Configurações Luso-Brasileiras. Fronteiras Culturas, Demarcações da História e Escalas...

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RESUMO

Este trabalho tem por propósito o estudo de um problema

específico: o das demarcações culturais que têm lugar, em finais do século

XIX e inícios do século XX, entre Brasil e Portugal. Percorrem-se duas

linhas de análise: a primeira procura explicar os contornos da escala

cultural luso-brasileira no período em análise; a segunda busca equacionar

a construção das matrizes identitárias nacionais emergentes na referida

escala.

Para este efeito, desenvolve-se uma pesquisa em três etapas: a) a

detecção dos mecanismos de funcionamento articuladores da mencionada

escala cultural luso-brasileira; b) a identificação dos fundamentos teóricos

mobilizados naquele mesmo âmbito; c) o estudo das matrizes identitárias

produzidas no contexto do movimento relacional pluriescalar das culturas

“portuguesa” e “brasileira”. Esta incursão trabalha sobre as noções de

historicidade, fundação e origem e evidencia a nuclearidade das

mobilizações da história nos processos de construção identitária em

Portugal e no Brasil.

2

APRESENTAÇÃO

Este livro é o resultado de uma pesquisa desenvolvida durante os

anos 2002 e 2006 e que culminou em minha Tese de Doutorado em

História, defendida em 2007, na Universidade de Coimbra, Portugal.

Sua publicação após tanto tempo, naturalmente, conterá algumas

ausências bibliográficas ou lacunas relativamente às produções mais

contemporâneas. Mesmo assim, acreditamos que isso não prejudicará o

cerne das análises, nem tampouco justificaria uma reescrita completa.

Preferimos respeitar o caráter da produção acadêmica tal qual ela foi

recebida pelos arguentes. Fizemos apenas algumas alterações muito

superficiais nalgumas partes do texto, tentando deixá-lo mais direto.

Intocável permanece a estima pelos anos vividos em Portugal e pelo

muito aprendido em Coimbra, dentro e fora da Universidade. Igualmente

incólume resta meu agradecimento aos amigos daqueles tempos, bem como

à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pelo apoio financeiro e

pela confiança nesta investigação. Ao Doutor Rui Cunha Martins, professor

e amigo inestimável, quero deixar um agradecimento especial: este trabalho

seria impossível sem orientação e sua ajuda, seja as de aprendizado

acadêmico, seja as valor humano.

3

PREFÁCIO

Rui Cunha MartinsUniversidade de Coimbra

1. O trabalho que tenho o grato prazer de apresentar contém

méritos de vária ordem. É oportuno, é arguto, é rigoroso e é, a partir de

hoje, de consulta indispensável. Um dos aspetos mais notáveis será o modo

como o autor parece escutar, em cada dobra da exposição, as solicitações

da problemática. Uma problemática que ele mesmo construiu (assim

escapando ao terreno armadilhado do senso comum historiográfico sobre a

matéria em estudo) e que tão depressa lhe parece solicitar matéria

argumentativa quanto empírica. Tudo se joga então na capacidade para

optar, em cada momento, pela matéria pertinente. Invariavelmente, Marçal

Paredes opta de forma consistente. O trabalho fica ganho em cada um

desses momentos.

2. A segunda metade do século XIX e os inícios do século XX

correspondem, à escala luso-brasileira – também à escala ibero-americana

– a um momento de particular esforço de clarificação identitária por parte

das nações envolvidas. Como é usual em casos que tais, esse esforço tem

expressão em fenómenos de demarcação cultural e política, no

estabelecimento de diferentes escalas de referência identitária, na

reavaliação de memórias nacionais e na sobreposição concorrencial entre

os vários critérios avançados para os fins demarcatórios em vista.

Compreende-se, neste contexto, que ao levantar-se a questão do

relacionamento entre as entidades político-culturais brasileira e portuguesa,

tópicos como a dívida, a herança, a fraternidade, a diferença e a

originalidade impusessem um estado de permanente mobilização das

4

historicidades, ele mesmo desafiador do lugar da história nos processos de

definição dos contornos nacionais. E compreende-se, de igual modo, que

todo este complexo cruzamento de razões desembocasse em verdadeiras

fricções demarcatórias e naquilo a que convém chamar “turbulências do

limite”. É de uma descodificação desta zona de turbulência que se ocupa o

autor.

3. Da sua análise exaustiva torna-se possível isolar cinco

propostas de resolver o problema da fronteira à escala transatlântica: (i) o

entendimento do Brasil como prolongamento de Portugal e, portanto, o

entendimento de uma “longa” e eterna fronteira portuguesa, prolongando-

se na fronteira brasileira tanto quanto na africana; (ii) a recusa da leitura

anterior por via de uma demarcação de sentido oposto, qual seja, a de um

afastamento brasileiro da herança portuguesa; (iii) o alargamento da

primeira proposta – a da continuidade, portanto –, a uma escala ibérica de

referência, no âmbito da qual os povos sul-americanos são entendidos

como neo-ibéricos (pressupondo, assim sendo, uma “longa” e eterna

fronteira ibérica, prolongando-se na América); (iv) a recusa desta última

proposta por via da contraposição de uma escala americanista de referência,

ela sim passível de demarcar as culturas sul-americanas; (v) a proposição

de uma demarcação brasileira pela originalidade, isto é, basicamente, pela

celebração do carácter singular do mestiço. A deteção de semelhante painel

é mérito que cabe por inteiro ao autor do trabalho, que teve por bem não

limitar o inquérito a uma única área disciplinar de informação, preferindo

inclinar a pesquisa sobre tabuleiros simultâneos – políticos, historiográficos

e literários –, procedendo ao respetivo cotejo. As vantagens da sua opção

estão à vista.

4. Se me é permitido, neste local, chamar a atenção, em

particular, para alguma daquelas matrizes interpretativas, faço-o

5

relativamente à última, a da celebração da mestiçagem. Pelo seguinte

motivo: tal como sucede com a noção de “fronteira interior”, de matriz

fichteana, na qual o limite como que se desdobra em direção a si mesmo,

também aqui, nessa proposta de sabor romeriano, o limite é mobilizado não

a partir da sua clássica função delimitadora mas a partir dessa sua

paradoxal propriedade que é a produção de dada centralidade. No caso do

debate brasileiro da segunda metade do século XIX é como se ao elemento

híbrido, feito referenciação identitária central, passem a reconhecer-se

insuperáveis funções demarcatórias. Marçal Paredes percebe bem a

nuclearidade deste aspeto, conferindo-lhe o devido enquadramento.

5. O autor percebe, como resulta inequívoco da sua análise, que a

ambição de diferenciação face às raízes portuguesa, ibérica e europeia

(diferenciação também almejada, a breve trecho, frente ao negro e ao índio)

redunda numa aspiração de originalidade. Uma demarcação pela

singularidade e pela essência, pela clara delimitação dos caracteres

específicos, eis do que se trata. Uma fronteira definida a partir de dentro,

dir-se-á também. A ideia pode resumir-se num objetivo: estabelecer as

fronteiras da nação ali mesmo naquele ponto exato em que deixar de se

sentir o eco daquilo que se entenda ser a genuinidade nacional. O híbrido,

pois, é expressão de uma fronteira interior, à maneira fichteana. Ora, como

sabemos, esta ou é tida por ponto de partida (o “genuíno nacional”) ou é

apeadeiro (a “gradual autonomização” da forma mestiça) de uma longa

marcha para o futuro. Um trajeto futuro tão ilimitado quanto se acreditava

ser então o destino dos povos que, no seguimento da sua própria marcha

evolutiva, se haviam voltado para si próprios na demanda do respetivo

traço distintivo. Uma demanda ilimitada. E não forçosamente saudável.

Que a historiografia contemporânea tenda a ser complacente com as

demandas identitárias em nada altera este diagnóstico. Uma advertência

que mais se justifica após a leitura do brilhante trabalho de Marçal Paredes.

6

Configurações Luso-Brasileiras: Fronteiras Culturais,

Demarcações da História e Escalas Identitárias (1870-1910).

INTRODUÇÃO 08

PARTE I – CONFIGURAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS 16

1. Redes discursivas 17

1.1. Circuitos políticos: referencialidade

transnacional e “comunidade de sangue” 19

1.2. Divulgação científica: critérios de

recepção e alegoria do “povo irmão” 40

2. Interpretações concorrenciais 58

2.1. O ponto de vista da derivação 59

2.2. O ponto de vista da convergência 73

2.3. Os cultores do distanciamento 83

3. Modalidades de relacionamento 97

3.1. A linha da dissensão, ou a instrução das polêmicas 98

3.2. A linha do consenso, ou o ambição do comemoracionismo 119

PARTE II. – FUNDAMENTOS TEÓRICOS: HISTORICIDADE E

DEMARCAÇÃO 138

1. O “arco de outra nova ponte” e o “bando de ideias novas” 140

2. A frente cientificista e seus níveis de relacionamento 156

2.1. Difusão do Positivismo: perspectiva comparada 157

2.2. Ortodoxias e Heterodoxias: primeirasdemarcações 163

2.3. Os eixos ultra-ortodoxo e demoliberal 175

2.4. Derivas da heterodoxia: os “evolucionismos” 180

2.5. O eixo materialista-monista 199

3. Demarcação e Historicidade: mobilizações republicanas 203

7

PARTE III – ESCALAS IDENTITÁRIAS: A PROBLEMÁTICA DA

ORIGINALIDADE 214

1. A obsessão temporal da alteridade luso-brasileira 217

2. A Herança e o Mal de origem: a lição da História (e sua inversão) 224

3. Moçárabes e Mestiços: a concorrência da forma híbridal 260

4. Riograndeses e Sertanejos: a intersecção portuguesa do

regionalismo brasileiro 292

CONCLUSÃO: As Fronteiras Culturais Luso-brasileiras 302

FONTES 307

BIBLIOGRAFIA 318

INTRODUÇÃO

O trabalho que aqui se inicia tem por propósito o estudo de um

problema específico: o das demarcações culturais que têm lugar, em finais

do século XIX e inícios do século seguinte, entre Brasil e Portugal.

Semelhante problema exige um inquérito em duas frentes. Uma, que dê

conta do quadro relacional em que haverão de ter lugar aquelas

demarcações, ou seja, dos respectivos níveis de articulação, das

intersecções informativas, dos nós críticos e argumentativos, ou dos

pressupostos doutrinários, em suma, que saiba explicar as características da

configuração cultural luso-brasileira. Uma segunda linha de análise

deverá, por seu lado, ser capaz de descodificar o debate de ideias produzido

naquele contexto, identificando os alinhamentos e as faturas de índole

teórica, o caráter científico ou filosófico dessas cisões, os suportes

ideológicos mobilizados, o intuito político das distintas demarcações e as

correspondentes escalas de incidência, isto é, que seja capaz de equacionar

a construção das matrizes identitárias emergentes na configuração cultural

luso-brasileira.

A decisão de investir em semelhante projeto de pesquisa está

condicionada por uma constatação: embora separados politicamente desde

a independência do Brasil em 1822, a atmosfera de troca e divulgação

cultural que se mantém para além dessa data admite a percepção de uma

9

referenciação comum às culturas portuguesa e brasileira. Na verdade, a

existência de uma mesma comunidade cultural envolvendo brasileiros e

portugueses, no final do século XIX, foi já intuída por alguns estudos, com

destaque para a obra de Beatriz Berrini, que sustenta ter havido, também no

Brasil, tal como em Portugal, uma Geração de 70. Fundamentada em

ampla pesquisa epistolar, a autora refere “a recíproca amizade de

portugueses e brasileiros, convivendo em especial no estrangeiro, que se

entendiam muito bem, que estenderam os laços criados pelo mútuo

conhecimento aos familiares, que dialogavam quer acerca dos negócios

particulares como dos públicos, envolvendo as respectivas pátrias,

partilhando inquietações, frustrações, problemas, sempre em busca de

soluções dignas e honrosas. Não compunham dois grupos distintos porém

formavam uma mesma plêiade em que brasileiros e portugueses se

confundiam” (1).

Uma mesma plêiade. Por certo que sim. Aliás, provas de um

intenso relacionamento entre os intelectuais brasileiros e portugueses do

período não faltam. Fornece-as a própria Beatriz Berrini: “dois endereços

eram familiares a uns e outros: os brasileiros conheciam a residência

parisiense de Eça, seja a da rue Charles Laffitte, 32, como a da avenue du

Roule, 38, sem mencionar o consulado. Eram os portugueses inversamente

assíduos às residências de Eduardo Prado em Paris, quer à moradia da rua

Casimir Perier, 3, quer a da place de la Madeleine, sobretudo estavam

familiarizados com o número 194, Rue de Rivoli. Nesta última, Eça e

Ramalho foram por mais de uma vez hóspedes de Prado” (2). E fornece-as

também Elza Miné, em trabalho sobre Jaime Batalha Reis, onde traz

importantes elementos sobre esse convívio luso-brasileiro também em

1 BERRINI, Beatriz. Brasil e Portugal: a geração de 70. Breves indicações dos correspondentesbrasileiros e portugueses por Paulo Franchetti e Beatriz Berrini. Prefácio de Isabel Pires deLima. Porto: Campo das Letras, 2003, p.86. Grifos nossos. 2 Idem, ibidem, p.45

10

Londres. Conforme explica esta autora, entre Jaime Batalha Reis e o grupo

de brasileiros, houve “uma natural comunhão” que fora “propiciada e

facilitada pelas raízes comuns, pela língua comum” e reforçada pela

“presença de amigos comuns, como é o caso de Eça de Queirós

(particularmente com relação a Eduardo Prado e Domício da Gama), e

ligações, também comuns, com a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro” (3).

A constatação de uma dimensão de contato e de projetos em curso

envolvendo os intelectuais lusos e brasileiros – em contextos muito

precisos, é verdade – depreende-se sem dificuldade. As questões que diante

deste quadro se colocam são as seguintes: a da dimensão reflexiva dessa

mesma plêiade sobre o caráter e o significado desse próprio

relacionamento; a do grau de representatividade desse grupo no contexto

dos debates emergentes sobre o relacionamento entre Brasil e Portugal; a

da inevitável “separação de águas” teóricas que igualmente caracterizaria

aquela esfera intelectual, até pelo previsível alinhamento diferencial de

cada um dos seus componentes com linhas interpretativas mais englobantes

sobre a matéria luso-brasileira. Ora, é nosso entendimento que a única

forma de equacionar com a devida profundidade estas questões é a de,

libertando-nos da “plêiade”, alargarmos o âmbito da pesquisa, entregando-

nos, metodologicamente, à “escala”. Estudar a relação, mas também aquilo

que nela existe de demarcação. Colocar o problema do relacionamento

luso-brasileiro em termos de configuração equivale a aceitar a sua

intrínseca complexidade, bem como a privilegiar uma leitura que não se

limite a ser o somatório de cada uma das escalas das culturas nacionais,

mas assuma como seu desafio maior o esclarecimento da relação

estabelecida por cada uma dessas culturas com uma dimensão transnacional

sem a qual elas próprias resultariam incompreensíveis. Explicitar, portanto, 3 MINÉ, Elza. “Prefácio” REIS, Jaime Batalha. O Descobrimento do Brasil intelectual pelosportugueses do século XX. Organização, prefácio e notas de Elza Miné. Lisboa, Dom Quixote, 1988.

11

o “funcionamento” dessa configuração luso-brasileira terá que ser o nosso

primeiro patamar analítico.

Dissensões, convergências, rupturas teóricas: demarcações, em

suma. Eis um nível de relacionamento inscrito num âmbito configuracional.

Descortinar o sentido explicativo destas modulações estéticas e as direções

teórico-doutrinárias e filosófico-políticas subjacentes deverá constituir, em

seguida, o objetivo de um segundo patamar de reflexão. Mas haverá, no

concreto, matéria “luso-brasileira” que permita o seu efetivo

enquadramento e, sobretudo, a detecção do respectivo significado?

Justificar-se-á o investimento a que nos propomos?

Ensaiemos, desde agora, um exercício exploratório. Situe-se o

problema no ano de 1880. Em Março desse ano, no prefácio às suas

Soluções Positivas da Política Brasileira, Luiz Pereira Barreto declarava

ter “a convicção que as nossas condições políticas e sociais não melhorarão

enquanto não tiverem por ponto de partida uma modificação

correspondente na situação de Portugal. O fio da história não se rompe.

Somos filhos de Portugal: a ele estamos presos por todos os laços

indissolúveis de uma lei natural. A fatalidade biológica, o determinismo

sociológico dominam toda a nossa história. É em vão que procuraremos

esquivar-nos à pressão do passado. Temos sido, somos e seremos

portugueses” (4). No mesmo ano de 1880, entretanto, Sílvio Romero

manifestava abertamente sua inconformidade com a proposta estética e

identitária brasileira que propunha “ou cantar o caboclo ou seguir o

português”. Frente a este quadro, disparava: “Punge refutar coisas tais. O

índio não é o brasileiro, mas o português também não; a alternativa entre o

4 BARRETO, Luiz Pereira. “Soluções Positivas da Política Brasileira” [1880]. In: ObrasCompletas, Volume III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo:Humanitas, 2003, p.17

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cauin e vinho verde é antigualha – carunchosa. É preciso descortinar, entre

os dois extremos, alguma coisa de melhor” (5).

Por essa altura, o debate manifestava assinalável amplitude. Ainda

nesse mesmo ano de 1880, Miguel Lemos, um dos líderes do positivismo

brasileiro, escrevia – em Paris e a pedido de Pierre Laffitte – uma obra para

celebrar o tricentenário da morte de Camões. Dizia, então, que “le

successeur d’Auguste Comte a lui-même exposé au public, à la fin de la

dernière leçon de son Cours de morale, les motifs exceptionnels de cette

délégation. Il est utile, a-t-il dit, que la glorificcation du meilleur type

portugais soit faite à Paris, et soit faite par un Brésilien : il y aura là une

démonstrations éclatante de l’universalité de la nouvelle religion, qui

glorifie les services des grands hommes de tous les pays, et qui parvient à

éteindre, chez les descendants coloniaux des populations européennes, les

haines sorties des luttes de l’independence nationale, en y substituant un

sentiment profond de la continuité historique. La glorification de Camões,

du type le plus caractéristique qu’ait produit Portugal, sera d’autant plus

décisive qu’elle émanera d’un Brésilien”(6).

Esta publicação, assim como os demais eventos celebrados no

Brasil em homenagem ao tricentenário camoniano, não tiveram

acolhimento uniforme. É verdade que foram recebidos em Portugal com

grande satisfação, por exemplo, por Teófilo Braga. Este autor, na revista O

Positivismo, em 1880, afirmava serem o Brasil e Portugal “filhos da mesma

tradição histórica, [pois] falamos a mesma língua, e exercemos uma ação

mútua que precisa ser conhecida e dirigida”. E dizia mais: “Foram os

Positivistas brasileiros que restabeleceram estas condições naturais da

reciprocidade dos dois povos, e a festa do Centenário de Camões tinha de

ser lucidamente aproveitada para dar às emoções da coletividade a 5 ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna. Rio de Janeiro: ImprensaIndustrial, 1880, p.75-766 LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.III

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coerência de uma evidente noção racional. Ainda surgiram dissidências de

particularismo de bandeira, tentando isolar a colónia portuguesa em uma

manifestação exclusiva; [mas] as circulares dos positivistas brasileiros

foram ouvidas, e em Paris a festa do Centenário de Camões foi sustentada

no sentido profundo que continha por brasileiros que ali seguem cursos

científicos. Os poderes públicos do Império, o parlamento brasileiro, o

ministério e o próprio imperador compreenderam o alcance do Centenário

de Camões para a confraternidade dos dois povos. A festa dos Positivistas

do Rio de Janeiro, apesar do incalculável e extraordinário esplendor das

outras manifestações impôs-se à admiração pelo seu alcance filosófico” (7).

Entretanto, não podem as avaliações deste teor omitir as vozes discordantes

que se levantaram perante as comemorações, a exemplo da do crítico

literário cearense Araripe Júnior. Para ele, a festa camoniana no Brasil,

“erguendo o orgulho colonial, amesquinhou o espírito nacional” (8). Outras

opiniões num ou noutro sentido poderiam aqui transcrever-se. Não nos

parece, neste momento, que tal seja necessário.

Este brevíssimo panorama é, por si só, esclarecedor da imperiosa

necessidade de tratar em âmbito configuracional o relacionamento cultural

luso-brasileiro. Com atenção à propensa instabilidade dos alinhamentos e à

sua não obrigatória coincidência com as escalas nacionais de referência,

buscar-se-á dar importância ao cotejo dos fundamentos teóricos subjacentes

a cada uma das intervenções daquele tipo e do seu grau de interferência

sobre as diferentes concepções de escala transatlântica. Em igual medida,

7 BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto-Setembro, 1880, p.513-514. 88 ARARIPE JR., Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, n.º2, julho 1883. In: ARARIPEJUNIOR, Tristão de Alencar, Lucros e Perdas. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I(1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.323-360.

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analisar-se-á a diversidade de critérios mobilizados na instrução dos

argumentos em disputa. A história – enquanto interpretação –, mais do que

qualquer outro critério, parece dotada de alguma centralidade a este nível.

Dito isto, importa adiantar que este trabalho parte de uma

convicção. Precisamente a que pressupõe o lugar nuclear da história no

quadro dos critérios de reordenamento cultural e identitário convocados em

escala luso-brasileira. Antevemos que a obsessão temporal que se percebe

na discursividade portuguesa e brasileira, ainda mais quando está em causa

o relacionamento entre ambos os países, é expressão do potencial da

história como mecanismo de demarcação identitária. E quando pensamos

nos indícios dispersos que autorizam a supor o caráter dramático com que é

debatido, no âmbito luso-brasileiro, o problema da originalidade, ou seja, a

disputa pela singularidade relativa a cada uma das culturas – também aí –

uma vez mais, é com a historicidade com que nos deparamos. A análise do

uso do critério da originalidade histórica condiciona uma série de questões:

i) quem interpreta o “passado” e com que intuito? ii) com quais

pressupostos doutrinários? e iii) produzindo quais consequências ao nível

do relacionamento entre as escalas “portuguesa” e “brasileira”

inerentemente implicadas? Numa palavra: como foi a história mobilizada?

A resposta a estas questões poderá considerar-se a matéria conclusiva deste

trabalho. A verificação de toda esta linha interpretativa constituirá,

naturalmente, o terceiro e último patamar da investigação.

Não vale a pena antecipar aqui reflexões constantes no

desenvolvimento do trabalho a seguir. Estas considerações introdutórias já

são suficientes para ilustrar os principais desafios que se colocam a esta

investigação. Resta, porém, espaço para algumas advertências. Uma delas é

o fato desta pesquisa, justamente por assumir carácter relacional e situar-se

na confluência não apenas de um objeto compósito (como que repartido

por, pelo menos, dois pólos de observação), estar também na confluência

15

de duas historiografias distintas. Tal fato implica, por vezes, um

desequilíbrio ao nível da informação disponível e da cobertura analítica de

determinados assuntos. Trata-se de um dos preços a pagar por uma

investigação efetuada com teu desiderato. Ao longo do texto, assinalamos

sempre que possível essa situação, procurando incorporar a dimensão

historiográfica no leque de fatores passíveis de interferir na problemática.

A anterior advertência é também uma chamada de atenção para o

problema do ponto de vista. Aspecto de transcendente importância para um

estudo com este, comprometido com as questões da escala de análise e com

a necessidade de bem definir o lugar de onde se fala. Devemos esclarecer

que este trabalho, embora sendo tributário de dados e de análises

reportados a Portugal e ao Brasil, não é um trabalho sobre qualquer um

destes países individualmente considerados. Em rigor, a sua linha de ação é

a luso-brasileira: essa é a escala que constitui o seu objeto e é a ela que

devem reportar-se os investimentos analíticos produzidos. É natural que, ao

perseguir esse objetivo, as considerações e os dados levantados sejam

transponíveis para os âmbitos de pesquisa de cada uma das culturas

portuguesa e brasileira. Isso é inevitável. Contudo, estaremos, assim, ao

nível de vantagens colaterais trazidas pelas nossas indagações. O nosso

ponto de vista responde por uma vinculação transatlântica em suas

diferentes escalas. Ou seja, seu caráter configuracional. O mesmo se diga

da lógica seguida quanto às fontes e ao material bibliográfico utilizado: a

mesma postura ditou uma criteriosa – mais do que exaustiva – consulta das

obras disponíveis para cada um dos lados, em relação aos diversos

assuntos. Optou-se por ambicionar uma cobertura tão extensa quanto

possível dos trabalhos situados no horizonte transcultural luso-brasileiro.

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I. A CONFIGURAÇÃO CULTURA LUSO-BRASILEIRA.

De acordo com os pressupostos atrás enunciados, a primeira parte

deste trabalho destina-se a caracterizar as dimensões tópicas dessa

configuração de ideias, realizações e intercâmbios que designamos por

configuração luso-brasileira. Trata-se, de perscrutar no seio desta entidade

escalar os principais níveis de articulação vigentes, principalmente onde se

expressa o funcionamento de um eixo cultural compósito, a um só tempo

nacional, regional e transnacional e que, assim sendo, incorpora o problema

dos cruzamentos e sobreposições entre estes vários níveis (9).

Nesta perspectiva, são três as dimensões cuja análise se afigura

mais operativa: uma primeira, de caráter comunicacional, que trata da

constituição das redes discursivas em dimensão luso-brasileira; uma outra,

de caráter hermenêutico, que analisa as interpretações concorrenciais que

se debatem naquele mesmo âmbito; e uma última, de cunho estético, que

pretende caracterizar as modalidades de relacionamento produzidas em

resultado daquelas redes e daquelas interpretações. A exploração

complementar destes três aspectos permitirá o conhecimento seguro das

linhas de funcionamento da configuração luso-brasileira.

Uma advertência deve ser feita: as páginas que se seguem – e, em

termos genéricos, toda esta primeira parte do trabalho – assume uma feição

9 Embora com diferente foco e em contexto distinto, veja-se o tratamento que Arriscado Nunesdá a este conceito em NUNES, João Arriscado. “Reportórios, configurações e fronteiras: sobrecultura, identidade e globalização”. Cadernos do CES, Oficina n°43, Janeiro de 1995.

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algo descritiva no tocante à compilação de dados. Esta circunstância deve

ser entendida como o preço a pagar pela aposta na expressividade dos

exemplos concretos e das citações textuais, assim como pela necessidade

de reunir, sistematicamente, uma série de materiais dispersos e a carecerem

de uma atribuição de significado. É nossa convicção que esse sentido

começa por ser a expressividade do dialogismo cultural luso-brasileiro –

tanto na vertente da convergência, quanto na da dissonância, ambas

tomadas, para além de sua especificidade, como expressões desta dinâmica.

Por isso, a nossa tarefa tem de ser a elucidação desse movimento dialógico

nas suas distintas modalidades. Disso trata toda a Parte I. Tornar-se-á

possível, em seguida, surpreender os problemas culturais e teórico-políticos

nodais forjados neste contexto, isolando-os para lhes conferir centralidade

no âmbito da análise. É o que acontecerá nas Partes II e III deste trabalho.

1. Redes Discursivas.

O último quartel do século XIX e os primeiros anos do século XX

denotam, no quadro do relacionamento luso-brasileiro, uma particular

disponibilidade e uma especial atenção a assuntos implicando qualquer

uma das margens do Atlântico, a começar pelos acontecimentos políticos

registrados em ambos os países. Seja qual for a ótica considerada, a

impressão que se tem é a do conhecimento mútuo que, pelo menos no

âmbito intelectual, a cultura portuguesa e a cultura brasileira parecem

cultivar um canal informativo eficaz e a possibilidade do estabelecimento

de pontes e linhas de contato.

Assim sendo, torna-se incontornável conferir alguma arrumação a

essa multiplicidade de circuitos, operar distinções dentro dessa dinâmica,

identificando aquilo que, décadas atrás, Michel Foucault apelidou redes

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discursivas, isto é, núcleos de significado distintos entre si e agrupando

com alguma coerência, em torno de uma ideia nevrálgica ou de uma série

de princípios, distintos autores e distintas posições, conjuntural ou

tendencialmente alinhados numa mesma rede interpretativa (10).

No caso da presente investigação, merecem destaque dois grupos

temáticos, ou dois circuitos luso-brasileiros. Um deles capta-se na atividade

cronística: trata-se do conjunto de crônicas políticas e colunas de opinião

reportadas a assuntos tanto portugueses como brasileiros – mas, justamente,

logo tornados assuntos luso-brasileiros. Este conjunto patenteia um notável

intercâmbio informativo e uma circulação permanente de ideias entre os

distintos pólos de relacionamento, redundando no estabelecimento de

paralelos políticos e ideológicos e de exercícios históricos comparativos a

pretexto dos acontecimentos respectivos. Já o outro – ou, na terminologia

adotada, a outra “rede discursiva” – situa-se ao nível da divulgação da

ciência positiva no contexto luso-brasileiro, um arco teorico que, ao

promover a figura da “ciência” – ou melhor, de um determinado

entendimento da “ciência” – a esteio congregador dos padrões de

relacionamento cultural, promove a construção de uma discursividade

concatenada em torno dos positivismos. Neste ponto, deve-se chamar

atenção para o seguinte: as duas diferentes redes discursivas assumem e

dão significado distinto ao relacionamento luso-brasileiro. A primeira

trabalha a partir das intervenções de um Oliveira Martins, de um Eduardo

Prado, ou de um Eça de Queirós. A segunda convoca nomes como Júlio de

Mattos, Teixeira Bastos, Carlos Koseritz, Assis Brasil, Alberto Sales, Isidro

Martins Júnior, Sílvio Romero, Teófilo Braga. Vejamos cada uma delas

com mais detalhe.

10FOUCAULT, Michel. O que é um autor?Lisboa: Veja, 1992.

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1.1 Circuitos políticos: referencialidade transnacional e “comunidade

de sangue”.

A crônica dos acontecimentos brasileiros, no período que vai de

1870 até ao final do século XIX, foi um assunto que mobilizou o interesse

do público leitor português; mobilizou, e isso é seguro, o interesse de seus

intelectuais. Na impossibilidade de dar conta de todas as expressões dessa

atenção, tomaremos como posto de observação privilegiado, a atividade

cronística de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, vertida em diversos

periódicos. Desde suas contribuições para a Revista Ocidental, em 1875,

até às publicadas em 1890, no jornal O Tempo, ou mesmo as de 1891, no

jornal Nacional, percebe-se que os assuntos brasileiros têm um papel

importante no rol das suas preocupações.

1.1.1. Comecemos pelos textos publicados na Revista Ocidental, na seção

“Crónicas e Revistas”, mais exatamente na coluna intitulada “Portugal e

Brasil” (11). De modo sucinto, pode afirmar-se que o interesse do colunista

J. P. de Oliveira Martins, que assinava “P. de Oliveira” (12), estava

direcionado para cinco assuntos: a “questão religiosa”, bastante exacerbada

no Brasil; a imigração portuguesa naquele país; os problemas econômicos

portugueses (advindos das políticas do governo brasileiro para com o

imigrante português); a situação política portuguesa; a construção e a

ampliação dos caminhos de ferro em Portugal. Interessam-nos alguns

destes pontos. 11 Recentemente essas crônicas de Oliveira Martins foram publicadas no volume J.P. de OliveiraMartins. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos, fixação do texto deBruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2005. 12 De acordo com Sérgio Campos Matos, J.P. de Oliveira Martins teria assinado como P. deOliveira, possivelmente, em homenagem a seu avô. Consultar as notas introdutórias inseridasem J.P. de Oliveira Martins. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos, fixação do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História daUniversidade de Lisboa, 2005.

20

O colunista “P. de Oliveira” (Oliveira Martins), em praticamente

todas as suas crónicas, menciona os acontecimentos decorrentes da

chamada “questão religiosa” do Brasil (13). Semelhante temática está

celeradamente fora do nosso escopo. O contexto português do respectivo

debate, porém, deve merecer alguma atenção, sendo nessa perspectiva – e

só nela – que nos deteremos sobre o assunto. Recorde-se, pois, que logo no

primeiro número da Revista Ocidental o cronista começara por afirmar que

“as questões de modus-vivendi entre o Estado e a Igreja são ainda hoje das

que se impõem, com uma gravidade superior” (14). Nesse quesito,

entretanto, considera que “sofre actualmente mais desse antagonismo o

Brasil que nós. São conhecidos os incidentes do conflito que parecia

terminado com a condenação e encarceramento dos bispos do Pará e

Olinda. Esses actos com que o governo brasileiro reproduz a política do

chanceler alemão, não encontram no império brasileiro, como encontram

no da Europa, o apoio firme das populações protestantes ou velho-

católicas. Católico na sua totalidade o Brasil, menos depurado o sentimento

religioso, menos elevado o grau de cultura intelectual, devemos temer pelo

resultado da luta que a condenação dos bispos acirrou amargamente?” (15).

Independentemente de razões de outra índole (que abordaremos a

seu tempo), o olhar vigilante do autor sobre o caso brasileiro e a respectiva

incorporação no seu núcleo argumentativo decorrem de matéria de

princípio. Na realidade, considera ele que os fatos relativos à questão

religiosa no Brasil não constituem meras questões de ordem conjuntural,

mas sim o produto de um antagonismo de princípios. Por isso, “pouco vê

quem apenas considera os acontecimentos desta ordem como filhos das 13 Recorde-se que a “Questão religiosa”, ao lado da “Questão Militar” e da “Questão daEscravidão”, é geralmente tratada pela historiografia brasileira como uma das três questões quetiveram importante papel no “ocaso do Império” de D. Pedro II, para usar uma expressão deOliveira Vianna. Cf. VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: EditoraMelhoramentos. 2ª edição, 1925. 14 Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1875, p.115. 15 Idem, ibidem, p.116.

21

ambições, dos interesses, das pequenas paixões que, sem dúvida,

acompanham sempre as acções humanas. Questões religiosas, como a que

agita o Brasil, são inevitáveis no nosso tempo, em que as relações do

Estado e da Igreja não podem assentar em bases racionais, mas somente

num sistema de concessões recíprocas e de frágeis concordatas, que um

momento aconselha, que o momento seguinte repele”; isto porque,

sustenta, “falta-lhes a base firme da filosofia”. Trata-se, com efeito, de uma

questão estrutural, pois o “sistema de instituições que se deduz dos

princípios do catolicismo romano, não é compatível com o sistema de

instituições que se deduz da filosofia do direito nas nações europeias” (16).

Daí a necessidade de se fazerem reformas que cerceassem o poder político

temporal que os bispos mantinham, reformas essas entendidas como “as

melhores armas para combater as tentativas reaccionárias: não que a

política deva deixar de as atacar de face quando saem a campo, nem de as

minar por todos os modos à medida que se vão pronunciando em

tendências ainda indefinidas. O primeiro caso é o do Brasil, o segundo é o

de Portugal, onde, se não temos ainda bispos encarcerados, nem vivas e

fogueiras ao divino, temos já o pequenino conflito do cabido de Bragança,

tão pequenino que o deixei para o fim, com a tenção firme de apenas o

mencionar”. E, como conclusão, a apontar para o caso português, remata o

colunista: “Não vale a pena gastar cera com ruins defuntos” (17).

A frase com que encerrou a coluna de 15 de Fevereiro de 1875 não

o impediu, entretanto, de voltar ao assunto. Ter-se-á, de alguma forma,

sentido obrigado a fazê-lo. É que a intervenção pública de Oliveira Martins

sobre a questão religiosa motivava reações adversas. Assim, no fascículo

publicado em 15 de Abril do mesmo ano, P. de Oliveira confessa-se

“curioso” perante a manifestação agressiva vinda da parte do jornal Bem

16 Idem, ibidem, p.116-117. 17 Idem, ibidem, p.118-119.

22

Público: revista eclesiástica e literatura. Diz ele que “o rápido incidente do

cabido de Bragança, e a gravíssima questão do clero brasileiro, a que mais

de uma vez me tenho referido aqui, mereceram-me da parte do Bem

Público uma saraivada de grosserias, que não sei se são ultramontanas, mas

que nem são delicadas nem piedosas” (18). Na verdade, a avaliar pelas

transcrições do referido jornal que o próprio Oliveira Martins se encarrega

de fornecer aos seus leitores, incorporando-as nas suas crônicas, os

argumentos martinianos eram ali refutados palmo a palmo (19). Não apenas

os relativos à questão religiosa em Portugal, mas também – o que toma

particular sentido para a presente investigação – aqueles relativos à questão

religiosa brasileira, a qual, ao que se percebe, era matéria conhecida

também por esta outra fonte da polêmica. Tanto assim é que, em uma das

suas colunas, dirá o Bem Público, em resposta a P. de Oliveira: «Escusado

é dizer que, falando da questão religiosa do Brasil, a Revista se mostra boa

irmãzinha nos três pontos; e que até aos jesuítas e aos bispos presos atribui

a revolução matuta dos quebra quilos, – coisa que nem as folhas semi-

oficiais do Brasil se atrevem já a sustentar, por ser demasiadamente calva»”

(20).

Está claro que os acontecimentos de além-mar eram seguidos de

perto por ambas as partes em confronto (21). E o comentário dos assuntos

18 Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo 5º, de 15 de Abril, 1875, p.624. 19 Oliveira Martins aproveita para dar uma amostra ao seu leitor, transcrevendo um trecho, daspáginas do Bem Público de 1875, de onde respingam ácidas críticas em eco à recente QuestãoCoimbrã, como se vê: “«Coimbra que está sendo o foco pestilento de Portugal, o verdadeiropoço do abismo de onde saem os vapores deletérios que o vão matando, não podia deixar de serum dos centros mais activos da maçonaria, que ali tem o caracter pechincheiro e cobarde doslords da batota»”. Idem, ibidem, p.624-625.20 Idem, ibidem. Grifos no original.

21 Recorde-se, a este propósito e a título exemplar, a alusão de P. de

Oliveira “ao que o imperador afirma no discurso de abertura do

parlamento, que o correio nos trouxe há dias, [a saber]: «A ordem pública

foi perturbada em vários pontos do interior de quatro províncias do norte.

23

brasileiros propiciado por esse intercâmbio informativo constitui um palco

mais da exacerbação dos debates da época, servindo de pretexto para um

enfrentamento mais entre criticismo e ultramontanismo (22). Dito por outras

palavras: a uma efetiva circularidade informativa entre ambos os lados do

Atlântico, exemplarmente sugerida por este caso, correspondia um

correlativo alinhamento de posições e princípios em escala não apenas

nacional mas, justamente, transnacional. Neste âmbito, os acontecimentos

de um ou de outro lado ganhavam súbita amplitude de significado a cada

vez que eram convocados a alargar o referente argumentativo e, com isso,

se estendia para um contexto luso-brasileiro as múltiplas linhas de fissura

que ecoavam, pelo menos, desde as Conferências do Casino. Com isso,

percebe-se que as partes em disputa buscavam arcos de legitimação de

amplitude atlântica, percorrendo as correntes de significado construídas ao

sabor dos enfrentamentos estruturais ou meramente conjunturais. Em

qualquer dos casos, se mobilizava o debate em uma referencialidade

transnacional. Nem obrigatória nem tendencialmente predominante, talvez.

Mas, sem dúvida, passível de ser efetivada em circunstâncias determinadas

e em função de razões justificadas. Estas, contudo, não se resumiam à

Bandos sediciosos, em geral movidos por fanatismo religioso, e

preconceitos contra a prática do sistema métrico, assaltaram as povoações,

destruindo os arquivos de algumas repartições públicas e os padrões dos

novos pesos e medidas»”. Idem ibidem, p.624-625. Grifos no original. 22 Vê-se que a pena de Oliveira Martins habilmente cria a imagem de um ultramontanismonecessariamente vencido pela marcha histórica. O uso político no debate desta compreensãofilosófica da história é claro. Nesta toada, escreverá que “além do meu respeito, osultramontanos têm direito a exigir de mim a compaixão que se deve a todos os vencidos. Ninguém bateu já mais no inimigo caído. Se a baba lhe escorre dos lábios nas vascas de umaagonia longa, se a dor lhe arranca impiedades e blasfémias, nem a baba nem as imprecações noschegam a todos os que temos serena a consciência e piedoso o coração. Outro é o nosso Deus, eno vosso, como bons filhos, respeitamos um momento sublime da revelação histórica. Podeisinsultar-nos, não podeis vencer-nos; e se por desgraça, no revoltear torvo dos incidentestempestuosos da vida das nações, um acaso vos desse uma hora de poder efémero, nem asvossas forças, nem as vossas fogueiras alterariam nunca a serenidade do nosso ânimo…”. Idem, ibidem.

24

fluidez da informação, nem a matéria de princípio filosófico. Estando em

causa as relações entre Portugal e Brasil, aquela referencialidade era – para

alguns – matéria de sangue.

1.1.2. É o que se deduz quando passamos à abordagem do problema da

imigração portuguesa no Brasil, perspectivado por Oliveira Martins nas

linhas da citada coluna “Portugal e Brasil”. A dramaticidade que se

reconhece à questão – “profunda, séria, a mais grave de todas as que se

prendem com a vida íntima ligada das duas nações que falam a língua

portuguesa”, conforme dirá – é bem evidente.

Na coluna de 15 de Fevereiro de 1875, P. de Oliveira informava os

leitores sobre “as questões do Pará [episódios de animosidade contra os

portugueses, verificados igualmente em Pernambuco e Sergipe, províncias

do nordeste brasileiro], questões, ao que parece, e felizmente, terminadas e

em que os dois governos do Brasil e de Portugal também felizmente

reconheceram que não vale a pena quizilar-se. Ao contrário, cumpre unir-se

para fazer calar as declamações torpes de um papel que se diz Tribuna,

quando devia chamar-se Taberna” (23). Aliás, para o colunista, “pouco vale

repetir os incidentes conhecidos do conflito que obrigou o governo

português a mandar às aguas do Brasil a corveta Sagres; além de

conhecidos, a sua importância é a de meros e transitórios acidentes de uma

questão permanente e viva: a translação dos portugueses para o Brasil, o

retorno dos brasileiros para Portugal” (24).

O discurso é prudente. O que está em causa – as relações luso-

brasileiras, assunto referente “ao bem comum” – é demasiado sério para

agir de outro modo. Considera, por isso, que inquirir sobre “até que ponto a

questão puramente brasileira da reacção ultramontana contra a maçonaria

23 Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo 1º, de 15 de Abril, 1875, p.111. 24 Idem, ibidem.

25

influía na animosidade activa dos brasileiros do norte contra os

portugueses, seria tornar a levantar uma questão que todos devemos

esquecer para o bem comum”. Oliveira Martins estava ciente que, nas

questões que envolvem nacionalidades, os ânimos podem insuflar-se e, por

isso, alerta para que não se derrame o “sangue de alguns portugueses” que

“avermelhou tragicamente o episódio” (25).

Insiste na imagem do sangue derramado. Procura-lhe as causas:

afinal, a “troca de provocações hostis entre os jornais portugueses e

brasileiros apenas revela uma face puramente exterior do conflito”, pois se

é verdade que a causa imediata “foi o modo porque no norte do Brasil se

tem desde certo tempo entendido a liberdade do trabalho”, isso não abona o

“senso económico dos governos provinciais, ou abona então

demasiadamente o amor de um patriotismo irreflectido: o trabalho é

cosmopolita”. Ora, assim sendo – e dado que “há anos já, o governo da

província do Pará retirara o subsídio à companhia de navegação do

Amazonas, pelo facto dela empregar em seu serviço principalmente

portugueses” – Oliveira Martins acredita que a política da nacionalização é

um grande erro. Para ele, a “nacionalização quer dizer exclusão dos

portugueses do negócio de retalho, isto é daquele que mais fácil e

numeroso emprego oferece aos imigrantes”– sendo a responsável pelo

“drama já avermelhado de sangue” (26).

Expressões como esta vão tornando explícita a motivação profunda

das preocupações do autor. Frente à onda nacionalista no comércio de

retalho – cujos episódios o cronista conhecia bem, comprovando, uma vez

mais a circularidade informativa transatlântica (27) – declara, em tom de

25 Idem, ibidem, p.111-112. 26 Idem, ibidem, p.112. 27 Do seguinte modo rebate aos que pregam a nacionalização do comércio, citando uma portariado governo do Rio de Janeiro ao governador do Pará: “«Em virtude do artigo 16.º do actoadicional devia v. ex.ª ter negado a sanção à referida lei, e, se porventura a assembleiaprovincial a sustentasse tal qual por dois terços dos votos, suspendido a sua execução… Que,

26

queixa, que “abrir bem largo esses braços, eis o que o Brasil não faz”.

Trata-se de um grave erro que, em seu entender, vitimiza a “própria

sociedade brasileira, portuguesa de sangue, que encontraria nos novos

adeptos um rejuvenescimento de seiva, e o meio de encaminhar para a

fixação de uma nacionalidade e de uma raça, coisas que não conseguiu

ainda atingir” (28). A cultura brasileira, para Oliveira Martins, é

“portuguesa de sangue”. Eis por que motivo a incorporação portuguesa no

Brasil não poderia deixar de ser benéfica, favorecendo a fixação da nação e

da raça; eis por que motivo os incidentes do Pará relatados em 1875 “se

prendem a um problema reciprocamente grave para as duas nações

portuguesas”. Eis, enfim, o motivo pelo qual uma alteração de regime

político no Brasil não poderia deixar de perturbar o autor de O Brasil e as

colónias portuguesas.

1.1.3. Poucos anos depois, na sequência da Proclamação da República no

Brasil, em 1889, Oliveira Martins seguirá intervindo criticamente através

das suas crónicas nos periódicos portugueses.

Nesse ano de 1889, no jornal O Tempo, um artigo chamado “A

República no Brasil”, considera que “parece confirmar-se a notícia da

incomparável tolice que o Brasil fez, proclamando a República, destruindo

esse Império a cuja sombra e pela mão de um príncipe tão patriota como

sábio, conseguira ganhar foros de nação, avigorar-se, desenvolver-se,

aconselhando o interesse público que para todos os estrangeiros residentes no império semantenham os princípios de igualdade comercial e civil, cumpre aos presidentes provinciais, emtodos os casos em que os projectos de lei provinciais contrariem tais princípios, usar dos meiosque lhes faculta o acto adicional»”. Não deixa de ser interessante que, frente ao conflito entrejornais brasileiros do norte do país e os trabalhadores imigrantes portugueses na região, ocronista lembre um documento oficial da sede do Império, dizendo ainda: “oxalá que o espíritopúblico dos brasileiros se inspirasse sempre das mesmas doutrinas que inspiram as altas regiõesgovernativas: folgaria com isso o direito, faria bem ao nome do Brasil e melhor à suaprosperidade”. Idem, ibidem, p.112-113. 28 Idem, ibidem, p.113.

27

vencer os seus inimigos e adquirir um lugar proeminente na América do

Sul” (29).

Para ele, a Proclamação da República no Brasil é “mais do que um

erro funesto”: trata-se de “uma ingratidão para com esse homem venerando

carregado de anos e serviços que consumiu a vida a dotar o seu Império

com os frutos de uma administração em que a energia se aliou sempre à

prudência, a força à arte, alternando segundo as necessidades”. O autor de

O Príncipe Perfeito entende que a unidade territorial brasileira foi obra do

Império e, por isso, o vemos temer pela desagregação “dessa grande

América portuguesa, tão grande como a Europa, tão diversa em interesses,

em tradições e em temperamento nas suas várias províncias, desde os

sertões do Amazonas, pelo centro agrícola de S. Paulo, até aos pampas do

Rio Grande”. Avalia que a unidade nacional brasileira só era possível pela

forma administrativa do Império de D. Pedro II. O federalismo republicano,

vaticina, “será inevitavelmente o desmembramento [do] grande Império

neo-português” (30).

A sua argumentação neste sentido não hesita em se ancorar na

experiência histórica. Sustenta que, ao contrário da colonização da América

do Norte, que “marchou em coluna cerrada” de Oriente a Ocidente, a

colonização “hispano-portuguesa” dimanou “criando núcleos dispersos,

gânglios de população que só o trabalho lento dos séculos virá a aproximar

e fundir”. Esses núcleos mantinham-se unificados enquanto “enfeixados

pelo vínculo da monarquia”. Por isso, acredita que, abolindo-a, a República

tenderá para a desagregação (31). Não pode, nestas circunstâncias, deixar de

exprimir as suas reservas mais vincadas à mutação política brasileira,

registrando que “ao apreciar a revolução do Brasil, aplauda-a quem quiser: 29 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.241. 30 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.242. 31 Idem, ibidem, p.243.

28

nós não, porque aplaudindo a proclamação ociosa de um fórmula de

governo, indiferente em si e nefasta actualmente para o próprio Brasil,

aplaudiremos a iminência de graves perigos para esta nossa terra que

adoramos, e que foi a mãe pátria da nossa gloriosa colónia” (32).

Cumpre chamar a atenção, neste ponto, para o fato de as

preocupações de Oliveira Martins resultarem da percepção do risco

econômico que presumia vir a abater-se sobre Portugal. Esta perspectiva

não lhe é estranha. Sabe-se da sua particular sensibilidade para com o

problema emigratório, questão à qual volta com insistência, na linha do que

fizera já em 1875, acentuando a forte dependência econômica portuguesa

da respectiva capacidade para estabilizar a comunidade migrante e o

correspondente caudal de retorno financeiro (33). Mas parece inegável que

suas alusões ao futuro brasileiro estão marcadas por um movimento de

auto-referencialidade que reflete a própria simbologia ligada às dimensões

positivas do período colonial português. Por isso dizia que “ao Brasil

queremos, pois, como se ainda fosse uma parte da pátria portuguesa, e é

32 Idem, ibidem,p.244-245. Grifos nossos. 33 Ele mesmo o manifesta: “já não é hoje segredo de ninguém que o rendimento mais importantee mais líquido da nossa depauperada economia nacional é a emigração para o Brasil. Exportamos para lá por ano trinta ou quarenta mil portugueses; recebemos de lá por ano dez ouquinze mil contos de réis. Se esta corrente de gente que sai e de dinheiro que vem, se deslocar, as consequências serão gravíssimas”. Para Oliveira Martins “o jacobinismo brasileiro escreve nasua bandeira a nacionalização do comércio de retalho, eufemismo sob que se esconde a guerramortal de inveja ao emigrante português, que disputa aos indígenas, à força de economia etrabalho, o mercado da venda a miúdo”. O autor da Circulação Fiduciária proclama que nãoteme análogas modificações no regime político português, ao afirmar que “não receamos paraPortugal as consequências políticas da revolução”, pois “não é do Brasil que nos virá nenhumanovidade constitucional, nem temos a aprender com as lições do seu governo, mormente quandosão da natureza destas”, embora manifestasse receio pelas “consequências económicas daloucura política do Rio de Janeiro”. Oliveira Martins volta a este mesmo tema, no seu artigo “Anacionalização no Brasil”, também escrito em 1889, para o jornal O Tempo. Neste texto, dámaior ênfase ao problema, informando que o “sob o ponto de vista português, o decreto denacionalização promulgado pelo governo provisório é manifestamente prejudicial para nós. Eoxalá não seja esse o prólogo de outras medidas que porventura venham afectar as nossasrelações políticas, e principalmente as económicas, com a grande nação da América do Sul”. Idem, ibidem, p.244-247.

29

por isso que estas palavras nos saem espontâneas e simples dos bicos da

pena” (34).

Daí o lamento: “o Brasil praticasse além de um acto de insensatez,

uma ingratidão”. Ingratidão para com a obra do Império brasileiro, para

com a união territorial, mas também – e sobretudo – para com o legado

português na América. Implicitamente, percebe-se que os acontecimentos

políticos brasileiros são suscetíveis de macular “a obra” lusitana na história,

afetando a “moral” da coletividade em causa, bem como o padrão de

relacionamento projetado para o futuro. E mesmo reconhecendo-se que

“um país, chame-se como se chamar, não passa de amigo a inimigo nosso

porque mudou a sua forma de governo”, e que “a nossa amizade é tão

grande como o nosso parentesco”, alguma ansiedade se deverá

compreender-lhe ao julgar “o passo errado que deu o Brasil, e a

enormidade dos perigos em que se lançou a si – e também a nós” (35).

Estava em causa, afinal, o futuro de um dado passado (36). O mesmo é dizer

o futuro de uma comunidade luso-brasileira idealizada. Ou não será

precisamente isso que dirá o próprio Oliveira Martins, ao dar voz a todos os

que, como ele, “esperançados no crescer fecundo e harmónico de uma

nação neo-portuguesa na América, em vez de se sentirem entusiasmados,

[lamentam] ver assim posto em perigo o futuro da melhor obra da história

portuguesa” (37)?

34 Idem, ibidem, p.245. 35 Idem, ibidem, p.245. 36 Está em causa, neste ponto, toda a complexa relação entre memória, presentificação damemória e projecção do futuro, tal como a tem analisado Fernando Catroga e no sentido que elarecebe a partir dos estudos de Miguel Baptista Pereira, ao afirmar que “se houve passado, presente e futuro no passado, há passado, presente e futuro no presente, haverá passado presentee futuro no futuro”. Veja-se o enquadramento teórico da questão em PEREIRA, MiguelBaptista. “Filosofia e memória nos caminhos do milénio”, In: Revista Filosófica de Coimbra, vol.8, n.º16, Outubro de 1999; e veja-se, de igual modo, o desenvolvimento dado ao assunto, apartir daquela expressão, por CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p.32. 37 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.249-250. Grifos nossos.

30

1.1.4. Sem surpresa verificamos a incomodidade do autor frente à

proposta do governo provisório republicano do Brasil, que apontava para a

naturalização dos imigrantes residentes em solo nacional. Obviamente, a

atenção martiniana voltava-se para os portugueses, pois “cumpre-nos olhar

pelos nossos”, chamando atenção “do nosso Governo para a protecção de

que carecem os duzentos mil (ou mais) portugueses convidados ou

coagidos a renegar a sua pátria” (38).

A diferença regimental que a proclamação da República introduziu

na “jovem” nação brasileira ía bastante além de um fato político e

administrativo. Compreende-se, assim, que o autor da História da

Civilização Ibérica tema pelo futuro do elemento “neo-português” no

Brasil. E, como é sabido, se mesmo depois da Independência, ainda havia

um laivo de sangue bragantino a unir as duas monarquias liberais de fala

portuguesa, a República fechará esta porta de contato. Abrirá outra,

alternativa: a da incorporação de imigrantes – não exclusivamente ibéricos

ou mediterrâneos – para a formação do futuro do Brasil. Neste quadro, o

que restaria da grande obra de Portugal na História, simbolizada muito

fortemente pela grandeza brasileira? Nesta perspectiva, Oliveira Martins

teme a intensa incorporação de imigrantes estrangeiros de procedências

distintas (como alemães e italianos, por exemplo), a qual poderia concorrer

para uma gradual perda da importância da lusitanidade na formação do

brasileiro.

Em contraposição à experiência norte-americana, ressalta que “a

nacionalização imediata de consideráveis massas de estrangeiros não tem

nos Estados Unidos gravidade, porque a grande maioria dos imigrantes

pertence ao próprio fundo da raça que constitui a nação americana, e os

38 Idem, ibidem, p.250.

31

laivos de sangue estranho são assimilados e absorvidos rapidamente” (39).

Diferente é o caso brasileiro, pois, “quando se observam os números da

imigração de estrangeiros, sente-se o perigo do futuro”. Afinal, “já lá vai o

tempo em que o elemento português preponderava de um modo quase

absoluto. Nos quinze anos de 1873 a 1887 entraram no Rio de Janeiro 336

mil imigrantes, e destes eram 129 mil italianos, 121 mil portugueses, 33 mil

alemães e austríacos, 17 mil espanhóis, e o resto de outras origens” (40). Diz

mais: “a imitação precipitada dos processos yankees pode dar rapidamente

um incremento febril ao Brasil, mas tornará essa região do mundo um

caravanseralho de povos e não uma nação, como os Estados Unidos são há

muito, e como o Brasil se encaminhava para ser à sombra do Império”(41).

Invariavelmente, a sua pena encontrava a questão da unidade

territorial brasileira. Assim sucedia mesmo depois de os acontecimentos

relativos à mudança de regime terem perdido alguma novidade. Prova disto

é o seu texto “A Unidade do Brasil”, de 1890, também publicado no jornal

O Tempo, texto esse em que a sua análise de uma situação concreta – os

problemas havidos na fronteira sul do Brasil – vinha comprovar, do seu

ponto de vista, o acerto dos seus anteriores vaticínios acerca da

desagregação brasileira. Para ele, “os traços [do] desmembramento da

nação neo-portuguesa da América” podiam já ser vistos “na separação do

Rio Grande do Sul, região de pampas, que pelos interesses, pelos costumes

e pela tradição, inclinaria para o lado do Uruguai”. Informado pelas

notícias trazidas pelo telégrafo, assim como pelas demais “informações

fidedignas que recebemos”, percebe nesse episódio o levantar da “primeira

ponta do véu escuro dos perigos que corre a integridade do Brasil” (42).

39 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.248. 40 Idem, ibidem, p.249. 41 Idem, ibidem, p.248. 42 Uma destas informações noticiava o temor do governo provisório de uma sublevação doEstado do Rio Grande do Sul. Frente a este possível acontecimento, segundo as informações

32

Parece interessante notar que o autor toma o critério histórico como

barómetro interpretativo das questões políticas de seu tempo. Daí que

remeta à época colonial, cotejando as experiências dos modelos espanhol e

português de colonização com a política internacional que envolvia duas

Repúblicas latino-americanas, no final do século XIX. Daí que tivesse

falado na ambição argentina pela reconquista do “antigo vice-reinado” de

Buenos Aires, bem como remetesse ao “erro histórico da ocupação

portuguesa nos tempos coloniais”, por não ter levado “a fronteira do Brasil

até ao Rio da Prata”. Erro este “até certo ponto emendado pelo Império em

1851, quando deu a mão a Urquiza e tomou Montevideo a Oribe, criando a

república independente da Banda Oriental, ou do Uruguai” (43). Bem vistas

as coisas, estas questões fronteiriças surgem como prova da má opção que

constituía, para o Brasil, no contexto sulamericano, o regime republicano

(44). “O abandono de uma parte do solo do Brasil” – dirá – é fato

“gravíssimo para a apreciação do mérito do governo que se substituiu ao

Império; gravíssimo pelos sintomas que denuncia quanto à sua estabilidade

no ponto de vista da integridade do Brasil; gravíssimo, finalmente, por tudo

isto para quem, como nós, tem no Brasil tão sérios interesses a defender”

(45). Do ponto de vista português, não duvida que “se agora andamos acesos

em justa indignação contra a Inglaterra pelo ultraje que recebemos dela,

divulgadas pela crônica de Oliveira Martins, “para conseguir a pacificação do Rio Grande emcaso de revolta, o governo provisório lembrou-se de solicitar o auxílio e a intervenção armadada República Argentina, ou contra o Rio Grande isoladamente, ou contra esse Estado unido àRepública do Uruguai”. O que lhe causa frémito é o fato de que, em troca de auxílio armado, oBrasil fosse obrigado a ceder parte de seu território à República Argentina, bem como“consentir na anexação do Uruguai, desinteressando-se também o Brasil pelo Paraguai, que osargentinos poderão igualmente anexar, realizando assim a sai ambição de unificarem numarepública toda a dependência do antigo vice-reinado de Buenos-Aires” Idem ibidem, p.274. 43 Idem, ibidem, p.273-274.44 Para Oliveira Martins, durante o Império, “o Brasil, exercendo a hegemonia, libertava oParaguai, numa campanha em que tinha por aliados os argentinos; agora, vinte anos depois, éele o protegido que pede aos argentinos para lhe fazerem a polícia interna, abandonando aspequenas repúblicas do Prata à ambição do povo que em breves anos será absoluto senhor daAmérica meridional”. Idem, ibidem, p.274. 45 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.275.

33

não devemos esquecer que, para lá do Atlântico, no Brasil, nos achamos a

braços com um problema materialmente mais sério. A questão inglesa não

é, por infelicidade nossa, a única, embora seja a mais dolorosa!”(46).

1.1.5. Acontece que a apreensão de Oliveira Martins relativa à

manutenção da integridade territorial brasileira não era opinião isolada. Nas

páginas da Revista de Portugal (47), observamos aproximadamente a

mesma avaliação a partir de outras autorias. Tomemos como exemplo o

texto do brasileiro Eduardo Prado, intitulado “Destinos Políticos do Brasil”

(48).

Escrevendo de Leipzig, na Alemanha, em Setembro de 1889 – e,

portanto, dois meses antes da Proclamação da República no Brasil –, vemos

Eduardo Prado preocupado em defender a existência do regime

monárquico. Não é casual que ele centre as discussões políticas nacionais

em duas questões-chave: i) a continuidade da monarquia e ii) a

continuidade da união territorial do Brasil. Diante destas questões, Prado

enumerava duas tendências opostas: uma de destruição e outra de

conservação. O movimento republicano congregaria, para ele, todas as

forças destrutivas. O autor de A ilusão americana considera que o sentido

46 Idem, ibidem, p.276. 47 Concordamos com Aparecida de Fátima Bueno quando considera a Revista de Portugal “umespaço importante para pensarmos nas inter-relações luso-brasileiras do período”. Importaressaltar que acreditamos que o que a autora afirma em relação à Revista de Portugal, dirigidapor Eça de Queirós, sustentamos ser a tónica da época que vai de 1870 até o final do século, englobando não apenas este periódico, mas vários outros, desde a Revista Ocidental, dirigidapor Antero de Quental e Batalha Reis, passando pela Revista de Estudos Livres, bem como pelaRevista Brasileira. No final das contas, trata-se de atentar que este foi o tom crítico dasGerações de 1870, portuguesa e brasileira, conforme a expressão de Beatriz Berrini, jámencionada neste trabalho. Para mais informações, consultar BUENO, Aparecida de Fátima“Relações conflituosas: o Ultimatum inglês na Revista de Portugal”. Trabalho apresentado noâmbito do VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, em Coimbra, nos dias 16,17e 18 de Setembro de 2004. 48 Eduardo Prado publicou um total de oito textos na Revista de Portugal. Destaca-se que, apenas no primeiro, escrito ainda antes do 15 de novembro de 1889, ele assina com seu nome. Nos restantes usará o pseudónimo “Frederico de S.”. Para uma interessante análise dasinterfaces luso-brasileiras no pensamento de Eduardo Prado, sugerimos a primeira parte deBERRIEL, José Carlos. Tietê, Tejo, Sena. A obra de Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000.

34

de uniformização política é o fator de agregação dos republicanos da

América, de norte a sul; porém, a ênfase neste elemento “esquece que os

Brasileiros, distinguindo-se dos outros americanos ingleses e espanhóis, na

origem e na língua, bem podem também distinguir-se deles no modo de

governo” (49). O Brasil, por conseguinte, é caso à parte: “o Brasil é na

realidade um país indisciplinado. Como Portugal, ele foi formado

socialmente debaixo da disciplina da Igreja e teve dois séculos do ensino

dos jesuítas. A ninguém os substituiu. Os países da Europa têm a força das

tradições; a Inglaterra a disciplina do puritanismo, regendo também pelo

seu prestígio a grande comunidade norte-americana; a Alemanha achou na

disciplina militar o correctivo da destruição de autoridades feita pelos

filósofos. No Brasil nada disso existe. A escravidão tornou a ideia e o

sentimento do dever social da obediência coisas humilhantes e repulsivas”

(50). Mais ainda, esta especificidade faz entroncar diretamente, por via da

tradição histórica, o destino brasileiro com o de Portugal, no sentido em

que, afirma Prado, “só pelas grandes qualidades colonizadoras dos

portugueses, pela fecundidade das suas alianças com a raça indígena que

eles tiveram de subjugar à força de coragem e valentia, é que o Brasil pôde

ser feito, apesar de todos os erros do governo de Portugal”. Para ele, “os

descendentes dos Portugueses têm progredido desde que lhes coube a

responsabilidade da direcção da nacionalidade, tal qual ela existia já em

1822, isto é, unificada pela origem, pela língua, pela religião, pela

invencível força das coisas, apesar das divisões políticas do território,

capitanias ou províncias, datando de três séculos” (51).

À semelhança da maioria dos cronistas da época, também Prado

não concebe a projeção no futuro à margem da reflexão sobre a tradição 49 PRADO, Eduardo, “Destinos Políticos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto:Editores Lugan & Genelux, 1889, p.470. 50 PRADO, Eduardo. “Destinos Políticos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto:Editores Lugan & Genelux, 1889, p.476-477. 51 Idem, ibidem, p.480-481.

35

histórica, e, com ela, sobre a identidade dos povos. Pelo que a intersecção

de portugueses e brasileiros – responsável que era, para este monarquista

convicto, pela unidade do Império, essa “unidade fundada na tradição

histórica, no facto de ontem e de hoje, na língua, na religião” (52) – só

poderia entender-se como a decorrência indeclinável desse aspecto. É bem

na esteira deste pressuposto que vemos Eduardo Prado em busca da sua

definição do brasileiro. Segundo ele, o “romance nacional e o teatro ainda

não criaram o tipo, mas ele, sob os seus aspectos tropicais, isto é, mais

exuberante, é um misto do Julião de Eça de Queirós e do Homais de

Flaubert” (53). Noutra passagem, aduz que “o brasileiro porém tal qual ele

começa a se desprender da sua formação etnográfica, tem a sensibilidade

da raça africana, a paciência do índio temperando a força do Português que

ele mesmo é um calmo ao lado do Espanhol” (54).

Bem se compreende, neste âmbito, a sua atitude compreensiva e

interessada no relativo à contribuição do imigrante. Ao reconhecer que “o

elemento estrangeiro é no Brasil a civilização”, por ser o “professor

nacional do trabalho”, prevê que “dos variados elementos estranhos e

indígenas com que se está formando a nacionalidade do futuro, saia um

povo que, em relação às instituições herdadas de seus antepassados, tenha

aquele nobre sentimento de confiança, de dedicação e de lealdade para o

qual, na língua política da Inglaterra, se inventou a bela palavra – loyalism”

(55).

Dois meses antes da proclamação da República, Eduardo Prado

roga para que se “renove a monarquia”. Os acontecimentos seguintes não

favorecem os seus desejos. Contudo, vemo-lo, logo a seguir o 15 de

novembro de 1889, escrever um interessante artigo, impresso também no

52 Idem, ibidem, p.489. 53 Idem, ibidem, p.474-475. 54 Idem, ibidem, p.488. 55 Idem, ibidem, p.491.

36

periódico de seu amigo Eça de Queirós: a Revista de Portugal. Assinando

sob o pseudónimo “Frederico de S.”, Prado dá à estampa ao texto intitulado

“Os Acontecimentos do Brasil”, escrito em Novembro de 1889. Informado

pelo que “o cabo submarino tem transmitido” da América do Sul, comenta,

para seus leitores, as novidades sobre a troca de regime no Brasil. Com fina

ironia, Prado transcreve trechos de telegramas, os quais, nas concisão de

suas linhas, considera “singularmente humorísticos”. Eis o excerto, tal

como surge publicado na Revista de Portugal:

«A tropa em estado de revolta. Reina tranquilidade. – O imperador em Petrópolis. Completa paz. – Foi preso o ministério. População calma. – Foi proclamada arepública. Tudo inalterado. – O Imperador preso no seu palácio. Ordem perfeita. –Fica constituído o seguinte governo provisório: Marechal Deodoro da Fonseca, presidente sem pasta; Campos Sales, ministro da justiça; Quintino Bocaiuva, ministro dos negócios estrangeiros; Aristides Lobo, ministro do interior; RuiBarbosa, ministro da fazenda; chefe de divisão Wandelocock, ministro da marinha;Demétrio Ribeiro, ministro da agricultura, comércio e obras públicas. As provínciasaderem. O Sena, o Conselho de Estado, foram abolidos. A Câmara dos Deputadosfoi dissolvida. Reina sossego. – O Imperador e a família imperial embarcaram paraa Europa. – A Bahia não adere ao movimento. Absoluta unanimidade, etc. etc.»(56).

Face à propositada crueza da secura telegráfica, remata: “não

podemos perceber como todas estas coisas possam influir nos destino do

Brasil. Desejaríamos saber se o povo brasileiro só com estas mudanças se

vai tornar mais civilizado, mais enérgico, mais apto para realizar a sua

missão na história” (57).

Sua ironia desemboca na ideia de “missão histórica”. Uma missão

histórica brasileira. A pressuposição de um passado e de um futuro em

mútua interpelação. Precisamente a “missão [que] ficará desde logo

frustrada se a república federal importar no enfraquecimento da unidade.

Muitos pensadores estrangeiros afirmaram já que o Brasil se dividirá em

vários Estados independentes; e que as rivalidades regionais de hoje

56 PRADO, Eduardo (Fredeirico de S.), “Os Acontecimentos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889, p.771-772. 57 Idem, ibidem, p.774.

37

facilmente se transformarão em hostilidade inextinguível. A comunidade de

origem, a raça, a língua, a religião idênticas, não são suficientes garantias

da conservação da harmonia” (58). Os temores de Eduardo Prado pelo

rompimento da unidade, feito paralelo do rompimento da missão histórica,

remetem para os temores que detectamos já em Oliveira Martins. Não por

acaso, é a ele que Prado cita, de modo explícito, numa clara assunção de

similitude de pontos de vista quanto ao tema em causa, em passagens bem

demonstrativas da rede discursiva na qual o seu discurso se inseria: “como

muito bem observou há dias o Spectator, de Londres [Oliveira Martins

escrevia também utilizando o pseudónimo Spectator], tratando do Brasil,

não há no mundo dois povos que tenham ódio recíproco tão profundo como

os Chilenos e os Peruanos, e ambos descendem de espanhóis, falam a

mesma língua, têm a mesma religião”, exemplos suficientes para sustentar

a previsão de que, no Brasil, a “unidade certamente desaparecerá”. Eduardo

Prado chama ainda a atenção para “um artigo do Tempo atribuído ao Sr.

Oliveira Martins, artigo que (êxito para a imprensa portuguesa) tão citado

foi na imprensa europeia, e que tantos comentários aprovativos despertou

da parte do Journal des Débats, do Temps, do Times e da Neue Freie Press,

prevê a divisão do Brasil em três novos estados, a Amazónia, um estado

central, e o extremo sul destinado a ser absorvido pela República

Argentina, logo que esta, cessando a oposição do Brasil, possa realizar o

seu velho ideal de reconstituir republicanamente o antigo vice-reinado de

Buenos Aires, que compreendia o Uruguai e o Paraguai”(59).

Registre-se ainda que, à semelhança de Martins, Prado concede

centralidade à figura do Imperador. O cronista Frederico de S. –

pseudónimo de Eduardo Prado – diz que “esse velho deixa um país onde

começou a reinar aos cinco anos de idade; e tão brasileiro foi ele que a sua

58 Idem, ibidem, p.774-775. 59 Idem, ibidem, p.774-775.

38

Biografia não deve ter este nome, mas sim o de História do Brasil. Caiu

pelo excesso de algumas das virtudes que hão-de imortalizá-lo. O que era a

inteligência nacional do Brasil há cinquenta anos? Basta dizer que era

decerto inferior à de Portugal no começo do século…” (60).

As opiniões de Prado encontram eco no diretor da Revista de

Portugal, José Maria Eça de Queirós. À semelhança daquele seu amigo

brasileiro, Eça utiliza um pseudônimo – João Gomes – para dar suas

impressões sobre a deposição da monarquia brasileira. Seu texto intitula-se

“Notas do Mês” e é iniciado em tom jocoso, dizendo que a “revolução do

Brasil (tal como contam os telegramas passados através da censura

republicana) é menos uma revolução do que uma transformação – como

nas mágicas” (61). Trata-se, conforme João Gomes/Eça de Queirós, de uma

revolução “feita antes do almoço”, que foi “simultaneamente grandiosa – e

divertida”. E continua, ao analisar a relativa facilidade e rapidez com que a

República suplantou a Monarquia, considerando que “o Imperador tinha-se

a tal ponto desimperializado, que entre Monarquia e República não havia

realmente senão um fio – tão gasto e tão frouxo, que, para o cortar de um

golpe brusco, bastou a espada do Marechal Fonseca” (62).

Tal como Eduardo Prado, seu companheiro dos convívios luso-

brasileiros em Paris, Eça considera a “revolução republicana” um

movimento de bacharéis – Prado já havia apontado nesse sentido no seu

“Destinos Políticos do Brasil”. Estes a teriam proclamado com intuito de

poderem realizar “o velho ideal jacobino, já entre nós desacreditado e um

pouco obsoleto, e que no Brasil domina ainda as inteligências

tropicalmente entusiásticas e crédulas” (63). Tal como Prado – e tal como

Oliveira Martins – Eça estava ciente das possíveis consequências da 60 Idem, ibidem, p.775. 61 QUEIRÓS, Eça (João Gomes). “Notas do Mês”. Revista de Portugal, volume I. Porto:Editores Lugan & Genelux, 1889, p.777. 62 Idem, ibidem, p.778. 63 Idem, ibidem, p.778.

39

progressiva republicanização da América. No seguimento daqueles autores,

considerará que um “modelo perigoso para o Brasil estava nos Estados

Unidos do Norte, cuja imensa civilização deslumbrava os brasileiros, que

não reflectiam que é o caracter das raças, e não a forma dos governos, que

faz ou impede as civilizações” (64). Por fim, também Eça não podia deixar

de mencionar tanto as modificações que o novo regime visava para um

comércio de retalho (envolvendo razoável quantidade de portugueses), bem

como não podia de dar seu contributo para o debate em torno da unidade

territorial brasileira.

Por isso, afirma que “com o Império, segundo todas as

possibilidades, acaba também o Brasil”. Numa análise semântica que

remete à história, Eça afirma que “este nome de Brasil, [que] começava a

ter grandeza, e para nós portugueses representava um tão glorioso esforço,

passa a ser um antigo nome da velha Geografia Política”. Para ele, trata-se

de uma questão de tempo, pois “o que foi o Império estará fraccionado em

Repúblicas independentes, de maior ou menor importância”, na medida em

que “as rivalidades que entre elas existem; a diversidade do clima, do

carácter e dos interesses; e a força das ambições locais” não conseguirão

manter unido o Brasil, indicador maior da obra histórica de Portugal, pois

“não está forçado a conservar-se unido, pelo receio dos ataques ou

represálias de uma metrópole forte, de quem acabasse de se emancipar”

(65). Daí que vaticine, utilizando os demais países latino-americanos como

exemplos históricos, que no que um dia foi o Brasil, “haverá Chiles ricos, e

haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda

coberta com os cacos de um grande Império” (66).

64 Idem, ibidem, p.778-779. 65 QUEIRÓS, Eça (João Gomes). “Notas do Mês”. Revista de Portugal, volume I. Porto:Editores Lugan & Genelux, 1889, p.782. 66 Idem, ibidem, p.783.

40

Para além das suas manifestas diferenças contextuais, teóricas e

estilísticas, que, em qualquer dos casos, não podem omitir as afinidades de

princípio ou de ocasião, os textos de Oliveira Martins, Eduardo Prado e Eça

de Queirós entrecruzam-se em aspectos nodais da problemática relacional

envolvendo Portugal e Brasil. As correlações passíveis de serem

estabelecidas induzem à constatação de uma rede discursiva que, ao

encontrar expressão na complementaridade das respectivas intervenções, se

demonstra atuante e operativa no seio da escala cultural luso-brasileira. É

crível que, independentemente da singularidade das inspirações de cada um

desses autores, eles se mobilizassem, de acordo com a expressão

martiniana, “não apenas com aquela curiosidade que os fenómenos sociais

provocam, mas sim como quem se sente intimamente interessado, já pela

comunidade de sangue, já pelos nossos deploráveis erros” (67).

1.2. Divulgação Científica: critérios de recepção e alegoria do “povo

irmão”

Em franco desalinhamento com aquela linha interventiva,

desenvolvia-se outro entendimento dos sucessos políticos brasileiros

conotado com uma visão não já temerosa ou censória para com a influência

republicana, mas, bem ao contrário, estimulada pelas possibilidades

trazidas pela República ao intercâmbio luso-brasileiro. Deste ponto de

vista, Teófilo Braga, Teixeira Bastos ou ainda Júlio de Mattos, produzem,

se assim podemos dizer, uma rede discursiva alheia aos

fundamentosentretanto detectados em Eça, Prado ou Oliveira Martins: é

que para eles a República não afastaria simbolicamente o Brasil da tradição

67 MARTINS, J. P. de Oliveira. Política e História. Volume II (1884-1893). Lisboa: Guimarães& Cia Editores, 1957, p.284. Grifos nossos.

41

portuguesa, tão pouco acarretaria a potencial desagregação territorial

brasileira. Os positivistas portugueses viam no movimento republicano

brasileiro um signo que propiciaria uma reaproximação luso-brasileira.

Nesse círculo de ideias, as novas bases de relacionamento político e

cultural seriam dadas pela filosofia positiva. Assim já se vislumbra outro

nível intercambial constituído pela divulgação científica. O funcionamento

desta rede – atestada pelo progressivo acolhimento dos textos publicados

no Brasil por parte das revistas de cunho científico portuguesas –, obriga-

nos a considerar o modo como determinado entendimento da ciência

participa na definição dos circuitos culturais luso-brasileiros.

2.1.1. Comecemos por explicitar a referida dinâmica

científica. Nada melhor, para esse intuito, que apreciar as condições de

divulgação e recepção da obra de Sílvio Romero A Filosofia do Brasil. Este

livro foi editado, em 1878, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, pelo

alemão Carlos von Koseritz, figura que teve um importante papel na

divulgação científica no sul do Brasil, bem como uma relativa importância

na configuração cultural luso-brasileira(68).

A ação de Carlos von Koseritz na divulgação das ideias científicas e

evolucionistas no Rio Grande do Sul foi marcante. Suas atividades de

crítica ao teologismo e à metafísica foram, entretanto, muito inspiradas no

68 De acordo com Lothar Hessel, Karl von Koseritz nasceu em Dessau, ducado de Anhaldt, Alemanha, em 03/02/1834 e faleceu em Porto Alegre, em 30/05/1900. Koseritz fez parte doExército e da Armada de sua pátria. Fixou-se no Rio Grande do Sul em 1851. Foi soldado emRio Grande e aprendiz de pintor, cozinheiro, carregador, operário e guarda-livros em Pelotas. Nesta última cidade, a partir de 1856, iniciou-se no magistério, dirigindo uma escola. Em 1862, dirigia outro educandário, o Ateneu Rio Grandense, na cidade de Rio Grande. Jornalista no sulda Província, foi diretor de A Sentinela do Sul, (1867) e do Jornal de Pelotas (1861), ambos dePelotas, e diretor do Ramilhete Rio-Grandense, em 1857, em Rio Grande. Como redator, trabalhou em O Povo e O Eco do Sul, ambos de Rio Grande. A partir de 1864, foi redator, já emPorto Alegre, de A Reforma (que dirigia em 1886) e do Jornal do Comércio. Em Porto Alegredirigiu mais, em 1886, o Combate, entre 1864 e 1881, o jornal na língua alemã DeutscheZeitung. Aqui fundou em 1882, também em alemão, o Koseritz Deutsche Zeitung. Foi deputadoà assembléia Provincial em 1882” HESSEL, Lothar Francisco. O Partenon Literário e sua obra. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1976, p.135.

42

exemplo vindo da escola do Recife, em Pernambuco, liderada por Tobias

Barreto e onde Silvio Romero teve papel fundamental. Desde 1876, ao

menos, por ocasião do manifesto de lançamento de seu jornal Echo do

Ultramar, editado em Porto Alegre, que Koseritz propagava o nome de

seus companheiros do nordeste brasileiro. Conforme vemos na nota de

abertura da publicação, afirmava que “muitas vezes fomos levados a

reflectir no facto de que a grande maioria dos nossos compatriotas” estão

completamente “isolados do movimento literário e científico das outras

nações”, mostrando-se “indiferentes pelo que neste sentido vai aparecendo

entre nós, ainda que em modesta escala”. Daí surge a tentativa de “fundar

um jornal semanal que a par da análise das novidades literárias se dedicasse

à reprodução, por meio de elaboradas e conscienciosas traduções originais,

daqueles trabalhos que modernamente têm avultado na Inglaterra,

Alemanha, França, Itália, etc.”, tendo como objetivo “vulgarizar entre nós

as ideias dominantes daqueles cultíssimos países”, no sentido de buscar

apresentar “aos espíritos de nossos patrícios os tesouros inexauríveis das

literaturas europeias”, contribuindo, assim, para a criação, no Rio Grande

do Sul, de “um genuíno gosto literário em lugar da exclusiva imitação de

autores franceses, que hoje impera entre nós”. Como inspiração “nesta

cruzada”, declara, enfaticamente, que “alistamo-nos de todo o coração sob

o pendão dos Tobias e Romeros que no Norte do Império já vão

encaminhados no que agora encetamos” (69).

Não surpreende, então, que Romero tenha encontrado junto a

Koseritz o apoio necessário à publicação do seu livro, em 1878 (70). Esse

69 Echo do Ultramar, literatura, ciências e artes. N.º1, Ano 1, 1876, Porto Alegre, p.1. 70 Sílvio Romero afirma que, no Rio Grande do Sul, a importante ação de Carlos von Koseritzna divulgação do monismo haeckeliano deve ser entendida pela influência sua e de TobiasBarreto, pois, segundo ele “durante vinte e dois longos anos, de 1852 a 1874, Carlos vonKoseritz fez jornalismo político em o Rio Grande do Sul, tomou parte em todos os debates mais notáveis ali traados, jamais fez a propaganda por Tobias iniciada no Recife em 1870. Em 1874 éque, havendo o autor sergipano enviado a Richard Mathes, redactor então da Deutsche Zietungdo Rio de Janeiro, a carta em língua alemã, cuja tradução vai neste livro, e logo após o

43

fato pode mesmo ser visto como a manifestação de importantes linhas de

aproximação entre os movimentos intelectuais brasileiros que estavam à

margem do centro irradiador, localizado no Rio de Janeiro. Afinal, Romero

produz sua obra ainda residindo no Nordeste brasileiro, mas vai publicá-la

no Sul, pelas mãos de um imigrante alemão. A suspeição de uma

assinalável abrangência quanto à divulgação das obras científicas, que já de

seguida examinamos em escala transatlântica, começa por ganhar

fundamento em escala regional – intrabrasileira, digamos assim. Entretanto,

em Portugal, a recepção da obra romeriana ficará a cargo da revista O

Positivismo, editada no Porto. Interessa-nos, agora, seguir os passos dessa

recepção.

