ajuda de Aquiles. Agamemnon é a racionalidade que não se deixa abater pelos maus momentos, é ele quem reúne os guerreiros e encoraja-os a seguirem lutando. Todo líder empresarial deve ter essa postura de Agamemnon, pois as crises e os momentos difíceis para a empresa vez ou outra aparecerão, e caberá ao líder não se permitir abater e enfraquecer a coragem dos demais colaboradores. O empresário, ainda, deve estar atento às intrigas dentro da organização, perceber quando um grande diretor não está querendo render aquilo que tem potencial para oferecer, como é o caso de Aquiles, e perceber como tudo isso pode influen-ciar nos desempenhos gerais da empresa. O empresário deve saber estimu-lar a todos os seus colaboradores e permanecer sempre desperto, para ante-cipar ou resolver possíveis intrigas que dividam o grande grupo.

Mas o grande personagem da Ilíada é certamente Aquiles. O protagonista inicia a história dividido em um grande dilema – não lutar e levar uma vida medíocre como imortal por toda a eternidade, ou avançar à batalha e nela morrer como herói. Após várias pressões de Agamemnon ele dirige-se a Troia junto aos demais, mas a princípio não participa dos combates. É somente quando o seu melhor amigo, Pátroclo, é morto em batalha por Heitor, que Aquiles abandona a inércia e enfrenta os inimigos. Mais tarde morrerá, atin-gido em seu ponto fraco, o calcanhar, contudo, sua morte sucede da forma como esperava, como o maior herói da Ilíada. Aquiles é o ponto mais alto da coragem heroica na Ilíada; embora todos os personagens sejam corajosos, é ele quem a conduz a seu ponto mais sublime. A eleição de morrer por uma

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causa heroica é certamente uma atitude corajosa, mas também demonstra intemperança, o vício de não medir as consequências de cada ação.

Como também foi comentado anteriormente, na Odisseia, Aquiles, já entre os mortos, trava um memorável diálogo com Ulisses, no qual afirma estar arre-pendido de ter morrido, pois as lembranças heroicas e as grandes façanhas só possuem validade entre os vivos, não no mundo dos mortos, e que uma vida miserável e longa vale mais que uma breve e heroica. Aquiles é paradoxal, um personagem complexo, capaz de passar de um extremo a outro sem grandes dificuldades. Da inércia completa à luta extrema, da imobilidade ao heroísmo, e deste para o arrependimento desolador. Aquiles possui grandes virtudes que podem ser aproveitadas pelo empresário, como sua elevada coragem, a audá-cia de querer ser um gigante eterno, mas também possui pontos fracos que precisam ser superados, em especial a sua intemperança, que lhe causa trans-tornos a ponto de retirar-lhe a racionalidade na maior parte das vezes. Aquiles não se guia pela razão, mas pelo impulso, pela emoção, e isso também foi sua ruína. O empreendedor precisa basear-se na racionalidade medida, propor-cional aos acontecimentos, deve entender cada momento, e decidir pela ação que melhor cabe naquele problema. O empresário não pode ser inerte, se re-cusando a lutar, mas também não pode se dedicar a um grande feito heroico, se isso depois significa sua ruína ou uma tragédia para sua organização. Não, o business exige racionalidade, medida, cálculo, saber pontuar o que é mais exato para cada momento.

Do lado dos troianos encontramos a figura de Príamo, pai de Heitor, que após ver o corpo de seu filho ser castigado durante 10 dias por Aquiles, desce de sua fortaleza e aceita a humilhação de suplicar ao inimigo para que lhe entregue o corpo de Heitor. Na cultura dos povos antigos, não ser sepultado era considerado como uma maldição64, e este era o grande temor de Príamo. Aquiles concedeu ao imploro de seu adversário, significando em seguida um período de trégua entre os combatentes. Isso demonstra um grande mérito na atitude de Príamo: a humildade. Homero nos revela aqui como mesmo em uma das mais sangrentas batalhas é possível haver o respeito e as regras entre os exércitos inimigos. Apresenta, ainda, como é necessário também saber negociar e por vezes até se humilhar a outrem, quando isso for preciso para se obter algo conveniente naquela situação. A humildade também é um ponto característico de Ulisses, na Odisseia.

A Odisseia é a saga de Ulisses, a narração de seu retorno a Ítaca depois dos perigos atravessados em Troia. Ulisses em várias passagens demonstra hu-

64 Conforme se verá na tragédia Antígona, de Sófocles, em que a proi-bição do sepultamento a Polinices, através da lei de Creonte, resultou em todo o conflito da obra.

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mildade, pois ao reconhecer não ter muitas ideias sobre que decisões tomar em determinadas situações, ouve seus companheiros. Ulisses não é o líder rígido e autoritário, mas um líder que sabe usar o conhecimento dos demais. O conhecimento, aliás, é ponto fundamental nessa história. Em várias oca- siões, por falta de conhecimento, Ulisses tem sua viagem atrasada, causando diversos problemas à tripulação, como ao não saber das dificuldades envol-vendo o canal a qual protegiam os monstros Cila e Caribdes. Também sua falta de conhecimento em relação às ilhas que se situavam entre Troia e Ítaca lhe causaram estorvo, como ao parar no palácio de Circe. A falta de conhe-cimento, aliada à falta de estratégia, são situações idênticas àquelas vividas pelos empresários que possuem domínio técnico de algumas atividades, ou não elaboram planejamentos consistentes a médio ou longo prazos. Não basta vontade, coragem, atitude, é preciso ter inteligência também. Embora Ulisses fosse homem bastante corajoso, lhe faltavam demasiados aspectos técnicos, que se fossem diferentes certamente resultariam numa viagem de volta muito mais rápida e tranquila.

Junto às atitudes e conhecimentos temos o terceiro termo do nosso con-ceito de competências: a habilidade. Ulisses possuía vários saberes práticos, quase intuitivos, que lhe possibilitavam tomar decisões urgentes de modo funcional e exato. Um exemplo disso é a passagem pelo estreito guardado pelas sereias. Ulisses sabia que todo homem a ouvir os lindos cantos das sereias instantaneamente se permitem seduzir e se entregam a elas, aban-donando a missão, e por vezes resultando na própria morte. Ainda assim, o canto das sereias precisaria ser ouvido, sabia Ulisses, porque é nele que elas entoariam também as palavras que descreveriam o caminho de volta para casa. Ulisses armou um plano, ordenando que todos os homens tampassem seus ouvidos, e somente ele pudesse ouvir. Para não se lançar junto a elas, mandou também que lhe amarrassem com várias e pesadas cordas junto ao mastro. Por fim, Ulisses ouviu os cantos e permaneceu no navio, conseguin-do as informações que necessitava. Esse é um saber prático, que chega in-tuitivamente na hora da necessidade. O empresário precisa ter esse tirocínio intuitivo, que ao ver o problema prontamente descobre a melhor saída para da dificuldade obter proveitos.

Por fim, outro ponto importante e que merece ser destacado em Homero é seu respeito pelo direito positivo e pelos critérios convencionais. Ulisses implementou instituições de direito positivo para sua ilha, de forma que ele sabia que ao retornar poderia encontrar pretendentes para sua esposa Pené-lope. Ulisses enfrentou esse problema com inteligência, utilizando primeiro

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de disfarces, para melhor conhecer seus inimigos. Também seu filho Telê-maco precisou conhecer as regras para evitar que os pretendentes se apro-ximassem de sua mãe. Igualmente o empresário é obrigado a conhecer as regras da sociedade, tanto as convencionais como aquelas próprias do direi-to positivo, ou então terão problemas em várias questões. Não conhecer as regras da sociedade pode significar erros tanto de aspectos morais, como ir contra os costumes daquele povo, até problemas mais graves, como alguns de ordem tributária ou trabalhista. Diversos empresários sofrem sérios abalos financeiros simplesmente por desconhecerem as nuances das leis trabalhis-tas, que possuem inúmeros casos específicos, e em geral defendem a figura do empregado contra o empregador.

Ulisses representa também uma ideia de justiça ligada ao herói. Ulisses coloca a própria vida em risco constantemente, mas porque sabe que suas vitórias sempre conduzirão a proveitos para si e para os demais.

Assim como o desconhecimento é um problema, a desatenção por pos-suir considerável conhecimento ou domínio técnico de algo também pode criar situações adversas. Como exemplos temos a tripulação de Ulisses, em que uma relativa parcela dos guerreiros morrem naquilo que fazem melhor, por não estarem concentrados o suficiente fracassam.

Também Hesíodo oferece uma série de análises que podem contribuir com o mundo empresarial. Já foi dito nas análises ao longo do texto que o trabalho, para Hesíodo, era também uma forma de realizar o contato entre o homem e o mundo, que nos tempos hesiódicos significa dizer, “fazer com que os indivíduos de seu tempo transformassem o solo em riqueza”. Não era a época da fartura, mas do sofrimento, da pobreza. E Hesíodo tentou incutir- -lhes essa nova mentalidade, esse novo estilo de vida – que é pelo traba-lho que se transforma o mundo e a si mesmo. E essa transformação não é somente na condição econômica, mas também existencial; o indivíduo, ao trabalhar a natureza, trabalha também o seu interior. Nesse sentido, o tra-balho recebe uma dimensão pedagógica. Essa perspectiva revela contornos mais evidentes ainda nos dias atuais, em que as empresas, mais até do que as famílias, realizam a função social de educar a pessoa. Por exemplo, é na orga-nização que o colaborador participa de diversos cursos, desde atualizações técnicas sobre as áreas em que trabalha até de temáticas envolvendo recur-sos humanos ou de etiqueta profissional. Ou seja, no trabalho, o indivíduo aprende a lidar com seus dilemas, desejos, vontades, virtudes e defeitos. A paideia hoje se faz na empresa, com as organizações ensinando seus cola-

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boradores a viver melhor, a criarem hábitos mais refinados, novos estilos de vida, e atitudes mais adequadas para o cotidiano.

E se o trabalho ajuda as pessoas a melhorarem de vida, certamente também pode ajudar a sociedade como um todo, o mundo, a se desenvolver mais. Retomando aquela ideia pedagógica de Hesíodo como o poeta de seu povo e seu período histórico, deve-se considerar também a função social do trabalho, aquela de tentar criar um mundo mais equânime. No Direito se fala em igualdade formal, aquela igualdade proveniente da Constituição Fede-ral, que afirma serem todos iguais perante a lei, e uma igualdade material, que seria aquela igualdade existente na prática. Ou seja, ainda que sejamos todos iguais perante a lei, concretamente falando isso nem sempre ocorre, tendo em vista as enormes diferenças econômicas nas sociedades contem-porâneas. A única forma de tentar reparar essa disparidade é pelo trabalho, não pelo assistencialismo. É no trabalho que a pessoa transforma a si mesma e ainda cresce financeiramente. Os empresários precisam cultivar também essa preocupação, concebendo suas organizações como instrumentos de desenvolvimento empresarial, político e social, auxiliando o comunidade a dar um salto de vida.

Interessante também comparar alguns aspectos envolvendo Homero e Hesíodo. Em Homero está mais forte o Direito ligado às questões urbanas, como aquelas que surgem para Ulisses no retorno a Ítaca, enquanto que em Hesíodo é mais evidente o direito rural, com a condição dos camponeses que precisavam enfrentar problemas de corrupção e abuso de poder por parte dos grandes proprietários de terra. Também Hesíodo se liga mais ao direito natural, pois torna explícito a corrupção implícita que existe em vários atos legais mas eticamente incorretos, praticados por proprietários. Tal situação, como já dissemos, está simbolizada na parábola do gavião e do rouxinol.

Ampliando seus conhecimentos

Os deuses da religião pública e sua relação com a Filosofia

(REALE, 1993)

Estudiosos afirmaram em várias ocasiões que entre religião e Filosofia exis-tem laços estruturais (Hegel dirá até mesmo que a religião exprime pela via

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representativa a mesma verdade que a Filosofia exprime pela via conceitual): e isso é verdade, seja quando a Filosofia subsume determinados conteúdos da religião, seja, também, quando a Filosofia tenta contestar a religião (nesse último caso, a função contestatária permanece sempre alimentada e, por-tanto, condicionada, pelo termo contestado). Pois bem, se isso é verdade em geral, o foi de modo paradigmático entre os gregos.

Mas quando se fala de religião grega é preciso operar uma nítida distinção entre religião pública, que tem o seu mais belo modelo em Homero, e reli-gião dos mistérios: entre a primeira e a segunda há uma divisão claríssima: em mais de um aspecto, o espírito que anima a religião dos mistérios é negador do espírito que anima a religião pública. Ora, o historiador da Filosofia que se detenha no primeiro aspecto da religião dos gregos, veta a si mesmo a compreensão de todo um importantíssimo filão da especulação, que vai dos pré-socráticos a Platão e aos neoplatônicos, e falseia, portanto, fatalmente a perspectiva de conjunto. E isso aconteceu justamente com Zeller e com o nu-meroso grupo dos seus seguidores ( e, portanto, com o grosso da manualísti-ca que por longo tempo reafirmou a interpretação de Zeller).

O estudioso alemão soube indicar bem exatamente os nexos entre religião pública grega e filosofia grega (e sobre esse ponto nós reproduziremos as suas preciosas observações, que continuam paradigmáticas), mas depois caiu numa visão totalmente unilateral, desconhecendo a incidência dos mistérios, e em particular do orfismo, com as absurdas consequências que apontaremos.

Mas, por enquanto, vejamos a natureza e a importância da religião pública dos gregos e em que sentido e medida ela influiu sobre a Filosofia. Pode-se dizer que, para o homem homérico e para o homem grego filho da tradição homérica, tudo é divino, no sentido de que tudo o que acontece é obra dos deuses. Todos os fenômenos naturais são promovidos por numes: os trovões e os raios são lançados por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar são levan-tadas pelo tridente de Posêidon, o sol é carregado pelo áureo carro de Apolo, e assim por diante. Mas também os fenômenos da vida interior do homem grego individual assim como a sua vida social, os destinos da sua cidade e das suas guerras são concebidos como essencialmente ligados aos deuses e condicionados por eles.

Mas quem são esses deuses? São – como há tempo se reconhece acertada-mente – forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são aspectos

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dos homem sublimados, hipostasiados; são forças do homem cristalizadas em belíssimas figuras. Em suma: os deuses da religião natural grega são homens amplificados e idealizados; são, portanto, quantitativamente superiores a nós, mas não qualitativamente diferentes. Por isso a religião pública grega é cer-tamente uma forma de religião naturalista. É tão naturalista que, como jus-tamente observou Walter Otto, “a santidade aí não pode encontrar lugar”1, uma vez que pela sua própria essência os deuses não querem, nem poderiam, elevar o homem acima de si mesmo. De fato, se a natureza dos deuses e dos homens, como dissemos, é idêntica e se diferencia somente por grau, o homem vê a si mesmo nos deuses, e, para elevar-se a eles, não deve de modo algum entrar em conflito com ele mesmo, não deve em nenhum sentido morrer em parte a si mesmo; deve simplesmente ser si mesmo.

Portanto, como bem diz Zeller, o que a divindade exige do homem “não é de modo algum uma transformação interior da sua maneira de pensar, não uma luta contra as suas tendências naturais e os seus impulsos; porque, ao contrário, tudo isso, que para o homem é natural, é legítimo também para a divindade; o homem mais divino é aquele que desenvolve do modo mais vi-goroso as suas forças humanas; e o cumprimento do seu dever religioso con-siste essencialmente nisso: que o homem fala, em honra da divindade, o que é conforme com a sua natureza”2.

Assim como foi naturalista a religião dos gregos, também “[...] a sua mais antiga Filosofia foi naturalista; e mesmo quando a Ética conquistou a preemi-nência [...], a sua divisa continuou sendo a conformidade com a natureza”3.

Isso é indubitavelmente verdadeiro e bem estabelecido, mas ilumina apenas uma face da verdade.

Quanto Tales disser que “tudo está cheio de deuses”, mover-se-á, sem dúvida, em análogo horizonte naturalista: os deuses de Tales serão deuses de-rivados do princípio natural de todas as coisas (água). Mas quando Pitágoras falar de transmigração das almas, Heráclito, de um destino ultraterreno das almas, e Empédocles explicar a via da purificação, então o naturalismo será profundamente lesionado, e tal lesão não será compreensível senão remeten-do-se à religião dos mistérios, particularmente ao orfismo.

Mas antes de dizer isso, devemos ilustrar outra característica essencial da religião grega, determinante para a possibilidade do nascimento da reflexão filosófica.

1 W. F. Otto. Die Götter Griechenlands, Frankfurt AM Main 1956; trad. Ital. Florença 1941 (Milão 1968), p.9.

2 Zeller-Mondolfo, I, 1, P. 105.

3 Zeller-Mondolfo, I, p. 106.

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Os gregos não possuíam livros tidos como sagrados ou fruto de divina re-velação. Eles não tinham uma dogmática teológica fixa e imodificável. (Nessa matéria, as fontes principais eram os poemas homéricos e a Teogonia de Hesí-odo). Consequentemente, na Grécia não podia haver sequer uma casta sacer-dotal que custodiasse os dogmas. (Os sacerdotes na Grécia tinham um poder muito limitado e uma escassa relevância, uma vez que, além de não terem a tarefa de custodiar e comunicar um dogma, não tinham nem mesmo a exclu-sividade de oficiar os sacrifícios).

Ora, a falta de um dogma e de guardiões dele deixou a mais ampla liber-dade à especulação filosófica, a qual não encontrou obstáculos de caráter religioso semelhantes aos que se encontrariam entre os povos orientais, difi-cilmente superáveis. Justamente por isso os estudiosos destacam essa fortu-nosa circunstancia na qual se encontraram os gregos, única na antiguidade e cujo alcance é de valor verdadeiramente inestimável.

Atividades de aplicação1. Em Homero todos os personagens recebem contornos heroicos, no

sentido de que uma vida ativa, ainda que de riscos, é mais válida que a vida passiva. Relacione essa questão às problemáticas atuais, refletin-do sobre o papel do cidadão de hoje na sociedade.

2. Para Homero, ainda que os personagens sejam em geral heróis, ca-pazes de realizações sobre-humanas, é notável a presença do destino como limite divino às ações em batalha. Reflita sobre a existência em geral: existe um limite no potencial de cada um dado por uma condi-ção natural?

3. Hesíodo trabalha outro período da história grega, a qual caracteriza- -se pela difícil luta diária dos trabalhadores com a terra dura. Analise o papel pedagógico da poesia hesiódica.

4. Aborde a problemática jurídica em Hesíodo, principalmente no ponto em que ele apresenta o juiz como um tirano que se diverte com a vida das partes envolvidas no processo. Aproveite para refletir sobre o pa-pel do juiz como educador e protagonista social.

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Gabarito1. O cidadão atual tende a levar uma vida sem grandes participações

políticas e sociais, preferindo a passividade. Comparando com o herói Aquiles, em geral as pessoas se recusariam a entrar na batalha quando soubessem dos riscos. Essa passividade gera redução de criatividade, e por consequência do desenvolvimento do potencial.

2. Não há um limite para realizações humanas, depende da vontade pos-ta e do desenvolvimento do potencial de cada indivíduo. Contudo, a natureza, ou os deuses, na visão homérica, deu potencial diferente a cada um. O potencial heroico em Homero é justamente desenvolver e realizar o máximo possível dentro desse limite imposto pelos deuses. Nesse sentido, cada pessoa deve buscar realizar o máximo que pode tirar de si mesma.

3. Hesíodo como mestre educador de seu povo se revela justamente nessa decisão de tratar não dos heróis e das eras douradas distantes, mas do aqui e agora, da realidade social e cultural de seu tempo. Todo educador deve saber se reportar aos clássicos, aos grandes mestres da cultura, mas ao mesmo tempo compreender a passagem que é neces-sária para a realidade de seus alunos. Hesíodo não é menos importante que Homero por ter trabalhado temáticas de menor grandiosidade.

4. Hesíodo apresenta o juiz como tirano, utilizando-se inclusive da pa-rábola do gavião e do rouxinol, quando o primeiro brinca com a vida do segundo. Percebe-se como a atividade judiciária sem preocupa-ção com o social já existia na Grécia Antiga. O juiz é protagonista so-cial, por carregar o poder das leis tem o dever de promover a justiça sempre em função do desenvolvimento do humano. Na atualidade, percebe-se cada vez mais a necessidade de se preparar eticamente os juízes, para que se conscientizem da enorme missão que carregam. O operador jurídico na Grécia era sobretudo um educador de seu povo, e assim deveria sê-lo também hoje.

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Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

IntroduçãoA palavra teatro, analisada em sua origem etimológica significa “o lugar

onde deus escorre”, “como deus corre e se manifesta”, “como deus se faz diante do povo”1. Disso já se pode inferir que as encenações teatrais pos-suíam um espírito pedagógico aliado à religião, tratando-se do modo pelo qual o divino do humano, aquela parte mais perfeita, ou seja, adequada à situação em que se encontra, a exata proporção do indivíduo com a vida, re-presentada nos grandes personagens da mitologia, se fazia presente, não so-mente na dimensão da perfeição estética, como manifestação artística que era, mas também como uma forma de levar os espectadores a uma profunda reflexão sobre a conduta humana.

No contexto da formação grega, a tragédia representa a devolução à poesia grega da capacidade de abarcar a unidade do ser humano. Justamen-te por essa característica, a tragédia se iguala às epopeias como uma impor-tante forma de pedagogia para a civilização helênica. A tragédia ática2 foi hegemônica durante um século inteiro, coincidente cronologicamente e es-piritualmente com o crescimento, apogeu e decadência do poder de Atenas, principal cidade da região. Nessa mesma linha, a comédia viveu seu auge e sua decadência junto à trajetória da civilização helênica.

Característica marcante das tragédias é o fato de utilizar-se da represen-tação do mito como forma de expor e tratar os temas vividos atualmente na polis, era esse o ponto de partida de seu ideal de formação humana. Confor-me Aristóteles3, poucos temas do grande reino da epopeia atraíram a aten-ção dos poetas, especialmente os que retrataram a passagem da felicidade ao infortúnio devido a um erro cometido pelo principal personagem.

Assim, a tragédia é a forma de representação que pela primeira vez faz da ideia do destino humano e do seu respectivo curso o princípio de toda sua construção, com todas as inevitáveis ascensões e quebras. O gênero trágico educa o homem justamente ao representar os tipos de vícios e erros que as

1 Teatro (θεατρον) vem da junção das expressões gregas θεοζ (deus) e ρεω (escorrer) (MENEGHETTI, Antonio. Psicotea. Recan-to Maestro: Ontopsicolo-gica Editrice, 2006. p. 7.).

2 Trata-se das tragédias oriundas da tradição de Atenas, cidade localizada na região da península do Peloponeso chamada Ática.

3 ARISTÓTELES. Arte Re-tórica e Arte Poética. Tra-dução de Antonio Pinto de Carvalho. 17.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 258.

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Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

pessoas cometem, e a consequência de tais atitudes na vida do personagem e daqueles que o circundam, demonstrando que para se fazer determinadas passagens na vida, o sofrimento torna-se uma importante condição.

Por sua vez, as comédias não se utilizavam da mitologia para reproduzir sua mensagem, mas somente da realidade cotidiana. Os antigos a denomi-naram “espelho da vida”4, pelo modo como se retratava a natureza humana e suas fraquezas, pois com sua representação exagerada e cômica da realida-de também atuava como uma forma de educação do seu espectador.

Portanto, propomo-nos neste capítulo a analisar as principais obras da tríade dos grandes tragediógrafos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, bem como do comediógrafo Aristófanes.

ÉsquiloÉsquilo nasceu e cresceu no período dos governos tirânicos em Atenas. Viu

a queda destes e a ascensão do novo governo ateniense, instituído pela re-forma de Sólon. Essa experiência do nascimento da democracia ateniense e a vitória grega na Guerra Médica tiveram marcante influência no modo em que o autor construía suas tragédias. Conforme Jaeger, essas vivências são sólidos vínculos com que Ésquilo unia a sua fé no Direito, herdada de Sólon, às realida-des da nova ordem. Por isso, o Estado é o espaço ideal nos seus escritos.5

Desse modo, o autor faz ressurgir o ideal do homem heroico, porém, con-textualizado com a realidade urbana de sua época. Trata-se do retrato do homem que somente pode se realizar enquanto cidadão, exercendo suas atividades na polis. 6 Nesse escopo, ao apresentar as figuras dos cantos heroi-cos, não as retrata do modo como haviam se consagrado, mas sim utiliza-as como um fundo vazio, pelo qual expunha as ideias que deles se formavam. Como resultado, por exemplo, o Zeus de Prometeu Acorrentado representa a figura do moderno tirano, ou ainda Agamemnon, na tragédia de mesmo nome, comporta-se de modo totalmente diverso do retratado por Homero.7

Ésquilo utilizava-se de uma estrutura trilógica em suas tragédias, pois desse modo podia retratar um dos mais intrincados problemas refletidos em sua produção – a transmissão das maldições familiares. Assim, o autor conse-guia retratar o destino de um mesmo herói em uma série de fases, como em Prometeu Acorrentado, Libertado e Portador do Facho, ou de gerações, como na Oréstia8.9

4 JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. p. 416.

5 JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. p. 285.

6 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 291-292.

7 LESKI, Albin. História da Literatura Grega. Tra-dução de Manuel Losa. Lisboa: Fundação Calous-te Gulbenkian, 1995. p. 133.

8 Trilogia composta pelas peças Agamemnon, Coé-foras e Eumênides (ÉSQUI-LO. Oréstia: Agamemnon, Coéforas e Eumênides. 6.ed. Tradução de: KURY, Mário da Gama. Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar, 2003.).

9 LESKY, Albin. A Tragé-dia Grega. Tradução de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alber-to Guzik. 3ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 101.

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O problema do drama em Ésquilo não é o Homem, mas sim o destino. O homem é o portador do destino, não os homens os verdadeiros atores, mas sim as forças sobre-humanas.10 É precisamente na contínua intromissão dos deuses e do destino que a mão do poeta se revela. A divindade é sagrada e justa, sua ordem é eterna e inviolável, em contraposição, pela cegueira do Homem, que persiste em errar, este incorre no castigo. “A ideia esquiliana de destino está totalmente compreendida na tensão entre a fé na justiça invio-lável, na ordem do mundo, e a emoção resultante da crueldade demoníaca e da perfídia de Ate”11. Devido a Ate12, o homem é levado ao desprezo da ordem e ao sacrifício necessário para restaurá-la.13

O ideal trágico em Ésquilo pode ser muito bem retratado através da análi-se da trilogia de Prometeu14, mais especificamente da única obra que nos foi legada completamente, Prometeu Acorrentado15. Essa é a tragédia do gênio; enquanto nas demais obras o trágico vem de fora, em Prometeu a origem é no próprio personagem, sua natureza e sua ação. Prometeu, assim, diz: “Eu havia previsto tudo... Eu quis cometer o meu crime! Eu o quis, consciente-mente, não o nego!”16.

Ao contrário do prevaricador castigado pelo crime de roubar o fogo dos deuses de Hesíodo, Ésquilo retratou nessa façanha de Prometeu o símbolo sensível da cultura, do desenvolvimento humano. Celebra-se nessa peça o herói pelos benefícios que trouxe à humanidade, ajudando-a no seu esforço para progredir enquanto indivíduos e enquanto civilização. O fogo, nesse sentido, significa a capacidade de conhecer, desvelar o mundo e utilizar-se da própria razão para desenvolver-se.

Quando o coro de Prometeu diz que só pelo caminho da dor se chega ao mais elevado conhecimento, atinge-se o fundamento do pensamento teo-lógico de Ésquilo. Esse espírito encontra-se em todas as suas obras e essa é a maior conclusão que se pode chegar acerca do autor. Conforme Lesky: “Agindo, o homem cai em culpa, toda culpa encontra sua expiação no sofri-mento, e o sofrimento leva o homem à compreensão e ao conhecimento. Esse é o caminho do divino através do mundo, tal como Ésquilo o viu”.17

Assim, pode-se dizer que é pela força da dor que o coração do homem experimenta a passagem ao triunfo divino. O homem trágico expande sua harmonia oculta com o ser e ergue-se, por sua capacidade de sofrimento e por sua força vital, a um grau superior de humanidade, ou seja, possibilita-se a este, por intermédio desses instantes, a realização das passagens essen-ciais ao seu desenvolvimento próprio.

10 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 301.

11 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 305.

12 Ate personificava a ruína enviada pelos deuses (ROMILLY, Jacque-line de. A Tragédia Grega. p. 59.).

13 LESKY, Albin. A Tragé-dia Grega. p. 103.

14 Titã que na mitologia grega roubou o fogo dos deuses e o levou até os homens em um ato de amor à humanidade da qual ele próprio havia sido o criador.

15 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 309.

16 ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. Tradução de J.B Mello e Souza. 19.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 119.

17 LESKY, Albin. A Tragé-dia Grega. p. 119.

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SófoclesSófocles é considerado, tanto pelos antigos quanto pelos atuais pensado-

res, como o apogeu do drama grego devido ao rigor da sua forma artística e à sua luminosa objetividade.18 Característica marcante de suas tragédias é a representação das grandes questões que geram a crise do ser humano. As paixões mais violentas, os sentimentos mais ternos, a grandeza heroica e altiva da autêntica humanidade, são profundamente semelhantes à atua- lidade, motivo que justifica a constância de suas peças nos repertórios de representações artísticas até a atualidade.

Com Sófocles, pela primeira vez as personagens evidenciam a existência de uma matriz interna dentro da pessoa, de uma lei anterior que a governa, dissociada da força representada pelo destino nas obras de Ésquilo. O trági-co em Sófocles é a impossibilidade de o homem evitar a dor. Já não há mais ênfase na concepção religiosa do mundo, a face do destino resume-se a este aspecto: a dor do homem em sua existência.

Ao compor seus personagens, Sófocles trata das questões relativas à es-sência e ao sentido do ser com a forma de seus próprios discursos e na figura de seus personagens, não em uma concepção de mundo ou uma teodiceia, como em Ésquilo.19 Analisando seus personagens, constata-se a existência de uma realidade superior, apesar de essa realidade não ser evidenciada na obra, posto que os personagens preferem manter sua trajetória rumo à fa-lência existencial.

Postos esses elementos, torna-se possível uma análise mais cuidadosa de duas célebres obras do autor. Édipo Rei e Antígona, componentes da trilogia tebana, junto da tragédia Édipo em Colono.

Édipo ReiÉdipo Rei é a primeira peça da trilogia sobre a tragédia na linhagem dos

Labdácidas20. Contextualizando a obra na mitologia grega, primeiramente há de se considerar a maldição lançada sobre Laio, ponto de partida de toda a intencionalidade que carrega as desgraças em sua família. Sua origem foi o encantamento que Laio possuiu por Crísipo, filho do rei Pélops. Apaixonado, raptou Crísipo, sendo por isso amaldiçoado por Pélops, que desejou que Laio morresse sem deixar descendentes.

18 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 317.

19 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 325.

20 Relativo à geração oriunda de Lábdaco, geni-tor de Laio.

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Posteriormente, Laio casou-se com Jocasta e tornou-se rei de Tebas. Em consulta a um oráculo, descobre que, como castigo por sua paixão antina-tural, se tivesse um filho, este o mataria. Jocasta engravida e Laio, temeroso de seu futuro, ordena que tão logo o bebê nascesse, deveria ser assassinado. Recém-nascido, o infante é deixado preso pelos pés em uma árvore, sendo salvo por pastores e levado a Corinto, onde foi adotado pelo rei Pólibo. Deu-se o nome de Édipo ao bebê, que quer dizer “pés inchados”, alusão aos ferimentos decorrentes da tentativa de assassinato.21

Certo dia, Édipo é insultado por um ébrio, que o chamou de filho adotivo. Procurando, então, o oráculo de Apolo, é revelado ao jovem que ele mataria seu pai e casar-se-ia com sua mãe. Para evitar o cumprimento da profecia, abandona o lar e foge para o caminho oposto a Corinto, Tebas. No trajeto, encontra-se com um carro distinto, no qual vinha um homem idoso seguido por seus criados. O senil grita insolentemente para que Édipo deixe o cami-nho livre, e ele, absolutamente irado, mata o senhor e seus servos, seguindo seu rumo.

A cidade de Tebas estava temerosa, pois a Esfinge22 encontrava-se em uma rocha no caminho para a cidade. Édipo resolve o enigma do monstro, que em seguida se mata. Ao libertar do mal que a afligia, Tebas o coroa rei e concede Jocasta como esposa.23 Esses fatos não são reproduzidos na peça, que se inicia com Édipo já coroado governante de Tebas, contudo são de essencial importância para a compreensão do desvelar da peça.

Em suma, Édipo Rei reflete o modo pelo qual Édipo, por mais que se fizes-se de desentendido do assunto, descobre que ao assassinar a distinta pessoa no caminho para Tebas, assim como ao assumir o trono, casando-se com a rainha Jocasta, nada mais fizera do que tornar aquelas predições que o fize-ram mudar-se de Corinto uma realidade.

No início da peça, Tebas está sendo assolada por uma forte seca. Ordena-da a consulta ao oráculo, tem-se a notícia de que para purificar a cidade seria necessário desterrar ou sacar a vida do culpado da morte de Laio.24 Tomado pela ânsia de descobrir quem é o assassino e recuperar a ordem da cidade, Édipo ordenou que lhe trouxessem o sábio Tirésias para que revelasse a ver-dade ao rei. Após muito pressionar o velho sábio, Édipo ouve que o assassino é ele próprio, levando-o a repreender Tirésias por tais palavras, entendendo- -se acusado injustamente.

21 MENEGHETTI, Antonio. Psicotea. p. 25.

22 Monstro metade homem, metade animal, que se encontrava sen-tado em uma rocha no caminho para Tebas e propunha enigmas aos passantes que se dirigiam até a cidade; aqueles que não conseguissem resol-ver seus enigmas, eram devorados. A Édipo foi proposto o seguinte: “qual é o animal que de manhã tem quatro pés, ao meio- -dia tem dois, e ao entar-decer três?”. O príncipe responde que é o homem, pois “na infância se arras-ta sobre pés e mãos, na idade adulta anda e na velhice recorre ao auxílio de um bastão”.

23 KURY, Mario da Gama In: SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Tradução de Mario da Gama Kury. 11. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

24 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. p. 23.

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Anunciado seu triste fim, Édipo ordena que retirem de sua presença o sábio, porém, logo na saída, lhe é novamente lançada a dúvida sobre sua linhagem. Édipo, transtornado, passa a acusar todos, até que, ao ouvir as palavras do pastor que havia sido encarregado de matá-lo quando recém-nascido, a verdade torna- -se tão clara que o rei não mais podia desviar seus olhos dela. Édipo começa a sentir culpa pelo que fez e a fazer-se de vítima do destino. Jocasta, constatando que Édipo havia descoberto toda a verdade que ela escondia, suicida-se, e Édipo, ao saber que sua mãe e esposa sacou a própria vida, escolhe não mais enxergar, cegando-se.25 Ele decide então que deve ser expulso da cidade. Antígona, sua filha, decide acompanhar seu pai, tornando-se guia dele.

A análise dessa obra se concentrará no seu aspecto existencial. Isso signi-fica que ao analisar o que o texto revela, serão levados em conta principal-mente os elementos que são de extrema importância para a vida atual, para o ser que se manifesta aqui e agora, posto que, conforme já mencionamos, a atualidade de suas tragédias é uma das principais marcas de Sófocles.

Característica marcante em toda a peça é a presença da culpa, que circun-da as principais personagens. A ideia de maldição presente na obra, muito mais do que o reflexo dos anseios divinos, expõe um projeto equivocado, que tem sua causa primordial na situação de Laio, mas que é renovado por cada personagem em um dado momento, produzindo, assim, todo seu efeito devastador na vida desses.

Enquanto a culpa imperava em todas as personagens da obra, o espíri-to de impunidade para consigo próprio era evidente, tendo como grande marca a sentença “eu não sabia”. Tirésias, quando destaca que a realidade por trás da situação poderia atingir o governante de Tebas, recebe ofensas à sua integridade e à sua qualificação como sábio; essa é a manifestação da defesa de Édipo à sua própria situação.

Tirésias é o verdadeiro exemplo do sábio na obra; apesar de possuir ciên- cia de toda a situação que envolvia a cidade de Tebas, apenas elucida a exis-tência do problema. Porém, ante a ignorância de Édipo e ciente do risco que correria ao revelar a verdade, percebendo que Édipo estava a fugir de sua responsabilidade, colocando a culpa nos outros e utilizando-se de sua auto-ridade para reafirmar-se, o sábio se retira, deixando o governante permane-cer em dúvida e preservando sua própria vida.

Quando no final todas as revelações são feitas, a chamada peripécia26, Édipo depara-se com o fatídico destino do qual buscara evadir-se – de fato

25 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. p. 87.

26 Definição formulada por Aristóteles na Arte Poética.

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havia assassinado seu próprio pai e casado com sua mãe. Jocasta, persona-gem que durante toda a peça estava ciente da realidade, ao perceber que havia perdido o controle sobre a situação de domínio de seu filho e esposo, acaba decidindo por sacar sua própria vida.

Édipo, ao final, demonstrando que apesar de todo o ocorrido não decidira responsabilizar-se pela culpa que possuía, ao cegar-se nada mais faz do que tentar voltar à ignorância da realidade. O ato de deixar de poder ver, nesse sentido, simboliza a fuga da realidade, da dura verdade recém apresenta-da ao governante. Ironicamente, após todos esses fatos, Édipo sai de Tebas acompanhado de Antígona, deixa de ser filho de Jocasta para tornar-se filho, dependente, de sua própria filha, demonstrando que o ciclo de infantilidade é mantido na personagem.

Há de se considerar o quanto que Édipo representa uma boa parte de todo ser humano. Aquela parte que, por mais que esteja diante de um grande problema, ou de uma grande verdade, prefere ignorar tal situação, fazer-se de inocente para não ter de enfrentar a realidade, por falta de coragem e também por ser mais cômodo assegurar-se em uma figura materna que o mantenha sob seu controle e regimento. Para ele, enfrentar a vida e buscar dentro de si um critério para sua conduta é um desafio quase impossível.

Édipo Rei nos revela, portanto, que, diante de uma realidade superior e anterior que é a intencionalidade ao erro, representada pela ideia de “mal-dição”, infelizmente aquele que é capacitado a não se deixar influenciar por esse ciclo destrutivo acaba decidindo mantê-lo, não tendo coragem de en-frentar e superar tal situação, sofrendo as consequências dessa triste esco-lha, deixando, assim, a grandeza da própria vida.

AntígonaAntígona ocorre cronologicamente após um evento que não é trabalha-

do por Sófocles: o episódio dos sete reis contra Tebas. Após Édipo abando-nar Tebas, seus filhos, Etéocles e Polinice, passam a disputar o trono da polis. Ambos haviam firmado o acordo de se revezar no poder. Porém, Etéocles ao assumir o poder decide não mais o compartilhar com o irmão. Polinice abandona então a cidade-Estado e mobiliza o exército de seis reis contra sua terra natal. Ambos os irmãos morrem na batalha, um transpassando sua lança contra o outro. Ao final, Tebas sai vitoriosa, e Creonte, tio dos falecidos guerreiros, assume o poder. 27

27 Episódio relatado na peça: ÉSQUILO. Os Sete Contra Tebas. Tradução de: SCHÜLER Donaldo. Porto Alegre: L&PM, 2007.

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Logo após tomar posse do trono, Creonte profere o célebre édito que dá princípio à tragédia: Etéocles, que morreu lutando pela cidade, deveria ser sepultado com todos os ritos que tinha direito; Polinice, por outro lado, por ter atacado a pátria, deveria permanecer insepulto, servindo de alimento às aves e aos cães. Àqueles que descumprissem o comando do soberano de Tebas ser-lhes-ia imposta a morte.28

Antígona, desconsiderando a ordem de seu tio, decide dar as devidas li-bações e enterrar seu irmão, incitando sua irmã Ismênia a acompanhá-la, a qual, temerosa da ameaça imposta aos descumpridores do decreto, não a acompanha. Mesmo sem apoio, Antígona executa seu plano e enterra seu irmão. Os guardas responsáveis por vigiar o corpo encontram-no enterrado, informam a Creonte o ocorrido e o desenterram. Antígona, então, reitera sua conduta, sendo surpreendida pelos guardiões e entregue a Creonte.

O governante de Tebas condena sua sobrinha a ser encerrada viva dentro de uma caverna. Porém, o que ele não sabia era o preço que pagaria por tal atitude. Contrariando a tudo e a todos para dar cumprimento ao seu decreto, supostamente em nome da cidade e dos deuses, Creonte estava infringindo na realidade os anseios das divindades. Tirésias, o velho sábio, surge então, trazendo a triste revelação ao tirano que insistiu em manter sua atitude equivocada.

Buscando evitar a fúria divina, Creonte vai dar o funeral devido a Polinice, porém, já era tarde. Hémon, seu filho, pranteando sobre o cadáver da amada e prometida esposa, que havia se enforcado com um pano de linho fino, sui-cida-se com sua própria espada, morrendo ao lado de Antígona. Informada da morte de seu filho, Eurídice, esposa de Creonte, também retira sua própria vida. O tirano, desiludido com todas as desgraças que o vitimaram, termina a peça a lamentar todos os eventos que ocorreram.29

Muitas interpretações foram formuladas sobre essa obra. Nesse momen-to nos propomos a seguir a linha de análise já adotada ao tratar sobre a obra Édipo Rei, concentrando-se no aspecto existencial e na relação da peça com a ideia de Justiça.

A interpretação mais comum da obra vê no conflito entre Antígona e Creonte o embate entre o direito natural e o direito positivo, entre o direi-to dos deuses e a ordem da cidade.30 Nesse sentido, Antígona, ao guardar as antigas tradições, buscando enterrar seu irmão, estava resguardando o mandamento anterior e superior às leis da cidade. Esse seria o Direito na-

28 SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donaldo Schuler. Porto Alegre: L&PM, 2006. p. 20, 21.

29 SÓFOCLES. Antígona. p. 96, 97.

30 ROSENFIELD, Kathrin. Sófocles & Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

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tural, representado na peça como sendo o Direito dos deuses. Creonte, por sua vez, estaria defendendo o direito positivo, ou seja, o Direito criado pelos homens para reger suas próprias relações. Nessa interpretação, Creonte es-taria buscando defender a cidade e sua honra ao proferir seu édito.

A defesa dessas teses é percebida em variados trechos da própria obra. Antígona, quando apresentada a seu tio e inquirida por este a explicar o porquê dela descumprir o decreto, diz que não foi Zeus quem o proclamou, nem a Justiça que estabeleceu tal regulamento aos homens, e por não consi-derar que as ordens de Creonte tivessem o poder de superar a ordem das leis não escritas, sempre vivas e de origem desconhecida, é que Antígona teria agido de tal modo.31

Creonte, por sua vez, sempre que tratava sobre sua decisão, se referia a ela como uma medida em favor da cidade e da sociedade tebana. Mencio-nava sua decisão como um prêmio ao irmão que bravamente sacrificou-se pela guarda de Tebas e um castigo a Polinice, considerado traidor e, por isso, condenado ao eterno sofrimento.

A atrocidade da decisão de Creonte para os gregos era enorme, pois tinha como plano de fundo a relação destes com o outro mundo. Conforme Coulanges, para a religião grega a passagem da morte somente era dada com o enterro e com as libações. A alma que não tivesse sepultura não teria morada, seria errante.32 Portanto, ao condenar Polinice a permanecer sem um digno enterro e com seu corpo entregue à ação do tempo e das feras, Creonte na realidade estava condenando a alma deste ao sofrimento eterno, impedindo-o de fazer sua passagem ao mundo dos mortos.

Além desse importante significado, a leitura de Antígona nos traz outra questão. Baseando-se na relação que as personagens possuíam entre si e toda a evolução trágica na família de Lábdaco, não se pode considerar que esta obra concentrava-se tão somente nesse aspecto. Há de se relevar que, conforme tratou Rosenfield33, Creonte desejava livrar-se da geração de Édipo, pois com a morte de Etéocles e de Polinice, restavam somente Antígona e Is-mênia como portadoras da maldição dos labdácidas.

Ademais, Antígona estava prometida a casar-se com seu filho Hémon e, portanto, a assumir o poder de Tebas. Com a morte de seus irmãos ela era a filha epicler, ou seja, todos os filhos oriundos dessa relação pertenceriam à geração de Édipo. Pode-se dizer, portanto, que Creonte encontra no decreto um modo perfeito de atingir Antígona. O édito do tirano não foi elaborado

31 SÓFOCLES. Antígona. p. 36.

32 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. 8. ed. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

33 ROSENFIELD, Kathrin H. Antígona – de Sófocles a Hölderlin: por uma filoso-fia “trágica” da literatura. Porto Alegre: L&PM, 2000.

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principalmente para prevenir que qualquer cidadão enterrasse Polinice, se direcionava a Antígona, pois ele já sabia que ela iria descumprir a ordem e que, desse modo, ele possuiria legitimidade para poder sacar sua vida, puri-ficando sua geração sem que lhe incorresse culpa alguma.

Nesse sentido, Rosenfield expõe que é estranha a veemência de Creonte, normalmente tão pacato. Parece que o decreto do tirano foi, na realidade, elaborado para incitar Antígona à transgressão fatal, protegendo seu filho de um casamento “maldito”.34 Reforça-se esse argumento ao se considerar que a proibição do enterro de Polinice era um ato que já extrapolava a práxis em relação aos criminosos de guerra – deixar os corpos destes fora dos muros da cidade para que seus familiares, às escondidas, os recolhessem e os sepultas-sem sem um túmulo glorioso.35

Antígona, por sua vez, através do seu sacrifício, seu martírio, mais do que lutar pela Justiça, por um digno enterro a seu irmão, encontrava na afronta a Creonte, mesmo com a perda de sua vida, um modo de atingir o poderio de Creonte e derrubar o injusto decreto. Demonstra-se a importância de um de-sígnio subjetivo para barrar um ato objetivo indevido, o ímpeto de Antígona contra um decreto descabido.

Ao final, constata-se que esses personagens apenas deram continuida-de ao destino maldito já anteriormente programado. Pensando estar agindo livremente, apenas se entregaram ao destino e à desgraça, não agindo em conformidade com aquilo que os conduziria ao melhor de si, acabaram sendo apenas agentes do destino fatídico que já se demonstrava presente. Assim como em Édipo Rei, os personagens de Antígona, por própria opção, acabam dando continuidade à maldição familiar.

EurípedesEurípedes é o último dos grandes tragediógrafos gregos; viveu no perío-

do em que Atenas já havia alcançado seu apogeu e começava a entrar em declínio. Inclusive, é na tragédia de Eurípedes que se começa a denunciar a “crise do tempo”.36 O autor viveu no período posterior à sofística, motivo pelo qual nota-se a impregnação da ideia desses pensadores e de sua arte retórica em suas peças. Além disso, é nessa época que ocorre a migração da Filosofia da Jônia para Atenas, sendo que as ideias dos filósofos chamados pré-socráticos oxigenavam o pensamento da metrópole crescente e também influenciaram o autor.

34 ROSENFIELD, Kathrin H. Antígona - de Sófo-cles a Hölderlin: por uma filosofia “trágica” da litera-tura. p. 45.

35 ROSENFIELD, Kathrin. Sófocles & Antígona.

36 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 386.

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Para Eurípedes a poesia conserva ainda o antigo papel de guia da condu-ta humana. Porém, além disso, ela abre o caminho ao novo modo de pensar que estava fervilhando naquela época. Desse modo, com o autor há a re-tomada dos problemas dos dramas de Ésquilo, a relação do Homem com o Divino, contudo, sob um ponto de vista totalmente diverso, baseado na racionalidade do homem ateniense de sua época.

Eurípedes propõe o último passo de modernização das tragédias, o que gerou em boa parte dos seus contemporâneos uma aversão oriunda de uma temeridade revolucionária. Em suas obras, os novos conteúdos transforma-ram, além do próprio mito, a linguagem utilizada e as formas tradicionais da tragédia. “Cada cena manifesta claramente que as criações dele pressu-põem uma atmosfera cultural e uma sociedade determinada, à qual o poeta se dirige”.37

Pode-se exemplificar as passagens dadas pelo pensador ao se trabalhar com uma de suas tragédias: Medeia38. Essa é a tragédia da esposa que, ao ser trocada por outra mulher, faz de tudo para vingar-se de seu ex-marido, o herói Jasão, levando-o ao sofrimento. Sem se importar com o que fosse ne-cessário para alcançar tal intento, Medeia meticulosamente planeja a morte da futura esposa de Jasão, filha do rei de Corinto, assim como a morte daque-le. Ao final, para garantir a completude de sua vingança, ela saca a vida de seus próprios filhos, produzindo em seu ex-marido a almejada dor.

Nessa tragédia é possível encontrar a discussão sobre vários caracteres acerca da vida em sociedade. Discute-se as relações sexuais e toda a proble-mática da psicologia feminina. Por serem as mulheres de Atenas demasiado “toscas e oprimidas demais ou cultas demais”39, o poeta escolheu a bárbara Medeia para mostrar esse modelo feminino, livre das limitações da moral grega. Além disso, em Medeia discute-se a posição social do homem e da mulher, sua relação entre si e o costume do casamento. Portanto, utilizando- -se do mito como pano de fundo, Eurípedes demonstra os problemas da bur-guesia ateniense.

Eurípedes retrata com profundidade o mundo subjetivo dos seus perso-nagens, reflete a descoberta dessa realidade na época em que a civilização helênica vivia em seu auge. Considerado esse universo, o homem em Eurípe-des é forçado a reconhecer sua absoluta carência de liberdade.40 Encontra-se na tragédia Hécuba: “Nenhum mortal é livre: ou é escravo do dinheiro, ou do seu destino, ou então é a massa que governa o Estado ou são as limitações da lei que o impedem de viver segundo seu arbítrio”41.

37 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 399.

38 EURÍPEDES. Medéia. Tradução de Miroel Sil-veira e Junia Silveira Gon-çalves. São Paulo: Martin Claret, 2007.

39 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 399.

40 LESKY, Albin. A Tragé-dia Grega.

41 EURÍPEDES. Hécuba. 864. In: ÉSQUILO; SÓ-FOCLES; EURÍPEDES. Os Persas, Electra, Hécuba. 6.ed. Traduzido por Mário da Gama Kury. Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar, 2008.

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Para encontrar a solução para essa problemática, Eurípedes se aprofunda no universo religioso, retornando às antigas experiências com o sacro em uma época de extrema racionalidad e, encontrando na aliança entre o indivi-dualismo e a religião, contra o Estado, a experiência libertadora da divindade na alma individual, livre das limitações de toda a Ética da lei.42 Conforme ve-remos, essa proposição de individualização como meio de se viver bem, feliz, acabará por ser a tônica dos filósofos do período conhecido como Helenísti-co. O foco de Eurípedes, portanto, não é a cidade, mas a própria vida.

Conclusões sobre a tragédiaPelo que foi estudado até agora, pode-se dizer que as tragédias, através

de suas representações dos conflitos, resultados insatisfatórios, quedas e crises humanas, buscam evidenciar pelo trágico o caminho para o desenvol-vimento humano.

Contextualizando com a realidade do empresário na atualidade, é impor-tante destacar como essas obras expunham que essas relações conflituosas pessoais, com o tempo, se não sanadas, geram um determinado estilo de vida. Passam anos e o indivíduo segue o mesmo modelo, chegando, então, à ideia de “normalidade”. As pessoas vão escondendo essas situações-pro-blemas, fazendo de conta que não veem, tal como Édipo fez. Quando há um grande problema não assumem, nem decidem mudar, simplesmente fogem dele. Assim, deixam ao governo ou às organizações o papel de tomar conta dessas dimensões, livrando-se da necessidade de se responsabilizar pela vida. Mais uma vez, como Édipo, nunca tomam responsabilidade total, sempre procurando um culpado para punir pela suposta falta. Porém, con-forme ensinam as tragédias, uma hora a ignorância dessas questões existen-ciais não basta. Quando o trágico se evidencia na vida, há que se resolver o problema pelo Direito, sem oportunidades para o diálogo.

No Poder Judiciário, todas essas questões viram meras nuances, a “rea-lidade” será declarada para o lado de quem conseguir prová-la, criando-se sobre esse ideal um juízo sobre o critério de Justiça, não obrigatoriamente reversível com o ideal de justo. Para não terem que esperar pela tragédia da Justiça, pela longa, morosa e desgastante instrução e julgamento dos seus feitos, atualmente os empresários recorrem aos Tribunais de Arbitragem.

Por fim, destaca-se a importância do sofrimento como condição para a passagem existencial, tal como Ésquilo retratava. Para algumas pessoas, de-

42 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 411.

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terminadas passagens somente poderão ser alcançadas pela mais profunda dor, posto que a estas torna-se necessário chegar a esse ponto para que o indivíduo perceba o quão distante está da melhor atitude em relação à sua vida. Essas questões o Direito não alcança, estas dependem da decisão da pessoa, posto que o Direito se preza à regulação da conduta da pessoa em relação aos demais somente nas situações de exteriorização dessa proble-mática em que esse sistema poderá atuar.

A comédia de AristófanesNão é à toa que os gregos denominaram a comédia como “espelho da vida”,

nela se pensava na natureza humana, sempre igual, e nas suas fraquezas. A comédia é justamente um espelho no qual se reflete de modo hilariante a conduta dos homens, e nesse sentido nenhum outro gênero de arte ou de literatura pode se comparar a ela. Conforme Jaeger: “A comédia visa as realida-des do seu tempo mais do que qualquer outra arte”43. Desse modo, através da efemeridade de suas representações, demonstram-se certos aspectos eternos do homem que escapam às demais formas de manifestação artística.

Os temas abordados pelas comédias abrangiam não somente as questões políticas do modo como se entende hoje, relativas às deliberações públicas e ati-vidades legislativas, mas todo aquele complexo que os gregos entendiam como sendo de domínio público, todos os problemas que afetavam a comunidade. Aristófanes não censurava só os indivíduos ou uma específica atividade política; preocupava-se com a orientação da conduta do Estado e do povo.

A comédia, por seu modo de operar, converteu-se numa das grandes forças educacionais de seu tempo. Aristófanes, por seu intermédio, não lutava contra o Estado, mas sim em prol deste contra os detentores do poder. A comédia não possuía nenhum plano político organizado, porém contribuía para esmiuçar esse ambiente e impor limites ao poder dos governantes.

Vivenciando o conflito protagonizado pela nova educação em detrimento do anterior modelo de formação humana, Aristófanes em duas obras satiriza com os protagonistas destas mudanças no modo de pensar do povo ático. Em Os Comilões o comediante ataca a sofística e o seu modo de ensino. Em As Nuvens o autor dirige suas críticas à figura de Sócrates, representante em Atenas de outra classe de novos pensadores, os filósofos. Ao criticar o novo modelo de educação o autor não o faz por estar desejoso de um retorno à antiga paideia, mas sim para mostrar que o novo modelo não é o ideal. Vendo

43 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 415.

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Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

em perigo os valores aos quais deve toda a constituição de sua vida e sua for-mação elevada que o comediante ataca vigorosamente a nova educação.44

Por lutar por esse ideal Aristófanes tem Eurípedes como seu inimigo, dada sua posição ante o florescimento do racionalismo. O autor projeta em Eurí-pedes toda a corrupção moral que vivia seu tempo. Este, que era tido pelos atenienses como uma figura divina, é utilizado para simbolizar a passagem crítica dada pelo povo de Atenas que o colocava na atual situação.

Na comédia Lisístrata45, na qual as mulheres de Atenas, Esparta, Corinto e Tebas, cansadas das tensões da guerra e de estarem longe de seus maridos que batalhavam entre si na Guerra do Peloponeso, sob a liderança da ate-niense Lisístrata, se propõem a por um fim na guerra e alcançar a paz.

Para tanto, o grupo de mulheres se utiliza da sedução de seus maridos e da abstinência sexual; todas as mulheres das polis envolvidas na guerra firmam o pacto de vestirem as melhores e mais provocantes roupas, os me-lhores perfumes e agirem da maneira mais sensual possível enquanto seus maridos estivessem por perto. Sem, porém, se entregarem a eles.

Ao final, tomados pelo desejo por suas mulheres, sem mais poder se con-centrar na batalha, os homens rendem-se à revolução das mulheres e juntos firmam a paz, pondo fim, pelo menos na comédia, à guerra entre as cidades- -Estado gregas.

Foi nessa passagem, em que se mostrou a íntima conexão da polis com o destino espiritual e a responsabilidade do espírito criador ante a totalidade do povo, que a comédia, com Aristófanes, atingiu o ponto culminante da sua missão educacional.

Conforme destacado neste capítulo, a comédia possui um modo parti-cular de retratar a realidade como ela é; através de suas ironias e sarcasmos, revela-se o comportamento humano de um modo que nem mesmo as tragé-dias ou epopeias conseguiram. E o principal é que se não fosse desse modo, aquele que é ironizado resistiria demasiadamente em admitir a realidade do que é retratado. Desse modo, a comédia se apresenta como um modo inteli-gente de se relativizar alguns aspectos e comportamentos, colocando-os em xeque, possibilitando ao indivíduo e à própria sociedade, por intermédio do cômico, se repensar e se compor em direção à realização humana.

44 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 433.

45 ARISTÓFANES. Lisís-trata. Tradução de Millôr Fernandes. São Paulo: Abril, 1977.

Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

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Ampliando seus conhecimentos

A comédia de Aristófanes(JAEGER, 2003)

Nenhuma exposição da cultura do último terço do séc. V pode passar por cima de um fenômeno para nós tão estranho quanto atraente: a comédia ática. É certo que os antigos a denominaram “espelho da vida”; nela se pen-sava na natureza humana, sempre igual, e nas suas fraquezas. Mas a comédia é ao mesmo tempo a mais completa representação histórica do seu tempo. Nesse sentido, nenhum gênero de arte ou de literatura se pode comparar a ela. Se quisermos estudar as atividades e tarefas exteriores dos Atenienses, não aprenderemos menos das pinturas e tarefas exteriores dos Atenienses, não aprenderemos menos das pinturas dos vasos. Mas as maravilhosas repre-sentações desse gênero, cujo colorido livro de ilustrações pode-se considerar a epopeia da vida burguesa, não conseguem exprimir a vibração dos movi-mentos espirituais que brotam das mais notáveis criações da antiga comédia que se conservam até hoje. Um dos seus inapreciáveis valores consiste em nos apresentar conjuntamente o Estado, as ideias filosóficas e as criações poéticas na corrente viva desses movimentos. Assim deixam de aparecer como fenô-menos isolados e sem relação mútua, para se integrarem na dinâmica da sua influência, dentro das circunstâncias do tempo. É só no período que a comédia dá a conhecer que nos encontramos em condições de presenciar a formação da vida espiritual, considerada como um processo social. Em qualquer outro momento, essa vida só nos aparece como um conjunto de obras completas e acabadas. Aqui se manifesta claramente que o método arqueológico da his-tória da cultura, que procura alcançar o seu objetivo através de um processo de reconstrução, é uma empresa fundamentalmente estéril, mesmo quando as tradições documentais são muito mais numerosas que na Antiguidade. Só a poesia nos permite apreender a vida de uma época em toda a riqueza das suas formas e tonalidades e na eternidade da sua essência humana. Daí o paradoxo, por outro lado perfeitamente natural, de talvez nenhum período histórico, nem sequer do passado mais próximo, poder ser apresentado e tão intimamente compreendido como o da comédia ática.

Procuramos compreender aqui a sua força artística, que inspirou um número incrível de personalidades das mais variadas tendências, não só

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como fonte para chegar à intuição de um mundo desaparecido, mas ainda como uma das mais originais e grandiosas manifestações do gênio poético da Grécia. A comédia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer outra arte. Por mais que isso a vincule a uma realidade temporal e histórica, é importante não perder de vista que o seu propósito fundamental é apresen-tar, além da efemeridade das suas representações, certos aspectos eternos do Homem que escapam à elevação poética da epopeia e da tragédia. Já a filo-sofia da arte que se desenvolveu no século seguinte considerou a polaridade da comédia e da tragédia como manifestações complementares da mesma e originária tendência humana à imitação. Para ela a tragédia, bem como toda a poesia elevada que se desenvolve a partir da epopeia, está ligada à tendên-cia das naturezas nobres a imitar os grandes homens e os feitos e destinos proeminentes. A origem da comédia encontra-se no incoercível impulso das naturezas mais comuns, poderíamos até dizer, na tendência popular, realista, observadora e crítica, que escolhe com predileção imitar o que é mau, censu-rável e indigno. A cena de Tersites na Ilíada, que expõe o repugnante e odioso agitador à troça pública, é uma cena genuinamente popular, uma pequena comédia entre as múltiplas tragédias que a epopeia homérica encerra. É na farsa divina que a contra-vontade representa o par de enamorados Ares e Afrodite, são os próprios deuses olímpicos que se tornam objeto das joviais gargalhadas dos espectadores.

O fato de que até os altos deuses pudessem ser tema e objeto do riso cômico prova que, no sentir dos Gregos, em todos os homens e em todos os seres de forma humana reside, ao lado da força que leva ao pathos heroico e à grave dig-nidade, a aptidão e a necessidade do riso. Alguns filósofos posteriores definiram o Homem como o único animal capaz de rir – embora na maioria das vezes ele seja definido como o animal que fala e pensa. Desse modo, colocam o riso no mesmo plano da linguagem e do pensamento, como expressão da liberdade espiritual. Se fizermos uma ligação entre o riso dos deuses homéricos e essa ideia filosófica do Homem, não poderemos negar a alta origem da comédia, apesar da menor dignidade desse gênero e dos seus motivos espirituais. A cul-tura ática não pode manifestar a amplidão e profundeza da sua humanidade com maior clareza do que por meio da diferenciação e da integração do trágico e do cômico, operada no drama ático. Platão foi o primeiro a exprimi-lo, quando no final do Banquete faz Sócrates dizer que o verdadeiro poeta deve ser ao mesmo tempo trágico e cômico, em seguida exigência que o próprio Platão sa-tisfaz ao escrever um ao outro Fédon e o Banquete. Tudo na cultura ática estava

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disposto para a sua realização. Não só no teatro representava a tragédia frente à comédia, mas também ensinava, pela boca de Platão, que a vida humana tem de ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia. Essa pleni-tude humana é precisamente o sinal da sua perfeição clássica.

Atividades de aplicação

Leia este fragmento do artigo “O segredo dos poetas trágicos”, de Kathrin Rosenfield, e responda às questões a seguir.

Em todos os discursos de Creonte existe um duplo raciocínio que o pai procura comunicar discretamente ao seu filho e aos anciãos de Tebas. Um é jurídico – o rei expõe as razões do decreto e da condenação de Antígona (ele é obrigado a condená-la, pois ela é a “única” que ousou enfrentar o decreto, e o novo rei não pode arriscar ser chamado de “mentiroso” (H 682-4). Contudo, na própria argumentação de Creonte, há uma segunda lógica que corre por baixo das proposições explícitas. Essa lógica destila, implicitamente, as razões genealógicas que o obrigam a descartar os Labdácidas e Antígona. Para puri-ficar Tebas da tara do incesto, Creonte precisa instaurar as condições mínimas de uma sociabilidade propriamente humana, baseada no respeito das regras de troca, que abrem o espaço da comunidade para além da família ou do clã, proibindo trocas demasiadamente fechadas e endogâmicas. Esse duplo raciocínio manifesta-se na ambiguidade de uma fórmula gnômica (sentença do tipo provérbio), com a qual Creonte sublinha a necessidade de respeitar a ordem da família (parentes no interior da casa, gene) e do Estado (ordem entre casas para “fora”, famílias diversas).46 46 ROSENFIELD, Kathrin

Holzermayr. O segredo dos poetas trágicos. In: ________ (Org.). Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 158.

1. O texto acima demonstra que, além de toda a questão jurídica envol-vendo o decreto de Creonte, outro elemento dava razão à condena-ção de Antígona à morte, decretada pelo próprio Creonte, tornando- -se evidente a questão de que além de um problema jurídico, há um “problema de fundo”. Considerando-se a realidade contemporânea e os aspectos estudados sobre a tragédia, é possível dizer que, assim como no texto, por trás dos problemas jurídicos há sempre um outro conflito, que não se evidencia na questão jurídica?

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2. Ainda em relação ao texto, Creonte, com a intenção de livrar Tebas da maldição que assolava a família real e também proteger seu filho da relação com Antígona, publica seu édito e a condena à morte. Porém, apesar dessas intenções, as atitudes de Creonte acabam sendo o princí-pio da tragédia em sua própria família. Baseando-se nos estudos deste capítulo, responda qual foi o erro de Creonte que o levou à perdição?

3. A tragédia Antígona estimula seu leitor à reflexão sobre o conflito entre as dimensões superiores, anteriores, divinas e as questões da realidade e dos interesses terrenos, na relação entre o aqui e o agora. Transpondo tais ideias à atualidade, qual o paralelo que pode ser feito?

4. Baseado nos estudos da concepção de tragédia em Ésquilo, ligada ao desenvolvimento por intermédio do sofrimento, qual relação pode ser feita com o desenvolvimento do indivíduo?

5. Conforme visto, as comédias possibilitam um diferenciado tipo de for-mação aos seus espectadores; elas conseguem lidar com dimensões que não eram alcançadas nem pelas epopeias, nem pelas tragédias. Qual é o diferencial da formação pelas comédias? Com base nesse conceito, que relação pode-se fazer com a vida contemporânea, nas relações pessoais e profissionais?

Gabarito1. Com base no que foi estudado, constata-se que as questões mal resolvi-

das no plano existencial-afetivo, se não enfrentadas pelo indivíduo, mas tão somente suprimidas, se tornarão mais adiante um problema jurídico que poderá atingi-lo, tanto na esfera individual quanto profissional.

2. Creonte, obstinado por resolver tal situação, se esquece de atentar aos princípios de Justiça aos quais Antígona filia-se para defender sua causa. Desse modo, por melhor que fosse sua intenção, seu ato foi um atentado contra a vida, dando razão a todo seu sofrimento.

3. Pode-se relacionar a questão entre a individualidade, a subjetivida-de de Antígona, que nesse sentido procura lutar em favor daqueles princípios primeiros e que no homem contemporâneo se traduzem em sua busca pela mais profunda realização enquanto pessoa, e, por

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outro lado, a objetividade de Creonte, representando nesse aspecto as questões da cidade e o controle da sociedade sobre o indivíduo. É necessário saber administrar ambas as dimensões para tornar-se um homem de sucesso.

4. Conforme Ésquilo lecionava por intermédio de suas tragédias, o sofrimen-to é o sinal de que há algo de errado com o indivíduo, que necessita ser sa-nado; além de ser o sinal, o sofrimento possibilita ao homem que decidir enfrentá-lo compreender a causa desse sofrimento e resolver tal situação, gerando crescimento existencial, desenvolvimento. Determinadas passa-gens somente podem ser feitas passando-se pelo sofrimento.

5. A característica marcante das comédias é a possibilidade de se retratar uma realidade da forma como ela é, mascarando-a com os exageros e o satirismo que torna os eventos cômicos. Desse modo, torna-se pos-sível retratar aos espectadores a realidade de um modo que não os inspire instinto de autodefesa ou rejeição do argumento, sutilmente a representação entra no indivíduo e pode levá-lo à reflexão sobre a importância ou não do seu comportamento. Nesse sentido, as repre-sentações cômicas são um ótimo recurso de formação humana, auxi-liando-o a melhorar sua postura dentro das relações interpessoais, ou no âmbito profissional.

ReferênciasARISTÓFANES. Lisístrata. Tradução de: FERNANDES, Millôr. São Paulo: Abril, 1977.

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 17. ed. Tradução de: CARVALHO, An-tonio Pinto de. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 258.

ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. 19. ed. Tradução de: MELLO E SOUZA, J.B. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 119.

EURÍPEDES. Medeia. Tradução de: SILVEIRA, Miroel; GONÇALVES, Junia Silveira. São Paulo: Martin Claret, 2007.

______. Hécuba. 864. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPEDES. Os Persas, Electra, Hécuba. 6. ed. Tradução de: KURY, Mário da Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

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Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias

JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. Tradução de: PARREIRA, Artur M. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LESKY, Albin. A Tragédia Grega. 3. ed. Tradução de: GUINSBURG, J.; SOUZA, Geral-do Gerson de; GUZIK, Alberto. São Paulo: Perspectiva, 1996.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. O segredo dos poetas trágicos. In: ______ (Org.). Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 158.

Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

IntroduçãoA história da Filosofia traz os pré-socráticos como os primeiros pensado-

res da filosofia ocidental. São assim chamados por serem, em sua maioria, filósofos anteriores a Sócrates. Para além das várias escolas de pensamento que existiram no período dos pré-socráticos, há uma ideia que reunia todos e os diferenciava dos poetas e dos tragediógrafos e comediógrafos: a neces-sidade de explicar o mundo a partir da relação entre causa e efeito, a busca por princípios que expliquem por que as coisas são como são. Por isso a physis (natureza) é fundamental para esses pensadores: não se trata mais de explicar de forma mítica, mas de forma investigativa.

Os pré-socráticos não formavam um bloco único, uma mesma linha de pensamento, mas várias segmentações que a história da Filosofia chamou de escolas, como a Escola Jônica, a Eleática e a Pitagórica. Ainda assim, todas elas continham o mesmo fundamento, um pensamento cosmológico e ligado à natureza, com as concepções sendo baseadas no kósmos e na physis. Entre os pré-socráticos quase não havia distinção entre Ontologia e existência, e as questões políticas, éticas e jurídicas eram inclusas nesse centro, e não partes externas, que merecessem análises particulares.

Essa concentração numa pesquisa cosmológica gerou histórias como aquela narrada por Platão no Teeteto, em que uma escrava trácia ri do filóso-fo Tales de Mileto porque este, distraído com as coisas do céu, se esquece das coisas do mundo e cai num buraco. Essa imagem não pode ser vista como verdadeira, porque vários pensadores pré-socráticos foram legisladores e políticos em seus tempos. Anaximandro de Mileto interviu fortemente nos meios sociais, e Parmênides de Eleia, inclusive, deu leis à sua cidade. Os pré- -socráticos não eram alienados da polis, apenas situavam-na dentro de uma ordem maior e preestabelecida, o cosmos.

[...] é importante verificar que o que é comum ao pensamento pré-socrático é a preocupação com a vida humana mais concreta, inserida, no entanto, dentro de uma ordem cosmológica (kósmos) maior que a própria ordem da cidade (polis), e isso vem revelado não somente pela atuação concreta desses filósofos em assuntos políticos e legislativos, mas especialmente pela linguagem que utilizam, carregada que está de metáforas jurídicas, aforismos e significações extraídas da vida política, da vida cívica, da vida em comum.1

1 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direi-to. 7. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 74.

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Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

Os pré-socráticos utilizavam-se frequentemente do termo diké para expri-mir seus significados de Justiça, palavra que vem do verbo deíknymi, que sig-nifica pedir justiça ou ser acusado dela, refere-se à própria ação da Justiça.

Escola JônicaNa Escola Jônica encontram-se os primeiros fragmentos acerca de um

conceito de Justiça na história da Filosofia. O iniciador dessa escola foi Tales de Mileto, que disse que a água é o princípio de todas as coisas. Essa tenta-tiva de encontrar uma explicação além da simples observação sensível fun-damenta a passagem do pensamento mítico para o pensamento racional. Os pré-socráticos, assim como Homero e Hesíodo, pensam o mundo como uma ordem preconcebida. Embora os mitos já contivessem elementos de racionalidade, e inclusive Hesíodo mencionasse o Oceano como origem das coisas, é somente com Tales que isso se modifica de uma exposição mítica para um esforço explicador, que tente encontrar na natureza um porquê de ela ser o princípio2 primeiro de todas as coisas. Tales de Mileto fundamentou isso ao observar que todas as coisas continham água, e que a vida frutifica-se a partir do úmido. Como Tales de Mileto notabilizou-se também por seus co-nhecimentos em astronomia, geometria e meteorologia, entende-se que a água aqui evocada é justamente a água em sentido material, como princípio elementar da natureza.

Contudo, é com o seguidor de Tales, Anaximandro de Mileto, que o termo Justiça finalmente surge na Filosofia. Anaximandro identifica o princípio de todas as coisas não na água, mas no indefinido, no ilimitado, aquilo que ele chamou de ápeiron3. Em um de seus fragmentos encontra-se: “[...] Princípio dos seres [...] ele disse que era o ilimitado [...]. Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois, concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo”4.

O ápeiron é essa lei permanente que governa o cosmos, na perspectiva em que os contrários se complementam formando uma ordem, uma regu-laridade, uma certeza, e, por consequência, Justiça.5 O pensamento de Ana-ximandro orienta-se no sentido de que há uma Justiça no cosmos que se sustenta numa espécie de equilíbrio pendular, em que o excesso de um lado exige ação contrária para restabelecer o equilíbrio original. Por isso o crime não é uma ação que destrói a ordem, mas uma ação que apenas alarga seu

2 “Princípio não é certa-mente um termo de Tales (que parece ter sido forjado por seu discípulo, Anaxi-mandro), mas é sem dúvida o termo que, melhor do que qualquer outro, indica o pensamento de que a água é origem de tudo. Pois bem, o princípio-água não tem absolutamente mais nada a ver com o caos hesiodiano, nem com qualquer princípio mítico. É, como diz Aristóteles, “aquilo de que derivam ori-ginariamente e em que se dissolvem por último todos os seres”, é “uma realidade que permanece idêntica na transformação das suas afecções”, vale dizer, uma realidade “que continua a existir intransformada”, mesmo através do proces-so gerador de tudo. Por-tanto, é a) fonte ou origem das coisas; b) foz ou termo último das coisas, c) perma-nente sustento (substância, diremos um termo poste-rior) das coisas. Em suma, o “princípio é aquilo do qual as coisas vêm, aquilo que são pelo que são, aquilo no qual terminam. Tal princípio foi denomina-do com propriedade por esses primeiros filósofos (senão pelo próprio Tales) de physis, palavra que não significa ‘natureza’ no senti-do moderno do termo, mas realidade primeira, originá-ria e fundamental; significa, como foi bem assinalado, “o que é primário, fundamen-tal e persistente, em opo-sição ao que é secundário, derivado e transitório”. (REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tra-dução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 1993. p. 52-53. v. I.)3 Sobre o significado de ápeiron, para Anaximan-dro, cita-se a explicação de Reale: “Digamos logo que ápeiron é só imperfeitamen-te traduzido por infinito e i-limitado, porque contém algo mais que os dois termos portugueses não translatam. Á-peiron signifi-ca o que é privado de peras, isto é, de limites e deter-minações não só externas, mas também internas. No primeiro sentido, ápeiron indica o infinito espacial, infinito em grandeza, isto é, o infinito quantitativo; no segundo, ao invés, o inde-finido quanto à qualidade, portanto, o indetermina-do qualitativo. O infinito anaximandriano devia ter, pelo menos implicitamen-te, essas duas valências: de fato, enquanto gera e abraça infinitos universos, deve ser espacialmente infinito, e, enquanto não é determinável como a água, o ar etc., é qualitativamente indeterminado”. (REALE, Giovanni. História da Filo-sofia Antiga. p. 52-53.)

4 Fragmento extraído da Física de Simplício. Os Pensadores (1996, p. 50).

5 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direi-to, p. 76.

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Os pré-socráticos utilizavam-se frequentemente do termo diké para expri-mir seus significados de Justiça, palavra que vem do verbo deíknymi, que sig-nifica pedir justiça ou ser acusado dela, refere-se à própria ação da Justiça.

Escola JônicaNa Escola Jônica encontram-se os primeiros fragmentos acerca de um

conceito de Justiça na história da Filosofia. O iniciador dessa escola foi Tales de Mileto, que disse que a água é o princípio de todas as coisas. Essa tenta-tiva de encontrar uma explicação além da simples observação sensível fun-damenta a passagem do pensamento mítico para o pensamento racional. Os pré-socráticos, assim como Homero e Hesíodo, pensam o mundo como uma ordem preconcebida. Embora os mitos já contivessem elementos de racionalidade, e inclusive Hesíodo mencionasse o Oceano como origem das coisas, é somente com Tales que isso se modifica de uma exposição mítica para um esforço explicador, que tente encontrar na natureza um porquê de ela ser o princípio2 primeiro de todas as coisas. Tales de Mileto fundamentou isso ao observar que todas as coisas continham água, e que a vida frutifica-se a partir do úmido. Como Tales de Mileto notabilizou-se também por seus co-nhecimentos em astronomia, geometria e meteorologia, entende-se que a água aqui evocada é justamente a água em sentido material, como princípio elementar da natureza.

Contudo, é com o seguidor de Tales, Anaximandro de Mileto, que o termo Justiça finalmente surge na Filosofia. Anaximandro identifica o princípio de todas as coisas não na água, mas no indefinido, no ilimitado, aquilo que ele chamou de ápeiron3. Em um de seus fragmentos encontra-se: “[...] Princípio dos seres [...] ele disse que era o ilimitado [...]. Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois, concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo”4.

