Capítulo de livro que compila reflexões sobre a cultura material

21
De artefato a obra de arte: a inserção da pintura aborígine australiana no sistema internacional das artes* Ilana Seltzer Goldstein Introdução: um cenário surpreendente Como brasileiros, não esperaríamos encontrar peças indígenas à venda em galerias comerciais de arte moderna e contemporânea. Mas é isso que ocorre em Sydney, Melbourne, Cairns, Darwin, Alice Springs e Perth, as maiores cidades da Austrália. Tampouco existem acervos ou exposições temporárias de arte indígena nos principais museus de arte de nossas capitais, tais como o MASP e a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, ou o Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Porém, é o que se observa na Australian National Gallery, em Camberra, na Art Gallery of New South Wales, em Sydney e na National Gallery of Victoria, em Melbourne. É igualmente difícil imaginar que um colecionador brasileiro pagasse U$ 80.000,00 por uma pintura indígena. Pois esse é o preço médio de uma tela de Emily Kame Kngwarreye, da etnia Anmatyerre – cuja obra já esteve na Bienal de Veneza e foi adquirida pelo MoMA 1 . Tomemos como ilustração – entre tantas outras que seriam possíveis – o caso de Darwin, capital do Northern Territory, que fica no norte da Austrália. No porto da cidade, onde há uma praia turística, uma piscina com ondas, diversas lojas e restaurantes, existe também um jardim de esculturas em que todas as peças são feitas por artistas indígenas (Figura 1). * Publicado como capítulo, no livro REINHEIMER, Patrícia; PARRACHO, Sabrina (orgs.). Manifestações artísticas e ciências sociais: Reflexões sobre arte e cultura material. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2013. 1 Uso aqui o exemplo de Emily Kame, porque suas pinceladas largas e suas cores vibrantes são consensualmente apreciadas pela crítica e pelos colecionadores. Mas, na verdade, os preços das obras variam bastante. Um artista iniciante, considerado talentoso e promissor, consegue entre U$ 2.000,00 e U$ 5.000,00 por uma tela. No pólo oposto, o maio valor de venda já atingido por uma tela aborígine da Austrália foi U$ 2.400.000, pago por uma grande pintura de Clifford Possum Tjapaltjarri, num leilão da casa londrina Sotheby´s, em 2007. Em relação ao destino desse dinheiro, nas vendas do mercado primário, metade chega às mãos dos artistas e é distribuído por suas redes de parentesco. A outra metade, em geral, fica com os intermediários. Já no mercado secundário, o valor de revenda pode ser dezenas de vezes mais alto do que aquele pago inicialmente ao artista. Nesses casos, a Austrália criou, em 2011, um imposto que obriga o revendedor a repassar uma porcentagem do lucro ao autor da obra.

Transcript of Capítulo de livro que compila reflexões sobre a cultura material

De artefato a obra de arte: a inserção da pintura aborígine australiana no sistema internacional das artes*

Ilana Seltzer Goldstein Introdução: um cenário surpreendente

Como brasileiros, não esperaríamos encontrar peças indígenas à venda em

galerias comerciais de arte moderna e contemporânea. Mas é isso que ocorre em Sydney,

Melbourne, Cairns, Darwin, Alice Springs e Perth, as maiores cidades da Austrália.

Tampouco existem acervos ou exposições temporárias de arte indígena nos principais

museus de arte de nossas capitais, tais como o MASP e a Pinacoteca do Estado, em São

Paulo, ou o Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Porém, é o que se observa na

Australian National Gallery, em Camberra, na Art Gallery of New South Wales, em

Sydney e na National Gallery of Victoria, em Melbourne. É igualmente difícil imaginar

que um colecionador brasileiro pagasse U$ 80.000,00 por uma pintura indígena. Pois esse

é o preço médio de uma tela de Emily Kame Kngwarreye, da etnia Anmatyerre – cuja

obra já esteve na Bienal de Veneza e foi adquirida pelo MoMA1.

Tomemos como ilustração – entre tantas outras que seriam possíveis – o caso de

Darwin, capital do Northern Territory, que fica no norte da Austrália. No porto da cidade,

onde há uma praia turística, uma piscina com ondas, diversas lojas e restaurantes, existe

também um jardim de esculturas em que todas as peças são feitas por artistas indígenas

(Figura 1).

* Publicado como capítulo, no livro REINHEIMER, Patrícia; PARRACHO, Sabrina (orgs.). Manifestações artísticas e ciências sociais: Reflexões sobre arte e cultura material. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2013. 1 Uso aqui o exemplo de Emily Kame, porque suas pinceladas largas e suas cores vibrantes são consensualmente apreciadas pela crítica e pelos colecionadores. Mas, na verdade, os preços das obras variam bastante. Um artista iniciante, considerado talentoso e promissor, consegue entre U$ 2.000,00 e U$ 5.000,00 por uma tela. No pólo oposto, o maio valor de venda já atingido por uma tela aborígine da Austrália foi U$ 2.400.000, pago por uma grande pintura de Clifford Possum Tjapaltjarri, num leilão da casa londrina Sotheby´s, em 2007. Em relação ao destino desse dinheiro, nas vendas do mercado primário, metade chega às mãos dos artistas e é distribuído por suas redes de parentesco. A outra metade, em geral, fica com os intermediários. Já no mercado secundário, o valor de revenda pode ser dezenas de vezes mais alto do que aquele pago inicialmente ao artista. Nesses casos, a Austrália criou, em 2011, um imposto que obriga o revendedor a repassar uma porcentagem do lucro ao autor da obra.

