Processo de criação da cena a partir da performance autobiográfica

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CAMILA RHOMBERG RODI PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CENA A PARTIR DA PERFORMANCE AUTOBRIOGRÁFICA Monografia apresentada como requisito para conclusão do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação Estética, da Escola de Teatro da UNIRIO.

Transcript of Processo de criação da cena a partir da performance autobiográfica

CAMILA RHOMBERG RODI

PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CENA A PARTIR DA

PERFORMANCE AUTOBRIOGRÁFICA

Monografia apresentada comorequisito para conclusão doCurso de Pós-Graduação LatoSensu em Educação Estética, daEscola de Teatro da UNIRIO.

RIO DE JANEIRO

2007

Nada mais dramático que a própria vidaSpalding Gray

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AGRADECIMENTOS

À minha Orientadora Christina Streva.

A Fábio Cordeiro por seus estímulos, orientação e apoio com o

material teórico.

À minha amiga e incentivadora Flávia Lopes.

A Daniel Marques por seus incentivos.

A Frederico Bustamante por ter me indicado o curso e em sua

ajuda inicial, na escolha do tema da monografia.

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SUMÁRIO

Apresentação p.04

A Origem p.05

Vivência Artística p.07

Mergulho no Inconsciente p.11

Cena como Performance p.15

A Formalização p.20

A Recepção do Público p.24

Abordagem Analítica da Vivência Artística p. 28

Conclusão p.

Bibliografia

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Apresentação

O intuito desse trabalho é tentar pensar o teatro, no

contexto de um teatro pós-dramático, onde o ator não precisa

mais ser personagem, onde ele mesmo cria seu texto partindo de

suas próprias experiências pessoais e se leva para o palco,

como uma pintura viva. Trago aqui nessa monografia uma cena

que foi muito marcante na minha vida por se originar da minha

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própria história, tendo como base minha autobiografia. A

partir de uma montagem de final de curso da Escola Estadual de

Teatro Martins Penna, escola onde estudei entre agosto de 2002

e dezembro de 2004, cujo tema era a ausência e a direção era

de Fábio Cordeiro, criei junto com o diretor uma cena em que

lia cartas, essas verdadeiras, escritas por mim e pelo meu

pai, este já falecido e uma das grandes ausências da minha

vida.

A partir da apresentação dessa cena, comecei a acreditar na

possibilidade do ator expor sua vida no teatro com a

finalidade de se tornar poética sua existência e com isso

tocar a alma de muitas outras pessoas. Apesar do preconceito

que ainda existe do uso da autobiografia nas artes cênicas, já

existe um grupo de artistas que levam ao palco tais

experiências.

Nesse texto apresento e correlaciono a cena em questão com

a self performance que através da experiência pessoal do performer é

desenvolvida a idéia da criação artística. A Principio com

informações sobre a minha própria vida, desde minhas origens

até a escola de teatro onde estudei e que foi base para a

criação da cena das cartas. Descrevo a recepção do público

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diante da proposta e relaciono com o inconsciente coletivo,

traçando alguns paralelos da experiência vivida com os

conceitos de Carl Gustav Jung, que tem como base para suas

pesquisas o mergulho na sua própria alma.

.

A Origem

Vou começar esse capítulo escrevendo um pouco sobre a minha

vida, minhas origens, meus pais, um pouco da história da

artista apresentada, de onde se origina o processo criativo

baseado nas memórias de cartas e fotos.

Desde que nasci sempre vivi com a minha mãe que era solteira.

Ela quis passar pela experiência materna, apesar da

incapacidade devido a problemas de sua saúde. Para a

maternidade tão desejada, não só correria sérios riscos de

vida, como também passaria pelo preconceito de ser mãe

solteira, no fim dos anos 70. O meu pai era seu amigo e assim,

creio eu, fizeram um acordo de “procriação”, onde ele não

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teria de ter as obrigações legais que um pai teria

normalmente.

Durante a minha vida toda até os nove anos, estive sempre em

contato com meu pai, apesar de morar no Rio e ele em São

Paulo. Nós nos víamos quando eu e minha mãe viajávamos para lá

ou quando ele vinha para cá por motivos profissionais. Nas

minhas lembranças, tenho muitas imagens de bastidores de

teatro e de meu pai lendo e escrevendo em sua sala. A sua

morte me foi avisada pelo meu tio, este, meu pai de criação.

Após a morte de minha mãe fui morar com meus tios maternos.

Desde então tive um grande distanciamento da minha figura

paterna biológica.

Meu pai enviava cartas para mim, desde quando aprendi a

escrever, ele colocava palavras difíceis para uma criança

entender e me instigava a ir ao dicionário. Falava sobre suas

peças, sua mãe, seus primos, e no final sempre fazia questão

de dizer que me amava, várias vezes e assinava “Pai Zé”.

Quando eu tinha 17 anos ele faleceu, alguns meses depois,

recebi uma caixa com seus textos, fotos, currículos, matérias

em jornal e cartas pelo irmão do meu pai, mas durante anos

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não tive coragem de abri-la para não ter que enfrentar a dor

de resgatar o passado. Até que chegou um dia, quando já

adulta, enfrentei o desconhecido que seria para mim muito

dolorido. Retirei a caixa debaixo da minha cama e abri,

descobrindo um mundo novo, o mundo do meu pai, vi que além do

material profissional o qual me orgulhei, havia cartas antigas

rascunhos que ele escrevera para mim e cartinhas minhas para

ele. Nossas cartas apresentavam as nossas histórias, o que

aconteciam em nossas vidas em determinadas épocas. As minhas,

por exemplo, ainda aprendendo escrever, com erros de

português, letras tortas e depois na minha adolescência,

morando com meus tios. Foi um momento de muita emoção. E

quando lia os rascunhos que ele escrevera para mim, foi um

momento bem saudoso, de uma época que nunca mais voltará, mas

que ficaram registradas nas cartas, fotos e na memória. Para

apreender as fantasias que me agitavam de maneira subterrânea, era necessário

descer a elas1.

1 JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 1963. São Paulo, Editora Nova

Fronteira. P. 158

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Vivência Artística

Em 2002, quando estava com 24 anos fui cursar a Escola

Estadual de Teatro Martins Penna, no Rio de Janeiro. Para a

montagem final da minha turma na Martins Penna, finalizada em

dezembro de 2004, escolhemos junto com o diretor Fábio

Cordeiro2, a ausência como tema para a criação cênica de onde

surgira o espetáculo Ausência. Cogitamos em torno das várias

possibilidades do assunto trazido, começamos com uma lista de

possibilidades de ausências. Pegamos as listas e as2 Fábio Cordeiro além de professor e doutorando em Teatro (UNI-RIO), é diretor da Nonada Cia. de Arte. Foi professor de interpretação da Martins Pena entre 2003 e 2005. Ele dirigiu e fez roteiro e trilha sonora de Ausência como professor da escola.

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transformamos em duas, as ausências concretas e as abstratas.

