Dezembro próximo contabiliza-se 320 anos do nascimento de Bartolomeu de Gusmão, celebre figura...

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A PASSAGEM DE BARTOLOMEU GUSMÃO PELA VILA DE BELÉM, CACHOEIRA, BA Amílcar Baiardi Professor Titular, DSc, da UFBA, Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História da Ciência Alex Vieira dos Santos Pós-graduando em Ensino, Filosofia e História da Ciência RESUMO O trabalho focaliza uma fase pouco explorada da trajetória do padre Bartolomeu de Gusmão como inventor e homem de ciência, anterior àquela na qual obteve maior notoriedade com a construção de balões e com projetos de máquinas voadoras. O ambiente científico-cultural do Brasil colonial, onde então vivia Bartolomeu, era, nessa época, influenciado pelo denominado pragmatismo científico, uma visão na qual a ciência especulativa e teórica deveria ceder lugar ao conhecimento de aplicações práticas. Este é um período anterior à influência pombalina e à reforma da Universidade de Coimbra, as quais impulsionaram Portugal para a modernidade. Na sua permanência na Bahia, mais especificamente no Seminário Jesuíta de Belém, Bartolomeu, se revelou como inventor, concebendo um dispositivo hidráulico que teria como função captar e elevar a água de uma pequena lagoa até o Seminário, facilitando assim o abastecimento ao colégio, que anteriormente era feito por recipientes transportados por animais ou por escravos. A pesquisa reconstruiu historicamente o ambiente de cultura científica do Seminário de Belém, realizou inspeções no local para detectar as condições topográficas e ambientais para funcionamento do invento de Bartolomeu e verificou, tanto em Cachoeira como em Salvador, a existência de mais detalhes sobre o invento patenteado. 1.INTRODUÇÃO Em dezembro de 2005 contabiliza-se 320 anos do nascimento de Bartolomeu de Gusmão, religioso que se inseriu na galeria dos homens de ciência. Sobre a veracidade do ano de seu nascimento Taunay comenta: “Nasceu Bartolomeu Lourenço de Gusmão na vila do Porto de Santos, como então se dizia, em dia ignoto do ano de 1685. Provou o Visconde de S. Leopoldo, insofismavelmente, haver o Voador nascido neste milésimo. Graças aos elementos hauridos no Arquivo da Cúria Metropolitana de S. Paulo podemos estabelecer uma retificação definitiva já não só quanto ao ano do nascimento de Bartolomeu como quanto ao mês em que veio ao mundo. Batizado na segunda-feira, dezenove de Dezembro de 1685, deve ter nascido, quiçá, neste mesmo dia, ou na véspera, ou, quando muito, na semana anterior. Havia naqueles tempos de profundíssima fé o maior açodamento em batizar os recém nascidos.” (Taunay, 1942) Ao se falar de Bartolomeu de Gusmão é inevitável a referencia a sua posição de patrono da aerostação, titulo este concedido devido a primacial posição assumida na disputa pela navegação aérea. O presente trabalho, contudo, sugere uma analise sobre o obscuro período de formação, quando o mesmo após o término dos estudos primários, dirigiu-se para a Bahia a fim de complementar seus conhecimentos em Curso de Humanidades. O trabalho focaliza uma fase pouco explorada da trajetória do padre Bartolomeu de Gusmão como inventor e homem de ciência, a qual é anterior àquela na qual obteve maior notoriedade com a construção de balões e com projetos de máquinas voadoras. O ambiente científico-cultural do Brasil colonial, onde então vivia Bartolomeu, era, nessa

Transcript of Dezembro próximo contabiliza-se 320 anos do nascimento de Bartolomeu de Gusmão, celebre figura...