Figura 1. Escultura feita por um artista indígena não-identificado, em estilo característico das ilhas do Estreito de Torres. Jardim do Porto de Darwin. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

Também no Vibe Hotel, um dos meios de hospedagem mais caros e famosos de

Darwin, a decoração é composta por peças indígenas (Figura 2).

Figura 2. Trançado de fibra vegetal com franjas, elaborado por artistas aborígenes de Arnhem Land, decorando o saguão do Vibe Hotel, em Darwin. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

Além disso, no maior museu de Darwin, salas permanentes e exposições

itinerantes são dedicadas às artes indígenas da região (Figura 3).

Figura 3. “Conception”, de Fiona Gavino, 2004. Fibra de pândano trançado. Museum and Art Gallery of the Northern Territory, Darwin. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

Ainda na mesma cidade, o Museum and Art Gallery of the Northern Territory

concede, desde 1984, um prêmio anual patrocinado pela empresa de telecomunicações

Telstra, cujos vencedores recebem U$ 40.000,00 cada um e têm seus trabalhos adquiridos

por museus públicos. O Telstra Award divulga o trabalho de artistas indígenas de

diversas etnias e regiões da Austrália e, ao mesmo tempo, estimula a apreciação e o

entendimento do grande público em relação a essa produção artística. Cerca de 300

trabalhos são submetidos todo ano ao júri. Embora apenas 4 sejam premiados – nas

categorias “general painting”, “bark paiting”, “work on paper” e “three-dimensional” –,

100 artistas integram o catálogo e a exposição associados à premiação. Em 2010, ano em

que estive na Austrália, o vencedor do Telstra Award na categoria “pintura geral” foi

Jimmy Donegan, cujo trabalho me impactou muito visualmente (Figuras 4 a e 4 b).

Figura 4a. Jimmy Donnegan, vencedor do Telstra Award em 2010. Figura 4b. "Papa Tjukurpa

Pukara", a tela premiada, feita com tinta acrílica sobre tela. Imagens de divulgação. Fonte: http://blogs.crikey.com.au/northern/2010/08/13/mr-jimmy-donegan-wins-the-2010-telstra-art-award

Partindo do material coletado durante minha pesquisa de doutorado

(GOLDSTEIN, 2012) e tendo como pano de fundo o enorme contraste entre o caso

australiano e o caso brasileiro, no que tange à circulação e à recepção da produção

artística indígena, irei me debruçar, aqui, sobre alguns processos que permitiram que

objetos carregados de significados míticos e fabricados com base em técnicas e códigos

indígenas tradicionais fossem progressivamente alçados à categoria de arte.

Diversos sujeitos interagiram, de forma encadeada, e por vezes conflitante, para

que isso ocorresse, entre os quais os próprios artistas, os gerentes das cooperativas,

galeristas brancos, curadores, diretores de museus, representantes do poder público e,

claro, também antropólogos. O resultado – como permitem notar as imagens que ilustram

esse texto – é que floresce, hoje, na Austrália, grande variedade de estilos e formatos nas

artes indígenas.

Diante de um universo tão complexo e multifacetado, um recorte se faz

necessário. Irei apresentar, aqui, um tipo de produção pictórica bem delimitada: a pintura

sobre entrecasca de árvore de Arnhem Land. Antes disso, porém, a primeira parte do

texto faz uma breve contextualização histórica da colonização europeia na Austrália,

destacando o papel que a arte adquiriu na situação pós-contato.

A Austrália indígena e sua produção artística

A colonização da Austrália foi extremamente violenta. Quando a primeira frota

chegou, em 1788, os britânicos declararam haver encontrado uma ‘terra nullius’, ou seja,

pertencente a ninguém. Naquela época, isso permitia às nações colonialistas se

apropriarem de regiões supostamente desocupadas, para uso “produtivo”. Rapidamente,

as terras australianas foram tomadas por fazendas. Alguns nativos se tornaram peões ou

serviçais domésticos, outros foram mortos.

Uma prática oficial, que perdurou até a segunda metade do século XX, foi o rapto

de crianças, sobretudo as mestiças (chamadas, então, de half-casts), para que fossem

criadas e “civilizadas” em orfanatos, apartadas para sempre de suas famílias (KLEINERT

e NEALE, 2000). Eram proibidas de falar suas línguas maternas e viviam confinadas em

campos cercados (Figura 5).

Figura 5. Crianças aborígenes no campo de Moora River, a 135 km de Perth. Cerca de 500 pessoas viviam ali contra sua vontade, na década de 1930, quando a fotografia foi tirada. Imagem

do acervo da Battye Library. Disponível no site: www.noongarculture.org.au

Isso ajuda e explicar por que são faladas, hoje, apenas 20 das mais de 200 línguas

indígenas registradas no momento da chegada dos britânicos, no final do século XVIII. E

também por que as taxas de alcoolismo, associadas ao “tédio” e à “perda de sentido” após

o contato com os colonizadores, são tão altas (SCHMIDT, 2005). Atualmente, um

indivíduo indígena vive, em média, 17 anos menos que um australiano branco e sua renda

é cerca de 35% da renda média dos brancos.

Vale ressaltar que o termo indigenous, na Austrália, engloba duas macrodivisões.

De um lado, os Aborigenes, majoritários, que vivem no continente, têm a pele negra e,

apesar das diferenças linguísticas, partilham um substrato mítico comum, chamado de

Dreaming ou “tempo dos sonhos”. De outro lado, os Torres Strait Islanders, uma minoria

de 5% que mora em pequenas ilhas do Estreito de Torres, no nordeste da Austrália, tem a

pele um pouco mais clara e apresenta proximidade cultural com povos da Melanésia.

