Contribuição para o estudo das ocupações do Plistocénico médio, na margem esquerda do Baixo...

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92 RESUMO A jazida da Quinta da Boavista situa-se nas proximidades da ribeira de Muge (Freguesia de Granho, Municí- pio de Salvaterra de Magos). A existência de materias líticos de filiação paleolítica nessa área é conhecida desde os anos 40, altura em que M. Corrêa aí identificou diversas jazidas de superfície, coevas (CORRÊA, 1940). A intervenção arqueológica de emergência que a empresa ERA-Arqueologia aí promoveu durante os meses de Outubro e Novembro de 2003 permitiu não só a recolha de mais de 500 peças líticas talhadas em posição secundária, como também tornou possível reconhecer as alterações pós-deposicionais por elas sofridas. A análise tecnológica do material lítico aí exumado, que aquí se apresenta, pretende contribuir para uma caracterização dos grupos humanos que ocuparam a região durante o Plistocénico médio. Palavras-Chave: Escavação arqueológica, indústria lítica, Paleolítico inferior, Tejo-Muge. RESUMEN El yacimiento de Quinta de Boavista se encuentra situado en las proximidades de la ribera del Muge (Fre- guesía de Granho, Municipio de Salvaterra de Magos) y es conocido ya desde los años 40 gracias a las noticias aportadas por M. Corrêa sobre la existencia en superficie de un elevado número de materiales de clara filiación Paleolítica (CORRÊA, 1940). La intervención arqueológica, que con carácter de urgencia ha sido llevada a cabo por la empresa ERA-Arqueologia durante los meses de octubre y noviembre del año 2003, ha permitido no sólo la identificación de más de 500 piezas de industria lítica, sino también reconocer sus procesos postdeposicionales. El análisis del material lítico que aquí presentamos pretende contribuir a una mejor caracterización de los grupos humanos que ocuparon la región durante el Pleistoceno medio. Palabras Clave: Excavación arqueológica, industria lítica, Paleolítico inferior, Tajo-Muge. SERGIO MORAL DEL HOYO 1 *** J UAN A. ESPINOSA SOTO 2 * JOÃO P. CUNHA-RIBEIRO** MARCOS T ERRADILLOS BERNAL *** * ERA-Arqueologia S.A. Calçada de Santa Catarina, 9C, 1495-705 Cruz Quebrada-Dafundo. ** Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa [email protected] *** Departamento de Ciencias Históricas y Geografía. Laboratorio de Prehistoria I+D+i. Universidad de Burgos. [email protected] 1 Becario predoctoral de la Fundación Siglo para las Artes de Castilla y León. 2 Becario predoctoral de la Cátedra Atapuerca.

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RESUMOA jazida da Quinta da Boavista situa-se nas proximidades da ribeira de Muge (Freguesia de Granho, Municí-pio de Salvaterra de Magos). A existência de materias líticos de filiação paleolítica nessa área é conhecida desde os anos 40, altura em que M. Corrêa aí identificou diversas jazidas de superfície, coevas (CORRÊA, 1940). A intervenção arqueológica de emergência que a empresa ERA-Arqueologia aí promoveu durante os meses de Outubro e Novembro de 2003 permitiu não só a recolha de mais de 500 peças líticas talhadas em posição secundária, como também tornou possível reconhecer as alterações pós-deposicionais por elas sofridas. A análise tecnológica do material lítico aí exumado, que aquí se apresenta, pretende contribuir para uma caracterização dos grupos humanos que ocuparam a região durante o Plistocénico médio. Palavras-Chave: Escavação arqueológica, indústria lítica, Paleolítico inferior, Tejo-Muge.

RESUMENEl yacimiento de Quinta de Boavista se encuentra situado en las proximidades de la ribera del Muge (Fre-guesía de Granho, Municipio de Salvaterra de Magos) y es conocido ya desde los años 40 gracias a las noticias aportadas por M. Corrêa sobre la existencia en superficie de un elevado número de materiales de clara filiación Paleolítica (CORRÊA, 1940). La intervención arqueológica, que con carácter de urgencia ha sido llevada a cabo por la empresa ERA-Arqueologia durante los meses de octubre y noviembre del año 2003, ha permitido no sólo la identificación de más de 500 piezas de industria lítica, sino también reconocer sus procesos postdeposicionales. El análisis del material lítico que aquí presentamos pretende contribuir a una mejor caracterización de los grupos humanos que ocuparon la región durante el Pleistoceno medio. Palabras Clave: Excavación arqueológica, industria lítica, Paleolítico inferior, Tajo-Muge.

SERGIO MORAL DEL HOYO 1*** JUAN A. ESPINOSA SOTO 2* JOÃO P. CUNHA-RIBEIRO** MARCOS TERRADILLOS BERNAL***

* ERA-Arqueologia S.A. Calçada de Santa Catarina, 9C, 1495-705 Cruz Quebrada-Dafundo.

** Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa [email protected]

*** Departamento de Ciencias Históricas y Geografía. Laboratorio de Prehistoria I+D+i. Universidad de Burgos. [email protected]

1 Becario predoctoral de la Fundación Siglo para las Artes de Castilla y León.

2 Becario predoctoral de la Cátedra Atapuerca.

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Intervenções } Contribuição para o estudo do Plistocénico médio, na margem esquerda do Baixo Tejo

ANTECEDENTES

A área em que se integra esta jazida é conhecida pelo elevado número de acha-

dos arqueológicos atribuíveis ao Paleolíti-co, que, desde há muito, nela foram sendo referenciados (BREUIL e ZBYSZEWSKI, 1945, ZBYSZEWSKI, 1958). A literatura da especialidade que a eles alude permite, nal-guns casos, não só relocalizá-los de forma aproximada, como também aquilatar da sua diversificada representatividade, pois tanto se reportam a achados isolados de peças líticas talhadas, de configuração paleolítica, a concentrações de superfície mais ou menos expressivas ou, muito raramente, a indústrias associáveis a um contexto geoarqueológico melhor definido, tendo-se mesmo chegado a

justificar, pontualmente, a realização de uma escavação, como sucedeu no Cabeço da Mina (CORRÊA, 1940, NEVES, 1988).

