- DIBS, Livro

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DIBS -EM BUSCA DE SI MESMO PRÓLOGO Esta é a estória de uma criança em busca de si mesma, através do processo psicoterápico. Foi toda ela vivida na sua autenticidade por uma pessoa idêntica a nós -um menino cujo nome era Dibs. Enquanto esta criança desabrochava no esforço de encontrar as forças da vida, crescia dentro dele um novo conceito próprio -a inusitada e incessante descoberta de que, dentro dele, existiam uma estatura e sabedoria que se expandiam e se contraíam "semelhantes às sombras que são influenciadas pelo sol e pelas nuvens". Dibs experimentou profundamente o processo complexo de crescimento na busca do precioso presente da vida, curando-se a si próprio pelos raios de sol de suas esperanças e pelas chuvas de suas mágoas. Vagarosamente, e, por tentativas multifacetadas, Dibs descobriu que a segurança do seu mundo não estava centralizada no contexto circunstancial, mas que o núcleo estabilizador que ele procurava com tal intensidade tinha profundas raízes dentro de si mesmo. Porque Dibs expressa uma linguagem que desafia a complacência de muitos de nós, e porque ansiou e lutou para conquistar a sua identidade humana digna de uma missão lugar neste mundo, sua estória tornou-se a estória de cada pessoa à procura do seu autêntico caminho. Através de sua experiência na sala de Ludoterapia, em seu lar, na sua escola, sua personalidade desenvolveu- se e enriqueceu, de diferentes maneiras, a vida dos outros que tiveram o privilégio de conhecê-lo. INTRODUÇÃO Esta é a estória do desabrochar de uma personalidade forte e saudável, em uma criança anteriormente marcada por profundos traumatismos. Quando esta narrativa começa, Dibs vinha freqüentando a escola há quase dois anos. Não falava de modo algum, a princípio. Algumas vezes, sentava-se, mudo e imóvel, durante toda a manhã ou engatinhava ao redor da sala, absorto em si mesmo e desligado das outras crianças e da professora. Outras vezes, tinha violentos acessos de raiva. Os professores, o psicólogo e o pediatra da escola estavam dolorosamente confusos com ele. Seria Dibs um retardado mental? Teria seu cérebro sofrido alguma lesão quando do seu nascimento? Ninguém sabia. O livro oferece, inicialmente, uma visão daquilo que a autora chama “a busca de si mesmo” e, neste caso, pateticamente empreendida por um pequeno ser humano atormentado. No final, Dibs consegue emergir como uma pessoa brilhante e talentosa, um verdadeiro líder, como resultado da respeitosa e extraordinária habilidade clínica da Dra. Axline. A autora já é famosa em todo o mundo da Psicologia por suas contribuições para a teoria e prática da Ludoterapia Infantil. Seu livro Play Therapy: The Inner Dynamics of Childhood tem merecidamente conquistado o mais amplo aplauso e aceitação. DIBS -EM BUSCA DE SI MESMO é um livro agradável e fascinante para qualquer leitor. Será lido com prazer e especial proveito por todos Oi pais que estão interessados nas maravilhas do desenvolvimento mental de seus filhos. Também os estudiosos da infância e da natureza normal e anormal da vida mental nele encontrarão vívidos ensinamentos.

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DIBS -EM BUSCA DE SI MESMO PRÓLOGO

Esta é a estória de uma criançaem busca de si mesma, através doprocesso psicoterápico. Foi toda elavivida na sua autenticidade por umapessoa idêntica a nós -um menino cujonome era Dibs. Enquanto esta criançadesabrochava no esforço de encontraras forças da vida, crescia dentro deleum novo conceito próprio -a inusitadae incessante descoberta de que, dentrodele, existiam uma estatura esabedoria que se expandiam e secontraíam "semelhantes às sombras quesão influenciadas pelo sol e pelasnuvens". Dibs experimentouprofundamente o processo complexo decrescimento na busca do preciosopresente da vida, curando-se a sipróprio pelos raios de sol de suasesperanças e pelas chuvas de suasmágoas. Vagarosamente, e, portentativas multifacetadas, Dibsdescobriu que a segurança do seu mundonão estava centralizada no contextocircunstancial, mas que o núcleoestabilizador que ele procurava comtal intensidade tinha profundas raízesdentro de si mesmo. Porque Dibsexpressa uma linguagem que desafia acomplacência de muitos de nós, eporque ansiou e lutou para conquistara sua identidade humana digna de umamissão lugar neste mundo, sua estóriatornou-se a estória de cada pessoa àprocura do seu autêntico caminho.Através de sua experiência na sala deLudoterapia, em seu lar, na suaescola, sua personalidade desenvolveu-se e enriqueceu, de diferentesmaneiras, a vida dos outros quetiveram o privilégio de conhecê-lo.

INTRODUÇÃO

Esta é a estória do desabrocharde uma personalidade forte e saudável,em uma criança anteriormente marcadapor profundos traumatismos.