A partir dessas duas listas começamos a trabalhar em cima de

workshops que o diretor sugeria.

Além dos aquecimentos, aulas de corpo com atriz e

professora Claudia Provedel, onde explorávamos os espaços,

nossas expressões corporais e criávamos partituras corporais,

como um primeiro passo ouve uma experimentação na sala

Claudinete, espaço que usávamos, sem nenhuma iluminação para

imaginarmos o lugar onde crescemos. Nessa vivência voltei ao

meu apartamento na Ilha do Governador, onde morava com minha

mãe. Lembrei do terceiro quarto, que não era nem meu nem dela,

era o “quarto da bagunça”, que pela tarde batia sol

forte neste. Nas minhas lembranças, estava no meio dos raios

que infiltravam o apartamento no entardecer daquele ambiente

silencioso e iluminado, onde minha mãe dormia e eu já sentia o

medo de perdê-la um dia. Depois me “transportei” para a casa

onde fui morar mais tarde, ainda com a minha mãe, em Maricá,

desta vez estava na sala em frente a uma grande janela de onde

via as árvores do quintal e o céu.

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Num outro dia Fábio pediu para que arrumássemos pelo espaço

figuras e imagens de ausências que trazíamos para o espaço,

tirada de revistas, jornais, fotos, etc. Depois cada um

ficaria perto da imagem que mais se identificara dentre todas

e assim com a luz apagada seria para imaginar a casa onde

crescemos.

Numa outra proposta era para escolhermos seis palavras das

listas de ausências seguindo tais regras: que fosse algo

semântico, relação com a casa. Anotar 10 e cortar 4 palavras.

Levar em consideração a casa onde nascemos e tentar

intuitivamente ter sensações do lugar cênico onde

trabalharíamos. Fizemos uma vivência baseada nessas seis

palavras.

Pouco tempo depois começamos a trabalhar com workshops que

o diretor nos passava para apresentar em uma data já pré-

determinada e tentávamos seguir as regras à risca. O que foram

os workshops? Segundo Fábio Cordeiro em um artigo que publicou

na revista Sala Preta3, analisando o processo do espetáculo A

3 CORDEIRO, Fábio. A paixão segundo GH: processo colaborativo e performance. In: Revista Sala Preta. São Paulo, USP, 2004. p.112.

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Paixão segundo GH, no qual foi diretor assistente, o que o levou

a introduzir na abertura do espetáculo Ausência um texto em

off da escritora Clarice Lispector interpretado pela atriz

Mariana Lima: workshops são pequenas performances com temas

específicos, com relação direta com o universo do espetáculo a

partir de alguma proposta ou indagação conceitual ou cênica.

Nele existe um tempo de preparação, a utilização premeditada

de objetos, figurinos e iluminação, além de ser o ator o

principal autor da cena, podendo até mesmo criar um esboço de

roteiro e ao mesmo tempo podendo deixar espaços de

imprecisão. O intuito do workshop seria o de colocar em jogo

alguma questão identificada com o universo ficcional,

questionando, especulando e experimentando no espaço alguma

idéia cênica, não se tratando de acertar ou errar, mas de

testar, sem haver um projeto de encenação que servisse de

premissa.

Vale citar alguns exemplos de workshops propostos durante o

processo da criação do espetáculo Ausência:

1- Um oratório: lugar; Medo de alguma coisa ausente: memória

pessoal; Uma frase: “Vou criar o que me aconteceu” – A Paixão segundo

GH de Clarice Lispector: ação principal; Uma imagem de ausência:

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(ver listas); Canção da Infância de Peter Handke = texto; vestir sem

aparentar = figurino; faça um roteiro de ações e estados (para cada

ação, um estado): pode ser curto; trabalhar com (na medida do

possível): repetições, ritual. PODE: música, maquiagem, objeto. NÃO

PODE: Contar para ninguém. Ensaiar (só ensaie o texto para decorar).

2- Escolher 3 palavras das 6 que nós escolhemos no dia 25 de Agosto,

fazer uma frase usando essas 3 palavras e transformar essa frase em

movimentos com a qualidade do ar.

3- São dois workshops. Um aluno-ator dirige o outro.

- 21/ 09 (3º feira) > Carla e Morena > algo de Beckett sobre o tempo

e que haja uma partitura física feita no workshop 1c no processo.

- 22/ 09 (4º feira) > Joana e Leonardo > algo de Clarice Lispector

sobre o tempo. Aproveitar algo do workshop 1b, algo próximo à uma

partitura física.

- 23/ 09 (5º feira) > Erika e Camila Vetter > criar rotina de

repetições com espasmos, que se aproxime do código interpretativo

expressionista.

- 24/ 09 (6º feira) > Camila Rhodi e Flávia > partindo do workshop

1b da Flávia e usando a partitura física do workshop 1 A da Camila

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Rhodi. Algo que se aproxime do código interpretativo do Teatro

Oriental.

Durante o processo foi pedido também pelo diretor que

levássemos textos que tivessem relação com Ausência, esses

poderiam ser memórias e coisas pessoais ou textos de autores

já conhecidos. Depois fizemos uma lista de possíveis workshops a

serem apresentados.

Usamos os movimentos dos workshops de forma decupada e fomos

interagindo um com o outro, a ponto de fazermos uma

improvisação coletiva, onde experimentamos a presença de um

divã em cena, este muito bem aproveitado por todos.

Com os workshops cada ator trazia materiais variados em

torno da ausência de tudo o que fosse possível, dos objetos

mais simples à pessoa mais amada. As cenas eram apresentadas

com diálogos ou não, de autorias próprias ou oriundas de

outros autores. Durante o processo fizemos uma lista de todas

as possíveis ausências que poderiam existir e trabalhávamos

através desse mundo de possibilidades. A cada semana o diretor

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pedia uma cena para cada grupo de atores ou individual, dava

as regras, que poderiam ser, sem fala, onde o espaço fosse

pequeno, ou claustrofóbico, talvez com repetição, etc., que

seria apresentada sem que ninguém da turma pudesse assistir

antecipadamente para que pudéssemos saber qual seria o impacto

da cena no público.

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Mergulho no Inconsciente

Ao longo dos anos na escola, incentivada por Morena Buzar,

uma amiga e companheira de turma, criei coragem para abrir

finalmente a caixa com o material do meu pai que eu a mantinha

embaixo da minha cama. No momento em que abri a caixa, foi uma

grande emoção para mim. Apesar da morte de meu pai ter sido

quando eu tinha dezessete anos, não tive ao longo da vida um

contato muito contínuo, especialmente após a morte da minha

mãe. Sobre sua vida, não conhecia muito, só entrava em contato

com a mesma pelas cartas que me enviava. Naquela caixa havia

um mundo de uma pessoa que apesar de ser meu pai, não possuía

muita intimidade, de um ator, dramaturgo e escritor de teatro,

cinema e televisão. Havia muitos textos, fotos, críticas de

jornais, programas de espetáculos, currículos, rascunhos de

cartas dele para mim, para sua mãe e cartas minhas para ele.

