O feminino retratado na cena brasileira de rock'n'roll: um estudo de gênero

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O FEMININO RETRATADO NA CENA BRASILEIRA DE ROCK’N’ROLL: UMA DISCUSSÃO DE GÊNERO Angélica Bomm 1 Caroline Govari Nunes 2 1 Considerações iniciais A escrita deste artigo surgiu do encontro das autoras com a música e suas interrelações com a pesquisa, com o devir social, com os desejos e também pelos afetamentos dados pelo ‘ouvir com outros olhos’ às relações da musica e sociedade, bem como da música e educação. A ideia de relacionar a musica e as questões de gênero (feminino e masculino) construiu-se através das inúmeras representações dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, os quais são representados na cena de rock brasileiro. Dessa forma, através desta escrita, buscou-se levantar e questionar os papéis atribuídos à mulher, ilustrando estes através das teorias de gênero, bem como através de músicas que representam estes movimentos. Sabemos que as questões de gênero (feminino/masculino), fazem parte de inúmeras pesquisas, havendo assim, ínfimas discussões sobre o tema. Entretanto, sabemos também que, apesar destas, ainda estamos muito inseridos em um movimento de (des)construção onde os papéis atribuídos ao feminino e masculino ainda são (re)escritos, cantados, ouvidos e falados ao longo de muitas gerações. Assim, o objetivo deste artigo está situado na perspectiva dos Estudos de Gênero, mais especificamente pelas teorias feministas que se aproximam do pós-estruturalismo, em que as questões das diferenças entre os sexos são compreendidas e analisadas como uma construção social, na qual os discursos provindos dos estudos de gênero vão (re)significando esses papéis e buscando desconstruir essa diferenciação naturalizada, mesmo que ainda vivenciemos e produzamos essa diferenciação tão demarcada. É verdade que hoje vivemos um período diferente sobre a leitura das relações de gênero, mas ainda assim, implicitamente e até mesmo explicitamente, muito ainda se vem inscrevendo em nossos corpos, sobre quem somos, quem iremos ser e de que forma seremos. 1 [email protected] 2 [email protected]

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O FEMININO RETRATADO NA CENA BRASILEIRA DE ROCK’N’ROLL: UMA

DISCUSSÃO DE GÊNERO

Angélica Bomm1 Caroline Govari Nunes2

1 Considerações iniciais

A escrita deste artigo surgiu do encontro das autoras com a música e suas interrelações

com a pesquisa, com o devir social, com os desejos e também pelos afetamentos dados pelo

‘ouvir com outros olhos’ às relações da musica e sociedade, bem como da música e educação.

A ideia de relacionar a musica e as questões de gênero (feminino e masculino) construiu-se

através das inúmeras representações dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, os

quais são representados na cena de rock brasileiro.

Dessa forma, através desta escrita, buscou-se levantar e questionar os papéis

atribuídos à mulher, ilustrando estes através das teorias de gênero, bem como através de

músicas que representam estes movimentos. Sabemos que as questões de gênero

(feminino/masculino), fazem parte de inúmeras pesquisas, havendo assim, ínfimas discussões

sobre o tema. Entretanto, sabemos também que, apesar destas, ainda estamos muito inseridos

em um movimento de (des)construção onde os papéis atribuídos ao feminino e masculino

ainda são (re)escritos, cantados, ouvidos e falados ao longo de muitas gerações.

Assim, o objetivo deste artigo está situado na perspectiva dos Estudos de Gênero, mais

especificamente pelas teorias feministas que se aproximam do pós-estruturalismo, em que as

questões das diferenças entre os sexos são compreendidas e analisadas como uma construção

social, na qual os discursos provindos dos estudos de gênero vão (re)significando esses papéis

e buscando desconstruir essa diferenciação naturalizada, mesmo que ainda vivenciemos e

produzamos essa diferenciação tão demarcada.

É verdade que hoje vivemos um período diferente sobre a leitura das relações de

gênero, mas ainda assim, implicitamente e até mesmo explicitamente, muito ainda se vem

inscrevendo em nossos corpos, sobre quem somos, quem iremos ser e de que forma seremos. 1 [email protected] 2 [email protected]

Foucault (2005) denomina estas inscrições sobre os corpos, em como devemos ser e como nos

tornamos alvo de padrões culturais, com a noção de biopolítica, que o mesmo denominou

como uma estratégia de poder que vai direcionar e conduzir uma população, bem como

exercerá uma disciplinarização destes corpos. A noção de biopolítica liga-se ao homem

enquanto espécie, onde este tornou-se, de certa forma, alvo de intervenções políticas na

sociedade ocidental.

