A saúde enquanto direito fundamental e sua temática na questão da eficácia das normas...
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PARECER 1
Marcelo Pichioli da Silveira
Advogado – OAB/PR 70.263
Consulta-me o Advogado “YYYYY” sobre a possibilidade de lograr
êxito em pedido de antecipação de tutela de obrigação de fazer para o fito
de obter do Estado – mais precisamente da Unidade Federada de Santa
Catarina e do Município de “xxx” – um procedimento cirúrgico (“prótese
para a mastectomia”) pelo assim chamado Sistema Único de Saúde (SUS),
na paciente “XXXXX”.
Segundo informações rapidamente repassadas (o que se atrela ao
caráter de urgência da consulta), tem-se o seguinte: a) que a paciente
“XXXXX” necessita de ato cirúrgico, denominado “prótese para
mastectomia”; b) que a prótese é, em si, indispensável para o tratamento de
“XXXXX”; c) que a cirurgia não tem objetivo abarcado, unicamente, por
questões de índole estética; d) que a cirurgia não se liga, necessariamente,
aos aspectos de caráter fisiológico e/ou morfológico da paciente; e) que a
prótese é indispensável para a saúde e para o tratamento de “XXXXX”; e f)
que a prótese mamária é imprescindível para a vida de “XXXXX”.
* * *
A saúde enquanto direito fundamental e sua temática na questão da
eficácia das normas constitucionais
Como se sabe, o direito à saúde constitui um direito social,
ancorado no art. 6º, caput, da Constituição Federal de 1988.
Apesar de a dogmática constitucional divergir a respeito da
“posição topográfica” e da natureza jurídica dos direitos fundamentais
constantes da CF/19882, é bem verdade que a saúde é “um direito
1 Elaborado em março de 2014.
2 O que tem interesse prático apenas na discussão a respeito dos limites materiais do
chamado “poder constituinte de reforma”, ante ao fato de o art. 60, § 4º, inciso IV, da
CF, “ter feito referência (expressa) aos direitos e garantias individuais”, o que “deu
ensejo a uma considerável controvérsia no seio da doutrina constitucional brasileira”,
daí advindo os debates em relação à questão de “se os direitos sociais foram, ou não,
constitucional de todos” e, ao mesmo tempo, um “dever do Estado, no
sentido amplo de Poder Público”3. Em sede doutrinária, o Ministro do
Supremo Tribunal Federal, GILMAR FERREIRA MENDES, enxerga esse
“dever fundamental” do Estado de maneira horizontal, porque aí se
inseriria não apenas a União, mas, também, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios4-5
.
Ao mesmo tempo, o tema recebeu atenções da doutrina também a
respeito da sua colocação enquanto aspecto pontual e inerente ao problema
da assim chamada “eficácia dos direitos fundamentais”, cuja
sistematização de JOSÉ AFONSO DA SILVA recebeu (e recebe, até hoje) a
maior adesão por parte da literatura constitucional nacional6. Em apertada
síntese, JOSÉ AFONSO DA SILVA aduz que as normas constitucionais podem
ser encaradas em três grandes grupos: i) normas de eficácia plena; ii)
normas de eficácia contida; e iii) normas de eficácia limitada. As normas
constitucionais de eficácia plena seriam aquelas que não demandariam
quaisquer tarefas do legislador ordinário. As normas constitucionais de
eficácia contida seriam “aquelas em que o legislador constituinte regulou
suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou
margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do
contemplados com a proteção inerente às ‘cláusulas pétreas’” (cf. SARLET, Ingo
Wolfgang. Do Poder Constituinte e da Mudança Constitucional. In: ______;
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 143). 3 SLABI, Maria Cristina Barros Gutierrez. Direito fundamental à Saúde – tutela de
urgência. Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=11c201f6-5bf6-4e44-b4d8-
137441e3d826&groupId=10136>. Acesso em 25 mar. 2013. 4 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Sociais. In: ______; GONET BRANCO, Paulo
Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 686. 5 O que justifica e explica a pertinência subjetiva processual (= legitimidade passiva) de
Santa Catarina e do Município onde “XXXXX” procura realizar o ato cirúrgico objeto da
obrigação de fazer. Interessa, aqui, a leitura do parágrafo único do art. 23 da CF: “Leis
complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do
bem-estar em âmbito nacional”, redação esta que evidencia uma visão de federalismo
cooperativo a ser atribuída ao Sistema Único de Saúde, que “há de ser estruturado com
caráter interestatal” (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Sociais. In: ______; GONET
BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011, p.