Foi um momento de muita emoção e de resgate da minha história,

do meu passado e conseqüentemente do meu presente. A partir

dali comecei a ter idéia de todo um histórico que eu tinha,

que vinha do meu pai e da minha mãe que também era atriz

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quando mais jovem. A partir dali entrei em contato com a vida

da qual eu sou a continuação, o que me trouxe mais força para

seguir meu caminho com a certeza de que desde meu nascimento,

ou antes até, já me corria nas veias o prazer de trabalhar com

a arte. E também uma responsabilidade que tinha que ter por

essa continuidade da carreira dos meus pais.

A partir do pedido de textos que pudessem ser retirados da

memória, eu parti das ausências que existem na minha vida,

comecei a pensar no que me é mais ausente chegando à conclusão

que a maior de todas seria sem dúvida a dos meus progenitores.

A partir daí, elaborei duas cenas relativas às lacunas das

mortes da minha mãe e do meu pai. Escolhi para as duas cenas

que se uniam entre si, o cenário de um quarto, o quarto onde

eu chorava todas as noites pela morte de minha mãe durante um

bom tempo aos nove anos de idade. Quarto também que descobri a

história profissional de meu pai, quando abri sua caixa, e me

deparei também com a minha história, herança de todo o seu

passado.

O que mais me estimulou a criar uma cena onde eu me

expusesse de tal maneira seria o encorajamento de um professor

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que me dizia para me expor mais, que seria necessário que eu

saísse detrás de uma máscara para que eu pudesse crescer como

atriz. Pensei que através de uma exposição tão íntima de minha

história, de minha família, escritos ditos de meu pai para mim

e minhas cartas, quando ainda criança, com meus erros

ortográficos, com a minha angústia, com a minha ausência plena

e verdadeira, eu sabia que seria difícil, mas acreditei que

fosse importante para o meu crescimento. Também não poderia

esquecer na relevância da possibilidade de rever, repensar e

reviver meus momentos de dor da perda dos meus pais que foram

sufocados, ou esquecidos ou até mesmo deixados de lado por

mim. Eu teria que passar pelas minhas vivências afetivas para

que pudesse continuar meu desenvolvimento pessoal. Pensando na

ligação que tenho com eles que, além da afetiva, vai para um

outro plano, que também é profissional, a partir do momento

que escolho uma profissão que é a mesma, tenho uma

continuidade de história que se origina desses, é como se para

mim, tivesse que honrar todo um histórico construído

anteriormente a minha existência.

Em geral o homem atribui grande importância aos laços afetivos. Ora, estes encerram

sempre projeções que é preciso retirar e recuperar para chegar ao si-mesmo e à

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objetividade. As relações afetivas são relações de desejo e de exigências, carregadas de

constrangimento e servidão: espera-se sempre alguma coisa do outro, motivo pelo qual este

e nós mesmos perdemos a liberdade. O

conhecimento objetivo situa-se além dos intricamentos afetivos, e parece ser o mistério

central. Somente ele torna possível a verdadeira conjunctio4.

Na elaboração das cenas pensei em uma cama e uma cabeceira

com um gravador, uma caixa com cartas e uma foto grande do meu

pai. As duas cenas propostas e apresentadas no workshop, era

comigo sentada nessa “cama”, para isso aproveitei o divã

cenográfico que usamos nas improvisações.

Na primeira cena proposta, apresentei um episódio contínuo

do meu passado, quando levada para a escola numa Kombi dos

meus tios, com o falecimento da minha mãe ainda recente, havia

no chão, fronhas de travesseiros da minha mãe. Sentada no

divã, mostrava através de palavras, corporalmente e com minha

emoção genuína minhas sensações diante daqueles objetos tão

4 JUNG, Carl Gustav. Memórias,Sonhos, Reflexões. 1963. São Paulo, Editora Nova Fronteira. P. 208

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ligados a minha mãe, a sua ausência estava lá. Logo após,

colocava em pé a foto do meu pai em cima da cabeceira, assim

continuava a outra cena, quando abria um bauzinho onde estavam

cartas que encontrei em sua caixa, e as lia. Eram cartas dele

para sua mãe, para mim e minhas cartas para ele. Em vários

momentos quase que não conseguia prosseguir a cena com a voz

embargada, mas sabendo que aquilo era uma cena, que pessoas me

assistiam e esperavam por um fechamento, fui até o final do

que havia proposto. Foi um momento de grande emoção para mim e

para toda a turma. O diretor teve que dar um intervalo para

que todos se recompusessem. A minha vida estava exposta ali

para um pequeno público, emocionando-o, as atrizes sabiam que

aquela era minha história, mas aquela cena fazia refletir

neles próprios, em suas histórias que iam além de suas vidas

pessoais, vinha de um passado universal, vinha de um

inconsciente coletivo.

Desde aquele dia, Fábio Cordeiro disse que a segunda cena

apresentada entraria no espetáculo. A princípio duvidei se

aquilo seria teatro, afinal, era a minha vida, fatos reais, a

emoção era minha e não de algum personagem. Relutei comigo

mesma até o dia da estréia, mas a cena foi enfim apresentada.

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Havia um roteiro da cena, que eu mesma criara e que foi

fechada pelo diretor, sendo que este não ensaiava comigo,

deixava para que o momento me proporcionasse o ritmo das falas

e movimentos. Eu entrava por dentro do plástico que envolvia

os quatro lados do linóleo vermelho, me ajoelhava com o

pequeno baú nas mãos, olhava para as atrizes cantando, em

especial para Joana D´Arc que trocava a sua emoção comigo, o

que me motivava a entrar naquele clima de ausência, me

impulsionava a colocar a foto dos meus pais no plástico entre

mim e o público. Depois voltava e ouvia a conversa minha com

minha mãe que sempre me tocava, me trazia recordações, trazia

saudade, era a voz da minha figura materna, comigo ainda

criança, um momento que nunca mais voltará. Logo após abria o

bauzinho e retirava uma das cartas e começava a ler. As cartas

eram reais, xeroxes de cartas que recebi um dia pelo meu pai,

ou quando não, pelo meu tio que despachara uma caixa quando

ele falecera, com cartas que eu escrevi para ele e também

postais que ele enviou para sua mãe. No momento em que eu lia

os “pequenos textos”, lembrava de momentos da minha vida, cada

época, ainda aprendendo a escrever, falando de momentos com a

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minha mãe, depois, de novas experiências sem ela, da nova vida

já morando com meus tios.

Cena como Performance

Na cena, meus gestos fisionômicos, meus movimentos

gestuais adquiriram uma importância particular e cada

observador pôde ter valorizado as diversas possibilidades de

articulação entre os membros e os movimentos gerados pela

emoção. Mas independente do fato da atenção estar focalizada

sobre certos aspectos do corpo, existia também uma base que os

originava e os articulava, uma unidade biofisiológica

corporal. Havia um interesse de expor externamente o que vinha

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do interno, não houve um foco de luz ou outro fato qualquer

apresentado em determinada parte do corpo, era apenas o

discurso do corpo, como um todo.