A produção artística é valorizada e pujante tanto entre as etnias aborígenes,

quanto entre os habitantes do Estreito de Torres. Tradicionalmente, os grupos indígenas

da Austrália cultivam diversas formas expressivas, do canto à cestaria, da dança à pintura

corporal. Algumas dessas formas são bastante antigas, como as pinturas rupestres dos

Kakadu, que datam de mais de 20 mil anos e foram declaradas Patrimônio Mundial pela

UNESCO (Figura 6).

Figura 6. Pintura rupestre no Kakadu National Park, em Arnhem Land, figurando uma pequena

espécie de canguru chamada wallaby. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

O processo de legitimação de uma parcela dessa produção ocorreu gradualmente,

ao longo do século XX. A socióloga francesa Roberta Shapiro (2007: 137) chama de

“artificação” a transformação de quaisquer objetos e práticas, antes vistos como não-

artísticos, em arte. Utilizando os termos de Shapiro, seria possível afirmar que a

“artificação” da pintura aborígene australiana fez com que os produtores passassem a ser

chamados de artistas; os objetos por eles fabricados se tornassem criações; e os

observadores de seu trabalho se dividissem entre apreciadores, críticos e colecionadores.

O fato é que, hoje, a arte indígena contemporânea da Austrália está inserida no sistema

internacional de artes2.

Um dos primeiros artistas aborígenes a obter reconhecimento individual, na

Austrália, foi Albert Namatjira, graças a seus retratos de paisagem, que deram origem à

Hermannsburg School, até hoje ativa na produção de aquarelas figurativas. Criado em

uma missão luterana, Namatjira ofereceu-se, em 1936, para ser guia do pintor branco Rex

Batterbee, que viajara ao deserto em busca de inspiração. Namatjira pediu que, em troca,

o pintor lhe ensinasse a técnica da aquarela. Aprendeu rapidamente e começou a registrar

as cores e paisagens do deserto. Batterbee organizou uma exposição individual para

Namatjira, em Melbourne, em 1938. Em virtude da visibilidade adquirida por Namatjira,

ele foi também o primeiro indígena a receber a cidadania australiana, em 1957.

Namatjira ensinou seus filhos e sobrinhos a pintar como ele. Contudo, a recepção

da chamada Escola de Hermannsburg no sistema euroamericano das artes foi lenta e

controversa. Por algum tempo, ela foi acusada de “inautêntica” e “típica de brancos”. Aos

poucos, surgiu o argumento de que a opção pela aquarela figurativa seria uma estratégia

para proteger a iconografia tradicional, muito poderosa e, até então, secreta. Ademais, a

íntima conexão com a região de Ntaria – nome nativo do local em que ficava a missão de

Hermannsburg – posicionaria os aquarelistas aborígenes numa linha de continuidade com

2 A noção de sistema de arte vem sendo delineada nas duas últimas décadas, sobretudo na sociologia da arte francesa. Autores como Alain Quemin (2001), Nathalie Heinich (1998) e Raymonde Moulin (1992), consideram sistema de arte como a rede que compreende todos os sujeitos e organizações envolvidos na produção, exibição, avaliação, divulgação, circulação e comercialização das artes. Fazem parte do sistema de arte, por exemplo, artistas individuais, coletivos, galerias, casas de leilões, museus, bienais, críticos, curadores e diretores de instituições. Anne Cauquelin (2005) chama a atenção ainda para o fato de que, no caso específico da arte contemporânea, essa rede de interações ultrapassa as fronteiras regionais e mesmo nacionais. Daí a expressão “sistema internacional de artes”.

seus ancestrais, cujas aventuras míticas ocorreram exatamente naquela paisagem e cujos

ensinamentos fazem referência às árvores, aos rios e às montanhas do Deserto Central

(FRENCH et al, 2008).

Figura 7. Aquarela sobre papel de Albert Namatjira, sem título e sem data, anunciada para venda pela casa de leilões Southeby´s. Imagem publicada no site: http://www.artrecord.com.

Um segundo movimento artístico indígena surgido na Austrália é a Acrylic

Painting – pintura com tinta acrílica sobre tela –, que nasceu e se consolidou nas décadas

de 1970 e 1980, devido a uma confluência de fatores. Nos anos 1970, ocorreram as

primeiras concessões de terras indígenas, iniciando-se um movimento de migração de

retorno aos territórios ancestrais3. À medida que os grupos foram voltando às terras que

consideravam sagradas, memórias, narrativas míticas e práticas rituais ganharam força,

alimentando a produção pictórica.

O discurso do governo federal, nesse momento, substituiu o ideal de assimilação

dos nativos pelo de autodeterminação, fazendo com que o estímulo ao protagonismo e às

atividades produtivas ligadas a conhecimentos tradicionais fossem vistas com bons olhos.

Ademais, no âmbito internacional, as exposições “Magiciens de la Terre”, em Paris, e

“Primitivism in XXth Century Art”, em Nova York, ambas nos anos 1980, ajudaram a 3 Os protestos de ativistas haviam começado já nos anos 1950 e 1960, mas foi só em 1976 que o Aboriginal Land Rights Act devolveu 50% do estado Northern Territory a comunidades indígenas.

alavancar o valor da arte dita “primitiva”4. Isso encorajou o governo australiano e as

organizações indígenas a apostarem no segmento. (ALTMAN, 2005).

