Imagens Dialéticas de Walter Benjamin

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Imagens Dialéticas de Walter Benjamin 1. Mito do Progresso 2. Cabala 3. Montagem 4. Momento do Despertar Se um homem atravessasse o paraíso num sonho e, ao acordar, achasse na sua mão uma flor que aí lhe foi dada... então, quê? Samuel Taylor COLERIDGE 1. Mito do Progresso Na obra das Passagens, Benjamin compara a cidade de Paris no século XIX a uma formação geológica que, como se fossem fósseis, possui vestígios históricos em granito. Outra metáfora orgânica aparece na analogia que ele estabelece entre a ordem social da cidade e a ordem geográfica de um vulcão. Como as encostas do Vesúvio, que, graças às camadas de lavas, tornam-se um pomar paradisíaco, a massa urbana - perigosa e ameaçadora quando realiza seu potencial revolucionário - é que faz de Paris uma cidade “onde floresce arte, moda e uma existência festiva, como em nenhum outro lugar” 1 , julga o filósofo, que sob o véu ameaçador da revolta encontra a 1 BENJAMIN. Passagens, {f* 3}, p.1056.

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Imagens Dialéticas de Walter Benjamin1. Mito do Progresso

2. Cabala3. Montagem

4. Momento do Despertar

Se um homem atravessasse o paraíso num sonhoe, ao acordar, achasse na sua mão uma florque aí lhe foi dada... então, quê?

Samuel Taylor COLERIDGE

1. Mito do Progresso

Na obra das Passagens, Benjamin compara a cidade deParis no século XIX a uma formação geológica que, comose fossem fósseis, possui vestígios históricos emgranito. Outra metáfora orgânica aparece na analogia queele estabelece entre a ordem social da cidade e a ordemgeográfica de um vulcão. Como as encostas do Vesúvio,que, graças às camadas de lavas, tornam-se um pomarparadisíaco, a massa urbana - perigosa e ameaçadoraquando realiza seu potencial revolucionário - é que fazde Paris uma cidade “onde floresce arte, moda e umaexistência festiva, como em nenhum outro lugar”1, julga ofilósofo, que sob o véu ameaçador da revolta encontra a

1 BENJAMIN. Passagens, {f* 3}, p.1056.

potência criativa. A natureza histórica expressa “atransitoriedade essencial da verdade em seus momentoscontraditórios”2.

Entretanto, quando as referências históricas sãoconsideradas “naturais”, em afirmações acríticas queidentificam o curso da história com o progresso, oresultado é o mito. Este, com seu fatalismo inerente,leva a crer que nada de novo pode advir da atividadehumana porque os homens não têm o poder de interferirnos trabalhos do destino. O sujeito moderno volta aassemelhar-se ao mitológico quando se torna obediente auma estrutura que o constitui através de forças eprocessos opacos à sua consciência, quando o mundo porele produzido é apreendido como mundo natural e ele vê,diante de si, um sistema auto-regulado, aparentementeracionalizado, e completamente indiferente ao própriosujeito. “Esse mundo como artefato autônomo eautodeterminado assume então rapidamente a aparência deuma segunda natureza, apagando sua própria origem naprática humana, e surge tão manifestamente dado quantoaquelas pedras, árvores e montanhas que são o recheiodas mitologias.”3

O avanço do capitalismo produziu uma regressão notempo histórico porque remeteu o homem de volta a “umadimensão de fatalidade inexorável, fechada, cíclica e

2 BUCK-MORSS. The dialectics of seeing, p.663 EAGLETON. A ideologia da estética, p.231.

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naturalizada, da qual o mito traz a imagem maisapropriada”4. Benjamin considera que é tarefa dafilosofia crítica dissolver a aparência fatídica einexorável, natural e imutável, das configuraçõessociais, revelando seu caráter histórico. Por essarazão, o mito contra o qual o filósofo degladia-se commaior vigor é o do progresso histórico automático eirreversível, fruto da identificação de progressotécnico-científico com progresso social. Assinalando oerro de confundir avanços técnicos com progressohistórico, Benjamin observa que só se a acumulação deconhecimentos verdadeiros for paralela à participaçãocrescente dos homens, o progresso da ciência será,imediatamente, um progresso da humanidade.5 O filósofoassinala ainda que, ao longo do século XIX, quando aburguesia consolida suas posições de poder, o conceitode progresso foi perdendo suas funções críticasoriginais6. Neste processo, a doutrina darwinista daseleção natural teve importância decisiva, uma vez que omodelo explicativo usado por Darwin permitia supor que oprocesso evolutivo acontecia através da seleção naturaldos mais aptos à sobrevivência, e a transposição dateoria biológica para a história aconteceu quando asociedade acreditou que a concorrência e a lei da oferta

4 EAGLETON. A ideologia da estética, p.231.5 BENJAMIN. Passagens, [N 14a, 4], p.602.6 BENJAMIN. Passagens, [N 11a, 1], p.596.

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e da procura tornariam os mais capazes de competirsuperiores aos outros. Glorificando o curso empírico dahistória, ao transformá-lo em juiz, a idéia de evoluçãonatural via nas condições postas pelo capitalismocompetitivo a expressão verdadeira da natureza humana emsua permanente e inevitável luta pela sobrevivência. Aideologia evolucionista tornou-se assim “a marca docurso da história em sua totalidade, o conceito deprogresso é associado a uma hipóstase não crítica”7,denuncia Benjamin, registrando, em contrapartida, anecessidade de, no curso concreto da história, dar àregressão contornos tão claros quanto ao progresso.Quando o holocausto nazista era ainda um ovo deserpente, o filósofo chamava a atenção para a existênciade movimentos retrógrados na história, simultâneos aosprogressivos. Portanto, “ultrapassar a noção de‘progresso’ e ultrapassar a noção de ‘períodos dedecadência’ são dois aspectos de uma só e mesma coisa”8.

Na tese 11, Sobre o Conceito da História9, pode se ler que,no século XIX, a suposição do operariado alemão de estarnadando a favor da corrente histórica o levou a um passode crer que o trabalho industrial representava umaconquista política, deixando de lado a questão de comoos produtos industriais poderiam beneficiar

7 BENJAMIN. Passagens, [N 13, 1], p.598.8 BENJAMIN. Passagens, [N 2, 5], p.575.9 BENJAMIN. “Sobre o conceito de história”, in Obras escolhidas I, p.227-228.

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trabalhadores que a eles não tinham acesso. Oproletariado ficou assim privado das suas duas melhoresforças: do ódio e do espírito de sacrifício, uma vez queambos alimentam-se “da imagem dos antepassadosescravizados, e não dos descendentes liberados”10,critica Benjamin, considerando que

o insubstituível valor político do ódio consisteprecisamente em dar à classe revolucionária uma sadiaindiferença em relação às especulações do progresso.Sob a ferida da indignação, é de fato tão digno dohomem vestir-se contra a injustiça reinante quantodesejar melhorar a existência das gerações futuras[...] A indignação irá, de mãos dadas, com a firmeresolução de arrancar, no último instante, a humanidadeda catástrofe que a ameaça a cada momento.11

O verdadeiro progresso aloja-se nas interferências,“onde qualquer coisa verdadeiramente nova se faz sentirpela primeira vez, com a sobriedade da aurora”12. Osmomentos que atravessam o estabelecido provocandorupturas ocasionais, a celebração ou a apologia esforçam-se por recobrir, fabricando uma continuidade quenegligencia as passagens onde a tradição se interrompe,passando por cima das escarpas e asperezas que oferecemapoio a quem desejar ir adiante13. Quebrar os mecanismosque infinitamente rearranjam os fragmentos do mundo10 BENJAMIN. “Sobre o conceito de história”, in Obras escolhidas I, tese 12,p.228-229. A idéia apresentada nesta tese aparece claramente no capítuloIV, "A consciência de classe", in LUKÁCS. História e consciência de classe.11 BENJAMIN. Passagens, [J 61a, 3], p.428.12 BENJAMIN. Passagens, [N 9a, 7], p.593.

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material segundo um modelo dado, configura atranscendência, eminentemente política, proposta porBenjamin. Os conceitos dos dominadores são como espelhosde um caleidoscópio onde a imagem transforma-se a cadagiro, mas sempre ordenadas pelo espelho. “O caleidoscópiodeve ser destroçado”14, escreveu o filósofo, para que oselementos possam se arrancados dos falsos contextos emontados em novas configurações.

2. Cabala

Para ir além da cisão entre matéria e espírito, queresultou no abandono da natureza pelos alegoristasbarrocos, e na dominação insensata e destrutivarealizada pelos industriais modernos, o filósoforecorreu, heuristicamente, à cabala judaica. Conformeobservou Adorno, Benjamin, no movimento do seu pensar,recusava-se a reconhecer o limite imposto ao pensamentomoderno por Kant, que proíbe a ida ao mundo inteligível,“ou, como Hegel o chamou com irritação, lá onde existem‘as casas mal-afamadas’.”15 A justaposição de dois modosde pensar - o materialista-histórico e o metafísico-13 BENJAMIN. Passagens, [N 9a, 5], p.592; também em "Parque central", inWalter Benjamin, coleção Sociologia, vol.50, p.124. 14 BENJAMIN. Passagens, [N 9a, 5], p.592; também em "Parque central", in Walter Benjamin, p.126. 15 ADORNO. "Introducción a los Escritos de Benjamin (1955)", p.37, inSobre Walter Benjamin.

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teológico - conferiu aos trabalhos de Benjamin “aquelebrilho profundo que os distinguia tãoimpressionantemente da maioria dos produtos dopensamento que se caracterizam por um tédio incomum”16.