Em geral, tais achados encontram-se conecta-dos com os depósitos de terraços fluviais de idade quaternária aí depositados pelo rio Tejo ou com as areias superficiais que se espraiam pela superfície dos vales e dos terraços.

LOCALIZAÇÃO

A jazida da Boavista situa-se na margem esquerda da ribeira de Muge, algumas

centenas de metros a jusante da confluência da ribeira da Lamarosa e cerca de mil e oito-centos metros a montante do Concheiro do Cabeço da Amoreira. De acordo com a folha

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Estudo tecnológico da indústria lítica proveniente da escavação na Quinta da Boavista (Salvaterra de Magos, Portugal)

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31-C da Carta Geológica de Portugal, na escala de 150 000 (Fig. 1), localizar-se-ia no rebordo setentrional de uma extensa mancha ocupada pelo terraço médio do rio Tejo – Q3 – que se estende ao longo de mais de uma dezena de quilómetros, entre a ribeira de Muge e a ribeira de Magos.

Desenvolvendo-se os depósitos deste terraço entre os 25 e os 40 m, o encaixe da ribeira de Muge permite aí o afloramento de depósitos detríticos associados ao Miocénico, junto ao seu largo leito de inundação, depósitos esses integrados no chamado “complexo argilo-gresoso de Coruche”. A meia encosta, assina-la-se ainda a presença de algumas manchas de terraços fluviais que, pela sua cota e posi-ção relativa, se relacionam com a ribeira de Muge, admitindo-se a sua correlação com os terraços Q4 do rio Tejo, que se desenvolvem entre os 8 e os 15 metros.

CONTEXTO GEOARQUEOLÓGICO

A descoberta desta jazida ocorreu já no decurso da abertura da A13, no sector

onde se iniciava a construção do encosto sul do viaduto de atravessamento da ribeira de Muge. Embora a presença de algumas peças líticas talhadas tivesse sido identificada, na mes-ma área, há mais de 60 anos (vd. Fig. 2), o que constituía um indício promissor da valia arqueológica do local, os novos achados encontravam-se associados a um nível de cascalheira conservado em profundidade, só alcançável com os trabalhos de remoção de terras, entretanto efectuados.

Quando se iniciaram os trabalhos, toda a topografia original do local encontrava-se já completamente adulterada com a abertu-ra da auto-estrada. Esta situação permitia, porém, a observação de inúmeros cortes, os quais seccionavam, de forma descontínua e a diferentes altitudes, os depósitos detríticos representados ao longo da pista do seu futuro traçado, mesmo se a correlação entre a estra-tigrafia neles observada nem sempre fosse muito evidente.O nível arqueológico identificado situava-se a uma altitude absoluta de 21-22 metros. Basicamente, correspondia a um depósito de pequenos calhaus rolados, predominan-temente de quartzito, integrando também alguns calhaus de média dimensão. Com uma disposição claramente horizontal, na área que se encontrava exposta pelo corte estratigráfico que localmente a seccionava, este depósito apresentava uma espessura variável, não ultrapassando, na sua máxima potência, os trinta centímetros.

Figura 1

Extracto da folha 31-C da Carta Geológica de Portugal, na escala de 1/50 000.

Figura 2

Biface parcial sobre seixo rolado recolhido, em 1939, no Arneiro da Boavista (CORRÊA, 1940). No quadro do Sistema Lógico Analítico utilizado para o estudo dos materiais líticos na presente publicação, corresponderia a uma Base Negativa de Primeira Geração de Configuração (BN1GC).

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A observação dos vários cortes que secciona-ram este depósito permitiu estabelecer local-mente a seguinte sequência estratigráfica:

1. Nível de espessura variável, mas com uma potência nunca superior a 12 cm, compos-to por areias vermelhas de grão grosseiro. Três pequenas peças talhadas foram reco-lhidas na base deste nível, em sectores onde se vislumbrava a presença de peque-nos leitos de seixos de quartzito.

2. Nível descontínuo de areias acinzentadas, muito finas, arqueologicamente estéreis. A sua intermitência parece ter sido determi-nada pelo desenvolvimento do nível sobre-jacente sob a forma de pequenas bolsas.

3. Nível de areias avermelhadas de grão gros-seiro em que se intercalavam pequenos leitos de areão amarelados e pequenos seixos rolados (2–6 cm). Tal como o nível anterior, é arqueologicamente estéril.

4. Nível de cascalheira com uma matriz de areias de grão médio e coloração averme-lhada, com uma potência não superior a 15 cm, integrando pequenas lentículas de a-

reias acinzentadas. Localmente, observa-se uma estratificação laminar e paralela, cla-ramente bem delimitada no seu topo e na base, embora, na zona poente da jazida, a sua distinção dos níveis subjacentes, 5 e 7, nem sempre seja muito clara.

5. Nível de areias vermelhas de grão grossei-ro que se distingue do nível anterior pela ausência de clastos e de vestígios arqueo-lógicos. As duas únicas bases positivas ne- le recolhidas provinham, seguramente, do nível superior. A sua espessura é claramen-te mais expressiva a nascente, situação que torna difícil a sua individualização dos níveis 4 e 7, no sector oposto da jazida.

6. Pequenos leitos de areias de grão muito fino, podendo passar a limo, de cor cin-zenta. A base é irregular e a sua potência dilui-se também para poente, onde a sua presença é apenas registada em peque-nas bolsas descontínuas. As doze peças líticas talhadas que se recolheram neste nível provêm todas do sector poente da escavação, admitindo-se que estariam na sua totalidade relacionadas com o nível inferior.

Fotografia 1

Jazida Paleolítica da Boavista. Aspecto da cascalheira num dos cortes abertos pela escavação, numa fase inicial da intervenção arqueológica aí realizada.

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7. Nível de cascalheira integrando seixos rolados de quartzito de pequena e média dimensão (2-10 cm), imbricados uns nos outros de forma aparentemente organiza-da e embalados numa matriz grosseira de areias vermelhas. A potência deste nível segue o padrão dos níveis sobrejacentes, já que, para poente, ela diminui de forma significativa, tornando-se mesmo difícil a sua individualização. Trata-se, contudo, do nível arqueológico mais rico, dado que nela foram recolhidos cerca de 2/3 do total das peças líticas talhadas exumadas no decurso da escavação.

