Da mundivisão de António Vieira ao "cinema mental" de Manoel de Oliveira: O "Quinto Império" e as...

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Maria Irene Aparício / Versão draft de 07 de Maio de 2015 DOI: 10.13140/RG.2.1.2171.7928 1 NOTA: Este texto é a versão draft de um capítulo de livro, em fase de preparação pela sua autora. Qualquer citação do mesmo, antes da referida publicação em livro, deve incluir a referência ao respectivo DOI: 10.13140/RG.2.1.2171.7928 Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória 1 Maria Irene Aparício 2 «Se quereis vêr o futuro, lede as historias e olhae para o passado: se quereis vêr o passado, lede as prophecias e olhae para o futuro. E quem quizer vêr o presente, para onde ha-de olhar? Digo que olhe juntamente para um e outro espelho.» (Vieira apud Almeida e Lourenço, O Livro de Ouro, p. 74) Padre António Vieira O Quinto Império, Ontem como Hoje de Manoel de Oliveira (Portugal/França, 2004), filme marcado pela palavra do Padre António Vieira (1608-1697) encena duas temáticas que orientam esta reflexão; a primeira diz respeito ao contexto histórico e filosófico para o qual reenvia a narrativa do filme – o curto reinado de Dom Sebastião (1557-1578) e “a mundivisão barroca d` O Quinto Império”; a segunda reflecte a reflexividade do cinema, as relações do filme com a temática geral das artes, a contemporaneidade das questões abordadas e a sua influência na delimitação de uma identidade socio-cultural que é, neste caso, marcada pela persistente ideia de utopia. Ambas as questões se relacionam com a problemática da consciência, particularmente sob os signos da memória, do tempo e da história, e tendo como matrizes no cinema dois regimes imagéticos específicos: a imagem visual e sonora e a imagem mental. Recorrendo, por um lado à teorização proposta por Pedro Calafate 3 , da mundividência afecta ao pensamento filosófico de Vieira, e por outro à mitologia da saudade delineada por Eduardo Lourenço, este ensaio é uma tentativa de religar algumas ideias transversais à história, ao cinema e ao pensamento filosófico português. Deste modo, a abordagem da primeira questão é enformada por uma contextualização do barroco, configurada pelo pensamento filosófico de Vieira 1 A primeira versão deste texto data de 2013, e a problematização temática reenvia para o contexto do Ciclo de Cinema “Mind, Consciousness, and Emotions” decorrido no contexto da vertente Pedagógica “Philosophy through Film”, do Projecto “Film & Philosophy: Mapping an Encounter”, financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia e Coordenado pelo Professor Doutor João Mário Grilo. 2 FCSH-UNL / Ifilnova – AeLab – Laboratório de Estética e Filosofia das Práticas Artísticas / Apoio à investigação FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 3 Pedro Calafate (Direcção de). “A mundividência de António Vieira”. História do Pensamento Filosófico Português, Volume II, Renascimento e Contra-Reforma. Lisboa: Editorial Caminho, SA, 2011, pp. 703-731. Draft ec ontempora ontempor dade socio-cultura e socio-cult stões se re relacionam com lacionam com ória, do o tempo tempo e da da h h pecíficos: a os: a imagem vis magem vis ecorrendo, por um lad correndo, por um lad a ao pensamento filosó ao pensamento filos o Lourenço, este Lourenço, est o pensam pensam version ra o passado: se que do: se q . E quem quizer vêr o pr quizer vêr o pr mente para um e outro es um e outro e e Ouro, p. 74) p. 74) Padre An re A l de Oliveira (P liveira (Portuga ortuga (1608-1697) encena d 697) encena d contexto histórico e fi histórico e fi Dom Sebastião (1557- bastião (1557 reflexividade do eflexivida ade das

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Maria Irene Aparício / Versão draft de 07 de Maio de 2015

DOI: 10.13140/RG.2.1.2171.7928 1

NOTA: Este texto é a versão draft de um capítulo de livro, em fase de preparação pela sua autora. Qualquer citação do mesmo, antes da referida publicação em livro, deve incluir a referência ao respectivo DOI: 10.13140/RG.2.1.2171.7928

Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória1

Maria Irene Aparício2

«Se quereis vêr o futuro, lede as historias e olhae para o passado: se quereis vêr o passado, lede as prophecias e olhae para o futuro. E quem quizer vêr o presente, para onde ha-de olhar? Digo que olhe juntamente para um e outro espelho.» (Vieira apud Almeida e Lourenço, O Livro de Ouro, p. 74)

Padre António Vieira

O Quinto Império, Ontem como Hoje de Manoel de Oliveira (Portugal/França, 2004), filme

marcado pela palavra do Padre António Vieira (1608-1697) encena duas temáticas que orientam

esta reflexão; a primeira diz respeito ao contexto histórico e filosófico para o qual reenvia a

narrativa do filme – o curto reinado de Dom Sebastião (1557-1578) e “a mundivisão barroca d` O

Quinto Império”; a segunda reflecte a reflexividade do cinema, as relações do filme com a

temática geral das artes, a contemporaneidade das questões abordadas e a sua influência na

delimitação de uma identidade socio-cultural que é, neste caso, marcada pela persistente ideia de

utopia. Ambas as questões se relacionam com a problemática da consciência, particularmente sob

os signos da memória, do tempo e da história, e tendo como matrizes no cinema dois regimes

imagéticos específicos: a imagem visual e sonora e a imagem mental.

Recorrendo, por um lado à teorização proposta por Pedro Calafate3, da mundividência

afecta ao pensamento filosófico de Vieira, e por outro à mitologia da saudade delineada por

Eduardo Lourenço, este ensaio é uma tentativa de religar algumas ideias transversais à história, ao

cinema e ao pensamento filosófico português. Deste modo, a abordagem da primeira questão é

enformada por uma contextualização do barroco, configurada pelo pensamento filosófico de Vieira

1 A primeira versão deste texto data de 2013, e a problematização temática reenvia para o contexto do Ciclo de Cinema “Mind, Consciousness, and Emotions” decorrido no contexto da vertente Pedagógica “Philosophy through Film”, do Projecto “Film & Philosophy: Mapping an Encounter”, financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia e Coordenado pelo Professor Doutor João Mário Grilo. 2 FCSH-UNL / Ifilnova – AeLab – Laboratório de Estética e Filosofia das Práticas Artísticas / Apoio à investigação FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 3 Pedro Calafate (Direcção de). “A mundividência de António Vieira”. História do Pensamento Filosófico Português,Volume II, Renascimento e Contra-Reforma. Lisboa: Editorial Caminho, SA, 2011, pp. 703-731.

