PARA UM NOVO CONCEITO DE IDADE MÉDIA Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente 1980 Editorial Estampa...

56
JACQUES GOFF PARA UM NOVO CONCEITO DE IDADE MÉDIA Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente 1980 Editorial Estampa Lisboa

Transcript of PARA UM NOVO CONCEITO DE IDADE MÉDIA Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente 1980 Editorial Estampa...

JACQUES LÊ GOFF

PARAUM NOVO CONCEITO

DE IDADE MÉDIATempo, Trabalho e Cultura no Ocidente

1980Editorial Estampa

Lisboa

mCULTURA ERUDITAE CULTURA POPULAR

' / i

CULTURA CLERICAL E TRADIÇÕES FOLCLÓRICASNA CIVILIZAÇÃO MEROVÍNGIA

«Todos os historiadores do cristianismo medieval conhecem o fenô-meno da pressão das representações populares sobre a religião doseruditos. As suas primeiras manifestações remontavam, verosimilmeate, amuito tempo atrás. Será admissível pôr o problema da «decadência»da civilização intelectual antiga sem perguntarmos a nós próprios se essa«cultura», nascida nas sociedades muito específicas de algumas cidade-zinhas helénicas, adoptada em seguida e adaptada pela oligarquia romana,não estaria, antecipadamente, condenada a estranhas deformações, a partirdo momento em que, embora ainda limitada a uma elite, mas a umaelite doravante espalhada pelo vasto mundo, ela ficou, de boa ou mávontade, em contacto com as multidões impregnadas de todas as outrastradições mentais?» (Marc Bloch, Annales d'Histoire sociale, 1939, p. 186).

O desejo de relacionar os grupos ou os meios sociais com os níveisde cultura no momento da passagem da Antigüidade para a Idade Média.no Ocidente, não é novo. Sem voltar muito atrás, devemos lembrar océlebre artigo de Ferdinand Lot «Em que altura se deixou de falarlatim?» C1) — citado também, mais tarde, por Dag Norberg ('). Sin-to-me incapaz de seguir estes dois autores eruditos no campo filotógicoem que se colocaram. Mas, se é verdade que admiro muito as observaçõespertinentes que enchem os seus artigos, se lhes estou reconhecido porhaverem baseado o seu estudo lingüístico na análise mais ampla dascondições sociais, creio que o essencial, para o nosso debate, não está aí.

Sem dúvida que a utensilagem lingüística faz parte, a nível funda-mental, da utênsilagem mental e intelectual e encontra-se pois incluídano contexto social, que marca profundamente a segunda. Mas, do ponto de

O Cfr. Bibliografia, n.' 25.O Cfr. Bibliografia, n.» 33.

207

vista central da comunicação cultural, pelo menos cm relação aos sé-culos V e VI, Dag Norberg parece-me ter razão contra Ferdinand Lot: «Doponto de vista social nfio havia na época duas línguas, mas sim diversasformas da mesma língua, de acordo com os diferentes meios da socie-dade.» O

A nível lingüístico, pois, o povo e a aristocracia entendem-se — comesta importante reserva: onde falarem latim. Ora se o clero fala, por todoo lado, o latim, os laicos continuam, muitas vezes, a falar as línguas«bárbaras» — quer se trate das línguas vulgares de populações que hámuito entraram na área política e cultural romana ou das línguasdos Bárbaros propriamente ditos, imigrantes ou invasores recentementeinstalados nos limites do Império Romano. No primeiro caso, tratava-sesobretudo de camponeses que haviam conservado as suas línguas tra-dicionais — copta, siríaco, trácio, celta, berbere —, como lembrouA. R M. Jones num notável estudo ('). Para nos limitarmos ao Ocidente,a persistência das linguagens célticas é atestada por diversas fontes, nomea-damente por S. Jerónimo (') e por Sulpício Severo (*)• No que respeitaaos recém-vindos, a permanência da utilização dos diakctos germânicosencontra-se em toda a sociedade. Há nitidamente uma certa romanizaçâodos Bárbaros, embora seja muito limitada (T).

Assistimos assim à afirmação de dois fenômenos essenciais: a emer-gência da massa camponesa como grupo de pressão cultural (') e a indi-ferenciaçâo cultural crescente — com algumas excepcdes individuais ou

O Loc. c//., p. 350.O «The social bactground of the struggle between paganisra and

christianity» em Momigliano (Cfr. Bibliographie, n.* 47).O Comm. in Ep. Gol. IL(') Dialogi, L, 27.O «Os condes, os salones enviados em missão junto dos funcionários

romanos, conheciam necessariamente algumas frases latinas, aquilo quecom certeza sabe qualquer oficial ou ate qualquer soldado, num país

' ocupado» (P. PJché, Bibliographie, n." 37, p. 101). «É verdade que alguns- aristocratas, bárbaros se romanizaram bastante rapidamente. Mas é bem

evidente que só pode tratar-se de uma minoria, tendo a massa dos Bár-, baros conservado os seus costumes próprios» (ibid., p. 102).

C) Trata-se de um fenômeno diferente daquele que se produziu nosinícios da cultura romana. Ali, o fundo rural impregnou para sempreuma cultura que se urbanizava e dilatava continuamente (cfr. por exemploW. E. Heitland, Agrícola, Cambridge, 1921; e as notas de J. Marouzeausobre o latim como língua de camponeses», em Lexique de terminologielinguistiqite, 2* ed., 1943). Aqui, o camponês, evacuado e mantido afas-tado do universo cultural (cfr. J. Lê Goff, «Lês paysans et lê monderural dans Ia littérature du haut Moyen Age (V-VT siècle)», em Agrícol-lura e mondo rurale in Occidente neWaíto medíoevo. Settímane di studio

_- dei Centro italiano di studi sulTalto medioevo. XIII. Espoleto. 1965 [19661.pp. 723-741) faz pesar sobre esta cultura uma ameaça que obriga os clérigosa promoverem um movimento inverso, de cima para baixo, lançado doleste.

208

locais — de todas as camadas sociais laicas face ao clero que monopolizatodas as formas evoluídas, e nomeadamente escritas, de cultura. O pesoda ma^ camponesa c o\ monopólio clerical são as duas formas essenciaisque agem sobre as relações entre os meios sociais e os níveis de culturana Alta Idade Média. O melhor terreno para estudar estas relações nãome parece ser o da língua mas sim — mais amplo e mais profundo—oda utensilagem intelectual e mental.

Pará melhor se compreender o papel dos suportes sociais da culturana Alta Idade Média, devemos recordar a evolução das infra-estruturasque, no século IV, leva bruscamente o cristianismo ao primeiro planoda cena histórica. A. H. M. Jones (') mostroa que a difusão do cristia-nismo no mundo romano do século IV não era um facto meramentepolítico ou espiritual — conseqüência da conversão de Constantino e dozelo missionário dos cristãos, a partir de então mantidos pelos poderes pú-blicos. Em princípios do sécuío IV, o cristianismo estava sobretudo difun-dido nas classes urbanas médias e inferiores, enquanto quase não atingia asmassas camponesas e a aristocracia. Ora a contracção econômica e odesenvolvimento da burocracia conduzem à promoção destas tniddle andlower urban classes, onde o cristianismo era já forte. Essa promoçãoleva à expansão cristã. Mas quando o triunfo do cristianismo se tornaevidente, as classes que o guiaram estão em franco recuo. O cristia-nismo escapa ao desmoronar das superstruturas frágeis do Baixo Império,separando-se das classes1 que lhe garantiram o êxito e que a evo-lução histórica fez desaparecer. A transformação social da aristocracia,depois das massas camponesas, implanta o cristianismo, mas à custade muitas distorsões, particularmente sensíveis no domínio da cultura.Entre um clero cada vez mais colonizado por uma aristocracia formadapela paidela greco-romana O e um laicado de predomínio rural, queo recuo do paganismo oficial torna mais vulnerável às pressões deuma cultura primiüva renascente, a religião cristã, introduzida porcategorias sociais urbanas moribundas, conseguirá definir-se numa culturacomum, através de um jogo subtil de aculturações internas? (u)

(*) Loc. cit., n.8 6.(") Cfr. a obra clássica de H. L Marrou, Bibliografia, n.* 30;

e para os fundamentos gregos da cultura greco-romana; W. íaeger, faideia,The Ideais of Great culture, I-IU, Oxford, 1936-1945.

(") Sobre a problemática da aculturação, o relatório de referência é ode A. Dupront, «De 1'acculturation», em Comitê internatíoruü dericienceshistoriques, XII" Congrès intemational dês sciences historiques (Viena,1965). Partes da obra: I. Grandes temas (1965), pp. 7-36. Traduzido paraitaliano com adições em: L'acculturazione. Per un nuovo rapporto traricerca síorica e scienze umane (Turim, 1966). Os problemas de acultu-ração interna nascidos da coexistência de níveis e de conjuntos culturaisdistintos dentro de uma mesma área étnica constituem um domínio parti-cular e particularmente importante da aculturação.

209

- I — As características fundamentais da história da cultura ocidental,desde o século V ao século VIU, podem definir-se assim:

a) A laminagem das class*'5 médias encontra-se no domínio da culturaonde o fosso se alarga entre a massa inculta e uma elite cultivada;

b) Mas a clivagem cultural não coincide com a estratificação social,porque a cultura intelectual se torna o monopólio da Igreja. Mesmoque haia~~grandes diferenças de grau de cultura entre os clérigos, anatureza da sua cultura é a mesma e a linha essencial de separação éa que separa os clérigos dos laicos;

c) A cultura eclesiástica, quaisquer que sejam as respostas individuaisou colectivas dos clérigos ao problema da atitude a adoptar para com oconteúdo da cultura profana paga, utiliza a utensilagem intelectualdesenvolvida, do século IH ao século V, por autores didácticos que siste-matizam, a nível simplificado e medíocre, a herança metodológica e cien-tifica da cultura greco-romana ("). Desta utensilagem intelectual, oessencial é, provavelmente, o quadro das «artes liberais» e MarcianoCapella, o autor mais importante (De nuptiis Philologiae ei Mercurü,primeira metade do século V) ("-). Seria importante possuir um perfeitoconhecimento global desta primeira camada de «fundadores da IdadeMédia», por vezes ainda pagãos, como é o caso de Macróbio (");

d) Os chefes eclesiásticos recebem tanto mais facilmente esta for-mação intelectual quanto, sobretudo no século V e no século VI» a grandemaioria pertence às aristocracias indígeno-romanas. Mas os prelados bár-baros, os bispos e os abades de origem bárbara que fizeram carreira, adop-tam muito bem este tipo de cultura, porquanto a sua aquisição é, precisa-mente, um dos melhores meios de assimilação e de ascensão sociais. Otipo hagiográfico do santo bispo comporta, em geral, uma origem «ilustre»e, quase sempre antes ou depois da «conversão», a formação das artesliberais (o que aconteceu com Paulino de Milão na Vita A mbrosii, em 422;com Constando de Lyon na Vita Germani, por volta de 470-480, e

com outros);e) A despeito da tendência para a regionalização, esta. cultura

eclesiástica tem, mais ou menos por todo o lado, a mesma estrutura e .omesmo nível (cfr. dois exemplos, entre os mais opostos: Isidoro de Sevilhae a cultura visigótica no princípio do século VII, a cultura monástica

(") Por exemplo, o essencial dos conhecimentos etnográficos que acultura greco-latina legará ao Ocidente medieval virá das Colletanearerum memorabilium, medíocre compilação de Solinus, no século III(edL Mommsen, 2.* ed., Berlim, 1895).(") Cfr. W. H. Stahl, «To a better understanding of MartianusCapella», em Specidum, XL, 1965.C*) Foi a Macróbio que os clérigos da Idade Média tardiamenteforam buscar, por exemplo, a tipologia dos sonhos — tão importante numacivilização em que o universo onírico tem um lugar tão vasto: cfr. L. Deu*bner, De Incubaíione, Giessen, 1899.

210

irlandesa de Ynís Pyr na época de Eltud, na primeira metade doséculo VI, segundo a Vita Samsonis) (");

/) Perante esta cultura eclesiástica, a cultura laica manifesta umaregressão muito mais acentuada, iniciada desde o século II, reforçada peladesorganização material e mental que se tornou catastrófica com asinvasões e a fusão dos elementos bárbaros com as sociedades indígeno--romanas. Esta regressão cultural manifestou-se, sobretudo, com ressur-gências de técnicas, de mentalidades, de crenças «tradicionais». O quea .cultura eclesiástica encontrou na sua frente foi, mais que uma culturapaga do mesmo nível e do mesmo tipo de organização, depressa vencida, adespeito das últimas convulsões do princípio do século V, uma cultura«primitiva» de cariz mais guerreiro nos Bárbaros (em especial na camadasuperior: cfr. o mobiliário funerário) C1*), de caracter sobretudo camponêsno conjunto das camadas inferiores ruralízadas.

II — Pondo, pois, de lado o testemunho dos documentos arqueológicos,podemos tentar definir as relações entre estes dois níveis de culturaatravés das relações entre cultura clerical e folclore.

O facto deste esboço se fundar em documentos pertencentes àcultura eclesiástica escrita (em especial vidas de santos e obras pastorais,tais como os Sermões de Cesário d1 Artes, o De correctione rusíicorumde Martinho de Braga, os Dialogi de Gregório, o Grande, os textos dossínodos e concílios e os penitenciais irlandeses), arrisca-se a falsear, se nãoa objectivídade, pelo menos as perspectivas. Mas não se procura, aqui,estudar a resistência da cultura folclórica e as diversas formas que elapode tomar (resistência passiva, contaminação da cultura eclesiástica,ligação com movimentos políticos, sociais e religiosos, revoltas campo-nesas, arianismo (*), prisciUanismo (**), pelagianismo (***), etc.)- Conten-

(") A Vita Samsonis foi submetida à rígida crítica do seu editorR. Fawtier (Paris, 1912). Mas, mesmo que as adições e os acrescenta-mentos posteriores tenham sido importantes no texto que nos chegou,os historiadores do monaquismo irlandês tendem a considerar a cultura«liberal» dos abades irlandeses (Santo Iltud ou S. Cadoc pertencemao mesmo grupo de Samson) como uma realidade e não como uma ficçãocarolingia (cfr. P. Riché, op, cit., p. 357); e O. Loyer, Bibliografia, n.* 26,PP- 49-51).

(M) Se bem que a arqueologia nos revele uma cultura guerreira(cfr. E. Salin, Bibliografia, n.' 45), a aristocracia militar da Alta IdadeMédia permanece afastada da cultura escrita à espera do impulso da épocacarolíngia e pré-carolíngia (cfr. n. 25, p. 216), onde mergulha de restona cultura clerical, antes de irromper na época românica com as cançõesde gesta (cfr. J. P. Bodmer, Bibliografia, n.9 6).

(•) Doutrina de Arius, que negava a unidade e a consubstancialidade dastrês pessoas da Santíssima Trindade e, portanto, da divindade de Jesus Cristo. O ária'nísmo foi condenado pelo Concilio de Niceia (325) e pelo de Constantinopla (381).— (N. da T.)

("*) Prisciliano concebia o ascetismo como autentica forma da vida cristi.Prisciliano, heresiarca espanhol, falecido em 385. — (N. da T.)

211

temo-nos com tentar definir a atitude da cultura eclesiástica perante acultura folclórica C1).

Há, sem dúvida, um certo acolhimento deste folclore na culturaderical:

a) É favorecido por certas estruturas mentais comuns às duasculturas, em especial a confusão entre o terrestre e o sobrenatural, omaterial e o espiritual (por exemplo, atitude perante os milagres, o cultodas relíquias, uso das filacteras (*), etc.);

b) Tornou-se obrigatório, pela táctica e pela prática evangelizadoras;a evangelização reclama um esforço de adaptação cultural do clero: língua

(•**) Heresia criada por Pelágio, que negava a eficácia da Graça e do pecadooriginal. — (N. 4a T.)

(") Por cultura folclórica entendo sobretudo a camada profunda dacultura (ou da civilização) tradicional (no sentido de A, Varagnac, Biblio-grafia, n.1 48) subjacente em toda a sociedade histórica e, parece-me,aflorando ou prestes a aflorar na desorganização'que reinou entre a Anti-güidade e a Idade Média. O que torna a identificação e a análise destacamada cultural particularmente delicadas, é ela ser recheada de contribui-ções históricas discordantes pela idade e pela natureza. Aqui, só podemostentar distinguir o extracto profundo da camada de cultura «superior»greco-romana que a marcou com o seu cunho. São, se se quiser, os doispaganismos da época: o das crenças tradicionais de muito longa duraçãoe o da religião oficial greco-romana, mais evolutiva. Os autores cristãosda Baixa Antigüidade e da Alta Idade Média distinguem-nos mal e pare-cem, de resto (uma análise, por exemplo, do De correctione naticorum deMartinho de Braga, Bibliografia, n.° 13 e 27, e do texto ap. C W. Barlow,«Martin de Braga», Opera omnia, 1950), o demonstra, mais preocupadosem combater o paganismo oficial do que as velhas superstições, que maldistinguem. Em certa medida, a sua atitude favorece a emergência destascrenças ancestrais mais ou menos purgadas da sua roupagem romana enão ainda cristianizadas. Mesmo um santo Agostinho, contudo aindaatento em distinguir a urbanitas da rusticiias nos aspectos sociais dasmentalidades, das crenças e dos comportamentos (cfr. por exemplo a suaatitude discriminatória perante as práticas funerárias no De cura prómortuis gerenda, PL-CSEL 41 — Biblioteca augustiniana, 2; e mais geral-mente o De catechizandis Rudibus PL, XL, Biblioteca augustiniana,1,1) nem sempre consegue a distinção. Assim, a célebre passagem do Dedvitate Dei, XV, 23, acerca dos Silvanos et Faunos quos vulgo incubesvocant, acto de nascimento dos demônios íncubos da Idade Média, comomuito bem analisou Ernest Jones no seu ensaio pioneiro obre a psicanálisedas obsessões colectivas medievais, cm On the Nighlmare (2.* ed., Londres,1949), p. 83.

Na prática, considero como elementos folclóricos os temas da lite-ratura merovíngia que nos levam a um motivo de Stith Thompson, Motif--Index of Folk-literature (6 vol., Copenhaga, 1955-1958).

Sobre a historicidade do folclore, temos o artigo luminoso de alcancegeral apesar do título, de G. Cocchiara, «Paganitas. Sopra vivenze Folklo-riche dei Pagancsimo sícilíano», Atti dei 1.' congresso internazionate distudi sulla Sicilia antica. Studi pubbücati daü'Istituto di storia anticadeirUniversità di Palermo (X-XI, 1964-1965, pp. 401-416).

(*) Pergaminho contendo uma passagem da Bíblia e que os Judeus usamcomo talismã. —(A1, da T.)

212

(sermo rústicas), recurso às formas orais (sermões, cantos) e a certos tiposde, cerimônias (cultura litúrgíca, procissões: o caso das ladainhas (**) edas procissões instituídas por Gregório, o Grande ("X satisfação daspetições da «clientela» (milagres «a pedido»).

A cultura eclesiástica deve, muitas vezes, inserir-se nos quadros dacultura folclórica: localização das igrejas e dos oratórios, funções pagastransmitidas aos santos, etc.

Porém, a iniciativa é a recusa desta cultura folclórica jpela culturaeclesiástica:

a) Por destruição

As inúmeras destruições fde templos e de ídolos tiveram por simetria,na literatura, a prescrição dos temas propriamente folclóricos, cuja recolha,mesmo na literatura hagiográfica a príorí privilegiada neste aspecto, éfraca. A recolha é ainda mais escassa, se eliminarmos os temas folclóricostirados da Bíblia (neste aspecto seria importante distinguir a tradiçãodo Antigo Testamento, rica em motivos folclóricos, e a tradição do NovoTestamento, onde estes temas são raros). Por outro lado, devemos distin-guir cuidadosamente, nos relatos hagiográficos, as diferentes camadascronológicas de elementos folclóricos devidos as sucessivas correcções.

(**) Sabe-se que as Ladainhas datam dos séculos V e VI. Foraminstituídas, segundo a tradição, por S. Mamert, bispo de Viena (falecidoem 474), num contexto de calamidades e rapidamente se estenderam atoda a Cristandade, conforme testemunha Santo Avit (fal. em 518),Homília de Rogationibus {f L, LIX, 289-294). Não é certo que tenhamsido o substituto directo das Àmbarvalia antigas: ver o artigo «Rogations»em Dictíonnaíre d'archéologie chréíienne et de liturgie (XTV-2, 1948, coL2459-2461, H. Leclercq). Pelo contrário, é certo que acolheram elementosfolclóricos. Mas é difícil saber se estes elementos deram imediatamente,desde a época que analisamos, o seu colorido à liturgia das Ladainhas, ouse não foram nelas introduzidas ou, pelo menos, desenvolvidas mais tarde.Os nossos testemunhos que, por exemplo, dizem respeito aos dragões dasprocissões só datam dos séculos XII e XIII para os textos teóricos (osliturgistas Jean Beleth e Guillaume Durant) e dos séculos XIV e XV paraas menções individuais concretas. Estudei o problema dos dragões proces-sionais desde a época merovíngia num ensaio, «Culture cléricale etfolklore au Moyen Age: saínt Mareei de Paris et lê dragon», MélangesBarbagallo u, 51-90 e aqui infra pp. 221-260. Sobre as característicasfolclóricas das Ladainhas, temos as belas páginas de A. van Gennep, como título significativo: «Fêtes liturgiques folfclorisécs», em Manuel ae Foí~kiore français contemporain (1/4-2, 1949, pp. 1637 e ss.).

(") A sua origem é urbana, a sua natureza propriamente litúrgica,como o demonstra o alvará de instituição dirigido pelo papa aos Romanos,após ser elevado ao pontificado por altura da epidemia de peste negra de590 — alvará que Gregório de Tours inseriu na Historia Francorum poisum diácono de Tours, então em Roma, para aí adquirir relíquias, lhahavia entregado (HF, X, 1). Mas a sua inserção no calendário litúrgicocomo liturgias majores ao lado das liturgias minores das ladainhasexpô-las também, sem dúvida, a uma degradação popular.

213

Certos autores (por exemplo, P. Saintyves, À Margem da Lenda Dourada,ou H. Günther, Psicologia da Lenda) não fizeram uma suficiente distinçãoentre tais extractos e tiveram por isso tendência para fazer recuar, até àAlta Idade Média, elementos folclóricos introduzidos na época carolíngia e,sobretudo, na altura da grande vaga folclórica dos séculos XII e XIIIque vem rebentar na Lenda Dourada de Jacques de Voragine.

ti) Por obliteraçãoA sobreposição dos temas, das práticas, dos monumentos e das perso-

nagens cristãs a antecessores pagaos não é uma «sucessão», mas umaabolição. A cultura clerical encobre, oculta, elimina a cultura folclórica.

c) Por desnaturaçãoÚ provavelmente o mais importante processo de luta contra a

cultura folclórica: os temas folclóricos mudam radicalmente de signifi-cado nos seus substitutos cristãos (exemplo do dragão na Vita Marceltide Fortunato ("*); exemplo dos fantasmas na Vita Germani de Constandode Lyon, em comparação com o modelo greco-romano de Plínio o Moçoc o tema folclórico dos mortos sem sepultura) (") e até de natureza (porexemplo os santos não passam de taumaturgos auxiliares — só Deus faz osmilagres) (*")-

C*) O dragão folclórico — símbolo das forças naturais ambivalentesque podem reverter a nosso favor ou em nosso prejuízo (E. Salin,op. cif.. IV, pp. 207-208) — continua a existir durante toda a IdadeMédia, ao lado do dragão cristão identificado com o diabo e reduzido aoseu mau significado. Na época (fim do século VI) em que Fortunatoescreve a Vita Marcelli (cfr. Bruno Krusch, MGH, Scriptores Rerum Me-rovingiarum, IV-2, 49-54), o tema do santo vencedor do dragão fica a meiocaminho destas duas concepções, na linha de interpretação antiga que,atribuindo aos heróis a vitória sobre o dragão, hesitava entre a domesti-cação e a morte do monstro. Sobre os aspectos folclóricos deste tema,cfr. Stith Thompson, op. cit. Motif A 531: Culture hero (demigod)overcomes monsten. Tentei apresentar este problema no artigo citadona nota 8, p. 208. «L'ambiyalence dês animaux revés» foi sublinhada porJean Gyory, Cahiers de Cívülsation médiévale (1964, p. 200). Para umainterpretação psicanalítica deste ambivalência, cfr. E. Jones, On thenightmare, p. 85.

C1) Constando de Lyon. Vie de saint Germaín d'Auxerre, ed. R. Bo-rius (Paris, 1965, pp. 138-143): Plínio o Moco, Lettres, VH, 27.

(**) Há que distinguir. A tese de P. Saintyves, que se exprime notítulo sugestivo do seu livro, marcado com a indicação «modernista»:Lês Saints successeurs dês dieux (Bibliografia, n.* 43), aparecido em 1907,é falsa, na medida em que os antepassados afastados e eventuais dos santossão não os deuses, mas os semideuses, os heróis, e em que a Igreja quis fa-zer dos santos, não os sucessores, mas os substitutos dos heróis e situá-losnum outro sistema de valores. Em contrapartida, a tese de G. Cocchiara,loc. cit., afirma o triunfo da Igreja nesta matéria, mas não tem em contao facto de a grande maioria dos cristãos, na Idade Média, e mais tarde,terem tido para com os santos o mesmo comportamento que os seusantepassados tiveram para com os heróis, com os semideuses e até comos deuses. Em especial, contrariamente ao que pensa G. Cocchiara, a

214

O fosso cultural reside, aqui, sobretudo, na oposição entre o caracterfundamentalmente ambíguo, equívoco, da cultura folclórica (crença nasforcas simultaneamente boas e más e utilização de uma utensilagemcultural com dois gumes) e o «racionalismo» da cultura eclesiástica,herdeira da cultura aristocrática greco-romana ("): é a separação do beme do mal, do verdadeiro e do falso, da magia negra e da magia branca,sendo o maniqueísmo propriamente dito evitado apenas pela omnipotènciade Deus.

Temos pois de considerar duas culturas diversamente eficazes» níveisdiferentes. A barragem que a cultura clerical opõe à cultura folcló-rica provém, não somente de uma hostilidade consciente e deliberada,mas também da incompreensão. O fosso que separa a elite eclesiástica,cuja formação intelectual, origem social, implantação geográfica (qua-dro urbano, isolamento monástico) a tornam permeável à cultura fol-clórica, da massa rural, é, sobretudo um fosso de ignorância (cfr. a incom-preensão admirada de Constando de Lyon perante o milagre dos galosmudos realizado por S. Germano a pedido de camponeses) (").

atitude, tão freqüente nas colectivídades medievais, de maltratar um santo(ou uma estátua) culpado de não haver atendido as orações dos seusfiéis, ressalta bem de uma mentalidade «primitiva» persistente, e nãode qualquer mudança afectiva da piedade. O que fica é que a distinçãoentre o papel de Deus e o papel dos santos — puros intermediários — nosmilagres oferece à psicologia individual e colectiva uma válvula de escapeque salvaguarda, em certa medida, a devoção para com Deus.

(") Trata-se sem dúvida de simplificar o papel intelectual e mentaldo cristianismo, ao insistir nos progressos da racionalização que trouxe aestes domínios. No meio termo da história das mentalidades colectivas cieparece mais provir de uma reacção mística, «oriental», perante um certo«racionalismo» greco-romano a que de resto não poderíamos reduzir asensibilidade crítica: muitos aspectos da sensibilidade helenistica serviramde base ao judeo-cristianismo, e os cristãos da Idade Média percebiam amacerta continuidade ao atrair Virgílio e Séneca para o cristianismo. Aconteceque, no domínio das estruturas mentais e intelectuais, o cristianismoparece-me ter marcado sobretudo uma nova etapa do pensamento racional,conforme P. Duhem o havia defendido no campo da ciência, onde, se-gundo ele, o cristianismo permitira ao pensamento científico progressosdecisivos ao dessacralizar a natureza. Neste aspecto, a oposição folclóricaao cristianismo (mais fundamental, parece-me, que os amálgamas e assimbioses) representa a resistência do irracional, ou melhor, de um outrosistema mental, uma outra lógica, a lógica do «pensamento selvagem».

(**) Constando de Lyon, Vie de saint Germain d'Auxerre, ed. cit.,pp. 142-143. Germano, albergado pelos aldeões, cede às suas súplicas erestítui a voz aos galos que se haviam tornado mudos, dando-lhes a comertrigo bento. O biógrafo mostra não compreender a importância e osignificado deste müagre, que evita mencionar. Ita virtus diuina etiamin rebus minimus máxima praeeminebat. Estas rés minimae, de que falammuitas vezes os hagiógrafos da Alta Idade Média, são precisamente milagresde tipo folclórico — entrados pela «porta do cavalo» na literatura clerical.No caso aqui citado há uma combinação de diversos temas folclóricosenglobados neste milagre de feiticeiro de aldeia que põe em marcha aordem mágica da natureza. Cfr. Stith Thompson, Motif-Index op. cit..

215

_ Assistimos assim, no Ocidente da Alta Idade Média, mais a umbloqueamento da cultura inferior pela cultura superior, a uma estrati-ficaçao relativamente estaaque dos níveis de cultura, do que a uma hierar-quização, dotada de órgãos de transmissão, que garantam influências unila-terais ou bilaterais, entre os níveis culturais. Porém, esta estratificacãbcultural, se é verdade que culmina na formação de uma cultura aristocrá-tica clerical O, não se confunde por isso com a estratificacão social. Apartir da época carolíngia, a «reacção folclórica» será a acção de todas ascamadas laicas. Irromperá *a cultura ocidental a partir do século XI,paralelamente aos grandes movimentos heréticos (*).

A 2426: Nafwe and meaning of animal cries (nomeadamente A 2426.2.18:origin and meaning of cock's cry); A 2489: Animal períodic habifs (nomea-damente A 2489.1: Why cock wakes man in morning; A 2489.1.1: Whycock crows to greet sunrise); D 1793: Magtc results from eating or drin-king; D 2146: Magic control of day and night; J. 2272.1: Chanticleerbelieves'that his crowing makes lhe sun rise.

(") Esta cultura aristocrática clerical desenvolveu-se na época caro-língia, numa penhora recíproca da Igreja sobre os valores laicos e daaristocracia laica sobre os valores religiosos. Se, no nosso tempo, nosséculos V-VI, a aristocracia coloniza socialmente a Igreja, ela só o fazabandonando a sua cultura laica, não como utcnsilagem técnica, mascomo sistema de valores. Entre outros, é significativo o exemplo deCesárío d'Arles (Vita Caesarü, I, 8-9, ed- G. Morin, S. Caesarü opera omnia,t. II, 1937). Cesárío, enfraquecido pelas suas práticas ascéticas em Lérins,é mandado para Aries para uma família aristocrática que o confia aquidam Pomerius nomine, scientia rhetor, Afer genere, quem ibi singu-larem et clarum g.-zmmaticae artis doctrina reddebaf... uí saecularisscientiae disciplinís monasterialis in eo simplicitas poliretur. Pomério, autordo De yita contemplativa, com grande voga na Idade Média, é, de resto,um cristão sem nada de «racionalista». Mas, uma vez adquirida a técnicaintelectual, Cesárío desvia-se desta ciência profana, como lhe sugere umsonho em que vê um dragão devorar-lhe o ombro pousado em cima dolivro sobre que adormecera. No outro extremo do período que analisamos(século VII-VIII), vemos o ideal aristocrático (não nos metemos agora emdiscussões sobre a existência de uma nobreza desta época) invadir aliteratura hagiográfica a ponto de lhe impor um tipo aristocrático desanto; F. Graus, Bibliografia, n.f 22; e F. Prinz, Bibliografia, n.* 36,nomeadamente as pp. 489, 501-507: Die Selbstheüigung dês frankischenA deis in der Hagiographie, 8. Heiligenvita-Adel-Eigenkloster, 9. Ein neueshagiographisches LeitbUd; e os trabalhos citados ibid, pp. 493-494, n." 126e 127, aos quais devemos juntar K. BosI», Der «Adelsheilige», Idealtypusund Wirklichkeit, Gesellschaft und Kultur im Merowingerzeite. Bayerndês 7. und 8 Jh.» em Speculum historiale, Geschichte im Spiegel vonGedichtsschreibung und Gedichtsdeutung (ed. Q. Bauer, 1965, pp. 167-187).

(**) A exemplo de Erich Kõhler, interpreto o renascimento da lite-ratura profana- dos séculos XI e XII como o produto do desejo dapequena e média aristocracia dos mllites de criar para si uma culturarelativamente independente da cultura clerícal, a que se tinham bemacomodado os proceres laicos carolíngios (cfr. E. E. Kõhler, Trobadorlyríkund hôfischer Roman, Berlim, 1962. ld,, «Observatíons historiques etsociologíques sur Ia poesie dês troubadours», Cahiers de civilisation

216

SELECÇÃO BIBUOGRAFÍCA

6.

1. J.-F. ALONSO, La cura pastoral en Ia Espana romanovisigoda, Roma1955.-

2. E. Auerbach, Líteratursprache und Publikum in der Lat*mischeSpatantike und im Mittela/ter, Berna, 1958.3. H. G. Becfc, The pastoral Core of Souls in Souíh-East France duringthe Sixth Century, Roma, 1950.

C. A. BernouIIi, Die Heilingen der Merowinger, Tübingen, 1900.H. Beumann, Gregor von Tours und der «sermo rusticus». SpiegtGeschichte. Festgabe Max Braubach, Münster io>^ —J.-P. Bodmer, Der *>"<•— J- "O "•* 'et de r

_...0~,. uer merowinger, Tübingen—.. u^uinann, Gregor von Tours und der «sermo rusíicuf». ^pieget deiGeschichte. Festgabe Max Braubach, Münster, 1964, pp. 69-98.

_. J.-P. Bodmer, Der Krieger der Merowingerzeit und seine Welt, 1957.7. R. Boese, Superstitiones Arelatenses e Caesario collecíae, Marburgo,1909.

8. I. Boniní, «Lo stile nei sermoni di Caesario di Aries», Aevum, 1962.9. M. Bonnet, Lê 'tatin de Grégoire de Tours, Paris, 1890,ÍO. R. Borius, Constance de Lyon: Vie de saint Germain d'Auxerre,Paris, 1965.

• I I . W. Boudriot, Die altgerm&nische Religion in der amtlichen kirchlíchenLiteratur vom S. bis 11. Jahrhundert, Bona, 1928.

12. S, Cavallin, Liíerarhistorische und textkritische Studien zur *VitaS. Caçsari Arelatensis», Lund, 1934.13. L. Chaves, «Costumes e tradições vigentes no século VI e na actualí-dade», Bracara Augusta. Vlll, 1957.14. P. CourceUe, Lês Lettres grecques en Occident de Macrobe à Cassio-dore. Paris, 1943.

15. ld., ffjsíoire litíéraire -dês grandes invasions germaniaues. Paris, 1948.

médiévale, 1964, pp. 27-51). Acho também como D. D. R. Ower, «Thesecular inSpíration of the "Chanson de Roland"» (Speculum, XXXVII,1962), que a mentalidade e a moral do Roland primitivo são inteiramentelaicas, «feudais», E penso que esta nova cultura feudal, laica, largamenteinfluenciou a cultura folclórica subjacente, porque esta era a única culturade reserva,, que os senhores podiam, se não opor, pelo menos impor, aolado da cultura clerical. De resto, Marc Bloch havia pressentido a impor-tância desta natureza folclórica profunda das canções de gesta («A intrigado Rolandv.vem mais do folclore do que da história: ódio entre enteado epadrasto, inveja, traição». La Société féodale, I., p. 148. Cfr. ibid., p. 133.Certamente, a cultura clerical chegará depressa e facilmente a um com-promisso, B uma cristíanização desta cultura senhoria! laica de fundofolclórico. Jífltre Geoffrov de Monmouth, por exemplo, e Rofaert de Boron,temos apenas • o tempo de lobrígar um Merlin selvagem, profeta nãocristão, louco estranho à razão católica, homem selvagem fugindo domundo cristão, saído de um Myrdclin onde a cultura semiaristocráticados bardos-'celtas havia deixado supor um feiticeiro de aldeia. Mas, aocontrário da época merovíngia, o período românico-eótíco não conseguiuafastar completamente esta cultura folclórica, Teve de contemporizar comela e permitir-lhe que se implantasse antes do novo impulso dos séculos XVe XVI. O ema, eminentemente folclórico e portador de aspirações vindasdo mais seâreto colectivo; da região de Cocagne, apareceu na literatura doséculo XílTãhtes de surgir definitivamente no século XVI (cfr, Cocchiara,// paese df-Cuccagna, 1954). A este respeito, os séculos XII e XIU sãobem a primeira etapa do Renascimento.

217

*• •

16. F.-R. Curtius, La Liltérature européenne et lê Moyen Age latin, trad.franc.. Paris, 1956.

17. H. Delehaye, Lês Legendes hagiographiques, Bruxelas, 1905.18. /</., «Sanctus». Essai sur lê culte dês sainís dans lAntiquité, Bru-

xelas, 1954.19. A. Dufourcq, La Christianisation dês foules. Elude sur Ia fin du

paganisme populaire et sur lês origines du culte dês sainís, 4.* ed.,Paris, 1907.

20. Éiudes mérovingiennes, Actes dês journées de Poitiers, 1-3 de Maio de1952, Paris, 1953.

21. J. Fontaine, Isidore de Séville et Ia culture classique dans 1'Espagnewisigoíhique, Paris, 1959.

22. F. Graus, Volk, Herrseher und Heiliger im Reiche der Merawinger.Praga, 1965.

23. H. Grundmann, «"Litteratus-IHiteratus". Der Wandlung einer Bil-dungsnorm vom Altertum zum Míttelalter», Archiv für Ktdtwge-schichte, 40, 1958.

24. C. G. Loomis, White Magic, An Introduction to the Folklore oiChristian Legends, Cambridge, Mass., 1948.

25. F. Lot, «A quelle époque a-t-on cesse de parler latin?». ArchivtimLatinitatis Medii Aevi, Bulleíin Du Cange, 1931.

26. O. Loyer, Lês Chrétientés celtiques. Paris, 1965.27. S. Mc Kenna, Paganism and pagan survivals m Spain up to the fali of

the visigothic kingdom, Washington, 1938.28. A. Marignan, Éiudes sur Ia civilisation mérovingienne. l. La société

mérovingienne. II, Lê culte dês saints sous lês Mérovingiens, Paris,1899.

29. H.-I. Marrou, Saint Augustin et Ia fin de Ia culture antíque (2.* ed.,Paris, 1937) e Retraclatio, 1959.

30. Id.. Histoire de Véducation dans l'Antiquitét 5.f ed., Paris, 1960.31. lá., Nouvelle Histoire de FÉgüse. I. Dês origines à Grégoire lê Grand

(com J. Daniélou), Paris, 1963.32. L. Musset, Lês Invasions. 1. Lês Vagues germaniques (Paris, 1965).

ILLe Second Assauí conire l'Europe chrétienne (Paris, 1966).33. Dag Norberg, «A quelle époque a-t-on cesse de parler latin en

Gaule?», Annales, E.S.C., 1966.34. G. Penco, «La composizíone sociais delle coramunità monastiche nei

primi secoli», Siudia Monastica, IV, 1962.35. H. Pirenne, «De 1'état de 1'instruction dês laics à 1'époque mérovin-

gienne», Revue belge de Philologie et d'Histoire, 1934.36. F. Prinz, Frühes Mónchtum im Frankenreich. Kultur und Gesellschaft

in Gallien, den Rheinlanden und Bayern am Beispiel der monastichenEntwicklung, IV bis VIU Jahrhundert. Munique-Víena, 1965.

37. P. Riché, Education et Culture dans 1'Occident barbare, Paris, 1962.38. M. Robin, «Paganisme et rusticité», Annales, E.S.C., 1953.39. Id., «Lê culte de Saint Martin dans Ia région de Sentis», Journal dês

Savanís, 1965.40. J.-L. Romero, Sociedad y cultura en Ia temprana Edad Media, Mon-

tevidéu, 1959.41. Saint Germain d'Auxerre et son temps, Auxetre, 1960.42. «Saint Martin et son temps. Memorial du XVI* Centenaire dês débuts

du monachisme en Gaule», Siudia Anselmiana, XLVI, Roma, 1961.43. P. Saintyves, Lês Sainís sucesseurs dês dieux, Paris, 1907.44. Id., En marge de Ia Legende Dorée. Songes, Miracles et survivances.

Essai sur Ia formation de quélques thèmes hagiographiques, Paris,1930.

228

t£í«EW'.

45. E. Saíía La Civilisation mérovingienne d'après lês sepulturas lêstextes et lê laboratoire, Paris, 4 vol., 1949-1959

46. Setíimane di studio del^ Centro Italiano di Studi suü-alto Medioevoai

. *• the ivth «-io A" warafnarc> c/w/ííaí/on traditionneüe et genres de vie, Paris, 1948

V' SSftvS8 discipline pénitenttetle en Gaule dês origines à Ia finau X.A siècle, Pans, 1952. " '

5°' V" 'SSÍSf19?* ?* sources de l'histoire du culte chréíien au Moyen":$e, t-spoieto, Iífo5,51 íi,^e,rÍI^er' Áu«ust^und die V-olksirômmigkeit. Blicke in den früh-

christlichen Alltag, Munique, 1933.

