Entre o poema “Satélite” de Bandeira (Estrela ... - MOMENTUM

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FAAT 155 Como um deus em sua morada! – Como a espada em sua bainha. Entre o poema “Satélite” de Bandeira (Estrela da Manhã) e o poema “X” de Alberto Caeiro (O Guardador de Rebanhos), heterônimo de Fernando Pessoa, também encontramos ligação, mas não através da figurativização (já que, em Bandeira, a figura é a lua e, em Caeiro, o vento), nem tampouco através da forma (nos versos do poeta brasileiro) temos estrofes heterométricas de 6, 7, 3 e 4 versos, com métrica livre (os versos curtos referem- -se à realidade do poeta; os longos à realidade negada), plenos de aliterações (por exemplo: “Sem show para as disponibilidades sentimentais”); nos versos do poeta luso, verificamos um diálogo distribuído em estrofes de 3, 4, 4 e 4 versos (estrofes quase isomé- tricas, sendo que, na terceira e na quarta estrofes, ocorre homoge- neidade quanto ao número de sílabas poéticas (versos octossilá- bicos) e a repetição estruturando o ritmo (“Que te diz o vento que passa?/”/ “Que é vento, e que passa,/ E que já passou antes,/ E que passará depois.”, “Nunca ouviste passar o vento./ O vento só fala do vento.” “o que lhe ouviste foi mentira,Ea mentira está em ti.”. A ligação encontrada realizou-se tematicamente, pois tan- to Bandeira quanto Caeiro revelam influência dos empiristas que não acreditavam no intelecto, mas apenas nas imagens produ- zidas pelos órgãos do sentido, e advogam um enxugamento dos significados atribuídos às palavras vento e lua, para que elas pos- sam ser referidas apenas no que lhes é essencial, destituídas de qualquer conotação que lhes tenham sido atribuídas por séculos de literatura. “Satélite” Fim de tarde No céu plúmbeo A lua baça Paira muito cosmograficamente Satélite

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Como um deus em sua morada! – Como a espada em sua bainha.

Entreopoema“Satélite”deBandeira (Estrela da Manhã)eopoema “X”deAlbertoCaeiro (O Guardador de Rebanhos),heterônimodeFernandoPessoa, tambémencontramos ligação,masnãoatravésdafigurativização(jáque,emBandeira,afiguraéa luae,emCaeiro,ovento),nemtampoucoatravésdaforma(nosversosdopoetabrasileiro)temosestrofesheterométricasde6, 7, 3 e4versos, commétrica livre (osversos curtos referem--se à realidadedopoeta; os longos à realidadenegada),plenosdealiterações(porexemplo:“Sem showparaas disponibilidades sentimentais”);nosversosdopoetaluso,verificamosumdiálogodistribuídoemestrofesde3,4,4e4versos(estrofesquaseisomé-tricas,sendoque,naterceiraenaquartaestrofes,ocorrehomoge-neidadequantoaonúmerodesílabaspoéticas(versosoctossilá-bicos)earepetiçãoestruturandooritmo(“Quetedizovento que passa?/”/“Queévento, e que passa,/Equejápassouantes,/Equepassarádepois.”,“Nuncaouvistepassar o vento./Oventosófalado vento.”“oquelheouvistefoimentira,Eamentiraestáemti.”.

Aligaçãoencontradarealizou-setematicamente,poistan-toBandeiraquantoCaeirorevelaminfluênciadosempiristasquenão acreditavam no intelecto, mas apenas nas imagens produ-zidaspelosórgãosdosentido,eadvogamumenxugamentodossignificados atribuídos às palavras vento e lua, para que elas pos-samser referidasapenasnoque lhesé essencial,destituídasdequalquer conotação que lhes tenham sido atribuídas por séculos de literatura.

“Satélite” Fim de tardeNo céu plúmbeoA lua baçaPaira muito cosmograficamenteSatélite

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DesmetaforizadaDesmistificadaDespojada do velho segredo de melancolia.

Não é agora o golfão de cismas,O astro dos loucos e dos enamorados,Satélite.

Ah Lua deste fim de tardeDemissionária de atribuições românticas,Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valiaGosto de ti assim:Coisa em si,Satélite

“X”Olá, guardador de rebanhosAí à beira da estrada.Que te diz o vento que passa?

Que é vento, e que passa,E que já passou antes,E que passará depois.E a ti o que te diz?

Muita cousa mais do que isto.Fala-me de muitas outras cousas.De memórias e de saudadesE de cousas que nunca foram

Nunca ouviste passar o ventoO vento só fala do ventoO que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti.

Outro nexo de continuidade que podemos estabelecer éentreopoema“LusitâniadoBairroLatino”deAntônioNobree

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“EvocaçãodoRecife”deBandeira.“EvocaçãodoRecife”émaisumpoemaemqueopoetabuscaafuga(tambémofazem“Vou--me embora pra Pasárgada”, “Profundamente, “Infância”). Essafugaérealizadanaexperiênciainfantil,sobreosmitosqueafor-jaram,não,comcerteza,comosederamnarealidade,mascomoficaramnamemória,despojadosdeimperfeições.Em“LusitâniadoBairroLatino”,Nobrevêomundocomolhosinfantiseinge-nuamente populares.

Emambosháapassagemdeexperiência,focalizandooquecommaisforçaimpressionouossentidosdacriançaepermane-ceu,masemNobreaindaobservamosaidentificaçãocomanatu-reza,porqueavêcomafinidade.

