Em busca da Idade Média: catedrais, mosteiros e castelos no decreto dos monumentos nacionais de...

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Introdução O património tornou-se um factor de preocupação para as nações modernas, nomeadamente com a Revolução Francesa. Desde essa altura que se difundiu uma noção de património como algo que era público e que se transmitia de geração em geração 1 . Ao veicular a história de um povo e de uma nação, era necessário que o património se tornasse objecto de defesa, de preservação e, se caso disso, de restauro. Este património englobava não apenas os “monumentos escritos”, ou seja, os documentos que, pela sua importância, haviam ajudado a definir a história da nação, como também os “monumentos materiais” que, pela sua grandiosidade, pelo seu poder de evocação de determinados factos ou personagens históricos ou pela sua importância artística eram considerados verdadeiros símbolos do génio nacional. Ambos foram objecto de um intenso estudo, inventariação, preservação e divulgação ao longo do século XIX, sendo que este processo se articulou com a formação dos estados-nação, ajudando a fundar uma determinada ideia de nacionalidade que em larga medida se manteve até aos nossos dias. Foi o que aconteceu em Portugal no século XIX. De um período conturbado marcado pelas invasões francesas, pela ocupação inglesa, pela revolução liberal de 1820, pelos conflitos entre liberais e absolutistas até 1834 e depois, entre cartistas e setembristas, foi nascendo esta consciência de defender um património material (pois é esse que aqui nos interessa) que havia sido alvo de intensas delapidações ou simplesmente deixado ao abandono. Para isso, era necessário conhecer que património arquitectónico existia no país, qual a sua história, a sua 1 Do latim, patrimonium, significando as coisas que se recebe por herança de um pai. 1

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Introdução

O património tornou-se um factor de preocupação para as

nações modernas, nomeadamente com a Revolução Francesa. Desde

essa altura que se difundiu uma noção de património como algo

que era público e que se transmitia de geração em geração1. Ao

veicular a história de um povo e de uma nação, era necessário

que o património se tornasse objecto de defesa, de preservação

e, se caso disso, de restauro. Este património englobava não

apenas os “monumentos escritos”, ou seja, os documentos que,

pela sua importância, haviam ajudado a definir a história da

nação, como também os “monumentos materiais” que, pela sua

grandiosidade, pelo seu poder de evocação de determinados factos

ou personagens históricos ou pela sua importância artística eram

considerados verdadeiros símbolos do génio nacional. Ambos foram

objecto de um intenso estudo, inventariação, preservação e

divulgação ao longo do século XIX, sendo que este processo se

articulou com a formação dos estados-nação, ajudando a fundar

uma determinada ideia de nacionalidade que em larga medida se

manteve até aos nossos dias.

Foi o que aconteceu em Portugal no século XIX. De um período

conturbado marcado pelas invasões francesas, pela ocupação

inglesa, pela revolução liberal de 1820, pelos conflitos entre

liberais e absolutistas até 1834 e depois, entre cartistas e

setembristas, foi nascendo esta consciência de defender um

património material (pois é esse que aqui nos interessa) que

havia sido alvo de intensas delapidações ou simplesmente deixado

ao abandono. Para isso, era necessário conhecer que património

arquitectónico existia no país, qual a sua história, a sua

1 Do latim, patrimonium, significando as coisas que se recebe porherança de um pai.

1

importância e que estragos havia sofrido. Sob a acção de

escritores, historiadores, arqueólogos, engenheiros, arquitectos

e de outras pessoas com influência no panorama cultural e

político, foram-se desenvolvendo iniciativas no sentido de

inventariar, classificar, preservar ou de simplesmente chamar a

atenção para um conjunto de monumentos que depois viriam a ser

classificados como “nacionais”. Este processo teria a sua

consagração através do decreto de 16 de Junho de 1910 promulgado

pelo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria2, em

que foram classificados 467 monumentos nacionais. Estes

constituem o grosso dos monumentos que ainda hoje são

considerados incontornáveis para definir a história nacional,

muito embora os decretos das décadas seguintes tenham

acrescentado vários outros.

Inserido no contexto de uma dissertação de doutoramento

sobre a importância da medievalidade para o Portugal

contemporâneo, procurar-se-á neste trabalho analisar os

monumentos que representavam a Idade Média no decreto de 16 de

Junho de 1910. O objectivo é, por um lado, explicar que

critérios presidiram à inclusão de determinados monumentos

considerados “medievais” (a categoria é nossa) no decreto e que

critérios presidiram à exclusão de outros. No âmbito deste

trabalho, focar-nos-emos em três categorias de monumentos,

considerados mais simbólicos para a história nacional, pela sua

grandiosidade ou pela sua associação a determinados factos ou

conjunturas da história medieval portuguesa: as catedrais, os

mosteiros e os castelos. Obviamente que foram aqui deixadas de

lado as igrejas, as torres, os paços e outros monumentos que

possuem uma carga simbólica igualmente importante, porém, a

necessidade de elaborar um trabalho desta dimensão infelizmente

2 Diário do Governo, nº136, 23 de Junho de 1910, pp.2163-2166.2

não o possibilitou. O segundo objectivo foi inserir os dados

relativos às três categorias já referidas num sistema de

informação geográfica, tendo em vista elaborar três mapas

distintos. A partir destes mapas, procurou-se fazer uma análise

espacial da distribuição dos monumentos.

O trabalho encontra-se assim dividido em duas partes: uma

primeira, de cariz mais introdutório e contextualizador, em que

se procurou retomar os debates em torno dos monumentos na

segunda metade do século XIX e que levaram ao processo de

classificação dos monumentos nacionais; e uma segunda, em que se

procederá à análise do decreto, à luz dos critérios já

referidos, e da distribuição espacial dos monumentos.

Para a elaboração do mesmo, servimo-nos dos trabalhos em

torno da história do património em Portugal, nomeadamente as

teses de Maria João Baptista Neto, Paulo Alexandre Simões

Rodrigues e de Lúcia Maria Rosas3, bem como a obra recentemente

publicada 100 anos de património. Memória e identidade4, coordenada por

Jorge Custódio, e na qual colaboraram vários autores ligados à

temática. No campo da análise espacial, foi igualmente útil

perceber as divisões geográficas de Portugal elaboradas por

Orlando Ribeiro e que vêm expressas no seu artigo “Portugal” no

Dicionário de História de Portugal, e retomadas e desenvolvidas por José

3 Maria João Baptista Neto, A Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais ea Intervenção no Património Arquitectónico em Portugal (1929-1960), dissertação dedoutoramento em História da Arte, Faculdade de Letras da Universidadede Lisboa, 1995; Paulo Alexandre Simões Rodrigues, Património, Identidade eHistória. O valor e o significado dos monumentos nacionais no Portugal de oitocentos,dissertação de mestrado em História da Arte Contemporânea (sécs.XVIII-XX), UNL-FCSH, 1998; Lúcia Maria Cardoso Rosas, Monumentos Pátrios. Aarquitectura religiosa medieval – património e restauro (1835-1928), dissertação dedoutoramento em História da Arte, Universidade do Porto, 1995.4 100 anos de património. Memória e identidade, coord. Jorge Custódio, Lisboa,IGESPAR, 2010.

3

Mattoso a respeito da medievalidade, nomeadamente em A Identificação

de um país5.