Estas inscrições sobre os corpos é que vão delineando modos de ser, se ver e se fazer

em nossa sociedade. A mulher, ao mesmo tempo em que vem conquistando um papel de mais

autonomia, traz consigo também todas as expectativas e modos de ser ditados pela cultura,

pela mídia e, assim, por todos os recursos e informações que atravessa nossa vida. Rita Lee,

através da sua música “Eu e Mim”, expressa as duas faces do reconhecer seu papel, onde

iremos pensar esta escrita, através das questões de gênero.

No espelho não é eu, sou mim. Não conheço mim, mas sei quem é eu, sei sim. Eu é cara-metade, mim sou inteira. Quando mim nasceu, eu chorou, chorou. Eu e mim se dividem numa só certeza. Alguém dentro de mim é mais eu do que eu mesma (LEE, R.; CARVALHO, R., 2003).

Na musica de Rita Lee e Roberto de Carvalho, podemos perceber este “eu” que

precisa do outro para compor-se, este eu feminino que busca no papel masculino sua

diferenciação, onde o “mim” consegue ser inteiro, mas o “eu” ainda é fragmentado. Em

pesquisa anterior, Bomm (2011) encontra um olhar masculino sobre a figura da mulher ainda

muito fixado na diferenciação, ou seja, um olhar pautado exclusivamente no sexo, numa

perspectiva essencialista. Esse tipo de discurso situa e diferencia homens e mulheres numa

perspectiva mais biologicista, sendo a mulher vista com características inatas e naturalizadas,

diferentes da figura masculina (ARAÚJO, 2005).

Assim, ser mulher, vivenciar este papel sem a diferenciação tão demarcada pela

diferença de sexos, ainda é muito difícil de sustentar, existindo o “eu” a partir desta cara

metade, ao mesmo tempo em que “mim” já vive os efeitos desta desconstrução feminista.

Os papéis atribuídos a homens e mulheres estão intimamente ligados e influenciados

por fatores culturais que perpassam as relações e construções de posições sociais para ambos.

Colling (2009) traz que a desigualdade nas relações de gênero tem ocupado muitos

intelectuais e políticos interessados em uma sociedade mais humanizada, pois estes acreditam

que esta questão é significativa numa construção democrática.

Os estudos de gênero, assim, surgiram com o intuito de se olhar para as diferenças

estabelecidas entre as pessoas, entendendo-as em seu contexto histórico e, portanto, sendo

(re)significadas diante do que vem se apresentando. O termo gênero questiona os papéis

construídos e naturalizados entre homens e mulheres que, por sua vez, produzem

determinados tipos de saberes e verdades. A partir desse viés, passa-se a entender que as

pessoas não são produtos de uma condição natural e, sim, de uma construção histórica

(COLLING, 2009).

É sabido que as percepções que colocam em análise as diferenças culturalmente

estabelecidas entre homens e mulheres. Apesar de toda a desconstrução proposta pelos

estudos de gênero, o sexo feminino está conquistando seu espaço, tendo em vista que a

mulher contemporânea ainda enfrenta alguns preconceitos e ainda é vista numa posição mais

passiva diante de algumas situações.

Di Ciommo (2003) acredita que a ligação entre mulher-natureza e o que se atribui a

essa concepção, onde a mesma é colocada em uma posição de inferioridade frente ao homem,

não significa necessariamente um assunto do passado, pois parece continuar a ter-se a ideia de

mulher a partir de uma questão relacionada ao meio ambiente natural, caracterizando a

atividade feminina pelo viés da reprodução. Assim, podem ser compreendidas inúmeras

questões importantes no contexto da relação conjugal sobre as causas da subordinação das

mulheres por intermédio da existência, ainda hoje, de resquícios que asseguram uma

concepção de natureza feminina.