O ápeiron é essa lei permanente que governa o cosmos, na perspectiva em que os contrários se complementam formando uma ordem, uma regu-laridade, uma certeza, e, por consequência, Justiça.5 O pensamento de Ana-ximandro orienta-se no sentido de que há uma Justiça no cosmos que se sustenta numa espécie de equilíbrio pendular, em que o excesso de um lado exige ação contrária para restabelecer o equilíbrio original. Por isso o crime não é uma ação que destrói a ordem, mas uma ação que apenas alarga seu

2 “Princípio não é certa-mente um termo de Tales (que parece ter sido forjado por seu discípulo, Anaxi-mandro), mas é sem dúvida o termo que, melhor do que qualquer outro, indica o pensamento de que a água é origem de tudo. Pois bem, o princípio-água não tem absolutamente mais nada a ver com o caos hesiodiano, nem com qualquer princípio mítico. É, como diz Aristóteles, “aquilo de que derivam ori-ginariamente e em que se dissolvem por último todos os seres”, é “uma realidade que permanece idêntica na transformação das suas afecções”, vale dizer, uma realidade “que continua a existir intransformada”, mesmo através do proces-so gerador de tudo. Por-tanto, é a) fonte ou origem das coisas; b) foz ou termo último das coisas, c) perma-nente sustento (substância, diremos um termo poste-rior) das coisas. Em suma, o “princípio é aquilo do qual as coisas vêm, aquilo que são pelo que são, aquilo no qual terminam. Tal princípio foi denomina-do com propriedade por esses primeiros filósofos (senão pelo próprio Tales) de physis, palavra que não significa ‘natureza’ no senti-do moderno do termo, mas realidade primeira, originá-ria e fundamental; significa, como foi bem assinalado, “o que é primário, fundamen-tal e persistente, em opo-sição ao que é secundário, derivado e transitório”. (REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tra-dução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 1993. p. 52-53. v. I.)3 Sobre o significado de ápeiron, para Anaximan-dro, cita-se a explicação de Reale: “Digamos logo que ápeiron é só imperfeitamen-te traduzido por infinito e i-limitado, porque contém algo mais que os dois termos portugueses não translatam. Á-peiron signifi-ca o que é privado de peras, isto é, de limites e deter-minações não só externas, mas também internas. No primeiro sentido, ápeiron indica o infinito espacial, infinito em grandeza, isto é, o infinito quantitativo; no segundo, ao invés, o inde-finido quanto à qualidade, portanto, o indetermina-do qualitativo. O infinito anaximandriano devia ter, pelo menos implicitamen-te, essas duas valências: de fato, enquanto gera e abraça infinitos universos, deve ser espacialmente infinito, e, enquanto não é determinável como a água, o ar etc., é qualitativamente indeterminado”. (REALE, Giovanni. História da Filo-sofia Antiga. p. 52-53.)

4 Fragmento extraído da Física de Simplício. Os Pensadores (1996, p. 50).

5 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direi-to, p. 76.

excesso. Para reconstruir o equilíbrio pendular é necessária a pena, o castigo, momento em que surge a diké.

O raciocínio de Anaximandro é particularmente provocante para os dias atuais, pois em nossa sociedade tendemos a atacar e culpar partes do corpo social pelos fracassos gerais. O povo culpa os políticos pela inércia e impro-bidade, que por sua vez culpam os empresários por muitas vezes não lem-brarem do social, que também colocam a culpa nos legisladores que criam normas muitas vezes absurdas. Os acadêmicos e cientistas teorizam e con-denam a todos pelas atitudes erradas, e também são atacados por todos por pensarem em demasia e pouco agirem. Em situação ainda mais dramá-tica estão os marginalizados pela sociedade, que são sempre vistos como vítimas ou criminosos. Isso tudo é trazido apenas a título de exemplo. Ora, Anaximandro não retira nada desse equilíbrio pendular, todos os excessos já fazem parte da ordem, de forma que não adianta culpar aquele movimento contrário ou a ineficiência daquela parte, pois somos todos partes de um mesmo corpo: a sociedade. Se a sociedade não está em estado de funciona-lidade, não é porque aquela classe ou grupo provocou, mas porque também nós não fizemos nossa parte, logo também somos responsáveis pelo fracas-so. Logo se vê que Anaximandro pensa o Direito e a Justiça muito além dos decretos legislativos e sentenças dos juízes; as leis e tribunais são partes do movimento da Justiça, e não a diké por completa. A reflexão de Bittar vem nesse sentido:

Não há separação, portanto, entre a ordem dos fenômenos causais-naturais e a ordem dos fenômenos ético-sociais; tudo indica que há uma transposição efetiva da noção de culpa- -responsabilidade das relações ético-jurídicas para a esfera das relações físico-naturais, na medida em que o fragmento revela uma interconexão mais do que lógica, revela uma implicação ético-jurídica ao nível do físico natural, a ponto de o kósmos vir-se a revelar a base desse movimento, onde o mecanismo da causa-e-efeito funciona como instrumento do equilíbrio geral das coisas entre si.6

Depois de Anaximandro, a Escola Jônica continuaria com Anaxímenes de Mileto, que identificaria como princípio de todas as coisas o ar. O avanço que trouxe Anaxímenes foi no sentido de acrescentar ao estudo da arché a forma de como se originam desse princípio primeiro todas as demais coisas, que para esse filósofo se dava nos processos de rarefação e condensação. O ar, quando esquenta, dilata-se e dá origem ao fogo, e quando esfria, se contrai e dá origem à água e depois à terra. Importante ainda esclarecer que Ana-xímenes concebe seu pensamento partindo não somente do aprendizado com os predecessores da Escola Jônica, mas também com a prática empírica, pois percebeu que inclusive o homem vive devido ao movimento de entrada

6 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direi-to, p. 77.

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e saída de ar, por exemplo. Além do mais, ao atribuir ao princípio uma condi-ção determinada, às vezes visível e às vezes invisível, conseguiu inclusive se distanciar de seu mestre Anaximandro.

Da água de Tales para o ápeiron de Anaximandro e por fim para o ar em Ana-xímenes. A busca por um princípio originário, através de exames racionais, é a grande contribuição da Escola Jônica. Os jônicos trouxeram a ideia de ordem no mundo, em que todas as dimensões coexistem em equilíbrio pendular. A necessidade de explicação talvez seja o argumento principal para demonstrar a passagem que os filósofos jônicos fizeram em relação aos poetas.

Os pluralistasNão podemos constituir os filósofos pluralistas como uma escola, pois não

houve um contato entre eles como de mestre e discípulo, tal como ocorria nas demais escolas filosóficas do período. Os dois maiores nomes dessa linha de pensamento, Anaxágoras de Clazómenas e Empédocles de Agrigento, possuí-am em comum somente o fato de conceberem a causa de todas as coisas não em um único princípio, como água, ar etc., mas numa pluralidade deles.

Empédocles foi o primeiro a identificar a água, a terra, o ar e o fogo como os quatro elementos da natureza, e daí construiu seu pensamento. Esse filó-sofo dizia que todas as coisas se formavam a partir da junção ou separação desses elementos, ou seja, pela amizade ou pelo ódio, e que, portanto, tudo continha esses quatro. Isso significa que a diferença entre todas as coisas se daria justamente na diferença quantitativa entre os elementos. Para Empé-docles, a própria ideia de elemento indica ser este um dado original, que não pode ser modificado qualitativamente, como pensavam os jônicos.

A questão do amor e do ódio como é concebida por Empédocles pode ser percebida também nas dimensões sociais, políticas, jurídicas, econômi-cas etc. A família se gera pela união, e se corrompe pela separação; o mesmo vale para a sociedade. Um contrato também se gera pela união, pela conver-gência de interesses, e se corrompe pela ausência deles. Contudo, deve-se ter o cuidado de não conceber o amor como polo positivo e o ódio como um negativo, assim como corrupção aqui não necessariamente tem a ideia de corrupção como quebra de princípios, valores etc. Sem a corrupção não há quebra da imobilidade, não há movimento. A semente, para tornar-se árvore completa, precisa negar sua condição inicial, ou seja, precisa haver uma corrupção na sua forma de semente. Nesse exemplo, a corrupção gera

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algo positivo, uma árvore. Da mesma forma, uma sociedade em crise pre-cisa corromper seu sistema atual e adotar novos métodos, ou persistirá no erro. O essencial de se extrair de Empédocles é que a mudança das coisas acontece quando os elementos tornam-se um todo unitário ou deixam de ser esse todo. Nesse sentido, vemos que muitas associações não são reuni-ões verdadeiras de elementos, mas apenas manutenção de uma imagem; muitas vezes não existe ali uma união de interesses entre os sócios, pois há divergência de objetivos, ideias, ambições, e nesse caso talvez a corrupção seja uma tendência inevitável.

Já Anaxágoras coloca a pluralidade em princípios múltiplos que ele chamou de homeomerias, os elementos básicos da natureza, que seriam se-mentes nas quais estariam já inclusas materialmente todas as qualidades que depois formariam todos os seres. Anaxágoras trabalha também a ideia de Inteligência, ou Espírito, para alguns estudiosos, que seria a força que agiria unindo ou separando as coisas e formando os seres. Para o filósofo, todas as coisas participam de tudo, apenas a Inteligência é capaz de agir sem receber algo dos outros seres, conforme se esclarece no fragmento de Anaxágoras:

E visto as porções do grande e do pequeno serem iguais em número, assim também todas as coisas estariam contidas em tudo. Nem é possível haver nada de isolado, mas todas as coisas têm uma parte no todo. Como o mínimo não pode existir, nada se pode dividir nem formar por si, mas, tal como inicialmente, também agora tem de estar tudo junto. Em todas as coisas há um grande número de ingredientes, iguais em número nas coisas maiores e nas mais pequenas, que estão a separar-se. Em todas as coisas há uma porção de tudo, exceto Espírito; e há algumas em que também existe Espírito.7

Contudo, a Inteligência como apresenta Anaxágoras não pode ser con-fundida com alguma forma divina ou mesmo metafísica. Os comentadores em geral preferem entender a Inteligência como uma forma material, ainda que invisível.8

A Escola AtomísticaA Escola Atomística inicia-se com Leucipo de Abdera e consegue seu

ápice com Demócrito de Abdera. Esses filosófos, assim como Anaxágoras e Empédocles, também situavam o princípio de todas as coisas na pluralidade, em contraposição ao monismo dos jônicos. Na Escola Atomística os átomos são o princípio de toda a physis, a origem de todo o mundo material.

Mas devemos esclarecer ainda um ponto fundamental. Aos ouvidos modernos a palavra “átomo” evoca inevitavelmente os significados que o termo adquiriu na moderna ciência, de Galileu à física contemporânea. Pois bem, é preciso despojar a palavra átomo desses

7 ANÁXOGORAS. Frag-mento. In: KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-So-cráticos. 4. ed. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Funda-ção Calouste Gukbenkian, 1994. p. 385.

8 A verdade é que Anaxá-goras não possui o con-ceito do imaterial assim como não possui o con-ceito do material enquan-to tal. Como sabemos, por tê-lo encontrado outras vezes nos pensadores precedentes, o horizonte especulativo dos pré- -socráticos ignora as duas categorias de matéria e espírito, e a introdução dessas como cânones hermenêuticos comporta uma fatal inflexão do pen-samento daqueles filóso-fos. Justamente por isso foi observado que com Anaxágoras “o pensamen-to do divino se afina, mas não consegue separar-se dos seus pressupostos na-turalistas”. (REALE, Giovan-ni. História da Filosofia Antiga. p. 148-149.)

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significados, se quisermos descobrir o sentido ontológico originário segundo o qual entenderam os filósofos de Abdera. O átomo dos abderianos traz em si o selo típico do pensar helênico: é átomo-forma, é átomo que se diferencia dos outros átomos pela figura, ordem e posição, é átomo eideticamente pensado e representado.9

Como se percebe, os átomos constituem uma estrutura intrínseca ao ser, pela figura, ordem e posição. Com esse pensamento concilia-se a multiplici-dade na unidade, isto é, um princípio, o átomo, mas existente numa multi-plicidade, constitui o elemento que dá fundamento a todas as coisas. Nesse sentido, consegue explicar a diversidade da existência ao mesmo tempo em que não necessita recorrer a variados elementos. A Escola Atomística é consi-derada, cronologicamente, um momento já de transição entre o pensamento cosmológico e o pensamento socrático, pois Demócrito inclusive teria sido contemporâneo de Sócrates. Por isso a filosofia de Demócrito é repleta de fragmentos que elucidam também um teor ético, político e jurídico. Em geral as sentenças de Demócrito defendem uma ética do dever, como se retrata na frase seguinte: “Não por medo, mas por dever, evitai os erros”. Mais complexo ainda é o fragmento em que Demócrito ressalta a necessidade de se realizar, e sobretudo realizar obras lícitas e justas: “Quem de boa vontade se lança a obras justas e lícitas, dia e noite está alegre, seguro e despreocupado; mas quem não faz conta da Justiça e não realiza o que é preciso, entedia-se com coisas tais, quando se lembra de alguma delas, sente medo e atormenta-se a si mesmo”. As contribuições de Demócrito, portanto, alcançam inclusive o campo da Filosofia Moral, da Ética, da Política e do Direito. Ademais, como se percebe na última sentença, Demócrito possuía problemas inclusive com a subjetividade da consciência do indivíduo, ressaltada nas expressões utiliza-das, como “boa vontade” e “atormenta-se a si mesmo”. O problema da neces-sidade de o indivíduo realizar e construir a própria vida sob pena de sofrer tormento causado por si mesmo somente séculos depois receberia maior atenção da Filosofia e, sobretudo, da Psicologia.

Os comentários esboçados acima demonstram como Demócrito era um homem consciente de seu tempo, e que sua filosofia não era dirigida somen-te às questões cosmológicas, mas também ao aspecto humano, e seu pensa-mento muito bem poderia ser apresentado como uma forma de pedagogia.

Retomando a questão cosmológica, Demócrito entendia todas as coisas como uma relação harmônica entre o átomo e o vazio. Nesse sentido, o átomo deve ser entendido como o cheio, o completo e inteiro. Ou seja, há uma ordem que envolve o preenchimento dos seres, e é justamente essa relação que fundamenta suas sentenças éticas e jurídicas. Uma das mais cé-

9 REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga, p. 154.

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lebres frases de Demócrito é: “Ceder à lei, ao chefe e ao mais sábio é pôr-se em seu lugar”. Tudo possui um lugar determinado, uma certa posição, e o indivíduo deve ouvir aquele que é mais sábio que ele. Na sociedade contem-porânea, a pedagogia atomística pode ser identificada em toda organização, Estado ou qualquer espaço que se regulamente através de uma hierarquia que defenda uma meritocracia, ou seja, um sistema formado por indivíduos, por átomos. E cada átomo em seu lugar, sendo que os indivíduos mais pre-parados ocupam lugares determinados, e os indivíduos que ainda estão em formação devem ouvir os superiores.

A Escola PitagóricaOs pitagóricos foram um célebre grupo de filósofos que se notabilizaram

por carregar as mesmas ideias, baseadas na concepção de que o número é o princípio de todas as coisas. O grande iniciador dessa escola foi Pitágoras de Samos, figura complexa que contribuiu enormemente com a Matemática, criou uma seita religiosa, influenciou a construção da filosofia posterior, e realizou ainda estudos em diversas áreas do conhecimento. Os pitagóricos foram mentes que da Astronomia à Música, da Matemática à Cosmologia, da Política ao Direito, tentaram entender o princípio que se situa além da aparência e que dá fundamento a todas as coisas.

Para entender melhor o número como princípio, observa-se a citação de Giovanni Reale:

Os números são todos agrupáveis em duas espécies, pares e ímpares (sendo que o um é exceção, enquanto capaz de gerar tanto o par como o ímpar: acrescentando o um a um número par gera-se o ímpar, enquanto acrescentando-o a um ímpar gera-se o par, o que demonstra que ele traz em si a capacidade geradora tanto de pares como de ímpares e por isso participa de ambas as naturezas). E porque, como sabemos, cada coisa é redutível a um número, cada uma é expressão de números pares ou ímpares.10

Para os pitagóricos o cosmos se constitui de uma dualidade: pluralidade dos existentes e unidade dos números. Ou seja, os números são a essência de todas as coisas, e os existentes, no qual se incluem tanto as coisas em geral como o homem, são resultados de uma certa proporcionalidade numérica. Através de raciocínios, observações e cálculos, os pitagóricos compreende-ram que em tudo existe uma proporcionalidade, uma espécie de razão que governa a existência em geral. Dessa forma, esses filósofos calcularam me-didas no espaço, observaram planetas, analisaram a música, e entre outras experiências encontraram fundamento para sua filosofia.11

10 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga, p. 81.

11 Reale apresenta o método de observação utilizado pelos pitagóri-cos: “Em primeiro lugar, os pitagóricos notaram como a música (que cul-tivavam como meio de purificação) era traduzível por número e por deter-minações numéricas; a diversidade dos sons que produzem os martelos a bater sobre a bigorna depende da diferença do seu peso; a diversidade dos sons de um instru-mento de cordas depen-de da diferença do com-primento de cordas; e, em geral, eles descobriram as relações harmônicas de oitava, quinta e de quarta e as leis matemáticas que as governam. E ao estu-dar diferentes fenômenos do cosmo, também neste âmbito, notaram a inci-dência determinante do número: são precisas leis numéricas que determi-nam o ano, as estações, os dias etc.; são precisas leis numéricas que regulam os tempos de incubação do feto, os ciclos de desen-volvimento e os diferentes fenômenos da vida”.

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Os pitagóricos utilizaram-se também da simbologia numérica para retratar suas ideias, como quando diziam que o número 3 representava a igualdade, pois era a soma dos dois componentes anteriores, ou que o número 4 seria a essência do ser, pois tanto pelo somatório como pela multiplicação das díades encontramos o mesmo algarismo. Por fim, o número 10 é a máxima perfeição, já que contém a soma de todos os anteriores (1, 2, 3, e 4).

Com isso os pitagóricos demonstram que em tudo existe simetria, harmo-nia, proporcionalidade. Não somente a estética grega receberá suas contribui-ções, mas sobretudo o Renascimento. A ideia de Belo como proporcionalidade, simetria perfeita, se refletirá nas mais geniais obras do período renascentista, como Leonardo da Vinci, Rafael de Sanzio, Michelangelo, entre outros.

Cretella Junior também traz algumas das contribuições de Pitágoras para o Direito, ao se referir que é nele que Aristóteles se fundamentará para cons-truir sua classificação de Justiça em distributiva, corretiva e comutativa, e observaria toda a complexa questão geométrica para fundamentar seu cri-tério de Justiça, que Dante Alighieri formulará seu conceito de Direito como proporção (proportio), e que Beccaria argumentará a necessidade de uma proporcionalidade entre o delito e a pena.

Existe uma medida perfeita, uma medida que inserida em harmonia cons-titui beleza estética e também Justiça, e essa é a grande contribuição pitagó-rica. A inserção da proporcionalidade como fundamento de verdade, de cri-tério e inclusive de estética, do Belo, retratando a harmonia simétrica como aspecto divino, ressoará em todas as dimensões da vida humana. Trata-se de um certo tipo de proporção, de medida perfeita que devemos cultivar a todo momento, uma simetria na qual qualquer atividade, qualquer ofício se realiza como se fosse uma obra de arte. A mesma harmonia matemática que cria a beleza da arte é a que sustenta um exame justo do Direito. Há sempre uma medida perfeita a ser agida, uma decisão ideal a ser tomada.

Na política, é impossível se pensar a problemática democrática sem a questão numérica. O mundo contemporâneo perdeu a ideia de harmonia, transformando tudo numa ditadura da maioria. Não se adquire o melhor produto, não se cultua a arte mais bela e viva, mas aquele produto que a maioria compra, aquela arte que a maioria consome, ainda que sem qual-quer critério objetivo. No Direito, na moda, na ciência, na arte, no mercado, em tudo vale a lógica democrática da violência do número, no qual não há qualquer proporcionalidade. E sem proporcionalidade não há nem o Belo, nem o verdadeiro, nem o justo.

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A Escola EleataCom o pensamento eleático, que se inicia com Xenófanes de Colofão, segue

e alcança sua maior importância com Parmênides de Eleia, e recebe ainda contribuições posteriores do discípulo Zenão de Eleia, a Filosofia finalmente elabora aquilo que podemos chamar de metafísica. Afirma-se que os eleatas, em especial Parmênides, criaram a disciplina da Ontologia12. A revolução pro-vocada pelo poema de Parmênides intitulado “Sobre a natureza”, primeiro tra-tado filosófico em versos e o qual restam alguns fragmentos, está justamente no fato de o autor ter declarado que toda compreensão sensível, todo exame humano a partir da existência corpórea situa-se apenas na doxa, na opinião, e ainda que estas possam conter traços de verdade, conseguem ver apenas partes do Ser, jamais este em sua totalidade. O Ser em sua completude e per-feição somente é encontrado pela via racional da aletheia, da verdade, que se encontra apenas no puro pensamento, numa dimensão afastada da insegu-rança e instabilidade das compreensões humanas. O caminho da verdade leva o homem até a verdade do Ser. Em Parmênides encontramos pela primeira vez a contraposição entre opinião e verdade, questão que será problematiza-da metaforicamente por Platão em sua alegoria da caverna. O pensamento de Parmênides advém de Xenófanes, que era contrário à tradição politeísta dos gregos, que sempre cultuaram deuses antropomorfos, ou seja, que possuem não somente aparência humana, mas também virtudes e defeitos humanos. Para Xenófanes e Parmênides, o Ser é um deus único, é a própria verdade.

Por isso que Parmênides sustentava que o ser possui algumas proprie-dades que o distingue das simples aparências e fenômenos. O Ser é eterno, imutável, perfeito, incorruptível, pleno, único, uno e imóvel. A simbologia do Ser é o círculo, por ele ser perfeito, uno, sem início nem fim; no círculo tudo é unidade plena e perfeita. A Ontologia de Parmênides – representada na sua máxima: “o Ser é e o Não-Ser não é” – influenciará decisivamente a filo-sofia posterior, pois as metafísicas platônica e aristotélica somente podem ser concebidas com a influência parmenidiana, bem como a filosofia cristã medieval de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino apenas poderão cons-truir seus sistemas a partir da ideia de um único Ser completo e perfeito e demonstrado também rigorosamente e logicamente, portanto ontologica-mente. E é praticamente impensável qualquer discussão filosófica posterior sem o conceito ontológico de ser, pois continuaremos nele, seja na esco-lástica medieval, seja no idealismo alemão, seja nos existencialistas, como veremos em capítulos posteriores.13

12 A palavra Ontologia é formada pelos vocábulos onto, que deriva do verbo einai (ser), e logia, que vem de logos, portanto, o “estudo do ser”.

13 Sobre a importância de Parmênides para a história da Filosofia, vejamos o que assinala Reale: “Nesse princípio parmenidiano, os intérpretes há muito indicaram a primeira gran-diosa formulação do prin-cípio de não contradição, isto é, aquele princípio que afirma a impossibili-dade de os contraditórios coexistirem simultanea-mente. No nosso caso, os contraditórios são exata-mente os dois supremos contraditórios ‘Ser’ e ‘Não-Ser’: se há ser, diz o Eleata, não pode haver o Não-Ser. É esse o grande princípio que receberá de Aristóteles a sua mais cé-lebre formulação e defesa, e que constituirá não só o fundamento de toda a lógica antiga, mas de toda a lógica do Ocidente. Ade-mais, Parmênides aplicará o princípio quase exclusi-vamente na sua valência ontológica, e só Aristó-teles desenvolverá siste-maticamente as valências lógicas e gnosiológicas correspondentes”. (REALE, Giovanni. História da Fi-losofia Antiga. p. 109.)

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Importante distinguir os conceitos de ser e Ser. O ser pode ser entendido como ente, como uma categoria individual. O Ser é a totalidade racional, o princípio de todo o cosmos. O Ser põe o ser, de forma que o ente deve viver conforme seu princípio criador, que é ligado ao Ser. Parmênides era dotado de uma profunda intuição teológica.

Acerca do conceito de ser para Parmênides, é certo que não se trata de um ser despojado de matéria, pois alusões ao ser como esfera, por exem-plo, confirmam a ideia que o ser de Parmênides também não se distinguiu completamente da physis. Contudo, a grande inovação aqui é a convicção na imobilidade e singularidade do ser como princípio do cosmo, e mais do que isso, a afirmação de que ser e pensar são a mesma coisa. Ora, o pensar é ati-vidade propriamente metafísica, logo, Parmênides, ainda que não claramen-te, foi essencial para o início das investigações além da matéria na Filosofia. Não há uma matéria específica que seja princípio das coisas, como seriam a água, o fogo, ou mesmo o ápeiron ou as homeomerias, mas sim o próprio ser,14 esse dado inabalável e que constitui qualquer afirmação, pois tudo que exprimimos e pensamos está no ser, do contrário assim não o faríamos. O homem não pode exprimir o Não-Ser, pois este simplesmente não é, logo não faz qualquer realidade, e não há contato com a realidade humana. Essa discussão conduziria a Ontologia ao ser metafísico defendido por Platão, Aristóteles e os filósofos medievais.

Perguntemo-nos agora, antes de percorrer as outras duas vias, o que é esse “ser” parmenidiano. É claro que não se trata de ser imaterial, como alguns pretenderam: o caráter de esfera e expressões como “todo cheio de ser” e semelhantes, o dizem de modo muito eloquente. Mas não é o caso de insistir em sua materialidade: estamos ainda aquém da descoberta de tais categorias. Todavia é claro que o ser parmenidiano é o ser do cosmo, imobilizado e em grande parte purificado, mas ainda claramente reconhecível: é, por paradoxal que isso possa soar, o ser do cosmo sem o cosmo.15

A categoria Justiça aparece em Parmênides obviamente ligada ao Ser. Existe uma Justiça a priori, que é perfeita. Não pode haver um relativismo na questão da Justiça, pois todo relativismo está nas questões sensíveis da com-preensão humana, jamais na verdade perene do Ser. Logo, há uma medida de Justiça que se aplicada somente pode resultar em verdade. Bittar chega a afirmar que a Justiça é uma exigência lógica no poema de Parmênides.

Sobre Parmênides, diversas reflexões são possíveis, mas nos ateremos a algumas apenas. Percebe-se que ele é repleto de intuição filosófica e teoló-gica, uma intuição que é capaz de afirmar, categoricamente, que toda em-piria não passa de simples compreensão humana, parte da verdade apenas, jamais a verdade em sua integridade. O fato de um pensador como Parmê-

14 “A diferença entre esse ser e o princípio dos jôni-cos é evidente. Como o princípio dos jônicos, o ser parmenidiano é ingênito e incorruptível, mas não é ‘princípio’ porque não há, para Parmênides, ‘princi-piado’. E não há, porque o ser, ademais de ingênito e incorruptível, é inalte-rável e imóvel, enquanto o princípio dos jônicos gerava todas as coisas justamente alterando-se e movendo-se. E enfim não há princípio, porque o ser é absolutamente igual, in-diferenciado e indiferenci-ável, enquanto o princípio dos jônicos gerava as coisas diferenciando-se e transformando-se. Assim o ser parmenidiano per-manece numa posição ambígua: ele não é mais princípio nem cosmo, e no entanto não é ainda di-ferente do ser do princípio naturalista e do cosmo”. (REALE, Giovanni. Histó-ria da Filosofia Antiga. p. 111.)

15 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga, p. 111.

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nides confiar na intuição contra a experiência empírica pode parecer ousado a nossos dias, o que certamente deveria servir para reflexão. O quanto há de verdade no que experimentamos, sabemos, vivenciamos? Que realidade metafísica existe além daquele fenômeno? Para o jurista, qual a verdade que se esconde atrás do argumento apresentado pela outra parte; em muitos casos, para além de um raciocínio aparentemente lógico e consistente existe apenas um dilema, que precisa ser resolvido. O mesmo vale para o empreen-dedor, para o homem do business. Muitas vezes é essencial confiar na intui-ção, pois apenas ela é capaz de conferir ao indivíduo informações que estão além do que os cinco sentidos externos assinalam. Por fim, poder-se-ia tratar da necessidade de um critério ontológico, de um critério natural e racional que está ligado ao Ser, e não nas contingências históricas. A filosofia de Par-mênides é exposta como intuição direta ao ser, tal como deveria ser todo o processo de conhecimento.

Heráclito de ÉfesoPor fim, nossa jornada pelos pré-socráticos termina em Heráclito de Éfeso.

Embora em geral se insira Heráclito junto aos pensadores jônicos, por este afirmar que o princípio de todas as coisas é o fogo, ou seja, um elemento material, esse filósofo não constitui uma continuação propriamente dita que virá desde Tales de Mileto, pois como se verá a seguir o fogo heracliteano possui posição na Filosofia bastante diferente dos elementos materiais dos jônicos. Muito melhor é entender Heráclito como um filósofo singular, que concebeu sua própria forma de pensar.

Heráclito é sempre lembrado pela célebre frase que diz que um homem não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio16, ou seja, em tudo há uma fluidez universal, que renova todo instante, de forma que não existe repeti-ção, tudo é novidade. Hoje já não sou a mesma pessoa de ontem, pois renas-ço a cada instante. Tal doutrina contrapõe-se à unidade imóvel de Parmêni-des, sustentada nas propriedades do ser. Para Heráclito, o ser não pode ser eterno, somente o vir-a-ser.

[...] na medida em que um certo estado de vir-a-ser permanente define de modo definitivo a qualidade das coisas. E, não fossem essas coisas, sequer justiça haveriam de ter conhecido os homens, na medida em que desta unidade plural, é deste vir-a-ser onde a essência de tudo é estar o tempo todo em constante movimento, revela aos homens o que é cada coisa, e nesta ordenação (onde os contrários se encontram em luta, e as coisas empíricas não encontram permanência), lhes faz conhecer justiça (“Nome de justiça não teriam sabido, se não fossem estas (coisas)”).17

16 Observa-se a inter-pretação de Reale: “O sentido é claro: o rio é aparentemente sempre o mesmo, mas na realidade é feito de águas sempre novas, que se acrescen-tam e se dispersam; por isso à mesma água do rio não se pode descer duas vezes, justamente porque, quando se desce a segun-da vez, já é outra a água que se encontra; e porque nós mesmo mudamos, no momento em que com-pletamos a imersão no rio, tornamo-nos diferentes do momento em que nos movemos para mergulhar, como sempre diferentes são as águas que nos banham: assim Heráclito pode dizer, do seu ponto de vista, que entramos e não entramos no rio. E pode também dizer que somos e não somos, porque, para ser o que somos em dado momen-to, devemos não ser mais aquilo que éramos no pre-cedente momento, assim como, para continuar a ser, deveremos logo não ser mais aquilo que somos nesse momento. E isso vale, segundo Heráclito, para todas as coisas, sem exceção”. (REALE, Giovan-ni. História da Filosofia Antiga. p. 64.)

17 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direi-to, p. 78.

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Para Heráclito convergem os diversos pensamentos. Nele encontramos a unidade originária do ser de Parmênides, no momento em que ele admite existir uma verdade além dos fenômenos transitórios, como também resol-vida a pluralidade de Empédocles e os demais, no constante movimento das aparências, além das questões materiais já trazidas pelos monistas jônicos. E é nisso que Heráclito situa a importância e simbologia do fogo. O fogo é fluidez, movimento eterno e constante.

Importante aclarar que Heráclito não defende o relativismo, já que diver-sas vezes afirma a necessidade de se encontrar a unidade originária. O ponto em que esse filósofo enfrenta os eleatas é na imobilidade do ser. Para Herácli-to, aceitar a imobilidade seria aceitar que existem dias iguais, e seria forçado a rejeitar a fluidez constante da vida.

Do mesmo modo que afasta o relativismo, Heráclito ataca as convenções sociais quando afirma que para os deuses tudo é justo, embora os homens tomem somente uma parte delas como justos e o restante como injusto. A sociedade cria convenções, regras sociais que se tornam critérios. A metáfo-ra heraclitiana para isso é forte; ele argumenta que a justiça está na luta, na guerra. É a luta que exige movimento, realização, e por isso é Justiça. A luta perturba o ciclo das coisas, a discórdia obriga mudanças, novidades. Com-preender a guerra como Justiça, e não a paz, certamente não condiz com as convenções e estereótipos geralmente aceitos, mesmo na Grécia Antiga.

Também encontra-se em Heráclito a harmonia já introduzida pelos pita-góricos. Heráclito diz que nesse movimento eterno exige-se uma harmonia dos contrários, utilizando o arco e a lira como símbolos. Esses instrumentos somente funcionam com perfeição se sintonizados em máxima harmonia. Da mesma forma o movimento fluído e eterno deve acontecer perpassan-do os contrários, da guerra à paz, do justo ao injusto, da doença à saúde etc. E aqui encontra-se sua ideia de justiça, que seria a harmonia entre os contrários em eterno movimento. A Justiça nasce do movimento, da luta, da criação, um ponto harmônico que surge de uma ordem maior. Por isso que ele afirma que os homens devem defender a lei tal como fazem com as muralhas. As leis, ainda que convenções, são necessárias porque sustentam a ordem política, social e jurídica da polis, e disso advém sua importância.

O devir é, pois, um contínuo conflito dos contrários que se alternam, é uma perene luta de um contra o outro, é uma guerra perpétua. Mas, dado que as coisas só têm realidade [...] no perene devir, então, por consequência necessária, a guerra se revela como o fundamento da realidade das coisas. [...] se as coisas só têm realidade enquanto devêm, e se o devir é dado pelos opostos que se contrastam e, contrastando-se, pacificam-se em superior harmonia,

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então é claro que na síntese dos opostos está o princípio que explica toda a realidade, e é evidente, por consequência, que exatamente nisso consiste Deus ou o Divino [...]. E isso significa, justamente, que Deus é a harmonia dos contrários, a unidade dos opostos.18

Por fim, o pensamento de Heráclito antecede Sócrates ao anunciar a im-portância do autoconhecimento ao assinalar que todos os homens nasce-ram com essa dádiva e que nela devem investir. Em Heráclito encontramos já raízes antropológicas que serão reforçadas com os sofistas e finalmente com Sócrates.

Os reflexos de Heráclito para a vida contemporânea são vários. Viver tudo em fluidez, em eterno renovar-se, viver cada instante infinito como perene novidade deveria ser a lógica existencial de todo indivíduo. É o movimento constante, a vida de realizações e lutas que afastam o homem da angústia e do sofrimento existencial. Também importante é aplicar à vida a compreen-são de Heráclito da existência de duas dimensões de vida, uma em que vi-vemos conforme as convenções e outra em que vivemos conforme a fluidez do vir-a-ser. Temos que defender tanto as muralhas da cidade como nossa fluidez existencial. O empresário deve tanto observar as normas jurídicas, sociais e políticas, incrementar a sociedade, como também viver para si, fazer de seu trabalho a sua obra de arte.

Com isso encerra-se a exposição da filosofia dos pré-socráticos. Ainda que essas escolas e filósofos tenham divergências de ideias, todos mantêm uma mesma linha fundamental, a de pensar o mundo e todas as coisas em um viés cosmológico, buscando a ordem que estabelece o princípio e a causa de cada ser. Nos próximos capítulos se verá como essas questões continuarão a ser o cerne de toda a história da Filosofia e que impacto terão nas teorias da Justiça de outros pensadores. Ainda que a categoria Justiça pareça não ser o centro das discussões dos pré-socráticos, certamente foi amplamente debatida por eles, tendo em vista que vários desses pensadores eram perso-nalidades influentes nos meios políticos de seu tempo.

Contudo, o crescimento da vida social na polis ampliou ainda mais os de-bates, fazendo com que cada vez mais as pessoas se sentissem capazes de adentrar reflexões nesse viés. Essa mudança de paradigma resultou no pri-meiro grande embate da história da Filosofia: o surgimento dos sofistas, fi-lósofos que se atreveram a pôr em xeque toda a argumentação cósmica dos pré-socráticos. Os sofistas arriscaram-se a declarar falsa toda ordem, toda concepção a priori de Justiça, ser, cosmos etc. É o nascimento do relativismo e da subjetividade na Filosofia.

18 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga, p. 65-67.

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Os sofistasDurante séculos o termo sophisté acompanhou o significado de sábio,

como palavra derivada da expressão sophos, a mesma que originou o termo filósofo. Contudo, com o crescimento da polis, a sophisté passou de sábio a uma utilização mais técnica e específica, a de professor. Por isso, quando surgem os sofistas estes são considerados os professores, os indivíduos que ensinam diversas técnicas e ofícios a todo aquele que pagar pelo serviço. Os sofistas diziam-se dominar uma série de técnicas, da Medicina à Astro-nomia, da arte política aos temas jurídicos, e principalmente a arte retórica. O objetivo da sofística não era desvendar o cosmos como tentavam os pré- -socráticos, mas ensinar aos homens as situações cotidianas e úteis da vida em geral. Uma revolução importantíssima, uma vez que os sofistas retiram o cosmos do centro das discussões filosóficas e ali inserem o homem. Por isso a história da Filosofia geralmente aceita o nascimento dos sofistas como a transição do período cosmológico para o período antropológico.

O fato de os sofistas venderem qualquer tipo de ensinamento a todo aquele que pagasse por tais serviços implicaria em duas críticas ferozes iniciadas por Sócrates e repetidas incansavelmente por Platão e Aristóteles. Primeiro o fato de vender ensinamentos, conhecimento, o que contrariava todo o costume corrente. E segundo porque ensinavam qualquer coisa, e diziam possuir co-nhecimentos sobre qualquer coisa, o que segundo os opositores era uma fa-lácia, pois muitas vezes ensinavam técnicas nas quais não possuíam grande domínio. A questão é que para os sofistas esses argumentos não eram muito importantes, uma vez que esses pensadores consideravam-se amorais, isto é, despreocupados de qualquer moral ou regra convencionalmente aceita.

Para os sofistas, a lei e as organizações políticas não são naturais ao homem, mas artifícios que este construiu para viver melhor. Os animais re-ceberam garras e outras armas para se defenderem, e o homem os deuses dotaram de inteligência, que facilita uma vida social e coletiva, ampliando os ganhos a todos. Não obstante, isso significa que qualquer lei é antes lei humana, ou seja, está exposta aos mais variados erros e defeitos. Logo, uma lei nem sempre será obrigatoriamente boa ou eficaz. Com isso, os sofistas proclamavam-se livres de qualquer convenção, e essa nova concepção hu-manista resultaria ainda em outro ponto amplamente divergente: sendo a sociedade criação humana, e esta inclusive pode conter defeitos, não é natu-ral ao homem tudo viver para o bem comum. O natural seria então viver para si mesmo, conforme seus próprios interesses.

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E essa última ideia fundamenta o fato de eles venderem ensinamentos e técnicas. Ora, os sofistas eram professores e o que melhor sabiam fazer era ensinar aos homens novas técnicas e conhecimentos, tornando-os pessoas mais preparadas. Para os sofistas, todos os homens foram dotados de com-petências, saberes, mas somente alguns os desenvolveram, pela prática e estudo, que são justamente os políticos e todos aqueles que estão a frente da sociedade. Logo, para os sofistas, ensinar os homens comuns era justa-mente ensinar-lhes a desenvolver esse potencial que já possuíam. Nesse sentido, contribuiram também com a democracia:

Respondendo a uma necessidade da democracia grega é que os sofistas tiveram seu aparecimento; o preparo dos jovens, a dinamização dos auditórios, o fornecimento de técnica aos pretendentes de funções públicas notáveis, o fornecimento de instrumentos oratórios e retóricos para o cuidado das próprias causas e dos próprios negócios (“o cuidado adequado de seus negócios pessoais, para poder administrar melhor sua própria casa e família, e também dos negócios do Estado, para se tornar poder real na cidade, quer como orador, quer como homem de ação: Protágoras), tudo isso favoreceu a eclosão do movimento que se pulverizou por toda a Grécia. Por isso, são importantes os sofistas, sobretudo, por terem relevado a técnica para a dominação do discurso assemblear e pela rediscussão da dimensão do homem como ponto de partida para as especulações humanas.19

A utilização e ensino do discurso oratório e retórico foi bastante impor-tante para o desenvolvimento da arte política e da prática judiciária, pois vivia-se um momento em que os grandes debates eram resolvidos na argu-mentação. A inserção da retórica como matéria relevante para a vida política certamente alcança mesmo os dias atuais, na medida em que hoje a capaci-dade de encadear logicamente o discurso e despertar paixões no ouvinte é a base para o êxito em qualquer discussão. Para o mundo contemporâneo, em que a comunicação é ferramenta fundamental para qualquer dimensão da vida, retornar aos sofistas poderá trazer contribuições importantes, uma vez que eles foram os primeiros a utilizarem dessa prática por dinheiro, sem o pudor habitual. Os sofistas retiraram o caráter pejorativo do dinheiro tornan-do-o inclusive emblema de crescimento e maior preparo. Contudo, mesmo para o homem de hoje isso ainda não se tornou uma questão básica, pois muitos permanecem vendo o dinheiro como uma condição não essencial, e inclusive imoral, como se o acúmulo dele significasse práticas ilícitas ou pelo menos não aceitas socialmente.

Os sofistas defendem o relativismo, afirmando que está no homem, e não na natureza, a verdade de todas as coisas, conforme a célebre sentença de um dos seus principais representantes, Protágoras de Abdera: “O homem é a medida de todas coisas, das que são porque são, e das que não são porque não são”. Importante aclarar o sentido dessa frase. Para os sofistas, em espe-

19 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direi-to, p. 93.

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cial Protágoras, toda lei e convenção exigida socialmente foram formuladas por alguém, o que significa que estão sujeitas aos mais variados defeitos, e que inclusive podem ser modificadas com o tempo. No fundo, a validade daquela lei fundamenta-se apenas na vontade humana. E se levarmos em consideração que em geral aceita-se como Justiça a obediência às leis, prin-cipalmente num período histórico como o grego, em que o servir ao bem comum era não somente um dever, mas uma razão de existir, esse raciocínio pode causar revoluções importantes na história do pensamento jurídico.

Ademais, há outras inferências que se deduzem da interpretação dessa sentença de Protágoras. A primeira é que ele traz o centro da Filosofia para a dimensão humana, em contraposição ao pensamento cosmológico dos pré- -socráticos em geral. Isto é, o fundamento da existência humana e da verdade não está no cosmos, seja este o fogo, a água, os números, as homeomerias, os átomos etc., mas no próprio homem. Nesse sentido é uma mudança radical de foco. Uma segunda inferência resulta do exposto no parágrafo anterior. Ora, se o homem é a medida, isso significa que é inútil buscar a verdade em questões cosmológicas, divinas. Protágoras não era ateu, mas outros sofistas posteriores a ele utilizarão essa frase como argumento contra a existência de deuses. Por fim, uma terceira inferência e talvez a mais importante, ainda que seja a mais alvo de discussão por parte dos estudiosos. Para uma parcela de pesquisadores, em especial Gomperz, o homem-medida de Protágoras não seria o homem individual, mas o homem como espécie, o homem em geral. Ou seja, o critério não está no relativismo individual, na minha ou tua opinião, mas naquilo que é favorável ou não ao ser do homem.

Podemos reforçar essa interpretação com uma passagem de um diálo-go de Platão, o Protágoras, no qual articula-se um diálogo fictício entre este sofista e Sócrates. Nessa obra, ao ser questionado se existiriam coisas boas, absolutamente boas, más e absolutamente más, Protágoras afirmou que sim, tomando como exemplo que há coisas, como alimentos, remédios, por exemplo, que são boas ou nocivas ao homem, mas não o são para os outros animais; há coisas que não são boas para nenhum animal, mas o são para as plantas; e por fim há inclusive coisas que são boas para as raízes, mas não para os brotos, na mesma planta. Como se vê nessa afirmação, Protágoras não discute a posição do homem individual, mas do homem como espécie. Nesse fundo utilitarista vislumbra-se um aspecto de sua filosofia em que ele aceita a existência de coisas absolutamente boas e absolutamente más ao homem, ou seja, que reforçam ou prejudicam o homem, seja qual indivíduo for.

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Com isso, a noção de justiça é relativizada, na medida em que seu conceito é igualado ao conceito de lei; o que é justo senão o que está na lei? O que está na lei é o que está dito pelo legislador, e é esse o começo, o meio e o fim de toda justiça. Nesse sentido, se a lei é relativa, se se esvai com o tempo, se é modificada ou substituída por outra posterior, então com ela se encaminha também a justiça. Em outras palavras, a mesma inconstância da legalidade (o que é justo hoje poderá não ser amanhã). Nada do que se pode dizer absoluto (imutável, perene, eterno, incontestável...) é aceito pela sofística. Está aberto campo para o relativismo da Justiça.20

Sem a sofística não haveria a crítica às regras convencionais, àquilo que é considerado moralmente aceito pela sociedade. Também é importante compreender que os sofistas não necessariamente são contrários a todo e qualquer conceito, ou seja, que tudo seria simplesmente relativismo, o que eles argumentavam é que a organização humana é fundada em princípios convencionais e mutáveis. Tudo aquilo que entendemos como justo, correto, na verdade advém de uma lei, moral, crença etc., que pode vir a ser modifica-da em um momento qualquer. Compreender a lei e a moral como mutáveis, condições não absolutas, expostas às mais variadas contingências, certa-mente confere ao indivíduo um grau maior de liberdade para agir e pensar.

Ampliando seus conhecimentos

20 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direi-to, p. 96.

Teoria das cordas sonoras; relação de intervalos; modo dórico.

O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica.

A música, com efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pita-góricos. A música, como tal, só existe em nossos nervos e em nosso cérebro; fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se somente de relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata sua quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio da química e das ciências naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica. Na Química, temos uma mistura de atomismo e de pitagorismo, para a qual Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho.

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A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamen-te importante: a significação do número e, portanto, a possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas de física, tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As qualidades nasciam por combinação ou por dissociação; agora, enfim, afirma-se que as qualidades residem na di-versidade das proporções. Mas esse pressentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se, provisoriamente, com analogias fantasiosas.

Simbolismo dos números pitagóricos: um é a razão, dois a opinião, quatro a justiça, cinco o casamento, dez a perfeição etc.; um é o ponto, dois é a linha, três a superfície, quatro o volume. Cosmogonia. O Universo e os planetas esféricos. A harmonia das esferas.

Se se pergunta a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra- -se, inicialmente, o primeiro sistema de Parmênides, que fazia nascer todas as coisas e uma dualidade; depois, o ápeiron de Anaximandro, delimitado e movido pelo fogo de Heráclito. Mas esses são apenas, evidentemente, pro-blemas secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas no universo, ponto de vista inteiramente novo. Para defender essa ideia contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a noção de número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram então a ideia heracli-tiana do pólemos, o pai de todas as coisas, e da Harmonia que une as quali-dades opostas; a essa força, Parmênides chamava Aphrodite. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava. Decompuseram os dois elemen-tos de que nasce o número em par e ímpar. Identificaram essas noções com termos filosóficos já usuais. Chamar o ápeiron de par é sua grande inovação; isso porque os ímpares, os gnómones, davam nascimento a uma série limitada de números, os números quadrados. Remetem-se, assim, a Anaximandro, que reaparece aqui pela última vez. Mas identificam esse limite com o fogo de Heráclito, cuja tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricas determinadas; é essencialmente uma força calculadora. Se houves-sem tomado emprestado de Heráclito a palavra logos, teriam entendido por ela a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o péras fixa o limite). Sua ideia fundamental é esta: a matéria, que é representada inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade deter-minada. Tal é a resposta dada ao problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra de Leibniz, ao dizer que a música é execitium ari-

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thmeticae occultum nescientis se numerare animi. Os pitagóricos teriam podido dizer o mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.

(NIETZSCHE, Friedrich. In: O Nascimento da Filosofia na Época da Tragédia. Os pré-

socráticos. p. 63-64.(Coleção Os Pensadores).)

Atividades de aplicaçãoA partir da leitura do texto do Ampliando seus conhecimentos, responda

aos exercícios a seguir.

1. Nietzsche comenta sobre a relação entre proporcionalidade e música em Pitágoras. Faça um comentário sobre a importância da proporção na arte e como isso pode contribuir com um apelo estético em qual-quer atividade cotidiana.

2. Em várias partes comenta-se sobre o valor da Harmonia para os pré- -socráticos, a partir das ideias de Pitágoras, Parmênides, Heráclito, en-tre outros. Para você, o que viria a ser essa harmonia entre os opostos, e como a união proporcional dos contrários pode contribuir com a vida em geral?

3. Estabeleça uma relação entre Justiça e Matemática, tentando identi-ficar pontos semelhantes entre uma medida proporcional e a medida do justo.

4. Escolha um dos filósofos pré-socráticos e comente-o, trazendo para a atualidade, assinalando como as ideias desse pensador podem ajudar em sua prática diária.

Gabarito1. A arte, tanto para gregos, romanos como os renascentistas, exige uma

proporcionalidade que, conforme os artistas clássicos, simbolizava uma medida divina. É uma busca por exatidão, proporção e perfeição, que se for aplicada a cada pequena coisa do cotidiano transforma cada tarefa numa obra de arte.

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Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas

2. Os gregos eram adeptos da ideia de equilíbrio, proporcionalidade, meio-termo. O excesso, tanto de um lado como de outro, conduz a ati-tudes desequilibradas, e nisso a proporção natural se perde. Os opos-tos não medidas extremas onde um é certo e outro errado, mas extre-mos, que se forem proporcionais consentem algo mais harmônico.

3. A Justiça deve ser precisa, proporcional ao fato e às questões éticas. A simples aplicação da lei não é proporcional, pois ignora as peculia-ridades do fato. A medida proporcional é aquela que obtém o melhor resultado possível, pois não se baseou em premissas anteriores nem em excessos, mas numa proporção.

4. Por exemplo, Parmênides afirma que o Ser é e o Não-Ser não é. Isso significa que em tudo já existe uma verdade anterior e que pode ser colhida por evidência. O restante é aparência e opinião. A cada ins-tante devemos tentar evidenciar o que está por detrás de cada efeito provocado por alguém ou algo, para não pensarmos nas aparências, mas na causa, no ser.

ReferênciasANAXÁGORAS. Fragmento. In: KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filóso-fos Pré-Socráticos. 4. ed. Tradução de: FONSECA, Carlos Alberto Louro. Lisboa: Fundação Calouste Gukbenkian, 1994. p. 385.

BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. 7. ed. rev. e aument. São Paulo: Atlas, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. In: O Nascimento da Filosofia na Época da Tragédia e Pessimismo. 2. ed. Tradução, notas e posfácio de: GUINSBURG, J. São Paulo: Com-panhia das Letras, 1992.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 1993. p. 52-53. v. 1.

REALE, Miguel. Experiência e Cultura. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000.

A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

IntroduçãoNeste capítulo estudaremos os pensadores que operaram a mudança do

eixo da Filosofia das colônias para Atenas, grande metrópole da época. Mais do que isso, analisaremos duas figuras essenciais na Filosofia Clássica. Só-crates é a mente que protagoniza uma passagem tão importante no pensa-mento filosófico que acaba dividindo essa forma de conhecimento entre os pensadores anteriores e posteriores à sua vida. Platão, principal discípulo de Sócrates, criou um importante sistema filosófico que refletia sobre as mais complexas questões do mundo, tal como o fizeram os pré-socráticos, assim como sobre a conduta humana, em seu aspecto individual e social como seu mestre, apresentando uma importante concepção de Justiça.

Sócrates e a importância do autoconhecimentoSócrates difere-se dos filósofos anteriores por não procurar explicar a

physis. Para ele a ciência do cosmo é inacessível ao homem, assim como con-sidera que quem se dedica a essas pesquisas se esquece de si mesmo, daqui-lo que mais importa: o homem e os problemas que o circundam.1 Essa visão o caracteriza como um filósofo do período antropológico, no qual a preocu-pação maior é resolver as questões da existência humana, procurando-se o modo adequado pelo qual o homem pode conhecer a realidade em que se encontra e saber agir de maneira apropriada.2

Ao mesmo tempo, o pensamento de Sócrates difere daquele dos sofistas, primeiros representantes da nova fase do pensamento antigo, pois conse-gue tratar de maneira adequada a natureza (essência) do homem, algo que o extremo relativismo da citada corrente tornava impossível.

A alma (psyche) para Sócrates “ ‘coincide com a nossa consciência pensan-te e operante, com a nossa razão e com a sede da nossa atividade pensante e

1 REALE, Giovanni. Histó-ria da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. 4. ed. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. 1v. p. 255.

2 Isso não significa dizer que Sócrates não tenha estudado as questões relativas ao cosmos, mas que para ele era mais im-portante resolver a ques-tão da vida do homem e do seu conhecimento antes de se desvendar o universo.

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A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

eticamente operante’. Em poucas palavras: para Sócrates a alma é o ‘eu cons-ciente, é a personalidade intelectual e moral’ “.3

Desse modo, tem-se um núcleo através do qual se emana a verdade e a realidade que já é constituída anteriormente ao homem. Essa forma de se entender a alma é completamente diversa daquela retratada pelos poetas e pelos filósofos anteriores, e torna-se o guia para toda a filosofia do pensador ateniense. Nesse sentido é que se tem a célebre frase de Cícero que diz que Sócrates “trouxe a Filosofia do céu para a terra”4.

Conforme assinala Aristóteles, Sócrates ocupava-se de questões éticas, e não da natureza em sua totalidade; buscava o universal no âmbito da pró-pria conduta ética.5 Essa passagem tem um significado profundo, posto que há uma alteração no conceito de saber, o qual se aproxima muito mais das questões da existência humana. O que era o conhecimento para os antigos pensadores era para Sócrates uma concepção do mundo.

Sócrates encontrava-se sempre nos locais públicos, onde a maior parte dos cidadãos atenienses passava seu dia, dialogando com eles, provocando- -os ao conhecimento. Chamava sua ação pelos nomes de filosofia e filosofar.

Essa filosofia não é um simples processo teórico de pensamento e com-preensão da realidade, mas principalmente de educação do homem. Sócra-tes exige que o homem no lugar de somente se preocupar com os ganhos, se preocupe também com a alma. Entende-se com essa concepção que os ganhos não possuem sentido algum na situação de que toda essa bonança não esteja em conformidade com o princípio interior daquele indivíduo. O homem deve cuidar de sua alma, a partir dela que poderá colher todas as demais coisas. Definindo mais concretamente esse cuidado da alma, Sócra-tes manifesta como um cuidado através do conhecimento do valor e da ver-dade, da phronesis e da aletheia.6

Por mais que possa parecer até mesmo óbvio, dada a tradição de mais de dois mil anos de cristianização, essa exortação ao cuidado da alma segue tendo um especial valor ao homem contemporâneo. Conforme dito, Sócra-tes dá ao conceito de alma uma significação próxima ao conceito contempo-râneo de “consciência”, aquela parte racional que conduz o homem, porém, ao agir a conduta do homem não deve ser vazia, deve mirar um fim, o qual, por sua vez, deve primeiro resguardar a própria inteligência, para depois tratar do ganho material.

3 REALE, Giovanni. Histó-ria da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. p. 259.

4 Cf. ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Tra-dução de António Borges Coelho, Francisco de Sousa e Manuel Patrício. Lisboa: Presença, 1999. 2.v. p. 75.

5 ARISTÓTELES. Metafísi-ca. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. p. 35. 2v.

6 PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: ______. Êuti-fron, Apologia de Sócra-tes, Críton. Tradução, in-trodução e notas de José Trindade Santos. 4. ed. Lisboa: Casa da Moeda, 1993. p. 85

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Nesse sentido, há que se considerar que a cultura grega já dava muita im-portância à saúde do corpo, ao valor da ginástica. Considerava-se o cuidado do próprio corpo em uma dimensão de beleza, que refletia nas demais ques-tões da vida. Contudo, Sócrates é inovador ao trazer mais do que a impor-tância do cuidado com a saúde, também o cuidado com o mundo interior. A alma para Sócrates é o que há de divino no homem7.

Assim Sócrates define sua atividade no diálogo de Platão, Apologia de Sócrates:

Nada mais faço do que andar pelas ruas a persuadir-vos, jovens ou velhos, a cuidardes mais da alma que do corpo e das riquezas, de modo a que vos torneis homens excelentes. E nada mais peço do que sustentar que a excelência não vem das riquezas, mas, pelo contrário, da excelência vem as riquezas e todos os outros bens, tanto aos homens particulares como ao estado.8

Essa parte divina surge da consciência cultivada, que depois será o crité-rio para identificar o que é adequado, justo. Pela consciência cultivada po-demos ter o critério que já está na alma, mas que precisa nascer através de um processo de desvelamento de si mesmo, de seus conceitos, preconcei-tos, ideias e máximas. Conforme Jaeger: “Sócrates, tanto em Platão como nos outros socráticos, sempre coloca na palavra ‘alma’ uma ênfase surpreenden-te, uma paixão insinuante e como que um juramento. Antes dele, nenhum sábio grego pronunciou assim essa palavra”9.

Compreendida a importância da psyche para Sócrates, para se poder considerar a concepção socrática da Justiça precisa-se tratar de uma ideia central em seu pensamento, o autoconhecimento. Tal como Reale considera: “Ensinar os homens a conhecer e a cuidar de si mesmos é a tarefa suprema da qual Sócrates considera ter sido investido por Deus”10.

Para defender a importância dessa concepção, Sócrates adota a adver-tência inscrita no oráculo de Delfos, a qual dizia ‘‘conhece-te a ti mesmo”11. Sendo a alma o “eu inteligente e moral do homem”12, é de suma importância conhecê-la, cultivá-la, pois, mais do que salvaguardar a sanidade da pessoa, ela é a própria fonte de todo conhecimento que conduz o homem ao desen-volvimento e à excelência.

O homem, tanto no aspecto moral quanto no intelectivo, é capaz e está destinado pela sua natureza a alcançar a plenitude. As virtudes (aretai) física e espiritual são exatamente essas excelências que o homem já possui. Porém, precisa conhecê-las, despertá-las. Todo erro é fruto de ignorância, enquanto que toda virtude é conhecimento.

7 JAEGER, Werner. Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. 4.ed. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Mar-tins Fontes, 2003. p. 528.

8 PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: ______. Apo-logia de Sócrates. Críton. p. 85, 86.

9 JAEGER, Werner. Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 528.

10 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. p. 261. grifo do autor.

11 Gnoûte autos em grego, ou nosce te ipsum em latim. (BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filoso-fia do Direito. 7. ed. rev. e aumentada. São Paulo: Atlas, 2009. p. 101.)

12 REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos: tera-pia para os tempos atuais. 2.ed. Tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2002. p. 175.

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A atitude essencial ao autoconhecimento é o reconhecimento da própria ignorância, essa é a origem da célebre frase de Sócrates “só sei que nada sei”13. Sábio, portanto, é aquele que não se ilude crendo saber e reconhece a própria ignorância, pois só quem sabe que não sabe procura saber, enquanto os que creem estar na posse de um certo saber não são capazes da investiga-ção, não se preocupam consigo mesmos e permanecem irremediavelmente afastados da verdade e da virtude.14

O meio de promover nos outros o conhecimento da própria ignorância, condição essencial para a pesquisa, é a ironia, o método de interrogação que tem por objetivo revelar ao homem sua ignorância, “abandoná-lo à dúvida e à inquietação para o obrigar à pesquisa”15. Conforme explana Reale:

Sob as diferentes máscaras que Sócrates assumia eram visíveis os traços da máscara principal, a do não saber e da ignorância: pode-se mesmo dizer que, no fundo, as máscaras policrômicas da ironia socrática não são mais que variantes dessa principal e, com um multiforme jogo de dissoluções, sempre remetiam a ela.16

Através desse recurso Sócrates demonstrava ao seu confrontante o quanto que a “verdade” que este expunha era falha ou incompleta. Através da sequência de questionamentos e da atitude de desconhecimento, Sócra-tes conduzia o interlocutor à compreensão de que este se encontrava enga-nado, todavia sem agredir diretamente àquela pessoa.

No mundo contemporâneo é essencial saber criticar alguém sem ser agressivo. Especialmente no âmbito das organizações, qualquer questão mínima torna-se motivo para uma ação judicial. Nesse sentido, o líder neces-sita ter um tipo de maestria, de habilidade para mostrar ao subordinado que este se encontra equivocado. A ironia socrática é um método que procura alcançar esse escopo, levando o próprio defensor a compreender as falhas de seu pensamento e reformulá-lo ao escopo original da organização.

Esse sistema de ensino adotado por Sócrates é chamado de maiêutica. Não é o mestre que ensina ao aluno, mas o aluno que se depara com uma realidade que já possuía dentro de si e que é exposta ao mundo, evidencia-da. Por isso maiêutica, que pode ser traduzida como “parto de ideia”, fazendo uma analogia com a profissão exercida por sua mãe.17 Sócrates põe-se como parteiro, porém não é ele quem dá à luz ao conhecimento, quem o faz é aquele que se propôs a aprender na dinâmica dialética com o mestre.

Nesse ponto, a paideia socrática diferencia-se daquela exercida pelos sofistas, com os quais Sócrates por diversas vezes se confrontara, buscan-do comprovar a estes, célebres mestres da Grécia, que eles não eram sábios

13 PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: ______. Êuti-fron, Apologia de Sócra-tes, Críton. p. 72.

14 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. p. 76.

15 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. p. 76.

16 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. p. 311.

17 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. p. 76.

A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

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como imaginavam. Platão reafirma esse conceito no prólogo do Protágoras, onde diz:

[...] os sofistas são varejistas de alimentos da alma, mas não conhecem nem os alimentos nem a alma e, portanto, não sabem se fazem bem ou não; enquanto Sócrates é claramente representado como aquele que conhece esses alimentos e conhece a alma, e é apresentado como “médico da alma”.18

Há que se sublinhar ao businessman a importância da atitude de conhe-cer-se e cultivar a própria inteligência como o maior bem que o homem possui, pois é através dela que este poderá manter sua trajetória de sucesso e desenvolvimento, bem como a capacidade de se manter um juízo propor-cional, justo, sobre os fatos que surgem na vida. Sem uma alma sã, não há como se falar em sucesso. Ademais, nessa busca essencial se faz reconhecer, humildemente, o quanto que se é desconhecedor da realidade, tanto exter-na quanto interna. Somente com esse reconhecimento o indivíduo estará apto a partir pela busca de conhecer-se realmente e com isso desenvolver- -se, alcançando um padrão de excelência em tudo o que faz em sua vida.

O profissional da área jurídica ou do business possui a maiêutica como um instrumento metodológico para ultrapassar o que está aí dado, perce-bido, concebido. Um juiz procura verificar o que está por detrás daquele comentário, a relação entre a legislação e o pedido; o businessman, o que está dito, o que está manifesto, e o que ele tem como experiência, e tudo aquilo pode virar preconceito e fantasia naquele momento. A radicalidade da maiêutica serve como guia para os imediatismos e ortodoxias de pensa-mento e de conduta. Conhecer os principais trilhos, os principais hábitos de comportamento e de pensamento é indispensável para conseguir a atuali-zação à novidade de si mesmo no aqui e agora das situações apresentadas, através da identificação de desejos, objetivos e as necessidades substanciais e circunstanciais.

Sócrates morreu aos 70 anos de idade, condenado pela própria cidade de Atenas, palco de seus ensinamentos. O processo que respondeu possuía como fundamentação duas acusações: a de não honrar aos deuses da cidade, introduzindo novas e estranhas práticas religiosas, e também de corromper a juventude. Julgado, condenaram-no por uma diferença de aproximados 60 votos de um corpo de 501 membros.19

Conforme nos foi legado por Platão, em suas obras A Apologia de Sócrates e Críton, Sócrates estava ciente de seu destino e o aceita, morre pela mesma motivação que o fizera viver e provocar os cidadãos atenienses, o apelo pelo

18 PLATÃO apud REALE, Giovanni. História da Fi-losofia Antiga. I: Das ori-gens a Sócrates. p. 262.

19 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía. 1: Grecia y Roma. 4.ed. Tra-ducción de Juan Manuel García de la Mora. Barce-lona: Ariel Filosofia, 1994. 1v. p. 125, 126.

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A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

conhecimento, pela Filosofia. Relata-se no Críton que Sócrates negou-se a acei-tar o auxílio de seus discípulos para fugir do cárcere e escapar da morte20.

Essa atitude de Sócrates, condenado a ingerir a cicuta, demonstra seu pro-fundo respeito pela Justiça. Respeito que o levou a obedecer à lei, mesmo sendo esta injusta, ou pelo menos aplicada de maneira equivocada e demasiadamente extensiva naquela situação. Sócrates durante toda sua vida manifestara ser um mal menor ser vítima de uma injustiça do que praticá-la21, convicção que foi rea-firmada com sua posição diante de sua condenação. Desse modo, o julgamento de Sócrates representa também uma forma de paideia que nos atenta para a importância de se obedecer às leis do Estado, sejam elas boas ou más. Traba-lhando-se, contudo, caso sejam estas más ou mal elaboradas, para que sejam devidamente corrigidas e que tenham sua efetiva aplicação garantida.

Complementando, Bitta destaca que o ato de descumprimento da sen-tença imposta pela cidade representaria a Sócrates a derrogação de um prin-cípio básico do governo das leis, a eficácia. Comprometida a eficácia, reinaria a desordem social, posto que cada um cumpriria ou descumpriria as leis a seu bel prazer. Portanto, ao indivíduo esclarecido caberia ao máximo a ela-boração da crítica da legislação, contudo, esse juízo moral não seria suficien-te para se derrogar as leis positivas.22

Demonstra-se, assim, que a sua submissão à sentença condenatória não somente representa a confirmação de seus ensinamentos, mas também a re-vitalização dos valores que foram base para a construção da polis ateniense. A atitude desprendida de Sócrates deu maior força ao princípio do respeito às leis da cidade. A morte de Sócrates, por esses ideais, representa sua última lição deixada à civilização, que se consubstancia no respeito à lei como ga-rantia da segurança social.

A Justiça como paideia em PlatãoPlatão, o mais célebre dos discípulos de Sócrates, é o principal pensador

que deu continuidade à revolução iniciada por Sócrates no pensamento humano. Junto de Aristóteles, representa o auge do pensamento humanista grego. Não é à toa que em seu quadro A Escola de Atenas, Rafael Sanzio re-presenta ambos com especial destaque ao centro, cada um carregando uma de suas principais obras. Sócrates, junto do Timeu, aponta ao céu, símbolo que identifica a concepção do mundo inteligível em sua teoria, ao passo que

20 PLATÃO. Críton. In: ______. Apologia de Só-crates. Críton.

21 Tal como encontra-se no Górgias: “Destes dois males, praticar a injustiça e ser vítima dela, afirma-mos que o maior é praticar a injustiça, o menor sofrê- -la”. (PLATÃO. Górgias. 4. ed. Introdução, tradu-ção do grego e notas de: PULQUÉRIO) Manuel de Oliveira. Lisboa: 70, 2000. Também na República:)

22 BITTAR, Eduardo C. B; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. p. 91, 92.

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Aristóteles, apontando ao chão, carrega a Ética a Nicômaco, obra que será estudada mais adiante.

Assim como seu mestre, Platão seguia a tradição de transmissão oral das ideias e ensinamentos. Platão entendia que o conhecimento, devendo ser passado oralmente, não poderia ser reproduzido pela escrita, e esta serviria somente como modo de se lembrar dos ensinamentos obtidos. Conforme Jaeger: “[...] o que caracterizava Platão era o fato de lhe interessar mais expor a Filosofia e a sua essência através do movimento vivo da dialética do que sob a forma de um sistema dogmático acabado”23.

Por esse motivo, considera-se que as principais doutrinas do pensamento do filósofo nunca foram escritas, conforme reflete Reale acerca das chama-das “doutrinas não escritas”24. Apesar disso, Platão deixou uma vasta produ-ção intelectual, a qual encontra-se conservada até a atualidade.

Sócrates é o personagem principal da maioria dos seus diálogos, os quais são identificados pela temática trabalhada em quatro principais grupos: os diálogos do período socrático, no qual a influência de seu mestre ainda era marcante, exemplificando-se com diálogos como a Apologia de Sócrates, o Críton e o Protágoras; o período de transição, onde Platão começa a apresen-tar suas próprias concepções em obras como o Górgias e o Menon; o período da maturidade de Platão, onde este já apresenta suas próprias ideias como o faz em O Banquete, Fédon, A República e no Fedro; e o quarto e último perío-do, o das obras da sua velhice, com os diálogos chamados lógicos, tais como Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, além do Timeu e As Leis.25

O pensador ateniense não se contenta em saber contemplar a essên-cia das coisas através da Filosofia, mas queria também criar o bem, dando continuidade à proposta iniciada por Sócrates de formação da alma. Nesse escopo, a obra escrita de Platão produz dois grandes sistemas educacionais, apresentados em A República e em As Leis.

É assim que Platão assume a herança de Sócrates e se encarrega da direção da luta crítica com as grandes potências educadoras do seu tempo e com a tradição histórica do seu povo; com a sofística e a retórica, o Estado e a legislação, a Matemática e a Astronomia, a ginástica e a Medicina, a poesia e a música. Sócrates apontara a meta e estabelecera a norma para o conhecimento do bem. Platão procura encontrar o caminho que conduz a essa meta, ao colocar o problema da essência do saber.26

Em A República, principal obra que analisaremos neste momento, encon-tra-se presente de modo mais definido a concepção platônica de Ética, Jus-tiça e da melhor forma de organização da cidade. A obra é composta por

23 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 583.

24 Assinala Reale: “Por conseguinte, tanto Platão com as afirmações explí-citas feitas sobre os seus escritos como os seus discípulos que nos infor-maram da existência e dos principais conteúdos das ‘Doutrinas não escritas’ comprovam, de modo ir-refutável, que os escritos não são para Platão a ex-pressão plena e a comuni-cação mais significativa do seu pensamento e que, em consequência, mesmo possuindo nós todos os escritos de Platão, de todos esses escritos não po-demos extrair todo o seu pensamento, e a leitura e a interpretação dos diálogos devem ser levadas a cabo numa nova ótica”. (REALE, Giovanni. História da Fi-losofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. Tradução de: VAZ, Henrique Cláudio de Lima; PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 1994. v. 2. p. 11.)

25 Cf. COPLESTON, Frede-rick. Historia de la Filo-sofía. 1: Grecia y Roma. p. 151, 152.

26 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 590.

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10 livros, onde mais do que concentrar-se somente nas questões morais e políticas, o autor faz uma profunda reflexão sobre a Teoria do Conhecimen-to e da educação, assim como sobre as questões que conduzem o homem não somente a viver bem, mas também a encontrar sua parte divina, o que possui de mais precioso dentro de si. Nos dizeres de Jaeger: “A formação da alma é a alavanca com a qual ele faz o seu Sócrates mover todo o Estado”.27

Logo no primeiro livro da obra, Platão reflete sobre o significado da Justi-ça e sua contraposição à injustiça. Para tanto, cria um conflito entre Sócrates e o sofista Trasímaco. Inicia-se a discussão com a concepção de Simônides: “é justo restituir a cada um o que se lhe deve”. Porém, essa concepção é insufi-ciente para definir-se Justiça, até porque o homem justo não retribuirá com maldade ao homem mau. Há de se fazer uma análise mais profunda sobre essa questão, considerando-se a pessoa a quem essa relação se dirige. O so-fista, então, traz a concepção de que o justo é o que é mais conveniente ao mais forte. Desse modo, cada Estado, na pessoa do seu governante, promul-ga as leis que disporão sobre o que é ou deixa de ser justo para esse governo, fixando-se conforme sua conveniência e castigando aos seus transgresso-res28. Trasímaco considera que o interesse próprio do detentor do poder é justo para com os súditos.

Sócrates ergue-se contra a concepção do sofista, afirmando que a arte do governo não se destina somente a garantir a conveniência do mais forte. Liderar, governar, acima de tudo é uma atitude de guiar aos seus subordina-dos rumo ao que é vantajoso a esse grupo. É nesse ponto que se começa a apresentar a concepção aristocrática de Platão, ou seja, que o melhor deve ser o governante. Conforme Platão,

“[...] é desde já evidente que nenhuma arte nem governo proporciona o que é útil a si mesmo, mas, como dissemos há pouco, proporciona e prescre-ve o que é ao súbdito, pois tem por alvo a conveniência deste, que é o mais fraco, e não a do mais forte”29.

Portanto, considera-se que nenhuma arte, nem mesmo a de governar, possui como finalidade o benefício único daquele que a exerce. A política não visa o benefício do governante, mas sim dos governados, trazendo con-sigo o desenvolvimento daquele que governa, para que siga em condições de conduzir aos seus. Essa parte possui íntima relação com a concepção de liderança. O líder, acima de tudo, faz do seu próprio egoísmo algo útil aos demais, por isso é ele quem conduz aqueles que o acompanham, levando-os

27 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 752.

28 PLATÃO. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Listboa: Fundação Calouste Gul-benkian, 2001. p. 24.

29 PLATÃO. A República. p. 37.

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a um estágio de desenvolvimento nesse processo. Assim também deverá ser o governante. Concluindo, “o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos”30.

Platão considera que há uma virtude (areté) própria a tudo aquilo que está encarregado de uma função. Sendo a Justiça uma virtude da alma, e a injustiça um defeito, conclui que a alma justa e o homem justo viverão bem, enquanto o injusto viverá mal. O homem virtuoso é feliz e venturoso, já quem não possui virtude alguma é o contrário, “o justo é feliz, ao passo que o injusto é desgraçado”31.

Insatisfeitos com apenas a diferenciação entre justo e o injusto, Glauco e Adimanto interpelam Sócrates para que esse lhes explane de modo mais claro o que é a Justiça, questionam-no se a Justiça é um bem que se deva buscar por si próprio ou apenas um meio que acarreta determinada utilidade.

Platão então escreve que a Justiça é um bem que deve ser buscado por si mesmo, tem de ser inerente à alma humana, uma espécie de saúde espiritual do homem. Para comprovar tal ideia, leva o Sócrates de sua obra a idealizar uma cidade, que seria fundada desde o início, buscando através desta en-contrar o que é o Justo e qual sua finalidade.

Destaca-se o fato de que o Estado, apesar de presente no título da obra, não é o seu principal objeto de estudo, mas sim é utilizado como um meio para um fim. Assim, Platão ao descrever a cidade ideal não busca tratar so-mente das questões legislativas e da organização política da cidade, tal como atualmente teríamos na constituição de um Estado ou até mesmo no contra-to social de uma sociedade empresária. Trata-se sobre toda a organização social, a divisão das classes e, principalmente, qual será a paideia, o modelo de formação que norteará a fundação dessa cidade para, após refletir sobre essas questões, encontrar a virtude nessa cidade e, a partir disso, definir o que é a Justiça e sua relação com a alma. A finalidade da República é “pôr em relevo a essência e a função da Justiça na alma do Homem”32.

A sociedade platônica seria baseada essencialmente em três classes. A primeira compreenderia os agricultores e artesãos, a segunda os guerreiros, guardiões da cidade, e a terceira seria composta pelos filósofos. Parte-se do pressuposto de que cada um deve exercer o que sabe fazer melhor, pois cada homem não nasce semelhante aos outros, mas com diferenças naturais, apto a fazer trabalhos diferentes. Os guardiões do Estado devem ser dotados, antes de tudo, de uma índole apropriada. O guardião deve ser como um cão

30 PLATÃO. A República. p. 38.

31 PLATÃO. A República. p. 50.

32 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 762.

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de boa raça, dotado ao mesmo tempo de mansidão e de ousadia, deve ser forte e ágil no físico, irascível33, valente e amante do saber na alma, portanto, necessitam de uma educação especial, o que é desnecessário na primeira classe, posto que as profissões usuais são fáceis de aprender.34

A formação dos guerreiros se daria através da ginástica e da música. Tra-ta-se, conforme diz Reale, da própria paideia helênica, porém, reformulada pelo pensador ateniense. “A poesia da qual se alimentará a alma dos jovens no Estado perfeito deverá ser purificada de tudo o que é falso, sobretudo no que diz respeito às narrações em torno aos Deuses”35. São propostas re-formas na música e na ginástica, tendo-se como foco sempre possibilitar a formação do guerreiro na devida proporcionalidade. A música e a ginástica complementarmente exercem um papel de educação para a alma. A educa-ção musical forma e robustece a parte racional da alma; a educação física, por meio do corpo, a parte irascível da alma. O produto da união de ambas é a harmonia perfeita.36

Concluindo, considera Jaeger: “Platão entende que a primeira coisa a fazer é formar espiritualmente o Homem na sua plenitude, entregando-lhe em seguida o cuidado de velar pessoalmente pelo seu corpo”37.

Ao terminar de constituir sua cidade, Platão conclui, no livro III, estar apto a procurar pela Justiça dentro dela. Nesse ponto são apresentadas as quatro principais virtudes que se encontrariam na cidade, as chamadas virtudes cardeais: a sabedoria (sophia), a coragem (andreía), ou fortaleza de ânimo, a temperança (sophrosyne) e a justiça (dikaiosine). Conforme Copleston, a sa-bedoria é a virtude da parte racional da alma, a coragem é a relativa à parte irascível ou veemente da alma, a temperança consiste na união das partes veementes e apetitivas abaixo do governo da razão, o controle das paixões.38

A justiça é somente determinada mais adiante, após a apreciação dessas três virtudes. Contudo, Platão já conclui no diálogo que o Estado perfeito deverá necessariamente possuir as quatro virtudes.

O Estado possui a sabedoria porque tem um bom conselho, “a ponde-ração, é evidente que é uma espécie de ciência. Efetivamente, não é pela ignorância, mas pela ciência, que se delibera bem”39. Assim, o Estado é sábio pela classe de seus governantes.40

Além disso, a cidade é corajosa “numa de suas partes, pelo fato de aí ar-mazenar energia tal que preservará através de todas as vicissitudes a sua opinião sobre as coisas a temer, que são tais e quais as que o legislador pro-

33 Na filosofia platônica, irascibilidade é uma das faculdades da alma, trata- -se da capacidade de indignar-se e lutar por aquilo que a razão julga justo. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Fi-losofia. Tradução de: BOSI, Alfredo. Revisão e tradu-ção dos novos textos: BE-NEDETTI, Ivone Castilho, . São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 425.)

34 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 246.

35 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 246.

36 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 246.

37 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 795.