692). 6 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Do Poder Constituinte e da Mudança Constitucional. In:
______; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 178.
Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos
gerais nela enunciados”7. Finalmente, as normas de eficácia limitada
guardariam conexão a aqueles dispositivos que têm sua aplicabilidade
efetivamente reduzida, não podendo operar, por si sós, no plano real.
Reclamariam, pois, um processo legislativo específico8.
Referida classificação é digna de nota porque os argumentos mais
usuais (verdadeiros chavões) do “Poder Público” (na seara judicial,
inclusive) são os seguintes: “(a) o art. 196 da Constituição Federal, que
assegura a todos o direito à saúde, sendo este um dever do Estado, não tem
o alcance e a dimensão que lhe vem sendo atribuído pelo Judiciário, já que
se trata de norma constitucional de eficácia contida ou limitada; (b) que o
fornecimento de qualquer medicamento pelo Estado tem que observar a
Política Nacional de Medicamentos do Ministério da Saúde, que estabelece
Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para cada doença; (c) que a
Constituição Federal tem como ponto de partida a reserva do possível,
significando dizer que os direitos sociais só podem ser respeitados quando
houver recursos financeiros públicos suficientes para isso; e (d) que o
Poder Judiciário não tem competência para decidir sobre a alocação e
destinação de recursos públicos”9.
Eis, aqui, um compêndio geral das alegações feitas pelo Poder
Público em situações similares ao caso de “XXXXX”. Vejamos as teses10
,
uma a uma, rebatendo-a para o fim deste parecer: auxiliar a elaboração de
peça processual apta a conseguir deferimento de antecipação de tutela de
obrigação de fazer.
7 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1982, p. 79 e 105. 8 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1982, p. 79, 106 e seguintes. 9 O resumo é de PAULO CÉSAR VIEIRA TAVARES, Promotor de Justiça lotado a 24º
Promotoria de Justiça da Comarca de Londrina/PR. Cf. TAVARES, Paulo César Vieira.
A Saúde como Direito Fundamental Social e as objeções habitualmente dirigidas pelo
Estado contra sua plena efetividade na área dos medicamentos excepcionais. Ministério
Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível em
<http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014. 10
Essas quatro teses se apoiam, ora mais, ora menos, na lição (fadada ao insucesso) de
que o direito à saúde não pode ser visto como uma norma constitucional de eficácia
plena, tal como se referia JOSÉ AFONSO DA SILVA. Falamos em insucesso da visão
porque, segundo pensamos, o direito à saúde merece atenção atrelada à dignidade da
pessoa, fundamento da República devidamente consagrado no texto constitucional (art.
1º, inciso III, da CF/1988).
a) O art. 196 da Constituição Federal, ao assegurar – para
todos – o direito à saúde, acabou criando um dever de prestação positiva
do Estado.
Como visto, a primeira e usual tese do Poder Público para negar a
tomada de atitudes concretas que viabilizem a prestação do direito
fundamental a saúde é a de rotulá-lo como sendo-o de “eficácia contida”
ou de “eficácia limitada”.
Em que pese existir divergência doutrinária a respeito do assunto, é
bem verdade que a redação do art. 196 da CF, ao descentralizar os serviços
e conjugar os recursos financeiros dos entes da Federação, acabou se
traduzindo como uma evidência, dada pelo legislador constitucional, de
que o Estado deve, sempre, buscar melhorias e permitir o franco acesso
aos serviços disponibilizados pelo SUS. Não é sem razão, que se fala que a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios carregam a missão de
mãos dadas, sendo “responsáveis solidários pela saúde [...] e, dessa forma,
são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a negativa,
pelo SUS [...], de prestações na área da saúde” 11
.