Dessa forma, as questões de gênero e suas atribuições podem ser compreendidas

através da busca por uma ponte com os significados históricos e as questões contemporâneas

que se atravessam nas relações conjugais. Assim, pode-se olhar para essas questões e para os

conflitos ali emergidos sob um viés problematizador, identificando as atribuições e papéis

estabelecidos entre homens e mulheres dentro desse contexto.

Neste sentido, um instrumento de análise, que retrata o caminhar que estamos

vivenciando é a música, mais especificamente aqui, a cena de rock brasileiro. Para isso,

precisamos entender onde esse gênero musical surgiu e de que forma ele se caracteriza.

Considerado um estilo musical que emergiu em uma época pós-guerra e é capaz de

estabelecer vínculos afetivos, Grossberg (1997) enfatiza que a identidade do rock é mais

estrondosa do que sua dimensão sonora. O autor garante que o rock deve ser pensado, antes

de uma prática musical, como uma cultura, relacionando práticas sociais e culturais.

Assim, buscaremos encontrar fatos que dialoguem rock’n’roll e questões de gênero em

canções. Ao mesmo tempo, apresentaremos um contexto explicativo levando em consideração

os dados de realidade e época de tais letras, entendendo que não são apenas “trechos de

canções”, e, sim, uma visão social.

2 O ensejo a fez tão prendada, ela foi educada pra cuidar e servir

Como já contextualizamos anteriormente, as percepções que habitam entre as

diferenças de gênero podem estar interligadas com questões culturais fixadas nas diferenças

entre homens e mulheres numa perspectiva fisiológica, que leva em conta as diferenças

biológicas anatômicas entre os sexos. Para Scott (1995), essa mesma diferença pode ser, em

um primeiro momento, o ponto de partida para essa diferenciação, mas não é somente isso

que deve ser levado em conta quando problematizamos essas questões sob a perspectiva dos

estudos de gênero. As diferenças estão principalmente ligadas a um discurso provindo de uma

organização social, cultural e política sendo então, estas diferenças agregadas ao sexo, uma

expressão cultural.

Pode-se perceber, através de recortes históricos, culturais e midiáticos, a prevalência

de uma percepção masculina sobre as mulheres numa posição de maior passividade, diante da

resolução destes conflitos. Podemos vir a pensar que os resultados levantados na pesquisa,

conforme Bomm (2011), fazem relação à uma concepção masculina, ainda muito ligada e

atravessada por questões de gênero, sendo a figura do feminino, vista numa posição inativa,

onde com maior frequência, diante dos conflitos com seus cônjuges, buscam preservar o

cuidado com o parceiro, de forma a evitar conflitos e chegar a acordos na ocorrência destes.

Louro (1999) ao criticar a noção da sexualidade sob um viés “naturalizado”, nos leva a

pensar que estamos deixando de lado sua dimensão social, política e histórica, assim como a

construção e os discursos emergidos destes aspectos. Portanto, entender a sexualidade como

uma forma natural nos leva a pensar que todos(as) vivemos nossos corpos da mesma forma,

esquecendo-se de os diversos fatores que se atravessam e significam a sexualidade para cada

sujeito dentro de sua determinada cultura.

Portanto, essas verdades que foram se construindo e se naturalizado ao longo da

história, podem ser desconstruídas na perspectiva de gênero. Hoje a mulher tem buscado e

encontrado um espaço social de reconhecimento, como por exemplo, no mercado de trabalho,

onde a mesma desempenha as mais diversas funções, algumas antes atribuídas ao homem, e

isso pode ser devido a essa luta que se estabelece junto à desconstrução das diferenças,

questionando o papel masculino, enquanto dominante da relação. Porém, ainda assim

podemos identificar atribuições e papéis onde a mulher ainda é vista por um viés de

desigualdade em relação ao homem. Assim, para Colling (2009)

O feminino caracterizado como natureza, emoção, amor, intuição é destinado ao espaço privado; ao masculino - cultura, política, razão, justiça, poder, o público. Esta dicotomia constitui uma oposição desigual entre homens e mulheres, caracterizando a sujeição destas aos homens dentro de uma ordem aparentemente universal e igualitária (COLLING, 2009, p. 52).

Compreende-se, neste sentido, que os discursos, em partes, mudaram, mas que a

mulher tem um grande caminho ainda a seguir, uma vez que, mesmo com os avanços nos

estudos de gênero em nosso cotidiano, ainda tem-se muito que buscar, pois mesmo as

mulheres estando inseridas em contextos iguais aos homens existem as questões de

remuneração, reconhecimento e crescimento que se atravessam.

