(XI) BARKER, Richard - Mostrar a bandeira, em 1521: a viagem da Infanta D. Beatriz para Sabóia

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MOSTRAR A BANDEIRA, EM 1521: A VIAGEM DA INFANTA D. BEATRIZ PARA SABÓIA Richard Barker* Tradução de Alexandre Mateus Ventura e ajustamentos náuticos de Luís Jorge R. Semedo de Matos O prestígio de D. Manuel e a sua aparente riqueza beneficiaram com a nova rota para a Índia. Uma representação disso mesmo, nas suas varia- das vertentes, é o que se pretende discutir aqui. Assim como os cartógra- fos colocaram bandeiras nacionais nos territórios como símbolos da sua descoberta, ocupação e poder, D. Manuel quis mostrar ao mundo o valor da sua bandeira - no sentido mais moderno e imperial, em 1521, quando enviou uma armada para levar a sua filha Beatriz para Villefranche, em Sabóia. Esta não foi nem a primeira nem a última odisseia portuguesa, mas talvez tenha sido a mais grandiosa e dramaticamente descrita. A sua intenção é clara, e vê-se especialmente no relato 1 de Gaspar Correia; assim como na bastante considerável despesa feita na viagem e na comitiva escolhida: a frota foi enviada explicitamente para impressionar as cidades ao longo da rota, com um novo tipo de riqueza e poder marítimo: "E sobre estes grandes gastos quis el Rei, para sua grandeza [dele ou dela] ordenarlhe sua ida que avia de su pelo mar que fosse com todo triumfo e potestade que ses podesse para o qual ordenou e aprontou em sua corte os mais abastados fidalgos e herdeiros que achou para com os grandes gastos * Academia de Marinha. 1 J. Pereira da Costa, ed., G. Correia, Crónicas de D. Manuel e de D. João III (até 1533), Lisboa, 1992; gentilmente recomendado ao autor por João Pedro Vaz. As Novidades do Mundo: conhecimento e representação na Época Moderna, 'Lisboa, Edições Colibri, 2003, pp. 83-113.

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MOSTRAR A BANDEIRA, EM 1521:A VIAGEM DA INFANTA D. BEATRIZ PARA SABÓIA

Richard Barker*

Tradução de Alexandre Mateus Ventura

e ajustamentos náuticos de Luís Jorge R. Semedo de Matos

O prestígio de D. Manuel e a sua aparente riqueza beneficiaram coma nova rota para a Índia. Uma representação disso mesmo, nas suas varia-das vertentes, é o que se pretende discutir aqui. Assim como os cartógra-fos colocaram bandeiras nacionais nos territórios como símbolos da suadescoberta, ocupação e poder, D. Manuel quis mostrar ao mundo o valorda sua bandeira - no sentido mais moderno e imperial, em 1521, quandoenviou uma armada para levar a sua filha Beatriz para Villefranche, emSabóia. Esta não foi nem a primeira nem a última odisseia portuguesa,mas talvez tenha sido a mais grandiosa e dramaticamente descrita.

A sua intenção é clara, e vê-se especialmente no relato1 de GasparCorreia; assim como na bastante considerável despesa feita na viagem e nacomitiva escolhida: a frota foi enviada explicitamente para impressionar ascidades ao longo da rota, com um novo tipo de riqueza e poder marítimo:

"E sobre estes grandes gastos quis el Rei, para sua grandeza [dele ou dela]ordenarlhe sua ida que avia de su pelo mar que fosse com todo triumfo epotestade que ses podesse para o qual ordenou e aprontou em sua corte osmais abastados fidalgos e herdeiros que achou para com os grandes gastos

* Academia de Marinha.1 J. Pereira da Costa, ed., G. Correia, Crónicas de D. Manuel e de D. João III (até 1533),

Lisboa, 1992; gentilmente recomendado ao autor por João Pedro Vaz.

As Novidades do Mundo: conhecimento e representação na Época Moderna, 'Lisboa,Edições Colibri, 2003, pp. 83-113.

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que faria muito mais aventajar e lustrar seu grande desejo e vontade quetinha de sua filha ir para seu marido e esto para que polas terras que pas-sasse visem sua muita grandeza e poder"

E fê-lo, segundo o relato de Correia. Claretta expõe um extracto deum manuscrito italiano contemporâneo descrevendo a parada portuguesaem Nice2:

"... chegou a uns bons cinco mil, foi admirável verem-se tantos ornamen-tos em ouro, pedras preciosas; selas, freios, estribos, esporas e outrosobjectos parecidos, todos feitos de lâminas e placas de ouro puro; pás-saros e animais exóticos, uma quantidade incrível de aromas de váriostipos [specie; especiarias e não espécies, presumivelmente]; ou seja, tudoaquilo que de precioso podia ter vindo de África e da Índia, desde a nave-gação das partes mais remotas, trazido para o Rei de Portugal".

Existem várias crónicas portuguesas que descrevem os aconteci-mentos com algum detalhe, embora os seus autores apresentem divergên-cias e não nos permitam qualquer certeza; um caso clássico de como ascrónicas podem ser falsas. Uma outra provável razão para a escala destafrota seria simplesmente o clima de hostilidade ao longo da rota, pas-sando pelo Norte de África muçulmano, rebelião em Espanha, e guerraentre França e Espanha; sendo grande o risco acrescido pelo valor dodote que era uma fortuna em dinheiro e géneros.

Também será, porventura, uma representação desta viagem o qua-dro3 exposto no National Maritime Museum, em Greenwich, intitulado"Navios portugueses ao largo de uma costa rochosa". Este quadro encer-ra uma história obscura, mas é provável que esteja ligado a esta viagem- sem dúvida que incorpora embarcações manuelinas e de Sabóia - emboranão necessária e exactamente contemporâneas ou feitas no local, e tam-bém há contra-argumentos. As embarcações de Sabóia são desenhadascomo estando na sua costa e este factor limita o período de interesseespecial ao tempo de vida de Beatriz, excluindo a outra grande expediçãono Mediterrâneo em 1535, a Tunis4. É uma questão em aberto quem teria

2 G. Claretta, Notizie storiche... Beatrice Turim, 1863, pp. 44-5, citando L. Revelli, dememorabilibus, como entregue por P. Gioffredo, Storia delle Alpi marittimi, Turim1839, Vol. IV, pp. 486-491.

3 Inv. BHC0705. Ficheiro consultado com a cortesia de Roger Quarm. A pintura tem otamanho de 1.45 x 0.77m.

4 Aquela frota aliada foi reunida em Barcelona (Bosio colocou Cagliana na Sardenha). Onavio central na pintura de Greenwich não é certamente o São João de 1535, um maispesado navio de guerra armado, de última geração, com numerosas armas pesadas

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encomendado o quadro, mas a sua primeira localização conhecida foi noNorte de Itália e sugere uma oferta para Beatriz ou mesmo um pedido daprópria. (Não existem provas que a pintura fosse conhecida em Portugalantes de 1921).

O próprio quadro, que é possivelmente o melhor exemplo de artemarítima existente até ao séc. XVII, levanta um considerável problemaenquanto peça de arte: é anónima e simplesmente não se encaixa numahistória da arte marítima amplamente aceite, centrada nos Países Baixos.Nunca foi estudado convenientemente, e esta dissertação não podebasear-se em nenhum estudo científico da pintura, ou do seu painel demadeira de carvalho, para confirmar a sua data ou proveniência.

A saga engloba um vasto leque de temas, desde o desenvolvimento daconstrução naval - em particular o uso de galerias de popa - e artilharianaval, até assuntos diplomáticos. O acontecimento quase foi um desastrediplomático que, coincidentemente ou não, também culminou com a mortede D. Manuel. A história acaba com um delicioso comentário à presciênciamanuelina, alguns meses depois da morte de Beatriz.

Primórdios

Em 1428, o pintor flamengo Jan van Eyck viajou com embaixadoresaté Portugal (percorrendo a costa em galés venezianas) encarregado depintar um retrato da Infanta Isabel, cujo casamento por procuração comPhilip de Burgundy sucedeu a 25 de Julho de 1429. Van Eyck esteve emLisboa e Avis, de 14 de Dezembro até, pelo menos, 12 de Fevereiro de1429, embora Vasconcellos5 o coloque a viajar pela Ibéria, desde Santiagoaté Granada com os embaixadores, depois de o quadro estar acabado.Existe um extenso relato das viagens destes embaixadores que propor-ciona análises interessantes aos potenciais problemas do percurso - e não

abaixo do convés, como se vê nas tapeçarias de Tunis, mesmo que a cópia textual sejaum pouco exagerada. Hernâni Xavier apresentou um documento na Academia da Mari-nha, em 2001, referente ao assunto da pintura de Greenwich e da tapeçaria de Tunis. Foidito que o navio da pintura foi identificado como sendo o navio São João, em 1535,apesar das notas subsequentes, gentilmente fornecidas por Xavier, o desacreditarem.

5 J. de Vasconcellos, ed., "Voyage de Jehan Van-Eyck", in Revista de Guimarães,Vol. XIV, 1897, pp. 5-45, 145-160. A prova das viagens na Ibéria (p. 7) não é explícita:o texto diz concretamente que eles desembarcam em Baiona, por quatro dias, mas a suaviagem termina em Cascais, o que sugere que eles continuaram nas galés. Van Eyckpoderá ter ido numa missão semelhante a Aragão em 1427, a qual chegou a Valência:isto poderá ter sido a viagem secreta pela qual foi pago, em Outubro de 1428. (Textostambém em J. Paviot, Portugal et Bourgogne au XVe siècle, 1995, pp. 204-18).