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado [e partia as vidraças da casa de dona Aninha ViegasTotônio Rodrigues era muito velho e botava [o pincenê na ponta do narizDepois de jantar as famílias tomavam a[calçada com cadeira mexericos, namoros, [risadasA gente brincava no meio da ruaOs meninos gritavam Coelho vai! Não sai!A distância as vozes macias das meninas[politonavam: Craveiro dá-me um botão

Menino e moço tive uma Torre de leite, Torre sem par! Oliveiras que davam leite,Searas que davam linho de fiar,Moinhos de velas, como latinas,Que São Lourenço fazia andar...

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Formosas cabras ainda pequeninas,E loiras vacas de maternas ancasQue me davam o leite da manhãLindo rebanho de ovelhas brancas;Meus bibes de lã.

Antônio era pastor desse rebanho:Com ela ia para os Montes, a pastar.E tinha pouco mais ou menos seu tamanhoE a serra a toalha, o covilhete e a sala.Passava a noite, passa o diaNaquela doce companhia. Eram minhas Irmãs e todas puras E só lhe minguava a falaPara serem perfeitas criaturas... E quando na Igreja das Alvas Saudades (Que eram da minha Torre a freguesia) Batiam as trindades,Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-meE as doces ovelhinhas imitavam-me.

Emambosháatristeza,amelancolianapercepçãodequetodaaamorosidadeealegria,dotempoinicial,findaram-se.EmNobre,essanoçãoémaisprofundaeplangente,poisneleaperdaéfigurativizadadeváriasmaneiras(oliveiras,vaias,Ladrões,ve-las,andarnoSena,farinha)eaemoçãoexplodeatravésdeinter-rogaçõesereticências;emBandeira,aemoçãodaperda,emborabastanteforte,écontida.

Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade

As oliveiras secaram,Morreram as vacas, perdi as ovelhas,Saíram-me os Ladrões, só me deixaramAs velas do moinho... mas rotas e velhas!

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{...}Hoje, fazem-me andar águas do Sena...É negra a sua farinha!Orai por ele! Tende pena!Pobre Moleiro da Saudade...{...}Hoje, fazem-no andar águas do Sena...É negra a sua farinha!Orai por ele! Tende pena!Pobre Moleiro da Saudade...{...}

Que é feito de vocês? Onde estais? Onde estais?{...}

Onde estais? Onde estais?

TantoBandeiraquantoNobreapresentamaspersonagensqueconstituíramoquadrodainfância,ambosevocandooshu-mildes:

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas [com xale vistoso de pano da CostaE o vendedor de roletes de canaO de amendoimQue se chamava medubim e não era torrado era cozido

Ó moleiro das estradas,Carros de bois chiando... ... ... Ó padeirinhas a amassar o [pão, Velhinhas na roça a fiar,Cabelo todo em caracóis!Pescadores a pescarCom a linha cheia de anzóis!

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BandeiraeNobretambémserecordamdospregões:

Me lembro de todos os pregões:Ovos frescos e baratosDez ovos por uma pataca Foi há muito tempo...

Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!Pão-de-ló de Margaride!Aguinha fresca de Moraima!Vinho verde a escorrer da vide!

Cada um, dentro do seu mundo, rememora os aconteci-mentos constantes:

Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antônio! Outra contrariava: São José!Totônio Rodrigues achava sempre que era São José Os homens punham o chapéu saíam fumando E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ver o fogo (...)

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiuE nos pregões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em [jangadas de bananeirasTira o chapéu, silêncio!Passa a procissão

Estralejam foguetes e morteirosLá vem o Pálio e pegam ao cordãoHonestos e morenos cavalheiros.Altos, tão altos e enfeitados, os andores,Parecem Tôrres de Davi, na amplidão!Que linda e asseada vem a Senhora das Dores(...)

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Trombetas clamam. Vai correr-se o toiroPassam as chocas, boas mães! passam capinhas.

Oerotismotambémsefazpresentenosdoistextos,aindaqueemNobrehajaumconviteaoCarpe Dieme,emBandeira,apenas a lembrança da descoberta:

Um dia eu vi uma moça nuinha no banhoFiquei parado o coração batendo

Ela se riuFoi o meu primeiro alumbramento

Georges! Anda ver meus país de romariasE procissões!Olha essas moças, olha estas Marias!Caramba! Dá-lhes beliscões!Os corpos delas, vê, são ourivesariasGula e luxúria dos Maneis!Têm nas orelhas grossas arreadas,Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéisAo pescoço serpentes de cordões!E sobre os seios entre cruzes, como espadas,Além dos seus, mais trinta corações!Vá! Georges, faze-te Manel! Viola ao peito,Toca a bailar! Dá-lhe beijos, aperta-as contra o peito,Que hão de gostar!

Ambos aproveitam o espaço gráfico para dar disposição àsestrofeseintencionandoumsignificadovisual.NosversosdeBandeira,adisposiçãodosversosmarcaadistânciadosaconte-cimentos:

Recife... Rua da União...

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A casa do meu avô... ...De repente Nos longes da noite Um sim

NosversosdeNobre,commenorconstância,ousodoes-paço gráfico também aparece com significado:

Tira o chapéu, silêncio! Passa a procissão.

A observação sobre a língua popular e coloquial está inse-ridanosdoistextos.EmNobre,apenasoregistroeoelogio;emBandeira,acrítica:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livrosVinha da boca do povo na língua errada do povoLíngua certa do povoPorque ele é que fala gostoso português do Brasil Ao passo que nósO que fazemosÉ macaquearA sintaxe lusitana

Ao leme vai o Mestre Zé da LeonorParece uma gaivota: aponta-lhe a [espingardaO caçador!