O trecho da música “Desconstruindo Amélia”, que diz “A despeito de tanto mestrado,

ganha menos que o namorado e não entende por que. Tem talento de equilibrista, ela é muitas,

se você quer saber. Hoje aos 30 é melhor que aos 18, nem Balzac poderia prever” (LEONE,

P.; MENDONÇA, M., 2009) representa uma busca pela desconstrução dos valores atribuídos

à mulher, à “Amélia”, trazendo um pouco do olhar contemporâneo, através da inserção da

mulher no mercado de trabalho. Porém, a música nos permite refletir sobre algumas

atribuições que prevalecem na representação desta, onde a mesma ainda está incutida ao papel

de cuidadora, das questões do lar e dos filhos. Assim, mesmo que esta busque se inserir no

espaço antes visto como de ordem masculina, ainda existe certa discriminação, onde a mesma

não entende porque ganha menos que o namorado, se ela tem talento de equilibrista. Ora, se

ela já tem um espaço, por que não é tão reconhecida quanto o homem?

É neste ponto que este estudo traz a questão das diferenças entre os sexos como uma

(des)construção, onde os estudos de gênero nos levam a (re)significar os papéis e assim,

questionar essa diferenciação naturalizada, mesmo que a mesma ainda habite nosso dia-a-dia.

A fim de desconstruir essa diferenciação de papéis, é importante que não deixemos de nos

atentar aos diferentes olhares sobre a mulher, retratados em nossa história. Esse olhar frente à

mulher pode ser expresso através da música: “Mulheres de Atenas”.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, vivem pros seus maridos. Orgulho e raça de Atenas, quando amadas, se perfumam, se banham com leite, se arrumam suas melenas. Quando fustigadas, não choram, se ajoelham, pedem, imploram mais duras penas; cadenas, mirem-

se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, sofrem pros seus maridos (BUARQUE; BOAL, 1976).

“Mulheres de Atenas” retrata uma concepção sobre uma mulher frágil, que vive sua

relação conjugal como o que de mais importante possui, sendo que estas se reconhecem

apenas quando se sentem amadas, mas perdem seu orgulho facilmente e quando necessitam,

ajoelham-se, imploram. São como uma sombra, onde seu sofrimento é muitas vezes não

chorado e, por outro lado, sofrem por seus maridos, que são, de certa forma, sua identidade.

Chico Buarque e Augusto Boas escreveram essa música em 1976, quando o Brasil

estava ainda vivenciando a ditadura. Porém parece-nos pouco provável que, diante dos

discursos e representações que temos sobre as questões de gênero nos dias atuais e o olhar

sobre estas nas suas relações conjugais, ainda expressas grandes diferenças entre os sexos. É

claro que os discursos em relação a esse contexto em partes mudaram. Entretanto, os

resquícios das “Mulheres de Atenas” ainda estão muito presentes, fazendo com que a mulher

seja vista, em muitas situações, como um indivíduo mais fragilizado e com menos direitos.

Esse conceito pode ser expresso através da música já citada anteriormente, “Desconstruindo

Amélia”.

Já é tarde, tudo está certo, cada coisa posta em seu lugar. Filho dorme, ela arruma o uniforme, tudo pronto pra quando despertar. O ensejo a fez tão prendada, ela foi educada pra cuidar e servir. De costume esquecia-se dela. Sempre a última a sair. Disfarça e segue em frente, todo dia até cansar (LEONE, P.; MENDONÇA, M., 2009).

A mulher ainda tem que dar conta da casa, do filho. Ainda tem que cuidar do lar e

deixar tudo em seu lugar. Assim como as “Mulheres de Atenas”, ela foi educada para servir,

mas hoje ela disfarça e parte firme para sua luta diária de reconhecimento, lutando contra as

diferenças. Para Colling (2004) “as relações entre homens e mulheres, implicam

desigualdades políticas e sociais e configuram papéis diferenciados segundo o sexo, estão

intimamente ligadas aos princípios de hierarquia” (COLLING, 2004, p. 17).