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Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória

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que perspectiva a “vida como um jogo”, “a loucura do mundo sob a dicotomia de santos e heróis”,

mas também os abismos entre o tempo da história e a dimensão onírica da vida, bem como a

apologia política do Quinto Império. Quanto à segunda, procuramos mostrar em que medida o

cinema de Manoel de Oliveira, na sua relação com a literatura, a poesia e o teatro, se ajusta a uma

ideia de “cinema mental”, afirmada pelo próprio cineasta, e efectivada pela utilização de uma

estrutura narrativa e opções de montagem que imbricam níveis de real, ficção e memória

reconfigurados pela imaginação; um cinema cujas imagens são, em última análise, metáforas de

uma dimensão incomensurável do “imaginário português” que, segundo Eduardo Lourenço, se

assoma na «rêverie do poeta, [na] especulação do cientista ou do filósofo» porque é «a imaginação

[que] transforma, transfigura e remodela a face do mundo»4.

Na obra de Oliveira, e em particular no filme O Quinto Império: Ontem como Hoje, assiste-

se, portanto, a um processo de evocação de questões de índole filosófica e existencial intrínsecas à

condição humana, nomeadamente o confronto entre razão e imaginação; a consciência e a

identidade cultural –, problemas esses que se inscrevem na démarche da contemporaneidade, o que

revela, por sua vez, a tendência para a indiferença do cinema perante uma imagem conforme à

percepção estrutural e estruturada dos eventos da história, em benefício dos pequenos e quase

imperceptíveis processos conjunturais inerentes à vida quotidiana e ao tempo – interno, subjectivo

e transparente –, das estórias, isto é, à sua duração. Tal como outros filmes do cineasta, O Quinto

Império convoca diferentes “imagens” e retratos, mas também "vozes" provenientes da literatura,

da história e das artes, incluindo o próprio cinema (outros filmes do cineasta), e, através delas,

inicia o contágio inevitável do presente pelo passado e pela antecipação do futuro. Em

"Conversations avec Manoel de Oliveira", confrontamos a afirmação do cineasta: «A voz conta o

que o romancista contou. [...]. A voz é autónoma. Tem um valor muito forte nos meus filmes, tanto

como a imagem. A voz ou um momento de acção têm o mesmo valor»5. Noutra entrevista

posterior, conduzida por Jean A. Gili, sob o tema "A Mental Conception of Cinema", Oliveira volta

a sublinhar esta questão, insistindo na ideia do filme como imagem composta a partir da realidade,

mas abstraindo-se dela: «Um filme não é apenas imagem. [...] A banda sonora torna-se cada vez

mais importante no cinema. A cor, o som, as palavras são a riqueza e a matéria-prima do cinema

através da qual se opera a transmissão directa do pensamento, de uma forma abstracta, mas

também visualmente»6. O sentido do filme é, deste modo, construído a partir do jogo das suas

4 Eduardo Lourenço. O Labirinto da Saudade. Lisboa: Gradiva, 2012, p. 56. 5 Antoine de Baecque e Jacques Parsi. Conversations avec Manoel de Oliveira. Tradução portuguesa de Henrique Cunha: Conversas com Manoel de Oliveira. Porto: Campo das Letras, 1999, p. 87. 6 Jean A. Gili. "A Mental Conception of Cinema" in Randal Johnson. Manoel de Oliveira. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2007, pp. 141-154.

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Maria Irene Aparício / Versão draft de 07 de Maio de 2015

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matérias, em articulação com a(s) experiência(s) e memória(s) dos "actores"; os do filme e os da

vida quotidiana ali reflectidos pelo cineasta e os seus espectadores.

Ancorado no universo labiríntico da experiência humana enfatizado por Vieira, e ao qual

alude Calafate, Oliveira estabelece a mise en scène da «vida como um jogo», percorrendo os

meandros imaginários e imaginados de alguns momentos irrepresentáveis da vida (quase) privada

de um rei, em particular os bastidores do curto reinado de D. Sebastião (Ricardo Trêpa) nos

momentos que antecedem a Batalha de Alcácer-Quibir e o desaparecimento precoce do rei louco7.

O resultado é o retrato cinematográfico, intimista, de um rei dominado pela ambição e as angústias

do poder, imerso nos sonhos imperialistas e num ideal de glória8, gerindo o reino a partir de

"dentro". Na dupla ambiguidade da personagem, ora construída a partir de um plano subjectivo, ora

legitimada pelo documento da história, Oliveira projecta um “cinema mental”, singularizado pelos

processos narrativos (a palavra) e visuais (a imagem) do filme.

1. Da mundivisão barroca d`O Quinto Império à mitologia da saudade

O termo mundivisão – ou mundividência, na terminologia usada por Calafate – significa

organização do cosmos, mas também visão ou concepção do mundo de um ponto de vista humano

e que inclui um imbricamento espiritual com o mesmo. Para Calafate, o pensamento filosófico de

António Vieira é marcado pelo que o autor designa como «mundividência barroca», que se

caracteriza por uma «atitude de perplexidade do homem perante o seu mundo, a consciência do

mundo estonteante que a cada passo desgasta um quadro anterior»9, e que está bem evidente em

muitas das passagens dos Sermões. Nas palavras de Vieira, o ser humano é predestinado, e é seu

dever procurar alcançar «o fim para que nasceu», objectivo sem o qual, «é dia sem sol, é noite sem

estrella, é republica sem lei, é labyrintho sem fio, é armada sem pharol, é exercito sem bandeira,

emfim, é vontade às escuras, sem luz do intendimento que lhe mostre o mal e o bem e lhe dite o

que ha-de querer, ou fugir»10. Este sentido teleológico da vida orienta uma concepção do mundo 7 Em Mensagem, Fernando Pessoa faz o elogio da loucura, no prolongamento dessa ideia de sebastianismo: «Louco, sim, louco, porque quis grandeza / Qual a Sorte a não dá. / Não coube em mim minha certeza; / Por isso onde o areal está / Ficou meu ser que houve, não o que há § Minha loucura, outros que me a tomem / Com o que nela ia. / Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria?» Fernando Pessoa. “Mensagem” in Poesia do Eu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 360.8 Para uma contextualização histórica da vida de D. Sebastião ver Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz. “D. Sebastião, O Desejado” in Manuela Mendonça (Coord.). História dos Reis de Portugal. Da fundação à perda da independência, Volume 1, Lisboa: Academia Portuguesa da História / Quidnovi, 2000, pp. 729-784. 9 Ibid., 704. 10 Avelino de Almeida e M. Santos Lourenço. O Livro de Oiro do Padre António Vieira (Recopilação com Biografia e Notas). Porto: Antonio Dourado, Editor Catholico, 1897, 68. Escrita conforme o texto de referência.