38 “La sabiduría es la virtud de la parte racional del alma; el coraje, la de la parte irascible o vehe-mente; y la templanza consiste en la unión de las partes vehemente y apetitiva bajo el gobier-no de la razón. La justicia es una virtud general, que consiste en que cada parte del alma cumpla su propia tarea con la debida armonía”. (COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía. 1: Grecia y Roma. p. 226.)

39 PLATÃO. A República. p. 176.

40 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 248.

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clamar na educação”41. Trata-se da capacidade de conservar com constância a opinião reta em matéria de coisas perigosas ou não, sem deixar-se vencer pelos prazeres ou pelas dores, ou pelos medos ou pelas paixões. É a virtude sobretudo dos guerreiros.42

A temperança, diz Platão, “é uma espécie de ordenação, e ainda o domí-nio de certos prazeres e desejos”43, ou seja, a capacidade de submeter a parte pior à parte melhor. O Estado temperante é aquele no qual os mais fracos estão de acordo com os mais fortes e os inferiores em plena harmonia com os superiores, de modo que as paixões destes estejam acima do bom juízo dos melhor capacitados.44

Nessas três virtudes, transpondo-as para a realidade empresarial, podemos identificar uma essencial importância para a boa condução do negócio. Sabe-doria é uma disposição essencial, pois o líder, ou o corpo de líderes que conduz a organização, necessita possuir um tipo de ponderação que possibilite defi-nir os devidos rumos da instituição que coordena e aqueles que fazem parte dela.

Além disso, a temperança é uma virtude importantíssima a toda a orga-nização, desde os mais altos cargos até os mais básicos. O controle das pul-sões do organismo, dos prazeres mais básicos é trivial para o desempenho da atividade profissional vencedora. Quando se trata das dimensões afetivas, torna-se mais importante ainda um tipo de formação para preparar o indiví-duo a viver as situações com o outro, tanto de interesse, ligação, aproxima-ção, quanto de repulsa. Grandes conflitos têm origem na falta de temperan-ça, do despreparo de alguns líderes para medir as consequências e evitar os excessos que determinadas ações provocam. Uma questão afetiva mal ad-ministrada dentro de uma organização pode significar a diminuição ou até mesmo a paralisação de todo um setor. Mais ainda, se tais questões surtem efeito na atividade racional do líder, pode-se representar a perda para toda a própria organização. Um profundo trabalho para se aprender a lidar com essas questões é muito importante na atualidade.

Tem-se ainda a coragem, tão valorizada na cultura grega, elevada em seus cantos heroicos e defendida pelos filósofos, a qual é de elementar impor-tância à dinâmica empresarial. Tanto na perspectiva de se enfrentar o mer-cado econômico, saber vencer a concorrência, fornecendo o melhor produ-to ou serviço pelo preço mais acessível, quanto, na perspectiva individual, existencial, é essencial a coragem de investir-se e aprofundar-se no próprio conhecimento e na mudança de comportamento, o que significa inclusive a necessidade de se ceifar alguns hábitos e relações que não proporcionam

41 PLATÃO. A República. p. 178.

42 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 248.

43 PLATÃO. A República. p. 181.

44 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 248.

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resultados adequados.

Além da necessidade do reconhecimento do quanto se é ignorante como um pressuposto necessário ao autoconhecimento, do modo como propuse-ra Sócrates, outra disposição essencial àquele que se propõe a aprofundar- -se no conhecimento de si próprio indubitavelmente é a coragem. Coragem para que o indivíduo proceda a investigação da própria realidade de maneira responsável, mantendo-se sempre centrado no seu principal escopo. Não é à toa que a coragem é a primeira virtude, sem ela não se pode falar em um homem sábio, temperante, ou ainda justo.

Por último, reservamos a questão da justiça, a quarta das virtudes que se encontram na cidade ideal. Justiça para Platão trata-se da guarda da posse do que pertence a cada um e a execução do que lhe compete. Constitui a justiça cada um desempenhar sua tarefa. 45 Isso significa que essa virtude é cada um exercer aquela tarefa que foi preparado para executar da melhor maneira, diferentemente dos demais, relativa à sua própria constituição natural.46 Em uma situação como essa, em que todos cumprem sua função desse modo e guardam aquilo que é seu, se estará diante da justiça platônica.

Destaca-se que essa ideia de exercer a sua tarefa é muito mais ligada à perspectiva dos resultados do que dos gostos da pessoa. Pois, sem saber, tal indivíduo pode possuir especiais habilidades em determinada área em que nunca havia sido provocado a desenvolver-se. Com isso, reforça-se uma vez mais a importância do autoconhecimento e da profunda formação, de modo que auxiliem o indivíduo a encontrar seu devido lugar, onde exercerá a tarefa que lhe incumbe, seja de gerenciamento, seja de execução ou qual-quer outro tipo de serviço, da melhor maneira.

A questão da justiça não diz respeito somente à realidade externa do in-divíduo, mas também ao próprio indivíduo, pois ao praticá-la estará valori-zando sua melhor parte, de modo a alcançar um tipo de paz, de realização, de felicidade no exercício dessa atividade.

Relativamente às mulheres da cidade, Platão cria no diálogo uma nova indagação dos irmãos Glauco e Adimanto, sobre qual seria a situação destas na cidade ideal. Sócrates, interpelado, responde que o Estado deve ter todas as coisas em comum; nessa perspectiva, as mulheres, especialmente as da classe guerreira, poderão ter o mesmo tipo de formação que os homens e exercer as mesmas atividades que eles. Valoriza-se, desse modo, a imagem feminina, tratando sobre a igualdade de oportunidades a ambos os sexos,

45 PLATÃO. A República. p. 187.

46 SOARES, Josemar Si-dinei. Os Pressupostos Filosóficos da Ideia Justiça na História da Filosofia: contribuições para o ensino jurídico. 2003. 150 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica) – Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica, Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, Itajaí, 2003. p.24

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respeitadas suas diferenças. Na situação de uma mulher ser muito superior em determinado Estado, pode-se dizer, inclusive, que sem problema algum esta poderia ser a governante indicada para essa sociedade.

Além disso, indagado sobre quem deve comandar a cidade, Sócrates apresenta com clareza que essa função seria de competência do filósofo, aqueles que possuiriam uma formação diferenciada para tanto. Mais do que o estudo da ginástica e da música, o filósofo, utilizando-se de outros conhe-cimentos, ainda é o melhor governante.47

Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos Filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a Filosofia, enquanto as numerosas naturezas que atualmente seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos.48

Destaca-se que quando Platão fala em filósofo considera-se que este possui como exemplo seu próprio mestre Sócrates. Prova disso é sua referên-cia do Górgias, de que Sócrates teria sido o maior estadista de seu tempo.49

Finalizando este tópico, trataremos sobre a famosa passagem do mito da caverna, encontrada no livro VII da obra em estudo. Nessa narrativa o filó-sofo apresenta a situação de um grupo de homens que vivia numa caverna subterrânea que se abre para a luz por uma comprida galeria. Estes se en-contram lá aprisionados desde a infância e só lhes é permitido olhar para a frente. Elucida-se a situação de que um dos prisioneiros é posto em liberda-de, e, ao sair para a luz, surpreende-se com a realidade com que se depara. Lembrando-se de sua morada anterior, da consciência das coisas que tinha lá, considera-se feliz pela mudança e lamenta seus antigos irmãos de cativei-ro. Na situação em que retornasse ao interior da caverna e pusesse a revelar tal situação aos outros cativos, cairia no ridículo. Conclui-se a narrativa des-tacando que se esse homem tentasse libertar um deles, ele próprio estaria correndo o risco de ser morto pelos aprisionados.50

Nessa alegoria Platão representa sua Teoria do Conhecimento. A caverna corresponde ao mundo visível, o sol é o fogo cuja luz se projeta dentro dela. A ascensão para o alto e a contemplação do mundo superior é o símbolo do caminho da alma em direção ao mundo das ideias.51

Para a interpretação desse relato deve-se considerar a relação entre o mundo das ideias, das formas, o mundo inteligível, com o mundo das som-bras, o mundo sensível. Para Platão, existem essas duas realidades, vivemos

47 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 853.

48 PLATÃO. A República. p. 251.

49 PLATÃO. Górgias. p. 205.

50 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 885, 886.

51 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a forma-ção do homem grego. p. 885.

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no mundo sensível e tudo o que existe aqui é cópia do modelo anterior e perfeito existente no mundo inteligível, no mundo das ideias. Se existimos enquanto seres humanos deve haver um modelo de ser humano ideal na-quela realidade, modelo que o indivíduo busca alcançar, rompendo as bar-reiras impostas pelas imperfeições do mundo sensível.

No mito da caverna o indivíduo consegue libertar-se das amarras que o prendiam ao mundo sensível, podendo apreender a realidade eterna e imu-tável do mundo inteligível. Essa profunda passagem pode ser considerada em dois aspectos, primeiramente no aspecto existencial, posto que, nessa situação, o indivíduo realiza o seu ideal enquanto ser humano, aproximan-do-se da ideia do Bem, somente encontrada no mundo inteligível. Por outro lado, nessa passagem há também a abertura epistemológica, passa-se a identificar a realidade pelo modo como ela é, de maneira exata, este é o co-nhecimento, a episteme, não se condicionando às questões do mundo sensí-vel, do mundo da opinião (doxa). Esta é a realização da paideia platônica no mito, o conhecimento da ideia do Bem, medida das medidas, o qual se torna aberto à realização na vida prática.

Demonstra-se assim que não se pode fazer ciência ou querer agir da ma-neira adequada sem antes fazer essa passagem retratada na alegoria, o que atesta a importância dessas concepções inclusive para o homem contempo-râneo. Portanto, o governante, para que esteja capacitado a guiar seu povo e seu Estado à plenitude, deve ter realizado essa passagem, de modo que esteja apto a captar as essências, identificar o que realmente acontece na vida, podendo assim agir do modo mais adequado e, desse modo, justo.

Do mesmo modo, o businessman também deve realizar essa passagem para que possa tornar-se verdadeiramente um líder empreendedor. É neces-sária a superação da realidade na qual o homem vive aprisionado desde a infância, o universo de concepções acerca de si próprio e do mundo a sua volta necessita ser posto em xeque para verificar se de fato é conhecimen-to verdadeiro, episteme, ou se trata-se de mera opinião, doxa, não reversível com a realidade.

O encontro com o mundo do modo como ele verdadeiramente é, não como aparenta ser, abre a possibilidade da efetiva atuação nessa realidade e sua construção de modo que a organização cresça e se desenvolva, gerando lucro para ela própria, bem como o desenvolvimento dos liderados, funcio-nários e colaboradores, e de toda a sociedade.

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Constata-se, portanto, que tal como Sócrates, Platão também se preocupa com a formação da alma do homem, representando-a na formação do Estado ideal. Para tanto a paideia é essencial, uma formação que prepare o homem fisicamente e intelectualmente para que este, através desses elementos, possa vir a conhecer-se e a partir disso conhecer a realidade em que se encontra, agindo de modo adequado, sendo esta a realização da justiça platônica.

Ampliando seus conhecimentos

A alegoria da caverna – trecho retirado do livro VII da obra A República, de Platão (2001)

– Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com sua experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no gênero dos tapumes que os homens dos “robertos” colo-cam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.

– Estou a ver – disse ele.

– Visiona também ao longo desse muro, homens que transportam toda a espécie de objetos, que o ultrapassam; estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que o transportam, uns falam, outros seguem calados.

– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – ob-servou ele.

– Semelhantes a nós – continuei. Em primeiro lugar, pensas que, nessas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?

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– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?

– E os objetos transportados? Não se passa o mesmo com eles?

– Sem dúvida.

– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objetos reais, quando designavam o que viam?

– É forçoso.

– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?

– Por Zeus, que sim!

– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objetos.

– É absolutamente forçoso – disse ele.

– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das ca-deias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam desse modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?

– Muito mais – afirmou.

– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?

A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão

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– Seriam assim – disse ele.

– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e ín-greme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?

– Não poderia, de fato, pelo menos de repente.

– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e, por último, para os outros objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.

– Pois não!

– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.

– Necessariamente.

– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.

– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.

– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijiria com a mudança e deploraria os outros?

– Com certeza.

– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prêmios para o que distinguisse com mais agudeza os objetos que passavam, e se lembras-se melhor quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experi-

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mentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo “servir junto de um homem pobre, como servo da gleba”, e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?

– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de prefe-rência a viver daquela maneira.

– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu. Se um homem nessas condi-ções descesse de novo para seu antigo posto, não teria os olhos cheios de travas, ao regressar subtamente da luz do Sol?

– Com certeza.

– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofusca-do, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, es-tragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá- -los e conduzi-los até em cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?

– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.

– Meu caro Gláucon, esse quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e a visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para ser sensato na vida particular e pública.

– Concordo também, até onde sou capaz de seguir a tua imagem.

– Continuemos pois – disse eu –. Concorda ainda comigo, sem te admira-res pelo fato de os que ascenderam àquele ponto não quererem tratar dos assuntos dos homens, antes se esforçarem sempre por manter a sua alma nas alturas. É natural que seja assim, de acordo com a imagem que delineamos.

– É natural – confirmou ele.

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– Ora pois! Entendes que será caso para admirar, se quem descer dessas coisas divinas às humanas fizer gestos disparatados e parecer muito ridículo, porque está ofuscado e ainda não se habituou suficientemente às trevas ambientes, e foi força-do a contender, em tribunais ou noutros lugares, acerca das sombras, e a disputar sobre o assunto, sobre o que supõe ser a própria Justiça quem jamais a viu?

– Não é nada de admirar.

– Mas quem fosse inteligente – redargui – lembrar-se-ia de que as pertur-bações visuais são duplas, e por dupla causa, da passagem da luz à sombra, e da sombra à luz. Se compreendesse que o mesmo se passa com a alma, quando visse alguma perturbada e incapaz de ver, não riria sem razão, mas reparava se ela não estaria antes ofuscada por falta de hábito, por vir de uma vida mais luminosa, ou se, por vir de uma maior ignorância a uma luz mais brilhante, não estaria deslumbrada por reflexos demasiadamente refulgentes; à primeira, deveria felicitar pelas suas condições e pelo seu gênero de vida; da segunda, ter compaixão e, se quisesse troçar dela, seria menos risível essa zombaria do que se se aplicasse àquela que descia do mundo luminoso.

– Falas com exatidão – afirmou.

– Temos então – continuei eu – de pensar o seguinte sobre essa matéria, se é verdade o que dissemos: a educação não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos.

– Dizem, realmente.

– A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos o bem. Ou não?

– Chamamos.

– A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso.

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– Acho que sim.

– Por conseguinte, as outras qualidades chamadas da alma podem muito bem aproximar-se das do corpo; com efeito, se não existiram previamente, podem criar-se depois pelo hábito e pela prática. Mas a faculdade de pensar é, ao que parece, de um caráter mais divino, do que tudo o mais; nunca perde a força e, conforme a volta que lhe derem, pode tornar-se vantajosa e útil, ou inútil e prejudicial. Ou ainda não te apercebeste como a deplorável alma dos chamados perversos, mas que na verdade são espertos, tem um olhar pene-trante e distingue claramente os objetos para os quais se volta, uma vez que não tem uma vista fraca, mas é forçado a estar a serviço do mal, de maneira que, quanto mais aguda for a sua visão, maior é o mal que pratica?

– Absolutamente.

(PLATÃO. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de: PEREIRA, Maria Helena da

Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 317-323.)

Atividades de aplicação1. Considerando o que foi estudado sobre as concepções da filosofia so-

crática e da sua valorização do conceito da alma humana, a busca por conhecê-la e por torná-la realidade efetiva, discorra sobre a importân-cia do autoconhecimento para o exercício da liderança funcional na contemporaneidade.

2. Conforme foi visto, Sócrates propunha-se não a ensinar aos seus pares, mas sim a incentivá-los a encontrar um conhecimento que o pensador entendia já ser existente, porém ignorado. Desse modo, utilizava-se da ironia como modo de levar o interlocutor a compreender seu estado de ignorância e, caso optasse, se dispor a buscar conhecer qual é a episte-me, a verdade relacionada àquele fato em discussão. Pergunta-se, qual a importância desse recurso na vivência empresarial, especialmente em relação à formação de um corpo de colaboradores que torne possível o desenvolvimento de todo o grupo?

3. Platão em sua República propôs-se a, muito mais do que tratar sobre a melhor forma de se organizar uma sociedade, discorrer sobre o modo pelo qual o homem, vivendo em sociedade, poderia desenvolver-se e

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alcançar sua excelência. Transpondo tal concepção à atualidade, qual a importância de um modelo de formação, especialmente de uma for-mação humanista?

4. Entre as principais virtudes retratadas por Platão encontra-se a tempe-rança, a qual refere-se à disposição de autocontrole dos impulsos e das pulsões do indivíduo, o controle das paixões humanas. Qual a importân-cia do cultivo dessa virtude dentro de uma organização empresarial?

5. Em A República, Platão expõe sua clássica concepção de Justiça, que trata-se de “cada um fazer o que sabe fazer da melhor maneira”. Qual a relação entre essa concepção de Justiça e a administração de pessoas dentro de uma empresa?

Gabarito1. Trata-se de questão essencial ao indivíduo que se propõe a ser um

protagonista responsável a busca por conhecer-se e, através desse processo, tanto encontrar o local onde essa pessoa exercerá do me-lhor modo para si e para os demais sua liderança, assim como saberá identificar e evitar situações de vivência que são muito mais ligadas à sua formação do que um problema dentro da organização. Tal como os clássicos diziam, é essencial um processo de autoconhecimento e de cuidado com a inteligência para tornar-se um líder vencedor.

2. A ironia, tal como já se falou sobre a comédia, é um modo de se retra-tar a realidade como ela é à outra pessoa, sem que isso pareça agres-sivo àquela pessoa, incentivando-a a refletir por si própria a validade dessas suas concepções, evitando-se, assim, conflitos desnecessários dentro da organização, assim como, sendo uma ótima ferramenta para se formar os colaboradores.

3. É de essencial importância, posto que, conforme já refletido anterior-mente, a maior parte dos problemas vividos pelo indivíduo, para não se dizer todos, possui uma profunda relação com o universo psicológi-co dele. Desse modo, faz-se necessário formar aqueles que virão a tra-balhar junto do líder, tanto quanto o líder deve formar-se e capacitar- -se para, de fato, tornar-se uma liderança que gere desenvolvimento e resultados.

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4. Conforme tratou-se no texto, é essencial um tipo de controle e sabe-doria no cultivo das relações no trabalho, especialmente na questão afetiva, de modo que uma situação mal resolvida dentro desse âmbito pode gerar profundos prejuízos à organização como um todo, sendo necessário, ao mínimo, que todo o corpo de líderes seja formado a sa-ber lidar com tais questões.

5. A concepção platônica de Justiça pressupõe justamente o exercício profissional adequado tanto ao indivíduo, enquanto sua individuali-dade, quanto em relação à empresa, de modo que cada vez mais des-taca-se a necessidade de o líder saber ter o tipo de inteligência a iden-tificar qual o tipo de estruturação de uma pessoa, ou de um grupo, um setor, de modo que este será mais produtivo. Essa realização, mais do que aumentar a produtividade, significará um espaço de maior sani-dade, concentração, desenvolvimento àquele grupo, tratando-se de uma atitude de justiça com o próprio trabalhador dentro da empresa.

ReferênciasABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Tradução de: COELHO, António Borges; SOUSA, Francisco de; PATRÍCIO, Manuel. Lisboa: Presença, 1999. 2 v.

______. Dicionário de Filosofia. Tradução de: BOSI, Alfredo. Revisão e tradução dos novos textos: BENEDETTI, Ivone Castilho. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 425.

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 2 v. p. 35.

BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Di-reito. p. 91-92.

COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía. 1: Grecia y Roma. 4. ed. Traduc-ción de: MORA, Juan Manuel García de la. Barcelona: Ariel Filosofia, 1994. 1 v. p. 125-126.

JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. 4. ed. Tradução de: PARREIRA, Artur M. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: ______. Êutifron, Apologia de Sócrates, Críton. 4. ed. Tradução, introdução e notas de: SANTOS, José Trindade. Lisboa: Casa da Moeda, 1993. p. 85.

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______. Górgias. 4. ed. Introdução, tradução do grego e notas de: PULQUÉRIO, Manuel de Oliveira. Lisboa: 70, 2000.

______. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de: PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

______. Apologia de Sócrates. In: ______. Apologia de Sócrates. Críton. p. 85 - 86.

______. Críton. In: ______. Apologia de Sócrates. Críton.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. 4. ed. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 1 v.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 246.

Justiça em Aristóteles

IntroduçãoSeguindo o processo de análise da fundamentação do conceito de Justiça

na Grécia Clássica, chega-se ao momento de tratar sobre o maior expoente do pensamento grego, representado pelo filósofo Aristóteles de Estagira1.

Aristóteles distingue as ciências em três grandes ramos: as ciências teoréticas, que buscam o saber por si mesmo; as ciências práticas, que buscam o saber para alcançar através dele a perfeição moral, e as ciências poiéticas ou produtivas, que buscam o saber em vista do fazer, da produção de determinados objetos.2

Aristóteles, contrariamente a Platão, seu mestre, trabalha ambas as ques-tões separadamente, mesmo que em seu pensamento ambas ainda possu-am uma íntima relação. Ao separá-las, o filósofo evidencia que sua proposta é tratar sobre as duas ciências, tendo em vista o todo, mas também conside-rando a metodologia adequada a cada parte nessa relação.

Tem-se, assim, a primeira lição acerca do pensamento aristotélico: não há como se tratar das questões da sociedade, do direito, dos problemas das relações entre os indivíduos, sem antes se ter uma ideia da vida humana e qual é sua fina-lidade. Necessita-se primeiro entender a vida humana e para onde ela natu-ralmente tende, para depois falar na reunião dos seres humanos em organi-zações sociais, assim como na criação do Estado como regulador das relações humanas. Essa importante passagem deixada por Aristóteles, fruto do espírito holístico do humanismo grego de sua época, acabou sendo perdida em meio ao desenvolvimento científico, a partir do início da modernidade. Na tentativa de superar a concepção aristotélica de ciência, a segmentação das áreas do co-nhecimento atingiu tal ponto que, na atualidade, acaba-se por não visualizar o liame existente entre a realidade do indivíduo enquanto pessoa e sua relação com o corpo social. Chegou-se, assim, a extremos como a corrente da Socio-logia, que entende que a sociedade é de tal modo tão preponderante sobre o indivíduo, que este acaba sendo mero produto daquela. Segundo Aristóteles, a sociedade, de fato, exerce grande influência sobre o indivíduo. Porém, ele nunca perde a sua responsabilidade, a sua vontade que aceita tal situação e submete-se ao poderio do meio em que se encontra.

1 Aristóteles nasceu em Estagira, na região da Ma-cedônia, em 384/383 a.C. Foi para Atenas aperfeiço-ar sua formação, estudan-do na Academia de Platão por cerca de 20 anos. Após, fundou sua própria escola, o Liceu. Com a morte de Alexandre Magno, retirou- -se de Atenas, evitando os movimentos contra os macedônios que movi-mentavam a cidade, indo para a Calcídia. Morreu em 322 a.C, poucos meses após exilar-se. (REALE, Giovanni. História da Fi-losofia Antiga. Tradução de: VAZ, Henrique Cláudio de Lima; PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 1994. p. 316-317. 2 v.)

2 REALE, Giovanni. Histó-ria da Filosofia Antiga. 2v. p. 335.

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Justiça em Aristóteles

Ao se investigar o pensamento aristotélico, estar-se-á tratando justamen-te do pilar sobre o qual foi fundada toda a racionalidade ocidental. Os estu-dos do filósofo culminaram com o nascimento ou a sistematização das mais variadas áreas do conhecimento humano. No âmbito da Filosofia Política e da Filosofia Jurídica, as concepções de Aristóteles são o suporte pelo qual se constituiu toda a noção de Bem e de Justiça.

Para se compreender a posição da Justiça no pensamento aristotélico, há de se considerar a ordem do mundo no seu sistema filosófico, retratada prin-cipalmente em sua obra Metafísica. Entre as questões que o autor se dedica a resolver, há que se considerar a concepção das quatro causas que regem todos os fenômenos no mundo. Estas são a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final. A causa material é a matéria e o substrato, a parte que constitui o corpo; formal é sua substância e a essência, aquilo que lhe é o princípio do movimento; a causa eficiente versa sobre o princípio do movimento; por fim, a causa final representa o thelos, a finalidade para aquele corpo e o seu bem. Assim, a causa final é a mais importante, pois é a primeira a ser lançada e a última a ser alcançada. 3

Todas as questões do pensamento aristotélico são vinculadas a essa con-cepção, de modo que qualquer ação e qualquer conhecimento no mundo devem ser buscados tendo como objetivo uma ideia de finalidade. Postos esses elementos, pode-se partir para a análise das obras relativas à Ética e à Política de Aristóteles, procurando-se nessa pesquisa identificar a funda-mentação da ideia de Justiça neste pensador.

Justiça e ÉticaPara tratar das questões da Ética, utilizar-se-á o mais célebre tratado escri-

to por Aristóteles sobre a matéria, Ética a Nicômaco (Etica Nicomachea), obra que é um verdadeiro compêndio sobre toda a existência humana. Nos dez livros da obra são analisadas as principais questões nas quais é necessário atentar quando propõe-se a viver bem.4

Sobre o pensamento de Aristóteles, não há como se falar na estrutura-ção de uma sociedade sem ter firmada uma profunda concepção do ideal da vida humana. A ação humana deve ter necessariamente como objetivo um fim maior, um fim que é buscado em todas as coisas. Assim, considera o filósofo que se para cada ação há alguma finalidade que desejamos por si mesma, evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens.5

3 ARISTÓTELES. Metafísi-ca. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002.2v. p. 15.

4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 2ed. Brasília: UnB, 1992. p. 23.

5 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 17.

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Essa espécie de bem é a felicidade, pois todos a buscam, mesmo que di-virjam acerca da concepção de felicidade que buscam. A felicidade é comu-mente classificada em três diversos modos, como a vida prazerosa, a vida política, ou a vida contemplativa. Aos primeiros, a felicidade confunde-se com uma vida agradável e com a honra, no reconhecimento da nobreza do caráter, enquanto que o verdadeiro ideal de conduta é a vida contemplativa, que é o modelo de vida baseado nas virtudes, no qual o homem pode con-templar a verdade e nisso ter o prazer em si próprio, sendo, por tal motivo, a vida mais feliz.6

Alcançado esse entendimento, surge a necessidade de considerar o modo de se alcançar essa finalidade, como tornar-se, de fato, feliz. Essa pas-sagem somente é feita através das virtudes. Demonstra-se assim que a feli-cidade aristotélica terminantemente não é relacionada a um estado no qual se alcança e se permanece, mas é contínua, vive-se feliz enquanto age-se e raciocina-se bem.

A felicidade necessita não somente das virtudes, mas também dos bens exteriores, pois é impossível praticar ações nobres sem os devidos meios. Portanto, ao se falar em Ética, trataremos não somente dessas disposições de formação humana, mas também daqueles bens externos que devemos obter para que possamos viver bem. Nesse sentido consideram-se questões como a amizade, a riqueza e poder político na obra. Conclui-se, assim, que felizes são aqueles que agem em conformidade com a virtude perfeita e estão sufi-cientemente providos de bens exteriores, entendendo-os como tudo o que é externo a nós e que nos auxilia em nosso desenvolvimento.7

As virtudes podem ser divididas em duas categorias: éticas e dianoéticas, também chamadas de morais e intelectuais. As primeiras referem-se às ações, paixões e emoções, por isso chamadas de éticas.8 As virtudes intelectuais, por outro lado, referem-se às disposições de espírito louváveis. Para se viver bem não basta somente saber agir adequadamente, o caminho de evolução humana pressupõe também o desenvolvimento intelectual.

As virtudes éticas são adquiridas através do hábito, através do seu reitera-do exercício deliberado. Não é à toa que Aristóteles chega a dizer que os há-bitos são “uma segunda natureza”9, posto que são atalhos para nós. Porém, os hábitos podem ser tanto bons quanto ruins. Assim, deve-se saber cultivar os bons hábitos e deixar de praticar aqueles que são ruins ou não funcio-nais ao projeto ao qual o indivíduo se propõe. Conforme destaca Bittar, ética (ethiké) já é um termo derivado exatamente de hábito (ethos).10

6 ARISTÓTELES. Ética a Ni-cômacos. p. 201-203

7 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 30

8 REALE, Giovanni. Histó-ria da Filosofia Antiga. 2v. p. 414.

9 Acerca do hábito, diz Aristóteles na Arte Retóri-ca: “Os hábitos são igual-mente agradáveis, porque o habitual é já como que uma segunda natureza. O hábito assemelha-se de algum modo à natu-reza: ‘muitas vezes não está longe de sempre’. A natureza tem por objeto o que acontece sempre; o hábito, o que acontece muitas vezes”. (ARISTÓTE-LES. Arte Retórica. 17ed. Tradução de: CARVALHO, Antônio Pinto de. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 70.)

10 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aris-totélica. Leitura e inter-pretação do pensamen-to aristotélico. Barueri: Manole, 2003. p. 1019.

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Consoante ao exposto, na realidade atual é de extrema importância esse tipo de cultivo da própria vida. Se a pessoa propõe-se a viver bem, construir uma boa carreira, ser reconhecida e ter a certeza de que tem posto o melhor de si naquilo que faz, e tem sido recompensada por isso, os bons hábitos são um ótimo atalho para que o indivíduo aprenda a como agir nas situações que surgem diante de si.

Porém, a simples previsão de que o critério para a conduta humana é a virtude não é suficiente para se clarificar o modo de agir virtuosamente. Para Aristóteles, o critério da conduta, a virtude, é o meio-termo, ou seja, é exa-tamente a mediania entre o excesso e a falta do que é conveniente, tanto nas ações quanto nas emoções.11 Desse modo, há que se considerar que se erra por muitos modos, porém age-se corretamente somente de um modo. Como exemplo de virtudes, pode-se elencar a coragem, a temperança e a liberalidade.

As virtudes intelectuais referem-se às disposições da alma (psyche)12. Essas virtudes, segundo Aristóteles, são adquiridas, em sua maioria, pelo estudo. O livro VI da Ética é dedicado inteiramente a tratar sobre essas formas de co-nhecimento, as quais para o pensador são: a arte (techné); o conhecimento científico (episteme); a sabedoria prática (phrónesis)13; a razão intuitiva (noûs); e a sabedoria filosófica (sophia).14 Próximo à sabedoria prática tem-se, ainda, a sabedoria política e a sabedoria jurídica.15

Ademais, para Aristóteles a boa conduta pode ser identificada por inter-médio da reta-razão, ou seja, a exatidão racional que torna capaz a identifica-ção e classificação do módulo ideal de se agir. Reforça-se, assim, a importân-cia da formação intelectual do indivíduo para que este possa agir bem.

Dessa ideia de reta-razão, entramos em outra questão essencial para se entender o objeto da ética aristotélica, a questão da voluntariedade das ações humanas. A alma possui duas partes: uma parte racional e outra ir-racional – esta última se refere às paixões humanas. Conforme dissemos, a virtude se relaciona com paixões e ações, porém somente àquelas voluntá-rias, àquelas relativas à alma racional. As involuntárias recebem perdão ou às vezes inspiram compaixão.16 O ato racional, outrossim, é o ato deliberado e, por conseguinte, constitui-se de uma opção consciente do sujeito tendo em vista um fim específico.17 Portanto, as virtudes, sendo disposições ideais da conduta humana, dependem da voluntariedade do indivíduo para serem praticadas.18

11 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 42.

12 Para Aristóteles exis-tem três tipos de alma. A alma vegetativa é a mais comum das espécies, trata-se da causa e o prin-cípio do corpo vivente, é a alma geradora de um ser semelhante àquele que a possui; após tem-se a alma sensitiva, suas faculdades são potências aptas para captar o objeto sensível; a última é a alma racio-nal, a qual capta a forma inteligível, possível de ser conhecida e entendida, somente possuída pelos seres humanos. (ARISTÓ-TELES. De Anima. Prólo-go, traducción y notas de: LLANOS, Alfredo. Buenos Aires: Leviatan, 2003.)

13 Algumas traduções tratam a sabedoria prática como a virtude da pru-dência. Giovanni Reale faz a distinção entre a sabe-doria, no sentido de pru-dência, e trata a sabedoria filosófica como sapiência. (REALE, Giovanni. Histó-ria da Filosofia Antiga. p. 417. 2v) .

14 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aris-totélica. p. 1.065.

15 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 119,120.

16 Contudo isso não isenta quem pratica tais atos involuntários de sua responsabilidade, dado que a temperança é jus-tamente a virtude que aquele que sabe controlar suas paixões possui.

17 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aris-totélica. p. 1033.

18 Conforme Philippe: “[...] a virtude depende de nós, porque é fruto de ações voluntárias, de escolhas que dependem de nós. Mas o que é verdadeiro da virtude, o é também do vício. Pois nos casos em que depende de nós agir, também depende de nós não agir”. (PHILI-PPE, Marie-Dominique. Introdução à Filosofia de Aristóteles. Tradução de: HIBON, Gabriel. São Paulo: Paulus, 2002. p. 51.)

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Todos os seres humanos nascem já tendentes à felicidade, conforme dito, e também ao conhecimento, conforme exposto na Metafísica19. Porém, dotado dessa potência, dessa possibilidade, somente se a pessoa decidir agir de modo adequado é que poderá assim. Nisso tem-se, por conseguinte, a responsabili-zação do indivíduo por como sua vida se encontra e por como deveria estar.

Através dessas considerações podemos partir para a análise de questões mais específicas da Ética. A partir do livro III, Aristóteles passa a tratar das virtudes em espécie, principiando pela coragem, que é a virtude daquele que sabe agir quando é devido e não agir quando não é devido. E pela tem-perança, que se refere ao controle deliberado das próprias paixões. O livro IV trata especialmente da virtude da liberalidade, que é a capacidade do indi-víduo saber ganhar, guardar e gastar dinheiro. A Ética, por se referir também à capacidade de se adquirir bens que auxiliem na construção do indivíduo, também considera a importância do dinheiro, critério de liberdade àquele que pretende viver bem.

O livro V da obra é inteiramente dedicado a tratar da Justiça, virtude que é considerada por Aristóteles como a mais importante. Ciente de que a Justiça é uma virtude, e que as virtudes são os meios-termos, o filósofo propõe-se, então, a identificar qual espécie de meio-termo é a Justiça.

Para iniciar essa discussão, Aristóteles fixa um conceito de homem justo, contrapondo-o ao homem injusto. Nesse raciocínio, diz Aristóteles que o homem justo é aquele que é conforme a lei e correto, ao passo que o homem injusto é exatamente o contrário, ilegal e iníquo.20

Dessa concepção, Aristóteles passa a tratar da Justiça Legal, consideran-do a importância das leis, posto que estas almejam a vantagem de todos, tendo em vista as diferenças entre as classes que habitam na cidade. A lei justa procura preservar a felicidade e os elementos que a compõem em uma sociedade em relação a todos. Disso, conclui Aristóteles que a Justiça é, de fato, a virtude completa, não é uma virtude absoluta, mas, por ser praticada também em relação ao próximo, é superior às demais.21

Portanto, pode-se considerar a Justiça como a maior das virtudes justa-mente pelo fato de que por intermédio dela pode-se beneficiar às pessoas que vivem conosco. Assim, o pior dos homens é aquele que exerce sua deficiência moral em relação a si mesmo e aos demais, ao passo que o melhor dos homens, contrariamente, faz da sua virtude motivo não só de construção pessoal, mas com seu desenvolvimento individual auxilia a todos que o circundam.

19 “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”. (ARISTÓTELES. Me-tafísica. v. 2. p. 3.)

20 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 92.

21 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 93.

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O indivíduo que escolhe conhecer-se, construir-se, desenvolver-se, tendo como base a ação virtuosa, será aquele que estará apto a auxiliar os demais, posto que sua vida é evidência do seu mérito, da capacidade que possui de agir corretamente. Contrariamente, aquele que ainda não possui tal senso, quando busca preocupar-se com os demais, sem haver se construído ade-quadamente, corre o risco de, ao mesmo tempo em que não trabalha fa-voravelmente ao seu desenvolvimento, prejudicar o outro por ainda estar incapacitado para auxiliá-lo.

Considerada a supremacia da Justiça ante as demais virtudes, e que esta é o ponto de equidade entre o excesso e a falta, Aristóteles divide-a em duas categorias, das quais o meio-termo da Justiça operará de maneira diversa. Uma se manifesta nas distribuições em geral, por exemplo, na distribuição de funções ou de dinheiro, é a justiça distributiva. A outra desempenha uma função corretiva, por isso é chamada de justiça corretiva. Esta se subdivide na parte que trata das transações voluntárias, onde ambas as partes agem voluntariamente, representadas especialmente pelas relações contratuais. Já as transações involuntárias referem-se à superposição de uma vontade sobre a outra, algumas dessas são clandestinas e outras violentas. Clandesti-nas quando é agredido o patrimônio ou o direito de outrem, como quando ocorre o furto, e violentas quando essa agressão atinge a própria integridade da pessoa, como nos casos de agressão, sequestro e homicídio.22

A Justiça considera uma relação entre dois elementos ao mínimo, sendo o justo o ponto equânime entre esses pontos, não obrigatoriamente a metade, mas sim a devida proporcionalidade. Essa igualdade será observada de dois modos diversos, relativamente àquelas espécies de Justiça acima elencadas. O justo, na justiça distributiva, é uma proporção que possui como base o mérito, segue uma proporção geométrica, sendo essa forma também chama-da de justiça geométrica.23 Marcantemente as questões de Direito Público devem ser praticadas tendo-se em vista essa modalidade de Justiça.24A outra espécie, a justiça corretiva, por sua vez, é a busca pela retomada da propor-ção que foi agredida. Essa Justiça refere-se à situação de desigualdade entre as partes que deve ser reposta, pautando-se, assim, em uma proporção arit-mética. Nesse sentido, agredida a lei, o juiz busca reaver a relação de desi-gualdade ocorrida, com a retribuição pecuniária ou com a aplicação de uma pena. Assim explica Aristóteles que o juiz restabelece a igualdade, como se com uma linha dividida em dois segmentos iguais este subtraísse a parte que faz com que o segmento maior exceda a metade, acrescentando-o ao segmento maior. O igual é o meio-termo entre a linha maior e a menor, de

22 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 95.

23 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 96.

24 ROSS, Sir David. Aristo-tle. p. 217.

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acordo com essa proporção aritmética. “Esta é a origem da palavra díkaion (=justo); ela quer dizer dikha (=dividida ao meio), como se se devesse enten-der esta última palavra no sentido de díkaion; e um dikastés (=juiz) é aquele que divide ao meio (dikhastés)”.25

Conforme nota-se, essa última concepção de Justiça refere-se ao aspecto judicial da ideia de Justiça. No momento em que a dimensão ética não basta, que a conjugação entre os desígnios de ambos os indivíduos passa a ser des-proporcional e ambas as partes não conseguem chegar a um consenso que restabeleça a relação original, surge a necessidade de se levar essa questão ao juiz, para que este possa exercer a jurisdição26, retornando a proporção originalmente havida entre as partes.

Elemento essencial para se procurar um órgão judicial é a necessidade, o que se chama atualmente de pretensão resistida. Ou seja, somente quando as partes não conseguem obter um consenso é que surge a necessidade de se buscar um terceiro que possa retomar a igualdade. Destaca-se ainda que, atualmente, ante a morosidade do Poder Judiciário para julgar as ques-tões que lhes são apresentadas, tem-se recorrido a meios alternativos de se buscar esse retorno à devida proporção, tais como os meios de mediação e também os tribunais arbitrais.

Finalizando as questões da Justiça, destaca-se a concepção de equidade para Aristóteles. O equitativo é uma correção da Justiça Legal. Quando a lei vigente não prevê uma determinada situação, ou a trata de maneira muito limitada, para que se possa realizar a Justiça torna-se necessário recorrer ao princípio de equidade, corrigindo-se a falta presente na legislação, “dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão”27.

Para o exercício de sua função, o juiz tem como uma de suas prerrogativas a possibilidade de recorrer a juízos de equidade, quando a situação o pedir, pela ausência de previsão legal ou pela limitação da lei. Na atualidade, no Estado brasileiro, nenhum juiz pode furtar-se de julgar uma situação que lhe é provocada, se tiverem cumpridos os pressupostos para a recepção do pro-cesso. Nesse sentido, o artigo 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”28. Demonstra-se, assim, que na busca pela realização da Justiça, o ordenamento jurídico pátrio recepciona a concepção aristotélica de equidade.

25 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 98.

26 Do latim iurisdictio, ou seja, dizer o direito, dizer qual parte possui o direito.

27 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 109.

28 BRASIL. Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdu-ção ao Código Civil Bra-sileiro. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del4657.htm>. Acesso em 17 out 2009.

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Ademais, em uma realidade como a atual, onde as concepções da so-ciedade se alteram muito rapidamente, cada vez mais novas situações vêm sendo apresentadas aos juízes e tribunais, de modo que é essencial ao jurista uma profunda formação técnica e existencial para que possa operar um juízo equânime, justo, cumprindo a sua finalidade na ordem social. Nesse sentido, as atuais campanhas por maior celeridade nos órgãos judiciários, apesar de serem importantes, carregam consigo um alto risco, o da perda do profundo discernimento da realidade a que se busca aplicar o Direito, por abrir-se mão da precisão da apuração dos fatos em favor da duração menor dos proces-sos. É importante que se reorganize a lógica do Poder Judiciário, de modo que se possa atender de maneira mais adequada aos anseios da sociedade brasileira, porém, o modo mais adequado para operar essa passagem não é somente através da simplificação dos ritos processuais. Não se pode perder o valor da formação do jurista. Este, sendo uma liderança social, também precisa de uma profunda formação ética para que possa auxiliar a sociedade no seu desenvolvimento.

Por fim, há que se considerar também, relativamente às concepções de Justiça, a importância da amizade na sua construção, posto que, conforme manifesta o estagirita, “considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa”29.

As questões relativas à amizade são tratadas nos livros VIII e IX da Etica Nicomachea. O fato de Aristóteles dedicar dois livros da obra, dividida em 10, demonstra a importância das relações interpessoais para a construção do indivíduo e para que este possa viver em felicidade. A amizade é divi-dida em três espécies: uma pautada no prazer, outra no interesse e, ainda, o modelo ideal de amizade. As duas primeiras formas são menos válidas, apesar de possuírem sua própria utilidade. Porém, só a terceira forma de amizade é autêntica, somente nela o homem ama ao outro por aquilo que ele é e auxilia-o a desenvolver-se, a realizar suas potencialidades. Nessa si-tuação, a amizade é ligada à virtude, sendo a verdadeira forma de amizade o laço que o homem virtuoso estabelece com outro homem virtuoso por causa da própria virtude.30

A amizade é essencial ao desenvolvimento do homem virtuoso e na ma-nutenção deste no devido foco. E, conforme tratamos acima, se a Justiça é a virtude porque pode ser praticada em relação ao indivíduo e ao próximo, a amizade é a relação pela qual um indivíduo busca agir com justiça em rela-ção ao outro justamente por buscar o melhor de seu amigo.

29 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 154.

30 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. 2v. p. 424.

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Essas são as principais considerações a serem feitas na relação entre a Ética e a Justiça. Postas essas considerações, tratar-se-á da política aristotélica.

Justiça na polis: a PolíticaCompreendidos os aspectos da Ética, pode-se partir para a análise da fi-

nalidade da existência humana e da Justiça no âmbito da cidade. Essa ne-cessidade encontra-se, inclusive, expressa na própria Ética a Nicômaco, no final do seu livro X, onde o filósofo demonstra a importância do preparo exis-tencial e do conhecimento para que se possa exercer de fato a liderança de uma sociedade.31 O homem verdadeiramente político é aquele que estudou a virtude acima de todas as coisas, posto que ele deseja tornar os cidadãos homens bons e obedientes às leis.

Destaca-se que o termo Política em Aristóteles refere-se a todas as ques-tões relativas à vida em sociedade. Assim, para o estagirita a Política possui um conceito mais amplo do que o atualmente consagrado. Sempre que nos referirmos ao termo Política estaremos baseados nessa concepção aristotélica.

Para analisar as questões relativas à organização do Estado, Aristóteles organiza sua Política, composta por oito livros, de modo a tratar no primei-ro livro acerca das questões da família, embrião da organização social. No segundo capítulo, reflete sobre as doutrinas dos filósofos predecessores, as constituições já existentes e as obras dos legisladores. Após essa reflexão, parte-se para a explicitação de sua teoria política nos livros III, IV e VI. No livro V trata-se da teoria das revoluções que alteram a ordem dos governos. O livro VII faz uma relação entre a vida na cidade e o ideal de vida ética, assim como trata de questões importantes a se considerar quando se constitui uma cidade, e o livro VIII, por fim, trata da educação dos jovens e o seu pre-paro para a vida política.

Aristóteles, contrariamente a Platão, constrói sua Política tendo como base a realidade histórica e também toda a construção teórica feita acerca da vida em sociedade. Assim, ao invés de idealizar um Estado perfeito, pro-põe-se a classificar os modelos de governos existentes e determinar de que forma estes poderiam ser bem organizados para que, seja qual o modelo de governo adotado, este possibilite aos seus indivíduos alcançar o ideal de felicidade. Os governos são analisados de modo que todos estes possam ser exercidos em sua plenitude.

31 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 209.

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No início da Política, Aristóteles já declara que o homem é um animal po-lítico, portanto, o ser humano já nasce sociável, tendente a essa forma de convívio por ser muito mais fácil a este viver bem e realizar-se dentro de uma estrutura social, onde cada um exerce sua determinada função e todos se auxiliam para que se tenha o desenvolvimento almejado. O ser humano so-mente não estaria nesta condição em duas possibilidades: somente se fosse uma besta, ou um ser sobre-humano, um deus. 32

Primeiramente, Aristóteles reflete sobre a estrutura familiar, por ser esta já uma forma de organização política. Acerca da família o filósofo discorre es-pecialmente sobre quatro questões: as relações entre marido e mulher, pais e filhos, senhor e servos, e, ainda, sobre a ciência econômica e a arte de obter riquezas.33

O livro III da obra em questão é dedicado à definição do conceito de cidade e de cidadão, assim como à análise da finalidade da vida em socieda-de e das formas pelas quais as sociedades organizam seus governos. Nesse escopo, inicia pela investigação do conceito de cidadão, o qual, consideran-do que cada forma de governo terá sua própria definição e a limitação da ex-tensão aos demais, verifica que, essencialmente, é aquele que pode exercer as funções de juiz ou magistrado, entendendo-se por estes os funcionários da administração da polis, tal como os agentes públicos na atualidade.34

Dado o conceito de cidadão, surge a questão: as virtudes do homem de bem são as mesmas que as do bom cidadão? Na apreciação dessa questão Aristóteles considera que, como a comunidade é o regime político, a virtu-de do cidadão deve necessariamente ser relativa ao regime ao qual se está submetido, inexistindo, portanto, uma única virtude do bom cidadão. Por outro lado, o homem bom é chamado assim por agir em conformidade com a Ética. Desse modo, torna-se claro que é possível ser um bom cidadão até mesmo sem possuir a virtude da qualidade do homem de bem.35 Esses con-ceitos somente seriam os mesmos no Estado perfeito, onde as virtudes dos cidadãos refletiriam os ditames da boa conduta humana.

Apesar disso, existem determinadas virtudes que são essenciais ao exercí-cio da cidadania; especialmente no tocante ao comando, é essencial que se possua a prudência ou sabedoria prática. Àqueles que são governados, além da capacidade de reconhecer a autoridade dos homens livres, importa-se na sabedoria ao aconselhar o seu senhor, sendo também esta parte da arte de saber bem servir a um líder.36

32 ARISTÓTELES. Política. Edição Bilíngue. Tradu-ção de António Campelo Amaral e Carlos de Carva-lho Gomes. Lisboa: Vega, 1998. p. 55.

33 REALE, Giovanni. His-tória da Filosofia Antiga. 2v. p. 434.

34 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aris-totélica. p. 1.213.

35 ARISTÓTELES. Política. p. 197.

36 ARISTÓTELES. Política. p. 201.

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Assim, apesar da íntima relação entre a Ética e a Política, cada uma dessas ciências disciplina o indivíduo de maneira diversa. Enquanto a Ética orienta o indivíduo para que este saiba conduzir bem sua vida e, consequentemen-te, vir a realizar-se, a Política busca preparar os cidadãos para que exerçam devidamente suas funções dentro da estrutura do Estado. Apesar de ambas as virtudes não serem as mesmas, não se está negando por intermédio dessa afirmação a conduta Ética, mas sim consignando-se que não bastará sim-plesmente a virtude para que o Estado possa estar organizado e venha a gerir bem a vida de seus cidadãos.

Sobre esse tema, refletindo-se acerca da atualidade, há de se considerar essa cisão. Considerando-se que a vida política não se restringe somente ao Estado, mas também a qualquer estrutura organizacional, há de se ter em vista essa duplicidade de valores quando o indivíduo conduzir sua pró-pria vida. Necessita-se que ele saiba ser um bom cidadão, conheça as regras que deve cumprir e saiba agir do modo como se espera. Porém, isso não basta para que esse indivíduo venha a realizar seus desígnios mais profun-dos, o que somente poderá ser alcançado na situação em que esse indivíduo também se atente à sua conduta e ao seu desenvolvimento. Se este apenas se preocupasse com a sua construção ética, em detrimento da estruturação na organização em que se encontra, certamente acabaria dispensado de sua função ou preterido sem seu espaço, por não trabalhar em favor da manu-tenção ou do desenvolvimento dessa estrutura externa.

A finalidade do Estado, tal como a Ética, é a felicidade na vida. As pessoas vivem em conjunto e criam instituições com esse intuito. Porém, a Ciência Política é maior do que a Ética, apesar de o bem (agathos) do indivíduo e do Estado serem da mesma natureza, o bem do Estado é mais importante, mais belo, mais perfeito e mais divino, posto que ele possibilita a todo o conjunto de individualidades o alcance de suas finalidades.

Logo em seguida Aristóteles passa a analisar as formas de governo, também chamadas pelo filósofo de constituições, as quais são divididas em três modelos ideais e três modelos corrompidos. Os governos ideais exer-cem seu poder em favor da sociedade, os modelos corrompidos apenas ao interesse dos governantes. Essa divisão tríplice considera, ainda, o número de governantes. O governo de um só é chamado de monarquia, se opera em favor da sociedade, e de tirania, se visa somente ao poderio do próprio governante. O governo será aristocrático se um grupo de poucas pessoas, composto somente pelos melhores, governa37. Sua degeneração é a oligar-

37 Daí seu nome: aristos significa o melhor, en-quanto cratos significa poder.

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quia, que é o governo dos mais ricos. Por fim, tem-se o regime ao qual se dá o nome de regime constitucional, que é o governo de um grande número de indivíduos e apresenta características atinentes à oligarquia e à democra-cia, sendo um termo intermediário entre estas. Sua corrupção seria a própria democracia, entendida como o governo dos pobres e tendo em vista seus próprios interesses.38

Na sua apreciação dessas formas de governo, Aristóteles não somente as trata na perspectiva de formas ideais ou corrompidas, mas também analisan-do o modo pelo qual cada forma de governo poderia ser exercida de manei-ra mais próxima à excelência, classificando as subespécies de constituições que eram formadas dentro de cada uma dessas categorias. Ademais, apesar de demonstrar preferência pelo regime dos melhores, expõe que o governo ideal deve ser relativo à própria cidade, de modo que os cidadãos mais des-tacados possam dirigi-la. Se houver apenas um que é superior a todos, reco-mendável seria constituir-se um governo monárquico, caso houvesse mais de um homem valoroso, preferir-se-ia uma aristocracia ou um governo cons-titucional. A forma de governo levará em conta, ainda, as questões relativas à geografia, ao clima e à população em que se encontra. Aristóteles considera ainda que a educação e os hábitos que tornam um homem virtuoso serão geralmente os mesmos que fazem o político ou rei, razão pela qual reflete sobre a educação na cidade no livro VIII.

Tratando sobre a quem se deveria dar a soberania, aos governantes ou às leis, Aristóteles entende ser melhor que a lei governe. Os homens se cor-rompem e entregam-se às paixões, já as leis são “a razão liberta do desejo”39. Desse modo, deve-se buscar formular as leis de modo que regulem as situa-ções humanas, sem ter de se depender do ânimo do governante para tanto.

A justiça política é em parte natural e em parte legal, ou seja, parte relati-va ao direito natural, parte ao direito positivo. Naturais são “[...] as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não”40, e legal é “[...] aquilo que a princípio pode ser determinado indife-rentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente”.41

Dentro dessa estrutura, Aristóteles discrimina a existência de três partes em todos os governos. Uma dessas partes relaciona-se com a deliberação sobre assuntos que dizem respeito à comunidade. A segunda refere-se às magistraturas. A terceira, ao exercício da Justiça. Apesar de serem divididas essas três partes, na filosofia Aristotélica não há uma profunda ruptura entre

38 ARISTÓTELES. Política. p. 38.

39 ARISTÓTELES. Política. p. 259.

40 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 103.

41 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. p. 103.

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essas funções, o que somente será feito mais tarde, baseando-se nas ideias do filósofo francês Montesquieu.

Feitas essas considerações, concluindo-se este ponto, há que se conside-rar a relação entre Justiça e Igualdade. A Justiça é um meio-termo dentro da cidade que considera os iguais como iguais e os desiguais como desiguais. É desse modo que o princípio de justiça distributiva poderá ser realizado no âmbito do Estado.

Não há como se buscar uma igualdade simples em uma estrutura gover-namental; esse princípio fulmina completamente a responsabilidade do in-divíduo para com sua vida e, além disso, acaba sendo injusto para uma das partes. Por isso, para se querer tratar todos como iguais, deve-se trabalhar primeiramente na extinção das desigualdades.

Por fim, ao refletir sobre o indivíduo, ou indivíduos que estão em um nível muito superior àquele dos demais, tão preeminentes em virtude que nem a virtude nem a capacidade política dos outros possa ser comparada às suas, conclui Aristóteles:

[...] um tal indivíduo ou indivíduos não devem ser tratados como simples partes da cidade. Tratá-los-emos injustamente se apenas os acharmos dignos de direitos iguais, sendo eles tão desiguais em virtude e capacidade política. Um indivíduo assim torna-se como um deus entre os homens. Por aqui se vê que a legislação se refere necessariamente àqueles que são iguais em nascimento e capacidade, enquanto para os seres superiores não existe lei; eles mesmos são a lei. Seria estultícia tentar legislar para eles: retaliariam com as palavras usadas pelos leões da fábula de Antístenes, quando as lebres reinvidicariam, em assembleia, a igualdade para todos.42

Desse modo, reforça-se a característica da lei e da justiça política como disciplina do mínimo social. Por mais que através delas busque-se disci-plinar a vida do indivíduo e de seus convivas, de modo que todos possam desenvolver-se, não são elas que garantirão seu desenvolvimento. Caso o indivíduo transpasse a necessidade de guiar-se pelas leis, por já possuir um módulo de conduta correto, não mais se necessitaria exigir dele os rigores desta, pois sua própria conduta já seria conforme o que a realidade pede. Ou ainda, como manifesta mais a frente Aristóteles, a alternativa seria todos obedecerem voluntariamente a tal homem ou a tal grupo, pois seriam os mais adequados governantes.43

Porém, como isso não é possível e, por mais que o indivíduo desenvolva-se e esteja acima da média, este ainda vive em meio à sociedade, e os demais co-brarão dele o cumprimento dessas normas, reforça-se a questão das virtudes do bom cidadão e do homem de bem. Necessário se faz calcular a conduta de

42 ARISTÓTELES. Política. p. 241.

43 ARISTÓTELES. Política. p. 245.

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modo a se cumprir o que lhe é socialmente exigido, por mais que se esteja além dessa relação, sem perder nesse processo o foco no próprio desenvolvimento.

ConclusõesConforme foi visto neste capítulo, Aristóteles trabalha a questão da Justi-

ça dentro da Ética e da Política. Tanto a Ética quanto a Política visam conduzir o indivíduo à realização de sua finalidade, a felicidade na vida, a qual é cons-truída pelo desenvolvimento das virtudes, tanto morais quanto intelectuais, através dos hábitos e do estudo. A Ética procura disciplinar o indivíduo para que por si consiga alcançar tal finalidade. A Política, diversamente, busca que todos aqueles que vivem dentro da cidade possam alcançar a felicidade.

Nesse sentido, para Aristóteles a Justiça é o meio-termo, a relação de pro-porcionalidade do indivíduo para consigo próprio e para com os demais. Esse meio-termo poderá ter como relação uma proporção geométrica, quando tratar-se das distribuições, sendo uma proporção que tem como base o mérito, chamada, portanto, de justiça distributiva ou justiça geomé-trica; ou em uma proporção aritmética nas relações dos indivíduos entre si em que um beneficie-se através do prejuízo do outro na justiça distributiva ou justiça aritmética, onde busca-se retomada da proporção que foi agre-dida. Essa Justiça refere-se à situação de desigualdade entre as partes que deve ser reposta, pautando-se, assim, em uma proporção aritmética. Nesse sentido, agredida a lei o juiz busca reaver a relação de desigualdade ocorrida, com a retribuição pecuniária ou com a aplicação de uma pena.

Essas são as principais questões relativas à Justiça e à Filosofia Política que podem ser feitas dentro do sistema filosófico de Aristóteles.

Ampliando seus conhecimentos

A teoria peripatética da Justiça(BITTAR, 2003)

Por Teoria da Justiça se entende todo o conjunto das contribuições acerca da temática da Justiça desenvolvidas no peripatos – de origem grega (peripa-tos), o termo significa passeio arborizado, termo que veio a batizar a escola

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aristotélica por se desenvolverem os estudos em caminhadas sob os arvore-dos do Liceu –, ou seja, todo o legado que, por sistemático, se pode extrair das reflexões filosóficas desenvolvidas sob a tutela de Aristóteles, o filósofo macedônio. A legitimidade de se desenvolver a temática sobre a Justiça em Aristóteles sob o título de uma teoria autônoma da Justiça é não só defen-sável como também destaque lógico da própria teoria ética do filósofo de Estagira. Sendo que toda teoria pressupõe uma análise lógica da realidade da qual se pretende analítica, só se pode argumentar em prol dessa tese em se sublinhando o caráter sistemático sob o qual se desenvolveu a teoria de Aris-tóteles acerca da questão Justiça. Assim, ver-se-á estar o problema da Justiça encadeado a um conjunto de premissas de caráter ético, sociológico e polí-tico, formando-se um totum teórico de grande valor científico. Tal encadea-mento sistemático da teoria aristotélica da Justiça se toma muito presente aos olhos do estudioso que meticulosamente destaca a problemática sobretudo do texto do livro V da Ethica Nicomachea, livro esse dedicado à penetração dos problemas éticos de uma maneira geral. No entanto, a temática da Justi-ça reaparece em outras passagens das obras aristotélicas, demonstrando-se, por esse mesmo fato, a sua importância como decorrência de uma constante preocupação em utilizar o problema da Justiça como pressuposto de análise de outras questões de cunho social. Assim, podem-se extrair reflexões a esse respeito dos livros Política e da Rethorica. Encontra-se, portanto, não só por cri-tério textual, mas também por critério lógico, uma unidade convergente entre os conceitos filosóficos que instauram a coerência do pensamento aristotélico na relação de seus pressupostos com suas conclusões epistêmicas, o que nos permite apresentar uma Teoria da Justiça concatenada, e em pura dialética, como toda a galáxia de significância estabelecida nos peripatos como cons-tituindo um totum indissociável dos demais conceitos filosóficos construídos dentro do contexto da filosofia helênica do século IV a.C.

Discutir uma Teoria da Justiça em Aristóteles é muito menos criar um cons-truto sistemático dentro do repertório intelectual de sua filosofia, e muito mais desvelar uma principiologia científica elaborada em consonância com as demais premissas de seu pensamento. Daí a relevância de não se considerar essa como sendo uma esfera teórica apartada das demais conclusões de sua obra; desde a Física até a Metafísica, fato é que todos os elementos contextuais de sua teoria se intercomunicam, ora se interchocando, ora se autorreferindo, mas, de qual-quer forma, transmitindo a ideia de homogeneidade de seu pensamento. Mas, advirta-se, sua filosofia, no lugar da monolítica, construída a partir de uma ex-

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periência singular e de uma única vez, é produto de evolver de suas próprias concepções acerca da realidade, relevando-se os influxos axiológicos, filosófi-cos e sociais que lançaram profundas marcas, trazendo contribuições, firmando problemáticas e instaurando a dúvida na filosofia peripatética, e isso, além de detectável, é explícito em determinadas passagens de sua obra.

Dialogar com Aristóteles é, antes de reviver seus postulados teoréticos, trazer referências pontuais que possam representar elementos de colabora-ção para uma reflexão contemporânea acerca da problemática, não só filo-sófica, mas também pragmática, que se destaca do contexto da aplicação do Direito como instrumento social. Operar interpretativamente a textualidade aristotélica acerca da questão da Justiça, superadas as diferenças de tempo (Antiguidade) e espaço (Grécia ática) – diferenças a que estão jungidas todas as discussões que se aproximem e que procurem como fonte de referência textos demarcados espaço-temporalmente –, não só consente, como valoriza a participação do leitos enquanto intérprete da complexidade decorrente da mensagem do autor. A dinamicidade do teorético é diretamente proporcional à capacidade interpretativa e reavaliativa dos valores conceituais que se des-tacam de um contexto histórico-social determinado. Toda teoria, mesmo que circunstancializada, supera os elementos que a condicionam à morte dentro das fronteiras espaço-temporais em que se produziu, deixando seus rastros e contribuições intertemporais que se produziu, deixando seus rastros e contri-buições intertemporais como sinais do exercício de uma faculdade que inva-riavelmente é comum a todos os homens: a razão.

A Justiça e a Eticidade

O problema da Justiça é, dentro da filosofia aristotélica, como já se procurou acentuar, uma questão acentuadamente de caráter ético. Tal premissa requer que preliminarmente se proceda um exame do que se pode entender pelos termos ético, Eticidade e natureza ética, apesar de já ter desenvolvido esse assunto nos capítulos anteriores. Uma primeira referência nesse sentido deve necessaria-mente sublinhar que a esfera da Eticidade não se aparta daquela racionalidade. Não se aparta pelo fato de que, em Aristóteles, razão prática (noûs praktikós) e razão teórica, ou teorética (noûs teoretikós), caminham conjuntamente na totali-zação do ser racional, ou seja, atuam paralelamente para a realização integral da natureza social do homem em sociedade. A vida social demanda respostas do indivíduo que tocam as faculdades da utilidade, do prático (práxis), assim como

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da razão pura, abstrata e teórica (theoría). Nesse sentido, ambas as razões, tanto a razão prática quanto a razão teórica, representam, quando vistas em conjunto, a completude das esferas noética e dianoética do ser racional. Se o ser humano se distingue por ser-lhe inerente a racionalidade – o que envolve razão prática e razão teórica –, seu télos não se confunde com o dos demais seres, e o que o caracteriza é a faculdade de alcançar a beatitude da felicidade (eudamonía) através da utilização de suas faculdades racionais.

Se diz ética toda questão que desborda na esfera do ethos, ou seja, de acordo com a etimologia da palavra, esfera dos importes da habitualidade. Isso se dá pelo fato de que a conquista ética não se faz sem a prática reitera-da de ações deliberadas advindas do juízo da razão prática (noûs praktikós). Sendo a razão prática a parte da racionalidade humana específica para o tra-tamento das questões advindas da esfera da utilidade e da práxis da conduta humana em sociedade, elegendo ações e deliberamento sobre o útil e sobre o injusto nos limites das circunstâncias práticas em que inserem as individua-lidades, releva-se o caráter ético da conduta social. Aqui se deve ater o leitor à seguinte reflexão: entre a deliberação ética interna e a exteriorização de uma conduta social ou antissocial, medeia o processo de eleição de meios para execução de fins individuais ou sociais, problema este que toca diretamente à razão prática resolver, bem como institucionalizar mediante o hábito (ethos), que pode ser individual ou tornar-se coletivo no costume.

A elegibilidade de fins e de meios coadunados dá consistência ao proces-so deliberativo de ação social, consentindo uma adequação entre o todo e as partes. Aqui está presente a noção de phrónesis aristotélica, ou seja, a virtude prudencial de eleição de fins e meios individuais compatíveis com aqueles outros, eleitos pela comunidade da qual participa o indivíduo. Para que a célula se adéque ao órgão, mister se faz que a parte atue em uníssono com o todo. Portanto, a justiça ou injustiça de uma conduta se poderá medir perante um critério social, qual seja, a adequação ou não da conduta do indivíduo aos lindes sociais na qual se insere. A justiça ou injustiça da conduta, concebida a questão enquanto imersa na questão maior da Eticidade do ser, é propriamente essa prática humana, esse fazer individual que transborda da esfera privada para lançar seus reflexos sobre a esfera pública, sobre o coletivo. A ação, participando da esfera coletiva, em sendo um ato vivenciável por homens, também é um ato sujeito ao juízo de reprovabilidade do coletivo, motivo pelo qual se pode falar em adequação ou não da ação aos objetivos eleitos pelo social.

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Nesse sentido, ações justas ou de Justiça correspondem a virtudes quando implementam condições sociais para que possam ser qualificadas como tais. A justiça de uma ação eleva esta à condição de virtude, ação louvável social-mente, podendo-se a esta se denominar de dikaosyne. A Eticidade da conduta lhe confere essa característica de ser ou não ser conforme os objetivos sociais, o que faz desta uma virtude ou vício social. No entanto, a Justiça não é uma virtude sui generis, pelo fato de que comporta uma cautelosa da aplicação da ideia de meio-termo (mesotés). Se, com relação às demais virtudes, como a prudência, a sabedoria, a moderação etc., a equivalência extremo – meio-termo – extremo é válida incondicionalmente, e dentro da temática da Jus-tiça esta não se pode tomar inadvertidamente como parâmetro. Isso se dá pelo fato de que, se à justiça se opõe um único vício, esse vício é a injustiça. Esta pode ocorrer por excesso ou por defeito. Aquele que pratica a injustiça encontra-se no excesso, por ter interferido na esfera alheia, enquanto aquele que sofre a injustiça encontra-se em defeito, visto ter sido o sujeito passivo da relação. No lugar de ter-se dois vícios diversos opostos à medianeira virtude da Justiça, como ocorre com todas as outras (ex.: covardia – coragem – pusi-lanimidade), o mesmo vício, em excesso ou em defeito, se opõe ao conceito central de Justiça.

Atividades de aplicação1. Conforme visto neste capítulo, ao tratar sobre a Ética, especialmen-

te no pensamento aristotélico, se está tratando da ciência que busca possibilitar ao homem que este viva bem. Considerando-se que na atualidade fala-se muito em crise ética, crise dos valores, qual é a im-portância da concepção de Ética apresentada por Aristóteles?

2. A ética aristotélica propõe-se a disciplinar a conduta humana através do cultivo das virtudes, que se dividem em virtudes éticas (morais) e virtudes dianoéticas (intelectuais). Acerca das virtudes éticas, discorra sobre sua importância na atualidade.

3. Qual a importância da concepção de justiça corretiva voluntária para a atualidade?

4. Consideradas as reflexões feitas por Aristóteles com relação às virtudes do bom cidadão em contraposição ao homem de bem, discorra sobre a importância dessa relação dúplice no mundo contemporâneo.

Justiça em Aristóteles

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5. A partir do que foi estudado, pergunta-se: qual a relação existente en-tre a ideia de Justiça e a Ética?

Gabarito1. Apesar de se falar em crise ética, não se propõe solução alguma a essa

questão. Desse modo, a ética aristotélica apresenta-se como uma pro-posta de boa conduta da vida. Pautando-se em um critério objetivo, a virtude, o meio-termo, trata-se de um modo de se disciplinar a con-duta humana em busca da realização humana, o que é essencial na sociedade contemporânea.

2. As virtudes éticas são justamente as que disciplinam a ação humana. Portanto, há que se considerar a sua importância na atualidade, con-siderando-se a ausência de um critério de ação que discipline a boa conduta, a proposta de condução da vida através das virtudes; culti-vando bons hábitos é um bom modo de o indivíduo desenvolver-se e saber agir adequadamente em sociedade.

3. A justiça corretiva relativa às transações voluntárias possui especial ligação com as relações de Direito Civil, especialmente com os contra-tos que os homens firmam entre si. Assim, reforça-se a importância da liberdade de vontade nessas relações; quando a vontade de uma das partes for preterida, ou quando a relação demonstrar-se demasiado onerosa, há que se buscar reaver a relação de igualdade, tal como ela existia quando da constituição da relação jurídica em questão, o que é disciplinado por essa modalidade de Justiça.

4. No mundo atual segue sendo importante o cultivo dessas duas ques-tões. É essencial que o homem que se propõe a ter um modelo de vida diferenciado e, especialmente, profundamente realizado, passe por um processo de desenvolvimento de suas virtudes. Porém, no mundo atual não basta ser um homem de valor, é também necessário ser conhece-dor das regras do jogo e saber cumpri-las; esse é o significado de ser um bom cidadão. Quando atenta-se apenas à formação pessoal e se esquece da sua relação com o Estado ou com a instituição civil em que se trabalha, ou com seus grupos particulares, há a perda de espaço do indivíduo, ou até sua própria exclusão. Por outro lado, a vida social não basta para garantir ao indivíduo seu pleno desenvolvimento, sendo de grande importância também o desenvolvimento das boas virtudes.

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Justiça em Aristóteles

5. A Justiça, no pensamento Aristotélico, é uma virtude, portanto, um modelo ideal de conduta pelo qual o homem pode alcançar, por con-sequência de sua prática, a felicidade. Como se não bastasse, ela é a maior das virtudes, posto que pode ser exercida tanto em relação a si próprio quanto em relação aos demais. Portanto, a Justiça é um tipo de excelência essencial para a boa conduta humana. Além disso, por se relacionar com as demais pessoas, pode também vir a auxiliar os outros no seu desenvolvimento, razão pela qual considera-se a amiza-de, um ato de amizade, a forma mais autêntica de Justiça.

ReferênciasARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. Tradução do grego, introdução e notas de: KURY, Mário da Gama. Brasília: UnB, 1992.

______. Política. Edição Bilingue. Tradução de: AMARAL, António Campelo; GOMES, Carlos de Carvalho. Lisboa: Veja, 1998.

______. Metafísica. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 2 v.

______. Arte Retórica. 17. ed. Tradução de: CARVALHO, Antônio Pinto de. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica. Leitura e interpretação do pensamento aristotélico. Barueri: Manole, 2003. p. 1019.

BRASIL. Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Disponível em: <www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del4657.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tradução de: VAZ, Henrique Cláu-dio de Lima; PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 1994. p. 316-317. 2 v.

______. História da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. 4. ed. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 1 v.

Helenismo e Idade Média

IntroduçãoApós tratar sobre a fundamentação da ideia de Justiça no pensamen-

to aristotélico, cumpre nesse momento refletir acerca das concepções de Justiça em dois períodos particulares. Primeiramente, trataremos do pen-samento filosófico na época helenística, a qual inicia-se com as conquistas de Alexandre Magno. As concepções filosóficas desse período estendem-se ao período de dominação romana, acompanhando-o na época do apogeu desse império. Logo após, dada a cristianização do império e a fundamenta-ção filosófica apologética dessas correntes, analisaremos a fundamentação filosófica dada a esse pensamento religioso, a partir do qual surge uma visão particular acerca dos conceitos de Direito e Justiça.

Desse modo, neste capítulo encerra-se a verificação dos conceitos de Jus-tiça no mundo clássico, tratando-se, ainda, da ideia de Justiça durante todo o medievo, preparando-nos para, em seguida, iniciar a análise do novo pen-samento oriundo da modernidade.

O pensamento filosófico no período helenísticoCom a tomada da Grécia pelos macedônios e as expedições alexandri-

nas, há uma grande mudança no espírito do mundo grego. Politicamente, a maior consequência das conquistas alexandrinas foi o desmoronamento da importância da polis. O conceito de helênico torna-se helenístico, referindo- -se a nova cultura oriunda da mixagem das concepções gregas com as dos demais povos conquistados.

Com o poderio das monarquias helenísticas, o conceito de “cidadão”, em seu sentido clássico, é alterado para a ideia de “súdito”. A vida nos Estados se desenvolve independentemente do querer dos seus habitantes. Isso influen-cia a Filosofia, deixando-se de se preocupar com a formação total do cidadão para se preocupar com a boa vida do indivíduo.1 Os helenos não separavam o homem da cidade, o indivíduo do cidadão. Com a helenização, opera-se a separação desses conceitos. As concepções morais a partir de então passam a considerar a perspectiva do indivíduo. Afastando-se do ideal dos aspectos do governo da sociedade, conforme se verá a seguir.2

1 REALE, Giovanni; ANTI-SERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 229.

2 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Tra-dução de António Borges Coelho.5 ed. Lisboa: Pre-sença, 1999. 2v. p. 10

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O epicurismoO epicurismo é a primeira das grandes escolas filosóficas que se erguem

no período helenístico, fundada por Epicuro3. Suas principais ideias podem ser resumidas nas seguintes proposições: a) pela inteligência do homem pode-se conhecer a realidade perfeitamente; b) nas dimensões do real existe espaço para a felicidade do homem; c) a felicidade é a falta de dor e perturbação; d) para atingir essa felicidade e essa paz, o homem só precisa de si mesmo; e) não lhe servem absolutamente a cidade, as instituições, a nobreza, as riquezas, todas as coisas, nem mesmo os deuses. Nesse sentido, o homem é perfeitamente “autárquico”4.5

Assim, há a concentração no homem, proporcionando-se a este, através da análise do mundo em que vive, libertar-se das paixões que o condicio-nam, vivendo em felicidade.

Epicuro divide a Filosofia em Lógica, Física e Ética. A primeira elaboraria os cânones segundo os quais reconhecemos a verdade, a segunda se encar-regaria de estudar a constituição do real, e a terceira, a finalidade do homem, que, como foi dito, é a felicidade.

Epicuro afirma que a sensação “colhe o ser” de modo infalível, esta nunca pode falhar, trata-se do critério de identificação da realidade. É objetiva e verdadeira, porque é produzida pela própria estrutura realidade6 e, acima de tudo, é a-racional, incapaz de retirar ou acrescentar em si mesma alguma coisa, sendo, por esse motivo, um critério objetivo.7 Além das sensações, as antecipações, também chamadas de “prolepses” ou “pré-noções”, represen-tações mentais das coisas, memórias daquilo que já mostrou-se no exterior, também são formas de conhecimento. Por último há a afecção, consideran-do-se os sentimentos de prazer e dor também como critérios, constituindo- -se como bases para a distinção do bem e do mal.8

A característica comum entre esses três critérios de conhecimento é a evi-dência (enargeia), que é o fim necessário a se ter presente. O erro, se ocorre, não está na sensação, mas na opinião (doxa) que é formulada a partir dos dados da sensação.9

Para o epicurismo, o homem, para viver bem, deve buscar o prazer. “A feli-cidade consiste apenas no prazer estável ou negativo, ‘no não sofrer e no não agitar-se’ e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de perturbação) e aponia (ausência de dor)”.10 Assim, para Epicuro a vida política é em suma

3 Epicuro nasceu em Samos, em 341 a.C. Fundou sua escola em Atenas, provavelmente entre 307/306 a.C, e esta recebeu o nome de Jardim (Képos) por dar suas aulas não como uma palestra, símbolo da Grécia Clás-sica, mas em um prédio com um jardim nos subúr-bios de Atenas. Epicuro morreu em Atenas, em 271 ou 270 a.C. (ABBAG-NANO, Nicola. História da Filosofia. p. 25.)

4 Autárquico: da fusão entre autos e cratos, ou seja, relacionado à capaci-dade do homem guiar-se por si próprio.

5 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 239.

6 Para os epicuristas, o mundo e também o homem eram reduzidos a um mero agrupamento de átomos.

7 REALE, Giovanni; AN-

TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 240.

8 CAROTENUTO, Mar-gherita. Histórico sobre as teorias do conheci-mento. Recanto Maestro: Ontopsicologia Editrice, 2009. p. 27.

9 CAROTENUTO, Marghe-rita. Histórico sobre as teorias do conhecimen-to. p. 27.

10 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. p. 31.

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não natural. Consequentemente, ela comporta continuamente dores e per-turbações, o que compromete o prazer do homem. O filósofo do “jardim” de-fendia a retirada do convívio social para “si mesmo”, propunha uma profunda interiorização, em detrimento da realidade social.

Considerações acerca do Direito, da Lei e da Justiça não são profundamente consideradas por tal corrente filosófica, somente vislumbrando-as na perspectiva da utilidade do indivíduo na busca por sua felicidade, tal como destaca Reale.11

O estoicismoOutra importante escola filosófica nascida no séc. IV a.C é o estoicismo,

fundada por Zenão.12 Tal como o epicurismo, essa escola renegava a metafísi-ca e toda a forma de transcendência, tratando-se de uma forma materialista de se conhecer a realidade. A Filosofia era concebida como a “arte de viver”.

Divide-se este período em três diversas fases. A primeira é oriunda da tríade ateniense, Zenão, Cleanto de Assos e Crísipo de Solis. A segunda refe-re-se ao período entre o séc. II e I a.C, onde ocorreram infiltrações ecléticas na doutrina. A terceira é o período da Estoá romana, ou “Nova Estoá”.