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apenas por mar: o relatório dos embaixadores ao Duque de Burgundy foienviado por dois emissários diferentes por terra e outros dois por mar(todos eles referem um só quadro), sendo que a resposta chegaria mais dedois meses depois6. Estaria van Eyck já a utilizar espelhos côncavos (tal-vez múltiplos), para desenhar mais rapidamente? - isto aconteceu maisou menos um ano depois de que foi datado o seu uso por pintores fla-mengos, incluindo van Eyck7. A comitiva Real embarcou a 27 de Dezem-bro, em Lisboa, e seguiu para o Restelo oito dias depois, quando os res-tantes navios ficaram prontos. A armada de 14 navios (20 em Morosini)com uma comitiva de 2 000 (ou 3 000) portugueses, incluindo Fernando,o irmão de Isabel, partiu então de Cascais, regressando dois dias depois,devido a ventos adversos. Finalmente, voltaram a largar de Cascais a 17de Outubro. Por volta do dia 22 de Outubro, quatro barcos tinham chegadoa Viveiro, na Galiza, e os restantes haviam sido espalhados pelos ventoscontrários. Um quinto navio reunira-se-lhes, quando voltaram a navegar,a 9 de Novembro, para apenas se deslocarem até Ribadeo, onde Isabeldesembarcou doente (enjoada?). Aí encontraram por acaso duas galés flo-rentinas e Isabel embarcou numa delas. A Infanta estava atrasada. Espe-ravam-na em Bruges a 30 de Novembro. Nessa altura dois navios játinham chegado à Flandres e seis a Southampton, mas não se conhecia asua localização. De facto, sete embarcações tinham chegado a Plymouth,com alguma dificuldade, devido a um erro de pilotagem que quase oslevara a encalhar perto de Lizard. O relato dá conta de Isabel a deixar asgalés, em Plymouth, a 29 de Novembro, e a chegar a Sloys a 25 deDezembro, com as festas do casamento a começarem a 7 de Janeiro8.Podemos, contudo, supor que viajou por terra até Londres, e sabemos queforam autorizadas £100 para a sua estadia, a 6 de Dezembro. Houve outrasconsequências de interesse marítimo. O casamento melhorou as ligaçõesentre a Flandres e Portugal, com a artilharia Burgundiana a aparecer noSul por exemplo, e, em 1438-39, foram construídas, em Portugal, duasembarcações para o Duque da Flandres, certamente entre as primeirasembarcações de costado liso (excluindo as galés do Rouen francês).

6 J. de Vasconcellos, op. cit., p. 16. De notar, igualmente, que os mares talvez fossemperigosos devido à guerra anglo-francesa que vigorava na altura.

7 David Hockney, Secret knowledge. Rediscovering the lost techniques of the old masters,2001, pp. 72 ff.

8 Compilação de Vasconcellos, op. cit.; G. Lefèvre-Pontalis, ed., Chronique d'AntonioMorosini, extraits relatifs à l'histoire de France, Vol. III, Paris 1901, pp. 237-245; F. M.Rogers, The traveis of the Infante Dom Pedro of Portugal, Cambridge MA 1961, pp. 31-7.

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O próprio van Eyck está ligado ao desenvolvimento de um novoestilo realista de pintura da água - não apenas de paisagens marítimas,mas ondulações e reflexos elaborados, inicialmente em miniaturas, cercade 1412-7 (possivelmente com origem nos irmãos Limbourg, que mor-reram em 1416). Decerto, na mesma altura, também desenvolveu o uso devernizes em pinturas a óleo. Também notámos que este período coincidecom o uso primário de engenhos ópticos para a pintura - embora pararetratos e paisagens mortas, não para navios ou paisagens marítimas querequerem técnicas mais dinâmicas. O estilo de van Eyck, talvez reforçadopelos pintores cortesãos que viajaram de Portugal e, subsequentemente,por muitos artistas flamengos aí empregados e para onde se haviammudado, introduziu um novo estilo de pintura em Portugal.

Um século mais tarde, a arte marítima em Portugal é extremamenteavançada, e outra armada largou velas de Lisboa, para levar a InfantaBeatriz a Sabóia, onde será a nova duquesa. É a interligação destes doisfactos que constitui o objecto deste estudo.

Outra chegada inesperada de membros da realeza ocorreu em Ingla-terra, em 1506. Philip de Burgundy e Joana de Castela embarcaram emArmuyden, com destino a Espanha, a 7 de Janeiro, mas foram apanhadospor duas tempestades que os levaram de Southampton para a Biscaia e osfizeram voltar para trás, afundando vários navios da frota e espalhandoos restantes desde Falmouth até Portland. O navio do Rei foi obrigado alançar ao mar todas as armas do convés, andou com a borda dentro deágua por mais de meia hora e incendiou-se três vezes. Ele próprio foi der-rubado pela violência do balanço e pensou-se que morrera derivado aesse acidente (talvez relacionado com uma doença que o tinha atingidoem Inglaterra, e à sua morte súbita, após a chegada a Espanha). O grupofoi imediatamente levado ao encontro de Henrique VII e permaneceu aípor dois meses. A sua viagem de Falmouth para a Corunha também foidemorada, tendo sido concluída apenas a 26 de Abril9. Parece que ospresságios, para a viagem da realeza por mar, não eram dos melhores.

O contrato

Damião de Góis diz-nos que a primeira vez que Carlos III, Duque deSabóia, pediu a mão de Beatriz foi em 1516, tendo sido rejeitado o pedi-do com base na idade desta (12 anos). Contudo, insistiu com mais tenta-

9 Existem relatos gráficos (em segunda mão) coleccionados pelo Embaixador de Veneza,Quirini, publicados através dos epistolários de Veneza no Calendar of State Papers,Venetian, Vol. I (1202-1509), Londres 1864.

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tivas e, em 1520, D. Manuel instaurou inquéritos sobre a aptidão doDuque e o status de que iria beneficiar a sua filha. Resende apenas dizque o Duque "nunca deixou" de pressionar, desde 1516. De facto, consta-ta-se, a partir de outras fontes, que este casamento não era visto combons olhos pela corte portuguesa, e Carlos não era tão assíduo como aversão diplomática dos acontecimentos sugere. (Isto pode reflectir umhábito comum de ameaçar com casamentos dinásticos adversos comoparte das negociações - como foi feito por Henrique V, por exemplo.Igualmente Carlos V estava comprometido com Maria Tudor há 5 anos,quando casou com Isabel de Portugal, em 1526). Até 18 de Outubro de1516 estava casado contratualmente com Joana de Aragão, filha do Reide Nápoles, por exemplo, e o seu nome surge associado a várias donzelasnaquele período10. A garantia de Osório de que Carlos tinha contraídouma violenta afeição pela donzela, não menos afamada pela sua belezado que pelo seu bom senso e boa disposição, será, talvez, igualmentediplomática11. O casamento foi acordado com novos embaixadores,enviados em Fevereiro de 1521, e contratado entre Março e Abril12. Apartir desta altura, D. Manuel e a Corte começaram as suas preparações,incluindo a selecção de "fortes, novos, grandiosos e ágeis" navios.

A frota

O número de navios reunido varia de relato para relato, mas deve-riam ser à volta de vinte. Incluíam quatro grandes naus pertencentes aD. Manuel, provavelmente um navio de Sabóia (do Embaixador), quatrooutras naos, dois galeões, três caravelas, quatro galés, até quatro peque-nos navios de remo, navios-armazém e um ágil veleiro pertencente aoArcebispo, num total que varia entre dezoito e vinte cinco13.

10 Letters and Paper, Foreign and Domestic of the reign of Henry VIII, Part II, Londres,1864. Por exemplo - 30 Junho 1515: "O Duque de Sabóia disse ao Papa que Renée,irmã da Rainha de França, fora-lhe oferecida". Spinelli a Wolsey, 21 Dec 1515: "OImperador prefere dar a Dama Margaret ao Duque de Sabóia". Spinelli a Wolsey, 16Jan. 1517: "O Duque de Sabóia exige uma filha de Portugal em casamento". Spinelli aHenry VIII, 21 Junho 1518: "ouve-se que depois do desapontamento aqui e em Portu-gal, está a tentar obter a filha do Eleitor de Bradenburgo".

11 De rebus emanuelis, Lisboa, 1571, Book 12, p. 467; e tradução por J. Gibbs, Londres, 1752.12 Pelo menos três datas são dadas, talvez para diferentes etapas. Curiosamente, Henrique

VIII foi informado pelos embaixadores do Duque, por volta de 23 Outubro de 1520, que ocasamento foi definitivo. Diarii di Marino Sanuto, ed. F. Stefani et al, Vol. XXIX, Veneza,1890, col. 404 (e correcção no index). Relato a Signory do seu Embaixador em Londres.

13 Da lista detalhada de Correia, Góis e Resende. Osório tem 22 (mas Gibbs tem 19 nasua tradução de 1752); uma fonte italiana tem 25.

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Dois dos navios-armazém eram da Infanta e um outro, curiosamente,era um navio carregado com conservas e frutas da Madeira (Correia). Sese tratava de uma provisão para a comitiva real ou um reflexo do conhe-cido valor de alguns citrinos como antiescorbúticos (Vasco da Gamatinha-os procurado, claramente, em todas as escalas da sua primeira via-gem, e a marmelada era uma provisão normal - apesar do valor incertonesse sentido), não se sabe. De acordo com Resende, uma caravela trans-portava apenas aves e caça - aves de rapina, cães de caça e os animais epássaros exóticos mostrados em Nice, antes das provisões.

Resende regista que a frota estava equipada com 537 canhões debronze adicionais: 102 bombardas pesadas, 35 falcões, 50 lagartixas (umnome característico pouco conhecido) e 350 berços. Os últimos três tiposeram bocas de fogo mais pequenas montadas em piões rotativos nos caste-los e na borda dos navios. Não se sabe como eram distribuídos, mas, se onúmero está correcto, terá implicado alterações profundas nos navios, atépoderem levar todas estas armas. Se foram distribuídos em função da tone-lagem, o Santa Catarina terá recebido cerca de 20 canhões pesados adicio-nais e quase 90 bocas de fogo de retrocarga montados em piões rotativos.Estes números não são, de facto, muito menores que aquilo que se vê noquadro de Greenwich. Uma grande caravela tinha recebido quatro canhõespesados e dezasseis mais leves - aproximadamente o número máximo quese sabe ter sido transportado por caravelas latinas, em qualquer altura.Porém, sabemos que, por esta altura, os novos galeões, pelo menos, tinhamo propósito de transportar armamento muito mais pesado, excedendo, onúmero de canhões pesados transportado pelo Santa Catarina; embora adisponibilidade de canhões nessa quantidade seja outra questão.

O navio-almirante

O navio-almirante era o Santa Catarina de Monte Sinai - um nomeque reflectia a preocupação com o Prestes João. Com 700 a 800 tonéis14,construído em Cochim, na Índia, a partir de c. 1512, mas apenas armadoem 1517, antes do ataque a Jeddah - , aparece num dos desenhos de Cor-reia para "Lendas da Índia", e tem quatro mastros com um relativamentebaixo castelo de proa15. Fez duas viagens a Lisboa, até 1521. De acordo

14 Góis tem 1000; Correia apenas 450 tonéis, o que é pouco para todas as cobertas descri-tos. Osório afirma que parte da frota continha os maiores navios alguma vez vistos emPortugal, o que não é literalmente verdade, mesmo que o Santa Catarina tinha 1000,no entanto, dois eram invulgarmente grandes.