No que respeita às fontes, como já foi referido, o trabalho

centrar-se-á no decreto dos monumentos nacionais de 16 de Junho

de 1910. Porém, serão igualmente tidos em conta os documentos

preparatórios do mesmo, nomeadamente o relatório elaborado pela

Real Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses

em 1881 a pedido do MOP6, bem como os relatórios e decretos

emitidos nos anos seguintes, até 1910. Serão também citados

vários autores como Alexandre Herculano, Almeida Garrett e

Ramalho Ortigão e artigos de jornais dedicados ao tema, como o

Archivo Pittoresco7, para compreendermos que quadro mental e

intelectual contribuiu para a classificação de determinados

monumentos e não de outros. No caso de Ortigão, são de assinalar

os seus comentários na obra O Culto da Arte em Portugal a propósito da

inventariação dos monumentos nacionais, bem como as suas

descrições do país n’ As Farpas8, que nos dão um retrato do país

que advinha de gerações anteriores mas que teria também um

contributo importante para a imagem nacional que depois seria

expressa na distribuição espacial dos monumentos nacionais

presente no decreto. Na mesma linha, foi também alvo de estudo

alguma literatura de viajantes estrangeiros sobre o tema,

nomeadamente os relatos dos ingleses James Murphy e William

5 Orlando Ribeiro, “Portugal” in Dicionário de História de Portugal, coord. JoelSerrão, vol.V, Porto, Figueirinhas, 1992; José Mattoso, A Identificação deum país, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000.6 Relatorio e Mappas á cerca dos edificios que devem ser classificados MonumentosNacionaes, Apresentado ao Governo pela Real Associação dos Architectos e ArcheologosPortugueses em conformidade da portaria do Ministerio das Obras Publicas de 24 de outubrode 1880, Lallemant Frêres, Typ. Lisboa, 1881.7 Archivo Pittoresco. Semanario Illustrado, Lisboa, Tip. Castro Irmão, 1857-1868.8 Ramalho Ortigão, O Culto da Arte em Portugal, Lisboa, António MariaPereira, 1896; As Farpas, Tomo I: A vida provincial, Lisboa, Comp. Nac.Editora, 1887.

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Beckford, bem como os guias de viagem de Portugal da segunda

metade do século XIX e da primeira década do século XX.

A classificação dos monumentos nacionais

Desde o fim da guerra civil entre liberais e absolutistas

que a necessidade de conhecimento e de preservação do património

arquitectónico português começou a ser alvo de uma intensa

campanha de consciencialização, levada a cabo por jornais e

revistas como O Panorama, dirigido por Alexandre Herculano, ou o

Archivo Pittoresco e por vários autores a título próprio. O próprio

Herculano ajudou a consagrar a ideia de “monumento histórico”,

através dos seus artigos publicados em O Panorama e depois nos

Opúsculos9. No seu artigo de 1837 “A arquitectura gothica: igreja

do Carmo em Lisboa”, o autor insurgia-se contra a destruição de

que tinham sido alvo “nas províncias septentrionaes do reino,

onde a Monarchia teve o berço”, “os mais antigos edificios

nacionaes”. Estes eram monumentos do passado que deviam ser

conservados pois a “pedra falla do passado”, ou seja, o

monumento é um testemunho e uma herança do passado (é um

documento histórico10). Este trabalho deveria ser feito pelo9 “A arquitectura gothica: igreja do Carmo em Lisboa” in O Panorama,Lisboa, Imprensa da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis,nº1, 6 de Maio de 1837, pp.2-4; “Os monumentos”, O Panorama, nº69, 25de Agosto de 1838, pp.266-268; “Os monumentos II”, O Panorama, nº70, 1de Setembro de 1838, pp.275-277; “Mais um brado a favor dos monumentosI”, O Panorama, nº93, 9 de Fevereiro de 1839, pp.43-45; “Mais um bradoa favor dos monumentos II”, O Panorama, nº94, 16 de Fevereiro de 1839,pp.50-52; “Monumentos Pátrios” (1838-1839) in Opúsculos I org. introd. enotas de Jorge Custódio e José Manuel Garcia, Lisboa, Presença, 1983,pp. 173-219 e “Duas Épocas e Dois Monumentos ou a Granja Real deMafra” (1843) in Opúsculos II, pp.135-145. 10 A palavra monumento tem origem no verbo latino monere: advertir,lembrar. Herculano considerava, por outro lado, os documentos escritoscompilados na sua Portugaliae Monumenta Historica como “monumentosnarrativos” ou “literários.” – Paulo Simões Rodrigues, “O longo tempo

5

governo e pelos municípios. Herculano criticava o preconceito

comum à época de que só a arte clássica era digna de valor,

mostrando uma profunda admiração pelas virtudes da arquitectura

gótica, e estabelecia ainda uma relação directa entre a batalha

de Aljubarrota, momento fulcral da conservação da independência

nacional, e a construção do Mosteiro da Batalha e da Igreja do

Carmo, “os dois mais preciosos monumentos da arquitectura

cristã” de Portugal.

Em Setembro do mesmo ano, era a vez de o Archivo Popular.

Semanario Pintoresco se referir ao Mosteiro da Batalha como “o mais

belo monumento da arquitectura gótica entre nós, e um dos mais

respeitáveis padrões da glória portuguesa”. O edifício era

também considerado “um dos nossos mais grandiosos monumentos

nacionais” 11, sendo a primeira vez que tal categoria era

atribuída a monumento em Portugal, segundo a historiadora da

arte Lúcia Rosas12.

Mas não só Herculano, como outros escritores que lhe eram

contemporâneos falavam em nome dos monumentos, em especial os

medievais, segundo o espírito romântico da época. Garrett, por

exemplo, no seu romance Viagens na Minha Terra (1843), indignava-se

não só com o estado ruinoso dos monumentos de Santarém, mas

do património. Os antecedentes da República (1721-1910)” in 100 Anos depatrimónio. Memória e identidade, p.24.11 Archivo Popular, Semanario Pintoresco, nº26, Lisboa, Typ. de A.J.C. da Cruz,23 de Setembro de 1837, p.197-199.12 Lúcia Maria Rosas, “A génese dos monumentos nacionais” in 100 Anosde Património. Memória e identidade, p.43. Poucos anos depois, em 1840,iniciavam-se as primeiras obras de restauro na Batalha, àresponsabilidade do inspector das Obras Públicas do Reino LuísMousinho de Albuquerque. Estas prolongar-se-iam pela segunda metade doséculo XIX e serviriam de inspiração a outros trabalhos de restauro,como por exemplo na Sé Velha de Coimbra, e nas sés da Guarda e deLisboa. - Paulo Simões Rodrigues, Património, Identidade e História, p.69.

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talvez mais ainda com as alterações abruptas e as reparações sem

qualidade que os seus edifícios haviam sofrido13.

A preocupação com o estado dos monumentos era tanto mais

alarmante quanto a aparente indiferença do Estado português na

matéria, incapaz de criar um organismo que regulamentasse a

defesa e a conservação do património. Porém, desde há várias

décadas que havia uma noção por parte do poder político da

importância de preservar os vestígios do passado.

A 20 de Agosto de 1721 D. João V assinara um alvará com

vista à protecção dos “monumentos antigos”. Nestes incluíam-se

todos os “edifícios, estátuas, mármores, cippos, laminas,

chapas, medalhas, moédas e outros artefactos” construídos por

“Fenícios, Gregos, Persos, Romanos, Godos e Arábios”14. O mesmo

alvará seria republicado a 4 de Fevereiro de 1802, por ordem do

príncipe regente D. João.