Na tradição judaica, a sucessiva recepção dos mesmosconhecimentos transmitidos oralmente ao longo de séculosdeu à arte de escrever misticamente, “ocultando asinstruções verbais sob magníficas metáforas”, o nome descientia cabalea, ciência da recepção, escreveu Reynolds, emMithomysthes (1632)17. Cabala, entre os hebreus, erasinônimo da receptio latina: uma lição dos antigos,recebida com a devida reverência. Scholem define“cabala” como a tradução literal de “tradição”.Paradoxalmente, os grandes cabalistas são justamente osque inovaram a tradição e a recepção, os que tiveramsuas inovações aceitas como a cabala verdadeira, querdizer, como sabedoria tradicional, e “ninguém viu nistouma contradição”18. Preocupados em descobrir novosextratos da consciência religiosa, os cabalistas começamonde terminam os filósofos: aquilo que do ponto de vistafilosófico poderia constituir um erro é visto como

16 SCHOLEM. Walter Benjamin: a história de uma amizade, p.127. Na mesma páginapode-se ler que Benjamin, por volta de 1930, disse a Adorno que somentequem conhecesse a Cabala poderia entender a introdução da obra sobre oDrama barroco.17 Cf. BLOOM, Cabala e crítica, p.23.18 SCHOLEM. A mística judaica, p.22. Esse livro foi a fonte para a tematizaçãoda cabala que se segue.

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abreviação de uma linha de pensamento original que podetornar-se geradora de novas idéias.

Séfer ha-Zohar, Livro do Esplendor, é considerado otexto clássico da cabala, destinado a eclipsar osdocumentos anteriores. Surgiu na região de Castela, em1275, e sua autoria é atribuída a um seguidor deMaimônides, Moisés de Leon, que o teria escrito, entre1260 e 1268, na cidade de Guadalajara, a maior parte emaramaico e em linguagem literária. O texto varia muito acada manuscrito: não existe uma versão com o contornodefinitivo. Scholem atribui o êxito literário do Zohar à“pátina artificial”, criada pelo uso do aramaico “comsua estranheza e solenidade”19.

A exegese proposta neste clássico começa subvertendoa relação entre causa e efeito que é apresentada, pelaBíblia e pela Torá judaica, no Gênesis (Torá significa“lei”, e corresponde ao Pentateuco da Bíblia cristã, i.e,aos cinco primeiros livros bíblicos: Gênesis, Êxodo,Levítico, Números e Deuteronômio). O Gênesis começa coma afirmação de que, “no princípio, Deus criou o céu e aterra”. Esta é a primeira frase das Sagradas Escrituras,e este é o início: antes não havia nada, só Deus. Já oDeus da cabala - Ein-Sof - é o próprio nada, sem fim,incognoscível, sem qualquer atributo, pois “um Deusdefinido seria um Deus finito”20. Portanto, esse Deus

19 SCHOLEM. A mística judaica, p.23.20 SCHOLEM. A mística judaica, p.25.

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quando cria a partir do nada, cria a partir de si mesmo:o que Ele cria é a sua expressão e a criação é Deusexpresso, desse modo, causa e efeito são o mesmo, sãoDeus21. Como o ser divino - o Nada - não pode serexpresso, dele emanam dez esferas seqüenciais, as Sefirot,que são Deus: “Ele é elas e elas são Ele”, diz o Zohar22.As Sefirot são os nomes que Deus deu a si mesmo, não sãoatributos ou acidentes e sim expressões divinas, são asformas que Ele toma, os “vasos” em que se transforma,são conceitos do acontecer mais que do ser23. A criaçãocomeça quando Deus diz os nomes, nos quais vaidesdobrando-se, que são os seguintes: (1) Keter, “supremacoroa”, a primeira manifestação divina; (2) Hochmá,“sabedoria”, a idéia primordial de Deus, o masculino;(3) Biná, a “inteligência”, o feminino; (4) Hessed,“amor”, ou misericórdia, graça; (5) Din, “poder”, o rigordivino; (6) Tiferet, "beleza"; (7) Netzá, “constânciaduradoura”, a vitória de Deus; (8) Hod, “majestade”; (9)Iessod, “base” ou “fundamento” das forças ativas em Deus;(10) Malkut, “reino” de Deus, o arquétipo místico dacomunidade dos homens24.

A difícil tarefa de descrever as emanações das Sefirot

a partir do nada será habilmente realizada com a ajuda

21 Cf. BLOOM. Cabala e crítica, p.34-35.22 Cf. SCHOLEM. A mística judaica, p.215.23 Cf. BLOOM. Cabala e crítica, p.75.24 Cf. SCHOLEM. A mística judaica, p.215.

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de abundantes metáforas interpretativas25. O Nada - Ein -transforma-se no Eu – Ani: a consoante é a mesma, e,conforme a tradição, o iniciado na mística judaicainterpreta os textos guiado apenas pelas consoantes,desconsiderando as vogais. A passagem do Nada para o Eurealiza-se através dos nomes, num processo cuja tese eantítese são Deus, o nada e o criado, a entidade supremaque está além do horizonte da experiência humana, porque“precede a divisão entre sujeito e objeto daconsciência” sem os quais não há conhecimento26. Nacabala, a criação expressa o movimento interno da vidadivina, por isso em cada coisa criada estão presentesvestígios dessa realidade mais íntima.

Isaac Luria (1534-1572) reforçou a dimensãodialética em sua interpretação do movimento criadorcabalístico. Morreu jovem e deixou poucos escritos:“porque todas as coisas são relacionadas entre si, malposso abrir minha boca para falar, sem me sentir como seo mar rebentasse seus diques e transbordasse”27. Enquantona cabala clássica a criação é vista como umdesdobramento divino, para Luria ela é um processo decontração, separação e re-agregação, descrito como umacosmogonia negativa que compreende três fases. A25 SCHOLEM. A mística judaica, p.220.26 SCHOLEM. A mística judaica, p.222.27 SCHOLEM. A mística judaica, p.257. Frente tal incapacidade de dizer, éimpossível não lembrarmo-nos das palavras que se desfaziam na boca deChandos "como bolor mofento"; in HOFFMANNSTHAL, G.W, p.461/472, "Umacarta", trad. Benedito Nunes, inédito.

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primeira, Tzimtzum, é a contração de Deus na Sefira dorigor, contração que abre espaço para a criação do não-Deus. A segunda fase, Shevirah, acontece quando o Deuscontraído nomeia os resíduos que deixou atrás de si, noespaço criado por sua contração, enviando-lhes aprimeira letra de seu nome YHVH (A letra Yod representa oprincípio ativo da criação enquanto os resíduos são oprincípio passivo). Mas o nome de Deus foi forte demaispara seus “vasos”, apenas as três Sefirot superiores (Keter,Hochmá, e Biná) resistiram, as demais se quebraram eparte da luz que continham voltou para Deus, mas a maiorparte caiu junto com os cacos dos vasos, os Kelipot. Kelipa

significa casca, resíduo, caco, refugo, e aparece noZohar como metáfora do mal. Assim, as forças malignas douniverso ainda guardam centelhas da luz divinaaprisionada em seu interior, são estilhaços que podemser redimidos. A ruptura dos vasos é a causa “daqueladeficiência interior inerente a tudo o que existe epersiste enquanto o dano não for reparado”28.

A terceira fase do processo, Tikun, a re-agregaçãodeverá ser, inapelavelmente, obra do homem; e consisteem liberar as centelhas caídas de Deus confinadas nosfragmentos, nas Kelipot, a fim de reconstituir aintegridade divina. As luzes cativas nos cacos deverãoser liberadas pela humanidade, que é quem vai dar a Deussua configuração final. “A salvação nada mais significa28 SCHOLEM. A mística judaica, p.271.

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senão a restituição, reintegração do conjunto original”29

- apokatastasis, diriam os gregos -, e esse é o propósitosecreto da existência do ser humano. No pensamentocabalista criado por Luria, “a existência humana e adivina se entrelaçam”30, o homem não é apenas senhor doseu próprio destino mas responsável por toda humanidade.

Harold Bloom lê a cabala como o retrato do espíritono seu processo de criação31. A ruptura dos vasosrepresenta o estilhaçamento do Verbo divino que deveráser recriado pelos homens; tal feito será conseguidomimetizando o processo original da criação, isto é,através de um aparente solipsismo: do retraimento de simesmo - no “vaso” do rigor - de modo a permitir o espaçoda criação.

Na mística judaica, é evidente o momento destrutivona criação. Quando se rompem os vasos não é Deus que sequebra, mas, ao contrário, tudo o que não é Deus,incapaz de conter sua luz, é que se fragmenta empedaços, nos quais a luminosidade divina não seextingue. No presente estado não redimido e fragmentadodo mundo, o ato de redenção consiste em recriar aharmonia original, e só “então Deus será um e Seu nomeum”32. O Tikun é o caminho para a origem, “a origem é o

29 SCHOLEM. A mística judaica, p.271.30 SCHOLEM. A mística judaica, p.276. O autor considera que "a arquitetura desta estrutura mística poderia ser rotulada de barroca" (o grifo é meu).31 Cf. BLOOM. Cabala e crítica, p.62ss.32 SCHOLEM. A mística judaica, p.234.

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alvo”33. Na história da cabala, considera-se que o Tikun

quase foi alcançado com a criação do primeiro homem,Adão, conhecedor da linguagem dos nomes - eco do Verbodivino - e vivente em mundo que estava quase no estadopara o qual tinha sido preparado: não fosse a queda deAdão no sexto dia, a redenção teria se realizado nosétimo, no Schabat34. O pecado original é a repetição daruptura dos vasos, num plano inferior; e a tarefa dohomem é restaurar no mundo sua natureza espiritual, emseu esplendor original. A vinda do Messias aconteceráquando o mundo alcançar, finalmente, sua forma adequada:na tradição cabalista o Messias não é o que traz, mas oque espalha a boa nova.

Onde, face à realidade ambígua e transitória, osalegoristas cristãos desistiram da natureza material éjustamente onde os cabalistas estão apenas começando:enquanto o cristianismo concebe a redenção como eventosubjetivo correspondente a uma transformação interna, àqual não precisa corresponder nada de exterior, para opensamento cabalista a redenção tem lugar publicamenteno palco da história, onde cada indivíduo é agente doevento. A concepção messiânica judaica possui osatributos de ser história materialista e coletiva e jáfoi articulada à política por Lukács e Bloch, conforme

33 BENJAMIN. "Sobre o conceito de história", in Obras escolhidas I, p.229.Trata-se de um aforismo, fortemente ambíguo, de Karl Kraus, usado porBenjamin como epígrafe da tese 14.34 SCHOLEM. A mística judaica, p.278-281.