219

CULTURA ECLESIÁSTICA E CULTURA FOLCLÓRICANA IDADE MÉDIA: S. MARCELO DE PARIS

E O DRAGÃO (*)

S. Marcelo, bispo de Paris no século v, depois de haver forcado o des-tino, parece ter caído de novo na obscurídade, onde a sua humilde origemo deveria ter mantido. Numa altura em que, com efeito, o cpiscopado daAlta Idade Média era essencialmente recrutado na aristocracia, a ponto deo nascimento ilustre figurar entre os lugares-comuns hagiográficos queos autores das Vitae repetiam, sem grande risco de engano, mesmo queestivessem mal esclarecidos sobre a genealogia dos seus heróis — Marcelode Paris é uma excepcão (*). Assim, quando Venáncio Fortunato (*). a pe-dido de S. Germano, bispo de Paris, e ainda em vida deste, portanto antesde 28 de Maio de 576, escreve a biografia do seu antecessor O, Marcelo,falecido provavelmente em 436, e quando, entre as raras informaçõestodas orais que recolhe, encontra a menção da mediocridade da sua

(*) Par* as ilustrações a que se faz referenda durante o texto, consultar oartigo original.

C) Sobre as origens aristocráticas de santos na hagiografía rnero-víngia, consultar as excelentes notas de F. Graus, Volk, Herrtcher unaHeiliger im Reich der Merowingcr. Praga, 1965, pp. 362 e sgts. Sobreo meio monástico cfr. K Prinz, Frühes Monchtum im Fronkenreich,Munique-Viena, 1965, pp. 46 e sgts.: «Lerinum ais "Flíichtlingskloster"der nordgallíschen Aristokratie».

O Sobre Fortunato cfr. W. Wattenbach-W. Levíson, DeutxMandsGeschitsquellen im Mittclalter. Vorzeií und Karolinger. I, Weimar, 1952,pp. 96 e sgts.

O La Viia S. Marcelli de Fortunato foi editada por Bruno Kruschnos M. G. H.. Script. Rer. Afcr., W/2, 1885a, pp. 49-54. Reproduzimos,em apêndice, o X e último capítulo da V tia, segundo esta edição. SobreS. Marcelo de Paris cfr. «Acta Sanctorum», Nov., I, 1887, pp. 259-267(G. van Hoof), onde se encontra o texto da Vifa de Fortunato, repro-dução de Migne, PL, LXXXVIII, pp. 541-550; e Viés dês Saínts et dêsBienheureux selon 1'ordre du calendrier avec Vhistorique dês féies pelosRR. PP. Bénédictins de Paris, 1. XI, Novembro, Paris, 1954, pp. 45-49.Estes dois artigos nada contém acerca do dragão processional.

221

origem,' Fortunato tem de reconstituir a carreira do santo, por artesmilagrosas. Cada etapa da carreira eclesiástica de Marcelo segue ummilagre e a sucessão destes 6 também qualitativa: cada um é superior aoque o procedeu. Texto precioso, pois, para nos introduzir numa psicologiado milagre na época mcrovíngia. O primeiro milagre que eleva Marceloao subdiaconato (Viia, V) é um milagre da vida quotidiana e do ascetismo:desafiado, por um ferreiro, a dizer quanto pesa um pedaço de ferro embrasa, Marcelo, toma-o nas mãos e calcula com exactidão o seu peso.O segundo milagre (V i tá, VI) que reveste já um aspecto cristológico e quelembra um dos primeiros milagres de Cristo antes do apostolado decisivodos seus últimos anos, o milagre da bodas de Canaã, produz-se quandoMarcelo, trazendo água do Sena para o seu bispo lavar as mãos, esta setransforma em vinho, vinho que aumenta de volume a ponto de permitir aobispo dar a comunhão a toda a gente presente; o seu autor torna-sediácono. O terceiro milagre, que apenas marca um progresso qualitativo(«miraculum secundam ordine non honore», Vita, VII), envolve Marcelonuma função sacerdotal. A água que, nas suas funções litúrgicas, ofereceuma vez mais ao bispo começa a embalsamar o ar como se se tratasse dosanto crisma, o que faz de Marcelo presbítero. O bispo, pondo sem dúvidamá vontade em reconhecer os milagres de Marcelo, só depois de ser elepróprio o beneficiário do milagre seguinte deixa a sua hostilidade ou assuas reticências. Emudecendo, recupera a palavra pela virtude tauma-túrgica do seu presbítero que, por fim é considerado digno de suceder-lhe— apesar do seu obscuro nascimento (Vita, VIII). Nomeado bispo, Marcelocumpre os altos feitos que a época exige aos seus chefes eclesiásticos, tor-nados, em quase todos os domínios, protectores das suas ovelhas: procedea uma dupla libertação milagrosa, física, ao fazer cau as cadeias de umprisioneiro, e espiritual, ao libertar do pecado esse mesmo prisioneiro queé também, e sobretudo, um possesso (Vita, IX).

Temos, finalmente, o coroamento da carreira terrestre e espiritual,social e religiosa, eclesiástica e taumatúrgica de S. Marcelo (Vita, X):«Venhamos a este milagre (mistério) triunfante que, embora sendo o últimono tempo, é o primeiro pelo valor». Um monstro — serpente-dragão —que nos arredores de Paris semeia o terror entre as populações écaçado pelo bispo que, na presença do seu povo, num dramático'confronto, o submete ao seu poder de essência sobrenatural e o f azdesaparecer.

Ultimo grande feito cuja recordação, diz-nos o hagiógrafo, perdurana memória colectiva. Na sua recolha de milagres, Gregório de Tours,com efeito, em finais do século VI, um pouco após o relato de Fortunatoe cerca de século e meio após a morte de Marcelo, conta este milagrede um santo a quem, alias, não prestava qualquer atenção (*).

f

Parecia pois abrir-se ao culto de S. Marcelo um belo futuro. Noentanto, desde o início, este culto restringiu-se a uma área local. Naverdade, este culto esbarrava com a veneração por outros Marcelos, entreeles o santo-papa Marcelo (possivelmente martirizado em 309, no tempode Maxêncio (*)) c S. Marcelo de Chalon, cujo culto vinha fazer concor-rência ao seu, na própria região de Paris (*).

Como santo parisiense, S. Marcelo pareceu triunfar. Ainda que ahistória do seu culto — fora mesmo do tradicional dragão, objecto desteestudo — esteja cheia de obscuridades è de lendas, sabemos que o teatrodo seu último milagre foi o local da sua sepultura e de uma igrejasuburbana que lhe dedicaram e que ficou na tradição como «a primeiraigreja» de Paris c deu o nome a um dos bairros mais activos — eco-nômica e politicamente — da história de Paris que existe ainda boje:o burgo ou bairro de Saint-Marcel (*). Tendo as suas relíquias sido levadaspara Notre-Dame de Paris (f), em data difícil de determinar, entre oséculo X e o século XII, talvez relacionado o facto com uma epidemiade erisipela gangrenosa, elas desempenharam, daí em diante, umpapel importante na devoção parisiense. A par das relíquias deSanta Genoveva — umas e outras andaram sempre juntas — foram,aié A Revolução, as mais populares protectoras de Paris e as insignesrelíquias para as quais S. Luís construiu a Sainte-Chapelle pareciamincapazes de as suplantar na piedade dos Parisienses {*). Tornado, com

O Gloria Confetsorum, c. 87 (MGH, Scripf., Rer. Mer., 1/2, p. 804).

222

(•) Imperador romano, vencido por Constantino (306 a 312). — (ff. da T.)C) Sobre S. Marcelo de Chalon-sur-Saòne e o seu culto na região

de Paris (este culto teria sido favorecido no século VI pelo rei Gootrau;S. Marcelo de Chalon é, no século IX, o patrono da maior paróquiado domínio de Saint-Denís) cfr. M. Roblin, Lê Terroir de Paris auxépoques gallo-romaine et franqiie, Paris, 1951, p. 165.

(*) Duas teses da Escola das Cartas foram dedicadas ao bairro Satnt--Marcel de Paris. J. Ruinaut, Essai historique sur lês origines et 1'organi-saíion de l'église de Saint-Marcel de Paris (século V, 1597), 1910 («Ppsi-tions dês thèses... de FÉcole dês Charles» 1910, pp. 179-184) e, sobre opróprio bairro, M. L. Concasty, Lê bourg Saint-Marcel à Paris, dês originesau XVI' siècle, 1937 (ibid., 1937, p. 26 e ss.). Sobre a igreja e o cemi-tério de Saint-Marcel, cfr. «Lês églises suburbaines de Paris du IV" auX' siècle», por M. Vieíüard-Troíekouroff, D. Fossard, E. Chatel, C Lamy--Lassalle, em Paris et üe~de-france. Memórias publicadas pela Federaçãodas Sociedades Históricas e Arqueológicas de Paris e da Ue-de-France,t. XI, 1960, pp. 122-134-136 e sgts.

O Sobre a história do culto de S. Marcelo de Paris, cfr. P. Per-drizet, Lê Calendrier parisien à Ia fin du Moyen Age d'après lê breviaireet lês livres d'hewes. Paris, 1933, s. v. Mareei.

(*) Quando, em 1248, S. Luís pediu a todas as relíquias de Parisque viessem acolher à entrada da cidade a coroa de espinhos que vinhade Saint-Denis onde esperara a consagração da Sainte-Chapelle, as relíquiasde S. Marcelo e de Santa Genoveva não chegaram. Cfr. Don MicfaelFélibíen, Histoire de Ia ville de Paris, revista, aumentada e publicada porDom G. A. Lobineau, Paris, 1725, t. L, L p. 295. Sobre S. Luís e as

223

S. Dinis e Santa Genoveva, patrono de Paris, S. Marcelo foi gratificado,desde a Idade Média, com uma casa lendária, naturalmente situada nailha da CitéO). Também o Anão de Tillemont(*) pôde, no século XVII,admirar esta vitória histórica de S. Marcelo de Paris: «Nem o longoespaço de tempo — escreveu — nem a celebridade dos seus sucessoresconseguiram impedir que o respeito que esta Igreja (a de Paris) tem por elenão ultrapasse o que tem por todos os outros e que não seja consideradocomo o seu protector e o seu primeiro patrono depois de S. Dinis» (").

Contudo, não tardaria o retorno de S. Marcelo à obscuridade quasecompleta. A partir do século XVIII e sobretudo apôs a Revolução, o seuculto foi vítima da depuração progressiva da devoção que, no meio pari-siense, se verificou por um enfraquecimento da piedade local; S. Marceloacaba por ser eclipsado séculos passados, por S. Diois e, em especial,por Santa Genoveva. O seu dragão, conforme veremos, foi uma dasprimeiras vítimas da desgraça do santo que, a partir do século XIX,raramente é citado entre os dragões hagiográficos e folclóricos com osquais o santo partilhou por tanto tempo o seu destino!

Porque tentar então ressuscitá-lo neste ensaio científico? Porque oseu caso, vulgar ao primeiro olhar lançado ao texto de Fortunato e àsua sobrevivência medieval, mostra-se, a um exame mais atento, com-plexo, instrutivo e talvez exemplar.

Os dois aspectos sob os quais o dragão de S. Marcelo aparece nahistória medieval nada têm de muito original à primeira vísta. Noséculo VI, sob forma literária, no texto de Fortunato, parece não passarde um desses dragões, símbolos do diabo e do paganismo, que servemde atributo a muitos santos e, especialmente, a santos-bispos evangeli-zadores. A partir de certa data, pouco verosimilmente anterior aoséculo XII, e situada entre o século XII e o século XV, parece então nãoser mais que um desses dragões de procissão que a liturgia das Ladainhaspasseia um pouco por toda a parte.

No entanto, não deixa talvez de ter interesse fazer, a seu respeito,algumas investigações e formular, a propósito, algumas perguntas suscep-tíveis de esclarecerem a história da devoção, da cultura e da sensibilidadeno Ocidente medieval c, mais precisamente, num dos grandes centros decivilização: Paris.

O dragão merovíngio de S. Marcelo será apenas o símbolo diabólico.'

relíquias. <le santa Genoveva, cfr. Carolus-Barré, «Saint Louis et Ia trans-lation dês corps saints», em Êtudes d'Histoire du Droii canonique dédiéesà Gabriel Lê Bros, t II, Paris, 1965, pp. II10-1112.

O Foi ali, por exemplo, que se efectuou o concilio da província deSens, em 1345. Cfr. Berty, Lês Trois Itots de Ia Cite. 1860, p. 29.

(«) Sébastien Lê Nain de Tillemont, historiador francês (1637-1298). Colaborouoo* escritos dos solitários («nacoretas) de Port-RoyaL — (N. da T.)

(") Lê Nain de Tfllemont, Histoire de Saint Louis, 1693, t. X. p. 415,

224

em que a Igreja transformou um monstro portador de uma das cargassimbólicas mais complexas da historia das culturas (")?

O dragão de S. Marcelo da Idade Média clássica será o mesmo doseu velho antecessor e os significados que mais ou menos se uniam nelenão se separam então, revelando tensões, divergências, antagonismossocioculturais?

Não poderão estas tensões ser reagrupadas em volta de dois pólos — ode uma tradição erudita, libertada pelos clérigos e que atribui ao símbolodo dragão um papel de fixação das forcas do mal e o de uma tradição«popular» que, através de toda uma série de contaminações e de meta-morfoses, lhe conserva um valor ambíguo? Se pudéssemos esboçar, comverosimiUiança, uma resposta afirmativa a esta pergunta, a estrutura e acurva da cultura medieval poderiam ser um pouco reveladas,

Do rico texto de Fort u n ato, do qual fazemos ponto de partida, pore-mos de lado os elementos qóe não se ligam ã nossa finalidade oureduzi-los-emos ao aspecto esquemático que os liga ao simbolismo dodragão.

Distinguiremos, em primeiro lugar, os dois temas nele misturados: o daserpente que devora o cadáver de uma mulher adúltera e o do dragãosobre o qual o santo consegue uma brilhante vitória. O primeiro, quenão deixa de ter interesse, continuará ao longo de toda a Idade Média etornar-se-á o símbolo iconográfico da luxúria C3). Mas aqui está ligado,mais ou menos artificialmente (por tradição ou por habilidade literária —

(u) Não tratamos aquí do simbolismo poli valente do dragão, de umamaneira que .desejaríamos exaustiva, nem procuraremos citar a imensa

. literatura dedicada a este assunto. M. Eliade, nomeadamente, insiste no«pofissimbolísmo do dragão, da serpente» (Tratté d'histoire dês religions,nova i d., Paris, 1964, p. 179). Encontraremos indicações interessantesem dois artigos dedicados ao simbolismo do dragão; o de L. Mackensen,em HandwÔrterbttch desdeutschen Aberglaubens, t. II, 1929-1039, col. 364--405 e o de R. Merkelbach em Reallexion für Antike und Christentum,t. IV, 1959, col. 226-250. A respeito do dragão de S. Marcelo, esteúltimo declara «nicht ganz fclar ist die Legende vom Drachensieg dêshcilingen Marcellus» e resume o texto de Fortunato, sem fazer interpre-tações. Voltaremos ao assunto, n. 139, em relação ao artigo de L. Mac-kensen.

(") Sobre o simbolismo medieval da serpente-Juxúria e a represen-tação da mulher devorada por uma serpente, cfr. nomeadamenteE, Mâle, L'Art rvligieux du XIV siècle en France, Paris, 1953. LaFemme aux Serpents, pp. 374-376 (que abandona todo o cenário arcaicode um tema que se figa ao mito da Deusa-mae) e V. H. Debidour,Lê Bestiaire sculpté en France, Paris, 1961, pp, 48, 309, 317, 320 e ill. 438 e440. As modalidades serpente-dragão (que nos bestiários medievais, quandose trata do tentador da Gênese, são modalidades serpente-dragão-grifo)são muito antigas e encontramo-las na tradição grega no par opxKwõtptçcomo na tradição hebraica no par tannin-nâhâsh. Na Idade Média expli-ca-se mesmo, por um texto da Gênese, II, 14 («Et ait Dominus Deus adserpentem: quia fecisti hoc, maledictus es inter omnia animantia et bestiasíerrae; super pectus tuum gradíeris»), a perda das asas e das patas quetransformava o dragãogrifo em serpente. Cfr. F. Wüd, Dractien ünBeowulf und andere Drachen, Viena, 1962.

225

nftft nos interessa), ao tema do santo draconóctono. Não nos ocupa-remos dele mas reteremos — para lá das duas anedotas diferentes — aidentidade serpente-dragao.

Do mesmo modo, não entraremos no estudo pormenorizado das«antigüidades parisienses» sobre as quais este texto pode lançar algumaluz, por vezes bem fraca. As tradições de cultura suburbana, desepultura, exira-muros, de resto documentadas pela arqueologia e pelostextos, estão fora do nosso propósito. Mas os lodaçais do baixo vale doBièvre, que são o teatro geográfico deste combate, e mais ainda a caracte-rística local da aventura fornecer-nos-ão matéria para reflexão sobre ainterpretação deste relato.

Poderíamos também estudar a composição da história e a hábilencenação deste episódio que, através do terreno, do público e dosgestos, faz deste combate um pedaço de bravura onde se deleitaram umautor — formado em Ravena — e alguns leitores ainda saudosos dos jogosde circo e dos triunfos antigos, substituindo-lhes de boa vontade os de umteatro cristão. Apenas conservaremos, deste combate de gladiadorescristãos, o tipo de relação que se define entre o santo e o monstro.

Enfim, não faremos mais que notar a comparação que Fortunato fazdo episódio romano do dragão dominado pelo papa Silvestre C1) e oepisódio parisiense aqui contado. Um historiador do sentimento nacionalpoderia talvez encontrar aqui uma das mais antigas expressões medievaisde um patriotismo cristão gaulês. Este paralelo só nos interessa na medidaem que nos mostra tratar-se de um autor consciente (em certa medida)do aspecto típico e não apenas particular da história que relata.

Antes de analisarmos o episódio do ponto de vista que nos interessa—o que significa o dragão neste texto?—, afastemos rapidamente umahipótese que tornaria inútil este estudo: a historicidade do episódio aquicontado. Se existiu de facto o dragão do qual S. Marcelo libertou osParisienses, estas páginas não têm objectivo. Por dragão entendemosnós uma serpente, um animal real mas assaz extraordinário, nomeadamentepelas suas dimensões, para que se tenha podido transformar, na imaginaçãodos indígenas e da posteridade, num monstro que só alguém dotado depoderes sobrenaturais poderia submeter milagrosamente.

Esta hipótese, como se sabe, foi formulada pelo conjunto de casos damesma espécie e o dragão de S. Marcelo recebeu, mesmo em Paris, pelomenos da parte do clero, uma interpretação concreta nesse sentido. Naverdade, havia, suspenso das volutas da igreja de Saint-Marcel, no bairroparisiense do mesmo nome, em vésperas da Revolução, um animal eropa-

C1) Sobre este episódio, cfr. W. Levison, «Konstantinische Schen-kung una Silvester-Legende» (Síudi e Testi 38). Roma, 1924, pp. 155-247;retomado em Aus rheinischer und frànkischer Frühzeit, Düsseldorf, 1948,pp. 390-465 e a G. de Tervarent, Lês Enigmes de iart du Moyen Age,2.» série, Arte flamenga, Paris, 1941, VIa. «Lê pape au dragon», pp. 49-50.

226

lhado — serpente, crocodilo ou lagarto gigante — levado para ali por umviajante originário da paróquia (") e evidentemente destinado a dar aencarnação realista, científica, do dragão de S. Marcelo. Recordemos queo clero do Antigo Regime favoreceu esta interpretação cientista, que osmitólogos e os folcloristas racionalistas dos séculos XIX e XX deviamretomar, e aplicando nomeadamente essa explicação do dragão de S. Mar-celo, entre outros, Eusèbe Salverte cujo estudo primitivamente inti-

' tulado Lendas da Idade Média — serpentes monstruosas (IS), corri-gido sob O titulo Dragões e .serpentes monstruosas que figuram emgrande número de relatos fabulosos ou históricos ('*), foi incluído nasua obra sob o título novo de Ciências Ocultas ou Ensaios sobre a Magia,os Prodígios e os Milagres, cuja.terceira edição, em 1S56, teve uma intro-dução de Émile Littré, nome que só por si indica o espírito positivista (").Louis Dumont, entre outros ("), fez justiça a esta teoria cientista, pseudo-científica, a que chama naturalista e que só se aplica, quando muito, a umnúmero restrito de factos lendários ('*). Os animais monstruosos, especial-mente os dragões, são fenômenos lendários reais. A sua explicação cientí-fica não pode ser dada no âmbito de um cientismo casual. São factoscivilizacionais que a história não pode tentar explicar, a não ser peloauxílio da história das religiões, dá ctnografia, do folclore. Provêm elasdo mental colectivo (**), o que não quer dizer — pelo contrário, até — que

(**) Sobre o aparecimento destes animais exóticos nas igrejas cfr.P. Perdrizet, op. dt., s. v. Mareei e E. Mâle, L'Art religieux du XIV siè-cle... cit. pp. 325-326. (Que eu saiba, nenhum documento permite afirmarque as igrejas da Idade Média eram «autênticos museus de história natu-ral» — este fenômeno parece-me posterior). E. Mâle cita. J. Berger deXivrey, Traditions tératologiques, 1836, p. 484. Mas o grifo, suspenso davoluta da Sainte-Chapelle, não se encontra em Barthelemy o Inglês, nemna tradução feita por Jean de Corbichon para Carlos V. É uma adendaao manuscrito transcrito por Berger de Xivrey, elaborado em 1512.

(IS) Lettre adressée à A/. Alexandre Lenoir au sujei de son Mémoiresur lê dragon de Metz appelé Graouilli, extraído do «Magasin encyclo-pédique», v. I, 1812.

("J Em Revue encyclopédiaue, cadernos 88 e 89, t. XXX, 1826.(") Paris, 1829, Paris, 1842, antecedido pelo discurso de François

Arago sobre o túmulo de Eusèbe Salverte, de 30 de Outubro de 1839:Paris, 1856, com uma introdução de Émile Littré.

{") L. Dumont, La Tarasque. Essai de descrtption d'un faii locald'un point de vue ethnographique, Paris, 1951, pp. 213 e sgts.

O É talvez o caso do crocodilo de Nímes, que teria sido levado doEgipto pelos legiooários romanos. Mas esta explicação dada por L. J. B. Fé-raud, Superstitions et survivances étudiées-õu point de vue de leur origineet de leurs transformations, Paris, 1896, fica sujeita a caução; porqueo autor é um racionalista da linha de Salverte.

(") Sobre a «psicologia das profundezas» cfr. as propostas dede exploração de A. Dupront, «Problèmes et méthodes d'une histoire deIa psychologíe coílective», Annaíes, E. S. C.. 1961. Sobre a historicidadedo folclore, cfr. G. Cocchiara, «Paganistas. Sopraviyenze folklorichedei paganesimo siciliano», «Atti dei 1.* congresso internazionale di

227

se situem fora do tempo e fora da história. Porém, o nível da sua reali-dade é o das profundezas do psiquismo e o ritmo da sua evolução crono-lógica não é o da tradicional historia dos acontecimentos.

O primeiro reparo que o texto de Fortunato sugere é a ausênciaquase completa de toda a interpretação simbólica por parte do autor. A im-portância da vitória do santo sobre o dragão é de natureza material, psico-lógica, social, não religiosa. Tratava-se de reconfortar o povo aterrorizado(perterriti homines, hinc con/oríatus populus). O bispo sauróctonoaparece aqui no seu papel terrestre de chefe de uma comunidade urbanac não nas suas funções espirituais de pastor. É o defensor nacional(propugnaculum patriae). o vencedor do inimigo público (inimicus publi-cas). O caracter religioso só é aqui evocado para exprimir um temaquerido da hagiografia cristã, desde finais do século IV: na desorgani-zação das instituições públicas, o vir sanctus dissimula a sua carência como uso das armas espirituais, privadas e não públicas, mas postas à dispo-sição da comunidade civil, servindo as arma prívata para proteger oseives, aparecendo o ceptro episcopal como arma de força, graças àtransmutação material gerada pelo poder milagroso do santo — «No ceptrodo qual se mostrou leve a força do poder taumatúrgico» —e pelos frágeisdedos de Marcelo, dedos sólidos como cadeias — cuius moeÜes digittfuerunt catenae serpeniis,

Assim, é em função cívica e não religiosa qpe nos é apresentadoMarcelo triunfando do dragão. Quanto a este, a sua natureza £ tão impre-cisa como a do episcopus Marcelo nos surge bem definida. Chamandoao dragão três vezes bestia, o que evoca o combate do bestiarius,do gladiador, uma vez belua que se refere ã enormidade e aocaracter selvagem, excepcional, do monstro, quatro vezes serpens, uma vezcoluber, que é o equivalente poético de serpente, somente três vezesdraco. Em contrapartida, certas particularidades físicas do monstro sãopostas em destaque: a corpulência (serpens immaníssimus, ingentem be-luam, vasta mole) e as três partes do seu corpo: as curvas sinuosas (sinuo-sis anfrutibus) entre as duas extremidades nitidamente individualizadas: acabeça e a cauda-, primeiro erguidas e ameaçadoras, depois baixadase vencidas (cauda flagellante, capite suplici, blandieníe cauda). O narradorinsiste mesmo num ponto determinado do corpo do monstro, a nuca,porque é neste sítio que se torna possível a milagrosa domesticação: osanto dominador, após ter batido com o ceptro, por três vezes, na cabeçado animal, domina-o, passando-lhe a estola em volta da nuca {missa íncervtce serpeniis orario). Pormenorjts decisivos, pois definem o simbo-lismo do animal, a heráldica do seu corpo e são, ao mesmo tempo, um

studi sulla Sicüia antica», Studi pubblicati dalTIstituto di Storia AntkadcirUniversità di Palermo, X-XI, 1964-1965, pp, 401-416.

225

rito e um cerimonial de domesticação. Voltaremos a abordar esteassunto C1). r

Aparece neste reljto uma frase que nos obriga a procurar, apesarde tudo, para lá do situbolísmo próprio do animal e da sua domesticação,um significado oculto, "de fado diverso do que nos foi descrito: «assim,ao teatro espiritual, aps olhos do povo espectador, só ele combateu oú dragão». O espectáculo que nos foi oferecido é, simplesmente, arepetição de um oufro_ espectáculo mais verdadeiro. Deixemos o teatromaterial para nos transportarmos ao teatro espiritual.

Entre a morte de S. Marcelo c a redacçâo da soa Vita por Fortunato,abandonando provisoriamente o problema de saber se, de meados doséculo V a finais do século Vi, e da tenda oral até à biografia literária,não há mudança de interpretação—que podem representar então esteteatro e este combate?

Saindo a obra de Venâncio Fortunato de um gênero literário bemdefinido na sua época — a hagiografia (") —, devemos primeiramente pro-curar o significado do combate contra o dragão na literatura cristã c,mais precisamente, na hagiografia de finais do século VI. Tentaremosdepois ver de que forma este lugar-comum hagiográfico pode aplicar-sea uma história que Fortunato teria recolhido no seu inquérito parisiense.

Sendo a Bíblia a grande fonte de toda a literatura cristã, procuremosnela primeiro dragões pu serpentes susceptíveis de aparecerem tambémcomo dragões C')- No Antigo Testamento, são muitas as serpentes-dragoes.Destacam-se três delas: a serpente-tentadora da Gênese (III) C*), Bebe-moth (*) e Leviatan (**),. tratada com mais dureza por Isaías (XXVII, 1),que os identifica como serpentes, o que não havia acontecido com o Uvrode Job (XL-XLI), onde"não lhes é dado nenhum nome de animal O- Nos

(") A ímportància-destes pormenores físicos foi particularmente evi-denciada por L. Dumont-op. cit. (no rito, pp. 51-<Í3, na lenda, pp. 155-163,na interpretação, pp. 207-208)._ (") O melhor trabalho sobre a hagiografia merovíngia é o deF Graus, citado n. l onde encontraremos uma ampla bibliografia.

(") Cfr, F. Spadafçra, Dicionário Bíblico, Roma, 1955, s. v. Dragone.(") Sobre as «duas^Génescs» e as «duas serpentes» cujo traço encon-

traremos em determinadas contradições ou divergências do texto bíblico,cfr. J. G. Prazer, Lê Fbiklore dons VAncien Testament, ed. franc. abre-viada, Paris, 1924, pp. 15 e sgts.

(') Animai que aparece ao livro de Job, que uns pensaram ser o elefante,o rinoceronte e que era. afinal, o hipopótamo. — ( N . da T.)

(*•) Monstro que aparece na Bíblia e cujo nome passou a designar o qne -é colossal e monstruoso. — (ff. da 7*-) '

O1) Entre os sinaisTcaracterísticos que os aproximam do dragão deS. Marcelo, notaremos? 1) O habitai nos lugares húmidos («in loashumentibus», Job, XL," 16; no século XII, numa miniatura do ffortiadeticiarum de Herrade de Landsberg, os traços ondulados indicam queo dragão está no mar; <*r. M. M. Davy, Essai sw Ia fymbotique romane.f--.

'.. 229

Salmos (M), agitam-se dragões menos individualizados. Em resumo: se osEvangelhos ignoram o dragão, o Apocalipse dá-lhe um impulso decisivo.Mssíe texto, que irá oferecer à imaginação medieval o mais extraordinárioarsenal de símbolos ("), o dragão recebe, com efeito, a interpretaçãoque se ímporá à cristandade medieval. Este dragão é a serpente da Gênese,6 o velho inimigo do homem, é o Diabo, é Santanás: «O grande dragão,a antiga serpente, a que se chama Diabo ou Santanás» (XIII, 9). Este dra-gão será o dragão eclesiástico. Relegados para o escuro os outros dragõesde que o Apocalipse não negava a existência, torna-se o grande dragão,o dragão por excelência,, chefe de todos os outros — é a encarnaçãode todo o mal do mundo, é Satanás.

A interpretação apocalíptica do dragão tomar-se-ia, em finais doséculo VI, a interpretação habitual dos autores cristãos? C*) Iriterrogue-

Paris, 1955, p. 167); 2) A cauda (Béhémoth: «stringit caudam suam quasicedrum», Job, XL, 12); 3) O pescoço (e mais geralmente a cabeça emLéviathan: «ín colío ejus morabitur fortitudq», Job, XLI, 13). Sobre osdragões, e especialmente o dragão de Daniel, nos Apócrifos bíblicos,cfr. F. Graus, op. cit., p, 231, n. 204 e R. Merkelbach, op. cií., col. 247.

Ô Por exemplo, Ps. LXXIII, 13; Ps. XC 13; Ps. CXLVIII. 7.(") Apocal., XII, 3. Sobre comentários medievais do Apocalipse

consultar-se-á o inestimável repertório de F. Stegmüller, Repertoriumbibücum medii aevi. M. R. Sanfaçon, professor da Universidade Lavaide Quebeque, e G. Vezin preparam trabalhos sobre a iconografia doApocalipse. Os dragões do Apocalipse foram utilizados para fins múl-tiplos: morais, estéticos, políticos.(^) Há pouco que tirar no artigo dedicado ao dragão (H. Leclercq)do Dictionnaire d'Archéologie chrétienne et de Liturgie, IV/2, 1921,coL 1537-1540, tributário de trabalhos antigos, de resto meritórios no seutempo e que permitem seguir o avanço historiográfico do problema.Segundo Dom Jérôme Lauret, por exemplo em Sylva allegoríarumtotius sacrae Scripfurae, Veneza, 1575, «para os pais da Igreja, o dragão6 uma espécie de serpente de grande dimensão, que vive na água, pestí-lencial e horrível; os dragões significam habitualmente Satanás e os seuscomparsas; Lúcifer é chamado «grande dragão». Com Marangoni, Dellecose gentilesche e profane trasporíate ad uso e ad ornamento detíe chiese.Roma, 1744, estabeleceu-se a ligação entre dragões pagãos e dragõescristãos por um lado, os textos e os documentos arqueológicos e documen-tos iconográficos por outro. O método da história das religiões e da antro-pologia nascentes encontram-se em A. Longpérier. «Sobre os dragõesda Antigüidade, a sua verdadeira forma, e sobre os animais fabulosos daslendas», em Comptes rendus de Ia T session du Congrès internationald'anthropologie et d'archéolog'te préhistorique, 1867, pp. 285-286 e emM. Meyer, «Ueber die Werwandtschaft heídnischer und christlichen Dra-chentodter», in Verhandlungen der XL Versammlung deutscher Philologie,Leipzig, 1890, pp, 336 e sgts. Este artigo tem também o mérito de chamara atenção para o texto de Gregório o Grande (Dialogi, Ti, c. XXV):«De monacho qui, ingrato eo de monasterio discendens, draconern contrase in itinere invenit» que mostra o uso antigo do dragão na simbólicadisciplinar beneditina e na utilização política do simbolismo do dragãona época carolíngia, a partir de um texto da Viía de santo Eucher (M.GH,Script. Rer. Afer., VII, p. 51), no âmbito da campanha eclesiástica de

mos duas autoridades: Santo Agostinho e, cerca de meío século depoisde Fortunato, Isidoro de Sevilha, o primeiro enciclopedista da IdadeMédia. De facto, permitir-nos-emos estender este rápido inquérito atéBede (*), o último «fundador» da Idade Média, segundo opinião deK. Raod, pois os clérigos permaneceram, até meados do século VIU,no mesmo mundo cultural. Santo Agostinho dá pouca atenção ao dragão.Só quando a palavra aparece na Bíblia, é que Santo Agostinho se senteobrigado, como exegeta, a explicar-lhe o sentido. E sobretudo no seuComentário dos Saímos (Enarraíio in Psalmus) que ele defronta o dragão.Não ignora a identificação dragão-satanás e ela fornece-lhe a explicaçãodo Sairão XV, 13, «Vencerás o dragão e o leão* e no Salmo CUI, 27, «Odragão que imaginaste para o enganar». Agostinho vê, neste dragão, o«nosso velho inimigo» (w). Porém sente-se mais embaraçado para inter-pretar os dragões do "Salmo CXLVIII. Aqui, na verdade, o Salmista,exortando toda a criação a louvar o Senhor, convida os dragões a junta-rem-se ao coro destes louvores.

Louvai o Senhor, dragões da terra C*)e vós todos, voragens (Salmo CXLVm, 7).

Agostinho, consciente da contradição que haveria em mandar quelouvassem a Deus criaturas cuja natureza maléfica e rebelde é pordemais conhecida, sai-se dela explicando que o Salmista apenas cita aquios dragões como os maiores seres vivos terrestres criados por Deus(majora non sunt super terram) e que são os homens, cheios de admiraçãopelas proezas de Deus, capazes de criar seres tão consideráveis em tama-nho, quem associa os dragões ao hino que o mundo, como existênciaúnica, dirige ao Senhor ("). Aqui, apresenta-se pois o dragão sob umaspecto essencialmente realista, científico: é o maior animal.

Sem dúvida que os comentadores do Apocalipse da Alta Idade Médiaforam naturalmente levados a identificar o dragão com o diabo. Encon-tramos, por exemplo, em Cassiodoro ("), Primásio, bispo de Adrumete,

descrédito contra Carlos Martel, espolíador das igrejas: em 858, Luís oGermânico recebe, dos bispos das províncias de Reims e de Rouen,o aviso de que o seu trisavô Carlos Martel é certamente um condenadoporque santo Eucher d'Orleães o viu um dia no meio do inferno e umdragão se escapava do seu túmulo — tema cujo parentesco com o dragãoda Viía S. Marcelli é surpreendente (segundo A. de Bastard, «Rapportsur une crosse du XII" siècle», em Bulletin du Comitê de Ia langue. de1'histoire et dês arfs de Ia France, 1860, t. IV, pp, 450 e 683, n. 206).

(*) Bede o Venerando, monge e historiador inglês de saber enciclopédico (672ou 673). — W Já T.)

(*) Santo Agostinho, Enarraíio in Ps. CHI, 27, PL, 36-37, 1381-1383.(*) Trata-se aqui do dragão terrestre.O Santo Agostinho, Enarratio in Ps. Cffl, 9, PL, 36/37, 1943.(*) Cassiodoro, Complexiones in Apocalypsim, PL, 70, 1411; c Expo-

siíiones in Psalteríum, ibid., 531 (comentário do Ps. LXXfll, 13).

230 231

falecido em 586("), e em Bede, a dupla identificação do diabo com aserpente da Gênese, por um lado, e, por outro, com o dragão do Apo-calipse (**)•

No entanto, em Isidoro de Sevilha, o dragão é essencialmente tratadode maneira científica, não simbólica. É o «maior de todos os animais»:«o dragão é a maior de todas as serpentes e de todos os animais daterra» ("). Dois porraenores importantes definem-lhe os hábitos: um ani-mal simultaneamente subterrâneo e aéreo, .que gosta de deixar as cavernasonde se açoita para voar pelos ares; a forca que possui não lhe residena goela nem nos dentes, mas na cauda (*"). A propósito do dragão,preocupam Isidoro dois problemas científicos: o primeiro reside naquiloque distingue o dragão dos outros animais semelhantes e, em primeirolugar, da serpente. A resposta parece clara. Isidoro, utilizando sobretudoVirgílio, estabelece a diferença entre anguis, serpens e draco: anguls vivena água, a serpente na terra e o dragão no ar (w). Mas Isidoro esbarraentão com o segundo problema: o do habitai do dragão. Ele não pode, comefeito, ignorar a multiplicidade de elementos onde habita e se move o dra-gão e, em particular, as suas ligações com a água, que não aparece emnenhumas das duas definições dadas atrás. É então levado assim adistinguir um tipo * especial de dragão: o dragão marinho, «draco mari-nus» (w).

Em contrapartida, com Isidoro, o dragão escapa ao súnbolismomoral e religioso. Numa passagem das Sententiae (III, V, 28, PL, 83, 665),Isidoro enumera as formas animais que o diabo toma, consoante encarnatal ou tal vício ou pecado mortal: animal, sem precisão, quando sefaz luxúria (luxuria). serpente (serpens) quando se transfoima em cupidezou malícia (cupiditas ac nocendi malitia), ave (avis) quando tem orgulho(superbia ruína) — nunca é dragão. Contudo, Isidoro, sábio completo, nãoignora outros aspectos pouco úteis do dragão, pensamos nós, para elucida-ção do texto de Fortunato, mas muito preciosos para o conjunto do «dos-'sier» que tentamos reunir e apresentar. Isidoro conhece três outros dragões:o dragão-tutelar que vigia as maçãs de ouro do pomar das ilhas Hespét

(") Primásio, Commeniarium in Apocalypsim, PL. LXVin, 873-875*3(M) Bede, Hexaemeron, PL, 91, 53; Commentaríi in Pentateuchum.j

ibid., 210-211; Explanatio Apocalypsis. ibid.. 93, 166-167. l (ai(") Isidoro, Etymologiae, XII, IV, 4, PL, LXXXH, 442. ; lVi(") «Qui saepe a speluncis abstractus fertur in aerem, concitaturque

propter eum aer... Vim autem non in dentíbns, sed in hábet, et verbere,potius quam rictu nocet» (ibid.).

(w) Isidoro, Differentiae, I, 9 (PL, LXXXIH 16): «in mari angues,in terra serpentes, in templo dracones». Isidoro reproduz de facto o.comentário de Sêrvius de Virgflio, Eneida, 2, 204.

C1) Isidoro, Etymologiae, XH, IV, 42, PL, LXXXII, 455. .-.íU

232

('*) (*); o dragão-estandarte que figura nas insígnias militares e deque Isidoro, lembrando o uso que deles faziam Gregos e Romanos, remontaas suas origens à vitórja de Apoio sobre a serpente Pitáo C1*) (**); odragão-anular que, mordendo a cauda, representa o ano, o tempo circular,o tempo redondo, o tempo do eterno retorno e cuja invenção Isidoroatribui ás velhas civilizações e, explicitamente, à egípcia (").

Isidoro conhecia, enfim, o combate de um bispo contra um dra-gão. O caso que cita é o de Donato, bispo de Epíro, no tempo dosimperadores Arcádio e Honório, que teria morto um enorme dragão,cujo hálito empestava o ar e cujo cadáver teria sido com dificuldadepuxado por oito juntas de bois até à fogueira onde foi queimado C41)-Isidoro não dá qualquer interpretação simbólica deste alto feito.

É muito difícil elaborar uma lista cronológica dos combates de san-tos e, maís especialmente, de bispos contra os dragões. Os trabalhosexistentes são, a um tempo, imprecisos e sujeitos a garantia ("), O histo-

(") «In quarum bortis fingunt fabulae draconem pervigílem áureamala servantem» (Etym.. XIV, VI, IO, PL, LXXXII, 14).

(') Ilhas fabulosas (Canárias?) do Atlântico onde as filhas de Atlas possuíamum pomar que dava magas de ouro, guardadas por um dragão de 100 cabeças.— (W. da T.)

O*) «Draconum signa ab Apolline morte Pythonis serpentis inchoatasunt Dehinc a Graecis et Romanis in bello gestari coeperunt» (Etym.,XVin, III, 3, PL, LXXXU, 643).

