Novas fronteiras da obrigação de indenizar e da determinação da responsabilidade civil
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NOVAS FRONTEIRAS DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR E DA DETERMINAÇÃODA RESPONSABILIDADE CIVIL
LUCAS ABREU BARROSODoutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Mestre em Direito pela Universidade Federal de GoiásMembro da Academia Brasileira de Letras Agrárias
Membro da União Mundial dos Agraristas UniversitáriosMembro da Associação Brasileira de Direito Agrário
Membro do Instituto de Direito Comparado Luso-BrasileiroMembro do Instituto “O Direito por um Planeta Verde”
Membro do Grupo de Estudos Professora Giselda Hironaka
SUMÁRIO: 1 Sociedade do risco, tutela jurídica do dano eproteção da pessoa humana. 2 Fundamentos constitucionaisda obrigação de indenizar: os princípios da justiçasocial e da eqüidade intergeracional. 3 Funcionalizaçãodo direito privado: a função social como critério devaloração da determinação da responsabilidade civil. 4Referências bibliográficas.
1 Sociedade do risco, tutela jurídica do dano e proteção da
pessoa humana
Indubitavelmente, a complexa estrutura social de nossos
tempos – corolário do desenvolvimento científico, do progresso
técnico e da evolução dos processos econômicos –,
paralelamente ao incremento de inúmeras possibilidades de vida
antes jamais experimentadas,1 entronizou uma perspectiva da
qual não pode afastar-se em suas formulações teóricas e
normativas a Ciência Jurídica: a “sociedade do risco”
1 BOTTON, Alain de. Desejo de status. Tradução Ryta Vinagre. Rio de Janeiro:Rocco, 2005. p. 33-46.
(Risicogesellschaft).2
A Revolução Industrial e, sobretudo, a Era Tecnológica,
fomentaram padrões socioeconômicos que estão a propor no mundo
de hoje e do futuro seus próprios problemas.3 Dentre esses,
ressalta-se uma enorme agravação dos riscos a que fica sujeita a
pessoa humana.4
Portanto, os modelos social (sociedade tecnológica) e
econômico (“capitalismo desorganizado”)5 vigentes contribuem
decisiva e preponderantemente para o alargamento das causas de
danos potenciais, porquanto a probabilidade de sofrer danos
aumentou enormemente.6
Tal é a multiplicação dos danos, que esses se
transformaram em uma invariável de incontáveis ocorrências e
2 Vide BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Traducción Jesús Alborés Rey.Madrid: Siglo Veintiuno, 2002; BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia unanueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. (Paidós Básica, v. 89);GIORGI, Raffaele De. O risco na sociedade contemporânea. Revista Seqüência –Revista do Curso de Pós-graduação em Direito da UFSC, Florianópolis, n. 28, p. 45-54, jun. 1994.
3 GUTIÉRREZ, Graciela N. Messina de Estrella. La responsabilidad civil en la eratecnológica: tendencias y prospectiva. 2. ed. actual. Buenos Aires:Abeledo-Perrot, 1997. p. 77.
4 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito dasobrigações e introdução à responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva,2003. v. 1. p. 538.
5 Vide SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o políticona pós-modernidade. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
6 ALTERINI, Atílio Aníbal. Contornos actuales de la responsabilidad civil. BuenosAires: Abeledo-Perrot, 1987. p. 15 e 17.
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formas de manifestação, ínsitos aos modelos condicionantes de
uma sociedade que agora contabiliza os efeitos nocivos do
próprio sistema de relações sociais e de produção que acabara
por estabelecer e confirmar.
Mesmo porque, o fenômeno da massificação pressupõe o
acesso de todos ao mercado consumidor, a fim de obter os
gêneros indispensáveis à subsistência digna e as benesses do
consumo materialista, ambos dentro dos padrões de conformidade
socialmente reivindicados. Mas isso acaba por nos conduzir a
outra questão preponderante. Em uma sociedade consumerista,
consumir é um direito fundamental, uma vez que propicia à
pessoa humana a desejada inclusão econômico-social.
