A saúde enquanto direito fundamental e sua temática na questão da eficácia das normas...

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PARECER 1 Marcelo Pichioli da Silveira Advogado OAB/PR 70.263 Consulta-me o Advogado YYYYYsobre a possibilidade de lograr êxito em pedido de antecipação de tutela de obrigação de fazer para o fito de obter do Estado mais precisamente da Unidade Federada de Santa Catarina e do Município de “xxx” um procedimento cirúrgico (prótese para a mastectomia) pelo assim chamado Sistema Único de Saúde (SUS), na paciente XXXXX. Segundo informações rapidamente repassadas (o que se atrela ao caráter de urgência da consulta), tem-se o seguinte: a) que a paciente XXXXXnecessita de ato cirúrgico, denominado “prótese para mastectomia”; b) que a prótese é, em si, indispensável para o tratamento de XXXXX; c) que a cirurgia não tem objetivo abarcado, unicamente, por questões de índole estética; d) que a cirurgia não se liga, necessariamente, aos aspectos de caráter fisiológico e/ou morfológico da paciente; e) que a prótese é indispensável para a saúde e para o tratamento de XXXXX; e f) que a prótese mamária é imprescindível para a vida de XXXXX. * * * A saúde enquanto direito fundamental e sua temática na questão da eficácia das normas constitucionais Como se sabe, o direito à saúde constitui um direito social, ancorado no art. 6º, caput, da Constituição Federal de 1988. Apesar de a dogmática constitucional divergir a respeito da “posição topográfica” e da natureza jurídica dos direitos fundamentais constantes da CF/1988 2 , é bem verdade que a saúde é “um direito 1 Elaborado em março de 2014. 2 O que tem interesse prático apenas na discussão a respeito dos limites materiais do chamado “poder constituinte de reforma”, ante ao fato de o art. 60, § 4º, inciso IV, da CF, “ter feito referência (expressa) aos direitos e garantias individuais”, o que deu ensejo a uma considerável controvérsia no seio da doutrina constitucional brasileira”, daí advindo os debates em relação à questão de “se os direitos sociais foram, ou não,

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PARECER 1

Marcelo Pichioli da Silveira

Advogado – OAB/PR 70.263

Consulta-me o Advogado “YYYYY” sobre a possibilidade de lograr

êxito em pedido de antecipação de tutela de obrigação de fazer para o fito

de obter do Estado – mais precisamente da Unidade Federada de Santa

Catarina e do Município de “xxx” – um procedimento cirúrgico (“prótese

para a mastectomia”) pelo assim chamado Sistema Único de Saúde (SUS),

na paciente “XXXXX”.

Segundo informações rapidamente repassadas (o que se atrela ao

caráter de urgência da consulta), tem-se o seguinte: a) que a paciente

“XXXXX” necessita de ato cirúrgico, denominado “prótese para

mastectomia”; b) que a prótese é, em si, indispensável para o tratamento de

“XXXXX”; c) que a cirurgia não tem objetivo abarcado, unicamente, por

questões de índole estética; d) que a cirurgia não se liga, necessariamente,

aos aspectos de caráter fisiológico e/ou morfológico da paciente; e) que a

prótese é indispensável para a saúde e para o tratamento de “XXXXX”; e f)

que a prótese mamária é imprescindível para a vida de “XXXXX”.

* * *

A saúde enquanto direito fundamental e sua temática na questão da

eficácia das normas constitucionais

Como se sabe, o direito à saúde constitui um direito social,

ancorado no art. 6º, caput, da Constituição Federal de 1988.

Apesar de a dogmática constitucional divergir a respeito da

“posição topográfica” e da natureza jurídica dos direitos fundamentais

constantes da CF/19882, é bem verdade que a saúde é “um direito

1 Elaborado em março de 2014.

2 O que tem interesse prático apenas na discussão a respeito dos limites materiais do

chamado “poder constituinte de reforma”, ante ao fato de o art. 60, § 4º, inciso IV, da

CF, “ter feito referência (expressa) aos direitos e garantias individuais”, o que “deu

ensejo a uma considerável controvérsia no seio da doutrina constitucional brasileira”,

daí advindo os debates em relação à questão de “se os direitos sociais foram, ou não,

constitucional de todos” e, ao mesmo tempo, um “dever do Estado, no

sentido amplo de Poder Público”3. Em sede doutrinária, o Ministro do

Supremo Tribunal Federal, GILMAR FERREIRA MENDES, enxerga esse

“dever fundamental” do Estado de maneira horizontal, porque aí se

inseriria não apenas a União, mas, também, os Estados, o Distrito Federal e

os Municípios4-5

.

