Direitos humanos e violência constitucional: uma análise da legitimação das práticas...

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DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DA LEGITIMAÇÃO DAS PRÁTICAS CONSTITUCIONAIS NO OCIDENTE Daniel Carneiro Leão Romaguera João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira Artigo Cientíco Original

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DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA CONSTITUCIONAL:

UMA ANÁLISE DA LEGITIMAÇÃO DAS PRÁTICAS CONSTITUCIONAIS NO OCIDENTE

Daniel Carneiro Leão RomagueraJoão Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira

Artigo Científi co Original

Romaguera, Teixeira

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RESUMO

Este ensaio gravita em torno do parado-xo presente no discurso de direitos huma-nos ante a realidade violenta de sua im-plementação no Constitucionalismo. Neste sentir, buscou-se investigar a lógica por trás da promoção constitucional confor-me se revela a violência externalizada das práticas legítimas. Para isso, fez-se análise da interpretação derridiana da obra “Para uma Crítica da Violência” de Walter Benjamin, no intuito de, com-preender a manifestação de violência nas Constituições que não só tem sido dissimulada, mas ocultada pelo discurso constitucional. Diante dessa proposta crí-tica foi contemplado também o ideal de democracia em meio às exigências cons-titucionais e institucionalização calculável de seu regime. Nesse sentido, então, foi considerada a aporia da pretensa vali-dação do conteúdo dos direitos humanos

DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DA LEGITIMAÇÃO DAS PRÁTICAS CONSTITUCIONAIS NO OCIDENTE

HUMAN RIGHTS AND CONSTITUCIONAL VIOLENCE: AN ANALYSIS OF LEGITIMACY REGARDING CONSTITUTIONAL PRACTICES IN THE WEST

Daniel Carneiro Leão RomagueraMestre em Jurisdição e Direitos Humanos pela UNICAP/PE tendo feito Mestrado-Sanduíche na UNISINOS/RS, sob a orientação do Prof. João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira. Email:[email protected]. http://lattes.cnpq.br/9765163208038480

João Paulo Fernandes de Souza Allain TeixeiraCoordenador da Pós-Graduação em Direito da UNICAP, Professor de Direito do Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), Professor Adjunto do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco (CCJ/UFPE), Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professor do Mestrado de direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Doutor e Mestre em Direito pela UFPE. Revisor “ad hoc” do Ministério da Educação. Mestre em Teorias Críticas Del Derecho pela Universidade Internacional de Andalucía sob a orientação de Joaquín Herrera Flores. Email: [email protected]. Currículo: http://lattes.cnpq.br/3719496592232660.

ABSTRACT

This essay revolves around the paradox found in human rights in face of the vi-olent reality of its implementation in Constitutionalism. In this sense we sought to investigate the rationality behind the constitutional promotion as reveals the ex-ternalized violence of legitimized practic-es. For this, is proposed the analysis of Derrida’s interpretation of the work “The Critique of Violence” written by Walter Benjamin in order to understand the man-ifestation of violence in constitutions that not only has been disguised but hidden by constitutional discourse. Given this critical proposal it’s also contemplated the ide-al of democracy among the constitutional requirements and calculable institution-alization of its regime. In this sense was considered the aporia of the alleged val-idation of the content of human rights in democratic constitutional order according

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na ordem constitucional democrática em face da violência presente desde o cons-titucionalismo moderno. Afi nal, tais direi-tos se estabeleceram como suporte legi-timador de práticas desconformes com seus próprios ideais valorativos, ao passo que transcenderam a dimensão histórica de sua produção na modernidade. Dito isto, a hipótese é de que a lógica da vio-lência manifestada no constitucionalismo tem sido determinante para a afi rmação dos direitos humanos na atualidade.

Palavras-Chave: Direitos Humanos. Cons-titucionalismo. Violência. Modernidade Ocidental.

to violence since modern constitutionalism. Therefore these rights were established as legitimizing support of practices against their evaluative ideals while transcended the historical dimension of its production in modernity. That said the hypothesis is that the logic of violence manifested in con-stitutionalism has been determinant in the affi rmation of human rights today.

Keywords: Human Rights. Constitutional-ism. Violence. West Modernity.

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo foi elaborada crítica à vio-lência presente no constitucionalismo e seu papel na dimensão alcançada pelos direitos humanos. Isto porque, muito em-bora os direitos humanos sejam tidos por ser o êxito do modelo civilizatório, em seu nome são realizadas práticas desconfor-mes com seus ideais valorativos.

A problemática insurge do disparate en-tre o reconhecimento desses direitos e a realidade de seu entorno, conforme a lei-tura feita, tal cenário não se resume a um problema de efetividade.

No início, foi feita a articulação entre o suporte moral conferido pelos direitos humanos e as práticas do constituciona-lismo, com o propósito de entender a relação da produção do saber humanis-ta com o exercício de poder no âmbito constitucional.

Para tanto, foi feita análise da interpreta-ção derridiana da obra “Para uma Crítica da Violência” de Walter Benjamin, no in-tuito de, compreender a manifestação de violência nas constituições, esta, dissimu-lada e ocultada pelo constitucionalismo.

Sob essa gênese, que se busca compreen-der a dimensão dos direitos humanos ao serem questionados os fatores que leva-ram a solidifi cação dos valores morais do ocidente. Contudo, não por expor aquilo que o mundo moderno concebe em seu âmago, mas, por suportar a apropriação de poder e legitimar a violência das prá-ticas constitucionais. Esta, determinante para sua afi rmação.

Dito isto, a hipótese proposta é de que a expansão dos direitos humanos está an-corada na violência das práticas constitu-cionais. Assim, relaciona-se neste escrito a lógica moderna do constitucionalismo com a formação contemporânea dos direitos humanos.

2 A RELAÇÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO

E DIREITOS HUMANOS

Inicialmente, cumpre revelar o propósito crítico deste ensaio e delimitar os contor-nos de apreciação do objeto pretendido, com a pretensão de que se compreenda o papel do constitucionalismo na dimen-são alcançada pelos direitos humanos.

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Para isso, propõe-se investigar a institu-cionalização conseqüente das conquistas sociais do ocidente na modernidade e o funcionamento do constitucionalismo na expansão dos direitos humanos.

As revoluções do Século XVIII conduzem ao surgimento do estado liberal na mo-dernidade1, nesse período, segundo Costas Douzinas poderíamos falar no nascedouro dos direitos humanos (à épo-ca, os direitos do homem, ou seja, direitos naturais de feição liberal), que consistiam em valores que foram opostos à opres-são e dominação na Revolução Francesa, mas, que,vêm a fazer parte do discurso triunfal da atualidade2.

De acordo com o autor, no que sucedeu as declarações e o projeto iluminista do Séc. XVIII, houve a racionalização do su-jeito moderno incorporado pela concep-ção de direitos humanos nos Séculos XIX e XX (Douzinas, 2009, p. 165). Destaca-se, o processo de institucionalização subse-quente ao referido:

Direitos naturais e humanos foram concebidos como uma defesa contra o domínio do poder, a arrogância e a opressão da riqueza. Após sua inauguração institucional eles foram sequestrados por governos cientes dos benefícios de uma política mo-ralmente confi ável (Douzinas, 2007, p. 16).