A autora ressalta que existe, ainda, uma necessidade social de diferenciação de papéis,

entre feminino e masculino, onde mesmo não existindo sentidos reais para que se configurem

essas diferenças, além das questões biológicas naturais (que justificaram por muito tempo essa

diferenciação), os sujeitos buscam significar esses papéis, de forma que a mulher tenha que

lutar pelo seu espaço, sem que deixe de cuidar e servir o seu lar.

A partir disso podemos pensar que essa mulher que busca sair de casa, ainda necessita

cuidar dos filhos, servir seu lar. Assim, questionamo-nos, por intermédio dessas questões, se

esta mulher que ainda vivencia todas essas exigências e ao mesmo tempo busca trabalhar fora,

faz isso por uma exigência própria ligada às representações atribuídas ao papel da mulher

numa posição de passividade, do lar. Por outro lado podemos pensar que a mesma exerce

ambos os papéis porque seu par não os exerce, estando este amarrado a representações de

diferenças entre os sexos, como questiona Louro (1999), ao trazer que o olhar para as

questões de gênero de forma naturalizada nos faz entender que todas deste sexo devem

parecer-se, sendo deixados de lado os discursos e representações culturais e históricas que

foram se atribuindo a essa diferenciação.

Ao longo da história, o debate da diferença entre os sexos desenvolveu-se principalmente entre duas perspectivas: a essencialista e a culturalista. O discurso essencialista exalta a “diferença sexual” e defende a existência de uma “essência feminina”. Psicologizando ou biologizando as constatações sociológicas e culturais historicamente produzidas, realizam afirmações universalistas que aprisionam a feminilidade em modelos estruturados, ainda que ideologicamente valorizados (mulher como mãe e esposa). Supõe um feminismo universal e acaba justificando a discriminação das mulheres em função da essência feminina. Na perspectiva culturalista, as diferenças sexuais provêm da socialização e da cultura. Sob esta ótica, a superação da ordem e das leis patriarcais eliminaria as diferenças sexuais. (ARAÚJO, 2005, p. 45).

Como referido acima, ainda temos muito presente em nosso meio esse discurso

essencialista, que traz um conceito único de mulher numa perspectiva biologicista, ainda que

reconheçamos que tais valores são atribuídos por uma questão cultural e histórica, se percebe

a mulher com características naturalizadas e inatas, e a concepção de gênero, nesse sentido, é

difundida num viés de características onde a mulher possui um padrão universal do qual não

pode escapar, e claro, nessa perspectiva é ela quem vai sempre lidar com os desentendimentos

com seu par, uma vez que ocupa o lugar da pessoa sensível, que busca evitar conflitos e/ou

tenta resolvê-los.

Assim, cabe ressaltar que a percepção do homem também está imersa nesse discurso

essencialista, como o ser dominante na relação que, diferente da mulher, não percebe a

necessidade de fazer muitos movimentos diante de conflitos conjugais com esta, uma vez que

estes papéis estão incutidos à sua parceira.

O gênero ainda possui uma questão dualística onde sustenta a imagem de mulher

(ideal) para alguns homens, principalmente os machistas, sendo esta um ser para o outro

(homem) e não um ser com o outro. A mulher idolatrada por esse viés é a que se sacrifica, é

submissa, boa esposa e boa mãe, ou seja, a mulher passiva (GREGORI, 1993).

Essa ideia de mulher passiva vem de longa construção social, política e biologisita. A

história nos mostra, de forma clara, que foi a mulher quem introduziu o pecado por desejar,

por desejar o fruto proibido. Essa mulher, de acordo com o que coloca-se até aqui, sobre a

perspectiva de gênero, é a mulher que ainda teme pela relação, por seu corpo, pelo filho.

Como retratado anteriormente na música “Desconstruindo Amélia”, a mulher teve não só de

agregar uma série de papéis, como precisa manter-se feminina, trabalhar for a e cuidar do lar.

Fugir destes padrões é ainda bastante difícil, como se a mulher ainda estivesse pagando o

preço pelo fruto proibido.

Não é nada disso, alguém fez confusão! Vou dar um tempo, preciso distração. Às vezes cansa minha beleza essa falta de emoção e de sensação Quem foi que disse que eu devo me cuidar? Tem certas coisas que a gente não consegue controlar. Comer um fruto que é proibido, você não acha irresistível? Nesse fruto está escondido o paraíso, o paraíso (LEE, R., 1975).