A PASSAGEM DE BARTOLOMEU GUSMÃO PELA VILA DE BELÉM,

CACHOEIRA, BA

Amílcar Baiardi

Professor Titular, DSc, da UFBA, Programa de Pós-graduação em

Ensino, Filosofia e História da Ciência

Alex Vieira dos Santos

Pós-graduando em Ensino, Filosofia e História da Ciência

RESUMO

O trabalho focaliza uma fase pouco explorada da trajetória do padre Bartolomeu de

Gusmão como inventor e homem de ciência, anterior àquela na qual obteve maior

notoriedade com a construção de balões e com projetos de máquinas voadoras. O

ambiente científico-cultural do Brasil colonial, onde então vivia Bartolomeu, era, nessa

época, influenciado pelo denominado pragmatismo científico, uma visão na qual a

ciência especulativa e teórica deveria ceder lugar ao conhecimento de aplicações

práticas. Este é um período anterior à influência pombalina e à reforma da Universidade

de Coimbra, as quais impulsionaram Portugal para a modernidade. Na sua permanência

na Bahia, mais especificamente no Seminário Jesuíta de Belém, Bartolomeu, se revelou

como inventor, concebendo um dispositivo hidráulico que teria como função captar e

elevar a água de uma pequena lagoa até o Seminário, facilitando assim o abastecimento

ao colégio, que anteriormente era feito por recipientes transportados por animais ou por

escravos. A pesquisa reconstruiu historicamente o ambiente de cultura científica do

Seminário de Belém, realizou inspeções no local para detectar as condições topográficas

e ambientais para funcionamento do invento de Bartolomeu e verificou, tanto em

Cachoeira como em Salvador, a existência de mais detalhes sobre o invento patenteado.

1.INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2005 contabiliza-se 320 anos do nascimento de Bartolomeu de

Gusmão, religioso que se inseriu na galeria dos homens de ciência. Sobre a veracidade

do ano de seu nascimento Taunay comenta:

“Nasceu Bartolomeu Lourenço de Gusmão na vila do Porto de Santos, como então se dizia, em dia ignoto do ano de 1685. Provou o Visconde de S. Leopoldo, insofismavelmente, haver o Voador

nascido neste milésimo. Graças aos elementos hauridos no Arquivo da Cúria Metropolitana de S.

Paulo podemos estabelecer uma retificação definitiva já não só quanto ao ano do nascimento de

Bartolomeu como quanto ao mês em que veio ao mundo. Batizado na segunda-feira, dezenove de Dezembro de 1685, deve ter nascido, quiçá, neste mesmo dia, ou na véspera, ou, quando muito, na

semana anterior. Havia naqueles tempos de profundíssima fé o maior açodamento em batizar os

recém nascidos.” (Taunay, 1942)

Ao se falar de Bartolomeu de Gusmão é inevitável a referencia a sua posição de patrono

da aerostação, titulo este concedido devido a primacial posição assumida na disputa pela

navegação aérea. O presente trabalho, contudo, sugere uma analise sobre o obscuro

período de formação, quando o mesmo após o término dos estudos primários, dirigiu-se

para a Bahia a fim de complementar seus conhecimentos em Curso de Humanidades. O

trabalho focaliza uma fase pouco explorada da trajetória do padre Bartolomeu de

Gusmão como inventor e homem de ciência, a qual é anterior àquela na qual obteve

maior notoriedade com a construção de balões e com projetos de máquinas voadoras. O

ambiente científico-cultural do Brasil colonial, onde então vivia Bartolomeu, era, nessa

época, influenciado pelo denominado pragmatismo científico, uma visão na qual a

ciência especulativa e teórica deveria ceder lugar ao conhecimento de aplicações

práticas, voltado para o aumento da riqueza do Estado, então Reino de Portugal, e para a

melhoria das condições de vida dos indivíduos. Este é um período anterior à influência

pombalina e à reforma da Universidade de Coimbra, as quais impulsionaram Portugal

para a modernidade. É um momento que precede a expulsão dos jesuítas e no qual havia

um escasso interesse pela ciência em geral e uma maior preferência pelo saber de

caráter mais pragmático, conhecimento útil.

Nestas décadas, fim do século XVII e início do século XVIII, Bartolomeu de Gusmão

começa a se tornar conhecido pela capacidade de memorizar poemas em latim e decide

associar a formação religiosa com interesse pelo saber técnico-científico útil. Após o

término dos estudos primários realizados em Santos, São Paulo, Bartolomeu viaja para

Portugal, após uma breve estadia na Bahia. Em Portugal permanece cerca de quatro

anos, retornando à Bahia com o propósito de complementar sua formação em Curso de