Desse modo, cabe averiguar o processo de expansão desses direitos no consti-

1 Comumente, aponta-se, a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, também, suas respectivas declarações, como momento determinante à for-mação dos direitos humanos. A destacar, portanto, obras que revelam a tradição dos direitos humanos atreladas ao discurso eurocêntrico do constitucionalismo: A era dos direitos (Bobbio, 2004); The philosophy of right (Hegel, 1967); Filosofi a dos direitos humanos (Bielefeldt, 2000); A afi rmação histórica dos direitos humanos (Comparato, 2007).2 A história dos direitos humanos fez da resistência à dominação e opressão seu fi m principal. No entanto, a partir de modernidade precoce em diante, os direitos naturais sustentaram a soberania do Estado moderno. Esta tendência foi reforçada na pós-modernidade e os direitos humanos tornaram-se a ordem moral de um novo império em construção (Melbourne University Law Review, 2002, p. 445, tradução nossa).

tucionalismo. Mas, antes de iniciar essa investigação, há que se fazer menção a necessidade de romper com a tradição de ortodoxia da história do ocidente3, sob o cuidado de perceber que o discur-so se manifesta nas estruturas de poder inserto à realidade política e social que o circunscreve.

Nesse sentido, é imprescindível o amparo na visão em perspectiva dos acontecimen-tos sociais, consigna Heiner Bielefeldt que a ideologia dos direitos humanos padece de compreensão da dimensão social em que se encontra4, pois ao:

(...) interpretá-los retroativamente como direitos humanos implícitos ou potenciais signifi caria adotar a inge-nuidade do pensamento histórico tele-ológico que, conforme Kaviraj, desá-gua numa cobrança essencialista-cultu-ral da idéia dos direitos humanos, ou em algo como um Espírito do Ocidente (Bielefeldt, 2000, p. 149).

Sob essa gênese, questiona-se os fatores que levaram a solidifi cação dos valores morais do ocidente. Nesses termos, não se quer desconsiderar a importância de institutos como, por exemplo, o contrato social, a vontade geral, as declarações de direitos, por serem inegáveis elemen-tos instituidores da ordem estatal mo-derna5. Contudo, não por expor aquilo que o mundo moderno concebe em seu

3 Nada mais emblemático do que a teoria dos direitos fundamentais com o evolucionismo presente nas gerações que os caracterizam. Trata-se de uma suces-siva cadeia que conduz ao ímpeto evolucionista da humanidade. É, assim, que o discurso nega seu próprio contexto através de um historicismo linear (Sousa Santos, 2000, p. 564).4 De igual maneira, a obra de Augustin Cochin nos revela a necessidade de afe-rição dos fenômenos sociais em atento aos fatores de poder: “O corpo, Ia société de pensée, explica o espírito, as convicções compartilhadas. A Igreja precede aqui, e cria, o seu Evangelho; está unida para a verdade, não pela verdade. A Regene-ração, o Iluminismo, era um fenômeno social, não um fenômeno moral ou intelectual” (Cochin, 1921, p.14).5 Ao criticar o liberalismo Costas Douzinas revela a crosta dominante do idea-lismo moderno: “O mundo em que habitam é um lugar atmocêntrico, constituído por contratos sociais e posturas originais motivados pela cegueira subjetiva dos véus da ignorância, atribuídos a situações de discursos ideais e que retornam a uma certeza pré-moderna de respostas corretas únicas a confl itos morais e jurídicos” (Douzinas, 2007, p. 15).

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âmago, mas por suportar a apropria-ção de poder e legitimar as práticas dominantes6.

Acerca disso, torna-se imperioso questio-nar a memória incorporada e retomar a história: “(…) em nome de uma exigên-cia mais insaciável de justiça, à reinter-pretação de todo o aparelho dos limites nos quais uma história e uma cultura pu-deram confi nar criteriologia” (Derrida, 2010, p. 36).

A demonstrar esse tipo de investigação, Derrida aborda o conceito de emancipa-ção7, em remissão à mitologia iluminista e ao projeto racionalista da modernida-de. Tal ideal emancipatório foi, e, ainda é determinante para o constitucionalismo: “Emancipação signifi ca para os moder-nos o abandono progressivo do mito e do preconceito em todas as áreas da vida e a substituição destes pela razão. Em ter-mos de organização política, libertação signifi ca a sujeição do poder a razão da lei” (Douzinas, 2007, p. 23).

Nesse mesmo viés, propõe-se neste en-saio fazer esse tipo de investigação com relação ao constitucionalismo, em espe-cífi co, do papel da violência constitucio-nal na expansão dos direitos humanos.Para isso, porém, faz-se imperioso com-preender o projeto racionalista da mo-dernidade em razão do disparate entre o idealismo presente no discurso huma-nista de direitos humanos e as práticas constitucionais.

No entendimento de Lynn Hunt foi com Immanuel Kant que a narrativa iluminista

6 Revela-se a: “(...) funcionalização da ciência, a par da sua transformação na principal força produtiva do capitalismo, diminuiu-lhe a radical e irreversivelmente o seu potencial para uma racionalização emancipatória da vida individual e colec-tiva” (Sousa Santos, 2000, p. 119).7 “Nada me parece menos perempto do que o clássico ideal emancipatório. (...) não se pode desqualifi cá-lo hoje (...) é verdade que também é necessário, sem renunciar a esse ideal, pelo contrário, reelaborar o conceito de emancipação, de franqueamento ou de libertação, levando em conta as estranhas estruturas que descrevemos neste momento. Mas, para além, dos territórios hoje identifi cáveis da jurídico-politização em grande escala geopolítica, para além de todos os desvios arrazoados e interesseiros (...) outras zonas devem abrir-se constantemente, que podem a primeira vista parecer zonas secundárias ou marginais. Essa margem signifi ca também que uma violência e um terrorismo ou outras formas de sequestro estão em ação” (Derrida, 2010, p. 57).

atingiu o seu auge, no ensaio denominado “O que é o Iluminismo?” (Kant, 1990)8, a humanidade sai da imaturidade que es-tava incapaz de compreender-se para a autonomia intelectual do sujeito racional (Hunt, 2009).

Ao racionalizar moralmente o ego cogi-to de Descartes, o homem afasta-se da “incapacidade de empregar a própria compreensão sem a orientação de outro”, teria assim alcançado a autonomia inte-lectual, ou seja, a capacidade de pensar por si mesmo (HUNT, 2009. p. 116).

Apesar da relevância na transposição do Ancien Régime, a crítica racionalista não enfrenta o problema de sua origem, pois compreende “(...) investigação feita pela razão sobre seu próprio funcionamen-to” (Douzinas, 2007, p. 23). Na visão de Gilles Deleuze:

Kant denuncia as falsas pretensões ao conhecimento, mas não põe em causa o ideal de conhecer; denuncia a fal-sa moral, mas não põe em questão as pretensões da moralidade nem a natureza e a origem dos seus valores. Acusa-nos de ter misturado domínios, interesses; mas os domínios continuam intactos, e os interesses da razão, sa-grados (o verdadeiro reconhecimento, a verdadeira moral e a verdadeira religião) (Deleuze, 2011, p. 20).

Com essa digressão, aponta-se o pro-blema da ciência por não ter consciên-cia de si mesma. Que, assim, é capaz de funcionar como instrumento que fortifi ca a construção excludente do sujeito libe-ral e legitima o idealismo dos direitos naturais.