Neste trecho de “Fruto Proibido”, podemos pensar o quão cristalizado está o papel

feminino, onde ao longo da história construiu-se a ideia de que a mulher tem de se cuidar,

conter-se. Alguns destes resquícios das representações sociais sobre a diferença entre homens

e mulheres apresentam-se nos contos infantis, os ditos contos de fada, que estão presentes nas

primeiras leituras e fazem parte da construção dessa imagem e reforçam que, mesmo diante de

tanta diferença, há o desfecho feliz, naturalizando a mulher como a donzela indefesa do lar,

enquanto o homem é o sujeito que explora o mundo, protege-a e a domina.

Para Pires (2009) a literatura pode ser compreendida como um meio de representação

social, através da qual leitores e escritores vão significando e construindo sua cultura, seja por

ordem da imaginação permitida através da obra, ou pela escrita, onde ambas comunicam

formas de ser e de entender as relações. Essas significações estão atravessadas com as

representações do escritor e também pelo que se agrega ao leitor. Assim, podem representar o

desejado, como indesejado pela sociedade num determinado momento, produzindo novas

percepções, bem como se legitimando a partir destas.

Como dito acima, as relações entre a vida real e a literatura se cruzam e se constroem.

Nessa inter-relação construímos imagens, símbolos e referências para que se possa sentir e

perceber nossas próprias relações, e assim fazer novas narrativas da temática, questões essas

que vão se modificando com o passar do tempo e as diferenças que vêm com este. Portanto, as

idealizações propostas pelos contos infantis, ou demais discursos que circulamos desde muito

cedo, podem gerar expectativas nos homens da mulher donzela indefesa, que evita conflitos e

busca a sua felicidade e de seu par.

A literatura sempre contribuiu muito para a construção sobre os discursos de

masculino e feminino. Mayer (2005) traz em seus estudos sobre as obras de José de Alencar

uma grande representação da masculinidade. A autora refere que a literatura de José de

Alencar transparece o homem como o leão e mulher como a presa, porém também considera o

homem que é seduzido por essa presa. Assim, esta mulher que conquista e é vista pela sua

feminilidade, o que se deve muito mais as seduções entre os sexos, do que um espaço que visa

à igualdade.

Não diferente nos dias atuais, salienta Strey (2004), o cinema traz a figura feminina a

partir de sua sensualidade, podendo esta estar mais perceptível do que o homem pela forma

como se representa, ou seja, a mulher de corpo perfeito, com belas curvas, exibindo-se com

este perfil e trazendo esta representação de mulher como ideal. Neste sentido, essas

representações, não diferem das que José de Alencar transpõe em sua obra3, uma vez que

estão travestidas com outras representações sociais e/ou discursos. Assim, a exemplo do

cinema, como citado acima, a mulher que não está dentro do ‘ideal’, imposto por este e outros

meios de comunicação, acaba por se sentir inferiorizada e assim, como reforça Strey (2004)

“estes sentimentos deixam as mulheres vulneráveis e prontas para serem manipuladas”.

3 Algumas notas para compor outras melodias sobre as questões de gênero

Percebemos que o rock sempre abordou questões de gênero (e outras questões

relevantes) em seu discurso. Dessa forma, esse gênero musical acaba criando uma

identificação e, além disso, estimulando seus ouvintes à reflexão. Acreditamos nesse fato com

base na premissa de que o rock, em nosso caso, o nacional, nos oferece possibilidades amplas

de pesquisa, pois encontramos particularidades nessa vertente que propõem uma gama de

valores e conceitos que se explanam em diferentes formas, reforçando e ampliando a

possibilidade de leituras e interpretações a partir do rock’n’roll.

Nesse sentido, vale afirmar que

[...] a vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo, interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Neste diálogo o homem participa todo e com toda a sua vida: com os olhos, os lábios, as

1 Cabe ressaltar aqui que não julga-se a obra completa, mas sim algumas representações expressas sobre a questão de gênero.

mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com as suas ações. Ele se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido dialógico da existência humana, no simpósio universal (BAKHTIN apud. CUNHA, 1997, p.71-96).