Já depois da extinção das ordens religiosas e da decisão de

pôr à venda em hasta pública os seus bens nacionalizados e

incorporados na Fazenda, a 15 de Abril de 1835 o Estado

exceptuava destes bens as obras e os edifícios “de notável

antiguidade” que merecessem ser conservados como “primores da

arte, ou como Monumentos históricos de grandes feitos ou de

Épocas Nacionais”15. Esta carta de lei levou a que fosse

atribuída às recém-criadas Academias de Belas-Artes de Lisboa e

do Porto a tarefa de seleccionar, classificar e recolher as

obras de arte provenientes das casas religiosas extintas. O

governo determinou também a obrigatoriedade de a Academia de

13 Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, Porto, Porto Editora, 1977,pp.176, 183-184.14 “Alvará de D. João V sobre os monumentos antigos” in MonumentosNacionais Portugueses, Legislação, Lisboa, Imprensa Nacional, Lisboa, ImprensaNacional, 1910, pp.3-6.15 Paulo Simões Rodrigues, “O longo tempo do património. Osantecedentes da República (1721-1910)”, pp.21-22.

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Belas-Artes de Lisboa conservar as plantas dos edifícios de

maior qualidade artística, de lhe ser comunicada a intenção de

demolir qualquer edifício antigo da capital e de acolher a

conservar os objectos artísticos dos edifícios derrubados16.

Estas medidas, além de terem permitido salvaguardar a

arquitectura e o espólio de alguns mosteiros, denotam que o

poder político já tinha uma noção da importância de preservar os

monumentos.

Porém, este esforço legislativo vinha tarde e não impedia

que vários edifícios começassem a atingir a ruína. Além disso,

em várias cidades do país iam sendo derrubados troços de

muralhas medievais (caso da muralha fernandina de Lisboa) para

dar lugar a novos espaços urbanos, e outros edifícios entregues

às câmaras municipais com o mesmo destino17.

Num artigo d’O Panorama Herculano considerava que a origem

do problema do património estava na ausência de uma lei

centralizadora que declarasse os monumentos nacionais

propriedade pública e não de particulares, municípios ou

localidades18. Em 1854, Joaquim da Costa Cascais, outro dos

redactores do jornal, reiterava a opinião de Herculano advogando

a criação de uma Comissão de Arte e Monumentos, formada por

professores da arte, de numismática e paleografia, que tivesse

as funções de inventariar, estudar e divulgar os monumentos

históricos nacionais19.

16 Paulo Simões Rodrigues, Património, identidade e história, p.62.17 Herculano refere que o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra tinha sidoentregue ao município da cidade para ser demolido e dar lugar a umapraça, que a Igreja de São Francisco do Porto havia sido destinada aarmazém de alfândega e que a Igreja de São Domingos em Santarém haviasido transformada em palheiro. – Alexandre Herculano, “Os MonumentosII” in O Panorama, nº70, 1 de Setembro de 1838, pp.276-277.18 Herculano, “Mais um brado a favor dos monumentos II” in O Panorama,nº94, 16 de Fevereiro de 1839, p.51.19 Joaquim da Costa Cascais, “Monumentos” in O Panorama, vol. XI, nº27,8 de Julho de 1854, pp.210-212.

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Em 1841 uma parte das responsabilidades patrimoniais detidas

pelas academias de Belas-Artes passou para a Biblioteca

Nacional, cujo director José Maria da Silva Mendes Leal viria a

criar a Inspecção dos Monumentos e Antiguidades em 1858. As

funções de inventariação, estudo e salvaguarda do património

nacional ficaram assim divididas entre as academias de Belas-

Artes, a Biblioteca Nacional e outras entidades com incumbências

específicas, como a Real Associação dos Arquitectos Civis e

Arqueólogos Portugueses (RAACAP). Entre 1870 e 1875, a Academia

Real de Belas-Artes nomeou duas comissões com o objectivo de

proceder à inventariação e protecção dos monumentos20, situação

que gerou fortes críticas por parte de Ramalho Ortigão, que n’

As Farpas ridicularizava o governo por dar um prazo mínimo às

comissões para fazerem aquilo que “durante um século e meio” não

fora feito21.

A RAACAP, a pedido do Ministério das Obras Públicas, viria

em 1880 a nomear uma comissão para levantar os monumentos

nacionais. Deste trabalho resultou um relatório publicado em

1881, no qual vinha uma lista de 76 monumentos, divididos em

seis classes22. Na primeira classe estavam os 18 monumentos

considerados mais grandiosos do ponto de vista histórico e

artístico, contendo monumentos da época medieval como os

mosteiros da Batalha e de Alcobaça, o Convento de Cristo e a20 Alice Nogueira Alves, Ramalho Ortigão e o culto dos monumentos nacionais noséculo XIX, dissertação de doutoramento em História, Especialidade Arte,Património e Restauro, Universidade de Lisboa – Faculdade de Letras,2009, p.42. 21 “A restauração da arte portuguesa entregue pelo governo aos cuidadosde uma comissão” (Dezembro de 1875) in Ramalho Ortigão, As Farpascompletas. O país e a sociedade portuguesa, Tomo IX: O movimento literário eartístico, vol.V., ed. Ernesto Rodrigues, Círculo de Leitores, 2006,p.1426.22 Relatorio e Mappas á cerca dos edificios que devem ser classificados MonumentosNacionaes, Apresentado ao Governo pela Real Associação dos Architectos e ArcheologosPortugueses em conformidade da portaria do Ministerio das Obras Publicas de 24 de outubrode 1880, Lallemant Frêres, Typ. Lisboa, 1881.

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Igreja de Santa Maria do Olival em Tomar, a Sé Velha e o

Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a Igreja do Carmo e o Castelo

de Guimarães. É de relevar na listagem a presença de várias

igrejas (inseridas essencialmente na 2ª classe) e castelos (3ª

classe), sendo que segundo Lúcia Rosas, as construções de estilo

românico, gótico e manuelino correspondem a pouco mais de metade

do total de monumentos na lista23. O arqueólogo Luís Raposo

considera assim que “nesta classificação não estão patentes nem

um medievalismo exacerbado, nem uma estigmatização das

construções das outras épocas”24, o que é comprovado pela

presença de vários monumentos pré-históricos, romanos,

maneiristas e barrocos. Esta tendência manter-se-á, como

veremos, no decreto de 1910 que, embora apresente uma lista bem

mais extensa, usará o relatório da RAACAP como base.

Em 1884, o arquitecto Joaquim Possidónio da Silva,

presidente da Comissão de Monumentos, apresentava ao Ministério

das Obras Públicas um relatório25 no qual referia que haviam sido

expedidos 138 questionários às câmaras municipais, a fim de

informarem a Comissão de forma detalhada acerca dos monumentos

cuja existência não fosse bem conhecida ou pouco divulgada.

Apenas 33 municípios responderam a este questionário, sendo que

Possidónio da Silva se viu na obrigação de realizar um conjunto

de excursões pelo país a fim de verificar a classificação dada

aos monumentos nacionais, averiguar até que ponto eram fiáveis

as informações prestadas por alguns municípios acerca das

classes dos monumentos e de conhecer o estado de conservação23 Lúcia Rosas, Monumentos pátrios. A arquitectura religiosa medieval – património erestauro (1835-1928), dissertação de doutoramento em História da Arte,Universidade do Porto, 1995 p.130.24 Luís Raposo, “Classificação dos monumentos nacionais” in 100 Anos dePatrimónio, p.67.25 Possidónio da Silva, Relatório da Comissão dos Monumentos Nacionais apresentadoao ilustríssimo e excelentíssimo senhor Ministro das Obras públicas Comércio e Industria pelopresidente da referida comissão em 1884, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894.