O primeiro destaque vai para o fato de esta publicação ter sido

recebida, em Portugal, com todo o interesse e com apreciável concordância

de perspectivas, no âmbito de um trabalho conjunto de divulgação

científica e superação dos enclaves ideários do teologismo metafísico.

Marca de uma configuração cultural de mobilização das ideias num

movimento intelectual que entendia conjuntamente o processo de

renovação cultural empreendido nos dois países. Prova disso é a resenha

crítica escrita por Júlio de Mattos, em 1879, no fascículo de Junho/Julho da

citada revista O Positivismo. No texto, o autor começa por assinalar que

“um certo movimento filosófico se acentua actualmente no Brasil, como

em Portugal”. Na apreciação de Júlio de Mattos, entre Portugal e Brasil há

“uma elaboração mental, um princípio de renovamento literário, sintomas

um tanto raros ainda, é certo, mas que não deixam por isso de ter

importância para a previsão dos destinos espirituais destas nações”. E se é

possível traçar paralelos entre elas é porque “no Brasil, como cá, os prospecto do seu jornal naquela língua, Deutscher Kämpfler, e sendo uma coisa e outrapublicadas na gazeta de Mathes, Carlos von Koseritz exultou no Rio grande , transcreveu essesartigos e pôs-se ao lado de Tobias, que nessa faina nós acompanhávamos, em termos, desde1870”. ROMERO, Sílvio. “Considerações indispensáveis” In: BARRETO, Tobias. EstudosAlemães, Obras Completas. Volume XVIII. Sergipe: [s.ed.], 1926, p. XIX.

44

homens superiores que tentam colocar-se ao nível do pensamento moderno,

que procuram impulsar o espírito público no sentido da ciência e dos

métodos hodiernos, constituem na hora presente o menor número; formam

a pequena família dos que a ignorância geral chama revolucionários, a

despeito dos meios pacíficos da sua nobre propaganda e do intuito

construtivo que nunca os abandona no seu trabalho obscuro e

desprotegido” (71).

Certo é que, aliado à sabida influência francesa na propagação das

ideias positivas – tanto no Brasil como em Portugal – houve, também, em

simultâneo, um movimento de aproximação luso-brasileira. Como se diz

nas páginas de O Positivismo, os portugueses têm “visto com prazer na

revista de Filosofia Positiva de Littré e Wyroubouff e na Revista Ocidental

de Pierre Laffitte notícias favoráveis de trabalhos científicos empreendidos

no Brasil. Nós anunciamos também o aparecimento de mais um livro

brasileiro, que se inspira na direcção nova das consciências. A Filosofia no

Brasil de Sílvio Romero, é esse livro” (72).

Sendo o mencionado livro composto de uma série de apreciações

críticas sobre filósofos brasileiros (com destaque, entre outros, para

Mont’Alverne), Júlio de Mattos não hesita em citar trechos da obra

romeriana, aproveitando para, dessa forma, apresentar também a atmosfera

cultural brasileira da época conectada com a portuguesa (73). A

aproximação, portanto, efetivava-se. O que importa indagar são os

elementos filosóficos que a tornavam possível. A esse respeito, convirá

referir que, na obra mencionada, num excerto justamente impresso em O

Positivismo, Sílvio Romero de alguma maneira os assume: sendo um

71 MATTOS, Júlio de. Secção “Variedades”. O Positivismo: revista de filosofia. Ano I, n.º5, junho-julho, 1879. In: O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e JúlioMattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume I (números 1 a 6), 1879, p.402. 72 Idem, ibidem, p.402. 73 Idem, ibidem, p.402-403.

45

“«sectário convicto do positivismo de Comte, não na direcção que este lhe

deu nos últimos anos da sua vida, mas na ramificação capitaneada por

Émile Littré, depois que travei conhecimento com o transformismo de

Darwin, procuro harmonizar os dois sistemas num criticismo amplo e

fecundo»”. E, no seguimento da mistura de elementos do positivismo

comteano com o darwinismo, Júlio de Mattos expõe mais considerações de

Romero, designadamente aquelas em que ele realça sua demarcação

intelectual: “«sou sectário do positivismo e do transformismo? Sim;

entendendo-os, porém, de um modo largo e não sacrificando a minha

liberdade de pensar a certas imposições caprichosas que os sistemas

possam porventura apresentar»”(74).

Vislumbra-se, através destes pequenos excertos, um fator

importante a ter presente nos relacionamentos culturais luso-brasileiros: a

diversificada síntese pessoal que os intelectuais brasileiros e portugueses

faziam da miríade teórica presente nas décadas finais do século XIX. Logo,

é natural que Júlio de Mattos teça algumas considerações mais discordantes

face à autodefinição romeriana. Segundo ele, o brasileiro “não é tão

explícito como desejáramos sobre o que chama de criticismo nem sobre a

maneira por que consegue a conciliação do transformismo darwínico com o

Positivismo de Comte”. Contudo, acredita que “o ponto de vista do Sr.

Sílvio Romero é o mesmo que já exprimimos nesta Revista, no artigo

Ensaio sobre a Evolução em Biologia”, onde está manifesta a proximidade

entre as hipóteses evolucionistas e as positivistas” (75).

Nesta linha de comentários, Júlio de Mattos esclarece que, para ele,

“o transformismo baseado inteiramente sobre dados positivos e factos

averiguados” merece credibilidade positiva; pelo que, neste ponto, entre o

posicionamento de Romero e o dele próprio, segundo afirma, o “acordo é

74 Idem, ibidem, p.403. 75 Idem, ibidem

46

completo”. Contudo, o mesmo não acontece quanto ao termo “criticismo”,

tal como utilizado pelo brasileiro. Sobre este, Mattos relaciona-o com a

Filosofia Crítica, termo que “exprime um sistema muito diverso da

Filosofia Positiva”. E, recorrendo a Wyrouboff, em quem estriba o seu

próprio entendimento sobre a divergência teórica entre o criticismo e o

positivismo, Mattos avalia que “o termo Positivismo ou Filosofia Positiva

comporta em si maior extensão que aquela que lhe é dada pelo mentalidade

moderna desde que os seus sectários admitem, como o Sr. Silvio Romero, a

classificação hierárquica das ciências na ordem da generalidade

decrescente e complexidade crescente, a lei sociológica dos três estados, os

processos gerais de investigação, à posteriori e a impossibilidade radical de

resolver os problemas de origem e finalidade absolutas” (76).

Feitas estas considerações, termina a apresentação do livro de

Romero afiançando que, mesmo se “do novo livro A Filosofia no Brasil

não podemos dar aos nossos leitores uma apreciação completa, porque ele é

constituído, como já dissemos, de uma série de livros brasileiros, na maior

parte desconhecidos para nós”, cumpria-se, pelo menos, um dever, “e esse

cumprimo-lo gostosamente, é noticiar a aparição da obra, que nos vem

familiarizar com os escritores do Novo Mundo e faz-nos assistir ao

desenvolvimento da ciência e da Filosofia naquelas regiões”(77).

Anos mais tarde, porém, Sampaio Bruno nos dá uma imagem

diversa sobre a recepção que teve a obra de Romero em Portugal. No seu

Brasil Mental, Bruno revela que “quando Silvio Romero escrevera e

publicara uma espécie de história da Filosofia no Brasil, em Portugal, foi,

após o pasmo, um sucesso de gargalhadas. «Ora isto?!» dizia-se às mesas

dos cafés, nas palestras dos jovens curiosos de espírito. «Com que então: a

filosofia do Brasil? Hein? Esta nem o Diabo lembra! Se fosse a carne-seca

76 Idem, ibidem. 77 Idem, ibidem, p.403-404.

47

do Brasil, ou a feijoada do Brasil… Mas, agora, a filosofia do Brasil.

Valha-nos Deus!» E riam, jubilosos da sua suficiência”(78). Tanto quanto

parece, a dinâmica ao nível da divulgação não era bastante para

uniformizar os critérios da recepção. Seria impossível que o fosse. Mas, até

certo ponto, o elemento tensional subjacente ao sarcasmo acabava por

confirmar um intercâmbio de ideias que, tanto quando associava tanto

quando afastava os diversos autores em presença, manifestava a tendencial

abrangência da propagação das ideias positivas à escala luso-brasileira. Os

exemplos que a seguir elencamos dizem isso mesmo (79).

2.1.2. Nem precisamos sair das páginas de O Positivismo. Em secção

específica, informava seus leitores do intercâmbio de publicações realizado

pelos editores da revista – Teófilo Braga e Júlio de Mattos – mencionando,

da mesma forma, as revistas, livros e jornais recebidos. Assim, percebemos

que, desde o número 6, fascículo de Agosto/Setembro, de 1879, se

publicitava, na contracapa da revista, o recebimento da já mencionada obra

de Silvio Romero, A Filosofia no Brasil, bem como da obra de Clóvis

Beviláqua e José Isidro Martins Júnior, Vigílias literárias, ou da Oração

fúnebre, de António Cândido da Costa (80).

78 BRUNO, Sampaio. O Brasil Mental. Esboço Crítico. Porto: Lello Editores, [1898] 1997, p.44. 79 Esta hipótese parece ser reforçada pelas considerações de Antônio da Rocha Almeida, quemenciona a divulgação de autores portugueses e brasileiros – como Oliveira Martins, TeófiloBraga, Sílvio Romero, Tobias Barreto, por exemplo – no jornal O Combate, no sentido defortalecer a perspectiva crítica diante das ideias católicas. Antônio da Rocha Almeida informaque em “10/04/1886 aparecia, de sua propriedade O Combate, de parceria com ArgemiroGalvão, a lutar contra a Igreja e a Companhia de Jesus. Na lista dos colaboradores vinhamSilvio Romero, Tobias Barreto, Graciano Azambuja, Rangel Pestana, Campos Sales, TeófiloBraga, Alcides Lima, Teófilo Mesquita, Oliveira Martins”. ALMEIDA, Antônio da Rocha, “Vultos da Pátria – 260 – Carlos von Koseritz”, Jornal Correio do Povo, 15/08/1965. Tentamospesquisar o mencionado periódico, porém, está, actualmente, fora de possibilidade de serconsultado, devido a má conservação.80 O Positivismo: revista de filosofia. Primeiro Ano, n.º 6, Agosto/Setembro, 1879, Contracapa. In: O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: LivrariaUniversal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p.

48

Por sua vez, no fascículo de Outubro/Novembro de 1880, está

explicitado o intercâmbio: “temos continuado a receber com regularidade

os periódicos brasileiros Tribuna Liberal e Gazeta de Porto Alegre.

Recebemos o Echo Académico e o Arquivo Literário. Dos livros que nos

ofereceram de Portugal e Brasil adiamos a nossa apreciação por falta de

espaço” (81). Comunicados como este são bastante recorrentes(82).

Em 1880, no fascículo de Fevereiro/Março, Júlio de Mattos retoma

o assunto sobre o acolhimento do positivismo no Brasil. No texto “A

Popularização das ideias positivas no Brasil”, afirma que “vão-se tornando

manifestos e cada vez mais acentuados os sintomas de renovação mental no

Brasil. Na filosofia, como na literatura e na ciência, são evidentes os

esforços com que naquele vasto país se tentam partir os moldes

consagrados, mudar a direcção tradicional dos espíritos, combater os

preconceitos teológicos e metafísicos, velhos ídolos perniciosos dia a dia

eliminados diante das aspirações da consciência moderna”. Havia boas

razões para acreditar no êxito da empresa. Porque, como gostava de realçar

o autor, “a agitação que actualmente se manifesta o Brasil e em Portugal é

indício seguro de que se há de entrar num caminho de progresso”.

Pressentia ele uma gradual disponibilidade para que os “obreiros do

pensamento novo se reunam na evangelização dos seus credos literários,

científicos e filosóficos, [assegurando que] as aspirações de hoje serão as

81 O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.1, Outubro-Novembro, 1880. OPositivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: LivrariaUniversal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p. 82 Como por exemplo: “Temos continuado a receber com regularidade os periódicos brasileirosTribuna Liberal e Gazeta de Porto Alegre. Recebemos o Echo Académico e o ArquivoLiterário. Dos livros que nos ofereceram de Portugal e Brasil adiamos a nossa apreciação porfalta de espaço”. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.2, Dezembro-Janeiro, 1881. Assim como: “temos continuado a receber com toda regularidade as revistas estrangeirase nacionais que nos fascículos anteriores costumamos nomear nesta página. Recebemos mais oPantheon, revista literária, e a Sentinela da Fronteira. A todos, os nossos agradecimentos”. OPositivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.3, Fevereiro-Março, 1881. E ainda: “além daspublicações costumadas recebemos mais, do Brasil: A Pátria Brasileira de Teixeira Mendes eVisões de Hoje, de Martins Júnior, livros que não podemos examinar agora por falta de espaço”. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.6, Agosto-Setembro, 1881.

49

realidades de amanhã”. Afinal, acreditava no poder da associação das

forças positivas em âmbito luso-brasileiro: “associar forças é centuplicá-

las; associem-se pois os pensadores brasileiros que assim conseguirão de

um modo lento mas seguro o renovamento a que se propõem” (83).

Pela sua parte, contribuía com a atenta tarefa de divulgação.

Merece-lhe particular simpatia o projecto da Biblioteca Útil, editada em

São Paulo “com o intuito de propagar a Filosofia Positiva no Brasil”,

empreendimento que conta com a participação de intelectuais brasileiros já

“vantajosamente conhecidos na Europa, como França Leite e Sílvio

Romero” (84), e que desde o seu início encontra publicitação em O

Positivismo (85). O sentido deste acolhimento só podia ser óbvio: se é

verdade que “há no Brasil”, como diz Júlio de Mattos, “muita gente que

estuda e está a par de todos os progressos intelectuais do mundo

civilizado”, são todavia muito poucos os “que comunicam à sociedade o

resultados da sua actividade intelectual. Reina entre nós a apatia mental,

que é, como bem diz o Sr. Teófilo Braga, um das formas mais invencíveis

da inércia”. É necessário, pois, “despertar deste letargo” e “levar a

civilizadora luz da ciência aos que jazem imersos nas trevas da

ignorância»”. Para isto, não basta ter o conhecimento das ideias que

83 MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O Positivismo: revistade filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & MonizEditores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.250. 84 Idem, ibidem, p.251. 85 Transcreve-se, assim: “«A falta, no Brasil, de livros destinados ao povo em que se lheministrem os conhecimentos científicos que pouco a pouco vão transformando o mundo, animou-nos a empreender a publicação de uma séria de volumes, em que se trata das variadasquestões da actualidade»”. A Biblioteca Útil busca “«proporcionar ao povo a familiaridade comas ciências e todas as grandes ideias do século, eis o fim que tivemos em vista ao encetar estacolecção de livrinhos»” MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. OPositivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo:Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal deMagalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.250-251.

50

vigoram nos países, “é necessário também que as adaptemos ao nosso meio

e as façamos circular em nossos espíritos»”(86).

Em Março de 1880, os positivistas portugueses declaravam-se

“desejosos que os simpáticos propagandistas da nova fé colham o máximo

resultado na tarefa a que se propõem, [enviando-lhes] do extremo Ocidente

da Europa os nossos votos de respeito”(87). Por esta altura, já a

reciprocidade no reconhecimento das dívidas intelectuais transatlânticas

parecia ocorrer com naturalidade. A avaliar, por exemplo, pela edição das

Soluções Positivas da Política Brasileira, de Luiz Pereira Barreto, obra

publicada em São Paulo com um título propositadamente idêntico ao das

Soluções Positivas da Política Portuguesa, em homenagem a Teófilo

Braga, deveria ser mesmo assim. Com efeito, nas palavras de Barreto, “o

título que tomamos […] não é uma pretensiosa imitação: é simplesmente

uma homenagem. Quisemos pagar a Teófilo Braga o imenso tributo de

gratidão que lhe deve a geração que hoje surge nas letras do nosso país”

(88). Uma geração grata pela recepção e divulgação dos respectivos ensaios,

com certeza, mas também, em grande parte, filiada num comum

entendimento da esfera relacional entre os dois países e dos argumentos

que a deveriam fundar. Uma geração associada ao homenageado pela

comum participação numa mesma rede discursiva.

2.1.3. De acordo com o prefácio das Soluções Positivas da Política

Brasileira, de Luiz Pereira Barreto, que passamos agora a citar, afirma o

positivista brasileiro ter a “convicção que as nossas condições políticas e

86 MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O Positivismo: revistade filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & MonizEditores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.251. 87 Idem, ibidem, p.251. 88 MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881, p.284-285. Júlio de Mattos assegura, de facto, nesse volume, uma interessante recepção críticada obra de Barreto.

51

sociais [brasileiras] não melhorarão em quanto não tiverem por ponto de

partida uma modificação correspondente na situação de Portugal”. Para ele,

“o fio da história não se rompe. Somos filhos de Portugal: a ele estamos

presos por todos os laços indissolúveis de uma lei natural. A fatalidade

biológica e o determinismo sociológico dominam toda a nossa história”.

Daí que considere que “é em vão que procuremos esquivar-nos à pressão

do passado. Temos sido, somos e seremos portugueses” (89). Mais ainda: “é

da renovação intelectual, moral e social de Portugal que depende o

progresso do Brasil”. É certo que “politicamente estamos separados. Mas,

em história, o ponto de vista da política é secundário. A separação não

suspendeu a lei secreta das afinidades; e a velha metrópole, hoje como

outrora, conserva a sanção suprema para todos os nossos passos” (90).

Pereira Barreto está completamente a par das modificações

ocorridas no campo das teorias e das ideias, em Portugal, por via Geração

de 1870. Para ele, “O Portugal de hoje não é o Portugal de há cinquenta

anos atrás”, motivo pelo qual, “assim como herdámos todos os vícios e

preconceitos dos nossos imediatos predecessores, devemos hoje, com

calma e sangue frio, imitar o exemplo dos nossos irmãos d’além mar,

seguindo firmemente a senda que traçam”(91). Considera, assim sendo, que

“é nosso dever de patriotas confessar francamente que, do outro lado do

Atlântico, nessa mesma terra que nos serviu de embriogênio berço, existe

hoje uma plêiade de homens cuja estatura não encontra entre nós paralelo”,

para logo citar o nome dos intelectuais portugueses que admira: Teófilo

Braga, Ramalho Ortigão, Felipe Simões, Guerra Junqueiro, G. de

Vasconcelos, Eça de Queirós, Antero de Quental, Gomes Leal, Consiglieri

Pedroso, Oliveira Martins, Luciano Cordeiro, Júlio de Mattos, Adolfo 89 Prefácio às Soluções Positivas da Política Brasileira, 1880. BARRETO, Luiz Pereira. ObrasFilosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas, 2003, p.17. 90 Idem, ibidem, p.18. 91 Idem, ibidem. Grifos nossos.

52

Coelho, Teixeira Bastos, Augusto Rocha, Bittencourt Raposo, Amaral

Cirne, Guilherme de Azevedo, entre outros.

Primordial lhe parece, pois, que “em nosso próprio interesse” – no

interesse dos brasileiros, portanto –, estes entrem em “plena comunhão com

esses espíritos elevados”. Pode entender-se o por que: embora “unidos no

passado”, o certo e o esperado é que “nos uniremos cada vez mais no futuro

pelos laços de uma filosofia comum”. O passado, sem dúvida, esse passado

com Portugal, elemento essencial na constituição do brasileiro e na sua

perspectivação. Mas, sobretudo, para Luís Pereira Barreto, é a filosofia o

esteio para a união no futuro.

Não estava só nessa intuição. Não é casual o agradecimento

tributado, no referido prefácio da sua obra, a Carlos von Koseritz: “é com

vivo estremecimento que aqui assinalo o nome de Carlos von Koseritz, o

batalhador infatigável que tem posto ao serviço da pátria adoptiva trinta

anos de sua vida, consagrando todas as forças do seu talento à defesa dos

nossos mais altos interesses intelectuais, morais e sociais”(92). Como não é

fortuito o apoio entusiástico concedido à sua obra em resenha crítica de

Júlio de Mattos, que do mesmo modo que reputa de “justíssimo” o tributo

ali prestado a Teófilo, precisamente um dos diretores da revista O

Positivismo, assim também declara estar “apoiando sem restrições o ponto

de vista elevado do Dr. Pereira Barreto”, fazendo “votos, como ele, para

que a união consciente dos dois povos se realize de um modo franco na

comunhão de um mesmo pensamento filosófico” (93).

Para que Portugal e Brasil se voltassem a unir, era importante,

vincava Mattos, “que todas as dissidências artificialmente levantadas e 92 Prefácio às Soluções Positivas da Política Brasileira, 1880. BARRETO, Luiz Pereira. ObrasFilosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas, 2003, p.19. 93 MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: LivrariaUniversal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.284-285. Grifos nossos.

53

violentamente opostas às leis históricas, terminem de uma vez; virá daí

para todos nós a segurança, a firmeza de planos, a felicidade social dos que

se sentem apoiados, dos que vêem secundados pela grande força da opinião

todos os esforços mentais ou seja puramente críticos para a destruição de

velhos erros, ou sejam orgânicos para a construção de ideais novos e de

uma nova fé”. Neste projeto histórico, político e cultural, cabia à Filosofia

Positiva o papel de elemento unificador. O positivismo representaria uma

“síntese disciplinadora” que educaria os espíritos portugueses e brasileiros

“no sentido de procurar na evolução humana o que o nosso colega tão

justamente denomina «a lei secreta das afinidades» entre os povos

historicamente irmãos” (94).

Merece atenção este ponto. Para nossos propósitos, o que está em

causa é o fato de que as relações luso-brasileiras não eram – para os

positivistas – definidas pela “comunidade de sangue” tal como eram para

Oliveira Martins. As relações não atrelavam-se aos papeis paternal/filial na

referencialidade atribuída por Oliveira Martins. Agora tratavam-se de

“povos irmãos”, fundamentalmente. Esta relação de fraternidade era

gerenciada pela síntese filosófica positiva. Conforme a apreciação de Júlio

de Mattos, à Filosofia Positiva cabia “a missão tão gloriosa e tão útil de

promover de um modo consciente a conformidade de pensamento a

unificação dos dois países que vivem das mesmas tradições e

instintivamente sentem as mesmas aspirações, as mesmas necessidades

sociais” (95).

O mesmo ideal valia, também, para as necessidades políticas. Pelo

menos em alguns aspectos no tocante ao debate entre unitarismo e

federalismo. Porque, contrariamente ao que poderia parecer à primeira

vista, se a questão federal atinge particular relevância para o Brasil, “não é

94 Idem, ibidem, p.284-285. Grifos nossos. 95 Idem, ibidem, p.284-285.

54

menos séria nem menos importante para Portugal”. Tendo em conta quer a

dimensão interna, quer o fator externo, estando naquele caso, a

“centralização asfixiante da monarquia”, e, neste último, a vizinhança com

a Espanha, “vasto país formado pela junção violenta de muitos estados”

(96). Não surpreende, deste modo, que, relativamente à obra estampada no

Rio de Janeiro, em 1881, intitulada A República Federal, de Assis Brasil,

concluirá Júlio de Mattos ser o autor gaúcho “um dos talentos mais

robustos e mais bem orientados da moderna geração brasileira”, o qual lhe

havia enviado o volume (97). Daí que concluísse que “assim como aos

brasileiros, a nós, portugueses, embora por motivos em parte diferentes, a

discussão madura dos sistemas federal e unitário importa-nos duplamente:

como questão interna e como questão internacional” (98). Esta evidência

apenas seria incompreendida por “aqueles que, ainda hoje, mau grado todos

os progressos das ciências sociais, persistem no erro lastimoso de confundir

federação e unionismo”(99). Para Mattos, como para Assis Brasil, a

necessária suplantação da Monarquia pela República urgia, não podendo

deixar de acontecer, na medida até em que a “evolução” fá-la-ia extinguir-

se, em terras brasileiras como em terras portuguesas, pelo seu “natural

desenvolvimento”. Tal raciocínio manifesta bem um amálgama entre as

teorias naturalistas do final do século XIX e o projeto republicano de cariz

positivista.

Também por esta via parecia legítimo supor que através de uma

conformidade de anseios e projetos positivistas – incluindo neste escopo a

República Federativa – seria formada uma nova base social e cultural de

96 MATTOS, Júlio de. “A República Federal, por Assis Brasil” O Positivismo: revista defilosofia. Terceiro Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1881.. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção TeófiloBraga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III(números 1 a 6), 1880, p.443. 97 Idem, ibidem, p.438. 98 Idem, ibidem, p.440. 99 Idem, ibidem, p.443.

55

relacionamento associativo entre Portugal e Brasil. Claro está que isto seria

condicionado por um percurso ditado metodologicamente. Isto o próprio

Júlio de Mattos em 1882. No texto “O Movimento Republicano no Brasil”,

e à propósito do “oferecimento que o Sr. Alberto Sales, publicista

brasileiro, acaba de fazer-nos do seu belo livro Política Republicana”, o

autor frisa o “notável o movimento democrático” do Brasil , “notável não

tanto pela energia e actividade, que aliás são grandes, como pelo carácter

eminentemente positivo que o caracteriza, [ou seja:] não é uma agitação

indisciplinada, um aspirar inconsciente e anárquico a reformas políticas e

sociais, o que aí se observa; é, sim, uma forte opinião radicada,

metodicamente posta à luz com a coragem serena e paciente, a mais

poderosa de todas as coragens, emanada da ciência e alimentada por um

forte patriotismo” (100).

2.1.4. Embora seja relevante sua intervenção, Júlio de Mattos não foi o

único positivista português a fazer a recepção de texto brasileiros. Na

Revista de Estudos Livres, Teixeira Bastos e Teófilo Braga noticiaram o

surgimento de várias obras brasileira que buscavam a divulgação da ciência

positiva. No cômputo das recepções e críticas feitas por Teixeira Bastos

constam textos sobre a obra de Silvio Romero, Introdução à história da

literatura brasileira, publicado no Rio de Janeiro em 1882, bem como

sobre o livro A Terra e o Homem à luz da moderna ciência, publicada, em

Porto Alegre, em 1884, por Carlos von Koseritz. Teófilo Braga, por sua

vez, fez a recepção crítica da já aqui mencionada obra de Alberto Sales,

publicada em São Paulo em 1885. Além destas recepções críticas, observa-

se, também, nas páginas da Revista de Estudos Livres, a publicação integral

100 MATTOS, Júlio de, “O Movimento Republicano no Brasil”. O Positivismo: revista defilosofia. Quarto Ano, n.3, Maio/Junho, 1882. O Positivismo: Revista de Filosofia. DirecçãoTeófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume IV (números 1 a 6), 1882, p.246.

56

de dois artigos de autores brasileiros (101). Um deles, de Isidro Martins

Júnior, sobre A função histórica da economia política, e o outro, um

significativo texto de Sílvio Romero sobre As Teorias da História da

Literatura Brasileira.

Limitemo-nos, em tom de exemplaridade, à análise que Teixeira

Bastos faz da Introdução à História da Literatura Brasileira, publicada no

Rio de Janeiro, em 1882, por Sílvio Romero. Conforme veremos, o seu

comentário à obra romeriana remete para a mesma “província de

significado” que temos vindo a caracterizar em torno dos ideários de

conotação positivista.

Assim, ao apresentar Romero ao leitor, Bastos não o faz por menos:

“Comparam-no a Teófilo Braga e cremos que não é sem razão, porquanto o

ilustre escritor brasileiro tem adquirido na sua pátria tantas inimizades

quantas entre nós outrora adquiriu o distinto professor do Curso Superior

de Letras” (102). Por outro lado, uma vez que, em seu entender, “as gerações

novas [de Portugal e Brasil] chegaram já à compreensão de que era

apaixonado e injusto esse ódio que dividiu os seus maiores e hoje começam

a olhar-se como irmãos, a estimar-se pelo que realmente valem, e a

auxiliar-se nos seus esforços comuns em prol da civilização”, mais margem

de manobra passará a haver para, à semelhança do que faz Sílvio Romero,

mobilizar o talento no sentido de (segundo a própria expressão deste

último, que Bastos transcreve) “«encontrar as leis que presidiram e

101 Beatriz Berrini refere a pouca abertura que as publicações de Portugal davam aos escritoresbrasileiros. Na Revista de Estudos Livres, entretanto, podemos perceber uma interessante eprofícua relação entre os escritores brasileiros e portugueses. Nesse caso, além das recepçõescríticas do que era publicado no Brasil, também vemos artigos importantes de brasileirospublicados na revista. BERRINI, Beatriz. Brasil e Portugal: a geração de 70. Breves indicaçõesdos correspondentes brasileiros e portugueses por Paulo Franchetti e Beatriz Berrini. Prefácio deIsabel Pires de Lima. Porto: Campo das Letras, 2003. 102 BASTOS, Teixeira. Recepção crítica à Introdução à história da literatura brasileira, porSilvio Romero. Primeiro volume. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1882, 254p. In: Revistade Estudos Livres, Ano I, 1883-1884, p.234.

57

continuam a determinar a formação do génio, do espírito, do carácter do

povo brasileiro»” (103).

Dito isto, a apreciação do autor de Portugal não é ibérico oscila

entre uma concordância de fundo e um distanciamento cirúrgico: “como se

vê o Sr. Silvio Romero, adoptando os novos processos históricos, divide o

seu trabalho em duas partes, a que podemos chamar, servindo-nos da

tecnologia positivista, parte estática e parte dinâmica, estabelecendo

primeiro os elementos constitutivos da nacionalidade e as condições da

marcha da evolução intelectual. É este o verdadeiro método sociológico. O

Sr. Sílvio Romero não é, porém, positivista, embora se aproxime muito do

ponto de vista filosófico iniciado por Comte e seguido por Littré, por

Robin, por Wyrouboff, em França, e propagado em Portugal por Teófilo

Braga e no Brasil por Pereira Barreto. Com razão condena a ortodoxia

laffitista, que desconhece completamente os notáveis progressos efectuados

por todas as ciências depois da morte de Comte, e combate a influência

exagerada do francesismo na literatura brasileira, mas infelizmente deixa-se

impressionar em demasia pelo germanismo e confunde a concepção

positivista com o culto da Humanidade ou o Ente Supremo. O entusiasmo

pelo germanismo tanto pode ser causa de ideias erróneas, quanto o tem sido

o abuso do romantismo ou do francesismo” (104).

Divergência grave? Aparentemente não, desde que ficassem claros,

como o eram para Teixeira Bastos, os seguintes pontos: que “a verdade não

é propriedade de qualquer seita ou escola filosófica, não pertence aos

sábios de qualquer nacionalidade ou raça, [até porque] a ciência é

cosmopolita; aceitamo-la de onde ela nos venha”(105); e que “o positivismo,

como concepção geral do universo, [só erradamente] seria considerado uma

escola filosófica ou uma seita religiosa, e ainda menos um produto 103 Idem, ibidem. Grifos nossos. 104 Idem, ibidem, p.235. 105 Idem, ibidem, p.236.

58

exclusivo da mentalidade francesa, [sendo antes] formado sobre as leis

naturais achadas indistintamente pelos sábios de todos os países

[“conclusão aceite pelo Sr. Sílvio Romero, desde que aprecie a profunda

diferença que separa a filosofia positiva do positivismo cultural dos

laffitistas”]” (106). Não sendo assim, não ficando claros tais pressupostos,

ficaria seriamente comprometida a eficácia da rede discursiva como a que,

estruturada sobre a dinâmica de um intercâmbio científico transatlântico,

constituía, ela própria, a melhor comprovação de que, como rezava o credo

de Teixeira Bastos, “o critério do homem de ciência deve colocar-se acima

de todos os preconceitos partidários ou nacionais” (107).

2. Interpretações concorrenciais

O investimento até agora feito ao nível da escala cultural luso-

brasileira permitiu descortinar umas quantas redes discursivas, produtoras

de outros tantos alinhamentos políticos e científicos. As alegorias da

“comunidade de sangue” e da “fraternidade entre os dois povos” podem

simbolizar, cada uma a seu modo, esta percepção. O ponto anterior

elucidou já este aspecto. Interessará agora aprofundar o suporte teórico

mobilizado no contexto daqueles circuitos. De fato, a circulação de ideias

denunciava posicionamentos distintos em relação ao intercâmbio cultural

transatlântico. Isso resultava de uma dinâmica interpretativa sobre o sentido

desse intercâmbio – e, sobremaneira, as teorias sobre o lugar da história na

explicação das relações culturais e das construções identitárias – impunha

critérios concorrenciais de abordagem. São estes que agora nos interessam.

Adiante-se que, no quadro deste raciocínio, identificámos três

linhas interpretativas maiores no tocante às relações luso-brasileiras: a que

106 Idem, ibidem, p.236. 107 Idem, ibidem, p.236. Grifos nossos.

59

perspectiva esse relacionamento em termos de derivação; a que o faz em

termos de convergência; e a que o faz em termos de distanciamento. Tendo

por objetivo dar conta de cada uma delas, tomamos por emblemáticos os

textos dos “prefácios” e “prospectos” das revistas com as quais temos

vindo a trabalhar, bem como de outras tantas fontes oriundas do mesmo

universo discursivo. Importa ter presente que o texto que forma o prefácio

não possui a mesma valia dos demais artigos que, de fato, “preenchem” um

periódico. O prefácio é oriundo de um posicionamento político tomado

pelos diretores e principais redatores da publicação. Trata-se de um

momento de inauguração de uma “identidade textual”, de demarcação de

um território discursivo que será, posteriormente, ocupado pelo conjunto de

textos dos articulistas. Assim, o enunciado feito sobre dos objetivos

propostos, ou das relações estabelecidas, representa, para nós, indicador

precioso do ponto de vista que, em cada momento, buscamos esclarecer.

2.1 O ponto de vista da derivação

A linha interpretativa a que chamamos derivativa pode ser

perseguida tomando como ponto de partida o prospecto da Revista

Ocidental. Dirigida por Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, a Revista

Ocidental – cujo papel no tocante à circulação das ideias entre Portugal e

Brasil já atrás deixamos expresso – apresenta-se, desde o seu início, como

um espaço discursivo em continuação do espírito crítico que animara as

célebres Conferências Democráticas do Casino, ocorridas em Lisboa ainda

em 1868(108). Vejamos então as indicações relevantes, para a nossa

108 Pelo que indicam os estudos especificamente voltados à revista, percebe-se que a edição darevista já estava sendo planejada desde inícios de 1872. Conforme informa Maria José Marinho, seu lançamento, embora programado para Setembro de 1874, só veio a concretizar-se mesmoem 15 de Fevereiro de 1875. Tudo leva a crer o seguinte: que, por motivos do agravamento dadoença de Antero, a organização da revista teria ficado mais a cargo de Batalha que de Antero.

60

problemática, fornecidas por esta revista cuja publicação se dava por meio

de fascículos quinzenais que, ao final de um trimestre, eram publicados em

conjunto num só tomo(109).

2.1.1. Primeiro aspecto a ter em conta: embora impressa em Lisboa, a

Revista Ocidental continha artigos tanto em idioma português quando em

idioma castelhano. Este fato deve-se, conforme afirma o estudo de Maria

José Marinho, a uma decisão tomada com intuito de “facilitar a difusão na

América Latina” (110). Trata-se, claramente, de uma preocupação em

integrar os países da América do Sul ao âmbito ibérico de circulação da

Revista Ocidental. Uma preocupação a reter.

É recorrente dar maior destaque à publicação, no quadro da revista,

de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. Para nós, contudo, no

intuito de focalizar as relações culturais entre Brasil e Portugal, é a seção

“Crónicas-Revistas”, presente em todas os fascículos da revista, que

assume particular importância. Esta secção era composta, geralmente, por

quatro subgrupos: “América”, escrita por D.R. de Cala, que continha

geralmente informações sobre os acontecimentos das repúblicas de língua

espanhola da América Latina; “Espanha”, coluna não assinada, que

continha textos a respeito dos factos concernentes a Madrid; “Europa”,

assinada por J. Batalha Reis, que dava ênfase aos acontecimentos

geralmente ocorridos em França (111); e a coluna “Portugal e Brasil”,

Para mais informações, indicamos o estudo de MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70”. In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992. 109 O primeiro tomo corresponde a seis fascículos referentes, respectivamente às seguintes datasde publicação: 15 de Fevereiro; 28 de Fevereiro; 15 de Março; 31 de Março; 15 de Abril e 30 deAbril. O segundo tomo corresponde também a seis fascículos referentes a 15 de Maio; 31 deMaio; 15 de Junho; 30 de Junho e 15 de Julho. 110 MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70” In:Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992, p.57. 111 Eventualmente, nesta secção, havia também outras chamadas, tais como “Revista Agrícola”, ou introduzia-se variações, como quando Batalha Reis, em sua crônica, pôs como título“Estados Unidos-Europa” (na edição de 28 de Abril de 1875).

61

assinada por P. de Oliveira (pseudônimo de Oliveira Martins), que continha

informações sobre as duas nações de língua portuguesa. Uma arrumação

geográfica nada acidental e, por isso, também a reter.

Uma observação do “Prospecto” da revista permitirá aclarar estas

opções (112). A avaliar por esse documento, o propósito que animava a

publicação era o de “instruir povos, nivelar os espíritos, dar a todos os

homens a partilha da grande herança da civilização” (113), por forma a

aumentar o “nível de consciência” dos leitores, objetivo que era mais

importante ainda, no entendimento dos editores, no caso dos povos

ibéricos. Afinal, “se espanhóis e portugueses formam de há muito duas

nações distintas, tiveram todavia sempre, na organização filosófica e

sentimental dos seus espíritos, na fisionomia das suas literaturas, no

carácter dos seus actos, a afinidade que lhes deu a origem comum de raças

e a acção, também igual para ambos os povos, do clima da península

ibérica”. Embora organizados em dois Estados distintos, Portugal e

Espanha representam uma e mesma “origem comum”.

O problema da origem. Assim se pode resumir uma das linhas

analíticas que atravessa o “Prospecto”. De fato, numa época de forte adesão

ao poder dos conhecimentos científicos modernos e num contexto de

importantes transformações de ordem internacional, a definição acerca do

papel atribuído tanto a Portugal como a Espanha fazia-se depender de um

momento anterior de autodefinição. Definição da identidade nacional –

como do perfil da coletividade –, situada ao nível das origens e, portanto,

obrigando à discussão sobre o passado e ao estudo da história. Um estudo

que se fazia depender de uma constatação radical do atraso dos povos

112 “Prospecto da Revista Ocidental”. Anexo I ao texto de MARINHO, Maria José. “A RevistaOcidental, 1875 – um projecto da Geração de 70” In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992, p.65-67. 113 Nos excertos do prospecto optámos por gravar tal e qual a versão impressa (saliente-se que, na transcrição do mesmo, Maria José Marinho procede zelosamente ao registo das alteraçõesentre a versão manuscrita e a que depois foi impressa). Idem, ibidem, p.65.

62

peninsulares. Este ideário é cifrado na seguinte constatação: “Espanha e

Portugal não têm, até hoje, entrado activamente na renovação filosófica,

científica e artística deste século. O grande movimento actual é ao mesmo

tempo alemão, francês, inglês italiano se quiserem, mas não é de modo

algum espanhol ou português”. Avaliação também estendida aos povos

latino-americanos, ex-colónias ibéricas, o que fazia com que, num efeito de

duplicação ou de ressonância, o desfasamento dos ibéricos em relação aos

saxões fosse igualmente vislumbrado à escala americana: “se olharmos

para a América também compreendemos de momento que o progresso

científico e industrial é aí mais representado pelas colonizações inglesas do

que pelas espanhola e portuguesa” (114).

Perante tão vincado entendimento de um mesmo conjunto de povos

– ibéricos e neoibéricos – unidos numa mesma situação de atraso e de

necessidade de modernização, compreende-se que a escala ibérica

comporte a marca de uma negatividade referencial, da qual é oriunda, de

igual modo, a escala neoibérica, dado que ambas se achavam comummente

envolvidas pelos mesmos problemas. Afinal, “quaisquer que sejam as

causas desta incontestável diferença são elas decerto comuns ao quatro

povos, quase que diria às quatro raças que acabamos de falar. Iguais em

caracteres essenciais da sua originalidade no meio das nações da Europa,

também ao mesmo tempo se separam da corrente geral” (115).

Daí que os intelectuais que subscreviam o projeto da Revista

Ocidental acreditassem na necessidade de “uma unidade superior de

carácter e uma atitude idêntica em face do movimento moderno” por parte

de “um grupo natural de nações do ocidente da Europa [e dos] povos que

foram prolongar na América, decerto modificando-o, o mesmo espírito e a

114 Idem, ibidem, p.65. 115 Idem, ibidem.

63

mesma situação” (116). Culturalmente agregar-se: eis a receita para que os

povos ibéricos europeus e americanos melhor consigam chegar a equiparar-

se ao nível de modernidade visto nos demais povos europeus.

Eis, então o objetivo da Revista: “provocar a reunião dos elementos

da nova renascença intelectual da península e a formação das novas escolas

espanhola e portuguesa”. Por isso, “deverá a REVISTA, por um lado expor

os trabalhos que todos os dias adiantam a renovação dos estudos no mundo

civilizado; por outro, definir, nos seus elementos precisos, os caracteres

gerais da nossa individualidade e os elementos que tornam natural a

autonomia intelectual da Espanha, de Portugal, da América espanhola e do

Brasil, e os dos grupos ainda diversos que estes quatro povos encerram

decerto” (117). Assim, ao mesmo tempo em que buscavam através da crítica

moderna – esse “instrumento delicadíssimo de análise” – mostrar “toda a

criação de que andamos alheados, e todos os elementos do que podemos ser

no meio dela” (118). Eis o apelo dos editores ao “auxílio dos povos latinos

dos dois continentes” (119).

2.1.2. Idêntica compreensão pode ser também vislumbrada no artigo que

abre as páginas da primeira edição da Revista, um texto publicado em

idioma espanhol e intitulado Los Pueblos Peninsulares Y La Civilización

Moderna. O seu autor é J.P. de Oliveira Martins(120). Assinalou já Sérgio

Campos Matos que este texto introdutório da Revista Ocidental, de autoria

de Oliveira Martins, “deve ser entendido como peça fundamental na linha

reflexiva que o levaria poucos anos depois a escrever a História da

116 Idem, ibidem, p.66. 117 Idem, ibidem. 118 Idem, ibidem, p.66-67. 119 Idem, ibidem, p.67. 120 Lembre-se que Oliveira Martins tinha passado o período 1871-1874 a viver em Espanha.

64

Civilização Ibérica (1879)” (121). De igual modo é possível vislumbrar o

tom das demais obras históricas do autor: a História de Portugal, o Brasil e

as colónias portuguesas e o Portugal Contemporâneo.

Oliveira Martins inicia o texto expondo a mensagem que estava

contida no prospecto da Revista. Ressalta ele que “solamente una Revista

Occidental, decimos, podrá representar ante Europa, el genio de los

pueblos que habitan la península ibérica y los que, hijos suyos, fueron á

acampar en la América meridional” (122). Como vimos, a instituição de um

espaço de troca e circulação de ideias no âmbito dos “Povos Peninsulares”

– a Revista Ocidental –, dá-se com o intuito de marcar diferença em relação

à restante Europa, num movimento de diferenciação e de balizamento do

estatuto ibérico por contraste com os demais povos europeus.

Naturalmente: para o projeto desta revista, como para os autores que o

subscrevem, Portugal compreende-se enquanto representante do gênio

peninsular. Mas há mais: é que também os povos da América do Sul – ex-

colônias – eram entendidos como “filhos” ibéricos, como representantes, na

América, do mesmo “génio peninsular”. Com isto se ensaiava uma linha

demarcatória do âmbito cultural luso-brasileiro, definido pela matriz

ibérica.

No texto de Oliveira Martins ecoa, em boa medida, a célebre

conferência Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos

três séculos, de Antero de Quental, proferida em 27 de maio de 1871, no

Casino Lisbonense (123). O que não surpreende, atendendo ao sentido

seminal que parece calhar à intervenção anteriana em relação ao “espírito” 121 Conforme MARTINS, J.P. de Oliveira. Portugal e Brasil. Introdução e notas de SérgioCampos Matos, fixação do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro deHistória da Universidade de Lisboa, 2005, p.16. 122 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In: RevistaOcidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15de Fevereiro, 1975, p.5. 123 QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos:discurso pronunciado na noite de 27 de Maio na sala do Casino Lisbonense / por Anthero deQuental. Porto: Typ. Commercial, 1871.

65

que anima a maior parte dos textos presentes, anos depois, na Revista

Ocidental. Tal como no texto de Oliveira Martins, Antero, na sua

conferência de 1871, falava para um “nós, espanhóis”, referindo-se a uma

plateia de portugueses, em Lisboa. A contextualização precisa destas

referências transportar-nos-ia, evidentemente, para longe do nosso objetivo.

Mas, independentemente disso, o que aqui não pode deixar de merecer

destaque, sobre o texto de Oliveira Martins, é a inclusão dos povos sul-

americanos nesse mesmo rol ibérico, nessa mesma matriz. O

relacionamento luso-brasileiro, tão claramente expresso na troca de ideias

fomentada pela própria Revista Ocidental, não é senão o relacionamento

entre povos ibéricos e neoibéricos na América. O âmbito luso-brasileiro

seria, assim, um subconjunto. Uma derivação ibérica em solo americano.

Mas, afinal, em que consiste o propalado “génio peninsular”?

Responde o texto martiniano: “Él íbero desde lo alto de las peñas de

Asturias, dice á la invasión árabe: «¡Detente!» y la invasión se detuvo, para

no crecer mas. La marea cuyas oleadas llegaron á traspasar los Pirineos,

comenzó á descender y cinco siglos de tenaces guerras consiguieron barrer

de la península la asiática media luna. Qué sentimiento animada al español

en esa verdadera Ilíada, continuación de Troya y de Platea, de Maratón, de

Salamina y de las guerras punicas, en esa eterna pelea de Europa contra

Asia?” (124). E se acaso constituir, para o leitor, motivo de estranheza a

omissão, neste impressivo retrato, da influência árabe na formação dos

povos peninsulares (dando por adquirido que o português, inserido que

estava no conjunto, ali está contemplado) (125), encarrega-se o autor de

124 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In RevistaOcidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15de Fevereiro, 1875, p.6.125 A influência ou não do moçárabe na formação étnica e/ou cultural do povo portuguêsacendeu uma interessante polêmica entre duas facções, a saber: Alexandre Herculano, Antero deQuental e Oliveira Martins, entre outros, que defendiam a inexistência de influência árabe nacultura portuguesa, e Teófilo Braga e seus seguidores que defendiam a originalidade da culturaportuguesa justamente pela importância da influência moçárabe na sua formação. Nas secções

66

esclarecer o seguinte: “cruzábanse las razas, tolerábanse los cultos,

trocábanse las costumbres y el lenguaje y las ideas; mas ¿desaparecía acaso

por eso el sentimiento fatal que tornaba incompatible al español y al árabe

sobre el suelo de la península? No, nunca”(126).

Por outro lado, semelhante leitura da realidade ibérica via-se

obrigada a colocar o problema da “decadência”. Neste ponto, o texto de

1875 insinua a influência de certo naturalismo organicista (127) ao

manifestar alguns aspectos nucleares que se reconhecem ao decadentismo

martiniano – tipificado pela expressão consagrada na sua História de

Portugal, “Os Lusíadas são um epitáfio”. Para ele, o momento cimeiro da

ascensão evolutiva de Portugal encerra já, paradoxalmente, o início da

decadência. Tal como na natureza, também a vida das nações é marcada

pelo ciclo nascimento, crescimento, maturidade, decadência e morte. Ora,

sendo certo que Oliveira Martins entende o Brasil como o prolongamento

de Portugal na América, não custa prever a sua eventual aceitação perante o

fato de que a mesma essência que na Europa fenece possa vir a florescer na

América. Como quer que seja, de vital importância se revelava para o autor

publicitar a sua reflexão acerca das características e da validade do

conhecimento histórico para efeitos de interpretações deste teor.

Assim, o vemos recordar que foi “la necesidad de acción” a causa

principal dos descobrimentos ibéricos, na medida em que “el duro y fuerte

brazo del soldado peninsular, el espíritu ardoroso del creyente, exigían

combates y propagandas: combatir con los moros ó con los mares ¿qué

seguintes, analisaremos mais detalhadamente a mencionada polêmica e suas influências naformação das imagens identificatórias da cultura portuguesa (em sua relação com o Brasil, especificamente). 126 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”. In RevistaOcidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15de Fevereiro, 1975, p.7. 127 A esse respeito consultar PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal: Filosofia. História. Engenharia Social (1865-1914). Coimbra: Editora Almedina, 2001, sobretudo o capítulo 3 “Alógica martiniana da história”, na parte 1, sobre “os traços naturalistas da filosofia da históriamartiniana”, pp.231-235.

67

importa? Es combatir siempre, es vivir". Por isso lhe é possível sustentar,

em síntese, que “históricamente, la causa determinante de los

descubrimientos está en el desarrollo dada á la física y á la geografía por un

lado y por otro en las tradiciones que los viajes de los cruzados habían

esparcido por toda Europa” (128). O recurso às analogias com a antiguidade

vem à tona quando descreve os Descobrimentos como “una epopeya, mas

grande que la de Troya, mayor que la romana”. As analogias com o

passado cimentam a importância dos estudos históricos para o campo das

ideias oitocentistas. Afinal, “la historia es la base de la epopeya del siglo

XIX, que ninguna pluma puede, ni podrá acaso escribir”. Mediante a

evocação deste ou de outros aspectos da história portuguesa, resulta

inegável o peso que as “lições da história” têm para o argumento de

Oliveira Martins (129).

Inevitável se tornava, desse modo, articular o conhecimento da

História (para ele com H maiúsculo) com as demais Ciências Sociais, tão

em voga nos círculos cientistas do conhecimento: “la historia es para las

ciencias sociales lo que las ciencias elementales físico-químicas son para

las de la vida; instrumento de deducción”, pois, “la razón concluye, la

historia analiza”(130). Como bem se aceitará, não pode inferir-se deste

reconhecimento da importância do lugar da História um correlato desprezo

pela validade das então recentes Ciências Sociais. Na realidade, “el

procedimiento histórico deductivo que sirve para comprender los hechos y

descifrar los problemas de la vida europea no puede aplicarse á países

como las jóvenes naciones americanas, donde falta los anales y los

128 Idem, ibidem, p.13. 129 Ver a esse respeito CATROGA, Fernando. “O magistério da História e a Exemplaridade do‘Grande Homem’. A biografia em Oliveira Martins. In: PÉREZ JIMÉNEZ, A. RIBEIROFERREIRA, J. & FIALHO, Maria do Céu (editores). O retrato literário e a biografia comoestratégia de teorização política. Coimbra-Málaga, 2004, pp.243-288. 130 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In RevistaOcidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15de Fevereiro, 1975, p.14.

68

precedentes, los puntos de contacto y de comparación con las viejas

naciones de Europa”. Entende-se a questão. Numa compreensão cara à

matriz hegeliana de entendimento da História, Oliveira Martins acredita

que, antes dos Descobrimentos, os povos “selvagens” da América estavam

ainda “fora da História”(131). Assim, por serem escassos os materiais

relativos ao passado das sociedades americanas, mais adequados ao seu

entendimento estavam os preceitos das Ciências Sociais.

Em rigor, a tarefa parecia ser a de compatibilizar, no âmbito de uma

teoria do conhecimento, aquelas áreas do saber: disso dependia tanto a

relação entre a História e as Ciências Sociais, como, em simbiose, a relação

entre o Velho e o Novo Mundo, ou ainda – em outro modo de o dizer –

entre a escala ibérica e a escala neoibérica. Porque, dado que “la suma de

observaciones científicas, etnológicas, climatológicas y sociales son por

ventura suficientes, si nó para trazar una historia futura, á lo menos para

determinar las líneas generales que la vida de un pueblo ha de seguir,

dadas las condiciones conocidas, á pesar de que el sistema de su reunión

sea nuevo enteramente, [então] tal es nuestra situación ante las naciones

sud-americanas, las naciones neo-peninsulares” (132).

2.1.3. Por consequência, o autor lê as diferenças verificadas, na

América, entre os povos sul-americanos de língua espanhola e o Brasil, em

termos de uma transferência dos mesmos elementos que, no contexto

peninsular, distinguem Portugal da restante Espanha.

Para Oliveira Martins, na história da América, a organização das

diferentes repúblicas de língua castelhana em contraposição à existência de

uma grande monarquia brasileira, é compreendida, de modo bastante 131 Conforme a obra de HEGEL, Georg Wilhelm. A Razão na História: introdução a umaFilosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 1995.132 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In RevistaOcidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15de Fevereiro, 1975, p.14-15. Grifo nosso.

69

naturalístico, quase como o germinar das diferenças entre as distintas

heranças ibéricas, a castelhana e a portuguesa. A analogia é muito clara,

quando ele afirma que “esta diferencia en los caracteres originarios de la

colonización, llena de consecuencias importantes, produce un resultado que

en lo futuro se torna por si solo en causa de la profunda diversidad de

fisonomía entre los sistemas de colonias en la América del sur”. Enquanto a

colonização castelhana foi feita por uma “turba de aventureros, una

democracia de emigrantes, que cambia un suelo por otro, las llanuras de la

Mancha por las llanuras de las Pampas”, já, por seu turno, “ el hidalgo que

partía de Lisboa, llevando consigo familia, criados, trabajadores, decidido á

fijarse y á tomar posesión de la vasta región que le fuera dada, no contando

con volver mas á Europa, iba á asentar su ciudad en el punto mas céntrico

de la región que poseía”(133).

O Brasil foi povoado neste parâmetro, conforme seu relato, num

quadro de enormes distâncias internas. “La imposibilidad económica de

ligar entre si los centros dispersos de población y civilización, la dificultad

y muchas veces la imposibilidad, de los viajes”, criou o primeiro “vicio

orgánico del sistema de colonización portuguesa en el Brasil”, que é o facto

de que apenas se “conocen entre si las ciudades del litoral”. Mas ainda um

maior vício contaminou o sistema colonizador lusitano: o “espíritu

aristocrático de los portugueses, repugnando el cruzamiento, fue causa de

un hecho que hoy pesa todavía como plomo sobre el Brasil: la esclavitud”.

Considera, entretanto, uma perda o não aproveitamento do índio no sistema

colonizador. Isto porque “la sangre del indio aclimatado preservaría al

europeo: el europeo infiltraría en el indio la exuberancia de fuerza, de

arrojo, de audacia, de educación. No sucedió así y por ello fue preciso

recurrir al exterminio de otra raza. Los cafres inundaron el Brasil: vinieron 133 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In RevistaOcidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15de Fevereiro, 1975, p.15-16.

70

brazos, mas vino con ello el pecado de que se había lavado la Europa, vino

el amor á indolencia, vino la crueldad y la desmoralización, que

infaliblemente producen los crímenes contra lo justo”(134).

Assim, “de este concurso de elementos salió de una parte en el

Brasil un fac-símile hasta cierto punto artificial, de las naciones de

Europa”, pois “las instituciones y las ideas muévense y viven en las

ciudades que bordean la costa á imitación del mundo antiguo”. Para além

dessa aparência, “el vicio primitivo y casi orgánico de la colonización”

somado à “falta de raza y á la incomunicación”, fazem do Brasil “una

vasta colonia alimentada por la emigración”. Daí seu questionamento:

“¿como se ha de transformar en una nación, en el sentido histórico de la

palabra?” (135).

E se, frente a essa questão, que “los datos actuales no permiten

resolver suficientemente”, Oliveira Martins considera que o Brasil, apesar

de lhe faltar ainda um caráter nacional (e mesmo reconhecendo que não lhe

faltava carácter político), não fica diminuído frente aos demais países sul-

americanos. Isto porque o Brasil “tiene de nuestra sangre portuguesa la

facultad de asimilación, que, si desvanece los caracteres afirmativos de

nacionalidad, nos hace eminentemente aptos para recibir y comunicar todas

las impresiones de la corriente eléctrica de la civilización”. Assim sendo, o

papel do brasileiro é o de representar as ideias europeias em solo

americano, pois “su constitución, su código, sus instituciones y sus

costumbres, salvo le esclavitud en vías de abolirse, hacen del imperio

americano el representante de las ideas europeas en el nuevo mundo” (136).

Claro estava que os maiores méritos reconhecidos ao Brasil e à sua

simbologia íam mais além. Apontavam para o quadro de uma inevitável e 134 Idem, ibidem, p.16. 135 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In RevistaOcidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15de Fevereiro, 1975, p.16-17. 136 Idem, ibidem, p.17. Grifos nossos.

71

desejável aliança política que deveria unir os países de língua espanhola e

portuguesa, fossem os da Península Ibérica, fossem os da América, como

representantes que eram da mesma raça (137). Tratava-se, é certo, de uma

resposta à tendencial supremacia anglo-saxónica e liberal em escala

mundial. Efetivamente, segundo ele, os tempos de liberalismo político, de

utilitarismo econômico, de livre concorrência, “destruyeron ya las

distinciones de posición relativa entre las colonias y las madres patrias”.

Assim, é importante que “unas y otras, y cada cual dentro de las

condiciones especiales de su economía, se encuentren libremente unidas en

el desempleo de la misión que les atribuye el lugar que ocupan entre los

grandes sistemas de pueblos de origen aryano” (138).O que estava em jogo,

afinal, era simples: o fortalecimento político da escala ibérica de referência,

ideal sustentado no reconhecimento dos vínculos naturais que, sob a alçada

da História, se haviam plasmado no seio da família hispânica.

É essa a perspectiva em que, anos mais tarde, em 1892, se coloca

Oliveira Martins, em texto intitulado “A Liga Ibérica”, no qual insiste, uma

vez mais, no tema da relação entre os países ibéricos e seus “filhos”, os

países “neo-ibéricos”: “E desse império imenso, de há três séculos, que

resta? Retalhos dispersos, e um enxame de nações filhas das duas nações

peninsulares. Puderam os erros da política e a sorte fatal dos povos,

desconjurar o que fora unido, espalhando sobre o mapa do mundo os

membros dispersos da família hispânica. Mas não puderam apagar a

memória da máxima empresa da História Universal, porque foi dela que o

mundo ganhou o conhecimento da própria terra, na sua redondeza. Nem

137 Nesse sentido, vemo-lo contrapor a escala anglo-saxónica à ibero-americana, dizendo que “elBrasil, las repúblicas y todos nosotros, hispano-portugueses, podemos oponer al fríoimperialismo sajón, la pura y positiva idea de la conveniencia que es para él la base única de lasleyes. La idea principal que mantenemos, del Derecho. La historia la apreciará en mucho masque todos los millares de millas de caminos de hierro, que todos los millones de caballos devapor”. Idem, ibidem, p.18. 138 Idem, ibidem, p.20.

72

podem também destruir os vínculos naturais da filiação, no sangue, na

língua, na fé…” (139).

Assim, no texto de 1892, Oliveira Martins revela ter “a ambição,

porventura quimérica” de estabelecer uma “liga de todos os povos que

falam castelhano e português: a liga ibérica, ou hispânica, de todos os

descendentes das nossas duas nações. Portugal com suas colónias, ainda

espalhadas pela África e pela Ásia até à China; Portugal, com o Brasil que

é seu filho, ocupa mais de quatro milhões de milhas quadradas de terra,

sobre que vivem trinta e dois milhões de homens, falando a língua de

Camões. A Espanha, com as suas colónias; a Espanha com o feixe de

nações americanas, o México, o Peru, o Chile, Nicarágua, Venezuela,

Honduras, a Bolívia e a Colômbia, a Argentina, a Guatemala e o Equador,

Salvador, Santo-Domingo, o Uruguai e o Paraguai, ocupam nove milhões

quase, de milhas quadradas sobre que vivem mais de sessenta milhões de

homens, falando a língua de Calderón”(140).

Vemo-lo, afirmar que seria um ato glorioso para todos estes povos,

agora autônomos politicamente, “reatar a tradição, buscar energias, pisando

como Anteu o solo firme da História, e inspirarem-se na política perspicaz

dos monarcas, quando era o pensamento dos reis quem determinava os

destinos dos povos” (141). A história é o “solo firme” a ser pisado tanto

pelos povos ibéricos como pelos “neo-ibéricos”, seus “filhos”. Esta seria,

para o autor da História da Civilização Ibérica, a estratégia adequada a

seguir num contexto internacional marcado pela expansão dos signos

culturais anglófonos e pelo perigo de que “em breve se tenha acabado de

atrofiar, saxanizado, o que resta do império hispânico”. Faltava, contudo, 139 “A Liga Ibérica”, La Ilustración Española e Americana, 1892. In: MARTINS, J. P. deOliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957, p.301. Grifos nossos. 140 “A Liga Ibérica”, La Ilustración Española e Americana, 1892. In: MARTINS, J. P. deOliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957, p.301-302. Grifos nossos. 141 Idem, ibidem, p.302. Grifos nossos.

73

“insuflar-lhe alento para que outra vez se erga à vida activa, a espantar de

novo a História com a grandeza das suas façanhas” (142). No âmbito deste

exercício analítico reativo à expansão saxónica do final do século XIX, o

culto dos laços transatlânticos permitiria prolongar no tempo, em outro

ambiente, uma grandeza que só seria efetiva se bafejasse tanto os seus

originários cultores, quanto os povos que, filialmente, deles haviam

derivado.

2.2. O ponto de vista da convergência

Esta interpretação derivativa do relacionamento luso-brasileiro,

contudo, não esgotava o sentido das diversas aproximações ao assunto.

Diferentemente se posicionou, por exemplo, todo um viés analítico

estruturado sobre a ideia de uma associação de interesses e projetos

comuns envolvendo Brasil e Portugal, países e culturas cujo

relacionamento se deveria interpretar, primacialmente, de acordo com este

viés crítico, sob a ótica da convergência. A fonte principal que nos servirá

agora de referência será o programa geral da Revista de Estudos Livres.

Publicada em doze fascículos mensais, todos depois agrupados num

volume anual de publicações que, em sua maioria, tinham estreita ligação à

divulgação dos princípios da ciência positiva, a revista tinha, inicialmente,

dupla direção literário-científica: uma em Portugal e outra no Brasil. A

direção portuguesa cabia a Teófilo Braga e Teixeira Bastos. A brasileira era

formada por Américo Brasiliense, Carlos von Koseritz e Silvio Romero.

142 Idem, ibidem, p.303.

74

2.2.1. Convirá atentar no que diz o Programa da Revista de Estudos

Livres, que abre a primeira edição anual (1883-1884) desta publicação e

que foi escrito por Teófilo Braga:

“Lançando à publicidade a REVISTA DE ESTUDOS LIVRES, não poderíamosexpor melhor o pensamento que a motiva, nem o intuito que nos estimula senãoapresentando em duas palavras o que Augusto Comte entendia por uma Revistamoderna. O eminente transformador da Filosofia do século XIX, projectava umaRevista ocidental como um órgão de aplicação contínua da sua doutrina ao cursodos acontecimentos humanos, realizados ou previstos, para a apreciação sistemáticado movimento intelectual e social nas cinco grandes populações avançadas, francesa, italiana, espanhola, germânica e britânica. […] A REVISTA DE ESTUDOS

LIVRES visa à aplicação dos eternos princípios da liberdade intelectual, moral epolítica aos acontecimentos actuais, para os julgar e poder deduzir deles ascondições do progresso. Todas as investigações nos interessam, com tanto que elasconduzam para um ponto de vista social. Na crise de transformação mental epolítica em que vão entrando as duas nacionalidades portuguesa e brasileira, filhasda mesma tradição histórica, nas quais o regime católico-monárquico subsiste pelainércia, mas sem apoio nas consciências, é imensamente necessário um órgãocrítico e especulativo que agremiasse os dois povos para a inteligência da suatransição inevitável. A REVISTA DE ESTUDOS LIVRES tornar-se-á benemérita no diaem que inicie esta convergência necessária, até hoje firmada apenas pelo nexoeconómico e pela concorrência mercantil, formas espontâneas da síntese activa. Entre Portugal e Brasil existem as bases profundas de uma síntese afectiva, como severificam esplendidamente nas festas do Centenário de Camões, porém aspublicações intituladas luso-brasileiras, não podendo elevar-se à compreensão dasíntese especulativa, ou acordo mental, caíram diante da chateza da exploração doassinante, obstando pelo descrédito à influência de um pensamento tão fecundo. ARevista de Estudos Livres procura reatar a aliança mental luso-brasileira; eis oseu fim prático resultante do actual momento histórico”(143).

No programa da revista, acima transcrito parcialmente, há, na

perspectiva da nossa investigação, vários elementos importantes a reter: i) o

lugar ordenador e polarizador de uma base de pensamento positivista,

enquanto responsável pelas balizas doutrinárias da revista; ii) o apelo a um

movimento de “convergência” luso-brasileira, condição necessária num

contexto de crise e transição que enfrentam as duas nacionalidades (a

portuguesa e a brasileira); iii) o reconhecimento de uma “síntese afectiva”

entre essas nacionalidades, patenteada nas comemorações do Centenário de

143 Revista de Estudos Livres. Programa. Directores literário-científicos: em Portugal DoutorTeófilo Braga e Teixeira Bastos; no Brasil Doutores Américo Brasiliense, Carlos Koseritz eSílvio Romero. 1883-1884, p.1-3. Acervo B.G.U.C. Grifos nossos.

75

Camões mas não dispensando uma “síntese especulativa”; e, por fim, iv) o

propósito de “reatar a aliança mental luso-brasileira”.

Como se percebe, a Revista de Estudos Livres institui uma escala

discursiva luso-brasileira para a divulgação dos conhecimentos modernos

da ciência positiva. Mas – pergunta-se – qual foi, no contexto brasileiro, a

repercussão desta proposta de Teófilo Braga que falava em “reatar a aliança

mental luso-brasileira”? É verdade que estão, ao lado de Teixeira Bastos,

três brasileiros a subscrever o primeiro volume da Revista: Américo

Brasiliense, Silvio Romero e Karl von Koseritz. Mas seria esse fato o

garantidor de um inquestionável apoio à iniciativa?

2.2.2. Não é o que indicam as fontes consultadas. Veja-se, por exemplo, o

tom da resposta que Araripe Júnior faz estampar em um texto publicado na

revista brasileira Lucros e Perdas, logo em Julho de 1883, por conseguinte

bem em cima do acontecimento. Nessa crônica, Tristão de Alencar Araripe

Júnior informa os leitores brasileiros da seguinte forma: “Aparece agora em

Portugal uma publicação com o título de Revista de Estudos Livres.” Em

seguida, transcreve parte do programa da Revista, ressaltando um trecho

que contém a proposta, escrita por Teófilo Braga, de «reatar a aliança

mental luso-brasileira». Logo após, manifesta-se: “Lido e relido este

período, eis-me perplexo. Nunca um filósofo arriscou um plano mais inane,

nem isso que se chama espírito de observação se prestou a mais

inconsistente e irrisória declinação”. Diz ainda o crítico cearense que “por

honra, entretanto, ao ilustre historiador, deixo de atribuir à má parte a

temerária proposta, para considerá-la somente o produto da mais completa

ignorância dos elementos que constituem a nação brasileira” (144).

144 ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior eSílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2, julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educaçãoe Cultura, 1958, p.351.

76

A drástica negativa de Araripe Júnior tem por pano de fundo, em

boa dose, as resistências teóricas em torno das noções de “processo

evolutivo” no âmbito das nações e de “transmissão” no caso das relações

entre ex-metrópoles e ex-colónias: “não basta saber que raças compõem um

povo para determinar-lhe a fórmula”, dirá Araripe Júnior. É preciso “ver

esses mesmos elementos – vivos, em ação, em movimento. Não basta

conhecer a anatomia do corpo humano para dizer-se que se sabe o homem;

é indispensável acompanhar experimentalmente o seu desenvolvimento

fisiológico” (145). Segundo ele, “não obstante a analogia tirada das colônias

inglesas e outras, – o exemplo histórico teria sido suficiente para afastá-lo

dessa ideia grotesca de uma impossível refusão” (146).

A proposta de “aliança mental” surge aos olhos de Araripe como

uma tentativa de “refusão”. Assim sendo, o viés nacionalista do autor só

podia encaminhá-lo para uma óbvia negação. Até porque, por outro lado, a

forte influência do naturalismo em sua compreensão da cultura brasileira e

da relação que esta deveria ter com a portuguesa solidificava a sua recusa:

“Acordo mental! Mas seria necessário que nós, semente desprendida

daquela árvore milenária, reproduzida e transformada, frutificando em

novo solo, em regiões completamente diversas, produzindo garfos

estranhíssimos, recebendo enxertos fortíssimos; que nós fôssemos agora

mentir a todas as leis sociológicas, aniquilar os impulsionamentos heróicos,

que tendem a afastar-nos, dia a dia, do tronco de onde saímos, reagindo

contra o hausto febricitante que nos impele à assimilação das qualidades

daquelas raças progressivas, possuidoras dos elementos de que mais

carecemos para sair dos in pace político. Não! Mil vezes não!”(147).

O afastamento entre Brasil e Portugal respeita, na compreensão do

autor, a ordem das leis sociológicas, do desenvolvimento natural dos novos 145 Idem, ibidem, p.351. 146 Idem, ibidem, p.352. 147 Idem, ibidem, p.352. Grifos nossos.

77

organismos, das novas sociedades. Qualquer proposta em contrário seria

antinatural, sendo de nenhum proveito para o Brasil. Face aos “tempos de

transformação” de que fala Teófilo Braga no programa da Revista de

Estudos Livres, Araripe Júnior, ao contrário, acredita que quanto mais

afastado o Brasil estiver de Portugal, tanto melhor será seu

desenvolvimento natural.

Para deixar bem clara a sua posição, Araripe, por ocasião da citada

resposta, expõe, em quatro tópicos, a estrutura de seu pensamento sobre as

relações entre as culturas portuguesa e brasileira, com “toda a seriedade

que merece” o assunto. A citação é um pouco longa, mas justifica-se que

lhe façamos um acompanhamento comentado, visto o modo esclarecedor

com que denuncia a compreensão do autor sobre o relacionamento cultural

entre Brasil e Portugal:

i) “É natural que o Sr. Teófilo Braga e os seus colegas da Revista

façam a proposta. O sentimento é profundamente cosmopolita; mas nem é

português, nem vem com o verdadeiro rótulo. Neste ponto, Camilo Castelo

Branco procede com mais lógica” Segundo o autor, a proposta de Braga é

oriunda de um sentimento de insuficiência da pátria, sentimento que, aliás,

perpassa, na compreensão de Araripe, toda sua geração. Diz ele que “quer

confessem, quer não, a pátria lhes é hoje insuficiente. Esse grupo de moços,

alentados por sentimentos que nada mais têm de comum com a contextura

moral de sua terra, em última análise, experimentam uma revolta contra o

próprio meio em que vivem; não acham uma base sólida que suporte

reorganização, nem matéria plástica que se preste aos novos moldes por

impor. Daí um inconvenientíssimo movimento através do Atlântico,

procurando um público a quem se afeiçoem, com que possam contar, em

quem influam”. Na verdade, o autor enxerga no projeto da Revista de

78

Estudos Livres uma tentativa de “recolonização psíquica”, que se trata de

“um notável erro, senão uma imperdoável pretensão” (148).

ii) Numa postura claramente nacionalista, afirma: “Como influência

mental, a lição portuguesa é perturbadora da nossa evolução natural”.

Segundo ele a cultura brasileira é “uma amálgama”. Por isso, “querer

guardar puros os caracteres desta civilização, tão puros como os imaginou

Comte, é ir de encontro à maior força reconhecida em sociologia, que é a

resultante do imprevisto da fusão das raças e da imersão desse precipitado

em regiões cujos recursos sejam pasmosos”. Crítico do positivismo, afirma

que “todos sabem que nenhuma doutrina calhou tanto em Portugal como o

comtismo, e há de ser aceita por todas as nações decrépitas, incapazes de se

renovarem por si mesmas, sem influência da força estranha”. Nesse

sentido, para o Brasil, seria negativa a influência da cultura portuguesa nos

finais do século XIX, pois estaria “injetando em nosso funcionamento

elementos já visivelmente contrários à sua marcha natural”. Para ele, “toda

a doutrina caduca é enormemente anárquica. E é essa anarquia que,

inconscientemente, o Sr. Teófilo Braga e seus colegas tentam inocular em

nosso organismo”. E continua:

iii) “a tradição portuguesa não nos deve interessar tanto como aos

que dela vivem unicamente. Se em Garrett (Camões) e Alexandre

Herculano (Eurico) tece ela um certo sainete pitoresco, isto já constitui um

fato passado” (149). Ora, segundo ele, “preocupa-se com o passado quem

não tem futuro. Só os velhos aprazem-se em avivar a memória dos tempos

idos. Os moços revolvem as cinzas de onde sairão enquanto os elementos

necessários à coordenação do presente, mas com os olhos sempre fitos no

horizonte luminoso que os atrai”. Daí que considere improdutiva a 148 Idem, ibidem, p.352. 149 ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior eSílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2, julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educaçãoe Cultura, 1958, p.353.

79

reaproximação das esferas culturais brasileiras com Portugal. Afinal,

pergunta: “o que nos adiantaria compartilharmos dessa preocupação

constante das antigas navegações? Mergulharmo-nos no subjectivismo

atroz, que faz padecer os moços a quem me refiro? Nada”. E, com efeito,

para o autor de Gregório de Matos, a comemoração do Centenário de

Camões, ao contrário do que afirmara Teófilo, acabara não por aproximar

as duas nações, mas, ao contrário, “erguendo o orgulho colonial,

amesquinhou o espírito nacional”.

iv) Acresce, por fim, que, para Araripe, “a questão econômica” é, de

todas a “mais grave”. Nesse quadro, considera que se a solidariedade do

português “cresce dia a dia”, o brasileiro, por sua vez, “se sente mais

distanciado, menos português”. Haveria, assim, uma atmosfera de

“hipócritas, brasileiros e portugueses, que vivem a abraçar-se numa fingida

sinceridade que tem sua base principal na praça do comércio”. E, em boa

inspiração naturalista, exara que “só há um meio de obviar o choque de

duas massas que se extremam: é abater uma e obrigá-la a absorver-se na

outra, subordinando-a a uma nova coordenação de moléculas”. Termina

rogando que “sejam estas frases recebidas como reagente posto por mão

cordata e sincera. O que convém, presentemente, é que não pensem mais

em educar canários no reino para vierem cantar no império” (150).

Após a exposição pormenorizada dos argumentos de Araripe

Júnior, contrários à proposta de “aliança mental” luso-brasileira, cabe

perguntar se houve alguma repercussão, em Portugal, desse virulento

discurso surgido nas páginas da revista Lucros e Perdas. É o que logo se

vê.

150 Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior e Sílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2, julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de AfrânioCoutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.354.

80

2.2.3. A Revista de Estudos Livres também continha uma seção, chamada

“Bibliografia”, de recepções críticas de obras relevantes na tarefa de

divulgação dos princípios da ciência positiva. É neste espaço que Teófilo

Braga responde a Araripe. Através de uma recepção crítica da publicação

da revista Lucros e Perdas, o autor dos Elementos da nacionalidade

portuguesa faz uma série de apreciações sobre o tom negativo das opiniões

do cearense a propósito da “aliança mental” tal como esta havia sido

avançada nas páginas da Revista de Estudos Livres.

Convém lembrar, entretanto, que o projeto da citada revista

brasileira Lucros e Perdas era assinado não apenas por Araripe Júnior, mas

também por Silvio Romero, o qual, aliás, também subscrevia – como

diretor “literário-científico” brasileiro – a Revista de Estudos Livres.

Romero estava, portanto, em ambos os projetos editoriais. Esta

circunstância explica, provavelmente, a abordagem inicial de Teófilo, na

altura de referir o texto de Araripe (151): “Conhecemos os redactores desta

revista literária e o tipo da sua publicação, um pouco moldada pelas Farpas

do nosso eminente crítico Ramalho Ortigão”. Em seguida, faz uma

apreciação bastante positiva de Silvio Romero, com quem, pouco depois,

entraria em intensa polémica (152), dele dizendo tratar-se de “um professor

distinto e um audacioso reorganizador da literatura brasileira, investigando

as tradições populares e procurando nelas o tema para a criação de uma

poesia e arte nacional” (153). Quanto a Araripe, dele diz Teófilo que

“aparece como um esmerado investigador das riquezas tradicionais da

província do Ceará, devendo-se-lhe curiosas indicações sobre o ciclo dos

Romances de Vaqueiros com que contribuiu para a colecção dos Contos 151 Merece destaque o fato de Silvio Romero não mais aparecer, no segundo ano da Revista deEstudos Livres, como diretor “literário-científico”. 152 Na seção seguinte analisaremos os detalhes que envolveram Teófilo Braga e Silvio Romeroem conhecida polêmica. 153 BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliografia” sobre a revista Lucros e Perdas – crônica mensaldos acontecimentos, por Silvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 1883, 1º fascículo, inRevista de Estudos Livres, ano I, 1883-1884, p.333-336.

81

Populares do Brasil”. E afirma, depois, em tom de lamento: “Quando

pensávamos que os dois espíritos procediam de acordo mental na sua

crítica, logo no primeiro número dos Lucros e Perdas rebenta a dissidência

nas suas opiniões, separam-se não por incompatibilidade de humor, mas

por falta de unanimidade de princípios. Involuntariamente a nossa Revista

de Estudos Livres foi a causa da dissidência” (154).

E prossegue assinalando que Araripe Júnior teria feito “tremendas

acusações” que se podem refutar, posto que “são emoções de um

inconsciente chauvinismo parodiado de velhas coisas que tiveram já o seu

tempo”. De resto, a “aversão das colónias americanas contra a Inglaterra,

motivada por causas históricas, tem sido por vezes parodiada no Brasil sem

outro fundamento mais de que uma impressão individual que desabafa em

jornais como a Tribuna (155) ou qualquer outra folha anónima” (156). O

“facto positivo é que o Brasil, pela sua grandeza, precisa do concurso de

todas as actividades, e que todo aquele que perturba por qualquer forma a

convergência desse esforço civilizador, assoalhando antipatias de raça ,

quando a mestiçagem acabou com elas, e ódios históricos sem realidade

nos factos, pratica um acto estéril, impotente, mas que nem por isso deixa

de ser condenável” (157).

Dirá, ainda, forçando a nota quanto ao caráter cientificamente

estribado dos seus argumentos, que “aplicar ao Brasil esta aversão ao

154 A informação de que a Revista de Estudos Livres teria causado a “dissidência” entre SilvioRomero e Araripe merece ser melhor averiguada. De qualquer forma, há indícios para crê-laverdadeira. Conforme a nota dos organizadores da publicação das Obras críticas de AraripeJúnior, “Araripe e Sílvio se desentenderam a meio caminho, deixando o primeiro de prosseguirna parceria”. “Nota dos organizadores”. In: ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar, Lucros ePerdas. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de AfrânioCoutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.529. 155 Provavelmente Teófilo se refere a Tribuna do Pará, jornal, aliás, também mencionado pelascrônicas de Oliveira Martins na Revista Ocidental, em 1875, conforme vimos. 156 BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliografia” sobre a revista Lucros e Perdas – crônica mensaldos acontecimentos, por Silvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 1883, 1º fascículo, inRevista de Estudos Livres, ano I, 1883-1884, p.334. 157 Idem, ibidem.

82

elemento português é uma leviandade. Se por ventura na população

brasileira se eliminasse de um certo tempo em diante o elemento português,

a população com o decurso do tempo regressava ao elemento selvagem. É

isto o que se demonstra pela antropologia. De todos os povos da Europa só

o português, o italiano e o espanhol é que podem adaptar-se ao clima da

América meridional; o espanhol tem as suas próprias colónias que o

atraem, o italiano que emigra não é sedentário, só o português é que se

dirige para o Brasil como uma continuação da sua pátria” (158). Bom seria,

portanto, que se reconhecesse que o imigrante português, pela sua atividade

no Brasil “funda os grandes instrumentos de produção”, só trazendo para

Portugal “o dinheiro com que nos afasta de um sério regime económico”,

num cenário em que “no Brasil ficam montados os aparelhos que elaboram

a riqueza”, indo para Portugal o dinheiro “com que o nosso organismo

económico se sustenta depauperando-se”. Daí que fale da “mutualidade de

interesses” que é a base de uma “concórdia espontânea entre brasileiros e

colonos portugueses”, referindo, ainda, a existência de uma “harmonia de

sentimentos” derivada dos “nossos antecedentes históricos, da mesma

civilização de que ambos os povos são os actuais representantes, tão

sublimemente expressa no Centenário de Camões, mau grado os despeitos

isolados que envolveram a independência política com a unificação moral

de uma mesma tradição” (159).

É, assim, taxativo: “só falta realizar o acordo mental” através da

formação de “uma clara compreensão histórica e social dos dois povos, e

procurando as bases de unanimidade dos espíritos em uma doutrina

deduzida da realidade objectiva dos factos”. A doutrina positivista teria,

para Braga, a possibilidade de, sobre fatos da “realidade”, instituir uma

convergência da situação histórica dos dois países, posto que eles “nada

158 Idem, ibidem, p.334. 159 Idem, ibidem, p.334-335.

83

têm a esperar já da organização católica, que hoje só se impõe pela sua pela

sua perturbação da esfera civil e pela dissolução da vida doméstica”; ou

seja, a “filosofia positiva é a única doutrina que considera os factos da vida

geral das sociedades sob o ponto de vista objectivo da invariabilidade das

leis naturais, e que em vez de utopias subjectivas funda as suas observações

nos antecedentes históricos” (160).

A diferença de opiniões entre Teófilo e Araripe estava, em suma,

ancorada numa vincada desinteligência em matéria de “leis naturais” da

“evolução dos povos”. Para Araripe, lembre-se, a evolução natural do povo

brasileiro passava pelo seu afastamento de Portugal. Para Teófilo, ao

contrário, uma aliança luso-brasileira estaria inscrita na ordem das coisas e

fortaleceria ambos os países. E, como ambos os países estavam, segundo a

compreensão de Braga, em acentuado “período de transição”, importava,

portanto, “acelerar a circulação de ideias” entre eles (161). Esse intercâmbio

seria uma evidência a mais no sentido de uma associação de interesses e

trajetos entre Portugal e Brasil. Ao mesmo tempo daria condições para o

mútuo benefício que, sob um ponto de vista objetivo, deveria resultar da

sua tendencial convergência.