No entanto, ao revés, o consumo em larga escala leva
inexoravelmente à degradação da qualidade de vida (poluição,
utilização indiscriminada dos recursos ambientais, acidentes
de consumo, mau uso de equipamentos domésticos etc.), haja
vista que amplia a dimensão espácio-temporal de nossas
3
condutas individuais e coletivas.7
Em termos juridicamente apreciáveis, isso implica o
surgimento de novos paradigmas para a obrigação de indenizar e
para o sistema de responsabilidade civil, a fim de tutelar os
fatos geradores de danos. Tarefa nada fácil, levando-se em
conta as infinitas origens e conjunturas das quais decorrem os
eventos danosos hodiernamente.
Por isso mesmo, temos por mais adequado considerar os
princípios a serem peremptoriamente observados relativamente à
matéria, aplicáveis a todos os casos concretos. Para tanto,
faz-se necessário engendrar uma releitura do fundamento da
obrigação de indenizar e do critério de valoração da
determinação da responsabilidade civil dentro da abrangência
hermenêutica do Direito Civil Constitucional.
As relações jurídicas privadas passaram
contemporaneamente a figurar sob a égide dos ditames insertos
no texto constitucional, sobretudo em razão de sua força
7 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra odesperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. (Para um novo sensocomum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, v.1). p. 58: “Enquanto anteriormente os actos sociais partilhavam a mesmadimensão espácio-temporal das suas conseqüências, hoje em dia aintervenção tecnológica pode prolongar as conseqüências, no tempo e noespaço, muito para além da dimensão do próprio acto através de nexos decausalidade cada vez mais complexos e opacos”.
4
normativa que não pode restar despicienda.8
Os princípios e os objetivos constitucionais fundamentais
constituem normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata
e, como tais, devem atuar incidentalmente em qualquer análise
ou interpretação jurídica.
Destarte, a constitucionalização do Direito Privado deve
provocar uma reformulação na arquitetura dos principais
institutos jurídicos que ele congrega, permeados
historicamente pelo individualismo-patrimonialista, sem se
ocupar em sua transposição político-cultural da proteção da
pessoa humana e da solidariedade social.9
Da constatação acima externada não está isenta a
reparação de danos. Ao contrário, “o instituto da
responsabilidade civil é especialmente um instituto de
garantia da preservação da propriedade e não um instituto de
garantia do fortalecimento da cidadania”10. Daí a improrrogável
necessidade de se coadunar os elementos fundantes da obrigação
de indenizar e do critério de valoração da determinação da8 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004. p. 53-54 e 70 e ss.9 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva,
2005. p. 3.10 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo
Horizonte: Del Rey, 2005. p. 95.
5
responsabilidade civil com os postulados do Estado
constitucional democrático.
Flávio Tartuce11 sintetiza com grande acuidade a interação
entre os princípios constitucionais e a responsabilidade
civil, sempre na perspectiva do Direito Civil Constitucional,
não se descurando em nomeá-los: a) dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III); b) solidariedade social (art. 3º, I); isonomia
ou igualdade formal (art. 5º, caput).
Em semelhante direção, Giselda Hironaka12 dedica toda a
terceira parte de sua mais recente monografia ao tema
“Dignidade da pessoa humana e cidadania: norte constitucional
e atributo valorativo fundante do dever de indenizar”,
reafirmando, assim, a incidência dos princípios
constitucionais a funcionar como pressuposto de validade e
fator de legitimação das regras infraconstitucionais da
responsabilidade civil.
Essa imprescindível aproximação ético-ideológica da
responsabilidade civil com a Constituição acresce em
relevância quando facilmente verificamos que a nova
codificação civil foi bastante tímida em inovações no campo do11 TARTUCE, Flávio. Direito civil. São Paulo: Método, 2005. v. 2. p. 253-260.12 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Ob. cit., p. 157 e ss.
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Direito Obrigacional, procurando manter o mais possível a
sistemática e disciplinamento constantes do Código Civil de
1916.13
Nem por isso deixa o novo Código Civil de representar um
passo adiante se comparado com o revogado estatuto congênere.
Entre retrocessos e avanços o resultado é satisfatório,
mormente porque caberá à jurisprudência o papel primordial de
determinar os rumos da responsabilidade civil no Direito
pátrio do século XXI.14
O texto constitucional não olvidou ainda do tratamento
normativo da responsabilidade civil. Alguns de seus
dispositivos trazem preceitos atinentes à regulação desta,
senão vejamos: a) art. 5º, V, X, XLV e LXXV; b) art. 21, XIII,
c; c) art. 37, § 6º; d) art. 141; e) art. 173, § 5º; f) art.