Senhora d’Ajuda!Ora pro nobis!Caluda!Sémos pobres!Senhor dos ramos

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Nospoemasinspiradosnoscantaresebrincadeirasinfan-tis (“Aneldevidro”, registradono livroA Cinza das Horas, “NaRuadoSabão”emRitmo Absoluto, “Bocadoforno” em Estrela da Manhã, “RondódoCapitão” em Lira dos Cinquen’Anos, “Sapo--Cururu” em Mafuá do Malungo) fica evidente que a palavra usa-daporBandeiranãoésuaunicamente,maséavozdosoutrosqueantecederamasuacomposição,éavozdodiscursodeoutremin-corporadanoseudemaneirarenovadaecriativa.Bandeirapartedeversosdacantigainfantilecriabelíssimasnarrativaspoéticas,cumprindoaspalavrasdeBakhtin:

As obras rompem as fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos, ou seja, na grande temporalidade e, assim, não é raro, que essa vida seja mais intensa e mais plena do que nos tempos de sua contem-poraneidade (BAKHTIN,1981,p.364).

2Estilização

AestilizaçãotambémestápresentenospoemasÀmaneirade...(ÀManeiradeAlbertodeOliveira,OlegárioMariano,Au-gustoFredericoSchmidt,E.E.Cummings),emqueopoetaimitaseus estilos, vocabulário, temática, inovando mas sem subverter.

Em“ÀManeiradeAlbertodeOliveira”,porexemplo,ve-rificamosomesmorigorda forma(soneto)constituídodever-sosdecassílabos (predominamosheroicos), rima soante (abab,abab,cdc,ede)erica,ainversãodaordemhabitualdaspalavras(“osolviumaisperto”),oléxicoprecioso(“diserto”),acontraçãosistemáticadasvogais(“essequiem”).AlbertodeOliveiratraçavaquadros,cenas,emqueprocuravafixarasensaçãodeumdetalheouamemóriadofragmentodeumdeterminadoacontecimento.ManuelBandeira,nestesoneto,buscacomporacenadobrasileiroque,chegadoàEuropa,voa,pelaprimeiravez,comuminstru-mentomaispesadoqueoar,aoredordaTorreEiffel.Otemaétratadocomobjetividade,comofariaAlbertodeOliveira.Alémdisso,hánosonetoumareferênciaàmitologiaclássica(“talFebo

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esplende”),ocorrênciaconstantenapoesiaparnasiana.Bandeirabuscoutraçosfônicos, léxicosesintáticosrecorrentesdapoesiadeAlbertodeOliveira,imitandoseuestilo.

...AlbertodeOliveira

Esse que em moço ao Velho ContinenteEntrou de rosto erguido e descoberto,E ascendeu em balão e, mão tenente,Foi quem primeiro o sol viu mais de perto:

Águia da Torre Eiffel, da Itu contenteRebento mais ilustre e mais diserto,É o florão que nos falta (e não no tenteGlória maior), Santos Dumont Alberto!

Ah que antes de morrer, como soldadoQue malferido da refrega a poeiraBeija no chão natal, me fora dado

Vêlo (tal Febo esplende e é luz e é dia)Na que chamais de Letras BrasileiraOu melhor nome tenha, Academia. (BANDEIRA,1970,p.375)

3Paródia

Aparódiaéumefeitodelinguagemqueépercebidocomintensidadenasobrascontemporâneas.Desdeoiníciodosmovi-mentosrenovadoresdaarteocidental(Cubismo,Dadaísmo,Fu-turismo)edoModernismopôde-severificarapresençaconstantedelacomo“umefeitosintomáticodealgoqueocorrecomaartede nosso tempo” (SANT’ANNA, 2001, p.7). Não é, entretanto,criaçãoatual,masremontaaAristótelesque,emsuaPoética, co-menta a origem do nome paródia (HegemondeThaso,noséculo5a.C.)(ApudSANT’ANNA,2001,p.11).

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Segundo o dicionário Houaiss,paródiavemdogregopará‘aoladode’+oide‘açãodecantar’.Portantooconceitodeparódia,originariamente,estavaligadoàmúsica,eraacançãocantadaaoladodeoutra.Hoje,paródiasedefineatravésdeumjogointertex-tual,mas intertextualidadedasdiferenças,dodeslocamento,dacontestação, estabelecendo um novo paradigma.

ManuelBandeira, opoetada tradição, aderiu às técnicasmodernistas gradativamente, à medida que viu na renovação a únicaalternativaàsuapoesiaquenãoseconformavamaisàsan-tigasfórmulasdeexpressão.OModernismoimpôs-senelecomocondição à continuidade de sua poesia, não como oportunismo e modismo,enessecontextoéqueaparódiaaparece.

ManuelBandeiracultivaasformasclássicasdentrodeumespíritode“imitação”(paráfrase),mas,paraademarcaçãodeumnovo posicionamento, o que produz algo diferente, novo, comumaforçadecrítica,usaaparódia,assuntodestecapítulo.

Em “Poética”, poema incluído no livro Libertinagem (1930),obradeplenamaturidademodernista,das“palavrasemliberdade”,Bandeiraassumeumtombastanteagressivoemfacedapoesiaparnasiana,parodiando“ProfissãodeFé”deOlavoBi-lac.