Os estoicistas também aceitavam a tripartição acadêmica da Filosofia, nos mesmos moldes dos epicuristas. Sua Teoria do Conhecimento também é similar à epicurista. Porém, a sensação por si só não é o conhecimento. Para tanto se faz necessário um “assentir”, um consentimento, uma aprovação do logos que está em nossa alma.13 “O assentimento constitui o juízo, o qual se define precisamente a sensação”.14

Tal corrente partilha o conceito de que a liberdade do indivíduo consiste em poder ser “causa de si”, dos próprios atos e movimentos, ser autodetermi-nado. Nesse sentido, a Ética para eles é a doutrina do uso da razão com o fim de estabelecer a correlação entre a natureza e o homem. O homem busca viver bem por meio das virtudes, as quais não são o meio-termo, como de-fendido por Aristóteles. Para eles é a partir dos deveres que o indivíduo age bem. O dever em si não é o bem, porém quando há a escolha deliberada e repetida pela prática do dever, há a realização do ato virtuoso. O sábio sabe agir bem, é virtuoso; o estulto, faz tudo mal, de maneira viciosa.15 A virtude é o único bem; os males e os seus contrários, que não são virtudes, devem ser indiferenciados (adiaphora). Bem é aquilo que conserva e incrementa o ser, o logos, o mal, contrariamente, é o que danifica e o diminui.

11 REALE, Giovanni; AN-

TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 249.

12 Zenão, por ser oriun-do da Ilha de Chipre, não possuía direito a adquirir um prédio em Atenas, de modo que ele ministrava suas aulas num pórtico (em grego stoá). Razão pela qual deu-se o nome de “Estoá” ou “Pórtico” à sua escola. (REALE, Gio-vanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: An-tiguidade e Idade Média. p. 252.)

13 CAROTENUTO, Mar-gherita. Histórico sobre as teorias do conheci-mento. p. 28.

14 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. p. 14.

15 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. p. 22.

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As paixões para os estoicos são erros da razão, ou consequência deles, de modo que devem ser evitados. Essa é a apatia estoica, o tolhimento, a ausên-cia de toda paixão. A felicidade, portanto, é a apatia e impassibilidade.

Os estoicos consideravam a existência de uma lei que se inspira na razão divina, que é a lei natural da comunidade humana. Uma lei superior à reco-nhecida pelos diferentes povos da terra, perfeita, porém, maiores formula-ções acerca dessa lei foram somente produto da terceira corrente estoica.

O ceticismo e o ecletismoO ceticismo é a corrente filosófica divulgada por Pirro de Élida. A palavra

ceticismo vem de skepsis, que quer dizer observação, reflexão, indagação. O objetivo do ceticismo é alcançar a felicidade como ataraxia. Para essa cor-rente o alcance desse estado se opera através da indagação que põe em evi-dência a inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as considera igualmente falazes e se abstém de aceitar alguma.16

Para os céticos a felicidade é encontrada através da renúncia consciente a pronunciar-se, renúncia devido a impossibilidade de se afirmar algo de po-sitivo sobre a realidade, seguido da ataraxia, da ausência de turbamento, a tranquilidade interior. O sábio, nesse escopo, suspende o assentimento das situações com as quais se confronta na realidade, realiza epoché.17

Outro movimento nascido nessa época, mais especificamente no século II a.C, é o movimento denominado ecletismo18, que visava reunir e difundir o que consideravam melhor de cada uma das escolas. Sua principal marca é a introdução da concepção de probabilidade. Conforme a assertiva de Fílon de Larissa, há que se distinguir o verdadeiro do falso; todavia, não se tendo um critério que leve à verdade, à certeza, mas somente aparências que con-duzem à probabilidade, não se chega à percepção certa da verdade objetiva, mas tão somente à evidência do provável.19

Tal consideração, posteriormente reafirmada por Cícero, comprova o estado em que se encontrava a Filosofia no período helenístico. Apesar da divulgação de diversas escolas que propunham-se a guiar o indivíduo a viver bem, em meio à realidade material, sem, contudo, considerar uma ordem cósmica maior. Havendo, nesse sentido, a perda do conceito de ser, há o pro-blema de onde se encontrar um critério que afirme toda a existência humana, bem como a organização da sociedade e, por conseguinte, do Direito.

16 CAROTENUTO, Mar-gherita. Histórico sobre as teorias do conheci-mento. p. 30.

17 CAROTENUTO, Mar-gherita. Histórico sobre as teorias do conheci-mento. p. 31.

18 Termo oriundo do grego ek-léghein, esco-lher e reunir, tomando de várias partes. (REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: An-tiguidade e Idade Média. p. 276.)

19 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 277.

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Por fim, analisar-se-á nesse momento a continuidade dessas formas de pensamento na filosofia romana, onde se buscará o último suspiro dessa forma de compreensão da realidade, que dará espaço à racionalidade cristã.

A filosofia romanaConforme é sabido, Roma, ao conquistar a Grécia, acaba por assimilar sua

cultura. Ao fazê-lo, naturalmente, não deixaria de também adotar a forma mais sublime de conhecimento da realidade herdada do mundo grego, a Filosofia. Nesse sentido, tem-se uma profunda influência, especialmente da filosofia estoica no mundo romano, a qual influenciou toda a teoria geral do direito romano e de suas fontes.

Cícero representa o modo mais eficaz pelo qual se realizou a ponte entre a filosofia grega e a cultura romana. Desse modo, sua importância não é tanto teorética, mas sim por essa passagem que o filósofo e jurista realiza. Cícero opera a fusão eclética das várias correntes do mundo grego que pôde conhecer, repropondo-a em termos latinos.20

Além desse papel de divulgação das concepções teóricas helênicas, Cícero também opera uma profunda fundamentação da concepção de Direito, com base no pensamento grego.

Cícero e os demais pensadores romanos, apesar da influência estoica, muito ligados ao movimento ecletista, nas questões de Direito, passaram a utilizar muito mais as obras deixadas por Aristóteles, considerando-se que este foi o único que declaradamente analisou o Direito e suas fontes.21

A fundamentação da ideia de Justiça para os romanos é marcantemen-te aristotélica: jus suum cuique tribuere, Direito como dar a cada um a parte que lhe é devida. Villey declara que o sucesso do direito romano, enquanto organização lógica, é devido à fundamentação em Aristóteles. Pode-se con-siderar que Roma aplica praticamente as concepções do estagirita. Quando novas concepções filosóficas passaram a influenciar a sociedade romana, há a queda do direito romano.22

O declínio da Filosofia AntigaA influência de toda as correntes analisadas entrou em declínio após a

morte de Marco Aurélio, imperador romano e último grande filósofo estoico.

20 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 281.

21 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Jurídico Moderno. p. 71.

22 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Jurídico Moderno. p. 73, 74.

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Nesse clima de crise, inexistindo uma concepção filosófica que orientasse o indivíduo criteriosamente, há, com o passar do tempo, a adoção do cristia-nismo como religião oficial do Império Romano. A partir desse momento, tornando-se institucional a concepção religiosa, surgem movimentos filosó-ficos que buscam dar suporte a essa nova forma de se encarar a realidade.

Desprovidos de um critério, as pessoas passam a depender de uma con-cepção de fé, de religiosidade para buscar, orientar sua conduta e conduzir bem sua vida. Seguindo essa linha, a Filosofia passa a estar atrelada à reli-gião, e estará junto dessa durante todo o período que compreende a chama-da filosofia medieval.

Santo AgostinhoO mundo romano foi também o cenário em que surgiu Santo Agostinho,

talvez o primeiro grande filósofo cristão, responsável por iniciar o processo de absorção da Filosofia pela Teologia, que atravessaria toda a Idade Média. É difícil separar o pensamento de Agostinho das contingências históricas, uma vez que um de seus principais objetivos era justamente defender a fé cristã e supremacia de seu Deus23 diante das invasões bárbaras e do conflito com outras religiões e doutrinas, o que não significa que Agostinho também não havia estudado tais doutrinas24. Agostinho foi educado nas artes da gra-mática e da retórica, e iniciado na Filosofia na leitura dos clássicos gregos e romanos. Cícero influenciou seu pensamento, na perspectiva de que existe uma lei universal que governa inclusive a vida humana, mas nenhum outro pensador lhe inspirou tanto como Platão. A obra máxima de Agostinho, A Cidade de Deus, certamente nasce de um enorme trabalho de estudo da Re-pública platônica. Agostinho também pretendia construir uma cidade per-feita, tal como o Estado ideal do filósofo grego, mas nesse momento uma cidade perfeita governada a partir das leis perfeitas de Deus.

Para Agostinho, “a única verdadeira Justiça e o único verdadeiro Direito são divinos”25. Pode-se dizer que a grande inovação agostiniana é justa-mente o ato de reclamar para o campo teológico a verdade maior de toda discussão ética, política e jurídica. O pensamento teológico ocupa o centro dos argumentos, diferente do período grego, que era predominantemente cosmológico. E a preponderância de Deus se articula inclusive nas questões políticas e jurídicas.

23 Villey, ao refletir sobre a principal intenção de Agostinho em sua obra, pondera tanto sobre a importância do aspecto histórico como a defesa de Deus como única ver-dade: “É difícil apreender o objeto principal e ele recebeu de seus leitores interpretações diversas. Atualmente, é visto sobre-tudo como uma filosofia, ou melhor, uma teologia da história, porque a fi-losofia da história é um tema muito em voga: Deus conduz a história, dá-lhe um sentido, uma função providencial, porque Deus é a causa de tudo e toda a história deveria ser compreendida do ponto de vista de Deus e da salvação. Outros encontraram nela conhe-cimentos sobre a civili-zação pagã. Outros, uma doutrina política”. (VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. p. 82.)

24 A biografia de Santo Agostinho é importante para entender a sua cons-trução como intelectual e defensor das ideias cris-tãs. Agostinho não nasceu cristão, mas converteu-se, após estudar diversas re-ligiões e doutrinas. Além disso, o fato de ter se con-vertido não significa que tenha renegado aquelas ideias anteriores, pois como é sabido, Platão seguiu exercendo enorme influência em suas obras.

25 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno, p. 80.

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Em A Cidade de Deus a relação entre o humano e o divino se revela já na coexistência de duas cidades, a “cidade de Deus” e a “cidade dos homens”. Esta última é aquela que surge em nossa vida terrena. Agostinho a analisa tendo em vista a imagem do Império Romano, por contingência histórica, mas ela se aplica a todos os períodos da existência humana. Na “cidade dos homens” os “destinos parecem frágeis, provisórios, seus bens enganosos, sua justiça falsa; sem dúvida ela não merece muito apego de nosso coração”26. Já a “cidade de Deus” deve ser a verdadeira pátria dos cristãos. A “cidade de Deus” não é uma contingência histórica, mas uma “realidade mística, é a comunidade dos santos; mas ela se encarna historicamente nos grupos humanos cujos chefes são Abel, Noé, Abraão e os reis justos de Israel, e, enfim, na Igreja cristã. Ela tem justiça, suas leis próprias.”27

A relação com Platão torna-se mais evidente nessa questão. O paralelo das duas cidades é muito semelhante à problemática platônica da Repúbli-ca, quando o filósofo grego apresenta o mundo das ideias como aquele em que a verdade se revela e todo o restante como apenas sombras. A “cidade dos homens” não passa de sombra, falsidade, diante da verdade da “cidade de Deus”

Contudo, Santo Agostinho não declara a invalidade das leis terrenas nem da Justiça que impera na “cidade dos homens” conforme Villey:

Enquanto dure a história, enquanto realizemos nossa “peregrinação terrestre” e enquanto o joio não tiver sido separado da boa semente, é da essência das duas cidades elas coexistirem, estarem mescladas, imbricadas. E a própria cidade terrena tem, na história, sua razão de ser; é obra, como todas as coisas, da providência divina e cumpre certa função em nosso caminho para a salvação. Por isso o Estado, as leis, o direito de nossas cidades humanas históricas – cujo valor é questionado e que é preciso confrontar com os da cidade celeste – serão tratados por Santo Agostinho do ponto de vista de nossa salvação.28

Embora de fato várias vezes Agostinho ataque as leis romanas, bem como toda lei pagã, apresentando como elas contrariam as leis divinas, e ainda assinalando a relevante possibilidade de uma lei humana ser contraditória em relação às leis de Deus, não se pode dizer que ele permita a simples trans-gressão à ordem jurídica histórica vigente. Agostinho possui formação clás-sica greco-romana, suas leituras de Platão, Aristóteles e Cícero lhe permitem vislumbrar a importância da obediência às leis vigentes, pois não é possível tentar construir uma ordem social se antes não se estabelece a ordem inte-rior no indivíduo.

26 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno, p. 82.

27 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno, p. 83.

28 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno, p. 83.

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Para Agostinho, cada atividade tende à uma paz, que não precisa ser obrigatoriamente a paz perfeita, aquela ligada à justiça divina. O estabele-cimento da segurança e da ordem social na cidade dos homens já é alguma manifestação de paz, o que requer a obediência às leis profanas.

Porém, talvez mais razoável ainda seja outro argumento para se justificar a obediência às leis injustas dos homens. Para Agostinho, tudo que acontece na história do mundo é vontade divina, é obra de Deus, e nisso inclui-se os reinados tirânicos e os períodos de guerras e fome. Em cada evento histórico há uma ação divina, ainda que seus desígnios sejam misteriosos, de forma que devemos obedecer às leis instituídas pelas contingências históricas, por mais injustas que elas pareçam, já que ali também presencia-se a vontade de Deus. Por isso os cristãos obedecem a César, porque “obedecer às leis de César, o cristão sabe que também é curvar-se ante a lei eterna”29.

Não obstante, Agostinho prescreve aos cristãos a obediência às leis pro-fanas apenas como obediência a essa máxima maior advinda de Deus, e não a obediência às leis em si. Ou seja, Agostinho anuncia a fraqueza e a injusti-ça que nelas imperam, de forma que os cristãos devem apenas usá-las, sem nelas colocarem qualquer fruição, qualquer valor. O cristão não obedece às leis humanas por valor, mas por dever. A obediência às leis positivas é apenas parte de um processo que busca, no fim, a própria extinção das leis positivas, para que se vislumbre apenas toda a perfeição das leis divinas. A essas leis divinas Agostinho encontra suas fontes na justiça cristã, na Bíblia, e aqui ele cria sua inovação na história da Filosofia, pois conforme afirma Villey, não aparece nesse momento vestígios de influências platônicas e aristotélicas.

As leis divinas aparecem em três formas. A primeira e mais importante é a lei natural, que nasce do fato de que Deus fez todos os homens à sua imagem e semelhança, de forma que desde o Gênese o homem possui essa condição intrínseca de conhecer o justo. Essa lei natural é representada pela ordem natural imposta por Deus, e desde o pecado original o homem passou a contrariá-la.

A segunda forma da lei é a lei mosaica, a lei de Moisés, a justiça da Torá, por ser uma lei concebida por Deus e entregue aos humanos, o que revela sua condição justa por toda a eternidade. Por fim, a terceira forma da lei é a lei de Cristo, que posteriormente deverá ser a lei dos cristãos, e que está anunciada nos Evangelhos. Nesse sentido, será por meio do Evangelho que o cristão encontrará o autêntico Direito, ou seja, o direito agostiniano revela- -se, inicialmente, pela fé, que na sua visão é o princípio do conhecimento.

29 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno, p. 92.

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Agostinho não reduz a importância da razão para entendimento da verda-de, mas afirma ser a fé preponderante. Esse raciocínio se alastraria por toda a Idade Média, modificando a forma de se pensar o verdadeiro e o justo. A justiça e a verdade já não estão no campo da racionalidade humana, como acontecia entre os gregos, mas na obediência a Deus e na fé. Somente Deus possui a verdade e a Justiça, e o homem somente participa quando Deus assim o concede, conferindo ao homem, por gratuidade, momentos de “ilu-minação divina”.

Tomás de AquinoTomás de Aquino30 é considerado o maior filósofo da escolástica31, seu

pensamento, ao contrário de Santo Agostinho, possui influência marcante das concepções de Aristóteles. Utilizando-se das concepções do estagirita, ou como ele próprio chamava, do filósofo, Tomás realiza uma profunda fun-damentação racional da fé cristã. Nesse sentido, para o pensador a Teologia não substitui a Filosofia. Para o pensamento tomista a Teologia dá acesso às verdades necessárias à salvação, essa é sua finalidade, enquanto que a Filosofia investiga as coisas como objetos independentes de pesquisa, di-ferindo nisso seus métodos de análise.32 Nem o saber teológico suplanta o saber filosófico, nem a fé substitui a razão, posto que são dois modos de se alcançar uma realidade que é uma, ambos procedem de uma mesma fonte de verdade.33

Os homens são dotados de razão, essa é uma de suas características, assim, deixar de utilizar essa força, mesmo que em nome de uma luz superior, seria deixar de lado uma exigência primordial e natural. Ademais, Tomás tinha a convicção de que, apesar da dependência de Deus no ser e no agir, o homem e o mundo gozam de relativa autonomia, sobre a qual deve-se refletir com os instrumentos da razão pura, para que, a partir dessa, possa agir bem e, por conseguinte, corresponder aos anseios do Divino que ordena o mundo.34

Tomás, tal como Aristóteles, ordena sua concepção de ordem do mundo através das concepções de metafísica. Nesse escopo, reflete sobre as ques-tões em sua obra O Ente e a Essência35, onde explicita tais conceitos, dando as premissas teoréticas que sustentam sua construção filosófico-teológica. Contrariamente a Aristóteles, Tomás de Aquino estrutura sua metafísica não somente a entender o ser e o ente que agem, importa a ele o próprio ato de ser, possuído originalmente por Deus e de forma derivada ou por participa-

30 Tomás de Aquino nasceu no castelo de Roccasecca, no ano de 1224, próximo a Nápoles. Começou sua formação aos cinco anos, na abadia beneditina de Monte Cas-sino. Lecionou em diversas universidades europeias, período no qual, enquanto perigrinava pelas maiores universidades europeias, escrevia suas principais obras. Faleceu em 7 de março de 1274, no mostei-ro cirteciense de Fossano-va, quando viajava rumo a Lion. (COPLESTON, Fre-derick. Historia de la Fi-losofía: 2: de San Augustín a Escoto. 3. ed. Traducción de: BORRÓN, Juan Carlos García. Barcelona: Ariel, 1994. p. 298.)

31 Expressão designada para caracterizar a filosofia cristã da Idade Média. O termo indicava nos primei-ros séculos da Idade Média aquele que ensinava as artes liberais, isto é, as que constituíam o trívio (gra-mática, lógica ou dialética, e retórica) e o quadrívio (geometria, aritmética, as-tronomia e música). Mais tarde passou a chamar-se também ao professor ou teólogo, dando, por con-seguinte, nome ao mo-vimento que caracteriza todo o pensamento do medievo. (ABBAGNANO, Nicola. História da Filo-sofia. 5. ed. Tradução de: CARVALHO Armando Silva. Lisboa: Editorial Presença, 1999. 3 v., p. 9.)

32 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. Tradução de Rai-mundo Vier O. F. M. Rio de Janeiro: Vozes, 1970. p. 450.

33 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 2: de San Augustín a Escoto. Traducción de Juan Carlos García Borrón. 3ed. Barce-lona: Ariel, 1994. p. 309.

34 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. p. 452.

35 AQUINO, Sto. Tomás de. O Ente e a Essên-cia. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Os Pensadores.

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ção pelas criaturas. Por esse motivo, a metafísica tomista é compreendida como metafísica do ser ou do actus essendi, essa é uma perspectiva com-pletamente nova em relação à ontologia grega e é a marca do pensamento tomista – buscar através da ordenação metafísica, da consideração da reali-dade divina, a orientação da conduta humana.36

Comentando a filosofia tomista, considera Reale:

Tal filosofia é otimista, porque descobre um sentido profundo no fundo daquilo que existe; é uma filosofia do concreto, já que o ser é o ato graças ao qual as essências existem de fato. Mas também é a filosofia do crente, porque só o crente pode propor as essências à discussão e captar o ato básico e positivo graças ao qual existe algo ao invés de nada.37

Embasado na ordem metafísica do mundo, Tomás propõe cinco provas ou caminhos através dos quais comprova-se a existência de Deus, nos quais tudo se unifica e adquire luz e coerência. Deus é o primeiro na ordem on-tológica do mundo, porém, não na ordem psicológica, onde o divino deve ser alcançado por caminhos a posteriori, partindo dos efeitos e do mundo.38 Esses argumentos são apresentados tanto em sua obra Summa contra Genti-les quanto na Summa Theologica.

As cinco provas são as seguintes:

a) O argumento do primeiro motor – Trata-se do princípio da efetividade, ou seja, da relação entre causa e efeito, das mutações neste mundo. Uma coisa não pode ser levada em ato se não for efetuada por um ser que já é em ato. Portanto, é impossível que, sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, um ente seja origem e sujeito de mutação, tudo que muda deve ser movido por outros. Esse caminho da mudança chega ao primeiro motor. Esse imutá-vel é o que todos chamam Deus39.

b) O caminho da primeira causa eficiente – Considerando que o mundo é ligado à relação entre causas eficientes, não se pode chegar até o infinito. Por isso, se não houver uma causa primeira entre as causas intermediárias, estas não existirão, bem como não haverá causa última. Mas se fosse possível ir ao infinito, não haveria causa primeira. Portanto, é necessário admitir uma causa eficiente, à qual todos dão o nome de Deus.40

c) O argumento do existente necessário – Admite-se a existência de um ente que tenha em si mesmo a sua própria necessidade, não a recebendo de qual-quer outro, mas que causa em outras coisas a sua necessidade. Este é Deus.41

36 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 557.

37 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 558.

38 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 2: de San Augustín a Escoto. Traducción de Juan Carlos García Borrón. 3ed. Barce-lona: Ariel, 1994. P. 365.

39 AQUINO, Sto. Tomás de. Súmula contra os Gentios. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Os Pensadores, p. 130.

40 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. p. 454.

41 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. p. 455.

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d) O caminho dos graus de perfeição – O quarto elemento refere-se à gra-dação que existe entre as coisas, considerando os entes mais e outros menos bons, verdadeiros, nobres e semelhantes. Existe algo que é nobre, bom em grau máximo, consequentemente, algo que, em grau máximo, é ser, já que o que é máximo na verdade é máximo também no ser. Aquilo que é para todos os entes a causa do seu ser, de sua bondade e de outra perfeição, é Deus.42

e) O caminho do finalismo – Dessa causa deriva o governo do mundo. Todas as coisas, tal como dissera Aristóteles, visam a uma finalidade. Con-siderando a caracterização da existência e sua teleologia, considera-se um Ordenador, dotado de conhecimento, o qual encontra-se em condições de dar ser aos entes, Ele é quem opera a finalidade das coisas existentes.43

Postas essas considerações acerca da ordenação do mundo metafisica-mente é que decorrem as disposições acerca da conduta humana para o filó-sofo. Destaca-se que Tomás de Aquino em momento algum trata do gênero humano em sentido lato, sem considerá-lo especificamente, mas mantendo sua relação com o plano divino. Nesse sentido, partindo dessa ordenação do mundo é que o pensador refletirá sobre as questões acerca da conduta humana.

Acerca das concepções de Justiça, Tomás de Aquino retoma as concep-ções de Justiça particular e geral, distributiva e corretiva já apresentadas por Aristóteles, estudadas no capítulo anterior. Além disso, acrescendo a visão cristã medieval de mundo, concebe na ordem do mundo a existência de quatro leis hierarquicamente estruturadas.

Definindo a Justiça, segundo a tradição peripatética, como uma virtude que se adquire pelo hábito, para Tomás de Aquino este só pode ser especifi-cado pelo seu objeto formal, que é o Direito. O verdadeiro objeto da Justiça, portanto, só pode ser o Direito, sendo a própria coisa justa, ou seja, o estabe-lecimento de uma igualdade entre as partes.44

O tomismo considera a existência de quatro leis que regem o universo. Enquanto às virtudes incumbe a regulação da vida interna, as leis visam nor-tear a existência externa. Nesse sentido, pode-se considerar a atuação das leis eterna (lex aeterna), natural (lex naturalis), humana (lex humana), e acima dessas três encontra-se a lei divina (lex divina).45

42 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 565.

43 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 566.

44 BARROS, Alberto Ribei-ro Gonçalves de. Direito natural em Cícero e Tomás de Aquino. In: PISSARRA, Maria Constança Peres; FABBRINI, Ricardo Nasci-mento (Coord.). Direito e Filosofia: a noção de Justiça na História da Fi-losofia. São Paulo: Atlas, 2007. p. 53.

45 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. p. 566.

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A lei eterna é própria de Deus, de sua racionalidade, apenas poucos homens, os bem-aventurados, poderiam conhecê-la. Esta é o critério de ordem para a lei natural e humana, ela rege o universo através da sabedo-ria divina. A lei natural é ponto de referência para a vida dos homens e dos animais, sendo que os humanos devem orientar-se por ela nas suas relações familiares e sociais, inclusive em dispor de propriedade. As construções e ins-titucionalizações das leis feitas pelos homens constituem as leis humanas, que são disposições particulares, as quais são descobertas pela própria razão humana. Por fim, a lei divina é a própria lei revelada por Deus, dirige todas as coisas para o eu fim. É o plano da Providência conhecido unicamente de Deus e dos bem-aventurados.46

São Tomás não concebia a necessidade das leis positivas humanas por causa do pecado, como outros escolásticos pensavam, mas como remédio para os vícios do homem em estado de corrupção. Ela é necessária pela pró-pria natureza do homem, sociável e naturalmente destinado à ordem políti-ca. A origem dessa lei procederá da autoridade presente, por natureza, em todo grupo político humano. Toda lei humana deriva da lei natural, seja por via de conclusão (aplicação a circunstâncias históricas de um processo tirado da natureza) ou de determinação (adição aos dados vagos da ciência do di-reito natural, para servir aos fins da natureza). Assim, o Direito é ao mesmo tempo fruto da razão e da vontade. Da razão por captar algo que natural-mente já é, e voluntária por ser produto de um poder legislativo.47

Sobre a autoridade da lei humana, o pensador de Aquino segue a visão aristotélica da raiz da lei humana ligada à lei natural, apesar de possuir au-toridade condicional a uma específica situação de vivência de um povo em dado momento histórico. Cessada sua necessidade, há de se revogá-la.48

Feitas essas considerações acerca do pensamento tomista, há que se con-siderar que sua principal contribuição para a Filosofia do Direito medieval é a cooperação para o renascimento das instituições antigas. Em Direito Público, a filosofia de são Tomás preparou o terreno para a reconquista da autonomia do Estado perante a Igreja, restaurando uma teoria profana da soberania. O poder dos reis não proviria de uma sagração ou da autorização da Igreja, mas sim do direito natural. Em direito privado, segue as concepções aristotélicas, assim como o legado da tradição romana, a favor do retorno ao dominium, à propriedade privada.49

Após o que foi tratado neste tópico, constata-se que a doutrina, ao passo que ressuscitou o método e as fontes da Filosofia e do Direito antigo, incorporou-as

46 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Jurídico Moderno. p. 141-142.

47 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Jurídico Moderno. p. 150-152.

48 BARROS, Alberto Ribei-ro Gonçalves de. Direito natural em Cícero e Tomás de Aquino. In: PISSARRA, Maria Constança Peres; FABBRINI, Ricardo Nasci-mento (Coord.). Direito e Filosofia: a noção de Justiça na História da Filo-sofia. p. 55.

49 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Jurídico Moderno. p. 165-167.

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às concepções da Igreja Cristã. Mais do que fundamentar a fé nas concepções mais profundas da racionalidade humana, Tomás é agente operador de uma es-sencial passagem racional na Filosofia e no Direito, propondo-se a, através da base religiosa, superar os modelos clássicos dos quais partiam como modelo.

Duns ScottDuns Scott, que em seu tempo era chamado de Doctor Subtilis, devido à

profundidade de sua doutrina, resultado de longos estudos e trabalhos nos dois principais centros de sua época, Oxford e Paris, exerceu grande influê- ncia na construção do pensamento moderno, devido à sua defesa de não somente a distinção, mas da separação entre Filosofia e Teologia. Duns Scott era contrário à doutrina tomista, alegando que a Filosofia possui metodo-logia própria, não assimilável pela Teologia; era contrário também a Santo Agostinho, que havia proposto a absorção da Filosofia pela Teologia.

A Filosofia se ocupa do ente enquanto tal e de tudo o que é redutível a ele ou dele dedutível. Já a Teologia, ao contrário, trata dos articula fidei ou objetos de fé. A Filosofia segue o procedimento demonstrativo, a Teologia o procedimento persuasivo. A Filosofia se detém na “lógica natural”, a Teologia move-se na “lógica do sobrenatural”. A Filosofia se ocupa do geral ou universal, porque é obrigada a seguir “pro statu isto”, o itinerário cognoscitivo da abstração, enquanto a Teologia aprofunda e sistematiza tudo o que Deus se dignou nos revelar sobre a sua natureza pessoal e o nosso destino. A Filosofia é essencialmente especulativa, porque visa a conhecer por conhecer, ao passo que a Teologia é tendencialmente prática, porque nos põe a par de certas verdades para nos induzir a agir mais corretamente.50

Para Duns Scott, a literatura pagã, e nisso inclui-se a filosofia grega, deve servir somente de instrumento auxiliar à busca pela verdade, que se encontraria na Sa-grada Escritura, pois a “fé governa a razão, que não passa de uma servidora”51.

O raciocínio de Duns Scott chegou ao ponto de criticar toda a tradição es-colástica, ao afirmar que inferir a existência de uma ordem natural e que ela seria obra de Deus seria um crime contra a própria figura de Deus, subordi-nando-o a uma razão humana e intelectualista. Deus, como princípio criador de todas as coisas, não necessitaria de uma ordem, porque isso seria já uma limitação de seu poder. A razão não pode limitar Deus, porque inclusive a razão é obra de Deus. Interessante notar que essa inversão pode ser aplicada inclusive à moral cristã, pois o preceito “não matarás”, por exemplo, não seria uma regra universal, já que Deus poderia ter escolhido outros preceitos.

Outra contribuição fundamental de Duns Scott à Filosofia é a sua crítica à generalização do ser defendida por Aristóteles e São Tomás de Aquino. O Deus

50 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, p. 598-599.

51 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno, p. 202.

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da Sagrada Escritura não é um deus abstrato e impessoal como afirmam os fi-lósofos, mas um Deus que dialoga com os fiéis, que envia seu filho, Cristo, para salvar a humanidade, que compartilha momentos de angústia com os cristãos. Deus ama a cada indivíduo em sua singularidade, e não como generalidade, universalidade. A mesma linha de raciocínio o leva a defender a supremacia da vontade por sobre a inteligência, ou seja, os atos não necessitam obedecer a uma razão preestabelecida. Isso significa que o homem deve amar a Deus por opção, por vontade, e não por exercício racional. Percebe-se como Duns Scott sempre argumenta tendo em vista uma relação próxima e personalizada entre Deus e o homem, na perspectiva de que cada homem é um ser único e irrepe-tível, diferentemente da doutrina aristotélica-tomista, que pendia mais para o lado da generalização, da universalização do ser.

A reviravolta provocada por Duns Scott certamente repercutiria no âmbito da Filosofia do Direito. Se toda ordem existente acontece porque Deus quis, e não por uma ordem natural, significa que os preceitos sagrados, bem como as leis em geral, não devem ser obedecidas por seus aspectos naturais, mas por terem sido criadas ou permitidas por Deus. Percebe-se como isso acar-retaria em influências na formação do positivismo jurídico. Isso não significa que deve-se inferir que Duns Scott rejeita a existência do direito natural, mas que simplesmente não existem leis naturais que sejam válidas por si mesmas. Já que por outro lado, essa “ordem do mundo” é criação de Deus, de forma que poderíamos entendê-la como uma ordem que serviria posteriormente de direito natural. Ou seja, serviria como direito natural na medida em que representa vontade divina, e não por ser ordem em si mesma.

O pensamento franciscano de Duns Scott exerceria influência maior em outro franciscano famoso, Guilherme de Ockham, responsável pela forma-ção do conceito de direito subjetivo. Scott e Ockham seriam responsáveis pela transição do pensamento medieval ao pensamento moderno, por meio da separação do pensamento filosófico do teológico, e por consequência, liberando o pensamento científico.

Guilherme de OckhamGuilherme de Ockham foi outro franciscano que prosseguiu no caminho

aberto por Duns Scott contra a filosofia tomista. A diferença é que Ockham foi um profundo conhecedor de Aristóteles, em especial de sua dialética.

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Ockham também critica os filósofos que colocam no universal, nas ge-neralidades, a essência da coisa, como se além de cada indivíduo existisse o “homem”, o ser do homem. O argumento de Ockham não se posiciona somente no sentido de que deve haver uma singularidade divina em cada indivíduo, a ecceidade de Duns Scott, mas do ponto de vista eminentemente lógico, pois, para ele, as palavras, tais como as classificações, não passam de signos que tentam representar a coisa, de forma que o ser do homem é o próprio homem, e não o entendimento genérico da ideia de homem, pois o “animal ou o homem – e tampouco a animalidade, a humanidade – não são coisas, não são seres”52. Ockham inaugura o nominalismo na Filosofia, defen-dendo que os nomes, os signos, não podem identificar a essência do ser.53

O nominalismo desencadearia o corte entre Filosofia e fé; na primeira encontra-se o domínio da razão e da criação, enquanto que somente na fé encontra-se o acesso ao conhecimento de Deus. As questões dos signos, que substituiriam os universais, são do âmbito da Filosofia, e não da fé. Isso in-fluenciaria inclusive o desenvolvimento das ciências modernas, uma vez que já nem à Filosofia nem à ciência cabe analisar os “universais”, ou as “nature-zas”, mas as coisas dispostas individualmente, como Deus as criou.54

O nominalismo influenciaria também o âmbito jurídico. Com a negação dos “universais” e das “naturezas”, Ockham argumenta também a inexistência de um direito natural. A Escolástica construiria suas ideias de Direito ancora-das na observação da natureza, pois esta representaria a ordem divina e a vontade de Deus. Ockham, por outro lado, centraliza sua discussão na figura do indivíduo, e não na natureza.

O nominalismo [...] habitua a pensar todas as coisas a partir do indivíduo: o indivíduo (não mais a relação entre vários indivíduos) torna-se o centro de interesse da ciência do Direito; o esforço da ciência jurídica tenderá doravante a descrever as qualidades jurídicas do indivíduo; a extensão de suas faculdades, de seus direitos individuais. E, quanto às normas jurídicas, não podendo mais extraí-las da própria ordem que antes se acreditava ler na Natureza, será preciso buscar origem exclusivamente nas vontades positivas dos indivíduos: o positivismo jurídico é filho do nominalismo. Todas as características essenciais do pensamento jurídico moderno já estão contidas em potência no nominalismo.55

Em Ockham encontram-se raízes do positivismo jurídico, que somente viria a se desenvolver séculos depois. Este filósofo é contrário a interpre-tações místicas e extensivas da Sagrada Escritura, alegando que a leitura devese limitar ao texto. O mesmo sentido de hermenêutica deveria ser apli-cado aos textos legais. Para Ockham, portanto, tanto o direito humano como o direito divino eram direitos positivos, pois inclusive os preceitos de Deus, encontrados na Sagrada Escritura, somente poderiam ser interpretados à luz

52 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno, p. 229.

53 “A metafísica de Ockham transporta para o mundo da linguagem e do pensamento, para o universo conceitual, o que pertencia, para os to-mistas, ao mundo do ‘ser’: os gêneros, as ‘formas comuns’ e as relações. Estes agora são apenas conceitos, instrumentos, etapas no caminho do conhecimento de uma realidade exclusivamen-te singular, apenas um começo de conhecimento nebuloso dos indivíduos. Universais e relações são apenas instrumentos de pensamento. No real e na ‘natureza’ real não existe nada acima dos indivídu-os: não existem universais, estruturas, direito natural”. (VILLEY, Michel. A Forma-ção do Pensamento Jurí-dico Moderno. p. 231.)

54 Tal doutrina se tornaria célebre por meio dos estu-diosos como a “navalha de Ockham”, na qual o filósofo defende o corte de qual-quer imagem mediadora entre o objeto e o sujeito, por serem meros artifícios linguísticos, signos, e não coisas em si. “De forma análoga, Ockham elimina do processo cognoscitivo humano todas e quais-quer ‘espécies’ ou ima-gens mediadoras entre o objeto conhecido e o su-jeito conhecente. Além de não termos experiência alguma de tais imagens, estas se revelam como desnecessárias para ex-plicar satisfatoriamente o ato da percepção sensível do objeto, bem como o do seu conhecimento inte-lectual”. (VIER, Raimundo. Navalha de Ockham. In: GARCIA, Antônio. Estudos de Filosofia Medieval. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 131.)

55 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno, p. 233.

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do próprio texto. Tais preceitos morais, ainda, não deveriam ser obedecidos por serem regras atemporais e eternas emitidas por Deus, mas leis tempo-rais. Não deve o homem obedecer os Dez Mandamentos devido a um supos-to conteúdo eterno, como se aqueles preceitos representassem uma espécie de direito natural advinda de uma ordem natural, mas simplesmente por serem ordens de Deus. Ou seja, obedece-se pelo dever de obedecer, e não pelo conteúdo. Se quisesse, Deus poderia inclusive ordenar o ódio entre os homens, pois não haveria limitação ao seu poder.

A decisão de seguir a filosofia franciscana centrada no indivíduo de Duns Scott repercute ainda em Ockham na sua exposição acerca do jus, que ele toma emprestado do direito romano e da potestas, o poder, que constituem o cerne de sua definição de direito subjetivo, conforme explica Villey56. Ockham expli-ca que toda lei é formulada a partir da vontade de um legislador, ou seja, toda lei surge de uma vontade individual, o que a determina como essencialmente humana. Nesse sentido, cada indivíduo tem o potestas de poder argumentar contrariamente essa lei. As leis humanas não são manifestações de uma ordem natural, de forma que o indivíduo pode livremente exercer sua condição de li-berdade contra as legislações em geral. O mesmo motivo o conduz a aceitar até críticas a regras impostas por papas.

Toda a ordem social é outorga e distribuição de liberdades, estas essenciais à vida moral cristã do indivíduo. E não há mais nada além disso. Os direitos subjetivos dos indivíduos preencheram o vazio resultante da perda do direito natural. A ordem social aparece agora constituída não por uma rede de proporções entre os objetos partilhados entre as pessoas, mas por um sistema, por um lado, de poderes subordinados uns aos outros e, por outro, de leis provenientes dos poderes. 57

Sem direito natural, as análises jurídicas se resumiriam aos textos legisla-tivos, mas com a ascensão do direito subjetivo abre-se nova oportunidade ao indivíduo de constestar injustiças e autoritarismos. O indivíduo conquista a liberdade de poder questionar as ordens vigentes.

A ideia de um direito subjetivo em Ockham é importante para se compre-ender a passagem à filosofia moderna. Aqui já não se tem o mundo centrado em Deus, em que até a ordem jurídica emana da ordem divina, e ao homem cabe apenas obedecê-la, mas uma ordem fundada conforme a vontade e o poder humano, conforme o direito humano. Em Ockham, o indivíduo, e aqui também os indivíduos comuns, aqueles pouco letrados de seu tempo, recebem essa condição, é retomado como centro das discussões filosóficas e jurídicas. As ordens estabelecidas podem ser abusivas, de forma que cada indivíduo tem a possibilidade de contestá-las, exercendo sua liberdade de utilizar-se do direito subjetivo. A transição de uma ordem fundada em Deus

56 Villey apresenta uma importante tese acerca da existência de um conceito de direito subjetivo em Ockham, séculos antes de seu surgimento na ciên-cia jurídica propriamente dita.

57 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Jurídico Moderno. p. 287.

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para uma ordem fundada no homem finalmente representa a chegada ao período moderno da Filosofia. Os avanços das descobertas científicas de mentes como Copérnico, Galilei e Kepler, e as teorias racionalistas de Bacon e Descartes são prosseguimentos dessa abertura iniciada por Duns Scott e sedimentada por Ockham.

Os franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham são ainda mais impor-tantes para os dias atuais, pois qualquer regime democrático somente pode se desenvolver e se solidificar se cada indivíduo cultivar essa capacidade de liberdade de saber como e porque criticar a ordem jurídica vigente. Conce-ber qualquer sistema como obrigatoriamente correto e infalível é sempre uma ameaça à liberdade individual, abrindo perigo para a criação de regimes auto-ritários. A limitação de reeleições e construção de um sistema eleitoral que se baseia no sufrágio universal é também uma limitação ao poder estatal. Toda ordem jurídica está exposta ao erro e à injustiça. Assim entende Agostinho, Scott, Ockham e vários outros pensadores medievais. Ainda que a vontade divina seja perfeita, as leis humanas são imperfeitas e factíveis de injustiça, de forma que somente colocando no indivíduo o direito e o dever de contestá-la, por meio do exercício da liberdade, torna-se possível impedir o autoritarismo político e jurídico. Por fim, talvez ainda mais importante que isso seja o fato de que mesmo num período em que o centro de tudo está na Teologia, é no indi-víduo que se encerra, ou seja, a passagem ao período histórico seguinte se dá justamente na descoberta do valor individual de cada homem na construção de um mundo mais justo e funcional ao humano.

Ampliando seus conhecimentos

Questão 91(AQUINO, 1997)

Artigo I

Se há alguma lei eterna

(cf. I II, q. 93, art. 1)

No concerne ao primeiro artigo, assim se procede. Parece não haver alguma lei eterna.

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1 – Com efeito, toda lei impõe-se a alguns. Ora, não houve desde toda eter-nidade alguém a quem a lei pudesse impor-se, pois só a Deus coube ser desde toda a eternidade. Portanto, nenhuma lei é eterna.

2 – Além disso, a promulgação pertence à razão da lei. Ora, à promulgação não cabe ser desde a eternidade, por não haver desde a eternidade alguém para quem fosse promulgada. Logo, nenhuma lei pode ser eterna.

3 – Além disso, a lei importa certa ordem para algum fim, pois só o último é eterno. Logo, nenhuma lei é eterna.

Em sentido contrário, há o que diz Agostinho: “A Lei que se denomina razão suprema não pode parecer não ser eterna e imutável a quem é capaz de a in-teligir” (Sobre o Livre Arbítrio, I, cap. 6,48,15, C.Chr. 220).

Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 1), nada é a lei senão certo ditame da razão prática no príncipe, que governa alguma co-munidade perfeita. Ora, é manifesto, suposto ser o mundo regido pela divina providência, como se estabeleceu na primeira parte (q. 22, a. 1 e 2), que toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. Assim pois, a própria razão do governo existente, em Deus, como príncipe do universo, compreen-de a razão de lei. E porque a divina razão nada concebe a partir do tempo, mas é dotada de conceito eterno, como diz o Livro dos Provérbios (8,23), segue-se que tal lei deve dizer-se eterna.

1– No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se que aquilo que não é em si mesmo existe em Deus, enquanto nele é previamente conhecido e preordenado, conforme a passagem de Romanos 4,17: “Aquele que chama entes os não entes”. É assim que o eterno conceito da divina lei é dotado da razão de lei eterna, na medida em que é por Deus ordenado para o governo das coisas por Ele previamente conhecidas.

2 – No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que a promul-gação faz-se de forma oral ou escrita e de ambos os modos é a lei promulgada por parte de Deus que a promulga, porque o Verbo divino é eterno e eterno é o que se escreve no Livro da Vida. Mas da parte da criatura que ouve ou pes-quisa não pode haver promulgação eterna.

3 – No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que a lei impor-ta uma ordenação para o fim ativamente, enquanto por ela algo é ordenado para certo fim, não porém passivamente, isto é, que a lei seja ordenada para o

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fim, exceto por acidente no governante cujo fim é exterior a ele próprio e para qual é necessário que sua própria lei seja ordenada. Mas o fim do governo divino é o próprio Deus nem é outra a sua lei em relação a Ele próprio. Donde não se ordenar a lei eterna para fim que lhe seja outro.

(IV Sent. D. 33. q. 1, a. 1)

Artigo II

Se há em nós alguma lei natural

(IV Sent. D 33. q. 1, a. 1)

No que concerne ao segundo artigo, procede-se do seguinte modo. Parece não haver em nós alguma lei natural.

1 – É o homem suficientemente governado pela lei eterna. Diz, com efeito, Agostinho (Sobre o Livre Arbítrio, I, cap. 6) que “ a lei eterna é aquela força da qual é justo que todas as coisas sejam perfeitamente ordenadas”. Mas a natu-reza não se excede no supérfluo tanto quanto não é deficiente no necessário. Portanto, não há lei natural para o homem.

2 – Além, disso, o homem é ordenado em seus atos para o fim median-te a lei, como acima se estabeleceu. (q. 90, a. 2). Ora, a ordenação dos atos humanos para o fim não se faz pela natureza, como ocorre com as criaturas irracionais, que agem em vista do fim apenas mediante o apetite natural. Mas o homem age em vista do fim mediante a razão e a vontade. Portanto, não há para o homem alguma lei natural.

3 – Além disso, quanto mais alguém é livre, tanto menos é sujeito à lei. Ora, o homem é o mais livre de todos os animais por força do livre arbítrio que possui, excedendo por ele todos os outros animais. Não sendo, pois, os restantes animais sujeitos à lei natural, não é também o homem sujeito a qualquer lei natural.

Em sentido contrário, há o que nos diz a glosa sobre Romanos, 2,14: “Os gentios, que não possuem a lei, fazem naturalmente o que contém a lei”. Embora possam a lei escrita, possuem, todavia, a lei natural pela qual cada um intelige o que é o bem e o mal e disto cônscio.

Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 2, ad. 1), sendo a lei regra e medida, pode estar em algo de dois modos: de um modo, no

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Helenismo e Idade Média

que é regulante e mensurante, de outro modo no que é regulado e mensu-rado, pois ao participar algo da regra ou medida, é nisso regulado e mensu-rado. Donde, como tudo o que está sujeito à divina providência é regulado e mensurado pela lei eterna, como é patente no que anteriormente se disse (art. prec.), é manifesto que tudo participa de algum modo da lei eterna, na medida em que, por impressão desta, é dotada de inclinação para os próprios atos e fins. Todavia, entre as restantes, a criatura racional está submetida à divina providência de modo mais excelente, na medida em que se faz ela pró-pria participante da providência para si e para as outras. Donde ser também nela participante a razão eterna, pela qual tem uma natural inclinação para o seu devido fim e ato. E tal participação da lei eterna na criatura racional diz-se lei natural. Donde, quando diz o Salmista: “Sacrificai um sacrifício de justiça” (Salmo 4,6), como a responder a alguns que perguntam quais são as obras da justiça, acrescente: “Muitos dizem: quem mostrará os bens?” E, ao responder a essa questão, diz: “Foi assinalada sobre nós a luz da tua face”, é como se a luz da razão natural, pela qual discernimos o que é o bom e o que é o mal, o que pertence à lei natural, outra coisa não seja que a impressão da luz divina em nós. Donde ser patente que a lei natural outra coisa não é senão a participa-ção da lei eterna na criatura racional.

1 – No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se que seria tal razão procedente, se a lei natural fosse algo diverso da lei eterna; mas ela não é senão certa participação desta como foi dito (corpo).

2 – No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que toda opera-ção da razão e da vontade deriva em nós do que é segundo a natureza, como se estabeleceu acima (q. 10, a. 1), pois todo o raciocínio deriva dos princípios naturalmente conhecidos, e todo o apetite que visa os meios tendentes ao fim deriva do apetite natural do fim último. Eis porque é mister que o direciona-mento primeiro de nossos atos em vista do fim se faça mediante a lei natural.

3 – No que se concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que também os animais irracionais participam da razão eterna, como a criatura racional, mas de um modo que lhes é próprio. Mas, como a criatura racional dela par-ticipa intelectual e racionalmente, por essa razão a participação da lei eterna na criatura racional chama-se em sentido próprio lei: pois é a lei algo da razão, como se disse acima (q. 90, a. 1). Com efeito, na criatura irracional tal parti-cipação não se faz mediante a razão, donde não pode dizer-se lei senão por semelhança.

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Artigo III

Se há alguma lei humana

No que concerne ao terceiro artigo, procede-se da seguinte maneira. Parece não haver qualquer lei humana.

1 – Com efeito, a lei natural é uma participação da lei eterna, como se vem de dizer (art. prec.). Ora, mediante a lei eterna tudo é elevado à ordem a mais perfeita, como diz Agostinho no Livro I do Sobre o Livre Arbítrio (cap. 6, 51, C.Chr. XXIX, 220). Portanto, a lei natural é suficiente para ordenar tudo o que é humano. Portanto, não é necessário haver lei humana.

2 – Além disso, a lei possui a razão de medida, como se disse (q. 90, a. 1). Ora razão humana não é medida das coisas, ocorrendo muito mais o contrá-rio, como se diz na Metafísica (IX,1,1053 a31). Donde, nenhuma lei pode pro-ceder da razão humana.

3 – Além disso, uma medida deve ser certíssima, como se diz na Metafísica (IX,1,1053 a31). Ora, o ditame da razão humana quanto à gestão das coisas é incerto, conforme o dito da Sabedoria (cap. 9, v. 14): “São hesitantes os pensa-mentos dos mortais e incertas nossas providências”. Logo, nenhuma lei pode proceder a razão humana.

Em sentido contrário há o que diz Agostinho no Sobre o Livre Arbítrio, (I, 6,15,48s, C.Ch. XXIX, 220; cp. 15, 31, 105, ib. 232): há duas leis, uma eterna e outra temporal, a qual denomina humana.

Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 1, ad. 2), a lei é certo ditame da razão prática. Ora, verifica-se na razão prática um proces-so semelhante ao que ocorre na especulativa: cada uma delas procede de alguns princípios a que algumas conclusões, como se estabeleceu acima (ib.). Segundo esta semelhança deve dizer-se que, como na razão especulado essa semelhança deve dizer-se que, como na razão especulativa são produzidas as conclusões das diversas ciências a partir dos princípios indemonstráveis, na-turalmente dados, mas encontrados pelo trabalho da razão, da mesma forma, a partir dos preceitos da lei natural, como a partir de certos princípios comuns e indemonstráveis, é necessário que a razão humana passe à disposição de algo mais particular. E essas disposições particulares descobertas pela razão humana dizem-se leis humanas, observadas outras condições que pertencem

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à razão da lei, como se disse acima (q. 90). Donde dizer Túlio em sua Retórica (Invent. Reth., Livro 2, cap. 53, DD I,165) que “o início do Direito procede da na-tureza, em seguida algo veio a ser costume em virtude da utilidade da razão; posteriormente, as coisas produzidas pela natureza e aprovadas pelo costume sancionou-as pelo medo das leis e a religião”.

1 – No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se que a razão humana não pode participar do pleno ditame da razão divina, mas o faz de seu modo e imperfeitamente. Assim, do mesmo modo que a razão especula-tiva, por natural participação da divina sabedoria, é-nos inerente o conheci-mento de alguns princípios comuns, não porém o conhecimento próprio de qualquer verdade, como está contida na divina sabedoria, da mesma forma, no que cabe à razão prática, o homem participa naturalmente da lei eterna segundo certos princípios comuns, não porém segundo as diretrizes particu-lares do singular, as quais, entretanto, estão contidas na lei eterna. Eis porque é necessário que ulteriormente a razão humana venha a sancionar certas leis particulares.

2 – No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que a razão humana não é em si mesma regra das coisas; todavia princípios nela natural-mente inclusos são certas regras gerais e medidas de todas as ações a serem efetuadas pelo homem, ações das quais é a razão natural regra e medida, ainda que não seja medida das obras da natureza.

3 – No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que a razão prá-tica diz respeito àquilo sobre o que pode exercer-se a ação humana, isto é, o singular e o contingente, não o necessário, como a razão especulativa. Dessa forma, não podem as leis humanas possuir aquela infalibilidade que têm as conclusões demonstrativas das ciências. Nem é mister que toda medida seja de todo infalível e certa, mas segundo é possível em seu gênero.

ARTIGO IV

Se é necessária uma lei divina

No que concerne ao quarto artigo, assim se procede. Parece não ser neces-sário haver alguma lei divina.

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1 – Isso porque, como já se disse (art. 2), é a lei natural certa participação da lei eterna em nós. Ora, a lei eterna é a própria lei divina, como se disse (art. 1). Portanto, não é necessário haver alguma lei divina além da lei natural e das leis humanas dela derivadas.

2 – Além disso, diz o Eclesiástico(15,14): “Deus entregou o homem nas mãos de seu próprio conselho”.

Atividades de aplicação1. Os filósofos helenistas, na busca pela orientação da conduta humana

em direção à felicidade, propuseram variadas formas de como alcançar tal concepção, identificando-a como o afastamento dos problemas ou das preocupações (epicuristas), com a ausência de prazer (estoicistas), ou com a renúncia à busca pelo conhecimento e a vivência em atara-xia (ceticistas). Com base nessas concepções, identifique as relações entre essas concepções de vida e o Direito.

2. Para Santo Agostinho nenhuma lei humana é justa e perfeita, pois a verdade e a justiça pertencem somente a Deus. Ainda assim, há neces-sidade de obedecer às leis humanas. Reflita sobre a importância desse pensamento agostiniano para os dias atuais, tendo em vista a ideia de dupla moral, ou seja, saber utilizar o sistema vigente para construir algo maior.

3. Tomás de Aquino, refletindo sobre as questões do Direito, opera a divi-são das leis existentes no universo entre as eternas, naturais, humanas e divinas. Especialmente as considerações acerca da relação entre di-reito natural e positivo são muito célebres na teoria tomista. Com base nessas concepções, analise a relação da distinção entre ambas e sua importância para o pensamento jurídico.

4. Duns Scott e Guilherme de Ockham desenvolvem a importância da subjetividade dentro da ordem jurídica. O poder de liberdade do in-divíduo, de inclusive poder contestar as ordens vigentes, é essencial para qualquer regime democrático. Apresente reflexões acerca dessa temática, tendo em vista o mundo contemporâneo.

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Helenismo e Idade Média

Gabarito1. Todas essas correntes concentravam-se muito mais no indivíduo e sua

conduta. Desse modo, afastam-se das preocupações com as relações sociais e, por conseguinte, com o Direito. A felicidade é mais questão de conduta pessoal do que um escopo social, tal como era para os predecessores.

2. Imperfeitas ou não, são as leis humanas que organizam a sociedade. Seja para construir uma carreira profissional, seja para melhorar a pró-pria sociedade, antes é preciso entender o sistema vigente, e a partir daí modificar. Não adianta ignorar a existência do sistema vigente, é preciso entendê-lo, para depois inteligentemente modificá-lo.

3. A relação entre ambos os conceitos no pensamento tomista refere-se à relação das leis humanas com a realidade natural que é anterior e preexistente a esta. Dos princípios naturais é que os homens partem a positivar as condutas no momento em que julgam necessário fazê-lo.

4. Se o indivíduo não possuir espaço para exercer sua subjetividade e liberdade, pode se dar o perigo de criarmos um regime autoritário, em que se obedecer as leis vigentes é um caráter obrigatório e sem oportunidade de questionamento por parte dos indivíduos.

ReferênciasABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Tradução de: COELHO, António Borges; SOUZA, Francisco de; PATRÍCIO, Manuel. Lisboa: Presença, 1999. 2 v.

______. História da Filosofia. 5. ed. Tradução de: CARVALHO, Armando Silva. Lisboa: Editorial Presença, 1999. 3.v.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 8. ed. São Paulo: Paulus, 2003.

A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

IntroduçãoNeste capítulo trataremos sobre a revolução no pensamento ocorrida no

período compreendido pelo final da Idade Média e início da modernidade. Essa passagem, que tem seus primórdios com o movimento renascentista e seu retorno à cultura clássica greco-romana, ocorre com o movimento ra-cionalista e sua estruturação das ciências através de um método certo, bus-cando-se não mais compreender as causas dos fenômenos pelas próprias causas, mas através dos fenômenos buscando se deparar com a realidade. Por fim, apresentaremos o pensamento iluminista, o qual revolucionou a Europa moderna, possuindo marcante influência no pensamento filosófico do Direito.

Desse modo, apresentaremos neste capítulo as principais figuras que protagonizaram esse movimento revolucionário no âmbito da ciência, que são Francis Bacon, René Descartes e Baruch de Spinoza, bem como também trataremos do pensamento iluminista.

Francis BaconA transição da racionalidade medieval para a racionalidade moderna, já

iniciada pelos franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham, prossegue no pensamento de Francis Bacon, filósofo, político e jurista do século XVII.

Bacon parte da separação entre ciência e Filosofia para refundar o pensa-mento científico, partindo da divisão das ciências, suas classificações, até a possibilidade de elaboração de uma enciclopédia das ciências. Para Bacon, um único estudioso não poderia reunir todo o conhecimento científico, que deveria ser feito em base ao recolhimento de materiais e experiências. A fi-losofia de Bacon, portanto, seria fundamental para o desenvolvimento da ciência empírica.

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A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

A subdivisão do saber inicia-se segundo as faculdades da alma: memória, fantasia e razão, sendo a História a ciência da memória; a Poesia a ciência da fantasia; e a Filosofia a ciência da razão. Observa-se que essa tendência enciclopédica influenciará o Iluminismo, no movimento dos enciclopedistas. De qualquer forma, embora conceda valor à história e à poesia, dedica maior atenção à Filosofia, que segundo ele, se entendida profundamente, conduz à Deus. Por isso para ele a Filosofia possui um tríplice objeto: a natureza, Deus, o homem.1

É nesse sentido que Bacon fala de teologia natural e teologia revelada, sendo a primeira obra da Filosofia e a segunda, da religião. O que lhe interes-sa é a teologia natural. O fundamento da Filosofia está na “filosofia primeira”, que trata das condições transcendentes de todos os objetos, como unidade e multiplicidade, igual e diferente etc. Contudo, depois de tentar aplicar essa filosofia primeira às questões físicas, encontrará muitas dificuldades, motivos que o levarão a focar-se nas questões empíricas. Um exemplo dessas dificul-dades é a assertiva, baseada na filosofia primeira, de que o semelhante atrai o semelhante. Bacon viu que o ferro não atrai o ferro. Dessa forma centrou sua filosofia da natureza na investigação das causas e a produção dos efeitos, numa parte especulativa e uma parte operativa. Dividiu ainda a investigação das causas em física e metafísica. Não obstante, sua metafísica é bastante distinta da metafísica aristotélica, pois embora Bacon admita a existência de uma finalidade no mundo, não é possível aos humanos conhecê-la, de forma que é mais importante entender o “como” que o “por quê” das coisas. Para Bacon, seria impossível conhecer a essência das coisas. Nesse ponto, percebe-se que mesmo criticando os pensadores predecessores, Bacon não se separa completamente de uma metafísica, pois sua física medieval ainda procura descobrir a essência das coisas, o que a torna bastante semelhante ao estudo metafísico2.

A crítica baconiana aos antigos, e aqui ele insere tanto os gregos como os medievais, se dá na concentração dos estudos numa natureza metafísica ou numa natureza divina. Para Bacon, nenhum homem é capaz de obter todo esse conhecimento, de forma que é mais necessário estudar a própria natu-reza desse mundo, ou seja, suas coisas sensíveis.

Bacon pensou um novo método para se conduzir o raciocínio, baseado na indução, que deveria partir das observações segundo a experiência, e disso avançar gradualmente e sem interrupção até os axiomas mais gerais. Nesse sentido, Bacon conceberia o método que contribuiria enormemente com as

1 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Mo-derna: da revolução cien-tífica a Hegel. 2.ed. Tradu-ção de Marcos Magno e Silvana Cabucci Leite. São Paulo: Loyola, 2000. p. 20

2 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Mo-derna: da revolução cien-tífica a Hegel, p. 21.

A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

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ciências empíricas, pois defenderá a observação dos fenômenos, suas tabu-lações, catalogações, análises e hipóteses. Os comentadores dividem-se em relação à influência de Bacon para o nascimento da ciência moderna, alguns o consideram o antecipador da ciência experimental, outros não concordam, afirmando que suas concepções são muito diferentes daquelas dos cientistas posteriores. É inegável, contudo, que seu pensamento baseado no método indutivo participará da revolução científica, até porque, como assinala Villey, o Novum Organum pode ser considerada a base para a lógica e a moral do mundo moderno.

A mesma lógica Bacon aplicará ao campo jurídico. Bacon defende que o direito deve se basear nos fatos, e não em interpretações, e estas devem se limitar a interpretações restritivas, ou seja, do próprio texto legal. Não cabe à doutrina criar concepções jurídicas novas. Nesse sentido, Bacon contribui com o desenvolvimento de uma Filosofia Jurídica positivista.3

Contribuição também importante dada por Bacon à Filosofia Política e Jurí-dica é que esta “deveria concentrar-se no que fazem os homens, e não no que deveriam fazer”4. Para Bacon, o fim do Direito não seria o justo, mas o útil. Em outras palavras, não se aplica ao Direito conforme um conceito de Justiça de-rivado de alguma corrente filosófica, mas, conforme a própria sociedade, deve trazer benefícios ao aqui e agora. Em síntese, o diferencial baconiano se dá no ousado enfrentamento aos clássicos. A coragem de rebater os argumentos metafísicos e confrontar a lógica clássica repercutiria entre os modernos na reformulação do pensamento científico e filosófico, não mais tão preocupado com causas finais e transcendentes, mas com a própria natureza sensível.

René DescartesO estudo do pensamento de René Descartes5 é de extrema importância

para a Filosofia do Direito, posto que, apesar de o autor não ter escrito obras específicas sobre filosofia política ou jurídica, com esse filósofo opera-se a passagem da Filosofia e do Direito à modernidade, de modo que os autores posteriores ao pensador não se dissociarão de sua concepção de método como base para a construção do conhecimento humano. Descartes repre-senta, de fato, a reestruturação do modo de raciocínio europeu, esforçan-do-se em construir um novo modelo, não se contentando com o que já se encontrava existente.6 Por esse motivo, o filósofo Bertrand Russel chama Descartes de o “fundador da filosofia moderna”7.

3 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno. Tra-dução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 596.

4 WHITE, Howard B. Fran-cis Bacon [1561-1626]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Org.). Historia de la filosofia política. Cidade do México: Fondo de Cultura Ecónomica, 1996. p. 351.

5 Nascido em 31 de março de 1598, em La Haye Turena, filho de Joachim Descartes, conselheiro do parlamento da Bretanha, e de Jeanne Brochard. Em 1605 inicia seus estudos no colégio jesuíta de La Flèche, onde permanece até 1613, dedicando-se ao estudo da Gramática (4 anos), Retórica (2 anos) e Filosofia (3 anos). Estudou na Universitè de Poitiers, sendo nomeado em no-vembro de 1616 bacharel e licenciado em Direito. Posteriormente retira-se da França, residindo na Holanda e também em Frankfurt, na Alemanha. Morre em Estocolmo, na Suécia, em 11 de feverei-ro de 1650. (COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía. 4: de Descartes a Leibniz. Barcelona: Ariel, 1999. 4 v. p. 66.)

6 REALE, Giovanni; ANTI-SERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. p. 348.

7 Cf. REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. 6.ed. São Paulo: Paulus, 2003. 2v. p. 348.

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A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

Para Descartes as concepções de método, física e metafísica estão estreita-mente entrelaçadas e são solidariamente interfuncionais, o pensador parte de uma realidade metafísica, que será apreciada através do método adequa-do, para então poder alcançar a realidade física. Desse modo, trataremos brevemente sobre essas três categorias, assim como, logo em seguida, as concepções morais do autor, para então refletir sobre a influência da racio-nalidade cartesiana no pensamento jurídico.

Quanto às concepções de metafísica, destaca-se que para o filósofo esta era encarada de uma forma mecanicista. O fundamento do sistema metafí-sico cartesiano é buscado na identidade entre matéria e espaço. Portanto, a metafísica diz de que é feito e como é feito o mundo. Conforme diz Descartes no Regras para a Orientação do Espírito8, a metafísica ocupa-se de “apenas objetos dos quais nosso espírito parece ser capaz de adquirir cognição certa e indubitável”. A metafísica prescreve ao cientista o que ele deve buscar, que problemas são ou não relevantes e a que tipo de leis ele deve chegar.9

Por conseguinte, para alcançar tal objetivo faz-se necessário um método para buscar a verdade. Descartes trata acerca da importância do método na célebre obra Discurso do Método10, que introduzia três ensaios científicos do pensador, a “Dioptrique”, o “Metéores” e a “Géométrie”.11 Nas palavras de Reale e Antiseri: “o Discurso do método tornou-se a ‘magna charta’ da nova filosofia”12, pois essa nova proposta metodológica representa a superação do pensamento grego, especialmente da lógica e epistemologia aristotélica, substituindo-a pela primazia do método moderno.

Nessa obra Descartes propõe-se a utilizar-se do seu próprio exemplo para apresentar um método que discipline a mente para identificar com corretu-de a realidade. Conforme ele próprio diz: “Assim, meu propósito não é ensi-nar aqui o método que cada um deveria seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira procurei conduzir a minha”.13

O objetivo é encontrar um método pelo qual o ser humano possa, de fato, agir com a racionalidade disciplinada na identificação da realidade, um método que, compreendendo as vantagens da lógica, da geometria e da ál-gebra, fosse isento dos seus defeitos. Disso Descartes fixou quatro preceitos essenciais: nunca aceitar algo como verdadeiro sem que o conhecesse como tal; dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las; conduzir ordenadamente os

8 DESCARTES, René. Regras para a Orien-tação do Espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

9 REALE, Giovanni; ANTI-SERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. p. 350-351.

10 DESCARTES, René. Discours de la Méthode. Paris : Flammarion, 2000.

11 RENAULT, Laurence. Présentation. In: DESCAR-TES, René. Discours de la Méthode.

12 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. p. 353.

13 “Ainsi, mon dessein n’est pas d’enseigner ici la métho-de que chacun doit suivre pour bien conduire sa raison, mais seulement de faire voir en quelle sorte j’ai tâché de conduire la mienne”. (DES-CARTES, René. Discours de la Méthode. p. 32. [tradu-ção livre].)

A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

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pensamentos, começando pelos objetos mais simples e fáceis de conhecer, para chegar ao conhecimento dos mais compostos; fazer para cada caso enumerações tão completas e revisões tão gerais que se tivesse a certeza de nada ter omitido.14

Na quarta parte da obra em questão, Descartes passa à apreciação do método que encontrara, apresentando as bases filosóficas, marcantemente metafísicas, para a afirmação da sua forma de conhecer a realidade. Logo no início o filósofo apresenta a primeira evidência que fundava a existência humana e sua capacidade de conhecer: “penso, logo existo”15. Essa assertiva é considerada o primeiro princípio da filosofia cartesiana; se ao homem é dada a capacidade de pensar, de conhecer, para que possa fazê-lo ele obri-gatoriamente deve antes ser, tendo-se esta como a primeira base de verdade que possibilite ao homem conhecer a realidade.16

O filósofo francês ambicionava construir uma Filosofia nova, que fizesse “tábula rasa” da antiga e a substituísse; uma Filosofia completa, que resolve-ria primeiro os problemas da existência de Deus, da imortalidade da alma e da essência dos seres; em suma, um sistema total que se revestisse da forma de uma “ciência universal”.17

Em relação ao Direito, o pensador acusa a Ciência Jurídica, baseada nas lições dos escolásticos, a contentar-se somente com resultados prováveis, ou seja, nadar no obscuro, no duvidoso, no discutível. Partindo-se de premissas incertas para a Costrução dos seus silogismos, logicamente as consequên-cias desse raciocínio seriam incertas. Descartes, contudo, ambicionava uma maior exatidão, construir uma Filosofia precisa, certa como a Matemática.18

No pensamento cartesiano a ciência progredirá por inferências, providas de uma evidência interna para a mente humana, por via da dedução. O único meio de se chegar seguramente à verdade é apegar-se à ordem, que pro-cede sem falhas dos primeiros conhecimentos inatos a suas consequências lógicas, sem jamais pular um elo do raciocínio, precavendo-se contra a “pre-cipitação”. Sua crítica à ordem metódica das filosofias antigas ou medievais é pelo fato destas não realizarem progressos, mas ficarem girando em torno de si mesmas em controvérsias estéreis.19

Estabelecida a ordem sobre a base sólida de princípios inatos, como o supracitado cogito ergo sum, por deduções sucessivas, partindo da prova da

14 DESCARTES, René. Discours de la Méthode. p. 49-50.

15 Em francês: “je pense, donc je suis”, ou ainda em latim: cogito ergo sum. (DESCARTES, René. Dis-cours de la Méthode. p. 66.)

16 “[…] je vois très claire-ment que, pour penser, il faut être […]”. (DESCAR-TES, René. Discours de la Méthode. p. 68.)

17 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno. p. 600.

18 Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. p. 601.

19 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno. p. 603.

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existência de Deus e da imortalidade da alma do homem, Descartes parte ao conhecimento da realidade. Constata-se que suas deduções partem de princípios considerados evidentes por si próprios; através da intuição são postuladas hipóteses que buscam encontrar de baixo para cima o encadea- mento das causas e dos efeitos. Assim, a ciência aparecerá como um siste-ma perfeitamente axiomático, que demonstra as consequências a partir de princípios.20

Conforme Villey, grande parte do direito moderno adotará essa nova perspectiva e essa é a maior influência do pensamento cartesiano sobre a Filosofia Jurídica. Por mais que o autor não tenha se dedicado a tratar exaus-tivamente sobre essa parte da Filosofia, seu método de organização do ra-ciocínio influenciou de modo marcante as concepções jurídicas posteriores, reforçando-se que Descartes, como pai da ciência moderna, também exerce marcante influência na formação moderna da Filosofia do Direito.

A concepção metafísica de Descartes, exposta especialmente nas Medita-ções Metafísicas21, faz da alma e do corpo, do pensamento e da matéria, duas espécies de seres separados. Esse dualismo representa o fim da filosofia clás-sica do direito natural, derrubada a noção aristotélico-tomista de natureza, há o fim, por conseguinte, da concepção jusnaturalista ligada a essa raciona-lidade. A metafísica cartesiana cinde a noção unitária em dois universos se-parados: de um lado o pensamento e de outro a matéria, de um lado a ideia e do outro os fatos. Assim, passam a existir duas saídas: a primeira é situar o Direito ao lado da alma, no pensamento.22 A outra via seria pensar o Direito sob a rubrica da matéria.23 Assim, pode-se concluir que além de excluir o antigo direito natural clássico, a metafísica cartesiana impõe ao pensamento jurídico moderno suas duas novas direções: racionalismo e naturalismo.24

Ressalta-se, por fim, que os ingleses não acolheram o cartesianismo, pre-ferindo a experiência às ideias inatas.25 Agindo assim construíram do experi-mentalismo um Direito muito mais baseado nos costumes e no conjunto de decisões já existentes para a formulação de suas decisões, tal como é o atual Direito anglo-saxão nos sistemas britânico e americano, o chamado common law26, em contraposição ao sistema do Direito romano-germânico, também chamado de civil law, que tem por marca a obediência aos enunciados nor-mativos elaborados pelo Estado, possuindo marcantemente uma base racio-nalista como princípio de toda a ordem do Direito.

20 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno. p. 604.21 DESCARTES, René. Mé-ditations Métaphysiques. Paris: Flammarion, 1992.22 “[...] consistirá nas regras que a mente forja ou que o pensamento humano inclui; sua fonte estará no pensamento humano inclui; sua fonte estará no pensamento; será preciso extraí-lo, por uma série de deduções, dos princí-pios racionais que seriam descobertos no fundo da consciência do homem, adotando então o Direito a forma de um sistema de-dutivo de regras. É a via do racionalismo, que tantos ju-ristas modernos, sobretudo na Europa continental per-correram”. (VILLEY, Michel. A Formação do Pensa-mento Jurídico Moderno. p. 606.)23 “[...] fazer dele um pro-duto das paixões animais do corpo, das forças dos indivíduos, e depois da força dos grupos ou do Estado; aplicar a ele os métodos das ciências da natureza física; situá-lo do lado dos fatos, regidos por leis mecânicas, objetiva-mente determinadas [...] É a corrente do naturalismo, como às vezes se diz (já que a expressão direito natural, que também conviria, ficou com o partido oposto). O fracasso dessa doutrina consiste em imergir o Direi-to nos ‘fatos’ objetivos que são o apanágio das ciências modernas da natureza. O que tampouco bastaria”. (VILLEY, Michel. A Forma-ção do Pensamento Jurí-dico Moderno. p. 607.)24 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno. p. 607.25 VILLEY, Michel. A for-mação do pensamento jurídico moderno. p. 608.

26 “O sistema da common law é um sistema de Direi-to elaborado na Inglaterra, principalmente pela ação dos Tribunais Reais de Jus-tiça, depois da conquista normanda. A família da common law compreen-de, além do direito inglês, que está na sua origem, e salvo certas exceções, os direitos de todos os países de língua inglesa. Além dos países de língua inglesa, a influência da common law foi considerável na maior parte dos países, senão em todos, que politicamente estiveram ou estão associa-dos à Inglaterra”. (DAVID, René. Os Grandes Siste-mas do Direito Contem-porâneo. 3. ed Tradução de: CARVALHO, Hermínio A. . São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 279.)

A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo

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EspinozaBaruch de Espinoza iniciou seus escritos filosóficos publicando obras com co-

mentários ao pensamento de Descartes e da Escolástica medieval. Na sua obra Cogitata metaphysica expõe tanto a metafísica geral (o ente e suas propriedades) como a metafísica especial, que estuda Deus, por exemplo. Mas Espinoza discor-da dos medievais em relação a Deus, afirmando que “em Deus não há intelecto e vontade, segundo Espinoza; ora, a afirmação de que todo ente é verdadeiro sig-nifica que todo ente corresponde a uma ideia divina, e a afirmação de que todo ente é bom significa que ente é querido por Deus”27. Ora, algo querido implica necessariamente que houve uma vontade posta. Além disso, para ele o ente não pode ser bom, porque a propriedade de bom está ligada aos desejos e opiniões humanas, e não ao conhecimento.

Para Espinoza, o bem é sempre relativo, bem e mal dependem da ação humana somente. Não há, portanto, um bem objetivo. A polêmica se expan-de para o campo das virtudes, porque segundo ele um bem sempre levaria posteriormente a um mal; o prazer levaria à tristeza, por exemplo; a busca por honras e riquezas é insaciável, e por isso causa dor. Logo, todos esses bens terrenos não passariam de bens incertos. “Aliás, vendo-se melhor, pra-zeres, riquezas e honras são mala certa, enquanto o absoluto é um bem certo, já que a busca daqueles gera litígios, tristeza, temor, enquanto o amor por uma realidade eterna e infinita sola laetitia pascit animum”28. Nesse sentido, apesar de questionar a validade dos bens terrenos, percebe-se que Espinoza credita a possibilidade de um bem absoluto, ainda que ponha em dúvida a possibilidade de se alcançá-lo. A questão se resolve assim: existe essa reali-dade superior, contudo em geral o homem apenas consegue imaginá-la, de forma que tal ideia somente se tornará realidade quando o espírito da nossa humanidade entrar em união com toda a natureza. Essa explicativa é impor-tante, porque a obra jurídica de Espinoza, a Ética, começa justamente com considerações acerca de Deus. O conhecimento deve ser emendado, para que entre em harmonia com essa união com a natureza.

Também é importante esclarecer que Espinoza não defende a utiliza-ção de algum método específico, tal como fizeram Bacon e Descartes. Isso porque segundo ele qualquer metodologia, para ser utilizada, deveria antes ser justificada por outro argumento, outra metodologia, e assim guiaria-se até o infinito. É válido, portanto, para solucionar essa problemática, aceitar a

27 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia mo-derna: da revolução cien-tífica a Hegel, p. 180.

28 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia mo-derna: da revolução cien-tífica a Hegel, p. 181.

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ideia de um Ente perfeito, anterior a qualquer outra coisa. Também por isso a Ética inicia-se por Deus. Por fim, então, cabe falar da Ética espinoziana, a Ética como ordem geométrica. Apesar do nome, não é, contudo, uma ordem matemática, tal como a de Descartes, porque Espinoza preferiu o procedi-mento sintético, diferente do procedimento analítico de Descartes. Dividida em cinco partes, tratando de Deus, do espírito humano, das paixões, da força das paixões, e da potência do intelecto. As paixões aprisionam o homem, o intelecto o liberta.

Já foi dito que, para Espinoza, Deus é o Ente perfeito, portanto a única substância. Nesse sentido, sendo Deus a causa primeira de todas as outras coisas, não pode ele ser coagido a nada, pois toda ordem deriva de Deus. Sendo assim, não existe uma finalidade na natureza, isto é, algum raciocínio dedutivo que implique na natureza uma ordem buscando algum fim, porque esse fim seria divino, e desse modo poderia ser de qualquer forma.

Também a felicidade humana existe nessa perspectiva divina, por meio do conhecimento das virtudes. Espinoza “ensina-nos que nossa suprema felicidade e bem-aventurança consiste no conhecimento de Deus, ao qual nos encaminhamos com o exercício da virtude, de modo que a bem-aven-turança não é um prêmio concedido por Deus a quem se submete a servi-lo, mas aquele serviço divino que é a virtude já é felicidade e suma liberdade”29. Percebe-se aqui uma contraposição à escolástica. Não há necessidade de se submeter a Deus, mas apenas viver conforme as virtudes, isso já basta para a felicidade humana. É importante notar mais uma vez que Espinoza não se preocupa com finalidades e vontades.

Contudo, empecilho para essa aproximação a Deus é a questão das pai-xões. “Ora, as paixões são realidades como as outras, determinadas pelas eternas e imutáveis leis da natureza, portanto não devem ser desprezadas ou deploradas, mas descritas e estudadas como se se tratassem de linhas, planos e sólidos, ou seja, de entidades geométricas”30. A paixão seria uma potência do corpo que aumenta ou reduz a capacidade de ação do homem. As paixões indicam também uma tendência, porque a tendência é aquilo que existe no homem com perseverança do próprio ser. Quando a tendência fundamental relaciona-se ao próprio espírito humano, à sua essência, é von-tade, e quando provém tanto do corpo como do espírito, é impulso, desejo. As paixões são sempre advindas do corpo. “O impulso é, portanto, uma con-sequência da natureza do sujeito, não da bondade do objeto, e por isso bom é aquilo que satisfaz o impulso, não o impulso que tende ao bem”31.