10

destes. Deste trabalho, o presidente da Comissão dá conta do mau

estado de vários edifícios (casos da Sé Velha de Coimbra, do

Mosteiro de Alcobaça e do Castelo de Palmela), da incompetência

nos trabalhos de restauro (Igreja de São Francisco em Évora,

Igreja de Jesus em Setúbal, Sé de Braga) e dos planos para

adulteração arquitectónica noutros (Igreja de Cedofeita no

Porto). O arquitecto culpa a ignorância e o desleixo dos

responsáveis locais, sendo de notar que desde os anos 50

Possidónio da Silva já havia feito um extenso trabalho de

levantamento das plantas de vários edifícios.

O historiador Jorge Custódio considera que os trabalhos da

Comissão de Monumentos levaram todavia a uma consciencialização

maior por parte da sociedade portuguesa sobre a necessidade de

proteger espontaneamente os seus monumentos26. Ainda assim, a

dificuldade em centralizar as decisões num único ministério

levava a que fossem nomeadas novas comissões para estudar,

inventariar, classificar e guardar o património, como aconteceu

em 1890, quando estas funções foram atribuídas à 1ª repartição

de Belas Artes do Ministério da Instrução Pública e Belas

Artes27, e em 1894 quando o Ministério das Obras Públicas aprovou

o regulamento para a Comissão dos Monumentos Nacionais28. Esta

situação originou obviamente um atropelo e desarticulação de

disposições por parte das comissões que obviamente não

beneficiava o património nacional, situação que originou

protestos por parte da RAACAP29. Na sua obra de 1896, O Culto da Arte26 Jorge Custódio, “Classificação dos monumentos: entre a intenção e arealidade” in 100 anos de património, p.6827 Diário do Governo, nº191, 25 de Agosto de 1890, p.1979.28 Portaria de 27 de Fevereiro de 189 in Diário do Governo, nº46, 28 deFevereiro de 1894, p.509.29 Circular da Real Associação dos Arquitectos Civis e ArqueólogosPortugueses dirigida à Sociedade civil, para servir de pressão sobre oGoverno, com vista ao inventário, guarda e conservação dos monumentosnacionais, 28 de Novembro de 1897 in Dar Futuro ao Passado, Lisboa, SEC,IPPAR, 1993, pp.63-64.

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em Portugal, Ramalho Ortigão, que havia sido membro das duas

últimas comissões, considerava que só a promulgação de uma

lei, à semelhança do que havia acontecido noutros países, que

garantisse “os direitos especiais do Estado em relação à

guarda dos monumentos” permitiria depois formarem-se comissões

regionais, dependentes da comissão central, incumbidas de

guardarem e conservarem o património30. O autor defendia também a

urgência de a comissão fazer um inventário geral dos monumentos

e obras de arte do país e de estabelecer critérios de

conservação e de restauro destes, de modo a pôr em execução um

programa de trabalhos, não “de um modo oficioso e facultativo,

mas rigorosamente obrigatório”31. Ao longo deste período foramsendo sugeridos registos e inventários de novos monumentos pelos

vogais efectivos e correspondentes das comissões32.

Em 1901 no âmbito de uma remodelação orgânica do Ministério

das Obras Públicas promovida por Manuel Francisco Vargas, foi

criado o “Conselho dos Monumentos Nacionais”33, sendo no mesmo

ano que foi finalmente promulgada uma lei de bases para a

classificação dos monumentos34. Destas medidas partiu a

classificação dos primeiros catorze monumentos nacionais, pelo

decreto de 10 de Janeiro 190735, sendo que a maioria deles já se

encontrava na lista elaborada em 1881, exceptuando as sés de

Évora, de Lisboa e da Guarda (estas duas últimas entretanto

haviam recebido grandes programas de restauro). Um ano mais

30 Ramalho Ortigão, O Culto da Arte em Portugal, Lisboa, António MariaPereira, 1896, pp.160-161.31 Idem, pp.164-167. Ortigão seria depois presidente do ConselhoSuperior dos Monumentos Nacionais criado em 1898, onde tentariaimplementar algumas das suas propostas. – Alice Alves, p.149.32 Jorge Custódio, idem.33 Paulo Simões Rodrigues, “O longo tempo do património. Osantecedentes da República (1721-1910)”, p.27.34 Decreto de 30 de Dezembro de 1901 in Monumentos Nacionais Portuguezes,Legislação, pp.39-40.35 Diário do Governo, nº14, 17 de Janeiro de 1907, p.173.

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tarde era acrescentado o monumento que simbolizava a fundação da

nacionalidade, o Castelo de Guimarães.

A 9 de Dezembro de 1908 era concluída a relação completa dos

monumentos considerados nacionais segundo a lei, que incluía um

número muito aproximado do número de monumentos no decreto de 16

de Junho de 191036. Será a partir deste decreto que faremos a

análise de alguns monumentos medievais nele presentes.

Os monumentos medievais no decreto de 1910

Em primeiro lugar, é de assinalar o número elevado de

monumentos no decreto, contabilizando 46737. Estes encontram-se

divididos em três categorias principais, que correspondem a um

critério cronológico: “monumentos pré-históricos”, “monumentos

lusitanos e lusitano-romanos” e “Monumentos medievais, do

renascimento e modernos”. Destas categorias, há que assinalar o

elevado número de monumentos pertencentes à última categoria

(362), correspondendo a 78% dos monumentos, o que não é de

admirar dada a quantidade e a importância dos monumentos que

acompanham a história do Reino português.

Dentro destas categorias principais, existem “subcategorias”

correspondendo à função do monumento, contendo estas ainda

outras divisões relativas ao tipo de monumento. Dentro dos

“Monumentos medievais, do renascimento e modernos” existem assim

três categorias funcionais: “monumentos religiosos” (contendo

“catedrais”, “mosteiros”, “basílicas”, “igrejas”, “capelas”,

36 Paulo Simões Rodrigues, Património, Identidade e História, pp.291-292.37 Segundo Paulo Simões Rodrigues, “pretendeu-se incluir o maior númerode edifícios possível, temia-se que as autoridades e as populaçõesvotassem ao desprezo qualquer monumento que ficasse excluído”. – Idem,p.292.

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“cruzeiros”, “túmulos e sepulturas”), “monumentos militares”

(“castelos”, “torres” e “padrões”) e “monumentos civis” (“paços

reais”, “paços municipais”, “paços episcopais”, “paços de

universidade”, “palácios particulares e casas memoráveis”,

“misericórdias e hospitais”, “aquedutos”, “chafarizes e fontes”,

“pontes”, “arcos e padrões comemorativos”, “pelourinhos” e

“trechos arquitectónicos”). Dentro da categoria dos “monumentos

medievais, do renascimento e moderno”, quase metade são

monumentos religiosos (172), cerca de um terço civis (121) e os

restantes militares (69), o atesta a importância dada ao

património da Igreja e ao papel desta na história nacional.

Relativamente à presença de monumentos do período medieval,

a classificação feita por nós dá conta de pelo menos 206

monumentos medievais (englobando também a época manuelina),

correspondendo a quase metade dos monumentos no decreto e a mais

de metade dos monumentos da categoria “medievais, do

renascimento e modernos”. Este é um número significativo,

parecendo traduzir a importância que a Idade Média e a época

manuelina tinham para o imaginário histórico português. Porém,

se contarmos apenas os monumentos compreendidos entre os séculos

VIII e XV (excluindo assim os da época manuelina), ficam apenas

115, o que demonstra duas coisas: por um lado, a forte presença

e poder simbólico dos monumentos de estilo manuelino em Portugal

(considerado por vários autores, como Ramalho Ortigão, o “estilo

nacional” por excelência38); por outro, a ideia de que os estilos

românico e gótico não possuíam uma representatividade assim tão

grande, do ponto de vista material e simbólico, como os autores

38 Alice Alves, pp.128-129. Porém, havia vários autores que criticavamesta apreciação, como Joaquim de Vasconcelos e José de Figueiredo,defensores do românico. Sobre os debates em torno do manuelino, ver atese de Nuno Rosmaninho, A Historiografia Artística Portuguesa. De Raczynski aoDealbar do Estado Novo (1846-1935), dissertação de mestrado em HistóriaContemporânea de Portugal, Universidade de Coimbra, 1993, pp.88-91.