Ao mesmo tempo, o tema recebeu atenções da doutrina também a

respeito da sua colocação enquanto aspecto pontual e inerente ao problema

da assim chamada “eficácia dos direitos fundamentais”, cuja

sistematização de JOSÉ AFONSO DA SILVA recebeu (e recebe, até hoje) a

maior adesão por parte da literatura constitucional nacional6. Em apertada

síntese, JOSÉ AFONSO DA SILVA aduz que as normas constitucionais podem

ser encaradas em três grandes grupos: i) normas de eficácia plena; ii)

normas de eficácia contida; e iii) normas de eficácia limitada. As normas

constitucionais de eficácia plena seriam aquelas que não demandariam

quaisquer tarefas do legislador ordinário. As normas constitucionais de

eficácia contida seriam “aquelas em que o legislador constituinte regulou

suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou

margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do

contemplados com a proteção inerente às ‘cláusulas pétreas’” (cf. SARLET, Ingo

Wolfgang. Do Poder Constituinte e da Mudança Constitucional. In: ______;

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 143). 3 SLABI, Maria Cristina Barros Gutierrez. Direito fundamental à Saúde – tutela de

urgência. Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:

<http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=11c201f6-5bf6-4e44-b4d8-

137441e3d826&groupId=10136>. Acesso em 25 mar. 2013. 4 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Sociais. In: ______; GONET BRANCO, Paulo

Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 686. 5 O que justifica e explica a pertinência subjetiva processual (= legitimidade passiva) de

Santa Catarina e do Município onde “XXXXX” procura realizar o ato cirúrgico objeto da

obrigação de fazer. Interessa, aqui, a leitura do parágrafo único do art. 23 da CF: “Leis

complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do

bem-estar em âmbito nacional”, redação esta que evidencia uma visão de federalismo

cooperativo a ser atribuída ao Sistema Único de Saúde, que “há de ser estruturado com

caráter interestatal” (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Sociais. In: ______; GONET

BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011, p.

692). 6 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Do Poder Constituinte e da Mudança Constitucional. In:

______; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito

Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 178.

Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos

gerais nela enunciados”7. Finalmente, as normas de eficácia limitada

guardariam conexão a aqueles dispositivos que têm sua aplicabilidade

efetivamente reduzida, não podendo operar, por si sós, no plano real.

Reclamariam, pois, um processo legislativo específico8.

Referida classificação é digna de nota porque os argumentos mais

usuais (verdadeiros chavões) do “Poder Público” (na seara judicial,

inclusive) são os seguintes: “(a) o art. 196 da Constituição Federal, que

assegura a todos o direito à saúde, sendo este um dever do Estado, não tem

o alcance e a dimensão que lhe vem sendo atribuído pelo Judiciário, já que

se trata de norma constitucional de eficácia contida ou limitada; (b) que o

fornecimento de qualquer medicamento pelo Estado tem que observar a

Política Nacional de Medicamentos do Ministério da Saúde, que estabelece

Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para cada doença; (c) que a

Constituição Federal tem como ponto de partida a reserva do possível,

significando dizer que os direitos sociais só podem ser respeitados quando

houver recursos financeiros públicos suficientes para isso; e (d) que o

Poder Judiciário não tem competência para decidir sobre a alocação e

destinação de recursos públicos”9.

Eis, aqui, um compêndio geral das alegações feitas pelo Poder

Público em situações similares ao caso de “XXXXX”. Vejamos as teses10

,

uma a uma, rebatendo-a para o fim deste parecer: auxiliar a elaboração de

peça processual apta a conseguir deferimento de antecipação de tutela de

obrigação de fazer.

7 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1982, p. 79 e 105. 8 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1982, p. 79, 106 e seguintes. 9 O resumo é de PAULO CÉSAR VIEIRA TAVARES, Promotor de Justiça lotado a 24º

Promotoria de Justiça da Comarca de Londrina/PR. Cf. TAVARES, Paulo César Vieira.

A Saúde como Direito Fundamental Social e as objeções habitualmente dirigidas pelo

Estado contra sua plena efetividade na área dos medicamentos excepcionais. Ministério

Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível em

<http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014. 10

Essas quatro teses se apoiam, ora mais, ora menos, na lição (fadada ao insucesso) de

que o direito à saúde não pode ser visto como uma norma constitucional de eficácia

plena, tal como se referia JOSÉ AFONSO DA SILVA. Falamos em insucesso da visão

porque, segundo pensamos, o direito à saúde merece atenção atrelada à dignidade da

pessoa, fundamento da República devidamente consagrado no texto constitucional (art.