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assinala Scholem35. Com sua epistemologia particular, quenos remete ao “livro da natureza”, os cabalistas lêem arealidade como se fosse um texto, percebendo namultiplicidade e na fragmentação sinais sensíveis dapotência messiânica presente. Descobrir este potencial étambém o alvo de Benjamin em sua proposição metodológicapara a dialética da história:

é muito fácil efetuar a cada época, nos diferentes“domínios”, as dicotomias segundo pontos de vistasdeterminados, de tal maneira que, de um lado seencontre a parte “fecunda”, “plena de futuro”,“vivente”, “positiva”, e do outro, a parte inútil,atrasada e morta dessa época. Só se faz aparecerclaramente os contornos da parte positiva se ela écontraposta à outra. Mas, por outro lado, toda negaçãosó tem valor porque ela serve de pano de fundo aodelineamento do vivente, do positivo. É então de umaimportância decisiva aplicar de novo uma divisão a essaparte negativa destacada, de sorte que, deslocando oângulo de visão (sem modificar o esquema) se façasurgir nela, novamente, um elemento positivo diferentedaquele que foi previamente destacado. E assim emseqüência, ao infinito, até que a totalidade do passadoseja introduzida no presente, em uma apocatástasehistórica.36

O conceito de apocatástase procede do judaísmotardio, das especulações neo-platônicas e gnósticas, e“designa a renovação do estado paradisíaco originário”37.A posição do filósofo é tão radical quanto a dos35 SCHOLEM. A mística judaica, p.231. 36 BENJAMIN. Passagens, [N 1a, 3], p.573.37 WITTE. Walter Benjamin. Una biografia, p.199.

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cabalistas. Isaac Luria afirmou estarem todas as esferasda existência, tanto as de natureza orgânica quanto asinorgânicas, repletas de centelhas sagradas “que estãomisturadas às kelipot e precisam ser separadas delas eelevadas”38. Benjamin apresenta o processo no mundofenomênico nos seguintes termos:

O que foi dito, sob uma outra forma: aindestrutibilidade da vida suprema de todas as coisas.Contra aqueles que prognosticam a decadência. Não é,portanto um ultraje à obra de Goethe levar o Fausto àtela? Não existe um mundo entre esses dois Faustos,entre a peça e o filme? É verdade, mas não existe, denovo, todo um mundo entre uma boa adaptação de Fausto aocinema e uma má? O que conta não são os grandescontrastes, mas unicamente os contrastes dialéticos queparecem várias vezes desprezar as nuances. Mas são elasque permitem à vida renascer renovando-se sem cessar.39

Neste fragmento, pode-se perceber materialismo ecabala profundamente imbricados: o método escolhido fazparte da construção da história. Na Rua de Mão Única,Benjamin já chamara a atenção para o fato de que ométodo, o caminho utilizado entra na constituição doobjeto: uma paisagem percorrida a pé é muito diferentequando vista de avião. Nas Passagens, as formas materiais- portadoras de uma realidade invisível e que setransformam em ruínas quando os princípios organizadoresnelas representados são ultrapassados - são capazes de

38 SCHOLEM. A mística judaica, p.283.39 BENJAMIN. Passagens, [N 1a, 4], p.573

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revelar-nos que a realização concreta do primado doobjeto sobre o homem trazia em si, para usarmos umaexpressão de Adorno, “sua escrita invertida”. Benjaminviu na expressão “‘livro da natureza’ a possibilidade deler o real como um texto”.40 Adverte, contudo, que ummétodo diferente do utilizado para se ler um texto seráreclamado para a leitura da realidade: no primeiro casoa ciência fundamental é a filologia, e no outro, ateologia41. O filósofo revela que seu pensamento já estáprofundamente embebido de teologia, como um mata-borrãofica embebido de tinta, mas se toda a tinta agarrar-seao mata-borrão “não restará mais nada escrito”42.

Verdadeira theologia mystica43, a cabala é,essencialmente, um método hermenêutico de leitura. Se otermo significa “o que é recebido através da tradição”44,também reporta-se à tradição atualizando-a. O que édescoberto nos escritos sagrados por geraçõesposteriores freqüentemente transforma-se em algo maisimportante do que o sentido original. A interpretaçãovisa encontrar resíduos que detenham chaves para acriação da era messiânica no tempo atual. É necessária areferência material do atual para decifrar as velhasescrituras e possibilitar que as antigas combinações

40 BENJAMIN. Passagens, [N 4, 2], p.580.41 BENJAMIN. Passagens, [N 2, 1], p.574.42 BENJAMIN. Passagens, [N 7a, 7], p.588.43 SCHOLEM. A mística judaica, p.287.44 SCHOLEM. A mística judaica, p.14.

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sejam interpretadas de modo novo. A verdade sobre arealidade dos tempos presentes será dada através dainterpretação dos textos do passado, e, ao mesmo tempo,irá transformar profundamente a leitura de tais textos.“A cabala reverencia o passado para romper com ele”45.

A redenção visa pôr fim ao sofrimento humano, quecomeçou com a Queda, através da restituição da naturezaa seu estado paradisíaco. Restituição que não pode serentendida como retorno a um paraíso perdido46. Sendo anatureza fonte do saber divino para nós, é com ela que oser humano precisa reconciliar-se. O papel central emtal reconciliação está destinado à linguagem, que com aQueda perdeu sua unidade original, tornando-se mediaçãopar excellence: abriu-se então um abismo entre as palavras eas coisas. Wohlfarth registra que, para o pensamentobenjaminiano, “a Queda é, primeiramente eprincipalmente, queda da linguagem”47. A unidade quebradadita as especificidades do método de interpretação,configurando uma exegese anti-sistêmica: é nos cacos enos fragmentos que devem ser buscadas fulgurações que sereferem à redenção. Frente a esse quadro, o conhecimentotorna-se tarefa moral. Consoante com tal visada, Adorno

45 BUCK-MORSS. The dialectics of seeing, p.233.46 Como mostra Kleist, na Vida das marionetes, está vedado ao homem voltar aoparaíso pela mesma porta por onde saiu: será necessário criar uma novaentrada. A poiesis no lugar da aletheia.47 WOHLFARTH. "On some Jewish motifs in Benjamin" in The problems of modernity,p.157.

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escreveu, no último aforismo da Minima Moralia, que atarefa da filosofia

seria a tentativa de considerar todas as coisas taiscomo elas se apresentariam a partir de si mesmas doponto de vista da redenção. O conhecimento não temoutra luz além daquela que, a partir da redenção,dirige seus raios sobre o mundo [...] Seria produzirperspectivas nas quais analogamente o mundo sedesloque, se estranhe, revelando suas fissuras efendas, tal como um dia, indigente e deformado,aparecerá na luz messiânica. Obter tais perspectivassem arbítrio nem violência, a partir tão somente docontato com os objetos, é a única coisa que importapara o pensamento [...] diante da exigência que ele secoloca, a própria pergunta sobre a realidade ouirrealidade da redenção é quase indiferente.48

A idéia de liberar o futuro da forma desfigurada queo aprisiona deverá ser realizada através de um ato deconhecimento, que constitui uma tarefa da crítica. Sóela pode compensar a impossibilidade de um sistemafilosófico e o fracasso da prática social, julgaBenjamin. A filosofia da história deve considerar opresente “como um instante que pode levar ao futuromessiânico”49. Mais radical que o marxismo ortodoxo, ofilósofo busca, não apenas “a realização da história nointerior da sociedade, mas sua realização messiânica”50.É também com os olhos voltados para a redenção, que os

48 ADORNO. Minima moralia, p.215-216.49 WITTE. Walter Benjamin. Una biografia, p.33. 50 WITTE. Walter Benjamin. Una biografia, p.117.

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cabalistas justapõem textos do passado e imagens dopresente. A infinidade de significados, comum a todarepresentação na visão alegórica, aparece na cabala comopercepção do objeto infinitamente correlacionado com oconjunto da criação, “tudo espelha tudo”51. Mas ocabalista é capaz de alcançar o símbolo, e com isso,

descobre algo que não se extingue sob a redesignificativa e alegórica: um reflexo da verdadeiratranscendência. O símbolo nada “significa” e nadacomunica, mas torna transparente aquilo que se encontraalém de qualquer significação [...] É uma totalidademomentânea que é percebida intuitivamente em um místicoagora.52

Uma imanência alegórica pode ser percebida em todasas representações dentro dos limites da linguagem e daexpressão; enquanto o símbolo místico é a representaçãode algo transcendente, de uma realidade oculta e, atéentão, inexprimível. Para o cabalista o mundo é um corpus

symbolicum, “o infinito brilha através do finito, e otorna mais, e não menos real”53. Os símbolos teológicos,reflexos da verdadeira transcendência, assemelham-se aoque Benjamin vai chamar de “imagens dialéticas”54. Vendoa promessa de redenção como historicamente atual - no

51 SCHOLEM. A mística judaica, p.27.52 SCHOLEM. A mística judaica, p.27.53 SCHOLEM. A mística judaica, p.28.54 BUCK-MORSS. The dialectics of seeing, p.242. GAGNEBIN, no texto "Alegoria,Morte, Modernidade", também assinala o parentesco entre os símbolos e asimagens dialéticas no pensamento de Benjamin.

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sentido de que sua realização deve ser buscada - e nãomítica, a filosofia da história proposta por Benjaminpassa a ter dois registros temporais: o tempo linear e otempo de Agora (Jetztzeit). A rememoração do potencialsemântico do passado é um ato de atualização, o autorpercebe que o código do novo pode ser decifrado com aajuda de chaves fornecidas pelo mito arcaico. Mas, aoinvés de realizar a decodificação, a modernidade doséculo XIX reificou o mito, através da forma mercadoria,criando um contexto social fantasmagórico queimpossibilitou a realização da promessa emancipatóriaacenada pela técnica. Através da rememoração, o filósofobusca encontrar o tempo do Agora: aquele “no qual seinfiltraram estilhaços do messiânico”. Nesse tempovoltado para a redenção, cada segundo é a porta estreitapela qual pode penetrar o Messias55.