EnquantoBilacbusca“apedrarara”,“oônix”,Bandeirapro-clama“Todasaspalavras sobretudoosbarbarismosuniversais”,emversobrancoeconclama:“Abaixoospuristas”.

Poética

Estou farto do lirismo comedidoDo lirismo bem comportadoDo lirismo funcionário público com livro de ponto [expediente protocolo e manifestações de apreço ao[sr. diretor.

Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no[dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

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Abaixo os puristasTodas as palavras sobretudo os barbarismos universaisTodas as construções sobretudo as sintaxes de exceçõesTodos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namoradorPolíticoRaquíticoSifilíticoDe todo o lirismo que capitula ao que quer que seja [fora de si mesmo.

De resto não é lirismo dos loucosSerá contabilidade tabela de co-senos secretário[do amante exemplar com cem modelos de cartas[e as diferentes maneiras de agradar às mulheres,etc.

Quero antes o lirismo dos loucosO lirismo dos bêbadosO lirismo difícil e pungente dos bêbadosO lirismo dos clowns de Shakespeare– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Profissão de Fé

Le poete est cisele Le ciseleur est poete Vitor Hugo

Não quero o Zeus CapitolinoHercúleo e belo,Talhar no mármore divinoCom o camartelo

Que outro- não eu!- a pedra cortePara, brutal,Erguer de Atene o altivo porteDescomunal.

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Mais que esse vulto extraordinário,Que assombra a vista,Seduz-me um leve relicárioDe fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:Imito o amorCom que ele, em ouro, o alto relevo

A pedra firo:O alvo cristal, a pedra rara,O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-meSobre o papelA pena, como em prata firmeCorre o cinzel

Corre, desenha, enfeita a imagem,A ideia veste:Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagemAzul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, limaA frase; e, enfim,No verso de ouro engasta a rima,Como um rubim.

Bilac procura a perfeição da forma e “desenha, enfeita aimagem”,“Torce,aprimora,alteia,lima/Afrase”,istoé,interferenoprocessocriadornabuscadaformaperfeita;Bandeirarevolta--se: “estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo funcionáriopúblico...”Seusversosbrancosdeinúmerassílabasnãotêmnemmesmopontuação.Oparnasianoquersuaideiavestida,limitadaporumaroupagem(“Cinge-lheocorpoaamplaroupagem/Azul--celeste”);omodernoaspiraàliberdade(“Todososritmossobre-tudoosinumeráveis”)econcretizaseudesejoescrevendoversos“inumeráveis”.Oparnasianoaindaalmejacomoacabamentofi-

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naldasuaobraainclusãodarima(“Noversodeouroengastaarima,/Comoumrubim”);omodernonemmesmoadmitequehajaexigênciaquenãonasceucomaobra,poisdiz“Estoufartodo lirismonamorador/.../.../.../De todo lirismoquecapitulaaoquequerquesejaforadesimesmo”.Bandeirarepudiaolirismoparnasianoque“Segueestanorma,”emproldo“lirismodoslou-cos”,“dosbêbados”,“dosclownsdeShakespeare”,dolirismoliber-tário(“dolirismoquenãoélibertação”).

Bandeiranos apresenta em“Poética”onovo,odiferente,sem criatividade previsível e inaugura um outro paradigma, mas ofazcontrapondo-seaalgojáestabelecido,umvelhoparadigma,oParnasianismo.EscritonomomentodeeclosãodoModernis-mo brasileiro, ou mais precisamente no momento de sua afirma-ção,opoemacontémospostuladosbásicosdomovimentonãosónoquepropõe,mastambémnoquerealiza.Éumcasodemeta-linguageminteiramenterealizada,umavezqueopoeta,àmedidaquepropõe,executaoproposto,desdobrando-seotextosobresimesmo, num contraponto ideal entre significado e significante.

Opoema“ProfissãodeFé”deBilacserviutambémdepon-todepartidaparaopoema“OsSapos”,ondeBandeiraparodiacombom-humoraeloquênciaocaparnasiana.Aprópriaescolhadaspalavras(sapo,papos,berra,guerra,martelado,saparia,urra,tripas)denunciaaintençãosarcásticaedesmascaraalinguagemnobre,massemvitalidade.Observemosanonaeadécimaestro-fesdopoema“OsSapos”easquatroprimeirasestrofes,játrans-critasnaspáginasanterioresda“ProfissãodeFé”deBilac.

Brada em assomo Ou bem de estatuárioO sapo tanoeiro: Tudo quanto é belo,- “A grande arte é como Tudo quanto é várioLavor de joalheiro. Canta no martelo” (BANDEIRA, 1970, p.51)

OpoemadeBilac,escritonofinaldoséculoXIX,expõeosprincípiosdapoéticaparnasiana.Nasquatroprimeirasestrofes,

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opoetacomparaofazerpoéticoaodoourives.OpoemadeBan-deiraridicularizaaestéticaparnasianae,contrariandosuacrença,usa asmesmasfiguras aodizerqueagrandearteoué comoolavor(trabalho)dojoalheiro(ourives)oudoestatuário(doescul-tor),alémdeficarimplícitoqueosapotanoeiroéBilac.Tambémasonoridadedoverso“Cantanomartelo”deBandeiraimitaadoversodeBilac“Comocamartelo”.

Bandeira,aoparodiarotextodeBilac,odessacraliza,ou,comoelemesmodiz,“alfineta”(“AlfinetadasdosSapos”).