Quando esta narrativa começa,Dibs vinha freqüentando a escola háquase dois anos. Não falava de modoalgum, a princípio. Algumas vezes,sentava-se, mudo e imóvel, durantetoda a manhã ou engatinhava ao redorda sala, absorto em si mesmo edesligado das outras crianças e daprofessora. Outras vezes, tinhaviolentos acessos de raiva. Osprofessores, o psicólogo e o pediatrada escola estavam dolorosamenteconfusos com ele. Seria Dibs umretardado mental? Teria seu cérebrosofrido alguma lesão quando do seunascimento? Ninguém sabia.

O livro oferece, inicialmente,uma visão daquilo que a autora chama“a busca de si mesmo” e, neste caso,pateticamente empreendida por umpequeno ser humano atormentado. Nofinal, Dibs consegue emergir como umapessoa brilhante e talentosa, umverdadeiro líder, como resultado darespeitosa e extraordinária habilidadeclínica da Dra. Axline.

A autora já é famosa em todo omundo da Psicologia por suascontribuições para a teoria e práticada Ludoterapia Infantil. Seu livroPlay Therapy: The Inner Dynamics ofChildhood tem merecidamenteconquistado o mais amplo aplauso eaceitação.

DIBS -EM BUSCA DE SI MESMO é umlivro agradável e fascinante paraqualquer leitor. Será lido com prazere especial proveito por todos Oi paisque estão interessados nas maravilhasdo desenvolvimento mental de seusfilhos. Também os estudiosos dainfância e da natureza normal eanormal da vida mental neleencontrarão vívidos ensinamentos.

A criança descrita neste livroera, a princípio, muito excêntrica.Entretanto, psicólogos e psiquiatrastêm, desde há muito, reconhecido queaspectos novos dos processos típicos enormais do desenvolvimento da saúdemental podem ser obtidos pelo estudode diferentes e exageradas formas decomportamentos que aparecem emindivíduos extravagantes. Pode serobservado que, historicamente, amoderna Psicologia muito deve àsanálises detalhadas de casossingulares. Nesta relação os primeirostrabalhos de Freud e Morton Pricepodem ser citados.

Não há dúvida de que um dosgrandes problemas de nossa épocatecnológica, caracterizada por grandesaglomerados populacionais, é acompreensão autêntica das técnicas quepossibilitam mudanças duráveis napersonalidade e no comportamento. DIBS-EM BUSCA DE SI MESMO, como estudo daorganização mental e da modificação deatitudes, é importante n.estecontexto. As pessoas que vierem a lere compreender este livro jamaispoderão acreditar novamente que aPsicologia do crescimento humano, osucesso na escola, ou a aquisição decomplexas habilidades podem serconquistadas pela mera repetiçãogeneralizada ou pelo reforço desimples modelos de resposta.

Outra idéia enfatizada nestelivro é a de que o tratamentoverdadeiramente profundo e efetivo dacriança com distúrbios tende a ajudar,de maneira real, a higiene mental dospais da criança. Esta é o reverso dainformação tão difundida de que otratamento clínico bem sucedido dospais representa, freqüentemente, amelhor forma de terapia da criança comproblemas emocionais.

Mas acima de tudo, DIBS -EMBUSCA DE SI MESMO é uma leituradeliciosa! Tão empolgante para mimcomo as estórias de detetive deprimeira categoria.

Leonard Carmichael Washington,D.C.

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CAPÍTULO I

Era hora do almoço, hora de irpara casa, e as crianças circulavamcom o seu barulho habitual,ziguezagueando para apanhar seuscasacos e chapéus. Todas, menos Dibs.Ele recuara até o canto da sala, e lápermanecia agachado, cabeça baixa,braços dobrados e firmemente cruzadossobre o peito, ignorando o mundo à Suavolta. Os professores aguardavam. Esteera o seu comportamento habitual nahora de ir para casa. D. Jane e Heddaajudavam as outras crianças quando sefazia necessário e, disfarçadamente,observavam Dibs.

Uma por uma, as outras criançasiam deixando a escola, à medida quesuas mães as chamavam. Quando asprofessoras ficavam a sós com Dibstrocavam rápidos olhares entre si e oolhavam premido contra a parede.

-Sua vez! -D. Jane dizia, ecaminhava calmamente para fora dasala.

-Vamos, Dibs. Está na hora devoltar para casa. Está na hora doalmoço -Hedda falava com paciência.

Dibs não fazia nenhum movimento.Sua resistência era total e cheia detensão.

-Vou ajudá-lo a vestir o casaco-Hedda dizia aproximando-se delevagarosamente, levando-lhe o agasalho.Ele nem sequer olhava para cima.Comprimia-se contra a parede e cobriaa cabeça com os braços.

-Por favor, Dibs. Sua mãe logoestará aqui. Ela sempre atrasada,provavelmente esperando

que a batalha do chapéu e docasaco já tivesse terminado e, então,Dibs pudesse segui-la pacificamente.