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Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória

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ideal e ecuménico, um reino cristão na terra, por vir, que se traduziria num estado de paz universal,

e que Vieira designa justamente por Quinto Império;

«As partes, circumstancias e felicidades de que se compõe esse novo e mais perfeito império ou estado, eram a extirpação de todas as seitas de infiéis, a conversão de todas as gentes, a reforma da christandade e a paz geral entre os príncipes, a mais abundante graça do céu, com que se salvariam pela maior parte os homens, e se encheria o numero dos predestinados»11.

Ainda segundo Calafate, Vieira encontra na escatologia do Quinto Império, a confluência entre

dois mundos: o “mundo dos possíveis”, que é o mundo dos filósofos e o "mundo dos olhos" que é

o mundo dos retóricos. O filme de Oliveira, O Quinto Império, Ontem como Hoje, é, neste

contexto e a seu modo, uma imagem congénere do cruzamento possível entre os “dois mundos” de

Vieira, mas sobretudo uma concepção do mundo tributária de uma visão ocidental da cultura, que

molda o futuro à sua imagem. Adaptado da peça de teatro de José Régio (1901-1969) El-Rei

Sebastião: poema espectacular em três actos (1949), O Quinto Império, filmado em lugares

históricos, nomeadamente no Convento de Cristo, em Tomar, encontra nesses espaços (e.g. na

imagem da janela manuelina, por exemplo) e na literatura portuguesa – isto é, no monumento que

se converte em documento e vice- versa -, a ambiguidade e o poder de uma interrogação única

sobre o imaginário português consubstanciado no messianismo e no mito lusitano, literário e

histórico do “Desejado”, i.e. do “Encoberto” e nas profecias quinhentistas projectadas no

sebastianismo que, segundo Eduardo Lourenço, continuam a marcar a mentalidade de um certo

Portugal mítico e saudosista. Em boa verdade, a decisão régia, e a publicação a 10 de Junho de

1768, do “Edital prohibindo os livros das profecias de Bandarra e Simão Gomes çapateiro»12 em

nada impediu a proliferação do mito e a persistência de um modo de ser plasmado, aqui e ali, na

literatura e na poesia, alicerçadas por sua vez na memória colectiva e na história.

São as cinzas reveladoras desse imaginário da arte, desde sempre indiferente à palavra da

lei, que culminam no labirinto e na evidência de uma mitologia da saudade problematizada por

Lourenço13, constituindo-se como reflexo de uma identidade, uma "imagem de si" que um povo

tem e que, segundo o autor, a própria "filosofia portuguesa" oferece de nós mesmos. Isto é, nas

palavras do autor, «a mais articulada contra-imagem cultural do tipo místico-nacionalista que se

11 António Vieira. Trechos Selectos do Padre António Vieira, 1697-1897. Publicação Commemorativa do bi-centenário da sua morte. Lisboa: Typographia Minerva Central, 1897, p. 454. 12 Cf. Collecção da Legislação Portugueza desde a ultima compilação das ordenações, redigida pelo desembargador António Delgado da Silva. Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Na Typografia Maigrense, 1829, pp. 341-344. 13 Eduardo Lourenço. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999.

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conhece»14, uma imagem que o filme de Oliveira também desvela e expõe, tal como já se disse, na

rigidez estática dos seus enquadramentos e nos monólogos de D. Sebastião. Efectivamente, em

1978, quatro anos depois de Portugal «perder o seu império», Lourenço escrevia justamente, em O

Labirinto da Saudade, sobre o «irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses se fazem de

si mesmos»15 e sobre o modo como algumas Histórias de Portugal16 são «modelos de

"robinsonadas"» que «contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente

deserto»17. Para Lourenço, esta "imagem" traduz uma ausência de interlocutor, "forma mentis" que

se reflecte incondicionalmente na literatura portuguesa onde proliferam os monólogos e que são,

também, uma marca deste e doutros filmes de Oliveira. Encenado para o espectador em planos

frontais e estáticos que o colocam, simultaneamente, num lugar de observador e interlocutor, mas

também de observado pelo cinema, O Quinto Império revela bem a complexidade dessa imagem

especular – ontem como hoje –, bem como a persistência das «imagens e miragens do

sebastianismo», cuja herança é perscrutada por Eduardo Lourenço, à luz de uma necessidade de

repensar a história, para refazer as fronteiras de uma identidade cultural lusitana que os novos

tempos identificam com o termo não menos complexo e problemático de lusofonia. Para Lourenço,

«o sebastianismo é a manifestação histórica, ao mesmo tempo positiva e negativa, da ruptura desse

equilíbrio entre a vida real e imaginária, sintoma da desordem causada pela nostalgia da ordem»18.

O autor aponta as analogias entre o messianismo judaico e o português, com destaque para a

«consciente apropriação» de Vieira, onde o messianismo, «da ordem da contaminação e da

osmose», se configura mais universalizante, e conclui que «o Quinto Império sonhado por

Bandarra não é apenas o do regresso do rei Artur português para restaurar o pequeno reino

lusitano, nem propriamente o temporal reino de Cristo, visionado por António Vieira [...]»19, O

Quinto Império das profecias é um império cultural.

Em Figures de l` Histoire (2012), referindo-se à vocação específica do documentário

cinematográfico, Jacques Rancière fala da potência dos filmes para tornar visíveis os gestos

imperceptíveis e transformadores do quotidiano, sublinhando um poder da imagem que, em nosso

entender, é intrínseco a todo o cinema, e que se vislumbra no filme de Oliveira, onde o dilema 14 Eduardo Lourenço. O Labirinto da Saudade. Lisboa: Gradiva, 2012, p. 40. Na página sguinte, o autor acrescenta: «A mitificação assombrosa de natureza histórico-cultural de que a «filosofia portuguesa" foi exemplo, vendo bem, nada tem de bem original e é apenas, sob uma forma patológica, a reinvindicação de uma identidade que quase nos mesmos termos, em outros lugares ou tempos, outros povos e até continentes levaram a cabo (a Alemanha romântica, a Rússia de Dostoievski, a Espanha de 98, a América do Sul, a África de Senghor, etc.)». Ibid., p. 41. 15 Eduardo Lourenço. O Labirinto da Saudade. Lisboa: Gradiva, 2012, p. 23. 16 O autor refere como uma das excepções a obra de Alexandre Herculano (1810-1877). 17Ibid., p. 24. 18 Eduardo Lourenço. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 137. 19 Ibid., p. 141.