2.3 Os cultores do distanciamento

Acesa a reação de Araripe Júnior à ideia de uma “aliança mental”

fraternalmente esteada na filosofia positiva já é um bom indicador das

diversas nuances que se iam colocando à convergência entre as culturas

portuguesa e brasileira. Mesmo nem sempre assumindo foros de oposição

declarada ao espírito “associativo”, forjavam-se outras linhas

interpretativas na hora de “acertar contas” com o passado colonial. Uma 160 Idem, ibidem, p.335. 161 Idem, ibidem.

84

delas era a que designamos por ponto de vista do distanciamento. Seu

principal expoente será, em nosso entender, Sílvio Romero.

Há boas razões para isso. Primeiro, porque Romero tanto fez parte

do elenco da Revista de Estudos Livres – proponente de uma “aliança

mental” luso-brasileira – como integrava a redação da revista brasileira

Lucros e Perdas, em cujas páginas, como vimos, Araripe Júnior negava

fortemente qualquer tipo de aproximação a Portugal. Depois, porque o

cariz nacionalista de seu projeto intelectual, ao conduzi-lo à busca da

originalidade do tipo brasileiro, impunha – necessariamente – uma

permanente revisão das relações com Portugal. Um bom posto de

observação do seu pensamento é a Revista Brasileira, periódico que

acolheu os primeiros textos romerianos publicados no Rio de Janeiro, em

1879. Concentramos nossa análise, exclusivamente, na chamada “fase II”

dessa revista – fase em que a maior parte das matérias abordavam textos de

crítica cultural, literatura, análises e recepções críticas de autores

consagrados (162). É aí que se vislumbram as temáticas de âmbito luso-

brasileiro.

2.3.1. A produção de Romero na Revista Brasileira tem uma especial

importância, pois marca o período de sua chegada ao Rio de Janeiro.

Segundo Luís da Câmara Cascudo, esse momento é fundamental na

biografia intelectual do autor, pois é nele que Romero busca espaço na cena

cultural carioca, procurando distinguir-se do exagerado francesismo desta

(163). É nesse momento, também, que ele acentua sua atividade de

162 A Revista Brasileira foi editada em três fases distintas (1857-1861, 1879-1881, 1895-1898). Sobre a Primeira fase (1857-1861) consultar MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro. Algumas reflexões sobre a década de 20. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO[Dissertação de Mestrado em Ciência da Informação], 1998, 127p. 163 Assim se expressa Luís da Câmara Cascudo: “Fixando-se no Rio de Janeiro em 1879, SilvioRomero começa a publicar na Revista Brasileira os estudos A Poesia Popular no Brasil, reunidos em 1888, num tomo, Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil, Tip. Laemmert. Essesestudos duraram um ano. Era o programa da análise do folclore brasileiro, sua literatura oral em

85

propagador das ideias da Escola de Recife. À parte dessas considerações de

ordem biográfica, é de assinalar ter sido, precisamente no Rio de Janeiro,

que Romero intensificou suas intervenções à escala luso-brasileira. Delas

nos deteremos agora (164).

O primeiro texto publicado por Sílvio na Revista Brasileira foi A

Poesia Popular do Brasil (165). Aí estabelece os critérios determinantes da

individualidade do brasileiro em relação aos demais povos, sendo que

“nesta inquirição devem ficar fora do quadro o português nato, o negro da

costa e o índio selvagem, que existem atualmente no país, porque não são

brasileiros, e sim estrangeiros” – porque, se “o genuíno nacional é o

descendente destas origens”, ele não se confunde com elas(166).

Para Romero, o “genuíno brasileiro de hoje, como geralmente se

apresenta, é em regra um resultado de cada um dos três factores principais

em separado, ou de dois, ou de todos os três”. Nesta mistura, entretanto, o

“factor português pesa-lhe com mais força por meio de sua civilização, sua

língua, sua religião e suas leis”(167). Isso porque, segundo ele, “o negro

crioulo, e o mulato ainda menos, não podia figurar como testemunho certo

de que sentiram e pensaram seus ascendentes africanos, os pretos ditos da

Costa”, porque, assim como o “caboclo e seus descendentes”, todos foram

“mais ou menos completamente educados à portuguesa”(168). Vê-se,

claramente, que o problema que começa por se lhe colocar é, forçosamente,

o de definir esse português cuja contribuição para o conhecimento do

plano sistemático, poesia, teatro tradicional, orações, jogos infantis, contos populares. Essesmotivos foram expostos, revolvidos, apresentados com aquela vivacidade típica, num ar dedesafio, porque era no tempo um pisar-de-pé na cultura oficial”. CÂMARA CASCUDO, Luísda. “Epígrafe e Nota bibliográfica”. In: ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Popular doBrasil. Petrópolis: Vozes, Coleção Dimensões do Brasil, 1977, p.11. 164 Contudo, vale frisar que analisaremos, em seção à parte, a publicação de uma edição especialem comemoração ao Tricentenário da morte de Camões, em 1880. 165 ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.94-102 – 1ª parte.166 Idem, ibidem, p.97. 167 Idem, ibidem, p.98. 168 Idem, ibidem, p.100.

86

genuíno brasileiro se afigura, independentemente de avaliações,

absolutamente incontornável.

Recorrendo a uma confessa utilização cruzada de Alexandre

Herculano e Teófilo Braga (169), considera que “os portugueses povoaram

este país numa época para eles de profunda decadência política e social, o

tempo da Inquisição e do cativeiro espanhol em que findou o período

heróico de sua história e começou a grande crise do desmoronamento em

que ainda hoje se debate a estimável nação”. Por consequência, quando o

Brasil começou a ser colonizado, “já em Portugal definhava, desprezada,

senão esquecida, a grande poesia popular. De si já bastante emaranhadas as

tradições da península hispânica, ainda mais o ficaram em o novo mundo

para onde foram transplantadas no tempo de sua velhice. Os selvagens aqui

encontrados foram raramente civilizados e incorporados em a nova geração

que ia se perpetuar na América”(170).

E é fundado em semelhante pressuposto analítico que avança sobre

o seu âmbito argumentativo de eleição, a construção das especificidades

brasileiras. Em clara aplicação das ideias darwinistas ao estudo do folclore

nacional, exprime que “nas danças, músicas e poesias populares, dão-se

também as leis da seleção natural. Adaptadas ao novo meio, transformam-

se, produzindo novos rebentos ou novas vidas”. Como exemplo, toma o

tipo regional do baiano: “é mestiço de origem, predominando nele agora o

elemento africano, que, por mais que o queiramos esconder, prevalece

ainda em nossas populações”. Essa formação cultural brasileira, tomada à

luz do exemplo baiano, caracteriza, entretanto, uma forte distinção da

cultura brasileira em relação às demais culturas latino-americanas, ex-

169 Sílvio indica, em nota de rodapé, as seguinte fontes: “Alex. Herculano História da origem eestabelecimento da Inquisição em Portugal, passim Th. Braga, Manual de História daLiteratura Portuguesa”. ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: RevistaBrasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.101. 170 ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.101.

87

colônias espanholas. Assim, afirma Romero que “se nas repúblicas

espanholas o cruzamento mais vasto foi do europeu com o índio, no Brasil

foi do branco com o negro, predominando até agora as formas escuras nas

classes baixas”. Afinal, no Brasil “se há de notar que o número de mestiços

excede o de brancos puros, índios puros e negros puros, e que naqueles a

impressão do preto é mais viva”. Por isso o “baiano é uma especialidade

brasileira: ele e o vatapá e o caruru, também implantações africanas

transformadas, são as três maiores originalidades do Brasil” (171).

O critério da originalidade – isto é, o estabelecimento das

especificidades produzidas em contexto unicamente nacional – é o

verdadeiro interesse do crítico. Assim, compreende-se o bom conhecimento

que este revela da obra de Teófilo Braga(172), crítico português também

preocupado com as originalidade da cultura lusitana em relação aos demais

povos ibéricos. Nesse sentido, vemos Romero citar Braga, ao reafirmar que

a “modinha é uma transformação da serranilha, como já foi demonstrado

por Teófilo Braga, e é para mim menos original. Adaptada a este solo,

quando foge do verso e música dos modelos convencionais, adquire

também um grau pronunciado de originalidade. Chega a este ponto quando

ao elemento português agregam-se outros, porque o genuíno brasileiro,

como já disse, o nacional por excelência não é, como alguns hão afirmado

erroneamente, este ou aquele dos concorrentes, mas o resultado de todos, a

forma nova produzida pelos três factores” (173). Para Romero, citando o

171 ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879 – 3ª parte, p.270. 172 Essas relações entre Romero e Teófilo foram realçadas, por exemplo, por BORGES, Paulo. Pensamento Atlântico: estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro. Lisboa: INCM, 2002, principalmente no capítulo “Tradição, Literatura e Nacionalidade em Teófilo Braga e SílvioRomero”, pp.135-154, também publicado em Sílvio Romero e Teófilo Braga. Actas do IIIColóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 19996. Dedicar-nos-emos a alguns detalhes desta aproximação teórica, estratégica e analítica dos dois intelectuaisnos capítulos seguintes deste trabalho. 173 ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879 – 3ª parte, p.270.

88

Manual de História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, a

originalidade da modinha brasileira é um facto dado, na medida em que

“por meio delas este país, quando colónia, chegou a influir na literatura da

metrópole” (174).

Todas estas considerações ganham o devido alcance quando

enquadradas com outro texto de Sílvio Romero, também publicado na

Revista Brasileira, em 1879. Trata-se do opúsculo A Literatura Brasileira;

suas relações com a portuguesa; o Realismo (175). Já no início do texto, à

moda de um manifesto nacionalista modernista avant la lettre, declara

Romero que “o Brasil, depois de quatro séculos de contacto com a

civilização moderna, parece ter chegado ao momento de olhar para trás a

ver o que tem produzido de mais ou menos apreciável no terreno das

ideias” (176). Afinal, segundo a compreensão do autor, “uma nação se

define e individualiza quanto mais se afasta pela história, do carácter das

raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à sua mentalidade”

(177).

Percebe-se aqui, em toda a sua amplitude, o projeto romeriano.

Suas declarações expressam um cunho nacionalista vincado, através de

uma compreensão que entende que uma gradual diferenciação de Portugal

faz parte da autodeterminação cultural brasileira. Para ele, como para

muitos intelectuais brasileiros de sua época – pense-se, em Machado de

174 É importante ter presente que já em alguns trechos da A Poesia Popular do Brasil, podemosperceber as considerações que, anos depois, marcarão o bordão forte de sua História daLiteratura Brasileira, que teve primeira edição em 1888. Assim, vemo-lo, por exemplo, aindana Revista Brasileira, em 1879, analisar a “A Filosofia da História de Buckle e o atraso do povobrasileiro”, secção que estará presente no livro de 1888. Relativamente ainda às fontes utilizadaspor Romero, merece ainda lembrança que na última parte de A poesia popular do Brasil, Romero faça referência ao seu trabalho de 1873, bem como ao livro de Adolfo Coelho, Contospopulares portugueses. Percebem-se, aqui, mais uma vez, as interpelações múltiplas existentesna escala cultural luso-brasileira. Idem, ibidem, p.274175 ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In:Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.273-292. 176 Idem, ibidem, p.273. 177 Idem, ibidem, p.274. Grifo nosso.

89

Assis, que, neste particular, parece, tanto quanto com Romero, antecipar o

Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade (178) –, é preciso

completar a independência política com a realização da independência

cultural do Brasil. Eis aqui o elo político de um projeto intelectual e

cultural em torno dos processos de individualização das características que

determinam a nacionalidade brasileira.

2.3.2. Nesse processo de individualização, o brasileiro “se afasta pela

história”, diz Romero. Os conceitos do evolucionismo lamarckiano diziam-

no também. Assim, em seu trabalho de “diferenciação nacional, o

brasileiro será tanto mais progressivo e autonômico, quanto mais,

apropriados os germens úteis que legaram-lhe as raças que o constituíram,

delas afastar-se, formando um tipo à parte, uma individualidade distinta”.

Lógico parece, assim sendo, que a “nação brasileira, se tem um papel

histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se do negro

africano, do selvagem tupi e do aventureiro português” (179).

Romero acredita que o funcionamento das sociedades é o mesmo

que se verifica na natureza. O que lhe permite afirmar que, “como no

mundo físico corpos diversos e estranhos combinados produzem resultados

distintos inesperados, assim na história a combinação de raças diferentes

numa região vem a oferecer ao adiante o espectáculo das civilizações

originais”. Mesmo que o Brasil ainda esteja em formação, mesmo que sua

íntegra ainda seja um fato muito recente, acredita que “já é tempo de

178 Exemplo disso é o texto de Machado de Assis, Instinto de Nacionalidade e outros ensaios de1878. Vale, entretanto, assinalar que podem haver critérios históricos concomitantes entre otexto de Machado de Assis, o de Sílvio Romero e o Manifesto Antropofágico, de Oswald deAndrade, publicado em 1928. Estas relações hermenêuticas, contudo, não são evidentes e, porisso, merecem maior atenção e acuidade analítica. Não obstante isto, acreditamos haver, nestaperspectiva, muitas questões ainda a serem melhor perscrutadas, seja do ponto de vistaexclusivamente brasileiro, seja do ponto de vista referente às aproximações luso-brasileirasnestes movimentos finisseculares e modernistas. 179 ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In:Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.274.

90

lançar-se um olhar retrospectivo sobre a sua história intelectual, para

marcar os primeiros traços da individualidade embrionária deste povo

recente”. À luz de uma interpretação naturalista do desenvolvimento dos

povos e da história, afirma que contribuíram para o desenvolvimento do

“embrião” brasileiro dois importantes agentes: “a natureza e a mescla de

povos diversos”(180). Onde observar o produto desse desenvolvimento?

O autor da História da Literatura Brasileira considera que a

literatura é uma das manifestações da “actividade mental” dos povos, e que,

por isso, “pode com proveito ser consultada como sintoma de seu progresso

ou decadência”. Nessa compressão, o estudo da história da literatura surge

como expediente intelectual capaz de diagnosticar a força dos

“organismos” nacionais. E que diagnóstico, em concreto, ela permite?

Embora nacionalista, Romero distingue-se, às vezes com virulência, da

maior parte dos românticos brasileiros, geralmente ufanistas, que acreditam

que “tudo vai bem” nas terras brasileiras. Romero pensa diversamente. Para

ele, “o povo brasileiro vai mal, muito mal, e entre as nações cristãs só um

similar encontra na desgraça: o desventurado e mesquinho Portugal” (181).

É no decurso deste posicionamento que Romero se preocupa em

traçar a estrutura de uma história da literatura brasileira, dando ênfase aos

períodos da evolução da intelectualidade através do critério nacional, um

desiderato que lhe permite acentuar os fundamentos teóricos do seu

entendimento acerca do carácter das nações: o “capítulo preliminar de uma

história da literatura brasileira, quando o escreverem com rigor científico,

deverá ser uma inquirição do como o clima do país vai actuando sobre as

populações nacionais; o segundo deverá ser uma análise escrupulosa das

origens do nosso povo, descrevendo, sem preconceitos, as raças principais

180 Idem, ibidem, p.274. 181 Idem, ibidem, p.275.

91

que o constituíram” (182). Atenção, portanto, à questão racial brasileira, para

ele de primordial relevo e sobre a qual importa corrigir erros de avaliação.

Erros como os de Teófilo Brag, alerta o sergipano: “sobre as raças dever-

se-á ter o cuidado de não esquecer nenhuma delas, como, ainda, não há

muito, o fez o Sr. Th. Braga, que nas poucas páginas que escreveu sobre a

poesia brasileira nem uma palavra disse das origens africanas, de nosso

povo”(183). Segundo ele, outros equívocos cometidos por Teófilo Braga se

devem evitar, como “a leviandade com que este escritor persiste em repetir,

como descoberta novíssima, a desacreditada teoria da existência de uma

raça turana, a que se filia, segundo o velho erro, os povos indígenas da

América”(184).

Isto exposto, entende-se melhor por que motivo, no âmbito da sua

“inquirição” pelo “genuíno nacional”, o autor remete, primeiramente, a

fatores estáticos do ponto de vista sociológico – como raça e clima – os

quais, ao mobilizarem o problema da origem, não podem deixar de

convergir num processo de releitura histórica. Operam sempre, assim,

numa releitura do relacionamento com Portugal, dando, frequentemente,

primazia da cultura brasileira sobre a cultura portuguesa.

No século XIX, defende Romero, os brasileiros precedem os

portugueses “na vida revolucionária e constitucional”. Segundo ele, “antes

de seu insignificante movimento de 1820, nós havíamos tido os sucessos de

1817; antes de terem eles uma constituição, mais ou menos liberal, nós a

tínhamos; antes de se verem livres de D. Miguel, tivemos a abdicação de D.

Pedro. Em uma palavra, eles nada possuem que se possa equiparar aos

182 Idem, ibidem. 183 Romero refere-se à obra de Teófilo Braga Parnaso Português Moderno, publicada emLisboa, em 1877, portanto, apenas 2 anos antes de Romero escrever esse texto. 184 ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In:Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.276. Éimportante lembrar que, no mínimo, desde 1871, Teófilo Braga defendia a existência da raçaturaniana. Como exemplo, remetemos a BRAGA, Teófilo. Epopeias da Raça Moçárabe. Porto:Imprensa Portuguesa Editora, 1871.

92

nossos ímpetos revolucionários deste século” (185). A disputa sobre a

primordialidade, neste e noutros casos, é condição prévia da visada

afirmação do distanciamento. Repare-se, a título de exemplo, que, para o

nacionalista Silvio Romero, o “romantismo marca, intelectualmente, o

primeiro passo decisivo que fizemos para deixar de lado a cultura lusa”,

pois os escritores brasileiros, “os nossos moços, de 1822 em diante,

começaram a ler os escritores franceses e ingleses de preferência aos livros

de Portugal”, pois “o velho reino havia feito completa bancarrota de

ideias”, não passando, no século XIX, de “um ínfimo glosador dos

desperdícios franceses”. Silvio Romero acredita que “se continuássemos a

pensar somente pelo critério dos livros de Lisboa, teríamos chegado, como

eu já disse uma vez, à completa «paralisia intelectual»”(186). Nesse quadro

não espanta que Romero tenha por certo que “o velho reino perdeu

definitivamente o encanto a nossos olhos” (187).

E será na esteira destas afirmações que chegará a denunciar um

certo tom de “exasperação” presente na maneira dos intelectuais

portugueses se referirem aos brasileiros. Cita, como exemplo, os casos da

publicação de As Farpas, de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, assim

como o Cancioneiro Alegre, publicado por Camilo Castelo Branco,

também em 1879. Para Sílvio, ambas as publicações, embora recentes,

representam “um sintoma patológico evidente da apatia intelectual do velho

reino”, pois não passavam de “objurgatórias estéreis, falhas de seriedade e

de sentimentos elevados”. Ao ponto de, frente às obras de Camilo, Eça e

Ramalho Ortigão, todas sarcásticas em relação à figura do brasileiro, lhe 185 O autor faz, a seguir, em nota de rodapé, referência aos “sucessos de 1817, 24, 31, 35, 42, 48”, querendo com isto mobilizar momentos históricos de reafirmação nacional brasileiraperante Portugal. A politização da memória, neste caso, é bem evidente. ROMERO, Silvio. “ALiteratura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo”. In: Revista Brasileira, Riode Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.280. 186 Romero remete ao seu trabalho de 1873, O romantismo no Brasil. ROMERO, Silvio. “ALiteratura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In: Revista Brasileira, Riode Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.280. 187 Idem, ibidem, p.281.

93

parecer que Teófilo Braga, “apesar de seus arrojamentos gratuitos, tem

mais senso crítico do que o geral de seus compatriotas”(188).

Significativo é o seu cotejo em relação à primazia na divulgação

das “ideias novas” da segunda metade do século XIX. Para ele, “em 1862,

no terreno do jornalismo, antes da Reacção de Coimbra, entre nós a escola

do Recife reagiu” contra os princípios do ecletismo, vigente na época. Os

brasileiros Tobias Barreto e seu discípulo Castro Alves ganhariam, assim,

proeminência, quando confrontados com o grupo português liderado por

Antero de Quental, na célebre “Questão Coimbrã”. De resto, essa primazia

do movimento de Pernambuco dar-se-ia também em relação aos análogos

movimentos de divulgação científica: “Este movimento, de carácter

revolucionário, propagou-se por todo o país, acordando decidido

entusiasmo na escola de São Paulo e no Rio Grande do Sul” (189).

Indubitável se mostrava, para Sílvio Romero, que, no século XIX, nas

artes, na música e na pintura, os brasileiros levam “incontestavelmente

vantagem aos portugueses”, na medida em que em Portugal não há “nem

um Carlos Gomes, nem um Pedro Américo ou Victor Meireles”. E mais, as

vantagens brasileiras se dão, inclusive por que “nossa geração actual

começou a estudar e a seguir as ideias de Comte e Darwin” (190).

Compreende-se, assim, que, em 1879, em sua classificação da

literatura brasileira, Romero filtre, quase cirurgicamante, aqueles autores

que aí deveriam ser incluídos: apenas Gregório de Matos, Tomás António

Gonzaga, Santa Rita Durão, Martins Pena, Alvares de Azevedo e Tobias

Barreto aí teriam cabimento. Porque, como explicava, o critério era o de

inserir os que representassem o princípio de “diferenciação nacional” (191).

188 Idem, ibidem, p.281. 189 Idem, ibidem. 190 Idem, ibidem, p.282-283. 191 Idem, ibidem, p. 284.

94

2.3.3. Em certo sentido, a vinculação originária a Portugal à

inevitabilidade de um reconhecimento de determinado nível de participação

portuguesa nas feições da brasilidade, não é recusada. Insiste-se nisso: o

ponto central, que esse momento de partilha não pode ser nem

sobrestimado, nem perene. Até porque, mesmo nos níveis de manifesta

dívida para com a herança, ou da paridade conjuntural dezenovista de

ambas as culturas – até por contraponto conjunto face ao restante mundo –,

o panorama não era de molde a grandes celebrações. É assim possível

surpreender Sílvio Romero a ensaiar uma comparação entre a cena cultural

luso-brasileira e a da restante Europa, afirmando, a esse propósito, que

“tanto o Brasil como Portugal fazem mesquinha figura quadro das nações

cultas, e o movimento espiritual em ambos os países é quase

insignificante”. Afinal, remata: “entre aquilo que é medíocre e quase nulo é

óbvio que se não deve muito distinguir” (192).

Na mesma linha, empreende uma série de comparações entre, por

um lado, o exercício das modernas ideias em Portugal e no Brasil, e, por

outro, a situação europeia. Atém-se, particularmente, à “evolução

romântica e à crítico-positiva”, sustentando que “naquela, em Portugal,

distinguiram-se muitos espíritos medianos, e os vultos de mais brilho

foram: Herculano, Garrett, Castilho, Mendes Leal, Rebelo da Silva e

Castelo Branco”. Em relação a tais escritores, diz que somente a “nossa

ignorância, a par da ignorância portuguesa” os tem “levantado a altura de

semi-deuses”, sendo que, na verdade, “não passam de figuras de terceira ou

quarta ordem cotejados pelo padrão dos representative men da romântica

europeia” (193). Quanto aos brasileiros, considera que “Magalhães,

Gonçalves Dias, Azevedo, Alencar, Macedo e Varnhagen, que bem se

podem pôr em paralelo, com os portugueses citados”, não sendo também

192 Idem, ibidem, p.284. 193 Idem, ibidem, p.274.

95

“mui grandes”(194). A inferioridade portuguesa frente “ao desenvolvimento

crítico” se dá também, para Romero, no contexto do final do século XIX.

Sobre a geração de 70 portuguesa, questiona: “O que são os seus Bragas,

Coelhos, Cordeiros, Oliveiras Martins… em face da brilhante plêiade de

jovens escritores alemães, ingleses e até italianos, que ilustram a época

actual?”(195).

Definitivamente, na compreensão de Sílvio Romero, o “velho reino

não vai bem”. Como defender então, na perspectiva brasileira, outra

postura que não a do distanciamento gradual frente a Portugal? Veja-se,

por exemplo, que “aos quatro corifeus portugueses por último citados,

temos a opor nossos escritores recentes: Couto de Magalhães como

etnólogo, Barbosa Rodrigues como naturalista, Batista Caetano como

filólogo, Ladislau Neto como botânico e Araújo Ribeiro (Visconde do Rio

Grande) como geólogo”. Afinal, dirá em tom de desabafo, “aqui também

há livros e aqui também se estuda”, pois também no Brasil há poetas,

críticos, filósofos e escritores em geral, “munidos das novas ideias, que o

positivismo e o darwinismo têm espalhado pelo mundo” (196). Daí que

concluir que “não há superioridade de Portugal para o Brasil [pois] “ambos

os países tem o privilégio de produzir epígonos; ambos vivem ajoujados à

mediocridade que os distingue” (197).

Sílvio Romero ainda dirá que, no Brasil, “também contamos anti-

românticos e anti-metafísicos, e sectários entusiastas do monismo

científico. São eles, para não falar de alguns outros: Tobias Barreto, de

Pernambuco, Guedes Cabral, da Bahia, e Pereira Barreto, de S. Paulo, a

quem podem adir os jovens escritores Miguel Lemos, Teixeira Mendes,

Lopes Trovão e J. do Patrocínio”. Vale chamar atenção para o fato de que o

194 Idem, ibidem,, p.285. 195 Idem, ibidem.196 Idem, ibidem, p.286-287. 197 Idem, ibidem, p.287.

96

autor não opera uma demarcação dos escritores da nova geração brasileira

em relação aos portugueses. Ele também os destaca do âmbito carioca, sede

da corte brasileira. Aliás, bem vistas as coisas, percebemos que Silvio

coloca a corte carioca a par com a lisboeta, sendo em relação a ambas que

ele ressalta os feitos dos jovens brasileiros. Por isso, vemo-lo declarar que

“aqueles escritores, com todo o valor que os distingue, permanecem

obscuros, é que não vivem aos embates da claque fluminense, ou lisboeta, e

diferente é o viver desgarrado pelas vastas províncias deste império do que

estar ao aconchego amigável e animador que encontram os seus pares em

Lisboa, por exemplo” (198). Esta manifestação de Sílvio Romero nos

conduzirá, a seu tempo, a refletir sobre as questões relativas aos

regionalismos brasileiros, questões que abordaremos na terceira parte desta

investigação.

Emblemática desta perspectiva é a sua recepção à obra Novos

Ideais, do poeta gaúcho Múcio Teixeira. Se é visível a simpatia que lhe

merece aquela publicação, nomeadamente “porque é realista, mau grado a

moda, quero dizer, exprime a verdade da vida pampeana pelo seu lado

inocente e sério”, evidenciando que o autor “é homem de seu tempo, e

obedece às inclinações da época, [sendo] também homem de seu país e não

esquece o meio em que há vivido” (199), por outro lado, não resiste a exibir

uma discordância pontual, precisamente relativa ao lugar referencial da

cultura portuguesa. Está em causa a opinião de Múcio Teixeira, ao

considerar que “o português Guerra Junqueiro é um grande vulto que deve

ser imitado”; opinião que merece, da parte de Sílvio, o seguinte reparo: “se

o desejo é seguir o belo lirismo do Hugo dos bons tempos, não será então

preciso atravessar o Atlântico para ouvir Junqueiro”, bastaria que o poeta

prestasse atenção às “arrojadas produções de Tobias Barreto e Castro

198 Idem, ibidem, p.286-287. 199 Idem, ibidem, p.291.

97

Alves” (200). Aproveita, aliás, para apontar o caminho às gerações de novos

poetas e literatos brasileiros: “Deixemos Portugal em descanso e estudemos

o nosso país e a culta Europa, que não será pouco” (201).

Em resumo, o intuito de Sílvio Romero é reforçar a escala nacional

para o estudo da literatura e da cultura brasileira, processo que implica um

movimento de redefinição das relações com Portugal. Redefinição essa que

ocorrerá em duas vertentes: uma, que incorpora a influência portuguesa na

figura do mestiço; outra, que, pela gradual autonomização da forma mestiça

da cultura brasileira, se vai gradualmente distanciando da matriz

portuguesa em direção à total autonomia e originalidade nacionais.

3. Modalidades de relacionamento

Equacione-se, por fim, a última dimensão analítica prevista para esta

Parte I. A necessidade da sua abordagem decorre do fato de a vigência de

distintas redes discursivas e de distintos critérios interpretativos no seio de

uma mesma escala cultural fomentar a existência concomitante de também

distintas modalidades de relacionamento no âmbito dessa mesma escala.

Porque a questão é a seguinte: se, em primeira instância, as várias tomadas

de posição teóricas e hermenêuticas vão operando uma “separação das

águas” e produzindo constantes demarcações entre os autores e as ideias

em presença, não é menos verdade que esses alinhamentos, dotados de

maior ou menor grau de enquistamento ou de permeabilidade, colocam

doravante o problema estético do relacionamento entre si. O que se

percebe: neste ponto, “o problema da demarcação convoca,

200 Idem, ibidem, p.291. 201 Idem, ibidem, p.292. Grifos nossos.

98

automaticamente, o problema da relação” (202). Por isso, uma vez efetuada

a prospecção ao nível do primeiro, a pesquisa convoca o segundo. É esse,

com efeito, o objetivo deste capítulo.

Conscientes da dispersão de níveis e formas de relacionamento e da

impossibilidade de dar conta de todos, optamos por investir nossa atenção

naqueles que canonicamente são tidos por regimes extremos do

relacionamento entre os atores sociais – o consenso e a dissensão –,

procurando reconhecer a respectiva manifestação no contexto da escala

cultural luso-brasileira do último quartel do século XIX. Optamos, assim,

por averiguar a expressão tomada por duas das modalidades de

relacionamento caras àqueles dois regimes: a comemoração e a polêmica.

Como se verá, o peso de cada uma delas na relação cultural luso-brasileira

justifica esta opção.

3.1. A linha da dissensão, ou a instrução de polêmicas.

É conhecida a tendência dos meios intelectuais, tanto portugueses

como brasileiros, integrantes dos meios culturais de finais do século XIX,

para a produção de polêmicas. O mecanismo é recorrente. A ativação das

polêmicas procede de uma tentativa de instituição de sentido, seja em nome

de uma clarificação de frastura argumntativas, seja em nome de uma

radicalização de posições em torno de um núcleo de postulados. É assim

possível assinalar quer situações em que a polêmica expressa a recusa de

determinada pertença, quer em situações em que ela exprime a dissensão

dentro de determinada zona de pertencimento. Aqui radica o inegável

potencial heurístico do estudo das polêmicaas ao surpreender a arrumação

interna de dada configuração cultural luso-brasileira, entre uma ou várias 202 Veja-se, a este respeito, MARTINS, Rui Cunha. O método da fronteira .Coimbra:Almedina, 2007.

99

de suas dimensões escalares. A agitação trazida pela polêmica – com os

inerentes círculos concêntricos que provoca, desarranjando e rearranjando

filiações e agrupamentos instalados –, fornece a possibilidade de apreciar a

configuração cultural em movimento.

No caso brasileiro, basta pensar em Sílvio Romero – um polemista

por excelência (203). Frente a Araripe Júnior, a propósito dos critérios de

definição do tipo brasileiro, frente a José Veríssimo, discordando quanto

aos critérios de arrumação da literatura brasileira, ou ainda frente a Manoel

Bonfim, criticando sua colagem a Oliveira Martins (204), o sergipano

protagonizou uma série de polêmicas consagradas. No caso português, os

nomes de Teófilo Braga, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Eça de

Queirós ou Pinheiro Chagas remetem para outras situações de idêntico

cariz (205). Trata-se, bem entendido, em todos estes exemplos, de polêmicas

emergentes à escala nacional, seja no âmbito da cultura portuguesa, seja no

da brasileira. Contudo, as polêmicas não se resumiram à escala nacional. A

existência de um âmbito de circulação e intercâmbio de informações na

configuração cultural luso-brasileira propiciava a possibilidade da

ocorrência de polêmicas luso-brasileiras propriamente ditas. E tal, de fato,

foi observado no período final do século XIX. É esta dimensão que nos

interessa de modo especial.

203 VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, e MOTA, Maria Aparecida Rezende. Silvio Romero, dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro: EditoraFGV, 2000, são importantes referências nesse sentido. 204 Sílvio Romero escreveu 25 artigos no jornal Os Anais criticando a obra de Manoel BomfimA América Latina: males de origem, publicada em 1902. Em 1906 Romero publica umacoletânea destes artigos dando à estampa A América Latina. Análise do livro de igual título doDr. Manoel Bomfim. Porto: Chardron, 1906. 205 Consultar, por exemplo, BRAGA, Teófilo. Os críticos da História da Literatura Portuguesa:exame das afirmações dos Srs. Oliveira Martins, Antero de Quental e Pinheiro Chagas. Porto:Imprensa Portuguesa Editora, 1872 e MARTINS, J.P. de Oliveira. “A Teoria do Mosarabismo, de Teófilo Braga” (inédito). In: Biblos, n.º28, 1952, pp.139-177. Sobre as demais polêmicasportuguesas consultar As grandes polêmicas portuguesas. Lisboa: Verbo, 2 vols. 1964-1967.

100

3.1.1. Um dos aspectos essenciais da instrução de polêmicas deste teor é o

fato de o cerne da questão argumentativa escamotear, muitas vezes,

elementos pré-compreensivos fortemente arraigados, da ordem do

preconceito e do estereótipo. Emblemática foi a verdadeira “disputa de

estereótipos” que tem lugar em torno de As Farpas, de Eça de Queirós e

Ramalho Ortigão (206). O humor ácido com que aí é retratada a viagem do

Imperador brasileiro D. Pedro II a Portugal e o consequente azedume da

recepção crítica a essa publicação do lado brasileiro merecem, para efeitos

da nossa pesquisa, algumas observações (207).

Em Fevereiro de 1872, As Farpas focaliza a figura do Imperador D.

Pedro II, realçando nele, com evidente ironia, a simplicidade e sobriedade

com que este, enquanto monarca, se apresenta à corte portuguesa. Aí se diz

que o real viajante “era alternadamente e contraditoriamente – Pedro de

Alcântara e D. Pedro II”. Aí se chama a atenção dos leitores para o fato de

o Imperador brasileiro carregar sempre à mão a bagagem: “a mala”,

ironiza-se, “significa que não só deixou a realeza no Brasil, mas tomou-a

sem cerimónia na Europa! A mala é a tabuleta do seu incógnito!”. Era o

indício, para os redatores, de que “Sua Majestade conseguiu atravessar a

Europa – disfarçado na sua mala. Por isso ela vinha vazia. Sua Majestade

não a usava como bagagem – punha-a como disfarce. Sua Majestade trazia

a mala – como outros trazem o nariz postiço”. E é ainda aí, nesse e noutros

fascículos, que, sempre em tom corrosivo, são referidos seja os hábitos

206 Amadeu Carvalho Homem chama justamente a atenção para a coincidência do primeironúmero de As Farpas com o funcionamento da Conferências Democráticas do CasinoLisbonense. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de CulturaPortuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.59. 207 Na apresentação à recolha de textos que compuseram esta polêmica entre Eça de Queirós e oD. Pedro II, João Carlos Reis chama atenção para a “popularidade e larga divulgação eindiscutível influência no Brasil, de uma publicação portuguesa, As Farpas”. ConformePolêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João CarlosReis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.168.

101

gastronômicos do Imperador (208), seja a sua curiosidade pelo idioma

hebraico (209), seja a vestimenta usada por D. Pedro II em sua ida à

Universidade de Coimbra (210).

Sendo certo que o acolhimento deste retrato não poderia ser – como

não foi – o mais caloroso do lado brasileiro, a verdade é que ele constituiu

bom pretexto para que, do lado do viés mais crítico para com os

alinhamentos luso-brasileiros, se insistisse na definitiva assunção de um

afastamento que, segundo era patente, a intelectualidade portuguesa afinal

havia já interiorizado. A polêmica ativava o jogo demarcatório. Ao ponto

de, no clima de incomodidade subsequente, qualquer iniciativa ficar sujeita

à manipulação argumentativa, fenômeno evidente nas desinteligências

perante a construção queirosiana de um retrato prototípico, o do brasileiro.

N’As Farpas se lê que “há longos anos o Brasileiro (não o

brasileiro brasílico, nascido no Brasil – mas o português que emigrou para

o Brasil e voltou rico do Brasil) é entre nós o tipo de caricatura mais

francamente popular. Cada nação possui assim um tipo criado para o riso

público”. Em Portugal, aduz-se, é essa a função do brasileiro: um ser

caricaturalmente “grosso, trigueiro com tons de chocolate, pança ricaça,

joanetes nos pés, colete de grilhão de outro, chapéu sobre a nuca, guarda-

208 “Sua Majestade imperial passa, com justiça, por um dos homens mais sóbrios do seu vastoimpério. Sopa, carne cozida, legumes, água e um palito, tal é o chorume dos jantares da cortenos paços da Tijuca”. Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização eintrodução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.174. 209 “Sua Majestade é um guloso no hebraico. No hebraico – rapa os pratos e lambe os dedos”. Idem, ibidem, p.174. 210 “A Universidade e seus doutores têm espalhado apreciações rancorosas, sobre a maneiracomo Sua Majestade o Imperador se apresentou na sala dos capelos, num dia de doutoramento ede cerimónia. Diziam que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéudesabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada –com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos deValdevez”. Da toilette de D. Pedro II, diziam que “ele quis-se apresentar entre sábios, na rabonade sábio! Ele não quis humilhar nenhum Sr. Doutor – pelo asseio da sua roupa branca! Antes desair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água de colónia (sabe-se isso!)ensopou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tradição universitária – que o rasgão é umaglória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, deviaescandalizar-se e corar – não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquelerecinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!” Idem, ibidem, p.176-178.

102

sol verde, a vozinha adocicada, olho desconfiado, e um vício secreto”.

Acresce-se ainda que “nenhuma qualidade forte ou fina se supõe no

Brasileiro: não se lhe imagina inteligência, como não se imaginam negros

com cabelos loiros; não se lhe concede coragem, e ele é, na tradição

popular, como aquelas abóboras de Agosto que sofreram todas as

soalheiras da eira: não se lhe admite distinção, e ele permanece, na

persuasão pública, o eterno tosco da Rua do Ouvidor” (211).

Não há grandes dúvidas de que a mordacidade do texto queirosiano

está voltada para o português imigrante no Brasil, que de lá retorna

trazendo consigo muito dinheiro e hábitos propícios à chalaça – pois “o

pobre brasileiro” é, para Eça, “o rico torna-viagem” (212). Contudo, o fato

de a caricatura se prestar a uma dupla leitura estigmatizante, pela

designação de “brasileiro”, referindo-se embora a este imigrante

“retornado”, poderia abranger também, maliciosamente, o natural do

Brasil. Este aspecto não deixou de conduzir a leituras instaladas nesta

segunda hipótese. E isto apesar de, como também ficava explícito, a

caricatura em causa funcionar, inclusive, como imagem reflexa da própria

cultura portuguesa e do próprio português. Para Eça de Queirós, “o

Brasileiro é o Português – dilatado pelo calor”, solto e sem peias. E mais

claro fica que o humor crítico do autor do Crime do Padre Amaro se volta,

reflexivamente, para o português, quando, por exemplo, afirma que o

lisboeta que não deixa a capital “não [vale] mais do que o minhoto que

volta de Pernambuco” (213), ou quando afirma que “o Chiado sob os

trópicos dá inteiramente a Rua do Ouvidor. Rirmo-nos do brasileiro é

rirmo-nos de nós sem piedade. Nós somos o germe, eles são o fruto: é

211 Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João CarlosReis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.182. 212 Idem, ibidem, p.182-183. 213 Idem, ibidem, p.185.

103

como se a espiga se risse da semente” (214). Bem vistas as coisas, o texto

queirosiano é acre para com o retrato do português como não o é tanto para

com o do brasileiro propriamente dito.

De qualquer forma, e traduzindo as tensões decorrentes dos recortes

culturais mutuos, levantam-se, a partir do Brasil, brados de setores

ofendidos com a ousadia d’As Farpas. É que a caricatura (e o estigma) têm

uma ponta afiada que roça as bordas da escala nacional. Logo, não

surpreende que, nesse mesmo ano de 1872, publica-se, no Rio de Janeiro, o

opúsculo As Farpas: protesto por um patriota. Nele se contra-argumenta à

postulada investida contra o orgulho brasileiro. Critica a linguagem “que às

vezes desce ao cinismo revoltante, gota a gota cheio de fel”, por onde

“corre desapiedada a pena em tão predilecto estilo, e em torpe e indecente

gargalhada”. Eça e Ramalho, conforme o opúsculo, não passam de “dois

palhaços [que] excitam com grosso sal o riso do estúpido burguês,

acérrimos diletanti do escândalo”, que ignoram que o Imperador D. Pedro

II cumprira os “deveres sagrados de cortesia, e amizade, e até de próximo

parentesco [ao fazer deter, em Portugal, o itinerário de sua viagem] na doce

ilusão de conviver com um povo irmão”. Justificam, com isso, que, frente a

As Farpas, só possa surgir “a mágoa, o desgosto e mais tarde a raiva, o

ódio que seguiu pelas costas ao Imperador do Brasil, ao deixar as margens

pitorescas do nunca assaz decantado Tejo” (215).

Por outro lado, o exacerbamento nacionalista reforçado pela própria

caricatura queirosiana do imigrante português, ao sustentar também “o

filho de Portugal, que chamam em Minas emboaba, no Rio Grande

marinheiro, aqui na capital e nas demais províncias, galego, pé de chumbo,

etc., etc., oferece no seu todo moral e físico, variado assunto para encher

214 Idem, ibidem, p.183-184. Grifos nossos. 215 “As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperialde E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização eintrodução João Carlos Reis. Lisboa : Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.186-189.

104

um volume de considerações a respeito” (216). O texto, na continuidade,

afirma que desde o momento da sua chegada aos trópicos, os imigrantes

mais parecem uns “maltrapilhos, descalços, ignorantes, analfabetos, todos

trajando calças de grosseira tela, cobertos com um chapéu de Braga, único

presente que lhe deram os pais enxotando-os do lar escasso”(217). Constrói-

se um quadro angustiante de um “Brasil aportuguesado” em que “à

importação dos vinhos, das batatas e cebolas, segue-se a dos artistas e a da

imprensa!”. Publicações como As Farpas, aduz-se, “não são jornais, não

são já livros de uma literatura gasta e viciada no plágio do estrangeiro, são

panfletos que mordem como o cão a mão que o alimenta, é a injúria, é a

calúnia, que embarca de sapatos ferrados e porrete e vem salpicar de lama

a púrpura do monarca e afrontar os brios de uma nação!” (218).

Ainda que convenha frisar que, não obstante a violência da resposta

às Farpas, surpreendemos trechos do opúsculo a ressalvar a necessidade de

diferenciar internamente o que se diz ao apontar ao “português”. Ao fim

d’As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota, o autor incógnito faz,

entretanto, uma emenda: “pedimos aos raros cavalheiros portugueses que

por seus título de brio e dignidade são aqui considerados e entrelaçados na

família brasileira, não julguem destas linhas outra ideia além do esforço

moral a que fomos provocados”. Destaca-se a proposta, então, de “joeirar o

trigo”, diferenciando o “português do galego” (219).

216 Idem, ibidem, p.193. 217 Ou, em outro trecho: “As Farpas d’além-mar dizem ter o brasileiro em si tanta porcaria queas virgens desmaiam de nojo. Sem dúvida viram-nas por um espelho. Agarrai um português eapesar da sua repugnância pela água, dai-lhe três banhos em água de colónia, enxugai-o, perfumai-o de novo uma e muitas vezes; depois de tudo lavado, a boca, e tereis xulé, xulé, sempre xulé”. Idem, ibidem, p.194;199. 218 “As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperialde E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização eintrodução João Carlos Reis. Lisboa : Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.200-201219 “As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperialde E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização eintrodução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.202.

105

Não vale a pena prolongar aqui os argumentos do panfleto nem

sequer a tréplica queirosiana a este mesmo respeito (220). Quer a

mobilização estereotípica de efeito estigmatizante, quer a produção reativa

de idêntica estigmatização de inspiração nacionalista inscrevem-se, na

perspectiva do nosso inquérito, no complexo processo de reformulação e

clarificação cultural e identitária no seio de uma mesma configuração

cultural fortemente ancorada em critérios histórico-políticos como era a

luso-brasileira. Manifestamente, as margens brasileira e portuguesa

processavam, naquela conjuntura, um esforço de autonomização cultural

sem o qual qualquer tipo de clarificação identitária resulta impossível, mas

que comporta a ocorrência de fricções demarcatórias e de verdadeiras

“turbulências do limite” (221).

E se esta impressão se colhe ao nível mais imediato e mais pré-

compreensivo da caricatura e do estereótipo, outro tanto fará o despoletar

de problemáticas mais diretamente advindas de discordância teórico-

220 Em carta publicada no Jornal do Recife, em Outubro de 1875, e endereçada ao presidente daprovíncia de Pernambuco, Nordeste brasileiro, Eça de Queirós manifestava-se nos seguintestermos: “temos diante de nós um jornal de Lisboa – o Diário de Notícias que refere estranhosacontecimentos passados nessa província: diz-se – que em Pernambuco, sobretudo na cidadeGoiana, as discussões travadas em torno do volume das Farpas, relativas ao império e aoimperador, têm causado conflitos irritados, mortes, «e que os portugueses estão ameaçados nasua segurança»”. Sobre este facto, responde na mesma moeda de mobilização política dahistória, ao pedir que a autoridade local pernambucana desse um final às ameaças e agressõessofridas pelos portugueses lá residentes, pois, de outro modo, “julgaremos que há verdade noque se diz de Pernambuco e de seus costumes – e, então, vendo que nada fez a Pernambucocivilização que há três séculos lhe mandamos, e que o Brasil recaiu na selvageria de então, julgaremos dever recomeçar pacientemente a nossa obra, e tornar a mandar Pedro ÁlvaresCabral, para tornar a redescobrir o Brasil”. Carta de Eça de Queiroz ao presidente da Provínciade Pernambuco, publicada no Jornal do Recife e na Província, nas edições de 12 e 14 deOutubro de 1875. In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização eintrodução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.204-209. 221 Conforme o uso que lhe concede Rui Cunha Martins em vários de seus trabalhos, como, porexemplo, MARTINS, Rui Cunha. “A arena da história ou o labirinto do Estado? Delimitaçõesintermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. In Cadernos doNoroeste, 15 (1-2), 2001, pp.37-56, MARTINS, Rui Cunha. “A pletórica da identidade, ou aalucinação dos cânones”. Separata do livro Identidade, Identidades. Porto: ADECAP, 2002, pp,149-156 e MARTINS, Rui Cunha. “Estado, tempo e limite”. Revista de História das Ideias. Vol.26. Coimbra: Faculdade de Letras, 2005, pp.307-342.

106

políticas sobre o relacionamento luso-brasileiro. Foi este o caso da longa

polêmica entre Sílvio Romero e Teófilo Braga.

3.1.2. A polêmica que envolveu Romero e Teófilo, a qual só

aparentemente se resume às questões relativas aos direitos autorais

prolongou-se por mais de 20 anos, preenchidos de ataques, réplicas e

tréplicas sucessivas (222). Não obstante as altercações trocadas, é possível

verificar que, do ponto de vista teórico, conforme faz notar Manuel

Cândido Pimentel, “o pensamento de Teófilo Braga e o de Sílvio Romero

se desenvolveram a partir de uma matriz comum” (223). De fato, ambos

partem de uma postura radicalmente anti-metafísica, no âmbito da qual, é

bom ressaltar, nenhum dos dois adere radicalmente ao comtismo ortodoxo,

muito menos à vertente do apostolado positivista simbolizado pelos

seguidores de Pierre Laffitte (224). Preconizam conjuntamente um

conhecimento vincado pelo experimentalismo, elemento que os fez, cada

um a seu modo, aderir parcialmente às teses do darwinismo e do

evolucionismo de Herbert Spencer (225). Por outro lado, o estudo das

literaturas nacionais sob o critério nacionalista (226), com especial atenção

aos componentes etnológicos, representa outro elo teórico que os aproxima

significativamente (227), sendo que, ambos, acabam por exercitar o que se

222 PAREDES, Marçal de Menezes. “A querela dos originais: notas sobre a polêmica entreSílvio Romero e Teófilo Braga”. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, Edição Especial, n.º2, 2006. 223 PIMENTEL, Manuel Cândido. “A crítica do positivismo comteano em Teófilo Braga eSílvio Romero”. Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.17-53. 224 HOMEM, Amadeu Carvalho. O Republicanismo em Portugal: o contributo de TeófiloBraga. Coimbra: Minerva, 1989. 225 CALAFATE, Pedro. “A filosofia da história em Teófilo Braga. Um confronto com SílvioRomero”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa:Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.151-163.226 REALE, Miguel. “O Historicismo de Sílvio Romero”. In: Sílvio Romero e Teófilo BragaAtas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.14-150. 227 BORGES, Paulo A. Pensamento Atlântico, estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002.

107

poderá chamar uma forma historiográfica à maneira de uma sociologia

descritiva (228). Sendo visível, portanto, sua comum inserção num mesmo

terreno discursivo – positividade do conhecimento, postura antimetafísica,

nacionalismo literário, crença no caráter probatório da etnologia – parece

lícito procurar os fundamentos da divergência ao nível de razões menos

óbvias, mas com certeza capazes de coexistir com este painel de

referenciação teórica, quando não produzidas precisamente em seu interior.

Em termos formais, o início da polêmica acontece por ocasião da

publicação, em Portugal, junto do livreiro Carrilho Videira, dos Cantos

Populares do Brasil, em 1883, e dos Contos Populares do Brasil, em 1885,

ambos os textos com assinatura de Silvio Romero (229). Na realidade, fazia

tempo que Romero dava conta quer da conclusão destas obras, quer da

dificuldade encontrada no Rio de Janeiro para dá-las à estampa (230). A

oportunidade de publicação surgiria, afinal, em Portugal. Teófilo Braga,

cuja obra Sílvio conhecia bem (231), é então convidado a fazer um estudo

228 PEREIRA, José Esteves. “Teófilo Braga e Sílvio Romero: duas perspectivas sociológicas”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto deFilosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.167-181. 229 Sílvio Romero teve muitas obras publicadas em Portugal ainda em vida. Merecem destaque:ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brazil: com um estudo preliminar e notas comparativas(colligidos pelo dr. Sylvio Roméro, com estudo preliminar e notas por Theophilo Braga). Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1885. ROMERO, Sílvio. Martins Penna: ensaio críticocom um estudo de Arthur Orlando sobre o auctor da "Hist. da litt. brazileira". Porto: Chardron, 1900. ROMERO, Sílvio. O elemento português no Brasil: conferência. Lisboa: Typographia daCompanhia Nacional Editora, 1902, ROMERO, Sílvio. Pinheiro Chagas: conferência realizadano Theatro Recreio Dramático, do Rio de Janeiro, a 5 de Setembro de 1904. Lisboa:Typographia d’“A Editora”, 1904, ROMERO, Sílvio. A Patria portugueza: o território e araça: apreciação do livro de igual título de Theophilo Braga. Lisboa: Livraria Clássica de A.M. Teixeira, 1906. ROMERO, Sílvio. A América latina: análise do livro de igual título do dr. M. Bomfim. Porto: Lello & Irmão, 1906. ROMERO, Sílvio. Provocações e debates: (contribuiçõespara o estudo do Brazil social). Porto: Lelo & Irmõo, 1910. ROMERO, Sílvio. Quadrosynthetico da evolução dos géneros na litteratura brasileira. Porto: Chardron, 1911. ROMERO, Sílvio. Estudos sociaes: o Brasil na primeira decada do seculo XX: problemas brasileiros. Lisboa: A Editora, 1911, além de ter prefaciado o livro de GUIMARÃES, Artur. Questõeseconómicas nacionae. pref. de Sylvio Romero. Lisboa : Typographia da "A Editora", 1904. 230 Em 1879, faz a seguinte consideração: “em nossa obra, – ainda inédita, – Cantos e Contos dopovo brasileiro – recolhidos da tradição, já pronta, e que é o trabalho mais completo quepossuímos no género, não tem podido ser publicado por falta de um editor”. ROMERO, Silvio. “A poesia popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Ano I, Tomo I,1879, p.266. 231 Idem, ibidem, p.281.

108

introdutório à edição dos Contos do intelectual brasileiro (232), estudo esse

intitulado (Sobre a) Novelística brasileira e que Teófilo publicara também,

com o mesmo título, como parte integrante da sua obra Contos

Tradicionais do Povo Português (233). É nesse estudo introdutório que, de

acordo com a versão de Romero, Teófilo terá ”se apoderado” de seu

critério e modificado partes de sua obra. Por isso, em tom virulento,

Romero redige um protesto à atitude de Braga, publicando Uma Esperteza.

Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo Braga. Protesto

(234).

Para Sílvio, Teófilo cometera os seguintes “delitos” na elaboração

de referido estudo introdutório à sua obra: cortar um trecho da Advertência

preliminar do livro em que ele dava conta da classificação feita; apoderar-

se dessa divisão etnográfica dos contos brasileiros e dá-la como produção

original sua; fingir trabalho próprio, passando alguns contos tupis para a

secção de contos africanos; incluir no livro os Contos tupis de Couto de

Magalhães; e, por fim, escrever um prólogo “disparatado, inçado de erros

trapentos, em oposição absoluta aos meus próprios Estudos sobre a poesia

popular brasileira, que são o manancial onde o compilador açoriano foi

beber o poucochinho que sabe sobre a literatura popular desta parte da

América”. Tratar-se-ia, em suma, de um “flagrante delito de charlataneria

literária” (235).

Na verdade, o próprio Teófilo admitia a modificação de partes do

texto de Romero. Ainda na primeira edição de Lisboa, em 1885, em nota de

rodapé, esclarece: “Modificamos neste ponto o plano do colector,

232 ROMERO, Silvio. Contos populares do Brasil. Coligidos pelo Dr. Silvio Romero; com umestudo preliminar e notas comparativas por Teófilo Braga. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1ª edição, 1885. 233 BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. Vol. 1. Lisboa: Dom Quixote, 1883. 234 ROMERO, Sílvio. Uma Esperteza. Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. TeófiloBraga. Protesto. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, de Serafim José Alves, 1887. 235 Idem, ibidem, p.11-13.

109

completando a representação dos elementos étnicos do Brasil com o que

actualmente se conhece de tradições dos indígenas” (236). O contraste entre

a virulência da acusação e o que parece ser a assunção pública dessas

interferências textuais, não pode deixar de sugerir que as discordâncias

podiam estar localizadas em ordem mais profunda. O fato é que a polêmica

estava instalada, ainda que a resposta formal de Teófilo Braga tenha

demorado alguns anos.

Treze anos depois da publicação, por Romero, de Uma Esperteza

(1887), Teófilo, em carta colocada em apêndice à obra O Sr. Sílvio Romero

e a Literatura Portuguesa, de seu discípulo Fran Paxeco (1900), faz a sua

declaração acerca do ocorrido (237). De posse de algumas cartas pessoais de

Carrilho Videira, Teófilo expõe as missivas que Romero tinha enviado ao

livreiro: uma carta datada de Novembro de 1882, onde agradece a Carrilho

Videira e Braga por “terem salvado das traças esta colecção” e outra, de 8

de Abril de 1884, onde Romero, segundo a transcrição de Teófilo, teria

pedido a Braga a redação do prefácio (o que Romero negava em Uma

Esperteza), bem como teria escrito que “a única colecção de mérito é a de

Teófilo”(238).

Para além da imputação mútua, um aspecto em aparência menor

deve ser sinalizado. Trata-se da presença, no campo da polêmica, da figura

do discípulo de um dos contendores. Vale a pena averiguar este ponto com

mais detalhe.

236 BRAGA, Teófilo. “Sobre a Novelística Brasileira”. In: ROMERO, Silvio. Contos popularesdo Brasil. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1ª edição, 1885, p.V. 237 BRAGA, Teófilo. “Carta de Teófilo Braga a Fran Paxeco”. In: PAXECO, Fran. O Sr. SílvioRomero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900. 238 Informações retiradas da Carta de Teófilo Braga. In: PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero ea Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900, p.194-195.

110

3.1.3. Foi Fran Paxeco – e isto diz o próprio Teófilo – quem deu notícia

sobre a obra romeriana Uma Esperteza, sendo ele também quem teria lhe

enviado a mesma (239). E, de acordo com a mesma fonte, a carta-resposta a

Romero foi escrita especificamente a pedido e para constar no livro de Fran

Paxeco. Acresce que, nesse seu livro – o citado O Sr. Silvio Romero e a

Literatura Portuguesa – , Paxeco intensifica o tom de acusações e ofensas

pessoais direcionadas a Romero (240): na maioria das vezes, considerando

que o brasileiro não gosta de Teófilo simplesmente por este ser português.

Assevera, enfim, que o “crítico sergipano vota um ódio de morte a todos os

vultos literários da velha Lusitânia; e essa ojeriza, sem razão de ser, leva-o

às vezes a afirmar certas proposições absurdas e paradoxais” (241).

Definitivamente Fran Paxeco entrava polêmica. Para nós, o interesse

em sua figura é justo este: o de ser um indicador precioso da constituição

de grupos congregados em torno de Teófilo e Romero e de manifestar,

nesse alinhamento, círculos de influência que alargavam o alcance da

polêmica luso-brasileira. Não no sentido em que os grupos circundantes da

polêmica reproduzissem, cada um deles, a escala nacional do respectivo

mestre, o quem nem sequer fora mencionado, mas no sentido em que esses

alinhamentos eram alheios à lógica nacional, antes parecendo constituir-se

à escala transnacional luso-brasileira. Melhor se compreenderá esta ideia,

tendo por referência a dedicatória feita por Paxeco – que era cônsul

português – no seu citado livro: “à memória de Adolfo Caminha”, à

Teixeira Mendes, “o maior pensador que o Brasil produziu até hoje”, e à

239 A informação é confirmada, por exemplo, nas cartas de Teófilo para Paxeco de 01/07/1900 e26/01/1901. Ver PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo Braga (com um definitivo trechoautobiográfico do Mestre e duas «confissões» de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924. 240 “Uma cabaça – eis o que é a cabeça de Sílvio! E, como tal, cremos ser efectivamente aprimacial do Brasil, por ser precisamente a mais oca”, PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e aLiteratura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900, p.13. 241 PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900, p.89.

111

Júlio de Castilhos, “o primeiro entre os primeiros estadistas brasileiros, em

todos os tempos”… (242).

Logo após a publicação da carta-resposta (em apêndice à obra de

Fran Paxeco), Sílvio Romero não se demora em dar-lhe uma réplica. Leva

à estampa, em 1904, Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga) (243). Ao

contrário do modelo seguido na edição de Uma Esperteza, e como que em

colagem formal à carta de Teófilo, esta réplica de Sílvio Romero veio

precedida de um estudo introdutório, intitulado “Duas Palavras”, assinado

por Augusto Franco (244). Neste texto introdutório, Franco ataca

diretamente Fran Paxeco, censurando seu “vocabulário repelente e nojento”

e “próprio de lupanares”, usado para “agredir garotamente a vultos tão

brilhantes das letras brasileiras”. Por isso, diz ainda, “nem Silvio Romero,

nem qualquer outro tão canalhamente insultado por Fran Paxeco, lhe

respondeu as chalaças, nem as responderá jamais, porque, aqui, se não dá

pasto” (245).

Não responderia mesmo, pelo menos diretamente. Porque se tratava

de “questão particular, que debato com o Sr. Teófilo Braga”, diria Sílvio

Romero. Precisando a sua postura, declara: “o meu debate é com o Sr.

Teófilo Braga e só com ele” (246). Naturalmente. A disputa alinhavava

facções, mas também hierarquizava fidelidades: ao nível de Sílvio Romero

242 Idem, ibidem, folha de rosto. 243 ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por AugustoFranco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904. 244 Augusto Franco foi crítico literário em Minas Gerais. Sob o pseudónimo “Aufra”, assinavacrônicas nos jornais Correio de Minas e Jornal do Comércio, em Juiz de Fora. Ver NOBREGA, Dormevilly. Prosadores. Colectânea. Vol. 1. Juiz de Fora: Fundação Cultural Alfredo Lage, 1982, p.99-100. 245 FRANCO, Augusto. “Duas Palavras”. In. ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a TeófiloBraga). Publicação dirigida por Augusto Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estadode Minas Gerais, 1904, p.10-11. 246 ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por AugustoFranco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904, folha de rosto, p.22.

112

está Teófilo Braga e, abaixo deles, na condição de discípulos e

divulgadores, estão Fran Paxeco e Augusto Franco.

Fran Paxeco é, junto com Teixeira Bastos, um dos principais

seguidores de Teófilo Braga. A análise de seus livros é importante no

sentido de melhor entender a divulgação e a recepção da obra de Teófilo no

Brasil (247) Como cônsul português, editou vários textos na defesa e

divulgação de seu mestre, além de informá-lo sobre a recepção e discussão

de seus livros no Brasil. De suas obras, merece destaque, além de O Sr.

Sílvio Romero e a Literatura Brasileira, editada no Maranhão, em 1900,

seu importante livro Teófilo no Brasil, editado em Lisboa, em 1917. Fran

Paxeco comportava-se praticamente como um defensor dos interesses

portugueses no Brasil, organizando, nesse foro, cerimônias em homenagem

a Teófilo Braga (248). Por isso, não surpreende que tenha tomado parte na

polêmica através de insultos e críticas demolidoras.

Em paralelo temos o referido Augusto Franco: crítico literário

mineiro e admirador de Romero. Em sua coluna no Jornal do Comércio, de

Juiz de Fora, entra em choque com Teófilo, em matéria publicada por

ocasião das cerimónias em homenagem ao 259º aniversário da restauração

da independência portuguesa (também 7º aniversário da Real Sociedade

Auxiliadora Portuguesa da cidade). Neste texto, Augusto Franco, assinando

pelo pseudónimo Aufra, relata que Zeferino Cândido, jornalista

homenageado na cerimônia, lhe havia contado o seguinte acontecimento:

“foi o caso que, tendo falecido o profundo investigador da História de

Portugal [Alexandre Herculano], Th. Braga se dirigiu ao Dr. Zeferino e

247 Conforme carta de 14/11/1901, onde Braga agradece a Paxeco por este se prontificar a“cumprir a missão de Teixeira Bastos” na divulgação de sua obra. In: PAXECO, Fran. Cartasde Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas «confissões» deCamilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.48-51. 248 Como atesta carta de 12/10/1900 de Teófilo Braga, onde ele agradece Fran Paxeco pelahomenagem recebida do Centro Caixeral do Maranhão, em cerimónia realizada em 28/07/1900. In: PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico doMestre e duas «confissões» de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.24-28.

113

pronunciou mais ou menos estas palavras interrogativas e decisivas: – Sabe

quem morreu? O Herculano, aquele adulador (!)… A resposta foi um

tabefe tão bem puxado e certeiro que deitou Braga por terra»” (249). Pouco

mais de três meses depois, Augusto Franco publicava em sua coluna uma

carta-resposta de Teófilo Braga – carta enviada a Eugênio Silveira, diretor

da União Portuguesa – na qual o autor português faz referência à coluna de

Augusto Franco no Jornal do Comércio, que lera em Lisboa. Teófilo, além

de negar o relatado naquele jornal de Juiz de Fora, afirma que “bordar

sobre isso lendas de boémia literária a que nunca pertenci, é de uma

infelicidade que raiva pela imbecilidade” (250).

A polêmica, portanto, ganhava abrangência à medida em que

autores de segunda linha tomavam partido, engrossando os circuitos do

debate. Por outro lado, essa abrangência era ainda incrementada por outra

via: a dos próprios referenciais teóricos manejados por cada um dos

autores, os quais buscavam, tanto quanto possível, estribar os seus

raciocínios e as suas posições na palavra de intelectuais de reconhecida

compaginação com a sua parte ou de reconhecida incompatibilidade

analítica com a parte contrária. Assim se explica, por exemplo, que Silvio

Romero tenha dedicado a Herculano e a Antero de Quental a publicação de

sua obra A Pátria Portuguesa, o território e a raça, onde critica fortemente

a tese de Teófilo Braga sobre a formação da nacionalidade portuguesa (251),

quando era sabido que tanto Antero como Herculano haviam também

polemizado com Teófilo Braga. O alargamento da facção romeriana

estendia-se ao espaço cultural português, incorporando na polêmica, desse

modo, linhas de fratura já constituídas à escala lusitana.

249 Jornal do Comércio, Juiz de Fora/MG, 02/12/1899, p.1. 250 Jornal do Comércio, Juiz de Fora/MG, 15/02/1900, p.1. 251 ROMERO, Silvio. A Pátria Portuguesa, o território e a Raça. Apreciação do livro de igualtítulo de Teófilo Braga. Lisboa. Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1906. TeófiloBraga defendia a pertinência do critério racial na compreensão da nacionalidade portuguesa. Contra ele, polemizou Herculano e, principalmente, Oliveira Martins.

114

Por fim, vale evocar a facilidade com que as etapas da polêmica

deslizavam para as páginas de órgãos de divulgação extrínsecos quer a

Portugal quer ao Brasil. Há temos registro de ecos em revistas francesas,

italianas e espanholas, conhecidas pelos opositores (252). Assim, podemos

ter uma noção aproximada da extensão atingida pela querela. O que obriga

a equacionar a questão do debate mais profundo e da razão teórica

subjacente à polêmica. Ora, essa razão coincidia com a definição

cientificamente instruída de uma escala nacional de referência e dos

critérios para demarcá-la. Desembocamos, pois, no problema da

originalidade, verdadeiro epicentro da disputa.

3.1.4. A despeito da intensidade da polêmica, os pólos desavindos

pisavam terreno comum. Sua intersecção era ditada por uma mesma

perspectiva cientista do estudo das histórias e culturas nacionais, pela

comum importância concedida à elaboração de uma História da Literatura

nacional, a qual, no âmbito do cientismo historiográfico (253), era tida por

prova factual da sedimentação étnica e moral ao longo das épocas de

formação da nacionalidade, tornando-se a sua âncora epistêmica.

Afinidades elementares, portanto. O que não espanta. Afinal, só em função

de alguma comunhão de perspectivas se compreende o projcto conjunto

luso-brasileiro da Revista de Estudos Livres, que tinha como missão “reatar

252 Tanto Romero quanto Teófilo, em suas réplicas e tréplicas, mencionam informações tiradas, estritamente acerca dos textos um do outro, de fontes outras que não as brasileiras nemportuguesas. Considera Romero: “falo ao meu país e o faço provocado por uma revistaespanhola de Sevilha – Boletin Folklórico Español, que não sabendo dos factos, bateu palmas àsescamoteações do professor açoriano”. Menciona ainda a revista Polyblion, de Paris. Por suavez, Teófilo afirma que “por alguns compte-rendu, publicados em revistas francesas e italianas, em 1887, é que soube da existência do livro do Sr. Sílvio Romero – Uma Esperteza”. ROMERO, Silvio. Uma Esperteza. Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. TeófiloBraga. Protesto. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, de Serafim José Alves, 1887, p.13 eBRAGA, Teófilo. Carta de Teófilo Braga In: PAXECO, Fran. PAXECO, Fran. Cartas deTeófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas «confissões» deCamilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.191. 253 Sobre cientismo e história, consultar CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história.Coimbra: Quarteto, 2003.

115

a aliança mental luso-brasileira” e que é precisamente apadrinhado por

Sílvio Romero e por Teófilo Braga (com Teixeira Bastos e Carlos von

Koseritz).

O reconhecimento da mútua pertença a um mesmo universo de

referências teórico-científicas explica a posição da obra de Carlos von

Koseritz polêmica entre Romero e Braga. Registre-se que Koseritz – um

dinâmico divulgador das ideias evolucionistas e cientistas no Rio Grande

do Sul –, surge com frequência junto de ambos os autores em conflito, quer

genericamente no âmbito da cruzada antimetafísica, quer especificamente

no quadro da direção da Revista de Estudos Livres. Não surpreende, pois,

que o encontremos ao lado de Romero (e de Tobias Barreto) em defesa da

institucionalização das peculiaridades filosóficas brasileiras – Koseritz foi

o primeiro editor de Romero no Brasil –, tal como não surpreende que o

encontremos em cúmplicidade com Teófilo, a quem agradece “um juízo

crítico de inestimável valor, a um pequeno e pouco importante trabalho,

como os modestos Bosquejos etnológicos”(254).

Com base nesta movimentação de Koseritz no seio de uma escala

teórica comum a ambos os polemizadores, compreende-se que sua obra

Bosquejos etnológicos (255) apareça como um estudo que interessava tanto

ao português açoriano como ao brasileiro sergipano. É que a coletânea de

dados arqueológicos e etnológicos realizada por ele (256) tinha papel

importante na definição da ação portuguesa no contato com os índios

brasileiros – e assim propiciava alguns elementos para a definição das

características da lusitanidade, que interessava Teófilo –, bem como tinha 254 Carta de Koseritz a Teófilo de 22/12/1884. In: Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900)– Cartas a Teófilo Braga, com um prólogo “Autobiografia mental de um pensador isolado”.Lisboa: Tipografia Lusitana – Editora Artur Brandão, 1902, p.210-211. Registe-se que Koseritzteve também A Terra e o Homem à luz da Ciência Moderna resenhada, por Teixeira Bastos, naspáginas da Revista de Estudos Livres. 255 Está acessível ao público parte dos Bosquejos etnológicos, no volume organizado por RenéGertz. Karl von Koseritz: seleção de textos. Porto Alegre: Edipucrs (Coleção PensadoresGaúchos), 1999. 256 A colecção foi praticamente destruída durante a exposição brasileiro-alemã, em 1881.

116

relevo para Silvio Romero, no sentido de determinar a genuinidade do tipo

nacional brasileiro, nomeadamente no que diz respeito às influências

indígenas.

Ou seja, a avaliar pela atitude tomada por cada um deles em relação à

obra de Koseritz, é possível sustentar que Romero e Teófilo se moviam de

acordo com preocupações comuns e visavam um comum objeto teórico.

Por mais paradoxal que pareça, será justamente esta comunhão de objetivos

o que vai ditar o surgimento das altercações. Exemplo disto foi a disputa

que levantada entre os dois a propósito do acesso ao material de pesquisa

de Koseritz, obviamente do interesse de ambos: para Teófilo, Romero ter-

se-ia apropriado desse acervo; para Romero, Koseritz, como seu amigo que

era, cedera-lhe o material. A comunhão entre os dois é detectável no plano

dos pressupostos – a necessidade de trabalhar de acordo com os postulados

da ciência positiva – e no plano dos objectivos – a definição das

características prototípicas das respectivas culturas nacionais. Ela cessa,

contudo, no plano do investimento interpretativo. Porque era aí que,

colocando-se a questão da demarcação entre as culturas brasileira e

portuguesa, colocava-se também o problema da primazia, da dívida, da

herança, da diferença. Numa palavra: despoletava-se questão da

originalidade. E, a este nível, deslocada a problemática para a escala do

relacionamento intercultural, resultava inquestionável que as opiniões de

um dos autores interferiam diretamente sobre o edifício teórico do outro.

Assim, a comunhão cedia lugar à concorrência.

A temática da originalidade, na verdade, já estava em evidência

desde o primeiro artigo de Romero na Revista Brasileira, em 1879. Neste

texto, recorde-se, é dito que “uma nação se define e individualiza quanto

mais se afasta pela história, do carácter das raças que a constituíram, e

imprime um cunho peculiar à sua mentalidade”, e que “a nação brasileira,

se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais

117

separar-se do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português”

(257). Desde esse texto processa-se como que um amadurecimento

intelectual da perspectiva nacionalista romeriana, fundado, em grande

parte, nos estudos sobre a literatura nacional. É crível que o papel atribuído

ao mestiço na sua ideia da nacionalidade brasileira seja concebido neste

contexto. Afinal, Romero justifica que em sua busca pelo caráter do

genuíno nacional, nunca conseguiu entrar em contacto com um elemento

puro das etnias que formaram o povo brasileiro. Nem índios, nem negros,

nem portugueses restaram incólumes ao contato. Frente ao choque de

culturas que o experimento colonial português fomentou, não restou

nenhuma ontologia étnica intacta. Daí o recurso à mestiçagem como a nova

e original ontologia da nação brasileira. Entende-se, assim, que ele escreva,

em 1883, que o transformismo é “a lei que rege a história brasileira” (258),

ideia que lhe permite sustentar, de alguma maneira, a noção da mestiçagem

(259). Ententende-se, assim, que na sua principal obra – História da

Literatura Brasileira, editada depois do início da polémica, em 1888 –,

Silvio Romero profira a sentença que já citamos e que resume seu

pensamento: “todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas

ideias” (260).

O que se deve perguntar, agora, é em que medida seu projeto

poderia estar ameaçados pela ação de Teófilo Braga. No momento em que

257 ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In:Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.273-274. 258 ROMERO, Sílvio. “Modernas Escolas Literárias”. In: Estudos de LiteraturaContemporânea. Edição Comemorativa. Organização de Luiz António Barreto. Rio de Janeiro:Imago, 2002, p.69. 259 Para Romero, entenda-se, a mestiçagem é o resultado da acção da história no Brasil, nãosendo, por isso, fruto exclusivo da determinação do território. É pelo contacto social, advindo dahistória colonial, que o mestiço aparece como força nacional. É nesse ponto que Romerodiscorda de Araripe Júnior e com ele também polemiza. A mestiçagem de Romero é resultadohistórico, o tropicalismo de Araripe Júnior é determinado pela natureza. 260 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: JoséOlympio Editora. Colecção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ªEdição organizada e prefaciada por Nelson Romero, [1888] 1943, p.30-40.

118

a polêmica com Silvio se intensifica, desde há muito Teófilo andava às

voltas com a questão da originalidade portuguesa no âmbito das nações da

Península Ibérica. Por exemplo, em 1871, publica Epopeia da Raça

Moçárabe, aonde vai defender que a nacionalidade portuguesa justifica

racialmente a existência de Portugal como nação. Nesta sua diatribe, o

moçárabe é apresentado, praticamente, como um “mestiço” – oriundo do

contato entre raças góticas e árabes na faixa de território mais ocidental da

Península Ibérica (261). Por isso, em 1908, em conferência na Academia das

Ciências de Portugal, afirma ter Portugal “originalíssima personalidade”

(262). Veja-se, então, a presumível angústia de Silvio Romero: se o

português moçárabe também mestiço fosse, logo, o brasileiro mestiço seria

apenas um herdeiro das características mais peculiares do português. Não

se distanciaria de Portugal. Não fundamentaria a cultura brasileira. E,

retirando ao seu mestiço brasileiro a originalidade histórica, ele perderia

sua razão de ser. Comprometida ficaria a fundamentação da soberania

cultural brasileira.

O que nos leva à seguinte consideração: a posição na cultura

nacional ocupada pelo mestiço, na ideia de cultura brasileira de Silvio

Romero, é análoga à ocupada pelo moçárabe, na noção de cultura

portuguesa de Teófilo Braga. O problema está em que, ao admitir-se a

mistura racial como característica lusitana, tudo o que se disser sobre a

mestiçagem racial brasileira terá, necessariamente, relação íntima com

261 “Aqui dá-se um curioso fenómeno etnográfico: aparecem as designações geográficas, osnomes de família, a nomeclatura tecnológica, os característicos das autoridades políticas e civisárabes; mas os símbolos poéticos do direito, as tradições épicas, as lendas orais, as superstiçõessão puramente germânicas. Por esta ordem de criações da raça moçárabe se vê a suaconstituição fisiológica. Como indomável, o semita cede aquelas qualidades exteriores e visíveisde uma civilização que deslumbra, mas não comunica os sentimentos privativos e orgânicos daraça; por outro lado o godo, como ariano e atraente, não podendo homologar a alma árabe, adopta dela aquilo que se não pode encobrir aos olhos. A designação do Moçárabe, encerra estanoção perfeitamente definida”. BRAGA, Teófilo. Epopeia da Raça Moçárabe. ImprensaPortuguesa Editora, 1871, p.25-26. 262 BRAGA, Teófilo. “Plano para a História de Portugal”. Antelóquio a PAXECO, Fran. Portugal não é Ibérico. Lisboa: Livraria Rodrigues, 1932, p.6-7.

119

Portugal. A polêmica e a virulência das acusações trocadas são, assim,

filhas de uma luta pela originalidade num complexo processo de

redefinição de fronteiras memoriais, aonde a assunção da escala nacional,

como referência analítica, possui papel primordial. Trata-se de um processo

marcado por “um significativo potencial de turbulência, na medida em que

a historicidade inscrita em assuntos de limites e demarcações fomenta, por

si só, a coexistência de memórias não coincidentes sobre [as modalidades

de definição] desses limites” (263).

Afinal, a palavra original tem duplo sentido: um, relativo à origem,

que remete à ideia de início; outro, relativo à noção de inédito, que não foi

copiado de nenhum modelo. Por isso a guerra simbólica pelo critério de

originalidade se revela tão importante. Em última instância, a querela dos

originais punha em evidência a “nação” como critério histórico,

redefinindo, dessa maneira, as modalidades de relacionamento entre as

culturas de Portugal e do Brasil. Por vezes, essa redefinição ocorreu ao

sabor de estratégias de dissensão. Foi o que vimos. Outras vezes essa

mesma redefinição promoveu estratégias de consenso. É o que passamos a

abordar.

3.2 A linha do consenso, ou a ambição do comemoracionismo.

As comemorações camonianas de 1880 são exemplificativas do que

Fernando Catroga chamou uma “liturgia de fundo historicista”. Como ele

mesmo diz, o investimento comemorativo assenta em um “tempo

acumulativo característico das concepções evolutivas da história”, onde o

futuro representa o desenvolvimento “das potencialidades do passado, e o

263 MARTINS, Rui Cunha. “A Arena da história ou Labirinto do Estado? Delimitaçõesintermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. Cadernos do Noroeste. 15 (1-29), 2001, p.38.

120

paradigma dos «grandes mortos» devia funcionar como farol a sinalizar a

marcha do devir”. As festas cívicas, assim, representam “autênticas lições

móveis de história. Com elas, procurava-se invocar o passado e suscitar a

emergência do invisível como arquétipo paradigmático, epifania que, em

analogia funcional com as religiões propriamente ditas, se manifestava num

espectáculo cheio de simbologia e de emotividade, criador de um clima

adequado ao reforço da ligação dos indivíduos a uma totalidade que os

integrasse e motivasse” (264). Pensadas, portanto, como modalidade de

incorporação dos indivíduos, as comemorações convocam um problema

correlato: da escala da incorporação, isto é, o da decisão sobre a totalidade

produtora de sentido à qual é suposto reportar-se cada participante da

festividade. E se nem sempre há acordo, é justamente em virtude do

potencial de consensso que se reconhece ao espírito comemorativo e que,

suscitando resistências a uns (através de polêmicas), se oferece a outros

como pretexto para a reinvenção de uma unidade de pertença à escala

comemorada. No nosso caso concreto, estão neste segundo caso todos

aqueles que fizeram da festa camoniana um pretexto para refundar as

culturas portuguesa e brasileira nos termos de uma escala cultural luso-

brasileira.

3.2.1. A escolha de Camões – ao ser determinada pela associação do poeta

a um período áureo da evolução histórica portuguesa e pelo

reconhecimento da sua figura como expoente lusitano para o progresso da

humanidade – confere à festa o caráter de “revivescência nacional”. Foi

isto mesmo o que disseram-no, de forma convicta, os intelectuais

contemporâneos do evento. Teófilo, por exemplo, ciente como estava de

que “toda a grandeza e sumptuosidade que se desenvolver adquire uma 264 CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história”. In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, JoséAmado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. VolumeII. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.223-224.

121

significação mais profunda, não só em relação ao lugar que nos compete na

história da civilização, como nos acidentes que envolverem o futuro da

nossa nacionalidade” (265). Júlio de Mattos, por sua vez, consciente da “alta

significação política” da homenagem a Camões, saudava-o para “lavrar um

protesto contra a atonia em que nos lançaram o elemento clerical e o

elemento monárquico”, e para “declarar que entramos na fase consciente da

política democrática” (266). No fundo, estas e outras intervenções

confirmam um dos aspectos da comemoração, a saber: a mobilização de

critérios políticos do presente na altura de depurar seletivamente o passado

e as suas figuras emblemáticas, disponibilizando-os para sua utilização para

fins celebratórios e para a construção de novas hagiografias nacionais.

Disto resultam duas noções fundamentais para uma adequada

compreensão das comemorações cívicas: a de “grande homem”, enquanto

encarnação simbólica da história nacional; e a de “humanidade”, entendida

como o grande sujeito de uma modernidade evoluente, sempre em direcção

à maior perfectibilidade. Bem vistas as coisas, estes dois elementos de

liturgia cívica são quase que duas faces simbólicas de uma mesma moeda

temporal. Afinal, “na obra do «grande homem», é a história que se revela,

pelo que a aferição da sua magnitude pertencerá à posteridade, quer dizer,

ao momento futuro de que ele mesmo terá sido o primeiro dos

precursores”, sendo que esta concepção da história está intimamente

vinculada à apreciação de um movimento teleológico que tem na

“humanidade” a sua escala referencial primeira. A tendência à perfeição da

265 BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.1, outubro/novembro , 1879, p.2-3. 266 MATTOS, Júlio de. “A significação filosófica e social das festas do Tricentenário deCamões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.5, Junho/Junho, 1880, p.399.

122

humanidade é reflectida também como uma antropodiceia de dimensão

épica (267).

Interessa-nos especialmente este “salto” epistêmico entre

individualidade e humanidade. É certo que sua efetivação não brigava,

muito pelo contrário, com os pressupostos teóricos da comemoração. Isto

explica Júlio de Mattos, em discurso pronunciado no teatro de S. João, na

manhã do dia 10 de Junho de 1880, na abertura da sessão solene dos

académicos do Porto: “dizer que a humanidade inteira realiza a sua marcha

progressiva como se fora um homem só que subsistisse e aprendesse

sempre, vale o mesmo que afirmar que as sociedades têm, como os

indivíduos, uma evolução determinada, prevista em muitos casos, superior

no fundo a todas as acções individuais que possam opor-se-lhe” (268).