Hedda aproximava-se mais de Dibse, inclinando-se, batia com carinho emseu ombro.

-Vamos, Dibs, você sabe que éhora de ir, repetia gentilmente.

Como um monstrinho ele aagredia: esbofeteando-a, arranhando-a,tentando mordê-la, gritandoestridentemente.

-Não vou para casa. Não vou paracasa. Não vou para casa. Era o mesmoclamor todos os dias.

-Eu sei, Hedda insistia. Masvocê tem que ir para casa almoçar.Você quer ser grande e forte, não éverdade?

Dibs ficava passivo, de repente.Abandonava a atitude de luta contraHedda. Deixava que ela colocasse seusbraços dentro das mangas do casaco e oabotoasse.

-Você voltará amanhã -dizia-lheHedda. Quando sua mãe o chamava, Dibsseguia com

ela, com o rosto manchado delágrimas e uma expressão de vazioestampada no rosto.

Quando a batalha era mais longae a mãe chegava antes que estivesseterminada, o motorista era enviadopara apanhá-lo. Era um homem muitoalto e forte. Entrava, tomava Dibs nosbraços e carregava-o para o carro, semdirigir uma palavra a ninguém. Emdeterminadas ocasiões, Dibs esmurrava-o e gritava dominado pela fúria. Emoutras, tornava-se, subitamente,silencioso, inerte, derrotado. O homemnunca falava com o garoto. Parecia-lheser indiferente se ele lutava evociferava ou se permanecia submisso.

Há quase dois anos, Dibsfreqüentava esta escola particular. Osprofessores haviam tentado por todosos meios estabelecer relações com ele,suscitar-lhe uma resposta. Mas haviamsido tentativas repetidas efrustradas. Ele parecia decidido amanter-se isolado das pessoas. Pelomenos era isto que Hedda pensava. Oseu progresso na escola era evidente.Quando começou a freqüentá-la nãofalava nada e jamais se arriscava asair de sua cadeira. Durante toda amanhã permanecia sentado, mudo,imóvel. Decorridas várias semanas,

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principiou a levantar-se e engatinharao redor da sala, parecendo perceberalgumas coisas ao seu redor. Quandoalguém se aproximava, Dibsprecipitava-se como uma bola no chão enão mais se movia. Nunca olhavadiretamente para os olhos de umapessoa. Jamais respondia quando alguémlhe falava.

Sua assiduidade era perfeita.Todos os dias sua mãe o trazia para aescola de carro. Ou ela mesma oconduzia, austero e silencioso, ou omotorista carregava-o, colocando-ojunto à porta, dentro da escola. Omenino nunca gritava ou chorava nocaminho para o colégio. Deixado bem naentrada, Dibs ali permaneciachoramingando e esperando até quealguém viesse e o levasse para a salade aula. Quando usava agasalho, nãoesboçava nenhum movimento para tirá-lo. Uma das professoras cumprimentava-o, tirava-lhe o casaco e deixava-opronto para fazer o que desejasse.Logo as outras crianças ocupavam-sediligentemente com atividades emgrupos ou com trabalhos individuais.Dibs passava o tempo engatinhando aoredor da classe, escondendo-se embaixodas mesas ou atrás do piano, olhandolivros durante horas.

Havia alguma coisa em relação aocomportamento de Dibs que impedia osprofessores de classificá-lo, segura erotineiramente, e deixá-lo seguir oseu caminho. Suas atitudes eram tãoparadoxais! As vezes, apresentavaindícios de retardamento mental emgrau extremo. Outras vezes realizavacertas atividades com tanta rapidez etranqüilidade, que evidenciavapossuir, de fato, um nível deinteligência superior. Se desconfiavaque o estivessem olhando,imediatamente recolhia-se à suaconcha. Durante a maior parte dotempo, engatinhava em volta da salaespreitando por baixo da mesa,balançando-se para frente e para trás,mastigando um lado da mão, chupando opolegar e deitando-se de bruços,rígido, no chão, quando qualquer

professora ou colega tentava fazê-loparticipar de alguma atividade. Eraele uma criança solitária, num mundoque certamente lhe parecia frio ehostil.

Não raras vezes, era acometidopor acessos de raiva, na hora de irpara casa, ou quando tentavam obrigá-lo a fazer algo que ele não queria. Osprofessores tinham decidido, haviabastante tempo, que sempre oconvidariam para participar do grupo,mas jamais tentariam impor-lhequalquer atividade, a não ser quefosse absolutamente necessário.

Ofereciam-lhe livros,brinquedos, quebra-cabeças; enfim,todo tipo de material que o pudesseinteressar. Dibs nunca recebia nadadiretamente de alguém. Se o objetofosse colocado na mesa ou no chãoperto dele, apanhava-o depois de certotempo e o examinava cuidadosamente.Nunca deixava de aceitar um livro.Olhava atentamente as páginas escritas"como se pudesse ler", como Heddafreqüentemente dizia.