O Aboriginal Arts and Crafts, órgão estatal que funcionou de 1971 a 1991, era

uma agência de promoção da arte aborígene, que, juntamente com o Aboriginal Arts

Board, fundado em 1973 e hoje integrante do Australia Council for the Arts, empenhou-

se em organizar exposições dentro e fora da Austrália, a fim de formar públicos e

mercados. Localmente, as duas entidades passaram a apoiar a criação de cooperativas

para a comercialização de arte indígena, inspiradas nas lojas que já existiam nas missões

religiosas, procurando, contudo, superar seu caráter paternalista e autoritário5.

A primeira cooperativa de artistas indígenas voltada à produção de pinturas com

tinta acrílica sobre tela foi fundada em 1972. O arte-educador branco Geoff Bardon, que

trabalhava na comunidade de Papunya, no Deserto Central, incentivou seus alunos das

etnias Pintupi, Warlbiri, Anmatyierr, Arrente e Luritja a transporem, para papéis, latas,

muros e, depois, para telas de tecido, desenhos e cores que já aplicavam sobre a areia e o

corpo, em ocasiões cerimoniais (JOHNSON, 2006). No começo, as pinturas eram

pequenas e conseguiam valores baixos no mercado, mas o governo entrava com alguma

verba para auxiliar, por meio do recém-criado Aboriginal Arts Board.

4 O interesse pela chamada arte “primitiva” floresceu inicialmente entre as vanguardas do século XX. A partir de 1920 e 1930, a África, a Oceania e a América passaram a representar, para artistas como Matisse, Picasso e Breton, um reservatório de novas formas e valores (PERRY, 1998; CLIFFORD, 1996). A categoria ganhou força entre as duas Guerras Mundiais e teve seu apogeu entre 1957, com a criação do Museu de Arte Primitiva, em Nova York, e meados da década de 1980 (ERRINGTON, 1998). Convém, no entanto, problematizar o uso dessa categoria. Em primeiro lugar, além da produção indígena atual, ela tem abarcado – em catálogos, leilões e mesmo museus – fenômenos tão diferentes como pinturas rupestres pré-históricas, telas naïf, entalhes populares e trabalhos de pacientes psiquiátricos. De acordo com Sally Price, “ tudo o que essas diversas manifestações chamadas de `arte primitiva´ têm em comum é que são encaixadas, pelo Ocidente, em uma espécie de estereótipo simplificador do Outro exótico” (PRICE apud GOLDSTEIN, 2011: s.p.). Em segundo lugar, não se pode negligenciar que a expressão arte “primitiva” é problemática por remeter ao paradigma evolucionista, sugerindo que haveria formas artísticas “inferiores”. Não obstante, fora das Ciências Sociais, não é raro encontrar-se tão categoria sendo utilizada de forma pouco problematizada. 5 As lojas das missões haviam se multiplicado a partir dos anos 1930, forçando os nativos a produzirem cestaria, flechas etc. para o público externo. O dinheiro ficava nas mãos dos missionários, ao passo que, nas cooperativas atuais, cerca de metade da receita é repassada aos artistas. Nas lojas das missões, não havia preocupação com o registro das histórias míticas relacionadas aos objetos produzidos, enquanto, nas cooperativas contemporâneas, o registro em foto, vídeo e textos é uma atividade rotineira. A tomada de decisões, nas lojas das missões, era feita exclusivamente por brancos. Hoje, os conselhos diretores das cooperativas são compostos por representantes indígenas. Outra grande diferença é que os missionários nunca trataram aqueles objetos como obras de arte. Seu público-alvo eram, sobretudo, turistas.

A aceitação pelos brancos não foi imediata. Até 1979, não se encontrava nenhuma

pintura acrílica feita em Papunya em museus de arte australianos. Porém, na década de

1980, a pintura acrílica indígena se expandiu. Em 1988, o faturamento anual da

cooperativa Papunya Tula Artists Ltd. atingiu U$ 1.000.000,00; sua produção começou a

entrar nos museus públicos e galerias comerciais. As telas ganharam formatos e tamanhos

variados, novas cores passaram a ser utilizadas. No final dos anos 1990, o valor das telas

dos membros da Papunya Tula atingiu cifras tão elevadas, que ocorreram roubos em

museus. Em 2010, quando visitei sua galeria, a cooperativa vendia trabalhos de 120

artistas, em um espaço próprio grande e elegante, no centro de Alice Springs. Ningura

Napurrula, de 74 anos, é uma de suas artistas mais famosas (Figura 8).

Figura 8. “Wirrulnga”, de Ningura Napurrula. 2006. Acrílico sobre linho. Na pintura, estão representadas uma fonte de água e uma mulher grávida que, no “tempo dos sonhos”, teve seu

parto nesse local. Imagem de divulgação do site: http://www.deutscherandhackett.com/node/11000022/

Existem, hoje, na Austrália, cerca de 7000 artistas visuais indígenas6

(McCULLOCH e SCHILDS, 2009). A produção e a venda de objetos artísticos

6 Embora minha pesquisa tenha se debruçado sobre as artes visuais, é importante destacar que, na Austrália, existem também bandas de rock que aliam a guitarra elétrica ao djidjiridoo – instrumento de sopro feito de

representa a maior fonte de ocupação e renda das populações indígenas, no país. Ainda

que alguns sejam independentes ou representados individualmente por marchands

brancos, a maioria é associada a cooperativas auto-geridas, similares à pioneira Papunya

Tula.

Aproximadamente 100 cooperativas artísticas – chamadas de art centres – estão

espalhadas pelo território australiano, com maior concentração no deserto e no norte

tropical. Contando com subsídios públicos, organizam exposições e vendas dentro e fora

da Austrália, licenciam imagens para que sejam aplicadas em souvenirs turísticos,

catalogam a produção local, emitem certificados de autencidade e organizam workshops e

viagens para os artistas associados. Normalmente, contratam um ou dois funcionários

brancos, formados em história da arte, marketing ou administração, para cuidar de parte

dessas tarefas.