Apesar da cena estar embutida em um espetáculo teatral,

será que poderíamos dizer ser considerada como uma performance

pelo fato de ter sido eliminada da sua estrutura a concretitude

no sentido aristotélico, com início, meio e fim, texto e

mensagem, que fez com que aumentasse a carga dramática, dando

a característica de um drama abstrato? Partindo desse princípio,

poderíamos então considerar a cena das cartas, como uma

performance organizada pelo self . Onde o motor da performance é

o ego pessoal do artista, como a performance de Beyes e as

performances do americano Spalding Gray baseadas na sua

própria vida. Schechner em Post Modern Performance: Two View, aponta

também a denominação self as context onde a criação “se dá a

partir da vivência do autor”. Nessa performance prepondera o

trabalho individual, uma leitura do mundo a partir do ego do

artista. Ele também cita os artistas Stuart Sherman e

Elizabeth LaCompte e representando o Brasil, Ivald Granatto e

Aguillar.

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Quando se expõe uma foto minha com meus pais, em cena,

ouço a voz da minha mãe comigo ainda pequena e leio as cartas

que são escritas pelo meu próprio pai para minha avó e para

mim, leio ainda cartas escritas por mim onde lembro de

situações vividas, volto para

minha história, apresentando a minha vida, chegando a um

estado emocional verdadeiramente meu, sem representações. A

eliminação de um discurso mais racional e a utilização de

signos faz com que a cena tenha uma leitura que é antes de

tudo uma leitura emocional.

A arte da performance e live art como um todo, tendem para a

atuação e não a representação, havendo uma acentuação muito

maior do instante presente, do momento da ação, o que acontece

no tempo real. Cria-se então uma característica de rito, com o

público não sendo apenas espectador, estando numa espécie de

comunhão, não havendo a necessidade de suprimir a separação

palco-platéia. A relação entre o espectador e o objeto

artístico se desloca de uma relação estética para uma relação

mítica, de certa forma, ritualística, onde há um menor

distanciamento psicológico entre objeto e o espectador, este

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distanciamento não fica claro, entra na obra, faz parte dela,

fazendo com que o espectador vire participante do rito e não

mero assistente. Pode-se dizer teoricamente que na relação

estética existe uma representação do real e na relação mítica

uma vivência do real. O ator “vive” o papel e não

“representa”, e é nessa estreita passagem da representação

para atuação, menos determinada, com espaço para o improviso,

para a espontaneidade, que caminha a live art, com as expressões

happening, que são performances em grupo e performance. É nesse

limite tênue que a arte e a vida se aproximam. E é claro,

devemos levar em consideração segundo a citação de Jacó

Guinsburg5 que diz não existir uma relação que seja

distanciada, nem totalmente mítica, inserida e, que num rito,

por exemplo, existem instantes de observação estética, de se

estar fora. Como na cena das cartas, onde a emoção era minha a

partir da minha história, mas sabia dos tempos cênicos e me

mantinha o tempo todo sabendo que estava num teatro, em frente

ao público.

5 Jacó Guinsburg é ensaísta, professor e crítico de Teatro.

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Como na performance, a intenção da cena passou do que,

para o como, ao se romper com o discurso narrativo, a história

passa a não interessar tanto, o interesse maior é como

“aquilo” está sendo feito. Na cena das cartas, em certo

momento a música se eleva em tom maior que a minha voz, a

ponto de não se ouvir o “texto” das cartas. Para o público que

não consegue mais ouvir a voz da atriz, fica a imagem de uma

menina em um momento delicado, frágil, vestida com uma

camisola, lendo cartas de seus pais ausentes. Nesse momento

houve uma apresentação como se fosse um quadro, a performer

conceitua, cria e apresenta sua performance, à semelhança da

criação plástica, como uma exposição de sua “pintura viva”,

que utiliza também os recursos da dimensionalidade e da

temporalidade. Como objetivo, foi visada uma maior

estetização e, isso decorreu tanto da necessidade de passar 

signos mais elaborados que demandassem um maior rigor formal,

quanto do desejo de produzir uma obra mais delineada, menos

bruta. Nessa busca, que gera uma maior necessidade de controle

no processo de criação-apresentação, vai-se ganhar em força

sígnica. Na cena os objetos usados, cartas, foto e o pequeno

baú, têm como significado o passado, o figurino, uma camisola,

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representa uma intimidade daquela “personagem”, junto com os

plásticos que envolvem a cena também tem o significado do

quarto, ou da casa, reforçando ainda mais a intimidade, a

exposição de um indivíduo em sua essência.

Gostaria de introduzir aqui a opinião do teórico Hans

Thies Lehman que pensando o teatro pós-moderno já faz uma

ligação do teatro com a performance. No teatro de hoje, o ator

não mais representaria um papel, mas seria o performer que

oferece sua presença em cena pra uma contemplação. Sendo que

na performance, como no teatro pós-moderno, o mais importante

é a presença provocante do homem que a representação de um

papel. Ainda ressalta que isso representa um certo número de

aspectos dessa problemática, por exemplo, a

técnica da presença ou a dualidade entre encarnação e a

comunicação, e nesse ponto ele determina a necessidade de uma

profunda reflexão a ser feita a partir das novas formas de

percepção.

Thies-Lehman analisa o teatro de nosso tempo chamando-o

“pós-dramático”, onde ele enfoca as experiências com o texto

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começadas pelo teatro do absurdo até novos confrontos com

outras formas de arte.

...a transformação operada na utilização dos signos teatrais tem como conseqüência que se

tornem mais flutuantes as delimitações que separam o gênero teatral de formas práticas,

como a performance art, que tendem a uma experiência do real 6.

E ele continua, afirmando que a performance se aproxima do

teatro, na sua busca de estruturas visuais e auditivas

elaboradas, indo até às novas tecnologias de novas mídias e

por sua utilização de espaço-tempo mais estendido.

Segundo Picon-Vallin Béatrice7:

No interior das práticas interdisciplinares que fazem parte da história da cena do século XX,

onde aumenta a porosidade das fronteiras entre as artes do espetáculo, foram fatores

determinantes à imagem química de ontem e hoje eletrônica, ou digital, e que vem

ocupando um lugar cada vez maior8.

Ilustrativa ou atuante, ela confere à cena, ou ao ator,

diferentes registros de presença. Ela propõe suas imagens como

parceiros, ela dota o corpo do ator de um corpo aumentado ou o

habitua a observação do espectador de forma pontilhada. Ela

6 LEHMANN, Hans-Thies. Le théâtre post-dramatique. Paris: L’Arche, 2002. P. 537 Diretora de pesquisas no Centro Nacional da Pesquisa Científica, professora de história do teatro no Conservatório Nacional Superior de Arte Dramática de Paris8 PICON, Valin Béatrice. Les écrans sur la scène. Coll. théatre au XXéme siècle, Éditions l’Âge d’homme, Lausanne, 1998

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faz penetrar o espectador em seu corpo. Ou o transforma em um

átomo, ou em close-ups espalhados.