Em muitas ocasiões, umaprofessora sentava perto dele e liauma estória ou falava-lhe sobre algumacoisa, enquanto Dibs deitava a cabeçano chão, sem se mover, mas jamaisolhava para cima ou demonstrava uminteresse evidente. o. Jane ocupava-sedele da seguinte maneira: explicava-lhe muitas noções, enquanto seguravaos objetos na mão, demonstrando o queexpunha. Às vezes, o assunto era ímãse o princípio da ação magnética;outras, uma pedra interessante. Elaconversava sobre qualquer assunto quejulgasse capaz de despertar-lhe ointeresse; confessava em váriasoportunidades que se sentia como umatola, como se estivesse falandosozinha; entretanto, pequenosdetalhes, como a atitude atenta domenino davam-lhe a nítida impressão deque ele estava ouvindo. Além disso,perguntava-se freqüentemente DonaJane: Que tinha ela a perder?

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Os professores estavaminteiramente frustrados em relação aDibs. A psicóloga da escola o haviaobservado e tentado testá-lo váriasvezes, mas ele não estava pronto paraser testado. O pediatra da escola,depois de examiná-lo com freqüência,desistiu, desanimado. Dibs tornou-seprecavido contra o médico de jalecobranco e não o deixava aproximar-se.Recuava até ficar com as costas naparede e colocava as mãos para cima,prontas para arranhar, prontas paralutar, se alguém tentasse reduzir adistância que mantinha.

-Ele é um tipo estranho, haviadito o pediatra.

Quem saberia? Retardado mental?Cérebro com lesões? Quem poderia seaproximar o suficiente para descobriras causas de sua estranha. conduta?

Aquela não era uma escola pararetardados mentais ou crianças comproblemas emocionais. Na realidade,era uma escola particular, destinadaexclusivamente a crianças de três asete anos de idade, instalada numaantiga e bela mansão, na parte maiselevada do lado Leste de Nova York,Tinha uma tradição que atraía os paisde crianças especialmente inteligentese sociáveis. Para matriculá-lo, a mãede Dibs persuadiu a diretora e usousua influência através do "conselho dediretores". Sua tia contribuíagenerosamente para a manutenção daescola. Em razão dessas pressões, Dibsfoi admitido para o grupo de nívelmaternal. Os professores haviaminsinuado repetidas vezes o quanto umaajuda profissional se fazia necessáriano seu caso. A resposta da mãe erasempre a mesma. -Dêem-lhe mais tempo.Quase dois anos haviam decorrido e,embora Dibs tivesse apresentadoalgumas melhoras, os professoressentiam que não eram suficientes.Parecia-lhes injusto deixar a situaçãoarrastar-se mais. Confiavam que Dibssairia de sua prisão. Quando discutiamsobre o garoto -e não havia nenhum diaem que não o fizessem -terminavam

sempre sentindo-se perplexos edesafiados pela criança. Afinal decontas, Dibs tinha somente cinco anosde idade. Poderia ele, na verdade,estar consciente do mundo que ocircundava e guardar tudo trancadodentro de si? Parecia ler os livrosque examinava. Isto, diziam de si parasi, era ridículo. Como poderia umacriança ler se não sabia expressar-severbalmente? Poderia tal criança, tãocomplexa, ser considerada retardadamental? Seu comportamento nãoconfirmava tal hipótese. Seria ele umautista? Estaria em contacto com arealidade? Muito freqüentementeparecia que seu mundo era umatriturante realidade, um tormento deinfelicidades. O pai de Dibs era umrenomado cientista. Brilhante, todosdiziam. Mas, ninguém na escola jamaiso vira. Dibs tinha uma irmã mais nova.Sua mãe declarava que Dorothy era"muito inteligente e uma criançaperfeita". Ela não freqüentava a mesmaescola. Certa vez, Hedda a haviaencontrado em companhia da mãe noParque Central. Dibs não estava comelas. Hedda declarou aos professoresque, em sua opinião, "a Dorothyperfeita não passava de uma pirralhamimada". Estava simpaticamenteinteressada em Dibs e admitia sertendenciosa sua avaliação sobreDorothy. Sua fé em Dibs levava-a acrer que algum dia, de alguma maneira,ele se libertaria de sua prisão demedo e ódio.

A equipe de professores decidiu,finalmente, tomar uma atitude emrelação a Dibs. Alguns pais jácomeçavam a reclamar de sua presençana escola -sobretudo depois que elearranhou uma criança.

Foi nesta altura dosacontecimentos, que me convidaram paraparticipar de uma conferência dedicadaaos problemas de Dibs. Como psicólogaclínica, tenho-me especializado notrabalho com crianças e seus pais. Aprimeira vez que ouvi falar sobre Dibsfoi nesse encontro de estudo. O queaté aqui escrevi me foi relatado pelos

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professores, psicólogo e pediatra daescola. Eles me pediram que observasseo garoto e sua mãe, e então emitisseuma opinião para a equipe docente eadministrativa do colégio, antes quedecidissem despençá-lo e registrá-locomo um dos seus fracassos.

