Dezembro próximo contabiliza-se 320 anos do nascimento de Bartolomeu de Gusmão, celebre figura...
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A PASSAGEM DE BARTOLOMEU GUSMÃO PELA VILA DE BELÉM,
CACHOEIRA, BA
Amílcar Baiardi
Professor Titular, DSc, da UFBA, Programa de Pós-graduação em
Ensino, Filosofia e História da Ciência
Alex Vieira dos Santos
Pós-graduando em Ensino, Filosofia e História da Ciência
RESUMO
O trabalho focaliza uma fase pouco explorada da trajetória do padre Bartolomeu de
Gusmão como inventor e homem de ciência, anterior àquela na qual obteve maior
notoriedade com a construção de balões e com projetos de máquinas voadoras. O
ambiente científico-cultural do Brasil colonial, onde então vivia Bartolomeu, era, nessa
época, influenciado pelo denominado pragmatismo científico, uma visão na qual a
ciência especulativa e teórica deveria ceder lugar ao conhecimento de aplicações
práticas. Este é um período anterior à influência pombalina e à reforma da Universidade
de Coimbra, as quais impulsionaram Portugal para a modernidade. Na sua permanência
na Bahia, mais especificamente no Seminário Jesuíta de Belém, Bartolomeu, se revelou
como inventor, concebendo um dispositivo hidráulico que teria como função captar e
elevar a água de uma pequena lagoa até o Seminário, facilitando assim o abastecimento
ao colégio, que anteriormente era feito por recipientes transportados por animais ou por
escravos. A pesquisa reconstruiu historicamente o ambiente de cultura científica do
Seminário de Belém, realizou inspeções no local para detectar as condições topográficas
e ambientais para funcionamento do invento de Bartolomeu e verificou, tanto em
Cachoeira como em Salvador, a existência de mais detalhes sobre o invento patenteado.
1.INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2005 contabiliza-se 320 anos do nascimento de Bartolomeu de
Gusmão, religioso que se inseriu na galeria dos homens de ciência. Sobre a veracidade
do ano de seu nascimento Taunay comenta:
“Nasceu Bartolomeu Lourenço de Gusmão na vila do Porto de Santos, como então se dizia, em dia ignoto do ano de 1685. Provou o Visconde de S. Leopoldo, insofismavelmente, haver o Voador
nascido neste milésimo. Graças aos elementos hauridos no Arquivo da Cúria Metropolitana de S.
Paulo podemos estabelecer uma retificação definitiva já não só quanto ao ano do nascimento de
Bartolomeu como quanto ao mês em que veio ao mundo. Batizado na segunda-feira, dezenove de Dezembro de 1685, deve ter nascido, quiçá, neste mesmo dia, ou na véspera, ou, quando muito, na
semana anterior. Havia naqueles tempos de profundíssima fé o maior açodamento em batizar os
recém nascidos.” (Taunay, 1942)
Ao se falar de Bartolomeu de Gusmão é inevitável a referencia a sua posição de patrono
da aerostação, titulo este concedido devido a primacial posição assumida na disputa pela
navegação aérea. O presente trabalho, contudo, sugere uma analise sobre o obscuro
período de formação, quando o mesmo após o término dos estudos primários, dirigiu-se
para a Bahia a fim de complementar seus conhecimentos em Curso de Humanidades. O
trabalho focaliza uma fase pouco explorada da trajetória do padre Bartolomeu de
Gusmão como inventor e homem de ciência, a qual é anterior àquela na qual obteve
maior notoriedade com a construção de balões e com projetos de máquinas voadoras. O
ambiente científico-cultural do Brasil colonial, onde então vivia Bartolomeu, era, nessa
época, influenciado pelo denominado pragmatismo científico, uma visão na qual a
ciência especulativa e teórica deveria ceder lugar ao conhecimento de aplicações
práticas, voltado para o aumento da riqueza do Estado, então Reino de Portugal, e para a
melhoria das condições de vida dos indivíduos. Este é um período anterior à influência
pombalina e à reforma da Universidade de Coimbra, as quais impulsionaram Portugal
para a modernidade. É um momento que precede a expulsão dos jesuítas e no qual havia
um escasso interesse pela ciência em geral e uma maior preferência pelo saber de
caráter mais pragmático, conhecimento útil.