Indiscutível seria, nesse sentido, a escolha de Camões: escolha “lógica,

nomeadamente após a sua mitificação romântica e a sua «democratização»

feita nos inícios dos anos 70 pelos estudos de Teófilo Braga e Oliveira

Martins”. O poeta simbolizava “tanto a Nação como a humanidade, ou

melhor, permitia reivindicar para a Nação uma parcela na construção da

marcha ascendente da humanidade, ao mesmo tempo que o seu canto das

glórias e as suas denúncias das vilezas passadas não deixavam de gerar

confrontações críticas em relação ao mundo de «apagada e vil tristeza» em

que Portugal se tinha transformado” (269). O que toma particular destaque,

para o nosso escopo, é o fato de esta perspectiva, ao permitir a assimilação

entre nacionalismo e cosmopolitismo no quadro do movimento

267 CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, JoséAmado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. VolumeII. [sem local] Temas e Debates, 1998, p.221. 268 MATTOS, Júlio de. “A significação filosófica e social das festas do Tricentenário deCamões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.5, Junho/Junho, 1880, p.395-399. 269 CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, JoséAmado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. VolumeII. [sem local] Temas e Debates, 1998, p.226.

123

comemorativo, permitir também a simultaneidade de diferentes escalas de

referência atuantes no contexto da festa cívica (270).

Efetivamente, como frisa Teófilo, joga-se na homenagem a Camões

o “futuro da humanidade, levando as nações da Europa a conhecerem as

suas origens étnicas, e a saberem explicar o seu passado”. Por isso, defende

inequivocamente que “o Centenário de Camões é também uma

comemoração europeia” (271). E não apenas europeia: o significado da

festividade e da própria escala comemorativa se estendia também ao Brasil.

Neste país, onde uma nova geração de intelectuais brasileiros –

“fortalecida”, segundo Teófilo, pela educação positiva e pelo critério

sociológico – rompia com a velha “hostilidade que uma política dinástica

de egoísmo assentou entre Portugueses e Brasileiros”. Isto tornava possível

restabelecer as “condições naturais da reciprocidade dos dois povos”,

apesar da existência de críticas e dissidências em relação aos festejos

camonianos no Brasil (272). O que fazia da magnitude destes festejos –

porque realizados no Brasil – era a expressão da “sociolatria” comtiana,

bem como uma manifestação a mais da “religião demonstrada” pela

cientificidade moderna. Porque, de acordo com este tipo de pensamento,

“só a ciência com as conclusões verificáveis é que consegue estabelecer

270 Como manifesta esta declaração de Teófilo Braga: “cada povo escolhe o génio que é asíntese do seu carácter nacional, aquele que melhor exprimiu essas tendências, ou o que maisserviu essa individualidade étnica; o vulto de Cervantes simbolizará em todos os tempos aEspanha, como Voltaire representa em todas as suas manifestações o génio francês; Dante, Petrarca e Miguel Ângelo para a Itália, Shakespeare ou Newton para a Inglaterra, Luthero eGoëthe para a Alemanha, Espinosa para a Holanda, são os laços por onde estes povos, mantendo o seu individualismo nacional, se prendem ao grande conflito da história comoesforços colectivos que conduziram para a noção da humanidade que se afirma”. BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.1, outubro/novembro, 1879, p.2. 271 Idem, ibidem, p.7. 272 Como foi o caso de um Araripe Júnior, para quem as comemorações “aviltavam o orgulhonacional”.

124

uma verdadeira unanimidade” (273). O que quer dizer, no contexto

comemorativo, um verdadeiro consenso.

No âmbito desta procurada abrangência, é verosímil que a festa

camoniana ambicionasse algo mais do que o estabelecimento de um “novo

calendário nacional” português, perspectivando instaurar, igualmente, um

novo calendário transatlântico e, com ele, um novo padrão de

relacionamento luso-brasileiro. Conforme passamos a expor, há indicadores

nesse sentido: desde o programa dos festejos camonianos no Brasil ao

dinamismo parisiense de Miguel Lemos ou à significância do discurso de

Joaquim Nabuco, era sempre de um comemoracionismo luso-brasileiro que

se tratava.

3.2.2. Vejamos o caso de Miguel Lemos, intelectual brasileiro a

estudar em Paris. Segundo Teófilo Braga, “em Paris a festa do Centenário

de Camões foi sustentada (...) por brasileiros que ali seguem cursos

científicos”, assim garantindo um momento de “confraternidade dos dois

povos”. Verdadeiramente, foi à ação de Miguel Lemos que se deve a

iniciativa de “celebrar o terceiro centenário do ilustre cantor das glórias

portuguesas”. É o próprio quem afirma ter ele mesmo lembrado “ao Sr.

Laffitte a necessidade de se fazer alguma coisa neste sentido na Igreja

Parisiense”, logo se autopropondo para dinamizar um “trabalho de

apreciação sobre Camões e a nacionalidade portuguesa ” (274). Diante da

autorização concedida por Pierre Laffitte, Miguel Lemos teria escrito “ao

Sr. Teixeira Mendes fazendo-lhe ver a necessidade de promover essa

[comemoração] entre os brasileiros, para significar assim a reconciliação

273 BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.1, outubro/novembro , 1879, p.1274 Explica Lemos: “uma moléstia inopinada impediu-me de cumprir este encargo, mas otrabalho estava feito: foi primeiro publicado na Revue Occidentale e depois em volume”, intitulado Luiz de Camões, e do qual nos ocuparemos a seguir. LEMOS, Miguel. Resumohistórico do movimento positivista no Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade Positivista, 1882, p.24.

125

definitiva da antiga colônia com a metrópole, reconciliação cujo verdadeiro

carácter só podia ser fornecido pela nova doutrina, que sabe fazer suceder

aos velhos ódios o vivo sentimento de continuidade histórica”. Segundo

ainda Miguel Lemos, Teixeira Mendes teria de pronto aceitado a ideia,

levando a cabo a empreitada com ajuda de alguns membros do jornalismo

(275).

Atentemos para a ideia de que as comemorações camonianas

representam a mobilização de um “sentimento de continuidade histórica”

(276). A continuidade histórica que Portugal e Brasil deveriam corporizar.

Justifica-se, assim, o prefácio feito ao trabalho de Miguel Lemos, Luiz de

Camões, onde se defende ser de suma utilidade que “la glorificcation du

meilleur type portugais soit faite à Paris, et soit faite par un Brésilien : il y

275 LEMOS, Miguel. Resumo histórico do movimento positivista no Brasil. Rio de Janeiro:Sociedade Positivista, 1882, p.25. Grifo nosso. 276 Nesse sentido, vale a pena destacar mais detalhadamente a obra que Miguel Lemos escreveuem Paris, em 1880, em homenagem ao autor dos Lusíadas. Importa ressaltar que esta obra foidedicada a Pierre Laffitte, enquanto “directeur du Positivisme, sucesseur d’Auguste Comte”, numa clara alusão à vertente mais ortodoxa do positivismo, que remete para uma adesão acríticaaos conhecimento propagados por Comte, bem como ao apostolado positivista da “religião dahumanidade”. A interpretação do positivismo foi diferente se compararmos os casos de Portugale Brasil, como será aclarado posteriormente neste trabalho. Nomeadamente Teófilo Braga, Teixeira Bastos e Júlio de Mattos, para dar alguns exemplos, aceitaram com maior ardor aprimeira fase da obra comtiana, na época liderada por Émille Littré, e simbolizada pelo Cursode Filosofia Positiva, de Augusto Comte, obra marcadamente experimentalista e materialista. No caso brasileiro, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, os principais líderes domovimento positivista nacional, acabaram por aderir com força aos preceitos da vertente maisortodoxa do positivismo, conduzida por Pierre Laffitte e bem simbolizada pelas últimas obrasde Comte, como Síntese Subjectiva ou Sistema Universal das Concepções Próprias ao EstadoNormal da Humanidade, texto claramente vinculado ao testamento do criador do positivismo. De qualquer forma, é bom que se diga, parece que, no que concerne às comemoraçõescamonianas, a mobilização tanto das noções de “grande homem” quanto da escala filosófica da“humanidade” como sujeito do progresso não parece ter tido grandes diferenças entreportugueses e brasileiros ou entre heterodoxos ou ortodoxos positivistas. A este respeito, frisamos, com Fernando Catroga, que “a diferença entre a ortodoxia comtiana e os seusheterodoxos discípulos portugueses residiu, sobretudo, em aspectos dogmático-formais, já queem todas as versões se detecta esta característica comum: o empenho na edificação de umagaleria hagiográfica de «grandes homens» posta ao serviço do reforço de um novo consensosocial”. CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX.Volume II. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.223-224.

126

aura lá une démonstration éclatante de l’universalité de la nouvelle religion,

qui glorifie les services des grands hommes de tous les pays”(277).

Na conjuntura da divulgação da filosofia positivista e do

movimento republicano – que, em 1880, era concomitante em Portugal e no

Brasil – é necessário, do ponto de vista positivista brasileiro, “renoncer aux

vieux préjugés contre la mère patrie”. Parte-se do pressuposto que

“sociologiquement partant, les Brésiliens sont Portugais : des liens

d’amours et de reconnaissance doivent nous rattacher éternellement à la

souche historique d’où nous provenons”. Afinal, “une nation qui ne se

reconnait pas d’antécédents est exposée à se dissoudre, et les appendices

américains de l’Occident ont besoin, pour échapper à ce danger, de relier

leur nassainte histoire aux tradition de leurs ancêtres et d’instituer, sous

l’inspiration de la vrai philosophie, le digne culte du passé nacional”(278).

Ora, fica evidente que, no intuito de restabelecer a “ordem” e cimentar o

“progresso”, os positivistas brasileiros, alimentados pelo ideal da

fraternidade universal positiva, julgam fundamental restabelecer os

vínculos com o “passado nacional”, e, assim, restabelecer a relação com

Portugal. Este processo tanto melhor seria desenvolvido se houvesse um

“grande homem” comum às duas nações de fala portuguesa, recordado

como símbolo do desenvolvimento da marcha evolutiva da humanidade e

do progresso. Camões enquadrava-se idealmente nesse pressuposto.

No intuito de criação de uma memória comum luso-brasileira,

Miguel Lemos reconhece a indispensabilidade de recorrer aos

ensinamentos de alguns intelectuais portugueses. Nesse sentido, dirá:

“j’adopte entièrement la dénomination qu’Herculano – un historien

portugais dont le nom reviendra souvent dans ces pages – appliqua un jour

aux produtions de l’anarchie scientifique de notre temps, à toutes ces

277 LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.III. 278 Idem, ibidem, p.III-IV.

127

sciences nouvelles qui s’intitulent anthropologie, ethnographie, pré-

histoire, science des religion, etc., etc. Il appela tout ce fatras incohérent et

verbeux, un gongorisme scientifique. Le mot est heureux et mérite d’être

retenu”. Ora, importa realçar que, neste caso, a referência à obra de

Alexandre Herculano, e, sobretudo, às críticas ao que ele chamava de

“gongorismo científico”, tinham alvo certo: a vertente encabeçada por

Émile Littré que realçava um materialismo tout court. Tanto é que Miguel

Lemos logo se afadiga em demonstrar possuir “la plus grande sympathie

pour les écrivains qui, en Portugal ou ailleurs, battent vaillament en brèche

la vielle rhétorique et les vieux préjugés”, considerando que “les

positivistes ont le droit d’exiger que leur doctrine, à eux, ne soit pas

confundue avec ces élucubrations, qu’elle ne saurait patronner. Ces

prétendues sciences, conçue dans un sprit tout à fait contraire à la saine

philosophie, ne renferment en somme que des fragments détachés de la

sociologie et de la morale, et quelques documents susceptibles d’êtres

joints aux acquisitions concrètes” (279). Entretanto, a dívida para com o

historiador romântico Herculano não implica, da parte de Miguel Lemos, a

renúncia aos ensinamentos da geração de 1870 portuguesa. Como ele

mesmo salienta, se “dans la partie relative aux origines et à la formation du

Portugal, j’ai suivi, en le résumant parfois, le récit d’Herculano”, não omite

“la justesse partielle de certaines critiques récentes” – referindo-se

à História do Romantismo em Portugal, de Teófilo Braga, editada em

Lisboa, em 1880, bem como ao “mérito literário” de obras como a História

de Portugal de J.P. de Oliveira Martins, editada em 1879 (280).

279 Idem, ibidem, p.VII. 280 “En ce que concerne directemente la biographie de Camões, je tiens à déclarer que je mesuivi servi surtout des derniers travaux de MM. Juromenha et Theophilo Braga, sans négligercependant de prendre connaissance de toute la série des travaux antérieurs ; ceci m’a été facile, grâce aux richesse mises libéralement à la disposition du public par la Bibliothèque nationale”. LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.VIII.

128

Do nosso ponto de vista, estes breves excertos são suficientes para

fazer notar o seguinte: que, se no comemoracionismo português a escolha

do poeta surgia como absolutamente natural – sobretudo após sua

depuração, primeiro romântica e depois teofiliana e martiniana (281) –,

também no escopo do comemoracionismo brasileiro as obras destes autores

constituem referência incontornável na hora de sustentar o lugar tópico da

lusitanidade no seio da evolução histórica a ser celebrada. Visivelmente a

festa camoniana consolidava o entendimento relacional das culturas

portuguesa e brasileira, sugerindo uma característica de base comum e

cientificamente recuperada, representando uma fase pós-preconceituosa do

relacionamento luso-brasileiro. Como se verá, a programação do evento

reflete essa leitura.

3.2.3. Voltemos às festas propriamente ditas. Mais especificamente ao

programa brasileiro. Temos conhecimento de eventos comemorativos em

homenagem ao autor de Os Lusíadas em várias regiões do Brasil, dentre as

quais Pernambuco, Bahía, São Paulo e Rio Grande do Sul. Destaca-se,

porém, os festejos ocorridos no Rio de Janeiro (282). No dia 10 de Junho, no

Teatro Ginásio desta cidade, as comemorações iniciaram com a execução

do hino português. Em seguida, Raimundo Teixeira Mendes realiza um

discurso monumental sobre a compreensão histórica de Camões entre os

grandes tipos da humanidade. Para além do hino português, também foram

tocados, nessa ocasião, trechos da Semiramis, da Africana, e do Guarani,

281 Assim, vemos Miguel Lemos a ecoar a tese iberista de Oliveira Martins sobre a formação dePortugal, reafirmando que “Tout en conservant des caractères communs avec la populationespagnole, les Portugais par une suite de modifications politiques et sociales, arrivèrent à un étatcomplet de différentiation nationale” e que “il faut l’accepter comme un des résultatsfondamentaux de l’évolution ibérique et comme un cas anticipé de l’avenir normal où lesgrandes nationalités actuelles, pour obéir aux besoins d’un régime industriel et pacifique, serésourdront en un certain nombre de petites patries qui se suffiront à elles-mèmes, comme lePortugal, la Hollande, la Suisse et la Belgique”. Idem, ibidem, p.276-277. 282 JOÂO, Maria Isabel, “Percursos da Memória: centenários portugueses no século XIX”. In:Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Nº 8, Janeiro/Março de 2000.

129

completando musicalmente a cena numa claramente menção sonora à

compreensão da “cultura” pelo critério da mestiçagem, bem como

referenciando que esta deu-se em consonância com o mito das três raças.

A agenda detalhada e os pormenores descritivos do programa

comemorativo não nos interessam de todo – apesar do entusiasmado regitro

de Teófilo Braga (283). Limitemo-nos a reter, a partir das suas informações,

terem sido igualmente significativas “as festas do Centenário de Camões

em São Paulo”, levados à cargo pela “iniciativa de um grupo de

positivistas”. Segundo ele, entretanto, uma das vertentes mais auspiciosas

das comemorações terá sido a realização de uma exposição camoniana, na

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que reuniu “quatrocentos e oitenta

produções diversas, edições, traduções, estudos críticos e trabalhos

artísticos de primeira raridade”. Uma esmagadora exibição cujo sentido não

era difícil de descortinar. Conforme o discurso de abertura da exposição, a

cargo do Dr. Ramiz Galvão, bibliotecário e organizador da mostra, é

salientado que “a duas mil léguas de Lisboa, nesta generosa terra

americana, uma geração se levanta para saudar o Centenário do Poeta, que

283 Segundo Teófilo, “o palco do teatro estava armado em templo com colunas greco-romanas, que simbolizavam as duas civilizações iniciadoras da época da Renascença a que Camõespertence. As civilizações orientais estavam representadas por duas Esfinges, bem como por maisoutras duas que representavam a civilização do Egipto. O escudo de Camões dominava todo otemplo, e nele sobressaíam as águias romanas, símbolo da civilização que se desdobrou naslínguas, literaturas e nacionalidades do ocidente. A continuidade humana do passado estavarepresentada por bandeiras que ornavam o teatro; uma, alusiva aos povos pré-históricos, tinhaao centro um lar, significando a descoberta do fogo; ao lado machados de pedra e de bronze, figurando as épocas antropológicas; a outro lado, flechas, dardos, representando o nomadismoda caça e da guerra; amimais domésticos, significando a vida pastoral, e a sua cooperação naluta do homem pela existência; finalmente espigas de milho, como iniciação do períodoagrícola. Em outra bandeira, estavam simbolizadas as teocracias antigas pelas pirâmidesegípcias; o politeísmo e a arte helénica pelo frontão de um templo grego; e a unidade políticapelas guerras civilizadoras por meio das águias romanas. Os povos modernos estavamrepresentados pelos seus pavilhões, sobressaindo os de Portugal e Brasil. A época dosdescobrimentos estava representada por colunas alusivas à África, Ásia e América, cooperandopara este sentimento da vida do passado as manifestações artísticas que inspiraram Mayerbeerna Africana, e o brasileiro Carlos Gomes no Guarani. O povo ama o que compreende; foi essapor isso uma das manifestações mais concorridas”. BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camõesno Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.513-514.

130

não cantou só as glórias do pátrio ninho, – mas uma página brilhante da

história da humanidade, que não é tesouro de um século, de um povo, de

um vate, de uma língua, mas tesouro de todos os tempos e de todos os

lugares” (284). Para Teófilo “tudo quanto havia para avivar a tradição da

nacionalidade portuguesa ali estava disposto com grande alcance histórico

e filosófico. Ninguém entrou naquele santuário que não trouxesse uma mais

elevada compreensão da solidariedade humana, e novos impulsos

altruístas” (285).

Por seu turno, as festas organizadas pelo Gabinete Português de

Leitura do Rio de Janeiro são, para Teófilo, impossíveis de descrever “sem

uma enchente de lágrimas”. Primeiro, pela mera existência do Gabinete

Português de Leitura, fundado em 1837 (e dotado de novo e suntuoso

edifício) tece “o poder espiritual de congregar todas as forças do Brasil,

284 É minuciosa a descrição que Teófilo Braga faz das festas realizadas no Rio de Janeiro. Eisum exemplo: “O átrio da Biblioteca e o primeiro lanço da escadaria estavam adornados porpalmeiras aparecendo em frente o busto de Camões, em terracóta bronzeada, do escultor francêsAugusto Taunay. A porta do centro, do segundo lanço da escada, dava entrada para a sala daExposição maravilhosamente adornada. Na parede esquerda, forrada de colchas de seda daÍndia, dentre um maciço de verdura, destacava-se o grande busto de Camões, em gesso, obra doprofessor da Académia de Belas Artes, Chaves Pinheiro; ao lado dois gigantes vasos da Índiacheios de flores; junto da janela estavam duas cadeiras de espaldar, tauxiadas, exemplaresperfeitos do estilo antigo. Nesta mesma parede estavam expostos, os quadros de Inês de Castroimplorando a clemência do rei, de Vieira Portuense, um Retracto de Camões por Moraux, umacópia de um antigo retrato de Inês de Castro, e outro quadro de Vieira Portuense, ODesembarque dos Portugueses em Moçambique. Na parede da direita da sala, estabam expostosos quadros da Ilha dos Amores, de C. Markó, Camões e o Jaú, na Igreja de Santa Anna, porLéon Moreax, e o Naufrágio de Camões, por De Martino; a outra lado desta mesma paredeestava uma cópia fotográfica do quadro de Metrass, Camões e o Jau na gruta de Macau; umRetracto de Camões, pintura de Julião Martins, e um esboço de Naufrágio. Na parede do fundo, via-se o quadro de J. de Chevrel, Bacchio implorando socorro de Naptuno contra osPortugueses, um litografia do quadro de Metrasse por Aug. Off.; reproduçã fotográfica de umNaufrágio; os Últimos momentos de Camões, litografia de Dulong; Os Galeões do Gamadobrando o Cabo da Boa Esperança, do pintor de marinhas Thomasini; e um quadro à pena, eretracto em grande de Camões a crayon pelo prof. António Alves do Vale. Em frente do bustode Camões, estavam sob uma redoma três exemplares da primeira edição dos Lusíadas de 1572;um propriedade do imperador, notável pela nota manuscrita – Luiz Vaz de Camões seu dono 576– outro propriedade da Biblioteca, notável pela conservação e grandes margens, o último jóia doGabinete português de Leitura. Junto destes tesouros estava também o exemplar dos Lusíadasdeturpado pelos Jesuítas, de 1584, conhecido pelo nome irrisório de Edição dos Piscos, da maisextrema raridade”. BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo:revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.513-516. 285 Idem, ibidem, p.514-516.

131

unificando em uma festa sem igual dois povos irmãos, filhos da mesma

tradição, afastados pelos efeitos históricos de uma política pessoal”.

Depois, porque as comemorações teriam arregimentado cerca de três mil

pessoas e, sobretudo, porque o evento central da noite inaugural, o discurso

do escritor e deputado brasileiro Joaquim Nabuco, foi o “meio eficaz para

dar ao Centenário um dos seus caracteres de universalidade, ligando por

uma mesma emoção tradicional dois povos irmãos” e expressando “a

calorosa simpatia com que é revivificada a tradição portuguesa de que o

Brasil tira o seu impulso histórico” (286). E o que dizia Nabuco no seu

discurso?

Em primeiro lugar e a título introdutório, que as festas relativas ao

Tricentenário da morte do poeta configuram uma manifestação de

renovação nacional(287). Em seguida, que “nesta festa uns são Brasileiros,

outros Portugueses, outros estrangeiros”, mas que “temos todos porém o

direito de abrigar-nos sob o manto do Poeta”, pois “se o dia de hoje é o dia

de Portugal, não é melhor para ele que a sua festa nacional seja considerada

entre nós uma festa de família? Se é o dia da Língua Portuguesa, não é esta

também a que falam 10 milhões de Brasileiros? Se é a festa do espírito

humano, não paira a glória do poeta acima das fronteiras dos Estados, ou

estará o espírito humano também dividido em feudos inimigos? Não, em

toda a parte a ciência prepara a unidade, enquanto a arte opera a união”(288).

Decididamente, o brasileiro não é um estrangeiro nas festas camonianas,

cabendo-lhe papel relevante. Nabuco investe, seguidamente, na dimensão

286 Idem, ibidem, p.516-518. Grifos nossos. 287 NABUCO, Joaquim. Camões. Discurso pronunciado a 10 de junho de 1880, no GabinetePortuguês de Leitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Leuzinger & filhos, 1880. Merecedestaque ainda a folha de rosto, onde dedica o texto “Ao Sr. J.C. Ramalho Ortigão, 1.º secretáriodo Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro»”. Lembre-se que apesar das críticas e daceleuma provocada pelas Farpas, Ramalho Ortigão foi agraciado com zelo na ocasião dascomemorações. Notemos que o Imperador D. Pedro II, alvo das crônicas humorísticas dasFarpas, que deram origem à polêmica, estava presente na cerimónia. 288 NABUCO, Joaquim. Camões. Discurso pronunciado a 10 de junho de 1880, no GabinetePortuguês de Leitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Leuzinger & filhos, 1880, p.8-9.

132

histórica da pretendida comunhão luso-brasileira. E questiona: “não foi o

Brasil descoberto, colonizado, povoado por Portugueses? Não foi uma

colónia portuguesa durante três séculos, que se manteve Portuguesa pela

força das suas armas, combatendo a Holanda, até que, pela lei da

desagregação dos Estados, e pela formação de uma consciência Brasileira e

Americana no seu seio, assumiu naturalmente a sua independência, e

coroou o seu Imperador ao próprio herdeiro da Monarquia? Depois deste

facto, apesar dos preconceitos hoje extintos, não tem sido o Brasil a

segunda pátria dos Portugueses? Não vivem eles connosco sempre na mais

completa comunhão de bens, num entrelaçamento em família, que tornaria

a separação dos interesses quase impossível?”(289). E, se é verdade que o

poema de Camões canta a descoberta do caminho das Índias, Nabuco não

resiste a constatar que, em 1880, “a Índia Portuguesa é uma pálida sombra

do Império que Afonso de Albuquerque fundou; ao passo que o Brasil e os

Lusíadas são duas maiores obras de Portugal”(290).

E isto não é tudo. Pela voz de Nabuco, na hora solene da

comemoração, escuta-se, inclusive, que “o emigrante português chega ao

Brasil sem fortuna, mas também sem vícios, e pelo seu trabalho cria

capitais; vem só, e funda uma família; seus filhos são Brasileiros; falando a

mesma língua, e da nossa raça, essa imigração nem parece de estrangeiros;

todos os anos, à força de privações corajosamente suportadas, ela põe de

lado uma soma considerável, que não acresce tanto à riqueza de Portugal

como à nossa”(291). Tudo somado, conclui o palestrante: “Não preciso

dizer, como aliás o podia fazer sem deixar de ser sincero, que nesta noite

sou Português; basta-me dizer que acho-me animado para com a pequena,

mas robusta Nação que fundou o Brasil, e que foi tanto tempo a Mãe Pátria,

de um sentimento que, se não se confunde com o patriotismo, não deixa de 289 Idem, ibidem, p.9-10. 290 Idem, ibidem, p.10. 291 Idem, ibidem, p.11.

133

confundir-se entretanto com o próprio orgulho nacional”(292). Por tudo isto,

a celebração camoniana então inaugurada só pode ser entendida, dirá, como

“a prova de que Portugal não morreu de todo em 1580, mas somente

atravessou a morte, e de que os Lusíadas não foram o túmulo nem da raça

nem da língua” (293). Os Lusíadas “não é um livro que torne ninguém

Português, é um livro que torna todos patriotas”, dizia (294). Após o

discurso de Nabuco, dá-se início à recitação de poesias a Camões,

declamando D. Amélia Vieira, Dr. Rezende Moniz, entre outros. Logo após

se representa uma peça dramática em um ato, Tu, só tu, puro amor, “escrita

pelo distinto poeta brasileiro Machado de Assis, expressamente para essa

noite” (295). Pelo exposto, parece seguro supor que o objetivo maior do

evento havia sido alcançado.

Em idêntico espírito celebratório, deve-se juntar textos de outros

personagens, como Reinaldo Carlos Montoro (296) Ou discursos como os de

Basílio Machado(297), ambos expressamente elaborados para a data, bem

292 Idem, ibidem, p.12. 293 Idem, ibidem, p.26. 294 Idem, ibidem, p.26-27. 295 BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.516-518. 296 Curiosa é a publicação de Reinaldo Carlos Montoro, intitulada O Centenário de Camões noBrasil. Portugal em 1580. O Brasil em 1880. Numa clara alusão ao Brasil como o herdeiro doPortugal renascentista – simbolizado por Camões – Montoro afirma que “diante destaperspectiva que o estudo do globo abre à nossa língua, e pelos vestígios de ideias e afectos quese encontram nestas variadas ramificações da raça portuguesa, Camões cessa de ser apenas ogrande poeta épico de Portugal, e torna-se o vulto maior da civilização cosmopolita”, afirmações às quais acrescenta a de que o “Brasil é o herdeiro directo de Portugal do XVIséculo”, devido “ao quadro da decadência do império português”. Por isso, “não devemosocultar que teve os mesmos elementos de organização social e esteve muitos anos sob osmesmos influxos intelectuais”. MONTORO, Reinaldo Carlos. O Centenário de Camões noBrasil. Portugal em 1580. O Brasil em 1880. Estudos comparativos. Rio de Janeiro: AntónioJosé Gomes Brandão Editor, 1880, p.8; 107-108. Acervo da Camoniana dos Reservados daBiblioteca Nacional de Lisboa297 Particularmente nesta obra, observamos o eco das obras de Teófilo Braga e Oliveira Martinsque, desde a década de 1870, tinham iniciado o movimento de culto ao poeta. Assim, em claraalusão implícita a Oliveira Martins – e nomeadamente à célebre frase martiniana que entendiaque “Os Lusíadas são um epitáfio” – observamos o discurso proferido por Basílio Machado:depois de cantar loas às descobertas de portuguesas,, sobretudo ao caminho aberto ao Oriente, assinala que “toda a glória, como o sol, tem seus ciclos de obscurecimento”. Para ele, como paraJ.P. de Oliveira Martins, depois de 1580, “Portugal declinava”. MACHADO, Basílio. Discurso

134

como uma série de realizações e eventos, espalhados um pouco por todo o

Brasil, que garantiam a ressonância pretendida e compunham uma

significativa imagem de totalidade. Dentre estes, destacam-se a publicação

de uma edição de luxo de Os Lusíadas, patrocinada pelo Gabinete

Português de Leitura (298); a encomenda, por esta mesma instituição, de

uma medalha comemorativa com o vulto de Camões, “destinada a

perpetuar a data, que se contará como da era nova da nossa revivescência

portuguesa” (299); os festejos realizados pelo Retiro Literário Português,

onde “se achavam representadas vinte e três Associações, e as redacções

dos primeiros jornais do Rio de Janeiro” (300); o desfile dos estudantes das

Academias do Brasil (301); a regata efectuada na praia do Botafogo (302).

proferido no sarau literário que, em comemoração do tricentenário de Camões, promoveu oClub Ginástico Português, de S. Paulo, a 10 de Janeiro de 1880. São Paulo: Tipografia daConstituinte, 1880, p.8. Acervo da Camoniana dos Reservados da Biblioteca Nacional deLisboa. 298 Publicação editada em Lisboa, na tipografia de Castro e Irmãos. Com um prólogo assinadopor Ramalho Ortigão, tratava-se de uma edição “verdadeiramente monumental”, consoante aapreciação teofiliana: “É adornada com um retracto fantasista de Camões, por ColumbanoPinheiro, imitando na gravura o estilo das águas fortes do século XVI; o tipo do poeta, à falta deum retracto autêntico, é uma recomposição psicológica, tem um pouco a fisionomia deCervantes com a expressão de Victor Hugo. O prólogo que acompanha o poema, émagistralmente escrito pelo nosso primeiro crítico Ramalho Ortigão; descreve com o seu grandepoder de estilo a época da Renascença como o fundo do quadro em que coloca a individualidadede Camões, e restitui ao poeta todos os toques vivos da realidade tirados das suas cartas. Asrelações do poeta com a nacionalidade portuguesa são expostas de um modo comovente. Otexto do poema foi aproximado quando possível da recensão de 1572. O volume termina comum estudo de Reinaldo Montoro sobre a história da benemérita associação que restabeleceu adignidade do nome português no grande estado do Brasil. A maior parte desta opulenta ediçãofoi destinada a brindes para todas as corporações, e homens de letras notáveis, e ela atestará emtodos os tempos que houve portugueses que tiveram a consciência plena da solidariedadenacional”, BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista defilosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.516-518. 299 Idem, ibidem, p.516-518. 300 Idem, ibidem, p.519. 301 No dia 12 de Junho, informa-nos ainda Teófilo, as comemorações foram realizadas pelosestudantes das Academias do Brasil que se reuniram na rua do Teatro para uma Marche auxflambeuax. O cortejo dos estudantes brasileiros da Politécnica, deu-se da seguinte maneira:“organizou-se o préstito em duas alas; os estudantes levavam balões chineses suspensos emvaras, com flâmulas e galhardetes. À frente ia a banda dos imperiais marinheiros, em seguida abandeira da Politécnica, depois as bandeiras da humanidade e da civilização que serviram navéspera na festa dos Positivistas brasileiros; sobre um palanquim era levado o busto de Camõesaos ombros de estudantes, fechando a comitiva as bandas marciais do corpo de polícia e do 10ºbatalhão de infantaria. Antes da partida falaram alguns académico das janelas da rua do Teatro;no longo trajecto foram saudados pelo cônsul português no Rocio, na rua do Ouvidor pelo

135

Estas iniciativas sinalizavam o investimento comemorativo carioca. Um

investimento reproduzido em outras cidades brasileiras: em Recife, sob a

égide do Gabinete de Leitura de Pernambuco; em S. Paulo, sob organização

do Clube Ginástico Português; em Campinas, com particular mobilização

da colónia portuguesa local; em Porto Alegre(303) ou, inclusive, em

Uruguaiana, cidade sul-rio-grandense na fronteira com a Argentina. Se a

este panorama juntarmos a cobertura dada aos festejos pela imprensa

brasileira, consagrando números especiais ao centenário camoniano, bem

se percebe a euforia teofiliana e a sua convicção de que “se a vitalidade

portuguesa se mostrasse exausta no velho continente europeu, a ponto de

deixar passar desapercebida esta grande data de 10 de Junho, como o

governo queria quando disse que achava as festas ruidosas e imodestas, a

honra desta nacionalidade acharia no novo mundo os legítimos herdeiros da

sua tradição. Foi isto o que compreendeu o Brasil, excedendo-se em

entusiasmo e sumptuosidade” (304).

Gabinete português de Leitura, recebendo o estandarte desta associação para ser depositado naBiblioteca nacional. Outras saudações receberam pelo caminho, sendo aclamados e cobertos deflores, no meio de um entusiasmo indescritível. Todas as ruas por onde o préstito académicoseguia, estavam iluminadas a caprichos, formando abóbadas de luz; era de um efeito fantástico, a alegria tornara-se contagiosa”. Idem, ibidem, p.519. 302 No dia 13 de Junho, ainda organizou-se uma regata na praia do Botafogo, Rio de Janeiro, quecontou com audiência de para mais de cem mil pessoas, conforme a descrição de Teófilo Braga. Aos vencedores eram entregues, distribuídos pela mão do Imperador D. Pedro II, dozeexemplares da edição de luxo dos Lusíadas, organizada pelo Gabinete português de Leitura, além de duas medalhas de bronze, mandadas cunhar pela mesma instituição para perpetuar afesta do Centenário e a inauguração de sua nova sede. A magnitude das comemorações doTricentenário de Camões foi ressaltada como expressão da “concórdia dos espíritos perante ummesmo ideal”, chamando atenção, nas páginas do Positivismo a “confraternidade” luso-brasileira. Idem, ibidem, p.519-520. 303 Em Porto Alegre as festas do Centenário de Camões também foram realizadas, segundo adescrição de Teófilo Braga, com “grande esplendor, durante três dias, terminando com baile noteatro São Pedro, no fim do qual houve uma alocução e distribuição de diplomascomemorativos. Idem, ibidem, p.520. A informação é confirmada pelo jornal A Reforma, dePorto Alegre, em 10 de junho de 1880 que, à página 2 noticiava: “Centenário de Camões –Devem começar hoje no Teatro S. Pedro as festas consagradas ao Centenário de Camões, constando de um sarau literário, que começará às 9 horas da noite em ponto”. Os eventos, entretanto, foram transferidos para o dia seguinte, “em consequência do mal tempo”, conformenoticiou A Reforma, em 11 de junho de 1880, p.3. 304 BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.520.

136

Neste contexto celebratório, a par das comemorações de ordem

solene e oficial, observa-se uma série de outros textos, publicações e

discursos elaborados por parte de figuras de menor visibilidade na cena

cultural brasileira. Contudo, também estes alinhavam pelo mesmo diapasão

comemorativo e com a mesma referencialidade discursiva. Tonham

também as mesmas fontes portuguesas para a leitura brasileira sobre Os

Lusíadas: Oliveira Martins e Teófilo Braga (305). Está neste caso, por

exemplo, o texto O Centenário de Camões, publicado no Rio de Janeiro,

nesse ano de 1880, assinado por F. de Figueiredo, autor para quem o 10 de

Junho de 1880 é um dia marcado pelo “entusiasmo [que] invade o coração

de toda a classe brasileira e portuguesa”, isto é, um dia em que “o brasileiro

num delírio de paixão preza-se de descender de Portugal! É hoje que o

Brasil orgulha-se de haver sido português” (306). E está também neste caso

o autor J. de Paula Souza, para quem Camões é objeto da veneração “que

lhe votamos, nós seus filhos do Brasil, que não o amamos menos que os de

Portugal”, pois “Camões não é um poeta somente, é uma nacionalidade, é o

representante da civilização portuguesa”. Segundo este último, foi no

continente americano que a significação do poeta teve mais coloração, na

medida em que “o amor refinou-se ainda no Brasil; tomou o brilho do

nosso céu, a beleza de nossa terra, a força do nosso sol, a pureza de nossa

305 Outro fato interessante a ser notado é a ampla referência às obras que Oliveira Martins eTeófilo Braga produziram sobre a significação social de Camões. Sem receio de errar, podemosafirmar que estes autores portugueses foram a fonte primacial da leitura brasileira sobre osLusíadas. O fato de terem sido estes representantes da Geração de 70 as fontes é significativo, na medida em que esta mobilização do poeta não foi realizada, por exemplo, aos moldes doromantismo português. Recorde-se que António Feliciano de Castilho também tinha produzidoobras sobre o significado de Camões. Não fazia parte, entretanto, a “arquitetura teórica doromantismo, dos anseios da Geração de 70 brasileira”. Ver. CASTILHO, António Feliciano de. Camões: estudo historico-poetico liberrimamente fundado sobre um drama francez dossenhores Victor Perrot e Armand Du Mesnil. Lisboa: Typ. da Sociedade Typográphica Franco-portugueza, 1863-1864. 306 FIGUEIREDO, F. de. O Centenário de Camões. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, Serafim José Alves Editor, 1880, p.4-7. Um dos elementos interessantes desta publicação é aoferta que a Livraria de José Alves faz na contracapa da obra: «Na mesma livraria – descriçãoda Gruta da Camões em Macau».

137

atmosfera”. Por isso, grifava que a Camões “devemos nós brasileiros o que

temos de melhor” (307).

Assim postas as coisas, não pode estranhar-se o balanço da

festividade feito por Teófilo: “o Brasil é o rudimento de uma fase nova e

futura da nação portuguesa; não é a Bizâncio de uma decaída Roma, mas

sim virá a formar os Estados Unidos do Sul, onde o amor da velha e

pequena metrópole há-de ser um vínculo moral”, posto que, pela sua acção,

“unificou dois povos separados por um obcecado empirismo político”. O

mesmo é dizer, em síntese, que a realização da comemoração camoniana

“durante quatro dias de emoções sublimes e nunca sentidas, fez mais na

obra de concórdia do que cinquenta anos de boa diplomacia” (308).

307 PAULA SOUZA, Dr. J. de. Luiz de Camões. (Homenagem de um brasileiro, ao granderepresentante da nacionalidade portuguesa). São Paulo: Tipografia da Constituinte, 1880, pp.11; 32-35. 308 BRAGA, Teófilo, “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de Filosofia, segundo ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p. 514-516.

138

PARTE II

FUNDAMENTOS TEÓRICOS: HISTORICIDADE E

DEMARCAÇÃO

Nossa investigação ao nível da configuração cultural luso-brasileira

no final do século XIX permitiu identificar alguns aspectos importantes: a

vigência de redes discursivas materializadas por um dinâmico intercâmbio

informativo entre ambos os pólos; a constituição de esquemas

interpretativos sobre o sentido político desse intercâmbio e sobre o seu

potencial efeito de singularização das culturas nacionais implicadas; a

coexistência de modalidades de relacionamento diversas – tanto

associativas quanto disruptivas – expressivas do carácter problemático da

historicidade desse relacionamento transatlântico; uma tendencial

irradiação dos debates emergentes no contexto de uma das partes

envolvidas à totalidade da escala luso-brasileira; e, ainda, a propensão dos

autores implicados para definirem os seus alinhamentos políticos ou

científicos menos em razão de uma comum pertença nacional e mais em

função dos pressupostos teóricos mobilizados em cada momento.

Este último aspecto merece maior análise. Afinal, se a dialogia

luso-brasileira se constrói, nas suas diversas matizes, sobre a mobilização

dos debates teóricos mais marcantes à época – debates onde o

relacionamento entre Portugal e Brasil é mais pretexto mais para sua

139

reatualização –, bem se compreende a necessidade de encarar as seguintes

questões: qual o “repertório teórico” disponível para pensadores

portugueses e brasileiros em finais do século XIX?; como, por quem e em

qual momento esse quadro teórico foi mobilizado?; qual tipo de eixos

teóricos essa apropriação deu lugar?; que tipo de concomitância ou de

defazagem introduziram estes processos no âmbito da escala luso-

brasileira? É verdade que alguns destes pontos estão foram abordados.

Contudo, na primeira parte deste estudo, eles surgem como expressão dos

níveis de articulação da configuração cultural luso-brasileira. Agora, uma

vez constatada e demonstrada sua vigência, é altura de centrar a atenção

naquilo que teoricamente a fundamentava.

A equação deste nível problemático obriga a uma opção

metodológica clara: o desenvolvimento da análise em perspectiva

comparada. Idealmente, para cada um dos pontos a tratar procurar-se-á

fornecer elementos relativos quer à cultura portuguesa, quer à cultura

brasileira, por forma a instruir o mais possível a reflexão sobre essa outra

dimensão, a luso-brasileira. Aspectos como o do perfil compósito da

chamada “frente cientificista” brasileira e o da feição tomada pelo

congênere fenêmeno português, ou o das desinteligências levantadas pelas

diferentes modalidades de recepção positivista em ambos os espaços

culturais, constituem indicadores preciosos sobre as motivações dos

posicionamentos atinentes à relação entre Portugal e Brasil. A este respeito,

uma advertência deve ser feita: tendo em conta a desigual cobertura dada

pelos campos historiográficos português e brasileiro a esta temática, é

inevitável que, por vezes, aquilo que, no nosso discurso, se oferece com

caráter de novidade num lado, pode ser lido como revisitação de matéria

conhecida por outro. Trata-se, porém, de um risco inevitável em

consequência do nosso objeto. Pareceu-nos necessáris a inclusão de

algumas linhas explicativas destinadas a enquadrar os debates em causa e

140

as múltiplas referências teórico-doutrinárias por ele convocadas. Dentro

deste espírito, eis as tarefas a que nos propomos a seguir: avaliar a

correlação entre o movimento de renovação cultural e das ideias no Brasil e

em Portugal; analisar a recepção das diretrizes positivistas, quer num quer

noutro lado (e também ao nível dos contextos internos, nomeadamente o

brasileiro), para caracterizar as demarcações no âmbito cientista daí

decorrentes; e, por fim, equacionar os termos em que se processa, na

mesma escala luso-brasileira, a mobilização dos fundamentos teórico-

científicos em causa no quadro envolvente do republicanismo.

1. “O arco de outra nova ponte” e o “bando de ideias novas”.

Parece ser consensual a definição das últimas décadas do século

XIX como uma época de forte dinâmica no campo das ideias. Seja a

dimensão científica do fenômeno, sejam os aspectos mais propriamente

culturais, sejam as questões políticas – em qualquer dos casos –, constata-

se, na sobreposição de vários fatores, uma tendencial propensão para a

mobilização das noções de mudança e de transformação. Assim, no caso

português, não restam dúvidas sobre a importância que teve o movimento

de contestação que vai da célebre Questão Coimbrã, em 1866, até às

Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, em 1871 (309). Para o

caso brasileiro, também não haverá maiores restrições em atribuir à

309 A este respeito, são referências incontornáveis os trabalhos dos professores AmadeuCarvalho Homem e Fernando Catroga. Ressaltamos, a título exemplificativo, HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005 e HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para umaleitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da Revista Máthesis, nº4, 1995, pp.89-102, bem como CATROGA, Fernando. Sociedade e Cultura Portuguesa II, Lisboa:universidade Aberta, 1996, especialmente pp.155-162, assim como os capítulos 3 e 4 daHistória da História em Portugal, volume I, organizado por TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX.Volume II. [sem local]: Temas e Debates, 1998.

141

chamada Escola do Recife um papel importante nesta renovação filosófico-

cultural (310). O que, entretanto, não está suficientemente estudado é

precisamente a correlação destes dois movimentos em escala luso-

brasileira, tão pouco seu efeito no padrão de relacionamento cultural entre

ambos os países. Em ordem a colmatar essa lacuna, começa por ser

fundamental reter aqui alguns dos aspectos caracterizadores de cada um

desses contextos de renovação teórica. Vejamos, inicialmente, o caso

português, ainda que apenas para recordar ideias-chave. Melhor

apetrechados ficaremos para o posterior confronto com os

desenvolvimentos brasileiros.

É pacífica a consideração da célebre Questão Coimbrã (1866) como

o marco inicial do movimento de contestação das ideias estabelecidas em

Portugal. Entretanto, se é verdade que a polêmica que envolveu Antero de

Quental e Teófilo Braga contra o grupo que circundava António Feliciano

de Castilho e Manuel Pinheiro Chagas teve seu início em função da censura

de Castilho à inscrição daqueles no concurso para a docência na cadeira de

Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras (preferia Pinheiro

Chagas), também correto será perceber, neste caso, a ativação de uma

querela entre a estética romântica e a moderna. Neste contexto, vêm à

estampa textos lapidares sobre a mudança do referente estético que podem

ser simbolizados pelo opúsculo de Antero de Quental, Bom senso e bom

gosto, e pelo texto de Teófilo Braga, Teocracias Literárias. Estava patente

que a divergência estética entre os dois grupos desembocava numa procura

310 A obra de Paulo Paim e João Cruz Costa são referências incontornáveis neste sentido. Destacamos PAIM, Antônio. A Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Cultura e LínguaPortuguesa, Série Biblioteca Breve, volume 123, 1ª edição, 1991 e PAIM, Antônio. História dasIdeias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: editora da UEL, 1997, bem comoCOSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção DocumentosBrasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956.

142

por novas alternativas estéticas, filosóficas e sociais (311). É sabido,

contudo, que no quadro de renovação cultural já se antevia em algumas

obras anteriores ao início da polémica. Basta recordar, a este propósito, o

famoso trecho da poesia “A Ideia”, inserida no livro Odes Modernas

(1865), onde Antero de Quental dava o tom da nova geração:

Força é pois ir buscar outro caminho!

Lançar o arco de outra nova ponte

Por onde a alma passe – e um alto monte

Aonde se abra à luz o nosso ninho (312).

Estava evidente que a busca desse “outro caminho” ia de encontro a

algumas estruturas sedimentadas (313). Para os propósitos desta pesquisa,

não é necessário desenvolver em pormenores cada detalhe da polémica à

volta das questões do Bom Senso e Bom Gosto (314). O que importa reter é

que o tom de transformação das ideias, o almejado “arco de outra nova 311 A título probatório, não deixa de ser interessante notarmos a presença configuracionalbrasileira nesta pugna. Conforme é mencionado por Carvalho Homem, José Feliciano deCastilho Barreto e Noronha, irmão de Antônio Feliciano de Castilho, publicou em 1865 umacarta dirigida ao Correio Mercantil do Rio de Janeiro na qual informa sobre o “labirinto deinconveniências religiosas, sociais, literárias e poéticas” (citado por HOMEM, AmadeuCarvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da RevistaMáthesis, nº4, 1995, p.95). Merece nota, ainda, que, à laia de menosprezo pelo seu opositor, Antero de Quental tenha dito a Castilho que “os seus poemas líricos não são metafísico, nãoprecisam de uma excessiva atenção, de esforços de pensamento para se compreenderem – e têma vantagem de não deixarem ver nem um só ideal. Nas suas obras todas há um falta tãocompleta dessas incompreensibilidades, que deve pôr muito à sua vontade os leitores que V. Ex.ª tem no Brasil”. QUENTAL, Antero de. Bom senso e bom gosto. In: FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textos e notas de Maria José Marinho. 2ªed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999, p.155. 312 QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Veja, 1994, p.64. 313 Como fica patente no poema “Carmen Legis…” também inserido nas Odes Modernas, deAntero: “Pois bem! Grandes, Altivos, Poderosos,/ E Cometas da Altura,/ E senhores da terra eSemideuses…/ vós sois o pó e o nada!/ (…) O espanto, que espalhais, não vos pertence…/ Nãoé a vossa força./ É o tremor do solo, é o presságio/ Do grande terramoto!/ (…) É a Revolução! amão que parte/ Coroas e tiaras!/ É a Luz! a Razão! é a Justiça!/ É o olho da Verdade!”. QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Veja, 1994, pp.124-126. 314 Para maior detalhe sobre as série de polêmicas que envolveram a “Questão Coimbrã”, consultar FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textos enotas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999.

143

ponte”, tem um alcance bem mais amplo que o de mera desavença de

ocasião, traduzindo uma ambiência de ebulição de ideias e de inspirações

doutrinárias de distinta índole. Afinal, como sustenta Amadeu Carvalho

Homem, “parece um erro e uma cegueira encarar a Questão Coimbrã como

um simples episódio literário” (315), posto que, como o próprio Antero de

Quental realçava, o “espírito” daqueles tempos era manifestado pelas ideias

de “Hegel, Stuart Mill, Augusto Comte, Herder, Wolff, Vico, Michelet,

Proudhon, Littré, Feuerbach, Creuzer, Strauss, Taine, Renan, Buchner e

Quinet, a filosofia alemã, a crítica francesa, o positivismo, o naturalismo, a

história, a metafísica, as imensas criações da alma moderna, espírito

mesmo da nossa civilização” (316).

Ora, se este painel se oferecia à intelectualidade para intuitos

diversos, não pode deixar de merecer particular destaque, do nosso ponto

de vista, o profundo investimento feito sobre a matéria da historicidade a

partir de apropriações cruzadas ou filtradas daquele quadro teórico. “O

tempo! O tempo!” – bem o anuncia Teófilo Braga (317), um ano antes do

início da polémica Questão Coimbrã, no poema Visão dos Tempos, editado

em 1864:

O Tempo! O Tempo! Em meio d’este oceano

Revolto, escuro, lamentoso, triste

Sem margem que se aviste,

E nos envolve insano,

315 HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa(século XIX). Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005, p.48. 316 QUENTAL, Antero de. Bom Senso e Bom Gosto, Carta ao Ex.mo Sr. António Feliciano deCastilho. In: FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textose notas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999, p.153-154. 317 Sobre o pensamento de Teófilo Braga, consultar HOMEM, Amadeu Carvalho. A IdeiaRepublicana em Portugal. O contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Livraria Minerva, 1989. Sobre o pensamento de Antero de Quental, veja-se CATROGA, Fernando. Antero de Quental. História, Socialismo, Política. Lisboa: Editorial de Notícias, 2001. Para uma análisecomparativa de Teófilo e Antero, ver HOMEM, Amadeu Carvalho. “Antero de Quental eTeófilo Braga. Um exercício comparativo”. Separata da Revista Insulana. Ponta Delgada, 1991, pp.127-144,

144

O movimento presente é a jangada

Onde a existência vai arrebatada.

[…]

Contemplando este imenso mar amargo

Onde rugem eternas tempestades

A Visão das Idades

Sobre o horizonte largo

Completa-se pela harmonia equórea

Fundo Rumor, conceito ideal – a História (318).

A nuclearidade do tempo e da história, por conseguinte, em um

contexto de transformações filosófico-sociais no qual o recurso frequente

às noções de mudança (e de processo), perturbava a fixidez das estruturas

sociais e estéticas estabelecidas. Confirmação, assim sendo, de que a

polêmica em torno da questão do Bom Senso e Bom Gosto assumiu “um

significado cumulativamente literário e político-social”, representando,

“sem sombra de dúvida, uma forte machadada no modelo romântico

verboso e repetitivo, artificial e conservador, apontando para a sua

substituição por um outro mais social e abstractivo, mais simbólico e

filosofante, com uma seiva fornecida pelo historicismo teórico do

idealismo alemão, pela historiografia romântica francesa e pelas

imprecações de autores socialistas ou socializantes contra os excessos

individualistas da revolução industrial em curso” (319).

Recordar-se-á, de igual modo, que o lugar da Questão Coimbrã

como “uma espécie de antecâmara anunciadora” de tensões e de

condicionamentos histórico-políticos e sócio-culturais, ganha a devida

amplitude assim que o sinete das transformações emanado de Coimbra

318 BRAGA, Teófilo. Visão dos Tempos. Porto: Livraria Chardron, [1864] 1894.p.9-10. 319 HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa(século XIX). Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005, p.56.

145

desembocar no Cenáculo Lisbonense (320). Isto é, que “o processo de

contestação então iniciado será incompreensível se não for articulado com

os seus desenvolvimentos posteriores e particularmente com a realização,

em 1871, das célebres Conferências do Casino” (321), momento tópico, por

excelência, desta dinâmica. Tal como está manifesto no seu Programa, de

16 de Março de 1871, o intuito era “abrir uma tribuna, onde tenham voz as

idéias e os trabalhos que caracterizam este momento do século”, e desta

forma “ligar Portugal com o movimento moderno”, pois “não pode viver e

desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do

seu tempo” (322). Assinavam esta proposta de renovação cultural e

transformação política Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto

Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano Vieira Meireles,

Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de

Arriaga, Salomão Sáragga e Teófilo Braga. Respira aqui a célebre Geração

de 70.

Ora, este mesmo ideal de modernização do país e de forte influência

das “modernas ideias” – que vimos no arco de contestação que vai da

Questão Coimbrã às Conferências do Casino Lisbonense – pode ser

também observado no Brasil. Afinal, como ensina Antônio Paim, no Brasil,

“a mocidade acadêmica e os círculos intelectuais, por todo o país, adotam o

que se poderia denominar de espírito crítico. Por muitos anos não se

estruturam correntes de pensamento algo delineadas. Suscitam-se ideias

320 “Advirta-se ainda que esta memorável querela galgou as próprias fronteiras nacionais e que, mesmo no Brasil, foi percepcionada como um diferendo de filosofias políticas. Assim, os prelosda Tipografia Perseverança, do Rio de Janeiro, editam em 1866 um opúsculo assinado por umtal de Arqui-Zero, presumível pseudónimo de Paulo José de Faria Brandão, no qual se exalta, em estilo grandiloquente, o raiar do sol democrático e a alvorada do radicalismo liberal” (cnf. HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da Revista Máthesis, nº4, 1995, p.100). 321 CATROGA, Fernando. Sociedade e Cultura Portuguesa II, Lisboa: universidade Aberta, 1996, p.155. 322 Conforme o “Programa das Conferências Democráticas”. In: REIS, Carlos. As Conferênciasdo Casino. Lisboa: Alfa, 1990, p.91.

146

que se tornavam simpáticas sempre que pareciam poder nutrir o

inconformismo. Assim, tomam conhecimento, indiferentemente, de Comte,

Littré, Taine, Renan, Darwin, Antero de Quental” (323).

No relativo ao quadro brasileiro, ninguém melhor simbolizará este

momento que Sílvio Romero, escritor no qual se identifica o espírito de

inconformismo e a consciência da chegada de um “bando de ideias novas”

ao Brasil. Isto se percebe já por ocasião de seu doutoramento. Os

acontecimentos que marcam a defesa de tese de Sílvio Romero, realizada

no Recife em 12 de Março de 1875, são exemplificativos desta “nova”

postura. Siga-se a exposição dos fatos, tal como a relata, na respectiva ata

(escrita no dia subsequente à defesa), Francisco de Paula Baptista, então

incumbido de presidir às provas (324):

“Enquanto [o arguente] expunha a sua opinião e deduzia os seus argumentos, era interrompido pelo defendente [Sílvio Romero] neste e em termos semelhantes: -Ouça-me, Sr. Doutor, não vá adiante. Quero que cada argumento seu sejaimediatamente destruído –. Multiplicando-se essas interrupções, no correr do debate, eà medida que o terreno deste ia sendo circunscrito pela argüição do argüente, foi omesmo obrigado a observar, ao doutorando, que, se continuasse daquele modo, ele Dr. Belfort, se calaria. Então o primeiro dos abaixo assinados (Paula Batista), comopresidente do ato, chamou-o à ordem, e esta foi, felizmente, restabelecida nadiscussão, durante os poucos minutos que lhes restavam para argumentar. Seguiu-se, na argüição, o Sr. Dr. Coelho Rodrigues, que começou apontando uma objeção à 2ªtese de direito constitucional, à qual procurou responder o defendente. O argüentevoltou à carga, dizendo que a sua objeção ficava intacta, e o doutorando procurouprovar-lhe o contrário. Dito isto, o Dr. Coelho Rodrigues acrescenta: - Desde que, emuma discussão qualquer, perco a esperança de convencer ou ser convencido, mudo deassunto. Passemos à tese seguinte. A respeito desta, passou-se tudo como na primeira, mutatis mutandis. Mas, antes que passe a outra, observa o argüente, como paramoderar o azedume das respostas, que obtinha: - Não tenho a presunção de vir aquiensinar-lhe alguma coisa. Se insisto nisso, é somente porque tenho necessidade deformar meu juízo. Em seguida, passou à segunda tese de direito romano, concebidanestes termos: «O jus in re compreende também a posse». E, depois de uma discussãomais moderada que as duas precedentes, pergunta aquele doutor: – qual a ação, quegarante esse direito real, no seu entender? – Isto não é argumento, responde o

323 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina:editora da UEL, 1997, p.478. 324 Compunham a banca examinadora os doutores Francisco de Paula Baptista, Vicente Pereirado Rego, João Silveira de Souza, João Pinto Júnior, Joaquim Correia de Araújo, AntônioCoelho Rodrigues e Tavares Belford. Conforme Ata de 13 de Março de 1875, escrita por PaulaBaptista, transcrita em BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.212-214.

147

doutorando – Porque? Repergunta aquele – Porque, responde este, não se podeconhecer a causa pelo efeito. – Pois admira-me, torna o primeiro, que, tendo-semostrado o senhor tão contrário ao método metafísico, na epígrafe das suas teses (aqual repetiu, traduzindo o inglês, em que estava escrita), recuse agora um argumento aposteriori. – Nisto não há metafísica, Sr. Doutor, diz o segundo, há lógica. – A lógica, replica o argüente, não exclui a metafísica. – A metafísica, treplica o doutorando, nãoexiste mais, Sr. Doutor; se não sabia, saiba. – Não sabia, retruca este. –Pois vá estudare aprender para saber que a metafísica está morta. – Foi o senhor que a matou?Pergunta-lhe então o Dr. Coelho Rodrigues. – Foi o progresso, foi a civilização, responde-lhe o bacharel Sílvio Romero, que, ato contínuo, se ergue, toma os livros, que estava sobre a mesa, e diz: - Não estou para aturar esta corja de ignorantes, quenão sabem nada. E retira-se, vociferando por esta sala afora, donde não pudemos maisouvi-lo” (325).

O virar de costas de Romero assume contornos metafóricos de duas

linhas de pensamento de costas voltadas e de um diálogo difícil. De um

lado, homens como aqueles que assinam a referida ata e que se

movimentam para levar o caso “ao conhecimento do Governo Imperial”,

bem como para que se desse parte do ocorrido ao Presidente da Província e

a um juiz de direito (326). Do outro, um conjunto de autores, como Romero,

arautos do que ele próprio chamará “um bando de ideias novas”. Com

efeito, a influência das novas ideias na cena política e cultural da época virá

a ser celebrizada por Romero em discurso pronunciado aos 18 de

Dezembro de 1906, na Academia Brasileira de Letras, por ocasião da

recepção de Euclides da Cunha.

Neste texto, Romero afirma que “o decênio que vai de 1868 a 1878

é o mais notável de quantos no século XIX constituíram a nossa labuta

espiritual. Quem não viveu nesse tempo não conhece por não ter sentido 325 BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume I. Rio deJaneiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.212-213. 326 As reprimendas sofridas por Romero não cessaram aí, tal como relata Clóvis Beviláqua:“Sílvio Romero tendo entrado em concurso para cadeira de filosofia de direito do Recife, obteveo primeiro lugar, em 1875. Mas, anulado, parece que sem justa razão, esse concurso, entrou emoutro, em 1876, no qual apenas lhe deram o segundo posto”. Diz ainda Beviláqua que “o que écerto é que o nosso vigoroso pensador não obteve a nomeação desejada, e teve de emigrar doRecife para o Sul do país”. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.215. Percebemos aqui que é nestecontexto que Sílvio se muda para o Rio de Janeiro, local onde publicou seus primeiros artigosna Revista Brasileira, mencionados no início desta pesquisa.

148

diretamente em si as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o

catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a

filosofia espiritualista, católica e eclética a mais insignificante oposição; a

autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer

classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do

aristocratismo prático dos grandes proprietários a mais indireta opugnação;

o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais

apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à sombra do manto do

príncipe ilustre que havia acabado com o caudilhismo nas províncias e na

América do Sul e preparado a engrenagem da peça política de centralização

mais coesa que já uma vez houve na história em um grande país” (327).

“De repente” – continua Sílvio – “por um movimento subterrâneo,

que vinha de longe, a instabilidade de todas as coisas se mostrou e o

sofisma do império apareceu em toda a sua nudez”. De fato, após o término

da guerra do Paraguai (1864-1870), o contexto brasileiro entra em forte

clima de transformação social, acarretando um tempo onde “tudo se põe

em discussão”: a abolição da escravatura, a influência dos militares e do

clero no Estado, a radicalização da democracia, o movimento republicano,

etc. Em suma sintetizará ele: “Um bando de ideias novas esvoaçou sobre

nós de todos os pontos do horizonte: […] positivismo, evolucionismo,

darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no

romance, folk-lore, novos processos de crítica e de história literária,

transformação da intuição do direito e da política, tudo então se agitou e o

brado de alarma partiu da escola do Recife” (328).

327 ROMERO, Sílvio. “Academia Brasileira de Letras – Discurso pronunciado aos 18 deDezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha” In: Provocações eDebates (Contribuições para o Estudo do Brasil Social). Porto: Livraria Chardron, 1910, p.359. 328 ROMERO, Sílvio. “Academia Brasileira de Letras – Discurso pronunciado aos 18 deDezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha” In: Provocações eDebates (Contribuições para o Estudo do Brasil Social). Porto: Livraria Chardron, 1910, p.359-360.

149

A Escola do Recife, inevitavelmente. De acordo com um dos seus

principais conhecedores, Clóvis Beviláqua, na Escola do Recife “lia-se

D’Orbigny, Notte, Gliddon, Pouchet, Quatrefages, Darwin, Huxley, Broca,

Topinard, Tylor, Lyell, Hovelacque, Latourneau, Darwin, Spencer, Ardigó,

Morselli, Buchner, Comte, Littré, Zaborowski, Haeckel, Teófilo Braga,

etc., e essas leituras alargavam os horizontes dos estudantes e juristas,

dando-lhes elementos para bem compreender o homem e a sociedade” (329).

Conforme se compreenderá, a estima de cada um destes autores e o grau de

conhecimento e de apreensão das suas obras não foi constante. Importa

vincar que o movimento de transformação das ideias teve uma primeira

fase, iniciada em 1862-1863, marcada pela influência da “poesia social” de

Victor Hugo (o abolicionismo de Castro Alves é o exemplo desta fase) e

pela filosofia panteísta de Quinet e prolongando-se num período “onde o

hugoismo se transforma em realismo”, marcado pelos estudos folcloristas

de Celso Magalhães (330). Entre 1868 a 1882, uma “segunda fase” é

identificada no desenvolvimento da Escola do Recife, sendo nesta altura

que se observa a inclinação de Tobias Barreto para o positivismo (331).

Trata-se de um período de “intermitências”, onde “as doutrinas positivistas

do ramo heterodoxo de Littré, seduzem os rapazes [e onde, por exemplo,]

Spencer é menos vulgarizado” embora não desconhecido, sendo Taine,

Buchner, Latourneau e Lefèvre muito citados. A partir de 1882, data do

ingresso de Tobias Barreto no quadro docente, começa uma “terceira fase”

nas ideias da Escola do Recife. Este é o momento de sua transição para o

329 BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio deJaneiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.129. 330 BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio deJaneiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.94. Registe-se que Teófilo Braga menciona em váriaspassagens, nomeadamente durante sua polêmica com Sílvio Romero, como expusemos atrás, aleitura destes trabalhos de Celso Magalhães. 331 Clóvis Beviláqua afirma, no entanto, que “pouco se deteve Tobias no positivismo”, pois “ochefe do positivismo e o seu grande discípulo Emílio Littré não fizeram tão forte impressão noespírito de Tobias quanto Cousin, Jouffroy, Vacherot, Guisot e Scherer”. Idem, ibidem, p.98.

150

monismo haeckeliano, de cuja influência no Brasil nos ocuparemos mais

adiante.

Neste momento, cabe a seguinte questão: qual o conhecimento que

a nova geração brasileira tinha dos seus análogos portugueses? Ao lermos

os intérpretes da época, vemos que o movimento de renovação das ideias

em Portugal não passou despercebido no Brasil. A tonalidade crítica das

referências ao quadro português não é homogênea, porém. Mas mesmo as

diferentes leituras da realidade portuguesa expressam a atenção com que

esta era seguida. De qualquer forma, o inevitável debate sobre a primazia

relativa de cada uma das margens do Atlântico no movimento

transformador tomava conta do assunto.

Luís Pereira Barreto, por exemplo, foi um arguto leitor das

mudanças ocorridas na antiga metrópole. Assim, em 1880, dizia ele que “o

Portugal de hoje não é o Portugal de há cinqüenta anos atrás”. Para o autor

das Soluções Positivas da Política Brasileira, “assim como herdamos todos

os vícios e preconceitos dos nossos imediatos predecessores, devemos hoje,

com calma e sangue frio, imitar o exemplo dos nossos irmãos d’além mar,

seguindo firmemente a senda que traçam”. E se era certo que “durante

muito tempo, Portugal atardou-se na trilha da evolução por não se

preocupar com o movimento filosófico do norte e centro da Europa”, no

Brasil, dizia ele, “temos cometido o mesmo erro, por não querermos ver o

movimento que nos deixa a perder de vista na marcha geral das nações.

Estamos vivendo na persuasão de que nada temos mais a aprender com

Portugal”. Daí que, para Pereira Barreto, é “nosso dever de patriotas

confessar francamente que, do outro lado do Atlântico, nessa mesma terra

que nos serviu de embriogênio berço, existe hoje uma plêiade de homens

cuja estatura não encontra entre nós paralelo. Teófilo Braga, Ramalho

Ortigão, Felipe Simões, Guerra Junqueiro, G. de Vasconcelos, Eça de

Queirós, Antero de Quental, Gomes Leal, Consiglieri Pedroso, Oliveira

151

Martins, Luciano Cordeiro, Júlio de Mattos, Adolfo Coelho, Horácio

Ferrari, Alexandre da Conceição, Teixeira Bastos, Cândido de Pinho,

Ernesto Cabrita, Augusto Rocha, Bittencourt Raposo, Amaral Cirne,

Guilherme de Azevedo e tantos outros, são todos nomes que afirmaram a

autonomia de uma nacionalidade em via de progresso” (332).

Sílvio Romero, por sua vez, discordava do lugar proeminente

concedido às ideias supostamente recolhidas a partir das transformações

simbolizadas pela Questão Coimbrã e pelas Conferências do Casino

Lisbonense. Para o autor da História da Literatura Brasileira, o papel de

destaque na revolução das ideias no Brasil devia-se à Escola do Recife. É o

que assevera ao declarar que, “em 1862, no terreno do jornalismo, antes da

Reação de Coimbra, entre nós a escola do Recife reagiu contra os nossos

pretensos chefes por meio de Tobias Barreto e seu discípulo Castro Alves”.

Para ele, terá sido este movimento “de caráter revolucionário” o

responsável pela propagação “por todo o país, acordando decidido

entusiasmo na escola de São Paulo e no Rio Grande do Sul” (333). Ou seja,

a incorporação das “novas ideias” – isto é, a recepção e incorporação das

diferentes vertentes do positivismo e do evolucionismo – teria partido do

Recife, espraiando-se, primeiramente, por São Paulo e pelo Rio Grande do

Sul, e, depois, pelo restante país.

Não obstante estas declarações de Romero, um autor como José

Veríssimo conferirá, tal como Luiz Pereira Barreto, significativa

importância às repercussões, no Brasil, das transformações ocorridas nos

acontecimentos de Coimbra e nas conferências de Lisboa. Referindo-se à

incorporação das “modernas ideias”, Veríssimo afirma que, antes da Escola

de Recife fora “nos próprios livros franceses de Littré, de Quinet, de Taine

332 BARRETO, Luiz Pereira. Obras Filosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Macielde Barros. São Paulo: Humanitas, 2003, pp.18-19. 333 ROMERO, Sílvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo”, In:Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.281.

152

ou Renan, influenciados pelo pensamento alemão e também inglês, que

começamos desde aquele momento a instruirmo-nos das novas ideias.

Influindo também em Portugal, criara ali a cultura alemã uma plêiade de

escritores pelo menos ruidosos, como Teófilo Braga, Adolfo Coelho,

Joaquim de Vasconcelos, Antero de Quental, Luciano Cordeiro,

amotinados contra a situação mental do reino. Além destes, Eça de Queiroz

e Ramalho Ortigão vulgarizavam nas Farpas, com mais petulância e

espírito que saber, as novas ideias. Todos estes, aqui muito mais lidos do

que nunca o foi Tobias Barreto, atuaram poderosamente na nossa

mentalidade. E o movimento coimbrão, como se chamou à briga literária

do «Bom senso e bom gosto», pelos anos de 65, teve certamente muito

maior repercussão na mentalidade literária brasileira do tempo, do que a

pseudo-escola do Recife” (334).

Não vale a pena entrarmos na discussão sobre qual foi o movimento

que teve a primazia na transformação das ideias no final do século XIX, se

a “brasileira” Escola do Recife ou as “portuguesas” Questão Coimbrã e

Conferências do Casino Lisbonense. Uma abordagem genealógica da

cultura em nada se aproxima de nosso viés analítico. Para já, interessa-nos

sublinhar o fato indesmentível de uma clara concomitância na conjuntura

da “lusa” e da “brasileira” geração de 1870, em que a atmosfera de

contestação e a estética de transformação cultural manifestam não

desprezíveis pontos de similitude. As motivações que concorriam para esta

ambiência eram várias. É fato, porém, que para além das diferenças

explícitas, a situação de ambos os países é, mutatis mutandis, parelha.

Esta atmosfera configuracional pode ser bem apreciada pelo retrato

que José Maria Belo fez da época: “As críticas dos monarquistas e dos

republicanos portugueses aos erros e vícios do regime não diferiam muito

334 VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machadode Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912] 1998, p.236.

153

das que faziam os monarquistas e republicanos brasileiros. Na mesma

língua, com mais açúcar na prosódia brasileira, se discute, se declama, se

faz retórica, se faz poesia em S. Bento, em Lisboa, e na Cadeia Velha, no

Rio de Janeiro. Tendência semelhante ao sentimentalismo, gosto idêntico

da frase e das velhas fórmulas jurídicas, facilidade análoga em fugir do real

e do positivo, equilibrada, no entanto, pelas reações freqüentes do senso

prático, a mesma insinceridade nos compromissos e o mesmo afeto às

posições políticas, que permitem o emprego público e falam à vaidade. Se

as condições diversas da vida do campo imenso, semi-deserto e adstrito ao

escravo no Brasil, pequeno e subdividido em Portugal, separa as sociedades

rurais brasileira e portuguesa, é idêntico nos dois países o tipo de

civilização urbana. As grandes cidades do Brasil imperial, como Rio,

Bahia, Recife e Belém, reproduzem os hábitos e costumes, em suma, o

estilo de vida de Lisboa e do Porto. A rua do Ouvidor, por exemplo,

estreita, inestética e mal cuidada, espécie de galeria de exibições diárias,

feira das vaidades cariocas, perdurando, aliás, pela época republicana, é

como o prolongamento do Chiado de Lisboa” (335).

Afirma Fernando Catroga que as ciências, “com o seu carisma de

objectividade e de racionalidade, apareciam, de facto, aos olhos da «nova

geração», como a prova irrefutável da verdade das propostas filosóficas e

sociais que, em seu nome, eram apresentadas como a solução definitiva

para a crise moral e social decorrente das contradições capitalistas [e que],

em Portugal, isso significava a contestação do status quo nascido com a

Regeneração e implicava a anatematização das instituições (propriedade,

Igreja, Monarquia) e dos valores éticos (utilitarismo) e estéticos (ultra-

335 BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.29-30.

154

romantismo) que o legitimavam” (336). Ora, uma semelhante conjuntura foi

também observada no Brasil.

Uma linguagem contestatória aproximava as duas margens do

Atlântico: modernização, laicização, republicanismo, eram propostas

discutidas com recorrência; ciência e teologia, positividade e metafísica,

revolução e reforma, eram dualidades de pronto recurso argumentativo; a

história e o seu lugar, as opções entre o peso relativo a conferir ao presente

e ao futuro e, por inerência, ao passado, eram patamares de alinhamento ou

de oposição, realinhando as teses em presença. A partir destes parâmetros

mais ou menos comuns, bifurcar-se-iam os caminhos. A partir deles, por

sua vez, outras novas demarcações seriam feitas. Nem poderia ser de outra

forma: uma das características dos intelectuais que encontramos na

configuração luso-brasileira é, na verdade, a trajetória cambiante e

heterodoxa de seu pensamento. A quase totalidade deles apresenta

significativos influxos teóricos, alterações doutrinárias e aprofundamentos

críticos, impondo, um permanente questionamento das convicções, dos

projectos e dos rumos a tomar.

Pense-se, em concreto, no exemplo fornecido, a este título, pela

própria trajetória intelectual de dois dos líderes da geração de 1870: Antero

de Quental e Tobias Barreto. Sobre Antero, limitemo-nos a recordar, de

acordo com o que se encontra explicado, que “basta aprofundar a análise da

[sua] obra (sobretudo os seus ensaios e a sua correspondência) para se

concluir que a sua filosofia, desde os anos de Coimbra, evoluiu num

diálogo permanente com o impacte das ciências e da ideologia a que deu

origem: o positivismo e o cientismo"(337). Entretanto, recordar-se-á, no

336 CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer. Sociedade e Cultura Portuguesa II. Lisboa: Universidade Aberta, 1996, p.167. 337 A trajetória de Antero de Quental pode ser assim resumida: “o cientismo em geral, e a suatradução positivista e naturalista, em particular, constituíram o ponto de referência polémico emfunção do qual Antero tentou elaborar a sua própria filosofia. Portanto, não se pode estudar aevolução do seu pensamento sem se relevar a sua atitude no que concerne à problematização

155

tocante a Tobias Barreto(338), a já aqui citada transição entre as várias fases

por que passa a Escola do Recife. Mais especificamente, tenha-se em conta,

na linha de Beviláqua, que foi “sob a influência de Tobias e Sílvio Romero

e, depois, sob outros influxos, [que] os moços estudiosos adoptaram o

positivismo do Curso, com Littré e a Révue de philosophie positive. Dele

passaram ao monismo haeckeliano. Alguns inclinaram-se para Spencer,

Mill, Ardigó, outros abraçaram o materialismo. Mais tarde, por irradiação

da igreja positivista do Rio de Janeiro, apareceram ortodoxos, como Aníbal

Falcão” (339).

O panorama é esclarecedor. É como se, vencida a batalha contra o

espiritualismo e a teologia, uma divisão de águas se tornasse inevitável. Se

todos concordavam com o espírito do “bando de ideias novas” (de que fala

Sílvio Romero), no que dizia respeito à construção das “novas pontes” (de

que falava Antero), muitas alternativas estavam em aberto. Assim, se aceita

a leitura de Antônio Paim sobre o movimento de contestação das ideias no

Brasil quando ele diz que este movimento “corresponde a uma espécie de

frente cientificista, em que todos comungam dos mesmos propósitos

naturalistas, até que os positivistas se destacam do todo para constituir

organização autônoma” (340). Com efeito, a ideia de que a aglomeração de

inspirações doutrinárias de diversa proveniência vai a par com o potencial

de dispersão e de posterior absorção de credos mais abrangentes, adequa-se

bem ao que sabemos do caso brasileiro. Salvaguardadas as devidas

filosófica das ciências e das ilações mundividenciais das filosofias que as invocavam. E comosabemos pela sua crítica de 1866, desde cedo procurou encontrar a raiz metafísica doconhecimento científico, condição que considerava essencial para o colocar ao serviço daverdadeira libertação humana”. CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer de. Sociedade e Cultura Portuguesa II. Lisboa: universidade Aberta, 1996, p.167. 338 No mesmo sentido, Clóvis Beviláqua explica que “pouco se deteve Tobias no positivismo”. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de Janeiro:Livraria Francisco Alves, 1927, p.105. 339 BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio deJaneiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.105. 340 PAIM, Antônio. A Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Série Biblioteca Breve, volume 123, 1ª edição, 1991, p.97.

156

nuances, o cenário português parece ser, quanto a este aspecto,

compaginável. Não porque a situação se apresente, num e noutro lado,

simetricamente delineada. Pelo contrário: para além da equiparação de

pontos de contestação e de renovação das ideias, será a diferente conjuntura

de recepção das correntes positivistas o que ditará mudanças de percurso

assinaláveis entre os movimentos português e brasileiro. Assim sendo, é

precisamente essa distinta apropriação e esses distintos trajetos do

positivismo em ambos os países, apesar de um quadro de debate teórico

razoavelmente comum, aquilo que importa perceber e confrontar. O nosso

intuito será, pois, identificar os contornos e as distinções internas destes

processos. Numa palavra, o seu carácter demarcatório.

2. A “frente cientificista” e seus níveis de relacionamento.

Em 1881, podia ler-se, na Revue philosophique, o seguinte: “Qu’on

en soit le partisan ou l’adversaire, il est, à chaque époque, des doctrines

dont la connaissance s’impose à tous les esprits cultivés. Tel fut au XVIIº

siècle le cartésianisme ; tel est au XIXº siècle le positivisme. A son égard la

lutte se comprende, les dissidences s’expliquent ; l’ignorance ne se conçoit

plus” (341). Pode entender-se o raciocínio subjacente: inegavelmente, a

segunda metade do século XIX é marcada por uma impressionante

polifonia de correntes filosóficas; dito isto, é igualmente verdade que a

difusão do positivismo, em seus diferentes quadrantes e versões, virá a

configurar um elemento preponderante desta ambiência cultural; tal como é

igualmente certo que, para lá do seu cunho agregador, este movimento é

obrigado a assistir à luta pela clarificação das alternativas, no âmbito da

qual diversas posições filosóficas, políticas, estéticas e sociais tomarão 341 Revue philosophique (1881), citado por GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’ànos jours. Paris: Lethielleux, 1893, p.1.

157

corpo. “Les dissidences s’expliquent”. Por certo que sim. No horizonte

luso-brasileiro que nos ocupa, importará assim acompanhar as linhas de

difusão do positivismo, por forma a explicar as dissidências por ele

introduzidas na larga “frente cientificista”.

2.1. Difusão do positivismo: perspectiva comparada

As primeiras manifestações de divulgação da doutrina positivista no

Brasil podem ser divididas em duas fases: uma, direta, feita pelos

brasileiros que estudaram com Augusto Comte na Escola Técnica de Paris

(342); outra, indireta, marcada pelos trabalhos realizados no país, que

começam a ser produzidos a partir de 1850 (343). O positivismo é

introduzido no Brasil vinculado às ciências físicas e matemáticas,

designadamente na Escola Central e na Escola Militar do Rio de Janeiro. O

peso significativo que estes temas assumem no corpo geral da doutrina

342 Conforme Ivan Linz, “durante o período em que Augusto Comte lecionou na EscolaPolitécnica de Pais vários estudantes brasileiros figuraram, a partir de 1832 entre os auditoreslivres dos seus cursos. São os seguintes, em ordem cronológica: em 1832, Henri Rose Guillon;de 1836 a 1837, José P. d’Almeida; de 1837 a 1839, Patrício d’Almeida e Silva, Agostinho RoizCunha, Antônio de Campos Belos e Antônio Machado Dias; (de 1838 a 1839 ainda foi aluno deComte Agostinho Roiz da Cunha), e de 1839 a 1840, outro brasileiro – Pinho de Araújo”. LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educaçãoe Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, p.3. 343 João Cruz Costa menciona uma tese de doutoramento cujo tema concernia aos princípios deEstática, defendida, em Fevereiro de 1850, pelo maranhense Manuel Joaquim Pereira de Sá, apresentada na Escola Militar do Rio de Janeiro. Em abril de 1851, foi defendida outra tese emfísica, relativa aos princípios de Hidrostática, por Joaquim Alexandre Manso Sayão. Em 1853, Manuel Pinto Peixoto, inspirado na Geometria Analítica de Comte, apresenta um estudo sobreos princípios do cálculo diferencial. Em outubro de 1854, Augusto Dias Carneiro, tambémbaseado em Comte, apresenta uma tese doutoral em Termologia. Em 1858, Antônio FerrãoMuniz de Aragão publicava, na Bahia, os Elementos de Matemática. “Em 1865, FranciscoBrandão Júnior publicava, em Bruxelas, um opúsculo, A Escravatura no Brasil, com um apensorelativo à agricultura e colonização no Maranhão, terra do autor”. Conforme COSTA, JoãoCruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigidapor Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, pp.145-148 eLINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério daEducação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, pp.3-8.

158

positivista e a sua articulação com a orientação cientificista justificam o

investimento nesse aspecto.

De acordo com Antônio Paim, no Brasil o cientificismo “adquire

forma acabada em mãos de Benjamim Constant (1836-1891), que se torna

professor da Escola [Central, depois Politécnica] em 1873” (344). No ano

seguinte, 1874, veio à estampa o primeiro volume das Três Filosofias, de

Luiz Pereira Barreto (1840-1923). Estas duas lideranças positivistas serão,

juntamente com Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, as principais

balizas da assimilação doutrinária do positivismo brasileiro.

Importa considerar que todos estes nomes assinaram o ato de

criação da primeira associação positivista no Brasil, em 1º de Abril de

1876. Merece destaque o fato de que esta instituição não possuía carácter

militante; propunha-se, tão-só, organizar uma biblioteca composta pelas

obras de Augusto Comte, além de abrir alguns cursos científicos no país.