Essa vasta de rede de apoio, aliada ao prazer que a pintura proporciona e à

possibilidade de ganhar dinheiro com ela levou a pintura acrílica do deserto, iniciada na

comunidade de Papunya, a se espalhar e ramificar em uma série de submovimentos e

subestilos regionais. Esta é provavelmente a modalidade que mais admiradores tem

conquistado dentro e fora da Austrália. Por pura coincidência – e para deleite do público

branco –, muitas das telas feitas no deserto australiano lembram o trabalho de pintores

modernistas, como Paul Klee, Jakson Pollock, Wasilly Kandinsky e Mark Rothko.

Após ter delineado um breve panorama introdutório das artes indígenas na

Austrália, irei me deter um pouco mais, no próximo item, em uma vertente específica,

surgida antes mesmo da aquarela e da pintura acrílica do deserto: a pintura sobre

entrecasca de eucalipto, conhecida como bark painting.

A pintura sobre entrecasca de árvore de Arnhem Land

Arnhem Land é uma área tropical com 97.000 Km2, no extremo norte da

Austrália (assinalada pelo retângulo, no mapa da Figura 9), onde a vida é ritmada pelas

estações seca e chuvosa. Ali existe uma reserva indígena desde 1931. De 1910 a 1970,

um tronco oco –, como é o caso do grupo Yothu Yindie, que já se apresentou, inclusive, no Brasil. Há também companhias de dança renomadas, como o Bangara Dance Theatre e videomakers aborígines com circulação internacional, como Curtis Taylor, que apresentou seus vídeos na Reunião da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, em São Paulo, em julho de 2012.

grande parte das pessoas vivia em torno das missões metodistas e anglicanas. A partir de

1970, com as primeiras vitórias nas lutas por terras, elas se redistribuíram, retornando às

terras que pertenciam tradicionalmente a seus clãs ou a suas famílias.

O grupo étnico mais numeroso de Arnhem Land se autodenomina Yolngu. O

contato dos Yolngu com os brancos remonta a cerca de cem anos. Nos séculos XVIII e

XIX, eles também tiveram intenso contato com mercadores macassar da Indonésia, que,

por meio do comércio marítimo, forneciam-lhes pepinos do mar, iguaria muito apreciada.

Figura 9. Mapa com os cinco estados e as principais cidades da Austrália. Dentro do retângulo preto, ao norte, está Arnhem Land, zona em que predomina a bark painting. A forma preta oval

indica a região desértica que ocupa um terço do país, onde floresce a pintura acrílica e onde Albert Namatjira produziu suas aquarelas, nos anos 1940.

Mapa adaptado a partir do site: http://australiatourism1.blogspot.com.br/

Para além do trançado de fibra, que é sofisticado e abundante em Arnhem Land, a

produção artística nessa região utiliza primordialmente a madeira e os pigmentos naturais

como matérias-primas. Alguns autores afirmam que, muito antes do contato com os

brancos, pranchas de eucalipto decoradas vinham sendo utilizadas pelos Yolngu como

tetos e paredes de cabanas, durante a época das chuvas. Segundo Howard Morphy, relatos

sugerem que havia um segundo uso tradicional para as lâminas de eucalipto pintadas: elas

ajudavam a transmitir ensinamentos restritos, por meio de desenhos (MORPHY, 2008).

Não se sabe quando foram feitas as primeiras pinturas sobre entrecasca vegetal,

pois o material é perecível. Mas a primeira coleção de pranchas de que se tem notícia foi

reunida na costa ocidental de Arnhem Land, em 1838, e hoje pertence à Universidade de

Sydney (McCULLOCH, 2009).

Anderson (2006) atribui a popularização desse gênero de pintura à atuação de

antropólogos. O primeiro deles foi Baldwin Spencer, que esteve algumas vezes no norte

da Austrália, entre 1911 e 1921, em missões científicas e como representante do

governo7. Pediu aos grupos com quem interagiu que pintassem sobre entrecascas de

árvores as mesmas imagens que se encontravam estampadas nas rochas e cavernas da

região. Spencer levou consigo nada menos do que 962 exemplares dessas pinturas

encomendadas, que hoje pertencem ao Museu de Melbourne.

Algum tempo depois, foi a vez de Ronald Berndt, professor da Western Australia

University, trabalhar em Arnhem Land. Sua metodologia de pesquisa compreendia a

encomenda de bark paintings aos Yolngu, sobre temas pré-definidos (MORPHY, 2008).

Já Charles Mountford, líder de uma expedição financiada pela National Geographic

Society à Arnhem Land, entre 1947 e 1948, organizou uma mostra internacional de bark

paintings que itinerou por toda a Europa (CARUANA, 2003).

A bark painting é realizada sobre uma superfície originalmente curva: para se

obter a lâmina de madeira, a parte externa dos troncos de eucalipto é arrancada na estação

úmida (de novembro a março), aquecida no fogo por alguns minutos e, então, sua

curvatura é atenuada pelo uso de pesos nas quatro extremidades. Os pincéis, por sua vez,

são fabricados com pequenos galhos, que podem ser mastigados em uma das

extremidades, para se tornarem mais macios, ou então ter penas e fios de cabelo colados

em suas pontas. No início dos anos 1960, bark paintings já se faziam presentes nos

principais museus australianos; eram inauguradas as primeiras galerias comerciais de arte

7 Spencer publicou Native Tribes of the Northern Territory of Australia em 1914, descrevendo de regras de matrimônio a ritos de iniciação, passando pela medicina e pelas “artes decorativas”.

indígena em Sydney; e intensificavam-se, tanto a produção de pinturas, como o

conhecimento dos brancos sobre elas.