Mas é importante também enfatizar então o legado  que os

artistas praticantes da performance deixam atrás de si; para

citar só alguns exemplos, temos o minimalismo, essa extração

dos elementos essenciais feita de uma maneira intuitiva, quase

sensitiva com a utilização de todos os elementos psicofísicos

de captação, que é uma forma de se trabalharem  as estruturas

essenciais do discurso humano, dando uma nova luz ao apontar

as bases de certos sistemas mitológicos, filosóficos e

semiológicos, permitindo ao mesmo tempo, o desdobramento de

leituras e a superposição de obras. Outra contribuição é a de

através da exacerbação da “imagem emocional”, se resgatarem em

certas performances estruturas arquetípicas básicas e

situações que pertencem ao inconsciente coletivo de toda

comunidade. Dessa forma, algumas performances transformaram-se

em alguns dos últimos redutos não contaminados pelos

tentáculos do sistema, onde praticantes e platéia mantiveram

viva o ritual de situações antropológicas e práticas

essenciais à preservação da psique coletiva da humanidade.

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A Formalização

Apresentei nos workshops além das duas cenas

autobiográficas propostas, uma partitura corporal junto com um

texto que gravei em off de um material que havia escrito sobre

a ausência de um amor. A cena em si não entrou na montagem,

mas a partitura foi incorporada em vários momentos do

espetáculo por mim e pelas outras atrizes e o ator, em vários

momentos da peça, sendo individuais ou em grupo.

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O cenário do espetáculo era composto por um linóleo

quadrado vermelho envolvido por quatro cortinas de plástico.

Além desse espaço, os atores ainda tinham o espaço ao redor do

linóleo e a traseira do espaço cênico para explorar, este

último apesar de ser por trás de tudo, o público conseguia

enxergar os atores e seus movimentos, por causa dos plásticos

transparentes. Nesse último espaço havia também cabides com

roupas e objetos de cena, além do divã móvel.

O roteiro da montagem foi feito pelo diretor, a partir do

material trazido pelos atores ao longo do processo. A cena com

as cartas, vinha em seguida a uma cena dramática de uma outra

atriz, Erika Ferreira em que dizia um texto sobre o amor

perdido sentada quase que no meio do espaço. A atriz terminava

a cena cantando, e todas as atrizes e o ator Leonardo Hinckel

formavam um coro, com a música “É doce morrer no mar 9”, cantavam

em volta do espaço cênico, por fora dos plásticos. Enquanto

isso eu entrava em cena, colava a foto dos meus pais que

estavam comigo no colo ainda bebê, no plástico transparente

que havia entre mim e o público. Sentava no chão e olhava para

as meninas que ainda estavam cantando, em especial a Joana D

9 Composição de Dorival Caymmi

32

32

´Arc com a sua expressão, seu corpo grudado no plástico,

cantando para mim, era um estímulo para prosseguir.

Nessa hora entrava uma gravação em off, podíamos ouvir uma

criança conversando com a mãe, esta era eu quando tinha apenas

de 3 anos de idade e minha mãe:

- Camila, você gosta da Fulana?

- Gosto!

- Camila, você gosta de Sicrana?

-Gosto!

- E da Beltrana, você gosta?

Tempo

- Gosto...

A gravação era um misto de cômico pelo tom de rejeição da

criança, e dramático pela carga emocional de haver uma criança

pequena conversando com a mãe, e no caso tinha tamanha

importância pelo fato de que aquela voz era minha, aquela era

eu conversando com minha mãe que falecera alguns anos mais

tarde àquela gravação.

Enquanto isso eu me sentava em cima dos joelhos e ouvia a

gravação, com uma expressão saudosa, achando graça e me

33

33

emocionando ao mesmo tempo, mas naturalmente, sem que minhas

expressões fossem artificiais, eram movimentos não

cristalizados, não havia ali um outro tipo de instrumento além

das minhas possibilidades comportamentais. E cada dia que

ouvia a voz da minha mãe no espetáculo era um momento muito

forte que experimentava na frente de uma platéia. Apenas ouvi

essa gravação três vezes na vida antes da cena, porque para

mim foi sempre foi muito difícil me deparar com essa dor.

Quando acabava o texto em off, eu já estava sentada ao

lado do bauzinho, e olhava-o com um certo receio, abria-o e

começava a ler as cartas que lá dentro estavam. Estas eram

cartas escritas por meu pai para a sua mãe, esta também já

falecida e para mim. Minhas cartas

escritas ao longo de todo meu processo de alfabetização e

amadurecimento da escrita e da vida, após a morte da minha

mãe, e antes de sua morte.

Apesar da minha grande emoção, de ter vezes que era

necessário ter um tempo maior de respiração para que não me

esvaísse em lágrimas e perdesse o tempo cênico, eu sabia em

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todo o momento que estava diante de uma platéia, sabia que meu

corpo não poderia estar em certas posições, porque o público

precisava ver minhas expressões faciais e corporais, tinha que

ouvir minha voz com suas entonações. Não era possível que eu

entrasse num drama psicológico meu, onde me rasgasse inteira e

deixasse o tempo passar aleatoriamente, sem me importar com a

comunicação.

Essa cena não era ensaiada, Fábio não queria me dizer o

que sentir, como sentir, me deixou livre para que lendo

aquelas cartas eu entrasse num estado que reverberasse por

todo o corpo e que fosse verdadeiro, apesar das marcações que

eu mesma estabeleci. Em todas as apresentações eu fazia os

mesmos direcionamentos, talvez assim eu não me perdesse na

minha emoção. Havia um roteiro da cena, que eu mesma criara e

fora fechado pelo diretor. Sem ensaios, era deixado para que o

momento me proporcionasse o ritmo das falas e movimentos.

Ouvir minha conversa com minha mãe que sempre me tocava, me

trazia recordações, trazia saudade, era a voz da minha figura

materna, comigo ainda criança, um momento que nunca mais

voltará. Logo após abria o bauzinho e retirava as cartas e

começava a lê-las. As cartas eram reais, xerox de cartas que

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recebi um dia pelo meu pai, cartas que ele enviara para minha

avó e outras que eu enviara a ele. No momento em que eu lia os

“pequenos textos”, lembrava de momentos da minha vida, cada

época, ainda aprendendo a escrever, falando de momentos com a

minha mãe, depois, de novas experiências sem ela, da nova vida

já morando com meus tios. Com tais lembranças de situações

vividas, volto para minha história, apresentando a minha vida,

chegando a um estado emocional verdadeiramente

meu, sem representações. A eliminação de um discurso mais

racional e a utilização de signos faz com que a cena tenha uma

leitura que é antes de tudo uma leitura emocional. O espectador

“sente” o que está acontecendo, independente se está entendo

como se encaixa a cena diante de todo o espetáculo.

Tal como o artista da performance capta uma série de

“informações” que estão no ar e as codifica em mensagem para o

público através da arte, implicando numa re-transformação

através de outros canais, exponho a minha vida com uma série

de informações, imagens e sons e transformo-a em arte.