15 Felner ed. 1861, Vol. 2.2. O texto final compilado muito mais tarde - c. 1560.

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com Rodrigues, era o maior e mais poderoso navio da Carreira da Índia,naquela altura16, embora tenha sido começado antes do advento dos galeõescomo unidades de combate explícitas. Certamente que os navios no qua-dro de Greenwich são naus daquela era, com relativamente pouca artilha-ria e sem nenhuma peça abaixo do convés.

As modificações estruturais feitas no navio, apenas registadas porCorreia, incluíam grandes mudanças a nível interno para a criação decabines e guarda-roupas nas cobertas inferiores do castelo da popa, e oisolamento dos mesmos para as damas, com o acesso por escadas emcaracol. Estas modificações provocaram, por sua vez, a necessidade dedeslocar o cabrestante e a construção de uma galeria lateral na popa paraos marinheiros chegarem ao leme - manobrado explicitamente de fora daborda do navio. Uma segunda galeria foi acrescentada para acomodaçãoadicional (as galerias serão analisadas abaixo). O convés superior rece-beu um chão falso nivelado na tolda, ou meio-convés, coberto com umdossel de brocados - manifestamente ausente no quadro de Greenwich -dourado no interior, onde eram dadas as recepções. Também servia desala de jantar para a Infanta e nobreza. Esta sala não tinha, provavel-mente, mais que aproximadamente 10 metros de comprimento, afunilan-do de 11 para 7 metros na sua largura17. Os aposentos estavam equipadoscom sumptuosas mobílias e tapeçarias, citados extensivamente porResende, que também nos diz como o toldo de damasco no castelo dapopa se estendia até à água como o de uma galé. Podemos verificar quenas "tapeçarias de Tunes" do Real Alcazar, em Sevilha, ilustrando osacontecimentos de 1535, o navio português São João, sozinho entre afrota aliada, é desenhado com uma estrutura em forma de tenda feita emtecidos de grande qualidade, em cima do meio-convés, e outra no convésda popa, cujos panos se estendem muito mais além, como o toldo de umagalé, embora não na água. Os navios mais pequenos, no fundo da pintura,também têm os toldos no convés da popa, exibindo as esferas armilares.

16 Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, ed. D. Lopes, Lisboa, 1915, Livro 2, Capítulo 77(Vol. I, pp. 333-4). Apesar deste texto não ter sido escrito até cerca de 1560, Rodriguesesteve em Arzila por volta de 1521. Ele conta o estado generalizado da fome e da pestevivido tanto no norte de África como em "toda a Espanha", nesse ano, tanto que muitosdos navios regressaram de Villefranche, através das instruções de D. Manuel, viaSicília e Púglia, para carregarem trigo para Lisboa.

17 Com base nos 800 tonéis, 18 rumos de quilha, 55 palmos de goa de boca máxima, umgio 28 palmos, e as proporções das obras mortas calculadas pela pintura. São apenasdimensões de referência, provavelmente com uma margem de erro de um metro, mastodas muito discutíveis.

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O acesso ao navio a partir do Terreiro do Paço era feito através deuma ponte de madeira construída em cima de barcos, com arcadas, tape-çarias penduradas e com escadas para a amurada do navio e para o meio--convés.

A subsequente história do Santa Catarina é controversa: fez uma via-gem de volta à Índia na frota de Agosto de 1523, como navio almirante deVasco da Gama, chegando a Goa em Setembro de 1524. Saiu de Cochimpara Lisboa em Janeiro de 1525 transportando D. Luís de Menezes, vindona companhia de um segundo barco, que trazia D. Duarte de Menezes (caí-do em desgraça) e ainda de um terceiro navio. Chegaram a Moçambiqueonde os irmãos, provavelmente de uma forma deliberada, evitaram recebernotícias de Lisboa, pela frota de 1524. Passaram lá o Inverno. Para além domais, o Santa Catarina tinha tantas fendas à chegada que a sua carga tevede ser retirada para que este pudesse ser reparado - uma indicação da rapi-dez como um navio se deteriorava, mesmo quando construído em tecacomo, provavelmente, era este. Quando finalmente partiram, D. Duarteafastou-se da esquadra para abastecer de água na Aguada de Saldanha (sópor si surpreendente) e levou o terceiro navio com ele, tendo combinadoque se reuniriam em Santa Helena. Houve então uma violenta tempestadeque quase atirou D. Duarte para a praia, junto da Aguada. Nunca mais seouviu falar no Santa Catarina. Os rumores (que originaram buscas no Esteafricano por ordem de D. Manuel, obviamente bastante tardias) afirmavamque o navio tinha voltado para trás deliberadamente, porque D. Luís nãodesejava voltar a Portugal, diziam até que se tinha tornado pirata. Algunsanos mais tarde, foi entregue a D. João III um anel, supostamente tirado aD. Luís por piratas franceses que haviam interceptado o enfraquecido navioao Sul de Portugal, ao largo do Algarve. A tripulação foi chacinada, onavio saqueado e, de seguida, afundado. Em 1536, um pirata francês captu-rado foi identificado como sendo o irmão do pirata envolvido no incidente.Verdade ou não, este acontecimento originou violentas represálias contraesses franceses e atrocidades recíprocas. De La Roncière cita cartas de cor-sários, geralmente do período entre 1524 e 1537, mas não regista estes epi-sódios. Uma explicação mais plausível é a de que o navio simplesmente seafundou no Atlântico Sul, provavelmente na tempestade sofrida por D.Duarte, ficando incapaz de chegar a Santa Helena, quanto mais aos Açoresou directamente ao Algarve.

A comitiva

Torna-se claro, a partir dos relatos, que um grande número de corte-sãos recebeu ordens para seguir a Infanta, competindo uns com os outros

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para fazer as mais ostensivas demonstrações de riqueza, pedindo roupasemprestadas e, provavelmente, também dinheiro. O relato de Resende édominado pela descrição dos títulos e vestidos de todos os envolvidos.Incluindo três mestres de navio profissionais de renome, são referidoscerca de 93 portugueses, treze dos quais são damas da Infanta. Há discre-pâncias menores entre as diferentes listas, que não incluem o grupo doembaixador, fidalgos menores, clérigos e meninos de coro, vinte e quatromúsicos, "guardas das damas", "escravas brancas"18 e pouco mais de cin-quenta criados variados. O comando foi entregue a D. Martinho de CasteloBranco, Conde de Vila Nova de Portimão, como capitão-mor, mas a comi-tiva incluía D. Martinho da Costa, Arcebispo de Lisboa, a quem a Infantafoi confiada, o Marechal D. Álvaro Coutinho, Gamas, Albuquerques, etc.A maioria das damas e uns quantos outros acompanhantes ficaram comBeatriz em Sabóia. Houve vários dias de festa antes do embarque na Ribei-ra. A frota ancorou em Belém, à espera de vento favorável, e o grupo doRei viajou para lá numa galé, para mais despedidas.

A viagem

A frota finalmente saiu de Belém, a 9 de Agosto, dirigindo-se para oCabo S. Vicente, e seguindo ao longo da costa algarvia, através dosestreitos. Um desvio deliberado levou-os a passar por Tânger, Alcácer,Tarifa, onde foram feitas saudações, e Ceuta, onde também saíramembarcações para os cumprimentar. Foram feitas paragens, pelo menos,em Málaga (quinze dias, devido a ventos adversos), Alicante (em ruínas,também quinze dias), e em Marselha. Mas provavelmente também emCartagena e em portos seguintes à distância de um dia. Em Nice, foramapenas trocadas saudações, visto não existir abrigo, e foi este facto que,presumivelmente, confirmou a chegada da Infanta a Sabóia.

Correia afirma que a frota se manteve próximo da costa mediterrânica,procurando sempre os portos mais seguros e aguardando os ventos maisfavoráveis. Mesmo assim, uma nao ficou sem mastro numa tempestadeao largo de Cartagena e aí ficou. As galés foram usadas para manter oabastecimento de provisões frescas e água; encostando no Golfo de Nar-bonne, enquanto que os outros navios foram directamente para Marselha.Pelo relato dos portugueses se sabe que cada visita era acompanhada desalvas de canhão, para saudação e para impressionar a população local

18 Possivelmente que algumas mulheres indianas, de castas elevadas, supostamente teriamenviado à Rainha D. Maria, através de Albuquerque, em 1510, ou de Malaca, em 1511,apesar das últimas não terem sobrevivido ao naufrágio do navio Frol de la Mar.

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com a frota, artilharia ("apesar de Marselha ser o arsenal de França, nãotinham nada que se comparasse...") e o esplendor da comitiva. Umambiente que deve ser visto de forma moderada, com a afirmação de Cor-reia de que em Marselha estava uma frota francesa muito bonita e umanau capturada ao Vice-Rei de Nápoles uns dias antes19, que era "a maisformosa que se nunca viu", portanto, presumivelmente, mais espectacularque a Santa Catarina. Em Marselha muitos dos Senhores desembarca-ram, e Correia comenta a sua admiração acerca dum estilo local de retra-to pintado em tela. Em Alicante, o Marquês de Belez não pôde saudar aInfanta, pois estava ausente a reconquistar uma cidade rebelde, Arryola.A frota chegou a Villefrance a 29 de Setembro, cerca de 50 dias após asaída de Lisboa: o tempo foi na sua maioria gasto nos portos, à espera deventos favoráveis, e numa viagem à respeitável velocidade de um nó. Deacordo com Gioffredo, quatro galés e uma galeota chegaram apenas a 5de Outubro (presumivelmente parte dos 25 navios iniciais, possivelmentevindos de Villefranche).