O encontro foi na escola.Escutei com interesse todas asobservações. Fiquei impressionada peloimpacto que a personalidade de Dibshavia causado naquelas pessoas.Sentiam-se frustradas e desafiadascontinuamente pelo seu comportamentoestranho. A sua firmeza limitava-se auma antagÔnica e hostil rejeição àspessoas que poderiam aproximar-semuito dele. Aquela criatura sensível,que sofria num depressivo isolamento,havia sido bloqueada por umainfelicidade evidente.

-Tive uma conferência com suamãe na semana passada, disse D. Jane.Comuniquei-lhe que, muitoprovavelmente, deveríamos cancelá-loda escola, porque sentíamos ter feitoo que podíamos para ajudá-lo, mas onosso máximo esforço não erasuficiente. Ela ficou muito frustrada.Mas, é difícil imaginar-se uma pessoaassim! ...Concordou em deixar-noschamar uma psicóloga clínica e tentar,mais uma vez, avaliá-lo. Falei sobrevocê. Aquiesceu em ter uma conversacom você sobre Dibs, e permitiu que oobservasse aqui. Depois pediu que, senão pudéssemos mantê-lo conosco, lhesugeríssemos uma escola com internatopara crianças retardadas mentais. Econfessou que ela e seu marido tinhamaceito o fato de que Dibs era,possivelmente, um retardado mental outinha alguma lesão cerebral.

Esta observação suscitou umaexplosão em Hedda.

-Ela prefere acreditar que ele éum retardado mental, do que admitirque, talvez, o seu drama seja causadopor problemas emocionais, e, quemsabe, seja ela a responsável por tudoisso!

-Não parecemos capazes de mantera objetividade em relação a Dibs, D.Jane admitiu. Penso que esta é a razãode o mantermos conosco tanto tempo,como o fizemos, e valorizarmos o poucoprogresso que ele tem feito. Nãopoderíamos expulsá-lo, pois lá foranão haveria mãos que o defendessem.Não temos sido capazes de discutirsobre Dibs, sem ficarmos envolvidosnas nossas próprias reações emocionaisrelacionadas com ele e com seus pais.E não estamos mesmo certos de quenosso julgamento sobre seus pais sejajustificado.

-Estou convencida de que eleestá à beira do desabrochamento, Heddaprognosticou. Não penso que possaagüentar suas defesas durante maistempo.

Havia, obviamente, alguma coisanessa criança que cativava osinteresses e sentimentos de todos.Pude sentir a compaixão daqueles quetrabalhavam na escola por esse garoto.Pude sentir o impacto de suapersonalidade. Pude sentir ecompreender a consciência opressiva denossas limitações para entendermos, emtermos claros e precisos, osintrincados mistérios de umapersonalidade. Pude admirar o respeitopor esse menino, que transparecia naconferência.

Estava decidida que veria Dibspara uma série de sessões deLudoterapia, se seus paisconcordassem. Não tínhamos nenhumamaneira de saber o que poderia serainda acrescentado à estória de Dibs.

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CAPÍTULO II

Encontrava-me diante dodesconhecido, onde uma luz baixaescondia as linhas da realidade earremessava uma nuvem de incertezassobre o amanhã. Nada se podia afirmar,nem negar.

Sem os lampejos da evidênciainequívoca, defrontava-me com omistério daquele ser, numa atitude derespeito e de humildade. Sabia que astrevas da ignorância proporcionam umespaço crescente para julgamentosincoerentes e acusações tendenciosas,expressas ao sabor das emoções. Nessaatmosfera, qualquer conclusãodefinitiva traz em seu bojo aambigüidade. É aí que os benefícios dadúvida podem obrigar-nos a refletirmelhor sobre os objetivos e limites daavaliação humana.

O estreitamento ou a ampliaçãodo horizonte interior do ser humanonão pode ser medido por outra pessoa.O processo do desabrochamento pessoalsó se torna compreensível à luz daexperiência própria do procurar-se eencontrar-se, onde, então, dediferentes maneiras é sentida aposição axial da autoconsciência. Apartir desta base, espontaneamente,aceita-se que cada personalidade tenhao seu mundo muito particular designificações, gerado na integridadede sua estória, mesmo não se dispondode elementos para explicar as razÕesde ser de cada um.

Dentro de mim, trazia, daconferência, um sentimento de respeitoe de ansiedade de encontrar Dibs.Havia sido contagiada por umaimpaciência confiante e por umasatisfação de procurar ajudá-lo em suabusca. Não abandonaríamos asesperanças. Tentaríamos uma vez mais.Destrancaríamos as portas de nossasrespostas até aqui inadequadas aosseus problemas.

