Em nome da redenção? Sobre a violência revolucionária em Walter Benjamin // In the name of...

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16/09/2015 Em nome da redenção? Sobre a violência revolucionária em Walter Benjamin http://www.herramienta.com.ar/print/coloquiosyseminarios/emnomedaredencaosobreviolenciarevolucionariaemwalterbenjamin 1/10 Publicado en Herramienta (http://www.herramienta.com.ar ) Inicio > Em nome da redenção? Sobre a violência revolucionária em Walter Benjamin Em nome da redenção? Sobre a violência revolucionária em Walter Benjamin Em nome da redenção? Sobre a violência revolucionária em Walter Benjamin Fernando Araújo Del Lama[1] (Universidade de São Paulo) [email protected] Tratase de propor uma reflexão a partir do tema benjaminiano da violência revolucionária, buscando relacionálo com os conceitos de redenção, democracia e utopia. É verdade que tal tema recebeu pouca atenção em meio aos estudos a respeito do filósofo alemão, provavelmente pela vagueza conceitual com a qual o próprio Benjamin o trata. No entanto, como se pretende esclarecer ao longo do texto, ele possui um papel fundamental para a compreensão adequada do diagnóstico de tempo produzido por Benjamin: segundo ele, não há possibilidades emancipatórias plenas se há ainda opressão, seja ela econômica, oriunda das classes detentoras dos meios de produção em relação ao proletariado, seja ela política, oriunda dos governos totalitários em relação às minorias discordantes da ideologia vigente. Em meio a esse cenário, tanto o fetichismo da mercadoria quanto a maquinaria propagandística fascista contribuíam decisivamente para a manutenção da opressão, já que são poderosos instrumentos mobilizados em favor dos agentes opressores. Estes, estando solidamente estabelecidos, dificilmente estarão dispostos a negociar ou ceder quaisquer avanços emancipatórias para as classes oprimidas, de modo a manter sua condição de dominação, de vencedores que triunfaram na História. Se as tentativas de negociação pacífica – à semelhança das estratégias da socialdemocracia, por exemplo – se mostram ineficazes, trazendo uma falsa impressão de ganhos emancipatórios e corroborando com a manutenção da dominação, resta apenas, diante de um adversário poderoso e articulado, reagir de maneira firme, enérgica, mas organizada. Como agir nesse contexto? Numa palavra: valendose da violência revolucionária, único meio para a eliminação das fontes de opressão, abrindo o horizonte para a consumação efetiva da redenção. Nas próximas seções, serão evidenciados alguns aspectos centrais desta problemática, iniciando pela gênese do conceito em meio ao seu contexto teórico de juventude aos ecos em sua filosofia derradeira; em seguida, estes aspectos serão relacionados a outros elementos da filosofia benjaminiana desenvolvida na década de 30. Violência revolucionária: vicissitudes da juventude à maturidade É verdade que a violência revolucionária (revolutionäre Gewalt) não é um conceito formulado sistematicamente, tampouco se insere numa rede conceitual mais complexa, tal como as noções de violência mítica e de violência divina, por exemplo, amplamente desenvolvidas no ensaio Para a crítica da violência. Há uma única ocorrência desta expressão em toda a obra de Benjamin[2] , no último parágrafo deste mesmo ensaio, no qual ele diz: Se, no presente, a dominação do mito já foi aqui e ali rompida, então o novo não se situa num ponto de fuga tão inconcebivelmente longínquo, de tal modo que uma palavra contra o direito não é inteiramente inócua. Mas se a existência da violência para além do direito, como pura violência imediata, está assegurada, com isso se prova que, e de que maneira a violência revolucionária – nome que deve ser dado à mais alta manifestação da violência pura pelo homem – é possível[3] (Benjamin, GS II1: 202[2011: 155]).