29 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel, p. 194.

30 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel, p. 195.

31 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia mo-derna: da revolução cien-tífica a Hegel, p. 196.

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Contudo, as paixões são também um caminho para a liberdade, uma vez que elas obrigam a aplicação de força contrária, em um raciocínio geométri-co. Exemplo disso é o ódio; se alguém nos odeia, é resultado de alguma causa nossa, não importando aqui qual seja ela; se retribuimos esse ódio com mais ódio, a tendência é que esse ódio aumente, mas se retribuirmos com amor, a outra parte somente poderá retribuir com amor. Além do raciocínio geo-métrico, é importante notar novamente a relativização espinoziana de ideias como ódio e amor, bem e mal. Ora, todas essas paixões são impulsos, causas não livres que atingem o homem. Por isso Espinoza reforçará na parte da Ética dedicada às virtudes que elas não podem ser suprimidas, porque são realidades humanas. Conhecer as paixões, não suprimi-las e agir objetivando as virtudes, é aquilo que o filósofo chamará de razão, a condição ética espe-cial que conduz o homem ao conhecimento de Deus.

As coisas mundanas são porque são, e não porque devem ser, isto é, são porque Deus assim as pôs. Nessa condição, é notório que a alegria produz aumento de capacidade, por exemplo, e que a tristeza, ao contrário, reduz. É aqui que o homem se dá conta de que a alegria é um bem natural da hu-manidade, e que viver conforme ela produz uma condição mais divina. A aproximação a Deus se dá pelo conhecimento, pelo gosto de viver e querer viver conforme os valores espirituais, aqueles que nos conduzem acima das paixões.

A racionalidade que une a matemática, ou a ciência, às questões éticas, preocupadas, sobretudo, com valores morais, conduzirá o homem moderno ao movimento iluminista.

A filosofia iluministaO Iluminismo foi o movimento nascido na modernidade da Europa, de pro-

funda importância para o Direito até a atualidade. Marca maior desse movimen-to são os dois mais importantes eventos políticos da época, ambos sob inspira-ção dos filósofos iluministas. Tratam-se, respectivamente, da Independência dos Estados Unidos da América, em 1776, e da Revolução Francesa, em 1789.32

O movimento iluminista caracteriza-se pela libertação da mente humana de sua servidão espiritual. Para tanto, propunha-se o uso crítico desprecon-ceituoso da razão voltada para a libertação em relação aos dogmas meta-físicos, aos preconceitos morais, às superstições religiosas, às relações de-sumanas entre os homens, às tiranias políticas. O lema dessa corrente de

32 “As declarações de di-reitos norte-americanas, juntamente com a decla-ração francesa de 1789, re-presentaram a emancipa-ção histórica do indivíduo perante os grupos sociais aos quais ele sempre se submeteu: a família, o clã, o estamento, as organiza-ções religiosas. É preciso reconhecer que o terreno, nesse campo, fora prepa-rado mais de dois séculos antes, de um lado pela reforma protestante, que enfatizou a importância decisiva da consciência individual em matéria de moral e religião; de outro lado pela cultura da per-sonalidade de exceção, do herói que forja sozinho o seu próprio destino e os destinos do seu povo, como se viu sobretudo na Itália renascentista”. (COM-PARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 52.)

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pensamento era: “tem a coragem de servir-te de tua própria inteligência”. Era nesse espírito que buscava-se através da orientação racional a boa conduta individual e social.33

Immanuel Kant, o qual terá seu pensamento analisado mais adiante, em sua “Resposta à pergunta: que é esclarecimento?” (Aufklärung34), diz o seguinte:

Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].35

A filosofia iluminista foi hegemônica no séc. XVIII, influenciando toda a Europa, caracterizando-se como um movimento no qual a base está na razão humana. A razão dos iluministas se explicita como defesa do conheci-mento científico e da técnica enquanto instrumentos de transformação do mundo e de melhoria progressiva das condições espirituais e materiais da humanidade.

Os iluministas, através da fé na infinita possibilidade de progresso das “luzes” da razão, acreditam na infinita possibilidade de progresso do homem, ligando-o à sua capacidade de conhecer. Na possível eliminação de todos os elementos irracionais que corrompem o homem e a sociedade, dessa elimi-nação, por intermédio da afirmação da razão, nascerá para os homens um estado de felicidade e de bonança.36

Os ideais iluministas tomaram força dentro da emergente burguesia que ganhava espaço e poder com o desenvolvimento econômico europeu. A partir da luta pela razão e o progresso, estes iniciam a luta pela liberdade de publicação e de propaganda, criticando os institutos que protegiam a cultu-ra da aristocracia europeia, em que os iluministas se sentiam estranhos e a qual buscavam derrubá-la.37

Os filósofos iluministas, propagadores de uma religião e moralidade laicas, estabelecem a razão como fundamento das normas jurídicas e das concepções do Estado. Tal como se fala da religião natural e da moral natu-ral, fala-se também do direito natural. Natural no sentido de racional, não sobrenatural. O ideal jusnaturalista iluminista busca um Direito em con-formidade com a razão. Conforme assinala Montesquieu: “As leis, em seu significado mais extenso, são as relações necessárias que derivam da natu-reza das coisas”38. Embora livres das cadeias da religião, os homens devem

33 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. p. 665.

34 O termo alemão Au-fklärung é o correlato germânico do Iluminismo francês; sua tradução mais precisa é aquela apre-sentada no texto, como esclarecimento.

35 KANT, Immanuel. Res-posta à pergunta: Que é “Esclareciemnto”? (Au-fklärung). In: ________. Textos Seletos. Tradução de Floriano de Souza Fer-nandes. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 63, 64.

36 ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di storia della filosofia. Roma-Bari: Laterza, 1998. 2v. p. 302.

37 ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di storia della filosofia. p. 303.

38 MONTESQUIEU. O Es-pírito das Leis. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 11.

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estar sujeitos ao domínio da Justiça, pois as leis do Direito são objetivas e não modificáveis, à semelhança das leis da Matemática, conforme acentua Montesquieu nas Cartas Persas.39

Com base nas ideias jusnaturalistas dos iluministas é que se elaborou a doutrina dos direitos do homem e do cidadão que encontra seu maior res-plendor na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ela-borada pela Assembleia Constituinte francesa, especificando os princípios herdados do espírito da Revolução Francesa.40 Os direitos do homem e do ci-dadão que a assembleia considerou naturais foram: a liberdade, a igualdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. A lei é igual para todos e estabelece limites precisos ao poder executivo, a fim de proteger a liberda-de pessoal, de opinião, de religião e de palavra. A lei é expressão da vontade geral, feita como concurso dos cidadãos ou através dos representantes de todos os cidadãos. Destaca-se que nesse meio o Direito de Propriedade é afirmado como “sagrado e inviolável”.41

Conforme conclui Reale:

Criticados pela direita e pela esquerda, os princípios fixados na doutrina dos direitos do homem e do cidadão se encontram na base do ordenamento constitucional dos Estados democráticos de tipo ocidental. E, apesar de seus limites, tantas vezes denunciados, o iluminismo jurídico ainda está vivo, na teoria e na prática do estado de direito dos nossos dias. No que se refere mais especificamente ao século XVIII, ele atuou muito fecundamente, “removendo resíduos de doutrinas e de instituições efetivamente superadas e [...]estimulando a racionalização da legislação e a afirmação dos princípios jusnaturalistas de liberdade e tolerância” (G. Fassò).42

Por intermédio desses argumentos, demonstra-se o espírito revolucioná-rio oriundo do “Século das Luzes”, bem como seus reflexos na estruturação do pensamento moral e especialmente jurídico. De modo marcante, tal como destacado na citação acima, os princípios jusnaturalistas dos pensadores ilu-ministas influenciaram profundamente a constituição do direito contempo-râneo, sendo, portanto, de essencial importância o seu estudo.

A herança iluminista não somente se faz presente na construção do Di-reito, mas também pode ser vista na vida quotidiana e no mundo do busi-ness. Primeiramente, esse espírito de servir-se da própria consciência, sair da menoridade do conhecimento em busca da condução da vida através da razão, é essencial no competitivo mundo dos negócios da atualidade. A ca-pacidade de saber deparar-se com os fenômenos e, racionalmente, ser capaz de resolvê-los de modo criativo é uma premissa ao homem de sucesso na contemporaneidade.

39 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. p. 673.

40 “Na Revolução Fran-cesa [...] todo o ímpeto do movimento político tendeu ao futuro e re-presentou uma tentativa de mudança radical das condições de vida em so-ciedade. O que se quis foi apagar completamente o passado e recomeçar a história do marco zero – reinício muito bem sim-bolizado pela mudança de calendário”. (COMPARATO, Fábio Konder. A Afirma-ção Histórica dos Direi-tos Humanos. p. 51.)

41 A referida Carta possui marcante inspiração, ainda, na Declaração dos Direitos da Virgínia, cuja Seção 1 diz: “Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes, tendo certos direito inatos, dos quais, quando entram em um estado de socieda-de, não podem, através de nenhum pacto, privar ou despojar sua posteridade, ou seja, o gozo da vida e li-berdade, com os meios de adquirir e possuir proprie-dade e buscar a obtenção da felicidade e segurança”; “That all men are by nature equally free and indepen-dent, and have certain inhe-rent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtai-ning happiness and safety”. (UNITED STATES OF AMERI-CA. The Virginia Declara-tion of Rights. Disponível em: <www.usconstitution.net/vdeclar.html>. Acesso em: 9 fev. 2010. [tradução livre.)

42 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. p. 676.

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Além disso, o profundo respeito pelo ser humano dos iluministas traz a responsabilidade do líder e de seus colaboradores no desenvolvimento humano. Se a busca pela igualdade é um princípio, ao menos a igualdade de direitos, esta não será alcançada somente através da valorização da liberda-de humana; outros valores ideais, como a dignidade humana, a fraternidade, e o respeito às diferenças entre as pessoas também devem ser potencializa-dos para que a civilização humana como um todo se desenvolva.

Portanto, para que isso se torne possível, faz-se necessário que o líder da contemporaneidade, seja qual for sua área de atuação, se responsabilize por buscar, no exercício de sua liderança, tornar realidade esses valores, visto que no mundo contemporâneo a busca pelo desenvolvimento econômico sem o crescimento daqueles que com ele trabalham ou da sociedade não é mais aceita pelas sociedades contemporâneas, sendo pressuposto essencial a preocupação com o desenvolvimento social sustentável.

Ampliando seus conhecimentos

“Razão” e direito natural(REALE; ANTISERI, 2003)

Contrário aos sistemas metafísicos e fautor de religiosidade e moralidade racionais e laicais, o racionalismo iluminista estabelece a razão como funda-mento das normas jurídicas e das concepções do Estado. E, assim como se fala de religião natural e de moral natural, fala-se também de direito natural. E, aí, natural significa racional e, melhor ainda, não sobrenatural. O espírito crítico dos iluministas, que peneira toda ideia, opinião, crença proveniente do passa-do, penetra por toda parte, ”encontrando-se também nas obras dos escritores de Filosofia Política e Jurídica, empenhados em rever e transformar os princí-pios da vida social e das formas em que ela se organiza. O ideal jusnaturalis-ta de um Direito em conformidade com a razão precisa-se de modo sempre mais radical no século XVIII, inspirando projetos de reformas. Tais reformas muitas vezes são operacionalizadas pelos próprios soberanos, muitos dos quais gostam de ser chamados ‘iluminados’, embora permanecendo absolu-tistas, mas outras vezes também são propugnados e realizados contra eles. Na França, o Iluminismo jurídico-político desembocaria na revolução, um de cujos primeiros atos seria precisamente a declaração tipicamente jusnaturalis-ta dos direitos do homem e do cidadão. Com efeito, é próprio do Iluminismo

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orientar a pesquisa cognoscitiva para fins práticos, com o objetivo de tornar melhor a condição do homem, ou seja, torná-la mais conforme à razão, que se considerava o modo para torná-la mais feliz”. (G. Fassò)

“Em seu significado mais amplo, as leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”, afirma Montesquieu em O Espírito das Leis. E, embora livres das cadeias da religião, devemos estar sujeitos ao domínio da Justiça, pois as leis do Direito são objetivas e não modificáveis, à seme-lhança das leis da Matemática, continuava dizendo Montesquieu nas Cartas Persas. Por seu turno, embora constatando a grande variedade de costumes e vendo que “o que em uma região se considera virtude é precisamente o que em outra se vê como vício”, Voltaire era de opinião que “existem certas leis na-turais sobre as quais os homens de todas as partes do mundo devem estar de acordo [...]. Assim como (Deus) deu às abelhas forte instinto, pelo qual traba-lham em comum e procuram juntas o seu alimento, da mesma forma também deu ao homem certos sentidos que nunca poderá renegar: são os vínculos eternos e as primeiras leis da sociedade humana”. A fé na natureza imutável do homem – feita de inclinações, instintos e necessidades sensuais – pode-se encontrar também em Diderot, que reafirmou contra as teses de Helvetius, segundo as quais os instintos morais nada mais seriam do que máscaras do egoísmo. Para Diderot, existem vínculos naturais entre os homens, vínculos que as morais religiosas procuram despedaçar.

Segundo Mário A. Cattaneo, filósofo do Direito, nosso contemporâneo, as características gerais da doutrina iluminista são: 1) “atitude racionalista em relação ao direito natural”; 2) “atitude voluntarista em relação ao direito posi-tivo”. A racionalidade e a universalidade da lei, a tradução das regras eternas e imutáveis do direito natural em leis positivas pelo legislador e a certeza do Direito estariam entre as instâncias mais positivas da doutrina iluminista, que sempre, na opinião de Cattaneo, se configura como luta pela elaboração e rea- lização de valores jurídicos essenciais.

Trata-se de concepção que, em primeiro momento, move-se dentro dos li-mites do despotismo iluminado, para depois sair desse quadro, com propostas políticas, teóricas e práticas de natureza liberal, para desembocar finalmente na revolução ou então em reformas inconstitucionais que subvertem a ordem do ancien regime e que se mostram decisivas para a construção do moderno estado de direito. Desse modo, a conclusão de Cattaneo é “a afirmação do caráter essencialmente liberal e democrático da Filosofia Jurídica iluminista e,

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na adesão a essa concepção, a indicação de uma tomada de posição em favor da liberdade política e da democracia”.

O iluminismo jurídico, portanto, influiu sobre os “soberanos iluminados”, sobretudo na Alemanha e na Áustria, bem como sobre aquela burguesia em ascensão que, sobretudo na França, se rebelaria contra os soberanos. Con-sequentemente, como destacou recentemente outro filósofo do direito, G. Tarello, o iluminismo jurídico da área germânica é “a ideologia operativa dos soberanos e funcionários, isto é, [...] a ideologia de quem detém o poder polí-tico”, ao passo que o iluminismo jurídico, especialmente francês, mas também italiano, seria constituído por “uma série de ideologias de contestação e opo-sição, não compartilhadas em geral pelos soberanos, nem, durante muito tempo, por seus funcionários”.

Tais ideologias, acrescenta Tarello, em si não eram revolucionárias, mas tornam-se tais quando, sob a premência dos acontecimentos históricos, a bur-guesia a transformou em “máquina ideológica complexa, capaz de destruir a cultura e as instituições jurídico-políticas existentes”. A distinção entre ilumi-nismo jurídico reformador e iluminismo político revolucionário sem dúvida parece útil, pelo menos em primeira instância, “para descrever a formação e os resultados que algumas doutrinas jurídicas apresentaram, respectivamente, na França e na área alemã do século XVIII” (P. Comanducci).

Foi com base nas ideias jusnaturalistas dos iluministas que se elaborou a doutrina dos direitos do homem e do cidadão, que encontra a sua realiza-ção mais eloquente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na qual, em 1789, a Assembleia Constituinte francesa quis especificar princípios que seriam o documento programático da Revolução Francesa. Os direitos do homem e do cidadão que a Assembleia Constituinte considerou naturais foram: a liberdade, a igualdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. A lei é igual para todos e estabelece limites precisos ao poder exe-cutivo, a fim de proteger a liberdade pessoal, de opinião, de religião e de pala-vra. A lei é expressão da vontade geral, feita com o concurso dos cidadãos ou através dos representantes de todos os cidadãos. A propriedade é afirmada como direito “sagrado e inviolável”.

De clara inspiração individualista, a Declaração francesa de 1789 se refere à declaração norte-americana de 1776, isto é, a “declaração dos direitos feita pelos representantes do bom povo da Virgínia, reunido em convenção plena

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e livre”, cujo artigo 1.º diz que “todos os homens são por natureza igualmen-te livres e independentes, tendo certos direitos inatos, dos quais não podem privar ou despojar seus pósteros através de nenhum pacto, quando entram em estado de sociedade, isto é, o gozo da vida e a posse da propriedade, a persecução e a obtenção da felicidade e da segurança”. O artigo 2.º diz que “todo o poder reside no povo e, por conseguinte, dele deriva”. O artigo 3.º: “ o governo é ou deve ser instituído para o bem comum, a proteção e a segurança do povo.” O artigo 4.º: “Nenhum homem ou grupo de homens tem o direito a emolumentos ou privilégios particulares.” O artigo 5.º: “os poderes Legislativo e Executivo do Estado devem ser separados e distintos do poder Judiciário.” E assim por diante, com a enunciação daqueles que, em seguida, seriam consi-derados os princípios do Estado liberal-democrático ou estado de direito.

Criticados pela direita e pela esquerda, os princípios fixados na doutrina dos direitos do homem e do cidadão se encontram na base do ordenamento constitucional dos Estados democráticos de tipo ocidental. E, apesar de seus limites, tantas vezes denunciados, o iluminismo jurídico ainda está vivo, na teoria e na prática do estado de direito dos nossos dias. No que se refere mais especificamente ao século XVIII, ele atuou muito fecundamente, “removendo resíduos de doutrinas e de instituições efetivamente superadas e [...] estimu-lando a racionalização da legislação e a afirmação dos princípios jusnaturalis-tas de liberdade e tolerância” (G. Fassò).

No que se refere à racionalização da legislação, basta pensar que, por exem-plo, na França, “a unificação do sujeito de direito outra coisa não era [...] do que a eliminação dos múltipos status jurídicos (nobre, eclesiástico, comerciante, católico, protestante, judeu, homem, mulher, primogênito etc.) que tinham relevância processual e substancial, correspondendo à estratificação social do ancien regime” (P. Comanducci).

Se as ideias jusnaturalistas de “liberdade” e “igualdade” do “indivíduo” foram vistas pelos intérpretes marxistas como a sistematização superestrutural de um processo econômico estrutural, o filósofo de Direito Joel Solari escrevia em 1911 que “a codificação resume os esforços seculares dos princípios, dos jurisconsultos e dos filósofos para reduzir a legislação civil a uma unidade ma-terial e formal [...]. A invocada uniformidade das leis civis implicava a abolição da todas as desigualdades jurídicas derivadas do nascimento, da classe social, da profissão, da riqueza ou do domicílio”.

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E, se os princípios éticos e jurídicos são naturais, também são naturais os princípios que economistas como François Quesnay (1694-1774), Mercier de la Rivière, Du Pont de Nemours e outros resumiram no pensamento fisiocráti-co, cujo núcleo essencial encontram-se na fórmula liberal: Laissez faire, laissez passer. A propriedade privada e a livre concorrência são “naturais”’, ao passo que é contrária à “ordem natural” qualquer intervenção estatal visando a blo-quear ou obstaculizar tais leis naturais. E a função do Estado ou do soberano é essencialmente negativa: remover os obstáculos que impedem o desenvolvi-mento normal da “ordem natural”.

Atividades de aplicação1. Francis Bacon defendeu uma Filosofia empírica, baseada na análise das

coisas sensíveis, em oposição a uma explicação metafísica. A procura pela coisa posta repercutirá no Direito influenciando um direito posi-tivista, preocupado sobretudo com os fatos. Com base nisso, comente a relação entre empirismo científico e positivismo jurídico, lembrando também que Bacon se preocupa mais com o útil do que com o justo, ou seja, um Direito mais voltado à praticidade do aqui e agora do que com concepções filosóficas.

2. Considerando a proposta de ordenação racional de René Descartes, qual a sua importância para o pensamento jurídico na contempora-neidade.

3. Espinoza afirma que as paixões são naturais ao homem, e que não adianta suprimi-las, mas conhecê-las objetivamente. Relacione a pro-blemática das paixões na visão de Espinoza aos dias atuais: o homem hoje de fato tenta conhecer objetivamente as paixões? Como se vive a paixão na atualidade: suprimindo-a, vivendo-a ou buscando conhecê- -la objetivamente? E qual sua visão acerca desse tema, tão essencial para qualquer ramo da vida?

4. Com base nas concepções iluministas, especialmente na ideia de con-duta racional humana, reflita sobre suas influências na contempora-neidade.

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Gabarito1. Influenciado pelo empirismo científico, o direito demasiadamente po-

sitivista corre o risco de esquecer aspectos filosóficos, sociais, psicoló-gicos, entre outros, que existem por trás de um fato, e ignora que um acontecimento não pode ser analisado em separado da totalidade.

2. O pensamento de René Descartes é especialmente essencial para a compreensão da lógica jurídica, ou seja, pela organização do racio-cínio humano, de modo que na apreciação da situação em questão se esteja apto a emitir um juízo de certeza, diferenciando o certo do errado, com base em premissas lógicas e em um raciocínio dedutivo. A sentença judicial, por excelência, parte de um raciocínio dedutivo, da Lei como premissa geral, aplicando-se à situação particular que é aplicável.

3. Na atualidade não há uma análise séria sobre as paixões, em ambos os extremos. Ou vive-a exageradamente, sem pensar nas consequências, ou suprime-a da mesma forma.

4. Os filósofos iluministas influenciaram a racionalidade de onde se partiu para a fundação do atual estado de direito, ou seja, do Estado gover-nado pelas leis e que, partindo de princípios racionais, busca auxiliar à boa condução do ser humano. Baseados em princípios essenciais e em bens jurídicos a serem protegidos pelo Estado, os iluministas pro-puseram um Estado que possui sua atuação possibilitada, ao mesmo tempo que limitada pelas próprias leis.

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A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

IntroduçãoContinuando a análise das escolas de pensamento que mais influencia-

ram a Filosofia do Direito na transição para o período moderno, trataremos neste capítulo de um grupo de pensadores desse período que destacam-se por serem os fundamentadores da nova concepção de sociedade, Estado e de Direito que surgia.

Apesar das divergências entre suas concepções particulares, esses pen-sadores têm em comum a ideia de que em algum tempo no passado os homens, que se encontravam em um estado de naturalidade, no qual viviam individualmente, perceberam que seria mais vantajoso compartilhar a com-panhia dos outros homens, estipulando-se então um contrato onde as partes envolvidas instituíam direitos e deveres entre si, bem como passavam a or-ganizar politicamente sua convivência recíproca. Por essa razão esses pensa-dores foram chamados de contratualistas.

Portanto, neste capítulo estudaremos o pensamento dos principais re-presentantes dessa corrente: Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau.

Thomas HobbesThomas Hobbes1 é o pensador que opera a passagem científica da mo-

dernidade no âmbito da Filosofia Política e Jurídica, sendo também o filósofo que inaugura o pensamento contratualista. Hobbes teve a oportunidade de entrar em contato com as principais mentes que protagonizaram a revolu-ção científica e filosófica em seu tempo, sendo extremamente influenciado pelo pensamento de Francis Bacon, de René Descartes e também pela Física de Galileu Galilei2.

1 Thomas Hobbes nasceu em Malmesbury, Ingla-terra, em 1588. Aprendeu muito cedo o grego e o latim. Seu amor às obras clássicas o levou a pro-duzir diversas traduções de obras gregas e latinas. Após ter concluído seus estudos superiores em Oxford, a partir de 1608 tornou-se preceptor junto à poderosa casa de Caven-dish, conde de Devonshi-re. Foi também preceptor de Carlos Stuart (futuro rei Carlos II), no período em que a corte estava no exílio em Paris, após a tomada do poder por Oliver Cromwell. Com a retomada do poder da di-nastia dos Stuart, obteve uma pensão por parte de Carlos II, podendo dedi-car-se aos seus estudos. Morreu aos 91 anos de idade, em dezembro de 1679. (REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do huma-nismo a Kant. 6. ed. São Paulo: Paulus, 2003. 2 v. p. 483-484.)

2 REALE, Giovanni; ANTI-SERI, Dario. História da Filosfia: do Humanismo a Kant. p. 485.

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Nesse período a Inglaterra encontrava-se conturbada por um conflito civil entre os representantes do anglicanismo, religião da monarquia, os pu-ritanos, compostos principalmente pela burguesia, e a minoria católica. Esse contexto de instabilidade levou Hobbes a compor sua teoria da formação do Estado e do nascimento dos direitos humanos de uma diversa daquela tratada pela Antiguidade Clássica, conforme veremos ao tratar sobre suas obras Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil e Do Cidadão.

Hobbes considera os homens como naturalmente iguais. Embora existam diferenças de força ou inteligência entre os seres humanos, estas não são su-ficientes para garantir a supremacia de uns sobre outros. Até o mais fraco dos homens possui meios de matar o mais forte, o que atesta essa igualdade de natureza.3 Portanto, a diferença entre um e outro não é fundamento suficien-te para que um deles possa aspirar benefício em detrimento dos demais.

Contudo, da igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de se atingir os próprios fins, e se dois homens desejam a mesma coisa, sendo impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. No caminho para o seu fim, esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro. Disso colhe-se que todos vivem com receio uns dos outros.

Nesse raciocínio os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros, concluindo-se que: “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos contra todos os homens”4. Por guerra não se entende somente a batalha ou o ato de lutar, mas o lapso temporal durante o qual a disposição para tanto é suficientemente conhecida. Por isso, afirma-se que a humanida-de encontra-se em guerra constante.5

Hobbes chama esse período de estado de natureza, no qual, apesar de todos os homens serem iguais e livres, eles não dotam de meios para se pro-teger contra os outros indivíduos, vivendo em guerra ou na iminência desta. Nesse estado o homem é o lobo do próprio homem (homo homini lupus)6.

No estado de guerra, nada pode ser injusto, pois “Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça”.7 Além disso, inexistem a propriedade e o domínio das coisas, só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, apenas enquanto for capaz de conservar. Assim, o medo da morte e o desejo das coisas necessárias a uma vida confortável, con-

3 HOBBES, Thomas. Do Ci-dadão. Tradução, apresen-tação e notas de Renato Janine Ribeiro. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Clássicos. p. 29.

4 HOBBES, Thomas. Levia-tã ou Matéria Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil. Orga-nizado por Richard Tuck. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Clássicos Cambridge da Filosofia Política. p. 109.

5 “O estado de guerra, assim, é a identidade última do estado de natu-reza. A guerra, de fato, não é apenas o desencadear- -se das armas, o comba-te efetivo, mas também a conhecida disposição para tanto, ou a falta de uma garantia certa do contrário. A falta de se-gurança acarretada pelo estado de natureza e o fracasso de toda estraté-gia implementada pelos indivíduos para alcançá-la não podem deixar de ser registrados; as exigências da paz e da cooperação surgem espontaneamen-te nas mentes de muitos homens à medida que a crueldade da sua condi-ção se manifesta aos seus olhos”. (PICCINI, Mario. Poder Comum e represen-tação em Thomas Hobbes. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da Fi-losofia Política moderna. Tradução de: CIACCHI, Andrea; SILVA, Líssia da Cruz e; TOSI, Giuseppe. Petrópolis, Vozes, 2005. p. 128.)

6 “Para ser imparcial, ambos os ditos são certos – que o homem é um deus para o homem, e que o homem é o lobo do homem. O primeiro é verdade, se compararmos os cidadãos entre si; e o se-gundo, se cotejarmos as ci-dades”. (HOBBES, Thomas. Do Cidadão. p. 3)

7 HOBBES, Thomas. Le-viatã ou Matéria Forma e Poder de uma Repú-blica Eclesiástica e Civil. p. 111.

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seguidas por meio do trabalho, levam o homem a tender para a paz, sendo a busca por esta uma lei da natureza. Considera-se lei natural, pois a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais se pode chegar a um acordo.8 Além dessa, outras 18 leis de natureza são apresentadas, estas são naturais pois foram inscritas através da experiência humana, estreitamente ligadas à conservação e à defesa da vida.

Nesse contexto, conclui-se que o Direito de Natureza (Jus Naturale) é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza (sua vida) e de tudo aquilo que o seu julgar e sua razão lhe indiquem como meios adequados para o alcance desse fim.9 Por sua vez a liberdade é vista como a ausência de impedimentos externos que tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quiser.

A Lei de Natureza (Lex Naturalis), por sua vez, é o preceito ou regra geral estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preser-var ou omitir aquilo que pense melhor contribuir para preservar. Essa lei na-tural possui um caráter estritamente moral, não jurídico, dada a inexistência de qualquer força que fixe, dê validade e coercibilidade a essas leis.10

Hobbes destaca que o medo de viver nesse contexto inseguro e desfa-vorável leva os homens a abandonarem o estado de natureza. Buscando a legitimação das leis naturais que impelem os homens à paz, os homens dis-põem racionalmente pela criação de um ente superior a eles, produto da manifestação voluntária de todos, entregando-se à onipotência do sobera-no, que se tornaria o detentor de todos os direitos. Por esse pacto institui-se a República11, dando fim ao estado de natureza, garantindo-se a segurança para as pessoas e para os bens e, portanto, alcançando-se a paz com o fim das guerras civis.12

Esse contrato seria mais do que consentimento ou concórdia, tratar-se-ia de uma verdadeira unidade de todos, numa só e mesma pessoa, o Levia-tã. Considera o filósofo que seria como se cada homem dissesse: “Autorizo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de uma maneira semelhante todas as suas ações”13.

A transferência do direito de se governar significa uma transferência de forças e poderes (strenghts and powers), isso representa na realidade a renún-

8 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Mo-derna: da revolução cien-tífica a Hegel. Tradução de Marcos Bagno e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 1999. p. 220.

9 HOBBES, Thomas. Le-viatã ou Matéria Forma e Poder de uma Repú-blica Eclesiástica e Civil. p. 112.

10 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Jurídico Moderno. Tra-dução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 740.

11 No original o autor uti-liza o termo Commonweal-th, que pode ser traduzido como “bem estar público, bem geral, utilizado como sinônimo de República ou Estado.”

12 “A segurança é o fim pelo qual nos subme-temos uns aos outros, e por isso, na falta dela, supõe-se que ninguém se tenha submetido a coisa alguma, nem haja renun-ciado a seu direito sobre todas as coisas, antes que se tomem precauções quanto à sua segurança”. (HOBBES, Thomas. Do Ci-dadão. p. 103.)

13 HOBBES, Thomas. Le-viatã ou Matéria Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil. p. 147. (grifo do autor).

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cia desses indivíduos ao poder de resistência contra o soberano.14 Por con-centrar desse modo os poderes de cada homem, Hobbes define esse Leviatã como o “Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, a nossa paz e defesa”.15 Graças à autoridade que lhe é dada por cada indivíduo, confere- -se ao Leviatã o uso de tamanho poder e força que o terror por ele inspirado subjuga as vontades de todos os homens a ele submetidos. Destaca-se que para a manutenção do sistema o príncipe pode tudo para com seus súditos, ele encontra-se fora das limitações do pacto, razão pela qual contra ele não há injury, a agressão ao Direito.16

Considerada a formação da República, após a instituição do poder sobe-rano os homens deverão autorizar todos os atos e decisões de seu represen-tante, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, requisito essencial para viverem em paz um com os outros e protegidos dos demais homens, impossibilitando-se aos súditos levantarem-se contra o poder do soberano, o qual será ilimitado para assim garantir a finalidade de sua constituição, a paz entre os homens.17

Hobbes diferencia três espécies de governos. Quando o grupo é repre-sentado por somente um homem é uma monarquia; quando uma assem-bleia atua em nome de todos os que se uniram ao pacto, trata-se de uma democracia; quando apenas parte participa da assembleia, se está diante da aristocracia. Apesar de Hobbes considerar a existência dessas três formas, destaca-se que em suas obras o pensador declaradamente defende a supre-macia da monarquia ante as demais.

Considerada a formação da República no pensamento hobbesiano, pas-saremos à análise das concepções do pensador acerca do Direito, marcante-mente contrárias ao pensamento aristotélico e tomista, os quais são comba-tidos até as últimas consequências.

Baseado nas influências de Bacon, Hobbes não busca mais as causas, mas as potências do mundo, chegando por esse procedimento à hipótese do estado de natureza. O homem não é mais considerado social “por natureza”, o animal político, mas contrariamente é “naturalmente livre”. Assim fazendo, Hobbes limita o Direito à lei moral, que é a lei natural para ele. O Direito não é mais uma coisa distribuída ao sujeito pela organização política, mas um atributo essencial, uma qualidade do sujeito. Esse é o significado de direito subjetivo em Thomas Hobbes.

14 PICCINI, Mario. Poder Comum e representação em Thomas Hobbes. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da Fi-losofia Política Moderna. p. 130.

15 HOBBES, Thomas. Le-viatã ou Matéria Forma e Poder de uma Repúbli-ca Eclesiástica e Civil. p. 147. (grifo do autor).

16 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Jurídico Moderno. p. 717.

17 “De modo que parece bem claro ao meu en-tendimento, tanto com base na razão como nas Escrituras, que o poder soberano, quer resida num homem, como numa monarquia, quer numa assembleia, como nas re-públicas populares e aris-tocráticas, é o maior que possivelmente se imagi-nam os homens capazes de criar. E, embora seja possível imaginar muitas más consequências de um poder tão ilimitado, ainda assim as conse- quências da falta dele, isto é, a guerra perpétua de todos os homens com os seus semelhantes são muito piores”. (HOBBES, Thomas. Leviatã ou Ma-téria Forma e Poder de uma República Eclesiás-tica e Civil. p. 177.)

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Como no pensamento hobbesiano o Direito passa a existir somente quando os homens firmam o pacto para instituição da República, altera-se também a concepção das fontes do Direito. A lei passa a ser a fonte suprema do Direito, posto que o direito natural não é a fonte do Direito em si, mas da conduta moral dos indivíduos. Essa consideração evidencia a importância do direito subjetivo para Hobbes, posto que o Estado é resultado deste.

Após a constituição do soberano, o direito subjetivo continuará atuante na vida social como liberdade natural, que subsiste no corpo político e que nele poderá de fato tornar-se realidade. Os cidadãos ao estabelecerem o pacto social cedem seus direitos naturais, recebendo em troca direitos civis.18

Hobbes acredita que os homens estão instintivamente dirigidos pela vontade de bem-estar momentâneo, desconsiderando assim a existência de uma causa final para a vida humana. Por esse motivo, atribui ao Direito a fina-lidade de respeitar o prazer do indivíduo. O Direito, desse modo, é a vontade do homem voltado para o prazer, e não mais uma fonte que dita regras de conduta, o Direito (jus) é a liberdade que a lei nos permite, por esse caráter a lei (lex) é a obrigação que nos priva da liberdade que nos foi dada pela natu-reza.19 Conforme conclui Villey: “[…] é a vontade do homem que, para servir a seus apetites nas circunstâncias da vida mutável em que se encontra, sem mais pretender a nada de imutável, cria ou ‘estabelece’ as regras de Direito (positivismo jurídico)”.20

Hobbes divide a Justiça em duas espécies, a comutativa e a distributiva, seguindo a primeira uma proporção aritmética e a segunda uma proporção geométrica. Todavia, para o filósofo inglês justiça comutativa é a Justiça do contratante, é o cumprimento dos pactos (pacta sunt servanda). Justiça dis-tributiva, por sua vez, é a Justiça de um árbitro, o ato de definir o que é justo, sendo mais próprio chamá-la de equidade, a qual é considerada uma lei de natureza.

Pelo exposto constata-se que Hobbes, ao considerar o estado de natureza do homem como o estado do homo homini lupus, procura demonstrar que a vontade dos indivíduos de garantir suas vidas e sua segurança os levou a fundar a República, extinguindo-se o estado de natureza. A República (Com-monwealth) e o Direito assim estão fundados no interesse do homem em viver bem, o que caracteriza consagração da instituição do direito subjetivo, o direito relativo ao indivíduo e que se põe como uma faculdade, que pode

18 VILLEY, Michel. A For-mação do Pensamento Ju-rídico Moderno. p. 706.

19 “A lei civil é para todo súdito constituída por aquelas regras que a re-pública lhe impõe, oral-mente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente da sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal, isto é, do que é contrário à regra” (HOBBES, Thomas. Levia-tã ou Matéria Forma e Poder de uma Repúbli-ca Eclesiástica e Civil. p. 226. [grifo do autor]). Reforça-se assim que a lei não é mais produto de um direito natural, mas produto do Estado, tendo em vista o regramento da conduta de sua sociedade e a garantia ao indivíduo do exercício de sua liber-dade. (HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria Forma e Poder de uma República Eclesiástica we Civil. p. 246.)

20 VILEY, Michel. A Forma-ção do Pensamento Jurí-dico Moderno. p. 676.

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ou não ser utilizada por este, dependendo de sua conveniência. Assim, o Di-reito em Hobbes não tem como valor primordial a Justiça em sentido absolu-to, mas o que é justo na questão dos interesses do próprio indivíduo.

John LockeO filósofo inglês John Locke21, célebre por sua epistemologia empirista,

dedica-se também a tratar sobre a organização das sociedades humanas e o nascimento do Estado, o que faz em sua obra Dois Tratados sobre o Gover-no. Nesse livro, suas concepções são apresentadas mais especificamente no “Segundo tratado sobre o governo”, posto que o primeiro tratado dedica-se precipuamente a refutar as teses absolutistas de Robert Filmer, presentes na obra O Patriarca.

John Locke também considera a existência de um estado de natureza an-tecedente à vida em sociedade, partindo deste para explicar o princípio das sociedades humanas e a consequente instituição do Estado. Locke, contudo, não entende que esse estado natural é a verdadeira “guerra de todos contra todos”, mas sim uma perfeita liberdade dos indivíduos para regularem suas ações e disporem de posses e pessoas do modo como julgarem acertado, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem, limi-tados somente pela lei da natureza.22 Os limites a essa ampla liberdade estão consignados na obrigação de preservar-se, bem como de, o quanto possível for, preservar o resto da humanidade23.

Para que todos os homens sejam impedidos de agredir direito alheio, pre-judicando uns aos outros e deixando-se de observar a lei de natureza, cada um possui a responsabilidade da execução dessa lei, estando depositado em suas mãos o direito de punir os transgressores dela em tal grau que baste para impedir sua violação. Conforme Locke: “todo homem tem o direito de punir o transgressor e de ser o executor da lei de natureza”24. Nesse ínterim, a decisão pela vida em sociedade ocorre devido a um motivo, a vantagem do convívio social, o qual supre as limitações do indivíduo que conduz por si sua vida.25

Constata-se assim a diferença entre as concepções do estado de nature-za de Locke com as de Hobbes. Essa diferença torna-se explícita no capítu-lo 3 do “Segundo tratado”, onde o filósofo diferencia o estado de natureza do estado de guerra. Este último é considerado como fruto da tentativa de alguém impor aos demais o poder absoluto, atitude que é entendida como

21 John Locke nasceu em Wrington, próximo a Bris-tol, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford, onde conseguiu o título de Master of Arts em 1658 e onde ensinou, na qualidade de tutor, grego e retórica, tornando-se censor da fi-losofia moral. Estudou Me-dicina, Anatomia, Fisiologia e Física, além de Teologia.Foi nomeado membro da Royal Society de Londres. Acusado de traição, se retira para Oxford refu-giando-se com o Conde de Shaftesbury, contudo, com o sucesso da Revolu-ção Gloriosa e a tomada do trono por Guilherme de Orange, instituindo-se o regime parlamentarista, retorna a Londres, colhen-do as glórias do triunfo da teoria que tanto defendera. Morreu no castelo de Oates, em Essex, no ano de 1904. (REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filoso-fia: do humanismo a Kant. p. 502-505.)

22 GOLDWIN, Robert A. John Locke [1632-1704]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Comp.). Historia de la filosofía política. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 453.

23 Quanto a essa última obrigação destaca Locke: “[...] e não pode, a não ser que seja para fazer justiça a um infrator, tirar ou preju-dicar a vida ou o que favo-rece a preservação da vida, liberdade, saúde, integri-dade ou bens de outrem”. (LOCKE, John. Dois Trata-dos sobre o Governo. Tra-dução de: FISCHER, Julio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 384.)

24 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 387. (grifo do autor).

25 Sintetizando esse ponto, Locke utiliza-se da seguinte conclusão de Hooker: “Dado que não somos capazes de nos prover por nós mesmos de uma quantidade con-veniente das coisas ne-cessárias para viver a vida que nossa natureza deseja, uma vida adequada à dig-nidade do homem, somos naturalmente induzidos, a fim de suprir esses defeitos e imperfeições que por-tamos quando vivemos isolados e somente por nossos próprios meios, a buscar a comunhão e a associação com outros. Foi por essa razão que os homens começaram a reunir-se em sociedades políticas”. (HOOKER apud LOCKE, John. Dois Trata-dos sobre o Governo. p. 394. [Grifo do autor].)

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uma declaração de intenções contra a vida do próximo que se tenta subju-gar. Submeter-se a tal poderio significa tornar-se escravo, deixar de possuir sua liberdade. A quem tentar submeter os demais abre-se a possibilidade de inclusive matá-lo, pois mais vale proteger a liberdade do que manter-se vivo, mas escravo de outrem.26

Portanto, o que Hobbes entende por estado de natureza aproxima-se do que Locke entende por estado de guerra, não sendo este o estado normal da raça humana em suas origens, mas um desvio que deve ser coibido tanto quanto for possível, razão pela qual é concedido aos homens o poder de serem executores da lei de natureza, bem como, para evitar o risco do estado de guerra, os homens instituem a sociedade civil.

No pensamento de Locke um direito fundamental é o Direito de Pro-priedade. Embora a Terra e tudo que há nela sejam naturalmente comuns a todos os homens, o filósofo considera a existência de um modo pelo qual o homem se apropria de parte das coisas dela provenientes, beneficiando-se a si próprio. Para tanto, parte-se da consideração de que cada homem tem uma própria propriedade em sua pessoa27, o que faz com que o trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos sejam também propriamente seus. Destar-te, qualquer coisa que for retirada do estado em que a natureza proveu e deixou através do acréscimo do trabalho humano transforma-se de um bem universal em uma propriedade particular.28 Concluindo: “O trabalho que tive em retirar essas coisas do estado comum em que estavam fixou minha pro-priedade sobre elas”29.

Essa consideração é válida tanto relativamente aos bens imóveis, como na coleta de frutas, na caça ou criação de animais, quanto relativamente à pró-pria terra. A função da propriedade é garantir o usufruto dos bens que a vida concede conforme sua conveniência ao indivíduo, sendo por esse motivo um direito natural. Por essa característica, a expansão da propriedade é lícita, tanto quanto for necessário ao proprietário, conquanto que não se prejudi-que a outrem nessa expansão. Para Locke, o exagero nos limites de uso da propriedade não se encontra na extensão das posses que o homem possui, mas no perecimento inútil de qualquer parte delas.30 Isso significa que, no pensamento do autor, não é reprovável a expansão da propriedade, o lucro, mas censura-se o excesso na aquisição de bens que chegue a um ponto em que o ganho excedente acabe perecendo. Quem incorresse nessa situação de desperdício encontrar-se-ia em franca violação à lei natural, devendo se responsabilizar por tal ato.

26 Diferindo os dois es-tados, considera Locke: “Quando homens vivem juntos segundo a razão e sem um superior comum sobre a terra com auto-ridade para julgar entre eles, manifesta-se pro-priamente o estado de natureza. Mas a força, ou um propósito declarado de força sobre a pessoa de outrem, quando não haja um superior comum sobre a Terra ao qual apelar em busca de assistência, cons-titui o estado de guerra”. (LOCKE, John. Dois Trata-dos sobre o Governo. p. 399. [Grifo do autor].)

27 Pois o domínio de si próprio é requisito essen-cial para se poder falar na liberdade do homem.

28 MORAES, Amaury Cesar. Liberalismo e Pro-priedade no “Capítulo V” do Segundo Tratado sobre o Governo de Locke. In: PISSARRA, Maria Constan-ça Peres; FABBRINI, Ricar-do Nascimento (Coord.). Direito e Filosofia: a noção de Justiça na Histó-ria da Filosofia. São Paulo: Atlas, 2007. p. 82.

29 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 410. (grifo do autor).

30 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 426.

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No pensamento de Locke, essa regra natural vigeria até a atualidade se os homens não tivessem inventado o dinheiro, pois o acúmulo de bens pere-cíveis em excesso traz o risco de se perder inutilmente grande parte desses bens, tornando desvantajosa a ampliação da propriedade. Todavia, com a instituição do dinheiro os homens obtiveram um instrumento durável que poderia ser guardado sem se estragar. Tornou-se possível assim, pelo con-sentimento dos homens, a troca do dinheiro, como bem não perecível, por aqueles bens que são verdadeiramente úteis, mas perecíveis.

A invenção do dinheiro possibilitou ao homem continuar a expansão de suas propriedades sem incorrer no perecimento inútil dos bens que possui. O valor atribuído a esse dinheiro é fruto do consentimento entre os homens, já o valor das coisas que podem ser adquiridas pelo dinheiro é dado pelo trabalho daqueles que a produziram. Portanto, o trabalho humano, além de assegurar a aquisição originária da propriedade no estado natural, também é o elemento que qualifica esse bem, tornando-se possível conceder-lhe um valor maior para sua obtenção. Locke conclui essa parte relacionando o di-reito à propriedade com a conveniência no estado natural, assim dizendo: “O direito e a conveniência andavam juntos, pois o homem tinha direito a tudo em que pudesse empregar seu trabalho, e por isso não tinha a tentação de trabalhar para obter além do que pudesse usar”31.

Para Locke, a lei natural somente pode ser conhecida por intermédio da razão, de modo que os que ainda não atingiram o seu uso não podem se considerar sob a égide de tal lei. Nesse sentido, o termo lei pode ser entendi-do como a limitação quanto à direção de um agente livre e inteligente rumo a seu interesse adequado, não prescrevendo além daquilo que é para o bem geral de todos que a ela estão sujeitos. Se estes pudessem ser mais felizes sem a lei, esta desapareceria por si mesma, sendo coisa inútil. O fim da lei não é abolir ou restringir, mas conservar e ampliar a liberdade, a lei é o dispositivo que auxilia o indivíduo para que este possa agir bem, possuindo, portanto, uma função que pode ser chamada de pedagógica.

Contudo, apesar da plena liberdade que o homem goza no estado de natureza, este possui uma tendência natural pela busca da vida em socie-dade. Os primeiros indícios dessa tendência são encontrados na sociedade conjugal, da qual nasce também a relação entre pais e filhos, partindo dessa sociedade denominada família também a relação entre senhor e servidor. Contudo, essas formas de grupamento estavam longe de constituir a forma plena da vida social, chamada sociedade política ou civil. Esta última somente

31 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 429.

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existirá se cada um de seus membros renunciar a seu poder natural, colocan-do-o nas mãos do corpo político em todos os casos que não o impeçam de apelar à proteção da lei por essa sociedade estabelecida. “Aqueles que estão unidos em um corpo único e têm uma lei estabelecida comum e uma judica-tura à qual apelar, com autoridade para decidir sobre as controvérsias entre eles e punir os infratores, estão em sociedade civil uns com os outros”32.

Com a instituição da sociedade civil há a formação de um povo, “um corpo político sob um único governo supremo, ou então quando qualquer um se junta e se incorpora a qualquer governo já formado”33. O Estado seria o go-verno soberano que existiria para a regulação da vida de determinado povo que pactuou sua criação para cumprir essa finalidade.

A vida na sociedade civil pressupõe mecanismos de regulação social por intermédio da lei, do exercício do poder político, bem como de órgãos que possibilitem a discussão do conteúdo e da aplicabilidade dessas leis e ainda autoridade para punir àqueles que romperem as normas desse grande pacto. Nesse sentido, a monarquia absoluta é considerada incompatível com a so-ciedade civil, não podendo ser de modo algum uma forma de governo civil.

Os motivos que levam o homem a instituir o governo civil são a mútua conservação de suas vidas, liberdades e bens. O indivíduo possui toda a li-berdade do mundo no estado natural, todavia, corre o risco de ser sobre-posto por outro indivíduo livre. Assim, unindo-se as pessoas em um corpo, estas conseguem garantir entre si a preservação dos seus bens mais valio-sos.34 Nisso há também uma alteração no tocante ao Direito de Propriedade, posto que as leis passam a regulamentar o Direito de Propriedade e a posse da terra através de suas legislações, ocorrendo inclusive a mudança no crité-rio pelo qual considera-se adquirida a propriedade, bem como os requisitos necessários para mantê-la.35

Se um estado natural carece de uma lei estabelecida, positivada, de juízes conhecidos e imparciais, com autoridade para solucionar as diferenças de acordo com a lei, bem como de um poder para apoiar e sustentar a senten-ça desses juízes e dar a ela a devida execução, os indivíduos obtêm tudo isso ao constituírem o Estado e, por intermédio deste, fundarem o Direito e órgãos que possuam a competência de criar, interpretar e aplicar esse Direi-to sempre tendo em vista os fins da sociedade.36

Nesse raciocínio, pode-se considerar a diferença entre a liberdade natu-ral, própria do estado de natureza, e a liberdade no estado, aquela garan-

32 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 458, 459.

33 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 460.

34 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 495.

35 Destaca-se que no Direito brasileiro a pro-priedade, regulada pelo Código Civil, é conside-rada adquirida, quando referente a bens móveis, através da tradição, da simples transferência entre pessoas, enquanto que a aquisição da pro-priedade imóvel se dará precipuamente através do registro do título de trans-ferência de propriedade no Cartório de Registro de Imóveis, conforme dis-ciplinam os artigos. 1.267 e 1.245, respectivamente. (BRASIL. Lei 10. 406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Código Civil. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 25 mar. 2010.)

36 GOLDWIN, Robert A. John Locke [1632-1704]. In: STRAUSS, Leo; CROP-SEY, Joseph (Comp.). His-toria de la filosofía polí-tica. p. 461.

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A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

tida pela sociedade. A primeira consiste em “estar livre de qualquer poder superior sobre a Terra e em não estar submetido à vontade ou à autoridade legislativa do homem, mas ter por regra apenas lei da natureza”37. Essa liber-dade plena possui seus riscos, razão pela qual busca-se a vida social, onde a liberdade se traduz em:

[...] não estar submetido a nenhum outro Poder Legislativo senão àquele estabelecido no corpo político mediante consentimento, nem sob domínio de qualquer vontade ou sob a restrição de qualquer lei afora as que promulgar o Legislativo, segundo o encargo a este confiado.38

Para a atuação do Estado, Locke considera três principais formas de go-verno: a democracia, movida por sufrágios, onde a comunidade possui todo o poder e pode utilizá-lo para fazer periodicamente leis destinadas à própria comunidade, executadas por funcionários por ela nomeados; a oligarquia, onde o poder de legislar encontra-se sobre alguns homens escolhidos, seus herdeiros e sucessores; e a monarquia, poder posto nas mãos de um único homem.39 Esta última forma pode se estender aos herdeiros do soberano – monarquia hereditária – ou restrita ao rei apenas durante sua vida, voltando o poder à comunidade após sua morte – monarquia eletiva.40

Em seguida, o autor considera ainda a existência de cinco espécies de poder dentro do Estado. O primeiro e maior deles é o Poder Legislativo, dotado do poder político41. Apesar de ser o maior dos poderes do Estado, este se encontra limitado por toda a sociedade civil, o que garante que sua supremacia ante aos demais poderes não se torne motivo para se constituir qualquer espécie de despotismo.42 Se o Poder Legislativo abusa do poder que lhe foi concedido, “o poder soberano retorna ao povo, que se torna au-toridade legislativa, investida de todas as condições, de toda a legitimidade e de toda autoridade para decidir constituir novo governo e restabelecer a normalidade nas estruturas sociais”43.

Além do Legislativo, existem ainda os poderes Executivo, Federativo e de Prerrogativa, compostos na realidade pela mesma pessoa, apesar de exerce-rem funções diversas. Basicamente, o Poder Executivo responsabiliza-se pelo cumprimento das leis redigidas pelo Legislativo. O Poder Federativo regula a relação entre o Estado que representa e os demais, referindo-se ao Chefe de Estado na atualidade. O Poder de Prerrogativa não é nada mais do que a dis-cricionariedade concedida ao Executivo de, em situação que não haja tempo

37 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 401.

38 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 402.

39 Sobre essas três formas de governo, considera Merlo: “A democracia pre-cede geneticamente tanto a aristocracia como a mo-narquia, porque o pacto é estabelecido entre os próprios indivíduos, e não entre os indivíduos e um soberano”. (MERLO, Mau-rizio. Poder natural, pro-priedade e poder político em John Locke. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da Filosofia Políti-ca moderna. Tradução de: CIACCHI, Andrea; SILVA Líssia da Cruz e; TOSI, Giu-seppe. Petrópolis, Vozes, 2005. p. 166.)

40 LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 500.

41 “Considero, portanto, que o poder político é o direito de editar leis com pena de morte e, con-sequentemente, todas as penas menores, com vistas a regular e preser-var a propriedade, e em-pregar a força do Estado na execução de tais bens e na defesa da sociedade política contra os danos externos, observando tão somente o bem público”. (LOCKE, John. Dois Tra-tados sobre o Governo. p. 381.)

42 “Embora numa comu-nidade constituída, assen-tada sobre suas próprias bases e agindo de acordo com sua própria natureza, ou seja, para a preserva-ção da comunidade, não possa haver mais de um único poder supremo, que é o Legislativo, o qual todos os demais são e devem ser subordinados, sendo ele apenas um poder fiduciário que entra e ação para agir com vistas a certos fins, cabe ainda ao povo o poder supremo para remover ou alterar o Legislativo, quando julgar que este age contraria-mente à confiança neste depositada”. (LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. p. 518.)

43 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Polí-tica. 3. ed. rev, aument. e modif. pelo Autor. São Paulo: Atlas, 2008. p. 189.

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para se aguardar a edição de uma lei, decidir com prudência tendo em vista a boa condução da sociedade.44

Pelo que foi exposto neste capítulo, constata-se que no pensamento de Locke, mais do que garantir a segurança do indivíduo, o pacto social reforça ao máximo a liberdade já possuída pelo homem no estado de natureza. Ao criar um ente que organize a vida social, desobriga o homem a cuidar da execução da lei natural em relação aos demais, concentrando-se no seu pró-prio desenvolvimento enquanto indivíduo e no aprimoramento das relações sociais que estabelece.

Destaca-se no pensamento do autor a importância dada ao dinheiro como um critério de liberdade do homem, posto que seu acúmulo possibili-ta ao indivíduo adquirir todos os bens que necessita para viver bem. Dentro dessa temática, uma importante lição deixada pelo filósofo, perfeitamente aplicável ao mundo do business, é a importância da efetiva utilização da propriedade.

O problema relativo à propriedade não é tão somente o acúmulo desta nas mãos de alguns, mas a efetiva utilização desses bens por aquelas pes-soas que os possuem. A posse de muitos bens não é algo essencialmente condenável, o que é reprovável é o fato de o proprietário, seja um indivíduo, seja uma organização, preocupar-se somente em adquirir bens, ou lucrar, sem utilizar esse plus adquirido, posto que com essa conduta se incorre no histórico problema existente em nossa sociedade com relação às questões fundiárias, bem como, no âmbito empresarial, nos problemas das empresas que apesar de obterem altos lucros, não tornam esses ganhos motivo de crescimento aos seus funcionários e à sociedade em que se encontram.

Por esse motivo, constata-se que na contemporaneidade não se deve coibir o crescimento dos líderes e empreendedores, agentes de inovação na sociedade de hoje, mas deve-se garantir que o crescimento desses homens e de suas instituições traga consigo o desenvolvimento dos demais que se encontram a sua volta, posto que se assim não ocorrer, não há como se falar em sustentabilidade na vida em sociedade, mas numa agressão à regra da propriedade, conforme demonstrou Locke.

44 Destaca-se que Locke silencia acerca da existên-cia de um Poder Judiciário. Contudo, considerando-se seu sistema de pensamen-to e a temporariedade das Câmaras Legislativas, con-vocadas somente quando precisem se manifestar, enquanto que o Executivo encontra-se em perma-nente atividade, pode-se inferir que o Poder de Julgar estaria dentre as atribuições do Poder Executivo, instituindo os juízes doutos e imparciais, tal como o autor se mani-festou anteriormente.

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MontesquieuO filósofo e cientista francês Montesquieu45 realiza em sua obra O Espírito

das Leis uma profunda investigação acerca da constituição do Estado e do modo pelo qual este se estrutura para regular a si próprio e à sociedade que o instituiu.

Montesquieu parte da consideração de que as leis são as relações neces-sárias derivadas da natureza das coisas. Assim sendo, todos os serem têm suas leis. A divindade, o mundo material, as inteligências superiores aos homens, os homens, os animais, todos possuem suas leis. Desse modo, o homem também é governado por leis invariáveis, contudo, como ser inteli-gente, viola incessantemente essas leis e transforma aquelas que ele mesmo estabeleceu.46

O homem deve saber orientar-se a si mesmo, mas é um ser limitado, sujei-to à ignorância e ao erro. Buscando ordenar a conduta humana, as religiões buscaram chamá-lo através de suas leis, porém estas dependem da crença para serem efetivas. Os filósofos, através da moral, buscaram disciplinar ra-cionalmente a conduta humana, todavia, para tornar tal módulo de conduta real, há que se haver a passagem voluntária do indivíduo. Por fim, os legisla-dores fizeram o homem voltar aos seus deveres com as leis políticas e civis, dotadas da coercibilidade necessária para obrigar o indivíduo a agir devida-mente.47

Considerada essa busca pela ordenação da conduta humana, fazendo-o retornar à ordem preexistente na natureza, propõe-se ao pensador identifi-car o espírito das leis, entendendo-o como a consideração de todas as ques-tões que devem ser levadas em conta quando, em um Estado, parte-se à produção legislativa, de modo que possa assim devolver o indivíduo ao seu apelo natural através da realização dentro do Estado.48

Para alcançar sua proposta, inicialmente deve-se considerar as espécies de governo existentes, posto que dependendo de qual modelo for adotado em um Estado, o modo de se elaborar e aplicar as leis, bem como a forma de regular a sociedade, se alterará. São três as formas identificadas: a republi-cana, composta pela democracia, governada por todos os cidadãos, e pela aristocracia, governada somente por alguns cidadãos selecionados; o gover-no monárquico, composto pelo governo de um só com base nas leis; e o governo despótico, composto pelo governo de um só, tendo em vista seu próprio interesse.

45 Charles-Louis de Se-condat, barão de Mon-tesquieu, nasceu em 1689, nas proximidades de Bordeaux. Foi conse-lheiro do Parlamento de Bordeaux e colaborador da Academia de Ciências local. Elaborou estudos sobre diversas áreas do conhecimento. Suas prin-cipais obras são O Espírito das Leis e Cartas Persas. Nesta última, satiriza toda a organização social da Europa de sua época. (RO-VIGHI, Sofia Vanni. Histó-ria da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. p. 349.)

46 MONTESQUIEU. O Es-pírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 11.

47 MONTESQUIEU. O Es-pírito das Leis. p. 12-13.

48 LOWENTHAL, David. Montesquieu [1689-1755]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Comp.). Historia de la filosofía política. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 489.

A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas

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Cada uma dessas formas possui seu próprio princípio, o valor pelo qual se constrói determinado governo e de onde partem todas as atitudes desse governo.49 Na República, o princípio do governo é o amor à república, o qual, na democracia reflete-se no amor à igualdade e na aristocracia no amor à vir-tude. O princípio da monarquia é a honra, enquanto que no despotismo este princípio é o temor. A importância desses princípios é assinalada na conside-ração de que quando em um Estado há a perda desse princípio operar-se-á a corrupção de cada forma de governo, o que precede sua queda.

Estabelecidas as três formas de governo, bem como os princípios rela-tivos a cada uma dessas, a partir dos quais devem partir todos os atos de determinado governo, com vistas a sua realização, Montesquieu considera diversos pontos que devem ser regulamentados por lei para a boa regulação de um Estado, até que, no livro XI, depara-se com a relação entre as leis e a liberdade dos cidadãos.

Acerca da liberdade, o pensador a considera sob dois aspectos, tanto em relação à constituição quanto relativamente ao cidadão, buscando desse modo o valor da liberdade política e estabelecendo as condições efetivas que possibilitarão que os indivíduos desfrutem a liberdade.50

Relativamente à constituição, liberdade significa o poder de se fazer o que se deve querer e não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer. Por outro lado, em relação ao cidadão entende-se tal termo como o exercício de sua vontade livre para agir bem, podendo-se chamá-la de liber-dade filosófica. A primeira é a concepção de liberdade em seu sentido legal, o indivíduo pode fazer tudo aquilo que não é proibido por lei. Já o segundo conceito, mais profundo, envolve a capacidade do indivíduo discernir a rea-lidade e agir do modo adequado, sendo, portanto, livre, trata-se muito mais de uma questão de Ética do que de Direito.

Se as leis procuram assegurar o desenvolvimento das sociedades huma-nas, coagindo os homens a voltarem a agir em conformidade com a ordem do mundo, essas leis somente alcançarão seu objetivo se a liberdade for ga-rantida aos seus cidadãos. Por esse motivo, considera-se em primeiro lugar a liberdade relativa às leis, pois somente aqueles que se encontrarem melhor preparados nas questões da vida estarão aptos a gozar da segunda forma de liberdade, que se pauta no bom uso da razão.

Por outro lado, o próprio Estado não pode ser empecilho ao desenvol-vimento do indivíduo, nem ser o primeiro a afrontar a liberdade dos seus

49 Reforça-se esse caráter nos capítulos da obra de-dicados à consideração de que as leis sobre a educa-ção, bem como as leis em geral, devem se relacionar com o princípio de cada forma de governo.

50 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. p.749.

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cidadãos no exercício do seu poder. Tendo em vista essa premissa, Montes-quieu, ao tratar sobre a Constituição da Inglaterra no capítulo VI do livro XI do Espírito das Leis, constrói a célebre teoria da separação dos poderes como elemento essencial para a realização da liberdade política.51 Para o pensador existem três tipos de poder: o poder de legislar, criar leis por um tempo ou para sempre e corrigir ou anular as leis já elaboradas; outro de aplicar as leis existentes na realidade fática, executando-as, e outro ainda de castigar os crimes e julgar as querelas entre os particulares.52 Essas funções não podem ser confiadas à mesma pessoa, pois o concurso de duas delas já concede força o suficiente para o seu titular exercer o poder de modo arbitrário e pre-judicial a toda a sociedade.

Portanto, em Montesquieu a gênese da separação dos poderes, assim como a construção axiológica das formas de governo, tem um objetivo claro: a garantia da liberdade dos seus cidadãos. Não basta em um Estado construir um sistema que proteja os indivíduos nas suas relações entre si, se o próprio Estado representar a maior e mais perigosa ameaça ao indivíduo.

Destaca-se disso que, sendo o Estado um ente ficto, que se faz presente historicamente representado por pessoas que agem em nome dessa figura maior, a limitação e o controle dos poderes do Estado são essenciais para que seus agentes não se utilizem do poder que lhes é conferido para preju-dicar a outrem, bem como para alcançar benefícios próprios, situações em que estar-se-ia denunciando a corrupção do governo e a falência do Estado como figura reguladora de determinada sociedade civil.

Apesar de Montesquieu não tratar expressamente do contrato social em sua obra, ele parte das concepções contratualistas, especialmente das formuladas por Locke, para formular sua obra, a qual é o pilar sobre o qual foram constituídos todos os grandes sistemas jurídicos da modernidade e da contemporaneidade.

RousseauRousseau53 é uma das mais influentes mentes do séc. XVIII. Seu pensa-

mento marcou o auge do iluminismo francês, bem como o princípio do movimento romantista. Suas ideias acerca da constituição do Estado e do Direito são apresentadas em sua obra Do Contrato Social54, na qual o filósofo parte da seguinte premissa: “O homem nasceu livre e por toda parte ele está

51 LOWENTHAL, David. Montesquieu [1689-1755]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Comp.). Historia de la filosofía política. p. 495.

52 MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. p. 168-169.

53 Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, em 28 de junho de 1712. Deixou a cidade em 1728, morando em Turim, na atual Itália, e na França, primeiramente em Cham-béry, mudando-se depois para Paris, onde conhece Diderot e, através deste, os enciclopedistas. Au-xiliou na elaboração da Enciclopédia, contudo, por divergências com o grupo, afasta-se destes em 1758, quando retira- -se para o Montmorency, onde publicou sua obra Du contract social, em 1762. Rousseau morreu em Ermenonville, em 2 de julho de 1778. (REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. p. 751.)

54 ROUSSEAU, Jean-Jac-ques. O Contrato Social. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1999

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agrilhoado”55. Romper as cadeias que o aprisionam e possibilitar ao homem viver em liberdade é a sua proposta nessa obra. A ordem social é considera-da um direito sagrado que prescinde a todos os demais, para Rousseau esse direito não possui origem na natureza como pensaram outros contratualis-tas, mas sim nos pactos que os próprios homens fazem entre si.

Rousseau considera que apenas ser o mais forte não é o suficiente para ser o dono de alguma coisa, se não se transformar essa força em Direito e a obediência na figura de um dever, não existem garantias da manutenção do poder sobre essa coisa. Ceder à força é um ato de necessidade, não de von-tade, trata-se de um ato de prudência, quando é necessário fazê-lo. Contudo, a atitude de o homem renunciar a sua liberdade constitui-se na renúncia de sua própria qualidade de homem, aos direitos de toda humanidade e inclu-sive a seus deveres.56

O contrato social para Rousseau não é um ato pelo qual se garantirá a proteção dos indivíduos que encontram-se em constante estado de guerra entre si tal como propusera Hobbes. Para o filósofo de Genebra, o homem é naturalmente bondoso; nos primórdios os homens viviam em um período paradisíaco, que teve fim com o princípio da vida em sociedade, quando o grupo social corrompeu o homem bom. Para voltar ao status quo ante, ao estado de natureza onde todos viviam bem, a solução seria a fixação de um pacto social legítimo, em conformidade com a razão, pelo qual se garanti-ria o direito de todos de maneira igualitária, cessando as desigualdades da união anteriormente firmada.57

Considerando que os homens não podem criar novas forças, senão so-mente unir e dirigir as que existem, não possuem outro remédio para se conservar do que somar suas forças. Porém, como é possível garantir que os homens, ao somarem suas forças e liberdades, principais instrumentos de conservação do homem, não acabarão saindo prejudicados? Esse é justa-mente o problema do contrato social. A única forma dessa cessão de direitos prosperar é através da alienação total de cada um, com todos seus direitos, a toda a comunidade, dando-se cada um, por inteiro, para todos. Sendo igual para todos, não haverá interesse em fazê-la onerosa aos outros. Conforme Rousseau: “Dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém; e como não há um associado sobre o qual se adquira um direito distinto ao que este cede sobre si mesmo, se ganha o equivalente de tudo o que se parte e maior força para conservar-se da que se tem”.58 Assim, o contrato social trata-se da união

55 ROUSSEAU, Jean-Jac-ques. O Contrato Social. p. 9.

56 ROUSSEAU, Jean-Jac-ques. O Contrato Social. p. 12.

57 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Políti-ca. p. 204.

59 ROUSSEAU, Jean-Jac-ques. O Contrato Social. p. 14.

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de todos, entregando a todos seus poderes e suas liberdades, para que esse todo possa organizar-se e buscar organizar a vida de toda essa coletivida-de, instituindo-se o Estado. Destaca-se que para o pensador, em razão desse pacto, todo Estado regido por leis, qualquer que seja a forma de sua admi-nistração, é uma República.59

O ato de associação que ocorre encerra um empenho recíproco do público com os particulares; cada indivíduo, ao contratar consigo mesmo, acha-se em-penhado de dois modos diversos: como membro do soberano com os parti-culares e como membro do Estado com o soberano. Nessa natureza dúplice se dá, pois o soberano do Estado no pensamento de Rousseau, o qual personifica- -se na união do próprio povo. Essa é uma importante passagem operada pelo filósofo; Rousseau transfere o conceito de soberania, classicamente vinculado às teses absolutistas como poder dos reis, ao Povo.60Assim, ao mesmo tempo, o indivíduo relaciona-se como cidadão com o soberano enquanto também é o próprio soberano. Ao mesmo tempo, o indivíduo enquanto indivíduo cons-titui-se como cidadão, enquanto coletividade apresenta-se como o próprio soberano que se relaciona com os demais cidadãos.

A formalização de um poder soberano único constituído por todos os cidadãos opera-se com um fim específico: o bem de todos. E para que o so-berano aja sempre tendo em vista o bem de todos, deve pautar-se na vonta-de geral (volonté générale), contraposta à vontade particular das partes que compuseram o contrato social.

Por vontade geral entende-se aquela vontade que cada indivíduo possui dentro de si e que conduz ao bem comum, é uma disposição ao melhor da coletividade e, portanto, ao melhor de si mesmo. Esta pode ser contrária à vontade particular, que trata do próprio interesse do indivíduo singularmen-te. A vontade geral é importante porque será muito mais vantajoso que um indivíduo perca a realização do seu interesse do que, através do seu exercí-cio, prejudique aos interesses de toda a sociedade.

A vontade geral não pode, todavia, ser confundida com a vontade de todos, entendendo-se esta última categoria como a soma dos interesses particulares de cada um. A volonté générale constitui-se na vontade que im-pulsiona todo o grupo social avante, não somente facções ou determinados indivíduos. Essa forma de vontade permite inclusive que qualquer um que se recuse a obedecê-la seja forçado pelos demais à obediência, posto que isso não significa outra coisa senão obrigar o indivíduo a ser livre, pois a condição

59 ROUSSEAU, Jean-Jac-ques. O Contrato Social. p. 48.

60 “Mas, para isso, é pre-ciso entender que a so-berania, que faz a lei, não é externa aos indivíduos: ela é composta pelos pró-prios indivíduos e, nesse sentido, contrariamente ao que Bossuet objetava a Jurieu, esse povo de indivíduos racionais co-manda a si mesmo. Se, na concepção absolutista, o povo é governado porque há um soberano, na con-cepção rousseauniana o povo é governado porque ele mesmo é o soberano”. (JAUME, Lucien. Rousseau e a questão da soberania. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da Fi-losofia Política moderna. Tradução de: CIACCHI, Andrea; SILVA, Líssia da Cruz e; TOSI, Giuseppe. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 185.)

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com a qual se dá cada cidadão à pátria lhe assegura toda a independência pessoal. Trata-se da incursão do coletivo no individual na busca pela devida ordenação à boa conduta desse que não soube reconhecer qual a melhor atitude a ser tomada naquela ocasião.61

Sintetizando, a vontade geral difere da vontade particular de cada indi-víduo da sociedade, bem como da vontade de todos, entendendo-se esta como a soma das vontades particulares de cada um dos componentes do todo soberano, sendo o fundamento de onde partirão todas as atitudes deste último visando alcançar o bem comum.

Com o contrato há o nascimento do Estado Civil, o qual substitui na con-duta do homem o instinto pela justiça e confere às suas ações a moralidade que antes faltava. Nessa passagem o dever assume o lugar do impulso físico, o Direito passa a regular os apetites e as vontades humanas, sujeitando-os aos ditames da volonté générale. Somente desse modo possibilita-se ao homem o retorno à vida ideal que possuía quando encontrava-se no estado natural.

Por mais que no Estado o homem seja privado de muitas das vantagens concedidas pela natureza, ele ganha outras de igual importância, elevando sua alma a tal ponto que transforme o indivíduo de fato em um homem.62 Nesse momento, Rousseau divide três espécies de liberdade existentes: a liberdade natural, relacionada a um direito sem limites a tudo o que tenta e pode atingir, movida pelo espírito do homem; a liberdade civil, recebida pelo Estado Civil em conjunto da propriedade, é o exercício da liberdade limitado pela vonta-de geral. Todavia, acima dessas ergue-se a liberdade moral, que faz o homem verdadeiramente ser senhor de si, a qual diz respeito à experiência própria de cada homem, havendo nesse instante, portanto, a superação da dependência da coletividade.

Em suma, sendo desiguais em força ou talento, o pacto social torna os homens iguais por convenção e direito, garantindo assim, com base nos di-tames da vontade geral, que os melhores ou os piores dos homens possam viver bem em determinado grupo social.63

Tal como foi dito, a finalidade da vontade geral é o bem comum, e so-mente essa é que pode dirigir a força do Estado em direção a essa finali-dade. O exercício da vontade geral constitui-se em um verdadeiro exercício de soberania. Nesse sentido, a vontade geral é inalienável, bem como não pode ser representada, pois o soberano, sendo um ser coletivo, só pode ser

61 ROUSSEAU, Jean-Jac-ques. O Contrato Social. p. 25.

62 ROUSSEAU, Jean-Jac-ques. O Contrato Social. p. 26.

63 ROUSSEAU, Jean-Jac-ques. O Contrato Social. p. 30.

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representado por si mesmo. Transmite-se o poder, mas não a vontade ao governante.64 Além disso, a vontade geral não pode errar, pois esta trata-se do perfeito juízo da coletividade em busca do seu bem geral; caso haja o erro, este ocorrerá no momento em que se particularizar a vontade geral, tornando-a vontade de todos, mas não a vontade do grupo em uníssono na busca do seu benefício.

Constituído o pacto social, torna-se necessário instituir em seguida o sis-tema de leis, o qual dará movimento e vontade ao Estado recém constituído. Rousseau considera que o objeto das leis é sempre geral, pois a lei considera os súditos coletivamente e as ações como abstratas, nunca de um homem como indivíduo, nem uma ação particular. A lei pode perfeitamente esta-tuir que haverão privilégios, porém não pode concedê-los, nem nomeá-los a ninguém.

Se o soberano é toda a coletividade, outra questão a ser considerada é sobre quem será o legislador do Estado. Tendo em vista os objetivos de sua obra, Rousseau considera que o legislador deve ser um homem profunda-mente preparado, capacitado para, por intermédio do texto legal que pro-duzir, reproduzir os anseios da sociedade, baseado nos ditames da vontade geral. Para isso, além de todo preparo intelectual, deverá também conhe-cer profundamente o povo para o qual se dirigirá a legislação em questão. Contudo, não poderá ser ele próprio quem as executará, evitando-se, assim, abusos e a concentração de poder.

Pelo exposto constata-se que Rousseau é o pensador que formaliza a pas-sagem da visão da soberania, antes vista como poder emanado pelo monar-ca, segundo a fundamentação do absolutismo monárquico, entregando-a ao próprio povo, constituído pela massa de sujeitos que possuem direitos e deveres no Estado formado pelo pacto social. Esse ato de Rousseau foi ado-tado pela maioria dos Estados que vieram a constituir-se posteriormente ao pensador, tendo-se como exemplo o próprio Estado brasileiro, que no Pará-grafo único do artigo 1.º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, declara: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”65.

64 “Prodigiosa (mas in-dispensável) exceção do pensamento rousseaunia-no ao seu princípio mais querido, a igualdade de todos os membros do corpo social: haverá um homem, ou um grupo, o princípio, que poderá ordenar sem contrapar-tida [...] Sem dúvida, em Rousseau, o príncipe só pode ordenar aquilo que a lei havia anteriormente prescrito: mesmo não tendo contrapartida ‘a jusante’, a lei permanece boa, pelo menos ‘a mon-tante’, enquanto expres-são da vontade geral”. (JAUME, Lucien. Rousseau e a questão da soberania. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da Fi-losofia Política moderna. p. 189.)

65 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dispo-nível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui-çao.htm>. Acesso em 29 mar 2010.

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Contratualismo

Doutrina que reconhece como origem ou fundamento do Estado (ou, em geral, da comunidade civil) uma convenção ou estipulação (contrato) entre seus membros. Essa doutrina é bastante antiga, e, muito provavelmente, os seus primeiros defensores foram os sofistas. Aristóteles atribui a Licofron (dis-cípulo de Górgias) a doutrina de que a lei é pura convenção (syntheke) e ga-rantia dos direitos mútuos, ao que Aristóteles opõe que, nesse caso, ela não seria capaz de tornar bons e justos os cidadãos. Essa doutrina foi retomada por Epicuro, para quem o Estado e a lei são resultado de um contrato que tem como único objetivo facilitar as relações entre os homens. Tudo o que, na con-venção da lei, mostra ser vantajoso para as necessidades criadas pelas relações recíprocas é justo por sua natureza, mesmo que não seja sempre o mesmo. No caso de se fazer uma lei que demonstre não corresponder às necessidades das relações recíprocas, então essa lei não é justa. Carnéades emitiu concepção semelhante no famoso discurso sobre a Justiça que proferiu em Roma. Por que razão teriam sido constituídos tantos e diferentes direitos segundo cada povo, senão pelo fato de que cada nação sanciona para si o que julga vanta-joso para si?