“Nós fazemos na rememoração uma experiência que nosinterdita de conceber a história de maneirafundamentalmente ateológica, simultaneamente, nós nãotemos, do mesmo modo, direito de tentar escrevê-la comconceitos imediatamente teológicos.”56 O filósofo propôsentão dois métodos de investigação: a teologia e adialética materialista57. Não podendo comparecer

55 BENJAMIN. "Sobre o conceito da História", in Obras escolhidas I, p.232. 56 BENJAMIN. Passagens, [N 8, 1], p.589, na edição francesa p.489.57 Conversação entre Bertold Brecht e Walter Benjamin, texto datilografado inédito. Arquivo Bertold Brecht n. 217/4.7. Apud WITTE.Walter Benjamin. Una biografia, p.137.

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imediatamente - porque é velha e feia, diz Benjamin – epara permanecer oculta, a teologia vai esconder-se sob acapa do materialismo histórico, estabelecendo com eleuma relação análoga à descrita por Poe no conto onde elerelata como um boneco de madeira vencia todas aspartidas de xadrez porque abrigava, escondido em seuinterior, um mestre enxadrista anão. O anão precisava dofantoche para garantir o espetáculo e o fantoche sem oanão seria matéria inerte. A teologia sabe as regras dojogo e que peça mover a cada momento, segundo osmovimentos do adversário; ela representa para omaterialismo histórico a possibilidade de apostar naexistência de sentido no mundo, e é justamente nessaaposta que se revela o impulso teológico. Essa pulsãoinextinguível, em direção ao sentido, assinala aexistência do não-reificado nas consciências reificadas.

Percebendo que não pode escrever a história emtermos imediatamente teológicos, Benjamin vai buscaroutros recursos. Porque os dados da história sãoirredutíveis, a mudança só poderá ocorrer através de umareorganização sintática de sua articulação: assim comono Drama barroco a alegoria revela-se como metáfora dasalvação, nas Passagens a citação será a salvação dahistória58. Extraído do contexto linear em que seencontrava, o que é citado aponta bifurcações: situaçõesaparentemente imutáveis, porque tradicionais, são58 Cf. WITTE. Walter Benjamin. Una biografia, p.139ss.

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minadas quando o crítico - colocando-se do lado dosvencidos - choca-se “de frente com a representaçãocanônica dos valores”59. Nas Passagens, o autor revela: “Ométodo deste trabalho: a montagem literária. Eu nãotenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não vou ocultarnada de precioso nem apropriar-me de fórmulasespirituais. Os andrajos, os refugos, não queroinventariá-los, mas permitir que obtenham justiça daúnica maneira possível: utilizando-os.”60

3. Montagem

Benjamin se revelou disposto a “desenvolver até oseu mais alto grau a arte de citar sem aspas”, eressaltou que “a teoria dessa arte está em relação muitoestreita com aquela da montagem”61. Isso implica emutilizar na produção do texto fragmentos do material jáexistente - como acontece na cabala -,recontextualizados segundo uma nova sintaxe. NasPassagens, são utilizadas citações tanto de formulaçõesteóricas quanto de descrições de imagens concretasproduzidas no século XIX, dada a intenção do autor de

59 WITTE. Walter Benjamin. Una biografia, p.152.60 BENJAMIN. Passagens, [N 1a, 8], p.574.61 BENJAMIN. Passagens, [N 1, 10], p.572.

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associar ao método marxista uma visibilidade acurada daprópria história62.

No “Prefácio” do Drama barroco, o autor definiu ofilosofar como exercício que busca a forma da verdade,em contraposição à sua antecipação num sistema. A formaapriorística dos sistemas é rejeitada uma vez que ofilósofo considera o Ser da verdade indefinível: o lugarda verdade é o lugar do inexprimível, do que aparece nodiscurso como cesura. No ensaio sobre “As afinidades eletivas

de Goethe”, Benjamin escreveu que “no inexprimívelmanifesta-se a sublime violência da verdade”.63 Nãopodendo, obviamente, ser expresso, o inexprimívelaparece como rachadura; destruindo a falsa totalidade dodiscurso, estabelece seu momento de verdade. Salvador-destruidor, ele aniquila a pretensão ao absoluto e aoinfinito, e mostra que o mundo verdadeiro só podeaparecer em fragmentos, como um torso. É condição depossibilidade para a expressão verdadeira a aniquilaçãoda totalidade falsa, a renúncia “ao desenvolvimentofeliz de uma sintaxe lisa e sem fraturas”64.

A proposta de Benjamin é construir uma constelaçãoque ofereça, sem descrevê-la, a imagem da verdade65. Asidéias seriam apresentadas como constelações formadas

62 BENJAMIN. Passagens, [N 2, 6], p.575.63 BENJAMIN. "'Les affinités electives' de Goethe", in Oeuvres choisies, p.162, 64 GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p.114. 65 Cf. WITTE. Walter Benjamin. Una biografia, p.86.

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por conceitos. A apresentação é um desvio, ensina ofilósofo que afirma: “método (Weg) é caminho indireto, édesvio (Unweg)”66. A apresentação exige um fôlegoinfatigável, capaz de contemplar “um mesmo objeto nosvários estratos de sua significação”67, e de depoisperceber a verdade na forma produzida através dajustaposição desses estratos heterogêneo, que mostram oobjeto de modo sempre novo. No Drama barroco, talmovimento de justaposição é comparado ao da produção domosaico, onde as imagens são criadas por elementosisolados justapostos. “A comparação é possível, porquesua afinidade é real”68, afirma Benjamin, “a relaçãoentre o trabalho microscópico e a grandeza do todoplástico e intelectual demonstra que o conteúdo deverdade só pode ser captado pela mais exata das imersõesnos pormenores do material”69. Tal afirmação contrapõe-seao pensamento sistemático que, segundo o filósofo,estende uma rede entre diversos tipos de conhecimentocom a pretensão de capturar a verdade, como se estavoasse de fora para dentro. A verdade é uma essêncianão-intencional, portanto nenhuma intenção voltada aosaber configura um procedimento próprio a ela, esteseria antes uma dissolução na contemplação filosófica,pois a verdade é a morte da intenção. 66 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p.50.67 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p.50.68 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p.51.69 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p.51.

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Considerando seu próprio caminho desviante, emanalogia com a construção dos mosaicos, Benjamin observaque quanto menor a relação dos fragmentos com a figuraapresentada maior é o valor da representação. Isto é, ovalor da representação é inversamente proporcional àdistância entre ela e os elementos que a compõem. Amontagem foi um processo caro aos surrealistas, Bretonescreveu que colocar juntos dois objetos, o maisdistanciados possível, de uma maneira abrupta eoriginal, seria “a tarefa mais alta à qual a poesia podeaspirar”70. No livro sobre o Drama barroco, através dajustaposição dos diferentes aspectos do materialconsiderados, Benjamin visava a apresentação da Verdade,ao invés de fazer cada observação desembocar naseguinte, “conforme o esquema do pensamento contínuo”71.Adorno registra que, no pensamento benjaminiano, averdade não significa a mera adequação do pensamento àcoisa, res adequatio, “mas uma constelação de idéias queformam juntas o nome divino”72. Tal abordagem, que vaidar à sensibilidade dados contíguos, discretos, e nãocontínuos, revela também o espaço como forma do sentidointerno e, conforme veremos mais tarde, revelará que

70 BRETON. Les vases communicants, p.129. Lembramos aqui, que a reuniãosúbita de objetos díspares é também o estratagema usado por Lautréamont,em seus Contos de Maldoror, para representar a beleza.71 ADORNO. "Introducción a los Escritos de Benjamin (1955), in Sobre Walter Benjamin", p.39.72 ADORNO. "Introducción a los Escritos de Benjamin (1955), in Sobre Walter Benjamin", p.39.

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tempos diferentes podem ser simultâneos, ainda quesucessivos, diferentemente do que se lê na “EstéticaTranscendental”73. O próprio Kant, mais tarde, na“Analítica do sublime”, julgou, fazendo uma violência aosentido interno, que “a compreensão da pluralidade naunidade [...] do sucessivamente apreendido em uminstante [...] anula a condição temporal no progresso dafaculdade da imaginação e torna intuitível asimultaneidade”74.

É curioso notar que a primeira representaçãosucessiva de tempos simultâneos realizada pelo cinemafoi difícil para a compreensão dos espectadores. Nosprimeiros filmes dos irmãos Lumiére eram mostradosinicialmente apenas acontecimentos sucessivos, emseqüência temporal linear. Quando se mostraram, pelaprimeira vez, acontecimentos simultâneos, foi num filmeonde aparecia uma família jantando em casa, em seguida,um trem que descarrilava, e na terceira cena podia-sever o trem entrando na sala de jantar da família. Talmontagem exigiu esforço dos espectadores paracompreender que as duas cenas, apresentadassucessivamente, eram simultâneas, uma vez que não é dadoaos sentidos humanos enxergar ações que acontecem aomesmo tempo se elas acontecem em espaços diferentes. Daío estranhamento causado pela montagem, em tempos

73 KANT. Crítica da razão pura, A 31, B 47, p.71.74 KANT. Crítica da faculdade do juízo, p.105.

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sucessivos, do que ocorreu em tempos simultâneos.Benjamin propõe a montagem de fragmentos discretos, nãonum tempo contínuo, mas através de uma suspensão dotempo que permita a percepção da similitude entre eles.Isto é, tempos similares são montados contiguamente.

A atitude de provocar o pensamento através dajustaposição de elementos é o princípio metodológico dasPassagens: mesmo se a obra viesse a adquirir um contornodefinitivo, era o propósito de Benjamin, segundo Adorno,“desistir de toda interpretação manifesta e deixar osentido aflorar tão somente pelo choque da montagem domaterial”75. Isso implica em transformar a sintaxe - asregras de associação - em semântica: o sentido vaiacontecer no trânsito entre as representações, “nobailado das idéias”76. Com isso, ele incorpora aodiscurso filosófico um procedimento que pontificava naarte77 de seu tempo, propondo-se a

retomar na história o princípio da montagem. Querdizer, edificar as grandes construções a partir deelementos muito pequenos confeccionados com precisão e

75 ADORNO. "Caracterização de Walter Benjamin", in Adorno. Coleção Sociologia vol.54, p. 198.76 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p.51. Essa forma de expressarsentido é denominada por Pound de logopéia: "a dança do intelecto entreas palavras"; em Guide to kulchur, o poeta causticamente afirma que ela"consiste em apresentar uma faceta, e logo outra, até que, a um dadomomento, consiga-se atingir a superfície morta e desvitalizada do leitornalguma parte sensível".77 CARONE. Metáfora e Montagem, p.14.