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Em nome da redenção? Sobre a violênciarevolucionária em Walter Benjamin Em nome da redenção? Sobre a violência revolucionária em Walter Benjamin

Fernando Araújo Del Lama[1] (Universidade de São Paulo)[email protected] Trata­se de propor uma reflexão a partir do tema benjaminiano da violênciarevolucionária, buscando relacioná­lo com os conceitos de redenção, democracia eutopia. É verdade que tal tema recebeu pouca atenção em meio aos estudos a respeitodo filósofo alemão, provavelmente pela vagueza conceitual com a qual o próprioBenjamin o trata. No entanto, como se pretende esclarecer ao longo do texto, ele possuium papel fundamental para a compreensão adequada do diagnóstico de tempo produzidopor Benjamin: segundo ele, não há possibilidades emancipatórias plenas se há aindaopressão, seja ela econômica, oriunda das classes detentoras dos meios de produção emrelação ao proletariado, seja ela política, oriunda dos governos totalitários em relação àsminorias discordantes da ideologia vigente. Em meio a esse cenário, tanto o fetichismo damercadoria quanto a maquinaria propagandística fascista contribuíam decisivamente paraa manutenção da opressão, já que são poderosos instrumentos mobilizados em favor dosagentes opressores. Estes, estando solidamente estabelecidos, dificilmente estarãodispostos a negociar ou ceder quaisquer avanços emancipatórias para as classesoprimidas, de modo a manter sua condição de dominação, de vencedores que triunfaramna História. Se as tentativas de negociação pacífica – à semelhança das estratégias dasocialdemocracia, por exemplo – se mostram ineficazes, trazendo uma falsa impressãode ganhos emancipatórios e corroborando com a manutenção da dominação, restaapenas, diante de um adversário poderoso e articulado, reagir de maneira firme, enérgica,mas organizada. Como agir nesse contexto? Numa palavra: valendo­se da violênciarevolucionária, único meio para a eliminação das fontes de opressão, abrindo o horizontepara a consumação efetiva da redenção.Nas próximas seções, serão evidenciados alguns aspectos centrais desta problemática,iniciando pela gênese do conceito em meio ao seu contexto teórico de juventude aosecos em sua filosofia derradeira; em seguida, estes aspectos serão relacionados a outroselementos da filosofia benjaminiana desenvolvida na década de 30.Violência revolucionária: vicissitudes da juventude à maturidadeÉ verdade que a violência revolucionária (revolutionäre Gewalt) não é um conceitoformulado sistematicamente, tampouco se insere numa rede conceitual mais complexa,tal como as noções de violência mítica e de violência divina, por exemplo, amplamentedesenvolvidas no ensaio Para a crítica da violência. Há uma única ocorrência destaexpressão em toda a obra de Benjamin[2], no último parágrafo deste mesmo ensaio, noqual ele diz:Se, no presente, a dominação do mito já foi aqui e ali rompida, então o novo não se situanum ponto de fuga tão inconcebivelmente longínquo, de tal modo que uma palavra contrao direito não é inteiramente inócua. Mas se a existência da violência para além do direito,como pura violência imediata, está assegurada, com isso se prova que, e de que maneiraa violência revolucionária – nome que deve ser dado à mais alta manifestação daviolência pura pelo homem – é possível[3] (Benjamin, GS II­1: 202[2011: 155]).

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Por se tratar da conclusão do argumento, é conveniente relembrar alguns pressupostospara a sua justa compreensão. Durante todo o ensaio, Benjamin opõe pureza à violência,sendo as ações puras as que se opõe às ações que visam a manutenção da violência. Notrecho citado, Benjamin fala em uma “pura violência”; seu significado é, nesse contexto,uma forma de exercício do poder ou de violência (no sentido de transgressão do poderestabelecido), enfim, de Gewalt, que não atua de modo a instituir ou corroborar um direitobaseado no excesso de força que normalmente acompanha tais processos. Ora: não estáem questão se os meios são violentos, mas se os fins para os quais se vale da violênciacolaboram para a manutenção da violência. A violência revolucionária é o correspondentehumano da violência divina – James R. Martel utiliza a expressão “seu corolário humano”(Martel, 2012: 138). Ambas se opõem à violência mítica, instauradora e reguladora dodireito, de modo que a ação, aqui, é apenas destrutiva: ela é responsável apenas peloaniquilamento do direito vigente, sem procurar imediatamente substituí­lo por outrodireito, também fundado no exercício do poder­como­violência. Esse carátereminentemente destrutivo abre a possibilidade para o advento de algo novo, dasuperação das formas estabelecidas do direito. “Assim como em todos os domínios Deusse opõe ao mito”, constata Benjamin, “a violência divina se opõe à violência mítica”(Benjamin, GS II­1: 199 [2011: 150]). Da perspectiva benjaminiana, é o poder irracional ecego do mito que conserva a violência, devendo ele ser rejeitado e combatido em todasas suas formas, para que a possibilidade de uma sociedade orientada pela não­violênciaseja aberta. “Encontra­se acordo não violento em toda parte onde o cultivo do coraçãodeu aos homens meios