Desconhecemos as receitasprontas, elaboradas para dissolver os

bloqueios mentais. Cremos que muitasde nossas impressões são frágeis.Compreendemos o valor da objetividade,da calma do estudo ordenado. SabemosQue a pesquisa é uma fascinantecombinação de intuição, especulação,subatividade, imaginação, esperanças esonhos mesclados com dados coletadosobjetivamente e submetidos à realidadeda ciência matemática. Um elementoisolado não basta. O conhecimento dacomplexa causalidade ajuda-nos aconstruir a longa estrada que nosconduz à verdade.

Decidi que me manteriadisponível para atender Dibs. Iria àescola observá-lo no grupo dos outrosmeninos. E tentaria vê-lo sozinho poralgum tempo. Depois, conversaria comsua mãe, e caso tivéssemos a suaaquiescência, marcaríamos os dias paraas entrevistas na sala 4 E -Ludoterapia do Centro de OrientaçãoInfantil. Lá, teríamos novos ângulospara lidarmos com sua problemática.

Buscávamos uma solução para Dibse sabíamos que esta experiênciaadicional, seria apenas um pequenovislumbre na vida íntima destacriança. Ignorávamos o que istopoderia significar para ele.Procuraríamos apanhar o fio da meadaque poderia desembaraçar o carretel desua estória pessoal até a suaautocompreensão.

Enquanto descia a East RiverDrive, pensava. nas várias criançasque havia conhecido, -algumasinfelizes e frustradas na tentativa deauto-realização, outras mais tenazesque, apesar dos mesmos obstáculos paradesabrochar como pessoa, continuavam aluta com redobrada coragem.

Expressando seus sentimentos,pensamentos, sonhos e esperanças,novos horizontes abriram-se em cada umdesses pequeninos. Alguns superavamseus pavores e ansiedades lutandocontra o mundo, que por muitas razõeslhes era insuportável. Outros haviamemergido com renovada força ecapacidade para enfrentar seu ambiente

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muito mais construtivamente.Entretanto, quantos foram incapazes deresistir ao impacto de seu ultrajantedestino? E não há explicação simplespara tão dramáticos desencontros.Afirmar que a criança foi rejeitada ounão aceita, nada significa em termosde entendimento do seu mundo interior.Muito freqüentemente, esses termosfuncionam apenas como rótulos presoscom a operacionalidade de álibis, paradesculpar nossa ignorância. Devemoscortar clichês, interpretações rápidase explicações.

Se, de fato, queremos aproximar-nos da verdade, cabe-nos olharprofundamente cada ser humano paracompreender as razões do seucomportamento humano.

Irei à escola amanhã bem cedo,deliberei. Se possível, na próxima 5..feira já começarei as sessÕes deludoterapia com Dibs. E onde tudo issoiria terminar? E se ele nãoconseguisse quebrar as paredes que tãorigidamente construíra ao redor de simesmo? Esta, sem dúvida, seria umapossibilidade. Mas não era adominante. Animava-me a certeza de quedaria àquele garoto o meu apoio paraque empreendesse a aventura dedecifrar-se. Sabia que cada ser humanotem o seu próprio caminho. E o quepode representar grande ajuda para umacriança poderá ter baixa ou nenhumafuncionalidade com outra. Mas nãodesistimos facilmente. Nuncaclassificamos um caso como "semesperanças", sem tentarmos uma vezmais. Alguns julgam ser desonestomanter a esperança quando não háevidências que a estimulem. Mas nãoesperamos um milagre. E, sim, buscamoscompreensão, acreditando que overdadeiro entendimento nos conduziráao portão dos caminhos mais efetivospara estimularmos a pessoa adesenvolver-se e utilizar suascapacidades mais positivamente.Preparamo-nos sempre para persistir nainvestigação das causas, lutando parailuminar a fantástica selva de nossaignorância.

Na manhã seguinte, cheguei àescola antes dos alunos. As classesocupadas pelas turmas do maternal eJardim da Infância eram claras ealegres, com equipamento apropriado eatraente.

-As crianças chegarão daqui apouco, disse D. Jane. Estou muitointeressada em saber sua opinião sobreDibs. Espero que possa ajudá-lo. Apreocupação que este garoto me inspiraassemelha-se a uma angústia de morte.Você sabe, quando a criança érealmente retardada mental, há umaconsciência global no seucomportamento que se evidencia nosseus interesses e ações. Mas Dibs?Nunca sabemos com que espécie de humorele está, embora estejamos certos deque não esboçará nenhum sorriso.Jamais algum de nós o viu sorrindo.Jamais alguém percebeu um ar defelicidade, ainda que remota, ailuminar-lhe o rosto. Isto nos leva acrer que seu problema vai além de umretardamento mental; envolve a esferaafetiva. Veja, estão chegando algumascrianças agora.