(**) Serpente monstruosa, morta por Apoio no monte Parnaso. Apoio, emrecordação do feito, fundou os Jogos Pfticos, celebrados de 4 em 4 anos. — (ff. da T.)

(") «Annus quasi annulus... Sic enim et apud ^Cgyptís indicabaturante inventas lítteras, picto dracone caudam suam mordente, quia in serecurrit» (Etym., V, XXXVI, 2, PL, LXXXH, 222). Sobre o dragão«enrolado» na arte das estepes e na arte merovíngia, cfr. E. Salin, LaCivilisation mérovingienne d'après lês sépultures. lês textes et lê labora-toire, IV, Paris, 1959, pp. 241-244, onde o autor, na peugada de J. Grimm,dá a este tema a interpretação pouco verosími], e em todo o caso desviada,do dragão guardador-de-tesouros. Cfr. M. Eliade, Lê Myíhe de l'EíernelRetour: Archétypes et répétition, Paris, 1949.

(") «Per idem tempus Donatus, Epiri episcopus, virtutibus insignisest habítus. Qui draconem ingeníem, expuens in ore ejus, peremit, quemocto juga boum ad locum incendu vix trahere potuerunt, ne aeremputredo ejus corrumperet». (Chroniscon, 107, PL. LXXX1H, 1051). En-contra-se também aqui, num contexto diferente, mas mais explicitamentediabólico, um dragão na Vita de S. Cesário d*Aries (ed. G. Morin, Mare-dsous, 1942, t, H, pp. 299-300); quando Cesário, depois de ter deixadoo mosteiro de Lérins, por razões de saúde, se entrega em Aries à ciênciaprofana, adormece uma noite sobre um livro e vê um dragão que lhedevora o braço.

CO Cfr. os trabalhos citados no Dictionruãre d'Archéologi£,.. cft.,'e mencionados na n. 28. É lamentável que a obra de C G. Loomis, WhíteMagic. An Introduction 1o ihe Folklore of Christian Legend, Cambridge,Mass., 1948, seja dificilmente utilizável pela sua confusão e principal-mente pela falta de distinções cronológicas, p P. Delehaye, cujos trabalhossobre a hagiografía permanecem fundamentais apesar da sua problemática

233

riador de factos de civilização tradicional dificilmente abre caminho entreos positivistas que desprezam tais fenômenos ou lhes aplicam métodos ina-dequados e os historiadores que esquecem a cronologia, entre o desprezoe a ingenuidade, a erudição míopç e a curiosidade perturbadora. A históriadas mentalidades, das sensibilidades e das crenças move-se em tempos lon-gos, embora submetidos a uma diacronia, cujos ritmos são especiais. Limi-temo-nos, neste esboço, a alguns pontos importantes de referência.

A vitória do santo (e, repetimos, sobretudo do santo-bispo) sobre odragão remonta às fontes''da tradição hagiogrâfica cristã. Com efeito,encontramo-la na primeira hagiografia que, na Viía de Santo Ambrósto,escrita por Paulíno de Milão, depois na biografia de S. Martinho, da auto-ria de Sulpício Severo, servirá de modelo a todo o gênero, como a vidade Santo Antônio, escrita por Santo Atanásío ("). AÍ encontramos ainterpretação diabólica do dragão. Mas, seja porque a atmosfera eremíticada Historia monachorum de Atanásio tenha desconcertado a cristandadeocidental, seja porque o desaparecimento do conhecimento do grego naIgreja latina tenha limitado, pelo menos por algum tempo, a influência daVita de Antônio, este episódio, entre outros, não parece ter tido, no Oci-dente, grande êxito nem dírecta influência no S. Cesário e o dragão. Oúnico episódio do santo sauróctono que parece ter tido grande repercussãona Alta Idade Média foi o do dragão do papa S. Silvestre, que Fortunatoprecisamente evoca e que dá lugar a uma comparação com vantagem para

S. Marcelo.Este episódio da lenda de Silvestre atraiu infelizmente a atençãodos historiadores, sobretudo ligados ao papel e ao momento históricosde Silvestre ("). Papa no tempo da conversão de Constantino, orientou,por tal facto, os historiadores para a interpretação política do seu ponti-ficado. Neste contexto, o combate contra o dragão tornava-se natural-mente o símbolo da vitória contra o paganismo. No entanto, uma outra

'-' interpretação — mais romana que ecumênica — e que mesmo em Romaparece ter tido, na Idade Média ("), mais interesse que a interpretaçãocatólica coloca este milagre num novo contexto. Nesta perspectiva,o dragão de Silvestre assemelha-se a uma serpente gigantesca que deu

por vezes ultrapassada, não abordou sistematicamente este tema. SegundoF. Graus, op. ei/., p. 231, n. 203, um estudo de conjunto do tema dodragão e do combate contra o dragão foi recentemente elaborado porV. Schirmunski (cfr. Vergleichende Epenforschung I «Deutsche Ak. derWiss, zu Berlin. Verbff. dês Instituis für Deutsche Volkskunde»,vol. XXIV, Berlim, 1961, pp. 23 e sgts., que não pude consultar).

(") PG, XXVI, 849. Sobre a influência da Vie de St. Antoine porAtanásio sobre a hagiografia ocidental da Alta Idade Média, cfr. S. Caval-lin, Literarhisíorische und íextkritische Studíen zur Vita S. Caesarü Are-latensis, Lund, 1934.(") É o caso do estudo de W. Levison, citado no n. 13.

O Cfr, A. Graf, Roma netta memória e nelVimaginazione dei médioevo, Turim, 1923, pp. 177 e 442.

234

à costa durante uma inundação do Tibre e que evocaria, de facto, opapel do bispo-papa na luta contra as calamidades naturais em Roma (").Este episódio insere-se pois .numa tradição romana, a dos prodígiosligados às calamidades naturais (") e prefigura um episódio da carreirade Gregório, o Grande: o episódio do monstro encalhado na margemdo Tibre, numa inundação em 590, no preciso momento em que, segundoo testemunho de Gregório de Tours, Gregório, que já se fizera notar noseu papel social, nomeadamente no domínio dos abastecimentos, se tornabispo de Roma e inaugura o seu pontificado,' protegendo a populaçãoromana das calamidades naturais (inundação e peste) e suas conse-qüências C*). ;

Portanto, em finais do século XI, não se fixou o simbolismo cristãodo dragão nem do combate do santo-bispo contra um dragão. Ele tendea identificar, no sentido da exegese do Apocalipse, o dragão-serpentecom o diabo, e dar, à vitória do santo, o sentido do triunfo sobre omal, quer dizer, nesta fase da cristianizacão do Ocidente, toma o sentidode um episódio decisivo na vitória do cristianismo sobre o paganismonuma região e, mais especialmente, numa civttas. Porém, ele deixa aindatransparecer outras tradições, nas quais é diferente o significado dodragão. Estas tradições são as que o próprio cristianismo herdou. Elas sãoem geral já marcadas por evoluções, contaminações, toda uma históriaque torna difícil a sua análise. Todavia — vemos que Isidoro de Sevilhajá o fizera — podemos também tentar distinguir nelas diversas contri-buições culturais: a herança greco-romana. a herança germano-asiática,a herança indígena.

Os elementos que extraímos desta imensa e complexa herança são,bem entendido, o resultado de uma selecção, de uma escolha. Espe-ramos, no entanto, não falsear o significado das tradições apontadas.

Na tradição greco-romana ('"), parecem-nos essenciais três aspectosligados ao dragão c ao heróico combate contra ele. O primeiro aparece

O Cfr. Ch. Cahier, Caractéristiques dês saints dons Vart populaire,1867, p. 316 e G. de Tervarent, op. c/f l, n. 13, p. 50. É curioso queSilvestre e Marcelo foram ambos de resto gratificados com o mesmomilagre, semelhante ao milagre do combate contra o dragão: ambos teriamdominado um touro furioso tresmalhado (cfr. para Silvestre, La Legendedorée e para Marcelo, J. Ã. Dulaure, Histoire physique, civile et moralede Paris, 1837, I, pp. 200 e sgts.). Mera coincidência, recordação comumde luta contra o culto de Mithra, simbolismo mais vasto ligado ao sim-bolismo arcaico do touro?

(4I) CfiyR. M. Grant, Miracle and natural Law in graeco-roman andearly christian thought, Amesterdão, 1952 e R. Bloch, Lês prodiges dons{'Anliquité classique. Paris, 1963.

(") Gregório de Tours, Historia Francorum, X, I.<") Cfr. E. Küster, «Die Schlange in der griechischen Kunst und

Religion», em Religionsgeschichtlicke Versuche und Vorarbeiten. XIII,2, 1913.

235

através dos ritos, das crenças e das lendas ligadas à fecundação. Sabemosa importância que tal prática tomou na época helenística, prática deque o Asclépeíon (*) de Epidauro foi o grande centro, e se prolongoupelo mundo romano sobretudo na parte oriental ("). Este desejo, numagrávida sagrada, uma visão ou um sonho portadores da resposta que al-guém sofredor ou inquieto pôs ao deus, não era mais que o prolongamentoda tradição de relações sexuais sobrenaturais entre uma mulher e um deus,que geravam um herói. A aparência tradicional do deus fecundador era ade uma serp?nte-dragão. Alexandre é o mais célebre filho destas núpcíassagradas. Mas Suetónio (**) lembra que Apoio, com a forma de dragão, sedeitou com Átia e praticou no seu templo a fecundação e assim gerouAugusto ("). Em volta de Asclépío, revestindo a forma de dragão, eda tradição de Hipócrates se desenvolveu, em Cos (1J), a lenda do dragão.O que aqui nos importa é a ligação do dragão com o mundo nocturnoe onírico, a mistura de desejo e de temor, de esperança e de medo,em que mergulham as suas aparições e os seus actos. A psicanálise deviainteressar-se por tais problemas. A eles voltaremos (**).

O segundo aspecto é o do significado de libertação de uma situaçãodo mito grcco-romano do deus ou do herói sauróctono. Mesmo que ainstalação de Apoio em Delfos, após a vitória sobre a serpente Pítão, trans-

(") Cf r. L. Deubner, De incubatione, Giessen, 1899.—M. Hamilton,tncubation for the cure of Disease in pagan temples and chrístian churchestLondres, 1906. P. Saintyvcs, En marge de Ia Legende dorée. Songes, mira-cies et survívances, Paris, 1930, pp. 27-33.

(") Historiador latino (cerca de 75 a cerca de 160), autor de biografias dosDoze Césares, recolha de anedotas históricas, que revelam grande investigação depormenores e abundância de informações.

C1) Suetónio, Divi Augusti Vita.,94.C1) K. Herquet, «Der Kcrn der rhodischen Drachensage», in Wochen-

blatt dês Johanniterordens Balley, Brandeburgo, X, 1869, pp. 151 e sgts. —R. Herzog, Kos. Ergebnisse der deutschen Ausgrabungen und Forschun-gen. I. Asklepieion, Berlim, 1952.

(**) Quanto às interpretações psicanalíticas da incubação cfr. a tra-dição ortodoxa freudiana, E. Jones, On the Nightmare, 1949, pp. 92-97(e sobre as incubi medievais: ibid., passim); por um discípulo de JungC A. Meier, Antike Inkubation und modeme Psychotherapie (Studienaus dem C G. Jung-Institut, I), Zurique, 1949. Sobre a interpretaçãopsicanalítica e antropológica do simbolismo do dragão e dos matadores Ados dragões, não me foi possível consultar os trabalhos de G. Róheim, '*«Dragons and Dragon Killers», em Ethnographia, Budapeste, 22, 1911,Dratfien und Drachenkàmpfer, Berlim, 1912; «The Dragon and theHeró», em American Imago. I, 1940. Na obra Psychoanalysis and Aniro-pology, Nova Iorque, 1950, G. Róheim, que define, segundo Freude Jones, o símbolo como sendo «the outward representative of a latentrcpressed content» (definição cuja utilização poderia renovar o estudodo simbolismo medieval) tratou do simbolismo sexual da serpente naAntigüidade (pp. 18-23) e sugeriu o do dragão (cfr. a frase de um primitivo,australiano: «your penis is üke a muruntu — dragão», ibid., p. 119).

236

vase o quadro local O, e mesmo que o combate de Perseu contra o dragãoque retém Andrómeda prisioneira não esteja directamente ligado àfundação de Micenas, o mito de Cadmo (*), por exemplo, serve paraesclarecer o alcance da vitória sobre um dragão. Ela permito e significao estabelecimento de uma comunidade em determinado local. Ela éum rito de fundação urbana ou de valorização de uma terra. O dragãoé, aqui, o símbolo de forças naturais que precisam ser dominadas. Se amorte é necessária, não o é só porque com ela se afasta um obstáculo,mas porque ela é fecundante. • Cadmo semeia, no território da futuracidade de Tebas, os dentes do dragão imolado.

Para lá da herança greco-romana, projecta-se a contribuição dasculturas orientais que vieram irrigá-la. Ora, na Babilônia, na Ásia Menor,no Egipto, podemos seguir a evolução do simbolismo do dragão. G. ElliotSmith traçou-a t") num estudo 'fundamental. O dragão, na área culturalisíático-egípcia, era primitivamente a personificação das forças da água,i uma tempo fertilizante e destruidora. O elemento principal nos poderesJos dragões era o domínio da água: benevolentes, davam as chuvas cas fecundantes inundações fluviais; hostis, desencadeavam dilúvios e inun-dações devastadoras. De início, arrebatou-o o papel positivo dos dragões,criaturas benévolas, personificações e símbolos de deuses da fecundidadee de heróis ou reis civilizadores; assim acontecia com o dragão queencarnava Tiamat, uma das formas da Deusa-Mãe, e o dragão marinholigado ao nascimento de Afrodite, ela própria uma das formas da Deusa--Mãe. Mais tarde o dragão desclassifica-se e acaba por tornar-se o símbo'odo mal. No Egipto, identifica-se com Set, o inimigo de Osíris e deHórus, o assassino de Osíris e a vítima do filho de Osíris, Hórus. Destamaneira, a racionalização egípcia precede a racionalização cristã. Deresto, no Egipto, podemos observar, por um lado, a passagem de Hórusa Cristo e, por outro, de Set a Satanás. Mas o que nos interessa aqui,apesar do parentesco com a serpente, é que o animal ctoniano (**) porexcelência, o dragão, aparece fundamentalmente ligado às forças daságuas.

*-_•

(") Cfr. J. Fontenrose, Python. A sludy of Detphic Myth and itsorigins, 1959.

- -(*) Dos dentes do dragão sacrificado por Cadmos nasceram, segundo a lenda,homens armados que se mataram uns aos outros, ficando apenas cinco, que foramos nobres de Tebas, na Bcõcia. — (tf. da T.)

(") G. Elliot Smith, The Evolution of the dragon, Manchester, 19Í9.M. Eliade, que muito insistiu na ligação das serpentes e dos dragões comas águas, dos dragões como «emblemas da água» (Traité... c/Y., pp. 179--182), não cita este trabalho.

(**) Nome dado a diversas divindades infernais. — (N. da T.)

237

O Extremo Oriente 6 outra grande pátria do simbolismo do dragão.Parece ter atingido directamente o Ocidente cristão muito mais tarde, noséculo Xm na opinião de Jurgts Baltrusaitis (")• Na China, c dragão pa-rece, sobretudo, ligado ao mundo uraniano, ao mito solar, tem asas. Mas,ao longo das estradas das estepes, este dragão celeste confunde-se, maisou. menos, com a serpente ctoniana e com o dragão, ctoniano também,guardião de tesouros e aparentado com o grifo — grifo que as transfor-mações do sincretismo simbólico animalístico dotarão igualmente deasas C')- O importante é que estes dragões do Extremo Oriente, cami-nhando ao longo das estradas das estepes, chegam ao Ocidente na épocamerovíngia. Édouard Salin, desenvolvendo uma idéia de Forrer ("), escla-receu, através de uma análise das formas estéticas da arte merovíngia,esta culminância ocidental do dragão asiático e sublinhou as duas carac-terísticas principais do seu simbolismo — a polivalência e a ambigüidade:«as formas do dragão roerovíngio são muito diversas e o seu simbolismonão o é menos; traduz, na verdade, e com toda a verosimilhanca, crençasigualmente diversas, ao mesmo tempo que reproduz divindades muitodiferentes» (**)- E mais: «quase sempre de caracter solar quando se apa-

(") J. Baltrusaitis, Lê Moyen Age fantastique. Antiquités et exotismesdons /'ar/ gothique, Paris, 1955, cap. V. «Asas de morcegos e Demônioschineses», pp. 151 ss.: «Á mesma evolução pode ser seguida quanto aodragão, uma das encarnações do diabo. Na arte românica, é uma serpentesem asas nem patas ou um pássaro com cauda de lagarto. Na arte gótica,aparecem asas membranosas. Uma das suas primeiras figurações, nestenovo aspecto, pode assinalar-s*. no Psauíier de Edmond de Laci (m. 1258,Belvoir Castle)» (p. 153). Se as asas de «morcegos» se desenvolvem comefeito no século XIII e se os modelos chineses puderam ter influêncianesta evolução, o dragão românico pode perfeitamente ter asas e patas,tal como o que se vê na parede sul do baptistério de S. João de Poitiers,datado, mais ou menos, do ano 1120 (P. Deschamps e M. Thibout, LaPeinture murale en France. Lê Hauí Moyen Age et Vépoque romane.Paris, 1951, p. 94). Acerca dos dragões chineses e asiáticos, especialmentehindus, cfr. M. Eliade, Traité... pp, 180-182, e a bibliografia, pp. 186-187,a que podemos acrescentar, entre outros, H. C. du Bose, The Dragon,Image and Demon. Londres, 1886; J. C. Ferguson, Chinese Mythology,Boston, 1928; R. Benz, Der Orientalische Schlangendrache. 1930; F. S. Da--niels, «Snake and Dragon Lore of Japan», em Folklore, 71, 1960, pp. 14>-g-164, Cfr. n. 133 infra. --••*

(**) Vemos, por exemplo, o tentador sob a forma de um grifo alado |por cima das portas de bronze da catedral de Hildesheim (1015). Cfr.',H. Leisinger, Bronzi Romanici. Porte di Chiese neWEuropa medioevale,'Milão, 1956, ill. 19. Acerca do simbolismo do grifo, cfr. K. Rathe, «Der.Richter auf dem Fabeltier», in Festschrift für Julius von Schlosser. 1927&pp. 187-208 e F. Wild, Greips-Greif-Gryphon (Griffin). Eine sprach-kuífur~%und stoffgeschichtliche_Studie, Viena, 1963. -.,>']

(") Forrer, «A propôs d'un bijou à dragon émaillé trouvé àMeinau», em Cahiers d'archéologie et d'histoire mérovingienne. cit., lp. 241. "^

("*) E. Salin, La civilisation mérovingienne, cit., IV, p. 241.

- - -"-"rentam com o grifo, e de caracter ctoniano quando saíram da serpente;ora benéficas, ora maléficas, as representações do dragão surgem, decidi-damente, como herança de crenças quase tão velhas como o mundoe espalhadas através da Eurásia, do Oriente até ao Ocidente»! (")

Neste complexo de simbolisraos e de crenças, tentaremos retirara parte que cabe às tradições indígenas, ao lado da herança greco-romanae do contributo asiático-árabe. Se considerarmos o inundo céltico noseu todo, vemos que em certas áreas fervilham os dragões C1) e que,por exemplo na Irlanda, os santos foram especialmente criados paralutarem contra eles (")• Mas o universo gaulês das crenças e dos símbolosnão aparece rico de dragões, embora tenha partilhado, é certo, a serpentectoniana, atributo de deuses e de deusas ("), morta por Hércules gaulês,Smértrios, o «Provedor» ("). f

Mas, por detrás destas heranças, não será, sobretudo, a serpente--dragão quase universal em todas as crenças e mitos primitivos? O dragãomerovíngio não será, principalmente, um monstro folclórico (6S), ressur-gido, nesse intervalo, das crenças onde se apaga a cultura paga, semque o sistema cultural cristão esteja implantado verdadeiramente? (*T) SeFortunato esboça, precisamente, a interpretação cristã, eclesiástica, dodragão de S. Marcelo, não teria este, na tradição recolhida porFortunato, um outro significado? Não deveríamos tentar descobrir estesignificado nas profundezas de um folclore renascente, embora carre-

C1) Ibid., pp. 207-208.(**) Cfr. A. Lenoir, «Mythologie celtíque. Du Dragon de Metz

appelé GraouiUi...», em Mémoires de VAcadémie celtique, t. II, 1808,pp. 1-20; J. F. Cerquand, «Taraois et Thor», em Revite celtique, t. VI,1883-1886, pp. 417-456; G. Henderson, Celtic Dragon Myth, Edimburgo,1911.

(") Cfr. H. J. Falsett, Irísche Heüige und Tiere in mittelalterlichenlateinischen Legenden, Bona, 1960; F. Graus, op. cit., p. 231, n. 203, dácomo exemplo de combate de um santo com um dragão, na hagiografiairlandesa, episódios da Vita s. Abbani, c. 15, 16, 18, 24 (em C. Plum-mer, Vitae Sanctorum fiiberniae, I, Oxford, 1910, pp. 12, 13, 15, 18 ss.).

C4) Cfr. A. J. Reínach, «Divinités gauloises au serpent», na Revuearchéologique, 1911; P. M. Duval, Lês Dieux de Ia Caule, Paris, 1957,p. 51.

C1) Cfr. P. M. Duval, «Lê dieu Smertnos et sés avatars gallo--romains», em Êtudes celtiques, VI, 2, 1953-1954.

(T) Sobre o dragão ve p combate contra o dragão, no folclore uni-versal, cfr, referências abundantes de Stíth Thompson, Motif-Index of Folk--Uterature, Copenhaga, 1955-1958, t.. I, pp. 348-355. Estes motivos apa-recem com a referência B. 11; mas" encontraremos o dragão e motivospróximos noutras referências, tais como A. 531, D. 418. I. 2. (Trans-forma t ion: snake to dragon) H. 1174.

(") Cfr. J. Lê Goff,' «Culture cléricale et traditions folkloriquesdans lá civilisation mérovingienne», em Niveaux de cidture et groupestociaux, Cotóquio organizado pela Escola Normal Superior, Paris, (1966),1968 e, aqui, (207-219).

238 239

gado de elementos folclorizados das culturas anteriores e, sobretudo,actualizado por situações históricas novas? No fundo da lenda recolhidapor Fortunato há a imagem de um taumaturgo que dominou forçastemíveis. Tais forças relacionam-se com a natureza. Mas o monstro emquestão oscila entre um animal ctoniano (serpente) e um animal decaracter aquático, um dragão a quem o santo ordena que desapareçano deserto ou no mar. Certamente que no contexto geográfico parisienseo mar vem de um modelo hagiográfico copiado por Fortunato, semgrande esforço de adaptação. Mas este decalque não carecerá, assimmesmo, de ser explicado pelo seu relativo acordo com um contextosemelhante — contexto aquático, do qual G. Elliot Smith mostrou ocaracter fundamental no simboüsmo do dragão?

Se do cenário passarmos aos heróis, não aparece aqui o santo nopapel dos heróis sauróctonos, libertadores e civilizadores? Mostra-o (**)todo um vocabulário de herói cívico, mais do que religioso. Quanto aodragão, se foi eliminado como um perigo, um objecto a recear, não ésignificativo que tenha sido afastado, em vez de morto — «tendo sidoo monstro rapidamente afastado, não se encontrou mais vestígio dele»?O combate, descrito por Fortunato, não é um duelo de morte, é umacena de domínio. Entre o bispo dominador e o monstro dominadoestabelecem-se, durante um breve instante, relações que lembram aamizade dos eremitas e dos santos pelos animais ferozes — desde o leãode S. Jerónimo ao lobo de S. Francisco ("") — («este de cabeça suplicaníe,pôs-se a pedir perdão com a cauda acaricianie»): um animal mais paraneutralizar do que para matar. Que podemos pois razoavelmente imaginarpor detrás desta cena, em que um herói domina forças naturais, semque a hagiografia queira ou possa fazer com isso, explicitamente, umepisódio simbólico de evangelízação?

Um episódio de civilização material. O teatro topográfico desta cenaé fácil de imaginar: é o local onde, na Idade Média, se erguerá o burgo,ú bairro que terá o nome de S. Marcelo, portanto o baixo vale doBièvre, cujo caracter pantanoso se percebe ainda nos terrenos baixos do

(*') Contudo, não podemos excluir que Fortunato tenha podido serinfluenciado pela assimilação que pode ter sido feita, segundo R. Mer-kelbach, «Reallexicon...», cit., col. 240, entre o martírio e o combatecontra o dragão. Para um dos aspectos teríamos de fazer tentativas doshagiógrafos da Alia Idade Média para conservarem a mitologia do marti-rológio em benefício dos santos que já não são mártires. Esta interpreta-ção, que tanto quanto sabemos não foi aventada por ninguém, parece-noscomplicada e ousada.

C") Cfr. G. Penco, «II simbolismo anímalesco nella letteratura mo-nastica»,.,em Studia monastica, 1964, pp. 7-38; e «L'amicizia con gli ani-mali», em Vita monastica, 17, 1963, pp. 3-10. O dragão, consideradocomo animal real, participava na mística da criação, dentro da qualW. von den Steinen magnificamente situou a simbólica animal; «Altchris-tliche-mittelalterliche Tiersymbolik», em Symbolum, IV, 1964.

240

acíuaí Jardim Botânico ("). O melhor conhecedor da topografia parisiensena Alta Idade Média, Michel Robtin, apôs haver chamado a este focode crist/anização parisiense «o velho bairro cristão de Saint-Marcel» C1)e haver vincado que a sua formação «não foi claramente explicada»,evoca a presença de pedreiros que poderiam ter favorecido a construçãode catacumbas como em Roma e a possível utilização das águas doBièvre que, séculos mais tarde, atrairão tmíureiros e curtidores de pelespara o bairro; e pensa, finaímente, que Saint-Marcel «é muito símpíes-

.-mente uma estação de muda na estrada de Sens». «É normal então— prossegue—que o cristianismo, vindo de Itália por Lyon e Sens, setenha primeiro instalado em Saint-Marcel, o primeiro bairro de Lutèce,para quem vem pela estrada da margem esquerda.» O nosso texto nãoesclarece este nascer do bairro Saínt-Marcei ? Não temos, aqui, um mitode fundação — seja cristão ou não1? A vitória de Marcelo sobre o dragãonão será a domesticação do «geriius Joci», o ordenamento de um sítionatural entre os «desertos» da floresta («silva»), refúgio da serpentectoniana e dos lodaçais da confluência fluvial do Sena com o Bièvre(«maré»), onde o dragão aquático é convidado a desaparecer? (") Não te-mos nos, aqui, o testemunho de uma dessas instituições da Alta Idade Mé-dia, a favor de um tímido arroteamento e de uma rudimentar drenagem,sob a égide de um bispo-empreiteiro econômico, ao mesmo tempo pastorespiritual e chefe político? (") Ê igualmente a instituição de uma comu-nidade urbana da Alta Idade Média, a cuja constituição assistimos aqui,em redor de um corpo de fiéis-cidadãos («eives»), um local urbano esuburbano, na proximidade imediata de uma estrada com relativa impor-tância ("X

Este texto não é o único em que Fortunaío relata um milagre peloqual um santo, limpando unia região dos monstros que a infestam (dra-gões ou serpentes), a converte em algo a valorizar.

C') M. L. Concasty demonstrou bem a importância das inundaçõesda Bièvre (op. cit. Positions... cit., 1937, p. 28).O M. Roblin, Lê terroir... cit, p. 114.(") Cfr. a Tarasca entre floresta e rio («a nemore in ilumine»),L. Dumoní, op. ctt., pp. 156-157.

(") Sobre o papel econômico dos santos e dos bispe» da Alta IdadeMédia, há muitos testemunhos na hagiografia. Um dos primeiros exemplos,no contexto significativo do vale do médio Danúbio no século V encon-tra-se na Vita S. Severíni de Eugippius (MGH, aucí. aní., l, 1877, pp. MO).

Teria havido, de resto, intenção de propaganda dinástica em Fortu- -~nato? Afirmaram-na, a propósito da vida de Santa Radegundes. Cfi.D. Laporte, «Lê royaume de Paris, dans 1'oeuvre hagiographique deFortuna t»; em Études mérovingiennes, Paris, 1953, pp. 169 ss.

C*) Sobre o dragão lendário e o estabelecimento de Cracóvia, juntoda colina de Wawel, na margem do Vístula, cfr. art. «Krafc» em SlownikFolkíoru Polskiego (Díctionnaire du Foíklore Potonais), ed. J. Krzyza-nowski, Varsóvia, 1965, pp. 185-186.

241

Na vida de S. HflárioC'), Fortunato conta de que modo o santo,passando perto da ilha de Gallinaria, em frente de Albenga, na costada LJgúria, é alertado pelo» liâbiíaates da costa que o informam daimpossibilidade de se estabelecerem na ilha por causa de enormes ser-pentes que a infestam («ingentia serpentium volumina sine numero per-vagari»). Tal como Marcelo, Hilário parte com valentia para o combatecontra os monstros («vir dei sentiens sibi de bestiali pugna venire victo-riam»). As serpentes fogem ao vê-lo e o bastão episcopal serve, destavez, de fronteira entre as duas partes em que divide a ilha: uma em que éproibido entrarem as serpentes, a outra em que podem viver em liber-dade. Ainda aqui, pois, e mais claramente do que no caso de S. Marcelo,o monstro perigoso, símbolo da natureza hostil, é contido, dominado,mas não aniquilado ("). De resto, também aqui, 6 dito as serpentes que,se não respeitarem a divisão decidida pelo santo, só lhes restará o mar,cuja presença 6 ali bem real.

Tal como na vida de S. Marcelo, uma reflexão orienta, neste caso,a interpretação para o simbolismo diabólico. Fortunato sublinha que osegundo Adão, Cristo, é muito superior ao primeiro, pois que, em vezde obedecer à serpente, tem servidores —como o santo— capazes dedominar as serpentes C1). Também aqui a alusão não é bem explicitada.Pelo contrario, a conclusão é puramente material e faz, sem dúvida, deHilário um «herói civilizador»; «aumentou o território dos homens, porqueno território do animo/ veio estabelecer-se o homem».

Mesmo que se não aceite a nossa hipótese quanto ao simbolismo,c significado do combate de S. Marcelo com o dragão, acontece que,em finais do século VI, na G alia, se os escritores eclesiásticos tendema cristianizar as lendas de santos sauróctonos, identificando a serpenteou o dragão eliminado com o diabo, não conseguem disfarçar, por com-pleto, um simbolismo assaz nitidamente diverso. Este simbolismo, com-plexo, dir-se-ia sobretudo revelador, para lá dos contributos das diver-sas culturas pré-crístas, de um fundo tradicional de natureza folclóricaque aparece relacionado com um sistema de comportamentos mentaise de práticas prudentes perante forcas naturais, poderosas e equívocas.Domina-se o dragão e, em certa medida, pactua-se com ele.

O VHa s. HUaríi, MGH. Scrípt. Rev. Mer. cit. IV/2, p. 5.O De resto, o-dragão do Apocalipse sofria de idêntica sorte: «et

misit eum in abyssum, et clausit, et signavit super illum, ut non seducatamplius gentes» (XX, 3).

(") «Apparet quantum est melior Adam secundus antiquo. Illeserpenti paruit, iste servos habet, qui possunt serpentibus imperare. Illeper bestiam de sede paradysi proiectus est, iste de suis cubilibus serpentemexclusit.»

Seis séculos mais tarde, S. Marcelo e o seu dragão reaparecem.Em finais do século XII, uma escultura de Notre-Dame de Paris, visi-velmente inspirada no texto de Fortunato, representa a cena que estamosa tentar analisar, embora tenhamos boas razões para crer que, desdeessa época, S. Marcelo e o seu dragão figuravam nas procissões dasLadainhas que se desenrolavam perto de Notre-Dame. Em que se tor-naram então os nossos heróis — e que significado pode ter o dragão?

Antes do mais, tracemos rapidamente as principais direcções daevolução do simbolismo do dragão entre o século VI e o século XII.

Num dos livros-mestres que a Alta Idade Média legou à devoçãoromânica, as Mordia in Job de Gregórío, o Grande, o Leviatan doAntigo Testamento é identificado com Satanás(71). No século IX, RabanMaur fornece a preparação do e n ciclope d ism o cristão. Sabemos que espe-culou muito com Isidoro de Sevilha. As diferenças não deixam de sersignificativas: o abade de Fulda trata do dragão no capítulo dedicadoàs serpentes C')- A sua primeira parte é científica: o dragão aparece comoa maior de todas as serpentes e até mesmo de todos os animais. Saimuitas vezes das cavernas para roubar. Tem crista na cabeça e daboca pequena, com estreitos canais, sai-lhe o sopro e dardeja-lhe alíngua. A sua força reside, não nos dentes, mas na cauda. Não é verdadeque se deva recear os seus venenos. Mas, rapidamente, o artigo seguepara outro plano, o do significado místico (")• E a interpretação é, então,clara: o dragão é o diabo ou os seus ministros, ou os perseguidores daIgreja, os maus. E cita os textos das Escrituras que fundamentam esta in-terpretação: o Salmista, Job, o Apocalipse de João. Nestes textos é a exis-tência ora no singular, ora no plural que o levam a definir que odragão significa, além do demônio, os espíritos maus: «o» dragão é San-tanás, «os» dragões são os seus sectários.

Este dragão diabólico, votado ao mal, é bem aquele que reina naiconografia romântica ("). A corrente naturalista, vinda de Isidoro e

O PL, 76, 680.C) Raban Maur, De Universo, VIII, 3, PL, III, 229^230.(*") «Mystice draco aut diabolum significai aut ministros ejus vel

etiam persecutores Ecclesíae, homines nefandos, cujus mysterium inpluribus locis Scripturae invenitur» (ibid. 230). Sobre este método exegéticocfr. H. de Lubac, Exegese médievale, lês quatre sens de 1'Écriture, Paris,1959-1964.

(") Encontraremos pouca coisa sobre o dragão na obra seitípre fun-damental e admirável de E. Mâle, L'Art religieux du X H' siècle emF rance. Étude sur lês origines de Viconographie du Moyen Age, Paris,1953. O trabalho de F. d'Ayzac, «Iconographie du dragon» em Revue de1'art chrétienne,.t. I, Paris, 1955. O símbolismo animal: dragão, pp. 115--116, é rápido e confuso. V. H. Debidour, Lê Bestiaire sculpté en France,Paris, 1961, passim (cfr., Index, s. v. dragon), rápido, contém judiciosasnotas e boas ilustrações.

..'

242 243

reforçada pela influência crescente do Physiologus O*) sobre os Bestiá-rios (*), pode perfeitamente permitir, ao escultor ou ao miniaturista, esta ouaquela variante sobre a crista, as escamas, a cauda, mas fica ao serviço dosimbolismo maléfico e vem unir-se à tradição do Satanás-Leviatan que,a partir de Gregórío, o Grande, se afirma nos mais célebres comentado résdo Livro Tie Job, um Odon de Cluny, um Brunon d'Asti para chegara Honoris Augustodunensts que faz a síntese da corrente pseudocien-tífica ("). onde não existe o dragão de sete cabeças do Apocalipse ("),o dragão românico representa o mal.

O êxito do dragão, na arte românica, tem uma dupla origem que seconfunde com a dupla raiz de toda a arte: com a sua raiz estética e a suaraiz simbólica. Por um lado, herdando da arte irlandesa c da arte dasestepes, as formas românícas jogam com o corpo flexível do dragão. Nãoé o tema por excelência que permite ao artista românico satisfazer ocânone definido por Henri Focíllon: «a lei dos mais numerosos contactos"com o quadro»? (") Por outro lado, a omnipresença do mal no mundoromânico faz surgir dragões em cada página do manuscrito, em cadacanto da pedra esculpida ('*), na ponta de todo o pedaço de metal forjado.

Mas o mundo românico é o mundo da psicomaquia, do combatedos vícios e das virtudes, do bem e do mal, dos bons e dos maus. PeranteSatanás e os seus cúmplices, perante os dragões, erguem-se os indivíduose as classes que são os campeões de Deus. Na mitologia cristã da salvaçãoem que, nos tempos carolíngios, S. Miguel, o lutador supremo, se atirouao dragão C*), são os cavaleiros, ao lado do clero, que agora lutam contra

(") Não há, de resto, dragão no Physiologus latino, dos séculos IVe V, cuja influência será grande, sobretudo na Baixa Idade Média, do sé-culo XIII ao século XV. Cfr. Physiologus Latinus, ed. F. Carmody, 1939,p. 97.

(*) Colectánea de fábulas e moralidadcs em que figuram os animais, na Lite-ratura Medieval. — (N. da T.)

(") Cfr, E. Mâle, pp. cit., pp. 384-385 — Odon de Cluny, PL, CXXXm,489. — Brunon d*Asti, PL, 164-685. — Honorius Augustodunensis, Spe-culum Ecclesiae, PL. 172, 937. É interessante notar que não aparecemdragões na enciclopédia de Honorius, o Imago Mundi.

O Sobre a iconografia do dragão no Apocalipse, cfr. L. Réau,op. cit. t. 11/2, Paris, 1957, pp. 708-712.

(") Cfr. V. H. Debidour, op. cit., 129-133. Sobre o meio cisterciensee o jogo das formas românicas nas iniciais dos manuscritos, cfr. O. Pácht,«The prccarolingian roots of early romanesque art», em Studies in WesternAri., I. Romanesque and Gothic Art (Xcw of the XX*k internationalCongress of the history of art), Prínceton, 1963, p. 71 e il. XIX, 6.

O Sobre os dragões figurados nas pias baptismais (simbolismo daágua e do dragão aquático) cfr. J. T. Perry, «Dragons and monstersbeneath baptismal fonts», in Reliquary, s. 3, II, 1905, pp. 189-195;G. Lê Blanc Smith, Some dragonesque forms on, and beneath, fona,ibid.t 13, 1907, pp. 217-227.

(**) Cfr. C. Heitz, Recherches sur lês rapports entre architecture etíiturgie à 1'époque carolingienne, Paris, 1963.

244

o monstro. A partir do século XI, S. Jorge, vindo do Oriente aindaantes das Cruzadas, {terá ajudar ideologicamente a subida social da aris-tocracia militar, yence incessantemente, em nome de todos os cavaleiros,os dragões sempre renovados. Porém, mais de uma vez, um cavaleiroreal, anônimo, idas armado dos pés à cabeça, ataca o monstro e chegaa desmontar para o combater, como aquele que veio acabar a sua lutade pedra em Lytm, no museu de Gadagne ("). Entre estes combatentessem medo, distingue-se o bispo, tal como nos tempos heróicos da evan-gelízação, mas atgora de simboíismo descobertos" Raros são os báculosepiscopais que não ostentam, na cabeça curvada, um dragão cativo queoferece o corpo contorcido à habilidade triunfante do ourives e ao podersimbólico do prelado. <

O progresso da arte funerária dos confins do românico e do góticoabre, ao dragão vencido, uma j outra carreira. Vem deitar-se aos pésdos seus vencedores, cuja vitória se imortaliza na pedra. Serve assimde almofada simbólica aos bispos, como Hugo de Fouilloy, em Chartres (*"),ou, por vezes mesmo, a senhores laicos como Haymon, conde de Cor-beÜ C"). Mas, para lá do simbolismo diabólico, não encontraremos aquio simbolismo triuafante do herói civilizador, construtor de catedrais oudesbravador de terras e organizador da ordem feudal?

No mundo românico, estes dragões nem sempre são tão dóceis. Apa-recem nos sonhos dos heróis, povoam-lhes as noites de fantasmas esacodem-nos de terror. O Carlos Magno da Chanson de Roland, assustado,vê que eles se atiram contra os seus exércitos como uma matilha de pesa-delo C1)- No universo românico, o dragão é o animal onírico por excelên-cia. Prolonga nele a ambigüidade das suas origens O e manifesta aí asobsessões coíecíivas da classe feudal e da sua civilização (**),

(M) BI, ap. Debidour, op. cit., p. 347. Da vasta bibliografia sobreS. Jorge e o dragão, tema que está longe de ter revelado todos os seussegredos, notar-se^á Aufhauser «Das Drachenwunder dês hl. Georg», emByzantinisches Arthiv., 5, 1911, pp. 52-69.

{"•) Cfr: Debfdour, Op. cit., p. 98.(*) Cfr. forarjde texto do catálogo da exposição Cathédrales, Paris,

Museu do Louvrè, 1962. Notar-se-á que a personagem é um fundadorde dinastia feuda£ una desbravador de terras.C1} Cfr. R. Mentz, Die Trãume in den altfranzôsischen Karls-und

Artusepen, Marburgo, 1888; K, Heisig, «Die Geschícfitsmetaphysik dêsRolandsliedes uni ihre Vorgeschichte», em Zeitschiff für romanischePhilologie, LV, 1935, pp. 1-87. K. J. Steinmeyer, Untersuchungen zurallegorischen Bedfuíung der Trãume im altfranzôsischen Rolandslied,1963 (e lê c. r. de-J. Gyõry in (Cahiers de Civilisation médiévale, 1964,pp. 197-200).

f") «AmbivaUnce dês animaux revés» (J. Gyory, cit. p. 200). Cfr.J. Gyõry, «Lê ccjtnos, un .songe», em Annales Universitatis Budapesti-nensis. Sectio phifelogjca, t. IV, 1963, pp. 87-110.