Eclipsado na Idade Média pela doutrina da origem divina do Estado e, em geral, pela comunidade civil, o contratualismo ressurge na Idade Moderna e, com o jusnaturalismo, transforma-se em poderoso instrumento de luta pela reivindicação dos direitos humanos. As Vindiciae contra tyranos, publicadas pelos calvinistas em 1579, em Genebra, retomam a doutrina do contrato para reivindicar o direito do povo a rebelar-se contra o rei sempre que ele descu-rar dos compromissos do contrato original. No mesmo espírito, João Altúsio generalizou a doutrina do contrato, utilizando-a para explicar todas as formas de associação humana. O contrato não é só contrato de governo que rege as relações entre o governante e seu povo, mas é também contrato social no sentido mais amplo, como acordo tácito que fundamenta toda comunidade (consociatio) e que leva os indivíduos a conviver, isto é, a participar dos bens, dos serviços e das leis vigentes na comunidade. Hobbes e Espinoza puseram

Ampliando seus conhecimentos

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a doutrina do contrato a serviço da defesa do poder absoluto. Assim Hobbes enunciava a fórmula básica do contrato: “Transmito meu direito de governar- -me a este homem ou a esta assembleia, contanto que tu cedas o teu direi-to da mesma maneira”. Essa, diz Hobbes, é “a origem do grande Leviatã ou, com mais respeito, do Deus mortal a quem, depois de Deus imortal, devemos nossa paz e defesa, pois por essa autoridade conferida pelos indivíduos que o compõem, o Estado tem tanta força e poder que pode disciplinar à vontade todos para a conquista da paz interna e para a ajuda mútua contra inimigos externos. Por sua vez, Espinoza julga que o direito do Estado constituído pelo consenso comum só é limitado por sua força, que é o poder da multidão.

Mais frequentemente, porém, o contratualismo é empregado para de-monstrar a tese de que o poder político é necessariamente limitado. Nesse sentido foi entendido por Grócio, Pufendorf e especialmente por Locke, que usou para defender a revolução liberal inglesa de 1688. Dizia Pufendorf: “Se considerarmos uma multidão de indivíduos que gozam de liberdade e de igualdade natural, e querem proceder à instituição de um Estado, é preciso antes de mais nada que esses futuros cidadãos façam um pacto no qual mani-festem a vontade de unir-se em associação perpétua e de prover, com delibe-ração e ordens comuns, sua própria salvação e segurança. Esse pacto pode ser simples ou condicionado: tem-se o primeiro quando alguém se obriga a par-ticipar da associação, seja qual for a forma de governo aprovada pela maioria; o segundo, quando se acrescenta a condição de que a forma de governo será aprovada por ele mesmo”. Por sua vez, Locke fala do contrato como acordo entre os homens para unirem-se numa sociedade política; por isso, define-o como o pacto que existe e deve necessariamente existir entre indivíduos que se associam ou fundam um Estado. Criticado por Hume, o Contratualismo en-controu em Rousseau uma interpretação que, substancialmente, equivaleu a sua negação. De fato o contratualismo pressupõe que os indivíduos como tais tenham “direitos naturais” a que renunciam, para adquirir outros, com o contrato social. Rousseau considera que os indivíduos como tais são absoluta-mente desprovidos de direitos e que só os têm como cidadãos de um Estado. Os homens, diz Rousseau, tornam-se iguais por convenção e direito legal; por isso, o direito de cada indivíduo ao seu estado particular está sempre subordi-nado ao direito supremo da comunidade. Para Rousseau, o contrato originário afigurava-se mais como um meio de legitimar o vínculo social do que como realidade; a mesma coisa foi nitidamente afirmada por Kant: “O ato pelo qual o próprio povo se constitui em Estado, ou melhor, a simples ideia desse ato, que

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por si só permite conceber segundo sua legitimidade, é o contrato originário segundo o qual todos (ommes et singuli) no povo renunciam a liberdade ex-terna para retomá-la imediatamente como membros de um corpo comum”.

Um dos elementos essenciais da estrutura da doutrina contratualista é o estado de natureza, que seria justamente aquela condição da qual o homem teria saído, ao associar-se, mediante um pacto, com os outros homens. É difícil dizer em que consiste, para os contratualistas, esse estado de natureza, em virtude do escasso interesse por eles mostrado (excetuado Rousseau) quanto ao conhecimento das reais condições do homem em suas origens; tal situa-ção é apresentada quase sempre apenas como hipótese lógica negativa sobre como seria o homem fora do contexto social e político, para poder assentar as premissas do fundamento racional do poder.

Daí, por um lado, a hesitação dos diversos contratualistas em definir a que estádio da evolução da humanidade corresponde o estado de natureza, dado que ele é definido apenas negativamente (define-se o que falta ao estado de natureza em relação ao estado de civilização), e, por outro, a contraditória ava-liação dessa situação humana, que para Hobbes e Espinoza é de guerra, para outros (Pufendorf, Locke) é de paz, se bem que precária, e, para Rousseau, de felicidade.

Contudo, para situar convenientemente a problemática diversamente aprofundada pelos contratualistas, é mister inserir suas observações no debate mais amplo do problema antropológico das origens do homem. Sempre houve, desde a época grega até os nossos dias, diversidade de opiniões entre os pensadores, quando se tratava de ponderar o caráter positivo ou negativo do abandono da antiga condição natural: para uns, ele representa uma queda, um afastamento da perfeição original; para outros, um progresso, a vitória do Homo faber ou do Homo sapiens sobre o homem animal.

Em ambas as interpretações, a família monogâmica, a propriedade priva-da e a repressão do Estado aparecem contextualmente, isto é, não há aí dis-tinção entre poder social (família e propriedade) e poder político. Nisso não há nenhum desvio dos motivos patentes nos nostálgicos da idade de ouro, a idade, segundo eles, da comunidade de bens e de mulheres; só que, nesse caso, tais motivos são revividos olhando para o futuro, e os conceitos de re-volução e de libertação pareciam satisfazer a uma função análoga àquela que teve o contrato em épocas precedentes.

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Os contratualistas, ao contrário, querendo legitimar o Estado de socieda-de (a civilisation) ou modificá-lo com base nos princípios racionais em que o poder não assenta no consenso, opõem-se necessariamente a essa corrente de pensamento e veem no contrato a única forma de progresso; o próprio Rousseau, inimigo das letras e das artes, foi obrigado a reconhecer no pacto social um fato deontologicamente necessário a partir do momento em que “tal estado primitivo já não pode subsistir e o gênero humano pereceria, se não modificasse as condições da sua existência” (Du contrat social, I, 6); é que, após ter surgido a linguagem, a família e a propriedade privada, só é possível o estado de guerra ou o despotismo, expressão última da desigualdade, que iguala, contudo, os súditos sob a vontade do Senhor.

Todos os contratualistas veem assim no contrato um instrumento de eman-cipação do homem, emancipação política apenas, que deixa inalterada e até garante a estrutura social, baseada precisamente na família e na propriedade privada, mantendo uma clara distinção entre o poder político e o poder social, entre o governo e a sociedade civil.

As posturas contratualistas fornecem elementos mais profundos acerca da compreensão das exigências de Justiça. De pronto, percebe-se que a opção teórica pelo contratualismo é justificada com base na suposta facilidade que essa postura tem ao explicar e solver questões de Justiça com base na ideia de que a sociedade em que vivemos seja por nós mesmos construída e que, por essa mesma razão, seja de responsabilidade exclusiva dos indivíduos – partí-cipes dessa atividade constitutiva – a estruturação dos princípios que deverão ser aplicados na organização dessa mesma sociedade.

O mérito diferenciado do contratualismo finca-se, pois, na possibilidade dessa teoria fornecer um processo mental que fabrique um resultado final supostamente objetivo que, uma vez bem executado, indicará o modelo po-lítico correto a ser adotado por qualquer sociedade que deseja resolver ade-quadamente seus problemas de Justiça.

Dito de outro modo, a necessidade de adoção de um ponto inicial contra-tualista justifica-se pela sua disponibilização de uma espécie procedimento no qual não se vislumbram, a partir da sua estruturação básica, vantagens individuais prévias e que, por consequência, permitirão a extração de princí-pios que protegerão e legitimarão os interesses de todos os partícipes desse procedimento. Tal ponto de partida procedimental melhor ilustra o modo

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como compreendemos a configuração básica da sociedade e justificamos aos demais cidadãos respostas a problemas de Justiça, razão pela qual não se po-deria, razoavelmente, abdicar de tal ponto de partida. Seria, pois, segundo a autora, apenas por meio da ideia de um contrato que poderíamos atribuir le-gitimidade democrática às respostas específicas fornecidas por meio da refle-xão filosófica que se desenvolve, o que em si já poderia ser vislumbrado como um sério problema no que diz respeito ao conceito de legitimidade política sendo adotado e no que diz respeito à própria compreensão dos objetivos centrais a serem almejados pela Filosofia Política.

Hoje, dificilmente a ideia fundamental do contratualismo, na forma ela-borada pelos escritores do séc. XVIII, pode ser considerada um instrumento válido para compreender o fundamento do Estado e, em geral, da comunida-de civil. Contudo, entre os séculos XVI e XVII, a ideia contratualista teve notável força libertadora em relação aos costumes e tradições políticas. Hoje, com o uso que as ciências e a Filosofia fazem de conceitos como convenção, acordo, compromisso, a noção de contrato talvez pudesse ser retomada para análise da estrutura das comunidades humanas, com base na noção da reciprocidade de compromissos e do nosso caráter condicional dos acordos dos quais se originam direitos e deveres.

Atividades de aplicação1. Thomas Hobbes propõe que um dos principais motivos para se viver

em sociedade é a garantia da segurança, dada a guerra de todos con-tra todos existente no estado de natureza. Acerca desse argumento, considerando o Estado contemporâneo, qual a importância da tutela do Estado para a proteção da segurança do indivíduo?

2. Para John Locke, ao contrário de Hobbes, os indivíduos não vivem em uma guerra entre si, contudo, o convívio em sociedade lhe é mais vantajoso, e a partir deste, e da fundação do Estado, torna-se possível proteger os bens jurídicos mais importantes, a vida, a liberdade e a propriedade. Tal espécie de proteção também é objeto de proteção pelos Estados contemporâneos?

3. Quais as implicações da diferenciação entre liberdade política e liber-dade filosófica, tal como o fez Montesquieu na realidade?

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4. Característica essencial no Estado construído pelo Contrato Social de Rousseau é a concepção de volonté générale, da vontade geral que conduz esse mesmo Estado. Conceitue vontade geral, com base no pensamento do filósofo, bem como considere sua relação com a atua-lidade.

Gabarito1. O Estado, até a atualidade, no mínimo no plano das leis existentes,

toma para si o direito de garantir a segurança dos indivíduos que vi-vem dentro dele, bem como de punir os transgressores dos ordena-mentos sociais. Surge, pois, a problemática de como o Estado tornará efetiva a garantia da segurança de seu povo.

2. Sim, inclusive o próprio Estado brasileiro, nos primeiros artigos da Constituição, faz constar a importância da proteção à vida, à liberdade e à igualdade, bem como à propriedade, mesmo que essa seja passí-vel, na atualidade, de limitações.

3. O Estado propõe-se a garantir a liberdade do indivíduo, impondo li-mites ao seu agir, na busca da regulação do convívio social. Contudo, o indivíduo somente poderá ser considerado livre quando possuir a capacidade de discernimento para se identificar da maneira mais ade-quada qual é a atitude cabível no momento.

4. Vontade geral pode ser entendida como a vontade de todo o corpo social tendo em vista o bem de todos; trata-se da escolha que bene-ficiará toda a sociedade, sendo, portanto, a mais adequada a ser se-guida. Na atualidade, consagrado o sistema de eleições democráticas, constata-se que, ao invés de se estimular um exercício de vontade geral através dos sufrágios, tem-se ocorrido na realidade o triunfo da vontade de todos, ou seja, da soma das vontades particulares de cada um, visando a interesses de grupos, mas não de toda a sociedade.

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Liberdade interna e externa em Kant

IntroduçãoImmanuel Kant nasceu em 1724, em Königsberg, Prússia (hoje Alema-

nha), cidade em que habitou por toda a sua vida. A primeira fase de sua vida, que vai da graduação em Königsberg à sua estreia como professor na mesma universidade, é marcada pelos estudos sobre metafísica da natureza, sustentadas no racionalismo moderno, sobretudo em Descartes e Leibniz, e na revolução científica iniciada por Nicolau Copérnico. É nesse período que alcança sucesso com suas primeiras teses, como “A verdadeira avaliação das forças vivas” (1747), e a dissertação “De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis” (Dissertação sobre a forma e os princípios do mundo sen-sível e do mundo inteligível) (1770). Depois, o filósofo atravessa um período de 10 anos sem novas publicações, provavelmente devido às suas leituras de Hume, que provocariam-no a modificar o método de raciocínio em suas obras, adotando a postura crítica. O filósofo David Hume foi fundamental para despertar Kant de seu sono dogmático, pois a crítica do pensador es-cocês ao sistema metafísico obrigou o alemão a refundar suas concepções. Hume teria demonstrado, a partir do empirismo, a desnecessidade de causas metafísicas para explicar os fenômenos, o que inquietou demasiadamente Kant, de formação baseada na leitura dos filósofos clássicos, e, portanto, sus-tentado em princípios metafísicos. Ao ler Hume, Kant passara a duvidar da capacidade do homem de conhecer além do sensível, e isso o motivou a seguir em novos estudos e reflexões, que resultariam em sua fase crítica.

Do racionalismo moderno será influenciado pelas ideias inatas de Descar-tes, que em Kant repercutirá nos postulados a priori da razão pura. Pela razão pura o homem é capaz de conhecer sem a necessidade de algo empírico, de um conhecimento advindo do externo.

Da revolução científica receberá a noção empiria, isto é, para o filósofo, com as revoluções científicas modernas, a Física e a Matemática se torna-ram solos seguros para o conhecimento, ao contrário do que ainda ocorria na metafísica. Quando o homem conhece, não o faz somente passivamente,

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Liberdade interna e externa em Kant

mas também construtivamente, pois conhece algo que ele mesmo pôs aos dados fornecidos pela faculdade da sensibilidade.

Também contribuiu com Kant a leitura do ceticista e empirista britânico David Hume, que será o impulso que levará o filósofo prussiano ao ápice de seu pensamento, a fase crítica. A afirmação de Hume de que aquilo que entendemos como fenômeno de causa e efeito no fundo não passaria de uma sensação ou imaginação nossa, provocou em Kant as dúvidas que o conduziram a reformular e conceber uma nova sistemática filosófica. Ou Kant refutaria também a metafísica, e com isso também as ideias a priori, ou teria que elaborar uma nova argumentação a favor da metafísica. O re-sultado dessas investigações intelectuais serão suas grandes obras: Crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788), Crítica da Faculdade do Juízo (1790), Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e a Metafísica dos Costumes (1797). A moral e o Direito, como veremos, é também resultado desse esforço. Outra influência forte de Hume em Kant percebe-se em seu viés ceticista, isto é, a postura de duvidar e necessitar comprovar cada argu-mento como realmente sendo capaz de ser demonstrado, o que se faz tanto pela empiria como pelo raciocínio.

Por fim, o Iluminismo francês exercerá grande influência em Kant na perspec-tiva da necessidade de autonomia, de pensar e agir por si mesmo, de formular leis e obedecê-las mediante a própria vontade. Como se verá mais adiante, a au-tonomia e a liberdade são conceitos essenciais para a filosofia crítica kantiana.

A crítica kantiana – juízos a priori e a posteriori, analíticos e sintéticos

Kant inicia a fase que a história da Filosofia consagrou como idealismo alemão, que se trata de um avanço nas análises relacionadas à metafísica, à busca pelas ideias transcendentais, das grandes investigações acerca de conceitos como espaço, tempo, alma, Deus. Contudo, esse retorno somente foi possível porque antes o pensador alemão teve que recorrer à utilização de seu criticismo para fundamentar a metafísica. Por sua vez, a crítica kantia-na é a fase em que o filósofo passou a estudar os limites do conhecimento humano, esforço que levaria a refletir tanto acerca dos raciocínios como da utilização da empiria. Nessa fase Kant passa a buscar os fundamentos últi-mos para as grandes questões da existência, tais como o conhecimento, a moral, a estética e a Justiça.

Liberdade interna e externa em Kant

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O idealismo kantiano trabalha na concepção de que o conhecer é dar forma a uma matéria dada, no sentido de que a matéria é inerente ao próprio objeto, e forma é a participação do sujeito nesse processo de conhecer. Para o conhecimento ser válido, a forma que o sujeito atribui ao objeto deverá ser encontrada em todos os objetos e por todos os sujeitos.1

Nisso alcançamos a primeira distinção fundamental: conhecimentos a priori e a posteriori. Os primeiros são aqueles que estão conforme às formas dadas pela mente do sujeito; já os a posteriori relacionam-se à empiria, ao conhecimento sensível. O problema é que o sensível é contingente, ou seja, podemos saber que algo é desse modo, mas não que ele não possa ser de outro modo. Dessa forma, é necessário que a razão revele seus conhecimen-tos a priori, porque somente estes abarcam os universais, e estão livres do contingencial. Um exemplo que afirma essa necessidade são os conceitos de espaço e tempo, pois é impensável um objeto sensível sem essas condições, de forma que mesmo os objetos sensíveis possuem antes algo a priori.

O raciocínio kantiano prossegue, distinguindo agora os juízos analíticos dos sintéticos.

O juízo analítico é o que se limita a explanar um conceito, analisar-lhe o conteúdo, sem fazer apelo a qualquer elemento novo. O predicado, nesse caso, é extraído do sujeito por simples análise. [...] O juízo sintético, ao contrário, é um juízo cujo predicado acrescenta algo sobre o conceito do sujeito. [...] Todo juízo de experiência é sintético, pois ele nos ensina a acrescentar atributos aos nossos conceitos. Todos os juízos analíticos, pelo contrário, são a priori, visto que independem da experiência.2

Em linhas gerais, então, poderíamos diferenciar os juízos analíticos como aqueles que se limitam a analisar o objeto, sem nada acrescentá-lo, o máximo que faço é decompor o conceito e trabalhar as ideias que já estão pensadas nele. Já os juízos sintéticos baseiam-se na experiência, tal como no próprio exemplo trazido por Kant, da afirmação “todos os corpos são pesados”, nesse caso estaríamos acrescentando algo do sujeito ao objeto, pois não há como se afirmar isso a não ser pela via da experiência. Essa distinção também re-sulta que os juízos analíticos são a priori, porque não dependem da experiên- cia, enquanto os sintéticos são a posteriori. Os juízos analíticos alcançam o universal, mas os juízos sintéticos permitem a ampliação do conhecimento, pela inclusão de dados novos. Vejamos como o filósofo auxilia na distinção utilizando-se ainda de exemplos:

Juízos da experiência como tais são todos sintéticos. Com efeito, seria absurdo fundar um juízo analítico sobre a experiência, pois para formar o juízo de modo algum preciso sair do meu conceito nem, portanto, de testemunho algum da experiência. Que um corpo seja extenso, é uma proposição certa a priori e não um juízo de experiência. Pois antes

1 MACEDO JÚNIOR, Ronal-do Porto. Kant e a crítica da razão: moral e direito. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Curso de Filosofia Política: do Nascimento da Filosofia a Kant. São Paulo: Atlas, 2008. p. 433.

2 MACEDO JÚNIOR, Ronal-do Porto. Kant e a crítica da razão: moral e direito In: MACEDO JÚNIOR, Ro-naldo Porto. Curso de Fi-losofia Política: do Nasci-mento da Filosofia a Kant. p. 434-435.

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Liberdade interna e externa em Kant

de recorrer à experiência já possuo no conceito todas as condições para o meu juízo, conceito do qual posso extrair o predicado segundo o princípio de contradição e com isso tornar-se ao mesmo tempo consciente da necessidade do juízo, coisa que a experiência nunca me ensinaria. Do contrário, embora já não inclua no conceito de um corpo em geral o predicado peso, esse conceito designa um objeto da experiência mediante uma das partes da mesma experiência como pertencentes ao primeiro conceito. Posso conhecer antes analiticamente o conceito de corpo pelas características da extensão, da impenetrabilidade, da forma etc., todas pensadas nesse conceito.3

Contudo, o pensamento kantiano encontrou ainda um terceiro tipo de juízo, que combina os dois anteriores nos juízos sintéticos a priori. É um juízo universal como o analítico e que amplia conhecimentos, como os sintéticos. Esse juízo Kant aprendeu com a revolução científica copernicana, e extraiu da Física e da Matemática. Kant dá o exemplo da Geometria, na qual os juízos sintéticos a priori permitem afirmar que a linha reta é a mais curta entre dois pontos. Esse juízo é sintético a priori, porque o conceito de linha não está necessariamente ligado às ideias de curta ou longa, logo, saber que ela é a mais curta entre dois pontos é mérito da experiência. Vejamos como Kant sustenta que também a Física, a ciência da natureza, fundamenta-se muitas vezes em juízos sintéticos a priori.

A ciência da natureza (physica) contém em si juízos sintéticos a priori como princípios. A título de exemplo, quero mencionar apenas algumas proposições tais como a seguinte: em todas as mudanças do mundo corpóreo a quantidade da matéria permanece imutável, ou, em toda a comunicação de movimento ação e reação têm que ser sempre iguais entre si. Em ambas é clara não apenas a necessidade, por conseguinte a sua origem a priori, mas também o fato de serem proposições sintéticas. Pois no conceito de matéria penso não a permanência, mas somente sua presença no espaço pelo preenchimento do mesmo. Portanto, vou efetivamente além do conceito de matéria para pensar acrescido a priori ao mesmo algo que não pensara nele. A proposição não é portanto analítica, mas sintética e não obstante pensada a priori, e assim nas restantes proposições da parte pura da ciência da natureza.4

Depois de comprovar a utilização dos juízos sintéticos a priori nas ciências naturais, restava, para Kant, saber se o mesmo raciocínio poderia ser aplica-do à metafísica. Para Kant, o conhecer tende ao absoluto, às ideias que são causas e substâncias de todas as coisas, como Deus, alma, mundo. O pro-blema é que o homem pode somente pensá-las, jamais conhecê-las apro-priadamente, porque este necessita também do sensível. Por isso os objetos são fenômenos e noumenos, sendo o primeiro as coisas tais como as conhe-cemos, e o segundo as coisas em si, que independem do nosso conhecer. Dessa forma, o homem pode pensar Deus e o mundo como um todo, mas não conhecê-los, porque isso implica também a necessidade de experiência. Os juízos sintéticos a priori podem ser entendidos como intuições, intuições que ligam conceitos, ampliando o conhecimento, mas partem de ambas as necessidades, os juízos analíticos e os sintéticos. Conclui-se que Kant não

3 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradu-ção de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 58-59.

4 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. p. 61-62.

Liberdade interna e externa em Kant

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aceita a possibilidade de juízos sintéticos a priori na metafísica, mas aceita que a metafísica é uma tendência, uma necessidade humana.5

Em seguida, ver-se-á a metafísica kantiana sendo aplicada à moral e ao Direito na Metafísica dos Costumes, com a formulação de leis a priori para a orientação do espírito.

O pensamento político e jurídico de KantKant, tal como seus predecessores já estudados no capítulo anterior, de-

dicado aos filósofos contratualistas, também entende o início da sociedade civil por meio da realização de um contrato civil. Contudo, o filósofo prus-siano opera uma passagem fundamental que o distancia dos anteriores: a postulação metafísica como condição primordial para a construção do Di-reito, e mesmo o direito positivo. É na sua obra Metafísica dos Costumes que buscamos suas maiores contribuições para a Filosofia do Direito.

A Metafísica dos Costumes dá prosseguimento às discussões já iniciadas pela Fundamentação da Metafísica dos Costumes e pela Crítica da Razão Prá-tica. Para Kant, metafísica é a sistemática, é o conhecimento filosófico deri-vado da razão pura, e que pode ser encadeado sistematicamente. Uma das possibilidades de tais encadeamentos se verifica no uso da razão prática, que verifica a metafísica dos costumes. Essa delimitação foi operada por Kant na Crítica da Razão Pura, quando afirma que a metafísica se divide nos usos especulativo e prático da razão pura, de forma que surgem a metafísica da natureza e a metafísica dos costumes, respectivamente. Nesta parte do trabalho, o essencial será apresentar algumas questões dessa segunda me-tafísica que

contém os princípios que determinam a priori e tornam necessários o fazer e o deixar de fazer. Ora, a moralidade é a única conformidade das ações a leis que podem ser derivadas, de um modo completamente a priori, de princípios. Em decorrência disso, a metafísica dos costumes é propriamente a moral pura, a qual não se funda sobre qualquer Antropologia (quaisquer condições empíricas).6

A moral kantiana é pura, isto é, concebe-se tão somente sobre princípios a priori, derivados da razão pura. É da racionalidade que emana a moral, e não de aspectos empíricos ou históricos. Uma moral empírica, por estar ex-posta a variações, jamais encontraria fundamentos em princípios a priori. Por isso Kant articula a moral, e depois também o Direito, em fundamentos metafísicos. Também nessa citação encontramos uma ideia que se tornará

5 Sobre a necessidade natural da metafísica para o homem, citemos o pró-prio Kant: “Não obstante, essa espécie de conhe-cimento também pode ser considerada dada em certo sentido, e embora não como ciência, a Meta-física é contudo real como disposição natural (me-taphysica naturalis). Com efeito, sem ser movida pela mera vaidade da eru-dição, mas impelida pela sua própria necessidade, a razão humana progride irresistivelmente até per-guntas que não podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiên-cia nem por princípios daí tomados emprestados, e assim alguma metafísica sempre existiu e conti-nuará a existir realmente em todos os homens, tão logo a razão se estenda neles até a especulação.“ (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. p. 63.)

6 KANT. Immanuel. Crítica da Razão Pura. p. 497.

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Liberdade interna e externa em Kant

basilar na metafísica dos costumes: o fazer e o deixar de fazer. Essa dicotomia identifica a liberdade de agir sem ser impedido por outros, o que corrobora a concepção kantiana de Direito como liberdade. Ao coagir outros a deixarem de fazer algo, o Direito também privilegia a minha liberdade de agir, evitan-do impedimentos alheios. Prosseguindo na análise dos termos metafísica e costumes, observa-se o significado do segundo.

Costume, por sua vez, deriva do termo alemão Sitten, que corresponde ao vocábulo latino mores, e ao grego ethos, todos significando costume. O uso grego, como já explicado no primeiro capítulo deste livro, reúne em sua acepção tanto Ética como moral, demonstrando que para aquele povo não havia essa distinção que é própria do mundo moderno. Portanto, costumes, em geral, retratam a necessidade de se sistematizar o agir humano, estabele-cendo regras para suas condutas.

Retomando a divisão entre metafísica da natureza e metafísica dos cos-tumes, há aqui uma diferenciação fundamental. A metafísica dos costumes rege-se pela razão prática, e tem em vista ações práticas, enquanto que a metafísica da natureza rege-se pela razão pura, e tem em vista questões teó-ricas, o conhecimento em si. A metafísica dos costumes permite a existência dos imperativos, que impõem uma obrigação de agir de determinado modo, um dever, uma ação que busca determinado fim. Por outro lado, a metafísica da natureza não se baseia no dever-ser (Sollen), mas no ser, não se preocupa com o que as coisas devem ser, ou como devem agir, mas como elas são, no que é. A metafísica dos costumes direciona-se ao agir, enquanto a metafísica da natureza ao ser.

Antes de se adentrar aos imperativos categóricos, é importante ressaltar que a metafísica dos costumes possui como fim a liberdade, que para Kant viria justamente na formulação de leis universais e racionais.7 Interessa acrescentar, ainda, que a Metafísica dos Costumes divide-se em duas partes, que buscam delimitar os “Princípios metafísicos da doutrina do Direito” e os “Princípios me-tafísicos da doutrina da virtude”. A primeira parte é mais voltada aos juristas, pois analisa os aspectos formais do livre-arbítrio a serem cerceados pelas leis da liberdade nas relações externas; já a segunda trata mais especificamente da Ética, que possui princípios metafísicos próprios, além de conter a finalidade da razão prática. Resulta disso que na legislação jurídica a obrigatoriedade em relação à lei é uma coerção externa, enquanto que na Ética a coerção é interna, pois está ligada a princípios metafísicos que o indivíduo sabe que deve seguir, e não necessariamente em normas positivadas em códigos.

7 Tradução livre: “Qual-quer ação é conforme ao direito quando por meio dessa, ou segundo a sua máxima, a liberdade do arbítrio de todos pode co-existir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal.” (KANT, Immanuel. La Metafisica dei Costumi. Tradução de: VIDARI, Giovanni. Roma- -Bari: Laterza, 2004. p. 35.)

Liberdade interna e externa em Kant

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Por fim, a distinção entre doutrina do Direito e doutrina da virtude, ou entre Direito e Ética, na Metafísica dos Costumes, segue a mesma lógica da divisão da metafísica da natureza, que possui uma parte transcendental, que trata das leis que abarcam os objetos em geral, sem se determinar a esse ou aquele, e de uma outra parte, que investiga a natureza particular desse ou daquele objeto. A primeira possui postulados metafísicos, enquanto que a segunda se situa no plano empírico.8

A metafísica da natureza procura demonstrar que existem pressupostos a priori que devem ser seguidos pela pesquisa científica empírica. De forma aná-loga, a metafísica dos costumes possui como objetivo demonstrar como o agir humano possui regras a priori que são inclusive anteriores às leis jurídicas.9

Entretanto, embora haja essa aproximação, em outro aspecto as duas metafísicas se distanciam. A metafísica da natureza está no plano do ser, enquanto que a metafísica dos costumes situa-se no plano do dever-ser (Sollen). Essa diferenciação torna-se mais evidente com a exposição sobre os imperativos categóricos, delimitados por Kant na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Os imperativos categóricos na metafísica dos costumes

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant afirma que ali busca os princípios supremos da moralidade, que se fundamentam essencialmente na ideia de boa vontade, o único bem no mundo que é bom em si mesmo, livre de qualquer contingência. “Nem neste mundo nem fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma só coisa: uma boa vontade”.10 E a boa vontade seria justamente o agir pelo dever, não o agir conforme o dever, mas tão somente pelo dever.11 A distinção é im-portante aqui: quando agimos conforme o dever sempre temos uma finali-dade em vista, ou seja, qualquer ação boa, quando praticada por interesses, desvirtua-se do dever. Mesmo a caridade, quando tem interesse, seja ele qual for, reputação, vaidade, carência, entre outras possibilidades, cria uma finalida-de na ação, retirando dela toda a pureza. Isso é agir conforme o dever. O agir pelo dever é o agir simplesmente pela razão, sem qualquer interesse ou fina-lidade nela; eu faço isso porque a razão me impera, e não por qualquer outra coisa.12 É um agir prático. Coloco-me acima das simples opiniões e preferências contingenciais para agir pela razão. Nisso consiste a pureza da intenção, o agir

8 LOPARIC, Zeljko. As duas metafísicas de Kant. In: OLIVEIRA, Nythamar Fer-nandes; SOUSA, Draiton Gonzaga de (Orgs.). Justi-ça e Política: homenagem a Ottfried Höffe. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 309-311. O autor ainda ex-plica que a prima acepção da metafísica da natureza se relaciona com a ontolo-gia geral, enquanto que a segunda já está no âmbito da Fisiologia.

9 Com tais princípios a priori, Zeljko afirma que Kant busca resolver também de forma a priori todos os problemas que envolvem o uso externo da nossa liberdade. Tal si-tuação não teria como fim apenas as relações entre os homens, mas entre os próprios Estados. “O fim último visado por esse tipo de legislação é a realização da paz perpétua entre estados nacionais, gover-nados, internamente, por constituições maximamen-te conforme às exigências do direito natural e, ex-ternamente, pelas regras, também racionais, de uma confederação mundial – um estado das coisas hu-manas que é, ao mesmo tempo, o elemento central do fim último da história do gênero humano”. (LO-PARIC, Zeljko. As duas me-tafísicas de Kant. In: OLIVEI-RA, Nythamar Fernandes; SOUSA, Draiton Gonzaga de (Orgs.). Justiça e Políti-ca: homenagem a Ottfried Höffe. p. 314-315.)

10 KANT, Immanuel. Fun-damentação da Metafísi-ca dos Costumes e outros Escritos. Tradução de Leo-poldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2006. p 21.

11 “A boa vontade não é boa pelo que promove ou realiza, pela aptidão para al-cançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma. E considerada em si mesma, deve ser ava-liada em grau muito mais elevado do que tudo o que por meio dela puder ser alcançado em proveito de qualquer inclinação ou, se quiser, da soma de todas as inclinações”. (KANT, Imma-nuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros Escritos. p. 22.)

12 KANT, Immanuel. Fundamentação da Me-tafísica dos Costumes e outros Escritos. p. 25-26.

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prescindido de qualquer finalidade. Por isso o dever seria a necessidade de se cumprir uma ação por respeito à lei.

Disso decorre também que deve-se obedecer a lei não por seu conteú-do, mas simplesmente pelo dever de obedecer. A moral kantiana, portanto, assenta-se no modo de como as ações devem ser e não naquilo que as coisas são. Por isso também extrai sua moral da metafísica de ideias a priori capta-das somente pela razão, e não pela experiência.

Como se vê, a base da razão prática kantiana é a vontade, porque somen-te ela pode condicionar uma ação a uma lei. Todas as coisas são regidas por leis, quando observamos as leis físicas e químicas, por exemplo. A vontade, portanto, está relacionada diretamente à questão das regras que a condi-cionam a agir de determinado modo. Sendo a vontade uma razão prática, é na razão que deverá encontrar suas regras,13 que para Kant são justamente os imperativos, que servem de leis, ou princípios racionais, a todo agir que tem em vista um agir universal. Kant distingue dois tipos de imperativos: o hipotético e o categórico.

Os imperativos hipotéticos são aqueles que buscam algum fim determi-nado, como alcançar um certo resultado, ou mesmo alcançar bens maiores, como a felicidade. Dessa forma, os imperativos hipotéticos estão sempre condicionados, estão sempre ligados a um determinado fim.

Bastante diferentes são os imperativos categóricos, que afirmam que al-gumas ações são necessárias em si mesmas, livres de qualquer condiciona-mento. Não se persegue qualquer fim nos imperativos categóricos, mas por si mesmo. Os imperativos categóricos não nos apresentam um fim exterior, um resultado, mas somente o agir pelo dever-ser, que é exatamente o agir conforme uma lei geral.

Importante notar aqui que os imperativos hipotéticos são juízos analíti-cos, porque decompõem o fim em vários meios. Ou seja, eu quero deter-minado resultado, determinado fim, mas para isso preciso fazer tais coisas, praticar tais atos, realizar tais ações.

Por outro lado, os imperativos categóricos não estão ligados a qualquer fim, por isso não permitem a decomposição em partes menores, e também por isso devem ser entendidos como juízos sintéticos a priori. Quando temos um imperativo categórico, é possível de imediato conhecer o seu conteúdo, porque ele é livre, por ter o fim em si mesmo. Essa imediatez funciona como a intuição dos juízos sintéticos a priori já discutidos na Crítica da Razão Pura.

13 “Cada coisa na natureza atua segundo certas leis. Só um ser racional possui a capacidade de agir se-gundo a representação das leis, isto é, por prin-cípios, ou, só ele possui uma vontade. Como para derivar as ações das leis se exige a razão, a vontade outra coisa não é senão a razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, então as ações de tal ser, que são conhe-cidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessá-rias, ou seja, a vontade é a faculdade de não escolher nada mais que a razão, in-dependentemente da in-clinação: conhece-a como praticamente necessária, quer dizer, como algo bom”. (KANT, Immanuel. Fundamentação da Me-tafísica dos Costumes e outros Escritos. p. 43).

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O conteúdo dos imperativos categóricos é a universalidade e a necessida-de de se obedecer as leis em geral, a tal ponto que ele pode ser formulado como o “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”14. Uma formulação semelhante do mesmo enuncia-do resultará no princípio da autonomia da vontade: “age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”15. Em outras palavras, está lançado o princípio de que o homem é o único que pode agir conforme as suas leis, no qual se fundamenta o princípio da autono-mia da vontade16, que é aquele em que devemos obedecer somente as leis que formulamos.17 Aqui torna-se bastante evidente a influência iluminista em Kant, na necessidade de se orientar conforme as próprias leis, é a ideia de autonomia, de esclarecimento, que em alemão é Aufklärung, e que traduz o Iluminismo dos franceses.

Delineada a distinção entre imperativos hipotéticos e categóricos, e com-preendida a fundamental importância dos imperativos categóricos para a fi-losofia kantiana, vejamos como ele se dá na discussão da moral e do Direito.

Ética e DireitoNa Metafísica dos Costumes, Kant conceitua e delimita as áreas abrangidas

pelo Direito e pela Ética, identificando dessa forma que o homem obedece a duas leis, uma lei interna e uma lei externa. A lei interna é a moral, ou a Ética, e a lei externa é o Direito. Kant utiliza a construção paralela desses dois con-ceitos para fundamentar a liberdade humana.

A lei interna identifica liberdade porque está ligada aos postulados racio-nais da metafísica dos costumes. Para Kant, como já se afirmou, todo homem já é dotado de uma vontade boa, ou seja, de uma inclinação a praticar boas ações. A moral interna do indivíduo se articula através dos imperativos cate-góricos. Importante notar que liberdade, para Kant, não está ligada essencial-mente a uma ausência de coação exterior, mas à condição de agir conforme a lei interna da minha razão. Partindo da inclinação humana às boas ações, Kant constrói um sistema que permite a formulação de leis universais, que seriam aquelas leis que qualquer humano, devido à sua capacidade racional, é capaz de entender como uma obrigação a ser seguida. Não se obedece essa lei por capricho ou desejo, ou por opinião subjetiva, mas por um dever interno, postulado pela razão.

Já a lei externa, por sua vez, fundamenta a legalidade, por ser a faculdade

14 KANT, Immanuel. Fundamentação da Me-tafísica dos Costumes e outros Escritos. p. 51.15 KANT, Immanuel. Fundamentação da Me-tafísica dos Costumes e outros Escritos. p. 52.

16 O princípio da autono-mia da vontade se revestirá de enorme importância no ordenamento jurídico bra-sileiro atual, representando papel fundamental tanto na Constituição Federal de 1988 como sendo um dos pilares da teoria geral dos direitos contratuais, que afirma que somente posso aderir a um contrato se a minha vontade assim o querer. No primeiro caso, quando falamos da Cons-tituição, pode ser aplicada a qualquer lei, a partir da ideia de um princípio de-mocrático. Pela autonomia da vontade, nós sabemos que devemos obedecer às leis porque nós as coloca-mos lá, já que somente pre-cisamos obedecer o que a nossa razão assim o pensa. Num regime democrático, entende-se que as leis são postas pelo povo, pelas regras que esse sistema condiciona, de forma que as leis democráticas seriam sempre leis postas pelos in-divíduos, logo necessárias de serem obedecidas sim-plesmente por dever-ser. Tal princípio, ainda, é uma das bases de todo o direi-to privado, tendo como exemplo o direito contratu-al, no qual é mais evidente sua função. (NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princí-pios Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994; KRETZ, Andrietta. Autonomia da Vontade e Eficácia Hori-zontal dos Direitos Fun-damentais. Florianópolis: Momento Atual, 2005.)

17 A leitura de um peque-no texto de Kant, intitulado “Resposta a pergunta: o que é Esclarecimento?”, é essen-cial não somente para com-preender o sistema filosó-fico kantiano mas também o próprio período histórico vivido pelo autor. Nesse texto, Kant enfatiza a neces-sidade de o indivíduo passar a pensar e agir por si mesmo, livre de qualquer paternalis-mo. O texto também apre-senta a enorme influência das ideias iluministas no pensamento kantiano. O termo Esclarecimento refere-se à expressão Aufklärung, termo alemão que identifica o Iluminismo. (KANT. Imma-nuel. Resposta à Pergunta: O que é Esclarecimento? (Au-fklärung). In: KANT, Imma-nuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros Escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 115-122.)

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do agir no mundo externo. A lei externa traz consigo também a liberdade externa, pois fundamenta a ausência de obstáculos dos outros para com as minhas ações. Sendo todos os homens livres tanto interna como exter-namente, não posso ter impedimentos provindos de outrem para com as minhas ações. Dessa ideia de lei como condição para a liberdade surge o conceito kantiano de Direito, que seria a “restrição da liberdade de cada in-divíduo para que se harmonize para com todos os outros”.18 Direito é algo conhecido pela razão a priori por todos e por cada um.

A moralidade está intimamente ligada aos imperativos categóricos, que são seu fundamento essencial, aquilo que delimita que a ação não deve per-seguir qualquer fim, mas somente o dever-ser (Sollen). Agora, onde delimi-taríamos a distinção entre moral e Direito? Ou melhor, que elementos com-põem o Direito separando-o da moral?

Para Kant, são três os elementos que compõem o Direito. Primeiro, o Di-reito baseia-se nas relações externas, nas relações de uma pessoa com outra, de forma que ambas influenciam-se reciprocamente. Segundo, o Direito não se relaciona ao desejo do outro, que condicionaria a necessidade à relação, mas apenas ao arbítrio. E, por fim, como terceiro elemento, essa relação re-cíproca entre os arbítrios deve ocorrer de tal forma que a ação de um não interfira na liberdade do outro, segundo uma lei universal.

Retomemos os três elementos, apontando como eles diferenciam o Direi-to da moral. O primeiro afirma a necessidade de haver mais de uma pessoa, e isso basear-se em relações externas. A moral não implica a necessidade de mais de uma pessoa, pois ela pode perseguir um fim que não a envolva com mais ninguém. Já o Direito se dá na sociedade, na sociabilidade, logo implica mais indivíduos. Não obstante, no Direito as relações não são exclusivamen-te externas, porque o próprio dever-ser (Sollen) de obedecer a um contrato externo fundamenta-se numa lei interna. Portanto, a moral é somente inter-na, enquanto o Direito é externo mas também interno.

O segundo elemento diz que o Direito vincula arbítrios, e não desejos. O arbítrio está ligado à vontade, e se relaciona ao agir conforme a lei, enquanto o desejo em muitos casos está vinculado a questões emocionais, subjetivas, que passam longe do Direito.

Por fim, o terceiro elemento identifica que a minha ação não pode nunca interferir na liberdade do outro. É o conflito entre coerção e arbítrio. Porém,

18 KANT, Immanuel. Me-tafísica dos Costumes. p. 78.

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como os indivíduos obedecem a leis universais, que eles mesmo formularam segundo princípios universais, não são eles coagidos a obedecer, mas sim a exercer sua liberdade, sua autonomia. Na moral minha ação não é limita-da pelo outro, porque a exerço segundo a minha razão de agir. No Direito, mesmo a minha ação é limitada pela liberdade do outro. Certamente, tal como já demonstrado no conceito kantiano de Direito, essa restrição está inserida na liberdade e autonomia da vontade, pois o Direito, mais do que coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo, impede o outro de interferir na minha liberdade.

Após apresentar e explicitar os três elementos que compõem o concei-to kantiano de Direito, entende-se a noção formalista kantiana de Direito. É uma noção formalista porque pressupõe que as leis, quando emanadas de uma razão conforme princípios universais, pode harmonizar os arbítrios dos indivíduos, impedindo que a ação de um prejudique a liberdade do outro. É daqui que emana o seu imperativo categórico da Justiça, também apresen-tado como Princípio Universal do Direito: “Uma ação é conforme o Direito quando por meio desta, ou segundo a sua máxima, a liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal”19. Percebe-se como o formalismo kantiano sustenta-se num direito positivista. O Direito seria um complexo de leis e regras positivas, formuladas a partir de imperativos categóricos, dos princípios puros do Direito, de forma que podem harmonizar os arbítrios dos indivíduos, impedindo que qualquer um deles possa coagir o outro a infringir a própria liberdade. Esse sistema kan-tiano pretende envolver tanto a esfera do universal, das relações em geral, como do individual. Ou seja, ao mesmo tempo que pretende desenvolver a sociabilidade na sociedade, procura impedir a coação coletiva sobre o indivíduo, pois cada um formulou as leis conforme a razão prática, da qual emanam princípios universais.

Chegada a essa noção de sociabilidade, passemos ao momento de estu-dar a concepção kantiana para Estado, que é o ente maior que controla todo esse complexo de normas positivadas.

O EstadoAssim como para os predecessores, Kant entende o Estado como um contra-

to, um pacto entre os indivíduos. O Estado é o ente público que não é um patri-mônio de ninguém, mas de todos, por isso tem em vista as questões universais.

19 KANT, Immannuel. La Metafisica dei Costumi. Tradução de Giovanni Vidari. Bari: Laterza, 2004. p. 35. (Tradução livre).

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O Estado não se formula em Kant segundo dados históricos, antropoló-gicos, ou algum raciocínio teológico, mas como uma necessidade racional.20

São os juízos sintéticos a priori que fundamentam o Estado. Sem o Estado, seria impensável a vida civil, pois o homem estaria ainda envolvido no estado de natureza, de forma que ainda que contenha ele a boa vontade, inevitavel-mente em algum momento resultaria numa guerra entre todos, ou seja, uma ameaça permanente àquela já trazida por Hobbes, embora Kant em momen-to algum entenda o homem como o lobo do homem.

Somente no Estado a igualdade, a estabilidade e a paz entre os homens é possível. Nesse sentido, o surgimento do Estado é uma formulação racional humana, e não uma busca por interesses. Pelos princípios puros do Direito, cada homem entende que possui alguns direitos que derivam da própria razão, e que a razão prática postula na forma dos imperativos categóricos. Contudo, esses direitos precisam ser efetivados, e apenas numa sociedade civil eles podem alcançar tais status. Sem o Estado é impensável uma prote-ção legal, jurídica desses direitos. Com efeito, o Estado deriva dos postulados racionais iniciados por juízos sintéticos a priori, e não por desenvolvimento histórico ou necessidade. Para Kant, é dever do homem chegar ao Estado pela razão prática.

A Justiça para KantA Justiça em Kant contempla outros conceitos, como liberdade, autono-

mia, paz, todos já trabalhados aqui. O homem possui uma liberdade interna fundada na moral e em juízos a priori, e possui o direito de não ser coagido a agir contra ela, o qual fundamenta-se na liberdade externa. Nesse sentido, a Justiça é a fruição dessa liberdade externa, garantindo a liberdade interna, autonomia, igualdade, paz, entre os homens. Na Justiça, não há ofensa à li-berdade externa do outro, todos interagem em harmonia. Conforme Kant: “É justa toda a ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade e cada um segundo leis universais”21. Em outras palavras, a Justiça ocorre quando cada um pode exercer tanto a liberdade externa como a liberdade interna, segundo as leis universais.

Por fim, Kant traz também o conceito para injustiça, que seria: “[...] comete uma injustiça contra mim aquele que me perturba nesse estado porque o impedimento (a oposição) que me suscita não pode subsistir com a liberda-

20 KANT, Immanuel. La Metafisica dei Costumi, p. 143.

21 KANT, Immanuel. Dou-trina do Direito. p. 46.

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de de todos, segundo leis gerais”. Dessa forma, a Justiça aconteceria com a retirada desses impedimentos contra a liberdade do outro. A ordem jurídica de Kant é uma ordem que se baseia na proteção à liberdade, tanto interna como externa, e é nela que deve ser concebido o dever-ser (Sollen). Sendo assim, retirar a oposição à liberdade é proteger e exercer a liberdade.

É importante trazer que a filosofia kantiana exerce influência no direito contemporâneo, pois vários sistemas jurídicos da atualidade possuem por base a ideia de dever-ser do filósofo alemão. Na Metafísica dos Costumes, Kant divide o sistema jurídico em direito privado e direito público, sendo que o primeiro contempla ainda direitos como os pessoais e os reais, e o segundo trazendo o direito estatal, o direito das gentes e o direito cosmopolita.

A filosofia kantiana possibilita inúmeras reflexões que podem contribuir enormemente com as questões contemporâneas. Uma delas é a distinção entre as liberdades interna e externa. Tanto o Estado como as demais insti-tuições devem funcionar de forma que as leis e as ações dos órgãos públicos não prejudiquem a liberdade individual de cada cidadão, ao mesmo tempo em que se mantêm a ordem externa. Nesse sentido, Kant segue a tradição iluminista de reclamar para o indivíduo o direito à liberdade não apenas ex-terna, mas também interna.

Ampliando seus conhecimentos

A paz perpétua: projeto de direito para os povos(BITTAR, 2008)

O projeto racional de Kant, de deduzir no imperativo categórico toda a moral e todo o Direito, cria tentáculos tão fortes que transcende as fronteiras do Estado. O imperativo categórico possui por conteúdo uma definição que já indica tratar-se de lei universal a que comanda o comportamento humano (“Age como se a máxima de tua ação deverá tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza”), de modo que, de fato, tenham-se regras constituídas para a totalidade dos povos indiferentemente.

A garantia de igualdade é a preservação da pluralidade. Nessa ideia de tota-lidade universal está contida a noção de igualdade, comungada pela comuni-dade racional que habita o planeta, o que influencia a teoria kantiana a ponto

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de seus debates estenderem-se para além das pretensões do mero direito civil. Está-se diante da necessidade de estudo de um Direito que não é meramente nacional, que não é meramente internacional, mas que é verdadeiramente cos-mopolita, e que confere cidadania aos homens de todas as nações.

Esse estudo, portanto, não é um estudo que visa tratar de filantropia entre os homens de nações diferentes, mas algo solidamente constituído e consa-grado no plano dos direitos.

“Fala-se aqui, como nos artigos anteriores, não de filantropia, mas de ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro”.

A constituição de um espaço, para o qual se possa preservar a existência de uma categoria própria de direitos e deveres, é necessária para a delimitação do relacionamento entre os povos. Assim como cada Estado define os direitos e deveres de seus cidadãos, a constituição de um direito das gentes passaria pela necessária delimitação de direitos dos nacionais e dos estrangeiros.

No tocante ao direito das gentes – só se pode falar do direito das gentes sob o pressuposto de alguma situação jurídica (isto é, uma condição externa sob a qual se possa atribuir realmente ao homem de direito); porque, enquanto direito público, implica a publicação de uma vontade geral que determine a cada qual o que é seu, e esse status juridicus deve promanar de algum contrato que não tem sequer de fundar- -se em leis coactivas (como aquele de que provém um Estado), mas pode ser em todo o caso o contrato de uma associação constantemente livre, como o caso acima citado da federação de vários Estados.

Isso parece constituir uma necessidade natural, ou, ainda, uma decorrência natural de todo o processo civilizatório da razão. Não se poderiam esperar outros reflexos do evolver racional. E nisso há grande operosidade da natureza, imperiosa e autossuficiente na condução de seus processos evolutivos, citada por Kant como a grande artífice do processo de aproximação dos homens entre si. É a astúcia da natureza que faz com que do ódio surja o amor, assim como da guerra surja a paz.

O que subministra essa garantia é nada menos que a grande artista, a natureza (natura daedala rerum), de cujo curso mecânico transparece com evidência uma finalidade: através da discórdia dos homens, fazer surgir a harmonia, mesmo contra sua vontade.

Nada diferente se poderia esperar da própria natureza racional humana. O imperativo está sendo aplicado! Ele deve ser cumprido na prática, pelos homens como indivíduos, e pelos Estados entre si e perante cidadãos estran-geiros. A efetividade do direito dos povos é um mister impostergável pela hu-

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manidade, visto tratar-se de defesa da paz, que é a garantia da sobrevivência da própria humanidade. Nesse sentido, os acordos de paz (armistícios), falsos modos de se postergarem contendas sem solução ou de tradição consagrada, não oferecem solução. Aliás, ao pactuar-se pela imperatividade das regras de direito das gentes, fica defeso a qualquer Estado instituir políticas de ofensiva a outro Estado. Estes apenas adiam soluções.

Se existe um dever e ao mesmo tempo uma esperança fundada de tornar efectivo o estado de um direito público, ainda que apenas numa aproximação que progride até o infinito, então a paz perpétua, que sem segue aos até agora falsamente chamados tratados de paz (na realidade, armistícios), não é uma ideia vazia, mas uma tarefa que, pouco a pouco resolvida, se aproxima constantemente do seu fim (porque é de se esperar que os tempos em que se produzem iguais progressos se tornem cada vez mais curtos).

Na teoria kantiana, é mister, portanto, a criação de uma federação de Es-tados, em que se preservem as condições de exercício da soberania, discipli-nando-se ao mesmo tempo as condições com as quais se predispõem a acei-tar direitos no plano internacional. A ideia de humanidade deve desembocar necessariamente no recíproco atrelamento dos Estados entre si, objetivando a efetivação dos meios, das garantias, dos direitos que conduzam à paz per-pétua. Como escreve Hannah Arendt a esse respeito: “A real teoria de Kant em questões políticas era a teoria do progresso perpétuo e a de uma união federal das nações, a fim de conferir à ideia da humanidade uma realidade política”.

Atividades de aplicação1. A partir da postura crítica de Kant para com a metafísica, ele revisa a me-

tafísica clássica, concebendo a impossibilidade de se alcançar as causas das causas, e ideias como Deus, alma. Analise a questão comparando com a visão dos filósofos medievais, já discutidos no capítulo 6.

2. Demonstre algumas implicações da ideia de agir pelo dever de obe-decer a leis universais sem ter interesses em vista, relacionando com situações da vida em geral.

3. O Direito é baseado na liberdade, e não na coação, segundo Kant. Ela-bore um exercício crítico sobre essa questão, analisando se no Brasil atual o Direito é instrumento de liberdade ou de coação.

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4. Conforme o princípio da autonomia da vontade, eu somente obedeço a leis formuladas por mim mesmo, conforme princípios universais, os imperativos categóricos. Interprete esse princípio relacionando com sua utilização no Direito atual, comparando se as legislações de hoje de fato trazem a vontade do indivíduo ou não. Lembre-se que o in-divíduo imaginado por Kant é um indivíduo autônomo, plenamente consciente das leis que obedece.

Gabarito1. Os medievais, em especial Agostinho e Tomás de Aquino, concebiam a

metafísica como essência do Direito, uma vez que elas emanavam da vontade divina. Esses filósofos faziam o universal decorrer do pensa-mento teológico, enquanto que Kant postula o universal e a metafísica em questões do conhecimento, nas ideias inatas a partir da razão pura humana.

2. Os exercícios de caridade, por exemplo, embora sejam muito válidos e eficazes na promoção de políticas públicas, em geral trazem como finalidade maior por seus líderes não o dever de ajudar em si, mas um interesse em ser recompensado com fama e agradecimentos. No fim, é um anseio egoísta, na visão de Kant.

3. Depende do caso e da opinião de cada um. Existem momentos em que o Direito é exercício de coação, forçando o indivíduo a participar de um determinado sistema, e em outros ele produz liberdade. Em ge-ral, por ele estar vinculado à democracia, se torna violência do núme-ro, pois a maioria impõe as regras àqueles que pensam diferente, de forma que nisso o princípio da autonomia da vontade não se efetiva.

4. No mundo contemporâneo, o indivíduo cada vez mais é inconsciente de suas ações. Isso gera uma apatia perante as leis que torna-se qua-se impossível afirmar que as legislações são postuladas por vontades suas, e mais complicado ainda afirmar que isso decorre de leis univer-sais. É necessário um processo de educação política e jurídica.

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ReferênciasBITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. (Rev., aument. e modif. pelo autor).

KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Tradução de: BINI, Edson. São Paulo: Ícone, 1993.

_____. Crítica da Razão Pura. Tradução de: ROHDEN, Valerio; MOOSBURGER, Udo Baldur. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

_____. La Metafisica dei Costumi. Tradução de: VIDARI, Giovanni. Roma-Bari: La-terza, 2004.

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MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Kant e a crítica da razão: moral e Direito. In: _____. Curso de Filosofia Política: do nascimento da Filosofia a Kant. São Paulo: Atlas, 2008.

Direito e Política na Dialética de Hegel

O sistema hegelianoO idealismo alemão, que se inicia com Kant, tem em Hegel sua face mais

desenvolvida, pois em seu sistema filosófico de fato a Ideia (Idee) ocupa lugar central em todas as dialéticas, conforme anuncia logo no início da última seção da sua Ciência da Lógica, obra em que apresenta o desenvolvi-mento lógico e ontológico de sua filosofia: “a Ideia é o conceito adequado, o verdadeiro objetivo, ou seja, o verdadeiro como tal. Se algo tem verda-de, tem por meio sua Ideia, ou seja, algo tem verdade apenas enquanto é Ideia”.1 Para Hegel, a Ideia não é apenas uma concepção teleológica, mas aquilo que dá validade ao conhecimento racional. A Ideia está em toda a sua filosofia, de forma que inclusive as questões éticas, políticas e jurídicas, objeto da sua obra Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, tem como objetivo a realização da Ideia de Liberdade, aquilo que ele denomina como Eticidade (Sittlichkeit).

O sistema hegeliano está apresentado na sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas, obra em que cataloga todos os estudos anteriores num compên-dio que serve para apresentar sistematicamente seu pensamento. A Enciclo-pédia é dividida em três volumes: a Ciência da Lógica, a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito. A Filosofia do Espírito, por sua vez, está dividida em três seções: o “Espírito subjetivo”, o “espírito objetivo”, o “Espírito absoluto”. O espírito deve manifestar no mundo a Ideia, ou seja, deve efetivar na prática aquilo que já é no conceito. “O Espírito subjetivo” apresenta três momentos: a Antropologia, a Fenomenologia e a Psicologia. O “Espírito objetivo” traz o Di-reito Político Interno, o Direito Político Externo e a História Universal. Por fim, o ”Espírito absoluto” se manifesta através da Arte, da Religião e da Filosofia.

Como o objetivo deste livro está situado no campo da Filosofia do Direito, as análises serão relativas ao “Espírito objetivo”, em particular do Direito Polí-tico Interno, que se divide ainda em Direito Abstrato, Moralidade e Eticidade. Contudo, antes de entrarmos especificamente na Filosofia do Direito, é ne-cessário resgatar entendimentos de obras anteriores, uma vez que o Direito

1 HEGEL, G. W. F. Ciencia de la Logica. Tradução de Augusta e Rodolfo Mon-dolfo. Buenos Aires: Solar, 1968. p. 471.

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Direito e Política na Dialética de Hegel

é temática fundamental do discurso hegeliano desde suas obras da juven-tude. Em especial, retornaremos à Fenomenologa do Espírito, obra em que Hegel apresenta a formação do indivíduo, desde seu estágio mais inculto até o saber absoluto. Essa leitura é importante, porque acompanhar alguns momentos pelos quais atravessa a consciência na Fenomenologia auxilia a compreender o papel do indivíduo na Filosofia do Direito.

A Fenomenologia do EspíritoA Fenomenologia do Espírito é considerada a primeira grande obra hege-

liana, escrita após seus vários trabalhos de juventude. Trata-se de uma obra enigmática, pois trabalha inúmeras temáticas simultaneamente, o que a torna uma leitura ainda mais complexa. A proposta da obra é apresentada logo no prefácio: “A tarefa de conduzir o indivíduo, desde seu estado inculto até o saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de consi-derar o indivíduo universal, o espírito consciente-de-si em sua manifesta-ção cultural”.2 E logo a seguir complementa a sentença explicando o porquê do indivíduo universal: “O individuo particular é o espírito incompleto, uma figura concreta: uma só determinidade predomina em todo o seu ser-aí, en-quanto outras determinidades só ocorrem com seus traços rasurados”.3 Ou seja, Hegel pretende conduzir o indivíduo desde seu estágio mais primitivo, aquele do estado inculto, até o saber absoluto. Não se trata de formar apenas o indivíduo singular, e sim o universal, porque o objetivo é formar a huma-nidade em geral. Isso se torna mais claro quando observamos a estrutura da Fenomenologia, que é dividida em duas partes: a primeira, que trata da “Ciência da experiência da consciência”, ou seja, trabalha o indivíduo singular em suas várias dimensões (intelectuais, existenciais, morais, religiosas, jurí-dicas, entre outras); e uma segunda, intitulada de “Espírito”, que representa a passagem do indivíduo singular ao indivíduo universal, da consciência de si singular à consciência de si universal. No “Espírito” não se trabalha este ou aquele indivíduo, mas a universalidade representada na figura da comunida-de e manifestada por meio dos costumes e da história. Neste trabalho, nos dedicaremos a analisar algumas passagens das experiências da consciên- cia, pois o indivíduo universal poderá ser trabalhado também na Filosofia do Direito.

Hegel denomina experiência da consciência cada momento enfren-tado pela consciência em seu processo de formação. Esse processo passa pela consciência, estágio imediato na qual a consciência é apenas teórica,

2 “Die Aufgabe, das Indi-viduum von seinem unge-bildeten Standpunkte aus zum Wissen zu fuhren, war in ihrem allgemeinen Sinn zu fassen und das allgeme-nine Individuum, der Sel-bstbewußte Geist, in seiner Bildung zu betrachten” (FE, Prefácio, HW 3, p. 31-32.)

3 “Das besondere Indivi-duum ist der unvollstän-dige Geist, eine konkrete Gestalt, in deren ganzem Dasein eine Bestimmtheit herrschend ist und worin die anderen nur in verwis-chten Zugen vorhanden sind” (FE, Prefácio, HW 3, p. 31-32.)

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e busca analisar o mundo externo, busca construir métodos e instrumentos que possam ajudá-la na tarefa de entender o mundo. Para isso passa pelas experiências da certeza sensível, da percepção e do entendimento. Na certe-za sensível ela confirma a existência de um objeto, afirma que “isto é”, ou “isto existe”; na percepção atribui qualidades a esse objeto, “é verde”, “é salgado”; e no entendimento busca conceituar o objeto, tenta entendê-lo por meio de leis universais. Porém, mesmo esta última passagem não completa o seu ob-jetivo, pois a consciência teórica cai na incerteza quanto à sua possibilidade de conhecer o objeto. Tal incerteza conduz a consciência para o momento seguinte: a consciência de si.

É importante fazer algumas considerações sobre essa questão de supera-ção dos momentos, por ser algo que se presenciará em toda a filosofia hegelia-na, e não apenas na Fenomenologia. Para Hegel, tudo está em constante atuali-zação, nada é acabado, pois, como afirmam Lefebvre e Macherey, a filosofia de Hegel é também a filosofia do “ainda não”.4 Essa constante atualização é identi-ficada pela expressão alemã aufheben, que pode ser traduzida por suspender, no sentido de que é tanto conservar como atualizar. Isto é, não é um simples processo de negação, em que um momento supera o anterior, aniquilando-o. Não, o significado de aufheben identifica que em Hegel cada momento é supe-rado pelo seguinte, mas seu conteúdo permanece consigo nesse movimento dialético. Ou seja, nada é perdido, tudo está em constante fluxo.

A filosofia hegeliana compõe um trabalho sistemático no qual cada obra ocupa sua real posição conforme o movimento dialético. É a totalidade do sistema que permite captar seu pensamento. Nesse sentido, a Fenomenolo-gia ocupa um espaço essencial, pois serve como introdução5 às outras gran-des obras, sem esse processo inicial de formação espiritual do indivíduo não haveria como se pensar em desenvolvê-lo politicamente, por exemplo. Tal processo de formação cultural encontra na consciência de si um momento fundamental, pois representa a descoberta da subjetividade e do autoco-nhecimento, questões essenciais para o movimento dialético, que sucede mediante a negação dos momentos anteriores.

Na consciência de si pela primeira vez o indivíduo é sujeito e objeto ao mesmo tempo. Isso porque agora ele não estuda o objeto externo, mas a si mesmo. Esse momento é definido por Hegel como da “verdade e certeza de si mesmo”. Antes a verdade era somente em si, para um outro, e não para si mesma. A consciência de si deve mergulhar em si mesma e conhecer sua existência, para depois voltar-se ao mundo externo. Não obstante, esse mer-

4 LEFEBVRE, Jean-Pierre; MACHEREY, Pierre. Hegel e a sociedade. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.

5 A discussão de que se a Fenomenologia seria a introdução ao sistema ou já a primeira parte do sis-tema, esta última funda-mentada na exposição sis-temática da Enciclopédia, na qual a Fenomenologia surge dentro do “Espírito subjetivo”, foi objeto de vários comentadores. Im-portante observar a obra: LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Structures et Mouve-ment Dialectique dans la Phénoménologie de L’Esprit de Hegel. Paris: Aubier-Montaigne, 1968.

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gulhar em si mesma não é uma experiência teórica, intelectual, mas prática, que se dá na existência, na ação, se dá no plano da vida.

[...] o ponto de partida da dedução é a oposição entre o saber de si e o saber de um Outro. A consciência era saber de um Outro, saber do mundo sensível em geral; ao contrário, a consciência de si é saber de si; exprime-se pela identidade do Eu=Eu – Ich bin Ich.6

A consciência de si precisa sair de si mesma e ir ao mundo, ao Outro. Ao mesmo tempo em que procura conhecer o mundo a consciência busca sua independência. O desejo é a manifestação que impulsiona a consciência de si a sair de si e a percorrer as várias dialéticas na busca desse autoconhe-cimento e independência. Tais dialéticas são a do reconhecimento, da luta entre senhor e servo, do trabalho, e da liberdade da consciência de si, que atravessa as figuras do estoicismo, do cepticismo e da consciência infeliz.

A consciência de si buscará de vários modos satisfazer seus desejos no mundo. Tais desejos são múltiplos, e ascendem conforme a satisfação dos an-teriores. Os primeiros desejos são essencialmente relacionados ao ciclo bio-lógico, como a alimentação, por exemplo. Ora, percebe-se como pelo desejo a consciência de si não somente busca conhecer o mundo, mas sobretudo agir nele. Porém, este desejo não está ligado essencialmente ao objeto exter-no, mas à própria consciência de si. Isto porque mesmo com a consciência de si satisfazendo seus desejos biológicos, tais desejos continuarão surgindo, indefinidamente. No fundo, é um anseio da própria consciência de si em co-nhecer e agir no mundo para que assim possa experimentar a si mesma.

Esgotados os objetos puramente biológicos, a consciência de si direcio-nará seus desejos a um outro ser vivo como ela: uma outra consciência de si. É a dialética do reconhecimento, a qual ambas as consciências buscarão sair de si e ir em direção ao outro, no desejo de serem reconhecidas. É o desejo recíproco de reconhecimento, ou seja, a consciência precisa sair de si e tornar-se o outro, numa questão de alteridade, porque “somente sou cons-ciência de si quando me faço reconhecer por outra consciência de si, e se reconheço a outra”.7 Cada consciência nega a si mesma para tornar-se um outro, sendo esse o fundamento do Para Nós.

Para nós, portanto, já está presente o conceito de espírito. Para a consciência, o que vem- -a-ser mais adiante é a experiência do que é o espírito: essa substância absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição – a saber, das diversas consciências- -de-si para si essentes – é a unidade das mesmas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu.8

Contudo, por ter que negar a si mesma a consciência perdeu a si mesma na exteriorização. Ou seja, o processo de alteridade é incompleto, pois ambos

6 HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espí-rito de Hegel, p. 170.

7 HYPPOLITE, Jean. Gênese da Fenomenolo-gia do Espírito de Hegel, p. 180.

8 “Hiemit ist schon der Begriff des Geistes für uns vorhanden. Was für das Bewußtsein weiter wird, ist die Erfahrung, was der Geist ist, diese absolute Substanz, welche in der vollkommenen Freiheit und Selbständigkeit ihres Gegensatzes, nämlich verschiedener für sich seiender Selbstbewußtsein, die Einheit derselben ist; Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist”. (FE. A Verdade da Certeza de si Mesmo, HW 3. p. 145.)

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perdem a si mesmos para poderem ser reconhecidos. Surge dessa situação o desejo de aniquilar o outro, dominá-lo.

A dialética do reconhecimento conduz ao enfrentamento, à dialética da luta pela independência das consciências de si desejantes. Como o reconhe-cimento anterior não foi completo, cada consciência buscará na luta o reco-nhecimento do outro e sua liberdade, porque como exteriorizando perdeu- -se no outro, é necessário lutar e impor a morte a este para que se torne livre. A consciência de si, portanto, precisa arriscar a própria existência numa luta de vida ou morte com a outra consciência de si. Em outras palavras, a cons-ciência de si precisa demonstrar que a liberdade é seu bem mais importante. Nisso, caiu a consciência que não conseguiu colocar a vida em risco, não con-seguiu ariscar a si mesma pela liberdade. Essa consciência tornou-se escrava da outra consciência, que por sua vez é senhor. ”O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa, mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente”.9

A consciência tornou-se escrava porque não conseguiu superar o ciclo biológico, ligado ainda à vida natural. A liberdade não está na vida natural, mas na construção de uma segunda natureza. Uma consciência que sente medo diante da própria existência não pode ser considerada consciência de si. Para ser consciência de si, o indivíduo precisa ser dono de sua própria existência, num trabalho de autonomia existencial. A liberdade, antes de ser política, é algo interior ao indivíduo, se dá no plano da consciência. O plano que segue é o do trabalho, o qual a consciência serva deverá produzir para servir o senhor.

Pelo trabalho se estabelece uma nova relação. O servo produz median-te seu próprio labor algo que um outro irá usufruir. O servo precisa servir, porque devido ao medo reconheceu a outra consciência como senhor. Mas o senhor não a reconhece como consciência de si livre. Trata-se de um reco-nhecimento unilateral, reconheço mas não sou reconhecido. Por outro lado, o senhor vive também a angústia: como não reconheceu o servo, e este é o único que o reconhece, sua condição é de ser reconhecido unicamente por uma figura que nem ele mesmo a reconhece. Aqui a dialética entre senhor e escravo revela novas significações. O senhor foi corajoso, por isso tornou-se livre exteriormente, mas interiormente não conquistou o próprio reconheci-mento. O senhor está estagnado em seu próprio desenvolvimento.

Por outro lado o servo trabalha. E em seu trabalho o servo transforma o

9 “Das Individuum, welches das Leben nicht gewagt hat, kann wohl als Person anerkannt werden; aber es hat die Wahrheit dieses Anerkantseins als eines sel-bständigen Selbstbewußt-seins nicht erreicht”. (FE. A Luta por Independência e Dependência, HW 3. p. 149.)

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mundo conforme sua própria vontade. Paradoxalmente, é no trabalho servil que o homem modela o mundo conforme a sua inteligência. O trabalho é atividade espiritual10, pois pelo trabalho o homem permanece em movimen-to e apropria-se do mundo onde vive, transforma-o, retirando-o de sua ime-diaticidade natural para um local que reflete sua vontade. Ao transformar a natureza, o homem se liberta do ciclo biológico.

Mas, como a dominação mostrava ser em sua essência o inverso do que pretendia ser, assim também a escravidão, ao realizar-se cabalmente, vai tornar-se, de fato, o contrário do que é imediatamente; entrará em si como consciência recalcada sobre si mesma e se converterá em verdadeira independência.11

A última parte da seção da consciência de si é denominada por Hegel como “liberdade da consciência de si”, e representa a dialética por qual passa a consciência de si serva, agora livre no plano existencial, obtido por meio do trabalho. Essa dialética passa pelos momentos do estoicismo, do cepticismo e da consciência infeliz, e conclui na passagem da consciência de si à razão, que é o último momento da “Fenomenologia como ciência da experiência da consciência”. A razão representa a reconciliação entre a consciência e a consciência de si; na razão tanto a consciência teórica como a consciência prática encontram-se conciliadas.

O objetivo era apresentar o desenvolvimento da consciência de si para demonstrar como isso depois repercutirá na Filosofia do Direito. Como se percebe após as dialéticas apresentadas, que trouxeram inúmeras questões como vida, liberdade, natureza, independência, reconhecimento, desejo, tra-balho, medo, é necessário compreender que essas questões, antes de serem temáticas jurídicas, são temáticas da existência em geral, e que repercutem no Direito.

As linhas fundamentais da Filosofia do Direito

Como já mencionado no início do trabalho, a Filosofia do Direito ocupa um estágio intermediário no desenvolvimento do espírito. é o espírito ob-jetivo, que sucede a mediação do espírito subjetivo e antecede o espírito absoluto. Ademais, entre as divisões já comentadas na Filosofia do Direito (Direito Político Interno, Direito Político Externo e História Universal), nos ate-remos ao estudo da primeira, que contempla o Direito Abstrato, a Moralida-de e a Eticidade. Como se verá, ainda, a passagem entre esses três momentos

10 “A Fenomenologia do Espírito apresenta clara-mente como a verdade do trabalho material, real, do escravo, isto é, da opo-sição deste ao trabalho intelectual do pensamen-to, ilustrado e enaltecido especialmente pelo es-toicismo. Mas o trabalho intelectual, gozo de seu domínio de si, ultrapassa e nega concretamente seus dois momentos unilate-rais, antagônicos: o gozo propriamente dito e o tra-balho propriamente dito”. (BOURGEOIS, Bernard. Os Atos do Espírito. Tradu-ção de: NEVES, Paulo. São Leopoldo: Editora UNISI-NOS, 2004. p. 87.)

11 “[...] Aber wie die Herrs-chaft zeigte, daß ihr Wesen das verkehrte dessen ist, was sie sein will, so wird auch wohl die Knechts-chaft vielmehr in ihrer Vollbringung zum Gegen-teile dessen warden, was sie unmittelbar ist; sie wird als in sich zurückgedrängtes Bewußtsein in sich gehen, und zur wahren Selbstandi-gkeit sich umkehren”. (FE, A Luta por Independência e Dependência, HW 3. p. 152.)

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representa também o desenvolvimento do indivíduo por meio da vontade livre12. No Direito Abstrato o indivíduo é pessoa; na Moralidade é sujeito; na Eticidade é membro de uma comunidade.

O Direito Abstrato representa a universalidade imediata do espírito ob-jetivo, mas ao mesmo tempo um reino puramente formal, restrito somente ao plano jurídico, das relações contratuais entre os indivíduos. O Direito Abs-trato funda-se na propriedade, no meu direito de ter uma propriedade e no dever do outro em respeitar minha propriedade, e o contrário também é re-ciprocamente verdadeiro. No Direito eu estabeleço relações com os outros, onde reconheço e sou reconhecido por outros como pessoa, sendo o termo aqui utilizado em sua acepção jurídica. Primeiro eu, por um ato racional de vontade, tomo a coisa externa para mim e a transformo em minha posse. Com a possessão da coisa eu posso transformá-la, moldá-la conforme minha vontade. Aqui a dialética é semelhante àquela do trabalho do servo diante do senhor. Na posse da coisa eu a trabalho e a transformo, logo transformo a natureza conforme a vontade humana.

Depois de estabelecer a posse eu posso aliená-la a outros: é o contrato. O contrato rege-se pela reciprocidade de direitos e deveres. Estabelece-se uma lei entre as partes, com obrigações recíprocas que devem ser cumpri-das. O problema é que o contrato situa-se tão somente no plano formal do Direito, ainda não efetivo. O término da dialética do Direito Abstrato é a injustiça, momento em que Hegel estende sua crítica não apenas aos contratos privados entre particulares, mas também a todos os filósofos modernos que basearam suas concepções jurídicas e políticas no contrato social. A crítica hegeliana é esta: como pode o Direito impedir que uma das partes quebre, por livre vontade, o contrato? Ou seja, o contrato é algo apenas abstrato, não é ainda o Direito em sua realização. O ilícito penal segue a mesma lógica, a lei por si só não pode impedir o crime, nada pode evitar que um indivíduo decida ir contra o ordenamento jurídico vigente. Em outras palavras, o problema do não direito, ou da injustiça, não está no plano jurídico, mas moral, pois é do indivíduo que parte a vontade de negar o Direito. O Direito Abstrato é direito coercitivo, porque o in-justo praticado contra o mesmo é uma violência contra o ser-aí da minha liber-dade numa Coisa exterior [...]”.13

A Moralidade é o segundo momento da Filosofia do Direito. Aqui as ques-tões não são jurídicas, mas morais, estão no plano da subjetividade individual. A Moralidade discute questões como a intenção e a responsabilidade, o bem-

12 “A vontade é livre em-si-e-para-si, pois, não é mera possibilidade, dispo-sição, potência (potentia), mas é o realmente-infinito (infinitum actu), porque a existência do conceito, isto é, o seu objeto ex-terior, é a interioridade mesma”. (FD. Introdução, HW 7, §22. p. 74.)

13 “Das abstrakte Recht ist Zwangsrecht, weil das Un-recht gegen dasselbe eine Gewalt gegen das Dasein meiner Freiheit in einer äußerlichen Sache ist [...]” (FD. A Injustiça, § 94, HW 7. p. 180.)

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-estar e a certeza moral, o bem e o mal. Na Moralidade cada indivíduo é sujei-to, porque exprime ao máximo sua subjetividade. Na Moralidade cada sujeito possui sua própria concepção de bem.

O ponto de vista moral é o da vontade quando deixa de ser infinita em si para sê-lo para si. É esse retorno da vontade de si, bem como a sua identidade, que existe para si em face da existência em si imediata e das determinações específicas que nesse nível se desenvolvem, que definem a pessoa como sujeito.14

A Moralidade representa o mundo interior e intelectual de cada sujeito, o mundo em que ele vive conforme suas convicções, que não necessariamen-te estão conforme os sistemas jurídicos vigentes. Cada sujeito age partindo de suas convicções morais, que se baseiam na sua ideia de bem. O problema da Moralidade é que tudo está apenas no plano subjetivo. Para Hegel, toda ação tem em vista um bem, porque ninguém pode agir visando um mal; ainda que algo seja entendido como mal, naquele momento, na concepção do sujeito, era um bem. Nesse sentido abre-se um completo relativismo, pois aquilo que eu penso como bem pode ser justamente o contrário daquilo que o outro pensa como bem. Nisso surge a tensão entre o bem e o mal. A passa-gem da Moralidade à Eticidade se dá na elevação do pensamento subjetivo ao objetivo, do moral ao ético.