Entendemos, em congruência com o pensamento citado acima, que as canções, ao

exporem suas visões sobre o mundo em que habitam, dialogam entre os vários discursos

encontrados nos diversos meios de interação sócio-cultural. Ao mesmo tempo, realizam um

exercício que intercala posicionamentos e subjetividades, interagindo na construção e

(des)construção de conceitos no mundo em que vivemos.

Podemos, através das questões e leituras percorridas neste artigo, (re)pensar as

relações de gênero e como a música as vem representando, de forma a dar visibilidade para as

construções intelectuais e culturais sobre os papéis que vão se delineando ao longo da história.

Assim, cabe ressaltar que mesmo havendo um olhar mais intimo para as questões dos papéis

femininos, também podemos lançar-nos para os papéis masculinos e os efeitos sofridos de

forma igual por todos, diante das demarcações que prezam a diferenciação entre ambos os

sexos.

Ilustramos tal questão através da música “Ah! Se eu fosse um homem” da banda

Ultraje a Rigor, onde os efeitos do masculino e feminino representam-se de forma a

naturalizar padrões, como discorrido ao longo deste artigo, demarcando a mulher num papel

de fragilidade e o homem numa posição mais dura frente às questões da vida.

Ah, se eu fosse homem de aguentar que uma mulher é como um homem e também pensa como um homem e quer sair com outros homens e, apesar de todas as explicações antropológicas, na prática não tem explicação para o tesão e ai, meu chapa, 'cê só pode reclamar pro bispo. Ah, se eu fosse homem! Ah, se eu fosse homem de parar de me portar feito um rochedo indestrutível e infalível, inabalável e imutável previsível e impossível, um computador com músculos, um chefe, um pai, um homem com H maiúsculo, eu seria o homem certo pra você (MOREIRA, R., 1993).

Salientando a necessidade de haver ainda maiores movimentos e discussões em torno

do tema, pois, apesar dos movimentos que já vem acontecendo para desconstruir as diferenças

naturalizadas sobre o feminino e o masculino, muita coisa ainda se vivencia em novas

configurações, com menor ênfase, talvez, mas ainda assim provocando conflitos entre ambos

os sexos e firmando determinadas representações.

Assim, a mulher de fato tem buscado assumir outros papéis fora do espaço privado,

construindo novos discursos e representações ao longo da história. Porém, há necessidade de

muitos outros movimentos para desnaturalizar essas questões, uma vez que o que se agrega às

diferenças entre os sexos vai muito além. Como ressalta Araújo (2005) a maioria das

características atribuídas à diferença entre homens e mulheres não estão ligadas somente ao

sexo, mas também às questões da cultura, educação, classe social, que por sua vez,

repercutem nas expectativas frente à forma como a mulher deve se portar diante da relação

com o parceiro.

Talvez uma possibilidade de desconstrução para com a desigualdade de gêneros pode

ser a educação, uma vez que, independente do sexo, buscamos todos essa instituição. Como

ressalta Colling (2009) tanto homens e mulheres vêm se construindo historicamente, e essa

construção se refere aos papéis atribuídos a ambos os sexos, seja de ordem profissional ou de

papéis sociais. Todos estes sujeitos chegam à escola, e esta instituição possui grande

importância na construção de discursos e representações, sendo então um lugar bastante

significativo para se problematizar as questões de gênero.

Portanto, entende-se que trabalhos nesse sentido devam ser realizados, podendo

colocar em questão o que se agrega ao gênero, de forma a não naturalizar modos de

existência, permitindo às pessoas, a possibilidade de construírem e desconstruírem novos

discursos e representações. Acredita-se, entretanto, que é um assunto muito amplo e nunca

será concluído, pois trata-se de colocar em questão as relações humanas e estas sempre

estarão a ser representadas de acordo com o contexto social vivenciado no momento.

Para finalizar, achamos válido incluir o trecho de uma música de Baby Consuelo, Didi

Gomes e Pepeu Gomes (1983), intitulada “Masculino e Feminino”.

Ser um homem feminino não fere meu lado masculino. Se Deus é menina e menino, sou Masculino e Feminino. Olhei tudo que aprendi e um belo dia eu vi que ser um homem feminino não fere o meu lado masculino. Se Deus é menina e menino, sou Masculino e Feminino (CONSUELO, B.; GOMES, D.; GOMES, P., 1983).

Referências Bibliográficas

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