Humanidades. Nesta ocasião Bartolomeu dirige-se para o Seminário de Belém, que era

então uma instituição de Estudos Gerais, na qual, ademais da formação religiosa, se

ensinava ciência, retórica, doutrina do direito, enfim, funcionava como universidade

embora não obtendo licença para adotar tal designação. Na sua segunda permanência na

Bahia, mais especificamente no Seminário Jesuíta de Belém onde se graduou como

noviço, Bartolomeu, se revelou como inventor, tendo, aos 20 anos, requerido à Câmara

da Bahia os direitos de propriedade intelectual de um invento destinado a recalcar água

para abastecimento humano. Na ocasião o Seminário em Belém era dirigido pelo seu

fundador, padre Alexandre de Gusmão. A semelhança do sobrenome Gusmão entre

Bartolomeu e o fundador do seminário, não é decorrente de coincidência nem de

parentesco. O fato é devido ao Padre Alexandre de Gusmão ter sido um grande amigo

da família de Bartolomeu, razão pela qual emprestou sobrenome para três dos doze

filhos do pai de Bartolomeu, o cirurgião-mor da Vila de Santos, Francisco Lourenço

cuja esposa era dona Maria Alves. Um desses filhos é Bartolomeu de Gusmão e outro

era Alexandre de Gusmão, homônimo completo, o qual, após ir para Portugal, chegou a

ocupar o cargo de secretário do rei D. João V e tornou-se conhecido como o negociador

que consolidou as fronteiras brasileiras expandidas para oeste pelos bandeirantes,

anulando o que fora disposto pelo Tratado de Tordesilhas. Bartolomeu e seu irmão

Alexandre chegaram a estudar no Seminário de Belém, na Bahia, no mesmo período.

Em Belém de Cachoeira, de acordo com a historiografia e com memória oral da

população, Bartolomeu concebe e desenvolve sua primeira invenção, um dispositivo

hidráulico que teria como função captar e elevar a água de uma pequena lagoa até o

Seminário, facilitando assim o abastecimento ao colégio, o qual era, então, feito por

recipientes transportados por animais ou por escravos.

A segunda estada de Bartolomeu Gusmão na Bahia, mas especificamente no Seminário

Jesuíta de Belém, onde se tornou noviço, ainda revela-se como capitulo a ser

desvendado, incluindo nele o enigma do seu principal invento, concebido quando

Bartolomeu tinha 20 anos e para o qual requereu à Câmara da Bahia os direitos de

propriedade intelectual.

2 - A VILA DE BELÉM E O CONTEXTO HISTÓRICO DO SEMINÁRIO DOS

JESUITAS

A Vila de Belém é um povoado, inserido em um distrito do mesmo nome, do município

de Cachoeira, Bahia, localizado na Região do Recôncavo Baiano, cerca de 100 km de

Salvador. Cachoeira, que mais tarde iria se notabilizar como sede da resistência à

dominação lusitana na Bahia, a qual se estendeu após a independência do Brasil em

1822 até 2 de julho de 1823, era um próspera cidade já no século XVII por se constituir

em um porto para escoamento de produtos resultantes das atividades agrícolas e

agroindustriais do Recôncavo Baiano, principalmente derivados da produção de cana e

de fumo.

O ambiente científico cultural do Seminário de Belém era, ainda que tardiamente,

segundo Baiardi (2002), influenciado pelo denominado “terceiro momento

epistemológico” da história da ciência, aquele do Renascimento, marcado pela rejeição

da visão cosmológica aristotélica mediada pela construção ontológica de Tomás de

Aquino. Além desta influência de natureza epistemológica, havia uma outra decorrente

do prestígio da práxis baconiana na ciência, enaltecendo o conhecimento útil.

Apesar dos

preceitos de Bacon

terem nascido e se

divulgado no

ambiente

protestante, cerca de

100 anos depois os

mesmo passaram a

influenciar também

o mundo católico.

Esta influência

atingia o Seminário

Jesuíta de Belém o

qual se destacava na

Província da Bahia

pela excelência do Igreja e Seminário de Belém, 2005, foto dos autores

ensino, combinando a formação religiosa com a formação humanista e dando espaço

para formação naturalista, cuja tradição levou ao Pe Camile Torrend, e para formação

em ciências denominadas exatas.