Nestas décadas, fim do século XVII e início do século XVIII, Bartolomeu de Gusmão
começa a se tornar conhecido pela capacidade de memorizar poemas em latim e decide
associar a formação religiosa com interesse pelo saber técnico-científico útil. Após o
término dos estudos primários realizados em Santos, São Paulo, Bartolomeu viaja para
Portugal, após uma breve estadia na Bahia. Em Portugal permanece cerca de quatro
anos, retornando à Bahia com o propósito de complementar sua formação em Curso de
Humanidades. Nesta ocasião Bartolomeu dirige-se para o Seminário de Belém, que era
então uma instituição de Estudos Gerais, na qual, ademais da formação religiosa, se
ensinava ciência, retórica, doutrina do direito, enfim, funcionava como universidade
embora não obtendo licença para adotar tal designação. Na sua segunda permanência na
Bahia, mais especificamente no Seminário Jesuíta de Belém onde se graduou como
noviço, Bartolomeu, se revelou como inventor, tendo, aos 20 anos, requerido à Câmara
da Bahia os direitos de propriedade intelectual de um invento destinado a recalcar água
para abastecimento humano. Na ocasião o Seminário em Belém era dirigido pelo seu
fundador, padre Alexandre de Gusmão. A semelhança do sobrenome Gusmão entre
Bartolomeu e o fundador do seminário, não é decorrente de coincidência nem de
parentesco. O fato é devido ao Padre Alexandre de Gusmão ter sido um grande amigo
da família de Bartolomeu, razão pela qual emprestou sobrenome para três dos doze
filhos do pai de Bartolomeu, o cirurgião-mor da Vila de Santos, Francisco Lourenço
cuja esposa era dona Maria Alves. Um desses filhos é Bartolomeu de Gusmão e outro
era Alexandre de Gusmão, homônimo completo, o qual, após ir para Portugal, chegou a
ocupar o cargo de secretário do rei D. João V e tornou-se conhecido como o negociador
que consolidou as fronteiras brasileiras expandidas para oeste pelos bandeirantes,
anulando o que fora disposto pelo Tratado de Tordesilhas. Bartolomeu e seu irmão
Alexandre chegaram a estudar no Seminário de Belém, na Bahia, no mesmo período.
Em Belém de Cachoeira, de acordo com a historiografia e com memória oral da
população, Bartolomeu concebe e desenvolve sua primeira invenção, um dispositivo
hidráulico que teria como função captar e elevar a água de uma pequena lagoa até o
Seminário, facilitando assim o abastecimento ao colégio, o qual era, então, feito por
recipientes transportados por animais ou por escravos.
A segunda estada de Bartolomeu Gusmão na Bahia, mas especificamente no Seminário
Jesuíta de Belém, onde se tornou noviço, ainda revela-se como capitulo a ser
desvendado, incluindo nele o enigma do seu principal invento, concebido quando
Bartolomeu tinha 20 anos e para o qual requereu à Câmara da Bahia os direitos de
propriedade intelectual.
2 - A VILA DE BELÉM E O CONTEXTO HISTÓRICO DO SEMINÁRIO DOS
JESUITAS
A Vila de Belém é um povoado, inserido em um distrito do mesmo nome, do município
de Cachoeira, Bahia, localizado na Região do Recôncavo Baiano, cerca de 100 km de
Salvador. Cachoeira, que mais tarde iria se notabilizar como sede da resistência à
dominação lusitana na Bahia, a qual se estendeu após a independência do Brasil em
1822 até 2 de julho de 1823, era um próspera cidade já no século XVII por se constituir
em um porto para escoamento de produtos resultantes das atividades agrícolas e
agroindustriais do Recôncavo Baiano, principalmente derivados da produção de cana e
de fumo.
O ambiente científico cultural do Seminário de Belém era, ainda que tardiamente,
segundo Baiardi (2002), influenciado pelo denominado “terceiro momento
epistemológico” da história da ciência, aquele do Renascimento, marcado pela rejeição
da visão cosmológica aristotélica mediada pela construção ontológica de Tomás de
Aquino. Além desta influência de natureza epistemológica, havia uma outra decorrente
do prestígio da práxis baconiana na ciência, enaltecendo o conhecimento útil.
Apesar dos
preceitos de Bacon
terem nascido e se
divulgado no
ambiente
protestante, cerca de
100 anos depois os
mesmo passaram a
influenciar também
o mundo católico.