8 Trata de opúsculo de Immanuel Kant, “Resposta a uma questão: o que é o iluminismo?”, que demonstra o ideal imperativo racionalista. Inclusive, o referido manifesto europeu foi objeto de debate por Michel Foucault, acerca da crítica ao projeto da modernidade nos artigos denominados “1984 - O que são as luzes?” (Foucault, 2000) e “Os intelectuais e o poder” (Foucault, 1979).

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Lynn Hunt pontua a ênfase do Iluminismo na autonomia individual com a trajetória iniciada no pensamento político do sécu-lo XVII de Hugo Grotius e John Locke, ao argumentar-se que o acordo social de um homem autônomo com outros era o único fundamento possível da autoridade polí-tica legítima. E, nesse prelo, sucedem os direitos naturais:

Já em 1625, um jurista calvinista ho-landês, Hugo Grotius, propôs uma noção de direitos que se aplicava a toda a humanidade, não apenas a um país ou a uma tradição legal. Ele defi nia “direitos naturais” como algo autocontrolado e concebível separa-damente da vontade de Deus (Hunt, 2009, p. 117).

Nas teorias contratualistas de direi-to natural consolidou-se uma pseudo pressuposição homogênea de consen-so com base na racionalidade auto-consciente do humano. Isso porque, tais teorias surgem da racionalização da vida social pelo sujeito. Enquanto, tornou-se perceptível sujeição aos pa-drões impostos9.

Vê-se, portanto, uma racionalidade cog-nitiva em apelo ao individualismo, em que “(...) as leis civis extraem, em última ins-tância, a sua universidade e legitimida-de da correspondência com leis naturais” (Sousa Santos, 2000, p. 138)10.

Acerca da sujeição à lei, Peter Fitzpatrick denota o falso transcendental e universal do humano presente no iluminismo, que nos revela a lógica do mítico racionalista:

9 Na concepção hobbesiana, as liberdades individuais e o direito de proprie-dade dos justifi cam a formação do contrato social e a sociedade civil, através do Leviatã que constitui um sujeito soberano em seu governo capaz de garantir as medidas necessárias para a preservação da propriedade individual e da segu-rança. Não de forma diferente, na visão de John Locke, o contrato social se origina da necessidade da proteção de propriedade que condiz com o exercício da liber-dade e da autonomia da vontade (Locke, 2009, p. 25).10 A nosso ver, tal prenúncio resta presente na dimensão dos direitos humanos como fator justifi cador do soberano.

Esse mundo recentemente criado en-tra em confronto com um reino mítico de sentido fechado, ainda que múl-tiplo, um reino em que a origem e a identidade estão localizadas no plano transcendente. No Iluminismo, o trans-cendente foi trazido para a terra. O “ser humano” teria de ser a medida do ser humano. Não havia mais ne-cessidade de mediação mítica entre o real e o transcendente. O sentido fora então unifi cado. O transcendental e o limite que ele impunha ao pensamento e à existência representavam os freios temerosos que os homens haviam im-posto a si mesmos em eras passadas. (...) A realidade e suas divisões não mais obtinham sua identidade do seu lugar dentro de uma ordem mítica abrangente - elas eram manifestações de um processo de descoberta e re-alização. Quando esse processo atin-ge os limites de sua apropriação do mundo, o Iluminismo cria os verdadei-ros monstros ao quais ele se contrapõe tão assiduamente. Esses monstros da raça e da natureza indicam os limites exteriores, o “outro” intratável contra o qual o Iluminismo volta a vacuidade do universal e, nessa oposição, confe-re ao seu próprio projeto um conteúdo palpável. Uma existência esclareci-da é aquilo que o outro não é. A lei moderna foi criada nessa disjunção (Fitzpatrick, 2007, p. 74).

Destarte, a unifi cação da modernidade é conduzida nesse arbítrio demonstrado pelo autor, na abertura da mítica valo-rativa dos ideais humanistas é possível identifi car a predisposição dominante na modernidade11. Faz-se menção, a tí-tulo exemplifi cativo, das diversas crí-ticas ao ideal moderno e ao mito da racionalidade:

11 Podemos perceber ambas as feições conjugadas: “Se o mito obtém seu poten-cial a partir de histórias de origem, a legitimação da razão é encontrada na promessa de progresso exposta em fi losofi as das histórias” (Douzinas, 2007, p. 24).

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O melancólico diagnóstico de Nietzsche de que ingressamos no crepúsculo da razão, o desespero de Adorno e Hokheimer na Dialetics of the enlight-ment e a afi rmação de Foucault de que o “homem” moderno era um mero rabisco nas areias do mar de histórias prestes a ser levado pelo roldão (...) Os sábios da Escola de Frankfurt ar-gumentavam o confl ito entre logos e mythos não poderia levar à terra pro-metida da liberdade, porque a razão instrumental, uma faceta da razão da modernidade, se transformou em seu mito destrutivo. (...) A marcha inexorá-vel da razão e sua tentativa de pacifi -car as (...) formas modernas de confl ito (...) levaram à manipulação psicológi-ca e aos gulags, ao totalitarismo políti-co e a Auschwitz, e fi nalmente à bom-ba nuclear e à catástrofe ecológica (Douzinas, 2007, p. 24).

Aqui, o prenúncio da racionalidade mo-derna será criticado diante do cinismo na produção do saber e reivindicações governamentais, o que, segundo este es-crito, persiste na dimensão universalista dos direitos humanos e constitucionalismo democrático.

Samuel Moyn consigna o disparate entre o reconhecimento desses direitos e a rea-lidade de seu entorno “Os direitos eternos do homem foram proclamados na era do Iluminismo, mas eram tão profundamente diferentes em seu resultado prático, in-clusive, com as sangrentas revoluções que constitui outra concepção” (Moyn, 2010, p. 04, tradução nossa) 12.

Nessa conexão é que o contrassenso do constitucionalismo desponta ser fator de-terminante à construção política da socie-dade atual e suas discrepâncias. Veremos, que, a partir da origem das constituições

12 “The eternal rights of man were proclaimed in the era of Enlightenment, but they were so profoundly differente in ther pratical outcome-up to and including bloody revolution-as to constitute another conception altogheter” (Moyn, 2010, p. 04).

reafi rmam-se os valores consignados su-postamente a atender as promessas fi r-madas na modernidade, mas, que, são impassíveis de consagração em seu regi-me institucional de práticas violentas13.

Sob esse viés, o constitucionalismo con-siste, também, na apreensão política à formação e condução dos estados de-mocráticos, não se limitando a justifi car e aplicar o direito posto.

É preciso reconhecer a dimensão do cons-titucionalismo na afi rmação política do-minante das democracias constitucionais. Pois, é nesse espaço que será permissiva a defi nição do legítimo através da con-junção entre o poder exercido e a moral dominante.

Pois, tal espectro de abertura em que se manifesta o domínio, defi ne o legítimo do constitucional, mas, paradoxalmente, é onde a democracia pode fl orescer em oposição ao institucionalizado pelo cons-titucionalismo na afi rmação dos direitos humanos.

Na análise da democracia no porvir de Jacques Derrida14, acerca da afi rmação do político nos espaços de sua criação, propõe-se compreender a democracia para além da pretensa ordem constitu-cional em que se governa sob os auspícios da soberania popular15. Pois, ao passo que fomenta práticas de poder contrá-rias aos valores que propugna, a questão democrática tende a esvaecer-se.