Em poucos minutos o colégioestava repleto de crianças. Quasetodos expressavam no rosto a felizexpectativa ante o novo dia escolarque iniciavam. Depois da entrada,tiravam os chapéus e agasalhos,dependurando-os cada um em seu própriocabide. Pareciam descontraídos ecercados de conforto naquele ambiente.Cumprimentavam-se entre si e aosprofessores, com espontaneidade.Alguns se aproximaram de mim paraconversar. Perguntaram o meu nome epor que estava eu na escola deles.

A primeira atividade dascrianças foi baseada na livre escolha.Cada uma buscava os brinquedos quemais a atraía. Divertiam-se econversavam juntos com muitanaturalidade.

Foi então que Dibs chegou. Suamãe levou-o até dentro da classe. Numrelance, percebi-a falandoapressadamente com D. Jane para, em

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seguida, despedir-se. Inerte, Dibs alipermaneceu. Usava casaco e gorro de lãcinza. D. Jane perguntou-lhe segostaria de tirar os agasalhos. Nadarespondeu.

Era um garoto bem crescido parasua idade. Sua face, muito pálida.Tinha os cabelos negros e cacheados.Seus braços flácidos pareciamdependurados em seu ombro. D. Janetirou-lhe o sobretudo e removeu-lhe oboné. Dibs parecia não querercolaborar. Enfim, concluindo arecepção, foi ainda a professora quemguardou seus apetrechos no armário.

-Bem, eis Dibs. D. Janeapresentou-me num sussurro, enquantose aproximava de mim. Como ele nuncatira o casaco e o gorro por si mesmo,nós o fazemos, já rotineiramente.Temos tentado repetidas vezes entrosá-lo com as outras crianças em algumaatividade; ou sugerimos-lhe uma tarefaespecífica para que a execute. MasDibs rejeita todas as nossas ofertas.Esta manhã, quando o deixarmossozinho, você poderá observar a suaconduta. Talvez mantenha-se ali pormuito e muito tempo. Talvez,movimente-se de uma escolha paraoutra. Tudo depende de como se estejasentindo. Na verdade, com certafreqüência, ele parece saltar de umbrinquedo para outro, como se nãotivesse nenhuma capacidade deconcentrar sua atenção. Mas, em outrasocasiões, fixa-se durante longoperíodo numa atividade que ointeressa.

D. Jane voltou-se para atenderàs outras crianças. Com o olhardiscreto observava Dibs. Tentavadisfarçar o foco da minha atenção.

Dibs continuava em pé. Lenta ecautelosamente virou-se de frente.Levantou os braços num gesto dedesespero e logo depois deixou-os cairnovamente. Virou-se, e ficou numaposição que alargava o ângulo de suavisão. Poderia ver-me se prestasseatenção. Suspirou, mordeu os lábios econtinuou de pé.

Um dos garotinhos da turmacorreu para ele, convidando-o.

.-Ei, Dibs! Vem brincar! A ira de Dibs faiscou-lhe como

resposta. E socos e murros teriamjorrado se não fosse a rapidez docoleguinha recuando para atrás, deimediato.

-Gato, gato, gato -revidou ocolega em tom provocativo.

D. Jane acorreu, sugerindo aomenino que fosse brincar no outro ladoda classe.

Movimentando-se em direção àparede, Dibs aproximou-se de umamesinha, sobre a qual estavam pedras,conchas, pedaços de carvão e outrosminerais. Parou e, muito devagar,apanhou primeiro um objeto, depois umoutro. Correu os dedinhos em voltadeles, roçou-os no seu queixo,cheirou-os e finalmente provou-os coma língua; Então, recolocou-os nos seuslugares cuidadosamente. Num relancearde olhos captou a minha presença e coma velocidade de um relâmpago desviou adireção do seu olhar. Abaixou-serecurvado sob a mesa; ali sentou-senuma tentativa de esconder-se.

As outras crianças trouxeramsuas cadeirinhas para formar umcírculo em volta de uma dasprofessoras. Era a hora da novidade. Ecada um mostrava para os colegas emestre o que trouxera para a escola enarrava algumas notícias importantes.A professora complementara a conversacom uma estória e todos cantaram ecantaram.

Dibs não estava muito afastado.Continuava quieto no seu esconderijo.De sua localização estratégica,poderia ouvir tudo o que falavam e vero que mostravam, desde que isto ointeressasse. Teria ele previsto estaatividade do grupo quando se acocoroudebaixo da mesa? Era difícil precisar.Contudo, ele permaneceu neste localaté que o círculo se dissolveu e. osseus participantes foram elaborar

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outras atividades. Também ele buscouum outro entretenimento.

Engatinhou em volta da sala,conservando-se próximo à parede. Dequando em quando, parava para examinaralgum objeto que ao encontro casual oatraía.

Chegando próximo ao peitoril deuma janela, onde estavam um aquário eum viveiro, Dibs ergueu-se fixando-lhes o seu olhar perscrutador. Então,esticou a mãozinha e procurou tocar umdos bichinhos. O contato era leve erápido. Dibs deixou-se absorver poresta atividade durante meia hora.