1º, inciso III, da CF/1988).

a) O art. 196 da Constituição Federal, ao assegurar – para

todos – o direito à saúde, acabou criando um dever de prestação positiva

do Estado.

Como visto, a primeira e usual tese do Poder Público para negar a

tomada de atitudes concretas que viabilizem a prestação do direito

fundamental a saúde é a de rotulá-lo como sendo-o de “eficácia contida”

ou de “eficácia limitada”.

Em que pese existir divergência doutrinária a respeito do assunto, é

bem verdade que a redação do art. 196 da CF, ao descentralizar os serviços

e conjugar os recursos financeiros dos entes da Federação, acabou se

traduzindo como uma evidência, dada pelo legislador constitucional, de

que o Estado deve, sempre, buscar melhorias e permitir o franco acesso

aos serviços disponibilizados pelo SUS. Não é sem razão, que se fala que a

União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios carregam a missão de

mãos dadas, sendo “responsáveis solidários pela saúde [...] e, dessa forma,

são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a negativa,

pelo SUS [...], de prestações na área da saúde” 11

.

Qualquer hermenêutica teleológica que se preze concluiria que o

direito à saúde tem eficácia imediata12

, o que vem de encontro ao

entendimento também ancorado pelo Supremo no sentido de que o art. 196

da Constituição (portanto, o direito à saúde) se atrela “à efetivação de

políticas públicas que alcancem a população como um todo”13

e ao

postulado do acesso igualitário e universal, “sem preconceitos ou

11

Fragmento do voto elaborado pelo Ministro GILMAR FERREIRA MENDES no Agravo

Regimental contra decisão proferida em pedido de suspensão de tutela antecipada, cujo

entendimento foi seguido pelo STF, por unanimidade (DJ 17.03.2010, STA 178 e 175-

AgR). 12

“O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por

destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a

organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa

constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas

expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o

cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade

governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado” (STF, AgRg no

RE nº 271.286-8/RS. Rel. Min. CELSO DE MELLO. DJ 12.09.2000). 13

STF, STA 91-1/AL. Min. ELLEN GRACIE. DJ 26.02.2007.

privilégios de qualquer espécie” (CF, art. 7º, inciso IV, da Lei nº

8.080/199014

).

b) A Constituição Federal de 1988 deve prevalecer sobre

quaisquer “portarias” e/ou “protocolos clínicos” que venham a obstar

a concretização da pretensão buscada pela paciente “XXXXX”.

Um argumento também usualmente feito pelo Poder Público, vimos

acima, é o de fundamentar no sentido de que “o fornecimento de qualquer

medicamento pelo Estado tem que observar a Política Nacional de

Medicamentos do Ministério da Saúde, que estabelece Protocolos Clínicos

e Diretrizes Terapêuticas para cada doença”15

.

O problema dessa arguição reside no fato de, muitas vezes, o

usuário do SUS se deparar com patologias graves que demandam um

tratamento ou algum remédio de órbita realmente excepcional, e –

justamente por esse caráter extraordinário – que não venha a aparecer em

alguma dessas “listas oficiais”.

Segundo pensamos, portaria ministerial alguma pode obstar a

concessão da tutela antecipada para a pessoa de “XXXXX”. Na verdade,

não é nem razoável imaginar que mera portaria ou protocolo clínico do

Ministério da Saúde possa ter peso normativo maior que a Constituição16

.

Tem decidido o Supremo Tribunal Federal que “o caráter

programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por

destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional,

a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em

promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público,

fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade,

substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável

14

“Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a

organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”. 15

TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental Social e as

objeções habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na área dos

medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível

em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014. 16

Assim, também, TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental

Social e as objeções habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na

área dos medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005.

Disponível em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014.

dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que

determina a própria Lei Fundamental do Estado” 17

.

c) Não é correto invocar, para os casos como este vivenciado

por “XXXXX”, a chamada “reserva do possível”

Como visto acima, a terceira tese usual de negação do Poder

Público se resume a dizer que a CF “tem como ponto de partida a reserva

do possível, significando dizer que os direitos sociais só podem ser

respeitados quando houver recursos financeiros públicos suficientes para

isso”18

. Na verdade, quando o Estado se utiliza dessa “desculpa”, está

afirmando que o direito social “x” ou “y” só merece respeito quando forem

suficientes os recursos financeiros.