puros para o entendimento. [...] Cortesia do coração, inclinação,amor à paz, confiança, e o que mais poderia ser citado aqui, são seu pressupostosubjetivo”[4] (Benjamin, GS II­1: 191 [2011: 138­9]). Todavia, para a possibilidade do“acordo não violento”, é preciso combater e destruir o aparato mítico da violência,purificando­o e liberando­o dela através do emprego da violência divina/revolucionária.A respeito destas ideias, há alguns estudos que as conectam diretamente às teses Sobreo conceito de História[5]. Eric Jacobson chama a atenção, num livro sobre política emBenjamin e Scholem, ao discutir temas oriundos do amigo e interlocutor de Benjamin,para o fato de que “na aplicação da violência revolucionária para alcançar finsmessiânicos, grande importância é posta no sentido de redenção” (Jacobson, 2003: 200).Ora, apesar de o autor não estar tratando diretamente sobre Benjamin, esta afirmação éválida também para ele, já que o tema da redenção é trabalhado por ele Teses. Já Martel,por sua vez, é mais direto: ao discutindo a ideia de messianismo na filosofiabenjaminiana, mais especificamente sobre a presença do Messias no mundo,relativizando­a com a interpretação de Derrida, ele diz:É sabido também que Benjamin fala mais adiante nas “Teses” de “uma cessaçãomessiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, uma chance revolucionária naluta pelo passado oprimido”. Aqui, de novo vemos o modo como o messianismobenjaminiano se sobrepõe às suas posições revolucionárias marxistas; os dois eventos(isto é, intervenção divina e ação humana) são dois lados da mesma moeda. A função doMessias é permitir uma cessação dos acontecimentos, portanto uma cessação daidolatria também; os agentes humanos preenchem a brecha da cessação com violênciarevolucionária (...) (Martel, 2012: 78).Neste trecho, Martel conecta subitamente ideias apresentadas em textos de períodosseparados por quase duas décadas de idas e vindas intelectuais, dentre as quais sedestaca a “guinada materialista”[6] em meados da década de 20. Embora haja, éevidente, muitas continuidades entre os dois períodos, é prudente, todavia, se atentar àsdescontinuidades entre eles: em outras palavras, antes de realizar aproximações, épreciso reconhecer cuidadosamente as transformações pelas quais o pensamentobenjaminiano passou, bem como as alterações temáticas entre um período e outro – elassão tão evidentes quanto as continuidades possíveis de serem traçadas. A começar, numcontexto mais geral, por exemplo, pela ideologia política. Em 1921, Benjamin apresentafortes tendências de cunho anarquista, uma vez que, ao longo do texto, a solução

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“emancipatória” encontrada por Benjamin diz respeito apenas ao desvencilhamento daviolência mítica, cujo monopólio pertence ao Estado em sua forma tradicional: elespossuem uma relação de dependência mútua, logo, ao passo que levando ao cabo um, ooutro é impossibilitado de se sustentar. Em 1940, depois do contato mais íntimo com aobra de Marx, as aspirações anarquistas juvenis de Benjamin transfiguram­se emconvicções comunistas, reconhecendo tendências emancipatórias não mais nadissolução do Estado, mas no triunfo das classes oprimidas. Outro aspecto em que hádiferenças marcantes é o lugar do messianismo em cada um desses momentos. Diverge­se, aqui, da interpretação de Martel: ele sugere que há, no contexto das Teses, um duploprocesso concomitante para o desenrolar da revolução redentora, a saber, a intervençãodivina – herança do conceito juvenil de violência divina – para a paralização do tempo, e aação humana, de modo a preencher essa lacuna temporal com ações transformadoras,revolucionárias – herdeira da violência revolucionária. A leitura de Michael Löwy meparece mais acertada e condizente com a perspectiva materialista; conforme eleargumenta:A redenção messiânica/revolucionária e uma tarefa que nos foi atribuída pelas geraçõespassadas. Não há um Messias enviado do céu: somos nós o Messias, cada geraçãopossui uma parcela do poder messiânico e deve se esforçar para exercê­la. (...) Deusestá ausente, e a tarefa messiânica é inteiramente atribuída às gerações humanas. Oúnico messias possível é coletivo: é a própria humanidade, mais precisamente, (...) ahumanidade oprimida. Não se trata de esperar o Messias, ou de calcular o dia de suachegada – como o fazem os cabalistas e outros místicos judeus que praticam a gematria– mas de agir coletivamente. A redenção é uma auto­redenção, cujo equivalente profanopode ser encontrado em Marx: os homens fazem sua própria história, a emancipação dostrabalhadores será obra dos próprios trabalhadores (Löwy, 2005: 51­2).Quer dizer: parece que o equívoco de Martel consiste na transposição anacrônica dealguns dos conceitos formulados em 1921 ao contexto filosófico de 1940. Sob a égide domessianismo anárquico do jovem Benjamin, aguardar a intervenção divina como o sinalpara o início da ação era coerente. No entanto, o ponto de vista materialista que animouseu pensamento maduro, especialmente quando se leva em conta sua particularíssimaapropriação da obra de Marx[7], parece ter substituído a espera atenciosa pelacompreensão da urgência e da necessidade da ação: a fé na