Na Eticidade o indivíduo não é apenas pessoa ou sujeito, mas membro de uma comunidade. A Eticidade supera a formalidade vazia do Direito Abstra-to e a intencionalidade subjetiva da Moralidade para fundar o reino da liber-dade realizada. A Eticidade é resultado do movimento da vontade livre do indivíduo, que por seu trabalho de efetivação do conceito no mundo dado, transforma-o conforme o seu pensamento.

A Eticidade ocupa a maior parte da Filosofia do Direito. Para entendê-la, comecemos pelo seu conceito, enunciado no parágrafo 142:

A Eticidade é a realização da Ideia de Liberdade enquanto Bem Vivo, que tem o seu saber e o seu querer na consciência de si, e que se torna realidade efetiva mediante o agir da autoconsciência. Essa ação tem o seu fundamento em si e para si e sua finalidade motora no ser ético. A Eticidade é onde a Ideia de Liberdade se torna presente no mundo e natureza da autoconsciência.15

A interpretação desse parágrafo permite uma ampla compreensão da-quilo que viria a ser o mundo ético de Hegel. A Eticidade é a realização da Ideia de Liberdade porque são os indivíduos quem a efetivam historicamen-te mediante sua vontade livre. Retornando ao início do capítulo, a Ideia é a forma essencial de algo, a Ideia está fora do mundo, mas deve ser efetivada conceitualmente no mundo. Por isso a Eticidade representa a realização da

14 “Der moralische Stan-dpunkt ist der Standpunkt des Willens, insofern er nicht bloß an sich, sondern fur sich unendlich ist (vorh. §). Diese Reflexion des Willens in sich und seine fur sich seiende Identität gegen das Ansichsein und die Unmittelbarkeit und die darin sich entwickelnden Bestimmtheiten bestimmt die Person zum Subjekte”. (FD. A Moralidade, § 105, HW 7. p. 203.)

15 HEGEL, G. W. F. Grun-dlinien der Philosophie des Rechts oder Natur-recht und Staatswis-senschaft im Grundrisse, § 143, p. 293.

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Ideia de Liberdade, porque é a forma de como a essência da liberdade passa a ser presente no mundo. Esse movimento é enquanto bem vivo porque contrapõe-se ao bem abstrato da Moralidade, na qual o bem era apenas uma convicção subjetiva de cada indivíduo. Na Eticidade, como se verá, esse bem é vivo, porque surge do movimento produtivo e refletido do indivíduo cons-ciente de si, logo é uma ideia de bem resultante de um ato de vontade livre. A vida, na Ciência da Lógica, representa justamente a forma de como a Ideia em sua forma absoluta presencia-se no mundo, na natureza.

A eticidade é também resultado do agir efetivo da autoconsciência.16 Isso porque é o indivíduo quem a põe no mundo dado mediante a exteriorização da vontade livre. Sendo assim, é um produto consciente, querido, portanto, autoconsciente.

A eticidade tem a sua finalidade motora no ser ético, mediante um agir em si e para si. Em outras palavras, a Eticidade representa um movimento não singular, mas universal, ou seja, não de um indivíduo em particular, mas da comunidade, do povo como espírito. Por isso há o ser ético, o ser que de-termina o que é ético e o que não é, porque este ser é livre, já que foi posto pela vontade dos próprios indivíduos.

A Eticidade se torna presente no mundo e natureza da autoconsciência devido a este ser ético. Como o ser ético é vontade livre, ele não é externo aos indivíduos, mas internos a eles, já que eles o criaram. Também o ser ético se presencia no mundo, porque faz realidade jurídica, política, social, eco-nômica etc. O ser ético deriva dos costumes, que por sua vez fundamentam leis. A síntese do parágrafo é esta: na Eticidade abre-se a possibilidade de criar leis, mas leis que possibilitam a liberdade do indivíduo, porque são leis resultantes da vontade livre dos próprios indivíduos. Na Eticidade eu não sou coagido a seguir leis, porque eu as criei.

Como estas determinações substanciais são elas para o indivíduo, o qual se diferencia delas como o subjetivo e em si indeterminado ou o determinado particularmente. “Indivíduo” e, portanto, coloca-se em relação elas como algo substancial, obrigações são uma vontade. Obrigações vinculam a vontade.17

Com efeito, a Eticidade não é uma coação, ou um suprimir do livre-arbítrio, mas realização da Ideia de Liberdade. As leis não podem ser opressoras, porque como são postas pela vontade racional do indivíduo, este tem não apenas o direito, mas o dever de negar as leis injustas, ou as leis que não refletem sua vontade livre em si e para si. O essencial não é o conteúdo da lei, mas o proces-so de pôr a lei. Logo, para o indivíduo viver conforme as instituições e as leis é um dever ético, já que assim estará vivendo conforme os costumes.

16 “Nessa consciência de si efetiva, a substância é si mesma, e o próprio objeto do saber. Para o sujeito, a substância ética, suas leis e suas potências, constituem em si mesmo a existência mais elevada da autonomia, como uma unidade absoluta e infinita acima do ser da natureza”. (FD. A Eticidade, § 146, HW 7. p. 294-5.)

17 “Als diese substantiel-len Bestimmungen sind sie fur das Individuum, welches sich von ihnen als das Subjektive und in sich Unbestimmte oder als [das] besonders Bestimmte unterscheidet, hiermit im Verhältnisse zu ihnen als zu seinem Substantiellen steht, – Pflichten, fur seinen Willen bindend”. (FD. A Eticidade, § 148, HW 7. p. 296-7.)

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O reino ético desenvolve-se em três momentos. Primeiramente é univer-salidade imediata, na família; depois alarga-se a singularidade na sociedade civil; por fim é o retorno à universalidade, mas num movimento efetivo, é o Estado representado pela Constituição. A lógica imanente que percorre a Filosofia do Direito deve reconciliar o universal com o singular, harmonizar e inserir a vontade livre individual na vontade universal da comunidade.

As instituições ocupam momentos importantes da Filosofia do Direito. Hegel trabalha a formação do indivíduo, porém, este deve se inserir no de-senvolvimento social, político, jurídico e econômico de sua nação, o que torna necessário a formação das próprias instituições. A família forma o in-divíduo, a sociedade civil trabalha sua singularidade, e o Estado cumpre a função de realizar a liberdade enquanto protege o bem público. O homem está em constante processo de reconhecimento com os outros, por isso o de-senvolvimento coletivo é tão essencial quanto o individual. É nesse contexto que visualiza-se a importância das instituições para a filosofia hegeliana.

A famíliaA família é universalidade natural, imediata, pois o indivíduo nasce na fa-

mília, e não por um ato de vontade. A família se forma pelo reconhecimento recíproco entre duas pessoas que se unem numa só: o matrimônio, que é uma relação ética.

Embora mantenha-se na universalidade, a família é também singularida-de, porque vista externamente, todos os indivíduos tornam-se um só: o ser familiar. Nessa posição está baseada a relação entre famílias, cada uma sendo uma singularidade que representa a universalidade dos indivíduos.

Essa relação entre famílias é o segundo momento dessa seção da Eticida-de: é o patrimônio. O responsável pelo patrimônio é o pai, pois é ele quem trabalha e acumula riquezas na comunidade e traz os benefícios ao ser fami-liar. O patrimônio é importante, pois por ele a família conquista reconheci-mento na comunidade.

O terceiro momento da família, e que também é sua dissolução, é a educa-ção dos filhos, a qual representa o fim último do ser familiar. A família precisa formar seus filhos não para ela, mas para a sociedade civil e o Estado, os outros dois momentos da Eticidade. É interessante notar que esse movimento de for-mação ética, pela educação, em que o filho sai da família e torna-se para si,

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indo em direção à comunidade, é ao mesmo tempo fim e começo da institui-ção da família, pois nesse movimento o filho construirá também a sua família.

Como “pessoas”, as famílias guardam entre si uma relação de igualdade. Entretanto, essa igualdade externa como “pessoa” não é a expressão de uma igualdade interna onde, em princípio, dever-se-ia encontrar a concretização dos princípios universais da liberdade. [...] refere-se à desigualdade das mulheres em relação aos homens, formulação que descarta completamente o direito das mulheres. A segunda concerne à punição que é considerada como um meio para “despertar as crianças para o universal”.18

Esta passagem hegeliana é essencial: a família não possui fim em si mesma, mas no mundo externo; sua função não é educar para si, mas para a sociedade civil e o Estado. Na família se educa os filhos com o conteúdo ético, forma o indivíduo para que no futuro ele possa estar harmonizado com os costumes e os deveres éticos da comunidade.

O segundo momento da Eticidade é a sociedade civil, nela o indivíduo não é visto como membro de uma família, mas tão somente como singular.

A sociedade civilA sociedade civil, introduzida por Hegel com o termo burgerliche Gesells-

chaft, pode ser traduzida também por sociedade civil-burguesa. Essa infor-mação é importante para a contextualização da sociedade civil como fenô-meno histórico ligado ao mundo moderno, à ascensão do cidadão burguês. Os gregos não conheciam a sociedade civil porque não conseguiam ver o indivíduo como capaz de ser apenas singular, sem estar necessariamente en-volvido na universalidade do Estado. A explosão econômica do mundo mo-derno, com suas necessidades de grandes navegações e comércios distan-tes, bem como o impulso da tecnologia e da industrialização, são as causas que conduzem à criação da sociedade civil. É essencialmente burguesa, porque antes dos burgueses não havia a possibilidade de o indivíduo viver no Estado sem ser para o Estado. Não por outro motivo Hegel analisa nessa seção vários pensadores da ciência chamada por ele de Economia Política, como Ricardo e Smith.

Logo percebe-se como a sociedade civil possui um fim eminentemente egoísta, resultado do aumento da liberdade econômica. Aqui o indivíduo não é membro do Estado nem da família, mas apenas um singular que alarga ao extremo sua singularidade, colocando em todas as suas ações apenas a si mesmo como fim, e nunca o bem comum. É a negação da universalidade imediata familiar.

18 ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel. p. 147-8.

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Contudo, mesmo sendo somente para si, esses indivíduos precisam se relacionar com outros, pois precisam negociar, adquirir produtos, serviços etc. Ou seja, estabelece-se um sistema de interdependendência recíproca que Hegel chama de sistema das necessidades. Por necessidades entende- -se desde as primordiais, biológicas, como a alimentação, até as mais refina-das, como prazeres estéticos e a própria riqueza econômica. Resulta dessa situação que ainda que cada indivíduo busque satisfazer apenas as suas ne-cessidades, não há como fazê-lo sem recorrer ao universal.

Enquanto cidadãos desse Estado, [do entendimento] os indivíduos são pessoas privadas, que têm por fim o seu interesse próprio. Como esse fim é mediado pelo universal que, assim, lhes aparece como meio, ele só pode ser alcançado por eles na medida em que determinam de modo universal o seu saber, querer e fazer, e se façam um elo da cadeia dessa conexão. O interesse da Ideia, aqui, que não reside na consciência desses membros da sociedade civil enquanto tal, é o processo de elevar, pela necessidade natural assim como pelo arbítrio das carências, a singularidade e a naturalidade desses à liberdade formal e à universalidade do saber e do querer, de formar pelo cultivo à subjetividade na sua particularidade.19

Outro paradigma que traz a sociedade civil é a questão da riqueza uni-versal. Quando o indivíduo produz, ainda que tenha como fim somente a si mesmo, é obrigado a se relacionar com outros, logo, mais indivíduos ganham nessas relações. Com isso, a própria riqueza universal é incrementada pelo trabalho individual. Essa reflexão hegeliana é fundamental, pois ele demons-tra como mesmo no pleno egoísmo o trabalho é capaz de gerar riqueza e benefícios à universalidade. E não somente isso, mas também que ao incen-tivar a livre iniciativa privada, o trabalho do singular estará contribuindo com a riqueza universal.

O trabalho é essencial para a sociedade civil. Como o princípio norteador da sociedade civil é a liberdade econômica, cada indivíduo é livre para exer-cer a profissão que entender mais adequada. O trabalho aqui ganha contor-nos similares ao seu significado na dialética entre senhor e servo na Fenome-nologia do Espírito. O trabalho cria, transforma o mundo. Quando o indivíduo se apropria do dado natural e molda-o à sua vontade, está tornando o objeto sua propriedade. Como na sociedade civil há uma forte interdependência entre indivíduos, cada singular acaba se especializando num ofício, resultan-do na divisão dos trabalhos.

O trabalho é livre e deve perseguir fins econômicos. Esse alargamento aos extremos da singularidade inevitavelmente causará desigualdades sociais, pois o trabalho singular não consegue privilegiar a todos. A sociedade civil não está baseada em equilíbrio, mas nos excessos, o que certamente provo-ca grandes riquezas de um lado e pobrezas do outro.

19 “Die Individuen sind als Burger dieses Staates Privatpersonen, welche ihr eigenes Interesse zu ihren Zwecke haben. Da dieser durch das Allgemei-ne vermittelt ist, das ihnen somit als Mittel erscheint, so kann er von ihnen nur erreicht werden, insofern sie selbst ihr Wissen, Wollen und Tun auf allgemeine Weise bestimmen, und sich zu einem Gliede der Kette dieses Zusammenhangs machen. Das Interesse der Idee hierin, das nicht im Bewußtsein dieser Mitglie-der der burgerlichen Ge-sellschaft als socher liegt, ist der Prozeß, die Einzelheit und Naturlichkeit derselben durch die Naturnotwendi-gkeit ebenso als durch die Willkur der Bedurfnisse, zur formellen Freiheit und formellen Allgemein|heit des Wissen und Wollens zu erheben, die Subjektivi-tät in ihrer Besonderheit zu bilden”. (FD. A Sociedade Civil, § 187, HW 7. p. 343.)

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Contudo, ainda que os indivíduos sejam reduzidos à pobreza, Hegel não defende que o Estado ou outras instituições tomem conta de por um tempo. Ajudar excessivamente o indivíduo é subestimá-lo, ignorar que ele possui inteligência e possibilidade de por si mesmo sair daquela situação. A solu-ção de Hegel está nas corporações. As corporações seriam instituições cria-das por cada classe de trabalhadores, ou seja, cada profissão organiza uma corporação para defender seus direitos e interesses no Estado. Para o indi-víduo integrar uma corporação ele deve possuir oficialmente um trabalho. Os companheiros de corporação podem e devem ajudar financeiramente aqueles reduzidos a pobreza, pois como são todos trabalhadores da mesma profissão, sabem que aquele indivíduo está apenas temporariamente em má situação econômica. Nisso anula-se o assistencialismo e privilegia-se com ajudas econômicas somente aqueles que de fato exercem profissão, ou seja, contribuem. Para Hegel, o indivíduo que não possui profissão não ajuda a sociedade nem o Estado, logo também não pode ser ajudado.

Por fim, uma nação não pode viver com excessivas desigualdades sociais, porque isso resultaria em algum momento em problemas a toda a coletivi-dade. Com isso cumpre-se a passagem da sociedade civil ao Estado, o ente que reconcilia o singular com o universal.

O EstadoEmbora seja o último a momento da Eticidade, isso não significa que o

Estado seja o último a ser posto, nem historicamente nem logicamente. O Estado já existe como Ideia desde o Direito Abstrato, o que se tem aqui é apenas sua efetivação no mundo. O Estado não é criado juridicamente, não é um ato de vontade dos cidadãos que estabelecem um contrato social, pois isso seria aceitar que o Estado é uma associação atomística, em que cada indivíduo decide participar do Estado por vontade, e também por vontade poderia decidir sair dele. O Estado é o fim absoluto do mundo ético, é para ele que convergem todos os momentos, o que significa que sua ideia é que movimenta todas essas passagens.

O Estado é a realidade efetiva da ideia ética, – o espírito ético enquanto vontade substancial, manifesta, clara a si, que se pensa e se sabe, e realiza plenamente o que ele sabe e na medida em que o sabe. No costume o Estado tem ela a sua existência imediata e na autoconsciência do singular, no saber e na atividade do mesmo, a sua existência mediada, assim como essa autoconsciência do singular, através da [sua] disposição de ânimo, tem no Estado, como sua essência, fim e produto da sua atividade, a sua liberdade substancial.20

20 “Der Staat ist die Wirkli-chkeit der sittlichen Idee, - der sittliche Geist, als der offenbare, sich selbst deu-tliche, substantielle inso-fern er es weiß, vollfuhrt. An der Sitte hat er seine unmit-telbare, und an dem Selbst-bewußtsein des einzelnen, dem Wissen und Tätigkeit desselben, seine vermittelte Existenz, sowie dieses durch die Gesinnung in ihm, als seinem Wesen, Zweck und Produkte seiner Tätigkeit, seine substantielle Freiheit hat”. (FD. O Estado, § 257, HW 7, p. 398.)

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Direito e Política na Dialética de Hegel

Se o Estado já está presente desde os movimentos iniciais da Filosofia do Di-reito, isso significa que ele é a realidade efetiva da ideia ética, ou seja, a realização no mundo daquilo já se é em essência fora do mundo. É realidade efetiva porque é mediatizada, é elaborada racionalmente pela vontade dos indivíduos, e não como na família, na qual o indivíduo nasce fazendo parte dela.

Essa realidade efetiva também demonstra que o Estado é essência fim e produto da atividade do indivíduo, que encontra nele sua liberdade substan-cial, pois é uma instituição que reflete seus costumes.

Para se captar a essência do Estado hegeliano não se pode pensá-lo como algo separado do indivíduo, mas interno a ele. No Estado o indivíduo se encontra e realiza a sua liberdade. Não há como o indivíduo ser oprimido pelo Estado, porque ele quer estar nele. Se o Estado torna-se despótico, ou é porque seus indivíduos também o são, ou porque não estão agindo confor-me o conceito, isto é, liberando o agir ético e negando a condição atual do Estado para torná-lo mais adequado à sua vontade.

A substância do Estado é a lei, que se expõe como ethos, como costumes vigentes. Contudo, ressalta-se que Hegel não é favorável a um Direito basea-do nos costumes, isto é, que resista a positivar suas leis em códigos, porque dessa forma poderia torna-se demasiadamente abstrata a aplicação da lei. Sem a lei posta em algum lugar, com regras fixadas, a decisão do juiz poderia ser arbitrária. A positivação, portanto, é uma defesa aos direitos dos indiví-duos contra arbitrariedades do magistrado. A publicidade das leis é garantia fundamental dos indivíduos.

Por fim, chega-se à Constituição do Estado, que em Hegel exprime a igual-dade e a liberdade dos indivíduos. A Constituição é expressão da Justiça, porque representa os ideais, a noção de liberdade que aquele povo possui.

Isso significa que a Constituição sempre será justa, porque se ela não re-flete a vontade dos indivíduos, ela deve ser modificada por eles.

E a Constituição também representa liberdade, pois numa nação regida sob um governo constitucional significa que não há nenhum indivíduo que seja superior à lei. A lei é resultado de um movimento universal da vontade livre; sendo ela a expressão máxima, significa que todos ali são livres.

Por fim, é importante salientar que a Eticidade não elimina o Direito Abs-trato e a Moralidade, pois esses dois momentos precedentes permanecem presentes no movimento dialético de Hegel. A Eticidade contém o mundo

Direito e Política na Dialética de Hegel

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jurídico do Direito Abstrato e também a subjetividade da Moralidade. O Di-reito Abstrato garante a liberdade na lei em aspectos universais, e a subjeti-vidade da Moralidade permite a avaliação constante das leis, verificando se elas estão conforme a vontade livre dos indivíduos.

Considerações finais sobre a Filosofia do Direito e o sistema hegeliano

A filosofia hegeliana oportuniza importantes temáticas para discussões contemporâneas. O projeto hegeliano em sua Filosofia do Direito buscar conscientizar o indivíduo de sua autonomia e de seu papel irrenunciável de transformar sua própria sociedade e seu próprio mundo. Isso é delineado nas passagens dos vários momentos do indivíduo e da vontade livre: Direito Abstrato, Moralidade, Eticidade, e os seus momentos internos.

O Direito não pode ser separado da Moralidade, e ambos não podem se escusar de buscar uma Eticidade. É na totalidade que a comunidade é capaz de se organizar para a promoção do autodesenvolvimento. O Direito isolado do resto é abstrato, é coercitivo, é uma abstração do pensamento que cria regras limitadas a serem impostas aos indivíduos. O limite do Direito Abstra-to pode ser visualizado na figura do injusto. O crime, no Direito, é uma agres-são ao Direito, mas essa agressão já está incluída no sistema jurídico. Quando alguém pratica um crime, está consciente de que receberá uma pena, logo ele tem direito a essa pena. A pena inclusive possui regras quanto à sua apli-cação. Em outras palavras, o crime e a pena estão inseridos no sistema jurídi-co. Hegel demonstra que o Direito por si só, a norma restrita, não pode evitar a injustiça na sociedade, pois a norma no máximo consegue proporcionar a sanção ao criminoso.

Já a Moralidade, se absolutizada, também proporciona reflexões exagera-das, a ponto de permitir a máxima subjetividade de cada sujeito. Com tanta subjetividade perdem-se os conceitos de bem, mal, certo, errado, justo, in-justo, as máximas categorias éticas. E é no limite da moralidade subjetiva que se percebe a importância fundamental de uma comunidade regida por leis éticas.

É essencial que a comunidade seja ética. Isto é, que entenda o Direito como forma de liberdade, que seja dinâmico e transformador, que entenda os momentos históricos e locais, que se adapte a cada região e povo para

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Direito e Política na Dialética de Hegel

servir-lhes da melhor maneira possível. O Direito nunca está acabado. O Di-reito precisa ser positivo, pois senão cairia no autoritarismo daqueles que detêm o poder. E o Direito precisa permitir o exame subjetivo dos indivídu-os, para evitar da mesma forma o autoritarismo. A concepção de Direito de Hegel é bastante elevada, só capaz de ser captada por povos já considera-velmente conscientes de si. Entender que todos, numa sociedade, são res-ponsáveis pelos fracassos e sucessos, e que normas são relativas, bem como as opiniões morais, e o que deve prevalecer é a lei passageira dos costumes, que se importa mais com resultados que com ideologias, certamente exige um alto grau de autoconscientização. O Estado é espaço de liberdade, pois sem ele não há lei.

O cidadão de hoje torna-se cada vez mais apático, não se envolve nas grandes questões políticas, sociais, econômicas, jurídicas, não entende o que se passa consigo mesmo nem com o seu povo. Esse cidadão não é livre, não é consciente de si, e portanto nem seu direito nem sua sociedade são livres. Em 1821 Hegel já alertara que o Direito por si só não é capaz de au-xiliar a sociedade, antes é necessário preparar o povo. O indivíduo deve se formar e tomar consciência de si. Criminalidade, corrupção, apatia política, desigualdades sociais, são todos problemas que escondem outros maiores: os indivíduos não se reconhecem nas leis, nem entendem seu papel como operadores históricos e sociais. O indivíduo contemporâneo perde cada vez mais o poder de dizer não e mudar as instituições, aprimorá-las.

A leitura das obras hegelianas oferece grande contribuição a uma forma-ção mais qualificada do indivíduo, tendo em vista as várias dimensões da vida, como a existencial, a social, a política, a econômica e a jurídica. Essa formação é realizada por momentos, passando pelo entendimento dos de-sejos, do saber reconhecer o outro e lutar pelo próprio reconhecimento, pela necessidade de aprender a trabalhar. O trabalho transforma a si mesmo e ao mundo, pois enquanto o homem domina tecnicamente o ofício e com isso adquire uma fonte de renda, também entra em contato com o mundo, modificando-o à sua maneira. Essas dimensões existenciais presenciam-se também no mundo coletivo da sociedade.

O Direito passa pelo reconhecimento do outro através do contrato e pelo trabalho na posse. Eu adquiro a posse com o meu trabalho, com o meu esfor-ço. A moralidade busca afirmar a subjetividade de cada indivíduo, tal como a consciência de si tenta afirmar sua independência diante das demais cons-ciências de si. Por fim, a Eticidade é a harmonia do universal com o singular,

Direito e Política na Dialética de Hegel

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harmonia que garante tanto o desenvolvimento individual do cidadão como o desenvolvimento coletivo da sociedade.

Quando entende-se a Eticidade como continuação de um processo que se inicia na própria Fenomenologia, percebe-se que o mundo ético é cons-trução harmônica do indivíduo e da universalidade, um processo em que a consciência torna-se cada vez mais consciente de si, e com isso transforma o mundo, o que significa trabalhar aspectos naturais, sociais, políticos, cultu-rais, jurídicos, econômicos etc. O homem torna-se consciente de si e com isso passa a viver uma segunda natureza, que se manifesta na cultura de cada povo. A formação do indivíduo, então, é um processo histórico, que se dá na prática, nas várias dimensões da vida.

Ampliando seus conhecimentos

Política e liberdade em Hegel(ROSENFIELD, 1983)

Hegel viu, na sua época, o surgimento de um Estado em processo de tor-nar-se a imagem (Bild) e a efetividade (Wirklichkeit) da razão. Um Estado que é, por assim dizer, o elemento natural no qual se desenvolvem as atividades artísticas, religiosas e filosóficas. A presença do conceito a si perpassa todos os domínios do real e se põe como palavra verdadeira graças a uma filosofia que se efetuou na imediação do mundo como mundo livre. As diferentes figuras e esferas do real determinam-se reciprocamente e, dessa circularidade, nasce a ideia da liberdade como realidade viva e côo atualização efetiva do conceito. O cidadão cria as condições necessárias a uma nova mediação do seu próprio fundamento. Pode-se dizer que a formulação de Hegel no tocante à mútua de-terminação do Estado e da atividade substancial dos cidadãos não está bem fundamentada considerando-se as circunstâncias históricas que presidiram tal pensamento do mundo político. Em todo caso, não se pode dizer que a concepção hegeliana visa a uma maior dominação do Estado sobre a vida dos indivíduos. A história nem sempre escolheu esse caminho do cidadão cons-ciente de suas próprias determinações, tendo, inclusive, em várias ocasiões, tomado o caminho contrário. Não é, contudo, menos verdadeiro que Hegel pensou, por meio da instabilidade do seu tempo, uma liberdade já efetiva que anunciava um novo movimento de figuração. Pensou também nas determi-

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Direito e Política na Dialética de Hegel

nações que poderiam tornar contingente a realização desse movimento de figuração da liberdade.

Nessa perspectiva, é interessante fazer uma breve comparação com Platão e Aristóteles, que estão em estreita correspondência com o que Hegel deno-mina bela unidade da cidade grega e cujos pensamentos aparecem quando essa unidade já não mais existe. A corrupção dos costumes já tinha tomado conta da vida da polis, anunciando o fim de uma época. Eles puderam pensar a bela harmonia da cidade como fim último do agir humano, pois haviam se distanciado de uma situação histórica que não correspondia mais ao conceito dessa individualidade ética. Suas tentativas de restabelecer a harmonia per-dida estavam destinadas ao fracasso, porque desconheceram a verdade que nascia, a liberdade subjetiva. A cidade recusou-se a integrar em si o que, no entanto, tinha nascido nela. A particularidade desenvolveu-se em oposição à unidade ética: de modo subjetivo, ela concretizou-se na religião cristã e, obje-tivamente, no mundo romano.

Hegel aborda o presente de outra maneira: diante da oposição entre o princípio da liberdade subjetiva e o da substancialidade ética, parte em busca do movimento que dá a essa oposição sua razão de ser. É essa lógica do po-lítico que lhe permitiu pensar o que estava morrendo – e que não voltaria mais – e considerar ainda que aquilo que morre gera sua própria mediação, originando uma nova figura que vive do seu processo de diferenciação. Hegel tentou pensar o dado segundo duas ordens de significação que se fundem em uma única: o abismamento é ao mesmo tempo um ir ao fundamento. O conceito reencontra-se e aparece a si na sua própria reflexividade. O que se pode denominar de patrimônio da Ideia, a memória que ela tem de si como produto de seu movimento de figuração, é o que permite à consciência que os povos têm de si apreender o processo de aprofundamento de uma época em si, ou melhor, criar uma nova época.

Não se pode atribuir a Hegel o caminho realmente trilhado pela história. Ele poderia responder que fomos advertidos da presença de uma contingên-cia que exige enfrentamentos de modo consciente a imprevisibilidade dos acontecimentos. Pensou – e contribuiu para criar – o surgimento de um novo conceito do indivíduo concretizado no Estado como vontade substancial. Afastando-se de seu conceito, padecendo a história em vez de transformá-

Direito e Política na Dialética de Hegel

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-la segundo a verdade de seu próprio fundamento, o Estado não somente deixou de resolver os problemas colocados pela história como não realizou o seu movimento de volta a si, mantendo-se numa reflexão exterior. Hegel interroga-se ainda – e nos interroga – sobre o que aconteceu com a efetuação da liberdade. Os violentos acontecimentos que marcaram os séculos XIX e XX recolocaram, com maior intensidade, a problemática enfrentada pelo filóso-fo: como organizar livremente as relações entre o indivíduo e a comunidade em um único movimento de mediação? Pensar o indivíduo como membro de uma comunidade livre, eis uma das questões com a qual nos debatemos ainda hoje. A Filosofia do Direito é uma obra cuja importância aumenta se con-siderada a partir de um movimento de figuração pelo qual a Ideia chegou a se pensar como produto de um processo histórico. Ela apresenta o pensar de uma lógica do político que é, como toda reflexão, prospectiva e voltada para o futuro graças ao movimento lógico por ela produzido. O desafio lançado por Hegel é o de pensar a contingência necessária da sua própria filosofia.

Atividades de aplicação1. A Fenomenologia tem como objetivo conduzir o indivíduo desde o

saber inculto até o saber absoluto, o filosófico, devendo para isso o mesmo superar vários momentos, experiências da consciência, como a dialética do reconhecimento e a dialética entre senhor e servo. Esses movimentos são impulsionados pelo desejo. Explique como você en-tendeu ser o desejo para Hegel.

2. A Filosofia do Direito, em Hegel, ocupa um estágio intermediário entre o espírito subjetivo e o espírito absoluto. Interprete o que isso signifi-ca, pensando o Direito em relação ao mundo.

3. Na Eticidade o indivíduo se vê nas leis, nos costumes, por isso para ele é um dever ético obedecer a Constituição. Relacione isso à contempo-raneidade: os indivíduos hoje se veem na Constituição?

4. O Estado é o fim absoluto do mundo. Interprete a sentença hegeliana, que para alguns significa sua defesa ao totalitarismo estatal contra o indivíduo.

254

Direito e Política na Dialética de Hegel

Gabarito1. O desejo é uma impulsão interna que movimenta a consciência a sair

de si mesma e ir buscar realizar suas necessidades. O desejo é algo natural ao indivíduo, por isso não se satisfaz com o consumo desse alimento ou dessa situação específica.

2. Para Hegel o Direito não é o fim absoluto do ser, da lógica imanen-te que movimenta a existência. O Estado é apenas o fim absoluto do mundo, mas para isso percorre os momentos dialéticos conforme con-ceitos fenomenológicos e lógicos, pois o Direito não é autônomo, mas dependente de outros conteúdos.

3. Não, pois o desrespeito à lei, o ato de negar o Direito é apenas falta de reconhecimento do indivíduo para com as instituições e leis. O indiví-duo de hoje não vê o seu Direito como algo ético.

4. Não procede essa interpretação, porque o Estado é apenas o fim abso-luto do mundo porque contém a vontade posta do indivíduo. A Ideia do Estado já estava em todos os momentos anteriores. Sendo assim, o indivíduo é livre no Estado, porque é livre para obedecer somente as leis criadas por ele mesmo.

ReferênciasBOURGEOIS, Bernard. Os Atos do Espírito. Tradução de: NEVES, Paulo. São Leo-poldo: Editora UNISINOS, 2004.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciencia de la Logica. Tradução de: MONDOLFO, Augusta; MONDOLFO, Rodolfo. Buenos Aires: Solar, 1968.

LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Structures et Mouvement Dialectique dans la Phé-noménologie de L’Esprit de Hegel. Paris: Aubier-Montaigne, 1968.

LEFEBVRE, Jean-Pierre; MACHEREY, Pierre. Hegel e a Sociedade. São Paulo: Dis-curso Editorial, 1999.

ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983.

O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

IntroduçãoNeste momento trataremos de duas correntes de pensamento diversas,

mas de grande importância para a constituição da racionalidade contem-porânea e para a construção dos últimos sistemas filosóficos jurídicos. Essas correntes são o marxismo e a corrente filosófica existencialista que, ao in-dagar o problema da existência humana e dos objetivos das ciências repre-senta uma importante influência na busca pela retomada de um Direito que esteja em conformidade aos anseios do indivíduo.

Karl MarxO filósofo alemão Karl Marx é identificado como pensador do materialis-

mo dialético, ou materialismo histórico. O materialismo dialético é um dos momentos de maior repercussão na história da Filosofia, pois implica o en-tendimento do mundo e da sociedade como processo de constante trans-formação. O mundo hoje é diferente daquele de ontem e também do de amanhã, e quem executa a transformação é a própria sociedade. O mundo está ligado à história, e por isso a Filosofia pode transformar a realidade e não apenas estudá-la.

Essa mudança é fundamental, pois não surtiria efeitos somente na área intelectual, nos debates acadêmicos e filosóficos sobre as concepções de Justiça, ser, liberdade, entre outras categorias, com isso a filosofia de Marx influenciaria decisivamente os eventos da história mundial que se desenro-lariam nos séculos seguintes. Como se verá, não há como se falar em Revo-lução Russa, Revolução Mexicana, nas duas Grandes Guerras e mesmo na Guerra Fria, sem se fazer menções a Karl Marx.

Antes de se adentrar na teoria de Marx, é importante assinalar que suas concepções filosóficas nascem não somente da reflexão intelectual, mas de suas observações a fatos históricos e o que eles representam para o período

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O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

em que vivia, tais como a ascensão burguesa ao poder, sobretudo com a Revolução Francesa, ou a explosão capitalista e sua relação com as qualida-des de vida no trabalho reduzidas com a Revolução Industrial.1

Marx diferencia-se dos demais, sobretudo, pela necessidade de não so-mente estudar e analisar a realidade, mas principalmente em modificá-la. O pensamento de Marx é impregnado de ativismo político e de indignação para com a Filosofia.

[...] indignação e insatisfação com o papel que vinha exercendo até o momento (“Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém de modificá-lo”). A estagnação e o diletantismo acadêmico ou teórico não eram mais suficientes, pois o mundo conclamava decisões, e, de preferência, incisivas e radicais, com vista na modificação do status quo vivido pela sociedade. O profundo conhecimento da história e do funcionamento da sociedade no plano econômico permitia a Marx estar plenamente consciente de como funcionava sua mecânica e de como sua estrutura se reproduzia no processo de exploração de classes; quanto a esse aspecto, a Filosofia nada havia feito até então.2

Para Marx, a Filosofia não deveria justificar juridicamente e ideologicamen-te as estruturas sociais, incluindo aqui a desigualdade social entre classes, a opressão burguesa ao proletariado. A teoria não poderia justificar a prática, mas modificá-la. Essa Filosofia como práxis influenciou decisivamente o século XX, por meio de usos tanto adequados como inadequados de sua obra. As leis trabalhistas, que reduzem a jornada diária de trabalho, e estabelecem direitos sociais básicos como o 13.º e o salário mínimo, são todas consequências da filo-sofia de Marx; por outro lado, as ditaduras de Stalin e Mao Tse Tung, por exem-plo, ainda mais opressoras que a antiga violência capitalista contra as classes mais baixas da sociedade, também resultaram da leitura de suas obras.

A obra de Marx é extensa, de forma que aqui serão apresentados apenas alguns pontos de suas concepções filosóficas, políticas e jurídicas.

A filosofia de MarxA dialética hegeliana ainda se baseava na esfera da Ideia, do pensamento, e

para Marx, o seu aspecto absoluto como regra de funcionamento, inclusive da história, somente justificaria a crescente opressão capitalista e burguesa.3 Para Marx, “o aqui e agora são importantes nessa proposta de tornar a Filosofia algo capaz de intervir no ser histórico das coisas e, até mesmo, estacar o antigo regime de continuação dos modos sociais de exploração do homem pelo homem”4. A Filosofia deveria entender a realidade social, mas também buscar modificá-la, pois somente assim seria possível não alimentar o antigo sistema.

1 “Tendo vivido um mo-mento conturbado da história europeia, conhe-cendo de perto os efeitos funestos deixados pela introdução do modo de produção industrial na economia (desde a Revo-lução Industrial), e tendo analisado com percuciente ótica a ascensão da classe burguesa no domínio dos meios de produção agrí-cola e industrial (desde o Renascimento), estando consciente do enriqueci-mento das nações, sobre livrar-se dos cânones im-ponentes da filosofia es-peculativa e racional (ao estilo de Hegel) e cons-truir um sistema de ideias que fosse o motor de mudanças sociais. Nesse sistema, estava prevista uma natural aversão, até mesmo física, a tudo que fosse de origem burgue-sa, como demonstração de seu irrefreável repúdio à exploração econômica burguesa”. (BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Políti-ca. p. 228.)

2 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política, p. 229.

3 Uma das principais crí-ticas de Marx a Hegel é que o idealismo teria se importado tão somente com as ideias puras, e que inclusive na interpretação de uma filosofia da histó-ria se limitaria a descrevê-la nessa perspectiva. Para Marx, ler não era sufi-ciente, mas era essencial compreender os interes-ses reais e políticos que movem a história. (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 2. ed.Tradução de: COSTA, Luis Claudio de Castro e. São Paulo: Martins Fontes, 1998.). Além disso, para entender a crítica de Marx a Hegel, é essencial a lei-tura de sua Crítica da Filo-sofia do Direito de Hegel. MARX, Karl. Crítica da Filo-sofia do Direito de Hegel. Tradução de: ENDERLE, Rubens e DEUS Leonardo de. São Paulo: Boitempo, 2005).

4 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política, p. 229.

O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

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Quando Marx analisou a realidade social de seu período histórico, perce-beu que o capital reproduzia-se cada vez mais, mas por outro lado as con-dições de trabalho da classe operária tornavam-se mais injustas. Analisando essa situação, Marx entendeu que a classe operária era basicamente mão de obra barata para o enriquecimento da classe burguesa.5 Ademais, esse pa-norama social tendia a fortificar-se, a menos que houvesse alguma ação con-trária que impedisse o seu desenvolvimento. O materialismo histórico via na revolução contra o sistema a única possibilidade de reverter a situação.6

Tal situação se torna ainda mais evidente quando Marx insere seu conceito de mais-valia. Há sempre um cálculo do investimento no trabalho do operário e daquilo que este executa. A renda obtida com seu esforço é repartida entre capitalista e operário, sendo para este último na forma de salário. Mas a produ-ção verdadeira é em geral maior do que o calculado, e esse dinheiro excedente retorna em enriquecimento do capitalista. Esse diferencial é fator determinan-te para o aumento das desigualdades sociais, pois tende a ampliar cada vez mais, com os capitalistas mais ricos e os operários mais pobres.

É essa revolução que Marx defende no Manifesto do Partido Comunista. Nessa obra, o autor não somente analisa e justifica teoricamente a necessi-dade da revolução do proletariado, mas dá também os passos seguintes, as indicações das ações que deveriam ser tomadas após a classe do proletariado tomar o poder dos burgueses e passar a centralizar os recursos nas mãos do Estado, que seria então controlado pelos proletários. Entre as medidas que seriam adotadas pelos comunistas estariam a expropriação da propriedade latifundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado, a abolição do direito de herança, a centralização nas mãos do Estado de todos os meios de transportes, educação pública e gratuita de todas as crianças, combina-ção do trabalho agrícola com o industrial, entre outras.

Percebe-se que todos os pontos conduzem a uma centralização do poder nas mãos do Estado, que por sua vez seria controlado pela sociedade civil. Essa revolução, o ato violento de modificar a estrutura social vigente, seria a única forma de impedir as tendências históricas. O indivíduo sempre havia sido oprimido pelas classes dominantes, primeiro com a escravidão, depois com o servilismo, depois com o colonialismo, e agora com práticas de opres-são ao proletariado. Marx reconhece méritos na revolução dos burgueses contra a monarquia absolutista, mas também percebe que em seu período histórico a supremacia do poder apenas havia sido transferida da monarquia à classe burguesa. A revolução social, para Marx, se daria então na:

5 “O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer que parte da sociedade possua o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao tempo de trabalho necessário à sua autoconservação um tempo de trabalho exceden-te destinado a produzir os meios de subsistência para o proprietário dos meios de produção, seja esse proprietá-rio aristocrata ateniense, teo-crata etrusco, civis romanus, barão normando, escravo-crata americano, boiardo da Valáquia, landlord moderno ou capitalista. É claro, entre-tanto, que se numa formação socio econômica predomina não o valor de troca, mas o valor de uso do produto, o mais-trabalho é limitado por um círculo mais estreito ou mais amplo de necessidades, ao passo que não se origina nenhuma necessidade ilimi-tada por mais-trabalho do próprio caráter da produção. O sobretrabalho mostra-se tenebrosamente na Antigui-dade, por conseguinte, onde se trata de ganhar o valor de troca em sua figura autônoma de dinheiro, na produção de ouro e prata. Trabalho força-do até a morte é aqui a forma oficial de sobretrabalho”. MARX, Karl. O Capital. 3. ed. Tradução de: BARBOSA Regis e KOTHE Flávio R. . São Paulo: Nova Cultural, 1988.v. I, tomo 1, p. 181.)

6 A filosofia de Marx se direciona em seu conjunto a uma revolução histórica. Esse pressuposto o torna distinto dos outros pensado-res, pois Marx talvez seja o único que tem no amanhã o ponto crítico de seu pen-samento: “O momento crítico no trabalho de Marx remete pois a uma oposição entre a natureza, ou o ponto de vista ‘metafísico’, e a história (Gramsci falará de ‘historicismo absoluto’). E a filosofia de Marx, acabada ou não, convoca a si mesma para a tarefa de pensar a ma-terialidade do tempo. Mas essa questão, como também vimos, é indissociável de uma demonstração cons-tantemente reformulada: o capitalismo, a ‘sociedade civil-burguesa’ trazem em si mesmos a necessidade do comunismo. Eles estão, como diria Leibniz, ‘grávi-dos do futuro’. E esse futuro é amanhã. O tempo, como tudo indica, é apenas o outro nome do progresso, a menos que seja a condição de pos-sibilidade formal deste”. (BALIBAR, Étienne. A Fi-losofia de Marx. Tradução de: MAGALHÃES Lucy. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.)

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O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas

[...] ruptura das estruturas de poder, para a instauração provisória do governo proletário e o desmonte paulatino e sucessivo do Estado, com vista na constituição do comunismo como forma unitária, de iniciativa da sociedade civil, imposta de cima para baixo pela superestrutura estatal (com seus aparatos de força, coação, leis, políticas, burocracia...), de condução dos negócios de interesse coletivo.7

Decorre desse raciocínio que, para Marx, também o Direito é somente um instrumento de dominação social, de opressão das classes dominantes contra o proletariado. O Direito não estaria ligado à realização da justiça ou da liber-dade, mas da continuação da opressão à classe operária. Por isso também o sistema jurídico deveria ser subvertido na revolução, e adequando-se às novas exigências sociais, de privilegiar o proletário. Marx via a sociedade de sua época como um sistema que visava apenas uma direção: o crescente enriquecimento dos burgueses com o fortalecimento do capitalismo e cada vez maior desvalorização do proletariado. Nessa linha, não somente o siste-ma jurídico, mas também a moral convencional, e inclusive a religião, seriam instrumentos de dominação social. Não obstante, convém lembrar que Marx é de cunho prático, ou seja, visa resolver situações sociais e econômicas do aqui e agora, de forma que suas análises do Direito, da religião e da moral se dão no campo institucional, e de sua influência no sistema vigente, e não necessariamente conceitualmente. Em outras palavras, o conceito de Direito, de religião, de moral, entre outras categorias, não seriam tão importantes quanto as suas manifestações práticas na sociedade.

Trazendo para a atualidade, a questão levantada por Marx diante do au-mento das desigualdades sociais torna-se ainda mais relevante. O Direito em muitos casos segue sendo instrumento de dominação, para ampliar as desigualdades, seja em plano interno, dentro dos países, seja no plano in-ternacional. A postura de Marx deve ser sempre lembrada e refletida para os nossos dias. Será que as leis refletem benefícios à coletividade ou apenas reforçam o melhor para uma minoria? Não somente no que concerne às leis trabalhistas, mas a todo o ordenamento jurídico e ao próprio sistema que rege a vida das pessoas. É necessária essa postura crítica permanente para que a justiça seja perseguida, uma postura que identifique em cada ato do Estado, em cada lei, se ela beneficia a sociedade ou apenas partes dela.

S0ren KierkegaardO filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard8 é considerado um dos pre-

cursores, ou até mesmo o primeiro dos filósofos da corrente existencialista.

7 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política, p. 234.

8 Søren Aabye Kierkega-ard nasceu em 5 de maio de 1813, em Copenhage. Recebeu uma educação extremamente religiosa de seu pai. Em 1830 entrou na Universidade de Co-penhague, onde estudou Teologia. Na Universidade interessou-se mais pelos estudos de Filosofia, Lite-ratura e História. A figura severa de seu pai, que acre-ditava viver sob maldição divina, refletiu na formação de seu filho e seu relaciona-mento com Regina Olsen, com quem noivou, desis-tindo, porém, de casar-se, apesar de manter vivos seus sentimentos por ela, que marcaram sua vida e seu pensamento. Mudou- -se para Berlim para estu-dar, onde pôde estudar com Schlelling. Ao retornar à Dinamarca, combate à Igreja oficial danesa, a qual em sua opinião somente conservava de cristã o nome. Kiêrkegaard fale-ceu em 4 de novembro de 1855. (COPLESTON, Frederi-ck. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. 4. ed. Traducción de: DOMÉ-NECH, Ana. Barcelona: Ariel, 1999. p. 263-266.)

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Seu pensamento centra-se na valorização da individualidade, a qual, para o pensador, somente será efetivada através do vínculo com o divino. Para Kierkegaard a existência é uma categoria que se refere ao indivíduo livre, portanto, existir significa realizar-se a si mesmo por meio da livre escolha entre as alternativas que surgem na existência e por um próprio compro-misso, significa ser cada vez mais indivíduo e cada vez menos um simples membro de um grupo.9 Unir-se ou fundir-se um mesmo no universal, seja o Estado ou o pensamento universal, equivale a rejeitar a responsabilidade pessoa e a autêntica existência.10

Em sua obra Ou Isto, ou Aquilo Kierkegaard esclarece sua atitude frente à vida, na qual manifesta que a existência do indivíduo é caracterizada pela escolha.11 O autor identifica três estados da existência humana, pois o existir não é um ato unitário ou uma disposição genérica, mas sim a articulação de uma escala de possibilidades e estados, a vida é um processo dialético12, onde a transição entre as etapas não ocorre pelo pensamento, mas mediante um ato de vontade, por um salto, um ato de mudança da própria existência, e não por uma síntese conceitual.13

Os três estágios referidos são, respectivamente, o estético, o ético e o re-ligioso. No estado estético o homem vive sempre na figura do momento, na busca pelo prazer sensível. O homem está próximo ao desespero nesse estado. Quanto mais consciente estiver de encontrar-se nesse estado, mais próximo fica ao momento de decidir, ou seguir vivendo no “sótão do próprio edifício”, ou efetuar a transição ao nível superior. A figura que representa esse estágio é o Don Giovanni, personagem de uma das mais famosas óperas de Mozart. No próximo estágio o homem aceita determinados princípios e obrigações morais, se submete aos ditados da razão universal, definindo a forma e a con-sistência de sua vida. Esse estágio é representado por Sócrates, e o exemplo dessa passagem formulado pelo pensador envolve a renúncia do homem à satisfação dos impulsos sexuais, sabendo que são atrações passageiras, prefe-rindo contrair matrimônio, aceitando as obrigações atinentes a essa relação.14

Contudo, a serenidade encontrada no estado ético se vê bruscamente di-minuída quando se alcança o estágio religioso, simbolizado por Abraão e sua opção por sacrificar seu próprio filho, Isaac, a Deus. Estabelecendo a relação do homem com Deus, o Absoluto pessoal e transcendente, o homem torna- -se o que realmente é: um indivíduo perante Deus. É pela fé que o homem faz a mais profunda passagem de sua existência, através dela esse homem pode considerar-se de fato existente, livre.

9 “Na espécie animal, vale sempre o princípio: o indi-víduo é inferior ao gênero. Já no gênero humano pre-valece a característica, pre-cisamente porque cada in-divíduo é criado à imagem de Deus, de que o indiví-duo é mais elevado do que o gênero”. (KIERKEGAARD apud REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1991. 3.v. p. 238.)

10 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. p. 263.

11 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. p. 239.

12 Nota-se aqui a influên- cia do pensamento do filósofo alemão Hegel em Kierkegaard. O pensador dinamarquês dedicou-se ao estudo das ideias de Hegel, criticando o afas-tamento do indivíduo na busca pelo sentido univer-sal na filosofia hegeliana. Constata-se que essa crí-tica relaciona-se à própria filosofia kierkegaardiana e sua proposta de desenvol-vimento do indivíduo na existência.

13 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. p. 267.

14 ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di storia della filosofia. Gius. Laterza & Figli Spa: Roma-Bari, 1996. p. 132.

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Concluindo tal ponto, somente pode se considerar existente aquele que conseguiu afirmar-se como indivíduo, não somente como gênero. Este tor-na-se um verdadeiro ator da vida, não mero espectador. Assim, constata-se que, para Kierkegaard, o termo existência é neutro e pode ser aplicado aos três estados da dialética.15

Outro assunto tratado pelo filósofo dinamarquês é o conceito de angústia, tema de seu livro O Conceito de Angústia, no qual Kierkegaard a define como uma “simpatia antipática e uma antipatia simpática”. A angústia refere-se àquilo que é indefinido e desconhecido, reflete ao mesmo tempo as expectativas e temores referentes a tal ponto, aplicando essa ideia ao pecado. Essa angústia pode ser condição primordial para que o indivíduo faça a passagem existencial, tirando-o de sua conduta habitual, por mais que esta lhe agrade. Esse tipo de angústia possibilita ao homem alcançar a liberdade, pois a angústia é superada pelo salto, pela passagem a um dos níveis anteriormente elencados.

Finalizando este tópico, constata-se que para Kierkegaard é o próprio in-divíduo que se encontrará através das escolhas que reforcem sua subjeti-vidade. Através destas, o homem encontra e relaciona-se com Deus, sendo este o ápice da existência humana, possível, contudo, somente àqueles que deixam de ser simplesmente parte do grupo.

Friedrich NietzscheFriedrich Wilhelm Nietzsche16 é um dos mais influentes pensadores do

séc. XX, sendo uma das principais bases sobre as quais se fundou a filosofia existencialista. Sua filosofia é uma proposta de inversão das ideias filosóficas e dos valores morais tradicionais. Por tal motivo foram dadas as mais variadas interpretações ao seu pensamento, das mais liberais às mais conservadoras.

Enquanto jovem, duas personalidades marcaram profundamente o pen-samento de Nietzsche, o filósofo Schopenhauer e o compositor Richard Wagner. Sob a influência de ambos publica em 1872 sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia17. Nessa época Nietzsche entendia a vida como “cruel e cega irracionalidade, dor e destruição”18. Só a arte poderia oferecer ao in-divíduo a força e a capacidade de enfrentar a dor da vida, dizendo sim a ela. Nietzsche via em Wagner o espírito do retorno à Grécia, mas não a Grécia pós- -socrática, a qual é por ele criticada, mas sim à Grécia do período dos filósofos pré-socráticos e dos primeiros tragediógrafos. Nesse momento da civilização grega Nietzsche identifica o espírito de Dionísio. A divindade grega Dionísio

15 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. p. 263. p. 273.

16 Nasceu em Röcken, Alemanha, em 15 de ou-tubro de 1844. Estudou Filologia Clássica na Uni-versidade de Bonn (1864) e de Leipzig (1865). Dessa época ocorre a aproxima-ção com o Schopenhauer e Wagner, duas grandes influências do seu pen-samento na juventude. Tornou-se professor de Fi-lologia Clássica na Univer-sidade da Basileia. Sua má saúde, junto a uma insa-tisfação que se refletia em desgosto e suas dúvidas profissionais o levaram a renunciar sua cátedra na Basileia, passando a viver em diversos lugares da Suíça e Itália, viajando ocasionalmente à Ale-manha. Suas principais obras são O Nascimento da Tragédia, Gaia Ciência, Assim Falou Zaratustra, Ge-nealogia da Moral, Além do Bem e do Mal, O Anticristo e Ecce Homo. Ao final de 1889 passaram a surgir evidentes sinais de loucu-ra. Em janeiro de 1889 foi internado em uma clínica na Basileia. Nunca mais se recuperou totalmente, passando a viver com sua mãe e, após a morte dela, com sua irmã em Weimar. Nietzsche morreu em 25 de agosto de 1900. (SA-FRANSKI, Rudiger. Nietzs-che: biografia de uma tra-gédia. Tradução de: LUFT, Lya. São Paulo: Geração Editorial, 2001.)

17 NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenis-mo e Pessimismo. Tra-dução, notas e posfácio de J. Guinsburg. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

18 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. p. 426.

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representa a imagem da força instintiva e da saúde, símbolo de uma humani-dade em plena harmonia com a natureza. O desenvolvimento da arte grega estava ligado a esse espírito, o dionisíaco, e também ao apolíneo, de Apolo, outra divindade relacionada com as artes, mas consubstanciada na tentativa de expressar o sentido das coisas na medida e na moderação.19

Essa compreensão representa de maneira preliminar o modo pelo qual Nietzsche representaria o homem de sua época e sua profunda crítica à moral de seu tempo. O dionisíaco é o seu próprio pensamento. As culturas sublimam as energias dionisíacas: “O dionisíaco jaz diante da civilização e de-baixo dela é a dimensão a um tempo sedutora e ameaçadora do inaudito”20.

O afastamento de Schopenhauer e de Wagner marcam o princípio do segundo período do pensamento filosófico de Nietzsche, quando ele ataca aos metafísicos indiretamente, buscando demonstrar que os aspectos da ex-periência e os conhecimentos humanos que, supunha-se, necessitavam de explicações metafísicas, ou justificar uma superestrutura metafísica, pode-riam ser explicados em linhas materialistas. Nessa fase, Nietzsche inicia sua campanha contra a moralidade de autorrenúncia. Em Gaia Ciência o autor expõe a ideia do cristianismo como hostil à vida, bem como já expõe a ideia da morte de Deus.

Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche diz ter descoberto dois tipos primá-rios de moral, “a dos chefes e a dos escravos”, mescladas em todas as civiliza-ções superiores, elementos de ambas podem se encontrar inclusive em um mesmo homem. A moral dos chefes é a moral aristocrática, “bom” e “mal” são equivalentes de “nobre” e “plebeu”. Já na moral dos escravos a norma é o que for benéfico à sociedade do débil e impotente. Valorizam-se qualidades como simpatia, bondade e humildade, os indivíduos fortes e independentes são considerados perigosos. As valorações morais dessa segunda concepção são expressões das necessidades do “rebanho”.21

Em A Genealogia da Moral, utiliza o conceito de ressentimento, na relação em que o homem superior cria seus próprios valores partindo da abundân-cia de sua vida e energia, ao passo que o submisso e impotente teme ao forte e poderoso e tenta contê-lo e dominá-lo afirmando como absolutos os va-lores do rebanho. Essa rebelião se principia com o ressentimento, passando a ser criador, originário do nascimento dos valores. Na história há o confli-to dessas duas atitudes morais. Enquanto o homem superior pode coexistir com ambas, mantendo seus próprios valores, o rebanho, incapaz de qual-quer coisa superior e disposto a manter seus valores para si mesmo, tenta

19 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. p. 428.

20 SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. p. 58.

21 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. p. 263. p. 316.

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impor universalmente seus valores. Nessa linha desenvolve-se a crítica niet-zscheniana ao cristianismo. “Nietzsche não nega todo valor da moral cristã. Admite, por exemplo, que há contribuído ao refinamento do homem. Mas vê nela, ao mesmo tempo, uma expressão do ressentimento característico do instinto do rebanho, ou moral dos escravos”22. A esse mesmo ressentimento são atribuídos os movimentos democráticos e socialistas que Nietzsche os interpreta como consequências do cristianismo.

Nietzsche não nega a moral, mas propõe sua reestruturação, de modo que o homem superior possa seguramente viver mais além do bem e do mal, sem a moral do ressentimento, podendo assim transcender-se a si mesmo até o além-do-homem23. A crítica de Nietzsche não se dirige à figura de Cristo, mas à construção histórica da religião cristã, a qual diz ele depreciar o corpo, o impulso, o instinto, a paixão, o desenvolvimento da mente livre e sem travas, os valores estéticos.24

Em Gaia Ciência, Nietzsche destaca que o acontecimento mais importan-te da época atual é que Deus está morto, e foi morto pela humanidade. A fé no deus cristão se fez impossível de manter e já começa a dissipar as primei-ras nuvens sobre a Europa. Nietzsche até chega a aceitar que a religião em algumas fases expressou a vontade de viver, ou melhor, de poder, mas sua atitude geral é que a fé em Deus, especialmente da religião cristã, é hostil à vida e que quando expressa a vontade de poder, tal vontade é aquela dos tipos inferiores de homem.25

O filósofo destaca que os europeus foram educados à aceitação dos va-lores morais cristãos associados à fé cristã, em certo sentido dependentes dela. Se os europeus perdessem sua fé nesses valores, perderiam sua fé em todos os valores. O desprezo de todos os valores, que brota do sentimento de carência do objetivo do mundo é um dos principais elementos do niilis-mo26. Assim, pode-se dizer que a moralidade opera-se como um antídoto (Gegenmittel) contra o niilismo teórico e prático exercendo o papel de segu-rar o homem, pois, sem sua segurança, resta o nada e o homem não possui sentido para existir. Nesse sentido, a moral cristã exerce um valor por segurar os homens inferiores contra isso. Para Nietzsche, o advento do niilismo é ine-vitável. Por mais que haja seu risco premente, esse movimento possibilitará o caminho até um novo horizonte, até uma transformação dos valores, até o nascimento de um tipo superior de homem.27

Importante para a construção desse tipo de homem é o amor fati, amar o necessário, aceitar esse mundo e amá-lo, aceitar o eterno retorno28 da vida. Para

22 “Nietzsche no niega todo valor a la moral Cris-tiana. Admite, por ejem-plo, que ha contribuido al refinamiento del hombre. Pero ve en ella, al mismo tiempo, una expresión del resentimiento característi-co del instinto del rebaño, o moral de los esclavos”. (COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. p. 263. p. 316.)

23 No original, Ubermens-ch. A tradução desse con-ceito gera discussões no meio acadêmico, sendo que boa parte recomenda a tradução como além-do-homem, conforme adotou Rubens Rodrigues Torres Filho em sua tradução para a coleção Os Pen-sadores da editora Nova Cultural, ao contrário da corriqueira tradução “su-per-homem” (LUFT apud SAFRANSKI, Rudiger. Niet-zsche: biografia de uma tragédia. p. 98.)

24 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. p. 263. p. 316-317.

25 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. p. 263. p. 317.

26 Do latim nihil, nada.

27 COPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía: 7: de Fichte a Nietzsche. p. 263. p. 319.

28 Em um tempo infinito existem ciclos periódicos em que tudo o que su-cedeu se repete de novo. Essa concepção é posta nos lábios do sábio persa Zaratustra, protagonis-ta do seu mais famoso trabalho, Assim Falou Zaratustra.

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se refundar a vida, ciente do mundo em que se encontra, deve-se criar um novo sentido da terra, esse é o além-do-homem. Não é a humanidade, senão o além--do-homem, pois a meta a ser alcançada, a superação do próprio homem.

Por fim, destaca-se a crítica de Nietzsche ao Estado, feita logo na primeira parte de Assim Falou Zaratustra, entendendo-o como “o mais frio de todos os frios monstros”, o novo ídolo erigido a si mesmo como objeto de adoração e tenta reduzi-lo todo a um estado comum de mediocridade. O Estado impede os indivíduos excepcionais de se desenvolverem, reforçando os valores da inferio-ridade. O Estado, diz ele, é frio até no mentir, ao dizer que ele, o Estado, é o povo, bem como propor-se a ser como um deus na terra. Somente onde o Estado deixa de existir, ao menos para o indivíduo, começa o homem não inútil.29

Pelo que foi visto, constata-se que o pensamento de Nietzsche possui re-lações com o desenvolvimento de lideranças, pois àqueles que se propõem a conduzir outros indivíduos a um determinado escopo que gere resultados a todos eles é primordial primeiramente um tipo de atitude própria que se diferencie da atitude dos demais. Isso não significa que esse homem é uma espécie superior aos seus coordenados, mas que ele deve ter um modo de agir e pensar diferente dos demais integrantes do grupo. Cada um tem sua importância na consumação do escopo, mas ao líder cabe a inteligência de saber coordená-los, de saber potencializar a capacidade de cada um e para isso ele deve se diferenciar destes.

É nessa linha que também se encontra a crítica de Nietzsche ao Estado, este ente busca tutelar o interesse de todos, regulando a sociedade com base na média, naquilo que é benéfico à maioria dos indivíduos, contudo ao homem que coordena outras pessoas isso não basta, entra-se na necessidade de que esse homem por si próprio se desenvolva e se prepare adequada-mente para que então possa vir a conduzir outras pessoas, esse é o principal significado de se fazer o Estado deixar de existir ao indivíduo.

Edmund HusserlEdmund Husserl30 é o fundador do movimento fenomenológico, uma pro-

posta de refundação do critério científico através do retorno às próprias coisas “indo além da verbosidade dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar”31. Trata-se de uma verdadeira crítica às concepções positivistas32 da ciên-cia e uma busca por dar à Filosofia o caráter rigoroso de uma ciência.33 Nesse escopo, precisa-se partir de dados indubitáveis para, com base neles, operar a

29 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. p. 429.

30 Edmund Husserl, nasci-do em 1859, depois de ter terminado seu doutorado em Matemática, assis-tiu às aulas de Brentano em Viena (1884-1886) e baixo a sua influência se consagrou à Filosofia. Foi professor de Filosofia em Göttingen e mais tarde em Freiburg-im-Breisgrau, onde teve por discípulo o filósofo Martin Heidegger. Com o advento do nazis-mo, sendo judeu, foi afas-tado do ensino, apresen-tando em raras ocasiões de fazer sentir em público sua voz como em duas conferências em Viena e Praga em 1935. Morreu em Freiburg em 27 de abril de 1938. (ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di Storia della Filosofia. p. 294-295.)

31 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. p. 554.

32 Termo empregado pela primeira vez por Saint-Simon, para desig-nar o método exato das ciências e sua extensão para a Filosofia. Foi ado-tado por Auguste Comte para sua filosofia e, graças a ele, passou a designar a corrente filosófica que re-presenta a romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e social do homem, único conheci-mento, moral e religião possível. Suas principais teses são: a ciência é o único conhecimento pos-sível e o seu método é o único válido; o método da ciência é puramente descritivo; o método da ciência deve ser estendi-do a todos os campos de indagação da atividade humana.(ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Fi-losofia. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 776-777.)33 ADORNO, F; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di storia della filosofia. p. 295.

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construção filosófica. Procuram-se, em suma, evidências estáveis para colocar como fundamento da Filosofia: “sem evidência não há Filosofia”.

O estudo fenomenológico é realizado através da descrição dos “fenôme-nos” que se anunciam e se apresentam à ciência depois que se faz a epo-ché34, isto é, depois que são postas entre parênteses as nossas persuasões filosóficas. É preciso suspender o juízo sobre tudo o que não é convincente, nem incontroverso, até se conseguir encontrar aqueles “dados” que resistam às reiteradas suspensões da epoché. A partir da epoché os fenomenólogos buscam descrever os modos típicos de como as coisas e os fatos se apresen-tam à consciência, as essências eidéticas35. Portanto, a Fenomenologia não é ciência dos fatos, mas das essências.

Enquanto a Psicologia é ciência de dados, de fatos, de realidade inserida em um contexto espaço-temporal, a Fenomenologia é ciência das essências e de fenômenos depurados daqueles que o contexto espaço-temporal e dos quais englobamentos no mundo em geral. Nisso há, ainda, a crítica ao psi-cologismo, concepção que resumia qualquer processo racional-científico ao processo psicológico, limitando as demais ciências a esta. Concluindo, pode- -se dizer que a Fenomenologia propõe-se a ser ciência fundamentada esta-velmente, voltada à análise e à descrição das essências.

A consciência humana é “intencional”, é sempre consciência de alguma coisa que se apresenta de modo típico: a análise desses modos é a função do fenomenólogo. Para conhecer a essência do objeto de estudo o fenomenólogo usa da intuição eidética, diferente de um dado de fato. Um fato é o que aconte-ce aqui e agora, é algo contingente, podendo ser ou não ser, mas quando um fato nos é apresentado à consciência, juntamente com o fato capta-se uma essência (o som, a cor etc.), o quid desse fato. As essências são os modos típicos do aparecer dos fenômenos. Seu conhecimento não é mediato, obtido através da abstração ou comparação de vários fatos, capta-se o aspecto pelo qual os fatos são semelhantes. O conhecimento das essências é a intuição.36

Toda intuição que apresenta originariamente alguma coisa é, por direito, fonte de conhecimento; tudo aquilo que se apresenta a nós originariamente na intuição (que, por assim dizer, se nos oferece em carne e osso) deve ser assumido assim como se apresenta, mas também apenas nos limites em que se apresenta.37

Seguindo o desenvolvimento da novidade representada pela Fenomeno-logia, há que se discutir o argumento da crise das ciências europeias e o re-torno ao “mundo-da-vida” (Lebenswelt). Considera Husserl que o positivismo reduziu a ideia de ciência a uma mera ciência dos fatos, e as meras ciências

34 Termo grego que sig-nifica literalmete “colocar em parênteses”. (ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di Storia della Filosofia. p. 296.)

35 Do grego eidos, essência.

36 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. p. 560.

37 HUSSERL apud REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. p. 562.

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dos fatos criam meros homens de fato. As interrogações especificamente hu-manas foram banidas do reino da ciência, que se transformou e se limitou, perdendo o seu significado de guia para a humanidade. Isso gerou a dicoto-mia entre o conhecimento objetivo e subjetivo do homem, concretizado no século passado, com o aprofundamento das ciências naturais, humanas e sociais, que, pelo conhecimento da objetividade, aumentam também incóg-nitas em relação à essência humana, já que prevaleceu um estudo cientifica-mente unilateral dessa natureza.

A crise das ciências não é sua crise de cientificidade, mas sim a crise de seu significado para a existência humana. Husserl critica a pretensão da ciên- cia positivista e naturalista de serem a única verdade válida e a ideia ligada a ela de que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade. Essa concepção exclui aqueles problemas que são os mais candentes para o homem, que, em nossos tempos, atormentado, sente-se à mercê do destino, sofre com os problemas do sentido e do não sentido da existência humana em seu conjunto. Nessa crise categorial, substitui-se as categorias científicas pelo concreto, o pré-categorial, o mundo-da-vida38. O mundo da vida é o âmbito das originárias “formações do sentido” humanas, é o conjunto de su-perações realizadas antes do nascimento da ciência, âmbito e conjunto que as ciências adotam delas. Isso significa que o mundo, para Husserl, é um ser já dado, mas que não existiria para o ser humano se ele não o vivificasse na sua subjetividade. Por isso, a superação da atitude natural consiste precisa-mente nisto: o ser humano deixa de acreditar no mundo exterior como algo dado e passa a indagar como as validades são dadas à subjetividade.

A coisa percebida não é só ela mesma, real e propriamente, porque a sub-jetividade lhe acrescenta algo mais, que é anexado ao objeto. Experienciar implica perceber, e este, um projetar. Por isso o mundo não é dado “como haver”, mas sim através de uma operação subjetiva da consciência que per-cebe. Daí porque tudo no mundo é subjetivo-relativo, visto que se relativiza segundo o sentido que é elaborado ou dado pela subjetividade.39

A simples experiência, ou a experiência direta das coisas, não é uma ex-periência da objetividade, mas sim uma experiência subjetivo-relativa do mundo-da-vida. O mundo objetivo não é experienciável, pois o experienciá- vel é somente o elemento subjetivo. É o ser humano traduzido pelo eu ou conscientizado. O método que viabiliza a transformação de atitude frente ao mundo (passando de ingênuo a reflexivo) é o método da “epoché fenomeno-lógica”, o qual consiste em uma suspensão do conceito em análise, libertan-

38 “Se trata do reino de uma subjetividade com-pletamente circunscrita em si mesma, que é no seu modo, que atua em qualquer experiência, em qualquer pensamento, e que por isso é em toda parte inevitavelmente presente e que, todavia, não tem sido mais consi-derada”; “Si trata del regno di una soggettività com-pletamente circoscrita in se stessa, essente nel suo modo, che funge in qual-siasi esperienza, in quali-sasi pensiero, in qualsiasi vita, e che quindi è ovun-que inevitabilmente pre-sente e che tuttavia non è mai stata considerata, non è mai stata afferrata né compressa”. (HUSSERL. La Crisi delle Scienze Euro-pee e la Fenomenologia Trascedentale: per un sapere umanistico. Tradu-zione di: FILIPPINI, Enrico. Milano: Net, 2002. p. 141, 142. [tradução livre].)

39 HUSSERL, Edmund. La crisi delle scienze euro-pee e la fenomenologia transcedentale. p. 172.

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do o filósofo dos vínculos mais fortes e universais com aquela coisa, e, por isso, mais ocultos. Encontrando-se sobre o objeto estudado, portanto livre, o fenomenólogo pode, ao ver o mundo como Fenomenologia, identificar a essência daquilo que estuda.40

Justiça como intersubjetividadeAssim como a questão inicial de Husserl é a de como o mundo se dá para

a consciência, na última epoché pergunta-se sobre o enigma da existência de outrem. Trata-se de ultrapassar os limites da individualidade para atingir o universo da intersubjetividade, passo fundamental para que a Fenomeno-logia adquira um caráter objetivo.

Porém, o homem necessita primeiro superar as diversas epochés, os di-versos estados da subjetividade. Aquilo que a minha consciência subjetiva pensa é Fenomenologia, não é verdade, são espelhos que refletem partes do meu existir, mas eu sei que sou muito mais. Por isso, a minha consciência é um complexo que me dá direções, mas não é meu real. Somente quando os homens se propuserem ao percurso das reduções fenomenológicas, a au-tenticidade dada pela intencionalidade de natureza se manifestará no existir do ser em particular e comunitário, um movimento com determinado dire-cionamento já definido que direciona o indivíduo ao agir em conformidade à natureza, ao ser que se faz realidade no ser aqui e agora.

A redução transcendental revela que o outro se constitui em “mim” a partir do seu reflexo em “mim”. O ser adquire a significação de um outro organismo que se encontra também no mundo e é sujeito do mesmo mundo, análo-go ao “mundo do outro.”41 Cada alma existe em comunidade com as outras, enquanto está ligada intencionalmente a elas, enquanto está numa cone-xão puramente intencional, íntima e essencialmente fechada: a conexão da intersubjetividade.42 Ultrapassando-se os limites da individualidade, “o ser é apreendido como organismo corporal, cuja alma, porém, não é acessível ao Eu do outro de forma direta.”43; “Cada vida, com a sua intencionalidade, pe-netra, intencionalmente, na vida dos outros, e todos [...] estão entrelaçados na comunidade da vida.”44

Husserl define que a comunhão se dá na comunidade intersubjetiva:

Não se pode pensar em subjetividade sem que esta implique na intersubjetividade, pois a percepção do eu implica ao mesmo tempo na percepção do alter ego, do outro. Na elucidação da minha experiência se constitui a elucidação da experiência do outro. Eu,

40 HUSSERL, Edmund. La crisi delle scienze euro-pee e la fenomenologia transcedentale. p. 179, 180.

41 HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas: introdução à fenomeno-logia. Tradução de Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001. p.

42 HUSSERL, Edmund. La crisi delle scienze euro-pee e la fenomenologia transcedentale. p. 258-259.

43 HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas: introdução à fenomenolo-gia. p. 158.

44 HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas: introdução à fenomenolo-gia. p. 151.

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sujeito, percebo o mundo, mas os outros sujeitos o percebem tal como eu. Isso significa que possuo em mim a experiência do mundo e dos outros, não como uma obra da minha atividade sintética, de certa maneira privativa, mas como de um mundo estranho, a mim, intersubjetivo, existente para cada um, acessível a cada um.45

Husserl assim evidencia o entendimento de que a vida humana é uma intersubjetividade, pressuposto esse que diz respeito a toda e qualquer con-cepção de Justiça contemporânea, levando em consideração a definição desta como “referente a outrem”.

Ao elaborarmos o processo reflexivo da redução fenomenológica, nos deparamos com o outro. Nesse momento surge a questão da orientação da relação estabelecida entre eu e esse outro, o que é feito através da Ética e do Direito. Dentro dessa realidade a Justiça se encontra no modo como se consegue adequadamente operar essa interação intersubjetiva, o homem pode agir justamente pois, através do método fenomenológico, tornou-se capacitado a identificar a essência do fenômeno que surge diante de si.

Além disso, mais especificamente na produção e aplicação do Direito, encon-tra-se aqui a necessidade de que os sujeitos que assumem a responsabilidade de criar, analisar, interpretar e aplicar o Direito nos fenômenos jurídicos pesqui-sem a sua própria intencionalidade de consciência, pois acima de seus próprios interesses e de seu modo de agir e pensar encontra-se o interesse público, ou ao mínimo de outrem, que envolve a atividade por eles desenvolvida.

É necessário que esses sujeitos passem pelas epochés fenomenológicas para que estejam habilitados a operar o Direito de uma maneira mais ade-quada à sociedade que é organizada por esse sistema de leis.

Husserl nos leva assim a refletir sobre a necessidade de a Ciência consi-derar a dimensão metafísica da consciência, a intencionalidade, construída no mundo-da-vida, através do método exposto, pois assim teremos conhe-cimentos humanos em essência e consequentemente justos.

Martin HeideggerMartin Heidegger é provavelmente o mais famoso dos filósofos existen-

cialistas. Sua extensa obra é resultado da leitura de toda a história da Filo-sofia, o que resultou numa profunda familiaridade com o pensamento de mentes como Heráclito, Platão, Aristóteles, Kant e Hegel. Todo esse estudo motivou-se a responder uma indagação fundamental, a questão metafísica e do ser. É disso que resulta a sua filosofia do dasein, ou do ser-aí.

45 HUSSERL, Edmund. La crisi delle scienze euro-pee e la fenomenologia transcedentale. p.56.

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Primeiramente foi filósofo cristão, baseando-se na lógica eterna e imu-tável de Husserl e nas concepções medievais de metafísica. Deus era o fun-damento e questão primordial de todas as suas discussões. Contudo, após 1918, com os recentes acontecimentos históricos, em especial os eventos da Primeira Guerra Mundial, suas convicções quanto a verdades imutáveis e atemporais foram abaladas. Além disso, os seus estudos dos pensadores contemporâneos conduziram-no a novas indagações, que resultariam na elaboração da mais célebre de suas obras: Ser e Tempo (Sein und Zeit). Nessa obra, Heidegger salienta que não haveria como se entender o ser fora da his-toricidade. Nesse sentido, a filosofia heideggeriana se aproximaria de uma ontologia existencial.

Primeiro laboriosamente mas depois com o crescendo de uma conquista triunfante, ele pouco a pouco faz emergir da treva do dasein, como agora chama a vida humana, os dispositivos apresentados em Ser e Tempo como existenciais (Existenzialien): ser-em, sentimento de situação (Befindlichkeit), compreender, decair (Verfallen), preocupação. Ele encontra a fórmula do dasein, que se importa com o seu próprio poder-ser (Seinkönnen).46

Heidegger traz a Ontologia para a existência humana em geral. Expres-sões como decair (Verfallen) realçam esse caráter amplamente existencial da obra, que encontra na morte um dos temas fundamentais. Junto à morte envolvem-se muitas outras questões humanas, como a angústia e o sofri-mento. O dasein de Heidegger é um ser que surge da filosofia de Nietzsche, de sua ideia da morte de Deus, e se desenvolve conforme a necessidade de uma coragem para a angústia. Em outras palavras, os dilemas existenciais hu-manos, o sentido da vida, são trabalhados de forma ontológica. Importante então abrir a questão do ser em Heidegger:

Caso a questão do ser deva ser colocada explicitamente e desdobrada em toda a transparência de si mesma, sua elaboração exige, de acordo com as explicitações feitas até aqui, a explicação da maneira de visualizar o ser, de compreender e apreender conceitualmente o sentido, a preparação da possibilidade de uma escolha correta do ente exemplar, a elaboração do modo genuíno de acesso a esse ente. Ora visualizar, compreender, escolher, aceder são atitudes constitutivas do questionamento e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente que nós mesmos, os que questionam, sempre somos. Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – o que questiona – em seu ser. Como modo de ser de um ente, o questionamento dessa questão se acha essencialmente determinado pelo que nela se questiona – pelo ser.47

Heidegger liga a Ontologia à existência em geral. Para o filósofo alemão, o ser existe apenas na perspectiva da consciência humana, e por isso é sempre ser-aí, é sempre ser no mundo. O ser não pode ser compreendido em sua profunda acepção pelo homem, mas permanece sendo uma indagação

46 SAFRANSKI, Rudiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Geração Edito-rial, 2000. p. 186-187.

47 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15. ed. Tra-dução de Marica Sá Ca-valcante Schuback. Petró-polis: Vozes, 2005. Tomo I, p. 33.

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eterna e angustiante para a humanidade. Essa necessidade revela que, se por um lado é inaplicável o entendimento do ser, por outro é preciso captar o sentido do ser.