Faziam parte desta associação, “Oliveira Guimarães, professor de

matemática no Colégio Pedro II; Benjamim Constant, (1836-1891),

professor da Academia Militar e que se tornaria um dos chefes do

movimento militar que derrubou a monarquia e proclamou a República;

Álvaro de Oliveira, genro de Benjamin Constant, professor catedrático da

Escola Politécnica; Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira

Mendes (1855-1927), que se tornariam os líderes do Apostolado, além de

outros. A entidade receberia o apoio de positivistas que viriam a adquirir

344 Importa destacar que, para Antônio Paim, “a difusão do cientificismo no Brasil seria obra doSeminário de Olinda, organizado em 1800 por Azeredo Coutinho, e da Real Academia Militar”, instituição que “logrou manter o espírito da Reforma [pombalina] de 1772, elaborada sob aégide de suposição de que o núcleo do saber encontra-se nas ciências experimentais”. Destacaele ainda que já na década de 1850, a Real Academia, “formava não apenas militares masigualmente engenheiros e outros quadros técnicos”, sendo posteriormente desmembrada em doisestabelecimentos, sendo “o ensino militar, transferido para a Praia Vermelha e o ensino dematemática, ciências físicas e naturais, e engenharia, aberto tanto a militares como a civis, queficava o Largo de São Francisco, com a denominação de Escola Central. Essa última passaria achamar-se Escola Politécnica, em 1874”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas noBrasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL,1997, p.542-545.

159

grande nomeada, como é o caso do citado Luiz Pereira Barreto” (345). Ou

seja, ainda nesta altura, tanto ortodoxos comteanos quanto littréistas

estavam unidos à volta do mesmo intuito: propagar os conhecimentos

científicos e divulgar os ensinamentos do positivismo.

Mudemos de margem atlântica e focalizemos a situação portuguesa

nesse mesmo momento. Como se deram as iniciais manifestações do

positivismo em Portugal?

Tal como se passou no Brasil, também em Portugal o positivismo

teve suas primeiras manifestações vinculado à difusão das ciências naturais

e da matemática (346), sendo a partir da década de 1870 que a doutrina

positivista ganha maior relevo (347).Teófilo Braga foi seu maior divulgador.

De maneira geral, o positivismo consolida-se, em Portugal, imbricado no

âmbito do republicanismo, surgindo na esteira da transformação social

iniciada pelos dois movimentos de contestação das ideias já mencionados

(a Questão Coimbrã e as Conferências do Casino) e impondo-se como o

credo mais apropriado à dinâmica política e doutrinária em causa. Assim,

“de todas as correntes filosóficas presentes no horizonte intelectual

português da época (neo-escolástica, kantismo, espiritualismo,

345 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina:UEL,1997, p.550. 346 De acordo com Fran Paxeco, “foi sob o aspecto matemático, na Politécnica do Porto, com aMecânica Racional de Freynet, discípulo de Comte, e na Politécnica de Lisboa, com aGeometria Descritiva, adoptada por Mariano de Carvalho”. PAXECO, Fran, Cartas de Teófilo. Lisboa, Tipografia da Imprensa do Diário de Notícias, 1924, pp.26-27. 347 Dois intelectuais se destacam no início da difusão do positivismo em Portugal: ManuelEmídio Garcia e Teófilo Braga. Do primeiro, lembramos, com Fernando Catroga, que “já em1865-1866, Manuel Emídio Garcia, professor de Coimbra, comentava e aplicava o pensamentode Comte nas suas aulas de Direito Administrativo”. Conforme CATROGA, Fernando. “Osinícios do positivismo em Portugal: seu significado político-social”. Separata da Revista deHistória das Ideias, vol.1, 1977, pp.315-316. Do segundo, mencionamos, em acordo comAmadeu Carvalho Homem, que “após ter triunfado sobre Manuel Pinheiro Chagas e LucianoCordeiro no concurso que lhe deu acesso à docência no Curso Superior de Letras, realizado em1872, Teófilo Braga veio a reger interinamente a cadeira de Filosofia Transcendental. Corria oano de 1872-73. Fiel è orientação teórica que passara a perfilhar, Teófilo reformulou o programadessa disciplina, imprimindo-lhe um cunho inequivocamente positivista”. HOMEM, AmadeuCarvalho. Do Romantismo ao Realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto:Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.95.

160

proudhonismo), nenhuma poderia responder a essa necessidade de auto-

reconhecimento doutrinal como o positivismo” (348). Contudo, há que

ressaltar a peculiaridade do processo de difusão do positivismo em

Portugal, posto que se trata de um fenômeno onde se combinará uma

filosofia claramente antidemocrática e antiliberal – como era a proposta de

Augusto Comte – com um movimento social onde o republicanismo

expressava um cariz democrático e liberal, retomando para si a tradição do

liberalismo vintista (349).

Nestas circunstâncias, a alternativa tomada é clara: alicerçados pelo

“espírito de positividade” da época, propagado pelos ensinamentos do

Cours de Philosophie Positive, os positivistas portugueses não

acompanharão a deriva religiosa do positivismo, manifesta no Systhème de

Politique Positive. Daí que, em Portugal, não será levado adiante, como, ao

invés, sucederá no Brasil, o incremento de uma facção ortodoxa dos

ensinamentos de Comte que haviam sido cultuados por Pierre Laffitte, em

França, e por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, no Brasil. As divisões e

subdivisões dar-se-ão, esmagadoramente, em Portugal, no âmbito de um

littreísmo comum, na medida de uma maior ou menor incorporação dos

conhecimentos propagados pela ciência da época e na medida da maior ou

menor convergência em torno das estratégias a tomar para alcançar os

objectivos pretendidos no seio do republicanismo.

Uma prova disto pode ser encontrada na revista O Positivismo,

dirigida por Teófilo Braga e Júlio de Mattos. Em 1879, no fascículo de

Junho-Julho, Júlio de Mattos saudava a publicação da segunda edição do

348 CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologiarepublicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, pp.289. 349 Conforme assinalam CATROGA, Fernando, “A importância do positivismo na consolidaçãoda ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, pp.290-291, eHOMEM, Amadeu Carvalho. O positivismo em Portugal : o contributo de Teófilo Braga. Coimbra : Minerva, 1989, p.236.

161

livro Consérvation, Révolution et Positivisme, de Émile Littré (350). Nessa

ocasião, salienta o fato de que esta segunda edição da obra em muito se

diferenciava da primeira edição, feita em 1852, quando ainda Littré aderia

sem reservas aos preceitos da obra de Augusto Comte (351). Ao longo desta

recepção crítica, Júlio de Mattos cita, em diversos momentos, o prefácio

desta nova edição, onde Littré expõe suas divergências e “actualiza” a obra

comteana. Afinal, diz Littré – e Mattos faz questão de registrar – que “o

tempo, quando se prolonga, é um juiz das teorias” (352). Bem se vê, que a

adesão ao positivismo de Augusto Comte não veio desprovida de certo

distanciamento crítico que buscava sua actualização consoante os

conhecimentos científicos mais recentes. Estribado numa apurada

compreensão das demarcações sofridas pelo positivismo, Júlio de Mattos

afirma que “Augusto Comte, o poderoso criador da sociologia abstracta,

sistematizando a Filosofia Positiva deu origem, como Hegel, no seio da

própria escola a uma divisão dos seus discípulos. Pretendem uns a cuja

frente se colocou Laffitte, que entre todas as obras de Comte existe a mais

perfeita e completa harmonia, que desde as primeiras páginas do Curso até

as últimas da Política Positiva tudo é conexo, tudo se liga pelos laços da

mais estreita unidade” (353). Contudo, continua o heterodoxo positivista

350 LITTRÉ, Émille, Conservation, Révolution et Positivisme. Paris : Librarie Philosophique deLadrange, 1852. 351 Lembre-se que, ainda em 1851, era o tom empírico a marca do pensamento de Comte, representado pelo Cours, recentemente publicado. Émile Littré não acompanhará Comte naviragem do Système e do Apostolado, postura acompanhada pelos positivistas portugueses. Aposição de Littré diante da obra comtiana está bem expressa em seu texto “Estudo sobre osProgresso do Positivismo”, escrito em 1876, sob a forma de novo prefácio à quarta edição doCurso de Filosofia Positiva. Neste texto, escreve ele que “a obra de Comte é um ponto departida”, deixando clara sua abertura aos “progressos da ciência natural”. LITTRÉ, Émile. “Estudo sobre os Progresso do Positivismo”, posfácio à COMTE, Augusto. Princípios deFilosofia Positiva. São Paulo : Editorial Paulista, [s.d], p.178. A edição paulista consultadacontém os dois textos de Littré. 352 LITTRÉ, Émile. Conservation, Révolution, Positivisme. Deuxième édition, augmenté deremarques courantes, chez Germer Ballière, 1879, apud Júlio de Mattos, “Bibliografia”. In: OPositivismo, n.º5, junho-julho, 1979, p.393-401. 353 É assinalável que Mattos cite o ortodoxo Jorge Lagarrigue, companheiro de Miguel Lemosem Paris, a partir de um artigo publicado por aquele intelectual chileno na laffitista Révue

162

português, “pretendem outros, à frente dos quais se acha Littré, que há nas

obras de Comte uma construção genial, e uma parte fantasista, efémera, o

produto bastardo de uma inteligência transviada, decadente”. E, se às

subdivisões internas ao positivismo não eram alheios os seus difusores

portugueses, também o não eram em relação aos veículos e às revistas de

divulgação de suas ideias, cuja conotação demonstravam sobejamente

conhecer: afinal, como remata Mattos, “destes dois ramos, o primeiro

constitui a escola chamada ortodoxa que admite e defende todas as

afirmações do mestre; o segundo é a escola dissidente que, aceitando as

ideias fundamentais contidas no Curso de Filosofia Positiva, recusa todas

as outras. Cada um destes grupos tem actualmente os seus órgãos; o grupo

de Laffitte tem a Revista Occidental, o grupo de Littré a Revista de

Filosofia Positiva” (354).

Se no Brasil se observou uma análoga (foi-o até determinado

momento) divisão entre ortodoxos e heterodoxos, em Portugal não restam

dúvidas da opção littreísta. Isto parece ficar claro quando vemos, por

exemplo, a publicação, naquela mesma revista O Positivismo, em 1879, de

um artigo de Teófilo Braga, intitulado “Constituição da Estética Positiva”,

que havia já sido publicado na Revista de Filosofia Positiva, dirigida por

Émile Littré e Wyrouboff, em 1875 (355), no qual Teófilo afirma

categoricamente que “o positivismo não é uma escola individual, mas uma

sistematização do estado dos espíritos, que se vai fazendo à medida que as

Occidentale (LAGARRIGUE, Jorge. Révue Occidentale, 2º ano, n.º3, p.373), onde afirmavaque “não há senão um só Positivismo, o que A. Comte construiu e desenvolveu com umaadmirável continuidade nas suas diversas obras, Sistema de Filosofia Positiva, Sistema dePolítica Positiva, Catecismo positivista e Síntese Subjetiva”. Conforme MATTOS, Júlio de. “Bibliografia”. In: O Positivismo,n.5, junho-julho, 1879, p.395. 354 MATTOS, Júlio de. “Bibliografia”. In: O Positivismo,n.5, junho-julho, 1879, p.395. 355 No entanto, os positivistas portugueses não hesitavam em revelar a divulgação da revista OPositivismo tanto nas páginas da Philosophie Positive (no tomo XXII, p.154), do grupolittreísta, como na Révue Occidentale, (em março de 1879), através das palavras do laffitistaJorge Lagarrigue. Conforme Júlio de Mattos, Secção “Variedades”, O Positivismo, PrimeiroAnno, 1879, N.º6, 1879, pp.473480.

163

ciências vão dando mais largas provas às nossas convicções” (356). Posição

sugestiva não só da opção littreísta, mas da abertura para demais interfaces

com os conhecimentos das demais esferas científicas. Outra prova de que o

positivismo, em Portugal, trilhou os caminhos de uma versão heterodoxa,

de inspiração littreísta, onde foram incorporadas variadas influências

filosóficas (357), pode ser coletada no depoimento de Teixeira Bastos, para

quem Teófilo Braga “faz sentir a necessidade de uma comprovação geral

da doutrina positiva em face das mais recentes descobertas científicas,

provando que não pode ficar inalterável, como querem os Laffittistas, nem

deve ser combatida pela dialéctica, como o faz Huxley” (358).

No contexto brasileiro, porém, a subdivisão do grupo positivista

parisiense, descrita acima por Júlio de Mattos, terá repercussões de monta

no processo de difusão das ideias positivistas. Como se verá a seguir, isto

ocasionará um reposicionamento de alguns importantes divulgadores da

doutrina no Brasil, bem como forçará a ruptura de outros com o

movimento, demarcando diferentes grupos de recepção ao positivismo.

2.2. Ortodoxias e Heterodoxias: primeiras demarcações

Se até 1876 a difusão do positivismo no Brasil não apresenta

maiores rupturas em seu processo, este quadro irá se alterar logo no ano

356 BRAGA, Teófilo. “Constituição da Estética Positiva”, In: O Positivismo, primeiro anno, n.6, agosto-setembro, 1979, p.411. 357 Mencione-se, a este respeito, que, por exemplo, no texto anteriormente mencionado deTeófilo Braga, “Constituição da Estética Positiva”, o autor faz referências a Comte e Cournot, além de citações de Émile Littré, J.G. Herder, Max Müller e Stuart Mill, combinando, destemodo, o positivismo (Comte) em sua vertente heterodoxa francesa (Littré) e inglesa (StuartMill), agregando-lhes as interpretações germâncias anti-universalistas (Herder) que se voltampara as análises das genealogias linguísticas e raciológicas (Max Müller). A seguir, nestetrabalho, dedicaremos mais atenção a esta mistura de referências teóricas. 358 Teixeira Bastos refere especificamente a obra Traços Gerais de Filosofia Positiva, publicadapor Teófilo Braga em 1877. BASTOS, Teixeira. Teófilo Braga e sua obra: estudocomplementar das “Modernas ideias na Literatura Portuguesa”. Porto: Livraria Internacionalde Ernesto Chardron, 1892, p.268-269.

164

seguinte, em 1877. A transferência de Miguel Lemos e Teixeira Mendes

para Paris, para completar seu curso politécnico, implicará uma divisão de

águas no cientificismo brasileiro. Chegado à capital francesa, Miguel

Lemos entra em contato com o grupo littreísta e logo se desilude. Na

Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivista do Brasil, de 1881, a

descrição desse encontro, feita pelo próprio Miguel Lemos, não deixa

qualquer dúvida: “verifiquei por mim mesmo que aquele que nós

julgávamos um chefe de escola, ardente, incansável em promover a

regeneração universal ensinada pelo Mestre, não passava de um erudito

seco, sem nenhuma ação social, insulado no seu gabinete, ocupando os

ócios da velhice adiantada em renegar tudo quanto aprendera na

convivência do grande Construtor. O famigerado pretenso chefe da escola

positivista era apenas um paciente investigador de vocábulos, sem

entusiasmo, sem fé, absorvido pelas minúcias de uma erudição estéril”

(359). Esta decepção com a pretendida esterilidade e secura do saber

cientificista de Littré fez com que o futuro líder do Apostolado positivista

brasileiro entrasse em contacto com o grupo de positivistas ortodoxos

liderado por Pierre Laffitte, que se reunia aos domingos para ministrar

cursos de “filosofia primeira” no apartamento que fora habitado por

Augusto Comte, situado à rua Monsieur-le-Prince, na capital francesa.

Ainda na Primeira Circular, Lemos acrescenta, em linguagem

inspirada por fervor de positivista religioso: “suspeitei logo que o novo

redentor podia ter tido também o seu Judas e a sua Cruz, e dei começo ao

julgamento de E. Littré perante mim mesmo. Esta resolução foi tanto mais

difícil para as minhas condições pessoais, quanto eu recebera de Émile

Littré repetidas provas de benevolência literária. Não se tratava, porém, de

359 LEMOS, Miguel. Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivista do Brasil (1881). Citado por COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. ColeçãoDocumentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria JoséOlympio, 1956, p.171.

165

poupar minha vaidade, mas de reparar os meus erros e as minhas

injustiças” (360). Será neste contexto que Miguel Lemos empreenderá a

leitura do Systhème de Politique Positive de Augusto Comte, obra que

marca a inflexão do chefe do positivismo para a vertente mais ortodoxa do

apostolado (361).

Ora, para compreendermos a conversão de Miguel Lemos, por

ocasião de sua estada em Paris, é fundamental termos presente que as duas

principais correntes do pensamento positivista francês – a ortodoxa,

liderada por Pierre Laffitte, e a dissidente, liderada por Émile Littré –, são

oriundas de compreensões distintas da própria evolução do pensamento de

Augusto Comte, representadas geralmente por duas de suas obras: o Cours

de Philosophie Positive (1830-1842) e o Système de Politique Positive

(1851-1854). Tal como explica Amadeu Carvalho Homem, o pensamento

de Augusto Comte no seu Curso de Filosofia Positiva “situa-se no

prolongamento do kantismo, pelo menos quanto à distinção entre

fenómenos e númenos. Comte aceita, na esteira de Kant, que só possa ser

objecto do conhecimento científico tudo o que for explicável, de forma

directa e inequívoca, no plano da cognição, através da mediação dos órgãos

dos sentidos” (362). Trata-se de uma perspectiva assaz empirista do ponto de

vista da construção do conhecimento, bem como de um viés agnóstico no

plano axiológico. Nem Deus, nem a Criação, nem nada que remeta à

transcendência diz respeito ao conhecimento científico. Este, apenas pelo

360 Idem, ibidem, p.171-172. 361 Foi também neste momento que Miguel Lemos conheceu o chileno Jorge Lagarrigue que, talcomo o brasileiro, também veio da América do Sul com ares littréistas e se convertera ortodoxoe seguidor de Pierre Laffitte e da Religião da Humanidade em sua estada em Paris. Desenha-seaqui um eixo analítico estruturado sobre as conexões entre os positivistas chilenos e brasileiros. Não é causal que R.P. Gruber, em sua obra sobre a difusão do positivismo depois de Comte, serefira ao “groupe brésilien-chilien”. GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nosjours. Paris : Lethielleux, 1893, pp.193-218.362 HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo: temas de cultura portuguesa(século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.81.

166

método tradicional de observação e análise de dados, pode ser

fundamentado.

No entanto, a partir de 1851, ano em que publica os primeiros

volumes do Sistema de Política Positiva, Augusto Comte empreende uma

importante inflexão no seu pensamento (363). A partir de então, seu sistema

de pensamento não mais dará exclusividade à razão na construção do

conhecimento e na fundamentação da moral. A emoção, o amor e o

sentimento terão maior ou igual papel na organização de suas ideias. É

relevante ter presente que esta inflexão não significou um retorno ao padrão

metafísico teológico, tão atacado pelo positivismo em seu início.

Representou um peculiar processo de laicização da metafísica, onde se

percebe uma deificação da figura da Humanidade e a assunção da proposta

moral do altruísmo como ação social positivista (que se contraporia ao

egoísmo estéril do liberalismo). Este é o ponto onde surge a ideia de

construir a Religião da Humanidade, alvitre que Miguel Lemos tomará

como sua missão em seu regresso ao Brasil, após receber, das mãos do

chefe do Apostolado Positivista de Paris, o grau de aspirante ao sacerdócio

da humanidade, em 25 de Novembro de 1880 (364).

Antes desse seu regresso, porém, em 5 de Setembro de 1879, a

Sociedade Positivista do Rio de Janeiro declara filiação à direção de Pierre

Laffitte. Tratava-se do 21º aniversário da morte de Comte (365). A

363 Resumidamente, dizemos com Carvalho Homem que, “profundamente marcado por umserôdio amor platónico desencadeado por uma mulher mais jovem, Clotilde de Vaux, que lhemorrerá nos braços com as hemoptises da tísica, o filósofo irá reavaliar todo o sistema. Estareavaliação será de molde a considerar muito redutor o exclusivismo da racionalidade naestruturação geral da sua proposta”. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo aoRealismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António deAlmeida, 2005, p.81. Para mais informações sobre a biografia de Comte, indicamos GRUBER, R. P. Auguste Comte: fondateur du positivisme: sa vie – sa doctrine. Paris: Lethilleux, 1892. 364 Percebemos, com isto, que foi neste contexto que Miguel Lemos escreveu sua obra sobreLuiz de Camões, dedicada à Laffitte, no âmbito das comemorações camonianas, que jámencionámos, e que teve repercussão tanto no Brasil como em Portugal. 365 A este respeito, justifica-se citar um trecho significativo do discurso feito por Miguel Lemos, em Paris, diante do túmulo de Augusto Comte. Tendo Jorge Lagarrigue ao lado, em dezembrode 1879, Lemos declarava que “como filhos das duas nações que se acham reunidas, em tua

167

Sociedade era presidida por “Joaquim Ribeiro de Mendonça. Afastavam-se

os dissidentes, como Pereira Barreto, mas permaneciam algumas

personalidades que, ainda que sem aceitar as doutrinas de Littré, iriam

porém recusar a transformação do positivismo numa seita religiosa da mais

rígida ortodoxia, a exemplo de Benjamin Constant” (366). É tendo por fundo

este cenário que, logo que retorna ao Rio de Janeiro, em início de 1881,

Miguel Lemos assumirá a direção da Sociedade Positivista do Rio de

Janeiro. Nesse momento, cria a instituição que representará a baliza mais

ortodoxa do positivismo no Brasil, o Centro Positivista Brasileiro ou Igreja

Positivista Brasileira, que possui como propósitos fundamentais o

desenvolvimento do culto positivista, a organização do ensino doutrinário e

eventuais intervenções nos negócios públicos.

Detenhamo-nos agora nas duas primeiras figuras positivistas de

topo que, após a inflexão ortodoxa de Miguel Lemos e Teixeira Mendes,

não aderiram às propostas do Apostolado positivista: Luiz Pereira Barreto e

Benjamim Constant.

teoria histórica, sob a denominação geral de Espanha, ainda te devemos gratidão especial. Quando todos, arrastados por falazes preconceitos científicos de nossa época, falavam comdesprezo dessas duas nacionalidades, das quais uma se resume no engenho incomparável deCervantes, e a outras nos feitos de seus ousados navegantes, cantados pelo imortal Camões, tusomente lhes assinalavas com justiça o papel coletivo que lhes coube na evolução do Ocidente, atribuindo-lhes sobretudo a cultura do sentimento da fraternidade e da dignidade humana. Étambém como americanos, e pelo mesmo motivo, que nós te devemos o ter podido reconstituiros sentimentos de continuidade histórica com as nossas mães pátrias, apesar dos ódios geradospelas lutas da independência nacional. Mas não bastam agradecimentos: é preciso continuar apropagar a tua obras. (…) A todos nós, grandes e pequenos, que nestes tempos de ceticismotivemos a insigne ventura de conhecer e de aceitar a religião universal, impõe-se o dever deespalhar a boa nova e de repetir, como S. Paulo aos corações dilacerados pelos conflitossuscitados entre um dogma que acaba e outro que começa: Nosso Deus desconhecido, ei-lo, nósvo-lo trazemos. Por isso, tomamos hoje à beira de teu túmulo, o compromisso solene deconsagrar todo o nosso devotamento, toda a energia do nosso ser, à propagação de tua doutrinaregeneradora”. LEMOS, Miguel Lemos. Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivistado Brasil, p.29, citado por COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio, 1956, p.180. 366 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina:UEL,1997, p.552.

168

Luiz Pereira Barreto entrou em contato com o positivismo enquanto

cursava medicina na Universidade de Bruxelas (367). De volta ao país,

publica As três filosofias, em 1874, e estabelece-se em São Paulo, onde terá

um afamado consultório médico, bem como lecionará na Escola de Direito

de São Paulo, de 1875 a 1890, tomando a seu cargo a divulgação do

positivismo (368). De acordo com Ivan Linz, Luiz Pereira Barreto “estava

em dia com o movimento intelectual do seu tempo, dilatando os seus

conhecimentos além dos marcos atingidos no dia da morte de Comte” (369).

No mesmo sentido argumenta João Cruz Costa, para quem “Pereira Barreto

procurava na filosofia positiva mais um método do que propriamente uma

doutrina”, sendo, antes de tudo, “um espírito relativista para o qual as

fórmulas têm pouca importância e em que os fatos – sempre mutáveis –

tudo dominam” (370). Antônio Paim, por sua vez, chama-o de “positivista

ilustrado”, ressaltando sua vertente liberal, não-religiosa, pedagógica e anti-

autoritária (371). Não é casual, assim, que, enquanto positivista heterodoxo,

Luiz Pereira Barreto, apesar de ter assinado a ata de fundação da primeira

Sociedade Positivista brasileira, em 1876, não tenha seguido esta

instituição, quando de sua deriva ortodoxa para o Apostolado, sob a chefia

de Miguel Lemos.

367 Luiz Pereira Barreto fora iniciado no positivismo “pela filha de um positivista de primeirahora – o prussiano von Ribbentrop”, tendo defendido, em 1865, na Faculdade de Medicina deBruxelas, a tese positivista Teoria das Gastralgias e das Nevroses em geral. LINZ, Ivan. “OPositivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação eCultura/Biblioteca Nacional, 1959, pp.8-9. 368 Merece destaque que tenham sido seus alunos os positivistas ortodoxos e autoritários Júlio deCastilhos, Borges de Medeiros, ambos presidentes da Província do Rio Grande do Sul entre1891 a 1928, bem como Alcides Maia, importante folclorista gaúcho, também influenciado porKarl von Koseritz neste âmbito. 369 LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério daEducação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, p.9. 370 COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção DocumentosBrasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, p.158. 371 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina:UEL,1997, p.556.

169

Outra personagem importante na difusão do positivismo no Brasil

foi Benjamim Constant Botelho de Magalhães (372). Professor da Escola

Militar e matemático, sua ação no movimento das ideias no século XIX foi

decisiva para os acontecimentos políticos que levaram à proclamação da

República em 1889 (373). Sobre ele afirma João Cruz Costa que, embora

aceitando a filosofia de Augusto Comte, “não era ortodoxo” (374). Na

realidade, a trajectória positivista de Benjamim Constant teve sentido

inverso à de Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Estes, como expusemos,

migraram de uma versão mais littreísta – da ciência positiva, de acento

empiricista e agnóstico – para o patamar ortodoxo da Religião da

Humanidade, aceitando a integralidade da doutrina comteana. Benjamim

Constant, ao contrário, se na juventude tinha sido ardoroso defensor do

comtismo, iria ver este fervor arrefecer com o passar do tempo (375). Em

nosso entendimento, esta mudança explica-se por duas ordens de razões:

uma estritamente doutrinária e outra mais conjuntural. Do ponto de vista

doutrinário, lembre-se, o próprio Comte era avesso ao militarismo (376),

372 Benjamim Constant entrou em contacto com as ideias de Augusto Comte justamente no anoda morte deste (1857). Pelo intermédio de um dos discípulos do fundador do Positivismo, obibliotecário L. A. Segond, que se achava no Rio de Janeiro nesta altura, parecem ter sidovendidos exemplares do Curso de Filosofia Positiva de Comte a alunos da Escola Militar, ondeestudava Benjamim Constant. Para mais informações, consultar LINZ, Ivan. “O Positivismo noBrasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/BibliotecaNacional, 1959, p.8. 373 Para Antônio Paim, a proclamação da República teve em Benjamim Constant “sua principalfigura”. Sua importância no republicanismo não escapou a R. P. Gruber, que considera que “ilfut aussi le principal investigateur et l’âme de la révolution qui éclata au Brésil en novembre de1889. Il préparait depuis longtemps par son enseignement à l’École normale et à Écolepolytechnique de Rio de Janeiro”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ªedição revista. Londrina: UEL,1997, p.556; GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comtejusqu’à nos jours. Paris : Lethielleux, 1893, p.195. 374 COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção DocumentosBrasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, p.241. 375 Segundo Cruz Costa, “o ardor religioso positivista de Benjamim Constant iria, porém, arrefecer mais tarde”. COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. ColeçãoDocumentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria JoséOlympio, 1956, p.148. 376 Não custa lembrar que, na sua Filosofia da História, a primeira época da história dahumanidade era justamente definida pela marca da Teologia e pelo Militarismo, devendo, deste

170

aspecto que terá pesado nas opções deste Professor da Escola Militar (377).

O motivo conjuntural, por assim dizer, deve-se à negativa de Benjamim

Constant à proposta do diretor do Centro Positivista do Rio de Janeiro,

Miguel Lemos, que propunha a obrigatoriedade da contribuição dos

membros da instituição positivista para o sustento dos sacerdotes (378).

Benjamim Constant desliga-se do Apostolado em Janeiro de 1882.

Em face do exposto, estamos agora em condições de perceber que

havia, no mínimo, três correntes do positivismo no Brasil: uma primeira, a

autoritária e ultra-ortodoxa do Apostolado Positivista, onde se destacam

Miguel Lemos e Teixeira Mendes; uma segunda corrente, que representa

uma versão heterodoxa voltada para as ciências naturais e profundamente

marcada pelos militares, tendo à sua frente Benjamim Constant; uma

terceira corrente, também heterodoxa, mas com consistente atitude política

democrática e liberal, sintetizada na figura de Luiz Pereira Barreto. Por ora,

basta registramos este quadro, que sintetiza os primeiros passos da difusão

do positivismo no Brasil. A ele voltaremos adiante. Falemos novamente do

caso português.

Oriundo de um curioso “eclectismo”, como afirma Catroga, ou de

um “sincretismo”, na acepção de Carvalho Homem, o fato é que o

positivismo português tem como referência direta Émile Littré e não

Augusto Comte, exprimindo-se em um republicanismo de variada

coloração que se manifestava numa atmosfera social de questionamento e

modo, e depois de uma fase de transição, ser superada pela época marcada pelo espíritopositivo. Comte, Auguste. Opuscules sur la philosophie sociale. Apêndice ao IV volume deSystème de Politique Positive, [1822], pp.112-113. Conforme COMTE, Augusto. AugustoComte: sociologia. Organizador Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1978, p.134. 377 “Augusto Comte entendia que as forças armadas deveriam ser transformadas em simplesmilícias cívicas, destinadas ao policiamento das cidades e do interior. Em vão os membros doapostolado iriam lembrar a pretensa incompatibilidade entre o positivismo e qualquer forma demilitarismo. Na pregação de Benjamim Constant, a elite militar tornava-se mais que simplesporta-voz da Nação”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª ediçãorevista. Londrina: UEL,1997, p.560-561. 378 Idem, ibidem, p.553.

171

modernização, conformando um complexo ideário ancorado numa estética

marcadamente cientista. Compreende-se, nesta perspectiva, que o

republicanismo português não se constituísse em movimento

completamente homogêneo – pois nem mesmo a comum recusa da

ortodoxia positivista impediu diferenças internas ao republicanismo. Estas,

por sua vez, remetiam às diferentes compreensões sobre o modo como a

República seria proclamada no país: por via revolucionária, através de uma

abrupta tomada de poder, ou pela via do convencimento das massas, pela

evolução natural da sociedade portuguesa. Ora, estas duas estratégias

divergentes respondiam às nuances dentro do próprio pensamento

positivista heterodoxo e remetiam, por assim dizer, às distintas “leituras”

do processo histórico.

Como é sabido, de acordo com a teoria positivista de Augusto

Comte, a República representava a forma de governo correspondente à

última fase da evolução da humanidade, marcada pelo espírito positivo e

pela cientificidade. Semelhante leitura, entretanto, não resolvia ainda, de

modo cabal, a questão: restava por explicar “como” uma sociedade em

transição – como era a portuguesa, conforme a leitura dos positivistas –

daria o derradeiro passo rumo ao último estágio da célebre Lei dos Três

Estados comteana. Esta questão, por sua vez, implicava um posicionamento

quanto à ação humana frente ao “motor” da história. Viria a República

“naturalmente”, ou necessitaria de uma “ajuda”, sob forma da ação

revolucionária? Qual a influência da ação humana na história? As respostas

desembocavam amiúde em apreciações de princípio quanto à evolução da

humanidade e quanto ao papel do homem na história (379). Remetiam,

379 A importância destas questões, no âmbito do positivismo português, e não só, pode servislumbrada em diversos textos publicados na revista O Positivismo. Merece destaque o deConsiglieri Pedroso “O Fortuito na história”, onde o autor, adepto da posição moderada, que viauma inexorável evolução histórica rumo à República, afirma que “estes accidentes que Littréappellidou de – fortuito na história – por isso mesmo que em nada alteram a direcção definitivado movimento social, quando originados conscientemente são tanto mais insensatos, quanto é

172

também na defesa de estratégias políticas muito diferentes: revolução ou

evolução.. Não é à toa, por conseguinte, a importância concedida por Júlio

de Mattos à reedição do livro de Émile Littré, em 1879, Conservação,

Revolução, Positivismo. Por essa altura, com efeito, a repercussão destas

questões dentro do heterodoxo positivismo requeria uma ativa mobilização

teórica, paralela às movimentações desencadeadas no âmbito do

movimento republicano português (380).

“Axiologicamente híbrido”, como refere Catroga (381), o

republicanismo português dividia-se em dois conjuntos: os radicais,

adeptos da “via rápida” revolucionária, e os moderados, que acreditavam

que a República seria o cume de uma evolução da sociedade por intermédio

de uma crescente divulgação dos conhecimentos científicos. Aliás, matizes

divisórias deste teor eram à época bem evidentes. Manuel Emídio Garcia,

por exemplo, distinguia os “republicanos revolucionários” dos

“republicanos evolucionistas” (382).

Por outro lado, cabe evocar a demarcação que resulta da interface

com Espanha, devido ao eco da revolução espanhola em 1868. De forma

resumida, pode-se considerar que, no reacender da “Questão Ibérica”, dois

grupos se distinguiam transversalmente aos países da Península: os

“unitaristas”, que sonhavam com a unificação dos tronos espanhol e

português numa mesma coroa, e os “federalistas”, que enxergavam na

revolução espanhola os indícios de um quadro em que os diversos povos da

certo que são de todo o ponto inúteis”. PEDROSO, Consiglieri. “O Fortuito na história”. In: OPositivismo, Primeiro Anno, n.º1, outubro-novembro, 1879, p.18. 380 Como demonstra Teixeira Bastos, em “Conservação e Evolução”, onde afirma que “umareforma radical é impossível em absoluto”, por considerar que é “do equilíbrio variável entre oespírito de conservação e o de revolução, que nasce esse movimento constante e progressivo, reformador e reorganisador – a evolução”. BASTOS, Teixeira Bastos. “Conservação eEvolução”, O Positivismo. Segundo Anno, n.º2, dezembro-janeiro, 1880, p.122-123. 381 CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologiarepublicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, p.292. 382 Conforme Manuel Emídio Garcia, O partido Republicano, In: O Partido do Povo, n.º58, Março, I ano, pp.1. Citado por CATROGA, Fernando. “Os inícios do Positivismo em Portugal:o seu significado político-social”. Revista de História das Ideias, volume I, 1977, pp.287-384.

173

Península adeririam ao modelo republicano e federalista (383). Como

exemplo desta subdivisão, basta mencionarmos o opúsculo Portugal

perante a Revolução Espanhola, de Antero de Quental (384), de 1868, bem

como as palavras divulgadas na revista O Positivismo, em 1879 (385),

através da qual Teófilo Braga acolherá a célebre obra Las nacionalidades,

de Pi y Margall, um dos ícones do republicanismo espanhol (386). Tudo isto,

portanto, no contexto de um quadro comprovadamente não uniforme, cuja

leitura autoriza dizer, com a chancela de Amadeu Carvalho Homem, que os

republicanos portugueses estavam “divididos entre a facção moderada e

unitária de José Elias Garcia, Bernardino Pinheiro e Gilberto Rola e a

sensibilidade radical e federalista de Carrilho Videira, Silva Pinto e Teófilo

Braga” (387).

É possível detectar, porém, já em 1880, na esteira das festas

comemorativas do Centenário de Camões, alguma aposta na unidade no

movimento republicano (388). Devido à grande adesão às comemorações

(389), a estratégia pacífica e moderada conseguiu razoável hegemonia

383 Para uma análise pormenorizada da questão ibérica no âmbito nacional português, entreoutros, sugerimos CATROGA, Fernando. “Nacionalismo e ecumenismo. A questão ibérica nasegunda metade do século XIX”. Cultura, História, Filosofia, vol.6, 1985, pp.419-63 eHOMEM, Amadeu Carvalho. “O tema do iberismo no republicanismo federalista português”. In: LEAL, Ernesto Castro (org.). O Federalismo Europeu. História, Política e Utopia. Lisboa:Edições Colibri, 2001, pp.81-88. 384 “Portugal perante a revolução espanhola” (1868). In: QUENTAL, Antero de Prosas sócio-políticas. Apres. de Joel Serrão. Lisboa: INCM, 1982. 385 BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliographia: Las Nacionalidades, por Pi y Margall. OPositivismo. Primeiro Anno, N.º4, Abril-Maio, 1879, pp.300-307. 386 É curioso que o volume divulgado em Portugal é uma tradução francesa, inserida no volume1 da “Bibliothéque de Philosophie Contemporaine” e não a edição espanhola. PI Y MARGALL, Francisco. Las nacionalidades. 2ª ed. Madrid, 1877, 380p. 387 HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para a história do republicanismo portuense, no períodoanterior ao Ultimato”. In: Biblos. Vol. LXXI,1995, p.362. 388 Conforme CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação daideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, p.293. Importa, contudo, a isto agregar a existência de divisões entre o republicanismo do Porto e o de Lisboa. Sobre isto, consultar o estudo de HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma história dorepublicanismo portuense”. In: Biblos, Vol.LXXI, 1995, p.363. 389 Com repercussões importantes no Brasil, tal como expusemos em capítulo anterior. Nestecaso, porém, importa dar relevo aos múltiplos efeitos das Comemorações Camonianas de 1880. Se no âmbito interno ao republicanismo português, as festas em homenagem a Camões

174

enquanto estratégia política de convencimento no modelo natural da

chegada da República em Portugal. Tratar-se-á de uma tendencial

confluência das perspectivas republicanas, que pode ser resumida, com

Fernando Catroga, na ideia de que “o positivismo heterodoxo e republicano

culminava, assim, na defesa de uma república demo-liberal, evolutiva,

conservadora, descentralista e federalista, situada na linha do romantismo

liberal” (390).

Este patamar “conciliatório” do republicanismo positivista

português (391) não foi, contudo, alcançado pelos positivistas republicanos

no Brasil. E se no caso português havia um solo heterodoxo comum entre

os positivistas (onde as diferenças estavam situadas nas estratégias de

chegada ao poder em uma proposta democrática e liberal), no caso

brasileiro, ao invés, o cenário aparenta menor horizontalidade. Importa, por

isso, considerar a diversidade doutrinária do positivismo no Brasil, bem

como suas consequentes distinções na estratégia política do

republicanismo.

representaram a formação de um consenso em torno da estratégia política moderada, na escalaluso-brasileira, significou, por outro lado, uma tentativa de construção de uma “aliança mental”luso-brasileira, conforme demonstrámos. 390 O autor realça ainda o acento étnico e histórico-cultural da doutinação teofiliana, aafirmandoresidir neste ponto o interface do positivismo demo-liberal de Teófilo e, de resto, dorepublicanismo federalista português, com a busca de uma “origem” moçárabe para Portugal, noâmbito dos diversos “povos de Espanha”, em conformidade com a compreensão de Pi yMargall. O federalismo português está relacionado com a fragmentação federalista de Espanha. CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologiarepublicana em Portugal”. In: Biblos. Vol. LIII, Coimbra, 1977, p.306. 391 Esta conciliação do republicanismo português só viria a se completar com a criação doPartido Republicano, proposta encabeçada por Manuel de Arriaga, e levada a cabo no períodode 1881-1883. Conforme HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma história do republicanismoportuense”. In: Biblos, Vol. LXXI, 1995, p.367.

175

2.3. Os eixos ultra-ortodoxo e demoliberal

Seguindo alguns intérpretes, como, por exemplo, João Cruz Costa,

podemos recordar que apesar da influência de Comte apresentar variados

aspectos e matizes dentro de um mesmo fundo doutrinário comum, houve

sempre “acomodação a condições e necessidades especiais de cada um dos

grupos” fazendo “variar o sentido da doutrina, em função dos seus próprios

temperamentos”. É neste ponto que se torna possível observar quer as

repercussões “da dissidência que já se havia esboçado ainda em vida do

filósofo e de que seria chefe Émile Littré”, quer o aparecimento de “novas

formas de heterodoxia e, sobretudo, querelas entre os diferentes grupos”.

Nesse processo de luta entre todos aqueles que se consideravam ser os

“verdadeiros” representam da teoria comteana, o grupo representado por

Miguel Lemos e pelo Apostolado Positivista do Brasil, tomará posição que

um “significativo rigorismo ortodoxo (392).

Atente-se com a devida cautela neste ponto. Este cariz de extremo

rigorismo ortodoxo de Miguel Lemos, em nosso entender, é um elemento-

chave para a compreensão das diversas facetas de influência do positivismo

no Brasil. Na verdade, tomando em consideração os posicionamentos

assumidos pelo Apostolado Positivista do Rio de Janeiro, podemos intuir

algumas das linhas seguidas pela mobilização das ideias de Comte no país.

Um exemplo disto está na série de lideranças que romperam com a

ultraortodoxia de Miguel Lemos. Já mencionámos que Luiz Pereira Barreto

e Benjamim Constant romperam com o Apostolado. Vejamos agora o caso

– algo sui generis – da ruptura do grupo ortodoxo brasileiro com a própria

ortodoxia positivista de Pierre Laffitte.

392 COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção DocumentosBrasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, pp.169-170.

176

Resumidamente, as causas desta ruptura são duas, ambas

relacionadas com a ânsia punitiva de Miguel Lemos diante das indiscrições

e indisciplinas de Ribeiro de Mendonça, antigo divulgador do positivismo

no país. A primeira dizia respeito à intenção deste em candidatar-se à

deputação, postura claramente censurada pela ortodoxia. A segunda

questão referia-se ao facto de Ribeiro de Mendonça ter oferecido, em

anúncio em jornal, uma recompensa financeira àquele que lhe recapturasse

um escravo fugido, postura completamente descabida na perspectiva da

ortodoxia positivista, pois, como se sabe, a doutrina era intransigentemente

contrária a qualquer tipo de escravidão ou servilismo. O facto é que, no

tocante a estes dois casos, Miguel Lemos teria enviado cartas ao chefe

francês do positivismo, demandando que lhe chancelasse suas

determinações. A resposta de Pierre Laffitte veio sob a forma de pedido

para que Miguel Lemos tivesse maior prudência e capacidade de

relativização (393). Ora, ao que tudo indica, estas duas qualidades não

estariam propriamente bem posicionadas no repertório de ideias do chefe

do Apostolado Positivista do Brasil. Tanto assim é que, depois de se ter

afastado da “estéril erudição” de Émile Littré, em 1881, na Primeira

Circular do Apostolado Positivista do Brasil, Miguel Lemos surge agora,

em 1883, na Terceira Circular, a denunciar “a disposição

fundamentalmente cética” de Laffitte, acusando-o de ser um “filho de

Voltaire” (394). De modo declarado, a ortodoxia de Lemos “ultrapassava” o

rigorismo laffittista.

Revelam-se esclarecedoras as observações de R. P. Gruber sobre o

que poderíamos designar por eixo ultraortodoxo que ligaria Brasil, Chile e 393 Conforme COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. ColeçãoDocumentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria JoséOlympio, 1956, pp.214-224. A versão de Miguel Lemos sobre estes fatos está impressa naTerceira Circular do Apostolado Positivista, de 1883, bem como no opúsculo Pour NotreMaitre e Notre Foi – Le Positivisme et le sophiste Pierre Laffitte. 394 Terceira Circular do Apostolado Positivista (1883), citado por COSTA, João Cruz. Obracitada, p.225.

177

Inglaterra e se teria construído em oposição ao “sofismo” doutrinário de

Laffitte em Paris. Conforme esclarece Gruber, em conformidade com a 37ª

circulaire, de 1885, as questões relativas à utopia da Virgem Maria

demonstram bem a separação entre a ortodoxia laffittista e a ultra-ortodoxia

de Lemos, Lagarrigue, Audiffrent e Congreve, na medida em que o chefe

do catecismo parisiense via na utopia da Virgem Maria “un limite idéale”,

o que muito se distanciava do entendimento que faziam Audiffrent,

Lagarrigue e Lemos que “s’en tiennent strictement à la conception d’Aug.

Comte, à savoir que cette utopie est simplement «le résumé syntéthique» de

la réligion positive”, posturas aclaradas na Lettre à Miguel Lemos et à tous

ceux que réunit autour de lui l’amour de l’Humanité, par le Dr. G.

Audiffrent, de 1887. O fato é que Miguel Lemos separou-se de Laffitte

chamando-o de “sofista”. Passo semelhante também deram Audiffrent,

Jorge Lagarrigue e Congreve. Ou seja, chegamos ao ponto de constatar

que, para além da tradicional ruptura entre ortodoxos e heterodoxos

ocorrida na França, a existência de um eixo de pensamento positivista que

liga os chefes do Apostolado positivista brasileiro ao chileno Jorge

Lagarrigue e aos britânicos Audiffrent e Congreve. Chamaremos este grupo

de ultra-ortodoxo, pois ele é oriundo, como se viu, da ruptura com a chefia

da ortodoxia parisiense de Pierre Laffitte (395).

Uma vez identificado este eixo ultraortodoxo – e sobretudo porque

a sua identificação parece processar-se ao nível de um intercâmbio e de

uma circularidade de ideias transnacionais – cabe fazer a seguinte pergunta:

teriam os demais eixos positivistas estabelecido, no quadro da heterodoxia,

intercâmbio de ideias e estreitamento de relações em escala supranacional,

e, desta feita, à escala luso-brasileira? Diante da intensa circulação de

ideias e da acurada divulgação de trabalhos científicos, cuja vitalidade e

395 GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos jours. Paris: Lethielleux, 1893, p.201-.207.

178

abrangência surpreendemos já na parte I deste trabalho, torna-se pertinente

a abertura desta linha de raciocínio, até porque os dados já coligidos do

lado português, ao denotarem a opção heterodoxa, levam a supor um

prolongamento de posições envolvendo os eixos heterodoxos das duas

margens do Atlântico.

A resposta à questão colocada terá de ser afirmativa. De fato, ao

longo da nossa investigação, foi possível estabelecer níveis de

relacionamento entre o positivismo heterodoxo português e o segmento

daqueles brasileiros que, ao romperem com a ultraortodoxia do Apostolado,

propagavam a importância da ciência positiva, da pesquisa empírica e das

novas conquistas da ciência. Engrossavam as fileiras da heterodoxia

positivista, a confirmar aquilo que Amadeu Carvalho Homem, ao referir-se

ao caso português, chamou de “sincretismo cientificista” (396). Na verdade,

este “sincretismo” foi também alimentado por vários intelectuais

brasileiros, incluindo-se neste grupo, naturalmente, os heterodoxos

positivistas de vária coloração.

Este eixo luso-brasileiro do positivismo heterodoxo e demoliberal,

que terá em Teófilo Braga seu principal expoente em Portugal, e em Luiz

Pereira Barreto a principal figura no Brasil (397), teve nas páginas da

Revista de Estudos Livres um amplo canal de divulgação científica luso-

brasileira (398). Não foi sem razão, portanto, que surpreendemos uma

intensa atividade de divulgação científica na esfera cultural luso-brasileira.

396 HOMEM, Amadeu Carvalho. Do romantismo ao realismo: temas de cultura portuguesa(século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.98. 397 A ruptura de Miguel Lemos com Laffitte e com Luiz Pereira Barreto deu origem a algunsequívocos de interpretação, como o de Mozart Pereira Soares, para quem Luiz Pereira Barretose manteve fiel a Laffitte. Pelos argumentos já expostos e até pela proximidade dele comTeófilo Braga, é nítida sua orientação heterodoxa e, portanto, nada relacionada com a ortodoxiade Pierre Laffitte. SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil: 200 anos de AugustoComte. Porto Alegre: AGE, Editora da Universidade, 1998. 398 Lembre-se que a mencionada revista tinha, no biénio 1883-1884, dupla direção: naportuguesa estavam Teófilo Braga e Teixeira Bastos; na brasileira, Américo Brasiliense, Karlvon Koseritz e Sílvio Romero.

179

Em rigor, essa dinâmica intercomunicacional de feição transatlântica

começa por traduzir o intercâmbio e a divulgação dos vários matizes da

heterodoxia positivista, unidos pela aliança em prol do combate à

metafísica clássica e às velhas instituições. Nesse âmbito, começa-se por se

observar a publicação, na Revista de Estudos Livres, de textos dos dois

líderes da renovação intelectual brasileira, Tobias Barreto (399) e Sílvio

Romero (400), ícones maiores da Escola do Recife. E, se no segundo volume

da Revista de Estudos Livres, correspondente ao biênio de 1885-1886, não

observamos a mesma duplicidade luso-brasileira no corpo diretivo da

revista (401), isso não significou uma diminuição do intercâmbio luso-

brasileiro. Bem ao contrário, após o desenvolvimento da polêmica entre

Sílvio Romero e Teófilo Braga – que foi, provavelmente, o motivo da

mudança do padrão de dupla direção – percebemos um refinamento do

intercâmbio no sentido da divulgação do pensamento positivista

estritamente mais littreísta. Para nos darmos conta do verdadeiro alcance

deste aspecto, bastará lembrar a divulgação dos trabalhos de Carlos von

Koseritz (402) e Alberto Sales (403), bem como a publicação de um artigo de

Isidro Martins Júnior (404), aos quais já fizemos referência.

399 BARRETO, Tobias. “Ensaio de prehistoria da litteratura classica allemã”. Revista de EstudosLivres. Volume I (1883-1884). Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora, 1884, pp.552-561. 400 ROMERO, Sílvio. “Theorias históricas e Escolas litterarias no Brazil”. Revista de EstudosLivres. Volume I (1883-1884). Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora, 1884, pp.201-212. 401 Como foi exposto, o segundo tomo da Revista de Estudos Livres, relativo aos anos de 1885-1886, marcará apenas os nomes de Teófilo Braga e Teixeira Bastos. 402 BASTOS, Teixeira. Secção Bibliographia. “A Terra e o Homem à luz da moderna ciência. Duas Conferências feitas em 1878 por Carlos von Koseritz. – Porto Alegre, 1884, 151p.”. Revista de Estudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e TeixeiraBastos. Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.96-97. 403 BRAGA, Teófilo. Secção Bibliographia. « Ensaio sobre a moderna concepção do Direito, por Alberto Salles. Sam Paulo, Typographia da Provincia, MDCCCLXXXV, 267p.”. Revista deEstudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.419-423. 404 MARTINS JÚNIOR, Isidro. “A função histórica da Economia política”. Revista de EstudosLivres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Volume II(1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.462-470.

180

Ora, se esta rede discursiva vocacionada para a divulgação

científica e vinculada à heterodoxia positivista, ao corporizar um ativo

relacionamento entre os positivistas heterodoxos brasileiros e portugueses,

ela também protagoniza um processo de distanciamento em relação àqueles

com quem antes cerrara fileiras na “frente cientista”. Importará, assim,

investigar em pormenor as características da heterodoxia positivista no

sentido de compreender, a partir das tensões cientificamente instruídas em

seu interior, os fundamentos teóricos que podem ajudar a explicar as

dissensões e demarcações nela acontecidas. Ou seja, o debate acerca da

heterodoxia positivista obriga a convocar outra frente que lhe é subjacente

e com o qual se confunde: o debate sobre os “evolucionismos”.

2.4. Derivas da heterodoxia: os “evolucionismos”

Recuperemos o essencial sobre a dissidência littreísta. Como já se

disse, Émile Littré estimava uma cisão muito forte entre a primeira e a

segunda fase do pensamento de Augusto Comte, expressas pelo Cours e

pelo Système. Afirmamos também que Littré seguia a orientação empírica e

experimental da primeira fase comteana, negando o cariz apostólico da

religião da humanidade, visão esta adotada pelos positivistas ortodoxos.

Conforme ressalta Gruber, o elemento central da dissidência de Littré foi

sua recusa em aceder ao que já se chamou de “dogma capital do

positivismo” e que, em última instância, refere-se à compreensão

cosmológica do positivismo comteano, onde é conferida especial

importância à relação entre as “causas primeiras” e as “causas finais”. Para

Comte, a relação entre causas primeiras e causas finais – questão reportada

à criação do mundo, à essência das coisas, à constituição da substância –,

não só era acessível ao conhecimento humano como já tinha sido mesmo

181

apreendida, estando expressa na Filosofia Positiva e na Religião da

Humanidade (e na moral que lhe é inerente). Ao contrário de Comte, Émile

Littré prega uma funda indiferença frente a estas questões de ordem mais

“cosmológica”. Segundo ele, a origem e o fim da humanidade são questões

“insolúveis” (405). Assim, o conhecimento verdadeiro só será acessível pela

experimentação científica, sem a interferência de quaisquer tipos de a

priori, sejam os de ordem teológica, sejam os de cariz metafísico (como em

Kant, Hegel e no próprio Comte do Catecismo Positivista) (406). Com seu

ultra-empirismo, Littré se distancia dos seguidores fiéis à totalidade da obra

comteana (como Laffitte), assim como se aproxima dos demais

conhecimentos feitos à luz da experimentação científica (407). E, no

horizonte assim aberto, instala-se um espaço heterodoxo de amalgamento

teórico cientificista.

405 LITTRÉ, Émile. “Que penser de la désuétude qui gagne les spéculation concernant l’origineet la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.153. 406 Assim se pronuncia Littré, em texto publicado em Portugal em 1879: “Les écoles grecquesn’ont jamais pose, en face et en distinction de leur enseignement philosophique, une philosophiedite religieuse et traitant de l’organisation de l’Olympe, du rapport des dieux avec les hommeset du culte qu’on leur offrait dans les temples au nome des cités et des particulièrs. Plus tard, sous un régime mentale tout différent, la scolastique, qui se disait servante de la théologie, n’entendait pas se mettre sur le même pied que sa maîtresse, et la laissait en un terrain à part, dont elle ne prétendait aucunement changer le caractère ni la dénomination. La situationrespective ne fut pas modifiée par la métaphysique moderne, Descartes, Spinoza, Leibiniz, Kantet Hegel ; les notions révélées de l’une demeurèrent, dans leus sphère, les notions subjectives del’autre dans la leur, et personne ne les rangea sous une même catégorie. M. Comte, le premier,eut le mérite d’apércevoir que la théologie et la métaphysique ont le caractère commun d’êtreune conception du monde, et qu’être une conception du monde est ce qui constitue unephilosophie”. LITTRÉ, Émile. “Que penser de la désuétude qui gagne les spéculationconcernant l’origine et la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.156. O grifo é nosso. 407 Conforme Littré, “«ceux qui croiraient que la philosophie positive nie ou affirme quoi que cesoit là-dessus, se tromperaient : elle ne nie rien, n’affirme rien ; car nier ou affirmer ce seraitdéclarer que l’on a une connaissance quelconque de l’origine des êtres et de leur fin. Ce qu’il ya d’établi présentement c’est que les deux bouts des choses nous sont inacessibles, et que lemilieu seul, ce que l’on appelle en style d’école le relatif, nous appartient»” LITTRÉ, Émile. Paroles de philosophie positivie, p.33, citado por GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comtejusqu’à nos jours. Paris : Lethielleux, 1893, p.26-27.

182

Neste enfrentamento entre ciência e metafísica (408), as questões

relativas à origem da humanidade merecem especial destaque. Em caso

algum, porém, o debate em torno de tais questões se cingiu à sua

inquietação emblemática – criaturas à semelhança de Deus ou obra da

evolução das espécies? –, tanto porque a resposta a essa inquietação

convocava para o debate uma panóplia de conceitos e teorias mais ou

menos próximas ou derivadas, quanto porque os posicionamentos dos

diversos autores oscilavam ao sabor das diferentes correntes interpretativas

de fundo científico ou político. E mesmo dando por adquirida a

interpenetração entre a vertente heterodoxa do positivismo, versão Littré, e

o rol das várias teorias que giravam em torno da obra de Charles Darwin e

que, geralmente – e não sem alguma dose de equívoco – são chamadas de

“evolucionistas”, haverá de se convir que o fenômeno de amalgamento

interno ao grande grupo “positivista” é análogo a um processo que obnubila

as importantes distinções teóricas e políticas que existem nessa ampla

esfera “evolucionista”. É que o comum conhecimento dos pressupostos –

de Charles Darwin, Jean-Baptiste Lamarck, Ernest Haeckel ou Herbert

Spencer – não correspondeu um mesmo alinhamento teórico. Ao invés

disto, destravou uma série de diferenças.

Ora, a correta percepção dessas distinções e dos argumentos que as

sustentam é, para o nosso propósito, de vital importância. Tanto mais que

esta interface teórica da heterodoxia positivista com as diferentes teorias

habitualmente designadas por “evolucionismo” pode ser observado tanto

para o caso brasileiro quanto para o português. Neste último, torna-se

408 Émille Littré dizia que “la philosophie positive, née de ce qu’il y a de plus pacifique parmiles hommes, c’est à dire la science, et en un temps où l’ardeur de la grande guerre contra lesanciennes doctrines s’alentissait par le succès même, n’a rien d’agressif ni de révolutionnaire. C’est par le progrès de l’éducation qu’elle se créera ce sol positif populaire dont je parle. Là onne peut lui barrer le passage; quoi qu’on fasse, il faut enseigner les sciences ; et, directement ouindirectement, les sciences enseignent la philosophie positive”. LITTRÉ, Émile. “Que penser dela désuétude qui gagne les spéculations concernant l’origine et la finalité du monde et de sesêtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.158-159.

183

gradualmente explícito o recurso “não só à corrente inglesa que tinha em

Stuart Mill, Spencer, Bain, Huxley, Lewes, Darwin e Wallace os seus

representantes, mas também ao monismo evolucionista alemão de Büchner

e Haeckel, ao positivismo italiano de Lombroso, aos escritos de autores

como Letourneau e Ardigo que, sem serem fiéis aderentes de qualquer

escola positivista, vinham reforçar as teses filosóficas e sócio-políticas dos

heterodoxos discípulos de Comte em Portugal” (409). Entretanto, no Brasil,

fica também claro que “depois de uma rápida fascinação pela filosofia

comteana, o espírito dominante passou a ser o das grandes correntes

filosóficas, vindas da Inglaterra e da Alemanha – com Spencer e Haeckel,

principalmente. Muitos espíritos filiados, a princípio, à acepção comteana,

acabaram abjurando a sua ortodoxia e passaram, deixando o mare clausum

da Filosofia Positiva, a navegar no mar livre e largo do Evolucionismo, do

Transformismo e do Monismo” (410).

Este cenário de recomposição teórica de fundo heterodoxo não

deixou de interferir nos debates sobre o relacionamento luso-brasileiro. E

fê-lo ao nível das discussões em que estava em causa o lugar ocupado pelo

critério da historicidade nesse relacionamento – tenha-se em conta a

cumplicidade entre cientismo e historicismo naquela conjuntura –, as quais

encontravam no debate “evolucionista” terreno fértil para refundar

pressupostos. Dito isto, algumas indagações são levantadas acordo com

nossa análise: a questão do transformismo lamarckiano e seu grau de

compaginação com os credos doutrinários em presença; os contextos de

utilização, com Darwin e para além dele, das noções de “descendência com

modificações” e “seleção natural”; o alcance filosófico, político e social a

que estariam autorizadas estas noções a partir de leituras haeckelianas ou

409 CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologiarepublicana em Portugal”. In: Biblos. Vol. LIII, Coimbra, 1977, p.296. 410 VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2ª edição, 1925,p.123.

184

spencerianas. Se eram estes os principais eixos de fundamentação teórica

dos autores portugueses e brasileiros trabalhados – e tendo eles servido de

suporte para o entendimento do potencial relacionamento luso-brasileiro –,

temos motivos de sobra para registrar o que estava em causa em cada um

desses três patamares “evolucionistas”.

2.4.1. Comecemos pela questão do transformismo. Quais os

problemas que se levantavam na altura do seu acolhimento pelos

intelectuais de ambas as margens do Atlântico? Recuemos, para isso, à

“atmosfera” científico-cultural anterior à publicação de A Origem das

Espécies, em 1859, por Charles Darwin: a atmosfera de Lamarck e de

Cuvier (411). Recorde-se que Jean Baptiste Lamarck é o primeiro naturalista

a formular, em termos científicos, uma teoria completa e coerente sobre as

questões ligadas à evolução. Para o professor do Museu de História Natural

de Paris, as modificações do mundo orgânico não eram advindas da

vontade ou intervenção do plano divino. Quem quisesse entender estas

transformações, deveria voltar-se para o estudo da natureza e desenvolver a

compreensão de leis que orientam suas modificações e seu

desenvolvimento. Conforme explica Patrick Tort, Lamarck construiu sua

obra sobre dois principais pilares, o primeiro apontando para uma

orientação “científica”, através do trabalho de ordenação e classificação

dos invertebrados, atuais ou fossilizados (412), e o segundo, partindo de uma

reflexão “filosófica”, vocacionado para realçar a explicação da história da

vida pela teoria transformista. Estas questões foram mencionadas, pela

primeira vez, em seu Discours d’ouverture du Cours de l’an VII, em 1800,

opúsculo onde Lamarck expõe de maneira didática suas ideias sobre a 411 MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.37-38. TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.2542. 412 É fundamental ter presente que a compreensão da natureza de Lamarck se aproxima dadivulgada por Buffon e se distancia da propagada pelos trabalhos de Linneu. Sobre estadistinção consultar MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984.

185

“transformation des spèces”: a cção “du temps et des circonstances

favorables sont les deux principaux moyens que la nature emploie pour

donner l’existence à toutes ses productions [preenchendo] les circonstances

influentes qui ont, avec le temps, constitué la forme du corps et des parties

des animaux. Avec de nouvelles formes, de nouvelles facultés ont été

acquises, et peu à peu la nature est parvenue à l’état où nous la voyons

actuellement”(413). Anos mais tarde, na sua principal obra, Philosophie

Zoologique, de 1809, Lamarck confirmará perspectiva semelhante, dizendo

que “la nature, em produisant successivement toutes les spèces d’animaux,

et commençant par les plus imparfaits ou les plus simples, pour terminer

son ouvrage par les plus parfaits, a compliqué graduellement leur

organisation” (414).

Independentemente das avaliações retrospectivas feitas sobre o

transformismo lamarckiano e suas principais características – o estudo da

natureza consoante uma perspectiva dinâmica; a ação do meio ambiente e

do tempo como os principais fatores de explicação da evolução da

natureza; a hereditariedade das características adquiridas; e a tendência

para a perfeição expressa pela evolução da natureza – é conveniente

assinalar, com Giuseppe Montalenti, que a sua teoria “não se limita a ser

simples descrição e ordenamento dos factos”, estimulando, a partir deles, a

respectiva interpretação. Esta interpretação transformista terá sido,

justamente, um dos elementos que afetaram, a posteriori, a credibilidade da

teoria lamarckiana, justamente onde constituiu pretexto para determinismos

geográficos e raciais (415). No âmbito de um quadro explicativo que nega a

413 LAMARCK, Jean-Baptiste. Discours d’ouverture du Cours de l’an VII, 1880, p.465-466. In :TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.2545.414 LAMARCK, Jean-Baptiste. Philosophie Zoologique, p.206. In : TORT, Patrick. Dictionnairedu Darwinismo et de l’Évolution. Paris: PUF, 1996, p.2554. 415 Sobre as repercussões políticas incluídas nas distinções entre Lamarck e Cuvier, Buffon eLinneu e, principalmente, sobre a deriva racista do prolongamento destas correntes teóricas (ede outras que lhe seguiram), consultar a incontornável obra de POLIAKOV, Leon. O Mito

186

compreensão da natureza como algo dado pelo desígnio divino e que

valoriza, em contrapartida, “a adaptação ao ambiente de um modo

científico, como uma aquisição dos organismos, como um processo activo

e contínuo, fruto de trocas e relações entre organismo e ambiente” (416),

seria natural que sua repercussão assumisse um tom explosivo no campo

das ideias de inícios do século XIX.

Acontece que as afirmações da teoria lamarckiana estavam em clara

oposição à concepção tradicional da natureza e do homem fornecida pelos

pressupostos criacionistas. Dentre os naturalistas antilamarckianos,

destaca-se Georges Cuvier (417), considerado o fundador da anatomia

comparada e detentor de grande influência no meio acadêmico francês

durante toda sua vida. Em seu famoso trabalho, Discours sur les

révolutions de la surface du globe et sur les changements qu’elles

produisent dans ce règne animal, publicado em 1812, defende uma visão

catastrofista sobre as mudanças ocorridas na terra. Segundo ele, os

diferentes tipos de animais que existiram na superfície terrestre, ao longo

dos anos, não tinham qualquer correlação entre si. Extintos por uma

catástrofe – sendo o Dilúvio, narrado na Bíblia, um exemplo disto –, outros

animais diferentes povoariam a superfície do globo. Para além de uma

noção de temporalidade marcada pelo signo de abruptas interrupções,

causadas pela ação do desígnio divino, a teoria de Cuvier pressupunha,

fundamentalmente, que “les spèces ne changent pas” (418). Uma convicção

vinculada à sua adesão exclusiva aos “fatos positivos” (em nome da qual,

aliás, considerava que a teoria lamarckiana tinha traços “metafísicos”),

expressa na ideia de que, não havendo provas claras e científicas de Ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e do nacionalismo. Tradução Luiz João Gaio. SãoPaulo: Perspectiva, Edusp, 1974. 416 MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.39417 Sobre a polêmica que envolveu Georges Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, em 1830, em tornodos princípios do transformismo e do fixismo, consultar TORT, Patrick. Dictionnaire duDarwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.1867-1883. 418 TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.1690.

187

mudança, então, irrefutavelmente, as espécies “não mudavam”. Com isso,

reforçava, com argumentos naturalistas, o ideário criacionista, nas suas

diversas certezas: o organismo humano, como o animal, não possuía

qualquer característica dinâmica ou incoerência; exemplo da perfeição e

criado por Deus à sua imagem e semelhança, o homem vivia em plena

harmonia com a natureza; esta apresentava-se, acima de qualquer suspeita,

como obra divina; e outras de sentido idêntico, no contexto de uma

compreensão cosmológica onde não se pressente abertura para a

historicidade(419). Tudo somado, este “fixismo” de Cuvier representa uma

postura diante da origem da humanidade e da natureza radicalmente oposta

à teoria de Lamarck, que, como se viu, era anti-catastrofista e transformista

(420).

Até à publicação da obra A Origem das Espécies, de Charles

Darwin, em 1859, era o paradigma estático da história natural o modelo

acolhido pela comunidade científica. Naturalmente, Augusto Comte, que, à

altura da edição do trabalho de Darwin já havia publicado grande parte da

sua obra, inclusive o Système de Politique Positive, obra marcante do

419 “Cuvier tinha uma concepção geral de ciência substancialmente igual à de Lineu: natureza eciência são como dois quadros, a segunda tentando copiar a primeira. Na natureza tudo é claro, interligado, coerente e por isso as ciências devem procurar atingir o mesmo fim, o de descobrir acoerência e os laços que existem entre os fenómenos naturais”. MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.40. 420 Giuseppe Montalenti acerta quando aponta o carácter perturbador da teoria de Lamarck, segundo a qual “os organismos não foram criados assim, já adaptados ao ambiente no qual cadaum vive, exemplo extraordinário de uma mente que tudo prevê e pré-ordena, sento antes oresultado de uma acção do ambiente que os foi transformando e adaptando às suas exigências. Não são, assim, filhos directos do Criador, nascidos para dominar a matéria bruta, mas simfilhos desta matéria, que arduamente procuram adaptar-se às instáveis condições do ambiente. De um golpe só vai o conceito do admirável desígnio pré-ordenado e da superioridade dosviventes sobre a matéria inanimada. Três séculos antes, Copérnico (1473-1543) tinhademonstrado que a Terra não é o centro do universo e a sua teoria fora depois hostilizada pelasautoridades religiosas que consideraram, e com razão, que iria subverter a ordem instituída. Asteorias da evolução completam esta obra subversiva afirmando que o homem não é de facto aimagem do seu Criador, predestinado a dominar o mundo. Assim cai por terra não só umadeterminada representação do mundo externo, como são abaladas as bases de uma certaestrutura social, de uma moral e costumes bem radicados no pensamento e no coração doshomens”. MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.42.

188

catecismo ortodoxo positivista (421), não é alheio ao maior prestígio e

adesão que, por comparação com Lamarck, merecia a teoria fixista de

Cuvier. Sem ser, obviamente, um naturalista, Comte assume uma

perspectiva bastante próxima ao fixismo de Georges Cuvier. Na verdade, o

criador do positivismo sempre foi um dualista, algo próximo das

diferenciações kantianas entre “coisas” e “númenos”. E, se é verdade que

ele concede importância à investigação científica – sobretudo no Cours –

mais correta estará a percepção da existência de uma compreensão

metafísica à moda kantiana inserida em seu sistema (422). Comte

compreendia a história da humanidade enquanto uma verdadeira “marcha

da civilização” rumo ao ideal de positividade, representado por sua

doutrina. Quanto à natureza, Comte assumia claramente uma posição

fixista, como bem aponta Pierre Arnaud, quando afirma que “Comte

tranche, avec Cuvier contre Lamarck, contre l’évolutionisme et pour la

fixité dês spèces” (423).

Explica-se. Por um lado, e como o próprio Comte afirmava no

volume IV do Cours, se o positivismo busca inspiração no “axioma do

grande Leibniz: o presente está prenhe do futuro”, com isso ele justifica

que a ciência tivesse por objetivo “descobrir as leis constantes que regem

esta continuidade, cujo conjunto determina a marcha fundamental do

desenvolvimento humano”. Por outro lado, contudo, sua “filosofia política

se inclinará espontaneamente, pelo menos, no que diz respeito a todas as

disposições sociais de alta importância, a representar sempre como

inevitável àquilo que se manifesta de início como indispensável”.

Residindo aqui a influência conservadora do “aforismo político do ilustre 421 Recorde-se, mais uma vez, que o Cours foi publicado entre 1830 e 1942 e o Système entre1951 e 1954, sendo, portanto, anteriores, ambas as principais obras de Angusto Comte, a AOrigem das Espécies, de Charles Darwin, que é de 1859. 422 Sobre a relação do pensamento de Augusto Comte com o de Kant, consultar NEGRI, Antimo. Augusto Comte e L’Umanesimo Positivistico. Roma: Armando Editor, 1971. 423 ARNAUD, Pierre. Politique d’Auguste Comte. Texte choisis et présentés par Pierre Arnaud. Pairs: Armand Colin, 1965, p.89.

189

De Maistre: «Tudo o que é necessário, existe»” (424). Ora, ao aliar a crença

na razão prognóstica e na ciência, típica do iluminismo, com o

conservadorismo ultramontano avesso à mudança, o positivismo de

Augusto Comte – e dos ultra-ortodoxos que o seguiram piamente –

representará uma filosofia política indelevelmente oposta à compreensão da

mudança como elemento presente na natureza humana. Estará,

provavelmente, neste ponto, muito de sua indesmentível aversão a

quaisquer transformações de ordem social, na medida em que apostava na

eficácia da continuidade histórica e no poder de convencimento inerente ao

progresso continuado da Humanidade para alçar-se à condição de esteio

basilar do Ocidente – ou seja, na Ordem e no Progresso (425). Por fim, não

se entenderá a postura anti-lamarckiana de Augusto Comte sem evocar a

diferença entre “finalidade” e “finalismo”, que tanto influenciou o

pensamento oitocentista. Lamarck, como se aludiu, acreditava que a

natureza tinha por “finalidade” a perfeição e a coerência, embora não

indicasse o patamar onde se iria processar esse desiderato. Augusto Comte,

assim como as demais filosofias da história do século XIX, indicava

claramente o patamar, o lugar, feito horizonte “finalista”, onde estaria

consumada a “marcha da civilização”: a república positivista.

2.4.2. Vejamos, entretanto, a interferência da chamada “revolução

darwiniana” (426) sobre este estado de coisas, na certeza de que o seu

profundo impacto não deixou incólume a escala cultural luso-brasileira.

424 COMTE, Augusto. Cours de Philosophie Positive, vol.IV, p. 192 e 258-259, cf. COMTE, Augusto. Augusto Comte: sociologia. Organizador Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1978, p.158. 425 Dir-se-ia que, apostando na dualidade entre Ordem e Progresso, o Cours acentuará mais osegundo factor e o Systéme privilegiará o primeiro. 426 Muitos trabalhos ressaltam a importância do “revolução darwiniana” na compreensão dahistoricidade da natureza, bem como suas repercussões do ponto de vista epistemológico. Indicamos, nesse sentido, o texto de John Greene “O paradigma kuhniano e a revoluçãodarwinista na história natural”. In: Manuel Maria Carrilho (org.). História e Prática dasCiências. Lisboa: A Regra do Jogo, 1979, pp.119-150.

190

Conforme assinalam diversos analistas da obra de Charles Darwin (427), o

estatuto marcante desta revolução deve-se justamente a que as suas teorias

da “descendência com modificações” e da “selecção natural” – visando

uma explicação não-teleológica da filiação e da criação de novas espécies

(428) – demarcam-se não apenas do criacionismo bíblico, do fixismo de

Cuvier, o que seria de todo evidente, mas também se afastam do

transformismo de Jean-Baptiste Lamarck. Nesse sentido se pode dizer, com

Ana Leonor Pereira, que “Darwin inaugurou um novo código de leitura da

complexidade e da historicidade dos organismos vivos, irredutível ao

mecanicismo, ainda que a descendência com modificações se processe

através de um mecanismo chave: a selecção natural. Mas, a selecção

natural, que preserva as variações individuais favoráveis ao processo

adaptativo e elimina as variações nocivas, é um poder criador sem projecto

apriorístico” (429). Importa, com efeito, chamar a atenção para o fato de que

a ideia darwiniana da evolução possui características completamente a-

sistémicas. Se para Lamarck a evolução se dá sob o signo da harmonia, da

regularidade e da perfeição, para Darwin, ao contrário, a evolução da

natureza é consentânea com um processo contingente, aleatório e

imperfeito. Daí seu mecanismo central ser a “seleção natural”, através da

noção de “luta pela vida”. Ou seja, a compreensão que Darwin faz da

“evolução” das espécies não contempla o signo da “perfeição”, não revela

nenhuma “finalidade”, tanto como não aponta para um patamar de chegada

do trajeto evolutivo, fosse o “juízo final” dos criacionistas ou fosse o

“estágio positivo” da teoria comteana.

427 Veja-se a obra de Stephen Jay Gould, O Mundo depois de Darwin. Reflexões sobre histórianatural. Lisboa: Editorial Presença, 1988. 428 TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, pp.716-717. 429 PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (1865-1914). Coimbra: Almedina, 2001, p.22.

191

Esta especificação antecipa outra, igualmente fundamental, sobre o

correto entendimento do “darwinismo”, ou seja “a da sua extrema

heterogeneidade”. Conforme assinalam Jean Gayon (430) e Ernst Mayr (431)

é importante ter presente a impossibilidade de reduzir a um só condão suas

diversas manifestações doutrinárias. Deve-se, portanto, levar em conta as

múltiplas demarcações internas produzidas no contexto do “darwinismo”, o

qual melhor deverá definir-se, então, nos termos de Patrick Tort, como uma

“constelação de discursos onde ele constitui a referência significativa” (432).

Aliás, é à luz desta dimensão heterogénea que se explica, por exemplo, que

“desde os primeiros anos da década de sessenta do século XIX a teoria

darwiniana [tenha sido] difundida por Thomas H. Huxley e A. Russel

Wallace sob a denominação de darwinismo, [apesar de não haver,] de

facto, uma identidade teorética absoluta entre as versões daqueles cientistas

e, menos ainda, entre cada uma delas e a teoria darwiniana. Thomas Huxley

não aceitava o princípio da selecção natural, enquanto Wallace não o

aplicava à evolução da espécie humana. De qualquer modo, o princípio da

descendência das espécies a partir de um antepassado comum, segundo um

processo de divergência, ligava a teoria darwiniana às suas múltiplas e

heterogéneas versões, designadamente de Th. Huxley, Wallace, Lyell,

Hoocker, Asa Gray, Fritz Müller e E. Haeckel. Pode, então, afirmar-se que

430 GAYON, Jean. Darwin et l’après-Darwin, Paris : Éditions Kimé, 1992, p.4. 431 Ernst Mayr considera que “cuando alguien plantea esta cuestion, la respuesta que recibadependerá del tiempo que haya pasado desde 1859 y de la ideología de la persona a la quepregunta”. O mesmo autor identifica nove significados diferentes do termo “darwinismo”, sendoque a grande maioria deles “son o bien claramente erróneos o bien no representam elpensamiento de Darwin. Observando la situación como un historiador, estoy convencido de queno hay dos significados que han obtenido la aceptación más ampla. Después de 1859, es decir, durante la primera revolución darwiniana, el darwinismo significó para casi todo el mundo unaexplicación del mundo viviente mediante causas naturales”. Para Mayr, somente depois da“segunda revolução darwiniana” é que o termo “darwinismo” assumiu significado do “cambioevolutivo adaptativo bajo la influencia de la selección natural, designando la evoluciónvariacional frente la transformacional. Estos son los dos únicos conceptos verdaderamentesignificativos del darwinismo, uno en vigor durante ele siglo XIX (y hasta aproximadamente1930) y el otro en vigor durante el siglo XX”. MAYR, Ernst. Una larga controversia: Darwin yel darwinismo. Barcelona: Crítica, 1992, p.118-119. 432 TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.900.

192

a ideia de evolução por meios naturais era uma constante no credo dos

darwinistas. Para além desde enunciado, entramos no terreno das

divergências” (433).

Para esta heterogênea referenciação darwiniana e para o caráter

vincadamente heterodoxo da sua recepção, contribuíam ainda outros

fatores. Dois, pelos menos, têm sido apontados com regularidade. Um deles

é o que decorre de determinados aspectos ligados ao próprio âmago

científico dos postulados de Darwin, a exemplo do problema da

hereditariedade no contexto do mecanismo da “seleção natural” (que é tida,

por norma, como uma das fragilidades da elaboração darwiniana). Um

problema resultante de um inescapável desconhecimento, à época, de dados

do âmbito da genética só disponibilizados após as publicações de Darwin.

Especificamente quanto à ideia de “evolução”, deve-se ter presente que a

ideia da aleatoriedade evolutiva, expressa na teoria da “descendência com

modificações” de Darwin, está implicitamente ligada à questão da

hereditariedade das espécies. Explica-se: a compreensão de que a natureza

“evolui” pressupõe o encadeamento temporal e orgânico das espécies.

Lamarck chegara a este ponto. Porém, para ele, esta evolução era

harmónica, coerente e tinha como finalidade a perfeição. Ora, o conceito de

“selecção natural” e de “luta pela vida”, de Darwin, implicam justamente

uma ruptura com estes pressupostos lamarckianos. Afinal, se há luta na

natureza, esta não é perfeita, assim como se essa luta ocasiona uma

“selecção”, há que saber como funciona esta “passagem” evolutiva. Chega-

se, assim, à questão da hereditariedade. Acontece que Darwin não tinha

provas contundentes para responder a este problema (434). Neste ponto é

433 PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (1865-1914). Coimbra: Almedina, 2001, p.43. 434 Segundo Erns Mayr, “la tesis principal de Darwin era que el cambio evolutivo se debe a la producciónde variación en una población y a la supervivencia y éxito reproductivo («selección») de algunasvariantes. Pero él origen de esta variación le sumió en la perplejidad durante toda su vida. Darwinconsideraba que la variación era un fenómeno intermitente, que ocurría fundamentalmente en

193

importante frisar que o problema da hereditariedade, implícito nas

diferentes teorias sobre a evolução das espécies, só foi resolvido pelas

experiências genéticas realizadas por Gregor Mendel em 1866 e que só em

1900 foram publicitadas pelos botânicos C. Correns e H. de Vries e E.

Taschermak. O fato é que Darwin não conheceu Mendel nem tampouco as

teorias genéticas. Assim, a explicação da hereditariedade permaneceu

sendo uma importante lacuna na compreensão da evolução das espécies.

Ora, frente a esta fragilidade da teoria darwiniana – o desconhecimento da

genética – parece lógico que a comunidade científica oferecesse resistência

à “seleção natural” e acabasse por recuperar a explicação lamarckiana da

hereditariedade dos caracteres adquiridos. Por isso, concordamos com Ana

Leonor Pereira, quando ela considera ser “perfeitamente compreensível que

até às décadas de trinta e de quarenta do século XX, o darwinismo não

apresente como característica fixa a selecção natural, embora esta

constituísse o núcleo duro (apesar da sua vulnerabilidade) da teoria

darwiniana”. De resto, continua a autora, “o próprio Darwin, sem jamais

abdicar da selecção natural das variações úteis, em termos de adaptação ao

meio, teve necessidade de construir uma teoria provisória da

hereditariedade”. Estas questões estariam presentes em suas obras

posteriores, nomeadamente em sua The descent of man, and selection in

relation to sex, publicada em 1871 (435). O segundo fator, em paralelo,

refere-se à extensão do debate referenciado nos postulados “darwinistas”

aos campos filosófico-social e filosófico-político, “salto” gradual para o

qual não são pequenas as contribuições de pensadores como Ernest

Haeckel e Herbert Spencer, a quem se reconhece particular interferência no

alcance histórico, político, filosófico e social que o termo “evolucionismo”

circunstancias especiales. Sin embargo, estaba bastante convencido de que en la naturaleza hay unainmensa reserva de variación que está siempre disponible como material para selección”. MAYR, Ernst. Una larga controversia: Darwin y el darwinismo. Barcelona: Crítica, 1992, p.121. 435 PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (1865-1914). Coimbra: Almedina, 2001, p.45;

194

tem no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Eis aqui

outro impulso demarcatório processado no interior do campo conceitual.

Um impulso extensível às diferentes “frentes cientistas” da configuração

cultural luso-brasileira.