intervenção divina deu lugarà possibilidade de autocontrole da humanidade sobre seu próprio destino. Nesse sentido,o aspecto messiânico presente nas teses não vai muito além do âmbito da inspiraçãopara a ação, de retomar os anseios de realização plena de uma era de justiça, felicidadee paz que o acompanha. Até mesmo a esfera de atuação ativa do Messias, suaintervenção no curso dos acontecimentos, parece ter se disseminado sobre os homens,tornando humana esta tarefa: “Interromper o curso do mundo – esse era”, diz Benjaminem Parque Central, “o desejo mais profundo em Baudelaire. O desejo de Josué”(Benjamin, GS I­2: 667 [1989: 160]); porém, agindo isoladamente, Baudelaire, assimcomo qualquer outro homem moderno, era incapaz de realiza­lo. Para a realização datarefa messiânica, dever­se­ia agrupar coletivamente as “fracas forças messiânicas”distribuídas em sua geração, além de rememorar os esforços de seus antepassados,silenciados e enterrados pela História. Benjamin narra, ao final da tese XV, umacontecimento ocorrido na Revolução de 1830 que sugere, também, o carátereminentemente humano, profano, desta tarefa:Ainda na Revolução de Julho ocorreu um incidente em que essa consciência [da história]se fez valer. Chegado o anoitecer do primeiro dia de luta, ocorreu que em vários pontosde Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam­se tiros contra os relógiosdas torres. Uma testemunha ocular, que, talvez, devesse a rima a sua intuição divinatória,escreveu então: Quem poderia imaginar! Dizem que irritados contra a hora / Ao pé decada torre, Josués novos / Para parar o dia, atiraram nos relógios[8] (Benjamin, GS I­2:702 [2005, p. 123]).Ou seja: os revolucionários tomaram para si a tarefa messiânica, agindo em vez de

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esperar. Ora, a concepção do progresso como acúmulo de catástrofes, registradas notempo meramente quantitativo, “homogêneo e vazio”, tal como formulada tardiamente,não é mais compatível com a estratégia emancipatória do jovem Benjamin, devendo sernecessariamente atualizada. Assim, nesse novo contexto, a vinda do Messias não deveser aguardada como sinal para a ação, mas provocada pela própria ação. Isso implicaque a concepção de violência divina se dissolve na de violência revolucionária; não sãomais duas forças que atuam conjuntamente, mas uma só, que incorpora aspotencialidades de ambas, quais sejam, interromper o transcurso do tempo e transformara realidade. Se, outrora, é o poder divino que “atinge privilegiados (...) sem preveni­los,golpeia sem ameaçá­los (...)” e “ao mesmo tempo expia a culpa” (Benjamin, GS II­1: 199[2011: 151]), cabe, agora, apenas aos próprios homens fazê­lo, mais precisamente aosoprimidos, portadores do universal. O mito, por sua vez, continua a ser o adversário a sercombatido, porém, não mais como violência, mas como ideologia que mascara e falseia oreal[9].Filosofando contra a letargiaDiante disso, torna­se mais simples compreender a crítica de Benjamin à posturasocialdemocrata[10] e da maioria dos socialistas de sua época: permeada por umotimismo em relação à resolução automática das contradições do capitalismo, queresultaria no irresistível triunfo do proletariado, a socialdemocracia acabava semprepostergando ações mais enérgicas e decisivas, ou numa palavra, revolucionárias. Àpassividade socialdemocrata, Benjamin contrapunha a urgência da ação, da atividade:quanto mais o tempo passa, mais a dominação aumenta, mais o espectro de açõespossíveis é tolhido e mais a catástrofe se torna iminente. Por isso, a necessidade doplumpes Denken, do pensamento grosseiro, sobre a qual Benjamin e Brecht tantodiscutiam. Segundo Kkonder:Para que a teoria não se converta num torneio de espadachins que dão um espetáculoexclusivo para as elites, para que a teoria supere os horizontes do elitismo e possasensibilizar setores cada vez mais amplos, imprescindíveis para que ela se transforme emação, uma certa "grossura" – acreditava Benjamin – era imprescindível (Konder, 1999:74).Ou seja, de acordo com Benjamin, quanto mais rebuscada e repleta de sutilezas for ateoria, quanto mais ela buscar elencar a maior quantidade de “mediações dialéticas” parauma vasta e detalhada reconstituição da totalidade[11], menos vínculo com a práxispropriamente dita ela terá. Uma vez que este nível de complexidade teórica demandauma temporalidade incompatível com a urgência dos fatos, torna­se preciso formular umateoria minimamente consistente e transformá­la rapidamente em práxis, para que elapossa se tornar instrumento dos oprimidos na luta contra a opressão. A valorização do“pensamento grosseiro” é um dos vários pontos em que as reflexões políticas deBenjamin e Brecht se cruzam. Certamente, a amizade com o poeta provocou grandesmudanças no filósofo: outrora um sujeito pacato – que na primeira estadia na Dinamarcaem companhia do amigo poeta, deixava­o impaciente durante as partidas de xadrez,fazendo­o querer, inclusive, mudar as regras do jogo milenar[12] –, Benjamin seconverteu num filósofo combativo, que lutou contra a opressão até seu último suspiro.Cabe observar ainda que as críticas benjaminianas não se dirigem aos objetivos dasocialdemocracia, isto é, o estabelecimento