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Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória

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humano e subjectivo de Sebastião Homem ofusca a certeza “heróica” e “mítica” de Sebastião Rei,

escrevendo subliminarmente a sua estória contra a corrente da história. Questionando-se sobre o

significado da imagem que reflecte a condição histórica da vida, Rancière sustenta que a tomada de

consciência do cinema relativamente aos seus poderes marca o tempo de uma nova história que

confronta a «história-crónica» ou «história dos eventos» que é, também, a «história das grandes

personagens»» construída a partir dos «"documentos" dos seus secretários, arquivistas e

embaixadores [...]. A esta história, feita com os próprios traços que os homens da memória

escolheram deixar»20, o cinema opõe uma história construída a partir dos gestos da vida quotidiana,

e das paisagens interiores consubstanciadas em imagens reflexivas que estabelecem

frequentemente a ponte (invisível mas poderosa) entre as imagens visuais do mundo e as suas

imagens mentais. Assinalada a distância entre o filme de Oliveira – que apesar de tudo evoca

figuras maiores da história de Portugal – e um cinema dos pequenos eventos, é preciso dizer que o

próprio cineasta reconheceu ao seu cinema um trajecto ou passagem que se dirige mais à mente do

que às emoções;

«Durante os anos em que não filmei, escrevi guiões e reflecti sobre o cinema, do qual desenvolvi uma concepção mental. Antes disso tinha uma visão mais técnica. Hoje, tenho uma visão verdadeiramente mental, tal como Leonardo tinha da pintura. A mente é soberana. É claro que há sentimentos, mas procuro reduzi-los ao menor vestígio possível. Procuro eliminar a dimensão subjectiva, sentimental e psicológica. Procuro fixar-me nos factos [...]. Se procuro entendê-los, altero-os»21.

Referindo-se justamente ao filme O Quinto Império, Oliveira sublinha que, por detrás dos

diálogos, está «todo um universo mítico, a ideia do Quinto Império, e do poder da harmonia. A

região encontrou outra região, o país encontrou outro país, no sentido de encontrar um mundo

universal, que é o mito do Quinto Império»22. No limite, o que o cinema de Oliveira parece

encontrar neste filme (O Quinto Império (2004), tal como encontrara já em Non ou a Vã Glória de

Mandar (1990), é o território incomensurável do que Lourenço designa por «imagem dos

Portugueses não só no espelho do mundo, mas no [...] próprio espelho»23. Um plano subliminar e

mental traçado pela montagem. Uma imagem refractada onde se procura, ainda, uma espécie de

"retorno" ou repetição desse «momento de universalidade – mais sonhado do que real – mitificado 20 Jacques Rancière. Figures de l`Histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 2012, p. 25-26. A citação em epígrafe é uma reflexão em torno do filme Menschen am Sontag de Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer (Alemanha, 1929), o que não lhe retira, de qualquer modo, o seu valor de revelação sobre a relação entre história e cinema alicerçada no arquivo e e na memória. 21 Manoel de Oliveira apud Jean A. Gili. "A Mental Conception of Cinema" in Randal Johnson. Manoel de Oliveira.Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2007, pp. 147-148. 22 Manoel de Oliveira apud Ruy Gradnier. "An Interview with Manoel de Oliveira" in Randal Johnson. Manoel de Oliveira. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2007, p. 160. 23 Eduardo Lourenço. O Labirinto da Saudade. Lisboa: Gradiva, 2012, p. 43.

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menos por qualquer potência temporal do que pela irradiação de uma fé, vivida como luz e dom de

Deus»24. No filme, tal como na filosofia portuguesa, há uma clara evocação do homem universal e

da redenção profetizada pelo universalismo, temática que Calafate identifica no pensamento de

Vieira, mas que o cinema tem o poder acrescido de confrontar através da história e das suas

estórias. D. Sebastião, o Desejado, surge como ícone de um Portugal desde sempre dominado por

uma tensão socio-política que opõe, de facto, «o desconcertado mundo da experiência, na qual se

inscreve o tempo da vida breve, dominado pela fortuna, pelo acaso, e pela sorte»25, ao mundo

reflexivo da interioridade e da ipseidade; «tempo da conversão interior da pessoa humana. [...] §

De um lado o movimento labiríntico do mundo dos homens, impelido pela cobiça e efemeridade

dos valores, do outro a imperturbável sabedoria dos estóicos [...]»26, ali representada pelos

conselheiros e, também, de modo irónico, pelos bobos, no diálogo sobre “a cabeça”. Num artigo

sob o título “A utopia do Quinto Império em Vieira e nos pregadores da Restauração” (2004),

João Francisco Marques, historiador e consultor de Oliveira neste e noutros filmes do cineasta27,

evidencia que a maioria dos «oradores sagrados da nação» profetizaram durante séculos o «destino

universalista» de Portugal. O historiador fala sobre a eficácia dos Sermões de António Vieira,

reveladores de uma «[...] harmonização entre a existência histórica de Portugal – nascido num

contexto de cruzada [...] – e um destino universalista, a cumprir pelo seu povo [que] era não apenas

fácil num plano retórico, mas correspondia até a um sentimento radicado na consciência da

nação»28. Numa entrevista conduzida por Fátima Vieira e publicada nos Cadernos de Literatura

Comparada: Utopia e Espiritualidade, nº 19 (2008)29, Marques destaca as ideias de Vieira como