Ç3) Sobre o «pagão nos sonhos medievais, do ponto de vista psícana-líüco, cfr. E. Iaaq£.Ott the Nightmare... cit. pp. 170, 306.

; 245

Enfim, outros dragões emancipados parecem ter escapado, quasedefinitivamente, à perturbação de suas origens como à darificação racio-nalizante do simbolismo diabólico. São os dragões-estandartes. Através deIsidoro de Sevilha vimos as suas antigas origens. Desde o inicio doséculo IV, no próprio momento do triunfo político cristão, o dragãomilitar passa para novos dorsos convertidos: no labarum das moedasde Constãnttno, o pau da bandeira do signo sagrado abatia o dragão (*').Mas este dragão-estandarte dos séculos XI e XII é, sem dúvida, o her-deiro dos estandartes asiáticos que vieram para o Ocidente através dosAnglo-Saxõcs e dos Vikings no Norte ou dos Árabes no Sul. Nasegunda metade do século XV, projectam-se na tapeçaria de Bayeux (**)e, na Chanson de Roíand, parecem reservados aos estandartes sarrace-nos; é verdade que a Chanson nos chegou através de um texto sofri-velmente clericalizado, onde o simbolismo diabólico é posto ao serviçoda propaganda político-relígiosa (**). Porém, o dragão-estandarte desen-volve, durante o século XII, um simbolismo próprio que acaba por fazerdele um emblema de comunidade militar, mais tarde nacional. O DracoNormannicus. que dá o título a um poema da autoria de Estêvão deRouen, é, muito simplesmente, numa metáfora, o povo normando, osNormandos, segundo o uso então posto em moda por Geoffroy dê Mon-mouth (*T). Os dois dragões descobertos por Merlin são, com efeito, porconfissão do próprio autor, os símbolos do povo bretão e do povo.saxó-nico (**), Mas atrás deles perfila-se, conforme Jean-Charles Payen (**) muito

(M) Cf r. DACL cit. Sobre as representações'de dragões em moedas,Cfr. R. Merkelbach, «Reallexicon...» oit., 243-245.

C") Cfr. F. Stenton, The Bayeux Tapestry, Londres. 1957.(**) Ã propósito do dragão-insígnia, lê-se com espanto em G. Gou-

genheim, Lês Móis françats dons 1'histoire et dons Ia vie, II, Paris, 1966,pp. 141-142: «Não há qualquer indicio que permita saber se esse dragãotinha exactamente qualquer relação com o animal fantástico denominadodragão (do latin draco). Supor que uma representação deste animal fantás-tico era pintado ou bordado na insígnia, é fazer trabalho de pura imagi-nação». Um simples olhar para a tapeçaria de Bayeux (cfr. nota supra)ínfirma estas afirmações.(") Cfr. J. S. P. Tatlock, «Geoffrey and King Arthur in NormannicusDraco», em Modem PhUology, 31, 1933-1934, pp. 1-18, 113-125.

(") Cfr. A". H. Krappe, «The fighting snakes in the Historia Britonumof Nennius», em Revue celtique, XLIII, 1926. A miniatura de ura manus-,críto de finais do século XIII (Paris, BN, Ms. fr. 95) representa Merlinarvorando um dragão-estandarte numa batalha. Esta miniatura é repro-duzida no Arthurian Literature in the Míddle Ages, ed. R. S. Loomis,Oxford, 1959, U. 7, p. 320. Cfr. R. Bromwich, Trioedd Ynys Prydein. Tjte.Welsh Triads, 1961, pp. 93-95.

O A propósito do Merlin de Robert de Boron: «Os dois dragõesque jazem sob as fundações da torre, que Vertigier quer erigir, não sãoobjecto de qualquer descrição definida e o seu combate não suscita horrornem angústia. Mas, sobretudo, deixaram de ser os monstros de uma outra.idade, fugidos de um bestiário do outro mundo, com significação ambígua

246

&enr observou, todo o mundo turvo de um folclore que a Igreja daAlta Idade Média repeliu para as profundezas e que, ao lado do sistemaacabado do simbolismo eclesiástico, brilha de súbito nos tempos romã-nkosí1").

• S. Marcelo e o seu dragão aparecem duas vezes nas esculturas deNotre-Dame de Paris, na fachada do vão da porta de Santa Ana e noflanco -setentrional da arqueadura da porta dos cónegos C1*1).

As duas esculturas não são contemporâneas. A história do portalde Santa Ana é a mais complicada: a maior parte das suas esculturasdata do início da construção da igreja, por volta de 1165, e foi maistarde reempregada, cerca do ano de 1230, quando foram construídos osportais da fachada. O tímpano e a parte central da banda superior dotintei são do século XII, porém -as duas cenas da extremidade do lintelsuperior do lintel inferior são do século XIII. Segundo toda a probabi-lidade, o tremo pertence ao período «arcaico» C**)-

. Seja como for, o lugar de S. Marcelo no portal de Santa Anainscreve-se nitidamente no programa da fachada C"). Neste tríptico escul-pido, o portal do centro é dedicado a Cristo e representa o destino dahumanidade que, pelo combate das virtudes e dos vícios, pela mediaçãodo Novo Testamento encarnado pelos apóstolos, se encaminha para oJuízo Final. As duas portadas que o enquadram são dedicadas à Virgem.Mas, à esquerda da Virgem coroada que protege o ciclo litúrgico, estáo triunfo de Maria-Ecolesia que lembra os trabalhos dos meses, e, segundo

sobre que poderíamos sonhar indefinidamente. Pela voz de Mcrlin,Robert dissipa todos os equívocos, explica o símbolo que perde o seu valorpoético». cA arte do relato de Merlin de Robert de Boron, o DídotPerceval e o Parievaus», em Romance Philoíogy, 17, 1963-1964, pp, 579--580.; - . . , - ,

t1M) Cfr. F. L. Utlcy. «Arthurian Romance and International Fol-klore Method» (Romance PhUology, 17, 1963-1964), onde o autor indicaque Alan Loxtennan e Minam Kavitz estudam as relações entre o Tipo 300{Dragonslayer) e o Tipo 303 (The two brothcrs) com a história de TristSo.

f") Cfr. a monografia clássica de M. Aubert, La Cathédrale Notre--Daffie de Paris, notice historique et archéologique, 1909, nova cd. 1945e, para as ilustrações, P. du Colombicr, Notre-Dame de Paris, Paris, 1966,

O Cfr. M. Aubert, op. cit.. 1945, pp. H7-H8. A estátua de Saint--Marcel, acíualmente in sita, é uma cópia do século XXX. O original,deteriorado, que pertence ao Museu de Ouny, está actualtnente con-servado na torre norte da catedral. M. F. Salet, conservador do Museu deCiuny, encontrará aqui os meus agradecimentos pelas explicações queteve a amabilidade de me fornecer. Acerca da história das esculturas daporta -Santa Ana, cfr. o catálogo da exposição Cathédrales. cií., p. 31.

(*0 Cfr. W. Saueriãnder, «Die Kunstgeschichtüche Stellung derWestpDrtale von Notre-Dame in Paris» in Marburger íahrbuch für Kunst-wissensehaft, XVH, 1959. — A. KatzeneUenbogen, Sculptural Programaoi Criar três Caíhgdral: Christ-MaryrEcclesia, Baltimore, 1959 e «Icono-graphic Novelties and Transfonnations in the Sculpture of French ChurchFaçades, ca. 1160-1190», em Stwties in Western Art, cit. p. 108-118.

247

'i!!ífl

a .expressão de Adolfo Katzenellenbogen, há toda uma série de perso-nagens saídas de todo o devir da história eclesiástica. Assim, figuramaí S. Miguel, dominando o dragão, e as personagens proeminentes da histó-ria da Igreja e da devoção tradicional parisiense: Coiu»uuuiiiG, provavel-mente com S. Silvestre, Santo Estêvão protomártir e padroeiro da pri-meira catedral parisiense, S. Dinis e Santa Genoveva.

O portal de Santa Ana coloca, sob a protecção da Virgem-Mãe queentrona,- com o Filho, um conjunto mais cronologicamente, mais narra-tivamente histórico. No lintel, a vida da Virgem, desde a história dospais, Ana e Joaquim, até ao episódio final do seu parto: a visita dos reisMagos. Nas arqueaduras e nos umbrais estão as personagens do AntigoTestamento: reis e rainhas, profetas, velhos do Apocalipse, até à conso-lidação da Igreja, com S. Pedro e S. Paulo, fazem deste portal umportal dos precursores. Mas é aí também que aparece a catedral nasua individualidade histórica. No tímpano estão os seus fundadores: àesquerda o bispo Maurício de Sully, à direita o rei Luís VII. Finalmente,no tremo, está S. Marcelo, o padroeiro parisiense que mais pertenceà catedral, pois esta ...conserva as suas relíquias. Assim, em Notre-Dame,Marcelo representa-/- melhor e mais que S. Dinis e Santa Genoveva, aIgreja parisiense, a sé episcopal parisiense, a comunidade cristã pari-siense. O bispo, chefe do rebanho, considerado e justificado na Vila deFortunato, encontra aqui a natural culminação do seu êxito como do seusignificado local.

O escultor de S. Marcelo da porta de Santa Ana seguiu, niti-damente, por indicação dos seus mandatários, o texto de Fortunato. Naparte inferior do grupo está com efeito representado o sarcófago com ocadáver da mulher adúltera de onde se escapa o dragão ("*)• O combatedo santo com o monstro reduz-se à vitória de Marcelo sobre o dragão. Semdúvida, as exigências técnicas pesaram no significado iconográfico: asubmissão às linhas do lintel exigiram uma cena vertical, onde o santopodia apenas dominar o dragão e não um combate horizontal, onde o do-mínio teria podido revestir uma natureza menos sangrenta e mais conformecom o texto de Fortunato. Acontece que a ínfidelídade a este texto, quetransforma a eliminação pela fuga do monstro em morte causada pelo usodo báculo, utilizado como arma que se espeta na goela do dragão e o mata,é expressão da interpretação clerical do simbolismo maléfico do dragão.Os cónegos de Notre-Dame, que traçaram o programa do escultor, modi-ficaram o texto de Fortunato, de forma a adaptá-lo à evolução dosimbolismo do dragão e o tremo (*) ofereceu-lhes a colocação perfeita-mente adaptada a esta estética significativa.

(IM) Curiosamente chamado por E. Mâle (L'Art rcligieux du XIII siè-de, cit. p. 315) o «vampiro do cemitério».

. . (*) Vão entre as duas janelas. — (fí. da T.)

248

Também na arqucadura da porta dos cónegos, que pela cor das suasmeías-pofías também é chamada a porta vermelha, se vê a cena da vidade S. Marcelo quando o bispo, triunfante do dragão, utiliza a mesmaiconografia: o santo mergulha o báculo na goela do monstro. Esta escul-tura pode datar, mais ou menos, de 1270.

As esculturas de Notre-Dame de Paris estão conformes com o simbo-lismo do dragão na ortodoxia gótica. Sem dúvida, o espírito gótico enfra-queceu um tanto este simbolismo, insistindo mais no aspecto anedótico emoralizador da cena do que no seu alcance teológico. De acordo com osepisódios que põem em cena:santos ou bispos com dragões (na obra deVicent de Beauvais e na Lenda Dourada de Jacques de Voragine), odragão é -mais o símbolo do. pecado do que do mal (***)- No entanto,afirma-se aí o seu caracter intrinsecamente mau. Todos os dragões doAntigo Testamento e do Apocalipse convergem, enfim, para a época gó-tica, para a materialização do 'inferno. A goela do dragão o simboliza, nosinúmeros infernos dos Juízos Finais ("").

No entanto, de certo mais ou menos na mesma época, um outrodragão de S. Marcelo existia nas vizinhanças de Notre-Dame de Paris.Nas procissões das Ladainhas, com grande gáudio dos Parisienses, era pas-seado um enorme dragão de palha, em cuja goela escancarada o povo dei-tava frutos e bolos. Este dragão era, sem dúvida, o dragão de S. Marcelo,mas muito diferente daquele que o clero mandara representar no portal deSanta Ana e na porta vermelha, e diferente também do monstro criadopor Fortunato. Trata-se de um dos muitos dragões das procissões deLadainhas, testemunhados e conhecidos C"7). Entre os mais célebres, cite-mos, no Oeste da Franca, a Grand Gueule de Poítiers, o dragão crocodilodê Niort, a Gargouilíe de Rouen; na Flandres-Hainaut, o dragão de Douaie o de Mons; em Champagne, o dragão chamado Chaír-Salée de Troyes, ode Provins e o Kraulia ou Grand Baila de Reíms; na Lorraine, os dragõesde Toul, Verdun e, sobretudo, o de Metz, o célebre Grawly ou Graouilly,que não escapou a esse grande utilizador do folclore e grande amadorde seres gigantescos que foi Rabelais (1M). O Sul não é menos rico emdragões se bem que, com excepção do crocodilo de Nimes, o único dos

('") E. Mâle, que viu perfeitamente o papel do dragão na Lendadourada engana-se, ao pôr uma iniciativa clerical na origem do tema(«à 1'origine, 1'histoire du dragon est une métaphore píeuse ímaginée pardês clcrcs» ob. cit., p. 291, n. 3).

. O E. Mate, op. cit., pp. 384-386.C") Sobre os dragões prócessionais em França, cfr. A. Van Gennep,

Manuel de Fõlklore Françaís contemporain, v. III, Paris, 1937, pp. 423-424(com bibliografia). Encontraremos uma lista abreviada, e sem referências,de dragões processionais e-de santos domadores e vencedores de dragõesem França, em R. Dévigne, Lê Légendaíre dês provinces françaises àtrayers notre folklore. Paris, 1950, p. 152.

("') Livro Quarto, cap. LDC.

249

dragões que ficou célebre foi a Tarasque de Tarascon. Porém, o seucaso é exemplar, porque a tradição, continuada ou, melhor, ressus-citada nos séculos XIX" e XX, permite um estudo concreto, estudo queficou patenteado- num livro magistral de Louis Dumont (10>). Mas umexame mais minucioso faz surgir o dragão em quase todas as cidades (ouem. sítios celebres): em Sainte-Baume, em Artes, em Marselha, em Aix,em Draguignan, em Cavaillon, na fonte de Vaucluse, na ilha de Lérins,

em Aviguon ("!)•Estes dragões têm, de factõ, uma dupla origem. Alguns provêm dastendas hagiográficas e ligam-se a um santo, por vezes a Um bispo (ouum abade) — e estes santos remontam, muitas vezes, à Alta Idade Média.É o caso do Graouilly de Metz, saído da lenda do bispo- S. Clemente, dodragão de Provins que acompanha S. Quiriácio, do dragão de Marselhaatribuído a S. Vítor, do de Draguignan, atribuído a S. Antientério. Bementendido, este é o caso do nosso dragão de S. Marcelo de Paris. Masmuitos destes dragões processionais devem a vida apenas as Ladainhasonde ocupavam, como iremos ver, um lugar oficial. Os dragões maiscélebres parecem ser os que, tradicionalmente ligados à lenda de umsanto local, conseguiram introduzir-se nas procissões das Ladainhas, sobo padroado de um santo e com uma individualidade marcada — por vezessublinhada por um nome próprio ou uma alcunha. É, evidentemente,ainda o caso do nosso dragão de S. Marcelo, ainda que este pareça não

ter atingido a celebridade.De resto, não ha dúvida que estes dragões de procissão se integram

em ritos folclóricos. As oferendas em gêneros que eles suscitam, quer embenefício próprio, quer no dos organizadores ou agentes das procissões(curas, sacrístães, membros da procissão), são ritos propiciatórios, ligadosas cerimônias destinadas, desde a Alta Antigüidade, a atrair os favoresdas forcas fecundantes (*"). Entre os Romanos, as raparigas, chegada aPrimavera, iam colocar bolos nas grutas onde habitavam as serpentes

(dragões) dê Jüno de Lanuvium, deusa agrária, de quem esperavam boascolheitas (*")• Platão recolocou estas oferendas de bolos e de frutos nocontexto de perpétua fecundidade da idade de outro (Leis, VI, 782 CE).

Mas como determinar a cronologia do aparecimento destes dragõesprocessionais e, através dela, como precisar o seu significado para as gen-tes da Idade Média que eram os actores ou os espectadores?

Uma primeira hipótese é a da continuidade das crenças e dos ritosrelacionados com os dragões, desde a Antigüidade e mesmo desde a Pré--história até à Baixa Idade Média. Prazer procurou estabelecer esía filia-ção, ligando os manequins das procissões aos gigantes dos sacrifícios druí-dicos (1U). Esta hipótese suporia que as procissões das Ladainhas tivessemadoptado cerimônias anteriores. Ora, nada está menos provado. Sabemosque as procissões das Ladainhas foram instituídas por S. Mamert, bispode Viena, falecido por volta de 470, e que conheceram rápida difusão,conforme o testemunha St. Avit, igualmente bispo de Viena (cerca de494 a 518) C1*). Foi mantida a opinião que estas festas cristãs se destinavama substituir as ambarvalia galo-romanas e lhes haviam transmitido imensosritos, entre os quais os disfarces animais. Ora, os esclarecimentos pouconumerosos, e que não se referem às Ladainhas, que os textos da Alta IdadeMédia nos legaram, testemunham o cuidado com que a Igreja proibiu taisdisfarces. Se um texto afirma que os Lombardos, em meados do século VII,no reinado de Grimoaldo, adoravam a imagem de uma serpente, Cesáriod*Aries, num sermão, poibe o costume de andarem pelas casas dos outrosdisfarçados de veado, vaca ou qualquer outro animal prodigioso; e oconcilio de Auxerre, em 578, edita igual proibição ('"). De resto, estesdois textos dizem respeito a costumes folclórico-pagãos das calendasde Janeiro — «presentes diabólicos», como dizem os padres de Auxerre.Tudo indica, de resto, que a Igreja da Alta Idade Média teve sobretudo afinalidade de proibir os ritos pagãos, e nomeadamente folclóricos, quesuprimindò-os, quer transformando-os, quer ainda (sempre que podia e po-dia então muito) evitando-os ou destruindo-os ("'). Nada sabemos sobre o

C") Cfr. n. 18.O Cfr. L. J. B. Bérenger-Féraud, Traditions et réminiscencespopuíaires de Ia Provence, Paris, 1886. — E. H. Duprat, «Histoire dêslegendes saintes de Provence», em Mémoires de flnstitut historique deProvence, v, XVII-XX, 1940-1946.(m) Cfr. A. Van Gennep, Manuel..., cit. I-IV/2, 1949, pp. 1644-1645.Em Troyes «o dragão era transportado triunfalmente enfeitado com flores,fitas e borlas, e parecia conduzir a multidão que lhe atirava biscoitospara a goela escancarada». (Ch. Lalore, «Lê dragon — vulgairemente ditChair-Salée — de saint Loup, évêque de Troyes, Étude iconographique»em Annuaire adminisíraiif, statisíique ei commercial du département deVAube, 51, 1877, p. 150). Em Metz «a imagem de Graouüli, era, outroradurante as festas das Procissões, passeada pela cidade, detinha-se nasportas dos padeiros e dos pasteleiros que lhe atiravam pães e bolos paraa goela». (R. de Westphalen, Petit Dictionnaire dês troditions popuíairesmessines, Metz, 1934, col. 318).

250

O") Cfr. J. Maehly, Die Schlange im Mythus und Culius der classis-chen Võlker, Bale, 1867, p. 13.

('") J. G. Prazer, The Golden Bough, Londres, 1915. Balder theBcautiful, v. II, p. 31 e ss., citado e, parece, seguido por A. Varagnac,Civilisation traditionnelle et genres de vie, Paris, 1914, p, 105.

CM) St; Avit, Homiíia de rogaiionibus, em PL. LIX, col. 289-294.Cfr. artigo Rogations em DACL... cit., XIV/2, 1948, col. 2459-2461(H. Leclerq).

C") O texto da 'Víta Barbati respeitante aos Lombardos (MGH,Scripí. Rer.~Lang., p. 557) e o do concüio de Auxerre (Concilia GalÜae,II, ed. C. de Clerq, «Corpus christianorum», S. Latina CXLVIIIA, 1963)encontram-sç em E. Saün, Morin, «Corpus Christianorum» S. Latina,CHI, 1953).

("*) Quanto ao afastamento do folclore pela cultura eclesiástica naAlta Idade Média, cfr. F. Graus, op. cit., e J. Lê Goff, op. cit.

251

IP*' desenroiar das Ladainhas na Alta Idade Média. Parece-nos pouco provávelque .tenham acolhido monstros processionais e especialmente dragões.Pensamos que seja antes uma ressurgência ou um renascimento mais oi-menos tardio na corrente da Idade Média. Será possível datá-la?

Arnold van Gennep emitiu algumas hipóteses respeitantes á origemdos gigantes processionais da Flandres e do Hainaut e, entre eles, dosdragõcst1"). Segundo A. van Gennep, ainda que os dragões se integremnos cortejos das procissões chamadas, em flamengo, renzentrein (marchade gigantes) e, em valão, ménagerie, as suas origens são-lhes desconhecidas^Os primeiros animais que aparecem nas ménageries são o dragão, oelefante, o camelo, o leão, a baleia, «quer dizer, os animais de que se falana Bíblia ou no Apocalipse e que as ilustrações dos manuscritos ou dosprimeiros impressos haviam tornado familiares. Mais tarde, vemos queaparecem também outros animais estranhos: avestruzes, crocodilos, peli-canos, etc.». A. van Gennep pensa, pois, que estas ménageríes se organizamno século XV, mais nos finais do século, e que não têm relação com ociclo da Quaresma e do Carnaval e que a sua origem foi mais«literária e semterudita do que popular». Em contrapartida, crê quê osdragões monstruosos apareceram anteriormente nos cortejos e que forameles que determinaram a moda do gigantismo que depois atingiu outrosanimais e, mais tarde, as figuras humanas. Gennep nota estes dragõesem Anvers no ano de 1394, em Gerre em 1417, em Alost em 1418,em Fumes em 1429, em Audenarde em 1433, em Matinês em 1436.Esta cronologia pode recuar mais ainda. As contas feitas por St. Aiméde Douai mostram, desde 1361, as despesas feitas nesse ano «para arranjaruma "ova cauda de tecido vermelho para o dragão que se levará na procis-são» C1"). A origem destes dragões processionais acha-se, evidentemente,nas procissões das Ladainhas. Mas desde quando estas procissões incluemdragões?

Na Flandres, que saibamos, não aparece qualquer dragão individuali-zado, antes do dragão de Douai de 1361. O dragão de S. Marcelo deParis permite-nos determinar ou recuar a cronologia?

Louis Réau declara: «nas procissões das Ladainhas, o clero de Notre--Dame fazia transportar, como recordação do seu milagre simbólico, umgrande dragão de palha, em cuja goela aberta o povo lançava frutose bolos» C11*). Não determina a época, mas é claro que reproduziu uma

O")' A. van Gennep, Lê Fólklore de Ia Flandres e du Hainautf rançou (departamento do norte), t I, Paris, 1935, p. 154 e ss.

(m) Devo este esclarecimento, que V. Gay anotara no seu (rlossairearchéologique. v. L, 1887, p. 569, a Françoise Piponnier, a quemexprimo a minha gratidão. Segundo as mesmas fontes, encontra-« umdragão processional no Inveníaire de Saint-Père de Chartres, em 1399.„: C1*) L. Réau, Iconographie..., cit. v. UI/2, 1958, p. 874.

passagem sem referência dos Costumes, Mitos e Tradições das Provínciasde França (Paris, 1846) de Alfredo de Nore, ou segundo o modelo deste,o historiador parisiense J. A. Dulaure ("'), do princípio do século XIX.

Não conseguimos descobrir, nem numa acta nem numa crônica daIdade Média, nem nas historias antigas ou modernas de Paris, qualquer re-ferência a um dragão processional de S. Marcelo. A sua existência vema confirmar-se -no século XV1ÍI, no momento em que o dragão irá(Desaparecer. J. A. Dclaure, e depois dele A. de Nore, afirmaram que odragão processional de S. Marcelo caiu em desuso por volta do ano de1730. No entanto, na segunda edição, de 1733, da sua História e Investi-gações das Antigüidades da Cidade de Paris (t. 11, p. 620), Henry Sauval,visivelmente adepto das luzes; declara, com desprezo não disfarçado, que«todos os anos, nas procissões que Notre-Dame organiza na altura dasLadainhas, vemos ainda um enorme dragão fazer as mesmas asneiras quefazia esse grande demônio» — quer dizer o demônio que lutava comS. Marcelo, tal como o fazia o dragão com S. Marcelo.

Teremos de renunciar a datar o aparecimento do dragão processionalde S. Marcelo e resignarmo-nos a dizer, como Dulaure, que «se trata deum costume da mais Alta Antigüidade...» sem juntarmos a hipótese quenos pareceu já demasiado ousada: «...que poderia bem remontar aostempos do paganismo»? Uma nota da 2.* edição da História de Parisde Dulaure mostra que a única fonte em que podemos apoiar a afirmaçãoda existência antiga do dragão processional parisiense 6 um texto assazconhecido de caracter geral. «Todas as igrejas da Gália —escreve Du-laure ("')— tinham, no século XIII, o seu dragão. Durand, no seu Ralio-nale, fala deles como se se tratasse de um uso geral. Esses dragõessignificam o demônio*. Na verdade, Guiilaume Durand, no seu Rationaledivinorufrt officiorum,.em finais do século XIII C"), apenas retoma um

("') Histoire civilç, physique et morale de Paris, Paris, 1821-1825,que teve diversas edições no século XIX, algumas delas anotadas. Exprimoaquí os meus cordeais agradecimentos a R. P. Baudoin de Gaiffier e aAnne Terroine, que tiveram a gentileza, a propósito do dragão proces-sional de Saint-Marcel, de me fazer partilhar do seu incomparável saber,nos domínios da hagiografia e da história de Paris.

O") Dulaure, op, éit., Paris, 1823, v. II, p. 228, n. 1.( ) Há várias edições antigas do Rationale de Guilhaume Durand,

que mereceria uma edição crítica moderna. Utilizei a edição de Lyon,1565. Trata-se de dragões processionais no capítulo CII, «De rogationibus».Segundo L. Falletti (Dictionnaire de Droií canonitjue, ed. R. Naz, v. V,Paris, 1953, col. 1055-1057) o Rationel é em data o «primeiro dos tra-balhos publicados por Durand, quando bispo de Mende» (ibid., col. 1033).Dataria pois de 1290, mais ou menos.

252253

texto do liturgísta parisiense Jean Beleth, por volta de 11800") e Jacquesde Vitry, em princípios do século XIII, tratara num sermão as procissõesdas Ladainhas (*")• Dizem-nos tais textos que, em determinados lugares, ssprocissões duravam três dias, na época das Ladainhas, e que nelas figuravaum dragão. Nos dois primeiros dias, o dragão marchava à frente docortejo,, precedendo cruzes e bandeiras, com a comprida cauda erguidac enfunada — com cauda longa erecta et inflata. No terceiro dia, oanimal seguia atrás, com a cauda mirrada e caída — cauda vácua aequedepressa. Este dragão representa o diabo (draco iste significai diabolüm),os três dias significam as três épocas da história — ante legem, sub íege e

"tempore gratiae. Nas duas primeiras épocas reinou o diabo e, cheio deorgulho, enganou os homens, Mas Cristo venceu o diabo e, como diz oApocalipse, o dragão caiu do céu — draco de caelo cadens — e, enfraque-cido, já não pode tentar humildemente seduzir os homens.

Este simbolismo é claro. Louis Dumont, que conhecia tais textos,explicou, de maneira admirável, a propósito do ritual da Tarasca, osimbolismo da cauda (IM). Pensamos haver demonstrado que este simbo-lismo era muito amigo e que estava ligado ao simboUsmo pseudocientífico

C") Jean Beleth, Ràtionale divinorum officiorum. P L, 202, 130.Podemos notar, como presunção era favor da tese, que não houve continui-dade, disfarces ou manequins-animais desde a Alta Idade Média, masque os dragões processionais deveriam ter aparecido cerca de meados do 4século XII, pois que Rupcrt de Deutz (m. 1129), no seu tratado litúrgicoDe divinis officiis, l. IX, cap. V, «de rogationibus», PL. 170, 248-250.não faz qualquer referência aos dragões processionais; apenas mencionaas cruzes e as bandeiras" («cruces atque vexilla praeferuntur») e faz umaalusão ao «labarum».

("*) Jacques de Vitry, Sermones, Veneza, 1518, p. 762.("') Este simbolismo não é freqüentemente compreendido pelos.

clérigos do século XII. Por exemplo a Glossa ordinária (PL, 114, 732)que, glosando Apõe., XII, 4: «Et cauda», explica: id est deceptione, quibuscelant vitia, ut cauda celantur turpia». O mesmo fez Alain de Lille(Distinctiones dicíionum theologicarum, PL, 210, 775-776, no artigo «dra-co», interpreta cauda = extrema ejus persuasio. Este artigo refere-se pouco'ao simboUsmo do dragão; no entanto mostra o estado do problema nosclérigos escolásticos do final de século XII. Alain distingue o sentidopróprio (quer dizer que o dragão é um animal real) e cinco sentidossimbólicos: «malitia», «diaboíus», «gentilis populus», «Antichristus» e, noplural, «gentes,, malitiósae» e mais especialmente, «superbi Judaet». Ê o ;lencontro do dragão com o anti-semitismo. Mas o tema não parece ter sido -explorado. É verdade que p basilisco, de resto símbolo bastante raro dopovo judeu na Idade Média, está muito próximo do dragão, o «rei dasserpentes» (cfr. B. Blumenkranz, Lê Juif medieval au miroir de fartchrétien. Paris, 1966, p. 64). Quando muito, vemos numa miniatura àoLiber Floridus (primórdios do século XII) a goela do Leviatan infernalao lado da Sinagoga simbólica (B. Blumenkranz, op. cit., il. 121, p. 107)

da antigüidade e do folclore ("*). Foi esclarecido também que ele se encon-tra no^texto de Fortunato.

QÔer isto dizer qüé, á partir deste pormenor (é verdade que muitoimportante), voltamos à hipótese da continuidade do dragão folclórico?

Loyis Dumont, ao analisar, de forma magistral, o mais antigo textoonde aparece a Tarasca — a Vida de Santa Marta pretensamente escritapor Marcela, criada de Marta e composta entre 1187 e 1212, utilizadapor Gervais de Tilbury, Vicent de Beauvais e Jacques de Voragine (*"),demonstrou que, apesar das influências livrescas dos bestiários, o monstroque aí se descreve supõe a existência de uma «efígie ritual» {"'). Domesmo modo, o seu inquérito iconográfico leva-o a pensar que a Tarascaritual surge na passagem do século XII para o século XIII— sem dúvidano fim de uma longa pré-história ("').

Inclinar-nos-íamos de bom grado a pensar que devia ter acontecido omesmo com o dragão processional de S. Marcelo. Tal como sucedeu comLouis Düfhont em relação à Tarasca, também não conseguimos estabelecerum «repertório da iconografia» (110) para o dragão de S. Marcelo e, menosafortunados que ele, não temos a imagem do dragão de procissão. Apenastemos o' dragão eclesiástico de Notre-Dame de Paris. Porém, o princi-pio do século XIII parece ter oferecido à iconografia dragões que,como a Tarasca, só podem ter sido inspirados em modelos reais, efígiesrituais. Por exemplo, julgamos ver um dragão nesse bico de fonte,do princípio do século XIII, originário do Norte da França e conservadono museu de Dahlem, em Berlim. O dragão, montado por um diabo, nãome parece,gerado pelo gênio das formas românticas tradicionais, nem pelapura imaginação de um artista dotado. Vejo nele uma máscara proces-sional, próxima das máscaras carnavalescas ("').

Que significa então esse dragão de aspecto novo, francamente fol-clórico? p texto de Jean Beleth, o exemplo da Tarasca, com possíveisanalogias íiconográficas, bastarão para apoiar a hipótese de que o dragão

("•) Vejamos ainda um traço antigo retomado pela liturgia, mas nãocompreendido: o do «monstro a olhar para trás» (cfr. E. Salin, op. cit.,IV, pp, 209-222, GuUlaume Durand nota que no terceiro dia o dragãovai «quasí;"retro aspiciens».

C") S;xto da Pseudo-Marcelle e referências em L. Dumont, op. cit.,p. 150. Pseudo-Marcelle ap. Mombritus, Sanctuarium seu vilae sancto-rum... nova edição, 1910, II, pp, 128-129; VJncent de Beauvais, SpeculumHistoriae, X, 99; Jacques de Voragine, Legenda áurea, ed. Graesse,1846, 444-445, y

("•) £ Dumont, op. cit., p. 161.(m) /Krf. p. 226.O fêid., p. 199.(IH) Spbre as máscaras carnavalescas, cfr. O. Karf, «Über Tier-

masken», ètíi Wõrter und Sachen V, 1913; Deutsche Fastnachtspiele ausdem IStentíahrhundert. ed. A. vori KeÜer, Tübingen, 1853-1858; A. Spa-mer, Deutsche Fasínacktsbrãuche, lena, 1936.

254 255

processional de S. Marcelo deve ter aparecido nos fins do século Xll ounos princípios do século XIII?

No final do seu estudo, Louis Dumont, resumindo as característicasprincipais do rito da Tarasca, analisadas no decorrer do seu «registo etno-gráfico», declara: «é fundamental o factor sociológico: a Tarasca é, antesdo mais,-o animal epónimo, a protecção da comunidade»("*). Estasúltimas palavras lembram singularmente uma expressão do texto deFortuníito a propósito de S. Marcelo, vencedor do dragão: «propugna-culum patriae». O que nos séculos V e VI podia significar constituiçãoda comunidade cristã, organização de um local urbano e suburbano, poderáadquirir, local e geralmente, um significado novo, porem com igualtendência, em finais do século XII? Não é esta época, no fim do reinadode Luís Vil e no de Filipe Augusto, o momento em que Paris se tornacapital, em que o seu progresso topográfico, dentro das novas muralhas,em que o desenvolvimento e a harmonia das funções urbanas levam osParisienses a uma nova tomada de consciência local e à busca de umnovo emblema da cidade? Não há dúvida de que, no século XIV, o papelde um Estêvão Marcelo e, após ele, de uma classe de burguesia rica imporáa Paris uma emblemática política tirada dos grandes mercadores: o naviodo Sena, o barrete bipartido azul e vermelho. Mas o dragão de S. Mar-celo não teria sido mais cedo, pelo menos, uma tentativa de emblemade Paris? No momento em que os clérigos, no portal de Santa Ana,fazem de Marcelo o padroeiro visível e imortalizado da cidade, nacintroduz o povo nestas Ladainhas um dragão de outra origem e outranatureza, em que se cristaliza o seu sentimento patriótico local?

Se a ausência de qualquer documentação sobre Paris nos impede defazer desta idéia mais do que uma hipótese, um rápido olhar lançado paralá de Paris e de Tarascon confirma-nos que tal hipótese e absurda. Asegunda metade do século XII e todo o século XIII assistem, com efeito,ao desenvolver, no Ocidente cristão, de uma emblemática urbana do dra-gão. M. Battard, ao estudar os monumentos públicos urbanos do Norte daFranca e da Bélgica C"), descreveu estes monstros ou animais geralmentemóveis e rodando em volta de uma haste de ferro e que se tornam o «em-blema protector da cidade». Quase sempre, nota ele, este animal simbólicoera um dragão. É o caso de Tournai, de Ypres, de Béthune, de Bruxelas,onde o dragão foi vencido por S. Miguel, ou de Gand, onde o Draakreconstituído é ainda conservado no Museu da Torre. Mede três metros ecinqüenta e cinco centímetros e pesa trezentos e noventa e oito quilos;segundo a lenda, estes monstro fora trazido de Constantinopla para Bruges

pelos cruzados, portanto em princípios do século XIII e adoptado pelosGandcses em 1382. Este dragão urbano é o resultado do monopóliocitadino do velho dragao-guardião de tesouros. No cimo da torre guardavaos arquivos e o tesouro da comuna.

Friedrich Wild, a partir de, uma análise da literatura épica e, maisparticularmente, de Beowulf, encontrou também estes dragões-estandartes,como brasões de famílias, de comunidades, de corporações ('").

Tentou-se mesmo explicar a gênese do dragão episcopal a partir deum dragão-estandarte das procissões das Ladainhas. R. de Westphalenescreveu a propósito do Graouilly de Metz: «Por volta do século XII, ospresidentes dos municípios e os justiceiros (*) de Woippy, aldeia dependentedo capítulo da catedral de Metz, eram obrigados a levar, nas procissõesde S. Marcos e das Ladainhas, três bandeiras vermelhas, uma delasempunhando uma cabeça de dragão. Um século mais tarde, este vexillumdraconarium deu lugar ao Grolli que devia representar o dragão vencidopelo apóstolo do Messin, seu primeiro bispo, S. Clemente...» Hábil mon-tagem que procura organizar, racional e cronologicamente, temas cujaconvergência, no século XII, é obscura. Há só um contra: não sefundar em nenhum documento ("*)-

Seja como for, o possível encontro de um dragão parisiense eclesiás-tico com outro dragão igualmente parisiense mas folclórico — interpre-tações emblemáticas de um mesmo animal tradicional, o dragão de S.Marcelo, bispo de Paris no século V — testemunha uma convergênciada cultura derical e da cultura popular que encontraríamos no signifi-cado do dragão materializado, o primeiro na pedra, o segundo na palha?

Notemos, primeiramente, que, entre os clérigos, o emblema é o bispo,na oua função de vencedor do dragão, enquanto que para o povo-pareceser o próprio dragão, nas suas relações com diversos destinos com oprelado. Por outro lado, se o dragão eclesiástico é designado, sem equívoco,

O L. Dumont, op. c/r., p. 227.O M. Battard, Beffrois, Ucdles, Hotels de ville dons lê nora de Ia

f rance et Ia Belgique, Arras, 1948, p. 36;-Sobre os dragões — guardiões detesouros, cfr. H. R. EIUs, «The Hül of the Dragon: Anglo-saxon burialmounds in literature and archaeology», em Folklore, 61, pp. 169-185.

(1M) Cfr. F. Wüd, Drachen im Beowulf und andere Drachen, miteinem Ánhang: Drachenfeldzeichen, Drachenwappen und St. Georg, Oster-reichische Akad. der Wiss. Phil. — hist. Kl. Sitzungsber, Vol. CCXXXVIII,5 Abh. Viena, 1962.

(*) Aqueles que tinham p direito de fazer justiça nas suas terras. — (W. da T.)("*) R. de Westphalen, Petit Dictionnaire... cit, col. 317. O texto

de Rupert de Deutz citado n. 123 dá no entanto uma certa base teóricaa este texto. De resto, deveremos ver uma relação histórica entre S. Cle-mente de Metz c o seu Graouilly, por um lado, e S. Marcelo de Paris e oseu dragão, por outro?/Segundo uma tradição, a igreja suburbana deSaint-Marcel teria sido construída no local de uma capela primitivamentededicada a S. Clemente, Nas «igrejas suburbanas...» cit. (n. 6), diz-se queo culto 'de S. Clemente só aparece em Saint-Marcel no século XII, querdizer na época crítica, em nossa opinião, para os dragões processionais(um selo de Saint-Marcel, aposto numa acta de 1202, ostenta as efígies deS. Clemente e de S. Marcelo). Mas poderia tratar-se não de S. Clementede Metz, mas do papa S. Clemente.

256 257

como símbolo do mal que deve suprimir-se, o dragão popular é o objectode sentimentos mais confusos: procura-se, antes do mais, amansá-lo comoferendas, procura-se agradar-lhe, antes de se brincar com a sua derrota,sem no entanto desejar-se-lhe a morte. Certamente que o dragão dasprocissões está integrado numa cerimônia cristã e as liturgias deram ainterpretação teológica ortodoxa do seu comportamento c, simultanea-mente, do comportamento dos espectadores, no decorrer do tríduo(*)processional. Também não podemos excluir a hipótese de uma origemerudita, eclesiástica, do dragão de procissão que o povo teria seguidamentedeformado, conforme as suas tradições. A. van Gennep falou das «festasHtúrgicas folclorizadas» e conhece-se a degradação em folclore do culto demuitos santos de origem erudita ("*). Sucede que esta contaminação daidéia elerical como da crença popular — popular era, nesta época, equiva-lente de laico — deixa persistir a diferença e até a oposição entre duasmentalidades e duas sensibilidades. De um lado a cultura elerical bastantebem armada para afirmar o triunfo do bem sobre o mal e impor nítidasdistinções. Do outro lado, a cultura folclórica, tradicionalmente prudentea ponto de preferir, perante forcas que se vão despojar da sua ambigüidade,fases primitivas, equívocas, hipócritas, destinadas, graças a ofertas adula-doras, a tornar não apenas inofensivas mas até benéficas as forcas naturais

que o dragão simboliza.Assim, do século XI ao século XIII, é surpreendente a evolução. Em

Fortunato, a interpretação maniqueísta cristã não está ainda bem formada;porém, a sua orientação é assaz nítida para recusar as ambigüidades dasinterpretações populares. Em plena Idade Média vemos a interpretaçãofolclórica, neutra, poderosamente reflectida.