O desfecho

A recepção em Sabóia causou grande preocupação à expedição portu-guesa: não tinha sido suficientemente grandiosa. Talvez tenham havidoduas razões para isto: a Infanta poderá ter chegado mais cedo que o pre-visto e quis ir para terra o mais cedo possível (de acordo com Gioffredo, odesembarque ocorreu à luz das tochas e a saudação de artilharia foi àstrês da manhã); e o Duque teria preferido toda a cerimónia em Nice, emvez de Villefranche, onde estava um Cardeal enviado pelo Papa. Aícomeçaram as celebrações, no dia seguinte, e decorreram durante oitodias, apesar da maioria dos portugueses terem sido excluídos. Beatrizviajou pelo Duchy, entre 1522-3, e os maiores festejos tiveram, de facto,lugar em Genéve, em 1523, com os habitantes vestidos segundo as suascores, 300 damas trajando como amazonas, e simulações de batalhasnavais no Lago20. No entanto, o relatório de Correia está cheio de comen-tários críticos: a ponte (ou pontão com arcadas) mantida para o desem-barque ostentava as armas do Duque em "folha de papel... e em outra as

19 Ainda não identificado em qualquer outra história, a não ser que se reporte a Wolsey,em Março de 1522, como em "um navio de oito s ?". O Santa Catarina não era umgrande navio em termos europeus na altura, quando começou a corrida às armas nodesenho dos navios de guerra. A frota atlântica francesa, em 1520, incluía, por exem-plo, navios de 1500, 1000, 800 e dois de 700 toneladas.

20 S. Guichenon, Histoire Genéalogique de la Royale Maison de Savoie, Vol. II, 1778, p. 202.

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armas da Infanta, e na ponte uma so alcatifa e não mui boa..." e o Duquevestia "um pelote... e... uma cadeinha mui delgado".

Em diversos locais parece que diferentes costumes e expectativas- por exemplo, em matéria de beijos públicos e na forma de dançar -,causaram mal-entendidos, certamente em Marselha e Nice. Problemas delinguagem e diferentes valores atribuídos ao dote são também citados porSousa Viterbo21.

Correia relata que os soldados do Duque forçaram a comitiva portu-guesa a voltar para trás, incluindo os criados pessoais das damas, quandoa sua corte voltou para Piemonte, no final dessa semana, deixando-osdesamparados na estrada. A frota partiu após ter estado 26 dias no porto,esperando pelo vento. Tendo as coisas sido como foram, diversas damaspermaneceram na corte e casaram com nobres de Sabóia; relações pró-ximas mantiveram-se entre D.a Beatriz e D. João III, com visitantes adirigirem-se frequententemente ao encontro da princesa. Não obstante, odesânimo abateu-se, supostamente, sobre o Arcebispo e o Conde, acusa-dos de permitir que se fizesse o desembarque imediatamente, sem abso-luta segurança e sem respeito pelo protocolo (embora se possa supor queo Arcebispo tenha estado empenhado nas negociações e no casamentoem Lisboa, embora disputas posteriores sobre custos tenham originadomuitos dissabores). Este desânimo atingiu D. Manuel, em Lisboa, comnotícias não apenas do suposto desastre diplomático, mas também damorte do próprio Arcebispo, a 22 de Novembro, em Gibraltar. Rumoresatribuíam a sua morte a surto de febres provocadas pelo fracasso doacontecimento; mas a explicação mais plausível é a de que terá sucum-bido a uma doença (peste) que se espalhou por toda a frota assim quechegaram a Sabóia22. As notícias chegaram por terra a D. Manuel, deGibraltar; e após ouvir o relatório do Conde de Vila Nova a 4 deDezembro, o rei, quase de imediato, entrou em quebra, morrendo a 14 deDezembro. Outros, porém, atribuíram esta morte a um sério surto demodorra (encephalitis lethargica), em Lisboa23.

21 Francisco (Marques de) Sousa Viterbo, "O Dote de D. Beatriz de Portugal, Duqueza deSaboya", in Arquivo Histórico Portuguez, VI, 1908, pp. 118-137; VII, 1909, pp. 29-41,102-120, 161-8, 293-307. Claretta, op. cit., pp. 44ff, documentos existentes: 35 peçasde tapeçaria, 1 590 ducados re-estimados como 1 056; um tapete Turco de 26 x 9palmos, Al x 30.

22 Sousa Viterbo, op. cit., p. 123. Gioffredo, Vol. IV p. 491, diz que a peste chegou comos portugueses (obviamente outro momento de tensão), azedando a recepção pública, earrastou-se durante sete anos em Nice.

23 J. da Felicidade Alves, Francisco d'Holanda, Da fábrica.... Lisboa, Lisboa, 1984, p. 96.

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Assim diz Correia - acreditando, claramente, nos relatos chegados àÍndia, eventualmente pela tripulação do Santa Catarina. Tanto Rodriguescomo Sanuto fornecem pistas sobre o desastre diplomático e Sanutoassocia a morte do Arcebispo com a dor proveniente desse caso. Docu-mentos recolhidos por Sousa Viterbo, Guichenon e Claretta sugerem umamenos dramática situação, e talvez a raiz da história tenha sido a rápida elimitada recepção em Villefranche, observada pelos portugueses comoum forte contraste da pompa da sua partida, e até dos portos de escala.As pistas de Góis apontam para alguma preocupação antes do casamento,acerca das condições da posição do Duque, mas fala apenas da pompa narecepção a Beatriz.

A vida de Beatriz em Sabóia, onde era idolatrada, foi de facto ensom-brada por desastres políticos para o Duque. Sob a influência da preferênciaportuguesa por Carlos V - casado com Isabel, a irmã mais velha de Beatriz,em 1526 - e Góis sugere também que, por influência de sua mãe, o Duqueabandonou a aliança com Francisco de França, e nas continuadas guerrasfranco-espanholas perdeu praticamente todas as suas terras. Em 1538, esta-va reduzido apenas a Nice. Beatriz teve nove crianças, de que a maioriamorreu durante a infância. Apenas Emanuel sobrevive para suceder a seupai (fez a paz com Francisco, filho de Henrique da França e recuperou ter-ritórios). Beatriz morreu, possivelmente de tuberculose, porventura, apóstrês anos de doença, em Janeiro de 1538. Guichenon diz24:

"Beatriz de Portugal foi uma das melhores (belle) e mais sábias princesasdo seu tempo, mas mudou de acordo com os vícios da sua nação.... elatinha como armas suas, uma mão segurando uma tocha aura, para afugen-tar um leão, usando as palavras castelhanas con estas, para significar quepequenas coisas muitas vezes provocam medo nos mais fortes.... outrosdizem que ela tinha três tochas, vindas do céu, as quais fizeram o leãofugir, representando fé, esperança e caridade, e o leão Satã.... Inabalávelconstância durante os problemas do Duque... medalhas de prata presasdurante a sua vida...".

A pintura de Greenwich

A pintura em Greenwich permanece um mistério. Quem a pintou?para quem? quando e onde? Foi atribuída a muitos incluindo GregórioLopes, Pieter Breugel, Patinier e Cornelis Anthoniszoon, mas actualmenteparece mais provável que tenha sido feita pela escola Patinier. Existiu umenorme consenso de que representa a chegada da armada da Infanta Beatriz

24 Guichenon, op. cit., pp. 228-30.

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a Villefranche, em 1521, e em particular parece aceite a identificação donavio almirante, Santa Catarina de Monte Sinai. Está datada entre 1520--30, apesar de não existirem ainda provas científicas, devendo-se esta atri-buição a um consenso em torno da data em que os navios foram desenha-dos. As conclusões pessoais do autor são, em suma, de que se deve a umartista português, o navio é definitivamente da mesma nacionalidade edaquela data, e que pretende representar Villefranche. Que seja o SantaCatarina de Monte Sinai, desenhada ao vivo é, no entanto, improvável.Existe uma ténue possibilidade de que a pintura tenha sido feita pela pró-pria Infanta25, e que o quadro esteve em Sabóia e Itália, durante algumtempo, entre 1520-30 até 1903, mas prová-lo é outra questão.

O aparecimento da pintura e história das suas descrições

A pintura não era, evidentemente, do conhecimento de Sousa Viterbo,que juntou imensa documentação dos eventos ocorridos em 1521. Isto ésignificativo, pois poderíamos esperar que ele conhecesse o paradeiro detal pintura. Nem era conhecida em Lisboa, em 1921, quando um questioná-rio foi enviado da Alemanha, com uma fotografia. Os primeiros dois donosregistados eram alemães. Nem José de Figueiredo, do Museu da Arte Anti-ga, nem Henrique Lopes de Mendonça tinham conhecimento disso. Embo-ra ambos tivessem publicado estudos sobre ela na Lusitania, em 192526,nenhum deles pode ser aceite como fonte fiável, em muitos aspectos, masespecialmente à luz do texto de Correia, publicado apenas em 1992. Nóstivemos essa fotografia de 1921 que mostra claramente duas juntas danifi-cadas - estão no painel de carvalho. Este foi restaurado em 1995, mas pare-ce que não foi feita nenhuma análise técnica e, é claro, também não foi fei-ta nenhuma dendrocronologia nessa data. É claro que muita tinta de ouro seperdeu, mas não se perderam detalhes que poderiam ter sido suprimidospela restauração, como, por exemplo, as juntas abertas terem sido tapadas.

25 Talvez como um presente subsequente, para explicar o arranjo; mas não parte do seudote, que incluía "tapeçarias e outras coisas", juntamente com bens para a casa.Nenhuma pintura está listada por A. Caetano de Sousa no inventário feito em Sabóia -Provas da história genealógica da Casa Real Portuguesa, Coimbra, Edição de 1948,Vol. II, pp. 18-81. Despedidas elaboradas foram feitas entre Beatriz e a sua tiaD. Leonor, viúva de João II: um notável patrono de todas as artes, e dos painéis deSanta Auta, em particular. Leonor tem de ser candidata.

26 José de Figueiredo,"Armada Portuguesa num pôrto do mar: pintura de GregórioLopes.. .", in Lusitania, partes V/VI (Camoniano), Lisboa 1925, páginas inumeradasentre 262-3 + gravura; H. Lopes de Mendonça, "Uma armada Portuguesa do séculoXVI", in Lusitania, Lisboa, Dec. 1925 (Vol. III), pp. 141-151 + gravuras. Amboscontêm um certo grau de fantasia e de demonstráveis imprecisões.

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Fig. 1 - Pintura do Lusitania, (Figueiredo, edição Camoniano, 1925).Duas juntas de madeira tinham-se aberto (ignorar duas proeminentes dobras depapel das imagens). De notar a ilha (à esquerda), um bonito castelo no cume e tor-res moles (à direita).