de um regime democrático, mas ao modusoperandi do qual ela se vale para atingi­los[13]. A tentativa de negociação pacífica comum adversário mais forte não se mostra logicamente viável, pois uma concessão debenefícios de qualquer ordem aos oprimidos ou menos favorecidos pressupõe umadiminuição da força dos mais favorecidos, uma vez que o jogo de forças já está dispostosob a forma da luta de classes. Assim, os opressores, por medo de perderem sua posiçãoprivilegiada na dinâmica da sociedade capitalista, que lhes garante a frente no cortejotriunfal dos vencedores, concedem apenas aquilo que não opõe resistência efetiva àmanutenção de sua posição. Por isso, a estratégia socialdemocrata se assenta numafalsa noção de emancipação: ela apenas contribui, sob a máscara emancipatória, para a

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manutenção da dominação; é exigência dos oprimidos derrubar essa máscara,desvelando o único medium emancipatório possível de redimi­los plenamente, a saber, arevolução. A ação revolucionária deve ser enérgica, decisiva, até mesmo brutal. Aburguesia, e posteriormente o fascismo, representantes dos interesses dos opressores,ao configurarem­se como impeditivos para a realização plena da redenção, devem sereliminados[14], pois do contrário, a possibilidade de redenção, de transformação radicalda sociedade, permanecerá bloqueada.Redenção, utopia e democraciaO uso de violência neste processo de eliminação parece ser inevitável – não mais nosentido estrito do ensaio de juventude, mas num sentido um pouco mais genérico e livre.Poder­se­ia objetar a Benjamin que haveria, à primeira vista, uma espécie de inversão depapéis na consumação desse processo: uma vez assumido o poder, seria instaurada umaditadura do proletariado, na qual os opressores do passado se tornariam os oprimidos dopresente, mantendo, ainda que temporariamente, o monopólio da violência em um dospolos. Bastaria precisar, para afastar essa hipótese, a concepção benjaminiana deredenção e sua relação com sua noção de utopia. Benjamin não se envereda nem peladitadura do proletariado de extração marxista mais clássica, tampouco a concebe comqualquer tipo de privilégios de liderança aos intelectuais, como gostaria Horkheimer[15],mas trata­se, em vez disso, de uma idealização utópica que corresponde à realizaçãohumana, portanto profana, das características presentes no reino messiânico prometido.Conforme ensina Löwy, a noção benjaminiana de redenção traz em seu bojo marcas danoção de apokatastasis, oriunda do pensador cristão Orígenes[16] (Cf. Löwy, 2005: 55).Segundo esta doutrina, no dia do Juízo Final, Deus salvaria todas as almas, sem fazerdistinção entre elas, restaurando­as a um estado paradisíaco inicial, anterior à queda.Assim,a redenção, o Juízo Final da tese III, é então uma apocatástase no sentido de que cadavítima do passado, cada tentativa de emancipação, por mais humilde e “pequena” queseja, será salva do esquecimento e “citada na ordem do dia”, ou seja, reconhecida,honrada, rememorada (Löwy, 2005: 55).Essa restauração não seria um retorno ao paraíso primevo no sentido mais forte,messiânico, mas a atualização de supostas experiências obtidas em um passado arcaico– cujo correspondente secular é justamente o modelo de comunismo primitivo estudadopor Bachofen – que, em interação com o novo, abriria os caminhos para,alegoricamente[17], isto é, buscando representar o irrepresentável, realizar no mundo osonho da utopia. Numa bela e precisa formulação de Adorno sobre o funcionamento doprocedimento alegórico em seu âmbito mais geral, para além da interpretação das obrasde arte, é ele um: “despertar no que estava petrificado a vida congelada, mas tambémconsiderar o que está vivo de modo tal que se apresente o que há muito já transcorreu, o‘proto­histórico’, para liberar de súbito a significação” (Adorno, 1998: 228).Com efeito, essa dimensão da noção de redenção é válida e corresponde àspreocupações de Benjamin em dar voz aos silenciados pela História. Há, porém, outradimensão presente nela, e que auxilia na compreensão do problema aqui posto. Se opoder de Deus é tão grandioso que Ele é capaz de salvar todas as almas indistintamente,estão inclusos tanto os justos quanto os injustos. A restauração reconciliadora, o retornoao paraíso anterior à queda, portanto, não se aplicaria apenas aos injustiçados, mastambém aos que cometem injustiças. Em termos profanos, isso significa que a revolução,concebida como abolição da cisão entre opressores e oprimidos, se propõe a libertar nãoapenas os oprimidos, mas a humanidade como um todo; libertá­la da alienação de suahumanidade – de sua reificação, para dizer com Lukács. O velho Marx, junto a Engels,n’A Sagrada Família, já dizia que tanto a burguesia opressora quanto o proletariadooprimido estão, ambos, alienados: “ambas [as classes]”, sintetiza Reyes Mates a partirdesse tema,vivem alienadas – uma porque foi despojada do que é seu e a outra porque possui o quenão é seu –, mas com diferenças: a classe possuidora está à vontade na alienação, pois