Qualquer hermenêutica teleológica que se preze concluiria que o
direito à saúde tem eficácia imediata12
, o que vem de encontro ao
entendimento também ancorado pelo Supremo no sentido de que o art. 196
da Constituição (portanto, o direito à saúde) se atrela “à efetivação de
políticas públicas que alcancem a população como um todo”13
e ao
postulado do acesso igualitário e universal, “sem preconceitos ou
11
Fragmento do voto elaborado pelo Ministro GILMAR FERREIRA MENDES no Agravo
Regimental contra decisão proferida em pedido de suspensão de tutela antecipada, cujo
entendimento foi seguido pelo STF, por unanimidade (DJ 17.03.2010, STA 178 e 175-
AgR). 12
“O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por
destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a
organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa
constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas
expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o
cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado” (STF, AgRg no
RE nº 271.286-8/RS. Rel. Min. CELSO DE MELLO. DJ 12.09.2000). 13
STF, STA 91-1/AL. Min. ELLEN GRACIE. DJ 26.02.2007.
privilégios de qualquer espécie” (CF, art. 7º, inciso IV, da Lei nº
8.080/199014
).
b) A Constituição Federal de 1988 deve prevalecer sobre
quaisquer “portarias” e/ou “protocolos clínicos” que venham a obstar
a concretização da pretensão buscada pela paciente “XXXXX”.
Um argumento também usualmente feito pelo Poder Público, vimos
acima, é o de fundamentar no sentido de que “o fornecimento de qualquer
medicamento pelo Estado tem que observar a Política Nacional de
Medicamentos do Ministério da Saúde, que estabelece Protocolos Clínicos
e Diretrizes Terapêuticas para cada doença”15
.
O problema dessa arguição reside no fato de, muitas vezes, o
usuário do SUS se deparar com patologias graves que demandam um
tratamento ou algum remédio de órbita realmente excepcional, e –
justamente por esse caráter extraordinário – que não venha a aparecer em
alguma dessas “listas oficiais”.
Segundo pensamos, portaria ministerial alguma pode obstar a
concessão da tutela antecipada para a pessoa de “XXXXX”. Na verdade,
não é nem razoável imaginar que mera portaria ou protocolo clínico do
Ministério da Saúde possa ter peso normativo maior que a Constituição16
.
Tem decidido o Supremo Tribunal Federal que “o caráter
programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por
destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional,
a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em
promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público,
fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade,
substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável
14
“Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”. 15
TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental Social e as
objeções habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na área dos
medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível
em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014. 16
Assim, também, TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental
Social e as objeções habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na
área dos medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005.
Disponível em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014.
dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que
determina a própria Lei Fundamental do Estado” 17
.
c) Não é correto invocar, para os casos como este vivenciado
por “XXXXX”, a chamada “reserva do possível”
Como visto acima, a terceira tese usual de negação do Poder
Público se resume a dizer que a CF “tem como ponto de partida a reserva
do possível, significando dizer que os direitos sociais só podem ser
respeitados quando houver recursos financeiros públicos suficientes para
isso”18
. Na verdade, quando o Estado se utiliza dessa “desculpa”, está
afirmando que o direito social “x” ou “y” só merece respeito quando forem
suficientes os recursos financeiros.
Contra o argumento, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, talvez o
maior constitucionalista português da atualidade, comenta que “um direito
social sob ‘reserva dos cofres cheios’ equivale, na prática, a nenhuma
vinculação jurídica”, sendo cediço que “os direitos fundamentais sociais
consagrados em normas da Constituição dispõem de vinculatividade
normativo-constitucional” e que “as tarefas constitucionalmente impostas
ao Estado” demandam a “edição de medidas concretas e determinadas, e
não em promessas vagas e abstratas” 19
.
Entretanto, o Poder Público não pode alegar que o direito à saúde
de “XXXXX” está a observar, pura e simplesmente, uma “reserva do
possível”, cláusula esta que “não pode ser invocada [...] com o propósito
de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas
públicas definidas na própria Constituição [...]”, uma vez que “a noção de
‘mínimo existencial [...] compreende um complexo de prerrogativas cuja
concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de
existência digna, em ordem de assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao
direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do
Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais
como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do
17
STF, AgRg no RE nº 271.286-8/RS. Rel. Min. CELSO DE MELLO. DJ 12.09.2000. 18
TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental Social e as
objeções habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na área dos
medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível
em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014. 19
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 481-482.
adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à
alimentação e o direito à segurança”20
.