8. Areias cinzentas de grão muito fino, cimen-tadas, sem estruturas sedimentares visí-veis. Trata-se de um nível com uma espes-sura de cerca de 40 cm, totalmente estéril, do ponto de vista arqueológico, que em pro- fundidade se sobrepõe a uma outra casca-lheira que já não foi objecto de qualquer intervenção de carácter arqueológico.

A escavação efectuada consistiu, inicialmen-te, numa sondagem de 18 m2, na área do sítio que tinha sido menos afectada pela acção das máquinas, dado ter sido o local seleccionado para depósito das terras retiradas dos sítios adjacentes. Tendo em conta o estado físico dos materiais recolhidos na escavação, bem como a sua apre-ciável concentração, a importância arqueoló-gica da jazida era particularmente relevante. Decidiu-se, assim, alargar prioritariamente a área intervencionada outros 18 m2, tanto pa-ra reunir uma colecção representativa dos materiais líticos talhados aí exumados, como para definir a génese da cascalheira em que se integrava o nível arqueológico em apreço.

Inicialmente, dada a sua posição altimétrica, admitiu-se que o depósito em escavação se pu-desse integrar na base dos terraços Q3 do rio Tejo, expressivamente representados a uma cota mais elevada no corte 3. A confirmar-se tal hipótese, estar-se-ia em presença de uma jazida correlacionável com os mais antigos vestígios de ocupação humana conhecidos na região, através de antigas colecções conecta-das com a base do Q3, tradicionalmente asso-ciadas ao chamado “Acheulense antigo”.

Figura 3

Planta topográfica da área intervencionada, assinalando-se a posição dos principais cortes descritos e da área escavada (equidistância das curvas de nível: 2 m).

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Para o cabal esclarecimento desta questão, procurou estudar-se sumariamente os amplos cortes disponíveis a uma cota superior, os cortes de dimensão menos expressiva que seccionavam os depósitos detríticos presentes nas imediações da zona escavada à mesma cota ou a uma cota inferior, bem como outros situados na zona envolvente do traçado da A13.Como em geral acontece, também aqui a adequada interpretação dos vestígios arqueo-lógicos exumados não se pôde circunscrever ao limitado estudo do seu local de proveni-ência, sob pena de não se compreender as verdadeiras condições de formação do sítio arqueológico e de preservação dos materiais aí recolhidos, nem o seu real significado, em termos de estratégias de ocupação do território e de exploração dos recursos nele existentes.

Descrição sumária dos principais cortes observadosO corte 1, sendo o mais distante da área da escavação, seccionava, a Sudoeste desta, o topo do terraço médio do Tejo, embora já não apresentasse qualquer vestígio das terras are-nosas e humosas que, em geral, aí definem o

solo actual. Da observação dos seus 9 metros de espessura, delineou-se, de cima para bai-xo, a seguinte sucessão estratigráfica:

1. Cascalheira heterométrica com cerca de 2 m de espessura, integrando preferencial-mente calhaus rolados de quartzito e uma matriz arenosa com coloração avermelha-da não muito acentuada.

2. Nível de areias bastante avermelhadas, não calibradas, com cerca de 3 m de espessura, integrando, por vezes, leitos com espes-sura e dimensão variáveis de pequenos e médios calhaus rolados, de quartzito.

3. Cascalheira heterométrica de calhaus rola-dos, de quartzito, com uma matriz are-nosa muito avermelhada, definindo o seu encaixe, na camada subjacente, um amplo paleocanal que se prolonga pelos cortes imediatamente adjacentes, com um amplo raio de curvatura. No ponto mais central do paleocanal, a cascalheira atinge uma espessura máxima de 3 m.

4 Areias avermelhadas, relativamente bem calibradas, com uma espessura natural-mente variável e evidenciando, frequente-mente, uma estratificação bem horizontal.

Fotografia 2

Aspecto parcial do corte 1, destacando-se um dos bordos do grande paleocanal aí identificado.

A área em que se integra esta jazida é conhecida pelo elevado número de achados arqueológicos atribuíveis ao Paleolítico que, desde há muito, nela foram sendo referenciados

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Se o contraste sedimentar e pedológico entre a camada 1 e a camada 2 pode iniciar uma aparente descontinuidade sedimentar entre ambas, a marcada separação entre a cama-da 2 e a camada 3 e entre esta última e a camada 4 deixa antever, de forma bem mais expressiva, a ocorrência de episódios erosivos entre os vários momentos de sedimentação aí representados. Pode, assim, concluir-se que a formação do terraço médio do Tejo, que a Carta Geológica de Portugal, na escala 1/50 000, identifica co- mo correspondendo ao Q3 e correlaciona com o chamado “Tirreniano I”, está localmente associada ao desenvolvimento de sucessivas fases de sedimentação que estratigrafica-mente se sobrepõem, separadas entre si por superfícies de descontinuidade que teste-munham a ocorrência de episódios erosivos. Ainda de acordo com os dados recolhidos, as fases de sedimentação representadas estão conectadas a caudais hídricos com distin-tas competências, prevalecendo, todavia, nas fases de maior competência figuras sedimen-tares decorrentes da formação de grandes canais ou do desenvolvimento de expressivas barras longitudinais. Situação algo diversa foi observada no corte 2, para Nordeste, onde, na continuidade topográfica do paleocanal identificado no corte 1, surge uma cascalheira que, de ime-diato, evidencia uma acentuada inclinação para ENE, para, na extremidade do corte, a uma cota próxima da jazida arqueológica intervencionada, apresentar uma espessura bem mais expressiva. Acresce que, de acor-do com os arqueólogos responsáveis pelo acompanhamento da obra neste sector, em toda a extensão desta enigmática cascalhei-ra, recolheram-se diversas peças talhadas de quartzito, sem, todavia, se vislumbrar qualquer concentração. De qualquer forma, em nenhum ponto do corte, a referida cas-calheira denotava uma disposição dos seus constituintes susceptível de se lhe poder imputar uma génese fluvial, o que nos levou a associá-la ao desenvolvimento de um depó-sito de tipo coluvionar.