É justamente diante dessa aporia que se tem por ignoradas as ações espúrias que

13 Costas Douzinas aponta que a Constituição confere voz à soberania e legiti-mação ao exercício estatal, em suas instituições e princípios que são fundamentais (Douzinas, 2010, p. 03).14 “A democracia é, para Derrida, o único regime ou quase-regime político aberto a sua historicidade na forma de transformação política, e aberto à sua própria reconceitualização por meio da autocrítica, chegando até e incluindo a idéia e o nome ‘democracia’” (Naas, 2006. p. 33).15 Douzinas refere à tomada do todo pela parte “(...) a confusão, do rolar juntos através da fi gura retórica de metalepse (a parte está no todo) está implícita em todas as declarações legais” (Douzinas, 2010, p. 05, tradução nossa). Já dizia Tocqueville, para falar de leis e políticas nos Estados Unidos é preciso começar pelo Dogma da Soberania do Povo, em sua obra “De la démocratie em Amérique”: “O povo é o fi m de todas as coisas; tudo dele emana e tudo nele se absorve” (Derrida, 2005, p. 59).

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submergem aos cultuados direitos huma-nos no constitucionalismo:

A irrealidade ontológica do homem abstrato dos direitos conduz inexo-ravelmente à sua utilidade limitada. Direitos abstratos são, assim retirados de seu lugar de aplicação e das cir-cunstâncias concretas das pessoas que sofrem e se ressentem de que eles não conseguem corresponder a suas reais necessidades (Douzinas, 2007, p. 166).

Conduz-nos, assim, a relembrar que não há direito que não implique nele mesmo. Tal qual, é com a possibilidade de força que a Constituição contradiz o preceitua-do pelo próprio direito e se mantém:

Ora, a operação de fundar, inaugurar, justifi car o direito, fazer a lei, consisti-ria num golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é justa e nem in-justa. (...) nenhum discurso justifi cador pode, nem deve, assegurar o papel da metalinguagem com relação a perfor-matividade da linguagem instituinte ou à sua interpretação dominante. O dis-curso encontra ali seu limite: nele mes-mo,em seu próprio poder performativo (Derrida, 2010, p. 24/25).

E, assim o é, “Já que a origem da auto-ridade, a fundação ou o fundamento, a instauração da lei não podem, por defi -nição, apoiar-se fi nalmente senão sobre elas mesmas, elas mesmas são uma vio-lência sem fundamento” (Derrida, 2010, p. 26).

Dito isto, perceber-se-á através da análi-se da violência o longo deste artigo, que este problema está na origem do estado de direito:

Pois no fundamento ou na instituição desse direito o mesmo problema da justiça se colocará, violentamente re-solvido, isto é, enterrado, dissimulado, recalcado. O melhor paradigma é, aqui, a fundação dos estados-nações, ou o ato instituinte de uma constituição que instaura o que se chama, em fran-cês, o etát de droit [estado de direito] (Derrida, 2010, p. 45).

E, apesar da clara tendência dos juris-tas em atribuir as extenuações e abusos na democracia constitucional a um défi ce de efetividade social no funcionamento das instituições, não é essa a compleição do constitucional. Nesse sentido, será in-vestigada a moldura constitucional dos direitos humanos para adequação aos fi ns políticos desejados, ou seja, fi xa-dos nos termos do legítimo estabeleci-do pela ordem constitucional (Douzinas, 2007, p. 13).

Dito isto, ao longo deste trabalho, procu-rou-se atentara lógica do constitucionalis-mo hábil em dissimular e ocultar a violên-cia das práticas manifestadas em nome dos direitos humanos.

3 POR UMA CRÍTICA DA VIOLÊNCIA

Neste tópico, então, a proposta é ana-lisar a lógica do exercício de violência legítima do constitucionalismo.Tal leitura pressupõe a análise da relação entre violência e direito, de como, o poder se manifesta no exercício soberano através da lei16.

O marco teórico seguido foi a interpreta-ção feita por Jacques Derrida no escrito “Força de lei” do texto “Para uma crítica da

16 David Kennedy no livro “Of War and Law” traz análise crítica da ordem legal internacional e aponta como os humanitários estão dentro do warfare, pois é con-ferida roupagem legal a guerra. Assim, a lei perpetua a guerra de outras formas, através da legitimação da violência. O autor demonstra a relação entre warfare e humanitarismo ao longo do texto, destaca-se que o elemento político não pode ser desconsiderado na leitura da lei (Kennedy, 2006).

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violência”17 de autoria de Walter Benjamin (Derrida, 2010). Analisado aqui, com o in-tuito de expor a temática da violência nas práticas constitucionais sob o manto da le-gitimidade dos valores modernos.

Inicialmente, há que se fazer a distinção entre direito e justiça. O direito faz parte do apreensível e calculável, aquilo que é produzido convencionalmente sob o pre-núncio de busca pelo ideal de justiça. Por outro lado, a justiça é o inapreensível, nos dizeres de Derrida “experiência do impos-sível”, incapaz de ser alcançada pelo di-reito, pois se mantém pelo fundamento de sua autoridade. A partir desta distinção pode-se perceber onde incide a violência:

O direito não é justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça do incalculá-vel, ela exige que se calcule o incalcu-lável; e as experiências aporéticas são experiências tão improváveis quando necessárias a justiça, isto é, momentos em que a decisão entre o justo e o in-justo nunca é garantida por uma regra (Derrida, 2010, p. 30).

Importante notar, também, a abertura que viabiliza a interposição do direito pela violência conforme são fi xados os limites do legítimo. Na interpretação de Derrida, portanto, a violência abarca tanto o ato fundador como conservador do direito. Logo, responsável pela afi r-mação da Constituição, no poder consti-tuinte e no poder constituído18.

Mas, de igual maneira, a violência está legitimada pelo direito como força supe-rior às demais,justamente por ser neces-sária à existência da própria ordem19:

17 Nos escritos sobre mito e linguagem, Walter Benjamin elaborou o referido texto atinente à violência do direito, em alemão: “Zur Kritik der Gewalt”.18 Tal divisão não comporta fundamento, visto que se mantém a afi rmação da violência através dos padrões do legítimo.19 A lembrar de ser o termo Gewalt [violência] utilizado tanto para violência como para poder legítimo. (Benjamin, 2011).

A tarefa de uma crítica da violência pode se circunscrever à apresentação de suas relações com o direito e com a justiça. Pois, qualquer que seja o modo como atua uma causa, ela só se trans-forma em violência, no sentido preg-nante da palavra, quando interfere nas relações éticas. A esfera dessas rela-ções é designada pelos conceitos de di-reito e justiça (Benjamin, 2011, p. 121).

A par disso, permite-se ultrapassar a limi-tada crítica da violência que se estabelece com foco na relação entre meio e fi m, tan-to do jusnaturalismo como do positivismo. Isto porque, ao professar a existência de fi ns justos nos direitos naturais, o jusnatu-ralismo persiste no engano de que o ide-al valorativo desses direitos seria o limite do exercício da violência e não o próprio fundamento ambivalente do direito e da violência (Benjamin, 2011, p. 123).