Qual foi o percurso da pintura? De acordo com Figueiredo, numanota de rodapé cuja fonte se desconhece, o quadro esteve na "BeiraAlta". Os ficheiros do museu não oferecem prova27. Esteve em exibiçãoem Bruxelas, em 1935, como parece ter sido afirmado por Pieter Bruegel,e foi comprado para Greenwich, em 1936. Greenwich nunca foi capaz desaber mais nada sobre a sua origem, excepto que no verso da pinturaestava a seguinte inscrição "Villa Baccinetti, Firenze, 1903". Passoutambém por Viena28, o que parece não ter sido amplamente conhecido(apesar de Greenwich ter informado D. Markl, em 1974) e, é um factoque continua por explicar. Terá ela estado sempre em Itália? Esteve emexibição ou foi vendida em Florença, em 1903? Como terá ela ido parar àBeira Alta, em 1911? Provavelmente não terá, mas nós nem podemosafirmar se terá sido pintado em Portugal ou em Itália. A pintura foiamplamente reproduzida, mas raramente com descrições satisfatórias.Aparece muitas vezes atribuída a Cornelis Anthoniszoon, mas isso écompletamente incompatível com a atribuição a esse autor da pintura da

27 Informação fornecida gentilmente por Paula Pelúcia Aparício.28 Gentilmente reexaminado por Pieter van der Merwe, em 2001. A data pode ser

possivelmente lida como 1905, ou 1902.

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embarcação de Henrique VIII (ostensivamente mais tardia, inferior, e umtrabalho muito diferente). Existem afirmações questionáveis sobre ela nomaior trabalho de Russell sobre o desenvolvimento dos primórdios daarte marítima, mas reportam-se apenas a normas29, e Dr. João da GamaPimentel Barata também se inclinou para opiniões que não fazem sentido30.

O mar e o plano do fundo na pintura de Greenwich e nas mais antigaspinturas marítimas

O que nos diz a arte? A sua atribuição a pintores nórdicos, espe-cialmente a Patinier, deduz-se primeiro pela plano do fundo. Pedras,castelos e ilhas como estas, de formas e tons genéricos, aparecem geral-

29 M. Russell, Visions of the Sea, Leiden 1983. "A escola de Patinier partilha umacaracterística comum com a de Veneza, e, de facto, com todos os pintores de paisagensmarinhas nos séculos XV e XVI. . . lisa e imperturbada superfície da água" (p. 11) -considera apenas Greenwich, Santa Auta, etc. "Pelo menos chegou-se generalizada-mente à conclusão... um artista do Norte da Europa... c. 1520-30... Anthoniszoon umprovável candidato" (p. 41). Na página 55, Russell desconsiderou a "pequena ondula-ção que pouco perturba... a calma ao estilo de Patinier", ignorando a água a subir oscascos, e dando mais importância à falta de uma "uniforme força e direcção do vento",enquanto as discrepâncias de um navio para outro são mínimas, no máximo. A vergagrande do navio central parece quadrada e não é compatível com os padrões das ondas,mas a linha central da vela está bastante virada para estibordo - testemunha a posiçãodo estai do mastro grande pressionado pela vela, o que não é uma imagem poucocomum. Embora a pintura seja uma colecção de retratos individuais, a composição émuito suspeita ao representar navio com as velas completamente estendidas em águastão confinadas, tendo um acabado de passar pela posição de uma galé.

Ou, R. Preston, The seventeenth century marine painters of the Netherlands, 1974,p. 72: "...Bruegel talvez o primeiro mestre inspirado a criar a verdadeira pinturamarítima....pintura de Greenwich por Anthoniszoon [pre-Bruegel, nota]... um trabalhobastante isolado no seu conceito... viragem do século antes da escola de pinturamarinha chegar a ser reconhecida na Holanda... menos surpreendente que a Holandaproduziria a primeira e a maior escola de pintura marinha... os seus artistas pintaram omar porque nunca estavam muito longe dele". Estas afirmações ignoram manifesta-mente os primeiros trabalhos portugueses e a proximidade de Portugal com o mar.Parece preverso atribuir a pintura de Greenwich a uma escola do norte da Holanda, combase no plano de fundo da pintura, quando essas escolas não podiam igualar a riqueza dasimagens da pintura dos planos anteriores: os navios e o mar - na suposta data.

30 J. da Gama Pimentel Barata, "The Rock of Sintra: Columbus' landfall: notes on thearticle of Dr. R. Rose (MM, Vol. 63, 1977, p. 227-230) [incluindo um comentário deE. H. H. Archibald], em Mariner's Mirror, Vol. 64, 1978, pp. 186-7. Existe um erronisto: um navio no fundo, identificado como um tipo de dois mastros arcaico, tem, àluz de um exame mais cuidado, um traquete. Pimentel Barata parece seguir Figueiredoquando acredita que a pintura esteve em Portugal até 1911, mas novamente nãomostram qualquer prova.

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mente na arte flamenga, supostamente inspirados por Patinier, por voltade 1500. Muitos autores supuseram que a pintura foi feita no Norte daEuropa, mas não vemos qualquer razão para tal suposição. Mais impor-tante seria proceder a uma análise científica em vez de ficar pela análisedo estilo que estava vastamente espalhado pelos pintores emigrantes fla-mengos e pelos seus pupilos. Eram numerosos em Portugal, na eraManuelina, e incluíram van Eyck, no século anterior, como já se disse,envolvido no início do retrato realista da água nas pinturas a óleo.

O mar é outra questão. Patinier favorecia a água calma com o míni-mo de enrugamento da superfície, supostamente por razões simbólicas. Oseu Charon's boat parece cada vez mais próximo à medida que entra namarina. Bles reintroduziu supostamente ondas por volta de 1535 e o esti-lo espalhou-se amplamente durante os 20 anos seguintes. Em 1568, vio-lentas tempestades foram representadas de forma realisticamente tolerá-vel por Bruegel, por exemplo. A pintura de Greenwich tem o mar agita-do, com distintas e realistas ondas, batendo contra os cascos. Significaisto que se deve datar de depois de 1530, mas é tão diferente, comparadocom outras pinturas do século XVI, que pudemos supor que pertence aoutra escola, não coberta pela ênfase dos pintores holandeses.

Há boas razões para supor que isso existe noutras pinturas associa-das a Portugal nesse período. Nos painéis de Santa Auta, o mar é, em pri-meiro plano, constituído por ondas pronunciadas envoltas por linhasbrancas, rebentando com explosões em forma de flor contra os muros eos cascos; no plano do fundo, perto do horizonte, o mar é calmo, mas noplano intermédio é pintada uma linha de espuma31 ao longo dos cascos donavio. Diz-se que foi encomendado por D. Leonor, cerca de 1517, e foiprovavelmente instalado em 1522, mas isto é algo que não encaixa nahistória do Norte da Europa. O principal navio tem semelhanças conside-ráveis com a pintura de Greenwich. Apesar da pintura ser correntementeatribuída a artistas portugueses32, inclui actualmente detalhes notáveisnos pequenos barcos de casco trincado - uma característica nórdica, pelomenos nos tempos modernos33.

O mestre da Lourinhã foi identificado como sendo Álvaro Pires etrabalhou em Portugal, no início do século XVI. Parte do fundo do seu S.

31 Spray no original, N.T.32 Portugal e os descobrimentos, ed. F. Faria Paulino, 1992 (EXPO catalogue), entre

pp. 236-40. Ver também o MNAA catálogo online para esta história.33 Isto não é considerado no vasto estudo Retábulo de Santa Auta, estudo de investiga-

ção, Instituto de Alta Cultura, Lisboa, 1972.

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João em Patmos, de cerca de 151434, é igual ao estilo geral da pintura deGreenwich. Pode observar-se aqui que, se um plano de fundo como este,com tons azuis e verdes, afloramentos rochosos, arborizado e com caste-los, são características dos artistas do Norte da Europa, então uma partesubstancial do conteúdo do Museu Nacional de Arte Antiga teria de serreatribuído. A superfície da água é menos ondulada, mas o navio é umaboa representação de um grande navio do seu tempo (apesar de PimentelBarata35 criticar pequenos detalhes do aparelho - na verdade, a maioriados trabalhos aqui mencionados foram criticados pelos mesmos motivos).

O desenho de Leiden de cerca de 1550 (a data é discutida: algunsdizem 1535 ou 1570) é de outro artista - capaz de um soberbo detalhemarítimo, apesar da diferença de estilo -, que concerteza esteve em Lisboa,e era, certamente, português, pelas legendas. Francisco de Holanda, quefoi educado com as famílias envolvidas nos eventos de 1521 (embora elenão tivesse nascido antes de 1517/8 e, certamente, não tinha qualquernotoriedade como pintor de navios, ou com óleos), esteve em Roma em1538-40 e Pedro Mascarenhas, Capitão de Galés de 1521, foi seu patrão.A Infanta tinha acabado de morrer, mas Holanda viajou por Nice; e játinha visitado a sua irmã Isabel, em Espanha, para quem trabalhara seupai. O próprio Holanda destaca-se por elogiar a pintura a óleo de Perinodel Vaga dos navios de Aenea, numa tempestade, no palácio Doria, emGénova. Seu pai era um notável miniaturista, em Portugal, desde 1496, edisse ter trabalhado na Leitura Nova36, desde 1504 até 1511; e tambémesteve no activo no período certo.

Russell escreve: "muito ocasionalmente encontramos nas pinturasmarítimas a antecipação da composição dos ideais da escola holandesado século XVII". Deve ser claro, através dos diversos exemplos acimamencionados, que durante um curto mas recente período, essencialmentenum local, mas na verdade em diferentes estilos, que a pouca visibilidadeinternacional omite a florescente tradição da competente pintura marí-tima em Portugal, produzindo retratos de navios e paisagens marítimasquase um século mais cedo (e muitas das quais pereceram provavelmente

34 M. Batoreo no Catálogo: Um pintor em Évora no tempo de D. Manuel I, 1997, pp. 177-9.35 J. da Gama Pimentel Barata, "Estudo dos navios...", in Retábulo de Santa Auta,

op. cit., p. 27, fnl2.36 Sobre a bem conhecida miniatura da Leitura Nova (Além-Douro 4), atribuída a Álvaro

Pires, é por vezes, dito que representa a partida da armada de Beatriz. Infelizmente, otexto a ela associado data de 1513, e os navios aí representados são mais medievais queManuelinos.