225, §§ 2º e 3º; g) art. 236, § 1º; h) art. 245.15 Assim sendo,
consagra no ordenamento jurídico brasileiro diversas
13 NORONHA, Fernando. Ob. cit., p. 548-549: “Esta preocupação [daComissão Revisora e do Relator da matéria] foi prejudicial, porque sesabe como ao tempo da promulgação do Código de 1916 a responsabilidadecivil apenas iniciava uma evolução que, no final do século XX,significava uma verdadeira revolução, fazendo dela o instituto comdesenvolvimento mais espetacular dos últimos cem anos, dentro do DireitoCivil. [...] Assim, pode-se dizer que o Código novo retrata um momento daevolução da responsabilidade civil, na melhor das hipótesescorrespondente ao final dos anos sessenta do século XX”.
14 Ibidem, p. 551.15 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Ob. cit., p. 13.
7
modalidades de reparação (afora a pecuniária), o dano moral e
a preferência pela responsabilidade objetiva.16
Outrossim, a responsabilidade civil, a par do tratamento
que lhe é dedicado pela Constituição Federal e pelo novo
Código Civil, também encontra disciplinamento em legislação
especial, como ocorre no Código de Defesa do Consumidor (Lei
n. 8.078/1990), na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente
(Lei n. 6.938/1981) etc.
Finalmente, cumpre anotar que as tendências
contemporâneas da responsabilidade civil indicam para três
características basilares: a) expansão dos danos suscetíveis
de reparação; b) objetivação da responsabilidade; c)
coletivização.17 Esta última, não sem suspeição ou ressalvas por
parte da doutrina – ainda que para algumas situações
específicas, p. e., dano ambiental.18
16 Ibidem, p. 13-15: “As hipóteses tratadas pela Constituição são voltadasessencialmente à afirmação de três valores, que marcam a transformaçãocontemporânea da responsabilidade civil: a primazia do interesse davítima, a máxima reparação do dano e a solidariedade social”.
17 NORONHA, Fernando. Ob. cit., p. 540-546.18 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Ob. cit., p. 143-148;
BARROSO, Lucas Abreu. A obrigação de indenizar e a determinação da responsabilidade civilpor dano ambiental: fundamento e critério de valoração na pós-modernidade eno estado democrático de direito. 2005. Tese (Doutorado em Direito) –Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. p. 90.
8
2 Fundamentos constitucionais da obrigação de indenizar: os
princípios da justiça social e da eqüidade intergeracional
Demonstra-se impostergável estabelecer uma releitura da
obrigação de indenizar nos meandros de uma teoria da
responsabilidade civil assentada nos paradigmas do pós-
positivismo jurídico e do Estado Democrático de Direito, a fim
de identificar os fundamentos constitucionais que devem
permeá-la no contexto da sistemática jurídica contemporânea.
Essa necessidade se faz de forma ainda mais acentuada
quando verificamos que as teorias (subjetiva e objetiva) até
hoje engendradas em torno da responsabilidade civil sempre
estiveram fulcradas na justiça comutativa, pressupondo a
igualdade formal entre as partes em contenda, o que permite
suscitar uma vez mais o problema da justiça social, a
considerar a igualdade material.
Por isso mesmo devemos evoluir juridicamente no sentido
de elevar o princípio da justiça social enquanto um dos
fundamentos constitucionais da obrigação de indenizar,
conferindo acentuado alcance à aproximação da ordem civil com
os valores constitucionalmente reconhecidos pela comunidade
política, a refletir em uma verdadeira hermenêutica
9
constitucional da responsabilidade civil.
Isso porque, preleciona Francisco Amaral19, “a
complexidade das relações e do processo de desenvolvimento
econômico e social, a exigir um direito eficaz, no sentido de
harmonizar os interesses dos indivíduos e dos grupos, fez
surgir uma outra modalidade, a da justiça social”,
complementarmente aos ideários precedentes de justiça
(comutativa e distributiva), refletindo o espectro jurídico
delineado pelos modernos Estados de direito, pautados nas
dimensões da juridicidade, democracia, socialidade e
sustentabilidade ambiental.