Cremos ser possível que esta reflexão date do século XII e exprimao reflexo de uma cultura popular laica que mergulha no fosso cavado, nosséculo XI e XII, pela cultura da aristocracia laica C"), toda ela im-pregnada do único sistema cultural à sua disposição que era, além dosistema elerical, precisamente o sistema das tradições folclóricas. O exem-plo parisiense seria então um modelo acabado: o dragão elerical de pedrae o dragão folclórico de palha seriam contemporâneos. Um andaria emvolta do outro como se quisesse zombar dele, mas sem franquear as portasdo santuário que este guardava.

(") Cerimônia religiosa que dura trfis dias. — (N. da T.)O A. Van Gennep, Manuel... cit., I-IV/2, p. 1624 e ss. Festas

litúrgicas folclorizadas (e especialmente as Procissões). Sobre a «folclori-zação» do culto dos santos, cfr. M, Zender, Ràutne und Schichten.mit-telalíerlicher fíeiligenverehrung in ihrer Bedeutung fiír die VolksKunde.Die Heiligen dês miltleren Maaslandes und der Rheinlande m Kultges-chichte und Kultverbreitung, DÜsseldorf. 1959.

O") Cfr. E. Kõhler, Trobadorlyrik und hõfischer Roman, Berlim,1962. E, também, «Observations historiques et sociologiques sur Ia poésiedês troubadours», em Cahiers de Civilisation médièvale, 1964, pp. 27-51.

258

A ausência de documentação clara acerca do dragão de S. Mar-celo impossibilita-nos rejeitar a hipótese de o dragão de Marceloter nascido da segunda vaga de impulso folclórico, a do século XV que,de resto, pertence mais ao Renascimento do que à Idade Média. Porém,mesmo neste caso, a paradoxal coexistência que se valorizou certamenteexistiu, com a diferença de que só apareceria em finais da Idade Média.Notemos, aliás, que desapareceu antes da Revolução e que falta aindaaqui a explicação dos acontecimentos. Não podemos confirmar a dataaproximada de 1730, proposta por Dulaure, mas ela parece provável.Porque o dragão já não existia na Revolução e é em 1728 que ura dragãoanálogo, chamado Chair-Salée, de S. Lopo de Troyes, desaparece com assentenças severas do bispo que exige em 25 de Abril de 1728 que essa «fi-gura indecorosa se deixe, de futuro, de desordens tão contrárias à santidadeda nossa religião» C3'). A mentalidade iluminada do século XVIII, aoatingir uma parte do alto clero, permite à cultura eclesiástica conseguir,graças as luzes e sobre a cultura popular, a vitória que o obscurantismomedieval não lhe permitira obter. É a complexidade dos grandes movi-mentos da sensibilidade colectiva.

Durante a nossa pesquisa, teríamos nós cedido ao demônio dofolclore (IW) e procurado estabelecer, por um lado, uma interpretaçãoelerical — o que é talvez forçado embora verdadeiro grosso modo, namedida em que a Igreja impôs uma interpretação coerente do simbolismodo dragão, que abarca na verdade toda a teologia cristã do bem e do mal —e por outro lado uma interpretação folclórica que seria, com toda acerteza, errada? Não esquecemos, segundo a palavra de André Varagnac,«o caracter plurifuncional das tradições» (**') e não quisemos, para voltaraos termos de Louis Dumont, substituir «a obscuridade pela claridade.

Cw) Ch. Lalore, Lê Dragon (vulgairemente dit Chair-Salée)... citp. 150. O estudo quase centenário do abade Lalore testemunha uma pers-picácia e uma abertura de espírito excepcionais. O autor, que descobriu asfontes litúrgicas medievais, as representações de dragões nas moedas e nosestandartes, viu que havia dois dragões num só: o dragão dominado porS. Lopo e levado em procissão. Soube procurar antepassados chinesesdos dragões tutelares e encontrar uma boa citação que punha na bocadum chinês uma declaração, mostrando que o dragão é, para os Chineses,a imagem dos gênios bons protectores do homem, o emblema das inteli-gências superiores: «Ignoro de que forma o dragão foi trazido através deventos e nuvens e se ergueu até ao céu. Vi Lao-Tseu: é semelhante aodragão.» (Windiscrimann, Mémoires concernanl lês Chinois, p. 394, citadop. 164, n. 3).

CM) Ao contrário, L. Mackensen, como o demonstra L. Dumont,op. cit., p. 221, não soube (Handwõrterbuch... cit., art. Drachen) reco-nhecer a especificidade das práticas populares, reduzidas a sucedâneos delendas de origem erudita.

("') A. Varagnac, op. ei/., p. 105.

259

a irracionalidade pela racionalidade» com risco de desviarmos ca realidadepopular para outra coisa diferente dela própria» O")- As investigaçõesfolclóricas não podem trazer, para a história ou para as ciências humanas,luzes decisivas, se não respeitarem a sua especificidade no seio da qualos fenômenos de contaminação oermanecem fundamentais. Só preten-demos, aqui, esclarecer a complexidade de um tema que teria podidoparecer simples ao leitor ingênuo de Fortunato ou ao espectador ingênuodas esculturas de Notre-Dame de Paris. O nosso trabalho históricoconsistiu em considerar a ausência ou a presença de documentos e emtentar restituir uma cronologia aos ritmos, amplos bastante para forne-cerem um contexto significativo dos fenômenos de sensibilidade e dementalidade aqui estudados. Oxalá não tenhamos tornado demasiadopesada a graça lúdica, embora ambígua, desta feitiçaria: o dragão deS. Marcelo de Paris.

S. Marcelo de Paris e o dragão

Voltemos agora a esse milagre (mysterium) triunfal que, embora cro-nologicamente o último, é o primeiro pela importância sobrenatural(m virtute). Uma matrona, nobre pela origem mas de vil reputação,manchando por nefando crime o brilho dó seu nascimento, após ter termi-nado os seus breves dias, tendo-lhe sido tirada a luz, foi para o túmuloacompanhada de um cortejo presunçoso. Mal havia sido enterrada, logoapós os funerais, deu-se um acontecimento cujo relato me enche de horror.Eis que um duplo Lamento sai da defunta. Começa a aparecer assidua-mente uma serpente gigantesca para lhe consumir o cadáver; e, para sermais claro, o monstro dirigia-se para a mulher a quem devorava osmembros. Era o próprio dragão que vinha à sua sepultura. Assim, essasinfelizes exéquias tiveram por coveiro uma serpente e o cadáver nãopôde, após a morte, repousar em paz porque, embora no fim da vida lhetivesse sido concedido um lugar onde estender-se, o castigo impunha-lhesempre mudanças, ó sorte execrável e temida! A mulher que neste mundonão respeitara a integridade do casamento, não mereceu repousar notúmulo, porque a serpente que em vida a arrastara ao crime atormen-tava-lhe agora o cadáver. Então os familiares, que permaneciam nasproximidades, ouvindo tal ruído acorreram à porfia e viram um monstroimenso que saía do túmulo, desenrolando os seus anéis e rastejando a suamassa enorme c batendo o ar com a cauda. Aterrorizadas com o que viram,as pessoas abandonaram o lugar. Posto ao corrente, S. Marcelo com-preendeu que devia vencer o sangrento inimigo. Juntou o povo da cidade epôs-se, a caminho à frente dele; tendo depois dado ordem aos cidadãospara pararem, mas ficando à vista do povo e levando Cristo por guia,avançou sozinho para p local do combate. Quando a serpente saiu dafloresta para se dirigir ao túmulo, caminharam um para o outro,S. Marcelo começou a rezar e o monstro, de cabeça suplicante e a cauda

(líl) L. Dumont, op. c//., pp. 219-220.

260

acariciadora, pediu-lhe perdão. Então, por três vezes, S. Marcelo bateu--Ihe na cabeça com o báculo, passou-lhe a estola em volta do pescoçoe mostrou o seu triunfo aos olhos dos cidadãos. Foi assim que, nessecirco espiritual, com o povo como espectador, combateu sozinho o dragãc.O povo, tranqüilizado, correu para o seu bispo, para ver o inimigo cativo.Então, com o bispo à frente, durante três milhas, todos seguiram omonstro dando graças a Deus e celebrando o funeral do inimigo. EntãoS. Marcelo ralhou com o monstro e disse-lhe: «Daqui em diante ou ficasno deserto ou te escondes na água». O monstro logo desapareceu e nuncamais se lhe viu o rasto. A protecção da pátria foi pois um padre sozinhoque, com o frágil báculo, dominou o inimigo mais seguramente do que seo tivesse trespassado de flechas, porque, atingido por elas, poderia devol-ver-lhas novamente, se o milagre não o houvesse vencido, o muito santohomem que, com o poder do báculo, mostrou onde estava a força, elecujos delicados dedos foram cadeias para a serpente! Assim, armasprivadas venceram um inimigo público e uma só presa provocou osaplausos de uma vitória geral -Se compararmos os méritos dos santoscom as suas façanhas, a Gálía deve venerar Marcelo como Roma veneraSilvestre. E a façanha daquele é maior porque se este só conseguiu selara goela do monstro, Marcelo fê-lo desaparecer.

Venantius FortunatusVita Sancti Marcela, cap. X

(MGH. Script. Rer. Mer., TV/2 1885*. pp. 53-54, ed. B. Kmsch)

0*0*

261

a irracionalidade pela racionalidade» com risco de desviarmos «a realidadepopular para outra coisa diferente dela própria» C41)- As investigaçõesfolclóricas não podem trazer, para a história ou para as ciências humanas,luzes decisivas, se não respeitarem a sua especificidade no seio da qualos fenômenos de contaminação oermanecem fundamentais. Só preten-demos, aqui, esclarecer a complexidade de um tema que teria podidoparecer simples ao leitor ingênuo de Fortunato ou ao espectador ingênuodas esculturas de Notre-Dame de Paris. O nosso trabalho históricoconsistiu em considerar a ausência ou a presença de documentos e emtentar restituir uma cronologia aos ritmos, amplos bastante para forne-cerem um contexto significativo dos fenômenos de sensibilidade e dementalidade aqui estudados. Oxalá não tenhamos tornado demasiadopesada a graça lúdica, embora ambígua, desta feíticaria: o dragão deS. Marcelo de Paris.

S. Marcelo de Paris e o dragão

Voltemos agora a esse milagre (mysterium) triunfal que, embora cro-nologicamente o último, é o primeiro pela importância sobrenatural(In virtute). Uma matrona, nobre pela origem mas de vil reputação,manchando por nefando crime o brilho dó seu nascimento, após ter termi-nado os seus breves dias, tendo-lhe sido tirada a luz, foi para o túmuloacompanhada de um cortejo presunçoso. Mal havia sido enterrada, logoapós os funerais, deu-se um acontecimento cujo relato me enche de horror.Eis que um duplo lamento sai da defunta. Começa a aparecer assidua-mente uma serpente gigantesca para lhe consumir o cadáver; e, para sermais claro, o monstro dirigia-se para a mulher a quem devorava osmembros. Era o próprio dragão que vinha à sua sepuítura. Assim, essasinfelizes exéquias tiveram por coveiro uma serpente e o cadáver nãopâde, após a morte, repousar em paz porque, embora no fim da vida lhetivesse sido concedido um lugar onde estender-se, o castigo impunha-Ihesempre mudanças. Ó sorte execrável e temida! A mulher que neste mundonão respeitara a integridade do casamento, não mereceu repousar notúmulo, porque a serpente que em vida a arrastara ao crime atormen-tava-lhe agora o cadáver. Então os familiares, que permaneciam nasproximidades, ouvindo tal ruído acorreram à porfia e viram um monstroimenso que saía do túmulo, desenrolando os seus anéis e rastejando a suamassa enorme e batendo o ar com a cauda. Aterrorizadas com o que viram,as pessoas abandonaram o lugar. Posto ao corrente, S. Marcelo com-preendeu que devia vencer o sangrento inimigo. Juntou o povo da cidade epôs-se a caminho à frente dele; tendo depois dado ordem aos cidadãospara pararem, mas ficando à vista do povo e levando Cristo por guia,avançou sozinho para o local do combate. Quando a serpente saiu dafloresta para se dirigir ao túmulo, caminharam um para o outro.S, Marcelo começou a rezar e o monstro, de cabeça suplicante e a cauda

("') L. Dumont, op. cit., pp. 219-220.

26 ;9

acariciadora, pediu-lhe perdão. Então, por três vezes, S. Marcelo bateu--Ihe na cabeça com o báculo, passou-lhe a estola em volta do pescoçoe mostrou o seu triunfo aos olhos dos cidadãos. Foi assim que, nessecirco espiritual, com o povo como espectador, combateu sozinho o dragâc.O povo, tranqüilizado, correu para o seu bispo, para ver o inimigo cativo.Então, com o bispo à frente, durante três milhas, todos seguiram omonstro dando graças a Deus e celebrando o funeral do inimigo. EntãoS. Marcelo ralhou com o monstro e disse-lhe: «Daqui em diante ou ficasno deserto ou te escondes na água». O monstro logo desapareceu e nuncamais se lhe viu o rãs to. A protecção da pátria foi pois um padre sozinhoque, com o frágil báculo, dominou o inimigo mais seguramente do que seo tivesse trespassado de flechas, porque, atingido por elas, poderia devol-ver-lhas novamente, se o milagre não o houvesse vencido. O muito santohomem que, com o poder do báculo, mostrou onde estava a força, elecujos delicados dedos foram cadeias para a serpente! Assim, armasprivadas venceram um inimigo público e uma só presa provocou osaplausos de uma vitória geral, Se compararmos os méritos dos santoscom as suas façanhas, a GáÜa deve venerar Marcelo como Roma veneraSilvestre. E a façanha daquele é maior porque se este só conseguiu selara goela do monstro, Marcelo fê-lo desaparecer.

Venantius FortunatusVita Sancíi Marcelli. cap. X

(MGH, Script. Rer. Mer,, IV/2 1885a, pp. 53-54, ed. B. Krusch)

261

O OCIDENTE MEDIEVAL E O OCEANO ÍNDICO:UM HORIZONTE ONÍRICO O

O Ocidente medieval ignorou as realidades do oceano Índico. Emmeados do século XV, o mapa-múndi catalão da Biblioteca Estense,em Módena, mostra uma perfeita ignorância do oceano Índico (3). Noplanisfério de Fra Mauro de Murano (1460), a costa leste do golfo

t1) Além das fontes que citaremos aqui, utilizei sobretudo, ainda queem especial centrado na iconografia e ainda que as minhas interpretaçõesdifiram por vezes, o notável artigo, bem ilustrado, de R. Wittkower, «Mar-vels of the East. A Study in the History of Monsters», em Journal of lheWarburg and Couríauld Institutes, V. 1942, pp. 159-197, q-je trata tambémdo Renascimento. Mal foi pronunciada a comunicação que é a basedeste artigo (Veneza, Setembro de 1962), apareceu uma dissertação deH. Gregor, Das Indienbild dês Abendlandes (bis zum Ende dês 13. Jahrhun-derts). Wiener Disserfationen aus dem Gebiete der Geschichte, Viena, 1964.O autor, na p. 5 da introdução, definiu o seu tema como segue: «Indienist schon für díe Antike auf Grund seiner fernen Lage mehr ein Objekt derPhantasie ais der realen Beobachtung gewesen. Der schreibende auf dasangewiesen, was die antiken Autoren erzahlten. Und von diesen oft schle-chthin, in dem dank seiner Grosse, seines Reichtums und dês fruchtbarenKlimas alies mõglich war, was sich auf dieser Welt denken lásst». Acres-centarei que, graças à miniatura, à escultura, à literatura científica, di-dáctica, romanesca e homilética, a imagem da índia penetrou largamentena sociedade do Ocidente medieval e não limitou a sua audiência e a suasignificação a uma camada instruída. É pois um testemunho de psicologiae de sensibilidade colectivas.

(') A cartografia medieval foi objectivo de uma vasta literatura.Citemos, após havermos prestado homenagem ao trabalho pioneiro do his-toriador polaco Joachim Lelewel, La Géographie du Moyen Age (5 vol.,Bruxelas, 1853-1857 e um atlas, 1849), K. Miller, Mappae Mundi: 1895--1898; F. Pullé, «La cartografia antica dell'India» em Studi italiani aiFilologia indo-irariica, IV-V, 1901-1905. J. K. Wright, The geographicalLore of the Time of the Crusades, Nova Iorque, 1925; R. Uhden. «ZurHerkunft und Systematik der mittelalterlichen Weltkarte», em Geogra-phische Zeitschrifi XXXVII, 1931, p. 321-340; A. Karamerer, La mer

ftí

263

• -

Pérsico «não tem aspecto terrestre» (a). Também Martin Behaim, no seuglobo de 1492, apesar de haver utilizado as indicações de Marco Polo,nada sabe da índia. A África do Sul, Madagascar, Zanzibar são, aí, deuma fantasia extravagante O- É preciso chegar às primeira descobertasportuguesas para que o conhecimento geográfico — digamos costeiro — dooceano Indico comece a definir-se. A data principal é o regresso de Diasa Lisboa, em 1488 C). Há ainda muito de fantasia na Carta navigatortaAuctorís íncerti (1501-1502) do doutor Hamy; no entanto a África aparecenela muito perfeita (*). O portulano-mapamundí de Canerio Jaouensís(1503) é já muito mais definido O- Em resumo, o conhecimento do oceanoIndico começa pela África — com os Portugueses — ao contrário dossonhos medievais que se desenvolveram sobretudo ao longo da Pérsia, daíndia e das ilhas.

Contudo, o século XV conheceu alguns progressos (*)• Ligam-se eles.sobretudo, à redescoberta de Ptolomeu que, ao contrário dos geógrafosromanos ignorantes — fonte essencial dos cartografes medievais —, tinhaum melhor conhecimento das realidades do oceano Índico. Redescobertaque data de 1406, mas que só dá frutos a partir da descoberta da imprensa.As primeiras edições impressas que encontrei na Biblioteca Nacional deParis são as de Vicence (1475), Roma (1478 e 1490), Bolonha (1482),Ulm (1482 e 1486). Mas a utilização nem sempre foi boa, conformedemonstra o globo de Martin Behaim que, contudo, se serviu das ediçõesde Ulm.

O progresso definitivo mais importante do século XV é o abandono,por parte de certos estudiosos, da visão ptolomaica — porque Ptolomeuencerra uma certa precisão de pormenor num monumental erro de con-junto — de um oceano Indico fechado, de facto considerado como rio,o rio circular Oceano. Sublinharam-se as passagens célebres a este respeito— mas sem conclusão prática — feitas por Pierre d'Aüly no seu Imago

Rouge, l'Abyssinie et 1'Arabie depuis 1'Antiquiíé, t, II. Lês guerres dupoivre. Lês Poriugais dons 1'océan Indien et ia mer Rouge au XVV siècle.Histoire de Ia canographíe orieníale, Cairo, 1935; G. H. T. Kimble,Geography in the Middle Ages, Londres, 1938; J. O. Thomson, Historyof Ancient Geography, Cambridge, 1948; L. Bagrow, Die Geschichte derKartographie, Berlim, 1951. Segundo Kimble (op. cit., p. 145), o únicotratado de geografia anterior às grandes descobertas que parece vaga-mente ao corrente das viagens no oceano Índico é o Tractatus optimussuper totam asirologiam de Bernard de Verdun (V. 1300). Acerca do mapa--múndi catalão da Biblioteca Estense cfr. A. Kammerer, op. cit., p. 348.

() A. Kammerer, op. ei/., p. 350.O Ibid: ,p. 362.O Ibid., p. 354 s.C) Ibid., pp. 369-370.O Ibid., pp. 387-389.(*) Cfr. F. Kunstmann, Die Kenntnis Indien im 1S, Jahrhundert,

Munique, 1863.

Afundi e de Pio II na sua Cosmographia (*)• A primeira carta medieval emque o oceano Indico aparece aberto é de Antonín de Virga (1415) (")•Porém, será preciso esperar pelo mapa-múndi de Martellus Germanus(1489) ("), para que se adopte a noção — aceite por exemplo por MartinBehaim — de um oceano Índico aberto.

Esta abertura do oceano Índico não marca apenas o fim de umalonga ignorância; marca a destruição do próprio fundamento do mitodo oceano Índico na mentalidade medieval. O portulano quase abrirajá uma brecha no mundo fechado do oceano Índico onírico sonhadopelo Ocidente medievo. Jurgis Baltrusaitis descreveu bem esta revoluçãomental do portulano que «revolve as bases» da cartografia e, igualmente,da visão do mundo. «Em vez de espaços fechados dentro de um círculoestreito, surgem extensões sem fim... Em vez de limites estáveis e regu-lares dos continentes onde se acumulam, ao sabor da imaginação, cidadese regiões errantes, é o desenho das costas que evolui em volta de pontosfixos... A terra muda bruscamente de aspecto.» (") Porém, já vimos queos portulanos ignoraram, por muito tempo, o oceano Índico e não feriram,de forma alguma, a sua integridade mítica.

Com efeito, toda a fecundidade deste mito repousa na crença deum maré clausum que faz do oceano Índico, na mentalidade medieval,um receptáculo de sonhos, de mitos, de lendas. O oceano Índico é omundo fechado do exotismo onírico do Ocidente medieval, o hortus con-clusus de um paraíso cheio de encantamentos e de pesadelos. Abra-se,rasgue-se nele uma janela, um acesso, e logo o sonho se desfaz.

O Cfr. Kimble, op, cit., p. 211 ss. O texto de Píerre d'AÍIly vem nocapítulo XIX do Imago Mundi, ed. E. Buron, Paris, 1930. Vejamos o textode Pio II, citado por Kimble, p. 213; «Plíníus nepotis testimonío utiíur quiMetello Celeri Gallie pró consuli donatos a rege Sueuorum Indos astruitqui ex índia commercü causa navigantes tempesíatibus essent ín Germa-niam arrepti. Nos apud Ottoneh (Oíão de Freising) legimus sub impera-toribus teutonicis Indicam nayím et negociatores Indos in germânico líttorefuisse deprehensos quos ventis agitatos ingratis ab prientali plaga venissecqnstabat. Quod accidere miníme potuísset si ut plerisque visum est septen-trionale pelagus innavígabile concrctumque esset a columnis herculeisMauritanie atque Hispanie et Galfiarum círcuitus totusque ferme Occídenshpdie navigatur. Orientem nobis incognitum cum religionum atque im-piorum diversitas lum barbáries immensa reddídit. Veteres tamen navi-gaíum et Oceano qui extremas amplectitur terras a suis littoribus nominaindiderunt... Straboni multi consentiunt. Ptolemeus plurimum adversaíurqui pmne illud maré quod Indicum appellatur cum suis sinibus Arábico,Pérsico, Gangetico et qui próprio vocábulo magní nomen--habet undiqueterra concludi arbitratus est...».

C') Cfr. A. Kammerer, op, cit., pp. 353-354 e F. von Wieser, DieWeltkarte dês Antonin de Virga.

(") A. Kammerer, op. cit;, p. 354 e ss.(") J. Baltrusaiíis, Réveils et Prodiges. Lê Gothique fantastiaue

Paris, 1960, p. 250.

264 265

(l Antes de esboçar as visões deste horizonte fechado e onírico, devemos(sem ter a pretensão de as resolver) pôr algumas questões quanto aesta ignorância medieval. Existiram contados do Ocidente desta épocacom o oceano Indico. Mercadores, viajantes, missionários (") chegaramàs suas margens. Alguns, e antes de todos Marco Polo, escreveram sobreele. Porque é que o Ocidente ignorou, obstinadamente, a "sua realidade?

Antes do mais, apesar das incursões, mais individuais _que colectivas,o oceano Índico foi efecíivãmente fechado aos cristãos. Árabes, Persas,Indianos, Chineses — para só citar os mais importantes — faziam dele um

domínio reservado.Quase todos os Ocidentais que lá chegaram o abordaram pelo norte,

pelas rotas terrestres — sem falar daqueles que de qualquer modo o falha-ram, passando acima, pela rota mongol, cordão umbilical, e por vezescortado, das relações oeste-leste na Idade Média.

Para alguns, missionários ou mercadores, devem ter tido influênciaalguns tabus psicológicos: o medo de desvendar o que podia considerar-seum segredo da prática comercial que atingira o seu máximo, o desinteressepara com realidades geográficas descuráveis, em comparação com ver-dades espirituais. Mesmo Jean de Monte Corvino, excepcional pela suacultura e «espírito científico», é decepcionante. Ao contrário das pessoasdo Renascimento, as da Idade Média não sabem olhar, mas estão sempreprontas a escutar e a acreditar tudo o que se lhes diz. Ora, durante assuas viagens, embebedam-nos com relatos maravilhosos, e eles crêem tervisto o que sem dúvida souberam no locai, mas por ouvir dizer. Sobretudo,empanturrados, antes de partirem, com lendas que tomam por verdades,trazem consigo as miragens e a sua imaginação crédula materializa-lhes ossonhos, em ambientes que os desenraizam o suficiente para que, maisainda que nas suas terras, eles se tornem os sonhadores acordados queforam os homens da Idade Média (").

Podemos, enfim, perguntar qual foi o verdadeiro CQnhecimento que,do oceano Índico, tiveram aqueles que parecem tê-lo conhecido melhor,como por exemplo Marco Polo. Chegado à «grande» "índia, na regiãode Madrasta, na costa oriental, o seu relato perde o caracter de itineráriovivido, para se tornar descrição sistemática, livresca, tradicional. A dês-.

(") R. Hennig, Terrae Incógnitas, 2.* ed., 4 vol. Leyde, 1944-1956; lA. P. Newton, Travei and Travellers of the Middle Ases, Londres, 1926; 1M. Mollat, «Lê Moyen Age» em Hisioire universelle dês explorations, ed. ^L. H. Párias, t. I, Paris, 1955; J. P. Roux, Lês Explorateurs au Moyen Age, *

f f Paris, 1961; R. S. Lopez, «Nuove luci sugli Italiani in Estremo Oriente iprima di Colombo», em Siudi Comlombiani, III, Gênova, 1952", e «L'ex-trême frontière du commerce de 1'Europe medieval», em Lê Moyen Age.' •LXIX, 1963.C*) R. Wittkower, loc. cit., p. 195, n. l, lembrando os estatutosmedievais de New College, Oxford, onde se trata da leitura pelos estudantesdos mirabilia mundi. Igualmente J. P. Roux, op. cií., p, 138 e ss., numcapítulo impropriamente intitulado «Dês yeux ouverts sur Finconnu».

266 -

"confiança que barcos de tipo desconhecido inspiravam aos Ocidentais,i.em especial os barcos cosidos, que lhes pareciam frágeis, impedia-os"também de se aventurarem num mar que temiam (").

E daqui, podemos mesmo pôr a questão do conhecimento do oceanoÍndico por parte dos geógrafos árabes, a quem por vezes os escritorese os mercadores ocidentais se dirigiam em busca de informações. Assuas descrições estão também por vezes cheias de fábulas e mostram aignorância das realidades. Para os Árabes também — pelo menos paraos seus sábios—o oceano Índico não foi, até certo ponto, um mundoproibido, desconhecido? Deste modo, uma fonte que poderia escla-recer os Ocidentais não fazia mais, talvez, que reforçar-lhes as ilusões (*").

De onde provinha então o oceano Índico do Ocidente medieval?De medíocres fontes helenístico-latinas e de descrições lendárias.

A Antigüidade conheceu um momento «crítico» em relação às lendasrespeitantes ao mundo indiano, a que Rudolf Wittkower chama an enligh-lened iníeríude. O principal representante desta corrente incrédula éEstrabão, que não hesita em chamar mentirosos aos que, antes dele, escre-veram sobre a índia (1T). Aulu-Gelle, por sua vez, devia confessar, maistarde, o seu desgosto pelas fábulas cujo benefício estético ou moral lheparecia nulo ("). O próprio Ptolomeu, apesar do caracter mais científicodo seu método geográfico, apesar de um meihor conhecimento do por-menor cartográfico, não conseguiu contrabalançar vitoriosamente umapseudociência saída, em grande parte, da própria poesia épica indiana, emque os mitos eram a própria essência da realidade e do conhecimento.Esta poesia científica mítica, desvirtuada em pitoresco de pacotilha, iriadessedentar a imaginação do Ocidente medieval C9). Notemos aqui — paradizermos já quanto o seu «cepíicísmo» encontrou pouco eco na IdadeMédia — que dois espíritos cristãos se incluem mais ou menos nestepequeno grupo de incrédulos. Santo Agostinho, preocupado em justificar

- uma antropologia fundada na Gênese, perturbou-se com a possibilidade. da existência, na índia, de homens monstruosos que dificilmente se poderia

(") L. Olschki, L'Ásia di Marco Polo, Florença, 1957. Acerca dadesconfiança dos Venezianos perante barcos do oceano Índico, p. 17 eacerca da mudança do caracter do relato de Marco Polo, pp. 31-32.

(") Acerca da espantosa semelhança entre a índia fabulosa dosmanuscritos ocidentais e a dos manuscritos de Kazwim (em especial oCod. Arab. 464 de Munique de 1280), cfr. R. Wittkower, loc. c//., p. 175.Acerca dos vestígios dos eruditos ocidentais da Idade Média em trabalhosmais astrológicos e mágicos que científicos dos Árabes, cfr. R. Lemay,«Dans FEspagne du XII* siècle: lês traductions de Farabe au latin» emAnnales, E. S. C., 1963, pp. 639-665.-" C7) Estrabão, n, l, 9.

O Aulu-Gelle, Noctes Aflicae, IX, 4.(") Cfr. E. L. Stevenson, Geography of Claudius Ptolemy, Nova

Iorque, 1932.

267

fazer, entrar na posteridade de Adão e de Noé, sem contudo excluir queDeus!tenha criado neles modelos desses abortos que nascem entre nóse que seríamos tentados a atribuir a uma falta da sua sabedoria. Alberto,b, Grande, pito séculos mais Uiüc, hesita em pronunciar-se sobre factose~ seres; que a experiência C") não provou a seus olhos.\ Mas Plínio, o Velho, recolhera, na sua Historia Naturalis, todas as

fábulas respeitantós à índia e dera, durante anos, a sua sanção de «auto-ridade científica» à crença de um mundo indiano regorgítante de mara-vilhas ("). Sobretudo, mais do que Plínio, um dos autores de digests que,no Baixo Império, inauguraram a cultura medieval, C. lulius Solinus,irá ser, com a sua medíocre Collecíanea rerum memorabilium, escritadurante esse naufrágio do século III de onde emergem os primeiros des-troços da cultura greco-romana, o grande inspirador das divagações me-dievais sobre o oceano Indico e o que o rodeia ("), A sua autoridade foiainda reforçada pelo uso que dele faz, em princípios do século V, umdos primeiros retóricos cristãos, Martíanus Cappella, o grande especialistado Ocidente medieval, em matéria de «artes liberais» ("), até ao século XII.

Mais ainda, alguns escritos fantasistas, postos sob a autoridade dealgum grande nome cujo testemunho a credulidade medieva aceitava, semdúvida nem exame, alimentaram o sector indiano de uma pseudociênciaque se inspirava de preferência nas fontes da literatura apócrifa. Assim,a carta de um certo Fennes dirigida ao imperador Adriano, que contaas «maravilhas da Ásia» e que remonta possivelmente ao século IV,segundo um original grego que se perdeu, relata uma pretensa viagemao Oriente 00- Entre o século VII e o século X, três tratados da mesmanatureza, dos quais uma Epístola Premonis regis ad Traianum Impera-torem. abordam, no Ocidente, o tema e a expressão dos mirabiliaIndiae (")• A correspondência apócrifa respeitante à índia e às suas

(3a) Sobre o texto de Santo Agostinho, De civitate Dei, XVI, 8: «Anex propagine Adam vel filiorum Noe quaedam genera hominum monstrosaprodiderint», cfr. R. Wittkower, op. cit., pp. 167-168. Alberto o Grande(De animalibus, XXVI, 21) declara, a propósito das formigas pesquisadorasde ouro da índia, «sed hoc non satis est probatum per experimentam».

Ç") Plínio declara (Historia naturalis. VII, u, 21) «praeccipue índiaAethiopumque tractus miraculis scatent».

(") As Collecíanea rerum memorabilium de Solinus foram editadaspor Mommsen, 2.1 ed., Berlim, 1895.

(") A geografia de Martianus Capella encontra-se no sexto livro,dedicado à geometria, do De nuptiis Philologiae et Mercurii.

(**) Editada por H. Omont, «Lettre à 1'Empereur Adrian sur lêsmerveilles de 1'Ásie», em Bibliothèque de 1'ecole dês Charles, L. XXIV,1913, p. 507 e ss., segundo o Ms. Paris B. N. Nouv, acg, lat. 1065,ffs. 92 v.' 95, do século IX.

O Os dois primeiros tratados Mirabilia e Epístola Premonis regis adTraianum Imperatorem foram editadas por M. R. James, Marvels of lheEast. A full reproduclion of lhe íhree known copies, Oxford, 1929. Aterceira, De monstrís ei belluis, foi editada por M. Haupt em Opuscida. II,1870, p. 221 e ss.

268

maravilhas enriqueceu-se ainda mais com a Carta de Alexandre a Aris-tóteles que circulava desde o ano de 800, mais ou menos, da corres-pondência entre Alexandre e Dindymus ('*). Enfim, o mito indiano enri-queceu-se, no século XII, com uma nova personagem, o Prestes Joãoque, em l J 64, teria enviado uma carta ao imperador bizantino ManuelComneno (").

Nesta literatura de ficção, devemos dar um lugar à parte a um con-junto romanesco que, amalgamando o tema das maravilhas da índia, lheconferiu um extraordinário prestígio. O Alexandre medieval, herói lendárioa quem foi dedicado um dos ciclos romanescos favoritos do público oci-dental, ficou ligado, por um impulso dado à história, ao vasto domínio daprodigiosa índia. As aventuras e as explorações que atribuímos ao reiexplorador, curioso de tudo, que sondava as profundezas da terra, dasflorestas, dos mares e dos céus, davam ao mito indiano uma dimensãoromanesca. Com ele, a ciência-ficção medieval, o maravilhoso geográficoe a teratologia pitoresca culminavam na aventura, ordenavam-se na buscade maravilhas e de monstros (**). Com ele, também, o Ocidente medievalencontrava as fontes gregas da índia fabulosa. Na verdade, mais aindaque os « ivôtji* », escritos, em princípios do século IV A. C., por Ctésíasde Cnído, que na Pérsia havia sído o médico do rei Artaxerxes Mné-mon ("), é o tratado escrito por Megástenes cerca do ano 300 A. C.que está na origem de todas as fábulas antigas e medievais relativas àsmaravilhas da índia. Enviado como embaixador junto de Sadracottos(Chandragupta), na sua corte de Pataliputra (Patna) no Ganges por

(M) Estes textos foram editados por F. Pfister, Kleine Texte zumAlexanderroman- (Sammlung vulgãr-Iateínischer Texte, 4), 1910. W. W.Bôer deu uma nova edição crítica da Epístola Alexandri ad Aristotelem.Haia, 1953. :,__ (") Todas as fontes respeitantes ao Prestes João foram reunidas porF. Zarncke em :Abhandlungen der phil.-hisl. Klasse d. kgi. sàchs. GeseÜ.d. Wiss VII e VHI, 1876-1879. Cfr. Henning, op. cit., n.e 13, III,

~ cap. CXV; L. Thorndike, A hisíory of Magic and Experimental Science,Londres, 1923, II, p. 236 e ss.; Ch-V. Langlois, La vie em France auMoyen Age, III, _La connaissance de Ia nature et du monde, Paris, 1927,pp. 44-70. L. OIschki viu na Lei t ré du P ré f ré Jean um texto de utopiapolítica. «Der Brief dês Presbyters Johannes», em Historische Zeiíschrift,144, 1931, p. 1-14 e Storia leíteraria delle scoperte geografíche, 1937.p. 194, ss. Não pude consultar Slessarev Vsevolod, Priesíer John, Univeisidade de Minnesota, Minneapolis, 1959.

(") Da imensa literatura sobre Alexandre medieval contentar-me-<em .citar três livros recentes fundamentais: A. Abel, Lê Roman d'Ale-xandre, légendaire medieval, Bruxelas, 1955; G. Cary, The MedievalAlexander, Cambridge, 1956, e D. J. A. Ross, Alexander historiatus:A Guide to Medieval illusfraled Alexander Literature, «Warburg InstituteServeys», I, Londres, 1963.

(M) J. W, McCrindle, Ancient índia as described by Ktesias theKnidian, Westminster, 1882.

269

Seleuco Nicátor, herdeiro de Alexandre, na Ásia, Megástenes recolhera aí,e embelezara,- todos os relatos míticos, todas as fábulas que iriam, durantedezoito séculos, fazer da índia o mundo maravilhoso dos sonhos do

Ocidente (").Os escritores do Ocidente medieval não estabelecem divisão estanque

entre a literatura científica ou dídáctica e a literatura de ficção. Acolhemigualmente, em todos estes gêneros, as maravilhas da índia. Ao longode toda a Idade Média, elas formam um capítulo habitual das enci-clopédias, onde uma série de eruditos procura encerrar, como se se tratassede um tesouro, o conjunto dos conhecimentos do Ocidente. O primeirode todos eles, depois de Martianus Capella, foi, claro está, Isidoro deSevílha que dedica à índia e suas maravilhas um parágrafo em cada umdos artigos pertinentes das suas Etymoiogiae (íl). A Grande Enciclopédiacarolíngia de Raban Maur, De Universo, retoma o texto de Isidoro,acrescentando-lhe interpretações alegóricas e as espantosas miniaturas domanuscrito 132, pintado por volta do ano de 1023, no Monte Cassino, apre-sentam aí os monstros da índia, ao lado de cenas realistas, em que sepretendeu ver uma das primeiras representações de utensüagem técnicado Ocidente medieval ("). Há um capítulo, De índia, sem falar nas refe-rências indianas dos capítulos Paradisus, De Monstris, De Bestiis, no ImagoMundi, atribuído a Honorius Augustodunensis (M). Jacques de Vitry retomaestes materiais na sua Historia Orientnlis, mostrando que os sábios cris-tãos da Terra Santu continuam a beber a sua sabedoria no arsenal doOcidente, neste caso na Epístola Alexandri e não nas fontes orientais,escritas ou orais (M). Os enciclopedistas do século XIII estão todos pre-sentes no encontro com o mito indiano: Gauthier de Metz, no seu ImagoMundi, que será traduzido para francês, inglês e itaiiano até finais daIdade Média ("), Gervais de Tilbury que, nos seus Otia Imperialia escri-tos cerca de 1211 para Otão IV, recebe sobretudo a influência da Cartade Fermes a Adriano ("), Barthelemy, o Inglês, dependente aqui de Soli-

C°) E. A. Schwanbeck, Megasthenis Indica, Bona, 1846.(") Isidoro de Sevilha, Etymoiogiae. ed. W. M. Lindsay, Londres,

1911, cap. XI, XII, XIV, XVI, XVII. Cfr. J. Fontaine, Isidore de Sévilieet Ia culíure classique dans iEspagne wisigoihique. 2 vol., Paris, 1959.

(31) Raban Maur, De universo ou De rerum naturis, 8, 12, 4, 17, 19.Migne PL, CXI, Amelli, Miniature sacre e profane dell'anno 1023 itlus-tranti l'Enciclopédia medioevale di Rabano Mauro, Montecassino, 1896.A. Golschmidt, «Frühmittelalterliche illustrierte Enzyklopádien», em Vor-trage der Bibltothek Warburg, 1923-1924. Lynn Whiie ir., «Technologyand Invention in lhe Middle Ages», em Speculum, XV, 1940,

(1J) Migne, PL, CLXXH, I, 11-13.(") Historia Orientalis, cap. LXXXVI-XCII.(") Cfr. R. Wittkower, loc, cií., p. 169, n. 5.(") Cfr. M. R. James, op. cií., n. 25, pp. 41 ss.

270

nus, cujo De Proprieiatibus rerum conhecerá o êxito até aos princípiosdo século XVII ("), Thomas de Cantimpré, cuja De natura rerum será tra-duzida para flamengo em fins do século XIII por Jacob Maerlant epara alemão em meados do século XIV por Conrad von Megenberg ("),Bruaetto Latini no seu Trésor, onde Dante bebeu talvez as suas alusõesindianas (3S), Vicent de Beauvaís, que o retoma por três vezes, uma noSpeculum naturale e duas no Speculum hisioriale ("). A Baixa IdadeMédia continua a enriquecer o mito indiano. Mandeville, na sua viagemimaginária à volta do mundo, introduz um novo Indienfahrer, Ogier oDinamarquês, cujas explorações rivalizam com as de Alexandre ("), asGesta Romanorum, recolha de fábulas e de contos moralizado rés, ondebebem os pregadores que oferecem ao público sermões com origem nofantástico indiano (") e Pierre d'Ail!y, que no seu Imago Mundi de 1410reúne, num capítulo, todo o saber acerca dos Mirabilia índiae (").

O êxito desta literatura foi aumentado graças às imagens que ilustra-ram muitos dos manuscritos onde figuravam esses textos e que por vezesirrompem no domínio da escultura, como o testemunham muitas obrasde arte, das quais a mais célebre e mais apaixonante é o tünpano de

O Cfr. R. Wittkower, loc. c/V., p. 170, n. 1. Trata-se das maravilhasda índia no De propríetatibus rerum, nos cap. XII, XV, XVI, XVII,XVIII.