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A Recepção do Público

Após a primeira apresentação percebi que aquela cena era o

ápice do espetáculo que vinha ao longo do desenvolver de todas

as cenas da apresentação até chegar na minha, onde o público

entrava numa catarse, eu podia ouvir o choro das pessoas. No

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final de cada apresentação pessoas vinham falar comigo no

camarim, descobri ali que algumas que me conheciam, sabiam que

aquela era a minha história, outras apesar de me conhecerem,

desconheciam minha vida e outras que não faziam a mínima idéia

de quem eu era, todas eram tocadas por aquela cena. Uns diziam

ter lembrado o filho, outros os pais, outros sabiam da minha

vida e elogiaram a maneira como foi apresentada. Tiveram

pessoas também que criticaram, acreditando que aquilo não

seria teatro.

Susan Sontag10 fala sobre a dupla tensão a que está

submetido o artista, tanto a nível interno onde se confronta

com suas emoções que, se são, por um lado, “bombas de tempo”,

isto é, têm que imperativamente “sair para fora”, tomar forma.

Do lado externo, o artista tem a cobrança do público e a

dificuldade do diálogo, muitas vezes criador e receptor não

estão sintonizados na mesma freqüência. E seria dessa forma

que alguns trabalhos de performance sejam rejeitados, quando o

público não está na mesma sintonia que o artista.

O público, tanto que se emocionara, que sofrera com a

catarse na hora da apresentação, quanto o que reprovou,

independente do grau de envolvimento pode ter tido uma forte

10 Escritora, crítica de arte e ativista norte-americana.

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38

ligação com o inconsciente coletivo. A minha dor vem não

apenas do meu histórico, mas de uma vida em comum com muitos

seres, onde todos se interligam, onde todos têm seus

antepassados que passaram pelo processo de uma mesma história,

de uma história universal.

Em seu livro “Memórias, Sonhos e Reflexões”, Jung descreve

a sua vida como se presente, passado e futuro fossem um só, em

que tudo que ocorre no tempo se concentra numa totalidade

objetiva, nada estaria cindido no tempo e nem poderia ser

medido por conceitos temporais.

Como representar que vivi simultaneamente o ontem, o hoje e o amanhã? Havia o que ainda

não começara, havia o mais claro presente e algo que já chegara ao fim e, no entanto, tudo

era uma e única coisa. O sentimento só poderia apreender uma soma, uma brilhante

totalidade na qual está contida à espera do que vai começar, tanto quanto ao resultado do

que já passou. Um todo indescritível no qual estamos mergulhados e que, no entanto,

podemos perceber com plena objetividade 11.

Ele escreve sobre o surgimento de sua carreira

psiquiátrica a partir da experiência subjetiva, ou seja, da

11 JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 1963. São Paulo, Editora Nova Fronteira. P.210

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39

sua existência particular originar sua vida objetiva, como na

cena das cartas em que transformo minhas experiências pessoais

em arte, a partir dos sentimentos e emoções antes vividos,

originando a cena do espetáculo. E essa vida que se

materializa em cena, tem o poder de tocar em muitas pessoas,

porque a minha vida apesar de ser uma experiência particular é

coletiva.

O inconsciente coletivo não deve sua existência a

experiências pessoais; não é adquirido individualmente, pois o

inconsciente pessoal seria representado pelos sentimentos e

idéias reprimidas, desenvolvidas durante a vida de um

indivíduo, já o inconsciente coletivo não se desenvolve

individualmente, ele é herdado, é um conjunto de sentimentos,

pensamentos e lembranças compartilhadas por toda a humanidade.

O inconsciente coletivo é um reservatório de imagens latentes,

chamadas de arquétipos ou imagens primordiais, que cada pessoa

herda de seus ancestrais. A pessoa não se lembra das imagens

de forma consciente, porém, herda uma predisposição para

reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam, a teoria

estabelece que o ser humano nasce com muitas predisposições

para pensar, entender e agir de certas formas. Mas mesmo

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assim, nem sempre as predisposições presentes no inconsciente

coletivo se manifestam tão facilmente. Apesar do fato que os

arquétipos presentes no inconsciente coletivo são universais e

idênticos em todos os indivíduos, estes se manifestam

simbolicamente em religiões, mitos, contos de fadas e

fantasias. Entre os principais arquétipos estão os conceitos

de nascimento, morte, sol, lua, fogo, poder e mãe. Após o

nascimento, essas imagens preconcebidas são desenvolvidas e

moldadas conforme as experiências do indivíduo.

Jung apresenta também o fato do nosso corpo ser composto

por elementos que já existiam na linhagem dos antepassados e o

novo na alma individual que seria uma recombinação, variável

ao infinito, de componentes extremamente antigos. Nossa lama

teria um caráter eminentemente histórico e não encontraria no

“novo-que-acaba-de-aparecer” lugar conveniente, sendo os

traços ancestrais encontrando-se parcialmente realizados.

Estaríamos longe de ter liquidado a Idade Média, a

Antiguidade, o primitivismo e de ter respondido às exigências

de nossa psique a respeito deles. Somos lançados para o

futuro, com uma violência selvagem que nos arranca de nossas

raízes, e se o antigo brotar, é freqüentemente anulado,

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ficando impossível deter o movimento para frente. Mas a perda

da relação com o passado, a perda das raízes que criaria um

tal “mal-estar na civilização”, a pressa que nos faz viver

mais no futuro com suas promessas, do que no próprio presente

que o futuro da evolução histórica ainda não atingiu. Vivemos

de promessas, esperando a sombra do futuro, sem ver a luz do

dia presente, somos os representantes, as vítimas e os

promotores de um espírito coletivo, cuja duração pode ser

calculada em séculos, podemos pensar durante toda a vida que

seguimos nossas próprias idéias, sem descobrir que fomos os

comparsas essenciais no palco do teatro

universal. Há fatos que ignoramos, mas que influenciam

poderosamente nossa vida por serem inconscientes.

Enquanto falamos sobre a self performance onde o artista

mostra sua alma, tendo que explorá-la, Jung diz que a alma é

muito mais complexa e inacessível do que o corpo e isso não

seria apenas um problema pessoal, mas um problema do mundo

inteiro, as pessoas em geral teriam maior dificuldade em

entrar em contato com a sua alma que seu corpo. Acredito até

que por isso seja difícil para uma platéia assistir um ser

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humano explorando sua própria alma e a expondo, exibindo a de

milhares ao mesmo tempo, sendo difícil para o espectador se

deparar com a sua própria essência, tornando-se de difícil

“deglutição”.

Abordagem Analítica

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43

Após mencionar sobre psique coletiva e estruturas

arquetípicas, começo a penetrar um pouco mais em Carl Gustav

Jung, referência principal do curso de Educação Estética.