2.4.3. Sabendo-se que os heterodoxos brasileiros e portugueses de finais

de Oitocentos foram, em grande parte, leitores atentos de Ernest Haeckel,

bem se compreenderá o manancial teórico que terão constituído, para esses

grupos, discursos como o de 1899, proferido em Cambridge, onde aquele

naturalista alemão procede a um arrazoado sobre os últimos “progressos da

ciência”. Trata-se de uma intervenção a todos os títulos elucidativa. Em

primeiro lugar, pela modulação suave operada no encadeamento das teorias

de Lamarck e Darwin, surindo uma filosofia social com alargado alcance

político: “Quarenta anos decorreram, desde que Charles Darwin publicou

os primeiros trabalhos da sua imperecedoura teoria. Quarenta anos de

darwinismo! Que fantásticos progressos no nosso conhecimento da

natureza! E que modificações sofreram os nossos conceitos mais

importantes, não só no domínio da biologia, mas também no da

antropologia e no desse conjunto admirável, a que se dá o nome de

«ciências do espírito»! Porque, com o verdadeiro conhecimento da origem

do homem, encontrou-se, ao mesmo tempo, uma base sólida onde estribar a

fisiologia e um apoio amovível da psicologia natural e da filosofia monista”

(436).

Esta, portanto, uma reflexão de primeira instância. Numa segunda,

porém, o registro vai bem mais além – além do próprio Darwin, em rigor.

Sob os auspícios de uma “proposição dedutiva”, a compreensão acerca da

evolução da natureza passará também a ser utilizada como lei científica

436 HAECKEL, Ernst. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.10.

195

para a explicação da sociedade. Haeckel chagara a essa posição a partir do

seu próprio trajeto:

“Tinha estudado, em 1866, na minha «Morfologia Geral», «a significaçãoantropológica do desenvolvimento dos organismos». Havia insistido sobre o facto deque a lei biogenética fundamental conserva todo o seu valor para o homem. Neste, como em todos os outros organismos, existe a relação causal mais íntima, baseada naherança entre ontogenia e a filogenia, entre a história do gérmen do indivíduo e da suasérie ancestral. A seguir, eu distinguia dez fases principais, na série dos vertebrados. Mas concedia especial importância à correlação lógica da antropogenia e dotransformismo; se este é verdadeiro, deve ser aplicado àquela, com todas as suasconsequências. «A afirmação de que o homem descende dos vertebrados inferiores éuma proposição dedutiva especial, que resulta, com necessidade absoluta, da leiindutiva geral, constituindo a teoria da descendência». Desenvolvi esta ideia, e as suasconsequências, nas várias edições da minha «História da Criação» e da minha«Antropogenia». Gravei-a, de uma maneira estritamente científica, na terceira parte daminha «Filogenia Sistemática»” (437).

O salto explicativo é claro: reside nesta correlação entre ontogenia e

filogenia a atitude haeckeliana, própria, até certo ponto, do “darwinismo”,

e, paradoxalmente, bem distante da prudência de Darwin em estabelecer

aquele tipo de correlação. Por isso, dizemos, com Becquemont, que “la

pensée évolutionniste est profondément finaliste: une fois les lois connues

grâce à une logique, la science sociale dicte une morale de submission à ces

lois. L’évolucionnisme est une pensée normative, qui dit à la fois comment

sont les choses et comment elles doivent être. Avec la fin du progrès,

logique et morale tendent à devenir une même discipline”(438).

De igual modo digno de nota, no discurso haeckeliano de 1899, é a

confissão de uma das “afinidades electivas” do zoólogo alemão: Herbert

Spencer. Segimdo o alemão, “entre os filósofos, ninguém impôs melhor a

influência da nossa concepção do mundo que o grande pensador inglês

Herbert Spencer, um dos raríssimos sábios contemporâneos que sabem

437 HAECKEL, Ernst. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.13. 438 BECQUEMONT, Daniel. Darwin, Darwinisme, Évolutionisme. Paris: Édition Kimé, 1992, p.115.

196

igualar os mais vastos conhecimentos em história natural com a

especulação filosófica mais profunda”. Para ele, o famoso intelectual

vitoriano “pertence àquele antigo grupo de filósofos da natureza que, antes

de Darwin, havia encontrado na doutrina evolucionista a chave que deveria

permitir a resolução do enigma do universo; ele figura também entre esses

evolucionistas que concedem, com razão, a maior importância à herança

progressiva, a esta tão discutida transmissão das qualidades adquiridas”

(439). A este respeito, há duas observações a fazer.

Uma, é a de que a menção elogiosa a Spencer corresponde à adesão

e ao reconhecimento da pertinência da passagem de uma compreensão

transformista da evolução da natureza para uma formulação filosófica que

submete à lei natural toda uma compreensão do desenvolvimento homem e

da vida em sociedade. De fato, desde os seus primeiros escritos até aos

consagrados Progress, its law and cause, de 1857, ou First Principles, de

1862, Spencer não fará mais do que dar forma aproximadamente definitiva

a pressupostos seus que vêm de uma conjuntura anterior mesmo à

publicação de A Origem das Espécies. O inglês acreditava estar “fora de

qualquer discussão o facto de o progresso orgânico consistir na passagem

do homogéneo para o heterogéneo, mediante sucessivas diferenciações” e

isto, bem entendido, quer quer se trate “das transformações da terra, do

desenvolvimento da vida à sua superfície ou do desenvolvimento das

instituições políticas, da indústria, do comércio, da língua, da literatura, da

ciência, da arte” (440). Segundo Patrick Tort, foi a partir das reflexões sobre

as conclusões das pesquisas embriológicas de Karl Ernst von Baer (1827),

sobre o princípio de conservação da matéria de Lavoisier (1789) e sobre o

princípio físico da persistência da força posta em evidência por Julius

Robert Mayer (1842) que o inglês Herbert Spencer enuncia desde 1852

439 HAECKEL, Ernest. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.44. 440 SPENCER, Herbert. Do Progresso, sua lei e sua causa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1939, p.13-14.

197

(data na qual ele publica no The Leader um ensaio sobre a hipótese do

desenvolvimento), sob uma forma ainda aproximativa, a proposição de base

do que será o sistema filosófico mas espontaneamente e mais regularmente

aprovado pelas classes dirigentes e empresários do Ocidente industrial e

liberal: o evolucionismo (441).

A outra observação diz respeito à questão da transmissão

hereditária e à centralidade que se lhe reconhece no contexto

“evolucionista”, ao ponto de o inevitável surgimento, no rasto das

propostas e das lacunas de Darwin, de diferentes entendimentos quanto à

forma e à finalidade com que se desenrolaria a “evolução natural”

provocarem uma crispação e uma tendência de dissenso bem evidentes.

Percebe-se, assim, o discurso de Ernest Haeckel, quando considera que

“Spencer, tal como eu, combateu, desde o primeiro momento, com a maior

energia, a teoria do plasma germinal de Weismann, que nega o

importantíssimo factor da evolução, procurando se explicar apenas pela

«força todo-poderosa da selecção». Na Inglaterra, a teoria de Weismann

teve grande êxito, tendo aparecido como «neodarwinismo», opondo-se à

441 Entretanto, a referida “passagem” analítica pode ser bem vista na obra Progress, its law andcause, de 1857, onde Herbert Spencer afirma que “as investigações do Wolf, Goethe e Von Baercomprovaram que as mudanças verificadas com a transformação da semente na árvore e doóvulo no animal, consistem na passagem da estrutura homogénea para a estrutura heterogénea. No seu estado primitivo, o germe é uniformemente homogéneo, tanto em contextura como emcomposição química; mas não tarda a aparecer uma diferença entre as partes da substância que oforma ou, como se diz em linguagem filosófica, uma diferenciação. Cada uma destas divisõesdiferenciadas começa a manifestar algum contraste de partes, e estas diferenciações secundáriaschegam a ser tão bem definidas como a primeira. Este processo repete-se continuamente;realiza-se, ao mesmo tempo, em todas as partes do embrião em crescimento, e, medianteintermináveis diferenciações, produz-se, finalmente, a combinação completa de tecidos e órgãosque constituem a planta ou o animal adulto”. Em 1862, vemos Spencer propor, no seu FirstPrinciples, que “l’évolution est une intégration de matière accompagnée d’une dissipation demouvement, pendant laquelle la matière passe d’une homogénéité indéfinie, incohérente, à unehétérogénéité definie, cohérente, et pendant laquelle aussi le mouvement retenue subit unetransformation analogue”. SPENCER, Herbert Première principles, 1862, p.365 da edição de1890. In: TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, pp.1424-1425.

198

nossa concepção de fenómenos evolutivos, caracterizada como

«neolamarckismo»” (442).

Abreviando uma plataforma de discussão que nos levaria longe,

convirá talvez assentar com Patrick Tort, que “la loi de évolution, et le

système «deductif» qu’elle organise (l’évolucionnisme) n’ont – il importe

de le souligner d’emblée – rien à voir, tant dans leur origine que dans leurs

derniers aboutissements, avec Darwin. Le bénéficie à tirer aujourd’hui

d’une relecture de Spencer et de l’histoire de la constituition réelle de

l’évolutionnisme philosophique, serait d’abord d’instruire cette distinction

nécessaire et trop longtemps ignorée ou tactiment recouverte : le

transformisme de Darwin, ou théorie de la descendence modifiée par le

moyen de la sélection naturelle, est un théorie bio-écologique du devenir

des espèces vivantes en tant qu’elle sont soumises à la variation.

L’évolutionnisme quant à lui est um système syntétique de philosophie dont

l’architecte se nomme Herbert Spencer, et qui se construit, sous l’influence

des théories économiques libérales de la fin du XVIII siècle (notamment

celle d’Adam Smith), et au coeur d’une référence permanente aux sciences

de la nature, parallèlement à l’essor de l’industrialisme victorien” (443).

Cabe, então, a partir destas não-coincidências entre darwinismo e

evolucionismo, retomar as linhas inconciliáveis ou as estratégias de

aproximação nelas geradas, ou os círculos tensionais de cariz teórico,

científico ou político nelas estribados, no âmbito heterodoxo da

configuração cultural luso-brasileira. É o que veremos agora, ao

indagarmos a expressão adquirida pelo eixo materialista-monista.

442 HAECKEL, Ernest. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.44. 443 TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, pp.1424-1425.

199

2.5. O eixo materialista-monista.

Do profundo impacto destes debates no espaço cultural luso-

brasileiro não há, como se sabe, a menor dúvida. A avaliar pelo caso

brasileiro, a recepção destas teorias pelo campo heterodoxo viria a

constituir em pretexto para um realinhamento das várias sensibilidades, de

acordo com a respectiva apreciação dos contributos de Darwin e de acordo

com certo entusiasmo perante o monismo haeckeliano. O que não

surpreende que se observe, nesse contexto, alguma radicalização de fraturas

teóricas e políticas. Veja-se, a título exemplar, o depoimento de um Sílvio

Romero: “Não sou positivista; acho o contismo um sistema atrasado e

compressor, que faz uma figura apoucada ao lado do evolucionismo inglês

e do naturalismo alemão. Se de Comte saíram Littré e Laffitte, de Darwin

destacaram-se Spencer e Haeckel, e não vacilo na escolha” (444). Poucos

anos antes, mas traduzindo atmosfera idêntica, também Carlos von

Koseritz, em carta endereçada a Teófilo Braga, entende assumir-se

“darwinista convencido”, e, mais especificamente, “franco adepto da escola

de Jena, materialista científico”. Nesta ocasião, não se furta a presumíveis

desacordos de princípio decorrentes daquela opção: “Sei que v. [Teófilo] é

positivista e que como tal não partilha todas as minhas opiniões, não

obstante, porém, considerará o meu livrinho [apesar de que] nele nada há

de original, nada que não tenha sido dito por Moleschott, Haeckel, Huxley,

Buchner, Du Bois Raymond, Charles Vogt e outros” (445).

Teófilo conhecia bem estes autores e as propostas interpretativas

em causa. Por ocasião da morte de Charles Darwin, em 1882, em artigo

estampado nas páginas de O Ocidente, escrevera um texto inequívoco a 444 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio [1888], 1953, p.71. 445 Cartas de Carlos von Koseritz a Teófilo de Braga. Porto Alegre, 22 de Dezembro, 1884. In. BRAGA, Teófilo. Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900). Lisboa: Tipografia Lusitana, Editora Artur Brandão, 1902, p.210-211.

200

esse respeito. As teorias que giravam em torno da “evolução” ocupam,

naturalmente, o cerne das suas reflexões, das quais ressalta a incorporação

clara não apenas de uma linha interpretativa mas da “constelação de

discursos” disponíveis. Assim o vemos frisar que a ação da “exerceu-se do

modo mais geral e profundo na Europa por efeito das fecundas deduções

que veio a suscitar na compreensão do problema da vida subordinada à

forma da evolução orgânica, [sendo que a] Alemanha levou essas deduções

às eminentes concepções de Haeckel na Criação dos Seres Vivos, e na

Antropogenia, e de Shleiger sobre a aplicação da teoria transformista aos

fenómenos da linguagem” (446). Nesse mesmo texto, o vemos explicar

criteriosamente as pontes estabelecidas entre as hipóteses lamarckianas, as

teorias darwinianas e os deslocamentos spencerianos:

“Como nota Huxley, Lamarck não considerara a importância do fenómenoda luta pela existência, facto positivo donde Darwin tira a maior soma de deduções. […] Portanto o transformismo não é uma consequência da espécie, mas sim amodificação operada pelos movimentos materiais que procuram a sua direcção nosentido da menor resistência; uma vez achada essa direcção, o movimento resiste àsvariações acidentais do meio cósmico, e assim a força que fazia com que osorganismos se alterassem e se adaptassem, é a mesma que por seu turno mantém aestabilidade morfológica conservada pelo impulso da hereditariedade. Darwinrevolucionou todas as ciências biológicas, tirando-as da estreiteza descritiva doscoleccionadores, e dando-lhes um ponto de vista dedutivo. O seu método crítico fezum novo progresso na lógica, e a palavra evolução exprime o mais alto grau depositividade mental a ponto de para muitos espíritos se tornar a base de uma filosofia. Herbert Spencer aplicou à Moral a teoria de Darwin” (447).

Eis-nos perante um quadro de tendencia ao amálgama teórico, no

qual, a partir do estatuto referencial da obra de Darwin, o positivismo

heterodoxo convive, em graus de adesão diferentes, com o haeckelianismo.

Razão mais do que suficiente para explicar a disputa levantada, no âmbito

do relacionamento cultural luso-brasileiro, pela primazia na utilização do

monismo materialista, ou, numa outra tonalidade, pela primazia revelada

446 BRAGA, Teófilo. “Carlos Darwin”. In: O Ocidente. Lisboa, 5 (123), de 21 de maio de 1882, p.118. 447 Idem, ibidem..

201

quanto à disponibilidade para acolher as “ideias alemãs”. Este último ponto

dará azo a uma série de interferências Teófilo e Romero. A suposta

prioridade da Escola do Recife quanto à divulgação das interpretações

monistas – primazia levantada por um e recusada por outro – será, com

efeito, uma das contendas em causa.

Em carta endereçada a Fran Paxeco, que na altura residia em São

Luiz do Maranhã, escreverá o chefe do positivismo português, em Julho de

1900, sobre “às prioridades do germanismo, atribuídas a Tobias Barreto”

por Silvio Romero: “Se entendermos por tal o atrair as atenções para as

características do génio germânico, seja antes do Romantismo, seja em

consequência desse impulso literário, a nossa genealogia começa nos fins

do século XVIII; a marquesa de Alorna, precedendo Filinto Elísio,

tranduziu os cantos do Oberon, de Wieland; (…). Se, além dessa parte,

considerarmos os trabalhos da erudição germânica, em 1865 publiquei eu o

livro Poesia do Direito, em que estudo as manifestações das ideias

jurídicas sob a forma pitoresca e emocional dos símbolos, introduzindo no

método histórico os processos de Jacob Grimm; em 1867, com Os Forais,

mostrei as origens germânicas dos costumes ou direito consuetudinário dos

códigos foraleiros; quando sustentei esta tese, não sabia que a mesma

doutrina fora proclamada, em 1860, por D. Tomaz Muñoz y Romero, o

editor das Cartas Pueblas da Espanha; ainda em 1871, estampando as

Epopeias da Raça Moçárabe, ampliava a pesquisa das origens germânicas

às tradições poéticas do Romanceiro peninsular” (448).

Teremos oportunidade de nos deter sobre o alcance, para a nossa

investigação, dos trabalhos desenvolvidos por Teófilo nesta linha, muito

em particular os relativos ao moçarabismo. Para já, mais significativa se

revela outra linha de fratura: a que se levantava em torno da adoção das 448 BRAGA, Teófilo. Carta de 11/07/1900. Inserida em Fran Paxeco, Cartas de Teófilo (com umdefinitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.20-34. Acervo do Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro.

202

teorias monistas no seio do próprio campo cultural brasileiro, isto é,

opondo grupos alinhados não à escala transatlântica mas à escala regional

intra-brasileira. Trata-se de uma expressão clara do potencial demarcatório

exercido pelos postulados materialistas sobre as redes da heterodoxia e

sobre as linhas divisórias entre esta e a ortodoxia.

Por sua vez, em um texto intitulado “Considerações

Indispensáveis”, de 1892, Sílvio Romero manfesta o mesmo fenômeno,

advogando a proeminência nacional na divulgação das “ideias alemãs” da

Escola do Recife (449). Trata-se da introdução à sétima edição das Obras

Completas de Tobias Barreto, opúsculo onde expõe as circunstâncias que

teriam rodeado a introdução do monismo materialista. Segundo seu relato,

foi pela ação de Tobias Barreto “que essa corrente havia sido aberta em

nossas letras”. Por isso, prossegue, a divulgação da filosofia monista pela

Escola do Recife logo foi alvo de “escritores fluminenses, homens de

jornalismo da corte imperial”, que com humor e “com vistas ao ridículo,

chamavam a nossa tentativa: a escola teuto-sergipana”. Nada, porém, que

o impedisse a devolução da ironia, pois de pronto a ortodoxia positivista e

o abusado “francesismo” da corte carioca foi, em contragolpe sarcástico,

designada pelos pernambucanos de escola “galo-fluminense” (450).

O fato é disputas similares vulgarizavam-se, dando espaço ao

estabelecimento de círculos de influência, de competitividade e polêmica

visíveis ao nível das várias escalas de relacionamento. Uma atmosfera bem

identificada por Gilberto Amado, quando afirmava que, na Escola do

Recife, “quase todo o rapaz do meu tempo em Pernambuco era agnóstico,

darwinista, spencerista, monista”, pelo que, da mesma forma “como se 449 Veja-se, por exemplo, ROMERO, Sílvio, “A prioridade de Pernambuco no MovimentoEspiritual Brasileiro”, Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, pp.486-496.450 Silvio Romero revela ter sido o jornalista Carlos de Laet o autor da expressão “escola teuto-sergipana”. ROMERO, Sílvio, “Considerações Indispensáveis”. In: BARRETO, Tobias. Estudos Alemães. Volume VII das Obras Completas. [sem local]: Edição do Estado de Sergipe, 1926, p.XV.

203

ouve hoje, no Rio, perguntar: «Você é Flamengo ou Fluminense?» ouvia-se

na Faculdade, no velho convento, no Recife, perguntar «Você é monista ou

dualista?». Para simplificar, todo mundo era positivista, isto é, darwinista,

monista, fenomenista, evolucionista, mas ninguém propriamente prosélito

de Augusto Comte” (451). A descrição é expressiva. O fato é que todas essas

teorias – esse variado repertório teórico –, em suas diversas nuances e

distintas referências, acabaram por confluir, de um modo ou de outro, no

movimento de republicanização das sociedades portuguesa e brasileira,

fenômeno de máximo relevo na nossa escala de observação, onde o

republicanismo se situa entre os fundamentos teóricos inspiradores dos

debates sobre a relação histórica entre Portugal e Brasil.

3. Demarcação e historicidade: mobilizações republicanas

Que o republicanismo luso-brasileiro não tenha ficado alheio às

discussões, reorientações e demarcações teórico-doutrinárias de finais do

século XIX, para as quais, aliás, contribui, é realidade que não pode

surpreender e cujos contornos se encontram hoje devidamente estudados.

Afinal, aquela miríade de elementos teóricos que mobilizava diferentes

concepções sobre a “origem”, a “finalidade” e o “fim” da história (natural

e/ou social), mobilizava, em simultâneo, propostas eminentemente

políticas, sobretudo as que discorriam sobre os objetivos a serem

alcançados. Mas – sendo certo que a explicação do processo de mudança de

regime político envolve todo um variado complexo de fatores – o ponto

verdadeiramente fulcral, do ponto de vista da nossa pesquisa, encontra-se,

sobretudo, no modo como, no âmbito daquela atividade argumentativa e

daquele salto permanente entre ciência e política, os republicanos de um e 451 AMADO, Gilberto, Minha Formação no Recife. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1955, p.60-61.

204

de outro lado do Atlântico incorporavam a situação vivida pela outra parte.

Eis, pois, o nosso próximo passo analítico: avaliar o traço dialógico

produzido pelos republicanismos luso e brasileiro, tendo especial atenção

às referência a Portugal no movimento que se consumará no 15 de

Novembro brasileiro, e, de maneira análoga, à menção ao Brasil no

processo que desembocará no 5 de Outubro português.

Comecemos por observar estas questões a partir do processo de

mudança para o regime republicano no Brasil. O primeiro aspecto a reter é

o de que, num quadro de manifesta dispersão de propostas políticas e

influências teóricas (452), será a abolição do trabalho escravo que

verdadeiramente constituirá a causa congregadora das transformações

sociais ocorridas no Brasil no último quartel dezenovista. De fato, a troca

de regime, consumada no 15 de Novembro, veio a reboque da campanha

abolicionista – esta sim, deflagradora de entusiasmada reverberação social. 452 Quanto às relações entre o positivismo e o republicanismo, importa considerar, com AntônioPaim, que “a Igreja Positivista voltou as costas, deliberadamente, ao movimento republicano. Aproclamação da República apanhou-os de surpresa, conforme viria a proclamar o Apostolado, surpresa tanto maior diante da emergência de Benjamim Constant como sua principal figura”. Na verdade, como chama atenção Oliveira Viana, o positivismo ultra-ortodoxo do Apostolado, sob a chefia de Miguel Lemos, “não era uma doutrina de que emanassem eflúvios de sedução;dir-se-ia, ao contrário, era carregada de eletricidade negativa: não atraía, repelia. Nos seusdogmas, nos seus preceitos, nas suas regras, duras como tomentos de linho bravo, haviaqualquer coisa que recordava os ásperos cílios monacais, e os seus discípulos pareciam antesseveros Batistas, vestidos de pele, de cajado profético, macerados pelas rudes abstinências dodeserto”. Ora, diante do extremo rigorismo dos ultra-ortodoxos positivistas do Apostolado, amocidade que buscava alternativas à situação do país, inspirada pelo “bando de ideias novas”que lhes chegava da Europa, restava algo distante. Por isso, o que se observa é um acentuadocariz heterodoxo, dimanado pelos ares da frente cientificista. , consideração também abonadapor José Maria Belo, para quem, “as influências filosóficas e literárias que lhes trabalham overde pensamento não as levam forçosamente à idéia republicana. Para os escritores com osquais tinham iniciado o comércio do espírito pareciam secundárias as formas de governo. Oessencial era o liberalismo político, talvez de mais fácil desenvolvimento no ambiente dasmonarquias parlamentares. Daí, o pequeno entusiasmo dos intelectuais do fim do Império, iniciados na cultura universitária, pela República. Na mocidade militar, principalmente daEscola do Rio, onde lecionava Benjamim Constant, foi a filosofia de Comte, com as suas basesmatemáticas, a sua concepção primária dos fatos morais, o seu anti-misticismo, a sua forteinclinação dogmática e disciplinar, a grande influência doutrinária. Se para os racionalistas eevolucionistas das Academias civis a liberdade e a igualdade eram os supremos ideais, para ospositivistas, a autoridade disciplinadora a tudo se sobrepunha”. Cf. PAIM, Antônio. Históriadas Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL, 1997, p.556; VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2ª edição, 1925, p.123;BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.31.

205

Dito isto, reconhecer-se-á, todavia, a presença de outros fatores de não

desprezível influência nesta atmosfera de transformações. Está nesse caso,

a nosso ver, um tópico talvez nunca suficientemente realçado nas análises

do republicanismo brasileiro: a sua forte inspiração americanista. Vale a

pena equacionar esta questão com algum detalhe.

O Manifesto Republicano de 1870, logo nas suas formulações

iniciais, sustenta que “é legítima a aspiração que hoje se manifesta para

buscar em melhor origem o fundamento dos inauferíveis direitos da

Nação”. Ora, abre-se aqui uma linha de raciocínio do maior significado, na

medida em que a preocupação com a origem inaugura uma série de

mobilizações da história brasileira. É neste sentido que a “origem histórica

da fundação do Império” brasileiro é esgrimida, enquanto fonte de

resistências várias que, procurando “disfarçar a forma, mantendo [porém] a

realidade do sistema que se procurava abolir” (453), evocava afinal a

“persistência do despotismo colonial”, ou seja, dessa origem que urgia

ultrapassar. Compreensivelmente, postas as coisas nestes termos, a

propaganda para a proclamação da República tomava, também por esta via,

as cores de uma campanha pela verdadeira Independência do Brasil (454).

Não surpreende, assim, que o movimento republicano brasileiro

afirme que a democracia real não teria sido consumada no país, por mais

“liberal” que tivessem sido algumas quadras do reinado de D. Pedro II (455).

453 “Manifesto Republicano de 1870”. In: O Brasil no Pensamento Brasileiro. Introdução, organização e notas de Djacir Menezes. Rio de Janeiro: INEP, 1957, p.498-501. 454 Com José Maria Belo afirmámos que “é evidente que a Abolição marcou um grande passo namarcha final para a República; evidente também que foi decisivo o apoio dos militares. Entretanto, já eram tão fracas as raízes do Império, que qualquer incidente mais grave as exporiaao sol. No fundo, foram sempre republicanos os sentimentos brasileiros. A Monarquia era amoldura da ordem constituída, a velha tradição legalista e burocrática herdada de Portugal e quereceávamos partir. No dia em que se vencesse semelhante temor, ela teria vivido…”. BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.5. 455 Consultar História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II – O Brasil Monárquico. 1ºVolume: O processo de emancipação. Direção de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo/Rio deJaneiro: DIFEL, 1976. Principalmente os capítulos “Herança Colonial – sua desagregação” e “Afundação de um Império Liberal”.

206

O objetivo era propagar a ideia-força de que se a democracia

verdadeiramente triunfasse no Brasil “ficaria quebrada a perpetuidade da

herança que o Rei de Portugal queria garantir à sua dinastia” (456). Sob o

eco deste bordão demarcatório – voltado para um afastamento final relativo

à herança portuguesa no Brasil – vários eventos históricos são mencionados

justamente enquanto signos da sobrevivência do jugo colonial lusitano no

seio do Império brasileiro (Dissolução da Assembleia Constituinte de 1823,

Carta de 1824 outorgada, processo da “maioridade” de Pedro II, etc.).

A analogia entre República e Independência é nítida, mas não é a

única. Junto a ela sugere-se também a associação entre Centralismo e

Monarquia (leia-se colonialismo lusitano), à qual só se poderia opor de

forma conveniente, conforme defendia o Manifesto, a organização de uma

República Federativa no Brasil: “O regime da federação baseado, portanto,

na independência recíproca das Províncias, elevando-se à categorias de

Estados próprios, unicamente ligados pelo vínculo da mesma nacionalidade

e da solidariedade [será] o único capaz de manter a comunhão da família

brasileira” (457). Não é por acaso, assim. Que não se tenha feito qualquer

referência à idêntica proposta política de alguns positivistas portugueses.

Compreende-se o porquê. A federalização da República, para um Teófilo

Braga, por exemplo, vinha ao encontro da tradição do municipalismo

medieval lusitano. No Brasil, ao contrário, a mesma proposta política

chocava em linha direta com a tradição portuguesa, erigindo-se contra a

manutenção das práticas lusitanas na política nacional. O que também se

entende. Afinal, a evocação do nome de “Portugal” no âmbito das

“transformações” sociais brasileiras possuía, genericamente, uma

conotação precisa: o “passado” a ser superado. Este “detalhe”, que remete à

mobilização da história enquanto critério demarcatório da soberania 456 “Manifesto Republicano de 1870”. In: O Brasil no Pensamento Brasileiro. Introdução, organização e notas de Djacir Menezes. Rio de Janeiro: INEP, 1957, p.501. Grifos nossos. 457 Idem ibidem, p.498-514.

207

cultural, reforçou o cunho americanista (leia-se antilusitano) no processo

de fundação de um Brasil “regenerado”, através do reforço dos contornos

exclusivos da “família brasileira”.

Deste modo se entende que, no contexto brasileiro, o Manifesto

Republicano de 1870 também comporte uma dimensão de tentativa de

(re)fundação da soberania nacional, bradando em prol do sentimento

americanista: “Somos da América e queremos ser americanos. A nossa

forma de governo é, em sua essência e em sua prática, antinômica e hostil

ao direito e aos interesses dos Estados americanos. A permanência desta

forma tem de ser forçosamente, além de origem da opressão do interior, a

fonte perpétua de hostilidade e de guerras com os povos que nos rodeiam”

(458). Razão terá, por conseguinte, José Maria Belo, quando afirma que “o

mais curioso a notar-se no Manifesto de 70 é o despertar do que hoje já

podemos chamar sem ênfase, da coincidência americana. Se a derrocada

de Napoleão III é um exemplo que os republicanos brasileiros não

esquecem na crítica ao Império, o que mais lhes fere o sentimento é o

exotismo da Monarquia na comunhão republicana da América” (459). Eis-

nos, em definitivo, perante um vincado sentimento de demarcação cultural

através da oposição da escala americana relativamente à escala europeia.

Um exercício de diferenciação que parece, na verdade, decorrer em boa

medida do fato de que a republicanização brasileira significou uma vontade

de extirpar do corpo nacional “o imenso revestimento do estuque europeu”,

representado pela Monarquia – pelos laços de sangue que uniam o trono

lusitano ao brasileiro (460).

Atente-se, mais ainda, em que este postulado de “comunhão

americana” traz consigo um movimento obrigatório de redefinição, quando

458 Idem, ibidem, p.517. Grifos nossos. 459 BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.25-26. O grifo é meu. 460 Idem, ibidem, p.23.

208

não de abandono, de uma idealizada “comunhão luso-brasileira”: Uma

visão para a qual concorriam opiniões como as de Oliveira Martins (461),

Eduardo Prado (462) ou Eça de Queirós(463), cujos posicionamentos a este

respeito já atrás abordados e que, para além das diferenças, alinhavam pelo

diapasão da “comunhão de sangue” entre portugueses e brasileiros,

percepção esta sedimentada na compreensão do Brasil enquanto portador

da “seiva lusitana” nos trópicos. À luz do radicalismo que ressoava do

Manifesto e do lugar “pela negativa” atribuído a Portugal na

fundamentação republicana, bem se podem entender as reservas dos citados

intelectuais, os quais, na altura do 15 de Novembro brasileiro, receavam

pelo futuro das ligações luso-brasileiras. O certo é que o Brasil intentava,

no processo abolicionista e republicano, distanciar-se de Portugal,

assumindo autonomia cultural. Neste ponto – isto é, neste investimento de

demarcação histórica –, percebe-se a migração alegórica que transitou do

signo do “sangue” para a marca da “terra”, num processo por certo não

desconexo das influências do materialismo monista (que realçava o critério

do “meio”), através de uma autêntica “darwinização da crítica” (conforme a

expressão de Sílvio Romero). Buscava-se uma conformidade com os

demais povos americanos (republicanos) e, consequentemente, uma

461 Referimo-nos tanto às crônicas publicadas na Revista Occidental, em 1875, onde já aparece aexpressão “comunhão de sangue”, como aos artigos expressos nos jornais O Tempo, onde estãopresentes muitas críticas ao “erro” republicano cometido pela nação “neo-portuguesa” daAmérica. 462 Recorde-se que os artigos publicados por Eduardo Prado, na Revista de Portugal, em 1889 e1890, sob o pseudónimo de “Fredeirico de S”, deram origem a duas publicações: A ilusãoamericana, estampada em 1894 e Fastos da ditadura militar no Brasil, publicado em 1902, noBrasil. Estas obras foram confiscadas e censuradas pelo governo republicano brasileiro. Em1895, entretanto, veio à estampa uma segunda edição de A ilusão americana, publicada emParis, pela editora Armand Colin. Vale dizer ainda que A ilusão americana foi alvo de umapositiva recepção crítica, escrita por Moniz Barreto, estampada nas páginas da Revista dePortugal, de onde, aliás, saíram seus textos. Cf. BARRETO, Moniz. “Revista Literária: ‘Fastosda Dictadura militar no Brazil, por Frederico de S.’”. In: Revista de Portugal. Vol. III. Porto:Chardron, 1890. 463 Fazemos menção principalmente às opiniões manifestadas na Revista de Portugal, porocasião da Proclamação da República no Brasil, em 1889, já analisados anteriormente.

209

inescapável superação da tradição nacional (464). Deste modo, constata-se

que, em diversas frentes, o “passado a ser superado” era sinónimo da

relação com Portugal (fosse o braço escravo, que lembrava a exploração

lusitana, fosse a Monarquia, que significava a manutenção os “laços de

sangue”). Dir-se-ia que o Brasil, para demarcar-se de seu passado, fazia de

Portugal um ultra-passado.

Toda esta questão da demarcação histórica implícita no movimento

republicano brasileiro ganha maior clareza quando cotejada com o caso

português. É que, como se sabe, também os republicanos portugueses

buscavam demarcar-se do passado, ma medida exata em que buscavam

reinventar, na passagem para o regime republicano, um ideal a ser

alcançado. Só que, se este último, como não poderia deixar de ser em se

tratando do modelo republicano, coincidia com um ideal de positividade

cuja marcha da civilização tinha no caso francês seu referente, não é menos

verdade que ele autorizava que, em simultâneo, a construção da ideologia

464 Por isso, desde o findar da Guerra do Paraguai, o movimento de

ideias que renovou as mentes da juventude brasileira de 1870, tinha um

forte carácter nacionalista, que buscava retirar do país as peias que

lembravam o passado colonial e, assim, construir os fundamentos de uma

identidade nacional, política e cultural, que fosse única e original. Basta

lembrar o tom nacionalista agressivo dos textos de Sílvio Romero, na

Revista Brasileira, em 1879, como expusemos, ou os do crítico literário

Araripe Júnior que, na revista Lucros e Perdas, em 1883, desta forma

pregava aos seus: “desviemos os olhos das torpezas do Brasil, esqueçamos

o passado… vivamos um pouco iludidos no futuro”. ARARIPE JR., José.

Lucros e Perdas: crônica mensal dos acontecimentos. Por Sílvio Romero e

Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Livraria Contemporânea de Faro & Lino, 2ª

edição, junho, 1883.

210

republicana, em Portugal, se autoproclamasse “herdeira” do liberalismo da

Revolução de 1820. O que, face ao que pudemos apreciar para o caso

brasileiro, se apresenta como peculiaridade lusitana: uma não renegada

inspiração no passado nacional português – entendido como o parâmetro de

um liberalismo corrompido pelo cartismo que lhe sucedeu –, no seio de um

movimento dito renovador e modernizador. Na relação com o passado no

âmbito da mudança social residirá uma diferença entre os trajetos luso e

brasileiro, na medida em que, no Brasil, o “passado” (europeu) a ser

superado era o oposto das ambições (americanas) de futuro, enquanto que

por sua vez, em Portugal, o futuro (demo-liberal republicano) busca

recuperar a “tradição” do passado (o liberalismo vintista).

Os exemplos deste aspeto, principalmente quanto à mobilização do

passado pelo republicanismo português, colhem-se sem dificuldade, tendo

sido justamente estudados como expressão do elevado peso do vintismo no

republicanismo luso. Vale a pena recuperar, para a nossa exposição, essas

alusões, no sentido, fundamentalmente, de ressaltar o contraste de

pressupostos com a atrás enunciada situação do republicanismo brasileiro.

Veja-se, a este respeito, a interpretação de José de Arriaga, em A política

conservadora e as modernas allianças dos partidos políticos portugueses,

obra que, publicada em 1879, representa um ícone da mobilização

republicano em torno da “herança” de 1820 e da importância da unificação

das propostas republicanas: “é chegado o momento de lançarmos uma vista

rápida pelo passado, a fim de o interrogar acerca das vantagens e

benefícios, deixados até hoje, pela monarquia constitucional, talhada

segundo os princípios da escola doutrinária, e metida nas estreitas formas

da política conservadora”. A referência à ideia de “regeneração” tendo

como inspiração o passado vintista fica ainda mais clara quando Arriaga

afirma que “Portugal, decadente e empobrecido pelo regimen absoluto,

inimigo do progresso e das reformas, fez um esforço heróico, para libertar-

211

se dos vícios e defeitos de uma sociedade decrépita. Proclamou em 1820, e

com enthusiasmo, os princípios liberaes, a fim de iniciar com elles uma

política popular e nacional, a qual soubesse tratar com disvelo e solicitude

dos interesses públicos, até então despresados e esquecidos; e a fim de

achar n’elles a sua completa regeneração futura” (465). Considerações

como estas foram ecoadas por Manuel Emídio Garcia, que dizia ser a

Revolução de 1820 um “movimento político de feição acentuadamente

democrática”, representando “a expansão do comprido espírito liberal e das

tradicionais aspirações republicanas do povo português, que em futuro mais

ou menos próximo conseguirá reatar à memorável revolução de 1820 a

corrente da sua evolução política democrática, há setenta anos cortada pela

monarquia e seus sequazes” (466). Teófilo Braga, por sua vez, também

reverberava este posicionamento, ao dizer, na introdução à sua História das

Ideias Republicanas em Portugal, que “a história, determinando com

clareza o advento evolutivo das ideias democráticas, levará os espíritos

dirigentes à previsão da marcha para uma transformação política não

remota; e dessa previsão resultará uma maior coordenação de trabalho e

desse trabalho uma revivescência da nacionalidade” (467). Resuma-se, pois,

com o abono de Amadeu Carvalho Homem, dizendo ser “indesmentível

que o republicanismo apologético dará por sua a tradição democrático-

revolucionária, conferindo à revolução vintista uma relevância toda

especial e saudando o diploma constitucional de 1822 como a consagração

legal de uma nova vivência cívica e política” (468).

Por outro lado, convirá não deixar passar em claro, em matéria de

relacionamento luso-brasileiro de fundo republicano, o potencial de 465 ARRIAGA. José. A política conservadora e as modernas allianças dos partidos políticosportugueses. Lisboa: Imprensa de J.G. de Sousa Neves, 1879, p.459. Grifos nossos. 466 GARCIA, Manuel Emídio. “O que foi a revolução de 1820”, A Discussão, 1º ano, nº 218, 24de Agosto de 1884, p.1, col.3. Os grifos são nossos. 467 BRAGA, Teófilo. História das Ideias Republicanas em Portugal. Lisboa: Veja, 1983, p.15. 468 HOMEM, Amadeu Carvalho. A ideia republicana em Portugal: o contributo de TeófiloBraga. Coimbra: Minerva, 1989, p.236.

212

interferência que terá desempenhado, no espaço dos republicanos

portugueses, a proclamação da República no Brasil, em 1889. Não está em

causa, como é evidente, medir o grau dessa influência adentro do universo

de fatores normalmente associados ao caminho para a proclamação da

República em Portugal. Apenas se pretende chamar a atenção para alguns

focos de permeabilidade, se assim se pode dizer, a exemplo da importância

simbólica que parece poder reconhecer-se ao 15 de Novembro brasileiro na

Revolução do Porto de 31 de Janeiro de 1890 – evento tido

consensualmente como representante de uma maior radicalização do

republicanismo português (469) –, culminando com o regicídio de 1908 e a

troca de regime de 1910. Mesmo deixando de lado a proximidade

situacional transatlântica revelada pela entrada em cena dos militares no

movimento republicano, indicador de uma maior celeridade do movimento

e elemento passível de aproximação à experiência brasileira de

republicanização, o elo que estamos a sugerir pode ser observado nas

páginas da Revista de Portugal, principalmente em um texto de Luiz de

Magalhães intitulado “Revolta do Porto”, publicado em 1890. Nele, o autor

afirma que “dois factos importantes actuaram fortemente, de há um tempo

a esta parte, a favor da republicanização do paiz e do exército. Esses dois

factos, quasi simultâneos, foram a questão ingleza, com todos os seus

deploráveis episódios, e o exemplo da revolução brazileira” (470).

469 Esta inflexão radical do republicanismo português está presente, por exemplo, no programado Directório de 11 de Janeiro de 1891. A partir deste momento, pode-se dizer que a clivagementre federalista e unitaristas, bem como entre evolucionistas e radicais será superada no sentidode um consenso nacionalista. Conforme Fernando Catroga, este Directório “pretendeu conciliar, no essencial, os programas republicanos anteriores (unitarista e federalista), limitando-se asublinhar melhor a opção nacionalista e interclassista do ideal republicano e a acentuar afinalidade que, em última instância, sobredeterminava a sua estratégica: a consumação darevolução cultural que seria necessária para completar o processo histórico iniciado com oliberalismo, mas que somente a República poderia elevar-se a um estádio maior de perfeição”. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de Outubro de 1910.Coimbra: Faculdade de Letras, 1991, p.84. 470 MAGALHÃES, Luiz. “A revolta do Porto”. In: Revista de Portugal. Direcção Eça deQueiroz. Vol. III. Porto: Chardron, 1890, p.483. Grifos nossos.

213

Considera ainda que “o exemplo da revolução brazileira, d’essa rápida e

fácil mutação theatral de personagens e instituições, levada a effeito d’uma

manhã para uma tarde, apenas com meia dúzia de tiros de rewolver

trocados entre o barão de Ladario e a escolta do general Deodoro – fez

penetrar nas massas jacobinas a convicção de que tudo seria possível fazer-

se aqui, mais dia, menos dia, pelo mesmo processo; e conformou até certo

ponto o prudente burguez com a hypothese d’uma republica implantada em

idênticas condições”. E acrescenta ainda que “nesta corrente de ideias, o

partido republicano foi-se aproximando do exercito, que não repeliu, de

forma alguma, o seu contacto. Activou-se a propaganda, e iniciou-se por

fim a conspiração” (471). Conspiração esta que, com se sabe, resultou em

fracasso, tratando-se, antes, nas palavras de Luiz de Magalhães, de “uma

espécie de sangrenta paródia ao 15 de novembro brazileiro” (472).

Para lá da maior ou menor interferência deste sucesso nos rumos

tomados pela radicalização do republicanismo português até ao 5 de

Outubro de 1910, é possível descortinar, do ponto de vista que temos vindo

a perseguir, que a Proclamação da República no Brasil, em 1889,

perturbava (sob os aplausos de uns e o receio de outros) a manutenção e o

significado da “obra portuguesa na História”, representando o perigo de

desagregação “da obra lusitana” na América. E nem será preciso somar a

este fato o célebre Ultimato Britânico e suas sequelas traumáticas para se

tornar evidente que, em uma tal conjuntura, se tenda a proceder a uma

reavaliação das memórias nacionais por parte de cada um dos lados do

Atlântico. Estamos diante, portanto, de num processo de mobilização das

historicidades. Uma conjuntura em que, a par das demarcações cientistas e

justamente com apoio nelas, se demarcavam de igual modo as matrizes

identitárias e o processo de construção histórica das culturas nacionais.

471 Idem, ibidem, p.484. 472 Idem, ibidem, p.490. Grifos do original.

214

III – ESCALAS IDENTITÁRIAS: A PROBLEMÁTICA DA

ORIGINALIDADE.

Convocadas tanto pela ampla frente cientista heterodoxa – onde se

amalgamavam o positivismo littreísta, preceitos do darwinismo, do

materialismo monista e do spencerianismo –, como pelas politizações da

memória processadas no âmbito do republicanismo, a história e, de modo

geral, a matéria da “temporalidade”, revelar-se-ão, mesmo quando

mobilizadas a partir de diferentes pressupostos teóricos, eixo incontornável

das estéticas de recomposição identitária desenvolvidas pelas culturas

portuguesa e brasileira em finais de Oitocentos e na entrada da centúria

seguinte. Sabendo-se que esses complexos processos de redefinição

memorial confluem, nessa altura, num tendencial reforço de leituras

nacionalistas por parte dos intelectuais envolvidos, percebe-se não só a

importância então conferida, no espaço de debate luso-brasileiro, ao

problema maior da “originalidade” – tornado, a nosso ver, a verdadeira

placa giratória da questão identitária – como se percebe também o motivo

da centralidade da história nesse debate. São justamente estes aspectos que

nos propomos equacionar nesta III Parte.

O nosso propósito encontra concretização em duas frentes de análise: através

de uma delas, dá-se conta da tensão entre as noções de “herança”, nomeadamente nas

derivações brasileiras oriundos do lastro lusitano na leitura de J. P. de Oliveira Martins

ou na leitura deste mesmo lastro como “mal de origem” conforme o entendimento de

Manoel Bonfim; noutra frente, analisa-se a questão da “originalidade” na decorrente

215

concorrência da forma híbrida como chave de leitura de estéticas vinculadas ao

moçarabismo português, em Teófilo Braga, e ao projeto da mestiçagem brasileira, em

Sílvio Romero. Esta segunda linha analítica comportará, ainda, uma indagação

exploratória sobre o acolhimento desta disputa à escala regional interna brasileira. Em

qualquer dos casos, tratam-se de indicadores das mobilizações da história e do sentido

do potencial relacionamento luso-brasileiro.

Independentemente do fato das obras de Oliveira Martins e Teófilo Braga,

sobretudo seu caráter matricial para o entendimento de padrões culturais nacionais,

terem sido já bastante explorado, pela historiografia portuguesa (473), assim como, no

caso brasileiro, o papel de Sílvio Romero ter sido mais enaltecido que o de Manoel

Bomfim (474) – cumpre lembrar, no entanto, que Maria Tétis Nunes,já tenha chamado

atenção para o fato de serem ambos os “pioneiros” da “ideologia nacional” brasileira

(475) –, é a disponibilidade destes autores para tipificarem determinados modelos de

reflexão sobre a escala luso-brasileira propriamente dita, juntamente com a

representatividade que se lhes reconhece enquanto expressão, cada um a seu modo, de

outros tantos alinhamentos teóricos e políticos relativos ao mesmo assunto, que

justifica, a nossos olhos, a sua eleição como indicadores da pesquisa (476).

Seja-nos permitido um ajuste teórico prévio. A nossa abordagem da

questão assenta-se em três vias de reflexão sobre a temática identitária. A

primeira é a que, estando atenta ao carácter negociado das identidades 473 Veja-se, a título de exemplo, CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer de. Sociedade e Cultura Portuguesa II Lisboa: Universidade Aberta, 1996; CATROGA, Fernando, TORGAL, Luis Reis e MENDES, José Amado. História da História em Portugal, volume 1 –A História através da História. Lisboa: Temas e Debates, 1998; HOMEM, Amadeu Carvalho, Do romantismo ao realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fund. Eng-ºAntónio José de Almeida, 2005; SARAIVA, António José. A Tertúlia Ocidental: estudos sobreAntero de Quental, Oliveira Martins e outros. Lisboa: Gradiva, 2ª edição, 1995; LOURENÇO, Eduardo. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999;MAURÍCIO, Carlos. A invenção de Oliveira Martins: política, historiografia e identidadenacional no ‘Portugal Contemporâneo’ (1867-1960). Lisboa: INCM, 2005; PONTE, CarmoSalazar, Oliveira Martins. História como tragédia. Lisboa: INCM, 1998. 474 Assinale-se, a título informativo, que, recentemente, a Editora Topbooks, do Rio de Janeiro, vem reeditando a obra de Manoel Bomfim. 475 NUNES, Maria Tétis. Silvio Romero e Manuel Bomfim: pioneiros de uma ideologianacional. Aracaju: Cadernos da UFS, n.º 4, [s.d.]. 476 Lembre-se, entretanto, que a esfera relacional de alguns destes autores “luso-brasileiros” jáfoi sugerida. Veja-se, por exemplo, os trabalhos de Paulo Franquetti e o extenso rol de estudosapresentado no II Congresso Tobias Barreto, dedicado às aproximações e distanciamentos entreas obras de Sílvio Romero e Teófilo Braga. Sobre estes dois autores, consultar tambémBORGES, Paulo E. A. O Pensamento Atlântico: estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro. Lisboa: INCM, 2002.

216

coletivas e à incómoda não coincidência entre as estratégias de

consolidação identitária e os respectivos esforços de legitimação, distingue

os conceitos de “fundação” e “fundamento”: “fundação e fundamento

pertencem ambos ao registo da evidência mas o fundamento é o lugar do

excesso enquanto que a fundação, ou as actividades fundadoras do espírito

[…] se acham associadas à procura dessa inteligibilidade primordial que

nos aparece como uma exigência indeclinável” (477). Trata-se, neste ponto,

de perceber o nível epistêmico da matéria de consolidação de leituras

identitárias. A segunda via é a que, remetendo à centralidade das leituras da

história nestes processos identitários, bem como ao potencial demarcatório

das delimitações culturais a ela vinculados , adverte que “a história,

convocada e manipulada com intuitos probatórios, surge, neste contexto,

menos como mapa cognitivo da memória do que como arena” (478). Eis-

nos, neste patamar, vinculados ao apelo concorrencial e competititivo

brotado quando são surpreendidas diferentes leituras da historicidade

fundando padrões de relacionamento divergentes. A terceira, por fim, é a

que está atenta ao lugar da história no contexto oitocentista e, assim sendo,

ao modo como deve entender-se a sua mobilização pelos diferentes credos

teóricos, o que recorda que “quer a razão científica, quer a razão filosófico-

histórica constituíam duas expressões da mesma razão prognóstica e

instrumental moderna” (479). Ora, visto que qualquer um destes patamares

teóricos subentende a presença de uma estética da temporalidade nos

processos identitários, justifica-se que, antes de desenvolvermos as linhas

de inquérito previstas, façamos algumas considerações a esse nível em

relação ao caso luso-brasileiro na conjuntura que nos ocupa.

477 GIL, Fernando. Modos de evidência. Lisboa: INCM, 1998, p.401. 478 MARTINS Rui Cunha. “A Arena da História ou o Labirinto do Estado? Delimitaçõesintermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. Cadernos do Noroeste, 15 (1-2), 2001, pp.37-56. 479 CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.122.

217

1. A obsessão temporal da alteridade luso-brasileira.

No final do século XIX, o entendimento da história como “ciência

concreta” cohabita com o seu entendimento enquanto “força abstrata”, do

mesmo modo que o seu entendimento como consumação de leis universais

não anula a sua leitura enquanto manifestação do espírito do povo. Em

1891, J.P. de Oliveira Martins considerava que “a arte de escrever a história

está atravessando um período de transformações” (480). E estava mesmo.

Em 1871, Antero de Quental, no início de Causas da decadência dos povos

peninsulares nos últimos três séculos, propunha, frente a um irrefutável

quadro de decadência (481), que tal como “o pecador humilha-se diante do

seu deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado, [seja feito

por] nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos

nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e

regenerar” (482).

De toda a significância parece-nos o fato de a contrição não ser

mais perante um Deus todo-poderoso – a reverência devia ser feita perante

a História da Humanidade. O que se compreende. Das lições do passado

surgiriam respostas para a regeneração futura. Eis o bordão comum.

Vigente no interminável debate estruturado sobre os conceitos gêmeos de

480 MARTINS, J. P. de Oliveira. “Advertência”. In: Os Filhos de D. João I. Lisboa: EditoraUlisseia [1891], 1998, p.33. 481 A noção de “decadência”, como se sabe, foi utilizada como categoria de análise histórico-cultural pela Geração de 70 portuguesa. Sua utilização remete ao par “progresso-decadência”, significando uma depreciação crítica fortíssima de alguns segmentos intelectuais portugueses aocompararem-se com os ícones de desenvolvimento moderno dos países da Europa ocidental ecentral (França, Alemanha, Inglaterra, principalmente). Este cotejar histórico-cultural filia-senum entendimento caro às filosofias da história – entendidas como a consumação do progressoe do crescente esclarecimento – aliada à tonalidade naturalista do contexto em questão – maisespecificamente no tocante ao paralelo organismo-sociedade. Para as várias manifestações destaestética cultural em Portugal ver PIRES, António Machado. A ideia de decadência na Geraçãode 70. Lisboa: Vega, 2ª edição, 1991. Para um entendimento de sua relação com as filosofias dahistória do século XIX, consultar CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003. 482 QUENTAL, Antero de. Causas da decadência dos povos peninsulares. In: Carlos Reis. AsConferências do Casino. Lisboa: Alfa, 1990, p.95. Grifos nossos.

218

progresso e decadência (483), estava a convicção, partilhada tanto por

Antero quando Oliveira Martins, de que o inquérito ao passado – e o

“tribunal da história” – apontariam as respostas para o re-surgimento

nacional projetado. Este “tribunal” (484), organizado pela Razão através do

estudo do passado, será o locus privilegiado da “contrição” do autor das

Odes Modernas (485), bem como estará também vinculado à “lição moral”

ensinada pela história, como considerava o autor de Os Filhos de D. João I

(486). É verdade que a criticidade exacerbada pelo “decadentismo” anteriano

e Martiniano (487) nos remete às filosofias da história do século XIX (488),

483 Veja-se o verbete “decadência”, escrito por Joel Serrão, do Dicionário de História dePortugal. Lisboa: Iniciativas editoriais, 1963. Indicamos, também, o Dicionário da Geração de70, direcção de Guilherme de Oliveira Martins e Ana Maria Alves, a ser editado pela EditoraPresença. 484 Como diz também Koselleck : “l’histoire du monde est le tribunel du monde”. KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé: contribuition a la semantique des temps historique. Paris : Éditions de EHESS, [1979] 1990, p.50. 485 Não surpreende que, por ocasião da reedição de O Crime do Padre Amaro, em 1880, Anterode Quental tenha feito o seguinte comentário sobre a História de Portugal de Oliveira Martins, lançada no ano anterior: “Já leu a História de Portugal de Oliveira Martins? É o que se chamauma revelação. Eu cá, depois de a ler, conclui que até aquele momento não fazia ideia nenhumada história desta terra. Olhe que é gráfica e pitoresca. O homem, meu caro Queiroz, é a únicacoisa realmente a valer que temos aqui”. Carta de Antero de Quental a Eça de Queiroz In:QUEIRÓS, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Cenas de uma vida devota. Edição de 1880, revista pelo autor, precedida de uma carta inédita de Antero de Quental. Lisboa, Edição Livrosdo Brasil, 1880. 486 A estética identitária do “Tribunal da História” condicionou, por certo, o “retrato” identitáriode Portugal, explícito em sua História de Portugal. Trata-se, como já explicou FernandoCatroga, de um dos pontos de contacto entre o ideário martiniano e o anteriano, pois os autores, “apesar das diferenças […] acabaram por tecer um destino geminado pelo pessimismo e pelofracasso”. CATROGA, Fernando, O Problema Político em Antero de Quental. Um confrontocom Oliveira Martins. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidadede Coimbra, 1981, p.138. 487 Várias são as aproximações possíveis entre a perspectiva histórica de Antero de Quental eOliveira Martins. A este título, permitimo-nos tão-só evocar aqui, em termos emblemáticosdesse relacionamento, o fato de o título da palestra de abertura das Conferências do CasinoLisbonense, conforme já foi aqui mencionado, As Causas da Decadência dos PovosPeninsulares, de Antero de Quental, ser também guardado como título de um importantecapítulo da significativa História da Civilização Ibérica, obra que Oliveira Martins estampa em1879, portanto, 8 anos depois da conferência anteriana (e recorde-se, ainda, que, na mesma obra, em capítulo intitulado “As Ruínas”, Oliveira Martins fará uma longa citação justamente docélebre opúsculo de Antero de Quental). Entretanto, para a cabal elucidação das relações entreas ideias de Antero e Oliveira Martins, consultar CATROGA, Fernando. O Problema Políticoem Antero de Quental. Um confronto com Oliveira Martins. Coimbra: Centro de História daSociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981. 488 Conforme Karl Löwith, “o termo «filosofia da história» foi inventado por Voltaire, que oaplicou pela primeira vez na sua acepção moderna, distinta da interpretação teológica da

219

representantes de sucessivas tentativas de “entificação da história da

humanidade” (489) e de uma remissão permanente das ideias para os

respectivos ícones abstractos, num contexto onde “les libertés deviennent la

Liberté, les droits deviennent le Droit, les progrès deviennent le Progrès, et

les révolutions plurielles deviennent «la Révolution»”(490). Uma batuta

universalizadora do sentido da história – feita trajecto de uma humanidade

ascensional e “sujeito” da modernidade –, que acabava por manifestar-se

num movimento de homogeneização iluminista, ou “à la Voltaire”, como

cedo se apercebeu um incomodado Herder (491). Mas, por outro lado, se nos

casos de Antero (492) e Oliveira Martins a leitura da transitoriedade coletiva

portuguesa foi entendida como degradação, isso ficava a dever-se à

convicção de um sentido manifesto na relação entre o conhecimento do

passado, seu uso no presente e sua referencialidade para efeito de um

projetado futuro, sentido esse que, entendido como “lição”, constaria

precisamente do magistério da história (493).

história. No Essai sur les moeurs et l’esprit des nations, de Voltaire, já não predomina oprincípio da vontade de Deus e da providência divina, mas da vontade do homem e da razãohumana”. LÖWITH, Karl. O Sentido da História. Lisboa: Edições 70, [1948] 1990, p.15. 489 CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003, p.64. 490 KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé: contribuition a la semantique des tempshistorique. Paris : Éditions de EHESS, [1979] 1990, p.47. 491 Herder, com fina ironia, criticava “o olhar de toupeira deste século iluminadíssimo”. Emoposição à universalidade da Razão e de sua marcha histórica, Herder chamará atenção para asoriginalidades nacionais, as idiossincrasias da natureza enquanto a manifestação da diversidadeda obra do Criador. HERDER, Johan Gottfried. Também uma filosofia da história para ahumanidade. Lisboa: Antigona, [1774], 1995, p.8-10. 492 Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho de um poema de Antero de Quental dedicado “ÀHistória”, inserido nas Odes Modernas de 1865: “Fecha os olhos… que os passos da visão / Nãodeixam mais vestígios do que o vento! / Tu, que vais, se te sofre o coração / Vira-te para trás…pára um momento… / Dos desejos, das vidas, nesse chão / Que resta? Que espantosomonumento? / Um punhado de cinzas – toda a glória / Do sonho humano que se chamaHistória” QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Vega, 1994, p.27. 493 A Historia magistra vitae, ao estilo ciceroniano, é relativa ao contexto da retórica antiga, referindo-se aos modelos helênicos do tempo e da experiência. Conforme explica Koselleck, “latâche dominante, que Cicéron confère ici à la science historique, est avant tout axée sur ledomaine pratique, dans lequel l’orateur exerce son influence. Il se sert de la l’histoire, Historia, comme d’un recueil d’exemples – plena exemplorum est historia, afin d’instruire grâce à eux, etce d’une manière certainement plus vigoreuse que Thucydide lorqu’il soulignait l’utilité de sonouvrage en le confiant aux génération futures comme leur bien inextinguible, afin de qu’elles y

220

Dada “a índole retrospectiva e universalista das filosofias da

história”, sucedia, como explica Fernando Catroga, que “mesmo quando o

elo entre os antecedentes e consequentes se restringia ao causalismo

material e eficiente (como sucedia, em boa parte, no discurso

historiográfico), todos aqueles eram transformados em meios, tendo em

vista a realização de um fim. Dir-se-ia que eles punham o efeito como

causa de suas causas, ilação que permite concluir que os seus intuitos de

previsibiliade constituíam, em última análise, uma “espécie de previsão ao

contrário” (Schlegel)”. Em síntese, prossegue o mesmo autor: “o velho

preceito ciceroniano historia magistra vitae, mesmo quando se afirmava o

inverso, estava a ser objectivamente revisto, pois, se ele se adequava a

mentalidades imbuídas de uma visão cíclica do tempo, ou crentes no cariz

a-histórico da natureza humana, tal não ocorria com a aceitação da

irreversibilidade. Se nada se repete, que utilidade poderiam ter as lições do

passado? Ora, a resposta não foi negativa pelas razões apontadas: a

perspectiva diacrónica continuou a ser invocada, porque as estratégias de

convencimento das narrativas históricas, estruturadas segundo a lógica

antecedente consequente, não podiam explicar a sequência do eixo

temporal a partir do efeito, que elas mesmas procuravam demonstrar” (494).

Não surpreende, assim, que, podendo embora dizer-se que a memória,

"dans une dimension historique, s'est montré moins comme un acquis que

comme un fardeau" (495), terá sido igualmente certa, mesmo assim, a

percepção de que a aprendizagem dos “erros” cometidos no passado

prissent connaissance de cas semblables aux leurs”. KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé:contribuition a la semantique des temps historique. Paris : Éditions de EHESS, 1990, p.39. 494 CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003, p.78. 495 BARASH, Jeffrey Andrew. "Les sources de la mémoire". In: Revue de Métaphisique et deMorale, janviers-mars, 1999, n.º 1, p. 147. Evoque-se, com idêntico sentido, Paul Ricoeur, quando afirma que "a memória coletiva é o verdadeiro lugar da humilhação, da reivindicação, da culpabilidade, das celebrações, portanto, tanto da veneração como da execração". RICOEUR, Paul. "Dever de memória, dever de Justiça". In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção. Conversas com François Azouvi e Marc De Launay. Lisboa: Edições 70, 1997, p170.

221

comportava em si mesma a esperança na regeneração da coletividade

nacional.

Estas considerações ajudam a melhor entender os planos de

intersecção e questionamento entre uma compreensão do tempo e da

História que busca nas “cinzas” do passado as causas da decadência

(portuguesa) num sentido prospectivo de sua regeneração como progresso e

os critérios de compreensão do cientismo historicista, muito difundidos

pelas ciências da natureza e pujantes nas nascentes Ciências Sociais. A

respeito destes últimos, basta evocar, por exemplo, o modo como a poesia

cientificista de um José Isidro Martins Júnior – intelectual brasileiro então

conhecido em Portugal (496) – trata de frisar as diferenças existentes entre a

concepção metafísica do tempo própria das filosofias da história e a

compreensão alternativa dada pela visão cientista da história(497), ou, na

496 Como já expusemos na primeira parte deste trabalho, estava impresso, na contracapa darevista O Positivismo, o recebimento da obra de José Isidro Martins Júnior, Vigílias literárias(bem como a Oração fúnebre de António Cândido da Costa), a qual beneficiaria de umarecensão-crítica favorável nas páginas dessa revista e nas da Revista de Estudos Livres, ondechega mesmo a publicar um artigo (A função histórica da economia política). O Positivismo:revista de filosofia. Primeiro Ano, n.º6, Agosto/Setembro, 1879, Contracapa. In: O Positivismo:revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal deMagalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p. Assim se manifestaTeixeira Bastos: “Este livro é um brado de defeza a favor da poesia scientifica e philosophica, que tão impugnada tem sido pelos sectarios da arte pela arte e por todos aqueles quedesconhecem a evolução esthetica, chegando a affirmar alguns a incompatibilidade da poesiacom os progressos da nossa civilisação. Basta ser este o fim do auctor, um moço intelligente e oiniciador da poesia scientifica no Brazil com as suas Visões de hoje, para que o seu trabalhomereça toda a nossa sumpathia e applauso, embora discordemos d’elle n’um ou n’outro pontosecundario. O snr. Martins Junior estuda o assumpto debaixo de um ponto de vista geral sem sepreoccupar com as pequeninas vaidades de nacionalidade, ao contrario do que infelizmentesuccede com a maioria dos seus patrícios”. BASTOS, Teixeira, Secção Bibliographia – “Apoesia cientifica (Escorço de um livro futuro), por Izidoro Martins Junior. Recife, 1883, 73pag.”, Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884). 1884, pp.479-480. 497 Em 1881, Isidro Martins Júnior publica Estilhaços, As visões de hoje, obra onde propagou a“poesia científica”. Neles, deixou-nos um excelente exemplo das, de onde se sustenta a CiênciaSocial. Vejamos o trecho do seu poema Síntese Científica: “Mas só Comte / Pôde, estóico, escalar o alevantado monte / No píncaro do qual via-se a neve branca / Da Nova concepção domundo reta e franca! / Deixando embaixo Kant, Simon, Burdin, Turgot, / Newton e Condorcet eLeibiniz, – voou / Ele para as alturas mágicas da glória. / Após ter arrancado ao pélago daHistória /A vasta concha azul da Ciência Social!”. MARTINS JÚNIOR, José Isidro. “SínteseCientífica”, citado por Veríssimo, José (1857-1916). História da Literatura Brasileira: de BentoTeixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912], 1998, p.251.

222

mesma linha, as poesias de Teófilo Braga, Visão dos Tempos, de 1864, e de

Sílvio Romero, Cantos do fim do século, de 1878 (498). Em todos estes

autores, o projeto de uma sistematização da vida coletiva – manifesto no

conceito de sociedade – buscava tecer uma colcha de certezas legitimadas

por leis universais que tiravam de cena algo muito caro ao acento de

imprevisibilidade das filosofias da história – o acaso –, noção de difícil

utilidade para uma compreensão sistemática da existência humana (499).

Preferia-se-lhe, ao invés, uma segura máxima cientista – saber para prever

e prever para saber – feita solo-comum das tentativas de cientifização da

história (500). Em qualquer dos casos – e este aspecto é para nós da maior

498 Esta relação entre Isidro Martins, Teófilo e Romero, foi diagnosticada pelo seucontemporâneo José Veríssimo, não sem uma estocada crítica, bem ao gosto da época:“acompanharam-no, com efeito, outros moços tão pouco reflexivos e tão pouco poetas comoele. Apenas menos declaradamente seguiu a corrente, a que afluíam também caudais da Lendados Séculos, de Vítor Hugo, e da Visão dos Tempos, do Sr. Teófilo Braga, o Sr. Sílvio Romero(Cantos do fim do século, Rio de Janeiro, 1878). Pelo nome que justamente adquiriu nas nossasletras, e pela sua mesma obra poética desta errada tendência, foi talvez Sílvio Romero o maisconsiderável destes poetas. Sem nenhuma superioridade, mas também sem tamanhainsuficiência quanto lhe assacaram, versificou noções científicas, pensamentos filosóficos, conceitos históricos, opiniões sociais com mais ardor que sucesso. Esta poesia científica de queMartins Júnior se fizera arauto (Poesia Científica, Recife, 1883), e que pouco mais cultores tevealém dele e do Sr. Sílvio Romero, e nenhum certamente credor de estimação, era ainda, pormuitos aspectos, um remanescente do condoreirismo”. VERÍSSIMO, José (1857-1916). História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912], 1998, p.251. 499 Lembre-se que na classificação e hierarquização das ciências feita por Augusto Comte, aSociologia ocuparia o lugar cimeiro, posto que representaria, na perspectiva positivista, ummovimento de cientifização da compreensão do homem (noção de que é tão tributário oconceito de “sociedade”), substituindo, assim, as “filosofias da história” de cariz assumidamentemetafísico. 500 Veja-se, sobre este saber para prover, as considerações de Fernando Catroga, no trabalhoCaminhos do Fim da História, que temos vindo a citar (consultem-se, em especial, as pp.118-123). Entretanto, recorde-se o que, a este respeito, diz Émile Littré: “l’histoire était un domaineoù la théologie et la méthaphysique pouvaient se croire trionphantes. Elle montrait les religions, qui, révélées par une puissance surnaturelle, enseignaient aux hommes, sans contestationtolerée, ce qu’ils devaient croire de leur origine et de leur fin. A côté des religions s’élévaientles grandes écoles métaphysique, qui, elles aussi, avaient leur droit divin dans l’autonomie oul’impersonnalité de la raison. La sociologie a changé tout les points de vue. En démontrant quel’histoire ou civilisation est une évolution qui commence par les états les plus élémentaires pourparvenir aux plus compliqués, elle a placé les religions et les métaphysiques sous la conditionscommune des conception humaines, c’est à dire sous la condition commune d’être des fruits decertaines saisons sociales, sans rien qui les distingue du reste comme origine et commedestination. Les divers absolus sont venus se fondre, ainsi qu’une cire molle, en ce creuset ; et iln’est plus resté qu’un immense relatif qui embrasse tout”. LITTRÉ, Émile. “Que penser de la

223

importância –, “tanto as filosofias da história como as ciências eram

suportadas pela crença comum na racionalidade do universo e na

capacidade que a razão humana teria para a decifrar. Simultaneamente,

ambas prometiam uma capacidade de previsão que iria aumentar o poder

do homem sobre a natureza e sobre o seu próprio futuro: quer a razão

científica, quer a razão filosófico-histórica constituíam duas expressões da

mesma razão prognóstica e instrumental moderna” (501).

Nesta acepção se explica que a centralidade do critério histórico no

processo de demarcação identitária (502), encontre expressão tanto nas

“filosofias da história” – que buscavam no passado as “lições da História”

no sentido de orientar a construção de um futuro projectado –, quanto na

aplicação das leis universais e invariáveis que emprestavam concretude e

“certeza” à vida em sociedade – através dos conceitos de “raça” e “meio”,

como no monismo materialista, por exemplo. É a partir de um recurso, com

frequência cruzado ou sobreposto, a estes dois critérios de mobilização da

história que vão sendo demarcadas as estéticas identitárias “brasileira” e

“portuguesa”.

désuétude qui gagne les spéculation concernant l’origine et la finalité du monde et de sesêtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.156. Grifos nossos. 501 CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.122. 502 Não deixa de ser curioso que a maioria das teorias sobre a formação das nacionalidades e dosnacionalismos tenha dado pequena atenção à importância da mobilização da história enquantoagente demarcador da escala cultural de referência – a nação. Parece que o motivo destadesatenção está na consideração tácita de uma evidência – a existência das coletividadesenquanto nação – ao invés de surpreendê-la em seu momento de fundação simbólica, derenegociação identitária, de fundamentação histórica. Veja-se, por exemplo, GELNER, Ernst. Dos Nacionalismos. Lisboa: Teorema, 1998; HASTINGS, Adrian. SMITH, Anthony. Laconstrucción de las nacionalidades. Madrid: Cambridge University Press, 2000; HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1991; ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e aexpansão do nacionalismo. Lisboa: Edições 70, 2005, entre outros.

224

2. A Herança e o Mal de origem: a lição da história (e sua inversão).

Coloquemos então um primeiro nível de reflexão. Justifica-o a

percepção da eficácia analítica que pode resultar de um estudo comparado

entre o trajeto do português Oliveira Martins e do brasileiro Manoel

Bonfim, autores para os quais um estudo descuidado pode limitar-se à

verificação do muito que neles há de comum, quando, ao que tudo nos

indica, é muito mais ao nível das interpretações diferenciais por eles feitas

a partir de matéria de certeza comum, aquilo que importa elucidar (503).

Começaremos por Oliveira Martins (504), Seguiremos com a observação da

obra de Bonfim e, depois, será altura de medir as direções tomadas por

cada um deles a propósito do relacionamento entre as culturas brasileira e

portuguesa. A “herança” (portuguesa) e “mal de origem” (brasileiro)

representam caminhos opostos de resolver um impasse hermenêutico ao

qual a “lição” da história a ambos conduzira.

2.1. A visão martiniana sobre o significado do Brasil e de um âmbito

luso-brasileiro de referência pode deduzir-se da sua visão de sua História

Universal, da História da Civilização Ibérica e da História de Portugal

enquanto parcela desta. Contudo, um ano após ter publicado sua História

de Portugal, editada em 1879, Oliveira Martins traz a público um livro

onde trata especificamente deste assunto: O Brasil e as Colónias

Portuguesas, de 1880. Nele, afirma o autor que, desde o início da

503 Uma primeira incursão sobre estas questões pode ser vista em PAREDES, Marçal de M. “História e Escala ou o Brasil e a identidade portuguesa: um estudo sobre J.P. de OliveiraMartins”. Ágora. Vol.11, n.1. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, p.281-293. 504 A importância da estética identitária portuguesa construída por J.P. de Oliveira Martins podeser facilmente observada pela constante releitura sofrida por sua obra pelas diversas gerações deintelectuais portugueses que buscavam refundar a nação. Para uma análise das leituras da obramartiniana, veja-se o interessante estudo de MAURÍCIO, Carlos. “O falso Portugal de OliveiraMartins”. Ler história, 38 (2000), pp.57-86. Ver também RAMOS, Rui. A Segunda Fundação(1890-1926). História de Portugal. Volume VI -. Direcção Geral de José Mattoso. Lisboa:Editorial Estampa, 2001, principalmente o capítulo “A Invenção de Portugal”, p.495-518.

225

colonização portuguesa do Brasil, se notam delineamentos e limites

internos diferenciados na colônia brasileira: tanto que as diferenças entre

Norte e Sul seriam matriciais quer para o desenvolvimento do período

colonial – onde essas regiões desenvolviam, cada uma a seu modo, um

modelo não coincidente de distanciamento do centro metropolitano do

Império Português –, quer relativamente à Independência brasileira (505).

Veja-se, desde logo, o que diz o autor: “apresentam-se-nos, na América

portuguesa, como duas grandes províncias, cuja história é diversa, porque

os seus caracteres naturais e adquiridos foram diferentes até a unificação

selada com a independência. Já anteriormente notámos esta diversidade que

se evidenciava desde os primeiros tempos coloniais entre o Norte e o Sul

do Brasil”. Uma diversidade consequente, pois que essas “duas colónias

então extremas […], depois vieram a ser o coração dos dois Brasis do XVII

século, em Santos (S. Paulo) ao sul, e em Pernambuco, ao norte” (506).

Logo se vê que, desde logo, as diferenças observadas internamento

ao Brasil expunham “os sintomas da primeira época de vida da América”.

Numa interpretação já focada na quadra quinhentista, essas demarcações

traduziam, para Oliveira Martins, que “a região de S. Paulo apresentava os

rudimentos de uma nação, ao passo que a Baía e as dependências do Norte

eram uma fazenda de Portugal na América”. Ou seja, no decurso destas

explicitações, vai ficando clara a equivalência das duas partes brasileiras a

uma também diferente ligação a Portugal: uma, o Norte, encabeçada pela

Bahia, onde os “jesuítas governavam” e onde estes justamente

simbolizavam a ligação a um Portugal “decadente”; e outra, o Sul,

capitaneada por São Paulo, exibindo “rudimentos de nação” no quadro de

uma “colonização livre” (507). Por que motivo assim sucedia? Como explica

505 MARTINS, J. P. de Oliveira. O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ªEditores, 7ª edição, [1880] 1978. 506 Idem, ibidem, p.25. 507 Idem, ibidem, p.74-75.

226

o autor, “esse Brasil [do Sul], porém, não era geograficamente o centro do

império; o seu clima parecia condená-lo à eterna condição de colónia

dependente de uma cultura exótica e da escravidão africana, ou à sorte

infeliz de um Paraguai jesuíta. Não havia ainda então intensidade de vida

colectiva bastante para propor com evidência o dualismo que o observador

descobre sempre latente; e foi um caso fortuito que, trazendo à vida

económica da colónia um elemento novo, fez surgir, não o dualismo, mas a

imediata e absoluta supremacia da metade sul do Brasil central,

supremacia consagrada nos meados do XVIII século pela transferência da

capital da Baía para o Rio de Janeiro” (508). O aludido acaso – responsável

por esta supremacia sulista – teria sido a descoberta das minas de ouro: “na

riqueza do ouro encontrou a população de S. Paulo uma força

predominante com que impôs a sua supremacia – como homogeneidade,

como coesão, como originalidade e autonomia nacional – às províncias do

Norte, cuja existência era artificial, na população toda estrangeira, quer nos

brancos portugueses, quer nos negros africanos; artificial no regime do

trabalho e natureza da cultura: cuja vida, enfim, era a de uma fazenda

ultramarina de Portugal, amanhada e cultivada pelo génio dos estadistas, e

não a de uma nação nova existindo independente e autónoma, por virtude

de uma população fixada e naturalizada no solo sobre que vivia” (509).

Distinção entre norte e sul e supremacia da metade sul. De alguma

maneira o panorama é conhecido. Na verdade, cabe aqui frisar que esse

movimento de transferência do centro político da nação brasileira do Norte

para o Sul é análogo ao que aconteceu em Portugal, país que para o

Oliveira Martins da História de Portugal, teve justamente na transferência

da capital para Lisboa o encontro com a vocação marítima da nação. Mais

importante do que representar o final das tensões geradas em torno de uma

508 Idem, ibidem, p.74-75. Grifos nossos. 509 Idem, ibidem, p.76. Grifos nossos.

227

unificação com a Galiza, obsessão recorrente desde a formação do reino no

século XII, como se sabe, a transferência da capital, do Norte para Lisboa,

teria levado Portugal ao encontro de seu papel na História. Entretanto,

conforme a compreensão martiniana, aconteceria um movimento análogo

no Brasil. Também aqui, na nação “neo-portuguesa” da América, teria

ocorrido a transferência da capital do Norte (ou Nordeste, ligado à

metrópole) para a região Sul (Sudeste), facto que propiciou o aumento do

sentimento de autonomia da nação, representando, portanto, o prenúncio da

independência política do Brasil, que neste movimento encontraria,

também, seu “destino” histórico.

No âmbito deste jogo de similitudes, o reconhecimento, na

realidade brasileira, de duas partes distintas, permitia associar cada uma

delas a também distintos “portugais”. A operação histórica martiniana não

era, por certo, inocente. O Portugal bragantino e o norte e nordeste

brasileiro são decadentes justamente pela influência deletéria da Dinastia

dos Bragança; e são, também, artificiais pelos negros e brancos portugueses

reinóis. Os bandeirantes, autônomos e aventureiros, são os filhos, os

“herdeiros” do espírito dos portugueses da dinastia de Avis, continuadores

dos grandes navegadores. Ambos desbravadores: uns, da imensidão dos

oceanos, outros, da vastidão da terra. Com alguma dose de ousadia, poder-

se-ia dizer que, para Oliveira Martins, o processo de independência do

Brasil começa na tragédia de Alcácer-Quibir – na morte de D. Sebastião, na

perda de independência e em todos os fatos posteriores que, para a geração

de 1870 em geral, constituem marcos da decadência portuguesa. Com a

morte da dinastia de Avis, ao iniciar-se a degeneração portuguesa, depois

acentuada com a dinastia bragantina, inicia-se também o processo de

separação do herdeiro da dinastia de Avis no Brasil – o Sul. Em última

instância, será enquanto expressão da vitalidade da herança de Avis,

228

manifesta no bandeirante paulista (510), que, no Brasil, o Sul supera o Norte,

atraindo para si – e tendo como capital o Rio de Janeiro – as rédeas do

destino da nação neoportuguesa dos trópicos, em movimento análogo ao

ocorrido nas terras lusitanas no momento da transferência da capital para

Lisboa.

Por onde quer que se olhe, impõe-se o critério da “herança”. O

Norte, entendido como uma “fazenda” de Portugal, remete ao contato e à

aproximação com a influência – maléfica – da dinastia dos Bragança e dos

jesuítas. O Sul, pela sua independência e distância dessa mesma influência,

pôde ver germinar a herança do Portugal grandioso, replicando

tropicalmente seu auge evolutivo: a semente de Avis florescera na América

do Sul, especificamente no sul do Brasil. Nesta leitura martiniana da(s)

identidade(s) brasileira(s), a mobilização do critério da “herança” – a

herança portuguesa, tal como o tempo a prolonga no Brasil – dá-se em

articulação com um processo de delimitação que, trabalhando sobre o

elemento histórico, se consuma na atribuição de significâncias diferenciais.

Este fenômeno de historicização do limite em articulação identitária,

remete-nos à constatação de duas lógicas distintas, presentes na

historiografia martiniana, no tangente à demarcação cultural: a

“espacialização do tempo” e a “temporalização do espaço” (511), ambas

vislumbradas no exercício de uma mesma matriz hermenêutica da história,

mas tendo consubstanciação, na identidade brasileira, sob a forma

horizontal ou “espacializada”, enquanto que, na identidade portuguesa, na

maneira vertical ou “temporalizada”. Uma consideração da qual se retira

uma importante correspondência, do ponto de vista dos relacionamentos

510 Não está hoje ainda cabalmente escrutinada, ao nível da estratégia identitária doregionalismo paulista, a questão da mitificação do bandeirante – um aprofundamento do assuntohaverá de passar por uma releitura de trabalhos como, por exemplo, os de Cassiano Ricardo(Marcha para o Oeste) e Alfredo Ellis Júnior (Raça de Gigantes).511 MARTINS, Rui Cunha. “Estado, tempo e limite”. Revista de Historia das Ideias. Vol.26, 2005, p.308.

229

escalares e das hermenêuticas que lhe subjazem: a de que a matriz cultural

que advoga pela existência de “dois Brasis”, nas margens peninsulares do

Atlântico, corresponderá ao duplo “auge-decadência”, mobilizado à escala

lusitana (512).

Ora, deste ponto de vista, se “os Lusíadas são um epitáfio” (513), só

até certo ponto o são. Afinal, o fim de ciclo é, simultaneamente, o início de

outro. De acordo com a lógica martiniana que expusemos, é provável que,

sendo “epitáfio” de um lado, seja um “prólogo” do outro. Do outro lado do

Atlântico. Mas, mesmo aqui, só numa parte. Nessa parte do Brasil que, para

o autor, representa as propriedades da “raça portuguesa” exponenciadas no

“ápice” do período dos descobrimentos e logo soçobradas, mas ainda

resilientes no sul brasileiro. Embora o conceito de “raça” possa não ter

força como critério de definição da cultura portuguesa, é ele que assegura a

relação de um determinado “tempo português” com um determinado

“espaço brasileiro”. Nesse sentido, os limites das culturas portuguesa e

brasileira formam uma narratividade cíclica na medida em que o epitáfio de

uma é o prólogo de outra, a qual, como em um reinício, garante a ligação

temporal entre as culturas portuguesa e brasileira, assegurando, na

perspectiva martiniana, a perpetuação da “herança”.