Não de maneira diversa, perpassa tam-bém as proposições do direito positivo que visa à adoção de meios legítimos para que sejam alcançados os fi ns do di-reito. Assim, a crítica dos meios determina a justiça dos fi ns. Benjamin destaca que é preciso sair desse âmbito:

Se o direito natural pode julgar cada direito existente apenas por meio da crítica aos seus fi ns, o direito positivo, por sua vez, pode avaliar qualquer di-reito nascente apenas pela crítica aos seus meios. Mas, sem prejuízo desta oposição, as duas escolas se encon-tram num dogma comum fundamental: fi ns justos podem ser alcançados por meios justifi cados, meios justifi cados podem ser aplicados para fi ns justos (Benjamin, 2011, p. 124).

A concluir que, o direito natural descon-sidera a condicionalidade dos meios e o direito positivo nega a incondicionalida-

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de dos fi ns, muito embora, seja essa a sua origem. Ora, o valor admitido pelo direi-to positivo à crítica da violência também deve ser criticado:

Em todo o campo de forças [Gewalten] levadas em consideração pelo direito natural ou pelo direito positivo, não se encontra nenhuma que escape da grave problemática da violência do direito. Mas como qualquer represen-tação de uma solução pensável para as tarefas humanas – sem mencionar uma redenção do círculo amaldiçoa-do de todas as situações existenciais já ocorridas na história mundial – é irrealizável quando se excluí, por prin-cipio, toda e qualquer violência (…) (Benjamin, 2011, p. 145).

Para que se chegue a esse raciocínio, en-tão, é necessário remeter a formação da ordem constitucional e seu ato fundador, por ser este desprendido de qualquer fundamento jurídico, pois não é condicio-nado à validação por uma ordem ante-cedente. Nesse sentido, o ato de elabo-rar a constituição é um ato de força; de decisão. Uma vez irrompido este ato fun-dador, a violência integra o direito para garanti-lo:

Em contraposição, talvez se devesse le-var em conta a possibilidade surpreen-dente de que o interesse do direito em monopolizar a violência com relação aos indivíduos não se explicaria pela intenção de garantir os fi ns de direito mas, isso sim, pela intenção de garantir o próprio direito; de que a violência, quando não se encontra nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja este, o ameaça perigosamente, não em razão dos fi ns que ela quer alcançar, mas por sua mera existência fora do di-reito (Benjamin, 2011, p. 127).

Desde o início, revela-se o paradoxal en-tre o direito e a violência, com a apreen-são dos valores de direito nas relações de força imersas às estruturas de poder, em confl ito, pois, com seus próprios fi ns, já que o direito deve monopolizar a violên-cia. Até porque:

A possibilidade de um direito de guer-ra repousa exatamente nas mesmas contradições objetivas na situação de direito que a possibilidade do direito de greve- na medida em que os su-jeitos de direito sancionam violências cujos fi ns permanecem, para aqueles que sancionam, fi ns naturais, e por isso podem, em casos graves, entrar em confl ito com seus próprios fi ns de direi-tos naturais (Benjamin, 2011, p. 130).

É, para evitar esse risco que o constitu-cionalismo deve adotar um discurso que justifi que sua representatividade e exer-cer a “violência de direito”20. Afi nal, tra-ta-se da aporia da fundação, e, por não haver fundamento último à validação da Constituição é essencial a dissimulação da violência nas práticas jurídicas21.

Além disso– nos termos já discorridos do tópico anterior– cumpre reiterar que é com a razão auto fundadora do funda-mento místico da autoridade que se de-nega os contornos históricos do direito:

(...) um diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador, outro,

20 O termo “Violência de direito” é o título do artigo do Professor Vladimir Safatle, no qual, observa a criminalização recente dos movimentos sociais e pro-testos. A considerar que, direito e justiça não estão dissociados (Safatle, 2014).21 A análise da aprendizagem e da aquisição de disposições conduz ao princí-pio propriamente histórico da ordem política. Pascal tira uma conclusão tipicamente maquiavélica a partir da descoberta de que o arbítrio e a usurpação estão na origem da lei, de que é impossível fundar o direito na razão e no direito, de que a Constituição, sendo decerto o que mais se assemelha, na ordem política, a um primeiro fundamento cartesiano, não passa de uma fi cção fundante destinada a dissimular o ato de violência fora da lei que está na raiz da instauração da lei: na impossibilidade de facultar ao povo o acesso à verdade libertadora sobre a ordem social (“veritatem qua liberetur”), pois isso apenas serviria para ameaçar ou arruinar essa ordem, é preciso “trapaceá-lo”, dissimular-lhe a “verdade da usurpa-ção”, ou seja, a violência inaugural na qual se enraíza a lei, fazendo com que seja “vista como autêntica, eterna (Bourdieu, 2007, p. 203/204).

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a comodidade do soberano, outro, o costume presente; e é o mais seguro; nada, segundo somente a razão, é justo por si; tudo se move com o tem-po. O costume faz toda a equidade, pela simples razão de ser recebida; é o fundamento místico da autoridade. Quem a remete a seu princípio a ani-quila (Pascal, 2005, p. 467).

Nesse sentido, toda a ordem legal e cons-titucional parte desse ato de força que surge para fundamentar e apreender o direito, este, detido nas categorias legais e devidamente protegido. Tanto é que, o poder constituinte não é exposto pela or-dem jurídica, está para além, e, portanto, não se permite por em xeque.

Dito isto, é da relação de força que nasce o direito como a possibilidade le-gítima: no poder constituinte. Muito em-bora, seja continuamente negado como tal, já que o constitucionalismo propug-na que “deve ser reduzido a norma de produção do direito, interiorizado no poder constituído” (Negri, 2002, p. 10). Quando sabemos que é “um poder que surge do nada e organiza todo o direi-to” (Negri, 2002, p. 08).

Negri revela-nos a feição do “(...) jogo de afi rmar e negar, de tornar algo como absoluto e depois estabelecer-lhe limites – que é tão próprio do seu trabalho ló-gico – como o fez a propósito do poder constituinte” (Negri, 2002, p. 10).

Isso acontece porque a Constituição é su-portada pela violência que estabelece os contornos do direito, logo não pode ser tida por externa a ordem jurídica. Pois, é justamente nessa acepção que o poder do direito se reafi rma pela violência con-servadora eremissiva ao ato fundador. Assim, é instituído e mantido o direito.

É por isso que na refl exão de Benjamin: “Toda violência como meio é ou instaura-

dora ou mantenedora do direito. Se não pode reivindicar nenhum desses predica-dos, ela renuncia por si só qualquer vali-dade” (Benjamin, 2011, p. 136).

Assim, a violência rompe com a experiên-cia do impossível, negada e ocultada com a instrumentalização do poder pelo cons-titucionalismo que é capaz de repreender o indesejável em nome da Constituição. Segundo Benjamin há um processo de es-colha que defi ne as possíveis, por exem-plo, no caso do tratamento conferido ao direito de greve:

(…) diferença de interpretação se ex-pressa a contradição objetiva da situ-ação de direito, na qual o estado re-conhece a violência cujos fi ns, enquan-to, fi ns naturais, ele às vezes considera com indiferença, mas em caso sério (de greve geral revolucionária) com hostili-dade (Benjamin, 2011, p. 129).