Neste ínterim, o E. Tribunal de Justiça de Santa Catarina parece
seguir os entendimentos que aqui defendemos, embora crie um ou outro
critério razoável. Apenas para exemplificar, em caso menos urgente do que
este em debate, o TJSC negou provimento de “remessa oficial” (ou do
assim chamado “reexame necessário”) nos autos de Mandado de
Segurança nº 2013.022869-1, cujo relatório coube ao Desembargador
JAIME RAMOS. Na fundamentação do decisum, ficou expresso que o direito
à educação (do mesmo porte que tem a saúde: “direito social”) constitui
uma “obrigação do Poder Público”, e que a invocação da “reserva do
possível” tem como requisito a “prova da absoluta falta de recursos para
realização de direito fundamental” 21
. Este precedente tem sido observado
e respeitado pelo referido Tribunal em vários outros julgados22
, havendo,
inclusive, decisões permitindo a sequestro de valores da conta bancária do
Estado para garantir o pagamento e o custeio da medida que for
necessária:
“Agravo de Instrumento. Decisão que negou tutela antecipada
para realização de cirurgia [...]. Risco de sequela. [...].
Descaso do Poder Público. Provimento do recurso para
deferimento da liminar. Irreversibilidade dos efeitos da
medida. Direito à saúde. Aplicação do Princípio da
Proporcionalidade. Prevalência sobre o Direito Patrimonial
dos Entes Públicos. Cláusula de Reserva do possível –
inaplicabilidade. Sequestro de valores da conta bancária do
Estado para Custear o tratamento se este não for
disponibilizado no prazo dado. Possibilidade” 23
.
20
STF, AgRg no AgRE nº 639.337. Rel. Min. CELSO DE MELLO, 2ª Turma. DJ
23.08.2011. Grifos meus. 21
TJSC. Reexame Necessário no MS nº 2013.022869-1. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª
Câmara de Direito Público. DJ 13.03.2014. 22
Como, e. g., nos que seguem mencionados: TJSC, Reexame Necessário no MS nº
2014.001994-7. Rel. Des. JÚLIO CÉSAR KNOLL, 4ª Câmara de Direito Público. DJ
06.03.2014; TJSC, Apelação Cível nº 2012.057330-4. Rel. Des. NEWTON TRISOTTO, 1ª
Câmara de Direito Público. DJ 25.02.2014; TJSC, Apelação Cível nº 2013.089666-9. Rel.
Des. NEWTON TRISOTTO, 1ª Câmara de Direito Público. DJ 25.02.2014; TJSC, Agravo de
Instrumento nº 2013.060690-5. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª Câmara de Direito Público.
DJ 13.02.2014; TJSC, Reexame Necessário no MS nº 2013.065123-0. Rel. Des. NELSON
SCHAEFER MARTINS, 2ª Câmara de Direito Público. DJ 05.11.2013 etc. 23
TJSC, Agravo de Instrumento nº 2013.061581-8. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª Câmara
de Direito Público. DJ 21.11.2013. Grifos meus.
Referido julgado (e há várias decisões do próprio E. TJSC neste
sentido) teve o mérito de deixar claro que a condição financeira de qualquer
ente, público que seja, não pode obstar o atendimento imediato de alguém
que necessita de determinado atendimento médico, porque evidente que o
“direito à saúde e à vida [...] se sobrepõem aos interesses financeiros do
Ente Público demandado”24
-25
.
d) O Poder Judiciário do século XXI tem uma função social, e o
papel atual da Jurisdição é fornecer eficácia aos direitos fundamentais
A quarta e última alegação que o Poder Público possa vir a invocar
na ação a ser movida por “XXXXX” é, como visto, a de que “o Poder
Judiciário não tem competência para decidir sobre a alocação e destinação
de recursos públicos”26
. O argumento, porém, é “natimorto”, não passando
de repetição da “reserva do possível” (cf. item “c”, supra) travestida de
outras palavras. O aspecto financeiro não tem cunho axiológico suficiente
para esbarrar a concessão da tutela antecipada a que pretende “XXXXX”.