Esta influência
atingia o Seminário
Jesuíta de Belém o
qual se destacava na
Província da Bahia
pela excelência do Igreja e Seminário de Belém, 2005, foto dos autores
ensino, combinando a formação religiosa com a formação humanista e dando espaço
para formação naturalista, cuja tradição levou ao Pe Camile Torrend, e para formação
em ciências denominadas exatas.
Vista Panorâmica da Vila de Belém, Cachoeira, 2005, foto dos autores
3 - BARTOLOMEU COMO INVENTOR
Em seus 39 anos de vida, muitas foram suas contribuições ao adimensional teatro das
descobertas e das especulações humanas. Como dantes citado, sua posição precursora
na aeronavegação, deu-se quando o mesmo dirigiu-se para Lisboa em caráter definitivo,
isto porque ele foi à capital do império pela primeira vez quando tinha pouco mais de 15
anos, o que não impediu de realizar estudos de direito religioso em Coimbra e de
formação sacerdotal na Companhia de Jesus em Lisboa, provavelmente em 1701. Antes
de concluir os estudos em Portugal, Bartolomeu realizou aprofundamentos em
matemática e física mecânica.
Por destacar-se como hábil pregador - com notável inteligência e espantosa memória,
sendo capaz de recitar sem leitura todos os versos dos poetas latinos Virgilio, Horácio e
Ovídio, bem como vários livros da sagrada escritura - recebeu do rei Dom João V o
honorífico cargo de capelão da Casa Real, função que, aparentemente, não exerceu.
Dedicou-se, a partir de então, a seus inventos e volta à Bahia. O retorno se dá por
motivos pouco claros, provavelmente a convite do Pe Alexandre Gusmão. Bartolomeu
retorna a Bahia, aproximadamente nos primeiros anos dos setecentos, 1702 ou 1703.
Uma vez na província, foi para Belém para completar sua formação e com muita
probabilidade para atuar também na condição de professor, dada a qualificação obtida
em Coimbra, onde foi influenciado pela onda renascentista tardia que levou à reforma
do ensino e à abertura do ambiente lusitano para a nova forma de ver a ciência e a
pesquisar. Já em Belém coloca em prática sua primeira investida no ramo das
invenções, a construção de um dispositivo hidráulico, que teria como função primordial,
servir como bomba para recalque de água de um riacho que flui para o rio Paraguaçu,
facilitando assim o abastecimento ao colégio, o qual outrora se daria por meio da tração
animal ou nas costas dos homens.
Segundo os moradores entrevistados - foram realizadas 4 entrevistas com pessoas com
mais de 65 anos, todas elas ligadas à atividades religiosas, as quais levavam as mesmas
a serem zeladores da igreja, promotoras de eventos e mais conhecedoras, por
conseqüência, da história do seminário - os relatos da existência do instrumento de
recalque correspondem à realidade, não sendo fruto de imaginação ou lenda. Demais,
afirmaram também que segundo relato dos moradores mais antigos para os mais jovens,
aquilo que se define como a “via da memória oral”, era sensato acreditar que o
instrumento funcionara. Entretanto, não souberam dizer a razão para o mesmo se perder
no tempo. Nem tampouco souberam informar se era tão eficiente a ponto de substituir o
transporte braçal feito por escravos ou o transporte animal.
Perguntados se a razão para que o invento não fizesse sucesso estaria ligada ao fato do
mesmo substituir o trabalho escravo, ou não remunerado, não gerando, portanto,
interesse em economizar trabalho braçal, os entrevistados não souberam responder.
Ainda segundo relato dos moradores, a bica, local onde Bartolomeu instalou seu
dispositivo, tinha duas saídas de água e fazia parte de uma construção de alvenaria tipo
pequena barragem, a qual era abastecida pelo mesmo riacho que hoje alimenta uma
represa da qual se retira água para a população da vila de Belém. As vazões das duas
saídas de água estavam localizadas dois metros acima do canal de jusante que levava ao
riacho que verte para o Rio Paraguaçu e, segundo pôde-se estimar pelas descrições,
tinham uma capacidade de escoamento de 1 a 2 m3 por segundo.
As mesmas fontes relataram que a bica já não existe, foi demolida para aproveitamento
do seu material em construções, em decorrência do riacho ter sido assoreado pela
prática de pastoreio extensivo e desmatamento da vegetação margeadora do mesmo. De
acordo ainda com os relatos, o desmatamento e assoreamento levaram a uma perda de
vazão e a um outro curso ou desvio do riacho. O terreno onde se localizava a bica
pertencia à igreja, mas esta nunca promoveu qualquer ação no sentido de controlar a
ação de posseiros e invasores que desmatavam e criavam animais no local.