O corte 3, por seu turno, secciona o topo do terraço médio do Tejo, no topo da verten-te adjacente à zona da escavação. Nele se observava também a sucessão de distintos episódios de sedimentação grosseira, alguns dos quais associáveis ao desenvolvimento de barras fluviais, bem como a sua intercalação por episódios de descontinuidade erosiva.

A observação dos depósitos situados a uma cota inferior à da jazida arqueológica reve-lou-se uma tarefa bem mais difícil. Os cor-tes abertos pelos trabalhos promovidos pela Brisa eram aí bem mais modestos, tanto pela espessura dos depósitos seccionados, como pela sua própria extensão. Situavam-se, por outro lado, numa área em plena laboração, pelo que, frequentemente, se apresentavam cobertos de pó ou parcialmente cobertos pela contínua remoção de terras que aí se opera-va. Sorte não muito diferente encontrámos na observação de uma antiga exploração de areias, sobranceira à estrada que bordeja a vala das Bordas, numas instalações agrícolas localizadas 500 m a NW do topónimo da Boavista, cujos cortes se encontravam cober-tos por derrubes ou entalhados pela erosão pluvial∗.

Em geral, trata-se de cortes que seccionam níveis de areias quartzosas e mal calibradas, com uma coloração castanho-avermelhada, por vezes, mais amareladas, que integram leitos horizontais e descontínuos de cas-calheiras formadas por calhaus de médias e pequenas dimensões, denotando, nalguns casos, uma morfologia subangulosa. Nalguns cortes, assinalava-se a presença de níveis de argilas muito compactas e acinzentadas, noutros níveis a presença de siltes esbranqui-çados, evidenciando, em qualquer das situ-ações, as respectivas estratigrafias referidas bruscas variações laterais.

Não se afigurava, pois, nada fácil a deli-mitação da base do Q3, numa área onde ele assenta no “complexo argilo-gresoso de Coruche”, essencialmente constituído por “areias e de argilas amarelas, acastanhadas ou avermelhadas”, integrando, amiúde, leitos de calhaus rolados. Tão-pouco é clara a indi-vidualização das pequenas manchas de ter-raços mais baixos, que a folha 31-C da Carta Geológica de Portugal na escala 1/50 000, associa à génese da ribeira de Muge e integra no Q4. A convergência de fácies entre estes diferentes depósitos detríticos é por demais evidente e aconselha a realização de um estudo mais aprofundado destas diferentes formações continentais.

As observações atrás descritas revelavam-se inconclusivas para uma adequada caracte-

* De acordo com os dados disponíveis, seriam provenientes desta área as três peças recolhidas em 1938 pelos colaboradores de Mendes Corrêa e conectadas com o topónimo “Arneiro da Boavista”.

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Fotografia 3

Aspecto parcial do corte 2, observando-se o desenvolvimento da cascalheira coluvionar da esquerda para a direita.

Fotografia 4

Aspecto parcial da espessa cascalheira representada no topo do corte 3, nas imediações da jazida arqueológica.

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rização do nível arqueológico escavado na jazida da Boavista, mesmo se permitiam colocar a questão envolvida de uma forma mais clara. Corresponderia a cascalheira aí identificada a um nível de base do Q3, permitindo tal asserção relacionar os materiais exumados com os vestígios arqueológicos tradicional-mente associados no vale do rio Tejo ao Acheulense antigo? Em que medida tal hipó-tese era compatível com a circunstância de a jazida se situar a uma altitude de cerca de 22 m, abaixo da cota dos 25 m definida pelo escalonamento do Q3 entre os 25 e os 40 m, de acordo com a Carta Geológica de Portugal, na escala de 1/50 000?

Esta última observação não se nos afigurava pertinente, já que a base de uma formação fluvial pode apresentar variações altimétricas significativas, em função do ponto do antigo leito do rio em que tal observação se realizar. Por outro lado, não nos foi sequer possível determinar localmente a base do Q3.Já as observações efectuadas nos cortes 1 e 2 permitiram vislumbrar em associação com o Q3 o desenvolvimento de figuras sedimen-tares bem distintas das existentes na zona escavada e na zona imediatamente envolven-te. De forma particularmente gritante, não se conseguia perceber a conexão entre a espessa cascalheira representada ao longo de todo o corte 3 até à sua extremidade ENE e a peque-na cascalheira e os depósitos a ela associados existentes na área da escavação.

Corresponderia o nível arqueológico em apre-ço a um depósito de tipo coluvionar similar ao que se entrevia no corte 2? A disposição dos constituintes da cascalheira não era concludente, tanto mais que, na área seccionada pela intervenção arqueológica, ela revelava uma disposição marcadamente horizontal, não permitindo os revolvimentos de terras que rodeavam a área em escavação vislumbrar a sua eventual continuidade para qualquer dos lados. Poder-se-ia, em alternativa, considerar tal cascalheira como testemunho de um terraço quaternário da ribeira de Muge, mais recente que o Q3, eventualmente correlativo do Q4 do rio Tejo, também situado “8-15 m acima do nível do rio na estiagem”?Das observações que realizámos em cortes situados a uma cota mais baixa, resultava claro que a individualização de manchas de terraços do Q4 aí assinalada pela Carta Geológica de Portugal, na escala de 1/50 000,

terá tido como fundamento a topografia do terreno, mas não encontrava qualquer com-provação na estrutura sedimentar dos depó-sitos detríticos aí preservados, genericamente associáveis ao “complexo argilo-gresoso” do Miocénico.

O único depósito de origem fluvial relacio-nado com a ribeira de Muge, que observámos na área em estudo, foi seccionado pela cons-trução do encosto norte do viaduto da A13 sobre a ribeira de Muge, na margem oposta à da jazida paleolítica da Boavista. A sua estru-tura sedimentar não podia, porém, ser mais distinta. Com efeito, no pequeno corte que aí pudemos observar, situado cerca de 2 a 3 m sobre o actual nível da ribeira, registava-se a estratificação horizontal de níveis de areias grosseiras, quartzosas e soltas, intercaladas por delgados níveis de areias acastanhadas, mais compactas e por pequenos leitos argilo-sos, acinzentados, integrando pontualmente vestígios de matéria orgânica.Tendo em conta a situação descrita, solici-tou-se ao empreiteiro da obra a abertura de uma vala contínua entre as proximidades da jazida e o corte 3 adjacente, por forma a per-cepcionar o desenvolvimento sedimentar dos depósitos aí existentes e, ao mesmo tempo, esclarecer definitivamente a génese da casca-lheira entretanto escavada.