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clareza [...] descobrir na análise do pequeno momentosingular o cristal do acontecimento total. 78

Desafio radical ao discurso linear, o princípio demontagem referido por Benjamin é singularmentesemelhante ao desenvolvido pelo cineasta Einsenstein emseus filmes e também em seus escritos teóricos. Em umtexto dos anos vinte, o cineasta afirma que montagem écinematografia, o modo de escrever do cinema; e,considerando a etimologia da palavra, o modo de escrever do

movimento. O princípio da montagem consiste na criação designificado através da justaposição de elementos, e nãoé uma particularidade exclusiva da literatura ou docinema, mas produz efeito semelhante sempre que juntamosduas representações ou dois objetos: o produto final éconstituído justapondo-se imagens descontínuas, que nãodecorrem uma da outra, e da colisão dessas imagensjustapostas “salta” um terceiro elemento.

Não se trata de encadeamento, mas de colisão,adverte Einsenstein: “montagem é conflito”79. Do choqueprovocado pela justaposição de elementos diferentes,cuja interação é fatalmente conflituosa, é que surge oentendimento. Sendo a obra uma totalidade, todos oselementos que formam o todo participam também de cada umdos detalhes. O conflito - base do movimento dialético -já deve estar presente em cada imagem isolada, com

78 BENJAMIN. Passagens, [N 2, 6], p.575.79 BENJAMIN. Passagens, p.159.

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potência capaz de arrebentar os limites aprisionadoresda imagem que o acorrenta, explodindo “em impulsos demontagem entre as peças de montagem”80. Tais explosões ocineasta compara à série de explosões do motor decombustão interna que movimenta o automóvel. Aacumulação do que se dá de forma descontínua produz umaresultante: uma “imagem-conceito”81, fruto do pensarimagético.

Modesto Carone considera a montagem como a“linguagem do indizível”, cujo propósito é tentar nomear“algo que radica num espaço situado além da experiênciaverbalizável”82. Tal princípio permite a quem o utilizalibertar-se da pré-constituição do mundo verbal e“quebrar a linguagem através da alogicidade da metáfora eda descontinuidade da montagem”83. Junção de elementosdescontínuos, a sintaxe da montagem não é linear, osnexos lógicos que ela produz não são causais, seuaspecto é o “de um mosaico de representações isoladas”84.Leitor de Engels e de Marx, o que Einsenstein desejavaao utilizar a montagem como princípio, assim comoBenjamin, era justamente substituir a descriçãoprogressivo-evolucionista pela dinâmica dialética doseventos. Em nome da possibilidade de um outro modo de80 BENJAMIN. Passagens, p.159.81 XAVIER. "Einsenstein: a construção do pensamento por imagens", inNOVAES. Artepensameto, p.368.82 CARONE. Metáfora e montagem, p.16.83 CARONE. Metáfora e montagem, p.17.84 CARONE. Metáfora e montagem, p.124.

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pensamento, Peirce, em The Essence of Reasoning (1893),escreveu:

Que a análise da proposição em sujeito e predicadorepresente toleravelmente a maneira pela qual nós,arianos, pensamos, eu concedo; nego, porém, que seja oúnico modo de pensar. Não é sequer o mais claro ou mesmoo mais eficiente.85

Segundo Einsenstein, o princípio da montagem é,“atividade de fusão ou síntese mental, em que pormenoresisolados (fragmentos) se unem, num nível mais elevado depensamento, através de uma maneira desusada, emocional,de raciocinar - diferente da lógica comum.”86 A montagemconsiste em justapor dois fragmentos para produzir umterceiro termo: um significado. O resultado dajustaposição é sempre qualitativamente diferente doselementos tomados em separado: o que se produz não é umasoma, mas um produto. Quaisquer que sejam os fragmentosunidos eles “combinam-se infalivelmente numarepresentação nova, surgida dessa justaposição como umaqualidade nova”87. Como exemplo, o cineasta relata umenigma do folclore russo: “Um corvo voa e um cão estásentado sobre sua cauda. Como isso é possível?”88 Oenigma tira proveito do movimento automático que fazemos85 PEIRCE. The essence of reasoning. 1893, apud CAMPOS. Op.cit., p.89. Camposremete-se também à lógica poética da analogia apresentada por VICO, inPrincípio da nova ciência.86 EINSENSTEIN. Reflexões de um cineasta, p.103. 87 EINSENSTEIN. Reflexões de um cineasta, p.72.88 EINSENSTEIN. Reflexões de um cineasta, p.72.

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para combinar imediatamente dois elementos que seapresentam justapostos, porque um princípio unificadoros submete, e lermos a frase como se o cachorroestivesse sentado sobre a cauda do corvo.

Os elementos montados visam “provocar” uma idéia. Oextraordinário desse método é o seu dinamismo, o fato daimagem resultante não ser oferecida, mas surgir, nascer.A idéia-forma, o eidos, “deve formar-se de novo na percepçãodo espectador’89; trata-se de um processo de formação deimagens na sensibilidade do espectador, que é envolvidoativamente no curso do processo. O cineasta registra queMarx - nos Grundrisse - descreve o encaminhamento próprioà verdadeira pesquisa afirmando que, assim como oresultado, o meio para alcançar a verdade também fazparte dela. Einsenstein pensava que

a virtude da montagem consiste em que a emotividade e oraciocínio do espectador interferem no processo decriação [...] O espectador não vê somente os elementosrepresentados; revive o processo dinâmico da aparição eda formação da imagem tal como a viveu o autor.90

Um ato de criação envolve o espectador que, aoinvés de acorrentar seu pensamento a um desenvolvimentolinear apresentado pelo autor, precisa (re)criar osentido a partir de fragmentos discretos. Isso nãoacontece de forma arbitrária, e sim segundo a rigorosa

89 EINSENSTEIN. Reflexões de um cineasta, p.89.90 EINSENSTEIN. Reflexões de um cineasta, p.90.

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orientação dos elementos montados, remonta-se a unidadedo mosaico, respeitando o formato e a articulação daspeças fornecidas. A imagem criada pelo autor será oconteúdo da imagem criada pelo espectador, que também écriador. A utilização, por Benjamin, do princípio damontagem no trabalho das Passagens, mesmo considerando oestado fragmentado em que a obra encontra-se, “nospermite a experiência de sentir que nós estamosdescobrindo o sentido político desses fenômenos pornossa própria conta”91. A experiência da leitura leva à(re)produção do sentido que o autor desejava apresentar.O princípio da montagem obriga o leitor a criar e porisso o atinge com a força da emoção interior criadora,provoca um afeto para determinar uma idéia, utiliza aestrutura afetiva do pensamento para obter uma idéiaestabelecida sobre um sentimento, e não sobre umraciocínio lógico-dedutivo. Trata-se, portanto dautilização de uma linguagem estética. ConformeEinsenstein diz: “Nós utilizamos assim uma estruturasensual ou afetiva do pensamento. Em lugar do efeito"lógico-informativo" nós obtemos um efeito emocional.”92

Com o princípio de montagem, buscam-se reflexos dopensamento simbólico primitivo, base das operações daconsciência, fantasmas de uma organização pré-conceitual: não para retornar ao estado mágico-

91 BUCK-MORSS. The dialectics of seeing, prefácio p.X.92 EINSENSTEIN. Za bolshoye kinoiskustvo apud MITRY. Einsenstein, p.62.

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religioso, mas para alcançar um pensamento articuladosegundo a linguagem das palavras e a linguagem dascoisas, o elemento racional e o elemento emocional;criando um discurso capaz de garantir uma síntese não-violenta das dualidades, e de restituir à razão suasfontes vitais concretas, através do reconhecimento domomento estético do pensar.

Benjamin considera que o princípio da montagemfornece a única forma possível à filosofia moderna. Oque ficou da obra das Passagens pode ser visto como umarepresentação onde imagens discretas justapostas tornamvisível a idéia que as organiza, a partir da invisívelconstrução filosófica que dá unidade ao todo. A ausênciade uma estrutura narrativa é sustentada pela, nem tantoassim, dissimulada estrutura conceitual e por uma talprofusão de fenômenos e imagens mentais que a forma-idéia, o eidos, que se buscava representar através dosfragmentos montados, salta aos olhos.

4. Momento do Despertar

Benjamin lê a história com o olhar voltado para aredenção, mas, respeitando o Bilderverbot judaico, nãoantecipa a construção de qualquer imagem dereconciliação futura. Para romper a pretensacontinuidade do desenrolar da história, o filósofo

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desconstrói os fenômenos históricos e nos seus elementosconstitutivos mostra o que aponta para a emancipação. Afim de revelarem seu potencial emancipatório, osacontecimentos precisam ser “explodidos” e seusestilhaços reunidos em novas constelações; a salvação dopassado exige a destruição do falso continuum histórico ede seu discurso triunfalista. Com isso, o autorcontrapõe-se ao enfileiramento dos fatos em uma correntelinear e contínua, realizado pelas historiografias dosque tem sido os vencedores, nas quais são percebidosapenas os elementos que levam adiante o ordenamento jáestabelecido - sem preocupação com a mutilaçãonecessariamente infligida aos fatos por esse processo.Tal estado de coisas tem sido catastrófico: a catástrofeé que as “coisas continuem como antes”, pensa Benjamincitando Strindberg, “o inferno não é qualquer coisa quenos espera, mas a vida que nós levamos aqui”93. ÍtaloCalvino, que faz afirmação semelhante, considera duaspossibilidades para lidar com essa vida infernal, umadas quais muito próxima da tradição cabalística. Aprimeira é

aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o ponto dedeixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exigeatenção e aprendizagem contínuas: tentar reconhecerquem e o que no meio do inferno não é inferno, epreservá-lo e abrir espaço.94

93 BENJAMIN. Passagens, [N 9a, 1], p.592.94 CALVINO. As cidades invisíveis, p.150.

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Alienação ou aposta na possibilidade de que ascoisas possam ser diferentes, salvar no inferno o quenão é inferno. A exigência da historiografia voltadapara a redenção é de que seja rompida a falsatotalidade, e isso acontece através da salvação do quepermite a afirmação de que essa totalidade é falsa, istoé, do que foi negado, recalcado, esquecido, ou apenasdesconhecido. A história deve fazer justiça a essesmomentos, onde se ouvia o clamor pelo que não era. Ahistoriografia proposta por Benjamin transforma em coisasua imagens do passado que estão ligadas à salvação,reconhecendo no que passou o “índice misterioso” queaponta para a redenção; e percebendo, nas construçõestotalizadoras, as fendas onde aparece a alteridade, seumomento de verdade. A representação da redenção vibra narepresentação da felicidade95. O filósofo adverte para ofato de que

existe um encontro secreto, marcado entre as geraçõesprecedentes e a nossa. Alguém na terra está a nossaespera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nosconcedida uma frágil força messiânica para a qual opassado dirige um apelo. Esse apelo não pode serrejeitado impunemente. O materialista histórico sabedisso.96

95 BENJAMIN. Passagens, [N 13a, 1], p.600.96 BENJAMIN. "Sobre o conceito da História", tese 2, Obras escolhidas I,p.223. Como curiosidade, registramos que essa tese é integralmente citada"sem aspas", por Godard, no filme Helás pour moi, 1994.