Entre os entrevistados, a moradora da Vila de Belém com idade mais avançada, Tia
Nem, com 75 anos, foi a que mais esclareceu fatos e versões pouco claros. A mesma foi,
categórica ao informar, sem qualquer indução, que o dispositivo de recalque se
assemelharia a um carneiro hidráulico.
Concluídos os estudos secundários, em Belém, na qual aparentemente foi professor,
mas também complementou sua formação, Bartolomeu embarcou para a metrópole,
provavelmente no final de 1708, vindo a matricular-se na Faculdade de Cânones da
Universidade de Coimbra em 1708. Aí, desenvolveu notavelmente os seus estudos de
Física e Matemática que desde a adolescência tanto o tinham interessado. Nesse mesmo
ano, trabalha no projeto de um engenho "mais-leve-que-o-ar", em detrimento de todo o
resto. Sobre o episódio que o levou a conceber o principio do denominado "instrumento
de andar pelo ar", consta que ao observar uma pequena bola de sabão pairando no ar, se
inspirou para a concepção do instrumento, atentando para o fato de que quando uma
bolha de sabão passava por uma fonte de calor ela se elevava mais ainda. Com base em
suas hipótese, Bartolomeu solicitou a D. João V, em abril de 1709, a permissão de
apresentar o produto de seus estudos diante da Corte. Dizia a solicitação:
“Senhor. Diz o licenciado Bartolomeu Lourenço que ele tem descoberto um instrumento para
andar pelo ar, da mesma sorte do que pela terra, e pelo mar, e com muito mais brevidade,
fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas por dia nos tais instrumentos.
Se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos, e às terras mais remotas, quase no mesmo tempo em que se resolverem, porque interessa a Vossa Majestade muito mais do que
nenhum dos outros príncipes, pela maior distância dos seus domínios, evitando-se, dessa sorte, os
desgovernos das conquistas que provêm, em grande parte, de chegar muito tarde as notícias delas.
Além do que poderá Vossa Majestade mandar vir o precioso delas, muito mais brevemente e mais
segura poderão os homens de negócio passar letras, e cabedais e todas as praças sitiadas poderão
ser socorridas, tanto de gente, como de munições, e víveres a todo tempo e tirarem-se delas todas
as pessoas que quiserem. Sem que o inimigo o possa impedir, descobrir as regiões que ficarão
mais vizinhas aos pólos do mundo.”1
Bartolomeu ainda acrescenta à sua idéia que seu invento serviria para atacar inimigos,
como, por exemplo, os corsários de origem francesa do Rei-Sol. Os registros de sua
invenção foram deixados em sua obra “Descrição do Novo Invento Aerostático ou
Máquina Volante, do Método para Produzir o Gás Vapor com que se Enche”. A tão
sonhada viagem humana pelo instrumento imaginado por Bartolomeu não chegou a ver,
mas inventores franceses, 74 anos depois, a conseguiram. Há relatos que em sua
passagem por Paris Alexandre de Gusmão, que era depositário dos planos de
Bartolomeu após sua fuga para Espanha, manteve estreitas relações com João de Barros,
amigo pessoal dos Montgolfier, Joseph Michel (1740-1810) e Étienne (1745-1799), os
quais, em meados do século XVIII, na França, realizaram experiências com balões e
após várias tentativas conseguiram, em setembro de 1783, transportar três animais e em
novembro do mesmo ano um balão aquecido sobrevoou Paris com duas pessoas.
Há registros de que em 1710, Bartolomeu voltou a se interessar pela hidráulica
concebendo um mecanismo automático para esgotamento da água acumulada no porão
das naus. Este segundo invento pode ter sido inspirado no primeiro, concebido em
Belém de Cachoeira, Bahia, Brasil. Após estas experiências, por razões inexplicadas,
começa uma outra vida de Bartolomeu de Gusmão, tendo em 1711, viajado para Roma,
numa visita diplomática. No seu retorno foi nomeado, Secretário dos Estrangeiros.