Uma outra questão que não pode deixar de ser considerada
é que a justiça comutativa apresenta uma conotação de justiça
particular, na qual o objeto visado é o bem individual. Ao
contrário, a justiça social tem caráter geral e seu objeto é o
bem comum. Outrossim, está arraigada a uma concepção
antropocêntrica do Direito, de exaltação da dignidade da
pessoa humana, e voltada para os processos emancipatórios
atrelados à cidadania.19 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. rev., atual. e aum.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 17: “Revelada pela doutrina da Igreja,visa estabelecer uma conexão entre a consciência moral e a consciênciasocial da coletividade, exigindo que a ordem jurídica se mantenha ligadaà ordem moral”.
10
E não tem sido esse o modo pelo qual vem sendo operado o
Direito de Danos. Paulo Luiz Netto Lôbo20 explicita que seu
transcurso está impregnado por intensas contradições de
natureza ética, bem como “pela ausência de papéis claros da
sociedade e do Estado, em suma, da responsabilidade social que
o envolve”.
Giselda Hironaka21 ressalta que essa nova principiologia,
vinculada à solidariedade social e à dignidade humana,
descortina os alicerces e a justificação intrínseca da
responsabilidade civil no atual momento evolutivo do Direito
Privado, “completamente distinto de suas raízes romano-
germânicas, embora ainda a elas ligado pelos bons liames da
gênese sólida, da origem milenar, mas muito mais harmonizado
com a realidade dos homens e seus anseios na
contemporaneidade”.
A tradicional fórmula civilista, de acordo com a qual
“todo aquele que, na defesa dos seus interesses, prejudicasse
o direito de outrem, ainda que de forma autorizada, deveria
indenizar o dano causado”22, tendo por parâmetro a justiça
comutativa, queda demasiado singela diante da relevância da
20 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Ob. cit., p. 15.21 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Ob. cit., p. 117-118.
11
argumentação aqui esposada.
Parece evidente que a consecução das proposições
enunciadas perpassa pela necessidade de se consolidar um
Estado de justiça, paradigma axiológico de maior grandeza na
conjuntura de um Estado de Direito democrático.
Mesmo porque, um Estado de justiça pressupõe um Estado de
Direito a “incorporar o princípio da igualdade como princípio de
justiça”23, ou seja, não sendo suficiente um Estado de Direito
formal.
Daí poder-se afirmar, em busca de um Estado de Direito em
senso material, que “o Estado de direito só é Estado de
direito se for um Estado de justiça social”24, o que deve ser
alcançado através da erradicação da marginalização e das
desigualdades sociais.
A cidadania e a justiça social, desse modo, integram o
conjunto de princípios estruturantes do Estado Democrático de
Direito na pós-modernidade, com efetividade normativa bastante
para vincular toda e qualquer interpretação e aplicação do22 AMARAL, Francisco. Espírito e técnica romanos no direito ambiental
brasileiro. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, n. 14, p. 11-30, 1. sem. 1993. p. 30.
23 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva, 1999.(Colecção Cadernos Democráticos, v. 7). p. 41.
24 Ibidem, p. 43.
12
Direito da Responsabilidade Civil.
Cumpre lembrar que agora a obrigação de indenizar deve
também encarar um novel desafio, o de satisfazer as
expectativas das futuras gerações,25 haja vista a inserção do
princípio da eqüidade intergeracional no texto da Constituição
(art. 225, caput), ainda que isso importe em “algumas novidades
no esquema de instrumentos jurídicos”26 – contudo, sem relegar
os postulados da juridicidade estatal.
Resulta, então, que as relações jurídicas obrigacionais,
tradicionalmente pensadas ao redor do consentimento (acordo de
vontades), devem cambiar seu enfoque para o interesse
protegido.27 Somente assim será possível garantir às futuras
gerações os direitos que desde logo lhe são assegurados,
dentro de um critério de igualdade com os atuais participantes
das obrigações civis.
25 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra:Coimbra Editora, 2004. p. 177: “[...] o sujeito relevante já não é apenasa pessoa ou grupos de pessoas. Passa a ser também o «sujeito geração»”;Sobre as futuras gerações como “sujeito de direito”, vide SILVA-SÁNCHEZ,Solange S. Cidadania ambiental: novos direitos no Brasil. São Paulo:Humanitas/FFLCH/USP, 2000. p. 25 e ss.
26 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado…, Ob. cit., p. 44.27 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das obrigações: o
caráter de permanência dos seus institutos, as alterações produzidas pelalei civil brasileira de 2002 e a tutela das gerações futuras. In:DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões controvertidasno novo código civil: no direito das obrigações e dos contratos. São Paulo:Método, 2005. (Série Grandes Temas de Direito Privado, v. 4). p. 30.