Uma famosa construção teórica de FRANCISCO CAVALCANTI
PONTES DE MIRANDA parte do pressuposto de que os entes públicos são, na
verdade, “presentados em juízo” (e não “representados”). Eram assim os
comentários de PONTES DE MIRANDA ao art. 12 do CPC: “por vezes, as leis
erram: põem ‘representadas’ por ‘presentadas’” 27
, sendo que tal norma
“diz que os seres sociais por ela apontados são ‘representados em juízo,
ativa ou passivamente’, erra palmarmente, sempre que não houve outorgar
de poderes e sim função de órgãos” 28
. Em outras palavras, significa dizer,
24
TJSC, Apelação Cível nº 2013.053285-1. Rel. Des. JOSÉ VOLPATO DE SOUZA, 4ª
Câmara de Direito Público. DJ 24.10.2013. 25
Por isso, aliás, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que é possível fixar multa
diária (astreintes), de ofício, inclusive, “mesmo sendo contra pessoa jurídica de direito
público (Fazenda Estadual), que ficará obrigada a suportá-las caso não cumpra a
obrigação de fazer no prazo estipulado” (STJ, REsp nº 201.378/SP. Rel. Min.
FERNANDO GONÇALVES, 6º Turma. DJ 21.06.1999. 26
TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental Social e as
objeções habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na área dos
medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível
em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014. 27
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. I, p. 267. 28
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. I, p. 319.
p. ex., que o Estado se faz presente (= é presentado) na ideia fornecida por
PONTES DE MIRANDA, aí não havendo mera representação.
Os novos ventos teóricos do conceito de jurisdição podem se servir
da mencionada tese, desta vez para sustentar que o Juiz, em uma lide,
presenta (também!) o Estado. Construindo sua própria teoria geral do
processo (e, assim, sua própria concepção de Jurisdição), LUIZ GUILHERME
BITTENCOURT MARINONI sustenta ser impossível, “diante da
transformação da concepção de direito”, manter em vigor “as antigas
teorias da jurisdição”, agora valendo somente a ideia de que “a jurisdição
tem o dever de aplicar a lei na dimensão dos direitos fundamentais, fazendo
sempre o resgate dos valores substanciais neles contidos”29
. Assim,
inegavelmente, o Juiz (e aqui se fala não apenas na ideia de “Estado-Juiz”,
mas também no Magistrado enquanto pessoa natural, que presenta o
Estado e, portanto, os objetivos estatais) deve ser encarado como um meio, e
não como um fim em si mesmo30
.
Quer se dizer que, ao ser deferida a tutela antecipada para a
paciente “XXXXX”, o Judiciário não estará violando o regramento geral da
separação de poderes. Na verdade, a tutela jurisdicional neste sentido só
fará cumprir a missão que o neoconstitucionalismo lhe outorgou: subordinar
tudo à Constituição, apreciando criticamente a lei (e também a omissão da
lei!31
) em face da Constituição32
. Ad argumentandum, a concessão da
tutela antecipada para a pessoa de “XXXXX” nada mais é do que o
estrito cumprimento de uma previsão legal, ante ao que dispõe o art. 2º,
§§ 1º e 2º, da Lei nº 9.797/199933
, com redação dada pela Lei nº
12.802/2013:
29
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 149. 30
Em termos muitos parecidos, cf. MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim. Processo Civil Moderno – Parte Geral e Processo de Conhecimento. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 48 e seguintes. 31
Daí o mandado de injunção, instrumento apto a ser utilizado “sempre que a falta de
norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania” (CF, art. 5º, inciso LXXI). 32
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 46. 33
“Dispõe sobre a obrigatoriedade da cirurgia plástica reparadora da mama pela rede
de unidades integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS nos casos de mutilação
decorrentes de tratamento de câncer”.
“Art. 2o Cabe ao Sistema Único de Saúde - SUS, por meio de
sua rede de unidades públicas ou conveniadas, prestar serviço
de cirurgia plástica reconstrutiva de mama prevista no art. 1o,
utilizando-se de todos os meios e técnicas necessárias.