Nopoema“Satélite”dolivro Estrela da Tarde, livro de poe-siasqueManuelBandeiralançoucom76anos,tambémpudemosverificarabuscadadeformaçãodeumconceitoparaaafirmaçãodo novo.

Satélite

Fim de tarde No céu plúmbeoA Lua baçaPairaMuito cosmograficamenteSatélite

Desmetaforizada,DesmistificadaDespojada do velho segredo de melancolia,Não é agora o golfão de cismas,O astro dos loucos e dos enamorados,Satélite

Ah Lua deste fim de tardeDemissionária de atribuições românticasSem show para as disponibilidades sentimentais

Fatigado de mais-valia,Gosto de ti assim:Coisa em si,- Satélite. (BANDEIRA,1970,p.232)

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Bandeira, nos primeiros versos do poema, situa a lua“numfimde tarde”, “numcéuplúmbeo”, qualificando-a comobaçaedizendoque“paira”muitocosmograficamente, istoé,aluaestánoaltosimplesmentecomoastro,ideiaessasintetizadanoverso“Satélite”.Nessaprimeiraestrofe,opoetaregistraare-alidade da lua em seu sentido puro e simples, como se estivesse observando-aatravésdeumobservatório.Naestrofeseguinte,ousoreiteradodoprefixodes-,queindicaaçãocontrária,adesti-tuiçãodosconceitosatéentãoassociadosàlua(desmetaforiza-da,desmistificada,despojada)eaafirmaçãodeque“Nãoéagoraogolfãodecismas/Oastroloucodosloucoseenamorados”,dei-xaimplícito(atravésdoadvérbioagora)que,nopassado,jáfoimistificada,metaforizada, tidacomo“golfãodecismas”.Ane-gação(nãoéagora)eoprefixodes-revelamapresençadeduasvozes,dedoispontosdevistadiversosemrelaçãoàlua:umquevêaluacomorepositóriodesentimentosemitos(registradaemversoslongos),outroquevêaluanãoidealizada,masapenasarealidade(registradaemversoscurtosquerevelamaexpressãosecaefundamentaldalua).

Essaoposiçãoficamaisevidentequando,atravésdenossamemória discursiva, detectamos a intertextualidade no poema“Plenilúdio”deRaimundoCorreia,poetaromântico-parnasiano.

Há tantos anos olhos nela arroubados,No magnetismo do seu fulgor!Lua dos tristes e enamorados,Golfão de cismas fascinador. (CORREIA,1976,p.65)

ManuelBandeiracujas“antenascaptavamsinaisemtodaaparte,absorviam-nosetransfundiam-nosemmensagensdebe-leza” (MOISÉS, 1974, p. 413), refuta o exagero sentimental emtornoda lua,atravésdacitaçãodoversoromântico-parnasianoe“transformaaobradooutroemsimplesobjetoematerialparaqueserealizeasua”(SANT’ANNA,2001,p.46-47).

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No poema “Sextilhas Românticas” do livro Belo Belo de 1945tambémencontramosopoetamodernoparodiandooRo-mantismo,maisconcretamenteGonçalvesDias.

Paisagens da minha terraOnde o rouxinol não canta- Mas que importa o rouxinol?Frio, nevoeiros da serraQuando a manhã se levantaToda banhada de sol!

Sou romântico! ConcedoExibo, sem evasiva,A alma ruim que Deus me deu.Decorei “Amor e medo”“No lar”, “Meus oito anos”... VivaJosé Casimiro de Abreu!

Sou, assim, por vício inatoAinda hoje gosto de Diva.Nem não posso renegarPeri, tão pouco índio, é fato,Mas tão brasileiro... VivaViva José de Alencar!

Paisagens da minha terraOnde o rouxinol não canta- Pinhões para o rouxinol Frio, nevoeiros da serraQuando a manhã se levantaToda banhada de sol!

Ai tantas lembranças boas!Massangana de Nabuco!Muribara de meus pais!Lagoas das AlagoasRios do meu Pernambuco,Campos de Minas Gerais!

(BANDEIRA,1970,p.185)

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Naprimeiraequartaestrofes,BandeiraseocultaatrásdoversoconhecidodeGonçalvesDias(“MinhaTerratempalmei-ras/Ondecantaosabiá,)paraopor-seaele,inverterosentido.

O poeta, usando uma forma antiga (a sextilha) empre-ga uma linguagem sem pose nem espartilhos descendo às ruas (Viva/VivaJoséCasimirodeAbreu!Viva!VivaJosédeAlencar!”)e afirma o ideário modernista ao consolidar a poesia com a marca desuaindividualidade(“Aitantaslembrançasboas!/MassanganadeNabuco!/Muribarademeuspais!/LagoadasAlagoas,/RiosdomeuPernambuco,/CamposdeMinasGerais!).

Em“Cançãoparaaminhamorte”dolivroEstrela da Tarde, temosnaprimeiraestrofe:

Bem que filho do NorteNão sou bravo nem forte,Mas, como a vida amei Quero te amar, ó morte,– Minha morte, ó morte,– Minha morte, pesarQue não te escolherei. (BANDEIRA,1970,p.292)

Sou bravo, sou forteSou filho do Norte;Meu canto de morte,Guerreiros ouvi” DIAS,inBRAIT(Org),1997,p.47)

Osdoisprimeirosversosdessaprimeiraestrofedopoemafazem-nosrememorarosversosdeGonçalvesDiasnapoesiaépi-ca“I-JucaPirama”.