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esse estado se traduz em poder e ela percebe esse poder como aparência de umaexistência humana. Para o proletariado a situação é insuportável, pois se traduz de fatoem existência desumana. Ambas as classes são antagônicas, já que a primeira não podeviver sem o sustento da segunda e a segunda não pode aspirar a uma existência humanasenão negando a primeira (Mates, 2011: 114­5).Mesmo os opressores são meras ferramentas do real poder responsável pelamanutenção da opressão, a saber, o fetichismo que subjaz ao “sex appeal do inorgânico”(Benjamin, GS V­1: 51 [2006: 45]), e sua contrapartida reificadora que age sobre asrelações humanas e sociais. O triunfo revolucionário dos oprimidos, violento ou não, seriao único meio de restituir a possibilidade de uma vida plenamente humana aos homens:segundo Marx e Engels, o proletariado “não pode libertar­se a si mesmo sem supra­sumir(aufheben) suas próprias condições de vida. Ele não pode supra­sumir suas própriascondições de vida sem supra­sumir todas as condições de vida desumana da sociedadeatual, que se resumem em sua própria condição” (Marx; Engels, 2003: 49).Considerações finaisEm suma, espera­se ter conseguido demarcar as linhas gerais do âmbito do emprego daviolência, seus limites e condições no contexto da filosofia tardia de Benjamin. De modo aretomar algumas das questões que serviram de ponto de partida para este texto e tentarresponde­las, o emprego de violência na filosofia da ação política benjaminiana não é damesma natureza da que se valem os regimes totalitários: esta é banalizada, é meio parasua própria manutenção, não possui um propósito racional, ou melhor, qualquerpropósito; aquela, pelo contrário, é consciente de sua necessidade e tem clareza dos finsque almeja alcançar, quais sejam, libertar do jugo da desumanidade não só os oprimidos,os próprios sujeitos da violência revolucionária, mas também aqueles que os oprimem,seus adversários em primeira instância no combate contra o Capital. “O proletário bebeu”,enfatiza Mates,até o fundo o cálice do desumano e experimentou que essa desumanidade não é só sua,mas de toda a sociedade: ninguém nessa sociedade vive humanamente porque asrelações sociais estão estruturadas como aparência de humanidade e não comohumanidade realizada. A rebelião contra suas cadeias é a rebelião contra todas ascadeias que privam o homem de uma existência humana (Mates, 2011: 115).É, pois, a plena consciência de que a existência individual não é mais digna do que aexistência coletiva justa (Benjamin, GS II­1: 201 [2011: 153­4]) que deve animar o espíritorevolucionário.À guisa de encerramento, talvez seja pertinente uma problematização do raciocínio deBenjamin: o uso da violência revolucionária com vistas a dissolver as classes opressorase, por conseguinte, a luta de classes, somente é autorizado num cenário muito específico,a saber, no caso do atendimento de sua condição sine qua non, a saber, a realizaçãoprofana de um reino messiânico. No entanto, nada garante que a História não contrarie –como ela bem gosta de fazer – mais uma vez, os filósofos que se debruçam sobre seusdestinos. Benjamin acredita no poder da rememoração das experiências fracassadas denossos ancestrais e na atualização dos esforços nelas despendidos como via régia paraatingir uma sociedade emancipada; pervertido, porém, o aspecto prático destasteorizações, só nos restaria acrescentar mais uma à imensa galeria de tentativasfrustradas de realização do verdadeiro comunismo, da realização plena dos ideaisiluministas. Ao menos, fica clara a fé no ser humano e em que ele, dotado de seuspróprios meios, é plenamente capaz de se emancipar, fé esta que, à revelia de todas asfrustrações, nunca pode ser abandonada.Referências BibliográficasAdorno, T. W., “Caracterização de Walter Benjamin”. En: ­, Prismas.Crítica cultural esociedade. Trad.: Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática,1998.Benjamin, W., Gesammelte Schriften. Hrsg. von Rolf Tiedemann und HermannSchweppenhäuser. 7 Bände. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1972­91.

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[1] Mestrando em Filosofia, com projeto de pesquisa fomentado pela FAPESP, sob aorientação do Prof. Dr. Ricardo Ribeiro Terra.[2] Os textos de Benjamin serão citados de acordo com a edição Gesammelte Schriften,estabelecida por Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser e editada em setevolumes pela editora Surkhamp entre 1972 e 1991, abreviada doravante por GS, seguidada indicação do volume em algarismos romanos e do tomo em algarismos arábicos, alémda página, também em números arábicos. Quando houver necessidade, será indicada nasequência, entre colchetes, o ano da tradução utilizada, bem como a páginacorrespondente, que podem ser conferidas na bibliografia ao final do texto. Por fim, emcaso de citações de fragmentos coligidos entre os materiais das Passagens, seráindicado o código de catalogação do fragmento.