(") Cfr, R. Wittkower, op. cit., p. 170, n. 8 e 9,O Cfr. R. Wittkower, op. cit., p. 170, n. 2. Sobre pante cfr. De

Gubernatis, «Dante e FIndia», em Giornale delia Società Asiática Italiana,III, 1889.

(**) As passagens sobre a índia encontram-se no Speculum naturale,no livro XXXI, capítulos CXXIV a CXXXI (sobretudo segundo Solinuse Isidoro) e, no «Speculum historiale», um capítulo intitulado «De índiaet ejus mírabilibus quae vidit Aiexander in índia», tirado da EpístolaAlexandri ad Aristoíelem.

C") Cfr. A. Bovenschen, Die Quelle für die Reisebeschreibung dêsJohann von Mandeville, Berlim, 1888. Mendevilles Reise in mittelnieder-deutscher Übersetzungen, ed. S. Martinsson, Lund, 1918. Há, em João deMandeville, o eco das aventuras, de resto em parte tiradas das mesmasfontes (especialmente Plínio e Solinus) de Sindbad, o marinheiro. Sobreo tema dos exploradores do oceano Índico na literatura muçulmanamedieval, cfr. a edição de Eusèbe Renaudot, Anciennes relations dês.Indes et de Ia Chine de deux voyageurs mahométans. Paris, 1718, eC. R. Beazley, The Dawn of Modem Geography, Londres, 1897, I, P.235-238, 438-450.

(") Cfr. Grasse, Gesta Romanorum, Leipzig, 1905 e H. Oesterley,Gesta Romanorum, Berlim, 1972, p. 574 ss. Sobre os exempla indianosna literatura moral medieva cfr. J. Klapper, Exempla (Sammlung mitte-lateinischer Texíe, 2), Heidelberga, 1911,

•(") Ed. E. Buron, Paris, 1930. De mirabilibus índiae, pp. 264 ss.

277

Vézelay O4). Não me parece oportuno desenvolver agora o estudo deuma iconografia que me levaria para demasiado longe do meu objectivoe das minhas competências; mas, a propósito dessas imagens, podemosfazer alguns breves reparos. Antes do mais, a abundância das figuraçõesprova de que maneira as maravilhas da índia inspiraram as imaginaçõesocidentais. Mais ainda: os autores, em cujos textos se inspiraram osminiaturistas e os escultores, souberam traduzir tudo o que os artistasmedievais aí punham de fantasia e de sonho. Mundo imaginário, deviaser um tema favorito para a exuberante imaginação medieval.

O estudo da iconografia revela igualmente como são, por vezes, com-plexas as diversas tradições artísticas e literárias que, para além de algu-mas influências maiores, algumas linhas mestras, se entretecem na inspi-ração indiana do Ocidente medieval C*1). Seria talvez revelador distinguir, naideologia e na estética medievais e através das inúmeras contaminações,duas inspirações distintas, duas interpretações divergentes desse mara-vilhoso indiano. Por um lado, a tendência a que Rudolf Wittkowerchama «geographical-ethnological» e me parece remeter para um universofolclórico e mítico, para uma concepção da índia como anti-natura, dassuas maravilhas como fenômenos contra-natura (*"). Marcada com o selo dopaganismo greco-romano, esta concepção parece-me sobretudo ressaltar ade um fundo primitivo e selvagem. Ela faria parte desse anti-humanismo Jmedieval que inspirou as mais espantosas criações artísticas da Idade JMedia ocidental. Perante esta interpretação escandalosa, uma tendênciamais «racional» procura domar as maravilhas da tndia. Saídas das '•••,interpretações naturalistas de Santo Agostinho e de Isidoro de Sevüha,";que fazem delas meros casos particulares, casos-límite da natureza,fazendo-as entrar na ordem natural e divina, essa tendência culminana alegoria e, mais ainda, na moralização de tais maravilhas. Sob a |influência do Physiologus, os Bestiários, sobretudo a partir do século XIX ídão assim um sentido às extravagâncias indianas e tendem para dês- '|pojá-las do seu poder escandaloso. Os Pigmeus são o símbolo da humfl- j|

O*) Sobre a iconografia dos mirabiüa, além do artigo de R. Witt-kower, os dois admiráveis trabalhos de J. Baltrusaítis, Lê Moyen Agefantastique. Antiquités et exotismes dans l'art gotique, Paris, 1955 e Réveiliet Prodiges. Lê Moyen Age faníasíique. Paris, 1960. Podemos ainda terE. Mâle, L'Art religieux du XIV siècle. La íradiíion antique. Lês fablesde Ctésias, de Mégasihène, de Pline, de Solin sur lês monstres. La colonnede Souvigny, tableau dês merveilies du monde. Lê tympan de Vézelay etlês différents peuples du monde évangélisés par lês apôtres, pp. 321 ss. jjjSobre o tímpano de Vézelay consultar A. Katzenellenbogen, «The Central*Tympanum at Vézelay», em An Bulietin. 1944 e F. Salet, La Madeleine ide Vézelay, Melun, 1948.(") Sobre as origens da iconografia e do estilo nas miniaturas dosMirabilia Indiae da Alta Idade Média e especialmente sobre as influênciasbizantinas cfr. R. Wittkower, loc. cit., pp. 172-174.

O Cfr. R. Wittkower, loc. cit., p. 117.

272

dade, os Gigantes são o símbolo do orgulho, os Cinocéfalos o símbolodas pessoas quesilentas, sendo assim reduzidos à humanidade vulgar,A domesticação processa-se ao longo de uma evolução que transformaas alegorias míticas em alegorias morais e que finalmente as degradaaté ao nível da sátira social. Num manuscrito do século XV do Liberde monsfruosis hominibus, de Thomas de Cantimpré (Bruges Cod. 411),raças fabulosas da índia aparecem vestidas como burgueses flamengos (")-

Em ambas as perspectivas, p oceano Índico é um horizonte mental,o exotismo do Ocidente medieval, o lugar dos seus sonhos e dos seusré calcam e n tos. Explorá-lo é reconhecer uma dimensão essencial da sua'mentalidade e da sua sensibilidade, visível em tantos aspectos da arte,um dos principais arsenais da -sua imaginação (").

iAntes de esboçar a carta Onírica da índia no Ocidente medieval,

resta perguntar o que banha este oceano Indico e qual a índia cujas mara-vilhas ele defende. Ao longo desta Unha costeira que parece seguir semacidente de maior, para os Ocidentais, desde a África oriental até àChina, distinguem-se, em geral, três sectores, três índias. A índia Maior,que compreende quase toda a nossa índia, fica entre a índia Menor quese estende do norte da costa de Coromandel com inclusão das penínsulasdo Sudeste asiático, e uma índia meridiana que compreende a Etiópia eas regiões costeiras do Sudoeste asiático O- A ligação — ou a confusão —interessante é a que une a Etiópia à índia e forma, com a África orientale a Ásia meridional, um só mundo maravilhoso, como se a rainha doSabá desse a mão a Alexandre e não já a Salomão. Vemos isto claramentena história da lenda do Prestes João. Situado este mundo, primeiro,na índia propriamente dita, mas incapaz de encontrar-se na Ásia, é final-mente transferido para a Etiópia, nos séculos XIV e XV. Em 1177, opapa Alexandre III em vão enviara ao Oriente o seu médico Filipe,portador de uma carta dirigida a Johanni lllustri et magnífico Indorwn

(") Cfr. os textos citados por R. Wittkower, loc. cit,, p. 168, n. 2 e 4.«Portenta esse ait Varro quae contra naturam nata videntur; sed nonsunt contra naturam, quia divina voluntate fiunt» (Isidoro de Sevilha,Btymologie, XI, III, I) e «Portentum ergo fit non contra naturam, sedcontra quam est nota natura. Portenta autem, et ostenta, monstra,atque prodígia, ideo nuncupantur, quod px>rtendere, atque ostendere,mostrare, atque pracdiccre aliqua futura videntur» (Ibid., XI, III, 2),-Um fólio do Cod. 411 de Bruges é reproduzido em Wittkower, loc. cit.,Ü. 44, p. 178.

C") Reportar-nos-emos sobretudo às obras de J. Baltrusaitis ciladasn. 44.

(") Sobre as três índias, cfr. por exemplo Gervais de Tilbury,Otia Imperialia, ed. F. Liebrecht, Hanover, 1856, l, p. 911 e H. Yule,Cathay and the Way ihilher, II, pp. 27 ss., Londres, 1914 e J. Wright.The geographical Lore..., p. 307 ss.

273

;

regi ("). Mas, apesar destas hesitações, os Ocidentais conservam umacerteza: o mundo das maravilhas fica a leste, no Oriente. Só Adão deBrsma tentará transplantar os mirabilia Indiae para o mundo do norte (n).

O primeiro sonho do Ocidente medieval é o de um mundo deriqueza. Neste domínio indigente da Cristandade ocidental — Ialinitaspenuriosa est, diz Alain de Lille—, o oceano Índico parece regorgitarde riquezas, parece ser a nascente de uma vaga de luxo. Sonho sobre-tudo ligado às ilhas, as inúmeras «ilhas afortunadas», ilhas ricase felizes, que são o preço do oceano Indico, mar semeado de ilhas.«Neste mar da índia — diz. Marco Polo—, há doze mil e setecentasilhas... Não há homem no mundo que de todas as ilhas da índia possacontar a verdade... É tudo o melhor e a flor da índia...» (") O simbolismocristão rodeia ainda as ilhas de uma auréola mística que assim fazdelas a imagem dos santos que conservam intactos o seu tesouro de vir-tudes, em vão batidos por todos os lados pelas vagas das tentações (").Ilhas produtoras das matérias de luxo: metais preciosos, pedras preciosas,madeiras preciosas, especiarias. A abundância é tal que, de Maio a Julho,segundo Marco Polo, no reino de Coilum, que é a costa indiana a sudoestede Malabar, faz-se a colheita da pimenta: «Carregam-na a granelem navios, como se faz entre nós com o centeio.» (") O reino de Malabartem tão «grandes quantidades» de pérolas pescadas no mar, que o seu -rei anda nu, apenas coberto de pérolas da cabeça aos pés, tendo, •só no pescoço ("), «cento e quatro das maiores e das mais belas». •;Ilhas que são completamente constituídas por ouro puro ou prata pura, ;como as de Chryse e Argyre... De todas estas ilhas, a «melhor»,-quer dizera maior e a mais rica, é a Taprobana, que é Ceüão. Horizonte semirreal,

(") Cfr. R. Wittkower, íoc. cit., p. 197 e Jean de Plan Carpin, His-íoire dês Mongols, ed. J. Becquet e L. Hambis, Paris, 1965, n. 57,

pp. 153-154.(") Adam de Brema, Gesta Hammaburgensis ecclesiae, livro IV,passim e especialmente os cap. XII, XV, XIX, XXV (MGH, SS, VIIe B. Schmeidler. MGH, SS. R. G. ed. 2, 1917). Adam transplanta as lraças monstruosas da índia para a Escandinávia, Cfr. K. Miller, Mappaemundi, IV, 18.(") Marco Polo, La Description du Monde (com a reprodução deminiaturas do Ms. fr. 2810, Paris, BN intitulado Lê livre dês Merveilles), led. L. Hambis, Paris, 1955, p. 292.(") Raban Maur, De universo, Migne PL, CXI, cap. V. De insulis: •;«.Insulae dictae, quod In sale siní, id est in mari posiíae, quae in plurimislocis sacrae Scripturae aut ecciesias Chrísti significaní auí specialiterquoslibet saneies viros, qui truduniur fluctibus persecutionutn, sed nondesíruuníur, quia a Deo proteguntur».

("J Marco Polo, ed. L. Hambis, p. 276.(") Ibid., p, 253. Eis como as ilhas de ouro chegam até ao /mago

Mundi de Pierre d'Ailly (cap. XLI. De aliis insulis Oceani famosis) «Criseet Argire insule in Indico Oceano site sunt adeo fecunde copia metallorumut plerique eas auream superficíem et argenteam habere dixerunt undeet vocabulum sortite sunt».

274

semifantásíico, semicomerc<ai, semirnental, ligado à própria estruturado comércio do Ocidente medieval, importador de produtos preciososlongínquos, com os seus reflexos psicológicos.

A este sonho de riqueza liga-se um sonho de fantástica exuberância.As terras do oceano Índico estão povoadas de homens e animais fantás-tieus, são um universo de monstros das duas categorias. Como afirmouHonorius Augustodunensis, «.Há lá monstros, podendo alguns deles serclassificados na espécie humana e outros nas espécies animais.» C') Atra-vés deles, o Ocidente foge à realidade medíocre da sua fauna, reencontraa inesgotável imaginação criadora da natureza e de Deu:». Homens compés voítados para trás, cinocéfalos que ladram, vivendo muito além dotempo normal para a existência humana e cujo pêlo, na velhice, escurececr,: vez tlc branquear, monópodos que se abrigam à sombra do únicopé levantado, ciclopes, homens sem cabeça, com olhos nas espáduas edois buracos no peito à guisa de nariz e boca, homens que vivem apenasdo perfume de uma só espécie de fruto e morrem quando já o nãopodem respirar (")• Antropologia surrealista comparável ã de um MasErnst... Ao lado destes homens monstruosos, pululam animais fantás-ticos, alguns feitos de peças ou pedaços, como a «bestia leucocroca»,com corpo de burro, ancas de veado, grande corno bifurcado, larga bocafendida até às orelhas e de onde se escapa uma voz quase humana; outroscom face humana, como a mantichora, com três filas de dentes, corpode leão, cauda de escorpião, olhos azuis, pele cor de sangue, cuja vozsibíla como a da serpente, mais rápida na corrida que uma ave a voar,antropófago em suma ("). Sonho de abundância e de extravagância, de

(**) De imagine Mundi, Migne, PL, CLXXII, cap. XI-XIII, col. 123--125. Á frase citada é o princípio do capítulo XII.

-(") «Ut sunt Ü qui aversas habent plantas, et octonos símul sedecimin pedibus dígitos, et alli, qui habent canina capita, et ungues aduncos,quibus est vestis pellis pecudum, et vox latratus canum. Ibi etiam quaedammatres semel pariunt, canosque partus edunt, qui in senectute nigrescunt,et longa nostrae aetatis têmpora excedunt. Sunt aliae, quae quinquennespariuní; sed partus octavum annum non excedunt. Ibj suní, et monoculi,et Arimaspi et Cyclopes. Sunt et Scinopodae qui uno tantum fulti pedeauram cursu vincunt, et in terram posití umbram sibí planta pedis erectifaciunt. Sunt alli absque capite, quibus sunt oculi ín humeris, pró nasoet ore duo foramine in pectore, setas habent ut bestiae. Sunt alii juxtafontem Gangis fluvü, qui solo odore cujusdam pomi vivunt, qui si longiuseunt, pomum secum ferunt; moriuntur enim si pravum odorem trahunt»(ibid., cap. XII).

C*) Depois das gigantescas serpentes capazes de atravessarem o oceanoÍndico a nado, eis «Ibi est bestia ceucocroca, cujus corpus asini, clunescervi, pectus et crura leonis, pedes equi, ingens cornu bisulcum, vastusoris hiatus usque ad aures. In loco dentíum os solídum, vox pene hominis...Ibi quoque Mantichora bestia, facíe homo, triplex in dentibus ordo, cor-pore leo, cauda scorpio, oculis glauca, colore sangüínea, vox sibüus ser-pentum, fugiens discrimina volat, velecior cursu quam avis volatu, huma-nas carnes habens in usu...» (Ibid., cap. XIII).

275

justaposições e de misturas perturbadoras, forjado por um mundo pobree limitado. Monstros que são também, muitas vezes, como que a separaçãoentre o homem e a riqueza entrevista, sonhada, desejada: os dragões daíndia guardam os tesouros, o ouro e a prata, e impedem que o homemse aproxime deles.

Sonho que se expande na visão de um mundo da vída diferente,onde os Tabus são destruídos ou substituídos por outros, onde a extrava-gância segrega uma impressão de libertação, de liberdade. Perante a moralacanhada imposta pela Igreja, expande-se a sedução perturbadora deum mundo de aberração alimentar onde se pratica a coprofagia e o cani-balismo ("), da inocência corporal, onde o homem liberto do pudor dovestuário reencontra o nudismo ("j, a liberdade sexual, onde o homem,desembaraçado da indigente monogamia e das barreiras familiares, seentrega à poligamia, ao incesto, ao erotismo ("*).

Mais para lá ainda, é o sonho do desconhecido, do infinito, domedo cósmico. Aqui, o oceano Índico é o more infinifum, a introduçãono mundo das tempestades, na ferra senza gente de Dante. Porém,a imaginação ocidental esbarra aqui com as fronteiras desse mundoque é, decididamente, um mundo fechado onde o sonho rodopia. Por

(") «Nesta ilha há a gente mais maravilhosa e a pior que existe nomundo. Comem carne crua e todas as espécies de outras porcarias e cruel-dades. Porque o pai come o filho e o filho o pai, o marido a mulher ea mulher o marido» (Lês voyages en Asie au XIV siècle du bienheureuxfrèrc Odoric de Pordenone. religieux de sqint François. Recuei! de voyageset de documenís pour servir à 1'histoÍre de Ia géographie depuis lêXIII' }usqu'à Ia fin du XVI' siècle, v. X, ed. Henri Cordier, Paris, 1891,cap. XIX, p. 237. De l'isle de Dondiin).

(so) «Nesta ilha (Necuveran, quer dizer Nicpbar), não há rei nemsenhor, e são como animais selvagens. E digo-lhes que andam completa-mente nus, e homens e mulheres, e não se tapam com coisa nenhumado mundo. Tem relações carnais como cães na rua ou noutra partequalquer, sem a mínima vergonha, e não respeitam nem o pai a filha,nem o filho a mãe, porque cada um faz o que quer e como pode. É umpovo sem lei...» (Marco Polo, ed. L. Hambís, p. 248). Este tema estáde acordo com o da inocência, da idade de ouro e dos «piedosos» brâ-manes, de que falarei mais adiante. Por exemplo: «Nós andamos nus— dizem os ciugni, categoria especial de brâmanes de Malabar — porquenão desejamos nada deste mundo, porque viemos ao mundo sem qualquerespécie de vestuário e nus; e se não temos vergonha de mostrar o nossomembro é porque não cometemos com ele qualquer pecado» (ibid., p. 269).

(*') «Ora saibam que na verdade este rei possui quinhentas mulheres,quero dizer esposas, porque, digo-vo-lo eu, sempre que vê uma bela damaou menina, logo a quer para sí e a toma por esposa. E neste reino, hámulheres muito belas. -E, ainda por cima, tratam do rosto e de todoo corpo» (ibid., p. 254). E ainda, por exemplo: «estas jovens, enquantosão virgens, têm a carne tão firme que ninguém a poderia agarrar oubeliscar fosse onde fosse. Por qualquer quantia, elas permitem a umhomem que as belisque tanto quanto queira... Por causa desta firmeza,os seios não são pendentes, antes se mantêm erectos e proeminentes.Raparigas assim, há em quantidade em todo esse reino» (ibid., p. 261).

276

*

um lado, esbarra com os muros que guardam provisoriamente o Anticristo,as raças malditas do fim do mundo, Gog(*) e Magog(**>, até atingiro seu próprio ankjuilamento apocalíptico. Por outro lado, encontra,caída, a sua própria imagem, o mundo ás avessas; e o antimundo comque sonhava, arquétipo onírico e mítico dos anttpodas, que remete a siprópria (").

Já só lhe resta satisfazer-se com sonhos agradáveis, virtuosos, tranqüi-lizantes. É o sonho católico do oceano indico. As suas tempestades não te-riam impedido que os apóstolos levassem para lá o Evangelho. S. Mateusteria convertido a índia meridiana, S. Bartolomeu a índia superior esobretudo S, Tomás a índia inferior, onde a procura do seu túmuloé mais outra miragem dos cristãos medievais. Nas costas do oceanoÍndico, uma cristandade perdida esperaria os seus irmãos do Ocidente.Este sonho gerará o Prestes João e a descoberta de comunidades nesto-rianas dar-lhe-á visos de realidade. De Gregório de Tours a Guilhermede Malmesbury, Heinrich von Morigen e Cesarius von Heisterbach,a índia apostólica ocupará as imaginações cristãs. A Crístanda-de do Extremo Oriente procura ser uma das primeiras a dar amão a esta Cristandade do Extremo Oriente: em 883, o rei inglês Alfredomanda para a índia cristã o bispo Sigelmus ("). As costas do oceanoÍndico são o domínio do sonho missionário por excelência. Mesmo MarcoPolo, mais realista, anota cuidadosamente, como tantos outros o fizeram,informações sobre este grande empreendimento e quais os povos quesão pagãos, muçulmanos, budistas, nestorianos.

Este sonho cristão tem uma finalidade ainda mais prestigiosa: encon-trar o caminho para o Paraíso terrestre. Porque é nas fronteiras da

(*) Reí de Magog.

(•*) Na Bíblia, país do nordeste da Ásia Menor, taJvez a Citia. — (N. da T.)(") Acerca de Gog e Magog, cfr. A. R. Annderson, Alexander's

Gate, and Magog and the Inclosed Nations, Cambridge, Mass. 1932.Acerca dos antípodas cfr. G. Boffito, «La leggenda degli antípodí», emMiscellanea di Studi storicí in onore di Arturo Graf, Bérgamo, 1903,pp. 583-601 e J. Ballrusaitis, Cosmographie chrétienne dans fan du MoyenAge. Paris, 1939.

O E. Tisserant, _ Eastern Christianity in índia, Londres, 1957;U. Monneret de ViUard, «Lê leggende orientaíi sui Magi evangelistici»,Studi e Testi, 163, 1952; J. Dahlmann, Die Thomaslegende, Friburg-en--Brisgau, 1912; L. W. Brown, The Indian Christians o} St. Thomas. Cam-bridge, 1956. A passagem de Gregório de Tours encontra-se no Liberin gloria martyrum, 31, 32 (MGH; SS RR MM, I).

Sobre a peregrinação de Henrique von Moringen à índia, por voltado ano 1200, cfr. Cesário von Heisterbach, Dialogas miraculorum,dit. VIII, cap. LIX e R. Henning, Terrae Incognitae, Leyde, 1936-1939,II, pp. 380 ss. Sobre a embaixada de Sigelmus, cfr. Guilherme de Malmes-bury, De gestis regum anglorum librí quinque, col. Rerum Brítannicarummedii aevi scriptores, t. XC (ed. W. Stubbs, I, Londres, 1887, p. 130) eHenning, op. c/V., II, pp. 204-207.

277

índia que a Cristandade o situa, é de lá que partem os quatro rios para-disíacos que ela identifica com o Tigre, o Eufrates, o Ganges (sob onome de Piso) e o Nilo (sob o nome de Géhon). Quase todos os cartó-grafos medievais, a conKyõi pelo monge Beaíüs no seu famoso mapada segunda metade do século XVIIII (w), colocam cuidadosamente, nosseus mapas, o Paraíso nos confins da índia.

Mas, também aqui, muitas vezes o sonho cristão se apaga peranteum sonho mais pagão. O Paraíso terrestre indiano torna-se um mundoprimitivo da Idade de Ouro, o sonho de uma humanidade feliz e inocente,anterior ao pecado original è ao cristianismo. O mais curioso aspectotalvez do mito indiano no Ocidente /medieval é o de um mundo de bonsselvagens. Desde o Commoniforium Palladii de finais do século IV atéRoger Bacon na sua Opus Maius. até Petrarca na De Vita Solitária, que sedesenvolve o tema dos povos «virtuosos» do oceano Índico. São os «vir-tuosos Etíopes», são ainda mais os «piedosos brâmanes», sobre quemse estende benevolamente o ciclo de Alexandre. Se a sua piedade podeter qualquer semelhança com um certo cvangeljsmo cristão, ela separa-sedele pela ausência de qualquer referência ao pecado original, peia rejeiçãode toda a organização eclesiástica e social. O sonho iniiiano termina,com eles, em humanismo hostil a toda a civilização, a toda a religiãoque não seja a natural (M).

No fim desta rápida incursão no mundo onírico que os homens doOcidente medieval projectaram no mundo do oceano Índico, encarado

O Sobre o Paraíso Terrestre, cfr. o livro fundamental de L. I. Ring-bom, Paradisus Terrestris. Myí, Bild och Verklighet, Heisínquía, 1958(com um resumo em inglês e uma abundante ilustração).

(") R. Bernheimer, Wild Men in íhe Midâle Ases. A study in Ari.Sentiment and Demonology, Cambridge, 1952. Os brâmanes inspiraramuma abundante literatura não só na Idade Média (desde o De moribusBrachmanorum do pseudo-Ambrosius: em Migne PL, XVII) como nahagiografia moderna: cfr. H. Becker, Die Brahmanen in der Alexander-sage, Kõnisberga, 1889; F. Pfister, «Das Nachleben der Überlieferungvon Alexander und den Brahmanen», em Hermes 76 (1941); G. Boas,Essays on Primitivism and Related Ideas in the Middle Ages, Baltimore,1948 e H. Gregor, Das Indienbild..., pp. 36-43. Petrarca escreve: «Illudimportunae superbiae est quod se peccatum non habere confirmant...Placet ille contemptus mundi, qui justo maior esse non potest, placetsolitudo, placet libertas qua nuÚi gentium tanta est; placet sileníium, placetotium, placet quies, placet intenta cogitatio, placet integritas atque securi-tas, modo temeritas absit; placet animorum aequalitas, unaque semperfrons et nulli rei timor aut cupiditas, placet sylvestris habitatio fontisquevicinitas, quem ut in eo libro scriptum est quasi uber terrae matrís incor-ruptum atque integrum in os mulgere consueverant...» A este mito doParaíso Terrestre indiano devemos ligar inúmeras maravilhas que aparecemtradicionalmente entre os mirabilia Indiae: a fonte de juventude ondeo Prestes João se banhou seis vezes e graças à qual ele ultrapassou osquinhentos anos, as árvores de folhas sempre verdes, a teriaga que épanaceia para todos os males, a fénix imortal, o licorne imaculado, etc.

278

decididameníe como anti-Mediterrâneo, ao invés lugar de civilizaçãoe de racionalização, podemos perguntar-nos se as contradições do sonhoindiano não são as contradições de todos os universos oníricos. Ao re-tomar uma distinção esboçada atrás, sentir-me-ia tentado a discernirnele a oposição de dois sistemas de pensamento, de duas mentalidades,de duas sensibilidades que, por vezes, permanecem misturadas. Por umlado, e o cristianismo, pelo jogo da explicação alegórica, reforçou con-sideravelmente tal tendência, trata-se de maravilhas domadas, cohju-radas, postas ao alcance dos Ocidentais, transportadas para um universoconhecido. Feita para servir de lição, esta índia moralizada pode aindainspirar medo ou inveja, mas é, mais e sobretudo, triste e entristecedora.

.As belas matérias já não passam de tesouro alegórico, e os pobresmonstros, feitos para a edificação, parecem todos eles repetir, coma raça infeliz dos homens maus, com o grande lábio inferior caído emcima deles, o versículo do Salmo CXL que personificam: malitia labiorumeorum obruat eos (M). Tristes trópicos...

Por outro lado, ficamos no mundo ambíguo das maravilhas cati-vantes e, ao mesmo tempo, assustadoras. É a transferência dos complexospsíquicos das mentalidades primitivas (") para o plano da geografia e dacivilização. Simultaneamente, sedução e repulsão perante o bárbaro.A índia é o mundo dos homens cuja língua não compreendemose a quem recusamos a palavra articulada ou inteligível e até mesmo toda

É na índia que a Idade Média situa a árvore-sol e a árvore-lua, árvoresfalantes que davam oráculos e representavam um papel importante na al-quimia (vêm indicadas na tábua de Peutinger, nas cartas de Ebstofer e deHereford; cfr. C. G. Jung, Psychologie und Alchimie, 2.- ed. Zurique,1952, pp. 105 e 321). A estas árvores maravilhosas Solínus acrescentou(Collectanea, 30, 10) a mesa do sol, em volta da qual se sentavam osmagos etíopes e em cima da qual os pratos se renovavam milagrosa-mente sem cessar, mito precursor do país de Cocagne, onde facilmentese reconhecia as alucinações aJimentares de um mundo faminto. Devemosenfim notar que, perante o mito de uma índia primitiva, florestal, anterioràs corrupções da civilização, encontramos o de uma índia populosa esuperurbanizada (cinco mil grandes cidades e nove mil nações segundoSolinus, 52, 4).

(*B) Cfr. Wittkower, loc. cit., p. 177. Deve-se notar, com Emile Màle(op. cit., p. 330), que as raças monstruosas da índia, representadas nosümpanos de Vézelay e de outras igrejas, representavam, como explica umpoeta do século XII (Hisloire Littéraire de Ia France. v, XI, p. 8), adegradação física e moral da humanidade depois do pecado original.

O Cfr. S. Freud, «Mythologísche Parallele zu einer plasíichenZwangsvorstellung», em Internationale Zeitschrift für arziliche Psychoana-lyse, IV, 1916-1917 {citado por R. Wittkqwer, loc. cit., p. 197, n. 7).Sabemos que, nos sonhos literários do Ocidente medieval, os monstros,e especialmente os dragões e os grifos, que pululam na índia, representamo inimigo do sonhador. Podemos perguntar se o exército dos animaisferozes e fantásticos que, no pesadelo de Carlos Magno (Chanson deRoland, verso 2525-2554), se atiram às tropas francas e representamos soldados do «emir da Babilônia», não é o mundo fantástico da índia

279

a possibilidade de falar. Eis o que são esses Indianos «sem boca», comquem, estupídamente, se tem procurado identificar esta ou aquela tribohimalaia ("). Entre o Ocidente c a índia é, de resto, recíproco o desprezona Idade Media. Desde a Antigüidade grega, o monoculismo 6 osímbolo da barbárie no Ocidente, e os Cristãos medievais povoam a índiade Ciclopes. No século V, quão grande foi a surpresa do viajante NicolòConti, ao ouvir dizer aos Indianos que eram muito superiores aos Oci-dentais, pois que, tendo dois olhos, tinham a sabedoria, enquanto queos Ocidentais só tinham um olho! (**) Quando os Ocidentais sonhavamcom Indianos semipartidos, semi-homens semianimais, não seriam osseus próprios complexos que prcjectavam aí esses monstros fascinantese perturbadores? Homodubü...^)

NOTA: O mundo céltico constitui um horizonte onírico diferentedo Ocidente medieval. Porém a cultura dos clérigos fez-lhe sofrer aforte marca das influências orientais. Os mitos indianos invadem a lendaarturiana (cfr. Aríhurian Literalure in lhe Middle Ages, ed. R. S. .Loomis,Oxford, 1959, pp. 68-69, 130-131).

Deixei de lado o problema das possíveis influências indianas nosfabulários, problema levantado por Gastão Paris, em 9 de Dezembrode 1874, na sua sessão de abertura do colégio de Franca: «Os contosorientais na Literatura francesa da Idade Média» (em La poésie du MoyenAge, 2.' série, Paris, 1895), a partir dos trabalhos dos grandes orienta-listas alemães do século XIX, nomeadamente Th. Benfey, Pantschatantra.Fünf Bücher indischer Fabeln, Márchen und Erzahlungen aus dem Sans-krít übersetzt, Leipzig, 1859). Acerca deste debate, ver: Per Nykrog,Os FabuláríoSr Copenhaga, 1957.

OS SOMHOS NA CULTURA E NA PSICOLOGIA COLECTIVADO OCIDENTE MEDIEVAL

que sé abate sobre a Cristandade? Cfr. R. Mentz, Die Traume in denaltfranzõsischen Karls-und Artus-Epen, Marburgo, 1887, pp. 39 e64-65; K. J. Steinmeyer, Untersuchungen zur allegorischen Bedeuíungder Traume im alífranzõsischen Rolandslied, Munique, 1963 e J, Gyõryem Cahiers de Civitisation medieval, VII, 1964, pp. 197-200. J. Gyoryaplicou ao tema do cosmos na literatura medieval («Lê cosmos, un songe»,em Annales Universilatis Budapestinensis. Secíio philologica, IV, 1963)um método que me parece próximo do que eu apUco aqui ao mito geo-gráfico e etnográfico da tndia.

(") H. Hosten, «The mouthless Indians», em Journal and Proceedingsof the Asiatic Society of Bengal, VIII, 1912.

O Nicolò Conti, que fez comércio na índia, na China e nas ilhas deSonda, de 1419 a 1444, deve ter-se tornado muçulmano para poder exercero seu tráfico e, de regresso à Europa, pediu a absolvição ao papa quelhe infligiu, como penitência, escrever o relato das suas viagens. Cfr.M. Longhena, Viaggi in Pérsia, índia e Giava di Nicolò de' Conti, Milão,1929, p. 179; Poggip,-BraccÍolini, Historia de varietate fortunae, 1. IV; Hen-ning, Terrae Incogniiae, IV, pp. 29 ss. e R. Wittkower, loc. dt.,p. 163, n. 5.

C") «Homodubii qui usque ad umbilicum hominís speciem habent,reliquo corpore onagro similes, cruribus ut aves...» (lenda duma miniaturade um manuscrito dos Mirabilia Indiae, Londres, British Museum, TiberiusB V, f 82 v.B por volta do Ano Mu; cfr. R. Wittkower, loc. cit.,p. 173, n. 1).

280

Este tema foi escolhido para tema de uma investigação de grandefôlego, elaborada no âmbito do curso de iniciação destinado aos jovenshistoriadores do E. N. S. Esta tentativa tem por objecto apresentar asestruturas, as permanências e as viragens da história da cultura edas mentalidades medievais a partir de algumas obsessões fundamentais.

Um estudo destes tem fatalmente horizontes psicanatítícos; masse tivermos em conta a insuficiente competência do coordenador nestedomínio e os problemas não resolvidos (') e levantados pela passagempsícanalítica do individual ao colectivo, teremos de coníeníar-nos comalgumas inferêncías psicanalíticas da pesquisa, sem contudo nos compro-metermos «crdadeiramente nelas. Tal como o estudo do sonho de S. Jeró-nimo O nos permitiu compreender o sentimento de culpa do intelectualcristão, bem visível ao longo de toda a história cultural medJeva, a aná-lise dos cinco sonhos de Carlos Magno na Chanson de Roland (*)culminou -no reconhecimento possível de uma «libido feudal». Pro-curámos igualmente • explorar e desenvolver os incentivos na obra de

5i- *

C) CfÇ. A. Besançon, «Vers une hisíoíre psychanalytique», I e Ií,Annales E^S. C., 1969, n.' 3 e 4, pp. 594-616 e 1011-1033.

O Doin Paul Antin em «Autour du songe de saint Jérôme», Revuedês Éludes Jatinès, 41, 1963, pp. 350-377, apresentou um notável trabalho,porém fixou-se a uma interpretação médica sem interesse, como a maiorparte das explicações «cientistas».

O K.-J. Steinmeverç Untersuchungen zur allegorischen 'Bedeuíungder Traume im altfranzõsischen Rolandslied, Munique, 1963, útil, mas nãovai ao fun2o da questão. Boa bibliografia da qual reteremos, para atemática literária, R. Mentz, Die Traume in den altfranzõsischen Karis-~und Artustspén, Marburgo, 1888 e, para os horizontes comparatistas eetnologicos;rA. M. Krappe, «The Dreams of Charíemagne in tbe Chansonde Roland»£f. M. L. A., 36. 1921, pp. 134-141.

281

Freud (*) de uma psicanálise social ancorada à consciência profissionalou à consciência de classe. A este respeito, o sonho real de Henri-que I de Inglaterra (s), estruturado de resto segundo o esquema dumezi-üano da sociedade tripartída, forneceu-nos um ponto de partida.

Em toda esta preparação de uma abordagem psicanalítica, não deixá-mos de tentar definir a forma como a elaboração literária dos relatos deum sonho duplicava, de certo modo, e acrescia a deformação do conteúdomanifesto em relação ao conteúdo latente do sonho. Neste aspecto,a literatura medieval, pela sua obediência, muitas vezes rígida, às leisde gêneros bem determinados, ao peso de autoridades constrangedoras,à pressão de lugares-comuns, imagens e símbolos obcecantçs, se empo-brece o conteúdo manifesto dos sonhos, oferece melhores resultadosa quem procura atingir o conteúdo latente. Em resumo: pareceu sertalvez revelador de uma cultura considerá-la a partir das suas obsessões,descobrindo as censuras que se exerciam sobre ela, no plano do refhrxo

individual e colectivo.Seguimos uma dupla linha de investigação: uma segundo a natureza

dos documentos, a outra segundo a sua cronologia.

Até agora, Imutámo-nos aos textos, reservando para mais tarde umaabordagem menos familiar, a da iconografia e da arte, cuja riqueza erevelações decisivas adivinhamos.

Entre os textos, distinguimos aqueles que sendo teóricos, nos propõemquadros de interpretação — tipologia dos devaneios, thaves dos sonhos —bem como os exemplos concretos de relatos dos mesmos.

Do ponto de vista diacrónico, limitámo-nos, até aqui, a sondar doisaspectos cronológicos: a fase de instalação da cultura e das mentalidadesmedievais, de fins do século IV até princípios do século VII, bem comoa grande revolução do século XII, em que do mesmo modo se manifesta,no âmago da permanência de estruturas profundas e resistentes, umtake off cultural e mental.

Para o primeiro período, analisámos de perto, no grupo dos texíosteóricos, a tipologia dos sonhos de Macróbio (*), de Gregório, o Grande, (7)e de Isidoro de Sevilha (*); nas categorias dos relatos de sonhos, o sonhode S. Jerónimo ("), os de S. Martinho na Vita Martini de Sulpício Se-vero ('") e dois outros tirados dus recolhas hagiográficas de Gregório deTours (")

C) Se bem que as concepções e o vocabulário de Jung, por exemplo,possam seduzir o historiador por urna aparente disposição para lhe serviras curiosidades, pareceu prudente, por muitas razoes, tomar como refe-rência psicanalítica a obra de Freud numa interpretação tão fiel quantopossível. Fomos nisto ajudados por instrumentos tais cojtno o Vocabulairede Ia psvchanalyse de J. Laplanche e J.-B. Pontalis, Paris, 1967, e os volu-mes de The Hampsiead Clinic Psychoanalyíic Library e, em especial, o vo-lume II: Basic Psychoanalyíic Concepts on lhe Theory of Dreams, Londres,ed. H. Nagera, 1969. Recordemos que Freud se interessara para a Traum-deutung pelos estudos históricos e nomeadamente pelo estudo de P. Diep-gen, Traum und Traumdeulung ais medizinisch-wissenschaftliches Problemim \fitielalter, Berlim, 1912, por ele citado a partir da 4.1 edição daTraumdeulung, 1914. Sobre o sonho, estruturas sociais e psicanálise,poderemos consultar dois estudos surgidos em Lê rêjre et lês sociétéshumaines, Paris, ed. R. Caillois e G. E. von Grunebaumf 1967: A. Millan,«Lê revê et lê caracter*' social», pp. 306-314, estreitamente dependentedas teorias psicanalítica^ Je Erich Fromm e Toufy Falid; «Lê revê dansIa société islamique du Moyen Age», pp. 335-365, muito~5Ugestivo. E, maisamplamente, Roger Bastide, «Sociologie du revê», ibid.~, pp. 177-188.

O The Chronicle of John of Worcester (1118-1L40), ed. I. R. H.Weaver, Anedocia Oxamíensia, 13, 1908, pp. 32-33. O sonho de Henriquesitua-se, segundo o cronista, no ano 1130. O rei é sucessivamente ameaçadoem sonhos pelos laboratores, os belatores, os oraiores. O manuscrito dacrônica está ornado com miniaturas que representam o triplo sonho.Elas vêm reproduzidas em J. Lê Goff, La civUisation de 1'Occidentmedieval. Paris, 1964, Ü. 117-118. Cfr. supra, o artigo «Note sur Ia sociétédu IX" au XII' siècle», p. 80. Sobre a tradição dos sonhos reais nassociedades orientais, cfr. Lês Songes ei leur interprétation, col. «Sourcesorientales», II, Paris, 1959, Index, s. y. Rói. Os sonhos de Carlos Magnodevem também, claro está, ser analisados como sonhos reais.

(*) Macróbio, Commentarium in Somnium Scipionis, I, 3, Leipzig,ed. J. Wilüs, vol. II, 1963. Cfr. W. H. Stahl, Macrobius, Commentary onthe Dream o} Scipio translaíed with introduction and notes by... 1-52e de P. Courcelle, autor de importantes trabalhos sobre Macróbio, maisparticularmente, «La postérité chrétienne du Songe de Scipion», emRevue dês Éludes latines, 36, 1958, pp. 205-234.

O Gregório o Grande, Moralia in Job. I, VIII (PL, 827-828) e-Diaíogi. IV 48 (PL, LXXXVII, 409).

(') Isidoro de Sevilha, Sententia, III, cap, VI: De tentamentis' somniorum (PL; 83, 668-671) e Apêndice IX, Senteotiarum liber IV,cap. XIII: Quae sínt genera somnibrum (ibid. 1163).