§ 1o Quando existirem condições técnicas, a reconstrução será
efetuada no mesmo tempo cirúrgico. (Incluído pela Lei nº
12.802. de 2013)
§ 2o No caso de impossibilidade de reconstrução imediata, a
paciente será encaminhada para acompanhamento e terá
garantida a realização da cirurgia imediatamente após
alcançar as condições clínicas requeridas. (Incluído pela Lei nº
12.802. de 2013)”.
Destarte, fica afastada, de vez, a plausibilidade de se defender
eventual ofensa à tripartição dos Poderes.
Para concluir, vale o lembrete de uma lição de GILMAR FERREIRA
MENDES, o qual, com boa dose de crítica, rebate todo e qualquer raciocínio
que possa significar óbice maior para a concessão da tutela antecipada:
“no Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em
termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na
criação e implementação de políticas públicas em matéria de
saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é
apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de
políticas públicas já existentes”34
.
Maringá/PR, 25 de março de 2014.
É o parecer, s. m. j.
MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA
Advogado – OAB/PR nº 70.263
34
STF, STA 178 e 175-AgR. Rel. Min. GILMAR FERREIRA MENDES. DJ 17.03.2010.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA E JULGADOS CITADOS NESTE PARECER
Doutrina
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Coimbra: Almedina, 2003.
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013.
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo Civil
Moderno – Parte Geral e Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011.
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Sociais. In: ______; GONET BRANCO, Paulo
Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo
Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. I.
SARLET, Ingo Wolfgang. Do Poder Constituinte e da Mudança Constitucional. In:
______; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
SLABI, Maria Cristina Barros Gutierrez. Direito fundamental à Saúde – tutela de
urgência. Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=11c201f6-5bf6-4e44-b4d8-
137441e3d826&groupId=10136>. Acesso em 25 mar. 2013.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1982.
TAVARES, Paulo César Vieira. A Saúde como Direito Fundamental Social e as objeções
habitualmente dirigidas pelo Estado contra sua plena efetividade na área dos
medicamentos excepcionais. Ministério Público do Estado do Paraná: 2005. Disponível
em <http://mp.pr.gov.br/eventos/05paulo.doc> Acesso em: 25 mar. 2014.
Julgados & precedentes
― Do Supremo Tribunal Federal
STF, AgRg no RE nº 271.286-8/RS. Rel. Min. CELSO DE MELLO. DJ 12.09.2000.
STF, STA 91-1/AL. Min. ELLEN GRACIE. DJ 26.02.2007.
STF, AgRg no AgRE nº 639.337. Rel. Min. CELSO DE MELLO, 2ª Turma. DJ 23.08.2011.
STF, STA 178 e 175-AgR. Rel. Min. GILMAR FERREIRA MENDES. DJ 17.03.2010.
― Do Superior Tribunal de Justiça
STJ, REsp nº 201.378/SP. Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, 6º Turma. DJ 21.06.1999.
― Do Tribunal de Justiça de Santa Catarina
TJSC, Reexame Necessário no MS nº 2013.022869-1. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª
Câmara de Direito Público. DJ 13.03.2014.
TJSC, Reexame Necessário no MS nº 2014.001994-7. Rel. Des. JÚLIO CÉSAR KNOLL, 4ª
Câmara de Direito Público. DJ 06.03.2014
TJSC, Apelação Cível nº 2012.057330-4. Rel. Des. NEWTON TRISOTTO, 1ª Câmara de
Direito Público. DJ 25.02.2014
TJSC, Apelação Cível nº 2013.089666-9. Rel. Des. NEWTON TRISOTTO, 1ª Câmara de
Direito Público. DJ 25.02.2014
TJSC, Agravo de Instrumento nº 2013.060690-5. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª Câmara de
Direito Público. DJ 13.02.2014
TJSC, Reexame Necessário no MS nº 2013.065123-0. Rel. Des. NELSON SCHAEFER
MARTINS, 2ª Câmara de Direito Público. DJ 05.11.2013 etc.
TJSC, Agravo de Instrumento nº 2013.061581-8. Rel. Des. JAIME RAMOS, 4ª Câmara de
Direito Público. DJ 21.11.2013.
TJSC, Apelação Cível nº 2013.053285-1. Rel. Des. JOSÉ VOLPATO DE SOUZA, 4ª Câmara
de Direito Público. DJ 24.10.2013.