O padre inventor foi um dos primeiros integrantes escolhidos para fazer parte da Real
Academia Histórica de Portugal, quando da sua criação, em 1720, ano em que encerra
seu doutoramento, após sucessivas interrupções dos estudos desde sua entrada em
Coimbra em 1708/1709. Em 6 de agosto de 1721, inventou um processo para produzir
carvão de terras artificiais. Projetou ainda fabricar artefatos hidráulicos, particularmente
um sobre o qual escreveu o opúsculo de 13 páginas publicado em Lisboa e intitulado
“Vários Modos de Esgotar sem Gente as Naus que Fazem Água”. Além de falar
fluentemente o latim, o francês e o italiano, Bartolomeu traduzia com facilidade o grego
e o hebraico. D. João V mandou que lhe dessem uma subvenção de 300 mil réis anuais,
a fim de que prosseguisse nos estudos, mas a Junta dos Três Estados negou-se a lhe dar
este auxílio sob a alegação de que não havia dinheiro. Bartolomeu, como o irmão,
sempre foi vítima da zombaria de seus contemporâneos e de suspeitas por parte da
Inquisição por ser amigo de judeus.
1 Enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História (volume I, 1969, Editora Abril Cultural, São
Paulo/SP).
Para escapar deste clima de perseguição, viajou para a Holanda, onde fez experiências
com lentes, e para a França, onde vendeu nas ruas de Paris remédios por ele mesmo
fabricados. Era um espírito inquieto, sempre inventando alguma coisa, sempre
experimentando novos ramos do saber. Estudou Direito, teve atuação brilhante nos
tribunais, e cumpriu as missões diplomáticas, sempre com o apoio de Dom João V. Para
o rei, foi um homem de muita inteligência, além de curioso, com sua mania de inventar.
Para os fidalgos e os inquisidores, era um louco que inexplicavelmente gozava dos
favores da Corte.
Excepcionalmente douto, versado em filologia e falando fluentemente outras línguas,
elaborou inúmeros trabalhos literários e outros tanto de caráter científico. Tornaram-se
famosos também os seus sermões. É feito Fidalgo-Capelão da Casa Real, em 1722.
Contudo, as intrigas da corte fá-lo-iam cair em desgraça, tendo-lhe valido os jesuítas
quando a Inquisição já o perseguia. A mente inventiva e a personalidade aberta de
Bartolomeu não passam desapercebidas aos juízes do Tribunal da Inquisição. Por razões
não muito claras, mas, como costumava acontecer, Bartolomeu provocava inveja em
alguns membros no clero os quais o acusaram de simpatizante dos cristãos novos
perseguidos pelo Santo Ofício. Em conseqüência foi chamado de semita, tendo que
provar que tinha de há muito descendência portuguesa e que sua família possuía
intrínsecos laços católicos.
Uma vez que julgava que não convencera ao Tribunal do Santo Ofício e diante das
intrigas que o envolviam, só lhe restou fugir para Espanha em 1724. Embora o Tribunal
da Inquisição tenha, posteriormente, desistido de inquirir Bartolomeu graças à gestões
feitas por seu irmão mais moço, frei João Álvares - o qual alegara que qualquer
comportamento fora da normalidade por parte de Bartolomeu deveria ser atribuído a
problemas mentais - o padre inventor permaneceu na Espanha. Neste país, ao passar
pela cidade de Toledo foi acometido por uma enfermidade, que o levou a morte no
Hospital de Misericórdia. Bartolomeu morre indigente e com nome falso, em 19 de
novembro de 1724. Seu sepultamento deu-se na Igreja de San Román, na mesma
cidade.
Hoje seus restos mortais estão depositados na Cripta da Catedral da Sé, São Paulo, em
local especialmente preparado para honrar este importante brasileiro considerado
precursor da aviação.
4 - O INVENTO DE BELÉM
Quanto à possibilidade de Bartolomeu haver
inventado um instrumento que, à exemplo do
carneiro hidráulico utiliza a própria queda da água
como força motriz, há que se proceder as
seguintes considerações: 1) pela descrição da Tia
Nem, tanto a vazão quanto à altura da queda
seriam compatíveis com o carneiro hidráulico que
Caixa d’água que abastece a atual
Vila de Belém, Cachoeira, 2005, foto
dos autores.