(9) S. Jerónimo, Ep. 22, 30 (ad Eustochium) ed. Hilberg, C. S. E. L.54, 1810, pp. 189-191 e Labourt, col. «Budé», t. I, 1949, pp. 144-146.

' O Sulpício Severo, Vie de saint Martin, 3, 3-5, 5, 3, 7, 6, ep. 2, 1-6,e cfr, Index s. v. Revés da edição, com um comentário bem notável deJacqües Fontaine, 3 vol., col. «Sources chrétiennes», n.9' 133-134-135,Paris, 1967-1969.

(") Gregório de Tours, De miraculis sancii Juliani, c. IX: De Fedamiaparalytica. Gregório de Tours, De virtutibus sancti Martini, c. LVI: Demulieré qua,& contractis in palma digitis venit. Notar-se-á que o sonho deHerman de Valenciennes (fim do século XII) citado infra é — sob umaforma degradada — um sonho de íncubação. Sabemos que um discípulo defung estudou a Íncubação numa perspectiva psicanalítica. C. A. Meier,Antike Inkubation und moderne Psychotherapie, 1949. Deve-se-Ihe tambémuma contribuição: «O sonho e a Íncubação na antiga Grécia, no volumeíüado Lê Revê et lês sociétés humaines, pp. 290-304.

252 283

i-.,;-.-i ç*'Quanto ao século XII, estudámos, na primeira série, a tipologia dossonhos de João de Salisbury ("), a análise das motivações dos sonhosde Hildegarda de Bingenf"). a classificação do Pseudo-A ugustinus (") —textos aos quais se juntou uma chave dos sonhos do século XIII, escritaem francês antigo (")• No segundo grupo explicámos os sonhos de Carlos

_ ...Magno, o pesadelo ('*) de Henrique I e os três sonhos relacionados com aVirgem Maria: dois deles, tirados à crônica de João de Worcester (IT) e oterceiro do Roman de Sapience da autoria de Herman de Valenciennes (").

Se, para mostrarmos os seus limites, sublinhámos a possível direcçãopsicanalitica da investigação, o facto não deve mascarar que tal investi-gação, por outro lado, contribui para a história das idéias, a histórialiterária, a história da medicina e das ciências, a história das mentalí-dades e da sensibilidade, do folclore. O estudo do sonho dá-nos pois — cpor exemplo — preciosos ensinamentos sobre o lugar do corpo e dosfenômenos afcrentes (técnicas do corpo no sentido maussiano ["], alimen-

0a) John of Salisbury, Polycraticus, II. 15-16, ed. Webb, 1909,pp. 88-96: De speciebus somniorum, et causis, figuris et significationibuset Generalia quaedam de significationibus, iam somniorum, quam alíorumfiguralium.

(") Hildegardis Causae et Curae, ed. P. Kaiser, Leipzig, 1903: «Desomnüs», pp. 82-83, «De nocturna oppressione et De somniis», pp. 142-143.

(") Liber De Spirilu et A nima (Pseudo-A ugustinus), c. XXVPL, XL. 798. A dependência do Pseuão-Augustinus com respeito aMacróbio foi evidenciada por L. Deubner, De incubatione, 1900.

(") Ci commence Ia senefiance de songes, ed. Walter Suchier:«Altfranzõsische Traumbücher», em Zeitschrift für franzõsische Spracheund Literatur, 67, 1957, pp. 154-156. Cfr. Lynn Thorndike. A Historyof Magic and Experimental Science, v. II, Londres, 1923, c. 50: Ancientand Medieval Dream-Books, pp. 290-302.

(**) Notar-se-á que o latim não tem palavra que defina pesadelo(Macróbio não tem equivalente em latim para o grego «epialtes» querejeita do lado das crenças populares). Este aparece nas línguasvulgares, na Idade Média. Cfr. o belo estudo de psicanálise histórica deE. Jones, On íhe Nightmare, 2.1 ed., 1949. A etimologia da palavrapesadelo (cfr. O. Bloch e W. von Wartburg, Dictionnaire étymotogiquede Ia langue françaíse, 5.* ed., Paris, 1968, p. 114: calcare: fouler + maréem neerlandês «fantasma nocturno») é controversa. Mas fiquemos como pesadelo, criação medieval. Para uma interpretação fisiológica dopesadelo cfr. Hildegarda de Bíngen, «De nocturna opressione», citadoh. 12.

(1T) The Chronicle of John of Worcester, op. cit. a. MCXXXVII,pp. 41-42.

O") Lê roman de Sapience de Hennan de Valenciennes, parte inéditado Ms. B. N. fr. 20039, versos 399-466. Devo este texto à amabilidadedo P." J. R. Smeets, da Universidade de Leyde.

(**) M. Mauss, «Lês Techniques du corps», em Journal de Psycho-logie, 1935, pp. 271-293, retomado em Sociologie et anthropologie,Paris, 1950.

284

tação, fisiología t10]) na visão medieval, ou nos traz mesmo uma acbegado fenômeno da «tradição», ultrapassando os métodos acanhados dahistória cultural «tradicional». Podemos, enfim, calcular, nesta perspec-tiva, em que limites pode ser legítima e reveladora C1) uma comparaçãoentre a sociedade medieval — as sociedades medievais—e as sociedadesditas «primitivas».

Esta investigação começou por valorizar a elaboração característicada cultura e da mentalidade medievais, das tradições antigas. Dos sonhosda ciência onírica da Antigüidade greco-latina, os clérigos da IdadeMédia retiveram, em especial, os textos susceptíveis de uma interpretação,partindo do sentido do cristianismo e oferecendo uma presa relativamentefácil — pelo preço das deformações e dos desvios quase sempre incons-cientes— para espíritos dotados de utensilagem mental simplificada. Pita-gorismo e estoicismo, através de Cícero, encontram em Macróbio — grandemestre da ciência onírica medieval — as correntes neoplatónicas já amas-sadas no cadinho ecléctico de Aríemidoros ("). Um texto de Virgílio (")

(**) Cfr. o número especial «Hisioire biologique et société» dosAnnales E. S. C. n.° 6, Novembro-Dezembro de 1969.

(3l) Cfr. nomeadamente as contribuições de G. Devereux. «Revéspathogènes dans lês sociétés non occidentales», em Lê Revê ei lêssociétés humaines, op. cit., 189-204; D. Eggan, «Lê revê chez lês Indienshopis», iàid., pp. 213-256; A. Irving HalloweÚ, «Lê role dês revés dansIa culture ojibwa», ibid., 257-281. Geza Roheim, autor de «Psychoanalysisof Primitives Cultures, Londres, 1935. Na muito sugestiva recolha jámencionada, Lê Revê et lês Sociétés humaines, G. von Grunebaum definiu,de maneira interessante, as características das civilizações a que chama«medievais» ou «pré-modernas» (pp. 8-9), contribuindo assim parasituá-las em relação às civilizações «primitivas». Os prestígios de umcomparatismo necessário c esclarecedor não devem ofuscar a importânciadas diferenças.

(") Sobre Aríemidoros, C. Blum, Síudies in íhe Dream-Book ofAríemidorus», 1936 e de um ponto de vista psicanalítico, o precioso estudode W. Kurth, «Das Traumbuch dês Artemidoros im Lichte der FreudschenTraumlehre», ern Psyche, 1951, pp. 488-512.

(") Trata-se da famosa passagem (Eneida, VI, 893-898) das duas.. portas que dão entrada ao sonho; a porta de chifre com sombras ver-

dadeiras, a porta de marfim com falsas visões:

Sunf geminae somni poríae: quarum altera ferturcornea. qua vê ris facilis datur existus umbris,altera candenti perfecía nitens elephanto,sed falsa ad caelum mittunt insomnía manes. f*His tibi tum natum Anchises unaque Sibyllamprosequiíur dictis portaque emitlil eburna.

As «portas do sonho» deram nomeadamente o seu nome ao último-livro de G. Roheim, The Gales of Drearns: an archaeological examinationof Aeneid VI, 893-899, The Johns Hopkins Universiíy Studies in Archaeo-logy, n.e 30, 1940, gasta muito engenho e ciência para a vá procura de

285

dá-nos a noção das verdadeiras e das falsas visões ("), capital para ofruste maniqueísmo medieval. Este enfraquecimento da diversidade e dariqueza onírica da Antigüidade aumentou com a desconfiança peranteo sonho legado pela herança bíblica: prudência no Antigo Testamento ("),silêncio no Novo Testamento ("). As práticas oniromantes (*) que vêmdas tradições pagas (celta, germânica, etc.) (") aumentam igualmenteas reticências e. até a fuga perante os sonhos que se tornam habituaisna Alta Idade Média. O sonho, já perturbado em S. Jerónimo, em SantoAgostinho ("), em Gregório, o Grande, e, com matizes, em Isidoro deSevilha, inclinou-se para o lado do diabo... No entanto, permanece uma

uma localização geográfica do universo onírico virgiliano. Ver tambémH. R- Síeiner, Der Traum in der Aeneis, Diss. Berna, 1952. Sobre osentido de insomnia neste texto ver R. J. Getty. «Insomnia in lhe Léxica»,em The American Journal of Phüology, L1V, 1933, pp. 1-28.

C4) A Idade Média distingue mal entre sonho e visão. Para ela, aclivagem essencial passa entre o sonho e a vigília. Tudo o que surge aquem dorme é domínio do sonho. O investigador carece aqui, comosucede freqüentemente, de ura estudo semântico sério. Cfr., no entanto, ointeressante e perspicaz artigo de F. Schalk, «Somnium und verwandteWõrter im Romanischen», publicado em Exempla romanischer Wortgeschi-chte, Francoforte-sobre-o-Meno, 1966, pp. 295-337. Para ser verdadeira-mente útil, a investigação filológica deve ser realizada através de todas aslínguas da cristandade medieval. Sonha-se, para as sociedades medievais,com uma obra comparável ao magistral trabalho de E. Benveniste, Lê Vo~cabulaire dês institutions indo-européennes, 2 vol., Paris, 1969, de restoprecioso também para o medievalista.

(") Tipologia e lista dos sonhos do Antigo Testamento em E. L. Ehr-lich. Der Traum im Alten Testamenf, 1953. N. Vaschidé e H. Piéron. «Lavaleur du revê prophétique dans Ia conception biblique», em Revue dêsíraditions populaires, XVi, 1901, pp. 345-360, pensam que as reticênciasdo Antigo Testamento para com os sonhos vêm sobretudo da hostilidadeentre os profetas judeus e os adivinhos caldeus. Cfr. A. Caquot, «Lêssonges et leur interprétation selon Canan et Israel», em Lês Songes etleur interpretaíion, op. cit., pp. 99-124.

(") Lista (breve) dos sonhos do Novo Testamento em A. Wikenhauer,«pie Traumgesichte dês Neuen Testaments in religionsgeschichtlicherSicht», em Pisciculi. Siudien zur Religion und Kultur dês Altertums,Münster, Festschrift Franz Joseph Dõlger, 1939, pp. 320-333. Os cincosonhos do Evangelho (todos, em Matias, se referem à infância de Cristoe de S. José) e os quatro dos Actos dos Apóstolos (todos referentes aS. Paulo) inscrevem os primeiros num modelo oriental e os segundos nummodelo helénico.

(*) Adivinhação através dos sonhos. — (N. do T.)(") Cfr. por exemplo, E: Ettlinger, «Precognitive Dreams in Celtic

Legend and Folklore», em Transaclions of lhe Folk-Lore Society, LIX,43, 1948. Sobre a adivinhação, o excelente conjunto de estudos, LaDivínation, ed. A. Caquot e M. Lebovici, 2 vol., Paris, 1968, do qual aIdade Média ocidental está ainda, infelizmente, ausente.

(") Sobre os sonhos de Santo Agostinho devo ã gentileza de J. Fon-taine o haver consultado o excelente trabalho de Martine Dulaey, Lê Revêdans Ia vie et Ia pensée de saint Augusiin (dactilografado, Paris, 1967), que

286

• -,

corrente de sonhos «bons», vindos de Deus por intermédio dos anjose, sobretudo, dos santos. O sonho prende-se com a hagJografia, auteotifícaas fases essenciais do caminho de Martinho para a santidade. Recupera— como o testemunha Gregório de Tours — em proveito dos santuáriosdos santos (S. Martinho de Tours, S. Julião de Brioude) as velhas práticasda incubação (")• Porém, no conjunto, o sonho é repelido para o infernodas coisas duvidosas às quais o cristão comum deve cuidadosamenteabster-se de consagrar a fé. Só uma nova elite do sonho está à sua altura:os santos. Que os sonhos lhes venham de Deus (S. Martinho) ou de Satanás(Santo Antônio — e, neste caso, a resistência às visões, o heroísmo onírico,torna-se um dos combates da santidade que não se conquista pelo martírio),os santos substituem as antigas elites do sonho: os ricos (Faraó, Nabuco-donosor) e os chefes ou os heróis (Cipião, Eneias).

O século XII pode ser considerado uma época de reconquista do sonhopela cultura e pela mentalidade medievais. Para resumir e grosso modo,podemos dizer que o diabo recua em proveito de Deus e que, sobretudo,se dilata o campo do sonho «neutro», do somnium, mais estreitamenteligado à físiologia do homem. Esta relação entre o sonho e o corpo, estebalouçar da oniromancia para a medicina e a psicologia, efectuar-se-á noséculo XIII com Alberto, o Grande, e depois com Araaud de ViHeneuve C1*).Ao mesmo tempo que se dessacraliza, o sonho democratiza-se. Simples clé-rigos— incluindo vulgares laicos — são favorecidos com sonhos signifi-cativos. Em Hildegarda de Bingen, o sonho, ao lado do pesadelo, instau-ra-se como fenômeno normal do «homem bem humorado».

O sonho estende a sua função ao domínio cultural e político. Desem-penha um papel na recuperação da cultura antiga: ^onhos da Sibíla,premonitórios do cristianismo, sonhos dos grandes intelectuais precursoresda religião cristã, Sócrates, Platão, Virgílio. É a mola onírica de uma novahistória das civilizações e da salvação. Uma literatura política exploratambém a veia onírica — mesmo que o sonho esteja nela reduzido aoemprego de um proceso literário. O sonho de Henrique I marca umaetapa na via que leva ao Sonho do vergel.

utilizou F, X. Newman, Somnium: Medieval theories of dreaming and íheform of vision poeíry (inédito de Princeton University, 1963) que nãopude ainda consultar.

C") Cfr. P. Sàíntyves, En marge de Ia Legende Dorée, 1930: incubaçãonas igrejas cristãs ocidentais na Idade Média, mais especialmente nos san-tuários da Virgem, Ver também o art. «Incubation» de H. Leclercq noDicfionnaire d'archeólogie chrétienne ei de liturgie, VII-I, 1926, col. 511--517.

(") Alberto, o Grande, «De somno et vigília» (Opera t. V. Lyon,1651, pp. 64-109). Arnaud de ViHeneuve, «Expositiones visionum, quaefiunt in somnis, ad utilitatem medicorum non modicam» (Opera omnia,Basiléia, 1585, pp. 623-640). Lynn Thorndike, op. cit., pp. 300-302, atribuieste tratado a um certo mestre Guillaume d'Aragon, segundo o Ms. Paris.B. N. lat. 7486.

2,57

É que — mesmo aviltado ao estado de acessório — o sonho continuaa desempenhar o seu papel de dispersão, de instrumento próprio paravencer as censuras e as inibições. O sonho de Herman de Valenciennesmanifesta brilhantemente, nos fins do século XII, a sua eficácia numnovo combate da evolução cultural: a substituição do latim pelas línguasvulgares. Somente um sonho autêntico — e, sinal dos tempos, marial(*)—pode legitimar esta audácia traumatizante: contar a Bíblia em linguagemvulgar ("). Em João de Salisbury o sonho toma, enfim, lugar numa autên-tica semiologia do saber (").

MELUSINA MATERNAL E ARROTEADORA

(*) Relativo à Virgem Maria. — (N. da T.)(M) Garde Ia moie mort n'i soít pás oubliee.

De latin em romant" soit íoute transpose.(Roman de Sapience, Ms. Paris, B. N. fr. 20039. vers. 457^58).

(") John of Salisbury, Policraticus, II, 15-16, loc. cit. Aproximar-nos--emos da concepção mais escolástica e estreita, mais próxima, do Ms. Bam-berg Q VI 30, da primeira metade do século XII, citado por M. Grabmann,Geschíchte der scholastischen Methode, 1911; reed. em 1957, II, p. 39 quefaz do sonho um dos três meios que a alma possui de conhecer oculta Dei.

288

,

Nos seus respectivos seminários da VI Secção da Escola Prática dosAltos Estudos, J. Lê Goff e E. Lê Roy Ladurie, independentemente umdo outro, descobriram Melusina. Seguidamente, confrontaram textos eidéias. Daí resultou este estudo comum, sendo J. Lê Goff responsável pelaparte medieval (*) e E. Lê Roy Ladurie pela parte moderna.

«A criação popular não fornece todas as formas mate-maticamente possíveis, Hoje, já não há criações novas.Mas é certo que houve épocas excepcionalmente fecundas,criadoras. Aarne pensa que, na Europa, foi o que sucedeuna Idade Média. Se pensarmos que se perderam, sem re-missão para a Ciência, os séculos em que a vida do con+opopular foi mais intensa, compreenderemos que a actualausência desta ou daquela forma não basta para pôr emcausa a teoria geral. Assím como, na base das leis geraisda astronomia, nós supomos a existência de estrelas quenão vemos, assim também podemos supor a existência decontos que não foram recolhidos.»

(V. Propp, Morphologie du conte, trad. franc.,Gallimard ed., Paris, 1970, pp. 189-190)

No capítulo IX da quarta parte do De nugis curiaíium, escrito entre1181 e 1193 por um clérigo que vivia na corte real da Inglaterra, GautierMap, conta-se a história do casamento de um jovem, «Henno dos DentesGrandes» (Henno cum dentibus), «chamado assim pelo tamanho dos seusdentes», com uma estranha criatura (')- Um dia, pelas doze horas, numafloresta próxima das costas da Normandia, Henno encontra uma jovemde graode beleza e vestida com fatos reais, que chorava. Conta-lhe ela ter"escapado do naufrágio de um navio que a levava para junto do rei de

(*) A única aqui reproduzida. Encontrar-se-á uma bibliografiacomum em Annales E. S. C., 1971.O Walter Map, De nugis curialium, ed. M. R. James, Oxford, 1914.

289

França, com quem devia casar. Henno apaixona-se pela bela desconhecida,casa com ek ela dá-lhe uma bela prole: «pulcherrimam prolem».Mas a n:5.e de Henno nota que a jovem, que finge ser crente, evita oinício e o final das missas, foge de espargir-se com água benta e da comu-nhão. Intrigada, a sogra abre um buraco na parede do quarto da nora esurprende-a a tomar banho, sob a forma de um dragão (draco), e readqui-rir depois a "sua forma humana, após haver cortado, em pedacinhos, comos dentes, um manto novo. Informado pela mãe, Henno, com a ajuda deum padre, esparge a esposa com água benta. Esta, acompanhada por umacriada, foge através do tecto e desaparece nos ares, soltando um grandeurro. De Henno e de sua esposa-dragão subsiste ainda, no tempo de Gau-tier Map, uma numerosa descendência (multa progenies).

A criatura não tem nome, nem é definida a época da história; masHenno dos Dentes Grandes é, talvez, o mesmo que Henno (sem quaisquerqualificativos), que aparece numa outra passagem do De nugis curialium(cap. V da parte IV), situado entre personagens e acontecimentos semi-lendârios que podemos datar de meados do século IX.

Alguns críticos estabeleceram relações entre a história de Henno dosDentes Grandes e a história da Dama do Castelo de Esperver, contada nosO tia Imperiaüa (III parte, cap. LVII), compostos entre 1209 e 1214 por umantigo protegido de Henrique II de Inglaterra, transferido depois para oserviço dos reis da Sicília e, mais tarde ainda, para o do imperador Otão IVde Brunswick, de quem era, na época da redacção dos O tia Imperialia, omarechal do reino de Aries (*). É neste reino, na Diocese de Valence(França", Drôme), que existe o castelo de Esperver. A dama de Esperverchegava também tarde à missa e não podia assistir à consagração dahóstia. Como o marido e os criados a tinham, pela força, retido um diana igreja, no momento das palavras da consagração, ela voou, destruindoparte da capela e desaparecendo para sempre. Uma torre em ruínas, juntoda capela, era, ainda no tempo de Gervais, testemunho deste facto quetambém não tem data (*).

(*) Uma única edição completa (mas muito imperfeita) em G. W. Lei-bniz, Scriptores rerum Brunsvicensium, I, Hanover, 1707, pp. 881-1004.Emendationes et supplemenía, II, Hanover, 1709, pp. 751, 784. F. Lie-brecht editou, com interessantes comentários folclóricos, as passagens«maravilhosas» dos Otia Imperialia com um subtítulo, Ein_Beitrag zurdeutschen Mythologie urtd Sagenforschung, Hanover, 1856. J. R. Cal-dwell preparava uma edição crítica dos O tia Imperialia (cfr. artigos emScriptorium 11 (1957), 16 ,(1962) e Mediaeval Siudies 24 (1962). SobreGerváis de Tilbury: R. Bousquet, «Gervais de Tilbury desconhecido», naRevue historíque 191, 1941, pp. 1-22 e H. G. Richardson, «Gervase ofTilbury», em History, 46, 1961, pp. 102-114.

O Este episódio (Otia Imperialia, III, 57, ed. F. Liebrecht, p. 26)é retomado por João d*Arras e levado para o Oriente. Foi no castelodo Espervier, na Grande Armênia, que uma das irmãs de Melusina,Melior, foi exilada por sua mãe, Presína (ed. L. Stouff, p. 13).

290

Mas se entre esta história e a da mulher de Henno dos Dentes Gran-des há evidente semelhança, se, ainda que não seja designada por dragão,a dama de Esperver é também um espírito diabóiico expulso pelos ritoscristãos (água benta, hóstia sagrada), o texto de Gervais de Tilbury é sin-gularmente pobre, comparado com o de Gautier Map. Raramente se pen-sou, em contrapartida, ein aproximar a história de Henno dos Dentes Gran-des à história, igualmente contada por Gervais de Tiíbury, de Ralmond(ou Roger) do Château-Rousset 0).

Perto de Aíx-en-Provence, o senhor do Château-Rousset, no valede Trets, encontra perto do rio Are uma bela dama, magnifícamentevestida, que o chama pelo nome e que acaba por consentir em casar comele, com a condição de jamais procurar vê-la nua, caso que o faria perdertoda a prosperidade material que ela lhe irá proporcionar. Raymond pro-mete e o casal conhece a felicidade: riqueza, força e saúde, muitos e belosfilhos. Mas o imprudente esposo desvia, um dia, a cortina atrás da qualsua mulher toma banho no quarto. A bela esposa transforma-se em ser-pente e some-se na água do banho para sempre. Só as amas a ouvem denoite, quando ela volta, invisível, para ver os filhos.

Também aqui a mulher-serpente não tem nome e a história não édatada; no entanto, o cavaleiro Raymond, embora tendo perdido grandeparte da sua prosperidade e da sua felicidade, teve, da efêmera esposa,uma filha (Gervais não fala dos outros filhos), muito bela também, quevem à desposar um nobre provençal e cuja descendência vive ainda notempo de Gervais.

Assim como há duas mulheres-serpentes (serpente aquática e serpentealada) nos Otia Imperialia, há duas no De nugis curialium porque, aolado de Henno dos Dentes Grandes, aparece Edric o Selvagem. («.Edric oSelvagem quer dizer que vive nos bosques, chamado assim pela sua agili-dade física e pelos seus dons de palavra e de acção»), senhor de LedbaryNorte, cuja história é narrada no capítulo XII da segunda parte (s). Umatarde, depois da caçada, Edric perde-se na floresta. Em plena noite chegaa uma grande casa (') onde dançam damas nobres, muito esbeltas e. belas.

O Este episódio (Otia Imperialia, l, 15, ed. F. Liebrecht, p. 4)aproxima-se da história de Melusina mas não, em geral, da história deHenno, embora tudo constitua um conjunto. Alguns manuscritos deJoão d'Arras chamam Roger a Raymon dos Otia Imperialia (p. 4). Tratar--se-á de uma contaminação Rocher-Roger ou de outra tradição? Cfr. a tesede Duchesne assinalada infra, p. 295, n. 11. Notemos, eín todo o caso,que Raymon é já falado, quando Melusina não o era ainda,

C) Gautier conta duas vezes a história de Edric. A segunda versão,mais curta, e que não nomeia Edric, segue imediatamente a história deHenno (De nugis curialium. IV, 10, ed. M. R. James, p. 176).

(*) «ad domum in hora nemoris magnam delatus est, quales Anglicíin singulis singulas habebant díocesibus bibitorias, ghildhus Anglice dic-

291

Alma delas inspira-lhe paixão de tal modo ardente que Edric a leva/ imediatamente e com ela passa três dias e três noites de amor. No quarto/ dia, a dama promete-lhe saúde, felicidade e riqueza se ele nunca lhe falar/ nas irmãs, nem no sitio nem no bosque onde se deu o rapto. Edric promete

e casa com ela. Mas, decorridos vários anos, ele irrita-se uma noite por nãoa encontrar, ao regressar a casa. Quando enfim ela volta, ele pergunta-lhe,colérico: «porque é que as tuas irmãs te demoraram tanto tempo?» Eladesaparece e Edric morre de dor. Deixam um filho, de grande inteligên-cia, que cedo é atacado de paralisia e tremores da cabeça e do corpo.Uma peregrinação às relíquias de Santo Ethelbert e Hereford cura-o.O jovem oferece ao santo a sua terra de Ledbury e uma renda anualde trinta libras.

Por volta da mesma época — mais ou menos o ano de 1200 — emque escreveram Gervais de Tílbury e Map, o cisíerciense Hélinand deFroirnont contou a história do casamento de um nobre com uma mulher--serpente, relato que se perdeu, embora um século mais tarde volte a sernarrado pelo dominicano Vícent de Beauvais no seu Speculam naturais(2,127). «Na província de Langres ('), um nobre encontrou, na maisespessa das florestas, uma bela mulher vestida com preciosas roupagens,mulher por quem se apaixonou e que desposou. Ela gostava de tomarfreqüentes banhos e foi um dia vista por uma criada, quando ondulava naágua sob a forma de serpente. Surpreendida no banho e acusada pelomarido, desapareceu para sempre, porém a sua descendência vive ainda» (').

Maís tarde, a literatura erudita acerca de Melusina dá um salto decerca de dois séculos e vem a produzir duas obras: uma em prosa, composta

tas...» (De nugis curialium, 11, 12, ed. M. W. James, p. 75). Parece-meque este curioso texto escapou aos historiadores das_ guildas.

C) L. Stouff comparou este texto com o de João d'Arras (p. 79)onde a cidade de Saíntes se chamava Linges. E. Renardet, Legendes,Contes et Traditions du Pays Lingon, Paris, 1970, p. 260, evoca Melusina,sem lhe dar versão propriamente lingona. Ó mesmo sucede com MarcelleRichard em Mythologie du Pays de Langres, Paris, 1970, onde, a propósitode Melusina (p. 88 e ss.), sem usar elementos locais precisos, ela fazinteressantes reparos quanto às transformações serpente-dragão, os cenáriosctonianos e aquáticos e a ambivalência do dragão-serpente que pode nãoser maléfico mas simbolizar, segundo os termos de P.-M. Duyal, «a fecun-didade reprodutora e a prosperidade terrena». Apresentamos idêntica inter-pretação em: «Cultura eclesiástica e cultura folclórica na Idade Média:S. Marcelo de Paris e o dragão», em Ricerche storiche et economiche inmemória di Corrado Sarbagallo, t. II, pp. 53-90, Nápoles, 1970 e, aqui,pp. 236-279.

Ç) «In Lingonensi província quidarp nobilis in sylvarum abditis,reperít mulierem speciosam preciosis vestibus amictam, quam adàmavitet duxit. Illa plurimum balneis delectabatur in quibus visa est aliquandoa quadam pueUa in serpentis se specie volutare. Incusata viro et deprehensain balneo, nunquam deinceps in comparitura disparuit et adhuc durat ejusprojenies» (Vincent de Beauvais, Speculum naturale, II, 127 citado porL. Hoffrichter, p. 67).

292

pelo escritor João d'Arras para o duque de Berry e sua irmã Maria,duquesa de Bar (1387 a 1394), cujo título nos mais remotos manuscritosé: A Nobre História de Lusignan, ou o Romance de Melusina em Prosaou O Livro de Melusina em Prosa. A outra obra, em verso, concluídapelo livreiro parisiense Couldretíe, entre HO! e 1405, chama-se O Romancede Lusignan ou de Parthenay. ou ainda, Melusina.

Estas duas obras apresentam três características essenciais para onosso íníento. São muito mais longas que as anteriores e a historietatorna-se romance, a mulher-serpente chama-se Melusina (ou, mais exac-íamente Mesluzíne, Messurine, Meslusigne; Mellusine ou Melíusigne emCouldrette), e a família do esposo é a família Lusignan, nobres impor-tantes de Poilou, cujo ramo mais antigo se extinguiu em 1308 (passandoos seus domínios para o poder real e depois para Berry) e da qual umramo mais jovem usou o título imperial de Jerusalém a partir de H 86 e otítulo real de Chipre a partir de H92.

Os relatos de João d'Arras e de Couldrette são muito aproximados eidênticos no que respeita a Melusina. Pouco nos interessa saber se,conforme pensam quase todos os comentadores, Couldrette condensou eversificou o romance em prosa de João d'Arras ou se, conforme opiniãode Léo Hoffrichter, os dois textos procedem mais verosimilmente de ummodelo que se tenha perdido, um relato francês em verso de cerca de1375. Em certos pontos, o poema de Couldrette conservou elementosdesprezados por João d'Arras ou por este incompreendidos, tais comoas maldições agrárias pronunciadas por Melusina no momento em quedesaparece.

Eis, segundo João d'Arras, o que há de essencial para nós no «Ro-mance de Melusina», dês finais do século XIV.

Elínas, rei da Albânia (Escócia), andando a caçar, encontra uma flo-resta Presína, mulher admiravelmente bela, que cantava com voz mara-vilhosa. Eíe faz-lhe uma declaração de amor e propõe-lhe casamento, Elaaceita, com a condição de que, se tivessem filhos, o marido não assistiriaaos partos. O filho de uni primeiro casamento de Elínas incita-o mali-ciosamente a ir ver Presina que acaba de dar á luz três filhas: Melusina,Melior e Palestina. Presina desaparece com as três filhas e com elas seretira para Avalon, a Ilha-Perdida. Ao atingirem quinze anos, as raparigastomam conhecimento da -história da traição do pai e, para o castigarem,fecham-no numa montanha. Presina, que contínua a amar Eíinas, furiosa,castiga as filhas. Melior é fechada no castelo de Epervíer, na ArmêniaPalestina é seqüestrada no monte Canigou; Melusina, a mais velha e <-mais culpada, íransformar-se-á em serpente todos os sábados. Se urhomem a desposar, ela tornar-se-á mortal (e morrerá naturalmente, esc:;pando assim ao eterno castigo), mas voltará ao seu tormenío, se o ma-rido a vir com a forma que toma aos sábados,

Raimondín, filho do conde de Forez e sobrinho do conde de Poííiermata, inadvertidamente, seu tio, durante uma caçada ao javali. Na Foní ;

293

(Fonte de Sede ou Fonte Fada), Raimondin encontra três mulhteres'muito belas, entre as quais Melusina que o consola e lhe promete'-torná-lo um poderoso senhor se casar com ela, o que Raimundin aceita.Melusina faz-lhe jurar que jamais procurará vê-la ao sábado. : ••

A prosperidade cumula o casal. Melusina é o artífice muito activodesta prosperidade, desbravando terras e construindo cidades e castelos,a começar pelo castelo de Lusignan. Tiveram também muitos filhos,dez crianças, várias das quais foram reis por casamento, como Urian,rei de Chipre, Guion, rei da Armênia, Renaud, rei da Boêmia. Mas todostinham um defeito físico no rosto e o sexto, Geoffroy, um grande dente.

João d*Arras espraia-se-íobre as proezas destes filhos, nomeadamentesobre os seus combates contra os Sarracenos. No entanto, numa altura;em que esteve na Rocbelle, Raimondin recebe a visita do irmão, conde'!de Forez, que lhe conta o que se diz acerca de Melusina. Aos sábados,*!ela retira-se, seja porque passa o dia com o amante, seja por ser fada e!cumprir, nesse dia, a sua penitência. Raimondin, «tomado pela ira e pelo sciúme», faz um buraco na porta da cave onde Melxisina toma banho e'vê-a sob a forma de sereia. Porém, não o diz a ninguém e Melusinajca!a-se, como se nada se tivesse passado. <.''\

As proezas dos filhos nem sempre são louváveis. Geoffroy queima omosteiro (e os monges) de Maillezais. Raimondin zanga-se com ele, masMelusina tenta chamá-lo à razão. Porém, levado pela cólera, o maridodiz-lhe: «Ah! mui falsa serpente, por Deus, tu e os teus altos feitos nSopassam de um fantasma e nenhum dos herdeiros que tiveste se salvará;»Melusinf sai pela janela, sob forma de serpente alada. Volta a Lusignandurante a noite para se ocupar dos filhos mais novos, Remonnet e Thierry;assinalando a sua presença com um lúgubre lamento (mas só as amttfa vêem), lamento que é «o grito da fada». Raimondin, desesperadoSretira-se como eremita para Montserrat. Geoffroy vai a Roma confessar-flBjao papa e reconstroi Maillezais(s). ..-i'*

Se juntámos ao dossier o texto sobre Edric o Selvagem (de GauthierMap) e o da dama d*Esperver (de Gervais de Tilbury), é porque ambosapresentam evidentes ligações com as histórias de Henno dos Denfq,Grandes e dê Raymond do Château-Rousset. Porém a mulher-fada qiKnelas aparece é diferente de Melusina, porque esta não é apresentada comiserpente (1B). O nosso dossier principal reduz-se, pois, aos três textos àai

- • A

C) Uma aproximação até agora não assinalada, segundo creio, coü- ,;•firma os laços entre todas estas histórias, O filho de Édric, Arnold, quando^'quer recuperar a saúde, é convidado a fazer uma peregrinação a Ronttpara rogar a cura aos apóstolos Pedro e Paulo. Indignado, ele responde qw -irá primeiramente a Hereford implorar a Santo Edelberto, rei e mártir, de -"quem é «paroquiano» (De Nugis curialium, ed. M. W. James, p. 77). -vy ^""l

C") Gautier Map, Gervais de Tilbury e João d'Arras evocam, ao lado /^Jde Melusina, e na mesma «categoria», outras fadas (demônios súcubOS):; :;|não serpentes. O cristianismo aqui revolucionou a tipologia. Assinalando^), 3

anos próximos de 1200: Gautier Map, Gervais de Tilbury, Hélinand deFroimont (através de Vícent de Beauvais) e aos dois romances situadosmais ou menos no ano de 1400 — o romance em prosa de João d*Arras e oromance em verso de Couldrette.

Que leitura — ou que tentativa de leitura — o leitor pode aí fazer?

Hipóteses e problemas de interpretação

Quais são as «fontes» dos nossos textos? Couldrette invoca dois livrosem latim encontrados «na torre de Mabregon» e traduzidos depois parafrancês e um outro trabalho que lhe teria sido fornecido pelo «conde deSalz e de Berry» (o conde de Salisbury igualmente citado por João d'Arrascomo informador). Quer se trate de realidade ou de astúcia de amor,quer a verdaaeira fonte de Couldrette tenha sido o romance de Joãod"Arras ou um texto anterior, acontece que o livreiro Couldrette tomouconhecimento de Melusina pelas, leituras que fez através da literaturaerudita.

João d'Arras menciona também fontes livrescas, «as verdadeiras crô-nicas», que tanto o duque de Berry como o conde de Salisbury lhefacilitaram, e «diversos livros que foram encontrados». Ele cita, nomeada-mente, Gervais de Tilbury (Gervaise) ("). Mas acrescenta que enriqueceuas verdadeiras crônicas com o que «ouviu dizer e contar aos nossos avós»e com o que «ele ouviu dizer que viram na região de Poitou e noutrossítios». Tradições portanto orais, vindas por intermédio de gente velha: ovalor de João d'Arras para a nossa pesquisa reside nisso. Apesar do talentoliterário do autor, a atenção à cultura oral que o impede de deturpardemasiado essas tradições leva-o a recolher e a reter elementos incom-preendidos ou desprezados pelos clérigos dos finais do século XII ereencontrar aí o sentido, anteriormente obliterado, do maravilhoso (").

limitar-nos-emos ao dossier «estreito». Cfr. a fada de Argouges assinaladapor E. Lê Roy J^adurie na sua nota bibliográfica. De resto, ter-se-ãonotado ecos e transferências episódicas. Henno dos Dentes Grandes atéGeoffroy do Dente Grande, o castelo de 1'EspervÍer no Delfínado e o deEpérvier na Armênia, etc.

(") João d'Arras deve ter sabido dos Oíia Imperialia pela traduçãoque dela fez, no século XIV, João du Vignay, de resto tradutor do Spe-culum naturais de Vincent de Beauvais. E a biblioteca de Jean de Berryque põe estas «fontes» à disposição de João d'Arras. A. Duchesne dedicouuma tese da Escola das Cartas (1971) às traduções francesas medievaisdos Otia Imperialia.

C3) O estudo da cultura popular ou de fenômenos ou obras impregna-das de cultura. popular põe o historiador em contado com um «tempohistórico» que o desconcerta. Ritmos lentos, explosões, perdas e ressur-gências harmonizam-se mal com o tempo unilinear no qual está habituadoa discernir aqui e além «acelerações» ou «demoras». Razão de sobra paranos felicitarmos pelo alargamento do campo histórico até ao folclore, oque põe em evidência este tempo insuficiente.

295294

-- :-,;

A boa «caça» para o folclorista é a Melusina de João d*Arras queLouis Stouff há quarenta anos só conseguiu decifrar, desajeitadamente,embora com utilidade, segundo os métodos da história literária tradicional.

Interessado pelo folclore, João d*Arras é-o ainda, de. outra forma eindirectamente, ao utilizar a matéria tradicional já recolhida e integradaem parte na cultura erudita pelos clérigos em 1200.

De Hélinand de Froimont não poderemos dizer muito através dobreve resumo de Vincent de Beauvais. Mas sabemos que o cisterciensese interessava pelo maravilhoso, mais ou menos folclórico. Ele faz partedo pequeno número de clérigos que, ainda por volta do mesmo ano de1200, se comprazia nos mirabilia respeitantes a Nápoles e a Virgílio,o mágico O- Mesmo que, conforme alguém sugeriu ("), ele não façaalusão à província de Langres, mas à região dos Linges, que seria Sain-tonge, logo, grosso modo, a região de Lusignan, assinala a presençade Melusina (Melusina apenas, sem mais nada) por volta desse anode 1200, no Oeste, na Normandía ou na Provença.

Gautier Map vasculhou largamente nas bibliotecas a que teve acesso.Mas, ao lado dos Padres da Igreja e dos clássicos latinos, são imensos osrelatos tirados da tradição oral. O editor de De Wugis curíalium fala de«the unidentifíed romances and sagas from which many of his longer sto-ries are supposed to be derived» ("). Por vezes, Map invoca as fabuíae deque retira a sua informação. Se não indica fontes para a história de Hennodos Dentes Grandes ou para a de Edríc, o selvagem, pelo menos refere-seaos Gauleses, «Wallenses», aqueles a quem de resto chama «compatriotenostri Wallenses». Importância pois da tradição oral, senão popular C")-

As coisas são mais precisas em Gervaís de Tilbury, porque o Inglês,além de sólida bagagem livresci, recolheu, em *oda a sua carreira, desdea Inglaterra até Bolonha, e de Nápoles até Aries, uma ampla colheitade tradições orais. No início do capítulo onde refere a história de Raymonddo Château-Rousset aponta a fonte: «o povo conta» C17).

A Melusina medieval que, como veremos, tem pais (e até avós) nassociedades antigas, sendo embora uma criatura, uma criação da IdadeMédia, tem contudo muitas possibilidades, embora possa ter sido conta-minada pelas leituras dos escritores que lhe deram forma, de dever ser

(JI) Sobre os mirabilis napolitanos e virgílianos, D, Comparetti,Vigilio nel Médio Evo, 2.f ed. 1896, trad. inglesa reed, em 1966. J. W. Spar-go, Virgil lhe Necromancer. Cambridge (Mass), 1934.

(") Cf r. acima, p. 311, nota 7.(") M. R. James, Prefácio à edição do De Nugis curíalium deWalter (Gautier).(") Map. p. XXII.Recordemos que a existência de uma cultura erudita não escrita'

(bardos ligados aos meios «aristocráticos»?) complica o problema dasculturas célticas, germânicas, etc. A distinção entre tradição oral e tra-dição popular representa uma prudência elementar.

C ) Oíia Imperialia, ed. F, Liebrecht, p. 4.

296

•j*3

procurada pelo lado do folclore. Melusina—e, mais especialmente, aMelusina dos nossos textos — encontra-se, com efeito, nitidamente nasobras que se referem ao folclore e, mais particularmente, ao conto popu-lar (").