A vala aberta, mesmo não permitindo a cria-ção de um corte muito espesso, tornou claro que a cascalheira intervencionada corres-pondia a uma coluvião. Esta desenvolveu-se desde as proximidades da base do corte 3 até à área intervencionada, onde os mate-riais remobilizados se terão acumulado numa zona francamente mais aplanada, dando, por vezes, origem à formação de pequenos char-cos, responsáveis pela génese dos pequenos níveis de argila que colmatam, de forma des-contínua, a cascalheira ou a ela se sobrepõem, intercalados nos níveis de textura arenosa. A génese desta coluvião é indissociável do encaixe da actual rede de drenagem, processo esse posterior ao entalhe do adjacente vale da ribeira de Muge e que se prolongou até à actualidade, dependendo a sua maior ou menor incidência da variação da pluviosida-de e da cobertura vegetal. No caso vertente, a coluvião terá acompanhado o entalhe da pequena linha de água que, com origem nas proximidades da jazida, se foi encaixando no rebordo do terraço, engendrando a erosão do topo desta mesma formação, donde serão originários os materiais líticos exumados na

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escavação. Esta situação explica, aliás, a razão porque tais peças não se apresentam, em geral, muito boleadas, tendo a sua relativa concen-tração sido determinada pela topografia da vertente, que determinou localmente a parcial acumulação dos materiais remobilizados.Génese similar terá tido o depósito observado no corte 2, muito embora os dados dispo-níveis não permitam confirmar a eventual contemporaneidade de ambos.

Afastada já a hipótese, inicialmente con-siderada, de a jazida se integrar nos níveis de base dos terraços médios do rio Tejo correspondentes ao chamado Q3, não se con-firma também a sua associação aos terraços da ribeira de Muge correlativos dos bai-xos terraços do Tejo denominados por Q4. Mas mesmo a identificação, num contexto manifestamente secundário, da concentração de algumas centenas de artefactos líticos talhados, evidenciando, no seu conjunto, um estado físico pouco alterado, não deixa de se destacar como promissora, numa região onde há muito abundam os indícios de vestígios arqueológicos de superfície, mas rareiam os achados associados a um contexto geoarque-ológico preciso.

A CARACTERIZAÇÃO DAS INDÚSTRIAS LÍTICAS DA QUINTA DA BOAVISTA. BREVE ESTUDO TECNOLÓGICO

A intervenção realizada na estação da Quinta da Boavista permitiu a recolha

de uma indústria lítica pouco elaborada, constituída por um conjunto de 506 peças. Na sua grande maioria, estes materiais reco-lheram-se nos níveis estratigráficos 4 e 7. Algumas peças foram, porém, descobertas nos níveis 5 e 6, outras à superfície, incluin-do-se, neste conjunto, as poucas peças detec-tadas no nível superficial da escavação, a que se acrescentou um outro pequeno conjunto de materiais oriundos de algumas sondagens mecânicas realizadas nas imediações da área escavada.

Os materiais provenientes dos níveis super-ficiais correspondiam a um conjunto de 15 peças muito boleadas, enquanto as peças recolhidas nas imediações da escavação inclu-íam um total de 16 objectos líticos talhados. Tratava-se de colecções pouco representati-vas para se justificar o seu estudo detalhado, muito embora fosse claro, em ambos os casos, a sua similitude com o conjunto lítico prove-niente da escavação a cujo adequado estudo se procedeu∗.

* O presente estudo foi realizado por Marcos Terradillos Bernal, Juan A. Espinosa Soto e Sergio Moral del Hoyo.

Fotografia 5

A seta na vertical assinala a extremidade do corte 3 sobranceiro à jazida. O corte esquerdo mostra a extensão da vala aberta pela qual se prolonga a coluvião.

Nenhuma das bases estudadas é associável com clareza aos sistemas de exploração Levallois ou discóide.

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Para o estudo destes materiais, optou-se por se seguir a metodologia delineada pelo Siste-ma Lógico Analítico (CARBONELL, GUIL-BAUD e MORA, 1983; CARBONELL et al., 1992). Este sistema apresenta-se como uma alternativa às listas tipológicas tradicionais (BORDES, 1961; TIXIER e INIZAN, 1980), constituindo uma ordenação mais dialética dos materiais em estudo, cuja aplicação se tem vindo a afirmar nos últimos anos. Na prática, corresponde a uma aplicação da lógica histórica (THOMPSON, 1981) ao estu-do dos objectos do passado, traduzindo-se na necessidade de estabelecer critérios de hierarquização lógicos entre os elementos que compõem uma realidade artefactual. O objectivo do S. L. A. é de reconhecer e defi-nir em que lugar se encontra cada objecto dentro de uma dinâmica de modificação dos recursos naturais (AIRVAUX, 1987; CAR-BONELL, 1982; LAPALACE e LIVACHE, 1986; PELLEGRIN, et al., 1988; GENESTE, 1985; GUILBAUD, 1987).

Estado de conservaçãoOs materiais estudados apresentam uma sig-nificativa proporção de peças roladas. Nos níveis arqueológicos 4, 5 , 6 e 7, 19% das peças recolhidas encontravam-se apenas medianamente roladas, enquanto outras tan-tas evidenciavam um acentuado rolamento das suas arestas de talhe. Entre os materiais recolhidos à superfície ou no nível superfi-cial da escavação, o rolamento das arestas de talhe afectou 50% das peças.

Matéria-primaNa estação paleolítica da Quinta da Boavista, o homem utilizou, de forma quase exclusiva, para a elaboração dos seus artefactos, sei-xos rolados de quartzito de boa e de muito boa qualidade e, em menor medida, alguns outros de média qualidade. Apenas 1% das peças foi produzida em quartzo.Os seixos rolados seleccionados como supor-te, no âmbito da elaboração desta indústria, tinham um comprimento que variava entre 50 e 180 mm e uma largura compreendida entre 40 e 130 mm. A acessibilidade à matéria-prima, procedente dos terraços do rio Tejo, constituía, certa-mente, um aliciante para a fixação das popu-lações nos territórios adjacentes.