É forçoso concluir que força, poder e vio-lência integram o direito, Derrida faz menção à crítica de Blaise Pascal:

(...) o pensamento pascaliano con-cerne talvez a uma estrutura mais intrínseca. Uma crítica da ideologia jurídica não deveria jamais negligen-ciá-la. O próprio surgimento da jus-tiça e do direito, o momento institui-dor, fundador e justifi cante do direito, implica uma força performativa, isto é, sempre uma força interpretadora e um apelo à crença; desta vez, não no sentido de que o direito estaria a serviço da força, instrumento dócil, servil e portanto exterior do poder dominante, mas no sentido de que ele manteria, com aquilo que chamamos de força, poder ou violência, uma re-lação mais interna e mais complexa (Derrida, 2010, p. 23/24).

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Nas palavras do referido autor: “E assim, não podendo fazer com que aquilo que é justo fosse forte, fi zeram com que aquilo que fosse forte fosse justo” (Pascal, 2005, p. 19). Ora, não somente no sentido de que o direito estaria a serviço de uma ideologia específi ca, mas de sua relação inerente com o poder e a violência na formação do legítimo.

Nesses moldes, viu-se o problema da vio-lência constitucional que se estabelece no embate social e na manifestação de suas práticas legítimas. Em nossa proposta, re-siliente nas democracias constitucionais, pois “quando se apaga a consciência da presença latente da violência numa insti-tuição de direito, esta entra em decadên-cia” (Benjamin, 2011, p. 137).

Adotada esta cautela, ou seja, contabili-zada a precaução do que está por trás do aparato normativo, compreende-se a lógica do constitucionalismo que foi de-terminante para a expansão do discurso humanista.

Para tanto, um ponto que precisa ser ex-plorado diz respeito à dinâmica de ope-racionalidade das práticas do constitu-cionalismo no poder de polícia.

Já observado anteriormente, Walter Benjamin entende por ser imprescindível o controle de interdição e a formação do monopólio estatal da violência para a validação do direito. Essas feições, sem dúvida, tem pertinência ao poder de polícia na modernidade que esta-belece o controle da sociedade e diver-sos aspectos da vida, e, serve também, para legitimar a ordem constitucional e conservar o esquecimento da violência manifestada.

Manifesta-se o autor “Estado moderno: a polícia. Esta é, com certeza, uma violên-cia para fi ns de direito (com o direito de disposição), mas com a competência si-multânea para ampliar o alcance desses

fi ns de direitos (com o direito de ordenar medidas)” (Benjamin, 2011, p. 135).

Ora, tais fi ns compreendem a afi rmação da institucionalidade legítima do direito, bem como, o controle dominante sobre os corpos (Foucault, 1988, p. 151).

O que não tem sido diferente na ope-racionalidade dos cultuados Direitos Humanos, pois apreendem o humano em seu elenco valorativo, por exemplo, as partes do ser: a boca na liberdade de expressão; corpo na liberdade de loco-moção, dentre outros. Tal disciplina revela o surgimento do corpo de acordo com a manifestação do exercício constitucional de biopoder impositiva aos aspectos da vida humana22.

A perceber, que, com a insufi ciência dos métodos de coação física, novos meca-nismos se mostraram imprescindíveis aos ideais de dominação. A ponto de, a apre-ensão do discurso fomentar a insufi ciência do dominado, pois assume os interesses dos dominantes como se seus fossem:

(...) O que emerge é um poder de tipo “pastoral”, o qual- na descrição dada por Michel Foucault - signifi ca dominação exercida “em benefício do” dominado, em seu interesse, em nome da condução adequada e com-pleta de seus assuntos vitais (Bauman, 2010. p. 38).

Nesse sentido, a lógica é de que se tor-na cada vez menos necessário utilizar-se de atos de violência física para preser-vação das estruturas dominantes diante da produção do conhecimento legítimo: “A vigilância assimétrica tende a gerar o

22 Destaca-se, além da institucionalidade das prisões, hospitais de custodia e abrigos, formas mais sutis do maquinário constitucional que revolvem os direitos humanos. Inclusive, as próprias organizações promotoras desses valores, ONG’s, associações, facetas do estado de ordem assistencialista e burocráticas que atuam nessa área. Para maiores incursões checar o texto “A Doxa universalista dos Direitos Humanos e seus paradoxos: por uma crítica ao direito na atualidade” (Carneiro Leão e Teizeira, 2014).

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papel do “educador”, e não a de um de mero expert em coerção (embora os dois papéis não estejam obrigatoriamente em oposição)” (Bauman, 2010. p. 74).

Na nossa análise, faz-se imperioso aten-tar aos Direitos Humanos como suporte moral a este poder manifestado. A desta-car que, conforme será noticiado no tópico seguinte, tais direitos em sua universalida-de resultam de uma produção particular que assume prevalência23. Na expressão utilizada por Bourdieu, uma doxa24: “(...) A doxa é um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta e se impõe como ponto de vista universal;”(Bourdieu, 1996. p. 120).

Que, conforme os estudos de Bourdieu pressupõe o exercício de poder simbóli-co25, determinante para a formação de um discurso ignorado como arbitrário:

O poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação so-bre o mundo poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou eco-nômica), graças ao efeito específi co de mobilização, só se exercer se for re-conhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (Bourdieu, 2006, p.14)

Não por outro lado, a feição espectral do poder de polícia é constatada por Benjamin: “Sua violência não tem fi gura, assim como não tem fi gura sua aparição espectral, jamais tangível, que permeia

23 A concepção de democracia conjuntamente com os direitos humanos, assume o padrão defi nidor do regime ideal, pois: “(...) o colapso do comunismo e a elimina-ção do apartheid marcaram o fi m dos dois últimos movimentos mundiais a desafi ar a democracia liberal” (Douzinas, 2007, p. 20).24 Tal temática foi enfrentada no artigo intitulado “A produção do saber uni-versalista: por uma crítica da expansão ocidental dos direitos humanos” (Carneiro Leão e Teixeira, 2014).25 “(...) – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo o exercem” (Bour-dieu, 2006, p.07).

toda a vida dos estados civilizados” (Benjamin, 2011, p. 136).

Isto porque, há um substrato espectral por trás de toda a violência professada nas estruturas hierárquicas que se afi rma e reafi rma, ao mesmo tempo, dissimulada nas práticas e discurso do constitucional.

Assim sendo, por ser promotora do pro-grama constitucional a violência da polí-cia excede ao próprio direito. Tal gênese revela que o próprio direito é ultrapassa-do pela soberania ao operar sua lógica, pois o “(...) soberano é aquele que tem o direito de suspender o direito” (Derrida, 2005, p. 30), refl exão desenvolvida por Carl Schmitt26.

Nesse viés, Costa Douzinas construiu tese em resposta ao paradoxo do poder polí-cia, a qual denominou de: “A virada bio--política transforma os Direitos Humanos em ferramentas de controle sob a pro-messa de liberdade” (Douzinas, 2012).Na visão do autor, resta-nos observar os paradoxos oferecidos pelos Direitos Humanos e elevá-los para além do pro-blema do direito e seus cálculos, pois:

Quando os apologistas do pragmatis-mo decretam o fi m da ideologia, da história ou da utopia, eles não assina-lam o triunfo dos direitos humanos; ao contrário, eles colocam um fi m nos direi-tos humanos. O fi m dos direitos humanos chega quando eles perdem o seu fi m utópico (Douzinas, 2007, p. 13).