Dentro da Austrália, a primeira exposição de bark paintings em um museu de

belas-artes foi idealizada pelo pintor e curador Tony Tuckson, em 1960. Ele ficou muito

impressionado com uma exposição que vira em Sydney, mostrando a coleção particular

do casal Berndt. Em 1958 e 1959, Tuckson fez viagens para Arnhem Land, de onde

trouxe mastros cerimoniais decorados que até hoje têm destaque na entrada da Art

Gallery of New South Wales, em Sydney. A exposição organizada por Tuckson viajou

por museus de arte na Austrália e em outros países. Inclusive, parte das peças foi enviada

à Bienal de São Paulo, em 1961.

Ainda que haja variações regionais – fundo liso ou texturizado, presença ou

ausência de um personagem central –, em linhas gerais, é fácil reconhecer uma bark

painting de Arnhem Land. Em primeiro lugar, utilizam-se apenas quatro cores: o preto

extraído do carvão, o branco da lama, o ocre e o vermelho de pedras da região. Em

segundo lugar – ao contrário da pintura acrílica do deserto que, aos nossos olhos, parece

abstrata –, aqui são figurados animais, homens e lugares que remetem a eventos míticos

do “tempo dos sonhos”8.

Em terceiro lugar, é recorrente a técnica das hachuras cruzadas, que consiste na

multiplicação de linhas paralelas e de linhas convergentes formando ângulos repetidos

(observável no corpo dos peixes, na próxima imagem). Esse uso de finas linhas

multiplicadas gera um efeito óptico de brilho, contraste e movimento. Em algumas

pinturas, a superfície parece instável, como se fosse sair para fora, atestando o poder dos

ancestrais evocado pelas pinturas. (MORPHY, 2005). Por fim, figura e fundo tendem a se

confundir (como ocorre com o crocodilo, na reprodução a seguir), sugerindo a unidade

entre os seres vivos, a paisagem e os ancestrais que os criaram e os impregnam até hoje.

Todos esses elementos podem ser identificados na Figura 10, uma bark painting de

8 Interessante notar que uma palavra yolngu designa desenhos, de uma maneira geral: miny’tji. O termo se aplica a qualquer motivo composto por linhas e cores, seja ele produzido por um ser humano ou não. As asas de uma ave colorida, a estampa de um vestido e uma pintura sobre casca de árvore são igualmente chamadas de miny’tji. Em todos os casos, o desenho é considerado como um sinal aparente da identidade das coisas e dos seres (MORPHY, 2008). Um mesmo miny’tji pode cobrir uma prancha de madeira, o peito de um jovem que será circuncidado, ou um mastro fúnebre.

Djambawa-Marawil – líder e ativista de Arnhem Land cuja obra está presente na maioria

das coleções australianas.

Figura 10. “Båru at Yathikpa”, de Djambawa Marawilli, c. 2004. Coleção do centro de artes Buku-Larnnggay Mulka, em Yirrkala, Arnhem Land. Foto de divulgação publicada no site:

http://www.mulka.org/theartcentre/artwork/4964/B%C3%A5ru%20at%20Yathikpa

A pintura reproduzida na Figura 10 retrata o crocodilo ancestral Båru, que é

relacionado à criação do fogo. A cena se passa numa parte da costa de Arnhem Land

chamada Yathikpa, onde fica o ninho de Båru, que é o tótem do clã Madarrpa, ao qual

pertence o artista. Foi ali que apareceu o fogo, pela primeira vez, como consequência de uma

briga de Båru com sua esposa. O local está associado ainda a uma outra passagem mítica: no

“tempo dos sonhos” (Dreaming), dois pescadores estavam atrás de uma espécie australiana de

peixe-boi (dugong), quando erraram as flechadas e atingiram uma pedra sagrada. Nesse

momento, o oceano ferveu e a canoa virou. O peixe-boi dessa história está presente em uma das

extremidades da pintura. O outro peixe, ao lado dele, deve ser um barramundi, que, como o

crocodilo australiano, tem a capacidade de transitar entre a água doce e o mar, e representa a

ligação entre os diversos clãs Yolngu. A textura que preenche as ondas e a espuma do mar forma,

por vezes, losangos com as extremidades semiabertas. Trata-se do símbolo do clã Madarrpa, que

lembra um diamante, e se faz presente na maioria das pinturas feitas por seus membros9.

No vilarejo de Yirrkala, onde estive em 2010, há uma cooperativa gerida pelos

Yolngu que vende predominantemente bark paintings. O centro de artes Buku-Larrnggay

Mulka, inaugurado em 1973, é um dos mais antigos e bem sucedidos da Austrália. Com o

tempo, o espaço cresceu. Em 1988, foi aberto um museu; em 1996, instalada uma oficina

de gravuras; em 1998, construído um anexo para colocar dois painéis gigantes sobre a

criação do universo, rejeitados pela igreja local; em 2007, foi implantado o centro de

multimídia, voltado para a documentação e produção audiovisual yolngu.

Diariamente, artistas que moram em um raio de 200 km vão ao centro de artes de

Yirrkala vender seus trabalhos. Outros pintam ali mesmo, no terraço, sentados no chão.