13
Todavia, realizar tal princípio consubstancia uma árdua
tarefa, que ensejará permanente esforço e dedicação por parte
dos estudiosos e operadores do Direito de todos os tempos. O
balanceamento desejável entre os interesses a proteger de hoje
e do porvir “não é fácil de ser encontrado, exigindo
considerações de ordem ética, científica e econômica das
gerações atuais e uma avaliação prospectiva das necessidades
futuras, nem sempre possíveis de serem conhecidas e medidas no
presente”28.
No entanto, as dificuldades que se nos apresentam não
podem constituir óbice para o atendimento do ditame contido no
princípio em comento, posto não haver primazia da presente
geração no cotejo com as futuras gerações, sendo impreterível
tornar efetiva – paralelamente com a solidariedade social – a
solidariedade intergeracional.29
3 Funcionalização do direito privado: a função social como
critério de valoração da determinação da responsabilidade
civil
28 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 11. ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 51.
29 MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI,Sílvia. Direito ambiental. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005. p. 36.
14
A teoria da responsabilidade civil, no dizer de Manuel
António de Castro Portugal Carneiro da Frada30, “comunga da
tarefa primordial do Direito que consiste na ordenação e
distribuição dos riscos e contingências que afectam a vida dos sujeitos e a sua
coexistência social”. Por conseguinte, podemos concluir que “é
tarefa irrenunciável do Direito a institucionalização das expectativas e
a promoção da segurança”31.
Nesse sentido, resta claro que o esquema atual da
responsabilidade civil, amparado nos critérios de valoração
subjetivo e objetivo, deva ser implementado, a fim de lograr
resultados mais condizentes e equilibrados, dentro da
correlação dano/reparação, relativamente aos complexos fatores
econômicos e sociais na pós-modernidade.
Ao nosso sentir, torna-se inevitável reconhecer a
premente necessidade de um princípio geral a atuar enquanto
30 FRADA, Manuel António de Castro Portugal Carneiro da. Uma «terceira via» nodireito da responsabilidade civil? Coimbra: Almedina, 1997. p. 15: “Aresponsabilidade civil participa desta ratio que informa as normasjurídicas no seu conjunto e contribui para a sua realização eficaz. Fá-lopelo modo que lhe é próprio, distribuindo os danos que atingem a esferajurídica dos sujeitos, de forma adequada, através da obrigação de indemnizar.Se não evita em termos absolutos, actuando preventivamente, a possibilidadeda ocorrência de contingências danosas para os sujeitos, pelo menosminimiza ou elimina os seus efeitos permitindo-lhes ex post uma reparaçãodos prejuízos sofridos. No cumprimento destas funções, as regras daresponsabilidade constituem, a par de outros institutos jurídicos, umalinha de defesa das posições jurídicas atribuídas pelo Direito aossujeitos”.
31 Ibidem.
15
critério de valoração da determinação da responsabilidade
civil, princípio este apto para estabelecer uma ponderação
entre os interesses protegidos. Estamos a cogitar da função social
da responsabilidade civil.
A funcionalização dos institutos jurídicos corresponde a
uma corrente de pensamento em decorrência da qual não é mais
dado ao jurista encarar a construção do Direito apenas a
partir de seu enfoque científico, voltado exclusivamente para
uma estruturação sistêmica de seus elementos constitutivos,
sem se ocupar em perquirir os resultados econômicos e sociais
das elaborações dogmáticas formuladas.
Nas lições de Francisco Amaral32, “significa, então, que o
direito em particular e a sociedade em geral começam a
interessar-se pela eficácia das normas e dos institutos
vigentes, não só no tocante ao controle ou disciplina social,
mas também no que diz respeito à organização e direção da
sociedade”.
Corroborando o entendimento de Eduardo Sens dos Santos33 é
procedente a noção de que “a Ciência Jurídica dos nossos dias32 AMARAL, Francisco. Direito..., Ob. cit., p. 366-367. 33 SANTOS, Eduardo Sens dos. A função social do contrato: elementos para
uma conceituação. Revista de Direito Privado, São Paulo, n. 13, p. 99-111,jan./mar. 2003. p. 108.
16
tem buscado cada vez mais a funcionalização, impondo certas
restrições ao exercício dos direitos”. E com Fernando Noronha34
podemos afirmar que “todo direito tem uma função social,
dispensando referência expressa”.