[3] Sabe­se que este ensaio é construído a partir da ambiguidade da expressão alemãGewalt, que pode significar tanto poder (relativo ao poder político legítimo e ao seuexercício autorizado) como violência (relativa ao excesso de força que ameaçaacompanhar o exercício do poder caso ele encontre resistência). Vale observar que, emlíngua portuguesa, há três traduções para ele, com soluções diferentes para os dilemasproduzidos por esta ambiguidade. Na tradução que integra a edição organizada por WilliBolle, (cf. Benjamin, 1986), de título Crítica do poder – Crítica da violência, opta pormanter os dois termos em sua tradução, fazendo opções circunstanciais para cadaocorrência de Gewalt ao longo do texto. Na tradução portuguesa publicada em 2008 (erepublicada no Brasil em Benjamin, 2013b), a solução encontrada por João Barrento ésemelhante a de Bolle, diferenciando­se apenas pela opção de, em vez de duplicar otítulo, manter a ambiguidade numa única expressão – Sobre a crítica do poder comoviolência. Por fim, na mais recente delas (cf. Benjamin, 2011), Ernani Chaves traduzliteralmente o título como Para uma crítica da violência, e em longa nota explicativa daeditora da coletânea, a ambuiguidade a partir da qual deve­se ler o conceito chave doensaio é esclarecida. As três são ótimas traduções; utiliza­se, no entanto, a de ErnaniChaves apenas por uma questão de uniformidade terminológica, já que no trecho citado,fundamental para o desenvolvimento da argumentação, o termo Gewalt é traduzido porviolência, ao passo que nas outras o termo escolhido é poder.[4] Na sequência desta passagem, Benjamin afirma que o “campo mais apropriado” parase resolver conflitos sem o emprego de violência é o do “diálogo, considerado comotécnica da civilidade no entendimento”. “Nele”, esclarece Benjamin, “não só é possível umacordo não­violento com a como a exclusão, por princípio, da violência encontraexplicitamente sua expressão em uma relação significativa: a de não haver punição paraa mentira. (...) O que quer dizer que existe uma esfera da não­violência no entendimentohumano que é totalmente inacessível à violência: a esfera própria da ‘compreensãomútua’, a linguagem”. Habermas leu muito bem esse aspecto da filosofia benjaminiana;aliás, em seu único artigo dedicado a Benjamin, é justamente no intercâmbio deexperiências comunicáveis, bem como na possibilidade de transcender o caráter“decaído” da linguagem instrumentalizada, resgatando sua dimensão constitutiva eessencial calcada na compreensão mútua e na comunicabilidade, que ele insiste residir a“atualidade de Benjamin” (Cf. Habermas, 1980: 202 ss). Não por acaso, obviamente,estes elementos vão totalmente ao encontro das teorizações habermasianas sobre o agircomunicativo.[5] Doravante, apenas Teses.[6] Na literatura benjaminiana, o termo mais comum para descrever a ruptura em suatrajetória intelectual é “virada”. Contudo, o termo “guinada” é o que melhor compreende omovimento da obra de Benjamin: se ocorresse, por exemplo, uma “virada” materialista, ofilósofo teria de abandonar os desenvolvimentos de cunho teológico­metafísico, o que nãoprocede e que é refutável textualmente sem muito esforço (basta lembrar das diversasreferências teológicas nas Teses de 1940, por exemplo). Ora, a perspectiva marxistaparece ampliar o alcance de algumas questões de cunho social que já preocupavamBenjamin, fornecendo­lhe um solo seguro para desenvolvê­las. Leandro Konder afirma

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acerca da maneira como Benjamin lida com as transformações de seu pensamento, que“quando seu pensamento avança, não sente necessidade de promover nenhum ajuste decontas dramático com as convicções que vinha adotando até então. Talvez porque seumodo de pensar se caracterizasse por um autoquestionamento mais constante, nomovimento de sua reflexão, ele não apresenta momentos dramáticos de autocrítica (...).Quando adquire novos conhecimentos, forja para si mesmo novas convicções, ele não sese limita, obviamente, a acrescentar as noções recém­adquiridas às noções de que jádispunha: promove, com certeza, um rearranjo em suas ideias” (Konder, 1999: 32­3). Emsuma, a própria escolha do termo “guinada” é uma maneira de superar esse impasse, jáfixando uma posição interpretativa.[7] Certamente, a obra de Marx é bastante diversificada e abre caminhos para inúmerasinterpretações, como a própria herança marxista o atesta; no caso de Benjamin, háalguns pontos que divergem das leituras mais ortodoxas, como o papel positivo dolumpemproletariado na luta de classes, ou até mesmo a concepção de revolução, quecontraria a ideologia iluminista do progresso pela qual Marx se orienta. O primeiro destespontos pode ser reconstituído a partir, sobretudo, dos primeiros ensaios sobre Baudelaire,onde Benjamin atribui potencialidades revolucionárias ao lumpemproletariado – ostrapeiros, os apaches e as prostitutas, por exemplo – devido ao abismo que há entre ele ea dinâmica da sociedade; no que tange à revolução, por exemplo, as diferenças entreBenjamin e Marx podem ser delineadas a partir de um fragmento textual, uma anotaçãoque não foi integrada à “versão final” das Teses, na qual Benjamin inverte o raciocínio deMarx: “Marx disse que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvezisso se apresente de modo diferente. É possível que as revoluções sejam a ação, pelahumanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência” (Benjamin, GS I­2:697­8).[8] Tradução levemente alterada dos versos em francês, apenas para manter a “rima” deque fala Benjamin.