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no terramoto de 1755). Isto é algo que não pode ser reclamado para aescola de Patinier, onde a pintura realista de navios e barcos parece sermanifestamente ausente. Apareceram no trabalho de desenhadores pano-râmicos do Norte e apenas nas xilogravuras "WA" da parte final doséc. XV, mas não nas pinturas nórdicas desse período. Aparecem maiscedo no trabalho italiano - Carpaccio, Dossio, etc. - mas não com paisa-gens totalmente marítimas. Poucos artistas, que não Bruegel e Vroom,supostamente, mais tarde, no séc.XVI, podiam igualar o detalhe realísticodeste grupo de imagens marítimas portuguesas.

Mas esperem: Lourinhã? Hendrick Vroom passou por lá por volta de1591-2, e podemos supor que ele foi iniciado nas pinturas marítimasportuguesas na Lourinhã, Lisboa e Setúbal, pelos detalhes da sua biogra-fia, compilada por Russell. Dois dos seus primeiros trabalhos ainda nãoespecialmente distinguidos, a julgar por uma pequena reprodução, epor um original em MNAA, sobrevivem, deste período em Portugal37.Hendrick Vroom naufragou ao largo das Berlengas e vendeu uma pinturadesse acontecimento em Lisboa, junto com outros quadros. Os seus tra-balhos marítimos parecem efectivamente ter começado em Portugal - asua sobrevivência é atribuída às suas pinturas religiosas que vieram dar àpraia, e a sua pintura marítima existente em Portugal é algo tosca (eleterá sido um pintor de cerâmica). Que escola terá copiado? É sugerido,também especulativamente, que teria pintado anteriormente alguns toscosmarítimos, enquanto esteve em Itália, no final da década de 1580. Opagamento pelos esboços para a tapeçaria da Armada ter-lhe-ão sido atri-buídos apenas depois de ter estado em Portugal (1592?), mas já tinhareputação em Haarlem, em 159438. Esta data tardia não implicaria queVroom pudesse ser candidato à pintura de Greenwich? Ele teria estadono mar, previamente viajando de Espanha para o sul da França, e poste-riormente para Itália - possivelmente via Villefranche. Tendo dito isto,os quatro Vrooms de cerca de 1592 têm pouco das rochas "no estilo doNorte" da pintura de Greenwich39. Existe um outro problema com a data:não estava construído nenhum navio deste tipo para servir como modelo,nessa altura - pelo menos não tão categoricamente manuelino. Não que-

37 Ambos reproduzidos por L. R. Santos, "Hendrick Vroom em Portugal", in Bol. MuseuNac. Arte Antiga, Vol. 1, 1947, pp. 207-211 + Figs. l, 2.

38 Russell, op. cit., pp. 102, 116-121, 141 e notas.39 Russell reproduz três das quatro: MNAA, Roma e Budapeste (Figs. 113-5). A última, é

na verdade radicalmente diferente, e provavelmente mais tardia, apenas com naviosholandeses, mastros sem velas e uma proeminente vista praia em primeiro plano.

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rendo dizer com isto que tais navios ainda não existissem, ou estivessema ser representados. Há navios de cerca de 1565 representados na Monu-menta Cartographica, que têm a mesma popa redonda, tal como o naviode Greenwich, e manifestamente as cintas de reforço (ou tábuas de cos-tura do tabuado?) estendiam-se até ao fundo do casco com algunscanhões abaixo do convés. O mar é algo estilizado, para não dizer idios-sincrático. São convencionalmente idênticos aos navios do Atlas de LopoHomem-Reinéis, de 1519, mas os artistas têm o hábito de copiar as ima-gens uma das outras, em vez de as desenharem ao vivo.

Notou-se que há similaridades marcantes entre a pintura deGreenwich e uma série de gravuras de Frans Huys, de 1565, baseadas nosdesenhos de Bruegel o Velho, e numa em particular40. Existem aquisemelhanças: os papa figos formam vários bojos; a cunha entre as cintasdo casco e as do castelo da popa; a disposição da popa com as abóbodase canhões acima dos gios; e os paveses com santores pintados. Mas nãopodemos ir além disto: os navios de Bruegel são manifestamente maisrecentes. Têm janelas para os canhões nos próprios cascos, e popas qua-dradas. Não as primeiras popas redondas do navio português. Têm tam-bém três mastros com joanetes; baiardos típicos do Norte; e a vela grandefeita em duas peças e não em quatro. Bruegel poderá ter copiado aspectosda pintura (dificilmente ao contrário) - as imagens são similares, comoos próprios navios são similares - mas qualquer ligação directa é impro-vável. Os mares só por si teriam distinguido os dois pintores. O estilo deBruegel é o de colocar pessoas na paisagem como que a contar a história,embora uma gravura do seu Three man of war with furled sails before awater fortress possa estar mais perto da marca (e com quatro mastros, semjoanetes). Bruegel pintou também, talvez por volta de 1558, o "Naval battlein the Gulf of Naples", com uma estrutura vaga retirada de esboços soltosfeitos em 1552-4. Mas enquanto o conjunto do quadro tem o mesmo eleva-do nível da pintura de Greenwich, os navios individuais não são especial-mente proeminentes. O tratamento da água é inferior, e podemos certa-mente questionar a uniformidade do vento.

Existe outra pintura italiana que foi apontada como similar à nossa,dizendo que representa a chegada do Imperador Carlos V a Génova, em

40 "Man of war and the fall of Icarus". Recolhido para exemplo T. I. Gunn-Graham, "Themarine engravings of Pieter Bruegel the Elder", in American Neptune, Vol. 58, 1998,pp. 329-340. O ficheiro de Greenwich parece atribuir a comparação a E. T. Coelho, 1955.É dito com frequência que isto deve ser baseado em modelos italianos de 1551-2; noentanto, eles incluíam alguns tipos tipicamente do Norte da Europa, como ósculos.

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153341. Mas Carlos V não chegou a Génova pelo mar, em 1533. Na verda-de partiu daí, com uma frota constituída na sua maioria por galés e nãopor veleiros. Nessa viagem, embarcou a Infanta Beatriz em San Remo42,para a levar com seu filho a Madrid, via Barcelona. De facto, o tempoestava demasiado violento e a Duquesa foi deixada em terra, poucodepois, em Nice. O seu filho viria a morrer em Madrid. A pintura é maisprovável que represente a chegada de Carlos V a Génova, em 1529.

Villefranche (ou Marselha?)

Pode o cenário ser o de Villefranche? A figura 2 representa umacarta de 1845. Villefranche de Nice é um porto natural seguro, que servea cidade, a poucas milhas para Oeste. O antigo aglomerado urbano é bempara o interior da baía, e a actual cidadela costeira não existia antes de1538 (é sustentável a data 1557) cobrindo uma parte tão grande da cidadecomo a que se vê na pintura, ao ponto de não podermos esperar encontrarmuitas semelhanças com o espaço real. Pelo contrário, se a pintura for deVillefranche, qualquer esboço dela terá sido feito antes de 1538. Mas aFortaleza Mont Alban, no monte, tem uma cintura de muralhas exterior dotipo "cortina" (certamente mais antiga que a presente fortaleza, e anterioràs armas de fogo), tal como a cidade da pintura. A colina levanta-se por200 metros e a costa é muito íngreme. Devemos estar perante a parte detrás do Cabo Ferrat, mas aí não devia haver nenhuma ilha. Embora permi-tamos alguma liberdade artística - particularmente nos exagerados cume ecastelo, na extremidade direita da pintura - o aspecto não é muito diferente,no seu todo. O estilo geral da arquitectura parece vagamente de Este.

Repare-se no pequeno promontório com a Tourelle! (existem duas tor-res destas na pintura). Esta torre existia no tempo de Beatriz e parece sercomo a que está pintada no promontório. Ainda continua lá, incorporada nacapela dos pescadores, apesar da costa actual ter um aspecto diferente.

No entanto, o claro indicador que aponta para Villefranche é a herál-dica. No navio que se aproxima de nós, vindo do fundo da pintura é bemvisível cruz de Sabóia. A galé da frente tem o leão de Sabóia na tenda porcima da popa. Ambos os navios têm o mesmo esquema de cores nas ban-deiras, paveses e flâmulas e partilham o mesmo esquema de cores, com trêsdos quatro grandes navios de quatro mastros ancorados junto a terra.

4 1 Genoa, Collezione Eridania, reproduziu em E. Poleggi, Iconografia di Genova e delleriviere, Genoa 1976, p. 58, Fig. 37; "Arrivo a Genova di Cario V nel 1533".

4 2 J. de Vandenesse, Journal des Voyages de Charles-Quint de 1514 a 1551, Bruxelas1874, p. 106 (Claretta p. 85, has Savona).

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Fig. 2 - Baía de Villefranche.

Carta de 1845. Escala de 1 km. A terra à direita é a parte de trás do Cabo Ferrat -não existe ilha. A cidadela proeminente é pós-1538 e a actual "cidade velha"situa-se a Norte dela, sendo, em geral, posterior a Beatriz. La Tourelle é maisantiga e ainda existe, mas a costa retraiu-se. O antigo forte de Mont Alban situa-sea 200 m, com paredes de estrelas octogonais à sua volta, e também com muralhasexteriores de cortina que se estendem por mais de 600 m de Norte a Sul; as coli-nas descem até Mont Barron, com uma antiga torre no seu topo e também comvestígios de antigos fortes ao longo da costa. O fundo costeiro da pintura apre-senta, no mínimo, uma semelhança plausível a Villefranche, com uma pequenaincursão artística, mas nunca a Lisboa ou Marselha.

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Houve a sugestão de que o esquema da pintura correspondesse àcidade de Marselha, mas, embora a frota tenha aportado essa cidade, issopode ser desde logo desmentido, pelos mapas - tanto cartas Braun comomodernas não se assemelham. Se a pintura tivesse sido aqui ordenada,deveria ter sido em tela, de acordo com o relatório de Correia.

Detalhes marítimos

Então, que podemos nós aprender através das pinturas dos própriosnavios portugueses?