«expoente[s] do pensamento utópico» de uma «identidade da pátria e estilo do povo português»

que, ao contrário do que hoje consideramos utopia, era algo que Vieira acreditava poder cumprir-se

no designado Quinto Império. Marques, à semelhança do que faz também Eduardo Lourenço,

embora numa outra perspectiva, destaca a extrema importância e actualidade das ideias que

parecem transparecer ainda hoje, na cultura Ocidental, com particular destaque para a mentalidade

do povo português. Relevante é ainda o facto de ambos os autores inscreverem a temática na 24 Eduardo Lourenço. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999, p.89. 25 Pedro Calafate (Direcção de). “A mundividência de António Vieira”. História do Pensamento Filosófico Português,Volume II, Renascimento e Contra-Reforma. Lisboa: Editorial Caminho, SA, 2011, p. 704. 26 Ibid., 704. 27 João Francisco Marques foi, também, actor no filme O Quinto Império.28 João Francisco Marques. “A utopia do Quinto Império em Vieira e nos pregadores da Restauração”, E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, nº 2 (2004). ISSN 1645-958X, p. 3, disponível em http://www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas/e-topia/revista.htm (acedido em 28/07/2013). 29 Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva (Orgs.). “Conversa sobre a Utopia do Quinto Império e os Pregadores da Restauração, com João Francisco Marques”. Cadernos de Literatura Comparada: Utopia e Espiritualidade, nº 19, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa / Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Dezembro 2008, pp.233-248.

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Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória

8

contemporaneidade destacando a sua semelhança com a utopia de uma Europa una (ou de uma

potência dos Estados Unidos, por exemplo), cujos processos de construção e governação apelam a

um estado de universalismo, que culmina inevitavelmente numa ideia de “globalização” crescente,

e que, no caso de Portugal, germina na aurora dos tempos modernos, com os grandes

empreendimentos marítimos e a “descoberta” (leia-se, também, colonização) de territórios outros.

É a semente de um questionamento originário dessa «identidade» histórica e cultural que o filme de

Oliveira expõe na mise en scène da aparente “loucura do mundo sob a dicotomia de santos e

heróis”, o no modo como estas ideias presidem ao abismo entre o tempo da história e a dimensão

onírica da vida:

A oposição entre a inconstância do mundo humano e a harmonia do mundo da natureza é

estabelecida por Oliveira nos longos diálogos de El-Rei Sebastião com os Anciãos; com Simão

Gomes (1516-1576), o sapateiro santo (Luís Miguel Cintra); com os bobos, e, finalmente, consigo

próprio, através dos longos sonhos e visões que o assolam no silêncio das salas minimalistas do

Convento de Cristo, lugar supra-histórico – museológico, o “monumento-documento” sugerido por

Rancière –, onde Oliveira parece procurar, e transformar, no reencontro com a história, a centelha

da “memória colectiva”, resquício da almejada “identidade” de um povo perdido no “labirinto da

saudade”, em “memória individual”. Absorvendo e reconfigurando o espírito dos lugares,

instrumento sui generis da «história nova», o cinema (re)instala a «história do “tempo da história”»

que assegura o seu discurso «a expensas da transformação incessante do monumento em

documento, e do documento em monumento»30, isto é, a conversão do significante em

insignificante e vice-versa.

2. O mundo de Oliveira e as imagens do Cinema

A obra de Manoel de Oliveira é, como se sabe, toda ela atravessada pelas questões supracitadas. A

utopia, o sonho e as profecias; a apresentação do quinto império, a ambicionada consagração de

uma identidade nacional que almeja ultrapassar as fronteiras através das políticas – sonhos do

império e predestinação –, são temáticas abordadas com maior ou menor evidência também

noutras obras do cineasta (e.g. Non ou a Vã Glória de Mandar, 1990; Palavra e Utopia, 2000; Um

Filme Falado, 2003; Cristóvão Colombo, 2007, etc.), já anteriormente referidas. Mas é em O

Quinto Império, Ontem como Hoje que Oliveira encena especificamente o mito do sebastianismo

através de um retrato imaginário do rei que lhe dá origem. É neste filme que melhor transparecem

30 Jacques Rancière. Figures de l`Histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 2012, p. 27.

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as pontes do cinema entre uma imagem visual, dada pelos olhos e pela condição objectiva do

dispositivo – senão mesmo pelos cinco sentidos, na medida em que a imagem do mundo é por eles

delimitada; ver, ouvir, tocar, saborear, cheirar... – e uma imagem mental ou a dinâmica do

visível/invisível, tal como ela é invocada por Jacques Rancière. Escrevendo sobre o cinema

documental e, em particular as imagens do holocausto, Rancière sublinha que o cinema não se

limita nunca apenas a registar o evento histórico, mas cria-o, revelando «a virtude do seu próprio

poder de tornar histórica, toda e qualquer aparição por detrás da janela»31. O autor inicia

justamente o texto intitulado “Por detrás da janela” com a afirmação: «O cinema, diz Oliveira

retomado por Godard, é “uma saturação de signos magníficos envolvidos pela luz da ausência da

sua explicação. A fórmula é bela mas exige ser completada»32. Para Rancière a magnificência da

imagem visual do cinema traduz-se pela deserção ou suspensão da explicação entre dois regimes –

um plano ambivalente do visível/invisível que podemos, talvez, equivaler à dicotomia imagem

visual/imagem mental. Segundo o autor, a câmara não vê o que lhe ordenamos que veja, mesmo o

que se encontra visível, mas o que pensamos ver33, processo esse que resulta da ambiguidade do

dispositivo (objectivo e subjectivo), potenciado pelo consciente processo de enquadramento /

desenquadramento; «o cinema, com o seu olho sem consciência, tem o recurso que permite

concretizar o conceito romântico de obra como equivalência dos processos consciente e

inconsciente»34.

Com referência a esta questão, podemos integrar o Quinto Império num quadro de

entendimento dos limites dos «dois espaços e dois sentidos» do cinema – o visível e o invisível, o

audível e o não audível, o ser e o não ser – de que fala Rancière. O filme abre com uma imagem

nocturna, azulada, psicologicamente fria, onde se pode ver um cometa que atravessa o céu

recortado pelas ameias de um castelo. Passa, depois, para um grande plano da pedra, onde é

possível tactear a acção do tempo, na patine obscurecida da superfície coberta de musgo. No

interior, as primeiras imagens do jovem rei Sebastião estabelecem o perfil de um monarca

subjugado pelos sonhos e visões, e ouvimos, com ele, as vozes vindas do passado ou do interior da

sua própria mente; compreendemos pelas suas palavras frente ao túmulo de D. Pedro, o desdém

pelas emoções que considera fraquezas do homem. Em tudo nos é dada a imagem visual, o retrato

31 Ibid., p. 32. 32 Ibid., p. 23. 33 Rancière faz uma alusão directa ao filme de Harun Farocki Builder der Welt und Inschrift des Krieges / Images du Monde et inscription de la guerre (Alemanha, 1988-1989) e às fotografias aéreas dos Aliados, onde constavam, visíveis, os campos de concentração todavia ignorados, isto é, “invisíveis”, já que os mesmos procuravam fotografar exclusivamente as instalações industriais a bombardear. Cf. Jacques Rancière. Figures de l`Histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 2012, p. 33. 34 Jacques Rancière. Figures de l`Histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 2012, pp. 24-25.