Dito isto, foi contabilizada a precaução do que está por trás do aparato consti-tucional normativo, ao compreender-se a lógica determinante do exercício da vio-lência constitucional.

26 Agamben identifi ca: “Soberano: quem o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, a validade do ordena-mento, então “(...) permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituição in Toto possa ser suspensa” (Agamben, 2010, p. 22).

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Desde o início da argumentação, portan-to, fez-se notar a relação paradoxal entre direito e violência, em especial, no papel do direito diante das relações de força imersas às estruturas de poder. Ao passo que, a força do direito se reafi rma pela violência conservadora e remissiva ao ato fundador. Conclui-se, então, ser instituído e mantido em confl ito com seus próprios fi ns.

Dessa forma, viu-se que a institucionaliza-ção constitucional serve a autoimunizar o sistema legal, ancorar os direitos huma-nos e legitimar a violência do poder de polícia. Nessa acepção que a lógica da violência constitucional se fez presente na formação dos direitos humanos.

4 A VIOLÊNCIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Concluída esta breve incursão na lógica do constitucionalismo ante a violência das práticas constitucionais, compete agora atentar como se estabeleceu a legitima-ção desse cenário constitucional em nome dos direitos humanos.

Para isso, é preciso considerar a hete-rotopia desses direitos, ao identifi car-se espaços absolutamente outros aos que lhe foram reservados. Foucault noticia as descrições de Gaston Bachelard acerca do abandono da ilusão utópica do ideal homogêneo de sociedade:

O trabalho monumental de Bachelard e as descrições dos fenomenólogos, nos ensinaram que não vivemos em um es-paço homogêneo e vazio, mas, ao con-trário, em um espaço completamente im-buído de quantidades e, talvez, comple-tamente fantasmático também (Foucault, 1987, p. 02, tradução nossa)27.

27 ”Bachelard’s monumental work and the descriptions of phenomenologists have taught us that we do not live in a homogeneous and empty space, but on the contrary in a space thoroughly imbued with quantities and perhaps thoroughly fantasmatic as well” (Foucault, 1987, p. 02).

Nesse alerta, retoma-se a refl exão sobre o problema da conjunção entre poder e moral que foi posto no início do tex-to, isto, o olhar voltado para a afi rmação do universalismo humanista nas famosas declarações dos estados liberais28, pois, tais manifestos não indicam uma autoe-vidência de seus valores, mas, sim, uma totalidade de diferenças.

Ora, segundo Lynn Hunt o que a tradição liberal construiu nessas declarações reve-la um contrassenso em si mesmo, chama do paradoxo da autoevidência, pois se realmente esses direitos fossem univer-sais, naturais e iguais, de que serviria seu reconhecimento?

Isso porque, assim não são, já que ape-nas passam a ter signifi cado e relevância quando tem conteúdo político, ou seja, são manifestados nas relações de poder. Em que, o reconhecimento constitucional serve a legitimar as estruturas e práticas sociais:

Essa afi rmação de autoevidência, cru-cial para os direitos humanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um pa-radoxo: se a igualdade dos direitos é tão autoevidente, por que essa afi rma-ção tinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específi cos? Como podem os direitos humanos ser universais se não são universalmente reconhecidos? (Hunt, 2009, p. 18).

E, conclui, “Entretanto, nem o caráter na-tural, a igualdade e a universalidade são sufi cientes. Os direitos humanos só se tor-nam signifi cativos quando ganham conte-údo político” (Hunt, 2009, p. 19).

Portanto, os atos de declaração são am-biguamente retrógrados e avançados.

28 As declarações de direito se assemelham a verdadeiras epopeias que forta-lecem uma gênese em comum, assim como os mitos. As duas principais: Declaração de Direitos da Virgínia e Declaração de Independência – EUA (1776); Declarações dos direitos do homem e do cidadão – França (1789).

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Nas diversas constituições, os declarantes afi rmavam estar contemplando direitos que já residiam ao homem. Mas, ao mes-mo tempo, ao fazê-lo, efetuavam uma revolução na soberania e criavam uma base inteiramente nova para o governo.

Aponta a autora como esses direitos fo-ram internalizados pelo homem iluminista, pretensamente, consciente e autônomo de sua inteireza:

O que sustentava essas noções de li-berdade e direitos era um conjunto de pressuposições sobre a autonomia individual. (...) as pessoas deviam ser vistas como indivíduos separados que eram capazes de exercer um julga-mento moral independente como di-zia Blackstone, os direitos do homem acompanhavam o indivíduo “conside-rado como um agente livre, dotado de discernimento para distinguir o bem do mal”. Mas, para que se tornassem membros de uma comunidade política baseada naqueles julgamentos morais independentes, esses indivíduos autô-nomos tinham de ser capazes de sentir empatia pelos outros (Hunt, 2009, p. 25/26).

Também, Rolando Gaete sintetiza: “(...) a noção de sujeito humano, como um agente soberano de escolha, uma criatura cujos fi ns são escolhidos, e não dados, que alcança seus objetivos e propósitos por meio de atos de vontade, em oposição, digamos, a atos de cognição” (Gaete apud Douzinas, 2007, p. 21).

Logo, a autonomia parece ser o elemen-to crucial que faltava nas teorias da lei natural até meados do século XVIII, que passou a reinar em contrariedade à história de lutas e confl itos envoltórios àquele momento. Apesar do ideal, pou-cos eram os sujeitos autônomos de fato,

a exclusão de grupos e pessoas é carac-terístico dessa lógica.

E, assim, em paralelo ao conteúdo trans-cendental tido por inerente à signifi ca-ção esses direitos, vê-se a dissimulação das relações de poder e violência que os permeia.

Ademais, ao longo do curso da humani-zação ainda persiste o estigma dominan-te, na fala de Robert Cooper percebe-se o viés do pós-moderno29:

O que é necessário, então, é um novo tipo de imperialismo, um aceitável para o mundo de direitos humanos e valores cosmopolitas. Já podemos dis-cernir o seu contorno: um imperialismo em que, como tudo o imperialismo, tem por objetivo trazer ordem e organi-zação, mas que repousa hoje sobre o princípio do voluntariado. (Cooper, 2002, tradução nossa)30.

A considerar, o esforço do “progresso evolucionista” 31 em atrelar a lei natural, direito natural e direitos naturais32 aos Direitos Humanos, de certa forma o foi para garantir o ideal universalista e o his-toricismo civilizatório de seu ápice33. Pois, tais direitos se estabelecem como resulta-do da tradição ético-jurídico-política em conformidade com o jusnaturalismo mo-

29 A pós-modernidade não afastou o ideal moderno, cito: “O que achei menos aceitável nessa ideia foi a presunção de que “a era da modernidade” terminou e que estamos, por assim dizer, já no “lado oposto”, ou pelo menos perto de entrar nele. Parecia inaceitável e errado, porque, até onde eu sabia, éramos modernos por completo; na verdade, mais modernos que nunca; ou seja: voltamos a lâmina afi ada da “faca modernizadora” contra a própria modernidade, contra seus pró-prios produtos do passado” (Bauman, 2010. p. 11).30 What is needed then is a new kind of imperialism, one acceptable to a world of human rights and cosmopolitan values. We can alerady discern its outline: an imperia-lism which, like all imperialism, aims to bring order and organization but which rests today on the voluntary principle (Cooper, 2002).31 Com o iluminismo e o projeto racional da modernidade “(...) o entendimento que o Ocidente tem de si mesmo tem sido dominado pela ideia do progresso histó-rico por meio da razão” (Douzinas, 2007, p. 23).32 Com ênfase na racionalidade de suas teorias, a passagem do direito natural aos direitos naturais revela o início da razão moderna: “A transformação do Direito Natural em direitos naturais no século XVII é aclamada como a primeira vitória da razão moderna sobre as bruxas medievais (...)” (Douzinas, 2007, p. 26).33 “Os direitos humanos são alardeados como a mais nobre criação da nossa fi losofi a e jurisprudência e como a melhor prova das aspirações universais da nossa modernidade, que teve que esperar por nossa cultura global pós-moderna para ter seu justo e merecido reconhecimento” (Douzinas, 2007, p. 19).