é um equipamento que funciona com base no “golpe de aríete”, um surto de pressão
que ocorre em um tubo conduzindo água, cujo escoamento sofre uma interrupção
abrupta. O carneiro hidráulico tem um sistema de válvula de impulso que se fecha pela
ação da pressão da água do tubo de alimentação. O funcionamento do carneiro
hidráulico é automático e a quantidade de água aproveitada será função do tamanho do
carneiro e da relação entre a queda disponível e a altura de recalque; 2) as inspeções no
local indicaram que as condições topográficas e ambientais para funcionamento do
invento de Bartolomeu existem, mas que a altura do recalque demandaria um carneiro
hidráulico de capacidade maior do que se poderia imaginar um instrumento concebido
para atender exclusivamente as necessidades do seminário; 3) um segundo tipo de
dificuldade diz respeito à tubulação que Bartolomeu teria utilizado. Em que pese já se
utilizasse tubulação de ferro fundido no início de 1700, admite-se que seria de grande
dificuldade produzir este tipo de material na Bahia, o que sugere possa ser o mesmo
importado de Portugal. Demais se acredita ser pouco provável que Bartolomeu tenha
construído tubulação de cerâmica ou utilizado matériais como bambu, que requereriam
tratamento sofisticado para conexões; 4) não foram encontrados em Cachoeira e nem
em Salvador mais detalhes do invento patenteado e o imaginário popular não acrescenta
muito com relação às semelhanças do tal invento com o “carneiro hidráulico” e com a
bomba à vácuo manual, instrumentos que só apareceram a partir da segunda metade do
século XVIII.
Pequena barragem do riacho da Vila de Belém, Cachoeira, 2005, foto dos autores
Bomba instalada na represa para o atual abastecimento de água da Vila de Belém, Cachoeira, 2005,
foto dos autores.
Estrada mostrando o desnível da barragem do riacho à Vila de Belém, Cachoeira, 2005, foto dos
autores.
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O alvará referente ao pedido de patente do invento de Bartolomeu, foi concedido em 12
de dezembro de 1705, através do Senado da Câmara da Bahia, tendo abrangência em
toda a colônia no final do ano seguinte. Dizia o alvará concedido pelo rei:
“Alvará para usar de um invento de fazer subir água e que ninguém se dele use sem lhe dar
400.000 reís.
Eu El-Rei faço saber aos que esta minha provisão virem que havendo respeito ao que se me
representou por parte de Bartolomeu Lourenço em razão de ter alcançado com seu estudo e
experiências um invento para fazer subir a água a toda a distância a que se quiser levar como com
efeito havia já posto por obra em um seminário de Belém e que com o mesmo invento podia fazer
moer os engenhos da beira-mar com água dele e os do mato com qualquer tanque rio ou fonte que
tiverem, fazendo para isso subir a água necessária, cujo invento aprovará o Senado da Câmara da
Bahia, atendendo a utilidade que dele podia resultar a todo o estado do Brasil, facultando-lhe
levar quatrocentos mil réis de donativo a cada senhor de engenho que usasse do dito invento, com
o qual se podiam trazer águas muito distantes e baixas a altura necessária para se fazerem
chafarizes e fontes públicas para o ornato das cidades e conveniência dos povos, e como do dito
invento se seguiram as ditas utilidades, era justo se lhe remunerasse o que adquiriu com tanto trabalho e desvelo [...]” (Taunay, 1938)
Como se pode avaliar, não existem maiores evidências sobre o instrumento concebido e
desenvolvido por Bartolomeu Gusmão, além da descrição acima. Nenhum registro e
nem mesmo qualquer parte do invento foi preservada. Ao que tudo indica ele não foi
reproduzido em série e não se fala de um segundo modelo mais desenvolvido. Se o
invento fosse eficaz, provavelmente teria sido produzido mais vezes, com ou sem a
permissão do inventor. Diante da escassa documentação, ausência de outras evidências,
etc. é difícil assumir que o invento tenha funcionado satisfatoriamente e que o mesmo
tenha se constituído em uma contribuição para a história da tecnologia. Não há qualquer
registro do invento no Arquivo Público da Bahia, em Salvador e nem em Cachoeira. Do
mesmo modo não se encontrou nenhuma referência em bibliotecas de conventos e
mosteiros de Salvador.
O que se pode registrar é um possível pioneirismo de Bartolomeu nos estudos da
hidráulica (condutos forçados), o qual pode ter sido de utilidade para desenvolvimento
do princípio do carneiro hidráulico.
REFERÊNCIAS
BAIARDI, A. Sociedade e Estado no apoio à ciência e à tecnologia: uma análise
histórica. São Paulo: HUCITEC, 1996.
___________ A evolução das ciências agrárias nos momentos epistemológicos da
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