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Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória

10

visível, de um rei que se diz alheio à condição humana das paixões (à dor, ao sofrimento, à morte);

no final, por exemplo o rei não demonstra qualquer misericórdia por um soldado que enfrentara o

seu superior para se aproximar do seu rei, e corrobora a sentença por enforcamento; ou quando

fustiga os truões que o querem entreter. Mas o que é paradoxal e especificamente cinematográfico

é a forma como os retratos frontais (teatrais, quase hieráticos) e despojados de Oliveira em O

Quinto Império, enquadramentos que destacam mais a superfície do que o plano de fundo, revelam

uma dimensão mental, contrariando as palavras. Isto é, um lado obscuro e invisível da figura

histórica, o eco inaudível da loucura, porque, tal como assevera Calafate, o tema da vida como um

jogo não é alheia à loucura e vice-versa. «A loucura é, no fundo, a extremosidade, o excessivo, o

desvio em relação ao ponto médio. Loucos, considera Vieira no Sermão Sexto. Assegurador, não

são só os que estão abaixo do uso ordinário da razão mas também os que estão acima dela, uns e

outros em seu extremo»35 – isto é, os santos e os heróis –, imagem que nos devolve outra imagem;

a de um «mundo como casa de loucos», onde Dom Sebastião só pode viver e (não) morrer como

herói e “retornar” como um santo.

Numa entrevista realizada por Francisco Ferreira por ocasião do centenário do nascimento

de cineasta, e falando a propósito de outro dos seus filmes, Singularidades de Uma Rapariga

Loura (Portugal, 2009), Oliveira estabelecia dois vectores para o seu cinema: «a simplicidade,

porque é na superfície que se descobrem as coisas mais complexas e profundas; e o realismo

porque se aproxima da ideia de verdade e do acontecimento»36. São estas marcas de simplicidade e

realismo que revelam justamente o jogo cruzado entre imagem visual e imagem mental. Para

Oliveira, o cinema ideal é aquele onde o realizador “desaparece” por detrás das imagens,

nomeadamente pela total transparência da técnica cinematográfica37. Em O Quinto Império, essa

transparência é levada ao limite numa encenação onde (quase) tudo se passa em frente à câmara,

sem que esta revele, no entanto, a sua presença através do seu movimento; com excepção de dois

planos: o travelling de acompanhamento da rainha Catarina de Áustria (1507-1578) aos seus

aposentos, e a panorâmica de acompanhamento da espada que Sebastião empunha contra os seus

conselheiros (a espada de D. Afonso Henriques) que atravessa o espaço da sala filmado em contra-

picado, revelando a abóbada e imobilizando-se, depois, no pavimento de pedra, entre a luz e a

sombra. É preciso explicar que, para Oliveira «a mulher é a mãe da Humanidade», que compara à

35 Pedro Calafate. “A mundividência de António Vieira”. História do Pensamento Filosófico Português, Volume II, Renascimento e Contra-Reforma. Lisboa: Editorial Caminho, SA, 2011, p. 706. 36 Manoel de Oliveira apud Francisco Ferreira. “Manoel de Oliveira”. Actual. Revista do Expresso, 01 de Maio de 2009, p. 10. 37 Sobre esta questão ver Antoine de Baecque e Jacques Parsi. Conversations avec Manoel de Oliveira. Tradução portuguesa de Henrique Cunha: Conversas com Manoel de Oliveira. Porto: Campo das Letras, 1999.

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Terra, e «o homem à Espada. O homem é a Luta; a mulher a criação»38. Neste filme, a “criação”

retrai-se perante a “luta”, isto é, a espada triunfante e simbólica de Afonso Henriques atravessa o

espaço da sala como se atravessasse o tempo desde a fundação do Condado até ao presente do

filme. Enquanto Catarina de Áustria, acompanhada por D. Sebastião, percorre o espaço no sentido

da clausura, em direcção ao seu passado confinado à sua futura memória – nosso presente –, num

movimento que poderá simbolizar a suspensão do tempo – a sua eternidade marcada pela sombra

que fica no quadro oblíquo de luz da janela –, tempo mítico e inefável de onde será resgatada pela

ficção literária, a poesia ou, neste caso, o filme... (Figuras 1b e 1b).

Há ainda um imbricamento do “tempo da história com a dimensão onírica da vida”, evidente na

penúltima cena do filme, aquela em que o cinema convoca o mito, a história e as estórias para

mostrar um D. Sebastião que resiste, mas também o louco – o esquizofrénico – e o fraco, o homem

que duvida, imagens cambiantes que subjazem e se sobrepõem finalmente às imagens de herói e de

santo que o mito e a história lhe reservam. É bem o pensamento contraditório de Vieira sobre o

mundo que subjaz às imagens cinematográficas (visuais e mentais) do despertar do rei e do

alvorecer do reino:

“Sonhastes no ultimo quarto da noite, quando as representações da phantasia são menos 38 Manoel de Oliveira apud Francisco Ferreira. “Manoel de Oliveira”. Actual. Revista do Expresso, 01 de Maio de 2009, p. 10.

Figuras 1a) e 1b) – O Quinto Império: Ontem como Hoje (Manoel de Oliveira, Portugal/França, 2004)

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Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória

12

confusas, que possuíeis grandes riquezas, que gosaveis grandes delicias e que estáveis levantado a grandes dignidades e, quando depois accordastes, vistes com os olhos abertos que tudo era nada? Pois assim passam a ser nada em um abrir e fechar de olhos todas as apparencias d'este mundo.”39

O filme é um retrato de um rei que revela, na verdade, a hesitação do homem perante o mundo e a

sua suposta “missão divina” que a literatura haveria de lhe atribuir. Em Portugal como Destino

seguido de Mitologia da Saudade (1999), Lourenço fala de um tempo e de uma «cultura

portuguesa [que] nunca produziu [...] um olhar exterior a si mesma que a acordasse, não de

qualquer cegueira dogmática ou culposa, mas da contemplação feliz e maravilhada de si mesma»40.