14

românticos ao longo do século XIX poderiam ter feito crer. Estes

autores, de facto, procuravam imitar o que sucedia em França, na

Inglaterra e na Alemanha, com o elogio do gótico – elevado à

condição de estilo nacional e de apogeu da arte medieval – e das

grandes catedrais, mosteiros, igrejas e castelos. De facto,

Portugal possuía um número relativamente reduzido de grandes

monumentos medievais, sendo normalmente os mais evocados o

Mosteiro de Alcobaça, o Mosteiro da Batalha (o mais elogiado e

simbólico de todos os monumentos góticos), o Mosteiro de Santa

Cruz de Coimbra (associado aos primeiros reis), o Convento de

Cristo (sede dos templários e da Ordem de Cristo), o Convento do

Carmo (associado à figura de Nuno Álvares Pereira), algumas

igrejas como a da Colegiada de Guimarães, a de Cedofeita

(Porto), a de Santa Maria do Olival (Tomar) e a Sé Velha de

Coimbra, algumas sés (Lisboa, Porto, Évora, Braga, Guarda) e

alguns castelos como, nomeadamente o de Guimarães, o de S. Jorge

e o de Almourol.

Neste trabalho focar-nos-emos apenas em duas categorias de

“monumentos religiosos” (as “catedrais” e os “mosteiros”) e numa

dos “monumentos militares” (os “castelos”), por constituírem, a

nosso ver, os monumentos mais importantes do ponto de vista

histórico e simbólico, sendo que algumas igrejas também aqui se

poderiam incluir.

Assim, podemos encontrar no decreto 10 catedrais, 16

mosteiros e 55 castelos. Destaca-se aqui o número extremamente

reduzido de mosteiros39, o que parece demonstrar que o critério

funcional dos edifícios prevaleceu sobre o critério histórico,

pelo facto de muitos mosteiros e conventos terem sido utilizados39 Veja-se, a título comparativo, o mapa dos mosteiros do Norteanteriores ao séc. XIII, presente em Orlando Ribeiro, “Portugal” inDicionário de História de Portugal, coord. Joel Serrão, vol.V, Porto,Figueirinhas, 1992,p.140.

15

como escolas, hospitais, prisões, quartéis e outras instituições

públicas depois da dissolução das ordens religiosas em 1834.

Outros encontrar-se-iam em estado de abandono, sendo

desconhecidos ou ignorados pelas instâncias centrais e

municipais. De qualquer das formas, o factor político pesou aqui

bastante, porventura por uma conjuntura marcada pelo

anticlericalismo (estava-se nas vésperas da implantação da

República), na qual não interessaria dar um destaque simbólico a

monumentos que representavam o poder das congregações religiosas

e o seu papel na história da nação. A situação dos mosteiros

contrasta com a da categoria “igrejas”, cujo número (84) é o

mais elevado de todas as categorias funcionais no decreto. Note-

se que várias destas igrejas pertenciam a antigos conventos

(casos da Igreja de Santa Clara em Vila do Conde, da Igreja de

S. Tiago em Palmela, da Igreja da Flor da Rosa no Crato e da

Igreja dos Domínicos em Elvas), tendo mantido a sua função

litúrgica depois de 1834.

Quanto às catedrais, há que notar que a categoria designava

a função destas igrejas em 1910, sobrepondo-se assim o critério

funcional ao critério histórico. Estavam por isso excluídas

desta categoria as antigas sés (a Sé Velha de Coimbra insere-se

por exemplo na categoria “igrejas”). Das sedes de diocese em

1910, observa-se a exclusão apenas da sés de Bragança, de Beja e

de Faro, provavelmente por serem sés mais recentes (Bragança e

Beja só se tornaram sedes de bispado no século XVIII40) e com

fraco poder evocativo do ponto de vista histórico e artístico.

Prova disto é o facto de a sé de Faro se encontrar na categoria

“igrejas” (com o nome de “Igreja paroquial de Santa Maria”), o

que revela a importância menor que o decreto lhe deu.

40 Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol.III, Porto-Lisboa,Livraria Civilização, 1970, pp.8-10.

16

Por outro lado, há a destacar o número elevado de castelos,

o que é assinalável pois vários deles encontravam-se num estado

ruinoso, como era o caso dos castelos de Carrazeda, de Penela,

de Porto de Mós, de Leiria, de Castelo de Vide, de Vila Viçosa e

de Portel41. Do Castelo de Braga, por exemplo, só restava

praticamente a torre de menagem após os trabalhos de demolição

das muralhas da cidade em 190542. O gosto romântico pela ruína e

pela arquitectura medieval reflectiu-se aqui nas escolhas da

comissão de monumentos, sendo que a existência de plantas

militares dos castelos terá contribuído também para a presença

de um elevado número destas construções – há que notar que os

edifícios presentes no decreto tinham que estar devidamente

inventariados com a respectiva planta.

Dentro destas três categorias de monumentos, que perfazem um

total de 81, identificou-se um total de 66 monumentos de traçado

“medieval” (ou predominantemente medieval), sinal de que a

grande maioria das catedrais, mosteiros e castelos classificados

no decreto tinham origem nesta época e estavam a ela intimamente

associados. Os monumentos distribuem-se numericamente desta

forma: 7 catedrais, 8 mosteiros e 51 castelos. Note-se que aqui

foram incluídos monumentos do estilo manuelino (como os

mosteiros dos Jerónimos e de Santa Cruz de Coimbra) ou com

elementos e fortes influências do manuelino (Convento de

Cristo), por representarem, apesar de tudo, uma continuidade

estilística em relação ao gótico.

Passando para uma análise espacial dos monumentos, podemos

ver pelo mapa 1 que estes se encontram espalhados por várias

41 Vários destes castelos haviam sido ocupados durante as invasõesfrancesas, tendo sido depois abandonados pelo exército português.42 O jornal Archivo Pittoresco havia publicado na década de 60 dois artigossobre o castelo de Porto de Mós e as muralhas de Braga,respectivamente de A. C. da Silva Matos, vol.6, 1863, pp.141-142, e deInácio Vilhena de Barbosa, vol.7, 1864, pp.100-102.

17

zonas do país, principalmente devido à grande quantidade de

castelos de norte a sul. Existem no entanto, algumas zonas de

maior concentração, nomeadamente à volta de Lisboa, nos

distritos de Coimbra e Leiria e a norte do distrito de Santarém

(onde se situam os mais importantes mosteiros medievais), na

região do Alto Alentejo, no distrito da Guarda e em torno deste

(com uma rede de castelos) e na região Entre-Douro-e-Minho. São

de assinalar também as cidades de Lisboa, Porto, Coimbra, Braga,

Lamego e Guarda, que possuem pelo menos 2 monumentos medievais

dentro do seu perímetro urbano, significando assim o seu poder

simbólico para a história medieval portuguesa.