Quando trabalhou em sua árvore genealógica, percebeu uma

estranha comunhão de destinos que o ligava aos seus

antepassados, ele teria a forte impressão de estar sob a

influência de problemas que foram deixados incompletos e sem

respostas por parte de seus pais, avós e outros antepassados.

Pensava ter que resolver ou continuar com tal herança que

recebera sem ter nenhuma ajuda como resposta. Ele se

questionou então se esse seria um problema pessoal ou coletivo

lhe parecendo coletivo, mas segundo ele enquanto isso não

fosse reconhecido como coletivo, o problema tomaria sempre a

forma pessoal e provocaria ocasionalmente a ilusão de uma

certa desordem na psique pessoal.

Para Jung, o ser humano vem ao mundo com disposições

físicas e espirituais particulares. Em primeiro lugar, toma

contato com o meio familiar e seu ambiente, com os quais se

harmoniza numa certa medida, conforme sua individualidade. Mas

o espírito familiar, por seu lado, traz em alto grau a marca

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do “espírito do tempo” que, enquanto tal, permanece

inconsciente para a maioria dos homens. Quando o espírito

familiar representa um “consensus omnium”, passará a significar

esperança, mas se estiver em oposição ao ambiente, ou atingido

por muitas contradições criará um sentimento de insegurança

diante do mundo.

A partir das cartas que levo para cena posso me

identificar com o tema levantado por Jung. Antes da morte da

minha mãe, vivia com ela e tinha contato com meus pais, após o

seu falecimento, fui morar com meus tios, estes muito

diferentes de minha mãe, o que modificou meu comportamento

diante do mundo e isso se pode ver nas cartas, na maneira de

como escrevo cada uma, antes e depois. Acredito que ao levar

meus pais ao palco, seria uma busca

na relação com eles, tocar na nossa história simultaneamente,

seriam as nossas vidas dentro da nossa história.

Queria destacar também que no momento em que estava lendo

essa parte do livro de Jung sobre antepassados, houve uma

sincronicidade, quando recebo pela minha avó materna, sem que

ela saiba nada sobre minha pesquisa, fotos minhas com meus

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pais quando pequena, inclusive a foto que apresentei no

espetáculo.

...Acontece o mesmo que com o paraíso da infância, ao qual acreditamos ter escapado,

mas que a menor provocação, nos inflige novas derrotas. E ainda mais: nossa crença no

progresso corre o perigo de entregar-nos a sonhos do futuro, tanto mais infantis, quanto

mais nossa conseqüência procura evadir-se do passado 12.”

Quando Jung viajou pela África, teve como objetivo

encontrar um lugar psíquico exterior ao europeu, seu desejo

inconsciente era buscar nele mesmo essa parte da

personalidade, tornada invisível sob a influência e pressão de

ser europeu, este determinado pela razão. Muito do que é

humano permanece estranho, e isto o envaidece um pouco, porque

não percebe que isso se dá às custas da intensidade de sua

vida e a parte primitiva da personalidade é condenada a uma

existência parcialmente subterrânea.

Jung acreditava que na vida cada individuo teria como

tarefa uma realização pessoal, o que tornaria uma pessoa

inteira e sólida. Tal tarefa seria o alcance da harmonia entre

o consciente e o inconsciente.

12 JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 1963. São Paulo, Editora Nova

Fronteira. P. 216

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Desde o início, entretanto, vi claramente que só estabeleceria contato com o mundo exterior

e com os homens se me esforçasse por mostrar que os conteúdos da experiência psíquica

são reais e não apenas vivências pessoais, mas sim experiências coletivas que podem

repetir-se em outros homens 13.

Poderíamos traçar um paralelo com essa última frase de

Jung e o artista que leva para cena a sua história para

atingir as muitas vidas que estão na platéia. O que o artista

vive, sente, suas faltas e aflições são as mesmas de milhares

de pessoas, herdadas também de antepassados.

O artista moderno esforça-se por criar arte a partir do inconsciente14.

Carl Gustav Jung também buscava na arte os desimpedimentos

da sua vida. Quando se sentia bloqueado, pintava ou esculpia

uma pedra, trazendo para si pensamentos e trabalhos. Como

exemplo posso citar que tudo que escrevera naquele ano em que

13 JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 1963. São Paulo, Editora Nova

Fronteira. P. 172

14 JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 1963. São Paulo, Editora Nova Fronteira. P. 173

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fazia o livro, surgira durante o período da escultura de uma

pedra à qual se aplicou após a morte de sua mulher. Para Jung

o homem seria indispensável à perfeição da criação e também o

segundo criador do mundo.

....o homem mesmo dá ao mundo pela primeira vez, a capacidade de ser objetivo, sem ser

ouvido, devorando silenciosamente, gerando, morrendo abandonando a cabeça através de

centenas de milhões de anos, o mundo se desenrolaria na noite mais profunda do não-ser,

para atingir um fim indeterminado. A consciência humana foi primeira criadora da

existência objetiva e do significado: foi assim que o homem encontrou seu lugar

indispensável no grande processo do ser 15.

Na elaboração estética de um de seus livros, Jung chegou à

compreensão de responsabilidade ética em relação às imagens,

com isso compreendeu que nenhuma linguagem por mais perfeita

que fosse, poderia substituir a vida e se isso ocorresse, ela

e a vida se deteriorariam. E para conseguir a liberação da

tirania dos condicionamentos do inconsciente, seria necessário

nos livrar de nossas responsabilidades intelectuais e éticas.

Ele pôs-se ao ofício da alma, amou e odiou e isso foi sua

15 JUNG, Carl Gustav. Memórias,Sonhos, Reflexões. 1963. São Paulo, Editora Nova Fronteira. P. 160

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maior riqueza, essa foi a única possibilidade de suportar sua

existência, vivendo como uma relativa totalidade.

Suas buscas científicas foram o meio e a única

possibilidade de retirá-lo desse caos de imagens, procurando

transformar cuidadosamente cada imagem, cada conteúdo,

compreendendo-os racionalmente na medida do possível e

principalmente, tentando realizá-los na vida, por ser, isto em

geral o que se negligencia. Ele diz que quando deixamos as

imagens surgirem até chegar a um êxtase, poupa-se em geral, o

esforço de compreendê-las na maioria das vezes sem encarar as

conseqüências éticas que elas suscitam e dessa maneira acabam

aparecendo os efeitos negativos do inconsciente.

Através de um sonho que Jung teve quando tinha onze anos,

nascera sua obra principal, a sua vida e trabalhando as

imagens do seu próprio inconsciente que iniciara seu trajeto

pessoal. Suas obras podem ser consideradas como estações de

sua vida, constituindo a expressão do seu desenvolvimento

interior, pois se aplicava aos conteúdos do inconsciente,

formando o homem e determinando sua evolução, sua metamorfose.

Sua vida foi sua ação, seu trabalho aplicado ao espírito era

sua vida, seria impossível separar um do outro, todos os seus

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escritos são de certa forma, “tarefas que lhe foram impostas

de dentro”.

Nasceram sob a pressão de um destino. O que escrevi transbordou de minha interioridade.