Análise morfotécnicaUm total de 475 peças foram recolhidas no decurso da escavação realizada na Quinta da Boavista, em conexão com os níveis 4, 5, 6 e 7 aí identificados. Correspondem, generi-camente, a um conjunto artefactual numeri-camente significativo e bastante homogéneo, resultando a sua distribuição pelos diferentes níveis arqueológicos de uma redeposição em diferentes momentos, a partir da posição que originalmente ocupavam a uma cota mais elevada. Este pressuposto, reforçando a homogeneidade da colecção, justificou o estudo conjunto destes materiais.À categoria estrutural das Bases Naturais (percutores) correspondiam 2,1% do total da indústria – 10 peças – enquanto as Bases

Conjuntos Níveis Bn BN1GE BN1GC BN1G BN2GE BN2GC BP Frag. Total

Indet.

Superfície - 6 4 - 1 1 14 - 24

Superfiície 1 1 1 - - - - 4 - 6

Total 1 10 4 - 1 1 20 - 37

4 1 17 - 2 - 1 94 16 131

5 - - - - - - 2 - 2

Escavação 6 - 1 - 1 - 1 8 - 11

7 9 34 12 8 4 6 268 11 352

Total 10 52 12 11 4 8 372 27 496

II - 2 - - - - 3 - 5

Corte III - 2 - 1 - - 8 - 11

Total - 4 - 1 - - 11 - 16

TOTAL 11 66 16 12 5 9 403 27 549

Quadro 1

Distribuição das categorias estruturais pelos diferentes conjuntos de artefactos e níveis identificados.

103

Intervenções } Contribuição para o estudo do Plistocénico médio, na margem esquerda do Baixo Tejo

Negativas de Primeira Geração representa-vam 17% da colecção –, com um total de 75 peças – e as Bases Positivas constituíam 78% do conjunto – envolvendo 351 peças. Iden-tificaram-se também 12 Bases Negativas de Segunda Geração, o equivalia a apenas 2,7% do total dos materiais estudados.

1 – As Bases Naturais (BN)As Bases Naturais correspondem, na sua tota-lidade, a seixos rolados ovalares de quartzito, com um comprimento médio de 114 mm, uma largura média de 84 mm e uma espessu-ra média de 50,5 mm. O seu peso médio é de 694 gramas. As Bases Naturais são as bases com maiores dimensões e o seu peso supera, em cerca de 40%, o peso médio das Bases Negativas de Primeira Geração. Sete destas Bases Naturais apresentavam estigmas (Bnb), uma encontrava-se fracturada e duas outras, também fracturadas, evidenciam estigmas de percussão no bordo cortical do seixo. No seu conjunto, estes seixos correspondem a utensí-lios de percussão utilizados na exploração e/ou na configuração dos instrumentos líticos em estudo. Entre as bases localmente dispo-níveis, os hominídeos seleccionaram as mais apropriadas para este tipo de actividades.

2.1 – As Bases Negativas de Primeira Geração (BN1G)Identificaram-se setenta e cinco BN1G, cor-respondendo a seixos rolados configurados ou explorados, o que representava 17% da colecção em estudo. Destas peças, 39 eram de quartzito de média qualidade, 35 de quartzi-to de boa e de muito boa qualidade e uma de quartzo.Onze BN1G eram indeterminadas (14,6%), já que se desconhecia se a sua transformação correspondia a um processo de configuração ou de exploração, o que se devia à escassa intervenção humana que revelavam, à sua fracturação ou ao seu deficiente estado de conservação. Das restantes, 52 (70%) desti-navam-se a serem exploradas e 12 (15,4%)

eram peças configuradas, isto é, tratava-se de seixos acondicionados, tendo em vista a sua posterior utilização.

2.2 – Bases Negativas de Primeira Geração IndeterminadasAs onze BN1G indeterminadas apresentavam as seguintes dimensões médias: 77 x 56 x 30,2 mm. A média do seu peso era de 151 gramas. Estes atributos representavam os valores mais reduzidos da totalidade das BN1G estudadas. Seis destas peças eram de quartzito de média qualidade e as restantes cinco de quartzito de boa e de muito boa qualidade.Seis das BN1G indeterminadas evidenciavam uma transformação unifacial com continui-dade lateral ou transversal das extracções envolvidas. Outras cinco revelavam uma transformação bifacial com sobreposição das extracções. Em todas elas, predominava o talhe simples, com extracções profundas, por

Bn BN1GE BN1GC BN1G BN2GE BN2GC BP Frag.

indet.

Comprimento 114 92 107 77 83 72 58 37,5

Largura 84 75 78 56 63,5 53 42 23,5

Espessura 50,5 42,6 46 30,2 23,7 19 15,7 11

Peso 693,9 419 490 151 135 86,5 53 22,2

Quadro 2

Médias das dimensões (mm) e pesos (gr) por categorias estruturais dos materiais exumados nos níveis da escavação.

Figura 4

Bnd ou percutor com estigmas e fractura.

104

vezes de forma muito acentuada, delas resul-tando a definição de arestas frontais com morfologia convexa ou uniangular.