18

Mapa 1 - Distribuição geográfica dos castelos, catedrais e mosteiros medievaisno decreto dos monumentos nacionais de 1910

19

Outros distritos primam pela ausência quase total de

monumentos, nomeadamente o de Castelo Branco que não possui

qualquer monumento, o interior dos distritos de Vila Real e de

Bragança, Aveiro, o norte do distrito de Lisboa e a Lezíria do

Tejo (zona sul do distrito de Santarém), o sul do distrito de

Beja e o distrito de Faro (apenas 2 castelos). É de notar que

vários dos distritos assinalados possuem poucos monumentos no

decreto de 1910, mesmo englobando os de outras épocas (Castelo

Branco apenas 3, Faro 9, Beja 11, Vila Real e Bragança 12 e 13

respectivamente, Aveiro 14 e Viseu 17). Mesmo assim, estes dados

não explicam inteiramente estas “zonas em branco”. Se virmos por

exemplo o caso do distrito da Guarda, que possui apenas 13

monumentos em todo o decreto, os monumentos medievais

assinalados no mapa preenchem quase metade do seu total (5).

Podemos assim dizer que, de todos os distritos, a Guarda é o que

mais beneficia com a presença dos monumentos medievais

classificados, nomeadamente castelos, que compensam em grande

medida a ausência de monumentos de outras épocas.

Se atentarmos à distribuição das catedrais (mapa 2), podemos

observar que cinco encontram-se a norte do rio Mondego, havendo

apenas duas no sul do país (Lisboa e Évora) e apenas uma a sul

do Tejo. Tal distribuição não é de estranhar, dado o processo de

reconquista cristã se ter dado de norte para sul, tendo-se o

regime senhorial expandido, como afirma o historiador José

Mattoso, “em vagas sucessivas, que foram ocupando o vale do

Douro, toda a região de Trás-os-Montes, grande parte da Beira

Alta e, depois da conquista de Lisboa, extensas áreas da

Estremadura, do Ribatejo e do Alentejo”43. É de notar que, das 8

dioceses medievais, a únicas catedrais que estão excluídas do

43 José Mattoso, A identificação de um país. Oposição, Lisboa, Círculo deLeitores, 2000, p.245.

20

decreto são a Sé velha de Coimbra (como já foi referido,

integrada na categoria “igrejas”) e a de Silves, a única sé

algarvia medieval44. O Norte, principalmente acima do Mondego,

tinha assim uma forte presença no período da fundação do Reino45,

sendo a catedral um dos maiores símbolos do prestígio e do poder

das cidades medievais cristãs.

44 Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol.I, pp.87-94.Silves na realidade era sede da diocese de Ossonoba, que se encontravamais perto da actual Faro e para onde os bispos se transferiram noséculo XVI.45 Como refere Orlando Ribeiro, as principais fases da reconquista“duraram século e meio até à consolidação do domínio cristão no Douro,dois séculos do Douro ao Mondego, uns oitenta anos deste rio ao Tejo eapenas um século para a ocupação do Alentejo e do Algarve. Em 114anos, durante os cinco primeiros reinados, incorporaram-se noterritório nacional quase dois terços da sua extensão. Tudo ao sul doMondego se passou de maneira diferente do Noroeste. A ocupação árabefoi intensa, profunda e duradoura, sobrevivendo a sua influência […] àdominação muçulmana.” - Orlando Ribeiro, “Portugal” in Dicionário deHistória de Portugal, coord. Joel Serrão, vol.V, p.145.

21

Mapa 2 - Distribuição geográfica das catedrais medievais no decreto dosmonumentos nacionais de 1910

Quanto aos mosteiros (mapa 3), observamos que estes se

concentram na região do “Norte atlântico” (usando a expressão do

22

geógrafo Orlando Ribeiro46). Segundo José Mattoso, o litoral

beirão e o litoral estremenho foram de facto as regiões que o

regime senhorial, fortemente estabelecido na região Entre-Douro-

e-Minho, procurara mais espontaneamente e onde se estabeleceu

com maior facilidade, dadas as características geográficas

favoráveis ao cultivo do solo e ao estabelecimento da

população47. Era de facto no Norte atlântico que desde a Idade

Média se concentrava a maior parte da população portuguesa,

fenómeno que se mantinha e se havia agudizado na época

contemporânea. Assim, se por um lado era a região do país onde

se situavam as cidades principais, onde havia maior circulação

de pessoas, de bens e de ideias, era também a região onde se

haviam estabelecido os mosteiros mais importantes das ordens

religiosas medievais, tendo em conta que vários outros não

estavam sequer classificados no decreto de 1910. A região a

norte do Tejo, nomeadamente a sua parte litoral, compreendia

assim um forte poder simbólico do que havia sido a Idade Média

dos senhorios e dos mosteiros48 para os portugueses da época

contemporânea.

É interessante notar ainda que os oito mosteiros medievais

classificados quase que representam, um a um, as principais

ordens religiosas medievais: hospitalários (Mosteiro de Leça do

Bailio), cónegos de Santo Agostinho (Santa Cruz de Coimbra),

clarissas (Mosteiro de Santa Clara-a-Velha), dominicanos

46 Idem, p.132.47 De acordo com Orlando Ribeiro, o “Norte atlântico […] é o domínio dapolicultura, do gado graúdo, da propriedade retalhada […], centro dumapolicultura complexa e de elevado rendimento, do povoamentodisseminado e das fortes densidades de população.” – Idem.48 “A faixa ocidental compreendida entre o Minho e o Mondego, com a suapopulação densa e o seus quadros sociais estabelecidos desde cedo,desempenhou um papel preponderante na constituição do novo Estado. DoNoroeste saiu a nobreza dos primeiros séculos da Monarquia, os monges-cavaleiros, os senhores que iam ganhando bens com os progressos daReconquista”. – Orlando Ribeiro, p.146.

23

(Batalha), cistercienses masculinos (Alcobaça), templários

(Tomar), cistercienses femininas (Odivelas) e jerónimos (Belém).

Outros locais que poderiam ter sido evocados como o Mosteiro da

Flor da Rosa no Crato, sede dos hospitalários a partir de 135649,

ou o Convento de Palmela da Ordem de Santiago encontram-se na

categoria “igrejas” do decreto. Do mesmo modo, a Ordem de Avis

encontra-se representada pelo castelo da respectiva localidade.

Assim, havendo uma grande quantidade de casas religiosas não

representadas no decreto, nota-se uma preocupação por parte da

comissão que elaborou a lista dos monumentos de, pelo menos,

representar os mosteiros mais importantes para a história da

Nação, procurando ao mesmo tempo simbolizar as ordens religiosas

que haviam desempenhado um papel mais preponderante no período

da fundação e da consolidação do Reino.

49 Ordens religiosas em Portugal: Das origens a Trento – Guia Histórico, dir. BernardoVasconcelos e Sousa, Lisboa, Horizonte, 2005, p.471.