No seu Manuel ide folklore français contemporain ("), A. vanGeuiep ciía dezasseíe vezes Melusina na Bibliografia; mas sempre quecita João d'Arras, detém-se explicitamente no limiar da Idade Média.

Stith Thompson, no seu Motif-lndex of Folklore, permite-nos en-contrar Melusina sob diversas rubricas. Primeiramente, sob b ângulo detabu (C. 30, Tabu: «offending supernatural relative» e, mais em especial,C. 31. 1.2, Tabu: «lookíng at supernaíural wife on certain occasion»).Depois, a propósito dos animais e, em particular, dos homens (ou mu-lheres)-serpentes (B. 29.1, Latnla: «Face of Woman, body of serpent»,com referência a F. 562.1.: Serpent damsel, B. 29.2, Echidna: «Halfwoman, half serpent», e B. 29.2.1.: «Serpení wíth human head»), doshomens (ou mulheres)-peixes (B. 812: «Mermaid marries rnan»). Depois,no capítulo das criaturas maravilhosas (Marvels, F. 302.2: «Man marriesfairy and takes her to his home»). Enfim, entre as feiticeiras (G. Ogrcs(Witches), G. 245. «Witch iransforms self inío snake when she bathes»).Se introduzirmos as realidades medievais nestas categorias, encontramo-nosperante os seguintes problemas:

í. Qual a importância da transgressão do tabu? Ela permaneceessencial, porque continua a ser o nó da história e, na-atmosfera cristãdo conto medieval, surge uma nova interrogação: a infidelidade do maridoà sua promessa não é menos culposa pelo caracter «diabólico» da mulher?A «cultura» da época desloca o problema.

2. Ainda que, nas religiões «pagas», a divindade possa perfeitamenteencarnar-se em animais e seja gloriosa a união de um mortal comum animal sobrenatural, o cristianismo, que fez do homem a imagemencarnada exclusiva de Deus, não torna degradante a união de umhomem com um semianímal? A pergunta é feita por Gervaís de Tilburya propósito de Nabucodonosòr e dos lobisomens (Otia Imperialia, III, 120).

3. Como se faz, a propósito das mulheres «maravilhosas», a distinçãoentre magia branca e ma£ia negra, fadas e feiticeiras? O cristianismo

(") Recordemos que iima importante revista francesa de folclore,fundada por Henri Gaidoi e Eugène Rolland, revisía em II volumespublicados irregularmente de" 1877 a 1912, se chamava Mélusine (Re-colha de mitologia, literatura popular, tradições e costumes).

(") A, van Gennep, Manuel de folklore français contemporain, t. IV,1938, pp. 651-652. Van Gcnnep faz preceder os títulos com a seguinte nota:«As origens deste tema folclórico bem característico não são conhecidas;João d"Arras esgotou certamente a realidade popular; apesar da sualiterarízação, o tema permaneceu popular em certas regiões, como sepode ver na monografia de Léo Desaivre, a que junto complementosfolclóricos classificados poçordem cronológica, sem levar em conta tra-balhos dos medievalistas, que saem do âmbito deste Manual.*

•r-

297

oferece a Melusina uma possibilidade de salvação ou condena-a inevitavel-mente às penas do Inferno?

Na sua classificação dos Types of the Folktale C*), Anttí Arne e StithThompson não dão destino a Melusina, mas permitem encontrá-la entreos tipos T 400-459 = «Supernatural or enchanted Husband (Wife) orothers relatives», particularmente entre os números 400-424 (wife) emaís ainda sob o número T 411: The King and the Lamia (the snake--wife) que põe o problema do vocabulário e do conjunto de referências dosautores do trabalho: enquanto que Lamia remete claramente para a Bíblia,para os escritores greco-latinos da Antigüidade, para S. Jerónimo, paraSanto Agostinho e para os nossos autores medievais (Gervais de Tilbury,especialmente Otia Imperialia, III, LXXXV), a- referência dada para oconto é indiana!

O lugar dado a Melusina é ainda mais débil no catálogo de PaulDelarue e Marie-Louise Tenèze. T. 411 não é ilustrado com exemplos;em contrapartida, T. 449 oferece o caso do «homem que casou com umamulher-vampiro» e o T. 425 pormenoriza largamente o tipo da «procura doesposo desaparecido», que inclui a história de Melusina, com intervençãodos sexos (31, A rapariga que casa com uma serpente-macho).

É pois legítimo evocar, a propósito das versões medievais de Melusina,alguns problemas fundamentais do estudo do folclore, mais particular-mente dos contos populares e, mais especialmente ainda, dos contos mara-

vilhosos (")•

E, antes do mais, trata-se em verdade de um conto? Não estaremosantes na presença de uma lenda, no sentido da palavra alemã Sage?Porque a palavra francesa «legende» reúne duas palavras alemãs Sagee Legende, sendo esta última reservada, na tipologia literária alemã,

(*) A. Aarne e S. Thompson, The Types of the Folktale. A Classi-fication and Bibliography, 2* revisão, Helsínquia, 1964 (EFC n.s 184).Perante este monumento ficamos divididos entre a admiração e o reconhe-cimento, por um lado, e as dúvidas perante os princípios de classificação,por outro. Marie-Louise Tenèze exprimiu, com a sua autoridade ea sua delicadeza, as reservas que tinha quanto a esse outro monumentoque é o Motif-lndex of Folk-Literature de Stith Thompson, 6 vol., Cope-nhaga, 1955-1958 (M.-L. Tenèze, «Introduction à 1'étude de Ia litérature.orale: lê conte», em Annales, E. S, C, 1969, p. 1116, e «Du conte mer-veilleux comme genre» em Approches de nos iraditions orates, G. P. Maí-sonneuve et Larose, ed. Paris, 1970, p. 40). Cremos que estas reservaspodem ser extensivas a The Types of the Foíkfale.

(") Observemos, mais atentamente, o notável estudo de M.-L. Tenèze,citado na nota anterior.

298

à lenda religiosa, no sentido do latim medieval legenda, equivalente deVira (alicujus sancti) (**). A diferença entre conto e lenda foi bem vincadapelos irmãos Grimm, como se sabe, autores de uma colectânea célebre,Mõrchen, e de uma não menos importante recolha de Deutsche Sagen:o conto é mais poético, a lenda mais histórica. As histórias medievaisde Melusina não correspondem exactamente à sua definição: «X lenda,cujas cores são menos cambiantes, terá também a particularidade de seagarrar a qualquer coisa de conhecido e de consciente, a um lugar oua um nome autenticado pela história»? (IJ)

Mas, embora os irmãos Grimm considerassem o conto e a lendacomo dois gêneros paralelos, não deveremos ver, muitas vezes na lenda,uma metamorfose (possível mas não necessária) do conto? Quando umconto pertence ao domínio das camadas sociais superiores e da culturaerudita, sempre que passa para novos quadros espaciais e temporais, ondea inserção espacial é mais nítida (como tal província, tal cidade, tal cas-telo, tal floresta) e o enquadramento temporal mais rápido, quando éengolido pela história mais apressada das sociedades e das classes sociais«quentes», torna-se lenda.

Ê o que parece ter sucedido à nossa história. Nos fins do século XII,o conto do homem casado com uma mulher-serpente corre em várias re-giões: na Normandia, na Provença, nas regiões de Langres ou na Saintonge.Em condições sobre as quais avançaremos algumas hipóteses, alguns ho-mens, tais como fíenno dos Dentes Grandes, Raimondin do Château--Rousset, o nobre de que fala Hélinand de Froimont, ou melhor, dos seusdescendentes, procuram apropriar-se do conto, para com ele fazerem asua lenda. Foram os Lusignan quem o conseguiu. Quando, como, por-quê? É difícil sabê-!o. Os amadores, em grande número e por vezes subtis,do joguinho decepcionante da alfinetada historicista dos mitos procuraramsaber qual Lusignan foi o Raimondin de João d*Arras e que condessa deLusignan foi Melusina. A única aproximação verosímíl de uma personagemhistórica metida no caso é a de Geoffroy do Grande Dente, o sextofilho de Melusina. Pelo menos, parece que, no século XIV, se identificavacom Geoffroy de Lusignan, visconde de Châtellerault que, sem queimara abadia e muito menos os monges, devastou, em 1232, os domínios daabadia de Maillezais (de tal maneira que, no ano seguinte, teve de fazer-seperdoar pelo papa, em Roma), cuja divisa teria sido «non est Deus»(não há Deus) e que morreu sem filhos, antes de 1250. Este Geoffroy,que lembra Henno dos Dentes Grandes, marido (e não filho) da mulher-

C*) Da abundante literatura sobre p problema dos gêneros da litera-tura «popular», conten temo-nos em citar: H. Bausinger, Formen der«Volkpoesie», Berlim, 1968 e especialmente III: l. Erzàhlformen,2. MÕrchen, 3. Sage, 4. Legende, p. 154 e ss. Os autores alemães dizemMelusinensage.

(**) J. e W. Grimm, Die deutschen Sagen, Prefácio do vol. I, ed. deDarmstadt, 1956, p. 7, citado por H, Bausinger, op. cit., p. 170.

299

-serpente de Gautier Map e que, ignorado por Gervais de TUbury, érecuperado por João d'Arras, parecia contudo o herói de uma históriadiferente da história de Melusina. A todos os títulos fazer da mãe doGeoffroy histórico a Melusina da lenda é um absurdo. Também nãoparece que tenha sido possível determinar em que momento Melusinaentrou nas armas dos Lusignan (M). A ligação com Lusignan de Chipre,sustentada por Heisig, tendo em segundo plano a velha serpente marinhadas influências orientais e dos contos indianos, resiste mal ao exame.A história de fíenno dos Dentes Grandes, localizada na Normandia, éanterior à história de Raymond do Châíeau-Rousset. em relação aoqual não podemos provar qualquer laço com os Lusignan de Chipre.As datas dificilmente permitem esta via de eventual difusão e o textode Gervais de TUbury evoca a Provença rural e florestal, culturalmentebem distante de Marselha (").

Vcrosímil, sim, é o nome de Melusina ligado ao êxito dos Lusignan.Porém, é difícil descobrir se o nome de Melusina conduziu aos Lusignanou se foram os Lusignan que, tendo-se apoderado da fada, lhe deramo seu nome, para melhor se lhe ligarem. De qualquer forma, parece-nosdecepcionante a perseguição da etimologia. Esta não nos explicará o essen-cial: porquê, a partir do século XII, o interesse de certas personagense determinados meios (cavaleiros, clérigos, «povo») pelas Melusinas»? (w)

Tentemos definir aqui os limites do «difusionismo». De onde partiua lenda de Melusina? A partir do momento em que temos textos, verifi-camos a existência, em várias regiões, de formas próximas de uma lendasemelhante, sem que fosse descoberta uma pátria comum. Em seguida,a casa de Lusignan, depois as casas de Berry e de Bar (segundo Joãod'Arras, é Maria, duquesa de Bar e irmã de João de Berry, quem pedea este que mande escrever a lenda de Melusina), estão na origem de ummovimento de difusão da lenda, em geral ligada aos membros da famíliados Lusignan: em Agenais, cm Chipre, em Sassenage, no Delfinado,no Luxemburgo. Podemos seguir o veio de difusão de forma maisparticular. De início, o Romance de Melusina da autoria de Joãod*Arras, que se encontra, desde o princípio do século XV, na Biblio-teca dos duques de Borgonha, foi depressa seguido pelo romance em versode Couldrette. Daí penetra, por um lado, na Flandres e, por outro, nos

(") Cfr. L. Hoffrichter, p. 68.(") K. Heisig, «Über den Ursprung der Melusinensage», em Fábula,

3, 1959, pp. 170-181 (p. 178: Aix liegt eíwa a 30 km nordlich von Marseille;man wird dáher kaum fehlgeben, wenn man annimmi, dass Kaufleutcaus Marseille die ãltesíe Fassung dês Mãrchens aus Zypern in ihre Heimaímitgebracht haben werden\).

(") A etimologia de Melusine é abordada em quase todos os estudos.Mais particularmente Henri Godin, «Melusine et Ia philologie», em Revuedu Bas Poitou, e P. Martin-Civat, Lê três simples secret de Melusine.Poitiers, 1969.

300

países germânicos. Um manuscrito de Bruges data de cerca de1491. Noutra direcção, o margrave Rudolfo de Hochberg, homem deconfiança de Filipe, o Uorn, e de Carios, o Temerário, introdu-lo na Suíça,Thuring de Renggeltingen, de Berna, traduz a Melusina de Couldretteem 1456, sendo esta tradução impressa por volta de 1477 (em Estras-burgo?) e em 1491 em Heidelberga. Aparece em Augsburgo, em 1474 ("),uma outra -tradução. Uma versão alemã é traduzida para polaco, em1569, por M. Siennik. O êxito desta tradução encontra-se nas muitasMelusinas da arte erudita e popular, assim como do folclore polaco eucraniaoo do século XVH (**).

Se olharmos agora, não para a descendência das Melusinas medievais,mas para as suas prefigurações e suas homólogas noutras culturas, abre-seperante nós o vasto campo do mito. A pesquisa comparativa, inauguradapor Felix Liebrecht ("), o editor da autobiografia folclórica dos O tia Im-perialia de Gervais de Tilbury, produziu, em finais do sécuto passado, trêsestudos de qualidade; Der Ursprung der Melusinensage. Eine elhnologische(Jntersuchung, de J. Kohler (1895), da mais sugestiva e da mais «mo-derna» problemática; a dissertação de Marte Nowack, Die Melusinensage.Ihr mythischer Hintergrund, ihre Verwandschaft mil anderen Sagenkreisenund ihre Stellung in der deutschen Literatur. orientada para o estudo dasobras literárias alemãs (1886); finalmente, o artigo de João Karlowicz,A Bela Melusina e a Rainha Vanda, sobretudo voltada para as Melusinaseslavas (1877).

A lenda de Melusina aproxima-se aí muito: 1. no que respeita à anti-güidade européia, dos mitos gregos de Eros e Psique, de Zeus e de Semeie,da'lenda romana de Numa e de Egéria; 2. do lado da índia antiga, dediversos mitos dos quais o de Urvaçi seria a mais velha versão ariana;3. de toda uma série de mitos e de lendas nas diversas culturas, desde osCeltas até aos Ameríndios.

Kohler definiu a característica de todos esses mitos da seguinte ma-neira: «um ser de outra natureza uniu-se a um homem e, após ter levadotecimento». A variável é a natureza do acontecimento que provoca odesaparecimento. Esse acontecimento consiste quase sempre na revelaçãoda natureza do ser mágico. O principal tipo desta categoria, segundoKohler, seria o «tipo Melusina», no qual o ser mágico se some, logo queo cônjuge terrestre o viu na sua forma original.

Esta análise, que tinha o grande mérito de orientar a mitologia navia da análise estrutura!, não aprecia devidamente, no entanto, a ver-dadeira estrutura da lenda (ou do mito). A tecedura do conto (ou da

(") Cfr. L, Hoffrichter e L. Desaivre, p. 257 e ss.(M) Slownik Folkloru Polskiego, ed. J. Krzyzanowski, s. v. Meluzyna,pp. 226-227.(*") Zeitschrift für vergleichende Sprachforschung (Kuhn ed.),vol. XVIII, 1869.

301

lenda), como também os seus motivos, não é um tema principal; masè-o a sua estrutura, aquilo a que von Sydow chama a composição,Max Luthí a forma (Gestalt) e Vladimir Propp a morfologia (w).

Sem dúvida, poderíamos fazer das versões diferentes da lenda deMelusina uma análise estrutural, segundo os esquemas de Propp, se tivés-semos competência e vontade para isso. Por exemplo ("):

I. Um aos membros da família afasta-se de casa (Propp): o herói

vai à caça.u. É imposta ao herói uma proibição (Propp): Melusina só aceita

casar com o herói, se este respeitar um tabu (parto ou gravidez, nudez,

sábado).III. A proibição é transgredida. «... Surge então no conto uma nova

personagem, a que podemos chamar o antagonista. O seu papel é pertur-bar a paz da família feliz, provocar qualquer desgraça...» (Propp). A so-gra em Gautier Map, o cunhado em João d*Arras.

IV. O antagonista tenta obter informações (Propp). Em GautierMap é a sogra, mas, em geral, o curioso é o próprio Raymond, Etc.

Segundo parece, poderíamos encontrar também inversões, fenômenoque desempenha um papel principal no mecanismo da transformação doscontos, desde Propp até Qaude Lévi-Strauss, virtuoso também neste domí-nio. Já J, Kohler falava de «Umkehrung» a propósito de Melusina,E. Lê Roy Ladurie define-o depois, em certas versões alemãs de Melusina.Na segunda versão do mito de Urvaçi, a mulher mágica (aspara) desa-

parece quando vê um homem mortal.Mesmo que tivéssemos sido capazes de levar mais longe a análise

estrutural, teríamos sem dúvida tirado conclusões modestas e cheias debom-senso, mas susceptíveis, precisamente, de mostrar a importância que,para o historiador, têm os métodos de leitura estruturalista da sua do-cumentação e os limites desses métodos.

A primeira conclusão que podemos tirar é não ser o conto susceptívelde transformação, seja qual ela for e que, na luta da estrutura e da con-juntura, a resistência estrutural mantém, por muito tempo, anuladosos assaltos da conjuntura. Mas chega o momento em que o sistema sedesfaz, como se ele tivesse sido construído muito tempo antes. Nesteaspecto, Melusina é medieval e moderna. Mas, tal como percebemos, nomomento em que ela aparece cerca de 1200, que ela é a emergênciaescrita e erudita de um fenômeno popular e oral, cujas origens sãodifíceis de determinar, sabemos também que esta Melusina que, com o

(**) Cfr. M.-L. Tenèze, «Du conte merveillheux comme genre»,toe. cit., pp. 12-13, 16-17.(") V. Propp, Morphoíogie du conte, trad. franc., Paris, Gallimard,ed. 1970, pp. 46 e ss., Lê Seuil ed., 1970, pp. 36 ss.

302

l

romantismo, se liberta da estrutura plurissecular, permanece presente numfolclore que, por isso mesmo, não chega a morrer (").

Sucede que, durante a sua long^ duração estrutural, as transfor-mações, não já da estrutura mas do conteúdo, que o conto sofre apre-sentam, para o historiador, uma importância primordial. E tais transfor-mações não são o simples desenrolar de um mecanismo interno. São, sim,as respostas do conto às solicitações da história. Antes de estudarmos oconteúdo de Melusina e tentarmos captar-lhe o significado histórico, fare-mos alguns reparos ainda quanto à forma. Serão alicerces para as hipótesesadiante apresentadas.

O conto, e em especial o conto maravilhoso a que incontestavelmentese liga Melusina, gira à volta de um herói (3Í). Quem é o herói deMelusina? Certamente o marido da fada. Mas então a mulher deveria,na lógica do conto, ser má, lógica reforçada pela ideologia da época,que faz dela um diabo (simbolismo cristão do dragão e da serpente),se bem que Melusina seja tratada de «pestilentia» por Gautier Map e de«mui falsa serpente» por João d'Arras (através de Raimondin em cólera),é uma personagem, se não simpática, pelo menos comovente. Surge nofim do conto como vítima da traição do marido. Torna-se pois uma pre-tendente ao lugar de herói. Assim como Marc Soriano revelou, emLa Fontaíne, um lobo-vítima e digno de dó, ao lado de um lobo-agressore detestado, Melusina é a serpente-vítima e enternecedora. A notaçãofinal que a leva, na sua inviabilidade nocturna e gemebunda, até juntodos filhos pequenos, enriquece, no registo psicológico, a apresentaçãocomovedora desta pseudo-heroínà. Porquê este enternecimento para comuma mulher demoníaca?

Uma das características do conto maravilhoso é o happy-end. Melu-sina acaba mal. Trata-se, sem dúvida, mais de uma lenda, pois o contomaravilhoso tem um princípio de evolução para o poema heróico, cujotom é, muitas vezes, trágico. Porquê este deslizar para um gênero queque implica o fracasso e a morte do herói?

Enfim, na «pskologização» do conto (estado de espírito de Raimon-din, que representa um papel essencial em diversas fases do relato; paixãocuriosidade ou cólera, tristeza ou desespero; evolução, que acaba deser sublinhada, do caracter de Melusina), ao mesmo tempo que na ten-dência para a racionalização coerente do relato, devemos reconhecer,sem dúvida, a evolução clássica (mas não obrigatória) do mito no conto

C1) Acerca de tudo isto, além da obra de Qaude Lévi-Strauss (enomeadamente a série dos Mythologiques) e do trabalho colectivo dirigidopor E. F. Leach citado na bibliografia, ver Communications, númeroespecial: «L*Analyse structurale du récit», n. 8, 1966 e M.-L. Tenèze,«Du conte merveilleux...», loc. cit., nomeadamente «...para a estrutura"lógica" do gênero* (pp. 20 ss.).

(") Acerca do herói, cfr. em especial M.-L. Tenèze, loc. cit.,p. 15, n, 7.

303

-•£•

ou'na epopéia, depois no romance no sentido vulgar do termo (gênero"1'*literário) ou no sentido dumeziliano (forma e fase da evolução) ("). i;^H

u Se abordarmos agora os problemas de interpretação, devemos, antesde tudo, notar que os autores medievais deram uma explicação multo (jclara do que Melusina era para eles. Ela representava para todos umá-'*demônio súcubo (*), uma fada assimilada aos anjos perdidos pelo pecado/1-É semipessoa, semianimal e das suas cópulas com um mortal nascem''filhos excepcionais, dotados de dons físicos (beleza para as raparigasj°íforça para os homens), porém tarados ou infelizes ("). Alguns explicam ;ltambém a razão destes casamentos. A serpente, condenada por qualquer^pecado a sofrer eternamente no corpo duma serpente, procura a união com •?um homem, o único ser capaz de a arrancar à sua eternidade infeliz^*?de permitir-lhe morrer de morte natural e usufruir depois de uma outravida venturosa. - üíft

Esta explicação cristã nada tem de surpreendente, se pensarmos no,,enquadramento cristão de toda a vida cultural da Idade Média e no facto_de, em finais do século XII, o cristianismo se comprometer na via das.'explicações racionais, mesmo quando estas se aplicam a dados de base,perfeitamente irracionais. Notemos de passagem que, se a lenda se enqua-j

'••

(**) Sobre esta evolução, Jan de Vries, Beirachíungen zum Marchembesonders in seinem Verhititnis zu Heldensage und Mythos (FFC n.» 154)Hetsinquia, 1954. Cfr. «Lês contes pppulaires», em Diogène, n.* 22, 1958,pp. 3-19. Toda a obra de G. Dumézil seria quase de citar a este respeito.-íLembremos o último trabalho, Du mythe au roman (La saga de Hadingiaiet auíres essais), Paris, 1970.(•) Demônio que se transforma em mulher para seduzir um homem. — (N. da T.) tj

(**) Audivimús demones incubos e succubos, et concubitus eorunr\periculosos; heredes autem eorum aut sobolem felici fine beatam iriantiquis historiis aut raro aut nunquam legimus, ut Atnoldi qui lotam)hereditatem suam Christo pró sanitate sua retribuit, et in eius obsequiàSresiduum viie peregrinas expendit (Gautier Map, conclusão da história de iEdric o Selvagem, De Nugis curialium, 11, 12, ed. M. W. James, p. 771)/3A mesma explicação de Gervais de Tílbufy (Qtia Imperialia, I, 15, anterior*]à história de Raymond du Château-Roussef) que compara o caso dasmulheres-serpentes ao dos lobisomens. O mesmo faz João d'Arras, que sejrefere a Gervais de Tilbury. A originalidade de João d*Arras é identificar,com insistência, esses demônios súcubos com as fadas (importância dasfontes populares, no seu espírito e na sua obra) e, por outro lado, notaios três tabus: «elas faziam jurar, umas que eles nunca as veriam nuas, asoutras que aos sábados não indagariam em que elas se teriam tornado,,umas e outras, se tivessem filhos, que os maridos não as veriam naaltura do parto» (ed. L. Stouff, -p. 4). Ao que acrescenta, explicitandp^bem o mecanismo de prosperidade ligada ao pacto: « E enquanto eles,cumprissem o pacto, eram senhores de grandes riquezas. E mal o quebrassem, perdê-las-iam e ficariam privados pouco a pouco de toda a suifelicidade». Já Geoffrey de Monmouth, na Historia Regum Briíannicexpusera os amores dos humanos e dos demônios (incubos e súcubos),propósito do nascimento de Merlin (aqui o casal inverte-se: mortal + dmónio incubo).

dia também numa explicação cristã (antes oucnstaos na própria lenda. Se, na história*. e na lenda da dama de Espe™, é

cnstao (não assistência à missae se são os exorcismos criaãosdesmascara», na aventura denenhum elemento crístío. Se o roman

por um lado, num clima cristão por outrodesempenha um pape, i oquando a cólera faW de Rainxmdin sedum mosteiro -Mafflezais. Melusinaüanismo. Se os usos e os

*«*.

"R

f 'Arras

, E'C

tem PrOPÓS"° d° °tenipOS a»«"iores ao cm-

não pode suceder connosco.:

Que está, pois, em jogo na história? Quer avenham de Melusina (desejem de^ ao seude Ravmond (inflamado de pactto), .'mond, a prosperidade. Traída Melusina.menos, o joão-ninguém ,uedância.

Assim se revela a natureza i- Meln<in,lenda. Ela tnu a prosperidade, "(e de certeza jamais o saberene autóctone, a um esptólo umamdiana (ou mais possiveUneTseja de origem ctoniana, aouátíca eneamente, serpente, sereia ou dragão eque a Fonle de João d'Arrasc,ado, enquanto que emo rio -e em ambos umt.ca da fada). Mas, em todos esw casvá. de uma deusa-mãe, como^^ í

'na, o mesmo

1 °S "Vanços

T ^*• P»™ Ray-

cornucópia da abun-

"" ""e ""««ameole

"'

este °" Slmulta-«'**'pronun-

"< ™burynatureza «!"*-

°

do encontro sejavimos mais claramente, é demento), em João d'Arras aríve,. As dareiras *Zmam-se em campos lavrado,. Uma região obretão), deverá passar.da

w«"'""«« arrotea-

conside-

'ra"sfor-que

505

-. . .- No entanto, em João d*Arras, uma outra actividade criadora passoupara primeiro plano: a construção. Tanto ou mais que arroteadora,Melusina torna-se construtora. Semeia, no seu caminho, nas suas cons-tantes deslocações, castelos-fortes e cidades que bastas vezes constróicom as próprias mãos, à frente dos trabalhadores.

Por pouco precavidos que estejamos em relação ao historicismo, seriasem dúvida^ querer deixar fugir a verdade se recusássemos ver aqui olado histórico de Melusina ligada à conjuntura econômica: arrotea-mentos e construções, arroteamento e depois construção. Melusina éa fada do desenvolvimento econômico medieval,

Há, no entanto, um outro domínio em que a fecundidade de Melusinaê ainda mais gritante: o domínio da demografia. O que, antes de tudo.,Melusina dá a Raymond são filhos. Mesmo que não sejam dez, como ve-mos em João d*Arras, eles são o que sobrevive ao desaparecimento daEada-mãe e à ruína do homem-pai. Edric «.deixou a sua herança ao filho*.De Henno e da sua pestilentia «existe ainda hoje numerosa descendência».Raymond do Chãteau-Rousset conservou, da aventura e da desventura,uma filha «.cuja descendência chegou até nós».

Desaparecida Melusina, ouvimo-la ainda quando desempenha a suafunção essencial, a de mãe e de ama. Arrebatada à luz, continua geradora

nocturna.Quem resistiria, aqui, a evocar a família feudal, a linhagem,

célula da sociedade medieva? Melusina representa o ventre de onde saiu

uma nobre descendência.Assim, o estruturalismo (e a história comparada), se se entreajudam

para liquidar um historicismo falaz, o da historicidade «factual» dos con-tos e das lendas (procurar a explicação e, pior ainda, a origem de umconto ou de uma lenda num acontecimento ou numa personagem histó-rica) permitem do mesmo 'modo — se prestarmos atenção não apenas àforma mas também ao conteúdo móvel — agarrar melhor a sua funcio-nalidade histórica em relação não já a um acontecimento, mas às próprias

estruturas sociais e ideológicas.Nesta altura, não podemos ignorar dois grandes problemas.Só referiremos um: o totemismo. J. Kohler, ao falar de Melusina,

deu-lhe grande desenvolvimento. Essa mulher-animal, origem e emblemada linhagem, não o leva a tornar a pôr o problema do totemismo? ('*)

(") Numa obra de juventude, Georges Dumézil abordara, apropósito de Urvaçi, os temas melusinianos, evocando as hipóteses totê-micas de Prazer e chamando mais especialmente a atenção para o estudode J.-Kohler e para os trabalhos eslavos, sobretudo polacos: «A ninfa deUrvaçi é a decana duma corporação muito divulgada no folclore: a dasmulheres sobrenaturais que casam com um mortal com uma certa con-dição e que, no dia em que o pacto é violado, desaparecem para sem-pre, deixando por vezes ao esposo infeliz a consolação dum filho, o pri-meiro duma descendência heróica. Na Europa, este tema dt folclore teve

506

O segundo é o problema dos laços entre esta literatura e a sociedade..Quem produz tais contos ou lendas e porquê?

Serão os escritores que nos fornecem as versões eruditas que estão nabase do nosso estudo? Sim e não. A tripla sujeição do seu comanditário,do fundo (popular?) onde se inspiram e da forma literária que empregamlimita-lhes singularmente a iniciativa. Mas se, em Gautier Map, sentimosa atracção do maravilhoso, em Gervais de Tilbury a convicção de fazerobra científica, integrando os mirabilia no universo da realidade e doconhecimento, em João d*Arras o prazer estético e formal de tratar umamatéria agradável, isso dá-nos a entender que eles permitem, sobretudo,que outros se exprimam através delas. Quem são os outros?

Sentimo-nos perplexos pelo facto dos heróis pertencerem a umamesma classe social e a uma classe elevada. Porque nos admiramos?Pois não sabemos nós que o filho do rei é o herói principal do contopopular? Mas precisamente, aqui, não se trata de filho de rei, mas da pe-quena e média aristocracia, a dos cavaleiros, dos milites, por vezes designa-dos por nobres. Henno, Edric, o senhor de Espervier, Raymond do Chá-teau-Rousset, Raimondin de Lusignan, são, todos eles, milites. Militescheios de ambição, desejosos de alargar as fronteiras da sua pequena senho-ria. Eis o instrumento dessa ambição: a fada. Melusina traz., à classe doscavaleiros, terras, castelos, cidades, linhagem. É a encarnacão simbólicae mágica da sua ambição social.

Porém, eles não fabricam este arsenal da literatura maravilhosa quevoltam a seu favor. Encontro neste ponto as idéias de Erich Kohler (")quanto à pequena e média aristocracia que, no século XII, suscita umacultura dela e para ela, de que rapidamente a linhagem vulgar será o veí-culo. Das canções de gesta a Melusina, os tesouros do folclore que os cava-leiros ouviam contar aos seus camponeses •— de quem, no século XII,estavam ainda próximos — ou que mandavam escrever aos seus cronistasquando já estavam distanciados, tesouros do folclore que misturavam com

uma grande difusão, e os romances de Melusina deram-lhe, além da con-sagração literária, uma vitalidade nova: florescem lemuziny até às margensdo Vístula. Porém, os Negros, os Peles-Vermelhas contam histórias seme-lhantes, e sir J.-G. Prazer propôs a hipótese de estes contos serem umresto de mitologia totémica; de facto, nos Ojibways, e na Costa do Ouro,a forma dos contos está firmemente ligada à organização da sociedadeem clãs totémicos, e, mesmo no nosso folclore europeu, a natureza semi--humana, semianimal da-heroína (senão do herói) subsistiu... Mas umaorigem tão obscura e tão remota não tem aqui importância para nós: oque nos importa, pelo contrário, são "as características pelas quais a his-tória de Pururavas e de Urvaçi se distingue do tipo vulgar dos contosmelusianos...» (Lê Problème dês Centaures, Paris, 1929, pp. 143-144).

(IT) Expressas nomeadamente nas «Obseryations historiques et sociolo-giques sur Ia poésíe dês troubadours», em Cahiers de CivÜisation médiévaleVIII, 1964, retomado em Esprit und arkadische Freiheit. Aufsãlze aus der

der Romania, Francoforte-sobre-o-Meno, 1966.

307

.

velhos mitos folclorizados das histórias de clérigos mais recentes «popu-larizadas» e dos contos criados pela imaginação dos contadores campone-ses, todo um mundo do maravilhoso popular que vinha enriquecer a baga-gem cultural dos cavaleiros. Haveria que juntar aqui uma certa distancia-ção, senão uma certa hostilidade desta classe senão em relação aocristianismo, pelo menos para com a Igreja. Classe que recusava osseus modelos culturais, preferindo as fadas aos santos, fazendo pactoscom o Inferno, jogando com um totemismo suspeito ("). Tentação quenão devemos exagerar. Os esposos de Melusinas conciliavam a profissãode cristão com uma prática por vezes desenvolta. Marc Bloch apontouaquela classe que tomava, na realidade vivida, liberdades com a doutrinacristã sobre o casamento e a família.

Contentar-nos-emos em haver, através destas hipóteses, reunido,parcialmente, as idéias de Jan de Vries quanto aos contos popularese, de maneira mais geral, por termos tentado aplicar a simples masprofunda afirmação de Georges Dumézil: «Os mitos não se deixam com-preender, se os separamos da vida dos homens que os contam. Se bemque chamados, mais cedo ou mais tarde, a uma carreira literária própria,não se limitam a invenções dramáticas ou líricas gratuitas, sem relação coma organização social ou política, com o ritual, a lei ou os costumes; pelocontrário, o seu papel será justificar as grandes idéias que organizame mantêm tudo isto»? (**) (

Que «o conto de fadas esteja — como pretende Jan de Vries —ligado a um período cultural determinado» e que este período tenhasido, para o Ocidente e, em particular para a França, a segunda metadedo século XII, não me parece conclusão suficiente para explicar o alcancede uma lenda como a de Melusina.

O conto forma um todo. Se é legítimo isolar-se o motivo central —o da prosperidade de resto adquirida e perdida algures em determinadas

(3I) Cfr. a nota de Claude Lévi-Strauss: «O totemismo é, em primeirolugar, a projecção fora do nosso universo, e como por um exorcismp, deatitudes mentais incompatíveis com a exigência duma descontinuidadeentre o homem e a natureza, que o pensamento cristão tinha por essencial.»(Lê Totémisme aujourd'hui, 3* ed., Paris, 1969, p. 4). Sobre o anti-huma-nismo que se opõe energicamente ao humanismo cristão românico e gótico(continuidade entre o homem e os reinos animal e vegetal), temos osdossiers iconográficos e as análises estilísticas de J. Baltrusaitis, Lê MoyenAge fantasíiqite, Paris, 1955 e Réveils ei Prodíges. Lê gothique fantas-tique. Paris, 1960. A pedra de toque — o pôr em causa do homemfeito «ad imaginem Dei»—é o caso do lobisomem. Cfr. MontagueSummers, The Werewolf, Londres, 1933. Perturbantes também os casosdo macaco e do homem selvagem. Cfr. H. W. Janson, Apes and ApeLore in the Middle Ages and the Renaissance, Londres, 1952. RichardBernheimer, Wild Men in the Middle Ages. A Study in arl, sentíment anddemonology, Cambridge, 1952. F. Tinland, UHomme sauvage. Paris, 1968.

(") G. Dumézil, Myíhe ei Épopée, I, Paris, 1968, p. 10.

308

condições — para neles descobrirmos o apelo que uma classe social faza uma deusa-mãe, devemos sobretudo procurar a «moral» do conto nasua conclusão,

Notámos que Melusina acaba mal. Jan de Vries, evocando «osmeios aristocráticos que elaboraram» (não creio que tivessem elaborado,sim açarnbarcado, mas a elaboração provém de especialistas, no povoou nos clérigos", contadores populares e contadores-escritores eruditos)a epopéia e o conto de fadas, diz: «Atrás do aparente opíimismo podeperfeitamente esconder-se o sentimento de um inevitável fracasso» (").

Seria empresa acima das nossas possibilidades procurarmos comoc porquê esta busca da prosperidade e, muito particularmente, a buscada prosperidade familiar culmina numa verificação de fracasso ou desemífracasso. Notemos apenas o facto. Aproximemo-nos dos reparosfeitos quanto ao pessimismo — no final da evolução literária — dos ro-mances do século XIX e princípios do século XX. Para muitos roman-cistas de então, a trajectória do seu assunto é a ascensão e a agonia deuma família. Em meios diferentes, com recursos intelectuais e artísticosdiferentes num clima ideológico fiderente, desde os Rougon-Macquart (*)aos Buddenbrooks (**), uma família cresce e desagrega-se.

Tal como as linhagens melunísianas. Mas como Roger Martin duGard, no final do seu romance, Os Thibault, mantém a débil esperançade uma criança, os contadores medievais de Melusina arrancam do vôoda fada para o seu inferno — essa viagem das almas onde Propp via,decididamente, o tema único do conto (") — criancinhas para quem tudo

C") Jan de Vries, Lês Contes populaires, toe. c/r., p. 13, cfr. M.--L. Tenèze quando evoca a Wunschdichtung, a literatura de compensaçãona opinião de Max Luthi, Du conte mervettleux..., loc. c/r., pp. 26-29.

(*) Nome que Zola deu a uma família do Segundo Império, que minuciosa-mente estudou na sua História Natural e Social publicada em vinte volumes,saídos entre 1871 e 1893. O escritor naturalista aplica o método científico ao estudodos fenômenos sociais e, em particular, das leis da hereditariedade. — (ff. da T.)

(*,<) Romance de Thomas Mann. — (JV. da T.)

(")• Depois do velho e clássico estudo de Alfred Maury, Lês fées duMoyen Age, Paris, 1843 (nova ed. 1896), as fadas medievais não interes-saram muito os historiadores e só aparecem nos trabalhos dos folclorisíasem casos particulares. Cfr., todavia, C. S. Lewis, The discarded image.An introduction to Medieval and Renaissance liíeraíure. cap. VI: «TheLongaevi», Cambridge, 1964, pp. 122-138. Lewis notou, em especial emGautíer Map, a referência às almas dos mortos; mas todo o seu livro nosparece-,viciado por uma concepção da Idade Méclia como época «lívresca»(cfr. nomeadamente o. 11), que julgamos falsa por estar ligada às limi-tações da medicvalística tradicional e viciada pelo recurso ao mito do«homem da Idade Média» (por exemplo na p. 10): «medieval man wasnot a titrçamer nor a wanderer; he was an organiser, a codifier, a builderof systems, etc.», Filii mortue, diz Gautíer Map dos filhos de uma pseudo-

309

continua ou, melhor, o essencial, a continuidade dela própria. Adhuc extatprogenies (").

Post-scriptum

Findávamos este artigo quando, graças à gentileza de Marie-LouiseTenèze, soubemos do trabalho de Lutz Rõhrich, Erzàhlungen dêsspaten Mittelalíers una ihr Weiterleben m Liieratur und Volksdichtungbis zur Gegenwart. Sagen, Marchen. Exempel und Schwánke mit einemKommentar herausgegeben von L. R., 2 vol., Berna e Munique, FranckeVerlag, 1962-1967. O autor apresenta aí (vol. I, pp. 27-61) e comenta (ibid.,pp. 243-253) onze textos, escalonados, do século XIV ao século XX, res-peitantes a uma Melusina ligada à lenda do cavaleiro Peter von Stau-fenberg (Die gestõrte Mahrtenehe). No seu comentário, o autor comparaa lenda do cavaleiro Raymond do Château-Rousset, de Gervais de Til-bury, com a dos Lusignan, de João d'Arras. A sua interpretação apro-xima-se da nossa, ao fazer da fada de Bade uma personagem «totémíca»(a palavra não é empregada) que vem a ser utilizada por uma linhagemcavaleiresca: «O tipo Staufenberg pertence a esse grupo de contos queprocuram fazer recuar a origem de uma linhagem nobre medieval àunião com um ser sobrenatural, de forma a conferir às pretensões deuma família à legitimidade uma consagração mais alta, metafísica. Trata-seda lenda genealógica da família nobre implantada no castelo de Stau-fenberg, no Ortenau (Mortenowe), na parte central da região de Bade»(p. 244). A mais antiga versão da lenda data de' 1310, mas tem semdúvida raízes no século XIII.

-Melusina evocada justamente antes da fada de Henno (De Nugis curia-lium, IV, 8, ed. M. R. James, p. 174). J. Kohler notara: es ist derSagenstoff der sich um die Orpheussage schlingti p. 31. A. Maury, porseu lado, sublinhara que Melusina, em João d*Arras, «lança gemidosdolorosos sempre que a morte vem buscar um Lusignan».

(") Devo agradecer especialmente a Qaude Gaignebet que mefacultou os números do Bulletin de Ia Société de Mythologie françaiseonde figuram artigos referentes a Melusina, assim como a Jean-MichelGuilcher que me indicou as miniaturas do Ms. Fr. 12575 da B, N. (omais antigo manuscrito do Roman de Mélusine de Couldrette, século XV).

310

IV

PARA UMA ANTROPOLOGIAHISTÓRICA