2.3 – Bases Negativas de Primeira Geração de Exploração (BN1GE)As 53 peças consideradas como Bases Negati-vas de Primeira Geração de Exploração cor-respondem a 11% do total dos materiais reco-lhidos nos níveis 4, 5, 6 e 7 da área escavada. Todos os efectivos desta categoria estrutural foram explorados a partir de seixos rolados de quartzito, com a excepção de uma única peça de quartzo.Em termos dimensionais, as BN1GE apresen-tam um comprimento médio de 92 mm, 75 mm de largura e 42,6 mm de espessura, a par de um peso médio de 419 gramas. Trata-se de valores que só são superados pelos das Bases Indeterminadas. Acresce que apenas uma das peças inventariadas tinha um comprimento e largura inferior a 50 mm, o que inviabilizou a continuação da sua exploração.Mais de metade das BN1GE (54%) são bifa-ciais, todas elas com extracções justapostas, à excepção de uma que evidenciava uma descontinuidade lateral das suas extracções. As restantes BN1GE são unifaciais, 21 das quais com extracções contíguas e uma com extracções descontínuas. As bases unifaciais

apresentam menos de 50% da sua periferia explorada, enquanto entre as bifaciais se explorou menos de metade da periferia na face utilizada para definir planos de percussão, enquanto a face principal de explo-ração surge com extracções em mais de 50% da sua periferia. Sublinhe- -se ainda que, em nenhum dos níveis da escavação, nem em nenhum dos outros contextos, apareceram peças trifaciais e multifaciais.As extracções são simples ou semi-abruptas nas faces principais e abrup-tas ou semiabruptas nas faces opostas. Predominam as extracções invasoras nas faces menos talhadas e extracções ainda mais invasoras, por vezes mes-mo totais, nas faces principais.As arestas frontais são primordial-mente convexas e as convergentes são invasoras e não simétricas.As estratégias de exploração repre-sentadas, pela sua ordem decrescen-te, são a unifacial longitudinal uni-polar (25%), a bifacial longitudinal unipolar (23%), a unifacial centrípe-ta (13%), bifacial octogonal (13%) e

bifacial centrípeta (11,5%).Estas peças tem, em média, cerca de 7 extrac-ções, não evidenciando qualquer uma delas uma intensa exploração, facto este certamen-te não dissociável da proximidade dos terra-ços fluviais onde afloram grandes quantida-des de seixos de quartzito. O talhe de todas esta colecção apresenta, aliás, uma destacável simplicidadeNenhuma das bases estudadas é associá-vel com clareza aos sistemas de exploração Levallois ou discóide.

2.4 – Bases Negativas de Primeira Geração de Configuração (BN1GC)As 12 Bases Negativas de Primeira Geração de Configuração identificadas representam, por seu turno, 2,52% do conjunto dos mate-riais estudados. Do ponto de vista das suas dimensões, apresentavam um comprimento médio de 107 mm, 78 mm de largura e 46 mm de espessura. O seu peso médio é de 490 gramas.Do ponto de vista morfológico, predominam as formas ovais (3/4), seguidas das trian-gulares (1/4). Duas das peças correspon-dem a BN1GC unifaciais (com continuidade das respectivas extracções) e as restantes 10 a BN1GC bifaciais (com sobreposição das extracções).

Figura 6

BN1GE ou núcleo sobre seixo rolado.

Figura 5

BN1GC ou instrumento sobre seixo rolado.

105

Intervenções } Contribuição para o estudo do Plistocénico médio, na margem esquerda do Baixo Tejo

Sete destas peças foram elaboradas a partir de quartzitos de boa qualidade, enquanto as restantes cinco aproveitaram quartzitos de média qualidade. As extracções afectaram entre um quarto e três quartos do perímetro destas bases. Nas bases unifaciais, predomina um talhe oblí-quo e nas bases bifaciais um talhe abrupto ou semiabrupto. Em geral, a configuração destas bases assentou em extracções invaso-ras ou marginais, revelando-se as respectivas arestas frontais uniangulares (7) e convexas (5). O processo de configuração assentou, em média, na obtenção de 7 extracções.Nas suas zonas activas, verifica-se o predomí-nio da morfopotencialidade diédrica lateral (12) e diédrica distal (6), tendo-se identi-ficado um único triedro distal. As frentes configuradas, por seu turno, apresentam um ângulo médio de 54º.Não se recolheram utensílios de grandes dimensões com gumes retocados. Aliás, nenhuma das peças identificadas correspon-dia claramente ao clássico morfotipo do bifa-ce, com excepção de um biface sobre lasca, possivelmente retocado com percutor brando (vd. Fig. 8).

3 – As Bases Positivas (BP)Esta é a categoria estrutural melhor repre-sentada na Quinta da Boavista. No seu total, inventariaram-se 372 BP, o que representa 75% do total das peças recolhidas. Destas, 244 são de quartzito de boa e de muito boa qualidade, 124 são de quartzito de qualidade mediana e 4 são de quartzo. Uma parte sig-nificativa destas peças (46,4%) encontrava-se fracturada.No que se refere às suas dimensões, as Bases Positivas apresentam, em média, um compri-mento de 58 mm, uma largura de 42,1 mm e uma espessura de 15,6 mm. O seu peso médio era de 5,2 gramas. Acresce que 103 BP evidenciam um comprimento superior a 50 mm e 142 uma dimensão máxima entre 50 e 20 mm, pelo que se pode afirmar que as BP representadas nesta jazida são, em geral, de grande tamanho.A maior parte destas 372 Bases Positivas apresentam córtex na sua face dorsal (71%). Só 102 destas BP não tem córtex. Na grande maioria dos casos, o talão corresponde a uma plataforma lisa cortical (43%) ou não cortical (42%). Detectaram-se também 18 talões bifa-cetados, 1 trifacetado e 3 multifacetados.As extracções anteriores cujos negativos se encontram preservados na face superior des-tas BP testemunham uma disposição longi-

tudinal unipolar (43,5%), ortogonal (26%), transversal unipolar (13%), centrípeta (1%) e longitudinal bipolar (6,1%). Cada BP apre-senta, em média, 3,3 negativos de extracções na sua face dorsal e uma média de 81 mm de gume.

3.1 – Bases Negativas de Segunda Geração de Configuração (BN2GC)Oito lascas possuem retoques regulares, con-tínuos e intencionais, o que representa 1,78% dos materiais estudados. Em média, estas BP tem 83 mm de comprimento, 63,5 mm de largura e 23,7 mm de espessura. O seu peso médio é de 86 gramas.Seis BN2GC são unifaciais e só duas são bifa-ciais. O retoque afectou menos de metade do perímetro das peças em quatro delas e mais de metade noutras três. Em quatro destas peças, o retoque é simples, enquanto noutras duas é semiabrupto, sendo, em geral, invaso-res e predominantemente directos. A aresta frontal é, em quatro dos casos, convexa, recta noutros três e denticulada num outro. Ao nível morfopotencial, só se identificaram diedros unipolares.Na configuração das BP, não se vislumbrou qualquer selecção particular dos suportes usados.