24

Mapa 3 - Distribuição geográfica dos mosteiros medievais no decreto dosmonumentos nacionais de 1910

25

Relativamente aos castelos (mapa 4), a análise espacial

tornou-se mais complexa devido ao seu elevado número face às

catedrais e aos mosteiros – são mais que o triplo que estas duas

categorias combinadas e encontram-se distribuídos de norte a sul

do território nacional. Porém, como vimos já a partir do mapa 1,

há algumas regiões onde se verifica uma rede de castelos e

outras que primam pela sua ausência total ou quase total. Mesmo

tendo em conta os aspectos geográficos do território,

nomeadamente o relevo (nos topo das grandes cordilheiras não há

castelos), e a influência que possam ter tido na distribuição

das fortificações, não deixa de ser intrigante esta

distribuição, pelo que se optou por dividir os castelos segundo

a sua época de fundação. Aqui obteve-se uma análise mais

precisa. Pode-se observar por exemplo, os castelos de fundação

mais antiga (séculos VIII-X), que se situam em antigos núcleos

urbanos muçulmanos do sul do país50 - Sintra, Lisboa, Palmela,

Santiago do Cacém e Silves – e ainda Guimarães (sede do Condado

Portucalense) e Coimbra, cidade por diversas vezes reconquistada

nesse período. Pode-se também observar uma mancha de castelos

dos séculos XI-XII na região compreendida entre os distritos de

Leiria e Coimbra e o norte do distrito de Santarém, com algumas

excepções – Melgaço, Braga, Lanhoso, Feira, Lamego, Guarda e

Alcácer do Sal. Estes eram povoados com uma importância

estratégica fundamental durante o período de formação do Reino,

sendo alguns deles também núcleos urbanos de grande

50 Como afirma José Mattoso, no Sul, “facilmente dominado pelos povosmediterrânicos, Fenícios, Gregos e Cartagineses no litoral, depoisRomanos e Mouros em todo o território, a formação política e adominação não se faziam tanto pela capacidade administrativa e peloaproveitamento das planícies, mas pela conquista das cidades e centrosurbanos, onde a população sempre se concentrou”. – A identificação de umpaís. Oposição, p.33.

26

importância51. De igual modo, podemos observar uma quantidade

impressionante de castelos fundados entre os séculos XIII e XV

nas regiões mais interiores do país, nomeadamente perto da

fronteira, o que se relacionará com a política de construção de

castelos na raia levada a cabo por D. Dinis e por outros reis,

com o objectivo de salvaguardar e consolidar as fronteiras do

Reino já estabelecido52. É interessante notar a grande quantidade

de castelos situados perto da fronteira: Melgaço, Lindoso,

Montalegre, Freixo de Espada-à-Cinta, Sabugal, Castelo de Vide,

Elvas, Vila Viçosa, Noudar e Castro Marim. A importância militar

dos castelos para a conquista e consolidação do território

português parece assim ter sido um factor importante para a sua

inclusão como monumento no decreto, testemunhando o cariz

guerreiro e cavaleiresco do Portugal medieval.

51 José Mattoso salienta a importância defensiva de cidades como Lamegoe Coimbra até à conquista de Lisboa. – Idem, p.253.52 J. Mattoso, A identidade nacional, Gradiva, 1998, p.14.

27

Mapa 4 - Distribuição geográfica dos castelos medievais no decreto dosmonumentos nacionais de 1910, de acordo com o seu século de fundação

28

Por outro lado, é interessante notar a ausência no decreto

de vários castelos cuja importância não era menor - nomeadamente

na Beira Baixa, como Belmonte, Monsanto, Idanha-a-Velha e

Penamacor, mas também em Trás-os-Montes (Chaves, Vinhais), nos

distritos da Guarda (Trancoso, Pinhel, Castelo Rodrigo) e de

Coimbra (Soure) e no Alentejo (Marvão, Monsaraz e Mértola).

Alguns destes castelos só seriam classificados como monumentos

nacionais na República e, a grande maioria, durante o Estado

Novo, sendo neste período que receberam grandes campanhas de

restauro pela Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais

(DGEMN). É importante notar que a classificação de 1910 foi o

primeiro passo para um maior interesse pelo património militar

português, que até aí só fora objecto de interesse por alguns

autores e alguma imprensa, influenciados pelo gosto romântico

pela ruína53.

As concepções que presidiram à classificação dos monumentos

referidos, em especial as sés, os mosteiros e alguns castelos,

reflectem em grande medida um conhecimento do património

português que advinha das gerações anteriores. Se recuarmos até

às duas últimas décadas o XVIII, podemos ver que os relatos do

coleccionador William Beckford sobre as suas viagens por

Portugal (1787 e 1794) se confinam a Lisboa e arredores54, a

Alcobaça e à Batalha, passando por Óbidos55. Já o arquitecto

James Murphy em 1789-90 percorreu as cidades do Porto e de

Coimbra, a região de Leiria (Alcobaça, Batalha e Óbidos), Lisboa

53 O Archivo Pittoresco, por exemplo, dedicou artigos a castelos na alturatão “desconhecidos” como os de Miranda do Douro e de Vinhais – A. E.de Sousa Freire Pimentel, vol.5, 1862, pp.181-182, vol.6, 1863, pp.29-30. 54 Diário de William Beckford em Portugal e Espanha, introd. e notas BoydAlexander, trad. e pref. João Gaspar Simões, Lisboa, BNP, 2009.55 William Beckford, Recollections of an excursion to the monasteries of Alcobaça andBatalha, London, Richard Bentley (pub.), printed by Samuel Bentley,1835.

29

e arredores, indo também a Alcácer do Sal, Évora e Beja56. Os

monumentos mais realçados pelos dois viajantes ingleses são

obviamente os grandes mosteiros medievais, Alcobaça e a

Batalha57, que causam uma enorme impressão pela sua arquitectura

e por evocarem uma vida monástica, católica, que em Inglaterra

já não existia58.

Os guias de viagens e de monumentos do século XIX seguem a

linha dos tours preferidos pelos estrangeiros que vinham ao país.

Focam essencialmente Lisboa e arredores, bem como as maiores

cidades (Porto, Braga, Coimbra, Évora), com as suas sés, igrejas

e castelos medievais. Outros sítios frequentemente referidos

devido aos seus monumentos medievais são Guimarães, Alcobaça,

Batalha e Tomar. À medida que os anos vão passando e o número de

viajantes cresce (acompanhando a construção de estradas e de

caminhos-de-ferro durante a segunda metade do século XIX), o

tamanho e o nível de detalhe dos guias aumenta, passando a

incluir vários monumentos em sítios específicos, como é o caso

dos castelos59 e de algumas igrejas, como o Mosteiro de Leça do

Bailio.

56 James Murphy, Travels in Portugal through the Provinces of Entre Douro e Minho, Beira,Estremadura, and Alem-Tejo, in the years 1789 and 1790: Consisting of Observations on theManners, Customs, Trade, Public Buildings, Arts, Antiquities, &c. of that Kingdom Buildings,Arts, Antiquities, etc. of that Kingdom, London, A. Strahan, and T. Cadell Jun.and W. Davies, 1795.57 J. Murphy fez inclusive um conjunto de esboços do Mosteiro daBatalha que teriam uma grande influência nos trabalhos de restauro domonumento ao longo do século XIX. – James Murphy, Plans, elevations, sectionsand views of the Church of Batalha, London, printed for I. & J. Taylor, HighHolborn, 1795.58 Paulo Simões Rodrigues, Património, identidade e história, p.38.59 Dos guias consultados, o Indicador dos objectos mais curiosos e de algunsmonumentos históricos do Reino de Portugal, coord. António Joaquim Alvares, Riode Janeiro, 1856 é o primeiro a incluir uma lista considerável decastelos: Feira, Leiria, Alcobaça, Óbidos, Tomar, Almourol, Sintra,Vila Viçosa, Avis, Estremoz e Moura, bem como as muralhas das cidadesde Évora e Braga.