Contra o argumento, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, talvez o

maior constitucionalista português da atualidade, comenta que “um direito

social sob ‘reserva dos cofres cheios’ equivale, na prática, a nenhuma

vinculação jurídica”, sendo cediço que “os direitos fundamentais sociais

consagrados em normas da Constituição dispõem de vinculatividade

normativo-constitucional” e que “as tarefas constitucionalmente impostas

ao Estado” demandam a “edição de medidas concretas e determinadas, e

não em promessas vagas e abstratas” 19

.

Entretanto, o Poder Público não pode alegar que o direito à saúde

de “XXXXX” está a observar, pura e simplesmente, uma “reserva do

possível”, cláusula esta que “não pode ser invocada [...] com o propósito

de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas

públicas definidas na própria Constituição [...]”, uma vez que “a noção de

‘mínimo existencial [...] compreende um complexo de prerrogativas cuja

concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de

existência digna, em ordem de assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao

direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do

Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais

como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do

17

STF, AgRg no RE nº 271.286-8/RS. Rel. Min. CELSO DE MELLO. DJ 12.09.2000. 18

TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental Social e as

objeções habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na área dos

medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível

em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014. 19

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

Coimbra: Almedina, 2003, p. 481-482.

adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à

alimentação e o direito à segurança”20

.

Neste ínterim, o E. Tribunal de Justiça de Santa Catarina parece

seguir os entendimentos que aqui defendemos, embora crie um ou outro

critério razoável. Apenas para exemplificar, em caso menos urgente do que

este em debate, o TJSC negou provimento de “remessa oficial” (ou do

assim chamado “reexame necessário”) nos autos de Mandado de

Segurança nº 2013.022869-1, cujo relatório coube ao Desembargador

JAIME RAMOS. Na fundamentação do decisum, ficou expresso que o direito

à educação (do mesmo porte que tem a saúde: “direito social”) constitui

uma “obrigação do Poder Público”, e que a invocação da “reserva do

possível” tem como requisito a “prova da absoluta falta de recursos para

realização de direito fundamental” 21

. Este precedente tem sido observado

e respeitado pelo referido Tribunal em vários outros julgados22

, havendo,

inclusive, decisões permitindo a sequestro de valores da conta bancária do

Estado para garantir o pagamento e o custeio da medida que for

necessária:

“Agravo de Instrumento. Decisão que negou tutela antecipada

para realização de cirurgia [...]. Risco de sequela. [...].

Descaso do Poder Público. Provimento do recurso para

deferimento da liminar. Irreversibilidade dos efeitos da

medida. Direito à saúde. Aplicação do Princípio da

Proporcionalidade. Prevalência sobre o Direito Patrimonial

dos Entes Públicos. Cláusula de Reserva do possível –

inaplicabilidade. Sequestro de valores da conta bancária do

Estado para Custear o tratamento se este não for

disponibilizado no prazo dado. Possibilidade” 23

.

20

STF, AgRg no AgRE nº 639.337. Rel. Min. CELSO DE MELLO, 2ª Turma. DJ

23.08.2011. Grifos meus. 21

TJSC. Reexame Necessário no MS nº 2013.022869-1. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª

Câmara de Direito Público. DJ 13.03.2014. 22

Como, e. g., nos que seguem mencionados: TJSC, Reexame Necessário no MS nº

2014.001994-7. Rel. Des. JÚLIO CÉSAR KNOLL, 4ª Câmara de Direito Público. DJ

06.03.2014; TJSC, Apelação Cível nº 2012.057330-4. Rel. Des. NEWTON TRISOTTO, 1ª

Câmara de Direito Público. DJ 25.02.2014; TJSC, Apelação Cível nº 2013.089666-9. Rel.

Des. NEWTON TRISOTTO, 1ª Câmara de Direito Público. DJ 25.02.2014; TJSC, Agravo de

Instrumento nº 2013.060690-5. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª Câmara de Direito Público.

DJ 13.02.2014; TJSC, Reexame Necessário no MS nº 2013.065123-0. Rel. Des. NELSON

SCHAEFER MARTINS, 2ª Câmara de Direito Público. DJ 05.11.2013 etc. 23

TJSC, Agravo de Instrumento nº 2013.061581-8. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª Câmara

de Direito Público. DJ 21.11.2013. Grifos meus.