3.2 – Bases Negativas de Segunda Geração de Exploração (BN2GE)Entre as BN2G, há quatro Bases Negativas de Segunda Geração de Exploração, em quartzi-to de excelente qualidade, que representam 0,9 % das peças estudadas. Do ponto de vista dimensional, tem, em média, um compri-mento de 83 mm, 63,5 mm de largura média e uma espessura de 23,7 mm. O seu peso médio é de 135 gramas.

Figura 7

BN2GE ou núcleo sobre lasca.

106

As quatro bases são bifaciais, estendendo-se, em metade dos casos referidos, as extracções que as afectam por mais de metade do seu perímetro. De salientar, também, que as BN2GE reve-lam uma maior intensidade de talhe do que as BN1GE, já que apresentam, em média, 8,5 extracções.

Figura 8

BN2GC ou instrumento sobre lasca (biface).

Figura 9

BN2GC ou instrumentos sobre lasca.

Figura 10. 1 y 4

BP ou lascas. 2 y 3 BN2GC ou instrumentos sobre lasca

No seu conjunto, esta indústria pode associar-se ao chamado Modo Tecnológico 2, tanto pela abundância de Bases bifaciais que comporta, como pela importante proporção de diedros bilaterais convergentes

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Intervenções } Contribuição para o estudo do Plistocénico médio, na margem esquerda do Baixo Tejo

4 – OS FRAGMENTOS

Os 27 fragmentos inventariados consti-tuem 5,7% da colecção estudada. Trata-

se de fragmentos que apresentam, em conexão com uma ou mais superfícies de fracturações, vestígios de anteriores extracções por elas seccionadas. Na sua maior parte, não tem qualquer vestígios de córtex. O seu compri-mento médio é de 37,5 mm.

Caracterização geral da indústriaA indústria lítica proveniente dos níveis arqueológicos escavados na estação paleo-lítica da Quinta da Boavista compreende um total de 478 peças (não contando com os fragmentos), consideráveis no seu todo como tecnicamente pouco elaboradas. Esta indústria resultou, na imensa maioria dos casos, da exploração de seixos rolados de quartzito, cujo aprovisionamento era realiza-do nos terraços fluviais que se espraiam pela envolvência da jazida. Entre os seixos referi-dos, seleccionaram-se os formatos espessos e alargados, com secção e contorno oval.

A exploração destes suportes seria bastante importante, dado que se identificaram 56 Bases Negativas de Exploração e 372 Bases Positivas. Os elementos relacionados com esta realidade correspondem, aliás, a 84% dos materiais estudados, enquanto a con-figuração afectou 3,3% do total das peças. Contudo, a exploração destas peças é, generi-camente, pouco intensiva, já que os artífices por ela responsáveis dispunham, na zona da jazida, de uma grande quantidade de seixos rolados de quartzito e de quartzo. A comple-xidade conceptual destes processos de explo-ração é relativamente importante, já que se identificaram estratégias de exploração que tanto aproveitavam o comprimento das Bases Negativas, como a sua largura, bem como uma expressiva representação do talhe orto-gonal e centrípeto. Todos eles, porém, sobre bases unifaciais e bifaciais.

A escassa configuração identificada, maio-ritariamente efectuada a partir de seixos rolados, produziu, essencialmente, gumes diédricos. Apenas numa BN1GC se identifi-cou um triedro distal.

CONCLUSÃO

No seu conjunto, esta indústria pode asso-ciar-se ao chamado Modo Tecnológico

2∗, tanto pela abundância de Bases bifaciais que comporta, como pela importante propor-ção de diedros bilaterais convergentes. Con-tudo, dentro deste Modo 2, corresponderiam a uma fácies pouco complexa, dado que as bases referidas foram unicamente exploradas numa ou duas faces e a morfopotencialidade triédrica é escassa.Por outro lado, tendo-se identificado 4,68 Bases Positivas por cada BN1G inventaria-da, verificou-se, ao mesmo tempo, que cada uma destas últimas bases apresentava, em média, 6,7 negativos. Esta situação permitiu concluir que os materiais líticos talhados, associados aos níveis arqueológicos escavados na estação paleolítica da Quinta da Boavista, testemunhariam a presença fragmentada e em posição secundária de um sistema de produção de materiais líticos talhados, o que justificaria a sub-representação de elementos configurados e a ausência de peças que cor-respondessem claramente ao morfotipo dos machados de mão e dos bifaces. Não se pode, contudo, descartar a hipótese de esta ausên-cia resultar do facto de os hominídeos terem transportado para fora da jazida as maiores peças configuradas.A sua clara conexão com os terraços do Tejo, onde abundam seixos rolados de quartzito de boa qualidade, permitem admitir que o local original de tais vestígios correspondeu, no Plistocénico médio, a um oficina de talhe ao ar livre, para onde os homens paleolíticos se deslocariam para assegurar o seu aprovisio-namento na matéria-prima indispensável à produção dos seus artefactos e aí procedendo à sua própria transformação (ISAAC, 1971). Parte dos materiais resultantes de tal acti-vidade, em particular algumas Bases Posi-tivas e a maioria dos objectos configurados, seria deslocada para outro tipo de locais de ocupação humana, onde seria utilizada nas actividades especializadas ou não que aí se desenvolveriam. Em todo o caso, como sucede com muitas das jazidas coevas, os materiais exumados nesta estação paleolítica foram afectados por um expressivo conjunto de alterações pós-deposicionais que se reflec-tiram na representatividade e homogeneida-de do conjunto artefactual aí preservado.

* Designação atribuída por Clarke (1984) às indústrias do acheulense.

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AGRADECIMENTOSA todos os que, de uma forma ou outra, cola-boraram na escavação reslizada na estação paleolítica da Quinta da Boavista: António C. Valera, Miguel Lago, Inês Mendes da Silva, João Rebuge, Miguel Almeida, Elsa Martins, Luís Faria, Ricardo Parreira, Rui Rosas, Nélia Santos e Anabela Gonçalves.

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