Vista Panorâmica da Vila de Belém, Cachoeira, 2005, foto dos autores

3 - BARTOLOMEU COMO INVENTOR

Em seus 39 anos de vida, muitas foram suas contribuições ao adimensional teatro das

descobertas e das especulações humanas. Como dantes citado, sua posição precursora

na aeronavegação, deu-se quando o mesmo dirigiu-se para Lisboa em caráter definitivo,

isto porque ele foi à capital do império pela primeira vez quando tinha pouco mais de 15

anos, o que não impediu de realizar estudos de direito religioso em Coimbra e de

formação sacerdotal na Companhia de Jesus em Lisboa, provavelmente em 1701. Antes

de concluir os estudos em Portugal, Bartolomeu realizou aprofundamentos em

matemática e física mecânica.

Por destacar-se como hábil pregador - com notável inteligência e espantosa memória,

sendo capaz de recitar sem leitura todos os versos dos poetas latinos Virgilio, Horácio e

Ovídio, bem como vários livros da sagrada escritura - recebeu do rei Dom João V o

honorífico cargo de capelão da Casa Real, função que, aparentemente, não exerceu.

Dedicou-se, a partir de então, a seus inventos e volta à Bahia. O retorno se dá por

motivos pouco claros, provavelmente a convite do Pe Alexandre Gusmão. Bartolomeu

retorna a Bahia, aproximadamente nos primeiros anos dos setecentos, 1702 ou 1703.

Uma vez na província, foi para Belém para completar sua formação e com muita

probabilidade para atuar também na condição de professor, dada a qualificação obtida

em Coimbra, onde foi influenciado pela onda renascentista tardia que levou à reforma

do ensino e à abertura do ambiente lusitano para a nova forma de ver a ciência e a

pesquisar. Já em Belém coloca em prática sua primeira investida no ramo das

invenções, a construção de um dispositivo hidráulico, que teria como função primordial,

servir como bomba para recalque de água de um riacho que flui para o rio Paraguaçu,

facilitando assim o abastecimento ao colégio, o qual outrora se daria por meio da tração

animal ou nas costas dos homens.

Segundo os moradores entrevistados - foram realizadas 4 entrevistas com pessoas com

mais de 65 anos, todas elas ligadas à atividades religiosas, as quais levavam as mesmas

a serem zeladores da igreja, promotoras de eventos e mais conhecedoras, por

conseqüência, da história do seminário - os relatos da existência do instrumento de

recalque correspondem à realidade, não sendo fruto de imaginação ou lenda. Demais,

afirmaram também que segundo relato dos moradores mais antigos para os mais jovens,

aquilo que se define como a “via da memória oral”, era sensato acreditar que o

instrumento funcionara. Entretanto, não souberam dizer a razão para o mesmo se perder

no tempo. Nem tampouco souberam informar se era tão eficiente a ponto de substituir o

transporte braçal feito por escravos ou o transporte animal.

Perguntados se a razão para que o invento não fizesse sucesso estaria ligada ao fato do

mesmo substituir o trabalho escravo, ou não remunerado, não gerando, portanto,

interesse em economizar trabalho braçal, os entrevistados não souberam responder.

Ainda segundo relato dos moradores, a bica, local onde Bartolomeu instalou seu

dispositivo, tinha duas saídas de água e fazia parte de uma construção de alvenaria tipo

pequena barragem, a qual era abastecida pelo mesmo riacho que hoje alimenta uma

represa da qual se retira água para a população da vila de Belém. As vazões das duas

saídas de água estavam localizadas dois metros acima do canal de jusante que levava ao

riacho que verte para o Rio Paraguaçu e, segundo pôde-se estimar pelas descrições,

tinham uma capacidade de escoamento de 1 a 2 m3 por segundo.

As mesmas fontes relataram que a bica já não existe, foi demolida para aproveitamento

do seu material em construções, em decorrência do riacho ter sido assoreado pela

prática de pastoreio extensivo e desmatamento da vegetação margeadora do mesmo. De

acordo ainda com os relatos, o desmatamento e assoreamento levaram a uma perda de

vazão e a um outro curso ou desvio do riacho. O terreno onde se localizava a bica

pertencia à igreja, mas esta nunca promoveu qualquer ação no sentido de controlar a

ação de posseiros e invasores que desmatavam e criavam animais no local.