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As manifestações, sempre subjugadas, dessa forçafrágil são capazes de dar a ver a superioridade de suaintenção em relação aos propósitos de uma razão voltadaà dominação, e mostram a cesura nessa última, que sepretende totalizante. O conhecimento da verdade implicana consideração de que nada está perdido para ahistória. Como na Recherche de Proust - e considerando oprofundo envolvimento de Benjamin com essa obra, porele traduzida para o alemão, podemos dizer sob suainfluência -, o momento quando o passado fossetotalmente apropriado coincidiria com aquele daredenção. Sensível a tal idéia, Adorno escreve na Teoria

Estética que “a realidade reconciliada e a verdaderestituída do passado deveriam convergir”97. O quecoincide também com o Tikun da cabala, onde a redençãorealizar-se-á quando o homem, depois de recolher ascentelhas divinas espalhadas em cacos pelo mundoprofano, for capaz de reconstruir a face de Deus. Para omaterialista histórico essas centelhas divinas são “ascoisas espirituais”, que não existem sem as coisasbrutas e materiais. “Lutai primeiro pela alimentação epelo vestuário, e em seguida o reino de deus virá por simesmo”98, escreve Benjamin, citando Hegel. Entretanto,mesmo sendo condição necessária para as coisas refinadas

97 ADORNO. Teoria Estética, p.55.98 HEGEL apud BENJAMIN. "Sobre o conceito da História", a citação é epígrafe da tese 4, p.223.

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e espirituais, as coisas brutas e materiais não sãocondição suficiente: as coisas do espírito não entramnos despojos atribuídos ao vencedor, são, ao contrário,como o fiel da balança, que questionará sempre cadavitória dos dominadores. Sem nenhuma utilidade numasociedade degradada, as coisas espirituais afirmam-se,apenas pela sua permanência, como valores autotélicos.

Elas se manifestam nessa luta na forma da confiança, dacoragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem delonge, do fundo dos tempos [...] Assim como as floresdirigem sua corola para o sol, o passado, graças a ummisterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o solque se levanta no céu da história.99

É a esse movimento, o mais imperceptível de todos,que o materialismo histórico deve ficar atento, resume ofilósofo. Escritas em 40, após a assinatura do pactoHitler-Stalin, as linhas citadas são provavelmente omelhor registro do que significa a esperança dodesesperado, a esperança kafkiana, que existia emabundância, mas não para ele. A existência da esperançanão inclui, de modo algum, sua realização: suapermanência talvez nos permita dizer a irredutibilidadedo desejo de que as coisas sejam radicalmente diferentesdo que são. Tal esperança inarredável ficou como restona caixa que continha todos os males, ela torna-se, emdeterminados momentos históricos, o único dique da razão

99 BENJAMIN, "Sobre o conceito da História", tese 4, p.223-224.

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contra a barbárie. O historiador capaz de despertar ascentelhas de esperança no passado é aquele que estáconvencido de que nem os mortos estarão seguros se oinimigo vencer, e, acrescenta Benjamin, “esse inimigonão tem cessado de vencer”100. E os vencedores de um dadomomento são herdeiros de todos os que venceram antes,espezinhando “os corpos dos que estão prostrados nochão”101, daí a necessidade “de escovar a história acontrapelo”, pois nem a cultura nem a sua transmissãoescapam a esse movimento brutal de dominação:

todos os bens culturais têm uma origem sobre a qual nãose pode refletir sem horror. Devem sua existência nãosomente ao esforço dos grandes gênios que os criaram,como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nuncahouve um monumento de cultura que não fosse também ummonumento de barbárie.102

Para a tradição dos oprimidos a barbárie é a regrageral, que conta, além do mais, com o benefício de estarsob a égide do progresso. Contrapondo-se à nefastailusão do materialismo vulgar que acreditava estarnadando a favor da corrente histórica, Benjamin vê oprogresso como tempestade que sopra as asas do anjo dahistória, de modo que este, sem poder fechá-las, éempurrado rumo ao futuro, de costas e com o rostovoltado para o passado, ainda tentando despertar os

100 BENJAMIN, "Sobre o conceito da História", tese 6, p.225.101 BENJAMIN, "Sobre o conceito da História", tese 7, p.225.102 BENJAMIN, "Sobre o conceito da História", tese 7, p.225.

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mortos e reconstruir as ruínas que a tempestade acumulasob seus pés, através da cadeia catastrófica dosacontecimentos. É necessário parar esse processo: oconceito de paralisação é recorrente em Benjamin,conforme veremos adiante. As historiografias que ofilósofo critica são as que procedem aditivamente, semqualquer armação teórica, acrescentando os fatos um aooutro para com eles preencher o interior de um tempohomogêneo e vazio, tempo “que está sempre do lado deCésar”103. Tal procedimento cria a aparência decontinuidade da tradição e “é precisamente a permanênciadessa aparência de permanência que cria nela acontinuidade”104. Por outro lado, afirma Benjamin, “é adescontinuidade a idéia reguladora da tradição dasclasses dominantes”105, pois suas ideologias devem estarsempre se adaptando à situação conflituosa da humanidadeque precisa ser transfigurada em uma aparênciaharmoniosa.

A linearização dos fenômenos históricos para forjara idéia de uma continuidade implica, além da mutilaçãodos momentos que neles estavam voltados para a ruptura,um rompimento das múltiplas ligações que cada fenômenomantinha com os outros dentro da complexa estrutura deseu tempo. A exigência que se coloca, portanto à crítica

103 EAGLETON. A ideologia da Estética, p.234.104 BENJAMIN. Passagens, [N 19, 1], p.609.105 BENJAMIN. Passagens, [J 77, 1], p.459-460.

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filosófica é a de fazer explodir o falso continuum dahistória oficial: a idéia de progresso deve seraniquilada e o conceito fundamental será o deatualização106. A emancipação depende de realizar-se ogesto de Josué107, de puxar o freio do trem da história,pois esta, uma vez chegada ao estágio da produçãocapitalista de mercadorias, já não poderá apresentarnada de qualitativamente novo se permanecer nesse curso;irá, ao contrário, perpetuar-se na repetição, no eternoretorno do mesmo, como já assinalaram Blanqui eNietzsche, pois a dinâmica do capitalismo é a recriaçãoperpétua da sua própria estrutura. A história,entretanto, não está comprometida com a má infinitude daeterna luta entre as duas classes; em um fragmentointitulado “Alarme de incêndio”, há um alerta para operigo: “se a eliminação da burguesia não estiverefetivada até um momento quase calculável dodesenvolvimento econômico e técnico (a inflação e aguerra de gases o assinalam), tudo está perdido. Antesque a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavioseja cortado”108.

Só se pode livrar-se (Aslösung) do curso de umaépoca, assinala Benjamin, “por um gesto que tenha aestrutura do despertar em si e seja igualmente regido

106 Cf. BENJAMIN. Passagens, [N 2, 2], p.574.107 BENJAMIN. Passagens, [J 50, 2], p.401.108 BENJAMIN. Rua de mão única, p.46.

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pela sagacidade”109. Benjamin não acreditava napossibilidade de emancipação através do acirramento dascontradições internas do capitalismo. O projeto dofilósofo visa à interrupção da continuidade perversa dahistória, à explosão do seu continuum letal. Serdialético é ter o vento da história - portanto oelemento cíclico - nas velas. As velas são os conceitos,sua posição é o elemento relativo, por isso tãoimportante quanto possuí-las é saber manejá-las110. Selon le

vent, les voiles, diz o antigo ditado francês. Benjamin considera que só uma concepção do tempo

histórico que repouse sobre a idéia da redenção seráautêntica. A redenção não é uma tarefa cuja realizaçãoestá voltada apenas para o futuro, ela significa tambémfazer justiça à história através de uma narração queexpresse sua verdade. Para tanto será necessário trazerà tona os momentos naufragados do passado. A rememoração(Eingedenken) do passado - que ele distingue do recordar(Andenken) - não está nem empenhada em conhecê-lo comoele realmente ocorreu em sua totalidade: isso seriaimpossível; nem é uma mera lembrança (Erinnerung): o que arememoração busca é a retomada salvadora do passado nahistória presente111. Trata-se de rememorar no passadomomentos onde o clamor pela alteridade vibrou com tal

109 BENJAMIN. Passagens, [G 1, 7], p.234.110 Essa idéia aparece em BENJAMIN. Passagens, [N 9, 3], p.591; em [N 9, 6], p.591; e em [N 9, 8], p.592.111 GAGNEBIN. História e narração em W.B., p.102.