Para o autor, a complacência dos portugueses perante a admiração de si próprios é uma atitude

singular e, acrescenta o autor, seria «absurdo pretender que um pequeno povo entre outros [...]

possa escapar a esse maeström a que chamamos História»41. Ainda na sequência dessa reflexão, o

autor interroga-se sobre a possibilidade de Portugal «sair de um labirinto que não é mais do que o

da sua imagem sublimada, consoladora, de que eles [os portugueses] são o criador e as criaturas»42,

e fala da subliminar ideia de espaço singular de um povo que não se circunscreve ao rectângulo

geográfico de Portugal, um «lugar [que] não se situa apenas no mapa» mas é «lugar de deriva e de

uma fuga sem fim»43, na medida em que o português se predispõe, na aparência, «a trocar a sua

identidade pela dos outros». O Quinto Império, e a sua convocação do mito de sebastianismo é

bem a imagem desse Portugal que parte sem nunca partir, (con)fundindo o espaço vivido com esse

«lugar sem exterior», «ilha da saudade», imagem indistinta e imbricada de sonho e realidade,

«porto de onde não se sai, como Ulisses, para defrontar os monstros e os elementos, mas para

tentar recuar até aos limites o momento do encontro consigo, imposto pelo Outro, [...] aquele que

não nos vê como nós nos vemos: cavaleiros do Graal adormecidos, mas de pé, imóveis, no coração

da realidade»44. A esta noção de espaço corresponde a ideia não menos intransponível e

incomensurável de tempo cíclico. É esse espaço e esse tempo que subjazem à representação das

margens de uma paisagem (i.e., uma suposta identidade cultural) que o cinema pode ajudar a

mudar, expondo a complexidade de uma identidade que se ajusta a uma imagem como labirinto –

«lugar ao abrigo do sonho, passado-presente que, a “alma portuguesa” não quer abandonar»45.

39 Do “Sermão do 1º dom. do Adv.” in Almeida, Avelino de e Lourenço, M. Santos. O Livro de Oiro do Padre António Vieira (Recopilação com Biografia e Notas). Porto: Antonio Dourado, Editor Catholico, 1897. pp. 67-68. 40 Eduardo Lourenço. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 88. 41 Ibid., p. 88. 42 Ibid., p. 89. 43 Ibid., p. 90. 44 Ibid., p.93. 45 Ibid., p. 93.

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Maria Irene Aparício / Versão draft de 07 de Maio de 2015

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Uma imagem que se impõe como espelho-cinema, e onde Portugal se pode (quer?) rever; um

espelho que reflecte a contradição da lenda, o reverso da nostalgia e da tragédia, uma identidade

voluntariamente enclausurada nesse ardil do Minotauro, ainda assim atractivo porque «ninguém

morre no país da saudade. Como nos sonhos»46.

A cena do sonho de D. Sebastião é, por isso, o centro deste filme. É nela que Oliveira faz

convergir as noções de realidade e de cinema, evidenciando ainda a tensão constante entre a ideia

de teatro e a ideia de cinema. Em Conversas com Manoel de Oliveira, o cineasta diz que «o limite

do cinema assemelha-se ao do teatro: vêem-se no ecrã todas as acções e todos os corpos contidos

num espaço concentrado, dentro dos limites do enquadramento e que [...] se pode denominar de

espaço teatral, porque o espaço teatral e o espaço cinematográfico são a mesma coisa»47. Esta

assimilação do cinema ao teatro, marcada pela primazia da palavra do segundo e o movimento do

primeiro, é verdadeiramente um manifesto de Oliveira pela queda da quarta parede, cuja prática

projecta o seu cinema para o domínio da metaficção e de uma preferência pela imagem mental

marcada pelo jogo de velar/desvelar as fronteiras imaginárias entre a obra e o espectador. Oliveira

sublinha que «a origem do cinema é o movimento. Ora, nem o som nem a palavra podem existir

sem o movimento. O cinema tem toda a legitimidade para registar uma palavra, um som, um texto,

tanto como uma paisagem ou um rosto”48. É relevante sublinhar que para Oliveira, a «ideia de

introduzir o movimento nas imagens», à semelhança do desejo de voar que terá inspirado a

representação das máquinas voadoras de Leonardo, é o reflexo de uma aspiração humana que

remonta a tempos imemoriais, e que reenvia para o que uns chamam evolução, outros progresso, e

outros ainda civilização49. O cinema é, então, uma questão de movimento das palavras e dos sons

que operam a metamorfose dos corpos, mas também das almas, i.e. da sua agitação que atravessa

as imagens estáticas e dolentes de Quinto Império; o movimento do pensamento na sua dimensão

de tempo e eternidade, pelo qual a história e a vida se dão à transformação.

Assinalamos, no entanto, a contradição que surge na mesma entrevista em que Oliveira

afirma: «[...] o teatro é muito sério. Muito mais sério do que o cinema. Normalmente no teatro há

monólogos, mas não a voz da consciência ou do pensamento [...]. Não se pode filmar o

pensamento, tal como não se pode filmar Deus»50. Mas o que mais pode estar filmado na cena do

diálogo entre D. Sebastião e Simão Gomes, senão a consciência e o pensamento desse rei louco ou 46 Ibid., p. 94. 47 Antoine de Baecque e Jacques Parsi. Conversations avec Manoel de Oliveira. Tradução portuguesa de Henrique Cunha: Conversas com Manoel de Oliveira. Porto: Campo das Letras, 1999, p. 84. 48 Ibid., p. 84. 49 Cf. Manoel de Oliveira. “Repenser le Cinéma” in Trafic, Qu`est-ce que le cinéma?, nº 50, Été 2004. Paris: P.O.L., 2004, pp. 37-42. 50 Ibid., p. 85.

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Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória

14

de todos aqueles que aguardam o seu regresso num dia de nevoeiro? O “monólogo interior”

expressão que, em língua inglesa – “stream of consciousness” –, parece fazer maior justiça ao seu

verdadeiro sentido de fluxo da consciência e do pensamento, é a «técnica que procura registar o

fluxo das impressões que atravessam a mente de uma personagem. [...] Registando o fluxo real do

pensamento com os seus paradoxos e irrelevâncias, os autores procuram evitar a própria retórica

[...]. Os pensamentos e sentimentos íntimos dominam agora a primazia da atenção»51. Neste

sentido, é sob a forma de monólogos que estabelecem a ponte entre mundos mentais e mundos

factuais que O Quinto Império regista a complexidade e ambivalência da noção de imagem, que

permite ao espectador circular entre o visível e o invisível, o passado e o presente, o projectado e o

possível.