Referido julgado (e há várias decisões do próprio E. TJSC neste

sentido) teve o mérito de deixar claro que a condição financeira de qualquer

ente, público que seja, não pode obstar o atendimento imediato de alguém

que necessita de determinado atendimento médico, porque evidente que o

“direito à saúde e à vida [...] se sobrepõem aos interesses financeiros do

Ente Público demandado”24

-25

.

d) O Poder Judiciário do século XXI tem uma função social, e o

papel atual da Jurisdição é fornecer eficácia aos direitos fundamentais

A quarta e última alegação que o Poder Público possa vir a invocar

na ação a ser movida por “XXXXX” é, como visto, a de que “o Poder

Judiciário não tem competência para decidir sobre a alocação e destinação

de recursos públicos”26

. O argumento, porém, é “natimorto”, não passando

de repetição da “reserva do possível” (cf. item “c”, supra) travestida de

outras palavras. O aspecto financeiro não tem cunho axiológico suficiente

para esbarrar a concessão da tutela antecipada a que pretende “XXXXX”.

Uma famosa construção teórica de FRANCISCO CAVALCANTI

PONTES DE MIRANDA parte do pressuposto de que os entes públicos são, na

verdade, “presentados em juízo” (e não “representados”). Eram assim os

comentários de PONTES DE MIRANDA ao art. 12 do CPC: “por vezes, as leis

erram: põem ‘representadas’ por ‘presentadas’” 27

, sendo que tal norma

“diz que os seres sociais por ela apontados são ‘representados em juízo,

ativa ou passivamente’, erra palmarmente, sempre que não houve outorgar

de poderes e sim função de órgãos” 28

. Em outras palavras, significa dizer,

24

TJSC, Apelação Cível nº 2013.053285-1. Rel. Des. JOSÉ VOLPATO DE SOUZA, 4ª

Câmara de Direito Público. DJ 24.10.2013. 25

Por isso, aliás, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que é possível fixar multa

diária (astreintes), de ofício, inclusive, “mesmo sendo contra pessoa jurídica de direito

público (Fazenda Estadual), que ficará obrigada a suportá-las caso não cumpra a

obrigação de fazer no prazo estipulado” (STJ, REsp nº 201.378/SP. Rel. Min.

FERNANDO GONÇALVES, 6º Turma. DJ 21.06.1999. 26

TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental Social e as

objeções habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na área dos

medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível

em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014. 27

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo

Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. I, p. 267. 28

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo

Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. I, p. 319.

p. ex., que o Estado se faz presente (= é presentado) na ideia fornecida por

PONTES DE MIRANDA, aí não havendo mera representação.

Os novos ventos teóricos do conceito de jurisdição podem se servir

da mencionada tese, desta vez para sustentar que o Juiz, em uma lide,

presenta (também!) o Estado. Construindo sua própria teoria geral do

processo (e, assim, sua própria concepção de Jurisdição), LUIZ GUILHERME

BITTENCOURT MARINONI sustenta ser impossível, “diante da

transformação da concepção de direito”, manter em vigor “as antigas

teorias da jurisdição”, agora valendo somente a ideia de que “a jurisdição

tem o dever de aplicar a lei na dimensão dos direitos fundamentais, fazendo

sempre o resgate dos valores substanciais neles contidos”29

. Assim,

inegavelmente, o Juiz (e aqui se fala não apenas na ideia de “Estado-Juiz”,

mas também no Magistrado enquanto pessoa natural, que presenta o

Estado e, portanto, os objetivos estatais) deve ser encarado como um meio, e

não como um fim em si mesmo30

.

Quer se dizer que, ao ser deferida a tutela antecipada para a

paciente “XXXXX”, o Judiciário não estará violando o regramento geral da

separação de poderes. Na verdade, a tutela jurisdicional neste sentido só

fará cumprir a missão que o neoconstitucionalismo lhe outorgou: subordinar

tudo à Constituição, apreciando criticamente a lei (e também a omissão da

lei!31

) em face da Constituição32

. Ad argumentandum, a concessão da

tutela antecipada para a pessoa de “XXXXX” nada mais é do que o

estrito cumprimento de uma previsão legal, ante ao que dispõe o art. 2º,

§§ 1º e 2º, da Lei nº 9.797/199933

, com redação dada pela Lei nº

12.802/2013:

29

MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2013, p. 149. 30

Em termos muitos parecidos, cf. MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa

Arruda Alvim. Processo Civil Moderno – Parte Geral e Processo de Conhecimento. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 48 e seguintes. 31

Daí o mandado de injunção, instrumento apto a ser utilizado “sempre que a falta de

norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades

constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à

cidadania” (CF, art. 5º, inciso LXXI). 32

MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2013, p. 46. 33

“Dispõe sobre a obrigatoriedade da cirurgia plástica reparadora da mama pela rede

de unidades integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS nos casos de mutilação

decorrentes de tratamento de câncer”.