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intensidade que, mesmo tendo sido soterrado, deixouvestígios que ainda podem nos alcançar. O passado deixouatrás de si imagens que podem ser comparadas “àquelasque a luz imprime sobre uma placa sensível”112, mas osreveladores capazes de revelar tais impressões só serãoencontrados pelo futuro. Gagnebin assinala que o passadoverdadeiro está nas possibilidades que ele encerra e

a tarefa da crítica materialista será justamenterevelar esses possíveis esquecidos, mostrar que opassado comportava outros futuros além do que ocorreu.Trata-se, para Benjamin, de resgatar do esquecimentoaquilo que teria podido fazer de nossa história umaoutra história.113

Através da articulação conceitual, os momentoslibertários do passado entram em constelações, formadaspela justaposição da imagem desses momentos ocorridos aolongo da história, em tempos diferentes, capazes derepresentar a idéia de redenção que rege a história.Fiel à visão monadológica, o filósofo observa que nossavida “é um músculo que tem a força suficiente paracontrair a totalidade do tempo histórico”114. Arememoração dos tempos históricos esquecidos faz-nosperceber no presente que a miséria que se abateu sobre omundo tem sido preparada há longo tempo, percepção quenão deve ser causa de entristecimento, mas, ao

112 BENJAMIN. Passagens, [N 15a, 1], p.603.113 GAGNEBIN. Cacos da história, p.66.114 BENJAMIN. Passagens, [N 13a, 1], p.600.

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contrário, deve levar o homem “a adquirir uma idéia maiselevada de suas próprias forças”115, e fornecer-lhe asarmas para interromper esse processo. É como se cadapresente fosse o meio-dia da história, e os viventes“devem oferecer uma refeição ao passado. O historiador éo arauto que convida os mortos ao festim”116.

A rememoração tem como paradigma o ato de despertar.Através da técnica do despertar, Benjamin afirma estarrealizando a revolução copernicana na visão dahistória117: até então o passado era considerado como umponto fixo, “atribuindo-se ao presente o esforço delevar o conhecimento a esse ponto fixo. Agora essarelação deve ser invertida, recebendo o passado suafixação dialética a partir da síntese operada pelodespertar sobre as imagens oníricas antitéticas”118. Oponto de vista sobre a história é fixado no momento dodespertar; com isso, a política tem o primado sobre acronologia: a revolução copernicana consiste em perceberque em volta do presente gira “um saber ainda nãoconsciente do passado, um saber cujo acesso tem de fatoa estrutura do despertar”119. Assim, cada presente guardavirtualidades que permitem fazer emergir o passado; cabe

115 BENJAMIN. Passagens, [N 15, 3], p.603.116 BENJAMIN. Passagens, [N 15, 2], p.603.117 BENJAMIN. Passagens, [K 1, 1], p.490.118 BENJAMIN. Passagens, {F* 6}, p.1006.119 BENJAMIN. Passagens, [K 1, 2], p.490-491.

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ao historiador desfazer o efeito embriagante das imagensde sonho realizando o momento do despertar.

Para diferenciar o passado (Vergangene) que passou dopassado “vivo”, em que estão encapsulados os sonhos,Benjamin chama o último de Gewesenen; vamos chamá-lo aquide Passado (com a maiúscula alegorizante). Assim, tambémo autor distingue o tempo cronologicamente atual(Gegenwärtige) do tempo atual presente no passado(Jetztzeit); a esse denominaremos tempo do Agora. Opresente é o mundo ao qual o passado se reportava, mas éao tempo do Agora que se reporta o Passado, isto é, opassado vivo, os sonhos do passado; e despertarsignifica “viver o Passado com a intensidade de um sonhopara ver no tempo do Agora o mundo acordado ao qual osonho se reporta”120. Para manter-se como instânciadominadora, o enfeitiçamento prolonga o caráter de sonhoda realidade, e, só através do despertar tal movimentoaflora à consciência: despertar que irá perceber nosonho a presença tanto de formas emancipatórias quantodas regressivas. De todo modo, as imagens sob as quaisaparece o sonho coletivo do século XIX não devem sernegligenciadas porque, além de caracterizarem a dimensãoonírica de modo bastante decisivo,

Elas nos fazem ver o mar sob o qual navegamos e amargem de onde fomos desviados. É aqui que a crítica[...] deve intervir. Trata-se de criticar não o seu

120 BENJAMIN. Passagens, {F*6}, p.1006; também em [K 1, 3], p.491.

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mecanicismo e o seu maquinismo, mas o seu historicismonarcótico, sua paixão pelas máscaras, onde se escondeum sinal da verdadeira existência histórica.121

Tomando como paradigma Proust, que começa a históriade sua vida pelo momento do despertar, o filósofo afirmaque a apresentação da história deve começar por essemomento e, mais ainda, “ela não deve mesmo tratar deoutra coisa”122. E o paradigma da dialética será arememoração dos elementos oníricos no momento dodespertar123: através da análise da consciência mitificadae obscura de si, aparece o sonho que envolve ahumanidade. Escrever a história significa então dar àsdatas sua verdadeira fisionomia124; essa apresentaçãomaterialista vai levar o passado “a colocar o presentenuma posição crítica”125: “o passado telescopia opresente”126, e com isso proíbe-lhe a paz do esquecimento.Entretanto, o Passado só pode revelar-se quando ahumanidade, “esfregando os olhos, percebe precisamentecomo tal a imagem de sonho”127.

A falsidade do continuum histórico impede atransmissibilidade do Passado, que Benjamin substituientão pela citabilidade: “escrever a história é citar a

121 BENJAMIN. Passagens, [K 1a, 6], p.493-494.122 BENJAMIN. Passagens, [N 4, 3], p.580.123 BENJAMIN. Passagens, [N 4, 4], p.580.124 BENJAMIN. Passagens, [N 11, 1], p.595.125 BENJAMIN. Passagens, [N 7a, 5], p.588.126 BENJAMIN. Passagens, [N 7a, 3], p.588.127 BENJAMIN. Passagens, [N 4, 1], p.580.

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história”128. O conceito de citação implica que o objetohistórico, qualquer que seja ele, é arrancado de seucontexto temporal original e introduzido em um outro.Citar o passado não lhe dá continuidade, nem o preservatal como foi, antes desconstrói a totalidade aparente,e, através desse arrancar pedaços do que antesapresentava-se como um todo contínuo, rompe com atradição. Num processo que se inicia a partir daexplosão do fluxo linear da história, os fragmentoscitados são dispostos de modo a formarem novasconstelações, e, reunidos segundo o princípio demontagem, representarem uma idéia que deverá ser(re)criada pelo leitor. Benjamin pensava em produzir umaobra inteiramente composta por citações, montadas comtanta mestria que não fosse necessário nenhum texto paraligá-las: era seu interesse escapar das funçõesutilitárias e comunicativas da linguagem e compreendê-laem sua forma expressiva, fatalmente fragmentada. Quandocita, não o faz para reforçar um pensamento apresentado,mas, ao contrário, para criar choque, e interromper alinearidade do discurso. “Nos domínios dos quais nosocupamos, só existe o pensamento fulgurante. O texto é otrovão que faz ouvir seu estrondo muito tempo depois.”129

Para Benjamin, “a verdadeira imagem do passadoperpassa, veloz”, e como “imagem que relampeja

128 BENJAMIN. Passagens, [N 11, 3], p.595.129 BENJAMIN. Passagens, [N 1, 8], p.571.

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irreversivelmente”, o passado só será fixado se fornesse instante reconhecido, pois “irrecuperável é cadaimagem do passado que se dirige ao presente, sem queeste presente se sinta visado por ela”130. Articular opassado historicamente significa resgatar suas imagenstal como elas “relampejaram” no momento do perigo, e operigo é sempre o mesmo: “entregar-se às classesdominantes como seu instrumento”131. Catastrófico é perdero kairós, a ocasião de intervir no processo histórico pararealizar o desejo que o atravessa. A históriamaterialista é uma construção “cujo lugar não é o tempohomogêneo e vazio, mas um tempo saturado de Agoras”132.Agoras que devem ser resgatados do continuum histórico: acompreensão do Passado implica em perceber a dinâmica doque nele está vivo; para isso, é necessária a suspensãodo fluxo temporal, de modo que o que foi recalcado possaser trazido à tona. Como já dissemos, o presente é quefica fixo, ele “pára no tempo e se imobiliza”133, porque

pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mastambém sua imobilização. Quando o pensamento pára,bruscamente, numa configuração saturada de tensões, elelhes comunica um choque, através do qual essa

130 BENJAMIN. "Sobre o conceito da História", tese 5, Obras escolhidas I, p.224.131 BENJAMIN. "Sobre o conceito da História", tese 5, Obras escolhidas I, p.224.132 BENJAMIN. "Sobre o conceito da História", tese 14, Obras escolhidas I, p.229.133 BENJAMIN. "Sobre o conceito da História", tese 16, Obras escolhidas I, p.230.

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configuração (Konstellation) se cristaliza enquantomônada. O materialista histórico só se aproxima de umobjeto quando o confronta enquanto mônada.134

A saturação de tensões numa determinada configuraçãopode imobilizar o pensamento, em seu movimento desíntese, essa paralisação congela as imagens como tais,em estado tenso. A paralisação do fluxo do pensamento, odeter-se do pensar diante da intensidade das tensõestransmite-lhes um choque que as cristaliza. O movimentodescrito torna-se mais evidente quando analisamos asmetáforas utilizadas por Benjamin: congelamento ecristalização. Congelar significa passar do estadolíquido (cuja forma é fugidia) ao sólido, e tambémfixar, deixar a salvo de mudanças. Cristalizar pode sersinônimo de congelar, mas tem um leque de sentidos aindamais amplo. O Dicionário Aurélio registra: “permanecer nomesmo estado; não experimentar mudanças. Tornar-seconcreto; consolidar-se; materializar-se”. Cristalizaçãoé a passagem de um estado amorfo e fluido a uma formasolidificada. É necessária uma intervenção exterior paraque a substância se cristalize. Na constituição doobjeto-mônada, a interferência é o choque causado pelaparalisação do pensamento: o estancar-se do seu fluxofaz com que a constelação das tensões fique congelada, eo que se produz não é um conceito ou um argumento

134 BENJAMIN. "Sobre o conceito da História", tese 17, Obras escolhidas I, p.231.

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explicativo e sim uma imagem de pensamento, criada pela“dialética em suspensão”.