Cedi a palavra ao espírito que me agitava. Nunca esperei que minha obra tivesse uma forte

ressonância. Ela representa uma compensação frente ao mundo contemporâneo em que

vivo e eu precisava dizer o que ninguém quer ouvir. É por isso que tantas vezes,

principalmente no começo, sentia-me tão isolado. Sabia que os homens reagiriam pela

recusa, pois é difícil aceitar a compensação de seu mundo consciente. Hoje posso dizer: é

maravilhoso que tenha tido tanto sucesso, mais do que jamais esperei. Para mim, o

essencial sempre foi dizer o que tinha a dizer. Minha impressão é a de que fiz tudo o que me

foi possível. Naturalmente poderia ter sido mais e melhor, mas não em função da minha

capacidade16.

Com o estímulo de dois professores, um que me impulsionava

a me expor mais e outro a buscar nas ausências uma base para a

criação da cena, mergulhei na infância para buscar essa

resposta. Deparei-me com o que estava dentro de caixas,

sentimentos e sensações engavetados, sufocados, esquecidos ou

até mesmo deixados de lado por mim. Passei pelas minhas

vivências afetivas para que pudesse continuar meu processo

16 JUNG, Carl Gustav. Memórias,Sonhos, Reflexões. 1963. São Paulo, Editora Nova Fronteira. P. 194

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criativo e também, quem sabe unindo o criativo com meu

desenvolvimento pessoal.

A infância tem a seu favor, devido à ingenuidade e

inconsciência , o poder de esboçar uma imagem mais completa do

si-mesmo, do homem total em sua individualização autêntica.

Disso resulta que ao ver a criança e o primitivo, o adulto se

esvai em lembranças, recheadas de desejos e de necessidades

não satisfeitas, originadas nas partes da personalidade que

foram apagadas pelos retoques impostos ao conjunto da imagem

do homem, em proveito da adaptação e da pessoa social.

Apesar dos muitos arquétipos apresentados por Jung, trago

aqui a apresentação da sombra, que é um dos arquétipos que

mais influenciam o ego, como os conteúdos privados da luz da

consciência. Uma vez que esses conteúdos são algo que já

pertenceu algum dia à consciência, o ego sente

inconscientemente que está em débito com tais aspectos

negligenciados. Por essa razão, negligenciar nossa própria

Sombra nos traz um sentimento de culpa.

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Segundo Carl Gustav Jung, o mais comum seria projetarmos

inconscientemente a Sombra em alguém, em alguma situação,

instituição ou objeto qualquer. Com essa projeção há uma

grande resistência à assimilação da Sombra, a causa de uma

determinada emoção seria colocada fora e com isso a pessoa

acharia que a Sombra não lhe diz respeito. No entanto essa

projeção faria a pessoa isolar-se de seu ambiente, levando-a a

um sentimento de estar incompleta, pois sua relação com o meio

que a circunda passaria a não ser real, mas ilusória. Criaria

dessa forma um círculo vicioso, com o sentimento de vazio

aumentando o isolamento. Quanto mais a pessoa atacasse ou

criticasse sua projeção inconsciente, mais a projeção se

voltaria contra ela, criando situações de embaraço ou

desconforto.

De modo geral a Sombra desenvolve-se com qualidades que se

opõem às da Persona, com a qual mantém uma relação

compensatória. Por isso, nos sonhos esse arquétipo costuma

aparecer personificado em figuras dotadas de atributos

negativos ou características sinistras, opostas aquelas

socialmente aceitas. Pode surgir também na forma de um animal,

um monstro ou uma força destrutiva.

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Os aspectos da personalidade menos valorizados são nossas

inferioridades, ou nossos complexos afetivos, que têm uma

natureza emocional, uma espécie de autonomia. A vivência da

própria Sombra costuma ser dolorosa, pois os complexos dizem

respeito, em geral, aos setores em que a adaptação é mais

frágil. Essa dificuldade é que em vez de reconhecer nossas

próprias deficiências, preferimos preservar nossa imagem

idealizada de bonzinhos. Quando se tenta excluir os conteúdos

da sombra, as estratégias defensivas podem falhar e a pessoa

se vê obrigada a perceber o custo para mantê-las afastadas da

consciência. Surgem sentimentos de culpa, ansiedade ou

depressão, além de manifestações de sintomas corporais. Quanto

mais forte a repressão, mais forte e atuante ela será.

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Conclusão

Ao longo dessa monografia, foi possível estabelecer uma

ligação entre o processo de criação no teatro, na performance

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e os conceitos Junguianos. O material escrito não tem como

foco ditar verdades, até porque o estudo sobre a performance

ainda é amplo e pouco preciso. Mas tento por aqui fazer um

paralelo entre a cena no teatro e a performance, Jung e o

inconsciente coletivo.

A partir de um processo de criação de um espetáculo, me

foi possível entrar em contato com as histórias que estavam de

certa forma adormecidas em minha mente, mas que constituem

toda a minha essência. Indo ao meu passado, ao meu histórico,

às memórias, às cartas, entrei num profundo contato com o meu

inconsciente, com o que havia de mais dolorido na minha vida,

as ausências de meus pais biológicos. Com esse material

transformei o que era ausência em arte, o processo da criação

foi através das dores humanas, não era apresentado um

personagem fictício e sim, uma pessoa verdadeira e tudo foi

levado para o palco.

A platéia apesar de ter recebido de diferentes formas, faz

parte de um conjunto de pessoas que além de possuírem suas

histórias particulares, fazem parte de um histórico coletivo,

vidas que juntas formam a população mundial, que se origina de

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um passado de várias gerações. A minha biografia também é a

vida de todos.

A união do teatro com a performance e Jung abre aqui mais

uma porta para pensarmos em uma nova vertente sem preconceitos

sobre uma arte teatral em que o homem traga da sua própria

verdade a história que será encenada e com ela, atinja um

público. E que esse passe a refletir sobre sua essência, a

partir do seu eu em contato com o mundo.

Quanto mais conscientes nos tornarmos como auto

conhecimento, e se com isso mudamos nosso modo de agir, menos

espessa vai ficando a camada do inconsciente pessoal, ou seja,

nossa Sombra. Com isso emerge uma consciência não mais

egoisticamente aprisionada pelos desejos, temores, esperanças

e ambições pessoais que sempre necessitam de uma compensação

inconsciente, uma consciência que passa a ser uma função de

relação, participando livremente no mundo dos interesses

objetivos.

 A arte lida com a verdade, com transcendência, lida com a

imanência, é um dos veículos para o ser humano tomar contato

com estados superiores de consciência. O artista lida com as

dialéticas, corpo e alma, cabeça e coração, razão e emoção,

vida e morte, que são estruturais à condição humana. Também

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lida com abstração, tendo consciência que a mídia  é apenas

uma função de transporte, o corpo para uma alma, o suporte

para atingir o seu alvo.

Bibliografia

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STOKLOS, Denise. Teatro Essencial. SãoPaulo: Denise Stoklos Produções, 1993.

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