Os monólogos de Dom Sebastião são finalmente devedores da noção que Oliveira tem de

sonho e realidade no cinema, e do respectivo entrelaçamento. É através deles que se estabelece a

mise en scène do pensamento de Vieira sobre o Quinto Império e a predestinação, e a tese dos

abismos intransponíveis entre o tempo da história (linear e funcional) e o tempo das estórias (e das

profecias); entre um passado que está atrás de nós e um futuro promissor que está à nossa frente,

contaminado pela dimensão onírica da vida que ilumina o presente de cada ser no seu próprio

tempo – o presente de Dom Sebastião (1557-1578) e o de todos os reis antepassados que o

assombram na cena final; o presente de Gonçalo Annes Bandarra (1500-1556) e o do sapateiro

santo, Simão Gomes (1516-1576) que o cita; o presente de António Vieira (1608-1697), o filósofo

que pensou sobre a incomensurabilidade do tempo; o presente do cineasta para quem «o sonhador

está sempre presente no sonho como o espectador no cinema»52, e para quem o cinema, com a cor

e o som, se aproxima do realismo, mas que «apesar de tudo, permanecerá sempre imaterial e

fantasmático»53. O filme é ainda devedor de uma concepção do tempo tributária do pensamento de

Vieira, onde a duração surge «associada ao que desdura», numa «concepção do presente como um

ir passando, entre um passado que já não é e um futuro que ainda não é, [...] dois hemisférios do

tempo, o do passado e o do futuro, resumindo-se o presente aos meros instantes que entre ambos se

situam»54. A questão dos abismos entre o tempo da história e o tempo da vida quotidiana,

enformada pelas emoções, os sonhos e as aspirações, é realçada na cena do diálogo entre Dom

Sebastião e Simão Gomes, que começa com a entrada do sapateiro santo, a quem o rei reconhece

51 Peter Childs and Roger Fowley. The Routledge Dictionary of Literary Terms. London and New York: Routledge, 2006. p. 224. 52 Ibid., p. 100. 53 Ibid., p. 100 54 Pedro Calafate. “A mundividência de António Vieira”. História do Pensamento Filosófico Português, Volume II, Renascimento e Contra-Reforma. Lisboa: Editorial Caminho, SA, 2011, p. 710.

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Maria Irene Aparício / Versão draft de 07 de Maio de 2015

DOI: 10.13140/RG.2.1.2171.7928 15

como súbdito («-Ah, és tu? Estavas aí?»). A cor, o som, o diálogo, todos os elementos sublinham a

dimensão realista da cena e a suposta presença do profeta, nesse momento de introspecção do rei.

Depois, uma dúvida se instala: estaremos verdadeiramente perante um diálogo entre duas

personagens distintas, duas figuras da história, ou trata-se aqui de um monólogo de Dom Sebastião,

uma “conversa” consigo próprio e com os seus “gigantes”, “anjos” e “demónios”, um “fluxo do

pensamento e da consciência”? O cinema da mente e da consciência é, deste modo, um cinema das

“vozes”. Os truões revelam a ilusão da imagem visual, quando assomam à porta e perguntam ao rei

com quem fala, mostrando-se depois ao espectador a sala onde apenas se encontra Sebastião.

Oliveira transpõe, portanto, a fronteira estabelecida entre o realismo dos Lumière e a fantasia de

Méliès, bem como os limites da invenção do cinema, situando-se justamente nesse território d` «o

que resta» e que o próprio identifica, nas palavras de José Régio, como «a verdadeira

originalidade» que provém da personalidade do criador; já que, «nos documentários, o realismo é

um fantasma da realidade. Nas ficções, é o trabalho que se faz para fingir a verdade»55.

A ficção como espelho da verdade é para Oliveira o “motor” desse “comboio” do tempo e

da vida que «vai não se sabe para onde. [Porque] o futuro é um Enigma»56. Mas a ficção é,

também, a forma de encenação que melhor traduz a “vida como um jogo” de que fala Vieira, o

«misto de previsibilidade e imprevisibilidade, entre o certo e o desconcertado»57 que marca o

«universo labiríntico da experiência dos homens»58. Porque, diz Oliveira, a vida nunca perderá a

sua marca onírica, que é atributo do cinema na sua infinita possibilidade de jogar com a palavra, a

imagem, o som, o que se ouve e o que se vê. A todo o cinema pertence também o incomensurável

território do que se “antevê” e do que se “prevê” nos silêncios, nas sombras, nas vozes e demais

sons acusmáticos; catalisadores da vida e da experiência dos sentidos. Vozes que provêm de um

indefinível tempo de Kairòs ou Aion, e de um espaço não euclideano, e tanto podem pertencer aos

corpos ocultos pelas cortinas, como a dispositivos sonoros e/ou cinematográficos – “Mabuses”,

portanto –, ou a dimensões outras inaudíveis mas presentes, como é o caso do pensamento; o do rei

Sebastião ou o do espectador. A voz off traduz, em Oliveira, tudo o que, segundo o autor, não é

passível de ser filmado. A autonomia da voz é reveladora da autonomia dos mundos; o dos

possíveis e o dos olhos. O que temos em O Quinto Império é menos do que a infinita possibilidade

do que existe, o que pode ter existido ou o que poderá vir a existir: Isto é, uma imagem infinita,

55 Manoel de Oliveira apud Francisco Ferreira. “Manoel de Oliveira”. Actual. Revista do Expresso, 01 de Maio de 2009, p. 11. 56 Ibid., p. 11. 57 Pedro Calafate. “A mundividência de António Vieira”. História do Pensamento Filosófico Português, Volume II, Renascimento e Contra-Reforma. Lisboa: Editorial Caminho, SA, 2011, p. 706. 58Ibid., 706.

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Da mundivisão de António Vieira ao “cinema mental” de Manoel de Oliveira: O Quinto Império e as cinzas da memória

16

mental e ininterrupta do mundo interno continuamente confrontado e configurado pelo mundo

externo: um fluxo do pensamento, uma imagem concreta da abstracção da vida.

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