O nosso interesse começou com as velas (Fig. 3). A enorme velagrande é, sem dúvida, a vela quarteada, uma vela constituída por quatropartes43 - era enorme, evidentemente, talvez medindo 30 metros de largu-ra (o que se supõe ser uma característica portuguesa), e o peso de uma sótela excederia uma tonelada, mesmo completamente seca44. As telas sãoatadas umas às outras nas extremidades e formam distintos bojos, comcordame adicional nas junções. Podemos ver claramente as letras empa-relhadas para assegurar que os panos foram colocados correctamente,supostamente representando um qualquer tipo de rosário45. Não têm rízespara reduzir a área em ventos fortes, mas monetas, para a aumentar emventos fracos. Neste caso temos uma única moneta, que tem letrasincritas em baixo, mostrando que está prevista para uma segunda. Isto vaiao encontro de textos de um período mais tardio. Não podemosaprofundar demasiado os detalhes mas existem diferentes quantidades delona pela frente e por detrás da vela, por exemplo. Um caracter é um A

43 U m termo apenas visto por este escritor na Palha MSS (de D. António de Ataíde), Port.4794, Harvard University Library, eg. no Velame da nao S. Bartolomeu (1624). U mquestionário em Mariner's Mirror, Vol. 75, 1989, p . 77, não descobriu outras instân-cias, mas parecem haver poucas dúvidas que esta prática seja, pelo menos, mais antigae ilustrada nesta pintura.

44 Mais tarde, o tecido naval n.° 1 pesava 20 kg por peça, o que significa u m quilo pormetro quadrado, cosido, mas sem reforços, relingas, etc.

45 Esta ideia existe como u m mais amplo princípio, e é na verdade desenhado comoAMGP, Ave Maria Gratia Plena, ao longo da função entre a vela e a moneta noPalacio's Instruccion Nautica de 1587. Nos comentários, apenas é detectável através deJoão Braz de Oliveira, Os navios da descoberta, Clube Militar Naval, 1894; publicadocomo "Navios portuguezes do tempo das descobertas e conquistas", na Revista Portu-gueza colonial e marítima, Vol. 1, pt 2, 1897-8, pp. 526-546; edição de 1940, p . 26,(cópia gentilmente cedida por João Pedro Vaz), mas que, no entanto, não oferecequalquer prova. As letras expostas nas velas são ilegíveis em qualquer completasequência. A função prática não se põe em causa, tendo em conta o tamanho e o pesoda vela amarrada, muitas vezes manobrada em condições adversas.

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Fig. 3. Detalhe da Fig. 1 (Lopes de Mendonça, Lusitania III, Dec. 1925).Há dois canhões pesados (um a disparar) no centro, mas nenhum no casco princi-pal abaixo desse nível. Cada janela tem um canhão giratório. O casco possui umapopa redonda, a bordagem que encurva até ao travessão e ornamentada por ondasdistintas e realistas. A vela principal está dividida em quatro partes, com um pri-meiro bonete montado por baixo desta. A sua escala é sugerida pela figura naverga. Existem letras emparelhadas ao longo de cada junção das velas - masnenhumas Cruzes de Cristo. A mezena do calcês é bastante detalhada, e não dotipo nórdico. Os padrões no castelo da popa são rectângulos lisos, ao contrário dasserpentinas (Fig. 1). Os castelos , como descrito por Resende. O navioem pano de fundo exibe hasteada a bandeira de Sabóia.

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com uma barra - o que levou a sugestões de que o quadro fosse holandêse pintado por Anthoniszoon; mas de facto o mesmo símbolo aparecefundido, também, em artilharia portuguesa da época: é apenas um til.Correia diz que as velas do navio-almirante eram feitas de algodãobranco do Levante.

O uso de monetas leva à suposição de que, nesse tempo, as velas eramreduzidas ou ferradas arriando a verga totalmente. Assim se mostram,muitas vezes, as vergas arriadas (tal como num navio da pintura de SantaAuta). Assim sendo, é provável que o navio de nacionalidade desconhe-cida, ancorado junto a terra, esteja pronto para partir, com as suas vergasiçadas e velas prestes a serem desferradas.

Raramente vemos tão nítidos detalhes como os do calcês do mastroda mezena do navio central. É muito quadrado, com duplas roldanas paraas adriças colocadas no seu interior. Isto é um claro estilo mediterrânico,categoricamente diferente do norte europeu no geral, e do holandês emparticular. O mastro grande é o característico mastro enfeixado colossal,desse período.

O casco do navio central tem claramente uma popa redonda com otabuado curvado para cima, até um gio recto sem manco. Este estilo cer-tamente perdura até metade do século, mas é uma versão primitiva -popas de gio quadradas (painéis lisos com mancos) que apenas aparecempor volta de 147046, em qualquer lugar. Os navios portugueses centrais - etambém três navios de Sabóia ancorados junto a terra - são de quatromastros, o que era bastante normal neste período, embora a grande maio-ria dos navios, mais pequenos, apenas tivesse três. Infelizmente, a ausênciade joanetes não é clara prova da data: o São João de 1535 tem um joa-nete no mastro grande, mas também os maiores navios de Henrique VII otinham, por volta de 1490. Mas os joanetes permaneceram excepçãodurante o século XVI.

Existem numerosos canhões em cada grande navio, mas são nagrande maioria pequenos canhões de bronze montados em piões rotativos- apontando para cima quando carregados. Não existe formalmente umabateria; não há canhões abaixo do convés principal, o que sugere umcasco bastante antigo, em 1521. Existem canhões pesados no castelo dapopa, mas não se verifica a existência de portas de bateria, o que é umaprova importante da data precoce da própria pintura47. Resende afirma

46 Pers. comm.: Brad Loewen; de uma pintura votiva Basca, reproduzido pelo MuseoNaval, San Sebastian.

47 Isto contrasta com as tapeçarias de Tunis, onde existem tampas nos orifícios do casco

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categoricamente que a frota, no seu todo, recebeu, para esta viagem, 537canhões adicionais, muitos deles grandes canhões de bronze. Todos oscanhões pesados que estão representados na pintura são de ferro48 e,simplesmente, não são suficientes. Em suma, o navio pode ser grande,mas não suficientemente grande; pode mesmo existir uma coberta, amenos do que no Santa Catarina. Num pequeno aparte - e referindoagora a viagem de 1521 - as crónicas falam acerca dos belos e espaçososaposentos construídos para o grupo de damas reais. Devemos lembrarmo--nos que estes belos aposentos estavam na realidade cheios de armas,também, na maioria das janelas, que não apresentavam sinal de qualquerenvidramento ou outra forma de fecho.

Tem sido dito que a pintura mostra um mesmo navio português sobdiferentes aspectos, mas existem variadíssimas pequenas diferenças entreas representações. As bandeiras de identificação nos calcês - duas nonavio central, apenas uma nos outros -; os paveses até à traseira do cestoda gávea do mastro grande; os detalhes do tabuado são diferentes; aspopas também; o número de canhões nos castelos difere um pouco e omesmo acontece com os alcatrates entre castelos e os seus realces. Exis-tiam apenas dois navios invulgarmente grandes na armada de Beatriz quepodiam ser do mesmo tipo de construção, e apenas dois na pintura podemser reclamados como similares - o terceiro está muito tapado pelas pró-prias velas.

Bandeiras e decorações

As bandeiras são manuelinas, exactamente como Resende descre-veu49: as vermelhas e brancas têm, na verdade, os restos das esferas armi-lares em ouro, o que é outro argumento a mostrar a intenção de desenhara viagem de Beatriz. Lopes de Mendonça reparou num ponto interessantea propósito destes estandartes - as armas nacionais e as esferas armilaressão desenhados como quadrados rígidos ao vento - para serem vistos.

para os canhões do São João, mas, de facto, os canhões são universalmente represen-tados em preto - canhões de ferro, está certamente incorrecto.

4 8 Uma outra comparação com a pintura de Hampton Court onde se mostra ferro e bronzepintados.

4 9 Garcia de Resende, Ida da Infanta Dona Breatiz pera Saboya. In E. Verdelho, Livrodas obras de Garcia de Resende, Lisboa 1994, pp. 491-506 + notas p. 627. Resendeaparece como um sicofanta pedante, com pouco conhecimento fora da corte; nãoadmira que ele fosse para Gil Vicente um vaidoso e ridículo Tamboril (the monkfish).em Cortes de Júpiter, escrito para esta ocasião.

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Por acaso, o mesmo se observa nos detalhes do Santa Auta (e nos estan-dartes reais, apenas se vê o mesmo na pintura aproximadamente contem-porânea do embarque de Henrique VIII; e nos desenhos de Pettyt dosnavios ao largo de Dover, também, cerca de 154050). É marcante o con-traste da rigidez dos estandartes com os traços curvilíneos das flâmulas emtodos os casos. Temos as armas nacionais - em duas diferentes formas - eas insígnias da Cruz de Cristo. O que nós não temos é a Cruz de Cristo nasvelas, e sobre esse assunto a crónica de Correia é explícita: deveria estardesenhada em, pelo menos, uma andaina do Santa Catarina51.

O toldo por cima da popa estava disposto como o de uma galé feitoem damasco e chegando até à água, cosido com sedas. Bandeiras e cor-das eram de similar riqueza. As cores principais eram o vermelho ebranco manuelino, com esferas armilares em ouro, havendo tambémmuito amarelo e azul.

Uma outra curiosidade neste grupo (Greenwich, Leiden e SantaAuta): todos têm bandeiras ou galhardetes nos paus que se projectavampara a frente e para baixo, nas proas de uma ou mais embarcações, o quenão é usual.

Galerias (varandas)

Podemos observar quatro abóbadas salientes em sucessivas cobertas.No entanto, não existem galerias de popa. De facto, as galerias de popa{varandas), distintas de guarderobes e bellatoria52, apenas aparecem emimagens datadas de carca de 1546 - nenhuma em Breugel, mesmo em1565. Aparecem em crónicas, como a de Correia, referindo-se a 1510,mas numa obra escrita cerca de 1560; e em Barros, descrevendo factosocorridos em 1537 e 1539, mas também retrospectivas. Contudo, o texto

50 F. Howard, Sailing ships of war, 1400-1860, Londres 1979, pp. 46-7.51 A decoração das velas por pintores é provavelmente mais uma excepção do que

propriamente uma regra e podem não ter sido aplicadas nas andainas suplentes. Nada émostrado, tanto na pintura de Santa Auta, como no desenho de Leiden. Tecnicamente,a Cruz de Cristo só deve ter sido usada pelos navios reais ou navios com membros daOrdem a bordo.

52 Bellatoria eram galerias de luta na parte traseira do castelo de popa, a própria construí-da acima dos cascos dos navios mediterrânicos do século XIII e, por vezes, tambémtapando as partes superiores dos lemes laterais (eg. J. H. Pryor, "A arquitectura navaldos navios cruzeiro de transporte - II", in Mariner's Mirror, Vol. 70, 1984, pp. 275--292). Apesar de não parecer existir continuidade, isto parece ser outra possível origempara as galerias; e os soldados em acção estavam estacionados nas galerias.