Oíndiobrasileiro,heróidopoemadeGonçalvesDias,de-poisdesernegadopelopaieconduzidoàtriboparaseusacrifício,canta com bravura sua honra em redondilhas menores rimadas e

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deritmomarcado(2ªe5ªsílabas).Bandeira,porém,jáiniciaseuversocomumaconcessiva(“Bemque”)paranegarafalaromân-ticaecontinuaanegá-laatravésdoadvérbioedoconectivo(“Nãosou bravo nemforte”)porqueamortenãoéporeleencaradacomdestemor,masesquecimentoparaasdoresdeamor(“Morteemtiqueroagora/Esquecerquenavida/Nãofizsenãoamar”.).

Em“BaladadasTrêsMulheresdoSaboneteAraxá”(1931)do livro Estrela da Manhã,verificamosapresençadaparódiaàfalafinaldoprólogodatragédiaRicardo IIIdeShakespeare,noquintoato,cenaIV:“Meureinoporumcavalo!”(“OmeureinopelastrêsmulheresdosaboneteAraxá!”),alémda“recuperação”dosversosdeBilacem“ProfissãodeFé”(“Queoutros,nãoeu,apedracortem”)

Bandeira,aoparodiarafrasesolenedotextoshakespeariano,estabelece “insubordinação contra o simbólico” (SANT’ANNA,2001,p.32).

Bandeiratambémdialogoucomosversosescritospeloro-mânticoJoaquimManueldeMacedoatravésdaparódia.

Teresa, se algum sujeito bancar oSentimental em cima de vocêE te jurar uma paixão do tamanho de umBondeSe ele chorarSe ele ajoelharSe ele se rasgar todoNão acredite não TeresaÉ lágrima de cinemaÉ tapeaçãoMentiraCAI FORA (BANDEIRA,1957,p.94)

Mulher, Irmã, escuta-me; não ames,Quando a teus pés um homem terno e curvo

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jurar amor, chorar pranto de sangue.Não creias, não mulher: ele te engana!As lágrimas são galas de mentiraE o juramento manto de perfídia.(BANDEIRA, 1957, p. 94)

A comparação entre os dois textos revela o tratamentodadoaotemaeàlinguagemnaspoéticasromânticaemodernis-ta.NotextodeJoaquimManueldeMacedo,oamoreoamanteaparecemidealizadospelalinguagem.EssaidealizaçãoédesfeitanotextodeBandeira:

“um homem terno e curvo” X “um sujeito”

“jurar amor” X “jurar uma paixão do tamanho de um bonde”

“chorar pranto de sangue” X “se ele se rasgar todo”

“as lágrimas são galas de mentira” X “É lágrima de cinema/ É tapeação/ Mentira”

Bandeiraquecomenta,arespeitodospoemastranscritos,tratar-se de um “exercício de tradução” (BANDEIRA, 1957, p.94),emseulivroItinerário de Pasárgada,opõealinguagemfor-mal à linguagem coloquial, consolidando as propostas da poética literária modernista e assinalando suas características.

ConsideraçõesFinais

T.S. Eliot afirma “que o poeta tem ummédium particu-lar, que é apenas um médium e não uma personalidade, no qual impressõeseexperiênciasseassociamempeculiaridadeseines-perados caminhos” (ELIOT, 1989, p. 45). EmBandeira cremosque se realiza essemédiumplenamente, porqueprocurouumamaneira nova de ler o convencional através de uma consciência crítica eparodiou inúmerospoemas; aproximou-sedas leituraspoéticasdesuainfânciaejuventude,assimilandosuasfrases,suasimagens, suas ideias, seus sentimentos, para uni-los e moldar um novoconteúdo.Bandeira,quenãoestevepresentenaSemanade

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ArteModerna,justificasuaausênciadizendo:“Tambémnãoqui-semos,RibeiroCoutoeeu,iraSãoPauloporocasiãodaSemanadeArteModerna.Nuncaatacamospublicamenteosmestrespar-nasianos e simbolistas, nunca repudiamos o soneto nem, de um modogeral,osversosmetrificadoserimados.Poucomedeveomovimento;oqueeudevoaeleéenorme”(BANDEIRA,1957,p.63).Oprópriopoetaadmitea importânciada influência so-fridaparaaconstruçãodesuaobra,enósreconhecemosneleograndepoetacriadorerenovador,opoetadopoema“modernona irreverência,na libertaçãode tudo,porémantigona acídia”(MOISÉS,1974,p.414).

É ainda importante assinalar aqui que a percepção das rela-çõesintertextuais,dasreferênciasdeumtextocomoutro,depen-dedorepertóriodecadaleitor,portantooqueapresentamosnesteestudo é o resultado do nosso acervo de conhecimentos literários edeoutrasmanifestaçõesculturais.Outrosleitores,comleiturasdiferenciadasdasnossas, certamente, apreenderãonovosdiálo-gosqueariquíssimaobrapoéticadeManuelBandeirarealiza.

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enSAiOS

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A intertextualidade em Manuel Bandeira

Sonia Mara Ruiz Brown1

ResumoOpresenteartigoenfocaospoemasdopoetaManuelBandeiraque

buscaramaherançaliteráriacomoreferencial,partindodasafirmaçõesdeBakhtineEliotsobreodiálogodalínguaedaconcepçãodePareysonsobreanecessidadedeinovareconservarnasfunçõesartísticas.Essain-tertextualidadeserádiscutidacomoparáfrase,paródiaeestilização.

palavras-chaveIntertextualidade;Paráfrase;Paródia;Estilização;ManuelBandeira.