“Art. 2o Cabe ao Sistema Único de Saúde - SUS, por meio de

sua rede de unidades públicas ou conveniadas, prestar serviço

de cirurgia plástica reconstrutiva de mama prevista no art. 1o,

utilizando-se de todos os meios e técnicas necessárias.

§ 1o Quando existirem condições técnicas, a reconstrução será

efetuada no mesmo tempo cirúrgico. (Incluído pela Lei nº

12.802. de 2013)

§ 2o No caso de impossibilidade de reconstrução imediata, a

paciente será encaminhada para acompanhamento e terá

garantida a realização da cirurgia imediatamente após

alcançar as condições clínicas requeridas. (Incluído pela Lei nº

12.802. de 2013)”.

Destarte, fica afastada, de vez, a plausibilidade de se defender

eventual ofensa à tripartição dos Poderes.

Para concluir, vale o lembrete de uma lição de GILMAR FERREIRA

MENDES, o qual, com boa dose de crítica, rebate todo e qualquer raciocínio

que possa significar óbice maior para a concessão da tutela antecipada:

“no Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em

termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na

criação e implementação de políticas públicas em matéria de

saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é

apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de

políticas públicas já existentes”34

.

Maringá/PR, 25 de março de 2014.

É o parecer, s. m. j.

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA

Advogado – OAB/PR nº 70.263

34

STF, STA 178 e 175-AgR. Rel. Min. GILMAR FERREIRA MENDES. DJ 17.03.2010.

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA E JULGADOS CITADOS NESTE PARECER

Doutrina

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

Coimbra: Almedina, 2003.

MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2013.

MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo Civil

Moderno – Parte Geral e Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2011.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Sociais. In: ______; GONET BRANCO, Paulo

Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo

Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. I.

SARLET, Ingo Wolfgang. Do Poder Constituinte e da Mudança Constitucional. In:

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Julgados & precedentes

― Do Supremo Tribunal Federal

STF, AgRg no RE nº 271.286-8/RS. Rel. Min. CELSO DE MELLO. DJ 12.09.2000.

STF, STA 91-1/AL. Min. ELLEN GRACIE. DJ 26.02.2007.

STF, AgRg no AgRE nº 639.337. Rel. Min. CELSO DE MELLO, 2ª Turma. DJ 23.08.2011.

STF, STA 178 e 175-AgR. Rel. Min. GILMAR FERREIRA MENDES. DJ 17.03.2010.

― Do Superior Tribunal de Justiça

STJ, REsp nº 201.378/SP. Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, 6º Turma. DJ 21.06.1999.

― Do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

TJSC, Reexame Necessário no MS nº 2013.022869-1. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª

Câmara de Direito Público. DJ 13.03.2014.

TJSC, Reexame Necessário no MS nº 2014.001994-7. Rel. Des. JÚLIO CÉSAR KNOLL, 4ª

Câmara de Direito Público. DJ 06.03.2014

TJSC, Apelação Cível nº 2012.057330-4. Rel. Des. NEWTON TRISOTTO, 1ª Câmara de

Direito Público. DJ 25.02.2014

TJSC, Apelação Cível nº 2013.089666-9. Rel. Des. NEWTON TRISOTTO, 1ª Câmara de

Direito Público. DJ 25.02.2014

TJSC, Agravo de Instrumento nº 2013.060690-5. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª Câmara de

Direito Público. DJ 13.02.2014

TJSC, Reexame Necessário no MS nº 2013.065123-0. Rel. Des. NELSON SCHAEFER

MARTINS, 2ª Câmara de Direito Público. DJ 05.11.2013 etc.

TJSC, Agravo de Instrumento nº 2013.061581-8. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª Câmara de

Direito Público. DJ 21.11.2013.

TJSC, Apelação Cível nº 2013.053285-1. Rel. Des. JOSÉ VOLPATO DE SOUZA, 4ª Câmara

de Direito Público. DJ 24.10.2013.