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de Correia de 1533, apenas publicado em 1992, descreve, a determinadaaltura, as mudanças efectuadas no navio: as damas reais tomaram contade todo o castelo da popa até várias cobertas abaixo; para os marinheiroschegarem até ao leme, foi construída uma galeria do lado de fora donavio - presumivelmente a cana do leme foi invertida e trabalhava atra-vés de roldanas, embora, neste período, grande parte da manobra degoverno fosse feita com as velas -; e uma segunda galeria foi acrescentadapor cima para oferecer acomodação aos inúmeros fidalgos embarcados.

Não existem galerias na pintura, e isto é quase o golpe de misericórdiaem qualquer afirmação de que este navio é o Santa Catarina, pintado aovivo em 1521. Correia talvez tenha estado a escrever na índia, mas o naviovoltou para lá não muito depois, e podemos supor que ele o viu e falou comalguns membros da tripulação. O autor confia tacitamente em Correia, poresta razão: não só ele é o mais prático dos cronistas, como tinha um vastoconhecimento das galerias, e das galerias gémeas, algumas décadas antesde elas existirem noutros locais. Correia morreu muito tempo antes dasgalerias gémeas serem comuns. Pelo menos, antes delas existirem emnavios (é um termo arquitectónico hispano-arábico)53.

Em 1521, uma frota veneziana de cinco galeaças navegando a cami-nho do Norte escalou Lisboa, e o General Alexandre de Pesaro foi ins-truído para obter uma audiência com D. Manuel, a propósito do comérciode especiarias. Como foi descrito por Damião de Góis54, foi conduzido aopalácio por uma escada de caracol e pelas varandas do palácio. Essasvarandas são visíveis na pintura do Terreiro do Paço de Dirk Stoop -arcadas, estruturas abertas. Correia até descreve o uso das escadas emespiral para as damas se deslocarem no navio; uma invenção extraordiná-ria, se assim foi. Será coincidência que as galerias de popa viessem a serchamadas de varandas, se considerarmos que o Santa Catarina estavaancorado mesmo ao pé do palácio? A Varanda das Damas ainda faziaparte do palácio em 1755, e aparece em várias ilustrações.

53 Por vezes, é dito que a palavra varanda foi trazida da Índia, donde também se espalhoupela Inglaterra. De facto, Hobson Jobson era inflexível ao dizer que existe uma palavrasemelhante em sânscrito, mas que não é a de origem, e o termo foi levado para a Índiapelos Portugueses. João Braz d'Oliveira, in Os navios de Vasco da Gama, Lisboa,1892, p. 12, sugeriu que as galerias foram adoptadas nos navios portugueses no séculoXVI, a partir das antigas casas de Portugal (da província), mas não oferece nenhumadata ou qualquer outra prova.

54 Damião de Góis, Crónica do felicíssimo rei D. Manuel, Parte IV, Coimbra 1955, Capí-tulo LXXXI. Sanuto nomeia o capitão das galés da Flandres como Vincenzo de Priuli,que chegou a Plymouth a 8 Dezembro de 1521; este encontro foi posterior à partida deBeatriz.

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O desenho de Leiden, casualmente, mostra uma galeria primitivanuma embarcação (e possivelmente numa segunda) - as implicações paradatar o desenho relativamente ao advento das galerias ainda estão paraser resolvidas.

Galés

O par de galés com cores de Sabóia sugerem um cenário não muitolonge de Villefranche: os grandes cestos atrás dos mastros (o que eranecessário para os navios virarem de bordo), enormes lanternas e toldos depano decorados estendidos até à água. Um detalhe curioso aparece naprimeira galé: um grande canhão de bronze na corsia, como é referencia-do por Archibald55 mas atrás do mastro grande. Esperar-se-ia que talcanhão estivesse no centro, e à frente, mas, evidentemente, este não é ocaso. A galé também tem pelo menos cinco canhões mais pequenos emlinha, na proa, como era normal nesse ripo de navios.

A embarcação de Henrique VIII, em 1520 - uma comparaçãonegando a ligação a Beatriz

Há um último ponto acerca da probabilidade da pintura ser a da che-gada da Infanta, ou mesmo a partida da frota de Villefranche: a pintura,supostamente de Cornelis Anthoniszoon, da partida de Henrique VIU deDover, em 1520 (apenas pintado c. 1540-50), deve servir propósitossemelhantes56. Os navios são parecidos, mas notamos que existem maiscanhões no casco, numa coberta inferior, e há um estilo diferente de apa-relho - velas em menor número e em menores dimensões, a presença dejoanetes, e nenhumas velas quarteadas. Duas delas estão pintadas comose fossem de tecido de ouro. Notamos os rígidos estandartes reais, comona pintura de Greenwich. O mar é muito menos realista, mas está longede ser liso. Parece ao autor que esta é outra pintura, possivelmente de umartista holandês, que não se enquadra bem com uma única teoria sobrepintura marítima.

55 E. H. H. Archibald, The dictionary of sea-painters of Europe and America, 3. ª ed.,2000, p. 48.

56 N. Beet. "Cornelis Anthonisz", in Oud Holland, 1939, pp. 160-184, 199-221. Sumáriopor G. Callendar, "Cornelis Anthoniszoon", in Mariner's Mirror, Vol. 25, 1939,pp. 442-4. (Cornelis não era o irmão de Anthony; estiveram pelo menos três pintoresenvolvidos, e uma igualmente plausível sugestão de que a pintura representou, defacto, um evento de 1532).

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Mas há aqui uma diferença crucial: esta pintura é sobre cortesãos eegos reais. Henrique VIII é a figura central no convés entre castelos deum dos navios - não podia ser outra pessoa. Mas os navios estão cheiosde pessoas com roupas de qualidade superior que não constituem a tripu-lação, o que não acontece na pintura de Greenwich. Existem apenasalguns marinheiros no aparelho e observam-se cabeças acima dos pave-ses, mas não há sinal de personagens importantes a bordo, embora as cró-nicas nomeiem cerca de uma centena delas.

Sumário de outros problemas com a identificação da pinturade Greenwich

Para além da ausência de qualquer comitiva em contraste com gran-diosidade que uma pintura do acontecimento deveria celebrar, existemvárias discrepâncias específicas em relação ao navio. A julgar pelas cró-nicas, deveriam existir Cruzes de Cristo nas velas, duplas galerias depopa e laterais, no mínimo, uma armação para os toldos do castelo dapopa. Também deveriam estar representados bastantes mais canhõespesados (se dermos crédito aos números de Resende), e, certamente,deveriam ser todos em bronze e não de ferro.

De momento, o processo de datação do quadro cingiu-se ao temarepresentado visto que nenhuns testes indicados foram alguma vez tenta-dos, como a dendrocronologia. Nem a construção da tábua é referida paraquaisquer indicadores57. Para além de se saber que é em "carvalho" (o queapenas significa que é menos provável que o trabalho seja italiano), nãoexiste qualquer prova de que o quadro tivesse sido feito no Norte ou porum nórdico. Antes pelo contrário. O autor não pretende apresentar qual-quer completa teoria alternativa de uma mais abrangente história da artemarítima, mas parece-nos que aquilo que temos não é apenas nebuloso,mas sombrio. Só por si, esta pintura, e muitas outras do mesmo períodoexistentes em Portugal, torna isso bastante claro.

Sereias - Gil Vicente

Numa nota mais ligeira existe uma última omissão na pintura se elarepresenta realmente a chegada da Infanta Beatriz a Villefranche. Gil

57 L. Preston, Sea and river painters of the Netherlands in the 17th century, Oxford,1937, p. 74, notas de diversas preferências por espessura da tábua e biselagem dasextremidades; Nuno Gonçalves. Novos documentos. Estudo da pintura portuguesa doséc. XV, Inst. Port. Museus, Lisboa 1994, apresenta um estudo detalhado sobre astábuas dos painéis de St. Vincent no MNAA.

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Vicente escreveu e realizou o auto da corte para as cerimónias de casa-mento em Lisboa: As Cortes de Júpiter. Este conta como Júpiter eNeptuno concordaram que 130000 sereias deviam estar ao serviçodurante a viagem, para cantar para a Infanta, o que resultava em, aproxi-madamente, uma de cinco em cinco metros. Mas curiosamente elas esta-riam apenas no Mediterrâneo. Contudo, este facto, ao menos, está expli-cado: as sereias preferem águas mais quentes58.

Villefranche, 1538

Em 1521, D. Manuel mandou construir uma ponte flutuante, desdeas muralhas do Terreiro do Paço até ao navio almirante, onde embarcariaa comitiva real. Correia enaltece o cuidado que teve para assegurar queela não caísse sob o peso deles. Como escrevia por volta de 1532-3, nãopodia saber o que viria a acontecer em 1538, em Villefranche. O Impera-dor Carlos V mandou construir uma "ponte" de 50 passos (de 60 polega-das) desde o seu alojamento em terra até à amarração da galé-almirante, efoi ao encontro de um largo grupo de visitantes que chegaram de galé aessa ponte. O grupo incluía o Imperador, a Rainha e a filha mais velha doImperador, duas duquesas, o Duque de Sabóia, outros seis duques e trêspríncipes, e muitos outros, variando os números conforme as fontes. Aponte ruiu e todos acabaram no mar59. Os relatos dizem que se riram dasituação, mas os egos reais foram provavelmente beliscados. Todavia, epara finalizar, é um acontecimento que mostra um bonito contraste com ocuidado demonstrado por D. Manuel em "mostrar a bandeira", que éindubitavelmente a isso que a viagem se destinava. Se a pintura é defacto uma cópia directa da viagem é uma outra história.

Agradecimentos

João Pedro Vaz forneceu o documento de Correia, vital para esteestudo. José Virgílio Pissarra, Nuno Varela Rubim, António Estácio dosReis e Paul Bloesch também ofereceram materiais.

58 J. K. Rowling; alias Newt Scamander, Fantastic beasts & where to find them,Obscurus Books, 2001; aka 0-7475-5466-8.

59 Guichenon, op. cit., p220; J. de Vandenesse, op. cit., pp. 140-2; Gioffredo, op. cit.,Vol. V, pp. 109-110.