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derno apesar das diversas atrocidades ao longo do expansionismo ocidental34.

Douzinas afi rma que o discurso profano na contemporaneidade proclama serem estes direitos atribuídos às pessoas em razão da sua condição de ser humano. Assim sendo, o direito à tutela de bens jurídicos seriam con-feridos às pessoas não por causa de sua fi -liação ao estado, nação ou grupo, mas, por sua humanidade (Douzinas, 2012).

Em oposição, já se investigou que as ações desses direitos selecionam os afortunados em meio à lógica do capitalismo, conse-quentemente, é defi nida a humanidade do homem35.

Nessa lógica, constrói-se o ideal de “hu-mano” através da dissimulação das rela-ções de poder que os permeia, em meio à soberania exercida e imposição de força:

(...) suas pressuposições ontológicas, os princípios de igualdade e liberdade, e seu corolário político, a pretensão de que o poder políticos deve estar sujeito às exigências da razão e da lei, agora passaram a fazer parte da principal ideologia da maioria dos regimes con-temporâneos e sua parcialidade foi transcendida (Douzinas, 2007, p. 19).

Portanto, os direitos humanos conduzem a compreensão crítica de que: “(...) são o fado da pós-modernidade, a energia das nossas sociedades, o cumprimento da promessa do iluminismo de emancipação e autorrealização” (Douzinas, 2007, p. 13).

O discurso abduz que todos têm es-ses direitos, mas, fato é que os Direitos

34 A perceber que a leitura dos padrões legitimadores pela história defi ne o grau de civilidade de determinada nação ou povo, e sua inserção nas práticas reservadas aos “humanos”. Tal juízo é feito de acordo com o ideal evolucionista do ocidente. Hoje, se afi gura no capitalismo, estado de direito e democracia liberal (Sousa Santos, 2000).35 Temática enfrentada na dissertação defendida no PPGD da UNICAP/PE, fruto também do período de extensão acadêmica realizado na UNISINOS/RS através de programa de cooperação PROCAD nf. 643/2010 (UNICAP/UNISI-NOS/UFPA): “A concepção ocidental de Direitos Humanos e seus paradoxos: por uma crítica à sujeição humanista na contemporaneidade”.

Humanos triunfaram em momento históri-co que revela fl agrantes violações. Para isso, as pessoas são reduzidas a sintéticas entidades capazes de integrar a lógica desses direitos, pode-se perceber o po-der de polícia:

A diferença entre o triunfo da ideolo-gia dos direitos humanos e do desastre de sua prática é a melhor expressão de cinismo pós-moderno, a combina-ção de iluminação com resignação e apatia e, com um forte sentimento de impasse político e claustrofobia existencial, de uma ausência no meio da sociedade mais móvel (Douzinas, 2000, p. 12, tradução nossa)36.

Tais direitos com sua feição de signifi ca-ção dissimulada, suplantados pela on-tologia de seus valores, também, vem a constituir fonte de manifestação do sobe-rano no constitucionalismo.

Assim, ao atentar que os direitos humanos são consignados às pessoas por causa de sua posição social, não é difícil concluir que as violações desses valores são con-signadas a título casuístico37, em que pese o discurso do constitucionalismo.

Desse modo, é que o cenário atual dos direitos humanos não pode ser compre-endido sem levar em consideração a lógi-ca legitimadora das práticas e violência constitucional.

5 CONCLUSÃO

Ao longo deste ensaio foi feita crítica à legitimação da violência das práticas

36 “The gap between the triumph of human rights ideology and the disaster of their practice is the best expression of postmodern cynicism, the combination of enlightenment with resignation and apathy and, with a strong feeling of political impasse and existential claustrophobia, of an exitlessness in the midst of the most mobile society” (Douzinas, 2000, p. 12).37 Afi rma Gabriel Marcel: “(...) que a vida humana nunca foi tão universalmente tratada como uma comodidade perecível tal qual em nossa própria época (Marcel, 1964, p. 94, tradução nossa)”.

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constitucionais em nome dos direitos hu-manos, com a pretensão de compreen-der a importância da lógica escusa do constitucionalismo para a dimensão al-cançada pelos direitos humanos. Isto im-plicou na análise da violência na funda-ção constitucional e seu consequente. Do contrário, mantém-se submersa e intocá-vel a violência das práticas jurídicas.

Fez-se, então, destaque à análise vela-da pelo perspectivismo histórico quanto à formação do estado constitucional, tendo em vista a necessidade de aten-tar a apreensão do direito nas relações de poder. Para tanto, foi imperiosa a compreensão dos ideais humanistas diante de sua realidade corresponden-te, em especial, na crítica remissiva ao iluminismo.

Nesses moldes, atentou-se ao problema do idealismo das declarações de direito, ao considerar que a manifestação de vio-lência é fator determinante ao surgimen-to e manutenção da ordem constitucional. Isto, em conformidade com a interpreta-ção derridiana do texto “Para uma crítica da violência” de Walter Benjamin.

E, ainda, com relação a esse cenário constitucional, percebeu-se a lógica de dominação do poder de polícia.

Em seguida, foi analisado o cenário atual e a relação dos direitos humanos ao assu-mirem o papel de conferir suporte moral às práticas constitucionais, capaz, então, de legitimar sua violência38.

Ao longo desse trajeto, da análise feita conforme os escritos de Costas Douzinas, os direitos humanos se estabeleceram como discurso prevalente resultante do expan-sionismo humanista e das práticas cons-

38 O núcleo desse argumento é desenvolvido a partir de uma crítica à defesa dos bombardeamentos da NATO 1999 da Iugoslávia [a guerra do Kosovo] por Habermas. (...) ofereceu uma expressão mais completa de uma posição tomada por vários advogados internacionais, que reconheceu a ilegalidade da guerra, mas argumentou que deve ser considerada como “moralmente justifi cada” (Werner, 2007, tradução nossa).

titucionais39. A notar que, as pretensões morais desses direitos não tem correspon-dência com a leitura empírica de sua prá-xis. O que não signifi ca, porém, tratar-se de mero problema de efetividade, pois é preciso viabilizar crítica à lógica submersa aos aparatos constitucionais, tendo em vis-ta,o âmbito político da aplicação do direi-to e as relações de poder que os envolve.

Assim, portanto, é que se enfrentou a pro-blemática da legitimação dos direitos hu-manos em meio à violência constitucional de sua promoção.

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