Entre os entrevistados, a moradora da Vila de Belém com idade mais avançada, Tia

Nem, com 75 anos, foi a que mais esclareceu fatos e versões pouco claros. A mesma foi,

categórica ao informar, sem qualquer indução, que o dispositivo de recalque se

assemelharia a um carneiro hidráulico.

Concluídos os estudos secundários, em Belém, na qual aparentemente foi professor,

mas também complementou sua formação, Bartolomeu embarcou para a metrópole,

provavelmente no final de 1708, vindo a matricular-se na Faculdade de Cânones da

Universidade de Coimbra em 1708. Aí, desenvolveu notavelmente os seus estudos de

Física e Matemática que desde a adolescência tanto o tinham interessado. Nesse mesmo

ano, trabalha no projeto de um engenho "mais-leve-que-o-ar", em detrimento de todo o

resto. Sobre o episódio que o levou a conceber o principio do denominado "instrumento

de andar pelo ar", consta que ao observar uma pequena bola de sabão pairando no ar, se

inspirou para a concepção do instrumento, atentando para o fato de que quando uma

bolha de sabão passava por uma fonte de calor ela se elevava mais ainda. Com base em

suas hipótese, Bartolomeu solicitou a D. João V, em abril de 1709, a permissão de

apresentar o produto de seus estudos diante da Corte. Dizia a solicitação:

“Senhor. Diz o licenciado Bartolomeu Lourenço que ele tem descoberto um instrumento para

andar pelo ar, da mesma sorte do que pela terra, e pelo mar, e com muito mais brevidade,

fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas por dia nos tais instrumentos.

Se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos, e às terras mais remotas, quase no mesmo tempo em que se resolverem, porque interessa a Vossa Majestade muito mais do que

nenhum dos outros príncipes, pela maior distância dos seus domínios, evitando-se, dessa sorte, os

desgovernos das conquistas que provêm, em grande parte, de chegar muito tarde as notícias delas.

Além do que poderá Vossa Majestade mandar vir o precioso delas, muito mais brevemente e mais

segura poderão os homens de negócio passar letras, e cabedais e todas as praças sitiadas poderão

ser socorridas, tanto de gente, como de munições, e víveres a todo tempo e tirarem-se delas todas

as pessoas que quiserem. Sem que o inimigo o possa impedir, descobrir as regiões que ficarão

mais vizinhas aos pólos do mundo.”1

Bartolomeu ainda acrescenta à sua idéia que seu invento serviria para atacar inimigos,

como, por exemplo, os corsários de origem francesa do Rei-Sol. Os registros de sua

invenção foram deixados em sua obra “Descrição do Novo Invento Aerostático ou

Máquina Volante, do Método para Produzir o Gás Vapor com que se Enche”. A tão

sonhada viagem humana pelo instrumento imaginado por Bartolomeu não chegou a ver,

mas inventores franceses, 74 anos depois, a conseguiram. Há relatos que em sua

passagem por Paris Alexandre de Gusmão, que era depositário dos planos de

Bartolomeu após sua fuga para Espanha, manteve estreitas relações com João de Barros,

amigo pessoal dos Montgolfier, Joseph Michel (1740-1810) e Étienne (1745-1799), os

quais, em meados do século XVIII, na França, realizaram experiências com balões e

após várias tentativas conseguiram, em setembro de 1783, transportar três animais e em

novembro do mesmo ano um balão aquecido sobrevoou Paris com duas pessoas.

Há registros de que em 1710, Bartolomeu voltou a se interessar pela hidráulica

concebendo um mecanismo automático para esgotamento da água acumulada no porão

das naus. Este segundo invento pode ter sido inspirado no primeiro, concebido em

Belém de Cachoeira, Bahia, Brasil. Após estas experiências, por razões inexplicadas,

começa uma outra vida de Bartolomeu de Gusmão, tendo em 1711, viajado para Roma,

numa visita diplomática. No seu retorno foi nomeado, Secretário dos Estrangeiros.