Todas estas considerações ganham o devido sentido quando

enquadradas à luz do que sabemos sobre a compreensão martiniana da

história. Só o conhecimento das matrizes teóricas subjacentes à escrita da

história em Oliveira Martins nos permitirá retirar as devidas ilações do seu

cotejamento com o seu duplo brasileiro, Manoel Bonfim, tarefa

comparativa, para nós, da maior relevância. Antes, portanto, recuperemos o

essencial sobre a construção historiográfica martiniana, privilegiando os 512 António Machado Pires considera que há uma relação de “bi-polaridade” nas noções deprogresso-decadência. PIRES, António Machado. A Ideia de Decadência na Geração de 70. Lisboa: Veja, 2ª edição, 1991. 513 MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Lisboa: Europa-América, 2ªedição, [1879], 1889, p.25.

230

pontos mais diretamente susceptíveis às suas interpretações “luso-

brasileiras”.

O primeiro aspecto a reter é o de que o fazer historiográfico de

Oliveira Martins se pode demarcar seja das “filosofias da história” tout

court, seja das teorias sistemicas de caráter mais naturalizante (como nos

evolucionismos de variada matiz) (514). Dito isto, importante mesmo dizer

que seu afastamento stricto sensu destas duas vertentes heurísticas não

apaga liminarmente a influência, paradoxalmente, de ambas as vertentes.

Na verdade, bem mais do que assinalar o aparente paradoxo, deve-se

registrar que J.P. de Oliveira Martins promove, heterodoxamente, a

combinação de distintos elementos teóricos. Lembre-se de sua convocação

do logicismo hegeliano e do raciologismo organicista, exemplo

significativo da peculiaridade do seu entendimento da história. Assim o

vemos, de modo recorrente, e de maneira expressa na sua Teoria da

História Universal, trabalhar sobre a noção de que a história – entendida

como “o dinamismo dos corpos sociais” (515) – tende a resistir às tentativas

da sua cientifização. Para ele, portanto, a História está mais próxima do

fortuito que do constante (e em contracorrente às diferentes formas de

combinação dos naturalismos com a crença na positividade do saber. A

História, para ele, não permite o estabelecimento de regras ou leis

invariáveis. Em bom aprendizado hegeliano, “a personalização simbólica

da sociedade traz para o foro nacional as paixões dos indivíduos, e deste

facto nasce o carácter dramático da história, os sentimento de um homem

514 Como acentua o próprio Oliveira Martins, “quer o princípio orgânico de um tal sistema dahistória seja transcendente ou providencial, quer se funde apenas no determinismo de supostasleis naturais, o que é equivalente para o nosso caso, o sistema será sempre quimérico se julgarser científico, pretendendo incluir todos os povos ou nações e proceder inductivamente”. Idemibidem, p.4. Os grifos são nossos. 515 Dinamismo este que seria expresso pela “soma indeterminável dos acidentes, origem dasregressões, das quedas, das paralisações de desenvolvimento, e também muitas vezes da fortunados estados ou nações”. MARTINS, J.P. de Oliveira. “Teoria da História Universal”. In:Política e História. Volume II (1884-1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.1.

231

tornam-se paixões de um povo, e vice-versa” (516). Tal como para o filósofo

alemão, também para Oliveira Martins só quando as sociedades alcançarem

certo grau de organização societária haverá história. Esta, poder-se-ia

dizer, seria mais o resultado de uma “evolução” social das coletividades do

que ela mesma portadora do gene evolutivo (como o seria para os adeptos

de sua cientifização). Porque, na linha do hegelianismo, a consciência de

uma dramaticidade na história dita que “no crepúsculo da inconsciência

selvagem, não existe drama, e, [onde] não há história [é] porque não há

drama” (517). Esta convicção marca a visão martiniana do Brasil (518). Uma

visão à qual a lição de Hegel empresta o entendimento do fluxo histórico

como o trajeto da manifestação da razão (519), do qual se inferia que os

povos extra-europeus – leia-se o Brasil – “entrariam” na História na medida

em que tivessem consciência de si como coletividade e caminhassem rumo

a um crescente esclarecimento da sociedade. Este fenômeno teria sido

“trazido” pelo “contacto” com os europeus. Ou seja, Portugal.

Recorde-se que a referida propensão simbiótica das influências de

Oliveira Martins obriga a considerar suas migrações desde os postulados de

cariz mais hegeliano para os de maior influência naturalista e organicista.

Para ele, Portugal “formava uma Nação e um povo, sem constituir,

verdadeiramente, uma nacionalidade e uma «raça»” (520). A este respeito,

foi já devidamente sustentado que o autor “estava convicto de que, no

516 Idem, ibidem, p.3. 517 Idem, ibidem. 518 Fernando Catroga chama atenção para o fato de que, para Oliveira Martins, “na linha deHegel, a história é dramática logo no seu próprio ser – o seu aparecimento deriva do ímpeto daForça que, em busca de sua plena realização, exige a luta, a finitude e a morte”. CATROGA, Fernando. “Historia e Ciências Sociais em Oliveira Martins”. In: TORGAL, Luís dos Reis;MENDES, José Amado; CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIXe XX. Volume I - A História Através da História. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.143519 Em 1830 afirmava Hegel que “devemos buscar na História um fim universal, o fim último domundo, não um fim particular do espírito subjectivo ou do ânimo; devemos apreendê-lo pelarazão, que não pode transformar em interesse seu nenhum fim particular e finito, mas apenas oabsoluto”. HEGEL, G.W. A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 1995, p.32. 520 Idem, ibidem, p.164.

232

fundo, o drama de Portugal repousava na falta de uma identidade racial

distinta da composição antropológica do resto da Península Ibérica”. É que

“a teoria martiniana da história defende uma inteligibilidade de tipo

político para o caso da nação portuguesa. Mas, se o factor político explica

Portugal, nunca teve poder para resolver o seu drama. Os acontecimentos

políticos que foram sustentando a existência histórica de Portugal têm um

carácter acidental, ao contrário dos alicerces naturais que, se fossem

distintos, imprimiriam o carácter de necessidade à nação portuguesa” (521).

Não nos deteremos na complexidade desta problemática específica, alheia

ao nosso objeto de pesquisa. Cumpre-nos, contudo, registrar a dimensão do

labor martiniano que dialoga com os pressupostos organicistas e, mais

especificamente, com o papel da “raça” e do “meio” na consolidação das

nações. É que, chegados a este ponto, melhor se compreende aquele que

será um segundo aspecto a reter, no relativo à concepção martiniana de

história: a questão da associação entre indivíduo e sociedade, tanto no que

isso remete para a análise “sociedade como um ser orgânico”, quanto na

legitimidade daí retirada para a constituição de quadros históricos baseados

nos retratos individuais. “O essencial – dirá – consiste no sistema das

instituições e no sistema das ideias colectivas, que são para a sociedade

como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo, por

outro lado, no desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura

animada dos lugares e acessórios que formam o cenário do teatro

histórico”. É que, para o autor, “estes dois aspectos são igualmente

essenciais: porque a coexistência independente dos motivos colectivos e

naturais e dos actos individuais é um facto incontestável na vida das

sociedades” (522).

521 PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal: Filosofia. História. Engenharia Social (1865-1914). Coimbra: Editora Almedina, 2001, p.233. 522 MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Publicações Europa-América, 2ªedição, [1879] 1889, p.14.

233

De certa maneira, esta relação entre indivíduo e sociedade, assim

entendida, transparece na própria organização temática de sua “escrita da

história”. Veja-se o encadeamento de sua obra historiográfica: História da

Civilização Ibérica (1879), História de Portugal (1879), O Brasil e as

Colónias Portuguesas (1880), Portugal Contemporâneo (1881). De modo

explícito, sua construção historiográfica, ao percorrer um sentido

ascendente, temático e cronológico, traduz uma compreensão da história e

um entendimento da sociedade em que, como se de um trajeto individual se

tratasse: cada “fase” histórica tem correspondência numa dada “forma

identitária”. Ou, mais precisamente, numa dada “escala identitária”. “Na

História da Civilização Ibérica – esclarece o próprio – tratámos de estudar

o sistema de instituições e de ideias da sociedade peninsular, para expor a

sua vida colectiva orgânica e moral. Tomámos aí a sociedade como um

indivíduo, e procurámos retratá-lo física e moralmente. Agora o nosso

propósito é diverso. Tratando da história particular portuguesa, somos

levados a encarar principalmente o segundo dos aspectos essenciais da

história geral. A sociedade portuguesa, como molécula que é do organismo

social ibérico, peninsular, ou espanhol – estas três expressões têm aqui um

alcance equivalente –, obedeceu, nos seus movimentos colectivos, ao

sistema de causas e condições próprias da história geral da Península

Hispânica” (523). Para Oliveira Martins, “metade da história portuguesa

está, portanto, escrita na História da Civilização Ibérica: a metade que trata

da vida da sociedade como um ser orgânico”. Falta, pois, dar conta da

segunda metade: “caracterizar o que há de particular na história portuguesa;

resta fazer reviver os seus homens e representar de um modo real a cena em

que se agitam: tal é o programa deste livro [da sua História de Portugal]”

(524). Se é possível começar por entender a existência de Portugal de um

523 Idem, ibidem.524 Idem, ibidem, p.14-15.

234

ponto de vista extra-nacional, chamando a atenção para as familiaridades

do lusitano enquanto ibérico – feito na História da Civilização Ibérica –

numa segunda instância – a da História de Portugal –, é forçoso caminhar

para além do sentido mais “orgânico”, quer dizer, completar o “retrato”,

preencher a moldura ibérica com os “caracteres dos homens”. Porque,

segundo Oliveira Martins, “na esfera dos movimentos de instituições e

ideias na categoria da vida social, as acções dos homens são sempre

absolutamente excelentes; porque a supremacia da sociedade sobre o

indivíduo consiste no facto da existência de uma consciência superior da

Ideia, no organismo que se diz sociedade” (525).

Encarada a ação dos reis e líderes políticos enquanto dramatização

deste trajeto coletivo, será através da biografia que o autor exercitará sua

compreensão de história como “lição moral”, questão nevrálgica da

arquitetura do pensamento martiniano. As evidências de pedagogização da

história e, sobretudo, a utilização da biografia como veículo pedagógico da

história, denunciam um ambiente pautado pelo critério da Historia

Magistra Vitae (526). Como o próprio Oliveira Martins revela, sua intenção

em estudar o passado era, assim de tudo, pedagógica: “apresentar crua e

realmente a verdade é o melhor modo de educar, se reconhecemos no

homem uma fibra íntima de aspirações ideais e justas, sempre viva, embora

mais ou menos obliterada. Conhecer-se a si próprio foi, desde a mais

remota antiguidade, a principal condição da virtude” (527). Nesta

perspectiva, o organicismo sociológico, que percebe a ação dos indivíduos

como naturalmente condicionada pelo social, mesclado com os postulados

energéticos de um tempoabstracto e não subsumível às leis científicas, leva 525 Idem, ibidem, p.16. 526 CATROGA, Fernando. “O Magistério da História e a exemplaridade do ‘grande homem’. Abiografia em Oliveira Martins”. In: PÉREZ JIMENES, A. RIBEIRO FERREIRA, J. FIALHO, Maria do Céu (orgs.). O retrato literário e a biografia como estratégia de teorização política. Coimbra-Málaga, 2004, p.254. 527 MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Publicações Europa-América, 2ªedição, [1879] 1889, p.16.

235

Oliveira Martins a focar a ação de determinados indivíduos, entendida, ao

mesmo tempo, como vértice temporal entre passado e presente, e como

“resultado” das camadas naturais da sociedade. Da análise destes níveis em

presença, destas forças assim atuantes, advirá a construção interpretativa –

“lição” do passado a ser utilizada como “prevenção” para o futuro. Em

síntese e nas palavras do autor: “afirmámos que a história é uma lição

moral. Nos vícios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e

na nobreza dos indivíduos que foram, há um exemplo excelente. Na

sabedoria ou na loucura dos actos políticos e administrativos passados há

um meio de prevenir e encaminhar a direcção dos actos futuros. A história

é, nesse sentido, a grande mestra da vida” (528).

Ora, a mobilização de uma história “mestra da vida” é também

recurso central na estratégia discursiva daquele que pode ser consideradoo

correspondente brasileiro de Oliveira Martins: Manoel Bonfim. Assim

postas as coisas, a questão a equacionar é a seguinte: após no determos

sobre a leitura martiniana do Brasil – explorando o essencial sobre a

compreensão martiniana da história –, legítimo se torna perguntar se esta

última teria, necessariamente, que produzir aquela. Em outras palavras, se

as características do edifício teórico martiniano poderiam conduzir à

atribuição de um lugar tópico à noção de herança portuguesa no

entendimento do Brasil. E, neste plano, a análise da obra, do trajeto e dos

suportes teóricos de Bomfim mostra-se profícua. É que, com ele,

verificamos ser possível – com base num comum entendimento do papel da

história em sua vertente pedagogizante de “mestra da vida” –, chegar a

conclusões bem diferentes quanto à leitura do relacionamento luso-

brasileiro, do sentido do Brasil para Portugal e de Portugal para o Brasil,

bem como do valor da “herança”. E sito porque, muito provavelmente, a

matriz teórica comum é apenas parte da dinâmica intelectual. O lugar de

528 Idem, ibidem, p.16. Grifos nossos.

236

fala de onde escreviam os intérpretes pode também ter alguma valia

relativamente às questões de matriz teórica. Vejamos a situação com a

demora que ela merece.

2.2. A obra de Manoel Bomfim, estranhamente pouco estudada,

representa um forte investimento reflexivo nas relações entre Portugal e

Brasil. Escrito em Paris, enquanto seu autor realizava estudos em

psicologia, em 1903 (529), o livro – América Latina: males de origem –,

apresenta um acento fortemente emocionado e nacionalista. Suas ideias,

conforme explica o próprio, estavam em gestação desde 1897, por ocasião

de um parecer que o autor escrevera, na qualidade de Director Geral de

Instrução Pública do estado do Rio de Janeiro, em função de um concurso

sobre o melhor trabalho acerca da História da América Latina (530).

Emprestaremos carácter de exemplaridade à sua obra, na medida em que

ela estabelece um matricial “gerenciamento” da história colonial brasileira

(e, forçosamente, da relação com Portugal), deixando exposto o cariz

referencial da dialogia cultural no âmbito fundacional de um padrão

529 Como o próprio Bomfim revela na “Advertência” a América Latina: males de origem: “Estelivro deriva diretamente do amor de um brasileiro pelo Brasil, da solicitude de um americanopela América. Começou no momento indeterminado em que nasceram esses sentimentos;exprime um pouco o desejo de ver esta pátria feliz, próspera, adiantada e livre”. BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, [1905], 1993, p.34. 530 Manifesta-se o autor da seguinte forma: “aqui, onde, forasteiro, escrevo, disponho apenas denotas, reunidas durante nove anos – senão, talvez fosse outra a forma que tivera este trabalho;não variariam, porém, as ideias. Essas mesmas, agora desenvolvidas, já as apresentei, em parte, resumidamente num parecer, prefácio à excelente História da América, livro didático do Sr. Rocha Pombo parecer que deriva justamente dessa preocupação, já antiga. Em 1897, quando odiretor geral de Instrução Pública fez anunciar o concurso de um compêndio de História daAmérica, solicitei a honra de, na qualidade de membro do Conselho Superior, dar o parecersobre as obras que se apresentassem”. Vale ainda lembrar o que Bomfim, em nota de rodapé, considera sobre o livro de Rocha Pombo, premiado no mencionado concurso. Diz ele que estaobra também “chegara a essa conclusão: que os males atuais da América Latina não são maisque o peso de um passado funesto, conclusão que ora demonstro e documento, quando estudo osefeitos do parasitismo das metrópoles, a que já me referia no parecer”. BOMFIM, Manoel. AAmérica Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, [1905],1993, p.35.

237

estético identitário brasileiro (531). Neste sentido, parece lícito dedicar

atenção à compreensão da história em Manoel Bomfim, questão, aliás,

realçada pelo autor, desde o início de sua obra, quando afirma que “os

povos sul-americanos se apresentam, hoje, num estado que mal lhes dá

direito a ser considerados povos civilizados. Em quase todos eles, em

muitos pontos do Brasil inclusive, a situação é verdadeiramente lastimável”

(532). Como facilmente se percebe, trata-se de um olhar bastante próximo do

sentimento crítico e enérgico dimanado pela brasileira Geração de 1870.

Mas, se assim o é, como pensamos, caberá mostrar como este “sotaque”

intelectual mobiliza criticamente o passado em seu anseio de modernização

e progresso, prestando atenção ao uso dado aos fundamentos teóricos de

inspiração cientificista atrás analisados.

A avaliação do autor aponta para a existência de um processo de

“retardamento” latino-americano diante da “marcha” civilizacional e do

progresso capitaneado pelos povos “mais adiantados” da Europa (533).

Além de uma diferença de “ritmo”, portanto, haveria também um equívoco

no “sentido” deste caminhar coletivo no Novo Mundo. Ao invés de

aproximarem-se dos “povos adiantados”, os latino-americanos estariam se

distanciando cada vez mais. Por que motivo? Segundo o autor, o caso dos

531 A opinião de Azevedo Amaral representa bem o tom de alguma mobilização da obra deBomfim que não deixa esconder o invólucro fundacional de seu conteúdo, inclusive articulando-o ao nacionalismo varguista. Diz o autor que “entre os primeiros que contribuíram eficazmentepara despertar na consciência brasileira a ânsia de encontra a própria realidade, Manoel Bomfimocupa lugar de grande destaque. Não é portanto inoportuna a passagem do primeiro aniversáriodo Estado Novo para fazer da reedição da América Latina uma expressão de reconhecimentonacional a um dos mais esclarecidos precursores do movimento de realismo político, que nosintegrou afinal no curso normal da nossa evolução histórica”. AMARAL, Azevedo. “Prefácio à2ª. edição” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.32. Esta perspectiva é também ecoada em OLIVEIRA, Franklin de. “Manoel Bomfim, onascimento de uma nação” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio deJaneiro: Topbooks, 2ª edição. 1993, pp.21-28. 532 BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.49-50. 533 Daí que, para Bomfim, “nações novas deveriam progredir como cem, enquanto as antigas ecultas progridem como cinquenta; só assim lograriam alcançá-las e gozar todos os benefíciosque se ligam às civilizações adiantadas. No entanto, marcham lentamente, como dez, isto é, retardam-se, distanciam-se cada vez mais da civilização moderna”. Idem, ibidem, p.49.

238

“novos” países latino-americanos conformaria algumas especificidades

histórico-biológicas. Eis sua explicação:

“participando diretamente da civilização ocidental, pertencendo a ela, relacionados diretamente, intimamente a todos os outros povos cultos, e sendo aomesmo tempo dos mais atrasados, e por conseguinte dos mais fracos, somosforçosamente infelizes. Sofremos todos os males, desvantagens e ônus, fatais àssociedades cultas, sem fruirmos quase nenhum dos benefícios com que o progressotem suavizado a vida humana. Da civilização, só possuímos os encargos: nem paz, nem ordem, nem garantias políticas; nem justiça, nem ciência, nem conforto, nemhigiene; nem cultura, nem instrução, nem gozos estéticos, nem riqueza; nem trabalhoorganizado, nem hábito de trabalho livre, muita vez, nem mesmo possibilidade detrabalhar; nem atividade social, nem instituições de verdadeira solidariedade ecooperação; nem ideais, nem glórias, nem beleza…”, [num quadro onde só existe]“miséria, dores, ignorância, tirania, pobreza”, [resultadas da exploração] “pelomercantilismo cosmopolita e voraz, imoral e dissolvente, retardatário por cálculo, egoísta e inumano por natureza”, [do qual] “estas pobres sociedades não sabem e nãopodem se defender” (534).

Frente a esta consideração – e expondo uma compreensão histórico-

sociológica que combina uma visão abstrata do tempo, cara às filosofias da

História, com um entendimento organicista da existência das

nacionalidades –, Bomfim dirá que “um povo não faz revoluções senão

quando uma causa profunda, orgânica, o impele a isto; que as revoluções,

e cada uma das outras causas dotadas, ora por este, ora por aquele, são

efeitos e não causas, efeitos ligados a uma mesma origem, e que é mister

buscar cuidadosamente esta origem combatendo-a” (535). Por isso, o autor

assevera que “o progresso orgânico é o resultado do esforço contínuo e do

exercício combinado de todos os órgãos na luta pela vida” (536).

Semelhante raciocínio mais claro ficará se prestarmos atenção à

utilização que Bomfim faz de metáforas naturalistas (no âmbito da analogia

estabelecida por ele entre o médico, que era, e o crítico da história, que

também era). Numa passagem bastante significativa, dedica mais de duas

páginas e meia a explicitar os fatos que explicam o porquê de alguns

534 Idem, ibidem, p.49-50. 535 Idem, ibidem, p.50. Grifos nossos. 536 Idem, ibidem, p.57.

239

organismos animais se tornarem parasitas. Nesse ponto, o autor versa sobre

as características do Chondracanthus gibbosus, um animal marinho, muito

rudimentar e simples, que, à primeira vista, parecia tratar-se de um verme,

mas que Bomfim demonstrará tratar-se, antes, de um parasita (537). A este

pretexto, o argumento do parasitismo biológico serve-lhe de substrato

referencial para a análise da formação histórica dos povos peninsulares –

entendidos como a origem comum dos povos latino-americanos. Tal como

o Chondracanthus, que transitou de animal predador para parasita, o

mesmo processo ter-se-ia observado com as nacionalidades colonizadores

da Ibero-América. Assim o vemos questionar: “sucederá o mesmo com os

organismos sociais? Sim; é impossível negá-lo”. E, numa patente analogia

entre organismo e sociedade, considera que “uma causa deprimente e

perniciosa para os indivíduos em particular não pode deixar de ser

perniciosa e deprimente para a sociedade no seu total”. Afinal, “os

organismos sociais regem-se por leis peculiares a eles, mas estas leis não

podem estar em oposição com as que regem a vida dos elementos sociais

em particular [pois] o todo participa das qualidades das partes, e delas

depende”, na medida em que “o vigor de um organismo representa a soma

de vigor dos elementos que o constituem; uma condição que é nociva a

537 Apenas a título de exemplo, merece a pena atentar no movimento analítico de Bomfim:“colocai um organismo em condições de vida que o dispensem de exercitar os seus órgãossensoriais e locomotores, e estes se atrofiarão fatalmente. Foi o que sucedeu com oChondracanthus: era um crustáceo livre, inteligente – do grau de inteligência que possui ocomum dos crustáceos, provido de todos os instrumentos – órgãos e aparelhos – indispensáveispara guiá-lo na procura dos alimentos, ir ao encontro deles, fugir dos perigos, apanhar assubstâncias nutritivas, levá-las à boca, triturá-las, digeri-las; munido de um tegumeno que oprotegia dos choques exteriores. Por uma circunstância qualquer, ele se achou um dia sobre umapresa viva; tirou dela o alimento; deu-se bem, voltou ainda… Então, ele era apenas um animaldepredador. Depois, nem mais se afastou da vítima, apegou-se a ela, fixou-se definitivamente, etodo o seu esforço ou trabalho vital se resumiu, deste momento em diante, em sugar o animal aque se prendia. Aí encontra ele tudo; a vida lhe é muito mais fácil do que se, da natureza, tivessede tirar diretamente o sustento. (…) Fatalmente, um tal regime reflete sobre a inteligência, e estase amesquinha, decai, também. A inteligência nutre-se e enriquece às custas das impressões eimagens ávidas do mundo exterior; ela se desenvolve na luta pela conquista dos alimentos, epara escapar aos perigos; num animal que tenha o sustento garantido e a vida abrigada, conservando-se ao mesmo tempo em condições de não receber impressões exteriores – num talanimal, a inteligência atrofia-se necessariamente”. Idem, ibidem, p.56-58.

240

esses elementos considerados, individualmente, é fatalmente nociva ao

organismo”. O paralelo traçado por Bomfim entre o progresso social e o

progresso orgânico é claro: “diferenciação dos órgãos, especialização das

funções, divisão do trabalho – estas são as condições indispensáveis à

perfeição” (538).

Conforme já se disse, a teoria darwiniana não pressupunha o

entendimento da natureza vinculado à ideia de perfeição. Neste ponto,

aliás, reside um dos aspectos de maior importância da noção darwiniana da

“descendência com modificações”, noção esta que, entretanto, acabará por

se ver “amalgamada” com o ideal de perfeição colado à Inglaterra vitoriana

através dos trabalhos de Spencer e Haeckel (539). É sabido, por outro lado,

que este pano de fundo perfectibilista enquadra, até certo ponto, uma

espécie de “naturalização” das filosofias da história que, partindo da

impulsão hegeliana, emprestavam um cariz ascendente e progressivo ao

desenrolar do tempo histórico. Ora, o que é visível no caso do autor

brasileiro é a sua disponibilidade para se situar na articulação daqueles dois

contributos, no sentido de utilizar o “tribunal da história” hegeliano para

julgar o “parasitismo” ibérico nos nascentes “organismos sociais” da

América Latina. Este aspecto permite entender diversas linhas

interpretativas desenvolvidas por Bonfim. Torna compreensível o processo

de julgamento do passado ao qual se entregará. Antes, porém, não podem

restar dúvidas de que, se “a marcha do progresso e da evolução é a mesma

nos organismos biológicos e nos sociais, é fatal que as circunstâncias

capazes de entravar esse progresso nos primeiros há de forçosamente

produzir os mesmos efeitos nos segundos”. Bem vistas as coisas, “um

organismo social, vivendo parasitariamente sobre outro, há de fatalmente

degenerar, decair, degradar-se, evoluir, em suma”. Bomfim, verosímil

538 Idem, ibidem, p.59. Grifos no original. 539 Conforme mostramos na segunda parte deste trabalho.

241

leitor dos diversos autores que propagavam as noções de “luta” e de

“seleção natural”, recupera-as a um sem-número de interpretações de cariz

filosófico-histórico, como a de que “uma sociedade que viva

parasitariamente sobre a outra perde o hábito de lutar contra a natureza; não

sente necessidade de apurar seus processos, nem de pôr em contribuição a

inteligência, porque não é da natureza diretamente que ela tira sua

subsistência, e sim do trabalho de outro grupo; com o fruto desse trabalho

ela pode ter tudo” (540). Atente-se que, para Bomfim, a luta não se dá na

natureza (como em Darwin) mas, numa perspectiva bastante colada ao

ideário hegeliano, esta luta dá-se contra a natureza, no sentido de, com os

instrumentos da razão, superar os condicionantes naturais.

Manoel Bomfim propaga uma visão que liga a ideia de

“degeneração” biológica, ou parasitismo, à noção de “degeneração moral”,

entendida esta como consequência daquela, para em seguida, agregar estas

noções ao espectro de um “julgamento” de fato. Daí que, citando a

Nouvelle théorie biologique du crime, de Max Nordau, afirme que o “crime

é parasitismo humano”, pois o “degenerado é um débil, e em virtude da lei

do menor esforço ele procura explorar o próximo, em vez de viver com ele

sobre a base das trocas equivalentes, porque isto lhe é mais fácil”(541). No

desenrolar desta ideia sobressairá sua condição de médico que não se furta

à mobilização do organicismo social, na certeza de que “uma verdade,

porém, é hoje universalmente aceita – que as sociedades existem como

verdadeiros organismos, sujeitos como os outros a leis categóricas” (542). E,

“como organismos vivos”, explica o autor que “as sociedades dependem,

não só do meio, não só das condições de lugar, mas também das condições

de tempo. Quer dizer: para estudar convenientemente um grupo social –

uma nacionalidade no seu estado atual, e compreender os motivos pelos 540 Idem, ibidem, p.59-60. 541 Idem, ibidem, p.61. 542 Idem, ibidem, p.51.

242

quais ela se apresenta nestas ou naquelas condições, temos de analisar não

só o meio em que ela se acha, como os seus antecedentes. Uma

nacionalidade é o produto de uma evolução; o seu estado presente é

forçosamente a resultante de ação do seu passado, combinada à ação do

meio” (543). E porque as analogias com o naturalismo organicista permitem-

lhe, e porque é forte sua convicção sobre a relevância do “fator tempo” na

obtenção do diagnóstico, logo lembrará os ares de médico-historiador: “é o

estudo, o conhecimento deste passado que o vai instruir definitivamente, e

dizer se o indivíduo pode, ou não, curar-se. A cura depende, em grande

parte, da importância desse «histórico», principalmente quando as

condições presentes são relativamente favoráveis, e são tais que a elas o

indivíduo se poderia adaptar facilmente, se não tivesse contra si uma

herança funesta. Então, num tal caso, o empenho do clínico é dirigido todo,

não contra o meio atual, pois que este é propício – mas contra o passado,

para vencê-lo e eliminá-lo” (544).

Logicamente, então – será esta a decorrência de Bonfim – que o

“histórico” deste paciente atrás descrito é semelhante ao caso das

nacionalidades latino-americanas: afinal,

“não há nada que justifique ou explique esse atraso em que se vêm, asdificuldades que têm encontrado no seu desenvolvimento. O meio é propício, e porisso mesmo, diante desta anomalia, o sociólogo não pode deixar de voltar-se para opassado a fim de buscar as causas dos males presentes. Há um outro fator a indicarbem expressamente que é nesse passado, nas condições de formação dasnacionalidades sul-americanas, que reside a verdadeira causa das suas perturbaçõesatuais: é que, por um lado, estas perturbações, estes males são absolutamente os

543 Dirá o médico que o “mesmo sucede com os organismos biológicos: se, num espaço, nummeio muitas vezes restrito, único e igual, encontramos organismos de uma diversidade infinita, é porque eles não dependem só do meio atual, mas também das condições e formas anteriores, que a hereditariedade conserva – representam uma herança adaptada. É por isso, ainda, queuns se mostram mais perfeitos do que outros; é nestes – nos mais perfeitos – que a adaptação émais completa; neles, o passado não pesa tão fortemente que embarace as adaptaçõesindispensáveis. Isto se dá quanto às espécies, e se dá também quanto aos indivíduos emparticular. Que vem a ser a doença? Uma inadaptação do organismo a certas condiçõesespeciais. Por que razão nem todos os indivíduos adoecem ao mesmo tempo, por uma mesmacausa? Porque uns são mais resistentes; quer dizer, mais adaptáveis a essas causas do queoutros”. Idem, ibidem, p.52. Grifos nossos. 544 Idem, ibidem, p.53. Grifos nossos.

243

mesmos – mais ou menos atenuados – em todas elas; e, por outro lado, estes povostiveram a mesma origem, formaram-se nas mesmas condições, foram educados pelosmesmos processos, e esses males eles os vêm sofrendo desde o primeiro momento. Pois, se os antecedentes são comuns, se os sintomas são os mesmos, se estescontinuam com aqueles – é bem natural que nestes antecedentes esteja a verdadeiracausa” (545).

Daí que convide seu leitor a analisar esse passado para ver até que

ponto ele explica “os vícios atuais, até que ponto tais vícios derivam da

herança e educação recebida” (546). E o que Manoel Bonfim conclui a

esterespeito? Que indicações retira das suas investigações analíticas em

torno da “formação” histórica da América Latina? Acaso perceberá aí

alguma especificidade luso-brasileira frente às relações “castelhanas”, entre

espanhóis e americanos, ou, ao contrário, perceberá um único fio-condutor

na colonização ibérica no Novo Mundo? Segundo ele, “ao fazer este exame

necessário da vida e do caráter das nações colonizadoras da América do

Sul, um fato impõe-se logo à nossa atenção: é que elas padecem com as

naturais modificações de meio – os mesmo males que as nações da

América Latina. Nas duas – Espanha e Portugal, que, no caso, figuram

como uma unidade – o mesmo atraso geral: uma geral desorientação,

porventura, um certo desânimo, falta de atividade social, mal-estar em

todas as classes, irritação constante e, sobretudo, uma fraqueza tão

acentuada, que a muitos se afigura, também, como uma incapacidade

essencial a manterem-se soberanas e livres a par dos outros povos. Isto é

muito para notar, principalmente porque essas nações foram, em tempos

relativamente bem próximos, excepcionalmente poderosas, ricas e

adiantadas” (547). Eis aqui um ponto de vista que merece todo o nosso

interesse: o tratamento conjunto de Portugal e Espanha, que conformariam

uma unidade histórica e étnica, em escala ibérica, tomados como base para

o entendimento da formação brasileira, fazem ressoar nele um eco da 545 Idem, ibidem, p.53. Grifos nossos. 546 Idem, ibidem, p.54. 547 Idem, ibidem, p.54. Grifos nossos.

244

História da Civilização Ibérica, de Oliveira Martins. Vejamos a fortuna

desta similitude.

2.3. Para o intelectual brasileiro, durante os séculos XVII e XVIII, “a

Ibéria, que havia dado ao mundo Cervantes, Camões, Murilo, Lope de

Vegal, Rivera… desaparece, involui, degenera; não se vê um só nome

espanhol ou português entre os homens que fundaram a cultura moderna e

dominam a natureza, ou naquelas que refazem a filosofia racionalista, que

iluminará as gentes na conquista da justiça e da liberdade”. O reflexo das

críticas feitas pela Geração de 70 portuguesa, como nas Conferências do

Casino, parece bastante claro. O jogo de contraste entre o glorioso passado

ibérico e o anseio de modernização atrelado ao sentimento de decadência

ecoam na obra de Manoel Bomfim. Para ele, “enquanto os ânimos,

fortalecidos pela ciência, vão lutando e se vão liberando, aqui e ali, aos

poucos, mas continuamente, até chegar a esse estado de emancipação de

espírito dos fins do século XIX, a Espanha apropria-se da Inquisição para

eliminar sistematicamente todas as aspirações de liberdade e ergue em

sistema a escravidão espiritual – degrada-se…” (548). Desde os fins do

século XV, afirma Bomfim, “a Espanha está constituída nação moderna,

livre, organizada, vitoriosa e à custa dos seus próprios esforços. Este

trabalho íntimo de organização fora prodigioso, único talvez, do que se

conhece na história dos povos. Daqueles aluviões sucessivos de gentes –

fenícios, celtas, cartagineses, romanos, godos, suevos, alanos, mouros,

árabes… ela fizera uma nacionalidade única, perfeitamente caracterizada,

homogénea e forte. Foi um cadinho de povos e raças, tradições e costumes

– depurou, eliminou os elementos irredutíveis, irritantes; fundiu,

congregou, numa massa única, o resto. O cadinho ferveu doze séculos –

548 Idem, ibidem, p.54.

245

1.200 anos de luta, guerra contínua!” (549). Perante tal quadro, “qual o

efeito destes onze séculos de guerra constante e generalizada sobre o

carácter das nacionalidades ibéricas?… De que forma esse passado vem

influir sobre o futuro?” (550).

O passado ibérico de lutas contra os árabes teria caucionado duas

vertentes de elementos condicionantes da formação dos povos que, depois,

colonizaram a América Latina: “a educação guerreira, exclusivamente

guerreira, a cultura intensiva dos instintos belicosos de centenas de

gerações sucessivas; o regime a que eles se afizeram durante esses longos

séculos – de viver de saques e razias; o desenvolvimento sempre crescente

das tendências depredadoras; a impossibilidade, quase, de se habituarem ao

trabalho pacífico” (551). Significa isto que, para Manoel Bomfim, a guerra e

a cobiça, a depredação e a exploração, são componentes estruturais dos

povos ibéricos. Características estas advindas de uma longa tradição que

remete ao processo de reconquista da Península junto ao Sarraceno, tornado

elemento fundante do carácter do português e do espanhol. Fatores de onde

teria provindo uma inexorável apetência para a reprodução, no Novo

Mundo, das práticas “herdadas”: a depredação, a exploração, a rapina, a

aversão ao trabalho, etc. Um flagrante esqueleto neolamarckiano – isto é, a

transmissão dos caracteres adquiridos – logo coberto com os panos da

moral do Iluminismo eurocêntrico. Será este figurino híbrido – um

neolamarckismo moralista – que consubstanciará, no autor, sua teoria sobre

o “parasitismo ibérico” e sua ação deletéria nos povos latino-americanos

(552).

549 Idem, ibidem, p.72. 550 Idem, ibidem, p.71. Recorde-se que Oliveira Martins fazia semelhante questionamento. 551 Idem, ibidem, p.74. 552 Vejamos mais um pouco o argumento do brasileiro. Segundo ele, “um povo que viveucontinuamente em guerra por oito séculos, viveu certamente de rapinas e saques por todo essetempo. Tornou-se um regime normal; e era fatal: porque estava nos hábitos da época, porque osódios e as vinditas estimulavam a isto, porque a perversão dos instintos guerreiros leva

246

Bomfim dirá que se a Espanha só “queria conquistar é porque o

movimento adquirido a precipitava a isto; porque se habituara a viver

exclusivamente do fruto das conquistas; porque não sabia fazer outra coisa

senão guerrear; porque cultivara, intensamente, por onze séculos, os

instintos guerreiros e agressivos, e guerrear se tornara para os homens

uma necessidade orgânica; porque, em contato por oito séculos com o

árabe depredador e mercantil, tomara gosto ao luxo e à riqueza facilmente

adquiridas; porque aprendera com ele a ter horror e repugnância ao trabalho

normal, sedentário, verdadeiramente produtor” (553). Por isso, indaga em

tom algo inquisitorial: “que juízos se pode fazer da beleza moral dessas

almas, que passavam a existência a cortar de açoites as carnes de míseros

escravos e que aceitavam como legítimo viver do trabalho destes

desgraçados, cuja vida será um martírio contínuo?!” (554). Inquietações

tanto mais justificadas porquanto, como ensinava Oliveira Martins, cuja

obra Bonfim bem conhecia e cita em demasia, “é na história ultramarina,

vasto campo onde os caracteres podiam bracejar mais à larga que todas as

extravagâncias e bizarrias do temperamento peninsular se mostram mais

livremente” (555).

Recorde, a este respeito, que Oliveira Martins já havia escrito

trechos muito semelhantes àqueles que, assinados por Bonfim, acima

transcrevemos (556). Conforme afirmamos, ao não diferenciar, nem racial

nem moralmente, a formação de Portugal e da Espanha, tratando-os

invariavelmente os povos belicosos a se fazerem depredadores, e, finalmente, porque o trabalhonormal, pacífico, era quase impossível”. Idem, ibidem, p.76. 553 Idem, ibidem, p.81-82. Grifos nossos. 554 Idem, ibidem, p.61. 555 MARTINS, J.P. de Oliveira História da Civilização Ibérica. Lisboa: Guimarães Editores, [1879], 1994, p.254-255. 556 Veja-se o que diz J.P. de Oliveira Martins em O Brasil e as Colónias Portuguesas:“Esgotadas as minas, banida para as tradições da história a caça dos indígenas, abolida emprincípio a escravidão, o no Brasil remiu-se do fardo da herança colonial. A agricultura, fonte deum comércio abundante e próspero, exige dotes diversos e melhor educação”. MARTINS, J. P. de Oliveira. O Brasil e as Colónias Portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, [1880], 1978, p.151.

247

conjuntamente, o autor brasileiro aproximava-se do português: ambos

fazem da escala (neo)ibérica uma referência identitária de primeira

grandeza. Estas aproximações se reforçam ao verificarmos o modo

expresso como Oliveira Martins é referido no livro de Bomfim (embora

nem sempre deixe explícita sua fonte). É o que sucede com a apropriação

bomfiniana de partes do quadro histórico identitário martiniano sobre

Portugal: para os portugueses, “a vergonha é trabalhar, lavrar a terra. «A

sociedade que se desenvolve num modo espontâneo, diz Oliveira Martins

em estilo de alta sociologia, à lei da natureza (guerreando e saqueando), vai

sucessivamente definindo as ideias coletivas, a maneira que progride na

série das formas evolutivas». A idéia coletiva aqui é varrer a Terra – saque

universal” (557). E se Oliveira Martins havia já considerado a História da

Civilização Ibérica como um caso de “teratologia histórica” (558), não

parecerá absurdo, para Manoel Bomfim, a utilização dos mesmos juízos

históricos martinianos no sentido de mostrar a necessidade da cultura

brasileira se demarcar da portuguesa. De igual modo, não lhe repugnará

exercitar as analogias históricas para dramatizar o período colonial, como

não lhe merecerá reservas a adequação da sua linha interpretativa às fases

históricas definidas para o processo evolutivo português, sustentando que

ao findar o período das reconquistas, sucederá o período das depredações e

saques. Afinal, era certo que, no colonialismo português, “fazia-se a rapina,

porque a guerra necessária a isto obrigava; agora, quer-se a guerra pelo

amor do saque e da rapina. É o segundo período – o da expansão

depredadora: sede de riqueza, voracidade desencadeada, apetites

insaciáveis” (559).

557 BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.82. 558 OLIVEIRA MARTINS, J.P. História da Civilização Ibérica. Lisboa: Guimarães Editores, [1879], 1994, p.54. 559 BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.82.

248

A transposição orgânica da “herança” da metrópole portuguesa para

as elites brasileiras fica nítida num quadro histórico – narrado em América

Latina, e muito ecoado doravante, por um sem-número de obras –, que

considera que a independência brasileira exprimiria um fenômeno de

transporte parasitário grave, na medida em que “não só não houve alteração

essencial no regime governativo, como não foi destituído um só dos altos

funcionários. Era o Estado-colônia; um dia, espantada pelas águias de

Bonaparte, partiu-se de lá da metrópole a coroa, e veio achar-se aqui,

substituindo o governador geral; depois retirou-se o rei, deixando aqui o

príncipe em seu lugar-tenente – e o Estado sempre o mesmo, mantendo a

orientação tradicional. Foi então quando o príncipe, lugar-tenente da

metrópole, chefe do Estado-colônia, declarou nacionalizar-se brasileiro, e,

em vez de «futuro rei de Portugal e do Brasil», qual era, passou a

«Imperador do Brasil e futuro rei de Portugal»”. Tal relação entre Estado e

sociedade permanecerá posteriormente à Abdicação de D. Pedro I, pois ele

“partiu, e a máquina ali ficou no trilho: regência, maioridade, rei,

revolução, ditadura, presidentes… várias gentes se têm sucedido nas

funções, mas o ponto de vista não muda” (560). Mais ainda, Bomfim vai

recordar factos históricos da independência nacional – isto é, do marco

fundacional colectivo – no sentido de lhes conferir alguma unidade

enquanto reflexo da permanência da moral colonial na sociedade brasileira.

Diz ele que, “repassando-se os fatos e a história da independência nas

colónias latinas da América, se vê que ela se divide em dois períodos: 1)

resistência violenta dos refractários à ideia emancipadora; 2) transigência

dos mesmos, sua adesão aos movimentos. Em nenhum país estas duas fases

se acusam melhor do que no Brasil. Em 1789-92 esquarteja-se a

Conjuração mineira; em 1817, os independentes de Pernambuco são

combatidos, vencidos e executados implacavelmente; em 1822, a 560 Idem, ibidem, p.192.

249

independência é proclama pelo próprio «futuro rei de Portugal». É

característico.” (561). Para ele, “no Brasil, os refratários e realistas ainda

foram mais felizes, porque tiveram um príncipe de sangue, o próprio

herdeiro da coroa da metrópole, para chefe da monarquia com que eles

fizeram aqui a independência”(562). O verdadeiro momento “emancipador”

brasileiro teria ocorrido em Pernambuco, com os republicanos de 1817.

Libertação “abafada”, portanto, apesar de ser óbvio, para Bomfim

considerava que o “Brasil representava desde muito tempo os elementos

constitucionais de uma nacionalidade”. E se, entretanto, esta se emancipara,

fora porque “as ideias de liberdade andavam por toda parte” e porque “a

colônia era forte demais, e Portugal, decrépito, era a sombra, apenas, de

uma grandeza passada e efémera: crescera e fora logo anulado pelo

parasitismo” (563).

Importante é perceber, no decurso desta toada discursiva, que foi

exatamente pela influência enorme dos “retratos históricos” de Portugal

pintados pelas cores do “vencidismo” de Oliveira Martins que Manoel

Bomfim pôde formatar boa parte da sua leitura da realidade portuguesa e a

respectiva actuação nos trópicos. Foi-lhe igualmente possível compor

quadros da vida colonial como o seguinte: “É esta a síntese da vida

económica das novas nacionalidades por todo o tempo de colónia: o senhor

extorquindo o trabalho ao escravo, o negociante, o padre, o fisco e a

chusma dos subparasitas, extorquindo ao colono o que roubara ao índio e

ao negro. Trabalhar, produzir, só o escravo fazia” (564). Tal como Oliveira

Martins, Manoel Bomfim considera que “a escravidão na América do Sul

561 Idem, ibidem, p.220. 562 Faz-se notar que também Oliveira Martins chamava atenção para a “comunidade de sangue”, seja em escala ibérica, seja em escala ibero-americana. Veja-se, por exemplo, seu textopublicado no Nacional, em 27/01/1891, posteriormente editado em MARTINS, J.P. de Oliveira. Dispersos. Tomo II. Lisboa: Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1824. Idem, ibidem, p. 227563 Idem, ibidem, p. 227. 564 Idem, ibidem, p.131.

250

foi a abjeção moral, a degradação do trabalho, o embrutecimento e o

aniquilamento do trabalhador; e foi também a viciação da produção,

gerando males de efeitos extensíssimos, que teriam, todavia, desaparecido

com o progredir normal das nacionalidades nascentes”(565). É verdade que,

neste ponto, o escritor português introduzia um elemento de escusa de

responsabilidades. Reconhece, com efeito, que “a filantropia moderna tem

acusado os portugueses de inventores deste comércio de nova espécie; e a

nosso ver com fundamento, por isso nos coube a sorte de possuirmos o

litoral da África e boa parte da América tropical. Tínhamos a produção e o

consumo, a mercadoria e o mercado, dentro dos vastos limites das nossas

colónias”. Mas pergunta: “Era, porém, um crime como se pretende, o

escravizar o negro e levá-lo à América? Eis aí uma questão mais grave a

que nós respondemos negativamente, apesar da crueldade e da fereza dessa

espécie de comércio. Não menos ferozes e horrendos nos parecem,

também, os morticínios e a escravidão com que os Romanos submeteram a

nossa Península; e esse foi, entretanto, o duro preço por que ela pôde entrar

no grémio dos povos de civilização latina. Também a escravidão do negro

foi o duro preço da exploração da América, porque, sem ela, o Brasil não se

teria tornado no que vemos” (566).

Na realidade, se Oliveira Martins assim se permite referir ao

escravismo, é porque o compreende no âmbito de um “ciclo” histórico

consumado – um corsi e recorsi à Vico. Pacientes na Antiguidade e agentes

na Modernidade, os portugueses já teriam completado todos os ciclos vitais

desta instituição humana. E mais: o autor ainda afirma que, sem o escravo

negro levado à América pelas mãos portuguesas, o Brasil não teria se

tornado uma nação desenvolvida, conforme a compreendia ele no último

quartel dezenovista. Ora, tal como Oliveira Martins, Bomfim crê na 565 Idem, ibidem, p.133. 566 MARTINS, J.P. de Oliveira. O Brasil e as Colónias Portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ªEditores, 7ª edição, [1880], 1978, p.55-56.

251

capacidade de regeneração das sociedades: “as sociedades humanas têm

energias regeneradoras de que mal desconfiamos”. No entanto, se o

português tinha na modernidade parisiense o parâmetro a contrastar, o

brasileiro já busca nos Estados Unidos o diferencial explicativo, com se

percebe quando afirmava que “na América do Norte, os estados do Sul

estão, hoje, em situação bem próspera, apesar da escravidão. É que as

colônias inglesas puderam organizar-se desde logo segundo convinha aos

seus próprios interesses, e não foram vítimas de um parasitismo integral,

como esse que as metrópoles ibéricas estabeleceram para as suas colónias”

(567). Por isso, incontornável lhe parece realçar os “desastrosos efeitos” do

escravismo português para a nascente sociedade brasileira.

A evidência da decadência lusitana, tal como narrada

dramaticamente pelo próprio Oliveira Martins nas suas obras

historiográficas, permitir a Manoel Bomfim uma radicalização da sua

própria interpretação (568). É que, para este fito, por paradoxal que possa

parecer, nenhuma fonte seria mais adequada aos seus propósitos que a

interpretação martiniana, como se vê, claramente, neste excerto:

“Referindo-se à metrópole, diz Oliveira Martins: «Se a guerra é antes um

sistema de rapinas que uma sucessão de campanhas, a justiça é também

mais a expressão arbitrária de um instinto do que a aplicação regular de um

princípio». Esse instinto é o parasitismo, e na colónia é que ele se tornou,

por sua vez, o inspirador único de todas as justiças”. Eis o terreno

preparado para a condenação sumária da “herança” portuguesa: “fora disto,

não há mais nada: nem polícia, nem higiene, nem proteção ao fraco, nem

garantias, nem escolas, nem obras de interesse público… nada que

567 BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.133-134. 568 Segundo Bomfim, “quando foram instituídas as colónias, as nações ibéricas ainda não tinhamcompletado a sua organização; ou, melhor: a evolução política havia parado; a decadência, adegeneração, começara já”. Idem, ibidem, p.141.

252

represente a ação benéfica e pacífica dos poderes públicos” (569). Dois

motivos, para Bonfim, teriam tido papel fundamental para que o

parasitismo português conseguisse raízes no solo brasileiro: i) “o Brasil era,

naquela época, a única e verdadeira colónia portuguesa, e para cá vinham

quase todos os que, no reino, não obtinham viver diretamente ou

indiretamente do Tesouro real”; e ii) “emigrando para o Rio de Janeiro, a

corte trouxera consigo uma sobrecarga desses elementos refratários – o que

havia de melhor no gênero”. Neste ponto, convirá atentar, uma vez mais,

para o facto de que a fonte deste “retrato” histórico dos elementos

“refractários” que chegam ao Brasil, quando da transferência da Coroa, é,

justamente, J.P. de Oliveira Martins. A pujança pictórica da narrativa

martiniana salta aos olhos, citada explicitamente no livro do brasileiro:

“«Enxame de parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas esécias, frades e freiras, monsenhores e castrados. Os botes formigavam carregando, levando, vasando bocados da nação despedaçada… monges, desembargadores, todaessa ralé de ineptos figurões de lodo… Uma nuvem de gafanhotos, que desde o séculoXVII devorava tudo em Portugal, e ia pousar agora no Brasil, para, em casa, o dirigirmais à vontade»” (570).

Diante de tal quadro – e de outros semelhantes –, composto pela

pena de um português, não há que estranhar o aproveitamento que dele faz

Bomfim para sua teoria do parasitismo e apontar para o passado – para a

“herança” portuguesa – na hora de definir o verdadeiro mal de origem

brasileiro. Um passado colonial que ganha tonalidade de evidência

histórica num sentido que extrapola, inclusive, o “fato passado” mobilizado

a título de res gestae, indo mais além, no sentido em que indica o quinhão

sociológico a ser combatido; ou não fosse certo, para Bomfim, que o

Estado brasileiro, pelos seus vícios e degradação completa, representa

569 Idem, ibidem, p.143.570 O trecho citado também consta na História de Portugal, à página p.237 da edição já referida. BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.227.

253

ainda o passado colonial português (571). Esta será a bactéria a combater: o

lastro da memória lusitana na sociedade brasileira, que o autor isola, qual

“parasita”, como responsável pelo “mal de origem” da América Latina.

Afinal, o colonialismo português “não era, como nos Estados Unidos, um

regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das

sociedades nascentes, não era sequer um regime fictício, artificial, mas

lógico, estável, garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em

embrião se pudessem moldar com o tempo. Não; era um regime antipático,

iníquo, arcaico e incompleto – era o sistema da metrópole, desnaturado o

preciso para ser adaptado ao programa parasitário, imposto à colônia” (572).

Esta constatação, porém, não resolvia o problema de todo. Havia

um agravante importante. O fato de que o organismo parasitado derivar do

organismo parasita, sendo por ele educado, gera uma situação contrditoria e

exasperadora: “o novo organismo nacional procura, ao mesmo tempo,

imitar e repelir as instituições e o regime da metrópole”. Descortinam-se,

com isso, duas tendências fatais às novas nacionalidades latino-americanas,

“a hereditariedade, imitação e educação aproximando-as dos costumes e

processos políticos da metrópole; a repulsa, a antipatia e o horror à

opressão e espoliação de que foram vítimas, afastando-as daquilo que a

hereditariedade e a educação lhes impõem. Nacionalidades saídas das

nações ibéricas, mas ao mesmo tempo oprimidas e exploradas por elas, as

repúblicas sul-americanas viverão por muito tempo ainda neste conflito

permanente consigo mesmas” (573).

Citando particularmente a Hérédité psycologique, de Ribot, Manoel

Bomfim considera a existência de “caracteres psicológicos” transmitidos

571 Para o autor, no Brasil do final do século XIX, “o Estado é o inimigo, o opressor e oespoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança…Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seucaráter, duplamente maléfico – tirânico e espoliador”. Idem, ibidem.572 Idem, ibidem, p.144. 573 Idem, ibidem, p.154-155.

254

hereditariamente pela colonização ibérica às sociedades latino-americanas

(574). Pelo que, focando a identidade latino-americana, em relação à ibérica,

Manoel Bomfim considera que “no fundo, as qualidades dominantes de

caráter são as mesmas, mostrando bem claramente o parentesco que entre

elas existe” (575). Apesar das variações relacionadas com o meio, a

“herança” ibérica que os povos latino-americanos portam justificam a

persistência de “qualidades dominantes de caráter”, ingrediente moral

ibérico conservado em suas ex-colônias. De cariz materialista-monista –

fundamento teórico em que, recorde-se, a correlatividade entre matéria e

espírito é esteio epistêmico –, sua compreensão da hereditariedade entre os

povos não se resume apenas às questões raciais, por assim dizer,

incorporando também o entendimento de uma transposição “psicológica” e

conformando, com isso, uma transferência moral, facto que ajuda a que se

lhe agreguem as colorações de ordem moral de um julgamento no “tribunal

da história”.

Assim sendo, cabe saber, dentre as características morais herdadas,

qual a que deixa claro o grau de parentesco ibérico. A este respeito,

Bomfim é taxativo: “das qualidades a nós transmitidas, a mais sensível e

mais interessante – por ser a mais funesta – é o conservantismo, não se

pode dizer obstinado, por ser, em grande parte, inconsciente, mas que se

pode chamar propriamente – um conservantismo essencial, mais afeito que

intelectual”, pois, “na prática, todos esses homens das classes dirigentes são

escravos passivos da tradição e da rotina; são ativos apenas para opor-se a

qualquer inovação afetiva, a qualquer transformação real, progressista”. 574 Junte-se a isto o retrato histórico de Oliveira Martins e o resultado estará dado: “se o fato dahereditariedade social não fosse coisa evidente por simples raciocínio, o espetáculo dassociedades ibero-americanas, em comparação aos povos da península, seria bastante, por si só, como prova completa. Não é que, ao transitar-se por esta ou aquela parte da América do Sul, setenha a impressão de estar em Sevilha ou em Trás-os-Montes. Os povos aqui variaram, e o meioé outro. Mesmo nos limites de um só país e sob as mesmas instituições, a feição moral daspopulações se transforma um tanto; a variação é, a par da hereditariedade, o fator necessário naevolução dos seres vivos”. Idem, ibidem, p.157-158575 Idem, ibidem, idem.

255

Trata-se de uma “tendência instintiva ao conservantismo” (576). Daí uma

perplexidade: “a história nos mostrará, nas nacionalidades sul-americanas,

um partido «conservador», pesando decisivamente sobre a marcha das

coisas públicas. Pergunta-se agora: que é que havia então para

conservar?”. Perceba-se: a elite latino-americana é, para ele, a

representante da “herança” ibérica; uma herança nefasta; donde, sua crítica

social aponta para as elites enquanto verdadeiras representantes do passado

(577). Daí a reincidência na questão: “que pretendem então defender, deste

passado?… Ele é uma série de crimes, iniqüidades, violações de direitos,

resistências sistemáticas ao progresso. Que é que pretendem conservar? Só

se é justamente a decadência, a resignação social, e tudo mais que,

prendendo-nos ao passado, se opõe obstinadamente à vida e ao progresso,

que não é mais que a perda incessante de hábitos, a luta contra os costumes

estabelecidos, a adoção do que é moda e do que é novo, em oposição à

tendência dos preguiçosos e tímidos a imitar a história (Tarde)” (578).

“Imitar a história”. Eis o “calcanhar de Aquiles” da noção de

correlatividade, implícita à compreensão da hereditariedade, consoante o

materialismo-monista: ao mesmo tempo moral e natural, em todos os casos,

a transmissão das qualidades ibéricas era, para Bomfim, o verdadeiro óbice

a ser superado em direcção a um real progresso das sociedades latino-

americanas (579). Daí que seja o “passado” o obstáculo a vencer, pois o

“conservadorismo” das elites representaria, ainda, o jugo colonial. Este só

seria ultrapassado pela “ilustração”, pela “ciência”, em estreita ligação às

filosofias racionalistas da história. Em ordem a este desiderato, Bonfim não

hesita em promover a combinação de um Gabriel Tarde e de um Nietzsche, 576 Idem, ibidem, p.159-160. Grifos nossos. 577 Não deixa de ser curiosa a mobilização da obra de Manoel Bomfim no âmbito dos estudossobre a “superação” do “atraso brasileiro”, como, por exemplo, em SILVA, José Maria deOliveira. “Manoel Bomfim e a sociedade do futuro”. Educação & Sociedade, n.º22, 1987. 578 Ibidem, idem, idem. Grifos nossos. 579 Para uma reverberação deste posicionamento de Bomfim, tomado como “radicalismo”, verCÂNDIDO, Antônio. “Radicalismos” In: Revista Estudos Avançados, Vol.4, n.8, 1990, p.4-38.

256

mobilizados à moda de uma Magistra Vitae monista, na altura de explicar

que, mais que superar, se trata de desrespeitar o passado como condição

para o desenvolvimento, como vitória da “razão” contra as forças

“herdadas” da natureza degenerada:

“Nietzsche tem razão quando diz ser o irrespeito e o desprestígio a condiçãoessencial de todo o progresso. As nações sul-americanas têm que recompor toda a suavida política, administrativa, econômica, social e intelectual; se não querem morrerentanguidas, mesquinhas e ridículas, têm que travar uma luta sistemática, direta, formal, conscientemente dirigida contra o passado, respeitando apenas a sociabilidadeafetiva, natural entre as populações, e os sentimentos de hombridade e independêncianacional, característicos destes povos. Tudo mais será tenazmente combatido – é omeio de levar estas sociedades ao progresso, e colocá-las a par de outros povos, e deganhar a distância enorme que nos separa das nações verdadeiramente cultas eprogressistas” (580).

Deste ponto de vista, o conservadorismo das elites é entendido

como um resultado do passado colonial, pois “não é só por interesse, é por

herança, por educação”, que se instalam o sentimento de “desconfiança” e

“o horror ao progresso”, uma “antipatia” que “é incontestavelmente

herdada dos povos colonizadores que o parasitismo tornou conservadores

ferrenhos”. Trata-se, no fundo, para Bomfim, da “essência do parasitismo”:

um organismo quando principia a viver às custas de outro cessa de

progredir, pois já não tem necessidade. Assim sendo, gera-se-lhe, pelo

contrário, um deletério interesse de não alterar a sua situação.

Sendo o progresso só alcançável no âmbito de uma “luta” contra o

passado, e entendendo-se este como o palco “natural” da “herança ibérica,

compreende-se que, assim sendo, a superação do fardo ibérico, verdadeiro

“mal de origem” latino-americano, só possa vir, entretanto, com a adopção

de uma organização intelectual e moderna que tinha nos países centro-

europeus sua fonte emissora. Entendendo que somente a adoção da ciência

mais avançada propiciaria a superação dos vícios naturais herdados da

decadência ibérica e que tanto obstaculizavam o florescimento das

580 Idem, ibidem, p.160-161. Grifos nossos.

257

sociedades novas, o autor de América Latina: males de origem articulava,

de modo muito particular, os preceitos do organicismo sociológico sob o

fio condutor de uma temporalidade que se consumava tal qual um tribunal

ilustrado. E é nesse ponto que, numa metáfora orgânica, entende a funesta

herança que os colonizadores deixaram na América Latina: o mal de

origem como expressão de parasitismo. Ao conhecimento, à ciência, à

instrução popular, caberia a missão de “curar” esse mal e limpar o passado,

actuando como um remédio para a doença da sociedade latino-americana,

essa sobrevivência e essa herança do passado ibérico, chaga produzida

pelos anos de parasitismo das “sanguessugas de além mar” (581).

A perspectiva bomfiniana, pois, é clara. Não vale a pena prolongar-

lhe os trechos explicativos. Mas carece, entretanto, de ser acentuado que

também o anseio de modernização de Bomfim, à semelhança do que

pudemos apreciar noutros níveis, é análogo ao de Oliveira Martins.

Enquanto o “retrato” do passado lusitano feito pelo autor de O Brasil e as

Colónias Portuguesas suscita, no contexto português, uma recepção crítica

vertida para o reconhecimento social (e para sua melhoria), no Brasil, a

recepção daquele mesmo quadro autocrítico é pretexto para um reforço

demarcatório, sutentando o afastamento de uma pecha originária que,

comprovadamente – a partir da própria leitura martiniana –, havia razões de

sobra para recusar. Pense-se, a título de exemplo, no retrato inscrito na

História de Portugal, de um rei português de não-desprezível importância

na estética identitária das relações luso-brasileiras: D. João VI, personagem

que, em todas representações martinianas, foi o “mais extenso e

pormenorizado, tanto no plano físico como no ponto de vista psicológico”

(582):

581 Idem, ibidem, p.175. 582 MATOS, Sérgio Campos de. “História e Ficção em Oliveira Martins. Imagens daDegenerescência”. Revista de História das Ideias. Vol.21, 2000, p.161-162.

258

“Representante quase póstumo de uma dinastia, epitáfio vivo dos Braganças, sombra espessa de uma série de reis doidos ou ineptamente maus, D. João VI, jávelho, pesado, sujo, gorduroso, feio e obeso, com o olhar morto, a face caída etostada, o beiço pendente, curvado sobre os joelhos inchados, baloiçando como umfardo entre as almofadas de veludo dos velhos coches dourados de D. João V, eseguindo um magro esquadrão de cavalaria – era, para os que assim o viram, sobre asruas pedregosas de Lisboa, uma aparição burlesca. Para nós, ao lembrarmo-nos deque nesse coche, desconjuntado pelos solavancos das calçadas, vai o herdeiro e orepresentante do Condestável, o espectáculo ressuscita-nos a história da Nação, também desconjuntada pelos balanços da sua vida tormentosa. E se, porventura, asmisteriosas leis da vida têm um papel na história, força é reconhecer que na famíliados Braganças não vingou a semente da nobre raça de Nuno Álvares: viu-se emtodos eles a descendência do crasso sangue alentejano da filha do Barbadão” (583).

Diante de tão “burlesca” figura, imagem de evidente decadência ao

mesmo tempo orgânica e histórica” (584), bem se pode entender que a

respectiva repercussão na margem ocidental do Atlântico e, em concreto,

na atmosfera intelectual em que surpreendemos Manoel Bonfim, fosse

pretexto para confirmar as piores leituras sobre o carácter parasita da

“semente da nobre raça de Nuno Álvares” ou da sua semente abastardada.

Nos dois autores mencionados, Manoel Bomfim e Oliveira Martins,

há uma tentativa de aprender com os erros do passado, tal qual uma

Magistra Vitae moderna, é certo. No entanto, uma coisa é combater o

próprio passado, ou melhor, os equívocos e corrupções da dinastia de

Bragança, com o faz Oliveira Martins, em sentido autocrítico. Outra coisa,

porém, é combater um passado tido como passado do outro, como “herança

funesta”. Num caso, o magistério da história produz uma apetência por

aperfeiçoamento; no outro, produz-se um anseio por afastamento, feito

bandeira de uma necessária “cura” do passado e de um necessário combate

a ser consumado contra o tudo o que remetesse ao passado lusitano (585). É

583 MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol. II. Lisboa: Europa-América, [1879], 1991, p.188. Grifos nossos. 584 MATOS, Sérgio Campos de. “História e Ficção em Oliveira Martins. Imagens daDegenerescência”. Revista de História das Ideias. Vol.21, 2000, p.161-162. 585 Após um intervalo de mais de uma década, a produção historiográfica bomfiniana, depois dapublicação de América Latina: males de origem, em 1905, empreenderá a produção de umatrilogia: O Brasil na América, publicado em 1929, O Brasil na História, estampado em 1930, eO Brasil Nação, editado em 1932. Nestes livros, o autor dá azo à incorporação gradual doideário marxista, que já ganhava força no início do século XX. Contudo, a mobilização da

259

que, precisamente, a construção da nação brasileira deverá começar, para

Bomfim, a partir do marco de onde Portugal acabou. Embora parecida com

a imagem pintada pelas obras de Oliveira Martins, a ideia de Bomfim se

distingue da do autor de O Brasil e as Colónias portuguesas, justamente,

na utilização feita da exemplaridade do passado: o que para um é

positividade, para outro é negatividade. Mesmo com base em utilização do

mesmo “retrato” ou juízo sobre o passado, aparentemente próxima, por

vezes até idêntica, seu efeito, porém, será diverso, posto que a evidência da

degradação, num lado do Atlântico, receitará sua extirpação, em sua

margem tropical. Em finais do século XIX e nos inícios do seguinte, o culto

do afastamento brasileiro face a Portugal, defendido por representativa

linha interpretativa da identidade brasileira em redefinição, ditava, frente à

lição da história, a sua inversão.

Bem vistas as coisas, o percurso que efectuamos conduziu nossa

investigação ao cerne da problemática demarcatória. Sendo a historicidade

elemento fulcral da demarcação cultural, compreender-se-á que ela

acompanhe a própria lógica demarcatória e que se torne possível que sua

delimitação, mesmo quando iniciada pelo seu próprio centro de referência –

a história nacional –, possa transmitir-se como matriz a outros contextos,

história e o “papel” conferido a Portugal na construção de projectos para o desenvolvimentobrasileiro permanecerá o mesmo que fora traçado em 1905, ou seja, o de “mal de origem”. Aeste respeito, valerá à pena estudar, em futuros trabalhos, a influência das idéias de ManoelBomfim, sobretudo de sua estética identitária, por exemplo, na obra de Caio Prado Júnior, principalmente em A Formação do Brasil contemporâneo, publicado em 1945. No prefácio deO Brasil na América, Bomfim revela a influência de suas idéias de América Latina naorganização das obras posteriores, dizendo que “compreende-se, pois, que nestas páginas deagora se encontre, apenas, o desenvolvimento de conceitos patentes no outro livro. Não hámodificação de sentimentos, nem novidade de pensamento”. Esta compreensão da relação luso-brasileira foi também ecoada nos seus livros posteriores, ganhando mais nitidez ainda. Em OBrasil na História, por exemplo, estampado em 1930, há poucos anos antes de sua morte, Bomfim afirmará que “das condições duras e tristes que a história nos impoz, nenhuma é maisdura e lastimável do que essa necessidade de – affirmarmos a nosso caracter e toda a tradiçãonacional contra esse povo, mesmo, que nos formou”. BOMFIM, Manoel. O Brasil na América. Caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p.7 eBOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições. Degradação política. Riode Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1ª edição, 1930, p.193. Grifos nossos.

260

outros fins e, sobretudo, possa produzir efeitos diversos ou inversos.

Afirma Rui Cunha Martins que, em matéria de estratégias de transgressão

e/ou reafirmação de fronteiras, bem como de definição e estabelecimento

de limites – também os de ordem cultural –, “o que aqui se emancipa pode,

ali, num outro contexto, manifestar propriedades de constrangimento, e que

o contrário é também possível”. Asserção válida para o complexo processo

de construção das identidades nacionais, quando se sabe que estas, ao

trabalharem sobre fenômenos de demarcação cultural, trabalham sobre

fenômenos de redefinição do limite. E este, “em rigor, nem sequer solicita a

sua resolução, superando-se, unicamente, como perpétua reinvenção de si

mesmo. Motivo pelo qual pode dizer-se, com propriedade, que o maior

produtor de fronteiras é a própria fronteira” (586).

3. Moçárabes e Mestiços: a concorrência da forma híbrida.

Do processo de clarificação identitária luso-brasileiro não emergia

apenas a proposta de uma diferenciação futura por via de um radical

afastamento do passado originário. Na verdade, essa mesma questão da

origem, agora entendida enquanto primazia de determinado núcleo de

características tidas por fundantes de cada uma das nacionalidades, dava

corpo a uma leitura concorrente do relacionamento entre as culturas

portuguesa e brasileira. Em rigor, a problemática de base é a mesma nos

dois casos: o entendimento do fator “originalidade” e a necessidade

imperiosa de, para efeitos de demarcação identitária, clarificar os limites

pertinentes entre duas culturas historicamente comprometidas. Mas esta

mesma questão comportava duas dimensões complementares: a questão da

586 MARTINS, Rui Cunha. “O paradoxo da demarcação emancipatória: a fronteira na era da suareprodutibilidade icónica”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º59. Fevereiro 2001, p.50-51.

261

“origem” tomada por equivalente de “começo” e a questão da “origem”

tomada por equivalente de “originalidade” e de ineditismo. E se aquela, a

dimensão da origem enquanto princípio, era resolvida, à escala brasileira,

pela noção de “mal de origem” (foi o que vimos), imperioso parecia, em

simultâneo, resolver a dimensão da essência, isto é, da “originalidade”, da

“forma original”. A dificuldade estava na coexistência de duas “formas

originais” de igual matriz, afinal, sua manifestação em duas culturas

diferentes só podia aparecer como negação da própria originalidade

buscada. A concorrência surge aí, numa comum reivindicação da “forma

híbrida”.

Recordar-se-á que, em capítulo anterior, abordamos a polêmica

entre Teófilo Braga e Sílvio Romero. Importa agora recuperar essa corrente

dialógica entre as obras do açoriano e do sergipano, que aqui tomaremos

por expressiva da aludida linha concorrencial instalada no universo

identitário luso-brasileiro. São dois, para o nosso intuito, os aspectos a

reter: sua similitude formal (587) e uma paralela concorrência estético-

identitária – tipificada pelas figuras do “moçárabe” e do “mestiço” – no

âmbito das demarcações da história processadas no seio da fundação das

culturas nacionais “portuguesa” e “brasileira”.

3.1. Como é sobejamente reconhecido, Teófilo Braga possui um papel

destacado no rol de intelectuais que, nos finais do XIX, se preocuparam

com escrutinar o passado para construir, a partir daí, referenciais estéticos

sobre a “cultura portuguesa”. Sua ação na divulgação de ideias, no âmbito

da “frente cientista”, teve uma amplitude que não se resumiu ao âmbito 587 Aproximações hermenêuticas das obras de Teófilo Braga e Sílvio Romero foram jádelineadas por alguns pesquisadores que participaram do III Colóquio Tobias Barreto. A esterespeito, sugerimos a consulta de Sílvio Romero e Teófilo Braga. Actas do III Colóquio TobiasBarreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1996, em especial os textos deRODRIGUES, Ana Maria Moog, “Sílvio Romero, consciência da nacionalidade e afinidadecom Theófilo Braga”, pp.81.101 e BORGES, Paulo Alexandre, “Tradição, literatura enacionalidade em Teófilo Braga e Sílvio Romero”, pp.121-136.

262

português (588). Ao contrário, sua obra teve repercussão bastante também

no Brasil (589), tanto no sentido de um “irmanar” cientista, como no sentido

de se instituir em pólo de contraste no processo de autodeterminação

idearia e estética brasileiro (590). Trata-se, deste modo, de um perfil

intelectual e de uma obra de alguma forma atuantes em escala cultural

“luso-brasileira”. Tomaremos como expressão de seu pensamento, para o

que aqui nos interessa, a edição de 1909 de sua História da Literatura

Portuguesa, o que se justifica pelo fato de se tratar de uma versão madura

de suas ideias que já há tempos vinham sendo submetidas ao público

letrado (591) e à crítica académica (592), ao ponto de se poder afirmar que

muitas das questões que Teófilo havia antes abordado confluíram neste

588 É interessante também realçar a importância da obra de Teófilo Braga no âmbito dademarcação cultural da Galiza. A este respeito, consultar FEIJÓ, Elias J. Torres. “Culturaportuguesa e legitimação do sistema galeguista: historiadores e filólogos (1880-1891)”. LerHistória, 36, 1999, pp.273-318. 589 Veja-se, por exemplo, a extensa lista de citações e referências a Teófilo Braga colectadas naimprensa brasileira pelo seu discípulo Fran Paxeco. PAXECO, Fran. Teófilo no Brasil. Lisboa:Casa Ventura Abrantes, 1917. Consultar também as cartas onde Teófilo menciona seurelacionamento cultural com vários brasileiros, bem com algumas cerimónias realizadas porFran Paxeco, no Brasil, em homenagem ao seu mestre. PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo (comum definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa:Portugália, 1924. 590 Como foi no caso de Sílvio Romero, conforme expusemos no primeiro capítulo. Lembrem-setambém as referências a Teófilo nos “Fatores da Literatura Brasileira” em ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. Coleção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ª Edição organizadae prefaciada por Nelson Romero, [1888], 1943. 591 É o próprio Teófilo quem o diz, ao mencionar que “já por três vezes o vasto corpo daHistória da Literatura portuguesa tem sido submetido a este processo de condensação: em 1875no Manual de História da Literatura portuguesa (in-de VII- 474p.), destinado às lições orais. Embreve ficou atrasado, pela publicação dos Cancioneiros trovadorescos e pelo aperfeiçoamento dométodo histórico e filosófico, dando lugar à remodelação do plano em 1885 no Curso daHistória da Literatura portuguesa (in-8º granda, de 421p.)”. BRAGA, Teófilo. História daLiteratura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909], 1989, p.59. 592 Veja-se, a este respeito, a intensa polêmica com Oliveira Martins, entre outros. BRAGA, Teófilo. Os críticos da História da Literatura Portugueza. Exame das affirmações dos Srs. Oliveira Martins, Anthero de Quental e Pinheiro Chagas. Porto: Imprensa Portugueza Editora, 1872 e MARTINS, J.P. de Oliveira. “A Teoria do Mosarabismo, de Teófilo Braga” (Inédito). Biblos. Coimbra, n.º28, 1952, pp.139-177.

263

opúsculo, servidas agora por uma maior sistematização de seu pensamento

(593), constatação que avaliza sua representatividade (594).

Oriunda de uma compreensão estético-filosófica que crê na

representatividade da Literatura como “manifestação do génio” português,

a História da Literatura Portuguesa enquadra-se na perspectiva atinente ao

cientismo histórico, para onde convergem, desde o momento jusante da

“frente cientista”, muitos elementos do pensamento heterodoxo positivista

à Littré, amalgamados com traços do neolamarckismo e do materialismo

monista. Uma atmosfera intelectual cujo denodo fatual conferia ao estudo

das literaturas nacionais uma dimensão que correspondia ao escrutínio

estético da nacionalidade. Se, no caso de Teófilo Braga, a preocupação

nacionalista, em suas vinculações filosóficas ao cientismo dezenovista,

assume um destaque particularmente importante, isso se deve à sua

participação em uma matriz de compreensão da identidade e da cultura

portuguesa que, por sua vez, exercita uma mobilização da história peculiar:

a definição de “factores estáticos” e “dinâmicos” da cultura portuguesa

corresponderia ao intuito de, uma vez mais, “revivescer” as energias

indómitas de uma lusitanidade “racial”. É tendo em conta este cenário pré-

compreensivo, bem como a sua natural interferência sobre a nossa

específica escala de análise, que temos por pertinente a colocação das

seguintes questões: i) como Teófilo definia a “cultura” portuguesa? ii) qual

a mobilização da história exercitada pela matriz teofiliana? e iii) qual o

593 Referimos, aqui, além do Manual de História da Literatura em Portugal, editado em 1875, edo Curso da História da Literatura Portuguesa, de 1885, mencionados por Teófilo, tambémEpopêas da Raça Mosárabe, publicado pela Imprensa Portuguesa Editora em 1871, “Elementosda Nacionalidade Portuguesa”, publicado em fragmentos na Revista de Estudos Livres, nobiênio1883-1884, e Contos Tradicionais do Povo Português, volumes I e II, publicados em1883. 594 Lembre-se também que esta edição da História da Literatura Portuguesa, de 1909, foi dadaà estampa em meio ao conturbado ambiente posterior ao regicídio e ao acirramento dacampanha republicana. Como se sabe, em 1910, Teófilo Braga será nomeado o primeiropresidente da República em Portugal, posição a que fora alçado pela sua liderança erepresentatividade no âmbito dos movimentos envolvidos na troca de regime político.

264

lugar, expresso ou implícito, do Brasil no relacionamento cultural luso-

brasileiro deduzido da sua abordagem? Será do escrutínio destes elementos

que nos ocuparemos a seguir.

De acordo com o pensamento teofiliano “a elaboração da Literatura

portuguesa é o produto do ethos da raça, do sentimento da nacionalidade e

da consciência histórica”. Sua obra representaria, assim, o estudo histórico

de um “produto superior do génio português”, com o auxílio analítico de

“processos críticos” que buscavam compreender “a psicologia colectiva e o

ponto de vista sociológico” (595). É que, para Teófilo Braga, “para que uma

Literatura se forme é necessário que uma raça fixe os seus caracteres

antropológicos pela prolongada hereditariedade, que funde a agregação ou

consenso moral da Nacionalidade, tendo o estímulo de resistência na sua

Tradição e na unidade a Língua disciplinada pela escrita, universalizando a

relação psicológica das emoções populares com as manifestações

concebidas pelos génios artísticos” (596). Daí que o estudo da literatura

fosse entendido como o representante de uma “síntese completa” da

nacionalidade, na medida em que para ele confluíam “os aspectos da sua

evolução secular e histórica”. Pois “na marcha histórica de qualquer povo”,

considera Teófilo, “existe um trabalho constante de síntese ou coordenação

espontânea de todas as suas energias, conformando os actos com os

sentimentos e ideias dominantes” (597). Nas linhas escritas em 1909, Braga

considera existirem três sínteses: a “síntese activa” exercitada pela política

geral; a “síntese especulativa” representada pela filosofia, entendida esta

como o espaço discursivo para onde dimanavam os dados objectivos das

595 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.61-62. 596 Idem, ibidem, p.63. 597 Idem, ibidem.

265

ciências; e ainda uma “síntese afectiva” manifestada na literatura e na arte,

enquanto manifestação da “tradição” e da “autonomia nacional” (598).

Atente-se para o papel de representante “afectivo” que o autor

confere à Literatura. A sua explicação radica em que, mesmo sendo adepto

da filosofia positiva, Teófilo não deixou, entretanto, de fazer eco de

compreensões algo metafísicas vinculadas à ideia de “Povo” (599), baliza

tão cara ao romantismo de um Schlegel, por exemplo. Lembre-se, neste

ínterim, que muito de sua curiosidade filológica também possui esta

filiação. Não obstante isto, o pensamento teofiliano, como já se disse com

propriedade (600), apresenta originalidade, não se submetendo à glosa nem

do positivismo ortodoxo laffitista nem mesmo da heterodoxia littreana.

Entre outras coisas, sua preocupação com a demarcação rácica da cultura

portuguesa, no âmbito dos demais povos ibéricos, bem como pela sua

vinculação mais geral ao movimento de cientifização das sociedades, foi

marcada pelo “enlace” de um heterodoxo positivismo com o materialismo

monista. A este respeito, valerá a pena recordar, com Amadeu Carvalho

Homem, que “facilmente se explica a transição teofiliana da positividade

para o cientismo monístico-materialista, ou melhor, a simbiose que nele se

opera entre estes dois termos. Segundo as leituras de Comte e Littré, o

positivismo escapava à dicotomia idealismo-materialismo. Como nada

afirmava ou negava sobre a existência de primeiros princípios e de fins

últimos, limitando-se a assinalar a impertinência destas noções no plano da

funcionalidade científica, aquela filosofia pôde ser apresentada como um

agnosticismo. Mas a postura positivista, precisamente pelo facto da sua

neutralidade, tanto consentia a compaginação com um idealismo cauto, – é

exemplar, neste aspecto, o discurso de Spencer sobre o Incognoscível –, 598 Idem, ibidem, p.64. 599 PALMA-FERREIRA, João. “Prefácio”. In: BRAGA, Teófilo. História da LiteraturaPortuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1989. 600 HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989.

266

como permitia a inflexão materialista. Bastava, para isso, abandonar com

decisão o campo agnóstico e sustentar a imanência de uma armadura de leis

naturais e de princípios materiais em que se incluíssem todos os aspectos

do «cosmos» inerte e vivente. Teófilo não hesitou em dar esse passo” (601).

De posse destes elementos, estamos melhor apetrechados para

situar a importância que não poderia deixar de lhe merecer o problema da

natureza e do cariz identitário da “cultura portuguesa”, do mesmo modo

que o estudo das literaturas nacionais. Para o pensador açoriano, seu estudo

está subordinado ao meio social, tanto na origem como no destino.

Entenda-se: origem e destino da nacionalidade. É que o método utilizado

por Teófilo, como ele próprio o dizia com ênfase, “assenta no ponto de

vista francamente histórico” (602), afirmação que, entretanto, não quer dizer

que a matriz teofiliana mobilizava uma mesma lógica da história que a de

um Oliveira Martins, por exemplo. Ao contrário: entre a “lição moral” da

história martiniana, e a abordagem de Teófilo, há muito que distinguir.

Interessa-nos, em especial, o acento exposto a este respeito por Ana Leonor

Pereira, ao chamar a atenção para o fato de que “as noções de

imprevisibilidade, acaso, indeterminação, não têm lugar na teoria teofiliana

da história” (603). É que, para o autor da História Universal: esboço de

Sociologia Descriptiva, editada entre 1878-1882 (604), a cientifização da

601 HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989, p.105. 602 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.64. 603 PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal (1865-1914). Filosofia. História. EngenhariaSocial. Coimbra: Nova Almedina, 2001, p. 162. 604 Obra que, aliás, Joaquim Saldanha Marinho, célebre senador e jornalista – signatário doManifesto Republicano de 1870 –, agradeceu a Teófilo Braga. Em carta assinada a 8 de janeirode 1879, no Rio de Janeiro, expressava-se da seguinte maneira o senador brasileiro: “Porintermédio do seu digno editor tive a honra de ser obsequiado com um exemplar da HistóriaUniversal, com que v. acaba de enriquecer as letras portuguesas e os estudos históricos. Hámuito acompanho, sempre com crescente entusiasmo, os variados e importantes trabalhosliterários e científicos que tem valido a v. os encómios e louvores de juízos mais competentes doque eu. Admiro-o pelo seu muito saber e brilhante talento; não o admiro menos pela suainfatigável perseverança no trabalho, e pela coragem com que propaga as doutrinas que euconsidero as únicas capazes de regenerarem a sociedade moderna”. In: BRAGA, Teófilo.