30

No entanto, os itinerários principais continuariam a ser os

tradicionais. Veja-se por exemplo o percurso realizado por

Ramalho Ortigão nas suas viagens por Portugal na década de 80 do

século XIX, que são descritas n’ As Farpas60. Segundo a

historiadora Alice Alves, o objectivo de Ramalho nestes textos

era o de apelar ao “nacionalismo, ao amor pela terra portuguesa,

costumes, tradições e à glória histórica, em alguns casos

testemunhada pelos monumentos portadores até ao momento

contemporâneo da prova física da existência desse

desenvolvimento histórico”61. A autora considera que estas

descrições do país tiveram uma grande influência no

desenvolvimento da nova corrente literária neoromântica do final

do século XIX e princípios do século XX denominada

“neogarrettismo”, que apelava a um retorno à terra e à

redescoberta dos valores nacionais no contacto com o povo e com

as suas tradições e modos de vida62. De facto, a província de

eleição para Ortigão é o Entre-Douro-e-Minho, descrito como um

local de quietude bucólica, imbuído por uma aurea mediocritas e um

viver autêntico, simples (mas não miserável63), em que a cidade

de Viana é descrita como um sítio pacato, longe do rebuliço das

grandes metrópoles. Ortigão viaja também pela zona do Douro

(Régua), pela Estremadura (Caldas da Rainha e Óbidos) e oferece

ainda um ensaio sobre o mosteiro de Alcobaça. Porém, nenhuma

região lhe deixa uma impressão tão forte como o Minho, local

onde o autor parece buscar o “Portugal autêntico”. Esta não era,

60 As Farpas, Tomo I: A vida provincial, Lisboa, Comp. Nac. Editora,1887.61 Alice Alves, p.56.62 Idem, p.57.63 “Dentro desta zona não há grandes proprietários, não há gente muitorica, e não há miséria. Muitas casas pequenas. Nem uma só casa emruínas, como na Beira, como no Douro”. - Ortigão, As Farpas completas. Opaís e a sociedade portuguesa, vol. I, ed. Ernesto Rodrigues, Círculo deLeitores, 2006, p.10.

31

no entanto, uma ideia inovadora para a altura, pois a imagem do

Minho como um autêntico “paraíso terreal” vinha já de há muitos

séculos atrás. A fertilidade do solo, a excelência do clima, a

abundância de água, árvores, ervas e flores e dos melhores

produtos do país, bem como a fecundidade das suas gentes eram

constantemente lembrados por escritores que reconheciam, além

disso, o Entre-Douro-e-Minho como o núcleo primitivo do

território do reino, nunca conspurcado pela presença árabe, de

onde partira a reconquista do Sul. Era também desta província

que provinham as mais antigas casas nobres, bem como as mais

antigas ordens religiosas e a própria organização eclesiástica

(o arcebispado de Braga como “primaz das Espanhas”, o mais

antigo bispado ibérico)64.

A imagem de um Portugal centrado nas regiões litorais,

especialmente a norte do Tejo, continuava assim a reflectir-se

nos percursos dos viajantes. A título de exemplo, o Mapa

Excursionista da Sociedade Propaganda de Portugal, de 1907,

mencionava como “lugares que merecem ser visitados” em Portugal

o Porto, Coimbra, Leiria, a Batalha, Alcobaça, Tomar, Santarém,

Sintra, Palmela e Évora65. O Guia do Viajante da Empresa Nacional de

Navegação, do mesmo ano, propunha um roteiro de Portugal em 11

dias que se resumia a Lisboa (4 dias), Sintra e Colares (5º e 6º

dias), Estoris e Cascais (7º dia), Mafra e Ericeira (8º dia),

Alcobaça, Batalha e Leiria (9º e 10º dias) e Tomar (11º dia)66.

Já o Manual do Viajante em Portugal, de Leonildo de Mendonça e Costa,

também publicado em 1907, alargava este percurso (agora de 8

64 Ana Cristina Nogueira da Silva; António Manuel Hespanha, “Aidentidade portuguesa” in História de Portugal, dir. José Mattoso, vol.4,coord. António Manuel Hespanha, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993,pp.26-27.65 Mapa Excursionista de Portugal, Sociedade Propaganda de Portugal, Lisboa,Lith. de Portugal, 1907. 66 Guia do Viajante em Portugal e suas colónias em África, Lisboa, Typ. deChristovão Augusto Rodrigues, 1907, p.61.

32

dias) às cidades do Porto e de Coimbra, sendo que para visitar

lugares históricos como Braga e Guimarães propunha um plano de

excursões de 15 dias, deixando lugares como Viana do Castelo,

Viseu, Santarém, Setúbal, Palmela, Évora, Beja, Faro e Silves

para um percurso de 30 dias67. Podemos perceber a partir destes

dados relativos ao turismo uma clara hierarquia de lugares, em

que o litoral predomina claramente sobre as regiões do interior

de Portugal e o Norte sobre as regiões a sul do rio Tejo. Estas

diferenças baseiam-se, como vimos, na distribuição da população

portuguesa, concentrada historicamente no “Norte atlântico”, e

numa imagem do território que se construiu ao longo dos séculos.

Conclusão

Podemos assim concluir que a classificação dos monumentos

nacionais foi um processo com longos antecedentes e que foi

vítima de inúmeros atrasos resultantes das circunstâncias

políticas e económicas, de algum desinteresse ou ignorância em

relação ao património e das indecisões e impasses por parte do

poder central. 1910 representa assim um ponto de chegada dos

esforços feitos ao longo do século anterior para legislar sobre

a matéria, mas também um ponto de partida para os esforços mais

consertados e sistemáticos de inventariar, proteger e restaurar

o património nas décadas seguintes.

No campo do património arquitectónico, as catedrais, os

mosteiros, as igrejas e os castelos foram os monumentos

medievais que melhor simbolizaram a época medieval. Porém, estes

monumentos, fruto de uma imagem do país que se construíra ao

67 Manual do Viajante em Portugal, Leonildo de Mendonça e Costa (coord.),Lisboa, Tipografia da Gazeta dos Caminhos de Ferro, 1907, p.VIII.

33

longo dos séculos anteriores, estavam centrados essencialmente

numa região – o Norte atlântico – a qual era conhecida dos

viajantes. Não obstante esta imagem do Portugal medieval, o

decreto dos monumentos nacionais de 1910 revela uma tentativa de

descobrir novos locais da medievalidade e, como tal, da

nacionalidade portuguesa – concretamente, os castelos do

interior do país. Este processo culminaria nos programas de

restauro destes edifícios durante o Estado Novo, período durante

o qual a descoberta “nacionalista” de Portugal atingiu o seu

apogeu. Na realidade, a classificação dos monumentos inseriu-se

num vasto processo, veiculado entre as últimas décadas do século

XIX (principalmente a partir da crise do Ultimato em 1890) e o

princípio do século XX, e que Rui Ramos chama “o

reaportuguesamento de Portugal”68 – neste período, através do

contributo de vários escritores, artistas, historiadores,

etnógrafos e intelectuais que evocaram, descreveram e estudaram

os lugares, tradições e obras de arte de todo o país, foi-se

generalizando a toda a população uma ideia de nacionalidade. A

Idade Média, época da fundação desta nacionalidade, foi assim

também evocada através dos seus lugares e monumentos mais

importantes.

Fontes

Archivo Pittoresco. Semanario Illustrado, Lisboa, Tip. Castro Irmão, 1857-

1868.

Archivo Popular, Semanario Pintoresco, nº26, Lisboa, Typ. de A.J.C. da

Cruz, 23 de Setembro de 1837.

68 Rui Ramos, História de Portugal, dir. José Mattoso, vol.6, Lisboa,Círculo de Leitores, 1994, p.581.

34

BARBOSA, Ignácio Vilhena de, Monumentos de Portugal. Historicos, artisticos

e archeologicos, Lisboa, Castro Irmão, 1886.

BECKFORD, William, Diário de William Beckford em Portugal e Espanha,

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