Heidegger também separa o domínio do ente, o existente, do domínio do ser. O primeiro é o domínio ôntico, no qual encontramos a índole que está em todos os entes e que deriva do ser, que por sua vez é a raiz fundamental de todas as coisas, a qual não se identifica com uma presença empírica, mas sim um dado que antecede e possibilita todas as presenças.48

Para Heidegger, a tradição filosófica sempre separou a essência da exis-tência, conferindo ao ser o caráter universal e perene, que não necessita da temporalidade, enquanto a existência se dá no aspecto empírico. Mas Hei-degger assinala que essa distinção deve ser repensada, caso se deseje captar a ideia de ser: “se o ser é realmente raiz fundamental e a fonte de todas as coisas, importa absolutamente para o filósofo enraizar esse ser na esfera da temporalidade. [...] Em outros termos, o ser ‘não é isto ou aquilo’, ele tem que ser; é o homem, o ente, que continuamente o faz ser”49. Dessa constatação surge sua expressão dasein.

O dasein de Heidegger é a presença do ente humano ao ser, bem como alude ainda ao campo de manifestação do mesmo, ao mundo, onde o ser pode se desenvolver.

A característica desse dasein é a facticidade: continuamente projetado adiante ou projeto, ele tem que ser e toma todo seu sentido em relação ao futuro. Mas ao mesmo tempo, o homem não tem a escolha de não ser. Ele é imediatamente surgimento num mundo que sempre lhe préexiste, o qual ele tem que operar e que deve analisar sem Deus. [...] O homem, esse existente humano, é irremediavelmente projetado adiante de si mesmo; ele se transcende (ultrapassa-se) no tempo e no espaço para realizar esse projeto que é ele mesmo, pois ele tem que ser o que ainda não é, e não mais o que é. A facticidade do dasein reside, portanto, no fato de que o homem é a ‘antecipação de si’”50.

Portanto, além da busca pela noção de ser, é preciso dar sentido ao ser. Dessa forma, se entende o ser como o ente humano nesse mundo, é neces-sário buscar dar sentido à vida do homem, tornando a vida mais autêntica contra as várias mentiras que circundam a vida em sociedade, que em geral se identificam com a fixação em um objeto ou momento específico da vida. É nesse mundo de convenções que pergunta-se: qual o sentido da existência? Alguns podem colocá-la na família, outros no trabalho, outros na religião, e assim por diante. Mas cada momento desses, embora importantes, são apenas momentos, não esgotam a existência por inteiro. Para dar sentido ao ser é preciso entender aquilo que preenche a existência, trazendo mais

48 Para Heidegger, a tra-dição filosófica sempre ocupou-se apenas da questão ontológica, sem perceber que todo ser é ser de um ente, decorren-do disso que é necessário estudar também o ser em sua existência. Somente a presença do ser pode ex-plicá-lo em suas vastas di-mensões. “Em consequên- cia, a presença possui um primado múltiplo frente a todos os outros entes: o primeiro é um primado ôntico: a presença é um ente determinado em seu ser pela existência. O segundo é um primado ontológico: com base em sua determinação da existência, a presença é em si mesma ‘ontológica’. Pertence à presença, de maneira originária, e en-quanto constitutivo da compreensão da existên-cia, uma compreensão do ser de todos os entes que não possuem o modo de ser da presença. A presen-ça tem, por conseguinte, um terceiro primado que é a condição ôntico-onto-lógica da possibilidade de todas as ontologias. Desse modo, a presença se mostra como o ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro”. (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tomo I, p. 40.)

49 HUISMAN, Denis. His-tória do Existencialismo. Tradução de Maria Leonor Loureiro. Bauru: EDUSC, 2001. p. 101-102.

50 HUISMAN, Denis. His-tória do Existencialismo. p. 104.

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tranquilidade e bem-estar ao indivíduo. O questionamento de Heidegger é bastante profundo, pois implica na importância de que não basta entender o mundo, conceituá-lo, classificá-lo, mas também não basta trabalhá-lo, mo-dificá-lo, se todas essas ações não estão entrelaçadas a uma busca de sentido da existência, a uma tentativa verdadeira de o indivíduo justificar seu aqui e agora. Heidegger nos remete a refletir sempre em nossas ações: será que isso que estudo ou faço amplia a minha existência ou é apenas a fixação em determinado momento? Qual o sentido de cada ação minha?

Também como uma dessas condições que interrompem o desenvolvimen-to do ser é a ideia de morte que se propaga entre as pessoas, aquela que trata a morte como algo banal e universal. Para Heidegger a morte é a consciên- cia do insuperável, da finitude do dasein, o fim do dasein nesse mundo. A morte como um dado insuperável acarreta ao indivíduo uma maior tomada de responsabilidade para com a sua vida.

A responsabilização do indivíduo frente a sua própria morte (como não sendo adiada ou remetida ao “fim da vida”) é, portanto, a tomada de consciência profundamente existencial de que ele não deve a significação de sua existência a nada senão a seus próprios atos, e sobretudo não deve à utilidade e à “atividade” quotidiana. O ser autêntico é então aquele que reconhece sua morte como sua única especificidade, visto que ninguém pode substituí- -lo em sua própria morte; assim, ela é a única coisa que lhe pertence propriamente.51

Heidegger exige do indivíduo uma profunda tomada de responsabiliza-ção por sua própria vida. Como se vê, a morte não é uma atração à decadên-cia, mas o dado concreto e insuperável que conecta logicamente sua filoso-fia, a filosofia do dasein. A morte pôe fim à existência humana, retira o dasein do mundo, ao mesmo tempo em que retira do indivíduo todas as demais limitações. A morte é o dado que liberta o homem, pois sendo algo insu-perável, exige do indivíduo que durante sua vida faça-a da melhor maneira possível, desenvolvendo o seu ser.

As reflexões de Heidegger também contribuem numa aplicação ao Direi-to e ao business. O Direito trabalha convenções sociais, as normas jurídicas são convenções postas pelo Estado, sociedade etc. Será que essas normas ajudam as pessoas a dar mais sentido à existência? As normas são pautadas na coletividade, mas a existência tem sentido único. Nessa contraposição, cada indivíduo tem o dever de dar sentido à sua existência, sabendo que as convenções são sempre momentos importantes, mas não completos. A lei é um instrumento de organização social, por isso é importante a pessoa reali-zar aquilo que lhe dá sentido sem colidir com os interesses sociais e coletivos refletidos nas leis.

51 HUISMAN, Denis. His-tória do Existencialismo. p. 104.

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O business também se reflete no sentido ao ser. O desenvolvimento profis-sional e econômico é essencial para a existência, pois sem esse momento outros tornam-se mais difíceis. No mundo profissional, é importante que a pessoa busque atividades que reforcem o sentido de sua existência, e não se fixe em determinada atividade. Cada pessoa pode evoluir sempre, ampliando as várias possibilidades de atividades, funções e carreiras. O empreendedor é aquele que realiza sua carreira sabendo que esta é parte de seu sentido da existência.

Ampliando seus conhecimentos

O que é existencialismo?(HUISMAN, 2001, p. 8-11; 177-178)

Pode-se dizer que o termo genérico designa de modo abrangente uma Filosofia não sistemática, uma corrente de pensamento que privilegia o con-creto, o singular, o “vivido” em relação ao nacional, aos conceitos, às gene-ralidades vagas. É claro, deve-se também opor o “essencialismo” tradicional, tal como é definido pelo tomismo, pelo espinosismo ou pelo hegelianismo ao “existencialismo” do século XX. O essencialismo insistia sobre a prioridade do conceito, sobre a anterioridade da natureza de um ser(antes de saber se Deus existe, trata-se de definir sua essência, de saber o que é sua “natureza”), enquanto o existencialismo vai impor a prioridade da existência sobre a es-sência: “fazer e, ao fazer, fazer-se e não ser nada senão o que se faz”.1

Existencialismo e filosofia da existência

Em outras palavras, o existencialismo não é em nenhum caso uma “doutri-na” , um “sistema”, um “corpo” de teses muito claras, todas bem etiquetadas de antemão. É muito mais uma “atitude filosófica” adotada por certos pensadores num momento histórico particular, que visavam a realidade concreta mais do que uma verdade teorética. Jean Beaufret, em Qu’est-ce que l’ Existentialisme? (1945), diz: “Repudiando esse desvio abstrato, o existencialismo, ao contrário, não espera a luz senão de uma prova direta”.2

Notemos que o uso de termos como “existencial” {em francês existential, do alemão existential} – (Heidegger), “existencial” {em francês existentiel} – (Kierkegaard) ou “filosofia da existência” (Jaspers) são preferíveis ao emprego da palavra “existencialismo”.

1 Jean-Paul Sartre, “Á propos de l’existencialisme: mise au point”, in Acyion n° 17,29 dezembro de 1944, p.11.

2 De l’existentialisme à Heidegger, Paris, Vrin, 1989, p.142

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A evolução do existencialismo

Poder-se-ia dizer que o existencialismo tem origem em Kierkegaard(seria sua pré-história), que sua proto-história começa com grandes pensadores alemães que, de Husserl e Nietzsche a Jaspers e Heidegger, encarnaram, e até mesmo ilustraram, as “riquíssimas horas” do movimento, simultaneamente com Gabriel Marcel na França, pois é em 1927 que saem ao mesmo tempo o Sein und Zeit (Ser e Tempo) de Heidegger e o Jornal Métaphisique de Gabriel Marcel.

O vocábulo será usado pela primeira vez nos anos 30, primeiro num texto italiano e depois sob a pena de Gabriel Marcel e de Karl Jaspers. Mas passa mais ou menos despercebido na época.

Outros afirmam que ressurgiu um pouco mais tarde, em 1943, data da pu-blicação de L’Être etle Néant, de Sartre, de novo sob a assinatura de Gabriel Marcel. Nada pode sustentar tal hipótese. Não se encontra nenhum sinal do emprego da palavra nessa data. Não: é em 28 de outubro de 1945 que Jean- -Paul Sartre institui a certidão de nascimento e o atestado de batismo da pala-vra existencialismo, ao fazer sua célebre conferência: “O existencialismo é um humanismo”.

Notemos que fora também em outubro de 1945 que ele publicara o pri-meiro fascículo da revista Les Temps Modernes com “a equipe” que se trans-formará progressamente em “escola” compreendendo Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, Raymond Aron e alguns autores menos célebres. Ela se desagregará na sequência: mas o existencialismo invade, nos anos 1945 a 1960, a vida política (criação a partir de 1947 do partido político de Sartre e David Rousset: a R.D.R.), a vida literária, o teatro, o cinema, e, evi-dentemente, a Filosofia.

No entanto, os violentos ataques contra as posições tomadas por Sartre multiplicaram-se tão fortemente que a moda vai mudar brutalmente nos anos 1960, sob a influência dos quatro “mosqueteiros” defensores do estruturalis-mo: o marxista Althusser, o psicanalista Lacan, o etnólogo Lévi-strauss e, so-bretudo, o filósofo Michel Foucault. Esse “declínio” do movimento não impedi-rá Sartre de voltar a ser estrela em maio de 68 e continuar, até 1980, a susentar triunfalmente posições políticas militantes avançadas. Poder-se-ia dizer que seu desaparecimento em 1980 marcou o fim de um movimento que ele criara, mesmo que Les Temps Modernes, Simone de Beauvoir e vários discípulos lhe tenham sobrevivido durante alguns anos.

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Conclusão

Nascido em meados do século XIX na Dinamarca, com Kierkegaard, o exis-tencialismo derramou-se sobre a Alemanha de 1890 a 1940, com Nietzsche, Husserl, Jaspers e Heidegger, antes de se instalar na França de 1930 a 1960 e, em menor escala, de 1960 a 1990. Definitivamente, o movimento tem mais de um século de existência, e seu dirigente, Jean-Paul Sartre, dominou a cena filosófica europeia durante perto de 50 anos. La Nausée permanece um dos Best-sellers dos livros de bolso: rivaliza com La Peste de Camus, La Condition Humaine de Malraux e Vol de nuit de Saint-Exupéry. No plano da história das ideias, o existencialismo é portanto um grande movimento intelectual, com lugar ao lado do marxismo, do estruturalismo e da psicanálise.

Quanto a prognosticar o que restará dessa corrente dentro de um século ou dois, é sempre delicado identificar com toda a certeza o que será levado pelos ventos da moda e essas “massas de granito” que nenhuma erosão fará desaparecer. Há, na corrente existencialista, um “retorno ao concreto”, uma análise do sentimen-to da angústia, um cuidado com a existência autêntica, um apelo à responsabili-dade, um sentido da liberdade e do engajamento, uma recusa de toda a hipocrisia e toda a “má-fé” que deveriam resistir como “pedras duras” ao fluxo e refluxo das vogas ondeantes do pensamento contemporâneo. “Tudo passa” declara Heráclito. Certo. Mas a corrente existencialista terá deixado na margem sólidas aluviões que não se deixarão dispensar pelas águas turbilhonantes da história.

“Racine passará como café”, profetizava Madame de Sévigné. A despeito dos espíritos rabugentos, cujas preocupações político-sentimentais de hora levam a melhor sobre o julgamento objetivo do leitor distanciado, pensamos que as figuras de Heidegger, de Jaspers, de Sartre e de Gabriel Marcel passa-rão, como Racine, a posteridade, mesmo que, para alguns, não se trate senão de uma série de imposturas e mistificações – a exemplo de Geordes Politzer, que considerava o bergsonismo uma “exibição filosófica”.3

Os grandes pensadores existencialistas deveriam sobreviver à louca aventu-ra dos dias subsequentes à Libertação (1944-1950). Pois as “consequências que contam” acabam sempre por se impor, numa espécie de consagração que as coloca em seu merecido lugar – nesse caso, no centro do primeiro círculo do pan-teão filosófico universal, muito perto de Platão, de Descartes, de Kant e de Hegel.

3 Georges Politzer, La Fin d’une parade philoso-phique, Le bergsonisme, Paris, Rieder, 1929. A obra foi publicada sob o pseudônimo de François Arouet (Voltaire).

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Atividades de aplicação

1. A partir da visão de Marx sobre a sociedade, comente algumas rela-ções da sua leitura com a realidade atual. Analise a supremacia do poder estatal, o papel do indivíduo como ativista político, as classes sociais etc.

2. O pensamento filosófico de Søren Kierkegaard opera-se no sentido de valorizar a importância do existir humano, como uma questão muito mais importante, inclusive, que o desenvolvimento das próprias ciên-cias naturais. Nesse escopo, o filósofo destaca a importância da an-gústia e da decisão como momentos elementares para que se opere a passagem existencial em sentido qualitativo. Considerado o mundo atual, qual a importância dessas concepções? Que reflexos possuem no mundo do business?

3. Nietzsche em suas obras Além do Bem e do Mal e Gaia Ciência retrata a existência de duas formas de moral na sociedade, uma pertencente aos indivíduos superiores e outra aos demais; a primeira, aristocrática, a outra, baseada no ressentimento. Além disso, em Assim Falou Zara-tustra, expõe a importância do além-do-homem como a meta a ser al-cançada na existência humana. Com base nesse suporte, pode-se afir-mar que essas duas morais coexistem na sociedade contemporânea? Qual a importância da superação do homem ordinário nesse sentido?

4. Husserl trata sobre a importância do movimento da epoché, de se co-locar o conhecimento entre parênteses para que seja possível a análise fidedigna do fenômeno. Acerca dessa concepção, qual a importância de se suspender esses conhecimentos para a realidade pessoal e pro-fissional atual?

5. O grande mérito de Heidegger é trazer a Ontologia para a existência em geral, criando a filosofia do dasein, o ser-aí. Reflita sobre a relação entre a Ontologia, o puro ser metafísico, e o caminho humano em sua existência mundana e temporal.

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Gabarito1. Embora a sociedade tenha se modificado bastante durante as últimas

décadas, o Estado, o Direito, bem como demais instituições seguem sendo instrumentos de poder nas mãos de alguns indivíduos. Requer- -se uma tomada de consciência mais efetiva dos cidadãos na luta por seus direitos, o que não significa revolução violenta, tal como ocorreu no século XX.

2. Hodiernamente, muito mais do que em períodos anteriores, a adequa-bilidade do indivíduo com o meio, sem perder a sua subjetividade, tor-na-se cada vez mais importante. Pode-se considerar a angústia, nesse contexto, como um alerta do momento em que faz-se necessária uma passagem de desenvolvimento. Contudo, sem a capacidade de deci-são, de mudança, não bastará a angústia para que a pessoa opere as passagens que a sua vida pede, bem como que o mundo dos negócios também requer.

3. Há de se considerar que essa estrutura permanece na atualidade e que, cada vez mais, o processo de globalização prorrompe a unificação cul-tural em torno de um modelo de pessoa sob domínio. Nesse sentido, o desenvolvimento de lideranças, com um tipo de moral superior, torna- -se essencial, não somente para que todos caiam nessa estrutura, mas também para que o ideal de um tipo superior de homem que possa guiar a sociedade ao seu desenvolvimento se torne possível.

4. A orientação fenomenológica, além de buscar orientar o proceder da ciência, é também um modo de se orientar a vida humana. Portanto, faz-se importante diante das várias situações de vivência pelas quais o indivíduo se confronta colocar-se entre parênteses os fatos pelos quais surgem na existência e a busca pela identificação da essência daquele fenômeno, para que, então, a apreciação seja verdadeira e o indivíduo aja em conformidade com o que o momento pede.

5. O homem é um ente situado no domínio ôntico, ou seja, pressupõe o ser puro ontológico como fundamento. O ser possui um projeto de desenvolvimento em sua existência. Desenvolver a liberdade durante a vida é justamente dar mais ser à própria existência.

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_____. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução de: LUFT, Lya. São Paulo: Geração Editorial, 2001.

Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

Concluindo este livro, neste capítulo serão apresentadas as contribui-ções da filosofia contemporânea ao Direito e às discussões das concepções de Justiça. Tratar-se-á das concepções de Max Scheler, Carl Schmitt, Hans Kelsen, John Rawls, Jurgen Habermas e, por fim, do filósofo e jurista brasilei-ro Miguel Reale. Desse modo, serão aqui introduzidas as mais importantes reflexões acerca do tema no pensamento atual, as quais seguem como prin-cipal objeto de reflexão contemporaneamente.

Max SchelerEm Visão Filosófica do Mundo é possível captar a forma de como Scheler

pensa e filosofa acerca das grandes questões da vida humana. Para Scheler, o saber possui três níveis: um primeiro ainda ligado aos objetos, em que é marcante o saber empírico das ciências positivas. Nesse nível o grande obje-tivo é entender as leis que regem o mundo, porque entendendo essas leis podemos captar seu funcionamento, prevendo-as e dominando-as. Um se-gundo nível é o saber filosófico, que se relaciona àquilo que Aristóteles cha-mava de filosofia primeira, portanto o entendimento ontológico do homem e do mundo. Por fim, um terceiro nível é a metafísica da salvação, momento em que o homem se liga ao cosmos e a Deus.1

Esse entendimento é importante para se compreender como a filosofia de Scheler insere-se numa visão ampla que envolve a Antropologia, a Cos-mologia e a Teologia, ou seja, o homem, o mundo e Deus. A ética de Scheler, representada em sua cosmologia dos valores, também situa-se nessa linha de pensamento.

Max Scheler foi grande adversário da ética kantiana, que teria formula-do apenas uma ética do ressentimento, em que se obedece a lei por dever apenas, mas que nada justificaria tal formulação. A arbitrariedade de obrigar a obediência causa ressentimento e bloqueia o prazer e a alegria da vida. Por tal motivo, Scheler muda o conceito fundamental da ética do dever para o valor. A Ética trabalha com bens, mas os bens são bens justamente pelos va-

1 “Também a ‘pessoa’ es-piritual do homem não é uma coisa substancial nem um ser com a forma de um objeto. O homem pode unir-se com essa sua pessoa somente de uma forma ativa. Pois essa pessoa é uma estrutura monarquicamente orde-nada de atos espirituais que representa todas as vezes uma autoconcen-tração única e individual desse espírito infinito, um e sempre mesmo, em que está enraizada a estrutura essencial do mundo ob-jetivo. Por analogia, en-tretanto, o homem, como ser dotado de instinto e vida, está também enrai-zado no impulso divino da ‘natureza’, em Deus. Nós experienciamos essa unidade de raiz de todos os homens, mesmo de tudo que é vivo, no im-pulso divino dos grandes movimentos de simpatia, de amor, e em todas as formas de sentir-se numa só unidade com o cosmos. Esse é o caminho ‘dioni-síaco’ a Deus”. (SCHELER, Max. Visão Filosófica do Mundo. p. 17.)

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lores. O valor seria a essência em sentido husserliano, ou seja, a qualidade por qual a coisa é boa. Exemplos: a pintura é um bem, mas a sua beleza é valor; assim como a relação entre lei e Justiça. Nesse sentido, Scheler busca articu-lar uma ética dos valores, mas com os valores em seu sentido material.

Para Scheler, o valor não é algo construído intelectualmente, mas perce-bido no cosmos dos valores que circundam a todos. “E os valores não são objeto de atividade teórica, senão de intuição emocional”2. O homem possui uma intuição sentimental que é capaz de ver a essência dos valores, o qual constituiria uma lógica pura, a única capaz de compreender os valores como essência. Esses valores podem inclusive ser organizados conforme uma su-cessão hierárquica: valores sensoriais (alegria-tristeza, prazer-dor); valores da civilização (útil-danoso); valores vitais (nobre-vulgar); valores culturais ou es-pirituais, o qual dividem-se em valores estéticos (belo-feio); ético-jurídicos (justo-injusto); especulativos (verdadeiro-falso); e por fim os valores religio-sos (sagrado-profano). Desse quadro Scheler é capaz de analisar antropolo-gicamente o homem, extraindo daqui inclusive o seu conceito de pessoa, o qual seria:

Para Scheler, a pessoa não é sujeito que considera a natureza pragmaticamente apenas como objeto a dominar: quase franciscanamente, a pessoa sabe se colocar na atitude extática de abertura para as coisas. Ademais, a pessoa está originariamente em relação com o eu-do-outro. E essa relação vai das formas mais baixas da sociabilidade ao ponto culminante, representado pela relação de amor. A forma mais baixa de sociabilidade, que nasce do contrato social; a ela, segue-se a comunidade vital ou nação; depois, temos a comunidade jurídico-cultural (Estado, escola, círculo) e, por fim, a comunidade de amor, a Igreja.3

Scheler não somente apresentou os valores, mas também articulou crité-rios para se estabelecer os graus de alturas entre eles, que seriam: os valores são mais fortes quanto mais duradouros são; quanto menos divisíveis forem; quando são fundamentos de outros valores; também por quanto mais pro-funda é a satisfação provocada em nós; e pelo grau de relatividade.

Essa concepção de valores seria a sua Ética, pois como os valores não são essências criadas teoricamente pelo homem, mas intuídas emocionalmente de um cosmos de valores, o qual brotaria do íntimo da relação do homem com o próximo, com a natureza, e com Deus, deveria ser o núcleo das rela-ções em sociedade, inclusive das questões envolvendo a Justiça. Para Scheler, a Justiça deve refletir sobre essa hierarquia de valores, bem como pelos cri-térios dos graus, pois os problemas jurídicos são consequências dessas de-ficiências sociais envolvendo os valores. Portanto, o relativismo de valores é perigoso para a aplicação do Direito.

2 REALE, Giovanni; ANTI-SERI, Dario. História da Filosofia Antiga: do Ro-mantismo até os nossos dias. 3.v. p. 568.

3 REALE, Giovanni; ANTI-SERI, Dario. História da Filosofia Antiga: do Ro-mantismo até os nossos dias. 3.v. p. 568.

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No contexto da contemporaneidade o pensamento de Max Scheler adqui-re ainda maior importância, devido à sua intuição da cosmologia dos valores emanada na relação com o próximo. No mundo atual é consenso de que a solidariedade é indispensável, pois é ela, como valor de essência intersubje-tiva, que permite a melhor interação entre as pessoas. Na empresa, a ligação com o outro deve se dar em todos os níveis, seja entre funcionários, entre funcionários e chefes, entre todos e os clientes. O saber trabalhar em equipe não é apenas habilidade técnica, mas acima de tudo entender o outro, co-nhecer seu valor como pessoa única. Todos possuem seu valor, e esse en-tendimento deve permear tanto a vida econômica como a vida familiar e a própria vida em sociedade. O empreendedor que intui o valor do outro, e sabe se relacionar de modo profundo com todos que o acompanham cer-tamente obterá maiores resultados, pois sua equipe trabalhará como uma sociedade de pessoas conscientes de seus valores. Na relação profissional, o valor como conteúdo impulsiona a pessoa a oferecer mais pela organização do que normalmente o faria.

Carl SchmittO conturbado século XX, cenário de duas Guerras Mundiais e outros inú-

meros conflitos bélicos em todo o mundo, que colocaram em xeque as gran-des ideologias que perduraram na história da humanidade, resultou em um complexo espaço de debates acerca das questões jurídicas, sociais, políticas, econômicas. O período entre o final da Primeira Guerra e o início da Segunda Guerra recebeu preocupação, sobretudo, acerca da condição humana. Um dos autores que trabalhou essas indagações foi Carl Schmitt.

O objetivo principal da obra de Carl Schmitt é encontrar uma fundamen-tação para o poder. Bittar assinala que Schmitt faz uma analogia da Teologia com a Política, ao dizer que o milagre está para a Teologia assim como a exce- ção está para a Política. Nesse sentido, para Schmitt o poder não se funda-mentava em bases jurídicas, mas políticas. O âmago do poder coercitivo não estaria na lei, mas na decisão, da qual emana toda a soberania.

De fato, soberania consiste na competência imprevisível, que é a ordem emanada com superioridade do político sobre o jurídico, o que de certa forma determina o próprio conteúdo do Direito que se quer ver positivado em um Estado. Antes da lei está a decisão.4

Não há como haver um ordenamento jurídico sem antes haver uma de-cisão que o formule. A ordem não pode emanar de si mesma, mas de uma

4 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política, p. 238.

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outra vontade. A necessidade de a ordem vir de uma decisão, portanto, jus-tificaria a superioridade da Política sobre o jurídico.

Esses entendimentos ele formulou, sobretudo, após os estudos das obras de Hobbes e Bodin, que justificam a supremacia e soberania do Estado, res-pectivamente. Percebe-se como Schmitt não está tão preocupado em discutir se existe uma Justiça e qual seria ela, num ordenamento jurídico, mas de onde emana essa necessidade de se obedecer ao ordenamento. Para Schmitt, toda lei, não importando seu conteúdo, exige obediência, uma vez que “desde quando irrompeu da modernidade, toda legitimidade se converteu em legalidade”5. Para Schmitt, portanto, a decisão define toda a Justiça e o conteú- do do Direito.

Uma vez que a reflexão de Schmitt lhe autoriza a confinar todo o poder no episódio de produção da decisão política, que consiste no desdobramento de ação de uma instituição, e não de uma vontade, o que dá o tom e define a natureza do sistema jurídico que se tem, a exceção passa a se tornar a regra do funcionamento do sistema jurídico, e é aí que reside o decisionismo institucionalista de Schmitt.6

A formulação de Schmitt baseava-se muito na leitura do artigo 48 da Constituição de Weimar, que possibilitava ao presidente, no caso de crise no Estado, obrigar os indivíduos a praticarem determinados atos, por via da força armada. Seria uma opção pela guarda da Constituição do Presidente do Reich. Essa leitura permite a interpretação de que ali está contido o funda-mento da soberania decisiva, pois se nos momentos de maior crise é permiti-do ao presidente tornar-se um ditador comissivo, toda a construção jurídica e política de um Estado de exceção seria justificada.

Desse modo, Schmitt critica Kelsen, afirmando que a lei não se justifica por si mesma, nem o Direito possui fim em si mesmo. O jurídico não emana de si mesmo, mas da ordem política, que “lhe antecede, lógica e cronologicamente”7

. Schmitt também demonstra a limitação das formulações kelsenianas argu-mentando que muitos casos os quais o Direito precisa se manifestar não estão prescritos em leis e códigos, mas que ainda assim precisam de uma resolução, que vem por meio da decisão política ou institucional. “[...] o Direito é fruto das instituições existentes e vigorantes, e não o contrário. A ordem concreta exis-tente nas condições históricas de um povo é o que determina a formação do Direito, e não o contrário”8.

A ideia de Política, para Schmitt, contudo, se baseia no objetivo de identi-ficar amigos e inimigos tanto dentro como fora do Estado. Busca-se uma ho-mogeneidade, uma unidade social, para que se anulem as hostilidades que

5 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política, p. 238.

6 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política, p. 239.

7 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política, p. 239.

8 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política, p. 240.

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podem ameaçar o funcionamento do sistema. Percebe-se como as ideias de Schmitt refletem de modo marcante o seu período histórico, pois ressaltam a crise social e política vivida pela Alemanha após a derrota na Primeira Guerra Mundial. Todos os vieses políticos deveriam convergir à unidade, o que não se torna harmonioso com os ideais democráticos muito reclamados em seu tempo, pois este exige o pluralismo político, por exemplo.

Hans KelsenTal como Carl Schmitt, Hans Kelsen também não se preocupou com a

questão de se a lei seria justa ou injusta. Para esse jusfilósofo alemão, são distintas a justiça, a validade e a eficácia do Direito. Kelsen é responsável pelo positivismo jurídico, mas não um positivismo em sentido ideológico, mas apenas naquele em que o autor busca estudar o Direito como uma ciência jurídica, autônoma em relação às demais ciências.

Kelsen [...] afirma que o que constitui o Direito é a sua validade jurídica. E acrescenta que a norma jurídica, diferentemente de outras normas, se qualifica por sua coatividade, mas não sustenta de modo algum que o Direito válido seja também o justo. Para Kelsen, o problema da Justiça é problema ético, enquanto o problema jurídico é o problema da validade das normas, se a autoridade de que emana esta ou aquela norma tinha ou não o poder legítimo para fazê-lo; 2) se a norma não foi anulada; 3) se é ou não compatível com as outras normas do sistema jurídico.9

Para Kelsen, distinguem-se os “juízos de fato” (ou descrição científica) dos ”juízos de valor”. Dessa forma, a ciência jurídica, ainda que estude normas que implicam necessariamente valores, não pode compreender tais valores, mas apenas as normas que estão ligadas a eles. Portanto, “se o conhecimen-to não pode criar os valores, então a função do estudioso do Direito não é a de fundamentar um ideal de Justiça”10. É necessário, para isso, delimitar o Direito, separá-lo da ética, que é a ciência que deve discutir a questão da Justiça. Importante assinalar que Kelsen não elimina a Justiça do Direito, mas apenas entende que a Justiça não é objeto de estudo da ciência jurídica, a qual deve se limitar ao Direito e às normas jurídicas. Kelsen não está preocu-pado em discutir a política jurídica, mas apenas a ciência jurídica.

Percebe-se como a visão kelseniana parte da distinção kantiana entre ser e dever-ser. A norma jurídica, para Kelsen, não se formularia a partir do prin-cípio da causalidade, mas da imputação. Ou seja, enquanto nos fenômenos naturais há um nexo de causalidade, ou seja, uma explicação do porquê de um acontecimento, nas normas jurídicas existe um acontecimento ilícito que é seguido por outro acontecimento: a sanção.

9 REALE, Giovanni; ANTI-SERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até os nossos dias. 3.v. p. 909-910.

10 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até os nossos dias. 3.v. p. 909-910.

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Entretanto, precisamente, o nexo entre o ilícito e a sanção não é nexo causal entre fenômenos naturais, que o pensamento simplesmente constata, mas muito mais uma imputação ou atribuição – realizada pela vontade de alguém – em consequência a um fato que, em si mesmo, não é sua causa, mas sim condição – e que o é por uma vontade o colocou como tal.11

Disso decorre que a norma jurídica atribui uma consequência a uma condição, ou seja, uma sanção a um fato ilícito. Importante esclarecer que esses ilícitos não são ilícitos em si mesmos, mas porque uma norma jurídica assim o prescreve. Acontecimentos reprováveis não prescritos por normas jurídicas entram no campo da moral, e não da ciência jurídica. No campo do Direito, para uma ação ser considerada ilítica requer-se que ela seja seguida por uma sanção. Dessa constatação decorrem duas novas situações: uma é que cada indivíduo deve observar para não infringir a norma jurídica; outra é quando alguém infringe a norma jurídica, outro indivíduo deve aplicar nele uma sanção. Esse outro indivíduo é o juiz.

Não obstante, para que esse juiz seja obrigado a aplicar a sanção, exige- -se do ordenamento jurídico uma norma anterior, que é aquela que sanciona caso o juiz não aplique as outras sanções a quem é devido. O problema é que nessa lógica chegaríamos à necessidade de haver sempre uma norma anterior, que sancione quem não aplicasse as posteriores.

Contudo, não se pode retroceder ao infinito. Logo, deve haver uma norma que dê validade a todas as outras normas jurídicas, a qual se situa na base de todo o ordenamento jurídico. Essa primeira norma Kelsen chamou de “norma fundamental”. Essa primeira norma não é posta, mas pressuposta. Como cada norma procede conforme determinação de uma norma anterior, sempre aca-baríamos retrocedendo à Constituição, a qual por sua vez decorre de Consti-tuição anterior etc. Esse processo retornaria na história, até que se encontrasse uma primeira vontade da qual emanaram as demais normas. Essa vontade pode ser tanto uma medida despóstica como uma decisão por assembleia. É esse sistema hierarquizado de normas da qual depende a validade do Direito.

A norma fundamental pode muito bem ser referida como a “fonte do Di-reito”, pois é ela que dá validade a todo o ordenamento jurídico, antes dela não há norma. A necessidade de uma norma depende de outra norma para existir, culminando numa hierarquia em forma de pirâmide, está conforme também ao seu princípio de que a ciência jurídica deve ser separada das demais ciências. Por isso a norma fundamental deve ser uma norma, algo que proponha autonomia ao Direito. Esse caráter confere soberania ao orde-namento jurídico.

11 REALE, Giovanni; AN-TISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até os nossos dias. 3.v. p. 909-911.

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A soberania é exatamente a manifestação dessa supremacia da ordem jurídica positiva de determinado Estado-nacional. Quando este se afirma, trazendo consigo e personificando uma ordem jurídica, em verdade, cria a incontrastabilidade de suas regras, o que define sua condição de ente soberano, nacional e internacionalmente, na medida em que conta com o seu reconhecimento seja interna, seja internacionalmente.12

Nesse sentido, a soberania nacional implica também que existe uma ordem jurídica internacional, pois um Estado, para ser soberano, necessita ser reconhecido pelos demais. Para que um Estado tenha pleno poder de autonomia para legislar, julgar e executar leis em seu território é necessário que essa soberania seja reconhecida por outros Estados.

Esse tópico é importante, pois é aqui que Kelsen se diferencia de Carl Sch-mitt. Como a soberania provém de um respeito ao ordenamento jurídico de outro Estado, isso significa que a perspectiva positivista-normativista implica ela mesma em soberania interna e externa, e não um poder político. É o sis-tema jurídico que implica na Política em reconhecer a validade das normas, e não a decisão de algum indivíduo ou instituição, pois essas decisões já são de-corrências do sistema normativo. Kelsen afirma mais uma vez a necessidade de uma teoria pura do Direito, desprovida de análises axiológicas.

Ainda assim, o pensamento kelseniano pode muito bem ser afirmado como uma Filosofia do Direito, de caráter positivista-normativista. A ideia de uma ciência jurídica autônoma, com objeto próprio, decorre antes de refle-xões filosóficas que permitem tal construção, que nesse caso foram realiza-das por Kelsen. Hans Kelsen não discute conteúdo de leis, mas sua validade, a construção de um ordenamento jurídico. É marcante a influência de Kelsen no direito contemporâneo, pois suas reflexões conduzem a dinâmica da maioria dos ordenamentos jurídicos atuais.

John RawlsJohn Rawls foi um contratualista do século XX que formulou uma Teoria

da Justiça, que colocava a Justiça como equidade, como um dos pilares da construção de uma sociedade democrática para cidadãos que fossem livres e iguais. John Rawls não somente buscou caracterizar o que é a Justiça, ou qual a sua finalidade, mas também procurou explicar todas as etapas que envolvem a formulação de uma concepção de Justiça, para que esta poste-riormente pudesse nortear toda construção das estruturas componentes de uma sociedade. Portanto, sua teoria procura explicar desde as questões mais primordiais, como momento que precede a própria criação de uma estrutura

12 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 248-249.

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básica, estrutura esta caracterizada como possuidora de todos os elementos essenciais a uma sociedade, passando pela formulação de uma concepção de Justiça que vise a equidade, caracterizando também as situações em que se torna possível a existência da desobediência civil, como um meio às vezes necessário para que se possa obter a restituição de determinado direito violado.

Partindo da ideia de que Rawls procura desenvolver um critério para a escolha da concepção de Justiça que seja equânime, o primeiro ponto é as-segurar para que todas as partes envolvidas nessa escolha não possuam nenhum tipo de parcialidade que possa vir a beneficiá-las. É nesse ponto que entra uma das ideias basilares dentro da teoria de Rawls, a ideia da “Posição Original”. A posição original é um estado em que as partes se encontram e possuem um total desconhecimento das características da outra parte, bem como de si mesmas. Em outras palavras, não sabem que doutrina religiosa ou política, que anseios, objetivos, que condição social a outra possui, além de desconhecer também as próprias características. Dessa forma, diminui-se a possibilidade da prática de uma injustiça no momento da escolha da con-cepção de Justiça adequada àquela sociedade13.

Poderiam ser escolhidos diferentes critérios para se identificar os princí-pios norteadores, como por exemplo, um conjunto de hábitos ou costumes, uma lei natural, ou através de valores morais, porém, para Rawls somente estando na posição original que se pode ter uma aproximação da imparcia-lidade necessária para a escolha dos princípios norteadores, já que nela as partes usam o que o autor chama como “véu da ignorância”, que é justamen-te essa incapacidade de conhecer as características próprias e alheias. É im-portante destacar que o termo “ignorância” não significa “desconhecimento”, ou que as partes estão incapazes de formular raciocínios coerentes, mas sim que estão impossibilitadas de perceber qualquer particularidade que possa afetar a decisão14.

Encontrando-se na posição original, parte-se para a observação das dou-trinas e filosofias existentes a fim de se encontrar aquela mais adequada para a construção da sociedade, utilizando-se do que o autor intitula como “equi-líbrio reflexivo”. Por equilíbrio reflexivo o autor entende a ação de procurar “refletir” as ideias, ou seja, não tomar nada como verdadeiro ou absoluto, buscando compreender qual o verdadeiro significado de determinado ar-

13 RAWLS, John. Justicia como equidad: mate-riales para una teoria de la justicia. Traducción de Miguel Angel Ridilla. Madrid: Tecnos. 1986.

14 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradu-ção de Almiro Pisetta e Lenira M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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gumento e de que maneira isto “reflete” na sociedade. As ideias de posição original e de equilíbrio reflexivo se complementam, ou seja, não é possível fazer a reflexão dos argumentos se o indivíduo não está na posição original, da mesma forma que para que possa se situar na posição original é preciso verificar e analisar os argumentos através do equilíbrio reflexivo.

Tendo então constatado os passos iniciais para a construção de uma so-ciedade justa para cidadãos livres e iguais, observando que até mesmo na formulação de uma estrutura básica para dar o mínimo de subsistência, é necessário se encontrar na posição original e no equilíbrio reflexivo, passa-se para uma nova etapa: a determinação do consenso sobreposto.

O consenso sobreposto é entendido como a habilidade de se encontrar um consenso entre as várias doutrinas filosóficas, políticas e sociais, para que as mesmas possam coexistir em harmonia dentro de uma sociedade. E esse consenso é formulado de tal maneira que não seria vantajoso a nenhuma das partes contrariá-lo, ou seja, a melhor opção seria sempre estar de acordo com esse consenso que foi sobreposto aos outros.

Portanto, a posição original e o equilíbrio reflexivo são conceitos que surgem para tornar justa e imparcial a escolha dos princípios norteadores que irão delinear toda a construção da sociedade. A estrutura básica inicial, as instituições, a economia, a política, os direitos e deveres dos cidadãos, tudo isso será formado com base nos princípios norteadores que foram evidenciados através da posição original e equilíbrio reflexivo. Com isso, o autor pretende criar uma teoria da Justiça que eleva o nível de abstração do conceito tradicional de contrato social. Em vez de um pacto social, tem-se uma situação inicial que possui certas restrições destinadas a fomentar um acordo sobre os princípios de Justiça. Esses princípios então servirão de guia para que as pessoas busquem a cooperação social.

Rawls, assim como outros autores, também traz a ideia da desobediência civil, em que os cidadãos, ao constatarem que determinada injustiça está sendo praticada, ou que percebem que certa lei fere os princípios funda-mentais, recorrem ao uso de meios muitas vezes ilegais, desobedecendo à lei, para que a Justiça seja restaurada. Segundo Rawls, a desobediência civil é um ato não violento que tem como objetivo provocar mudanças nas polí-ticas do governo, sempre que os princípios de cooperação social entre os cidadãos não esteja sendo respeitado15. 15 RAWLS, John. Uma

teoria da justiça.

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HabermasJurgen Habermas16, considerado um dos maiores expoentes do pensamento

filosófico na contemporaneidade, direciona seu pensamento à reflexão da me-todologia hermenêutica das ciências humanas, o espírito das ciências (Geis-teswissenschaften). O pensador alemão procura justificar a primazia de uma ciên-cia social crítica contra a hegemonia metodológica na discussão sobre as ciências.17 Para sustentar essa base metodológica, o pensador preocupa-se em criar um fundamento ético, considerando-o essencial para que as mencionadas ciências sejam invocadas como auxiliares à administração racional humana.

Sua principal obra é a Teoria da Ação Comunicativa, onde defende a cons-trução da sociedade através de consensos obtidos através do discurso. Enten-de que com a diminuição do poder das autoridades religiosas e tradicionais no presente século, estar-se-ia entrando em um perfeito ambiente para o desen-volvimento desse espaço de discussões isento de coerções e de entidades que personalizassem a interpretação vigente dos fenômenos. O pensador conside-ra que há agir comunicativo quando: “os planos de ações dos atores implica-dos não se coordenam através de um cálculo egocêntrico de resultados, senão mediante atos de entendimento”18, quando as partes envolvidas no discurso estão abertas a através do discurso firmarem um entendimento.

Nesse sentido, uma teoria social voltada aos potenciais de reflexão e crí-tica imersos nas interações linguísticas deve assumir a tarefa de uma comu-nicação isenta de coerções em diversos âmbitos da vida social, bem como analisar a natureza de seus principais entraves. Fala-se assim na colonização do mundo-da-vida, o próprio solo da ação comunicativa, pelo sistema, en-tendendo-se essa categoria, a Lebenswelt, no sentido husserliano do termo. Essa invasão é protagonizada pela monetarização e burocratização da vida social, onde as relações interpessoais passam a ser coordenadas não pelo en-tendimento recíproco dos participantes, mas por meios padronizantes e lin-guisticamente empobrecidos do dinheiro e do controle burocrático; vários são os resultados dessa força atuante como a perda de sentido cultural e a ‘‘a nomia social’, a perda da validade das normas sociais.

A racionalidade comunicativa é a utilização comunicativa do saber imbuí- do de alguma proposição em ato de fala. Disso decorre que somente pode- -se atribuir o termo “racional” a todo ato de fala criticável, pois somente se for possível criticar a coisa pode-se considerar que tal conexão se apresenta implicada conceitualmente.

16 Nascido em 18 de junho de 1929 em Dusseldorf. Estudou Filosofia, História, Psicologia, Economia e Literatura alemã nas uni-versidades de Göttingen, Zurique e Bonn entre 1949 e 1954. Doutorou-se em Bonn no ano de 1954 com a tese O Aboluto na História – um estudo sobre Filosofia das Idades do Mundo de Schelling. É considerado um dos pensadores da se-gunda geração da Escola de Frankfurt, tendo por influências os pensado-res da primeira geração como Adorno, Horkheimer e Marcuse. (HABERMAS, Jurgen. Sociologia. Tradu-ção de: FREITAG, Barbara; ROUANET, Sérgio Paulo. São Paulo: Ática, 1993. p. 9-10.

17 INGRAM, David. Ha-bermas e a Dialética da Razão. Tradução de Sérgio Bath. 2.ed. Brasília: UnB, 1987. p. 21.

18 HABERMAS, Jurgen. Teoría de la acción co-municativa, II: crítica de la razón funcionalista. Madrid: Taurus, 1999. 2v. p. 367.

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O pensamento de Habermas direciona-se à fundamentação de uma ética deontológica, uma ética dos deveres, com base no pensamento de Imma-nuel Kant. É para lograr êxito nesse intento que sua teoria é alicerçada na importância da linguagem, considerada pragmática e universal, dando-se a apreensão de um objeto através dela. Opera-se essa vinculação principal-mente a partir da chamada virada linguística em que ele acrescenta à lingua-gem, além da dimensão sintática e semântica um terceiro aspecto, a dimen-são pragmática desta, com isso torna-se possível, através de uma Filosofia da Linguagem, acessar as questões morais.

Se a linguagem é essencial na formulação do pensamento humano, também o será quando se considerar o momento em que o indivíduo usa de sua razão para buscar encontrar a melhor conduta para si, ou seja, a Ética. Habermas propõe que tanto a correção de normas morais quanto a verdade de proposições descritivas se estabelecem no discurso, não estando vincu-lada, portanto, a um princípio universal. A validade das proposições só pode passar pela prova discursivamente. Após isso opera-se o princípio de univer-salização, que é a regra do discurso, envolvendo as ideias de aceitação geral e não coativa daquele argumento, o princípio de universalização é conside-rado a regra do discurso.

Além da Ética, o Direito também deve ser encarado sob a perspectiva da razão comunicativa. Conforme Luiz Moreira, esse é o modo como o Direito se institucionaliza, através de um procedimento emanado da relação de com-plementaridade entre direitos humanos e soberania popular dos cidadãos; esse procedimento permite ao Direito estabelecer-se como normativo.19

O Direito possui uma neutralidade deontológica, não havendo, portanto, a subordinação do direito positivo ao direito natural. Através dessa neutrali-dade que Habermas constrói o sistema jurídico, estabilizando a autonomia privada e pública através do procedimento administrativo. Na busca por um critério de validade ao ordenamento jurídico, Habermas encontra-o na mo-ralidade, esta garantirá a validade das normas jurídicas positivas. Conforme o autor, “uma ordem jurídica somente pode ser legítima se ela não contrariar princípios morais”20. Contudo, isso não significa uma subordinação das normas jurídicas às morais, ambas coexistem numa correlação complemen-tar recíproca.21

A normatividade de um ordenamento jurídico somente ocorrerá com a incorporação neste da razão comunicativa; esta passa a substituir a razão prática no plano da fundamentação do Direito.

19 MOREIRA, Luiz. Funda-mentação do Direito em Habermas. Belo Horizon-te: Mandamentos; Fortli-vros, 1999. p. 155.

20 „[...] eine Rechtsordnung kann nur legitim sein, wenn sie Moralischen Grundsät-zen nicht widerspricht“. (HABERMAS, Jurgen. Faktizität und Geltung. Beitrage zur Diskursthe-orie des Rechts und des demokratischen Rechtss-taats. 3.Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993. p. 137. [tradução livre.])

21 “À luz da teorias do discurso normas morais válidas (gultig) são ‘corre-tas’ (richtig) no sentido de justas (gerecht). Normas jurídicas válidas estão afinadas com normas morais” (HABERMAS, Jurgen. Direito Democra-cia: entre facticidade e va-lidade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997. 1v. p. 196.)

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Quanto à manutenção do ordenamento jurídico, esta é operada através dos cidadãos, que são os produtores das leis. Somente quando o Direito emanar da vontade do povo ele terá sido legítimo e tanto mais legítimo será quanto mais preservar o espaço de liberdade privada. Quando as partes en-volvidas não tiverem sua autonomia e liberdade preservadas as prescrições do Direito não poderão ser consideradas válidas.22

Além disso, a produção discursiva da vontade democrática dos cidadãos exige um processo de institucionalização, após institucionalizados, devem ser afastados aqueles procedimentos injustos, posto que a manutenção desse postulado no sistema não caracterizaria o Direito, mas sim o arbítrio, a violência. Assim, conclui-se que não basta o ato legislativo para se gerar uma norma jurídica, esta deve ser reconhecida, pois é a vontade discursiva dos cidadãos que dá validade às leis.

Conforme Habermas, nessa relação há a complementaridade entre Direi-to e Moral, posto que o Direito, sendo reconhecido por todos, diminui o peso da responsabilidade do indivíduo para a formação do juízo moral próprio. Nesse sentido:

Sob o ponto de vista da complementaridade entre Direito e Moral, o processo de legislação parlamentar, a prática de decisão judicial institucionalizada, bem como o tratamento profissional de uma dogmática jurídica, que sistematiza decisões e concretiza regras, significam um alívio para o indivíduo, que não precisa carregar o peso cognitivo da formação do juízo moral próprio.23

Desse modo, o Direito auxilia o indivíduo na sua conduta, retira o fardo do homem de por si só descobrir como agir bem, posto que o próprio orde-namento já apresenta orientações sobre a conduta prática. Por outro lado, isso é possível pelo reconhecimento daquele ordenamento pelo indivíduo, por ser expressão de sua vontade aliada à dos demais cidadãos. Essas são as principais considerações acerca do pensamento de Habermas e sua relação com o Direito.

Miguel RealeO jurista e filósofo brasileiro Miguel Reale é considerado um dos grandes

nomes do pensamento jurídico contemporâneo; com sua teoria tridimen-sional do Direito o pensador marca a superação do positivismo jurídico na esfera nacional. Sua produção científica e filosófica repercutiu no Brasil, na América Latina e na Europa.

22 MOREIRA, Luiz. Funda-mentação do Direito em Habermas. p. 164.

23 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e valida-de. p. 151.

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Miguel Reale foi fortemente influenciado pelas concepções filosóficas de Edmund Husserl buscando, através do método fenomenológico, superar o problema da crise das ciências no âmbito do Direito. A partir dessa influência busca lançar as bases da teoria do conhecimento em termos de uma Ontog-noseologia, como o fez em Experiência e Cultura24 e a partir desses elementos parte à busca da concepção de Direito que seja conforme ao mundo-da-vi-da, na acepção husserliana.25

O espírito de inovação do pensador, baseado na Fenomenologia, na busca pela superação das influências do pensamento kantiano no Direito pode ser colhido no seguinte fragmento:

A razão no Direito não é, pois a razão formalizada e estática de Kant, mas é uma “razão axiológica e existencial” que se desdobra através do processo histórico. É uma razão que, de certa maneira, reproduz, sob certo ângulo, aquilo que Hegel chamava o universal concreto – expressão essa que levou a tantas interpretações equívocas. Mas o logos do Direito, que se põe na norma jurídica, consoante tenho procurado explicar em estudos mais recentes, está em constante vinculação com o substrato da vida comum, com a vida corrente, com o embasamento do viver espontâneo E. Husserl denomina Lebenswelt (mundo-da-vida). É este que alimenta o conteúdo interpretável da “regula juris” no decorrer da sua duração histórica.26

Em Fundamentos do Direito27 o autor apresenta um panorama por todas as concepções de Direito desenvolvidas durante a evolução da história do pensamento moderno e contemporâneo, partindo da concepção de Direito como pura categoria racional até a aproximação à sua teoria destacando quais os pontos onde cada teoria falhava ao buscar identificar o conceito de Direito. Logo ao final o filósofo traz sua concepção do Direito, a partir da re-lação entre ser e dever ser, o sein und sollen do pensamento de Hans Kelsen. Conforme Reale, Kelsen reduz o dever ser à normatividade puramente lógica, Miguel Reale, contrariamente, propõe ligar o dever ser à ideia de fim, ou valor, através da Filosofia do Direito. O ser, nesse caso, estaria ligado à ideia de su-cessão de ordem causal, relações estabelecidas segundo a lei de causalidade (relação entre causa e efeito).28

Os fenômenos do mundo físico pertencem à esfera do Sein, onde por mais que uma coisa material possa ser empregada para certo fim, esta não pode possuir consciência desse fim, não podendo ser reduzido a ela o problema do valor. O mundo do ser, por conseguinte, é o mundo governado por um sistema de relações constantes que constituem as leis e implicam a aceitação de um postulado deter-minista como condição do seu conhecimento. O dever ser, contrariamente, expri-me sempre um imperativo, uma norma que pode ou não ser seguida, mas que, se seguida, realiza um valor, se desobedecida, nega um valor. Para que ocorra a liga-ção entre ambos os conceitos, Reale acrescenta uma terceira categoria, a cultura.29

24 REALE, Miguel. Expe-riência e Cultura. 2.ed. Campinas: Bookseller, 2000.

25 MIGUEL Reale na UnB. Brasília: UnB, 1981. Cole-ção Itinerários. p. 163.

26 MIGUEL Reale na UnB. p. 76.

27 REALE, Miguel. Funda-mentos do Direito. 3.ed. fac simile da 2.ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 1998.

28 REALE, Miguel. Fun-damentos do Direito. p. 300.

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Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

O Direito somente pode ser compreendido como a síntese entre ser e dever ser, motivo pelo qual a conclusão dessa obra é que o Direito é uma rea- lidade bidimensional, com um substrato sociológico e uma forma técnico jurídica: “Não é, pois, puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade com-petente segundo uma ordem de valores”30.

Reale assevera que não se pode resolver o problema do fundamento da obrigatoriedade das normas jurídicas fazendo-as descer de uma norma pri-mária hipotética posta pelo jurista, como propôs Hans Kelsen, nem conside-rar o Direito como um dado espontâneo da realidade social, sem a interfe-rência construtiva e ordenadora da razão. Ademais, não basta um ato legislativo perfeito para considerar-se como plenamente válido um coman-do normativo, para tanto há que se considerar não somente sua validade formal (ter sido devidamente aprovado por um órgão legislativo competen-te, exatamente do modo como a Lei preceitua), mas também a eficácia da norma e a validade ética. Vislumbra-se assim a manifestação do Direito como integração entre fato-valor-norma, correspondendo à validade social (eficá-cia), à validade ética (fundamento) e à validade técnico-jurídica (vigência).31

Deste modo manifesta-se o filósofo:

Realizar o Direito é, pelo dito, realizar a sociedade como comunidade concreta, a qual não se reduz a um conglomerado fortuito de indivíduos, mas é uma ordem de cooperação e de coexistência, uma comunhão de fins, com os quais é mister que se conciliem fins irrenunciáveis do homem como pessoa, ou seja, como ente que tem consciência de ser o autor de suas ações, de valer como centro axiológico autônomo, o que só será possível com igual reconhecimento da personalidade alheia.32

Pode-se compreender a teoria tridimensional do Direito de Reale sob os seguintes prismas: primeiramente, fato, valor e norma, que estão sempre pre-sentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, ou seja, trata-se de um estudo uno, e não cabe ao filósofo estudar os valores e ao sociólogo os fatos, restando ao jurista somente a norma, conforme propu-nham algumas correntes; além disso, a correlação entre os três elementos é de natureza funcional e dialética, da interação entre fato e valor há como resultado o momento normativo.33

A partir da concepção tridimensional do Direito é possível resolver ques-tões como a de por que uma mesma norma de Direito, sem que tenha sofri-do qualquer alteração adquire significados diversos com o passar dos anos,

29 REALE, Miguel. Fun-damentos do Direito. p. 301, 302.

30 REALE, Miguel. Fun-damentos do Direito. p. 302.

31 REALE, Miguel. Fun-damentos do Direito. p. 315.

32 REALE, Miguel. Filoso-fia do Direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2002.p. 706.

33 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direi-to. 5.ed. rev. e reestr. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 57.

Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito

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por obra da doutrina34 e da jurisprudência35. O sentido estimativo autêntico da norma é dado pela estimativa dos fatos, nas circunstâncias em que o in-térprete se encontra.36

Encontrado o fundamento do Direito, Miguel Reale também considera as questões relativas à ideia de Justiça, reafirmando as concepções anterio-res, especialmente a noção de Justiça Distributiva e Corretiva elaboradas por Aristóteles, bem como referindo-se a uma outra categoria de Justiça,a Justi-ça Geral, quando diz:

Há milênios que a humanidade procura se achegar à mais alta expressão da Justiça, que não é a que se realiza só com o dar a cada um o que é seu, ou com o tratamento dos cidadãos na proporção de seus méritos, mas também com a constituição de uma ordem social na qual cada homem saiba se dedicar ao bem comum sem exigir retribuição proporcional à sua obra.37

Manifesta que essa última forma de Justiça já havia sido antecipada pelos pitagóricos e estudada por Aristóteles, São Tomás e os mestres que os su-cederam. A Justiça geral representaria a superação e complementação da Justiça comutativa e distributiva, revelando o mais alto grau de atualização das virtudes da pessoa.38

O bem comum é entendido como objeto mais alto da virtude Justiça, re-presentado por uma ordem proporcional de bens em sociedade. Assim, o Direito não tem a finalidade exclusiva de realizar a coexistência das liberda-des individuais, mas também alcançar a “coexistência e a harmonia do bem de cada um com o bem de todos”39.

Com base nas considerações sobre a Justiça em Miguel Reale, pode-se concluir que o Direito in concreto, somente poderá se realizar enquanto Di-reito justo, se estiver em contato com a realidade da sociedade que regula, e com os fins que a esta foram propostos. Valor, fato e norma possuem uma força pedagógica, geram o aprimoramento da vida em sociedade. Sua intera-ção possibilita o desenvolvimento de uma sociedade em direção a uma con-dição axiológica superior. Para que essa proposta se torne realidade, aqueles que produzem o Direito e o aplicam, o legislador, o jurista, os agentes públi-cos e a própria sociedade devem se responsabilizar, assumir o compromisso de buscar a perfeita integração entre esses três termos. Esse é o espírito da Teoria Tridimensional do Direito.

34 Chamam-se de doutrina as obras escritas por pensa-dores do Direito interpre-tando a área do Direito por ele estudada, bem como ordenação vigente sobre essa mesma área.

35 Nesse sentido, o corpo de decisões reiteradas tomadas pelos tribunais sobre determinada ma-téria, apresentando em muitos casos interpreta-ção inovadora acerca do preceito legal.

36 REALE, Miguel. Filoso-fia do Direito. p. 583.

37 REALE, Miguel. Fun-damentos do Direito. p. 311.

38 REALE, Miguel. Fun-damentos do Direito. p. 311.

39 REALE, Miguel. Fun-damentos do Direito. p. 311.

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Ampliando seus conhecimentos

Vigência, eficácia e fundamento(REALE, 2005, p. 14-22)

[...]

5. A necessária complementaridade das pesquisas do filósofo, do sociólogo e do jurista revela-se, de maneira bem marcante, quando se estuda o problema da validade do direito, questão que, no dizer colorido de Max Ernst Mayer, esvoaça, como um pássaro assustado, por todos os quadrantes do pensamento jurídico.

Para empregarmos uma expressão popular, densa de significado, a primei-ra impressão que nos dá a lei é de algo feito “para valer”, isto é, de uma ordem ou comando emanado de uma autoridade superior. Basta, porém, imaginar uma pessoa na situação concreta de destinatário do chamado “comando legal” para perceber-se quão complexo é o problema da validade do Direi-to. Há, em primeiro lugar, uma pergunta quanto à obrigatoriedade de uma norma jurídica para todos, em geral, e para determinada pessoa em particular, o que se desdobra em uma série de outras perguntas sobre a competência do órgão que elaborou o modelo jurídico, a sua estrutura e o seu alcance. Além desse plano de caráter formal, surge um outro grupo de questões, quanto à conversão efetiva da regra de Direito em momento de vida social, isto é, no tocante às condições do real cumprimento dos preceitos por parte dos conso-ciados; e, finalmente, há uma terceira ordem de dificuldades, que consiste na indagação dos títulos éticos dos imperativos jurídicos, na Justiça ou injustiça do comportamento exigido, ou seja, de sua legitimidade.

Eis aí, numa percepção sumária e elementar, os três fios com que é tecido o discurso da validade do Direito, em termos de vigência ou de obrigatoriedade formal dos preceitos jurídicos; de eficácia ou da efetiva correspondência social ao seu conteúdo; e de fundamento, ou dos valores capazes de legitimá-los numa sociedade de homens livres.

Enunciada desse modo a questão, parecem transparentes os nexos que ligam entre si os três problemas numa estrutura tridimensional, mas, por um completo de motivos, uns de natureza histórica, outros dependentes das incli-nações intelectuais dos investigadores, nem sempre prevalece a compreensão unitária dos fatores que compõem a realidade jurídica: não raro orientam-se

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os espíritos no sentido do primado ou da exclusividade de uma das perspecti-vas acima discriminadas, surgindo, assim, soluções unilaterais ou setorizadas1.

Impõe-se reconhecer que houve plausíveis razões históricas para que, no século passado, por exemplo, predominasse a imagem do Direito com base na certeza objetiva da lei. É que as estruturas jurídicas do estado de direito, modelado sob o influxo do individualismo liberal dominante na cultura bur-guesa, cujos valores se impunham como expressão natural de toda uma época histórica, correspondiam, consoante crença generalizada, às necessidades e tendências da sociedade oitocentista. Os estatutos constitucionais vigentes nos países de maior densidade cultural, tanto na Europa como na América, bem como os códigos e os sistemas jurídicos privados, fundados nos princí-pios da liberdade política e da autonomia da vontade, pareciam ser a imagem fiel da realidade social a que se destinavam, muito embora nela já estivessem fermentado os motivos que iriam determinar, na presente centúria, o ciclo de crises de estrutura em que ainda se debatem tanto o Direito como o Estado.

Dominando entre os juristas a convicção de uma correspondência essen-cial entre a realidade socioeconômica e os modelos jurídicos consagrado nas leis, era natural que o problema da validade fosse posto em termos de valida-de formal ou de vigência, desdobrando-se no estudo dos requisitos da obri-gatoriedade dos preceitos, desde os reclamados para a constituição regular dos legiferantes, até o processo requerido para a formulação de dispositivos que, graças à certeza objetiva de seus enunciados, representassem uma ga-rantia aos direitos fundamentais dos cidadãos. Nem se pode dizer que fosse ilusória a correspondência entre a lei e as relações sociais então disciplinadas. O culto à lei, com o ciumento apego à independência das funções legislativas e ao princípio da separação dos poderes; a redução do ato interpretativo à mera explicitação do significado imanente ao ato legislativo; a subordinação do juiz à suposta intenção do legislador; a atenção dedicada ao rigor formal dos textos, aliando-se a prudência do jurista à arte dos filólogos, tudo revelava o status de uma sociedade convicta da eficácia e da Justiça de suas opções normativas. No Brasil, então, como alhures, chegou a vingar um verdadeiro parnasianismo jurídico, que resplende na excelência verbal da Constituição de 1891, e se projeta século XX adentro, até às polêmicas travadas sobre o Código Civil de 1916, quando maior repercussão tiveram as disputas dos gra-máticos do que as divergências dos jurisconsultos.

1 Sobre as que denomino “concepções unilaterais do Direito”, v. minha Filo-sofia do Direito, cit., Caps. XXXI-XXXIII.

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Como se vê, a subordinação do Direito ao ângulo da vigência não nascia de um propósito abstrato, como às vezes se declara, incorrendo-se no anacro-nismo de julgar-se o passado segundo a escala de valores do nosso tempo, mas estava em consonância com o espírito e os standards estimativos da so-ciedade da época. Se não fora assim, os mestres da Escola de Exegese e da “Analytical School”, assim como da Pandetística germânica, não teriam podido elaborar, com tanta penetração e rigor de análise, as categorias e os institu-tos jurídicos que consolidaram a Ciência Jurídica moderna, emancipando-a do Direito Romano, sem romper as raízes que prendem a cultura ocidental ao Corpus Iuris, como um filho que põe família própria, mantendo-se fiel as suas origens. A hoje tão criticada Jurisprudência dos Conceitos deixou-nos um legado do mais alto alcance, que é o sentido normativo e sistemático do Direito, compreendido como lucidus ordo.

O erro foi considerar-se imutável e intangível um sistema jurídico-politico que, como se sabe, estava prestes a ser superado, sob o impacto de profun-das inovações operadas na ciência e na tecnologia, dando lugar a conhecidos conflitos sociais e ideológicos. Antes mesmo, porém, que ocorresse a ruptura das vigas mestras do Estado de Direito de tipo individualista, para a laboriosa modelagem de um novo Estado de Direito fundado na justiça social, houve clara percepção, por parte dos juristas, de filósofos e de sociólogos, da neces-sidade de abandonar soluções estereotipadas, incompatíveis com uma socie-dade que parecia disposta a correr o risco, ainda não superado, de comprome-ter a liberdade individual em prol dos valores da igualdade.

É claro que, nessa procura de novos caminhos, visado a atingir o direito concreto, ao qual já me referi em páginas anteriores, o problema da efetivi-dade ou da eficácia assumiu posição de primeiro plano, passando os juristas a se preocupar com soluções forjadas, ao calor da experiência social, ainda que com o sacrifício dos valores da certeza e da segurança. Foi essa, aliás, a trajetória dramática percorrida por Jhering, que, após haver erguido a Juris-prudência Conceitual a cumes jamais atingidos, proclamou, corajosamente, a precariedade de seus esquematismos, abrindo caminhos nervosos para a Jurisprudência dos Interesses2.

Mas a trilha da eficácia não seria reta e sem tropeços, mas antes perturbada pela tentação dos desvios e dos descaminhos, que fizeram e ainda fazem es-quecer aquela via mais segura que, partindo da já citada Jurisprudência dos In-teresses, tende para a solução mais compreensiva da jurisprudência dos valores.

2 LARENZ, Methoden-lehre der rechtswissens-chaft. Berlim: 1960. Cap. III, §2. (Na tradução cas-telhana de Enrique Gim-bernat Ordeig, Barcelona, 1966, p. 59 e segs.)

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6. Digo que houve a tentação dos descaminhos por duas razões funda-mentais. Em primeiro lugar, houve juristas que, desenganados das soluções de ordem intelectiva, recorreram às vias da intuição emocional, esperando captar, num ato de identificação afetiva, os jus vivens, descendo até às fontes primordiais da juridicidade. Em alguns autores, a predileção pelo Direito es-pontâneo, ainda não ordenado em fórmulas intelectuais, significou o aban-dono do patrimônio, mais que bimilenar, de objetividade e de prudência que é o apanágio do Direito, como a mais antiga e madura das ciências sociais3. Tal sedução pelo Direito em estado nascente, na imediatidade incerta dos dese-jos e dos impulsos, significava como que uma forma de simbolismo jurídico, contraposto ao parnasianismo de alguns corifeus da Escola de Exegese, o que não deve surpreender, pois a história das ideias jurídicas, como expressão de uma das dimensões essenciais da vida humana, obedece ao ritmo da história da arte e da literatura, tendo havido juristas românticos e realistas, simbolistas e neoclássicos4.

Em linha paralela, outra encruzilhada se abriu àqueles que, deslumbrados com os progressos das ciências naturais, conceberam o plano de chegar à efe-tividade do Direito através do método indutivo, nos moldes do que ocorria na esfera das investigações físicas e biológicas. No fundo, a questão se resumia no programa já enunciado por Augusto Comte ao vaticinar a substituição da “me-tafísica dos fazedores de leis” pela “ciência positiva dos descobridores de leis”.

Foi essa a direção seguida por todas as formas de sociologismo jurídico, isto é, pelos naturalistas e realistas do Direito, que cuidaram e ainda cuidam ser possível e imprescindível formar juristas-sociólogos, destinados à análise do fenômeno jurídico segundo seus nexos de causalidade ou de funcionalida-de, numa “pura descrição dos dados jurídicos”, ad instar do que ocorre na So-ciologia. A essa luz, Direito só pode ser o Direito em sua eficácia social, do qual as regras jurídicas seriam signos, como sínteses explicativas de uma classe de resultados cientificamente previsíveis5.

Nem faltaram, é claro, soluções intermédias justapondo, paradoxalmen-te, o intuicionismo emocional às pesquisas científico-positivas, assim como também não escassearam teorias que, após reduzirem todo o Direito aos fatos sociais, inadvertidamente se apegaram ao fato do poder, fazendo, desse modo, ressurgir, embora sob a forma de um pretenso decisionismo de base científica, a “criação” do Direito que se pretendera superar.6

3 Sobre as várias formas de intuicionismo jurídico, v. Miguel Reale, Funda-mentos do Direito, 2. ed. São Paulo, 1972, p. 23 e seguintes.

4 Como exemplos de pes-quisas sob esse ângulo, v. Julien Bonecase, Hu-manisme, Classicisme, Ro-mantisme dans La Vie Du Droit, Paris, 1920, e Science du Droit et Romantisme, Paris, 1928; Louis Bourgés, Le Romantisme Juridique, Paris, 1922.

5 Sobre o “Sociologismo jurídico”, cf. minha Filo-sofia do Direito, cit., Cap.XXXI, onde focalizo espe-cialmente a posição de Léon Duguit, cujas ideias já continham implícito o superamento do empiris-mo sociológico no sentido da tridimensionalidade.

6 Em última análise, todo naturalismo jurídico culmi-na na apologia do poder. O exemplo soviético é típico, com a redução dos direitos às decisões do Estado, como expressão dos interesse da “classe operária dominante”, fican-do transferido para futuro incerto o desaparecimento do Estado, profetizado por Marx.

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O mais grave é que, nessa conjuntura, filósofos do Direito houve e há que assumem uma atitude de abdicação ou renúncia, contentando-se com a Teoria da Justiça, isto é, com o estudo do fundamento do Direito, transferindo para o jurista e o sociólogo, respectivamente, a pesquisa da vigência e da eficácia.

7. Pois bem, é nesse amplo contexto histórico que se situam as diversas formas de tridimensionalismo jurídico, infensos a interpretações setorizadas ou unilaterais da experiência jurídica, a soluções, em suma, que impliquem a desarticulação de uma estrutura, fora da qual os conceitos de vigência, eficácia e fundamento resultariam mutilados7.

Até mesmo Hans Kelsen, com o seu propósito de preservar a Ciência do Direito das indébitas intromissões de sociólogos, psicólogos, biólogos, eco-nomistas etc., abriu caminho para uma nova compreensão integral do Direito, não só por ser o seu normativismo bem distinto do “legalismo” da Escola da Exegese, mas também em virtude de haver uma tridimensionalidade implíci-ta na colocação da Teoria Pura do Direito8.

O certo é que se nota, sobretudo a partir do segundo após-guerra, uma generalizada aspiração no sentido da compreensão global e unitária dos problemas jurídicos, abandonadas as predileções reducionistas que levam a pseudototalizações.

No tocante ao assunto ora examinado, esse desejo de integração de pers-pectivas torna-se cada vez mais acentuado, dele compartilhando jusfilósofos, como Norberto Bobbio, que, como veremos, aceita a tridimensionalidade apenas com objetivos metodológicos de discriminação de campos de pesqui-sa. Declara o citado representante do neopositivismo jurídico ter, em geral, desconfiança das teorias reducionistas. No caso particular do problema da va-lidade do Direito, considera que os três critérios possíveis de validez, o mate-rial, o formal, e o empírico (expressões que, em última análise, correspondem ao que neste livro denomino, respectivamente, fundamento, vigência e eficá-cia, que me parecem mais adequadas ao assunto) muitas vezes se integram ou são adoperados conjuntamente, apesar de se manterem sempre distin-tos e poderem ser aplicados ora um, ora outro, segundo diversas situações. Bobbio adverte, com razão, que o problema da validade não consiste em preferir, entre vários critérios propostos, precisando os casos e as vicissitudes de seu emprego, total ou parcial, cumulativo ou alternativo, concorrente ou prevalecente, igual ou privilegiado9.

7 Sobre a noção de es-trutura e correlação de seus elementos, v. O Di-reito como Experiência, cit., Ensaio VII, Lições prelimi-nares de Direito, cit., Cap. XV, e Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, cit., p. 26 e seguintes.

8 Quanto a esse ponto, v. infra, Cap.II, §5, p. 38.

9 Bobbio, em resenha à obra de Ruggero Me-neghelli, Il Problema dell’Effettivitá nella Teoria della Validitá Giuridica, Pádua, 1964, na Rivista di Diritto Civile, 1966, n.º 6, p. 588 e seguintes.

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Pode dizer-se que essa maneira de focalizar a matéria da validez prende-se, como veremos no capítulo seguinte, a uma concepção tridimensional genéri-ca, que nos brinda uma parte apenas da verdade. A meu ver, vigência, eficácia e fundamento são qualidades inerentes a todas as formas de experiência jurí-dica, muito embora prevaleça mais esta ou aquela, segundo as circunstâncias, sem que se possa partir o nexo que as vincula ao todo, como é próprio da estrutura do Direito.

É, efetivamente, no concernente ao problema da validez que se opera o “divortium aquarum” das correntes tridimensionais, que, assim como podem dar aos conceitos de fundamento, eficácia e vigência uma acepção de cunho epistemológico-operacional, à maneira de Bobbio, podem contrapô-los uns aos outros numa insuperável antinomia, consoante resulta da doutrina pio-neira de Radbruch, ou discriminá-los segundo irredutíveis perspectivas, à maneira de Garcia Máynez, mas podem também – e é via que se me afigura aconselhável – correlacioná-los segundo uma compreensão dialética de com-plementaridade10.

Tudo isso está a demonstrar como a pesquisa filosófica, penetrando no âmago da validez formal, anima e fecunda, dando-lhe um novo sentido de integralidade e concreção, a Ciência Dogmática do Direito, colaborando com os juristas positivos em sua difícil e árdua tarefa de determinar e sistematizar as categorias jurídicas por um mundo em mudança.

10 Sobre a posição de Ra-dbruch e Garcia Máynez, v. a bibliografia indicada no capítulo seguinte, nas notas 1 e 30. Penetrantes são as observações de Hans Welzel no opúsculo An den gernzen dês Rechts – Die Frage nach der Re-chtsgeltung, Colônia. (REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direi-to. 5. ed. rev. e reestrutur. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 14-22.)

Atividades de aplicação1. Comente algumas diferenças e semelhanças entre os pensamentos de

Carl Schmitt e Hans Kelsen, partindo do pressuposto que um privilegia o político e outro o jurídico.

2. Reflita sobre a importância das questões trazidas por Max Scheler para a atualidade.

3. O autor traz a ideia de que, para que haja um acordo justo, é necessá-rio que as partes se valham do “ véu da ignorância”, situação na qual as partes possuem desconhecimento sobre as características individuais, tanto próprias como da outra parte. Levando esse conceito para a prá-tica, é de fato viável a possibilidade de se formular acordos utilizando o “véu da ignorância” do autor? Escolha uma situação (acordo entre

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países, transações financeiras entre empresas etc.) e demonstre se se-ria possível ou impossível, justificando sua resposta.

4. A filosofia de Jurgen Habermas é muito influenciada pela Filosofia da Linguagem, centrando na concepção de ação comunicativa a maioria de seus postulados, até mesmo em relação ao Direito. Acerca disso, qual a importância da comunicação no mundo contemporâneo? Que relação pode ser feita entre ela e o Direito no mundo do business?

5. Miguel Reale com sua concepção tridimensionalista do Direito conclui que ideais como o de uma justiça geral, bem como a realização do Direi-to em uma sociedade, somente serão possíveis com a interação entre a produção normativa, os valores, os ideais para essa sociedade e a cultu-ra em que se encontra. No plano da empresa, de que modo poder-se-ia considerar essa concepção da organização de uma sociedade?

Gabarito1. Carl Schmitt diz que o poder é fundamentado na Política, e não no Di-

reito, porque é sempre uma decisão política que origina as normas. Já Kelsen afirma que a ciência jurídica não deve se interessar pelas ques-tões políticas e outras, mas limitando-se apenas às normas jurídicas. Contudo, o conceito de norma fundamental o aproxima de Schmitt, na medida em que aceita que a primeira das manifestações é sempre uma decisão.

2. Cada vez mais a sociedade se preocupa apenas com normas, sem se ater aos valores, que na verdade são a essência de qualquer bem. É necessário revisar que valores a sociedade vem privilegiando, e ver se isso combina com a hierarquia de Scheler.

3. Pode-se argumentar que é impossível se utilizar da posição original, tendo em vista que para que isso ocorresse teríamos que ter a garantia de que a outra parte também seria imparcial, e caso isso não ocorresse estaríamos em grande desvantagem em uma transação de negócios, por exemplo. Também, poder-se-ia argumentar que hoje, com a globa-lização e com os inúmeros meios de comunicação, é praticamente im-possível buscar se encontrar em um estado de ignorância em relação a outra parte por mais que se queira, sempre se acaba por saber algo

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sem querer, e então fica difícil apagar essa informação. Os argumentos a favor são mais difíceis, porém é possível argumentar, por exemplo, que as partes forçosamente se encontrem nessa posição para ter mais garantia de um acordo justo, mas então caímos novamente no proble-ma da confiabilidade.

4. Essa concepção pode ser encarada de dois modos, primeiramente a importância da comunicação e da consciência das normas para o con-trole de validade das leis, de modo que o businessman poderá levantar- -se contra normas que o prejudiquem a si e ao seu negócio, podendo buscar nos órgãos legislativos e judiciários a correção de uma lei ilegal ou injusta. Em outro senso, dada o resguardo do princípio da autono-mia da vontade, faz-se essencial a manifestação de vontade através da comunicação para a consecução da atividade empresária conforme o sistema jurídico e recebendo a proteção por este garantida.

5. Tal como na busca por uma organização social, uma empresa para al-cançar sucesso, realização de modo estável no mercado, prescinde de um sistema de regulação de todos os que nela trabalham, ligados a uma finalidade específica ligada ao desenvolvimento do negócio, mas sem deixar de considerar o modo como a empresa se encontra na atua- lidade, bem como os hábitos que nela estão instaurados.

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Anotações