[9] Há uma anotação, coligida entre os materiais do projeto inacabado das Passagens,que expressa muito bem a conotação do mito na filosofia tardia de Benjamin: “Enquantoainda houver um mendigo, ainda haverá mito” (Benjamin, GS V­1: 505 [2006: 444] – K 6,4). É nesse sentido, pois, que pode ser entendida a generalização feita por Adorno naseguinte afirmação: “A reconciliação do mito é o tema da filosofia de Benjamin” (Adorno,1986: 229).[10] As críticas tecidas à socialdemocracia podem ser reconstruídas a partir de algumasdas Teses (XI, XII, XIII e XVIIa, sobretudo), bem como de trechos do ensaio sobre EduardFuchs, em especial do primeiro capítulo, que em muitos momentos antecipam – inclusiveliteralmente – alguns dos temas que seriam desenvolvidos posteriormente nas Teses (Cf.Benjamin, GS II­2: 465­505 [2013: 123­164]). Uma vez que este não é o tema principaldeste texto, serão tecidas apenas considerações mais gerais a seu respeito; para odesenvolvimento inicial de alguns de seus aspectos, cf. o texto de minha autoria. Cf.Lama (2013).[11] Sabe­se que uma postura desta feita era professada pela alta cúpula do Instituto dePesquisa Social, como por exemplo, no projeto encabeçado por Horkheimer deconstrução de um “materialismo interdisciplinar”, aliando filosofia e as mais diversasdisciplinas sociais, como a sociologia, o direito, a crítica literária e de arte, a psicanálise, odireito, etc. Não por acaso, são dessa mesma época – meados da década de 30 – ascartas nas quais Adorno passa a censurar os trabalhos de Benjamin sobre Baudelairesubmetidos à revista do Instituto, acusando­os de possuírem uma dialética falha emmediação, evidenciando tanto a inspiração irredutivelmente hegelo­marxista domaterialismo do Instituto quanto a tentativa de afastar qualquer pensamento dialéticoavessa a ela.[12] Benjamin costumava anotar os principais temas discutidos com Brecht quando desua estadia em sua companhia, em 1934. A nota do dia 12 de julho é deverasinteressante em vista deste assunto: “Ontem”, relata ele, “depois da partida de xadrez,

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Brecht disse: ‘Então, quando [Karl] Korsch chegar, temos que elaborar um novo jogo comele. Um jogo em que as posições não permaneçam sempre as mesmas; em que a funçãodas peças mude depois de um tempo imóveis na mesma posição: elas vão ficar entãomais fortes ou mais fracas. Do jeito que está, não há desenvolvimento; as coisaspermanecem tempo demais como são’” (Benjamin, GS VI: 526 [2010]).[13] Os elementos democráticos presentes na filosofia de Benjamin podem serassimilados a partir do elogio às sociedades matriarcais na aurora da humanidade,estudas por Bachofen em seu livro sobre o matriarcado (Mutterrecht). Esta apropriaçãodas descobertas de Bachofen encontra precursores importantes, como Friedrich Engels,tal como o própria Benjamin nota em seu artigo sobre o antropólogo. Cf. Benjamin, GS II­1: 219­233 [2013a: 91­107].[14] Este imperativo ganha sua expressão mais poderosa no fragmento Alarme deIncêndio, em Rua de Mão Única: conforme bradava Benjamin ali, “se a eliminação daburguesia não estiver efetivada até um momento quase calculável do desenvolvimentoeconômico e técnico (a inflação e a guerra de gases o assinalam), tudo está perdido.Antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado”.A explosão da dinamite significa a destruição da humanidade, já que “possa a burguesiavencer ou ser vencida na luta [de classes], ela permanece condenada a sucumbir pelascontradições internas que no curso do desenvolvimento se tornam mortais para ela”(Benjamin, GS IV­I: 122 [1987: 45­6]). Ou seja: para Benjamin, tudo estaria perdido casoa burguesia não fosse eliminada a tempo, pois ela destruiria seus adversários e a simesma em seguida.[15] “O intelectual que, numa veneração momentânea da força de criação do proletariadoencontra sua satisfação em adaptar­se e em fazer apoteoses, não vê que qualquerpoupança de esforços do seu pensamento e a recusa a uma oposição momentânea àsmassas, para as quais ele poderia levar os próprios pensamentos, faz com que estasfiquem massas mais cegas e fracas do que precisariam ser. Seu próprio pensamento fazparte do desenvolvimento das massas como um elemento crítico e estimulador. (...) Opensamento, a formulação da teoria, seria uma coisa, enquanto que o seu objeto, oproletariado, seria outra. Contudo, a função da teoria crítica torna­se clara se o teórico e asua atividade específica são considerados em unidade dinâmica com a classe dominada,de tal modo que a exposição das contradições sociais não seja meramente umaexpressão da situação histórica concreta, mas também um fator que estimula e quetransforma” (Horkheimer, 1975: 143­4, tradução modificada).[16] Embora Benjamin não cite e nem faça referência ao conceito origenista nas Teses,ele conhecia as doutrinas do pensador cristão, como fica claro nas alusões feitas a elasno capítulo 17 de seu ensaio sobre Nikolai Leskov (Cf. Benjamin, GS II­2: 458[1985:216]).[17] Para uma discussão mais extensa sobre a relação entre os conceitos de alegoria,história e modernidade, cf. o segundo capítulo, intitulado “Alegoria, Morte, Modernidade”do livro de Jeanne Marie Gagnebin (2011: 31 ss).

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