O padre inventor foi um dos primeiros integrantes escolhidos para fazer parte da Real

Academia Histórica de Portugal, quando da sua criação, em 1720, ano em que encerra

seu doutoramento, após sucessivas interrupções dos estudos desde sua entrada em

Coimbra em 1708/1709. Em 6 de agosto de 1721, inventou um processo para produzir

carvão de terras artificiais. Projetou ainda fabricar artefatos hidráulicos, particularmente

um sobre o qual escreveu o opúsculo de 13 páginas publicado em Lisboa e intitulado

“Vários Modos de Esgotar sem Gente as Naus que Fazem Água”. Além de falar

fluentemente o latim, o francês e o italiano, Bartolomeu traduzia com facilidade o grego

e o hebraico. D. João V mandou que lhe dessem uma subvenção de 300 mil réis anuais,

a fim de que prosseguisse nos estudos, mas a Junta dos Três Estados negou-se a lhe dar

este auxílio sob a alegação de que não havia dinheiro. Bartolomeu, como o irmão,

sempre foi vítima da zombaria de seus contemporâneos e de suspeitas por parte da

Inquisição por ser amigo de judeus.

1 Enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História (volume I, 1969, Editora Abril Cultural, São

Paulo/SP).

Para escapar deste clima de perseguição, viajou para a Holanda, onde fez experiências

com lentes, e para a França, onde vendeu nas ruas de Paris remédios por ele mesmo

fabricados. Era um espírito inquieto, sempre inventando alguma coisa, sempre

experimentando novos ramos do saber. Estudou Direito, teve atuação brilhante nos

tribunais, e cumpriu as missões diplomáticas, sempre com o apoio de Dom João V. Para

o rei, foi um homem de muita inteligência, além de curioso, com sua mania de inventar.

Para os fidalgos e os inquisidores, era um louco que inexplicavelmente gozava dos

favores da Corte.

Excepcionalmente douto, versado em filologia e falando fluentemente outras línguas,

elaborou inúmeros trabalhos literários e outros tanto de caráter científico. Tornaram-se

famosos também os seus sermões. É feito Fidalgo-Capelão da Casa Real, em 1722.

Contudo, as intrigas da corte fá-lo-iam cair em desgraça, tendo-lhe valido os jesuítas

quando a Inquisição já o perseguia. A mente inventiva e a personalidade aberta de

Bartolomeu não passam desapercebidas aos juízes do Tribunal da Inquisição. Por razões

não muito claras, mas, como costumava acontecer, Bartolomeu provocava inveja em

alguns membros no clero os quais o acusaram de simpatizante dos cristãos novos

perseguidos pelo Santo Ofício. Em conseqüência foi chamado de semita, tendo que

provar que tinha de há muito descendência portuguesa e que sua família possuía

intrínsecos laços católicos.

Uma vez que julgava que não convencera ao Tribunal do Santo Ofício e diante das

intrigas que o envolviam, só lhe restou fugir para Espanha em 1724. Embora o Tribunal

da Inquisição tenha, posteriormente, desistido de inquirir Bartolomeu graças à gestões

feitas por seu irmão mais moço, frei João Álvares - o qual alegara que qualquer

comportamento fora da normalidade por parte de Bartolomeu deveria ser atribuído a

problemas mentais - o padre inventor permaneceu na Espanha. Neste país, ao passar

pela cidade de Toledo foi acometido por uma enfermidade, que o levou a morte no

Hospital de Misericórdia. Bartolomeu morre indigente e com nome falso, em 19 de

novembro de 1724. Seu sepultamento deu-se na Igreja de San Román, na mesma

cidade.

Hoje seus restos mortais estão depositados na Cripta da Catedral da Sé, São Paulo, em

local especialmente preparado para honrar este importante brasileiro considerado

precursor da aviação.

4 - O INVENTO DE BELÉM

Quanto à possibilidade de Bartolomeu haver

inventado um instrumento que, à exemplo do

carneiro hidráulico utiliza a própria queda da água

como força motriz, há que se proceder as

seguintes considerações: 1) pela descrição da Tia

Nem, tanto a vazão quanto à altura da queda

seriam compatíveis com o carneiro hidráulico que

Caixa d’água que abastece a atual

Vila de Belém, Cachoeira, 2005, foto

dos autores.