AbstractThis article focuses on the poems of Manuel Bandeira that resort to li-

terary inheritance as references, taking into consideration the views of Bakhtin and Eliot regarding the language dialogue and the conception of Pareyson about the need to both innovate and conserve the artistic functions. This inter--textual approach will be discusses as paraphrase, parody and stylization.

Key WordsInter-textual; Paraphrase; Parody; Stylization; Manuel Bandeira.

introdução

TantoemM.BakhtinquantoemT.S.Eliottemosaafirma-çãodequenenhumdiscursoéautossuficiente.Bakhtin,nosseus

1 DoutoraemLiteraturaPortuguesapelaUniversidadedeSãoPaulo–USP/SP,SãoPaulo,SãoPaulo,Brasil, eprofessoradeLiteraturaPortuguesanasFaculdadesAtibaia-FAAT/SP,SãoPaulo,Atibaia,Brasil;[email protected]

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estudos,focalizoualínguaemseuusorealedefiniu-acomodia-lógica(“umenunciadodeveserconsideradoantesdetudo,comorespostaaenunciadosanterioresnointeriordeumaesferadada[...]: ele refuta, os confirma,os completa) (BAKHTIN, 1992,p.298),entendendoqueparaoanunciadorconstruirseudiscurso,levará em conta o discurso de outrem, que está presente no seu. T. S. Eliot priorizou a linguagemartística e o diálogo existenteentreasobrasliterárias,ressaltandoque“nenhumpoeta,nenhumartista,temsuasignificaçãocompletasozinho.Seusignificadoeaapreciaçãoquedelefazemosconstituemaapreciaçãodesuarela-çãocomospoetaseartistasmortos”(ELIOT,1989,p.39).

Dopontofilosófico,L.Pareyson,ofilósofodaestética,ex-põequeoinovareconservarsãofunçõesartísticasinseparáveis,pois“continuarseminovarsignificaapenascopiarerepetir,eino-varsemcontinuarsignificafantasiarnovazio,semfundamento”(PAREYSON,2001,p.137).

Sobessasperspectivaséqueestaremosenfocandoospo-emasdopoetabrasileiromodernistaManuelBandeira,opoetaaclamadoporGuilhermedeAlmeida comobandeira doBrasil(“Manuel, bandeira do Brasil!”) (BANDEIRA, 1970, p. XXIII),procurandorastrearporbaixodecadapoemaosquelheserviramdedesafio,estímulo,inspiraçãoeexemplo.

Bandeirarompeutradiçõespoéticas,introduzindoocolo-quialismo na poesia brasileira, tornando-se arauto do verso livre, alçando o cotidiano ao plano estético, mas nem por isso rene-gou heranças valiosas. São essas heranças que buscaremos na sua obra.Buscá-la-emosparaconstatarneleoqueAntonioCândidoeGildadeMelloeSouzaconstataram(prefáciodolivrodepoe-sias Estrela da Vida Inteira): “ograndeclássicodanossapoesiacontemporânea”(BANDEIRA,1970,p.LII).Clássicoporquenelehá a percepção do passado como um rumor onde predomina a atualidade mais incompatível.

ComoemBandeiraaintertextualidadesefazsentirdema-neiraamplaediversificada,discuti-la-emoscomoparáfrase,paró-

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diaeestilização.Paratanto,adotaremosaconcepçãodeAffonsoRomanodeSant’Annaparaquemaparódia“deformaotextoori-ginal subvertendo sua estruturaou sentido”; aparáfrase “reafir-maosingredientesdotextoprimeiroconformandoseusentido”;a estilização “reformaesmaecendo, apagandoa forma,mas semmodificaçãoessencialdaestrutura”(SANT’ANNA,2001,p.41).

Quantoaométodo,apresentaremossempreprimeiramenteo poema do objetivo de nosso estudo e, ao lado, o poema que dialoga com ele.

OobjetivoaquiseráapenasdarumavisãopanorâmicadainteraçãoexistenteentreBandeiraeoutrosescritores.

1Paráfrase

Através da leitura de O Itinerário de Pasárgada, obra em queManuelBandeiranosinformasobretodaasuaformação,re-latando as influências recebidas, o seu método de trabalho e suas relações pessoais, pudemos constatar que o processo de criação emBandeira não é premeditado,mas organiza-se em seu sub-conscienteeéexpressocomespontaneidade,semintençãoprévia,irrompendo“inesperadamentecomoumrelâmpago”.Noentanto,se muitos de seus poemas nasceram prontos é porque nele havia um molde anteriormente preparado e que pôde acolher o novo e organizá-loempalavrasdotadasdecargapoética,semqueoatoconsciente interferisse.Havianele jáumapredisposiçãoparaoatodeversejarpreparadaatravésdeumlongoaprendizado,queconstitui seu universo interior.

Naslinhasseguintes,oquetentaremosdemonstraréa“ma-tériabruta”2forjadapelasensibilidadedopoetaatravésdapará-frase.

2 SegundoJoséCarlosGarbuglio,“Olongoaprendizadopoéticoestavaintegradono poeta, fazia parte daquele universo interior e podia, portanto, funcionarcomoumaespéciedeforjadamatériabruta”(GARBUGLIO,1998,p.35).

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De Cinzas das Horas, obra publicada em 1917, mas que reuniupoemasescritosdesde1903,apontamosopoema“Volta”comoexemplodeintertextualidade.