Congelado, o fragmento do curso histórico assume aestrutura de uma mônada. As tensões não são subsumidasnuma síntese falsificadora que leva o movimento adiante,mas cristalizadas - e, portanto apresentadas - comotais: “a ambigüidade é a manifestação imagética dadialética, a lei da dialética em suspensão”135. Quando, esó se, é percebida a estrutura monadológica do objeto,nele a totalidade do processo histórico é preservada etranscendida. Tal estrutura - a forma fechada da mônada- exige que o objeto seja arrancado da continuidadehistórica para constituir-se como objeto histórico; emoutras palavras: para que um objeto histórico sejaatualizado não pode haver nenhuma continuidade entre elee o presente136. Pensando assim, Benjamin não busca nemuma apresentação contínua, nem uma apresentaçãohomogênea da história137, já que ambas são incompatíveiscom o objeto. A totalidade do processo histórico nãoserá percebida num desenrolar progressivo, ainda queeste seja dialético, como queria Hegel, e sim nas“imagens-dialéticas, pequenos fragmentos monadológicos,que trazem nas entranhas “todas as forças, todos osinteresses históricos em uma escala reduzida”138. A imagem

135 BENJAMIN. "Exposé de 1935", in Passagens, p.55.136 BENJAMIN. Passagens, [N 7, 7], p.587.137 Cf. BENJAMIN. Passagens, [N 7a, 2], p.588.138 BENJAMIN. Passagens, [N 10, 3], p.594; cf. também [N 10a, 1], p.594.

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dialética é a imagem da dialética em suspensão, ela “éidêntica ao objeto histórico”, afirma Benjamin, “épreciso buscá-la ali, onde a tensão entre os contráriosdialéticos é maior”139. Como a mônada, a imagem dialéticaapresenta o que está além dela, “o que nela aparece é oseu tempo interior [...] a história é seu conteúdo”140.Analisar tais imagens equivale a perceber a históriaarmazenada em seu núcleo monadológico, o que nelasirrompe é a sua historicidade interna: “a sua históriaexterna sedimentada”141. “A imagem dialética é a forma doobjeto histórico que satisfaz às exigências de Goetheconcernentes ao objeto de uma análise: revelar umasíntese autêntica. É o fenômeno originário (Urphänomen)da história”142.

Recapitulando, a imagem dialética forma-se quando,frente a tensões, o pensamento pára, e elas se congelamcomo mônada, capaz de expressar o todo onde estáinserida, na qual o Agora do Passado pode ser percebido.A imagem de sonho agarrada no momento do despertar é a

139 BENJAMIN. Passagens, [N 10a, 3], p.595. 140 ADORNO. Teoria estética, p.103; houve aqui ligeiro deslocamento de conceitos: ainda que fazendo uma analogia com as imagens dialéticas de Benjamin, Adorno está referindo-se, explicitamente, às obras de arte. 141 ADORNO. Teoria estética, p.104.142 BENJAMIN. Passagens, [N 9a, 4], p.592. Goethe acreditava na existênciade uma forma originária para tudo o que vive na terra. Por exemplo, aforma de cada planta se desenvolve de acordo com um modelo determinadopela estrutura do proto-fenômeno; o subseqüente desenvolvimento de umaespécie está inteiramente contido, de forma concentrada no Urphänomen.Adorno, por sua vez, aplica o conceito benjaminiano às obras de arte noque se refere à sua relação com a história. Cf. Teoria Estética, p.103ss.

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imagem no Agora de sua cognoscibilidade, e traz em si“no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso,que está no fundo de toda leitura”143. Como em Benjamin ahistória é também a narração da história, apossibilidade de uma outra história depende diretamentede uma outra forma de perceber e narrar a história. “Naracionalidade das ‘imagens dialéticas’, a razãoreabilita a noção de imagem e restitui à aparência seutônus de conhecimento”144.

A imagem dialética não deve ser confundida com asimagens arcaicas teorizadas por Jung e Klages. É certoque o saber que vem à tona no momento do despertar temraízes no inconsciente, ou na “revelação das imagensarcaicas”145; mas Benjamin atribui às imagens dialéticasum índice histórico que as diferencia radicalmente dosarquétipos tematizados pelos mencionados teóricos. E,ainda mais fundamental, é que as imagens dialéticas nãosão dadas como tais à experiência: elas são resultado deuma construção que exige um choque para que elas seconstituam como objetos históricos, e enquanto taispossuem como conteúdo a própria história e nãoinvariantes arcaicas. Em carta a Scholem, de 2-07-1937,o filósofo escreveu que pretendia sedimentarmetodicamente certos fundamentos das Passagens através de

143 BENJAMIN. Passagens, [N 3, 1], p.577-578; parte do fragmento está tambémem [N 2a, 3], p.576-577.144 MATOS. O iluminismo visionário, p.116.145 BOLLE. Fisiognomia da metrópole moderna, p.68.

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uma controvérsia em que se posicionaria contra osensinamentos de Jung, “sobretudo os referentes aosarquétipos e ao inconsciente coletivo”146. É pelo viéshistórico que Benjamin aborda o imaginário do séculoXIX.

Era seu propósito ver, “nas profundezas das sombrashistóricas”, as formas do Agora, isto é, ver nas ruínasdo que passou o que permanece atual. “A imagem é adialética em suspensão [...] a dialética paralisa-se naimagem”147. Ela constitui uma síntese figurativa docindido. Ao invés da relação exclusivamente temporal econtínua do passado com o presente, a imagem cristalizaas tensões do Passado, e revela a ligação descontínua,discreta, entre o Passado e o tempo de Agora. O trânsitoentre ambos é estabelecido por sincronia e não porcontinuidade, sua relação é, portanto de naturezafigurativa, e vai dizer respeito ao sentimento dosujeito que com ela defrontar-se. A imagem dialética “éa cesura no movimento do pensamento”148.

O filósofo assinala que a distinção entre a imagemdialética e as essências fenomenológicas é também devidaà sua marca histórica. Marca que indica não apenas suapertença a uma determinada época, mas também que elas sóserão legíveis em uma determinada época. Temos então o

146 BENJAMIN & SHOLEM. Correspondência, p.269. 147 BENJAMIN. Passagens, [N 2, 7], p.575-576.148 BENJAMIN. Passagens, [N 10a, 3], p.595.

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registro de dois tempos históricos: do tempo cronológicoe do tempo do conhecimento soterológico, do tempomessiânico. Pois, se por um lado a relação do passadocom o presente é puramente temporal; por outro lado, arelação do Passado com o Agora é dialética - e denatureza figurativa. “O fato de vir ‘à legibilidade’representa um ponto crítico determinado”149 no movimentoque anima essas imagens: o que não significa que oconhecimento fatalmente realizar-se-á, isto é, que possaser dispensada a ação decidida do sujeito cognoscente.As imagens dialéticas “não são categorias objetivas, masse localizam em sujeitos históricos”150. Mesmoconsiderando que o desejo de tornar-se legível é o quemantém as imagens vivas, como se a intensidade do queelas expressam desafiasse o tempo, uma decisão énecessária para percebê-las no seu momento fulgurante dasignificação. Pois, ainda que a relação das imagensdialéticas com o tempo de Agora seja objetiva na medidaem que elas constituem parte da pré-história desseúltimo - são seus proto-fenômenos -, é necessário oimpulso decidido para reescrever a história segundo oponto de vista da redenção. Decisão exigida pelaexistência de tais imagens, e que é sempre moral. Para opensamento benjaminiano, conforme registra Menninghaus,

149 BENJAMIN. Passagens, [N 3, 1], p.578.150 BOLLE. "Alegoria, imagens, tableau", in NOVAES (org.), Artepensamento, p.415.

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a verdade se expressa em uma decisão moral; e aexpressão de uma decisão é sempre moral: mesmo que adecisão não seja moral em si através da veiculação ouexigência de moralidade, ela é moral porque “produzunivocidade, clareza e inteligibilidade em si mesma”151.“Cada presente é determinado pelas imagens que lhe sãosincrônicas; cada Agora é o Agora de umacognoscibilidade determinada”152; e a verdade sobrecarregao tempo até explodi-lo enquanto continuidade, essaexplosão “é a morte da intentio, que coincide com onascimento do verdadeiro tempo histórico, o tempo daverdade”153.

Como vimos, além de ser uma função temporal doconhecimento, a verdade está ligada a um núcleo temporalque existe simultaneamente naquele que conhece e naquiloque é conhecido. Benjamin rejeita o conceito de verdadeintemporal e diz “que o eterno é, em qualquer caso, maisum rufo num vestido do que uma idéia”154. Por isso, aapresentação materialista da história é eminentementefigurativa155. O filósofo considera que as coisas sóapresentam seu verdadeiro rosto no Agora dacognoscibilidade que acontece no momento do despertar

151 MENNINGHAUS. "Lo inexpressivo", in Sobre Walter Benjamin, p.47.152 BENJAMIN. Passagens, [N 3, 1], p.578.153 BENJAMIN. Passagens, [N 3, 1], p.578..154 BENJAMIN. Passagens, [N 3, 2], p.578; também em [B 3, 7], p.118.155 BENJAMIN. Passagens, [N 3, 3], p.578.

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capaz de rememorar o sonho156. Encontro entre o Passado eo Agora, a imagem dialética é fulgurante, e é comofulguração que o tempo de Agora deve reter o Passado. Oque pode ser salvo assim - e só assim, nesse momentofulgurante -, se não o for, “será perdido sem esperançano próximo instante”157. Como acontece, às vezes, com ossonhos, que atravessam rapidamente nossa consciência nomomento em que acordamos, sem que possamos retê-los econhecê-los, através da sua interpenetração com o mundodesperto. O objeto da história materialista será aqueleonde “o conhecimento realiza-se como salvação”158.Benjamin considera o Agora como uma concreção superiorporque o acontecimento do Passado adquire, na visãoatualizadora do historiador materialista, um grau maisalto de atualidade do que aquele que possuía no momentoem que aconteceu. A história deve então ser abordada comcategorias políticas, numa aproximação dialética que,promovendo a co-penetração de passado e presente,“acenda a mecha explosiva que está enfurnada noPassado”159.

156 BENJAMIN. Passagens, [N 3a, 3], p.579; também em [N 18, 4], p.608.157 BENJAMIN. Passagens, [N 9, 7], p.591-592.158 BENJAMIN. Passagens, [N 11, 4], p.595-596.159 BENJAMIN. Passagens, [K 2, 3], p.494-495.

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