Só não é permitido usar tinta acrílica sobre tela, por decisão da diretoria, que prefere

priorizar matérias primas orgânicas e regionais. A cooperativa de Yirrkala compra à vista

dos artistas. O preço varia de acordo com o tamanho, a originalidade, a demanda do

mercado e a sabedoria do artista – ligada à sua idade. A cooperativa intermedia as vendas

das peças para galerias comerciais, museus públicos e coleções particulares. Ao mesmo

tempo, colecionadores e turistas não encontram dificuldade em comprar peças

pessoalmente em Yirrkala, pois existem um aeroporto e dois hotéis nas proximidades.

9 Essa rápida interpretação do conteúdo representado na bark painting reproduzida na Figura 10 é baseada em minhas conversas com Howard Morphy, que há 40 anos trabalha com os Yonlgu, e também em informações obtidas nos arquivos do Australian National Maritime Museum, em Sydney.

Ao longo dos anos, os artistas yolngu foram se adaptando às novas demandas.

Inicialmente, as pinturas sobre prancha de madeira eram de tamanho reduzido. Com o

florescimento do mercado de arte indígena, sofreram adaptações no tamanho – ficando

maiores – e no conteúdo – imagens seculares se multiplicaram e signos de divulgação

restrita foram omitidos. Até os anos 1960, os fixadores de pigmentos vinham de

orquídeas, da clara do ovo de pássaros ou de cera, mas, cada vez mais, torna-se frequente

o uso de colas e resinas industrializadas, para garantir maior durabilidade. Ganchos foram

acoplados no verso, para que as pranchas possam ser penduradas na parede, à maneira de

quadros. Desenvolveu-se, também, uma estrutura metálica para dar suporte às pinturas,

evitando que se enrolem com o passar do tempo.

Além das pranchas de entrecasca de eucalipto aplainadas, outros suportes para a

pintura têm surgido em Arnhem Land, como ilustram as próximas Figuras.

Figuras 11ª e 11b. Troncos ocos e esculturas de madeira pintados com pigmentos naturais, à

venda no centro de artes de Yirrkala. Fotos de Ilana Goldstein, 2010.

A cooperativa de artes de Yirrkala, mais do que fomentar e distribuir a produção

artística dos Yonlgu do leste de Arnhem Land, funciona como um pólo articulador e um

local para reuniões. Foi ali que nasceram, por exemplo, duas iniciativas políticas

interessantes, combinando arte e política. Na década de 1960, lideranças de todos os clãs

produziram, juntas, uma petição exigindo direito à terra, que consistia de um texto

datilografado, colado no meio de uma grande e sofisticada bark painting, elaborada a

várias mãos. Essa bark petition foi enviada ao governo federal, em Camberra, e, embora

não tenha tido impacto imediato, alguns anos depois, o mesmo juiz que recebeu a petição

pintada concedeu direito à terra aos Yolngu. Em 1988, ano da celebração do bicentenário

da colonização inglesa na Austrália, 43 artistas da mesma região produziram

coletivamente, para a Bienal de Sydney, uma instalação crítica relacionada à efeméride,

consistindo de 200 mastros funerários decorados, um para cada ano da colonização10.

Considerações finais

Como procurei mostrar nas páginas anteriores, a arte contemporânea dos povos

indígenas da Austrália ancora-se em práticas e valores tradicionais, e, ao mesmo tempo,

está inserida nas instituições museológicas e no mercado de arte. Isso só é possível em

virtude da existência de políticas públicas – premiações, aquisições de peças por museus,

subsídios a cooperativas indígenas, publicação de código de ética para o setor, entre

outras – que fomentam iniciativas locais e que estimulam o mercado e o circuito

expositivo a absorvê-las.

É inegável que existem efeitos perversos, que explorei alhures (GOLDSTEIN,

2012), como a exploração de artistas indígenas por marchands brancos, a apropriação do

repertório visual indígena por empresas de souvenirs, sem autorização e a persistência de

problemas sérios entre as populações indígenas, acarretados pelo contato. Não obstante, a

produção artística é inegavelmente uma forma importante de geração de renda para as

comunidades indígenas da Austrália que, ademais, ajuda a conferir visibilidade a

populações historicamente oprimidas e desvalorizadas.

O caso australiano permite, também, tecer algumas considerações mais gerais

sobre os diálogos nascentes entre a antropologia e a história da arte. No livro O Fim da

10 Os mastros funerários são troncos ocos, comidos por formigas, que abrigam parte dos restos mortais do falecido durante um ano de luto - depois do qual são deixados ao relento para ser reintegrados à natureza. O mastro funerário é decorado com as mesmas pinturas corporais que cobriam a pessoa, em vida. Intitulada “Aboriginal Memorial”, a instalação composta por mastros funerários metafóricos fica, hoje, numa sala de destaque da National Gallery of Australia, em Camberra.

História da Arte (2006), Hans Belting faz uma espécie de autocrítica disciplinar,

declarando seu interesse por criações de todas as tradições e regiões, e rompendo com

hierarquizações etnocêntricas. “A assim chamada história da arte é uma invenção de

utilização restrita e para uma idéia restrita de arte” (BELTING, 2006: 101- 104). Belting

afirma ainda que, no Modernismo, teria existido uma espécie de barreira protegendo a

arte euroamericana da “contaminação” pela arte étnica e popular. Hoje, ao contrário, o

que ele chama de arte “global” interpela ao mesmo tempo a arte contemporânea (herdeira

e transgressora da tradição moderna ocidental) e a arte pós-étnica, indígena, ex-

“primitiva”, ou como se queira chamá-la11.