Enfim te vejo. Enfim no teu Enfim te vejo! Enfim possoRepousa o meu olhar cansado. Curvado a teus pés dizer-te,Quanto o turvou e escureceu Que não cessei de querer-te, O pranto amargo que correu Pesar de quanto sofri.Sem apagar teu vulto amado! Muito penei! Cruas ânsias, Dos teus olhos afastado,Porém já tudo se perdeu Houveram-me acabrunhado,No olvido imenso do passado; A não, lembrar-me de ti!Pois que és feliz, feliz sou eu. Enfim te vejo!

Embora morra incontentadoBendigo o amor que Deus me deu.Bendigo-o como um dom sagrado.Como o só bem que há confortadoUm coração que a dor venceu! Enfim te vejo!

Oprimeiro versodaprimeira estrofe, alémde retomar aprimeirapartedoprimeiroversodaprimeiraestrofedeGonçal-vesDiasem“AindaumavezAdeus!”,retomaoenjambement que estimula a atenção do leitor.

GonçalvesDias não o repetemais nenhuma vez em seulongopoemade18estrofes,noentantoBandeirarepete-onofinaldasestrofes.Éaepíforafuncionandocomoleitmotiv, em versos rimadoseisométricos(emBandeira),estrofesirregulares,versosoctossílabos,comexceçãodoverso“Enfimtevejo!”nofinaldasegundae terceiraestrofes,dispostonomeioda linha,parare-velarcomcontundênciaaimportânciadoato,eversosemrimasmasculinasefemininas(eu/ado),comoquedemonstrandoaam-biguidadedeumsentirfelicidadenador;emGonçalves,estrofes

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regulares(oitava),versossetissílabos,rimaabbcdeecnasdezoitoestrofes,sendosemprearimacfeminina(asdemaismasculinas)e os versos que a contêm terminados em pausa marcante, porque sãoosquedeixamexplodiraemoçãopoética.

Em ambos os poemas está presente o lamento profundopelaperdadeumamor,nãoobstantediferenteéaatitudedoeu--poéticodiantedodesengano:oromânticosóvê“dor”,“desenga-no”,“miséria”;omodernobendiz.

Nopoema“AGuimarãesRosa”,inseridoemMafuá do Ma-lungo,BandeiraretomaosversosdeGonçalvesDias(“Nãoper-mitaDeusqueeumorra/Semqueeuvolteparalá”)empregandoomesmo ritmoda “Canção doExílio” (redondilhamaior comacentonaterceiraesétimassílabas).

Não permita Deus que eu morra Sem que ainda vote em você;

Paracantaroamigo,Bandeiraassimilouatradiçãoedia-logoucomela.Oversoaprendidoeinteriorizadofoiempregadonuma situação nova e dotado de graça e humor.

A“CançãodoExílio”deGonçalvesDias,poematãoconhe-cidoqueestánamemóriadetodobrasileirodecertacultura,foiparafraseadoeparodiadoporváriosautoresmodernistasedeixamaisumavezseusecosnapoesiadeManuelBandeira.

“Vou-meemborapraPasárgada”e“CançãodoExílio”fo-ram construídos a partir de uma oposição aqui e lá. A negação dorealconcretoeaidealizaçãodeumoutromundoassociam-seà postura escapista perante a realidade que tiveram muitos dos escritoresdoRomantismo.

OcáparaGonçalvesDiaseraCoimbra,ondeestudava,eolá eraoBrasilidealizado.ParaManuelBandeira,ocá é a realidade concreta (provavelmentedopróprioBrasil) eo lá é a realidade desejada, o ideal.

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No poema “Última Canção do Beco” em Lira dos Cinquent’Anos, poema composto de versos heptassílabos, que res-gataumaemoçãocontemporâneacomserenidadeeternura,pu-demosdestacarduaspassagensintertextuaisnaterceiraestrofe:

Berço de sarças de fogo De paixões sem amanhãs, Quanta luz mediterrânea No esplendor da adolescência Não recolheu nestas pedras O orvalho das madrugadas, A pureza das manhãs!

DeusapareceuaMoisésparaanunciar-lhesuamissãosobaformadesarçasdefogo(Êxodo3)eessaimagembíblicatitulouaobrapoéticadeOlavoBilac,fontedecitaçãodeBandeira.Luz MediterrâneaéotítulodaobrapoéticadeRauldeLeoni,publi-cado em 1922.

Opoema“SuaveMilagre”dolivroCinza das Horas, em que o poeta narra o acontecimento de um milagre num jardim que outrora“Tinhaoardesofrer,numafundasaudade”equesefezfloridopelaaçãodeumasanta, tambémtrazumtítulofamoso,odoconhecidocontodeEçadeQueirósonde Jesusoperaummilagre, atendendo aos pedidos de uma criança doente e pobre.

“CânticodosCânticos”,poemaque,demaneiraousadaedireta, tratadodesejo físico, trazonomedovigésimo livrodoVelhoTestamentobíblico.

– Quem me busca a esta hora tardia? Meu calor, meu túrgido dardo.– Alguém que treme de desejo. – Quando por mais assegurada– Sou teu vale, zéfiro, e aguardoTeu hálito... A noite é tão fria! Contra os golpes de Amor me tinha,– Meu hálito não, meu bafejo, Eis que irrompes por mim deiscente...

– Cântico! Púrpura! Alvorada! – Eis que me entras profundamente