Nessa esteira, importa salientar que não só a propriedade
e o contrato têm uma função social, como deflui das previsões
constitucional e infraconstitucional. Todos os demais
institutos jurídicos privados também a têm que cumprir: a
posse, a família, as sucessões etc. Não seria, pois, diferente
com as obrigações, a contemplar como suas categorias as
obrigações negociais, a responsabilidade civil e o
enriquecimento sem causa.35
Destarte, a responsabilidade civil igualmente encontra-se
adstrita a seguir essa tendência doutrinária, sobretudo porque
agora encontra amparo nas disposições constitucionais
aplicáveis e na socialidade como princípio informador do novo
Código Civil. A função social da responsabilidade civil não
34 NORONHA, Fernando. Ob. cit., p. 27.35 Ibidem, p. 31-32: “Se considerarmos globalmente as três categorias de
obrigações, negociais, de responsabilidade civil e de enriquecimento semcausa, vale destacar que na atual sociedade de massas se exige umaacrescida proteção, em nome da justiça social, daqueles interesses queaglutinam grandes conjuntos de cidadãos. Em grande parte isto aconteceporque tais grupos sociais têm atualmente uma força política que não podeser desprezada”.
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reclama por aceitação, posto ser uma realidade peremptória no
contexto do Direito Civil brasileiro.36
Isso implica dizer que todo o Direito Privado está
comprometido com os ditames da cidadania e da justiça social,
atinentes aos Estados de Direito democráticos, abandonando
definitivamente as matrizes individualistas que o permearam
nos últimos séculos, em proveito dos valores coletivos.
A funcionalização da responsabilidade civil representa,
portanto, mais um contributo do Direito Privado para a
conformação dos fatores econômico-sociais na comunidade
política, uma vez que pressupõe, “na sua positivação
normativa, o reconhecimento de limites que o ordenamento
36 AMARAL, Francisco. Direito..., Ob. cit., p. 367-368: “Emprestar ao direitouma função social significa considerar que os interesses da sociedade sesobrepõem aos do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, aanulação da pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pelanecessidade de acabar com as injustiças sociais. Função social significanão-individual, sendo critério de valoração de situações jurídicasconexas ao desenvolvimento das atividades da ordem econômica. Seuobjetivo é o bem comum, o bem-estar econômico coletivo. A idéia de funçãosocial deve entender-se, portanto, em relação ao quadro ideológico esistemático em que se desenvolve, abrindo a discussão em torno dapossibilidade de se realizarem os interesses sociais, sem desconsiderarou eliminar os do indivíduo. [...] E ainda, historicamente, o recurso àfunção social demonstra a consciência político-jurídica de se realizaremos interesses públicos de modo diverso do até então proposto pela ciênciatradicional do direito privado, liberal e capitalista. [...] A funçãosocial é por tudo isso, um princípio geral, um verdadeiro standardjurídico, uma diretiva mais ou menos flexível, uma indicação programáticaque não colide nem torna ineficazes os direitos subjetivos, orientando-lhes o respectivo exercício na direção mais consentânea com o bem comum ea justiça social”. [grifo nosso]
18
jurídico, ou algum de seus princípios vinculantes, estabelece
para o exercício das faculdades subjetivas (em face de
situações concretas) que possa caracterizar abuso de direito”37.
Tudo isso requer dotar a responsabilidade civil de um
instrumental que permita uma operabilidade condizente com sua
novel atribuição: a consecução da função social que tem agora
a exercer. Esperamos que a legislação, a doutrina e a
jurisprudência estejam prontas para recepcionar o arcabouço
jurídico compatível com o critério de valoração da
determinação da responsabilidade civil que ora sustentamos.
Finalizando, o novo Código Civil em pelo menos dois
dispositivos dá mostras evidentes do longo caminho a
percorrer. Os arts. 944 e 945, ao recepcionarem a teoria da
causalidade adequada, estão plenamente amparados, em nossa
opinião, na função social da responsabilidade civil.38
4 Referências bibliográficas
ALTERINI, Atílio Aníbal. Contornos actuales de la responsabilidad civil.Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1987.37 Ibidem, p. 367.38 TARTUCE, Flávio. Ob. cit., p. 296-297; ALVES, Jones Figueirêdo;
DELGADO, Mário Luiz. Código civil anotado: inovações comentadas artigo porartigo. São Paulo: Método, 2005. p. 409.
19
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