Portanto, mesmo que a idéia de arte tenha surgido associada a um sistema

institucional e a um cânone específicos de uma parte do Ocidente, talvez se possa, a partir

da antropologia, estender essa noção, procurando contemplar criações e formas

expressivas de outras sociedades. O Centro de Pesquisas Transculturais da Universidade

Nacional da Austrália, onde estive por três meses, reúne pesquisadores da antropologia,

da museologia, da arqueologia e da história da arte que trabalham, justamente, com uma

noção ampla e transcultural de arte:

Our position is that the anthropology of art is not simply the study of those objects that have been classified as art objects by Western art history or by the international art market. Nor is art an arbitrary category of objects defined by a particular anthropological theory; rather, art making is a particular kind of human activity that involves both the creativity of the producer and the capacity of others to respond to and use art objects. (…) Anthropology must be open to classifications of the phenomenal world that do not correspond to Western categories. (…) Art describes a range of thoughts and practices that employ creativity in the production of expressive culture, regardless of whether that production adheres to prescribed forms or embodies individual innovations (MORPHY e PERKINS, 2006: 12, grifos meus).

A proposta, que considero estimulante, e com a qual encerro minha contribuição a

este volume, é tratar a arte como uma forma de ação na qual a criatividade e a técnica do

produtor são fundamentais e na qual a capacidade de desencadear uma resposta do

11 Embora Belting (2006) proponha uma arte mais inclusiva, não discute a primazia da certas produções no mercado, nem as assimetrias de poder que ocorrem nesse processo, tampouco a relação entre centro e periferia que vigora no sistema internacional – no qual, inclusive, a arte latino-americana feita por brancos é marginalizada, não apenas a arte “étnica”. Para refletir sobre tudo isso, a interface entre a antropologia, a museologia, a história da arte, a sociologia, a economia e o direito se faz necessária e promete ser frutífera.

receptor é igualmente importante. Além disso, a ação artística deve necessariamente gerar

formas expressivas que carreguem significados e, ao mesmo tempo, possuam

propriedades estéticas – canções, coreografias, pinturas, esculturas, entre outras,

coincidentes ou não com a categoria euroamericana “obras de arte”.

Referências bibliográficas

ALTMAN, John. Brokering Aboriginal art. A critical perspective on marketing,

institutions and the state. Melbourne: Deakin University/Melbourne Museum, 2005.

ANDERSON, Jaynie. The creation of indigenous collections in Melbourne: how Kenneth

Clark, Charles Mountford and Leonhard Adam interrogated Australian indigeneity. IN:

Histoire de l´art et anthropologie [on-line]. Paris: INHA / Musée du Quai Branly, 2009.

Disponível em: http://actesbranly.revues.org/332. Acesso em 13/08/2009.

BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo:

Cosac & Naify, 2006.

CARUANA, Wally. Aboriginal art. London and New York : Thames and Hudson, 2003.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes,

2005.

CLIFFORD, James. Collections; On collecting art and culture. In: CLIFFORD, James.

The Predicament of Culture. Massachussetts: Harvard University Press, 1998.

ERRINGTON, Sherry. The death of authentic primitive art and other tales of progress.

Berkeley/ Los Angeles / London: University of California Press, 1998.

FRENCH, Rachel; FRENCH, Alisson; McKENZIE, Anna. The legacy of Albert

Namatjira today: contemporary Aboriginal watercolours from Central Australia. Alice

Springs: Ngurratjuta Iltja Ntjarra (Many Hands Art Centre), 2008.

GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. Do 'tempo dos sonhos' à galeria : arte aborígine australiana

como espaço de diálogos e tensões interculturais. Tese de doutorado apresentada ao

Departamento de Antropologia Social da UNICAMP, em março de 2012. Disponível em:

http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000856261. Acesso em

10/12/2012.

HEINICH, Nathalie. Le triple jeu de l’art contemporain. Paris: Éditions de Minuit, 1998.

KLEINERT, Sylvia & NEALE, Margo (eds). The Oxford Companion to Aboriginal Art

and Culture. Melbourne: Oxford University Press, 2000.

McCULLOCH, Susan; CHILDS, Emily. McCulloch´s contemporary Aboriginal Art. The

complete guide. Melbourne: Australian Art Books, 2009.

GOLDSTEIN, Ilana S. Entrevista com Sally Price. IN: Proa – Revista de Antropologia e

Arte [on-line]. Ano 02, vol.01, n. 02, nov. 2010. Disponível em:

http://www.ifch.unicamp.br/proa/EntrevistasII/entrevistasallyprice.html , acesso em:

01/01/2012.

JOHNSON, Vivien. Papunya painting out of the desert. Canberra: National Museum of

Australia Press, 2006.

MORPHY, Howard; PERKINS, Morgan (orgs.). The anthropology of art: a reader.

Oxford: Blackwell Publishing, 2006.

MORPHY, Howard. Becoming art. Exploring cross cultural categories. Sydney:

University od South Austrália Press, 2008.

MOULIN, Raymonde. L´artiste, l`institution et le marché. Paris: Flammarion, 1992.

PERRY, Gill. O primitivismo e o ‘moderno’ in: HARRISON, Charles et al. Primitivismo,

Cubismo e Abstração. Começo do século XX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. P 3-85.

QUEMIN, Alain. Le rôle des pays prescripteurs et le marché de l’art contemporain.

Nîmes: Editions Jacqueline Chambon/Artprice, 2001.

SHAPIRO, Roberta. Que é artificação?. In: Sociedade e estado vol.22, n.1, p. 135 – 151,

2007. Disponível em: www.scielo.br/pdf/se/v22n1/v22n1a06.pdf. Acesso em 05/05/2012.

SCHMIDT, Chrischona. Beyond suffering: the significance of productive activity for

Aboriginal Australians. Honour Thesis apresentada ao Departmento de Antropologia da

Universidade de Sydney, 2005.