é um equipamento que funciona com base no “golpe de aríete”, um surto de pressão

que ocorre em um tubo conduzindo água, cujo escoamento sofre uma interrupção

abrupta. O carneiro hidráulico tem um sistema de válvula de impulso que se fecha pela

ação da pressão da água do tubo de alimentação. O funcionamento do carneiro

hidráulico é automático e a quantidade de água aproveitada será função do tamanho do

carneiro e da relação entre a queda disponível e a altura de recalque; 2) as inspeções no

local indicaram que as condições topográficas e ambientais para funcionamento do

invento de Bartolomeu existem, mas que a altura do recalque demandaria um carneiro

hidráulico de capacidade maior do que se poderia imaginar um instrumento concebido

para atender exclusivamente as necessidades do seminário; 3) um segundo tipo de

dificuldade diz respeito à tubulação que Bartolomeu teria utilizado. Em que pese já se

utilizasse tubulação de ferro fundido no início de 1700, admite-se que seria de grande

dificuldade produzir este tipo de material na Bahia, o que sugere possa ser o mesmo

importado de Portugal. Demais se acredita ser pouco provável que Bartolomeu tenha

construído tubulação de cerâmica ou utilizado matériais como bambu, que requereriam

tratamento sofisticado para conexões; 4) não foram encontrados em Cachoeira e nem

em Salvador mais detalhes do invento patenteado e o imaginário popular não acrescenta

muito com relação às semelhanças do tal invento com o “carneiro hidráulico” e com a

bomba à vácuo manual, instrumentos que só apareceram a partir da segunda metade do

século XVIII.

Pequena barragem do riacho da Vila de Belém, Cachoeira, 2005, foto dos autores

Bomba instalada na represa para o atual abastecimento de água da Vila de Belém, Cachoeira, 2005,

foto dos autores.

Estrada mostrando o desnível da barragem do riacho à Vila de Belém, Cachoeira, 2005, foto dos

autores.

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O alvará referente ao pedido de patente do invento de Bartolomeu, foi concedido em 12

de dezembro de 1705, através do Senado da Câmara da Bahia, tendo abrangência em

toda a colônia no final do ano seguinte. Dizia o alvará concedido pelo rei:

“Alvará para usar de um invento de fazer subir água e que ninguém se dele use sem lhe dar

400.000 reís.

Eu El-Rei faço saber aos que esta minha provisão virem que havendo respeito ao que se me

representou por parte de Bartolomeu Lourenço em razão de ter alcançado com seu estudo e

experiências um invento para fazer subir a água a toda a distância a que se quiser levar como com

efeito havia já posto por obra em um seminário de Belém e que com o mesmo invento podia fazer

moer os engenhos da beira-mar com água dele e os do mato com qualquer tanque rio ou fonte que

tiverem, fazendo para isso subir a água necessária, cujo invento aprovará o Senado da Câmara da

Bahia, atendendo a utilidade que dele podia resultar a todo o estado do Brasil, facultando-lhe

levar quatrocentos mil réis de donativo a cada senhor de engenho que usasse do dito invento, com

o qual se podiam trazer águas muito distantes e baixas a altura necessária para se fazerem

chafarizes e fontes públicas para o ornato das cidades e conveniência dos povos, e como do dito

invento se seguiram as ditas utilidades, era justo se lhe remunerasse o que adquiriu com tanto trabalho e desvelo [...]” (Taunay, 1938)

Como se pode avaliar, não existem maiores evidências sobre o instrumento concebido e

desenvolvido por Bartolomeu Gusmão, além da descrição acima. Nenhum registro e

nem mesmo qualquer parte do invento foi preservada. Ao que tudo indica ele não foi

reproduzido em série e não se fala de um segundo modelo mais desenvolvido. Se o

invento fosse eficaz, provavelmente teria sido produzido mais vezes, com ou sem a

permissão do inventor. Diante da escassa documentação, ausência de outras evidências,

etc. é difícil assumir que o invento tenha funcionado satisfatoriamente e que o mesmo

tenha se constituído em uma contribuição para a história da tecnologia. Não há qualquer

registro do invento no Arquivo Público da Bahia, em Salvador e nem em Cachoeira. Do

mesmo modo não se encontrou nenhuma referência em bibliotecas de conventos e

mosteiros de Salvador.

O que se pode registrar é um possível pioneirismo de Bartolomeu nos estudos da

hidráulica (condutos forçados), o qual pode ter sido de utilidade para desenvolvimento

do princípio do carneiro hidráulico.

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