267

história advinha da “subordinação do facto social ao facto biológico” (605).

Dir-se-ia que a “entificação da História”, manifesta nas filosofias da

história, fora substituída pela “entificação da Ciência” (606). É que, tal como

vimos, a sociologia – entendida como ciência-mater da cientifização da

realidade social – fora “arrancada ao pélago da História”, na poética de

Isidro Martins Júnior. Daí que não possa passar despercebido que a

mobilização da história, em Teófilo Braga, se dê enquanto sociologia

descritiva. Deve, entretanto, frisar-se que nenhum destes aspectos pode

brigar com outra precisão igualmente nuclear: sua leitura da “história” em

muito estava condicionada pelas ciências da matéria. E se era lícito admitir

que nada se cria, tudo se transforma, especial relevância teria de ser

concedida ao princípio da correlatividade entre matéria e espírito, entre

natureza e sociedade – pressuposto-chave do monismo materialista (607). A

transferência epistêmica dos princípios e leis gerais da natureza para a

compreensão da vida do homem em sociedade foi a escora fundamental do

sistêmico pensamento de Teófilo Braga. Representava a premência da

empiria e sua recusa às metafísicas filosofias da história.

Dito isto, não surpreenderá a detecção, na História da Literatura

Portuguesa, de uma preocupação especial com os conceitos de raça e meio,

mobilizados como constantes epistêmicas para o entendimento das

Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900) – Cartas a Teófilo Braga, com um prólogo“Autobiografia mental de um pensador isolado”. Lisboa: Tipografia Lusitana – Editora ArturBrandão, 1902, p.210. 605 BRAGA, Teófilo. História Universal: Esboço de sociologia descritptiva, p.9 citado porPEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal (1865-1914). Filosofia. História. EngenhariaSocial. Coimbra: Nova Almedina, 2001, p.156. 606 Sobre a entificação da ciência e sua relação com o historicismo, consultar CATROGA, Fernando. “Cientismo e Historicismo”, In: FITAS, Augusto J.; CATROGA, Fernando et all. Seminário sobre o Positivismo. Évora: Centro de Investigação da U. E. Série: Centro de Estudosde História e Filosofia da Ciência, n.º3, 1998. 607 Segundo Amadeu Carvalho Homem, “A correlatividade será, desta maneira, o grandeprincípio norteador das sínteses filosóficas positivas, já que conhecer a matéria pelasmodificações do meio (ou forças) é o mesmo que garantir que a acção das forças (movimento)modificará os equilíbrios da matéria”. HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo emPortugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989, p.111.

268

sociedades. Consoante o pensamento teofiliano, “a Literatura reflecte todas

as sucessivas modificações desse meio, achando-se, como todos os outros

fenómenos sociológicos, sujeita a leis naturais de ordem estática ou de

conservação, e de acção dinâmica ou de progresso”. Por isso, Teófilo

chamará a atenção para o fato de que estes elementos constantes

funcionariam “como órgãos subtraídos à vontade individual, mas pelos

quais se exercem os processos da concepção artística e constituem os

elementos estáticos das Literaturas: a Raça, a Tradição, a Língua e a

Nacionalidade” (608). A estes, porém, se juntariam forçosamente os

elementos variáveis, “dinâmicos”, que seriam representadas pela soma das

“épocas históricas” e a ação do meio social sobre a Literatura Nacional.

Neste quesito, destacará a Idade Média, a Renascença e o Romantismo.

Vejamos, por conseguinte, a concretização de uma noção de

história fortemente coincidente com a ideia de “sociologia descritiva”

aliada a uma paralela voracidade sistêmica em permanente requisição dos

caracteres “raça” e “meio”, mobilizados como constantes históricas. A isto,

agregue-se uma compreensão da temporalidade vinculada ao monismo-

materialista que, ao enfatizar a existência de uma “elaboração orgânica da

literatura”, ajuda a fundamentar a existência de uma originalidade racial

portuguesa no âmbito ibérico (609). Estes tópicos, em sua

complementaridade, parecem assentar bem ao pensamento teofiliano. Por

ser assim, vemo-lo dedicar-se amiúde à questão dos critérios rácicos da

608 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.64-65. 609 Teófilo ecoava as considerações de Pi y Margall acerca da existência de diversas“nacionalidades ibéricas”, conforme pode-se ver no seguinte trecho: “Entre as Literaturashispânicas, duas correspondem às duas raças, a ibérica e a lusitana, que subsistem diferenciadasdesde as épocas remotas até as mais recentes crises históricas, e basta esta correspondência paradescobrir o seu carácter tradicional e popular, e por vez modificado pelo pedantismo erudito. Enquanto as Literaturas castelhana e portuguesa avançam para a perfeição estética, outras, como a aragonesa, valenciana e catalã, que floresceram, extinguiram-se, porque o apoio danacionalidade reduziu-se a um regionalismo em revolta contra uma incorporação política eadministrativa, como se confirma pela galiciana”. Idem, ibidem, p.66.

269

Antropologia dezenovista, tomada como um estudo “verdadeiramente

reconstrutivo da história primitiva” (610), na medida em que “os grandes

factos antropológicos da formação de uma raça e do seu agrupamento

espontâneo em sociedade, até chegar à forma voluntária ou consciente de

nação, com costumes, língua, religião e indústria próprias, não podem ser

determinados pelo cômputo cronológico, não começam em um dado dia;

são a consequência de elementos anteriores, de energias persistentes, de

acção do meio cósmico, e por isso quanto mais se profundarem estas

condições mesológicas, antropológicas e étnicas, tanto mais se esclarece

esse facto complexo que se denomina a História, e se compreende melhor a

evolução progressiva da actividade de um povo” (611).

Para Braga, o estudo da “raça” é “preliminar para a compreensão da

Literatura” porque é entendido como revelador das condições da vida

nacional. Baseado nas conclusões “científicas” da Antropologia de sua

época, chama atenção para o critério monista da persistência dos

caracteres adquiridos, ou como ele revela, para a “persistência das Raças,

nos seus tipos ainda os mais remotos, e a conservação dos seus costumes

através dos mais numerosos e mais fortes” (612). Com tal arcabouço teórico,

natural parecia a Teófilo que se escrutinasse o recôndito passado da história

primitiva em busca das constantes étnicas. O recurso à filologia e à

antropologia estaria, deste modo, a subsidiar sua análise da literatura

portuguesa – seria ele o suporte descritivo do sistema teofiliano. Por outro

lado, estribado em Prichard, Teófilo Braga assinalava a nuclearidade da

noção de hereditariedade através do conceito de raça, entendido como

representante da “origem”. Um critério analítico que tinha o poder de

explicar o porquê das formas literárias, tendo igualmente a capacidade de 610 Idem, ibidem, p.67. 611 BRAGA, Teófilo. “Elementos da Nacionalidade Portuguesa” In: Revista de Estudos Livres, Lisboa: Nova Livraria Internacional Editora, volume 1883-1884, 1884, p.5. 612 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.67.

270

realçar a originalidade e a autonomia nacionais. Afinal, “as Literaturas

distinguem-se entre si pelas tradições elaboradas em línguas escritas e pelo

modo de sentir de uma nacionalidade” (613). A isto, somava-se a influência

das análises de Taine sobre a literatura inglesa (614). Tal como o inglês,

Teófilo cria na transparência dos diversos componentes étnicos na literatura

nacional, como bem se percebe ao sustentar que “sob este critério, há um

outro importante fenómeno a considerar: o encontro e fusão de duas raças

determina uma revivescência de tradições hierológicas ou poéticas”.

Segundo ele, será “o estudo da raça na história de qualquer literatura o

meio de descobrir a base tradicional sobre que se desenvolveu, e dela

deduzir o que tenha originalidade e feição nacional” (615).

Esta incursão a que procedemos, mesmo que de forma sucinta, pelo

pensamento de Teófilo e pela matriz de entendimento histórico que

mobilizava, habilita-nos a averiguar sua definição da “cultura portuguesa”.

Nada a estranhar, pois, o seu convencimento de que, em se tratando de

Portugal, o “problema da raça é do mais alto interesse”, posto que a faixa

ocidental da Península Ibérica, constituída reino autônomo no século XII,

preenche o território que “é ainda o que foi ocupado pelas tribos lusitanas,

tendo a menos a Galiza e a Andaluzia, que formavam, segundo Estrabão,

no seu conjunto a LUSITANIA dos antigos” (616). Como é sabido, a tese de

Teófilo Braga – que buscava sustentar a existência de uma originalidade

racial como determinante da existência de Portugal como nação – ia em

desacordo com a historiografia de Alexandre Herculano (a qual ressalta o

613 Idem, ibidem, p.68. 614 Como o próprio Teófilo revela: “este mesmo critério foi aplicado por Taine à Literaturainglesa, em que o elemento saxão conserva o génio e as tradições germânicas, ao passo que onormando submete-se à disciplina da imitação, como se manifesta na dupla influência deShakespeare e Pope”. O paralelo entre esta dualidade Shakespeare e Pope e a estabelecida, depois, entre Camões e Gil Vicente foge aos propósitos desta pesquisa. Deixamos, contudo, apenas esta sugestão analítica. Idem, ibidem, p.68. 615 Idem, ibidem, p.69616 Idem, ibidem.

271

carácter da vontade política dos reis) (617). Esta mesma questão, seria o

cavalo de batalha da intensa polêmica travada entre o açoriano e Oliveira

Martins – que ecoava a tese de Herculano (618). Assim, não surpreende que

Teófilo considere que os mencionados “dois historiógrafos,

desnacionalizaram Portugal”. Outra desnaturação do tipo português, para

Brga, “é feita pelos eruditos que compilam factos, que identificam Portugal

com um país de Celtas, sem conhecerem nem a cronologia desta raça, nem

os seus caracteres antropológicos em antítese com os dos portugueses. E, já

é favor; porque, para os nossos vizinhos castelhanos, não há diferença

alguma entre Espanhóis e Portugueses, são um povo único!” (619). Não há,

para Teófilo, um descolamento entre a esfera política – a vontade política

da proclamação da autonomia portucalense – e a concretude dos princípios

constantes observados na natureza. Sendo a correlação entre matéria e

espírito a pedra-de-toque do materialismo monista, a pujança deste ideário

no pensamento teófiliano deu-lhe a segurança necessária para buscar a

explicação da existência de Portugal na natureza. Fez-lhe demarcar a

cultura pela raça. O “espírito do povo” ou a vontade política seriam

consequência de uma longa maturação racial. Assim, o período 1128-1141

era compreendido como uma revivescência do lusismo, avesso aos anseios

unionistas do castelhanismo.

Esta demarcação entre o luso e o castelhano remontava, porém, ao

período romano. Uma dualidade que, para Teófilo, não remete à política;

617 Sobre a existência de determinações rácicas para a existência de Portugal, declara o açoriano:“a esta pergunta, respondeu Alexandre Herculano negativamente, considerando a Lusitânia umterritório diferente do de Portugal, e os Lusos umas tribos bárbaras, com quem o povo portuguêsnada tinha de comum, por ser um elemento adventício, transplantado das Astúrias e do reino deLeão; que pretender relacionar os dados de Estrabão sobre os Lusitanos com os portugueses, erauma preocupação heráldica dos humanistas do século XVI. Como poderia o historiadorcompreender o individualismo étnico de Portugal?”. Idem, ibidem, p.70. 618 Sobre Oliveira Martins, diz Teófilo: “Pior do que Herculano, veio o frasista OliveiraMartins, considerando Portugal essa horda de adventícios asturo-leoneses submetendo-se àagregação de uma nacionalidade pelas ambições e esforços continuados dos políticosdirigentes”. Idem, ibidem, p.70. 619 Idem, ibidem, p.70.

272

relaciona-se com a persistência de caracteres antropológicos, pois, “a

eterna divortia”, dirá ele, mencionando a Púnica de Sílio Itálico, “entre

Iberos e Celtas, é ainda hoje implacavelmente mantida nas duas

nacionalidades hispânicas”, conformando, com isto, “duas raças, a ibérica e

a lusitana, evolucionando nas situações primitivas”. De acordo com esta

leitura, a Península Ibérica entendia-se como estando dividida em dois

segmentos étnicos, duas vertentes: “a oriental, ocupada pelos Iberos, e a

ocidental pelos Lusitanos, mantendo através de todos os cataclismos

sociais e históricos as suas individualidades étnicas, manifestando-se ao

fim de tantos séculos a Nacionalidade castelhana e a Nacionalidade

portuguesa, sempre inconfundíveis” (620). E se a constituição cientista

demanda à descritividade fatual o saciar da sede probatória, não espanta

que Teófilo busque definir fenotipicamente, bem à moda da antropologia

física dezenovista, os caracteres essenciais da raça lusitana, base da sua

definição do Luso enquanto representante pré-céltico do ramo dos Ligures:

“na vertente ocidental estabeleceu-se o Luso, ramo de uma raça navegadora

que fazia o comércio do âmbar, do mar do Norte, os Ligures. Distingue-se

esta raça pela sua estatura mediana, e cabeça redonda; pela cor trigueira da

pele, cabelos e olhos castanhos, e leptorrinia” (621).

De tudo o foi citado, resulta patente a importância que Teófilo

emprestava à demarcação entre Portugal e Espanha (622). E será deste ponto

que arranca a importância desmesurada conferida ás divisões raciais,

linguísticas e literárias. Afinal, aquela “primitiva extensão do território

mostra-nos como a população lusitana pôde contrabalançar-se com a

população ibérica, cujos caracteres são nitidamente diferenciados pelos

620 Idem, ibidem, p.70. 621 Idem, ibidem, p.71. 622 É importante frisar que, para Teófilo, “as diferenças do Ibero e do Luso ainda hoje seimpõem à observação no antagonismo político, intelectual e moral; não os separam fronteirasmateriais, nem tão-pouco instituições religiosas ou sociais, mas prevalece uma imanenteantinomia. É na raça que ela se há-de encontrar”. Idem, ibidem.

273

geógrafos gregos e romanos. Embora diminuído o território pelas divisões

administrativas romanas, e pelas incorporações neogóticas, o pequeno

Portugal de hoje nunca perdeu a população lusitana que o ocupava,

podendo afirmar-se, pelos recursos da comprovação antropológica, que não

há solução de continuidade do tipo luso para o português actual” (623). Por

isto, dirá, no território em que veio a constituir-se um dia o Estado de

Portugal, “vê-se que essa nova nacionalidade apareceu no século XII como

uma revivescência étnica” (624). Acresce a esta interpretação, o papel

atribuído aos Celtas pela compreensão teofiliana das nacionalidades na

Península Ibérica. Segundo o autor da História da Literatura Portuguesa, a

invasão dos Celtas atuou mais fortemente entre os Iberos que entre os

Lusos. Por isso, fazendo eco das considerações de Sarmento, aduz que

“celtas e iberos formam uma nação mixta, os Celtiberos”, informação que,

contudo, só ganha o devido realce com a adenda de que “frente os lusitanos

a invasão céltica foi mesquinha” (625). De uma forma ou de outra, e isso

parece ser o dado a reter, a demarcação rácica entre os povos habitantes da

Península Ibérica sustenta a respectiva demarcação identitária. Esta,

entretanto, será completada ainda por outro elemento.

Para Teófilo, nem romanos, nem celtas, nem fenícios se mestiçaram

com a raça lusa, quadro que se irá alterar com a invasão sarracena de 711.

É neste contexto que se processa, na teoria teofiliana, a entrada em cena

dos moçárabes. É neste contexto preciso que, por maioria de razão, as suas

considerações aumentam exponencialmente de significado para a instrução

da nossa problemática. A matriz interpretativa de base é, grosseiramente,

esta: “quando se constituiu a nacionalidade portuguesa, no século XII, foi

essa população dos Moçárabes a matéria-prima; era ela que estava no

623 Idem, ibidem, p.72. 624 Idem, ibidem, p.73. 625 Idem, ibidem, p.74.

274

território da obliterada Lusitânia” (626). O detalhe da matéria-prima não é

de somenos: no contexto da constituição nacional, o incremento moçárabe

é elemento fundante, primevo, verdadeiro traço de originalidade da cultura

portuguesa.

Em bom rigor, a influência moçárabe foi sendo trabalhada, por

Teófilo durante bastante tempo (627), em simultâneo, com a paralela

ascendência do “lusismo”, conformando de alguma maneira, uma

dualidade cultural entre “cultura aristocrática” e “cultura popular” (628).

Segundo Braga, “a classe popular, cada vez mais comprimida, só pôde

evolucionar socialmente no princípio do século VIII, quando a invasão dos

Árabes pela tolerância política e religiosa lhe permitiu a sua livre

actividade e expressão das suas crenças. É preciso distinguir esta dupla

influência, a aristocracia eclesiástica, ou erudita, a qual pela circunstância

da resistência contra os Árabes se chama Asturo-Leonesa, e a popular,

desde o século XI conhecida pelo nome de Moçárabe” (629). Já na Epopeia

da Raça Moçárabe, publicada em 1871, Teófilo chamava atenção para a

626 Idem, ibidem, p.80. 627 Desde a versão de 1871, da História da Literatura Portuguesa, Teófilo Braga propagava aimportância da contribuição rácica do moçárabe na formação de Portugal. Esta edição de 1871foi alvo de muitas críticas, às quais o autor respondeu no opúsculo Os Críticos da História daLiteratura Portuguesa. É, entretanto, na Epopéia da Raça Moçárabe, publicada em 1871, quese podem encontrar trechos como este, que revelam muito do argumento teofiliano: “O povoportuguez também teve uma poesia própria, nacional, filha do génio da raça a que pertencia, cantando as paixões e as phases da vida, acompanhando as suas transformações, contando a suahistória mais ou menos apagada, mais ou menos original. Ninguém suspeitou tal existência;alguns poetas, como Gil Vicente, tiraram d’ella grandes recursos de espontaneidade, mas nãocom o respeito que dá a verdadeira comprehensão. (…) Procurar na intima organização da raçamosarabe, que constitui o povo portuguez, os elementos primários que entraram na cração dosRomanceiros, eis o que forma o objecto d’este livro. Todas as investigações seriam sem critério, se por ventura se não acompanhar o problema do génesis da raça”. BRAGA, Teófilo. Epopêasda Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1871, p.5-6. Grifos nossos. 628 “A nacionalidade portugueza é formada de dois elementos; perfeitamente caracterizados naethnographia e na primitiva occupação do território, torna-se mais evidente esta verdade nahistória da Poesia. Do Douro até ao Algarve existiam essas povoações mosarabes, que foramsendo encorporadas no território em que Dom Affonso Henriques constituiu o seu reino; estaspovoações formam o elemento gothico-arabe da nossa nacionalidade, e a ellas pertence a grandepoesia épico-narrativa dos Romanceiros”. Idem, ibidem, p.5629 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.87-88.

275

incorporação e mistura do elemento árabe com o godo (luso). Segundo ele,

“do século VII ao século XIII o godo tornou-se Mosarabe ou imitador do

árabe: do século XIII ao século XV o povo continuou a reconhecer essa

influencia sustentada pelos Mixtiarabes ou árabes forros que viviam entre

as povoações christãs”. (630). Assim sendo, foi fácil “a harmonia moral

entre a população existente e o invasor, que se apropriara da civilização

helénica, abrindo novos focos de revivescência do génio grego em

Damasco e Bagdade. Os hispano-godos imitaram o viver dos árabes,

conservando as suas crenças cristãs, e formaram a população dos

Moçarabes” (631). Explicitações deste teor poderiam, como se sabe, repetir-

se. Para os nossos intuitos, não se torna necessário prolongar a evidência

probatória. O significado do “moçárabe” na sua abordagem da cultura

portuguesa está, para nós, suficientemente gravado. A ele voltaremos em

seguida. Mais proveitoso, em contrapartida, se afigura recuperar o que se

sabe sobre a função da língua em Teófilo. Será também deste modo que

nos aproximaremos do lugar ocupado pelo Brasil no seio da sua matriz

teórica. Como se verá adiante, o olhar teofiliano sobre o Brasil prolonga a

sua reflexão sobre o modo da “originalidade” cultural portuguesa.

Na História da Literatura Portuguesa, em sua edição de 1909,

desenvolverá suas ideias veiculadas desde a década de 1870, dizendo que

“a língua portuguesa, que diferenciava uma raça, era meio de expressão do

sentimento de uma nacionalidade. A escrita fixa-a, dá-lhe a norma de

analogia nas suas derivações, e modificando-a artisticamente pelo estilo

literário, torna-a pelo génio dos seus escritores, um meio de coesão da

própria nacionalidade. Terminada a época dos Descobrimentos, os

Quinhentistas fortificavam a vida da nação proclamando a cultura da

630 BRAGA, Teófilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1871, p.111-112. 631 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.103.

276

língua” (632). E se podia aceitar-se que “Camões, servindo o sentimento

nacional na epopeia dos Lusíadas, unificou a língua popular com a erudita,

que é a que se fala e que se escreve em todo o país” (633), tal fato não podia

escamotear que “fora da Literatura a língua portuguesa teve um largo

desdobramento de dialectos, devido ao forte individualismo do povo, e em

consequência da expansão histórica em um vastíssimo domínio colonial”

(634). Razão mais do que justificativa para conferir a devida importância, a

importância que Braga comprovadamente lhes reconhecia, aos Cantos e

Contos Populares do Brasil e ao seu estudo. Com sua “bagagem” teórica

marcada pelos critérios do materialismo-monista – nomeadamente quanto à

transmissão de caracteres adquiridos –, a pesquisa sobre a modificação

portuguesa nos trópicos brasileiros assumia características análogas às de

um laboratório étnico e sociológico (635).

Compreender-se-á que seja justamente neste ponto que a definição

das características culturais “portuguesas” intersecta visivelmente os

limites da própria cultura “brasileira”. E compreender-se-á, também, a

inevitabilidade de um questionamento como o seguinte: sendo o

“moçarabismo” português uma mistura do luso com o árabe, quais

poderiam ser as repercussões linguísticas deste hibridismo cultural se lhe

fossem agregados africanos e índios? À luz desta reflexão, a curiosidade

científica de Teófilo Braga para com a “cultura popular” brasileira traduz a

convicção na possibilidade de escrutinar, em diversas partes do globo, a

“revivescência” da cultura portuguesa. Afinal, “temos o dialecto do Crioulo

nas possessões da África e Cabo Verde, o Matuto, no Brasil, o Reinol ou

632 Idem, ibidem, p.109-110. 633 Idem, ibidem, p.110. 634 Idem, ibidem.635 Nos Contos Populares do Povo Português, Teófilo faz a seguinte consideração: “Parecerá àprimeira vista estéril a investigação das tradições em um recente nacionalidade como o Brasil;mas com a colonização deste importante país dá-se um fenómeno conjuntamente étnico esociológico, que poremos em relevo”. BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do PovoPortuguês. Volume I, Lisboa: Publicações Dom Quixote, [1883] 1987, p.62

277

Indo-português, em Colombo, capital do Ceilão, em Malaca”. Certo era, de

qualquer modo, que “os dialectos do português são numerosos e têm sido

estudados proficientemente por filólogos estrangeiros e nacionais; são um

documento do poder de assimilação e de resistência do povo português”

(636). As evidências linguísticas assinalavam não apenas graus de dispersão

da presença portuguesa, mas, sobretudo, o seu substrato, essa fonte de

energias a serem revividas. Afinal, “durante quarenta anos da unificação

ibérica (1580-1640) a língua portuguesa trocada pela castelhana pela

aristocracia e homens cultos, era usada pela gente do povo, como o último

vestígio da nacionalidade, e foi ela também o estímulo da sua

revivescência” (637).

Em carta enviada a seu discípulo no Brasil, Fran Paxeco, em 27 de

Novembro de 1905, Teófilo, sem deixar de mencionar seu desafeto com

Sílvio Romero, deixava bem claras as suas intenções: “quem relancear os

dois volumes da História da poesia portuguesa, compreenderá os meus

objectivos, quando atirava a impressão dos cantos populares do Algarve, da

Madeira, da Galiza, do Brasil, afim de integrar as desmembradas tradições

lusitanas. O Sílvio anda muito longe de perceber isto. Deixo-o onde está,

evitando contactos desabonadores”(638). Tanto quanto parece, a

preocupação de bem enquadrar um lugar para o “hibridismo” na

caracterização da cultura portuguesa surge como móbil maior de Teófilo ao

debruçar-se sobre a “cultura popular brasileira”. No opúsculo “Sobre a

Novelística Brasileira” – que inicialmente serviu como prefácio à

publicação dos Contos de Romero, e que posteriormente foi agregado aos

636 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.111. 637 Idem, ibidem.638 Carta de Teófilo Braga a Fran Paxeco, Lisboa, 27/1111905. In: Fran Paxeco, Cartas deTeófilo (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.64-67.

278

Contos Tradicionais do Povo Português –, Teófilo Braga escreve que, no

Brasil,

“a primeira ocupação dos Portugueses fez-se por um modo pacífico, comintuitos mercantis conciliados com a propaganda religiosa; a necessidade dacooperação agrícola obrigou ao aproveitamento de uma raça degradada, e nesta co-habitação permanente em um grande campo de exploração, o Português radicou a suatenacidade colonial pela fusão ou mestiçagem com o elemento indígena e com oelemento negro. Este importante fenómeno histórico, donde derivam os novoscaracteres de uma nacionalidade, distingue de um modo bem acentuado o sistema decolonização da América do Sul” (639).

Ora, Sílvio Romero, apesar de Teófilo dizer que “estava muito

longe de perceber” isto, percebera, seguramente, que a intenção de Teófilo

era justamente perscrutar na “cultura popular brasileira”, nos Cantos e nos

Contos, por si compilados, o fenômeno de modificação da “raiz” lusitana

em um meio diverso, o brasileiro. Sílvio, aliás, sabia mais do que isto.

Sabia também que o empreendimento intelectual teofiliano chocava-se com

o seu – justamente pela similitude da forma. Pela semelhante recorrência à

estética do hibridismo. Pela forma como o “moçárabe” de um – e tratando-

se do “moçárabe” com potencial de revivescência – diminuía a

peculiaridade demarcatória do “mestiço” do outro – tratando-se de um

“mestiço” talhado para vincar a unicidade e a diferenciação de carácter. Daí

que ao movimento de aproximação intelectual transatlântico expresso na

associação do açoriano com o sergipano, nas páginas da Revista de

Estudos Livres, se tenha seguido de uma acirrada polêmica, posto que,

justamente por compartilharem de uma mesma atenção ao potencial

demarcatório do estudo étnico e sociológico das literaturas – atento aos

efeitos da hereditariedade –, as duas perspectivas acabavam por concorrer

uma com a outra. É que a assunção da escala nacional como referência

639 BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. Volume I, Lisboa: PublicaçõesDom Quixote, [1883] 1987, p.62-63. Grifos nossos.

279

cultural encarava com suspeição a partilha de um mesmo “código de

originalidade” por duas culturas diferentes.

3.2. Impõe-se, agora, colocar a observação do lado de Sílvio Romero.

Dizer que ele se tratar do “duplo” brasileiro de Teófilo é, até certo ponto,

verdade. Mas não é dizer tudo: é na sua similaridade de pontos de partida

formais que radica a procura do distanciamento. Como mobilizava o

brasileiro a historicidade e, a partir desta, buscava demarcar a originalidade

cultural brasileira? Esta é, aqui, a questão a elucidar. De um aspecto não

sobram dúvidas: a Romero reconhece-se papel destacado nas narrativas

dezenovistas que buscaram fundar um padrão estético-identitário para o

Brasil (640).

Encarada nessa perspectiva, sua História da Literatura Brasileira

permite acompanhar os esforços romerianos naquele sentido. Trata-se de

uma obra dividida em duas partes distintas. Num primeiro tomo, Romero

define os elementos de uma “história natural” da literatura brasileira,

emprestando especial relevo às “condições de nosso determinismo

literário”, bem como às “aplicações da geologia e da biologia às criações

do espírito” (641). No segundo volume, uma vez estabelecidas as

demarcações teóricas, o autor desenvolve então a sua perspectiva analítica.

A concepção, aí desenvolvida, de quatro fases histórias da formação

nacional brasileira – o período de formação (1500-1750), período de

desenvolvimento autonômico (1750-1830), período de transformação

romântica (1830-1870) e período de reacção crítica, que vai de 1870 em

640 MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil da viradado século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000. 641 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora[1888], 1953, p.59

280

diante – completa a apresentação formal da sua obra (642). Vejamos o

respectivo sentido e os correspondentes pressupostos pré-compreensivos.

Romero foi loquaz em declarar a “morte do passado” – leia-se, do

“passado” lusitano – destacando, pelo estudo da literatura, a “originalidade

brasileira”. Quanto ao relevo dado à literatura, refira-se que – como Teófilo

Braga – Sílvio acreditava na possibilidade de coletar traços da “cultura

popular”, inventariando o que diferenciava – demarcava – o Brasil no

concerto mundial. Por isso, sua utilização da literatura ultrapassava em

muito o “fato literário”. Como ele mesmo o dizia, “a divisão proposta não

se guia exclusivamente pelos fatos literários; porque para mim a expressão

literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães.

Compreende todas as manifestações da inteligência de um povo: - política,

economia, arte, criações populares, ciências” (643). Em termos profundos, a

“Literatura Brasileira” definia-se, para o crítico sergipano, por um

“processo de adaptação de ideias europeias às sociedades do continente”. O

flagrante recurso à ação do “meio” como elemento diferenciador,

modificador, da influência portuguesa, não é casual: advém do impacto do

materialismo monista, temperado por uma apetência de futuro – leia-se: de

superação do passado, representado pela teleologia evolucionária.

Refletindo as demarcações operadas no contexto dos diversos

“evolucionismos”, esta arquitectura ideária perfazia um movimento que ia

“da imitação tumultuária, do antigo servilhismo mental”, à “escolha, à

seleção literária e científica”. É que, para Romero, “a darwinização da

642 Nas palavras de Romero: “o positivismo filosófico francês, o naturalismo literário da mesmaprocedência, a crítica realista alemã, o transformismo darwiniano e o evolucionismo de Spencercomeçaram a espalhar-se em alguns círculos acadêmicos, e uma certa mutação foi-se operandona intuição corrente. Todos os anos crescia o número dos combatentes; foram eles os primeirosque no Brasil promoveram a reação seguida e forte contra o velho romantismo transcendental emetafísico”. Atente-se que na periodização romeriana, destaca-se o ano de 1870 – a geração de1870 – como sendo aquela que teria operado uma “reacção crítica” fundamental no sentido dedefinir a “cultura brasileira”. Como já se disse, este movimento crítico veio na esteira doimpacto da chegada do “bando de idéias novas”. Ibidem, idem, p.60. 643 Ibidem, idem.

281

crítica é uma realidade tão grande quanto é a da biologia”. Imbuído que

estava desta “poderosa lei da concorrência vital por meio da seleção

natural”, isto é, “da adaptação e da hereditariedade”, o crítico brasileiro

perscrutava na literatura a marca da diferenciação nacional (644).

Com o exposto, pode-se perceber que, tanto a História da

Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, quanto a História da Literatura

Brasileira, de Sílvio Romero, compartilham de um mesmo cuidado para

com a comprovação factual da cultura nacional de seus países. Os

conceitos de “raça” e “meio” balizam empiricamente a linha divisória que

separava, para o açoriano, o “português” dos demais “povos ibéricos”, e,

para o sergipano, o “brasileiro” de Portugal. Só no horizonte deste escopo

se entenderá a “função estética” análoga de suas interpretações nacionais,

emblematicamente definidas como “moçarabismo” teofiliano e

“mestiçagem” romeriana. Em paralelo, outro ponto em comum nos dois

projectos culturais é a idealização de um sistema composto por “fatores

estáticos” e “fatores dinâmicos”, complementarmente articulados. Para

Romero, “a hereditariedade representa os elementos estáveis, estáticos, as

energias das raças, os predicados fundamentais dos povos; é o lado

nacional nas literaturas”. E se a hereditariedade, é compreendida como uma

constante histórica, a este “elemento estável” Romero trata de aduzir “a

adaptação”, entendida como expressão dos “elementos móveis, dinâmicos,

genéticos, transmissíveis de povo a povo”. Hereditariedade e Adaptação

eram, portanto, duas faces da mesma moeda: uma, referindo-se à escala

universal, outra à nacional; uma, representando a semelhança, outra a

diferenciação. Ecos da perspectiva naturalista da história da literatura,

considerações de quem se assume “munido do critério popular e étnico para

644 Ibidem, idem, p.63.

282

explicar o nosso carácter nacional”, e esteio da mobilização própria do

“critério positivo e evolucionista da nova filosofia social” (645).

Por isso, o estudioso pretendia estar no um exercício da atenção

creitériosa:

“todo poeta, todo romancista, todo dramaturgo, todo crítico, todo escritorbrasileiro de nossos dias tem a seu cargo um duplo problema e há-de preencher umadupla função: deve saber do que vai pelo mundo culto, isto é, entre aquelas naçõeseuropeias que imediatamente influenciam a inteligência nacional, e incumbe-lhetambém não perder de mira que escreve para um povo que se forma, que tem suastendências próprias, que pode tomar uma feição, um ascendente original. Uma e outrapreocupação são justificáveis e fundamentais”. [Afinal], “para que a adaptação dedoutrinas e escolas europeias ao nosso meio social e literário seja fecunda eprogressiva, é de instante necessidade conhecer bem o estado do pensamento do VelhoMundo e ter uma ideia nítida do passado e da atualidade nacional” (646).

Não surpreende, assim, que o autor entenda retomar as suas

anotações dos primeiros textos publicados no Rio de Janeiro – expostas na

primeira parte deste trabalho –, operando, em 1888, na sua História da

Literatura Brasileira, uma espécie de copy and paste analítico,

nomeadamente quanto à discussão das “principais teorias da história do

Brasil”. Ou seja, o autor trabalha a partir das suas linhas escritas em 1883 e

primeiramente publicadas na Revista de Estudos Livres. As “principais

teorias” em causa, relativas à história brasileira, eram a de Karl Friederich

von Martius, a de Thomas Buckle, a de Teófilo Braga, a de Oliveira

Martins, a dos discípulos de Comte e a dos sectários de Spencer(647).

Romero analisa cada uma delas.

Começa pela obra do botânico Karl Friederich Philipp von Martius,

autor de uma dissertação intitulada “Como se deve escrever a história do

Brasil”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico

645 Idem, ibidem, p.64646 Idem, ibidem. 647 ROMERO, Silvio. “Teorias Históricas e Escolas Literárias no Brasil” In: Revista de EstudosLivres. Ano I, volume I, 1883-1884, p.203 e ROMERO, Sílvio. História da LiteraturaBrasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora [1888], 1953, pp.64-65.

283

Brasileiro, em Janeiro de 1845(648). Segundo Romero, embora pequeno,

trata-se de um dos “mais interessantes” trabalhos feitos por escritores

estrangeiros, pois “Martius abriga-se ao grande princípio moderno das

nacionalidades, coloca-se num ponto de vista etnográfico e indica em

traços rápidos os diversos elementos do povo brasileiro”, revelando, desta

forma, os “selvagens americanos” e seus hábitos, os portugueses e “suas

vantagens de gente civilizada”. Não admira que as considerações do

naturalista alemão mereçam a anuência do crítico sergipano: na verdade,

como assentirá este último, foi “de tudo isto é que saiu o povo brasileiro”

(649). Este reconhecimento não impedia, contudo, a imputação de uma

lacuna: a de sua exposição ser “puramente descritiva”. Faltava, com efeito,

no realce da ação dos elementos raciais, um “nexo causal”. Este nexo

causal que será estabelecido, na interpretação romeriana da literatura

brasileira, pela mobilização do evolucionismo spenceriano – como veremos

adiante. Por sua vez, de decididos reparos se compõe, entretanto, a sua

apreciação da obra de Thomas Henry Buckle, “afamado autor da História

da Civilização da Inglaterra”, que, publicada em 1857 e “detalhadamente”

se ocupando do Brasil. Desta feita, está em causa a divisão das nações, feita

por Buckle, através do par analítico “moderno/primitivo”. Dentro deste

postulado, o “moderno” teria as condições naturais favoráveis, tornando a

força civilizacional superior à natureza e, no último, no pólo “primitivo”,

dar-se-ia o contrário, isto é, sem condições ambientais favoráveis, o homem

ficaria subjugado às forças naturais. Vale frisar que a análise romeriana

desta perspectiva se opões à sua aplicação ao Brasil, na medida que ditava 648 MARTIUS, Karl F. P. von, “Como se deve escrever a história do Brasil”. In: Revista doInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro . Rio de Janeiro : IHGB, n.º24, 1845. Para umaanálise da obra de von Martius, no âmbito da produção historiográfica do IHGB, consultar, entre outros, GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: o InstitutoHistórico e Geográfico e o Projeto de uma História Nacional”. In: Estudos históricos. Rio deJaneiro, n.1, 1988, p.5-27. 649 ROMERO, Silvio. “Teorias Históricas e Escolas Literárias no Brasil”. In: Revista de EstudosLivres. Ano I, Volume I, 1883-1884, p.203 e ROMERO, Sílvio. História da LiteraturaBrasileira. Rio de Janeir: José Olimpio Editora [1888], 1953, p.65.

284

a “falta de uma civilização primitiva brasileira”. Isto se revela, para

Romero, “falsa na descrição geral do clima brasileiro” e “em demasia

exterior [posto que] cosmológica demais” (650).

Debruça-se então Romero, com muito maior detalhe, sobre a obra

do português Teófilo Braga. Faz, contudo, a ressalva de que Teófilo não

tivera por objetivo primeiro escrever uma teoria da história brasileira,

realizando apenas alguns estudos sobre a evolução literária do Brasil. O

sergipanoo se refere às informações contidas no prólogo do Parnaso

Português Moderno, de 1877 (651), depois reproduzidas também nas

Questões de Literatura e Arte Portuguesa, obra de 1881 (652). Primeira nota

a ter em conta: nas considerações de Romero patenteia-se uma especial

atenção à noção de “hibridação”, aspecto que não pode deixar de remeter

para a interpretação que temos defendido quanto à existência de uma

acentuada concorrência entre os dois autores no âmbito da estética do

hibridismo.

Naturalmente, a expressão dessa lógica concorrencial não se dá de

uma vez por todas e de modo assumido. Ele é definida laboriosamente no

quadro de um elenco de discordâncias que remetem francamente para

aquela questão de fundo. Merece censura a Romero o fato de que “Braga

acredita que o lirismo da Europa meridional teve uma origem comum” e

que “esta fonte geral foram as populações turanas, descidas da alta Ásia”,

divididas em dois grupos, um dolicocéfalo e outro branquicéfalo. Essa

crítica tem sua razão de ser porque tem efeitos na compreensão que Teófilo

terá dos índios americanos, motivo pelo qual Romero rejeitará também o

650 Conforme Romero, o britânico, em “sua pretensiosidade de explicar puramente pela física doglobo as civilizações primitivas e actuais”, criou uma doutrina “incompleta é estéril”. A tesesobre a história do Brasil propagada pelo autor da History of Civilizacion in England éconsiderada como um “círculo vicioso”, na medida em que explica o “clima pela civilização e acivilização pelo clima”. Para Sílvio, teorias como esta apenas “atiram-nos frases ao rosto, supondo que nos enchem a cabeça de fatos”. Idem, ibidem, p.66-67. 651 BRAGA, Teófilo, Parnaso português moderno. Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1877. 652 BRAGA, Teófilo, Questões de literatura e arte portuguesa. Lisboa: A.J.P. Lopes, 1881.

285

postulado de que se tenha dado na América uma “semelhante marcha de

povos turanianos” (como defendia o açoriano), fundada na homologia,

observada na Europa, entre a “branquicefalia do basco francês e a

dolicocefalia do basco espanhol”, e manifestada, em contexto americano,

com a “suposta dolicocefalia das raças da América do Norte e a pretendida

branquicefalia geral das da América meridional”. Para Sílvio, “tudo isto é

muito largo e também muito aventuroso”, sendo, antes, “presunções que

nada têm de positivo, nada têm de provado” (653). De acordo com ele, “a

hipótese de Teófilo Braga, tirada das idéias de Retzius, Beloguet, Pruner-

Bey e Varnhagen, para ser aceite, deveria justificar os seguintes fatos”: i)

“o monogenismo das raças humanas e sua origem comum na Ásia, o que

não é nada fácil no estado atual da ciência e diante justamente dos trabalhos

de Paul Broca, que o escritor português chama sem razão em seu auxílio

[Romero dirá que Broca defendia o poligenismo]; ii) “a veracidade da

tríade de M. Muller, que defende que os povos dividem-se em arianos,

semitas e turanos, empresa difícil ante a lingüística das raças uralo-altaicas,

polinesias, africanas e americanas”; iii) “a emigração dos turanos para a

América”; iv)“a redução dos povos deste continente a esse ramo único”; e

v) “enfim demonstrar a identidade do desenvolvimento das raças

americanas e asiáticas, um impossível a olhos vistos”(654). Considera, por

fim, Romero, que “tudo o que se disser sobre a tese do asiatismo dos povos

americanos é pintar na água, ou escrever na areia”, o que o conduz a

defender a tese de Lund que afirmava ser o continente americano habitado

antes mesmo do velho mundo (655). E conclui: “admitindo a identidade das

653 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora[1888], 1953, p.67. 654 Idem, ibidem, pp.67-68. 655 É interessante notar a ressalva cientista, feita por Romero, a respeito da origem dos povosamericanos: “Os estudos científicos sobre as raças americanas começam agora no Brasil. Reduzem-se por ora a pequenos trabalhos sobre craniologia, lingüística e arqueologia artística eindustrial. Não existem muitos fatos demonstrados, os materiais são ainda limitadíssimos;

286

origens do lirismo português e tupinambá, como quer Teófilo Braga, o que

daí se poderá inferir para a filosofia da história brasileira? Nada. A tese do

notável português é puramente literária e não visa a uma explicação

científica de nossos desenvolvimento social” (656).

Em seguida, parte para a análise de J.P. de Oliveira Martins,

focando seu livro O Brasil e as Colónias Portuguesas. Segundo Romero, as

teses martinianas dão conta de “todo o interesse dramático e filosófico da

história nacional na luta entre os jesuítas e os índios de um lado e os

colonos portugueses e os negros de outro”. Critica, porém, o dualismo da

obra, visto ser “em grande parte de pura fantasia, e, no que tem de real, não

passa de um fato isolado, de pouco valor e duração […] que não pode

trazer em seu bojo, como um segredo de fada, toda a latitude da futura

evolução do Brasil”. De acordo com Sílvio, o erro cometido por Oliveira

Martins seria o de alçar “à categoria de princípio geral e dirigente” o que

era “um simples incidente”, fazendo da sua obra como “uma dessas

sínteses fúteis com que certos novelistas da história gostam de nos

presentear de vez em quando” (657). Será, ainda, no mesmo tom de

desconsideração que irá analisar as teorias produzidas pelo positivismo

brasileiro, detendo-se particulamente nas obras de Teixeira Mendes e

Anibal Falcão, produtoras de uma “teoria da pátria brasileira”(658). Nestas

obras, denuncia sua “comodidade” de suas interpretaçõespor estarem

ancoradas na reprodução do dualismo histórico entre germânicos e ibéricos,

reprodução para ele desnecessária e demasiadamente simétrica. Sua

entretanto, já temos uma dúzia de teorias para explicar a origem dos tupis-guaranis e dosamericanos em geral”. Idem, ibidem, p.68-69656 Idem, ibidem, p.70. 657 Idem, ibidem, p.70658 MENDES, Teixeira. A pátria brasileira. Rio de Janeiro, 1881. FALCÃO, Aníbal. Fórmulada civilização brasileira. In: Diário de Pernambuco, n.º 46 a 50, 1883.

287

transportação para explicação do caso brasileiro era forçada e produto de

pura “fantasia” (659).

Mas, uma vez refutadas, em maior ou menor grau, as várias

aproximações ao fenômeno brasileiro, qual, em fim de contas, a sua própria

visão? É significativo, a este propósito, o modo como Sílvio Romero opta

por comentar a última das linhas teóricas a cuja crítica se tinha proposto,

justamente a que, nas suas próprias palavras, exprimia uma conotação

spenceriana. Dirá o seguinte:

“Uma teoria da evolução histórica do Brasil deveria elucidar entre nós a açãodo meio físico, por todas as suas faces, com fatos positivos e não por simples frases-feitas; estudar as qualidades etnológicas das raças que nos constituíram; consignar ascondições biológicas e econômicas em que se acharam os povos para aqui imigradosnos primeiros tempos da conquista; determinar quais os hábitos antigos que seestiolaram por inúteis e irrealizáveis, como órgãos atrofiados por falta de função;acompanhar o advento das populações cruzadas e suas predisposições; descobrir assimas qualidades e tendências recentes que foram despertando; descrever os novosincentivos de psicologia nacional que se iniciaram no organismo social edeterminaram-lhe a marcha futura. De todas as teorias propostas a de Spencer é a quemais se aproxima do alvo, por mais lacunosa que ainda seja” (660).

Compreende-se. Se “uma teoria da história dum povo parece-me

que deve ser completa de sua marcha evolutiva [e que] deve apoderar-se de

todos os fatos, firmar-se sobre eles para esclarecer o segredo do passado e

abrir largas perspectivas na direção do futuro”; se, além disso, “seu fim não

é só o de mostrar o que esse povo tem de comum com os outros; sua

obrigação é ao contrário exibir os motivos das originalidades, das

particularidades, das diferenciações desse povo no meio de todos os

outros”; então, a tal projecto “não lhe cumpre só dizer, por exemplo, que o

Brasil é o prolongamento da cultura portuguesa a que se ligaram vermelhos

e negros. Isto é muito descarnado e seco; resta ainda saber como estes

elementos aturaram e atuarão uns sobre os outros e mostrar as causas de

659 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora[1888], 1953, p.71. 660 Ibidem, idem, p.73.

288

seleção histórica que nos vão afastando de nossos antepassados ibéricos e

de nossos vizinhos também filiados na velha cultura ibérica” (661). A

preocupação de Sílvio Romero de fundar um padrão estético-analítico da

“cultura brasileira” anda, pois, de mãos dadas com uma mobilização da

história onde o tempo futuro ultrapassa o passado em importância, posto

ser o garantidor da ação demarcatória do nacional – via “seleção natural”.

Não é casual, portanto, que o sergipano autor de História da

Literatura Brasileira, publicada em 1888, iniciasse do seguinte modo seu

projeto estético identitário: “a história do Brasil, como deve ser hoje

compreendida, não é, conforme se julgava antigamente e era repetido pelos

entusiastas lusos, a história exclusiva dos portugueses na América. Não é

também, como quis de passagem supor o romanticismo, a história dos

tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes do africanismo entre

nós, a dos negros em o Novo Mundo” (662). Entrevêem-se as referências

implícitas aos clássicos padrões de explicação da “cultura brasileira”: o

“lusismo” de um Francisco Adolfo de Varnhagen (663), o “indianismo” de

um José de Alencar (664) e o “africanismo” de um Castro Alves (665). Como

vimos em capítulos anteriores, desde há muito Romero buscava a definição

de uma estética identitária que definisse a singularidade da “cultura

brasileira” perante os demais povos. Lembre-se como, em 1880, no

opúsculo A literatura brasileira e a crítica moderna, já declarava que “o

661 Idem, ibidem, p. 72-73. Grifos nossos662 Idem, ibidem, p.55. 663 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert eMadrid, 1ª edição 1854-1857. Para um análise da obra de Varnhagen, consultar WHELING, Arno. Estado História e Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1999. 664 ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Círculo do Livro, 1ª edição 1857, [s.d]. Existemmuitas obras que se dedicaram a estudar o indianismo alencariano. Indicamos, aqui, em título deexemplo, a obra de BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora daUFRGS, 2003. 665 ALVES, Castro. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s.d.], principalmente“Navio Negreiro” e “Vozes d’África”, contidas no livro Os escravos, de 1868. Para uma análisebio-bibliográfica de Castro Alves, indicamos o recente trabalho de COSTA E SILVA, Albertoda. Castro Alves:um poeta sempre jovem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

289

índio não é o brasileiro, mas o português também não; a alternativa entre o

cauin e o vinho verde é antigalha – carunchosa. É preciso descortinar entre

os dois extremos, alguma coisa de melhor” (666).

Na sua História da Literatura Brasileira, estampada oito anos

depois das linhas acima e poucos dias antes da Abolição da Escravidão no

Brasil, suas ideias ganham maturidade e maior solidez formal. Daí que

dissesse que a história do Brasil “é antes a história da formação de um tipo

novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que predomina a

mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas

ideias. Os operários deste fato inicial têm sido: o português, o negro, o

índio, o meio físico e a imitação estrangeira” (667). De transcendência

máxima era, para Romero, estudar “tudo quanto há contribuído para a

diferenciação nacional”, sendo esta diferenciação entendida,

simbolicamente, como o “critério novo”. Detalhe não desprezível: o critério

da novidade. Ele assinala o lugar nevrálgico da originalidade, preocupação

maior de Romero no âmbito da fundação estética da “cultura brasileira”,

intuito identitário que, ao laborar em torno de uma alteridade definida, em

boa medida, pelas propriedades do contraste, redundava, segundo o viés

romeriano, num axioma afinal bem simples: “tanto mais um autor ou um

político tenha trabalhado para a determinação de nosso carácter nacional,

quanto maior é o seu merecimento [do mesmo modo que, ao contrário,]

quem tiver sido um mero imitador português, não teve ação, foi um tipo

negativo” (668).

O crivo analítico de Sílvio, como em suas linhas de 1880, seguia

apontando para Portugal, com o objetivo de demarcar os “produtores” da

“cultura brasileira” relativamente ao lusitano. Assim explanava o autor: 666 ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna. Rio de Janeiro: ImprensaIndustrial, 1880, p.75-76. 667 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora[1888], 1953, p.55-56. Grifos nossos. 668 Ibidem, idem, p.56. Grifos nossos

290

“Só contemplarei, portanto, como nossos os nascidos no Brasil, quer

tenham saído, quer não, e os filhos de Portugal, que no Brasil viveram

longamente, lutaram e morreram por nós, como Anchieta e Gonzaga nos

tempos coloniais, e, como políticos, nos tempos modernos, Clemente

Pereira e Limpo de Abreu. Todos estes tiveram do reino só o berço, sua

vida foi brasileira e pelos brasileiros” (669). De alguma maneira, este

Romero para quem “os tempos passados são como mortos” e que, com base

nesse pressuposto, neles se permite instalar aqueles, e apenas aqueles, que

se acordavam com a sua ideia de originalidade e que compunham essa

originalidade como critério maisor de uma história rescrita a partir dessa

obsessão presente e dessa “antevisão”, a posteriori, do que o passado

deveria ser, realiza aquilo que Fernando Catroga, parafraseando Schlegel,

chamou de “previsão ao contrário” (670). Com efeito, para Romero, o

critério da originalidade e da diferenciação nacional é a constante analítica

de sua genealogia mestiça. Combinado com certo anseio romântico, pela

preocupação com a idiossincrasia nacional, cola-se, porém, à batuta

empiricista do positivismo heterodoxo. Herbert Spencer lhe dará o norte

evolutivo, chave-mestra da diferenciação brasileira face ao passado

português, germe da originalidade mestiça. Afinal, “um povo que se forma

não deve só pedir lições aos outros; deve procurar ser-lhes também um

exemplo” (671).

Num tal cenário, como estranhar a concorrência pela matriz de

hibridização cultural que o interesse de Teófilo Braga no estudo das

tradições, modinhas e lendas brasileiras – tomado, enquanto

“prolongamento” das tradições portuguesas em novo contexto – vem abrir?

Como não aceitar que é exatamente neste ponto que sua estética relacional 669 Ibidem, idem, p.58. 670 CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.79. 671 ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: JoséOlympio Editora. Coleção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ªEdição organizada e prefaciada por Nelson Romero, [1888], 1943, p.43.

291

entra em choque com a de Sílvio Romero, conformando, a um primeiro

nível, um confronto ditado pela similaridade formal, um choque pela

semelhança do modelo original idealizado? E como não perceber, de igual

modo, as diferenças que a partir dessa base comum se levantam? Afinal, a

libertação do telos histórico implícito na sociologia materialista monista de

Teófilo Braga será combatida pelo objectivo demarcatório de Sílvio

Romero, enformado pelo telos evolucionista de matriz spenceriana que

justificava a originalidade e autonomia da cultura brasileira. Dito de outro

modo: a “persistência” lusitana nos trópicos que, para Teófilo, representará

o espectáculo neolamarckiano e monista da readaptação de uma “raiz”

cultural em novo meio ambiente – o laboratório tropical brasileiro –, entra

em forte choque com a demarcação pela história da originalidade de um

povo em formação, como era o brasileiro, consoante a explicação

nacionalista de Romero. Demarcações de vária ordem, portanto. Não eram

as únicas combinatórias possíveis. Porque se este tipo de dispersões

hermenêuticas e de modelos concorrenciais atuava à escala luso-brasileira,

definindo, nesse jogo demarcatório, os contornos de cada uma das culturas

nacionais implicadas.

Dito isto, importa ter presente que outro tanto sucedia,

paralelamente, no âmbito interno brasileiro. No âmbito escalar regional

também se reproduziam aqueles alinhamentos, aquelas mobilizações

teóricas, aquela mesma busca de definição identitária. Mesmo se realizada,

tão somente, a título exploratório, a aproximação a esse processo

constituirá o nosso derradeiro investimento analítico.

292

4. “Riograndeseses” e “Sertanejos”: a intersecção portuguesa do

regionalismo brasileiro.

De acordo com a nossa hipótese, o regionalismo brasileiro

representou também uma forma de “administrar” o “passado português” no

Brasil. Dito de outro modo, a fundação de estéticas culturais e identitárias

que apelam à escala regional terá ativado, por sua vez, mobilizações da

história no sentido de “naturalizar” (consoante o espectro materialista-

monista) a “presença” do “português” na formação dos tipos regionais

brasileiros. Quererá isto dizer, de algum modo, que passamos a indagar a

construção de “mestiços regionais”, se a expressão é permitida? Até certo

ponto, pode considerar-se que sim, que intentamos, afinal, aferir do

desdobramento processado pelo “efeito” romeriano e pela obsessão pela

originalidade, de uma matriz nacional para um ambiente regional.

Vejamos, a partir de dois estudos de caso, os contornos desta

percepção para o período em estudo. A análise a que nos propomos, tem

carácter exploratório. O nosso suporte empírico constará, exclusivamente,

do opúsculo de Víctor Valpírio, “Contos Rio-Grandenses (Introdução)”,

escrito em Porto Alegre, em 1872, e de um fragmento da magistral obra de

Euclides da Cunha, Os Sertões: campanha de Canudos, que veio à estampa

em 1902. Nos dois casos, ocupar-nos-emos apenas com os aspectos

relevando de determinada mobilização da história, e, mesmo aí, somente

com aqueles em que essa mobilização se faz a pretexto de determinado

entendimento ou proposta analítica referente à escala luso-brasileira, mais

propriamente à sua “negociação” em âmbito regional. Damos assim lugar,

é certo, a uma compressão momentânea do nosso objeto de estudo. Esse é,

de forma declarada, o nosso intuito. A problemática de fundo é a mesma,

mas a possibilidade de lhe apreciar os efeitos a níveis não coincidentes com

as esferas nacionais de relacionamento é desafio indeclinável para captar o

293

fenômeno da multiplicação de escalas característico de qualquer estratégia

de delimitação (672) e uma das manifestações do caráter configuracional das

relações luso-brasileiras do período em questão.

Publicado em Porto Alegre, no número cinco da Revista Mensal do

Partenon Literário (673), em Novembro de 1872, o opúsculo intitulado

“Contos Rio-Grandenses (Introdução)” simboliza claramente uma busca da

“identidade regional” propulsionada a partir de um “acerto de contas” com

Portugal. Um “acerto” que tem o endosso do naturalismo, tão caro ao

repertório teórico disponível naquele contexto. O autor, Victor Valpírio,

inicia chamando a atenção para a premência de “fazermos independência

literária, e estabelecermos na federação das letras república à parte”.

Rápido se surpreende o mesmo sentido estético da americanização, já

observado no manifesto republicano de 1870. A opção de ressaltar o

“cunho americano” na produção literária, o faz chamar atenção para o “raio

de sol das Américas, que doira as nossas frontes juvenis [e que] espelhar-se

brilhante nas produções da musa dos brasileiros” (674).

O subentendido da aposta americana de Valpírio comporta a

correção de alguma excessiva reverência para com o legado e a capacidade

referencial europeia: “Não modelemos tanto as nossas aspirações pelo

cadinho europeu, nós que na mais opulenta plaga lemos a epopéia

estupenda da criação do livro infinito da natureza. De originalidade ou ao

672 MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira. Radiografia histórica de um dispositivocontemportâneo (matrizes ibéricas e americanas). Coimbra: Almedina, 2008. 673 Sobre a Revista Mensal do Partenon Literário consultar CÉSAR, Guilhermino. História daLiteratura do Rio Grande do Sul (1737-1902). Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro/ Corag, 2006, principalmente o capítulo “O grupo do Partenon Literário”, pp.181-200, e tambémHESSEL, Lothar. O Partenon Literário e sua obra. Porto Alegre: Flama, 1976. O “programa”do Partenon Literário de Porto Alegre foi publicado na revista Letras de hoje, n.40, 1980, pp.17-19. 674 Assim se manifestava Victor Valpírio: “Dos ombros da náiade do Amazonas afastemos omanto servil da imitação européia, pesado para o nosso clima ardente, e demos-lhes as vestesleves, gentis, da virgem das florestas natalícias”. VALPÍRIO, Víctor. “Contos Rio-Grandenses(Introdução)”. In: Revista Mensal do Partenon Literário: 2ª série. Novembro de 1872, n.º 5. Porto Alegre: Tipografia do ‘Constitucional’, 1872, pp.41.

294

menos naturalização da ideia, precisa a literatura pátria”. Num país de

dimensões continentais, fácil era interpretar a diversidade natural e

climática como apelo à mobilização da escala regional para a constituição

de um referente estético primordial. Aliás, nas palavras do autor, “segundo

a região, clima ou natureza do país, são as condições de vida dos povos;

outra a face predominante do seu carácter; outras as suas inclinações

naturais, o seu sentir social: como que todos os povos têm uma alma natal”

(675).

Se o apego à natureza como produtora de originalidade estético-

cultural parece assim inquestionável (676), importa não o entender como

indicador de uma menor atenção à história, nem como incapacidade para

estruturar, sobre a história e a partir dela, essa vertente tópica da construção

identitária que é o complexo acerto de contas com o passado. O apelo ao

espaço não significa o esquecimento do tempo: ao contrário, naturaliza-o,

sedimenta-o. Quem não distingue “em uma roda de brasileiros o filho de

Portugal?”. Para Valpírio, “não é preciso que ele fale para indicar-se-lhe a

naturalidade!” (677). Não era verdade que, como rezava esse opúsculo de

1872, “Portugal é de algum modo nosso avoengo; nossos antepassados se

entroncarão na família lusitana”? A questão era a de que o liame entre

gaúchos e portugueses se traçava pela negatividade, na medida em que “de

comum temos a língua que falamos, já com acentuada cor brasileira, a casa

de Bragança e Bourbon, cujo cetro agrilhoa o gordo costado lusitano e a

675 Idem, ibidem, p.42. Grifos nossos. 676 Outro elemento que parece evidente é o processo de “naturalização da ideia”, certamente ecoda divulgação do “bando de idéias novas” em Porto Alegre, como provam as elogiosas frases deSílvio Romero à acção de Carlos von Koseritz. Sobre as demarcações nativistas gaúchas sobinfluência do pensamento de Kosertiz, consultar GANS, Magda Roswita. Presença Teuta emPorto Alegre no século XIX (1850-1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUHRS, 2004, principalmente o capítulo “A construção dos limites étnicos pelos teutos de Porto Alegre. Discursos intelectuais e representações coletivas”, pp.111-210. 677 Idem, ibidem, p.42-43.

295

um pouco mais franzina lombeira brasileira, e instituições caducas,

desprestigiadas, que mutuamente se copiam” (678).

Terreno aberto, por conseguinte, para todo o gênero de exercícios

de diferenciação, forçando a linha divisória a ganhar nitidez, a ganhar o

recorte de uma “mestiçagem” diferencial, não já estruturada sobre o

“brasileiro” mas sobre o “rio grandense”, conceito e escala capaz, tanto

quanto aquele, de fundar a separação em relação ao português. Pois “no

sangue do nosso povo corre, de mescla com os portugueses, gotas de outra

raça; em nossa imaginação pululam outras ideias, em nosso coração outro

sentir e em nossa alma outras ambições”. Para Valpírio,

“não é o bom lavrador do Minho, que após prolongado trabalho em

suas geiras descança ao crepitar dos velhos cepos no fogo da lareira, – o

audaz gaúcho que voa nos pampas do sul montado no furioso bagual, tendo

por pátria a solidão sem fim, sem amores nem família, sem laços que o

detenham em sua vida errante! Não é o barqueiro do Douro, não é o

saudoso pescador do Tejo, – o intrépido jangadeiro dos mares do norte, que

no frágil lenho arrosta a sanha do oceano seu descôr; – o robusto caboclo

do Pará, que entronizando na piroga corta com o remo subtil as argentas

escamas do rei das águas! O trabalhador da Beira, que passa longos serões

ao lado do fogo na debulhada do trigo, – das não é o escravo brasileiro, que

ao cantar do galo à meia-noite, mal dormido, corre ao som do sino da

charqueada, tremendo de frio que corta, sob o açoite ameaçador do capataz,

a cancha, para matar bois até dia alto, e daí até a noite lidar com carnes:

isto, meses seguidos, uma safra inteira” (679).

678 Idem, ibidem, p.42. 679 Idem, ibidem, p.42-43.

296

Compreensivelmente, dado que a referencialidade portuguesa surge

como algo a ser superado, o recurso à história surge como o móbil

organizador desta renegociação memorial. Falará, por isso, Valpírio, “do

velho e decadente Portugal, mortuário esquife onde repousam para sempre

as glórias de um povo ilustre, que há dois séculos conduz à sepultura a

dinastia de Bragança, fatal coveiro, – ao Brasil, que, ainda envolto nas

fachas da infância, prega os olhos cintilantes, onde bóiam inebriadas as

aspirações do século, no véu azul que venda o horizonte futuro” (680). O

quadro traçado é claro: na busca pela originalidade estética dos Contos Rio-

Grandenses, a “herança” portuguesa é entendida como o referente do

passado a ser superado. Tal como verificado à escala nacional, a fundação

de uma originalidade cultural gaúcha passa, assim, pelo processo de

demarcação de fronteiras identitárias que mobilizam, também elas, o

passado “português” como ultra-passado. Veja-se, a título exemplar, o

retrato desse português prisioneiro da sua própria herança, tal como

descrito no discurso gaúcho: “O gênio português, lidador cansado, de alvas

cãs à mercê dos ventos, assenta-se à beira da estrada, inválido hoje, a

embeber-se nas cismas de um passado venturoso de poderio e glória;

rememorando um por um todos os seus feitos grandiosos nas éras que já lá

vão. Volve os olhos saudosos ao passado, relê folha por folha a história

grandiosa do seu arrojo e génio, e de seus lábios frios com o bafejar da

noite, ao ver tumultuariamente desfraldarem o estandarte do século nas

ameias do progresso os povos viris, escapam-se as palavras: «Ai! Já não

posso mais!»”(681).

Não desconhecemos que o processo da construção da identidade

regional no Rio Grande do Sul foi influenciado por outros elementos, não

680 Idem, ibidem, p.43. 681 VALPÍRIO, Víctor. “Contos Rio-Grandenses (Introdução)”. In: Revista Mensal do PartenonLiterário: 2ª série. Novembro de 1872, n.º 5. Porto Alegre: Tipografia do ‘Constitucional’, 1872, pp.43.

297

limitados, nem sequer obrigatoriamente reportados à referencialidade

portuguesa (682). Para os nossos intuitos, porém, afastados da problemática

concreta da identidade reiograndese ou gaúcha e seus componentes

históricos, resulta óbvia uma linha de imbricação que, envolvendo os

esforços demarcatórios verificados às escalas transnacional (luso-

brasileira), nacional (portuguesa e brasileira) e regional (gaúcha) (683),

suporta razoavelmente bem a nossa hipótese de trabalho prévia. Aliás, no

mesmo sentido parece apontar a outra via de inquérito, respeitante, desta

feita, conforme se recordará, ao espaço nordestino. Também para a

definição da cultura sertaneja foi necessário um retraçar de fronteiras que

implicou as configurações luso-brasileiras em “solo” metafórico regional.

Neste ponto, não hesitamos quanto à conveniência de tomarmos o

livro Os Sertões: campanha de Canudos, de Euclides da Cunha, como

narrativa estética seminal. Como é sabido, a mencionada obra euclidiana,

estampada em 1902, possui destacado papel no âmbito da cultura brasileira

(684), fato que mereceu a dedicação de muitos intérpretes (685). Contudo, o

682 Consultar, entre outros, OLIVEN, Rubem George. A Parte e o Todo. A diversidade culturalno Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992 entre outros. 683 As relações entre nacionalismo e nativismo não escaparam aos comentaristas da época. Eçade Queirós, por exemplo, em crônica publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em1896, fazia as seguintes considerações sobre o movimento nativista no Brasil: “e é certo aindaque muitos moços, com a ingenuidade um pouco tumultuosa que é própria da nossa raça, confundindo nativismo com nacionalismo, tivessem concebido o sonho de um Brasil sóbrasileiro. Estas idéias e interesses, tendo um fundo idêntico de negação sem dúvida sejuntariam, atravancariam a rua com o seu bando e a sua bandeira, e por motivo daquelaexcitação contagiosa, que tanto prejudica as sociedade meridionais, encontrariam apoio, por ummomento, entre multidões crédulas e com os nervos ainda abalado por uma dura guerra civil. Mas essa influência do nativismo só podia ser (como foi, creio eu) muito transitória, no meio deuma nação tão amorável, tão generosa, tão hospitaleira, tão européia e de tão vasta fraternidadecomo é o Brasil, para sua grande honra entre as nações”. Na mesma crônica, Eça relacionava oapelo ao nativismo no âmbito do crescimento da influência “yankee” no Brasil, percebendo, assim, as imbricações escalares no âmbito identitário do final do século XIX. QUEIRÓS, Eça. “Nativismo”. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamim (org.). Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e portuguesas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p.156. 684 ZILLY, Berthold. “A Reinvenção do Brasil a partir dos sertões: como Canudos é aquintessência do sertão, e o sertão a quintessência do país, o livro de Euclides da Cunha "é" opaís, ele reinventa o Brasil, contribuindo para a idéia que a nação tem de si mesma”. In: RevistaHumboldt Ano 42, 2000, n.º 80, p. 44-51.

298

que aqui nos interessará em Os Sertões será, especificamente, o momento

em que, para estabelecer um “retrato” do sertanejo, Euclides da Cunha

estabelece uma dialogia estética com um específico “retrato” português. E

se, ao longo de Os Sertões, a demarcação da originalidade cultural do

sertanejo, habitante do interior do nordeste brasileiro, se assume como

pedra-de-toque da obra, deve dizer-se que, nessa sua busca pela melhor

definição das populações do hinterland brasileiro, Euclides da Cunha não

hesita em apelar à história como suporte da sua indagação identitária. Não

hesita, de igual modo, em “convocar” o passado português, gerindo-o em

articulação com o perfil desenhado para um mestiço brasileiro

regionalmente definido.

Por que “regionalmente” definido? Porque, não havia, para o

Euclides de 1902, “um tipo antropológico brasileiro” (686). E por que a

“gestão” do referente português? Por uma dupla razão: primeiro, pela

utilização da obra de Oliveira Martins, que Euclides menciona

expressamente, como fonte explicativa sobre quem eram os portugueses

que para o sertão tinham ido; segundo, pela mobilização histórica no

sentido de realçar a “herança” lusitana como ingrediente na formação do

ripo regional do sertão. Para o autor de Os Sertões, no interior nordestino

sobrevivia “uma grande herança de abusos extravagantes, [a qual,] extinta

na orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras

raças, no sertão ficou intacta” (687).

685 Estando, designadamente, neste caso, as nossas próprias incursões pela obra euclidiana, sejaquanto ao processo intelectual do contato de Euclides da Cunha com o interior do nordestebrasileiro seja quanto ao papel fundante de sua obra numa matriz cultural brasileira. Para aprimeira questão, ver PAREDES, Marçal de Menezes. “Nacionalidade brasileira e projetomoderno: entre a incorporação da diferença e a introjeção da culpa”. Revista de História dasIdeias. Vol.23. Coimbra: Faculdade de Letras, 2002, pp.545-574; para a segunda, PAREDES, Marçal de Menezes. Memórias de um ser-tão brasileiro. Tempo, história e memória em ‘OsSertões’ de Euclides da Cunha. Curitiba: Juruá, 2002. Neste último trabalho, dicutem-se asdiferentes interpretações da obra euclidiana. 686 CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. Edição crítica de WalniceNogueira Galvão. São Paulo: Editora Ática, 2000, p.84. 687 Idem, ibidem, p.125.

299

E, de fato, tão intacta ficara, no sertão, a marca portuguesa que

trouxera esses “abusos extravagantes”, que Euclides da Cunha mais não faz

do que buscar inspiração, rquitetando seu discurso sobre os quadros de

autoria de Oliveira Martins, como que decalcados pelo autor de “Os

Sertões” ao descrever essa herança lusa:

“trouxeram-na as gentes impressionáveis, que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquelemisticismo feroz, em que o fervor religioso reverberava à candência forte dasfogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na Península. Eram parcelas do mesmopovo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de súbitasalucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamasmisteriosas, catervas de mouros de albornozes brancos, passando processionalmente;combates paladinos nas alturas… E da mesma gente que após Alcácer-Quibir, emplena «caquexia nacional», segundo do dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior dasesperanças messiânicas” (688).

No contexto da obra euclidiana, a referência direta ao episódio de

Alcácer-Quibir, que Oliveira Martins considera um dos marcos da “morte”

de Portugal, é mobilizada por Euclides da Cunha como a prova de que o

sertanejo representava um caso de “atavismo” na história. No sertão

brasileiro remanescia a sobrevivência de algo morto: Portugal. De outra

forma não se entenderá a explicação do sebastianismo “sertanejo”,

manifesta na figura de Antônio Conselheiro, líder político-religioso de

Canudos, que ecoava a crença no retorno de D. Sebastião. Como não se

entenderá a insistência posta por Euclides na mesma tónica: “considerando

as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam,

irresistivelmente nos assaltam, empolgantes, as figuras dos profetas

peninsulares de outrora – o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes

pelas faldas das serras, votados ao martírio, arrebatando na mesma

idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões

688 Idem, ibidem. Grifos nossos.

300

crendeiras” (689). Euclides, é sabido, não se furtou, ao longo de toda a sua

obra, a fazer inúmeras considerações acerca do “funcionamento” do tempo

(690). No caso da sua explicitação sobre o atavismo sertanejo, ressoava,

como sobrevivência de um passado supostamente “morto”, um lastro da

herança portuguesa. Ou seja, é precisamente com a sua particular

predisposição para com o elemento temporal que nos deparamos. A

demarcação identitária do tipo regional sertanejo, é, assim, também o

resultado de um encontro com a história. Com diferentes momentos

históricos, visto tratar-se, na versão euclidiana, de um processo temporal de

justaposição. Uma “justaposição histórica” que se calca “sobre três

séculos” e que é

“Exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedadesertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda naatmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doudos, o Miguelinho e o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do Norte” (691).

Fiquemos por aqui. A “justaposição histórica” de nos alerta

Euclides da Cunha não não serve, apenas, para pensar o caso das

imbricações escalar que se suporpõe em níveis diferentes: um apelo à

discussão dos limites simbólicos em escala transnacional, nacional e

também visto em nível regiona. Desta feita, todos estes âmbitos escalares

fazem parte de desdobramentos do discurso identitário. Nesse processo,

689 Idem, ibidem, p.125-126. 690 A imbricação da delimitação cultural com a demarcação da história é clara desde aintrodução de Os Sertões, como se vê no seguinte excerto: “O jagunço destemeroso, o taberéuingênuo e o caipira simplório, serão em breve tipos relegados às tradições evanescentes, ouextintas. Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dosprincípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ouequilíbrio, que lhes não permite mais a velocidade adquirida pela marchas dos povos nesteséculo. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo. A civilização avançará nos sertõesimpelida por essa implacável «força motriz da História» que Gumplowicz, maior que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”. Idem, ibidem, p.13-14. 691 Idem, ibidem, p.126. Grifos nossos.

301

couve às interpretações da história um papel duplo: seja como garantidor

das novas referencialidades escalares, seja como agente diferenciador em

estéticas concorrenciais. Em todos os casos, contudo, ressoa indelével o uso

da história como recurso probatório mais crível, como instrumento de

contrução e de reconstrução de memórias forjadoras de indentidade. Numa

palavra: como mecanismo central renegociador dos sentimentos de

pertencimento no seio das configurações culturais luso-brasileiras.

302

CONCLUSÃO: AS FRONTEIRAS CULTURAIS

LUSO-BRASILEIRAS.

Nos finais do século XIX, as culturas portuguesa e brasileira

entregam-se a um complexo esforço demarcatório – ao mesmo tempo

teórico, político e identitário –, cujo resultado mais visível é uma atmosfera

de tendencial afastamento cultural entre ambas, quando não de obsessiva

aposta na diferenciação. No seguimento da nossa investigação, não pode

ser outro o eixo conclusivo primordial. Afinal, foi possível verificar que

aquele investimento demarcatório realizado à escala transatlântica e

transnacional – configuracional – é parte integrante e indispensável da

própria definição de cada uma das escalas nacionais de referência. Como se

o reconhecimento das culturas nacionais envolvidas fosse inabarcável à

margem da clarificação do relacionamento entre Portugal e Brasil.

Acrescente-se, por fim, a estas dimensões, a percepção do lugar de

manifesta nuclearidade ocupado pela história nestes processos – evidente

na centralidade tomada pela problemática da “origem” – e teremos aqueles

que podem considerar-se, em termos genéricos, os eixos conclusivos de

maior relevo a que conduziu a análise efetuada sobre a realidade cultural

luso-brasileira para a conjuntura histórica de 1870-1910. Uma análise

estruturada, por sua vez, sobre três patamares de inquérito.

303

A identificação de um âmbito relacional marcado por intensa

circulação de informação e por intensa actividade argumentativa entre

ambos os lados do Atlântico – por nós identificado enquanto configuração

luso-brasileira –, obrigou-nos a uma caracterização dessa mesma escala,

atenta à sua respectiva funcionalidade. Nesse contexto, mereceram

particular destaque quer as redes discursivas nela atuantes, quer os modos

de relacionamento com mais frequência ativados, quer ainda os modelos

interpretativos desenvolvidos, em tonalidade concorrencial, sobre o próprio

sentido dessa escala de caráter configuracional. Em relação às redes

discursivas observaram-se a que, partindo da reflexão política,

desembocava na alegoria da “comunidade de sangue” luso-brasileira, por

um lado, e a que, partindo da partilha científica dinamizada no seio do

positivismo e do republicanismo, desembocava na alegoria dos “povos

irmãos” como expressão da busca pela “fraternidade universal” à dimensão

luso-brasileira, por outro. No tocante aos modos de relacionamento,

abordou-se o recurso fosse à linha da dissensão, fosse à linha do consenso

– esta última averiguada a pretexto do comemoracionismo camoniano –

para a produção de efeitos negociais entre as duas culturas. E concedeu-se,

enfim, uma atenção às interpretações concorrenciais. Isto permitiu a

identificação de três eixos de entendimento sobre o relacionamento luso-

brasileiro: o primeiro, que chamámos de derivativo, apontava para a

consideração do Brasil como prolongamento de Portugal no continente

americano; o segundo, denominado convergente, assinalava a associação

de brasileiros e portugueses no âmbito da cientifização destas sociedades

no seio do positivismo republicano; o terceiro, propagado pelos que

chamados cultores do distanciamento, incidia numa separação identitária

do Brasil através da incorporação de Portugal como um ingrediente, entre

outros, de uma “brasilidade” original e autônoma.

304

Mediante o desenvolvimento de um segundo patamar de inquérito,

pretendeu-se, uma vez constatada e demonstrada a vigência de uma

configuração cultural luso-brasileira, direcionar a pesquisa para aquilo que,

teoricamente, a fundamentaria: o “repertório teórico” disponível para

pensadores portugueses e brasileiros em finais do século XIX. Nesse nível,

vieram à tona as condições históricas, políticas e autorais de mobilização

do quadro teórico trabalho, bem como os defazamentos e paralelos

alinhamentos, profundos ou ocasionais, a que deu lugar a recepção da

bagagem doutrinária. Com este fito, surpreendemos a existência de

movimentos correlatos de renovação cultural nos dois países, autorizando o

tratamento conjunto das “portuguesas” Questão Coimbrã e Conferências

do Casino Lisbonense e da “brasileira” Escola do Recife, bem como, no

quadro deste processo de crítica cultural, a formação de uma frente

cientista luso-brasileira. Esta última, inicialmente incrementada pela

difusão do positivismo como esteio crítico da metafísica, do

anticlericalismo e do ultramontanismo, evoluirá, através da dispersão

gradual das teorias naturalistas disponíveis no final do século XIX, no

sentido da produção de demarcações várias – primeiramente entre níveis de

ortodoxia e heterodoxia –, perfazendo eixos teóricos em nível transnacional

luso-brasileiro, a saber: o eixo ultraortodoxo, o demoliberal, o materialista

monista. Em todos estes casos, os pressupostos atinentes aos variados

“evolucionismos” existentes em escala luso-brasileira acusaram, por sua

vez, diferentes formas de mobilização da história, tornada critério

nevrálgico dos fenômenos demarcatórios.

A verificação do lugar da história na configuração cultural luso-

brasileira, antevista nos patamares anteriores, do mesmo modo que a

verificação do potencial delimitador que se lhe reconhecia em sede de

negociação e de redefinição de fronteiras político-culturais, conduziram a

investigação bem ao cerne do problema identitário luso-brasileiro: a

305

problemática da originalidade. Deste ponto de vista, foi possível assinalar

duas principais linhas de força. Em primeiro lugar, uma inversão produzida

no âmbito do critério do julgamento moral e das “lições da história”. Com

base em O Brasil e as Colónias Portuguesas, de J. P. de Oliveira Martins,

percebemos uma compreensão do Brasil como o “herdeiro” americano dos

navegadores portugueses e uma leitura da sociedade brasileira como

revivescência derivada do período áureo da cultura lusitana; mas, ao invés

disto, notamos, em contraposição, o brasileiro Manoel Bomfim, em sua

obra América Latina: males de origem, lançar a “orgânica” ligação

portuguesa ao “tribunal da história”, invertendo o pressuposto martiniano

da “herança” e condenando-o enquanto mal de origem brasileiro. Por seu

turno, uma segunda linha de força pode definir-se como uma concorrência

no recurso à forma da hibridização cultural enquanto critério de

originalidade, depreendendida a partir do confronto entre as obras de

Teófilo Braga e Sílvio Romero. Por um lado, a observação de uma comum

apetência estética pelo hibridismo – expresso nas figuras do moçárabe

“português” e do mestiço “brasileiro” –, no momento de atribuir marca de

originalidade às culturas “portuguesa” e “brasileira”, é fator de

aproximação entre ambos os pontos de vista. Por outro lado, contudo, essa

similitude, ao revelar-se concorrencial na disputa pela singularidade – em

paralela atribuição da diferença nacional baseada no critério da “forma

híbrida” –, imporá uma estratégia de enfrentamento e uma pugna pelo

afastamento das fronteiras culturais e políticas. Tendências, igualmente

verificáveis em outros âmbitos escalares: o deslocamento do nosso campo

de observação para os contextos regionais brasileiros (analisados a partir

das construções identitárias do “sertanejo” e do “rio-grandense”),

delineadas a título exploratório, conferiu razoável dose de credibilidade à

hipótese de que as escalas infra-nacionais são, também elas, participantes

dos referidos processos de arquitetura identitária. As pistas apontam no

306

sentido de que as culturas regionais definiam a sua própria originalidade e,

por isso, os critérios da sua própria diferença à medida em que também o

fazia a escala nacional. Em ambos os casos, a assunção do afastamento

com Portugal parece fazer-se em paralelo com a demarcação das

respectivas matrizes identitárias.

Cabe ainda apontar para uma potencial averiguação, em outros

contextos – e para além deste estudo – da fortuna de perscrutar o uso

mobilizador da história na contrução de matrizes identitárias. Daqui

surgiriam outras linhas de desenvolvimento desta pesquisa. O certo é que –

e esta é nossa convicção –, o esforço de fundamentação identitária em

várias escalas potenciais envolvidas não foi – nem é – exclusividade do

contexto luso-brasileiro entre 1870-1910. O processo de demarcação entre

as culturas portuguesa e brasileira não deixará de ser questionado com

regularidade, quer de um quer de outro lado do Atlântico. Tanto assim que,

poucas décadas depois, Gilberto Freyre se viu na necessidade de lhe

conferir um sentido, propondo um entendimento luso-tropical destes

mesmos fenômenos. Como se compreende, ao entregar-se a semelhante

tarefa, Freyre não poderia ter deixado de mergulhar, nessa atmosfera de

finais do século XIX em que, de modo significativo, as matrizes identitárias

que ele pretendia estudar haviam merecido particular investimento político

e doutrinário. Avaliar a atenção concedida por Freyre – na sua elaboração

teórica e nas suaa mobilizações para além do eixo luso-brasileiro –, é

matéria ainda por trabalhar. A ventura de testar o uso das ideias e dos

princípios teóricos mobilizados pelos autores estudados neste estudo, em

outros contextos – e dando margem a fundamentação de outras

manifestações identitárias – é assunto, porém, para outras investigações e,

com certeza, para outras escalas.

307

FONTES

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