Sua trajetória em volta da sala,a todo instante, era interrompida parao exame de um objeto, que, no entanto,não lhe cativava o interesse por muitotempo, sendo logo substituído poroutro.

Enfim, quando chegou ao recantodos livros, Dibs passou a mão sobrecada um dos que estavam sobre a mesa.Escolheu um. Apanhou uma cadeira earrastando-a cruzou a sala em direçãoa um canto. Sentou-se, de frente paraa parede, da qual tão próximo secolocara. Abriu o livro nas páginasiniciais e calmamente observou cadafolha, virando-as com atenção ecuidado. Estaria ele lendo? Estariapelo menos compreendendo asilustrações? Uma das professorasaproximou-se dele.

-Ah! eu sei, comentou. Você estáolhando o livro dos pássaros. Que talse conversássemos sobre este assunto?perguntou-lhe suave e carinhosamente.

Arremessando com violência paralonge o livro, Dibs respondeu com seueloqüente silêncio. E atirou-se nochão, inflexível como um cadáver. Comseu rosto para baixo. Imóvel.

-Desculpe-me, falou aprofessora. Não queria incomodá-lo,Dibs.

E inclinando-se suspendeu olivro, colocando-o de novo sobre amesa.

-Isto é rotineiro, explicou-me.Por isso mesmo já aprendemos a nãoperturbá-lo, só insisti há pouco, paraque você pudesse observá-lo.

Dibs ainda rígido, virou a suacabeça para cima, de maneira quepudesse ver sua professora. Fingíamosnão o estar observando. Finalmente,levantou-se e, de novo, caminhouvagarosamente em volta da classe. Emsua passagem, ia pegando os frascos detintas, os lápis de cores, as porçõesde argila, alguns pregos, o martelo,diferentes pedaços de madeira, otambor e os pratos da mini-orquestra.Um após o outro. Escolhia-os e osabandonava, de imediato. As outrascrianças envolvidas nas suas tarefaspareciam ignorar sua presença. Por suavez, Dibs evitava qualquer contatofísico com os colegas. Vivia sozinho,insulado.

Chegou a hora de brincar ao arlivre. -Nunca sabemos se ele irá ounão. Também nisto, é realmenteimprevisível, disse-me uma dasprofessoras.

A hora do recreio foi, então, emviva voz, anunciada para a turminha. EDibs foi consultado se gostaria ou nãode participar.

-Não vou, deliberou, num tomseco e pesado. Lá fora, uma manhãbrilhante era um eloqüente argumentopara sair da sala. Também eu sentivontade de aproveitar e vesti o meucasaco. -Dibs vai, decidiu de repente.A professora vestiu-lhe o agasalho.Com o caminhar trôpego e vacilantedirigiu-se para o pátio de recreação.Sua coordenação de movimentos eradeficiente e reveladora de que Dibsestava amarrado, física eemocionalmente. As crianças brincavamna areia e nos balanços, nas barras deginástica e nas bicicletas. Jogavambolas, escondiam-se e procuravam-se.Como corriam, deslizavam, trepavam epulavam! Mas Dibs não. Saiu da suaclasse para um lugarejo afastado.Apanhou um pequeno galho seco,agachou-se e começou a arranhar para

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frente e para trás o chão coberto dedetritos. Para a frente e para trás.Para trás e para frente. Traçandovincos na sujeira. Sem olhar paraqualquer pessoa. Olhos vidrados parabaixo, fixos na vara, presos no chão.Curvado na sua atividade solitária.Silencioso. Recolhido. Segregado.Decidimos que quando as criançasvoltassem para a classe e tivessem oseu período de repouso, levaria Dibspara a sala de brinquedos, no final docorredor. Bem. ..isto, se ele sedispusesse a ir comigo. Quando aprofessora tocou o sino, todas ascrianças entraram. Até Dibs. D. Janeajudou-o a tirar seu casaco. Elesegurava seu chapéu, a estas alturas.A professora colocou uma música suavee relaxante na radiola. Cada criançaapanhou o seu colchãozinho, abriu-osobre o piso para o período dedescanso. Dibs também. Pegou o seu edesenrolou-o, longe de todos oscolegas, debaixo da mesa dabiblioteca. Deitou-se debruçado e como polegar na boca. O que estaria elepensando sobre o seu mundo tão pequenoe tão solitário? Quais seriam os seussentimentos? Por que ele se comportavadesta maneira? Que aconteceu com esteser pequenino para ser segregado doconvívio humano? Poderia eu captar oseu mistério? Depois de alguns minutosde repouso, a criançada levantou-se e,uma a uma, guardou o seu pequenoacolchoado. Dibs enrolou o seu erecolocou-o no lugar correto, naprateleira. A turma começou a dividir-se em grupos menores. Um deles foitrabalhar com madeira. O outro rumoupara brincar com argila ou tintas.Dibs permaneceu junto à porta.Atravessei a classe e perguntei-lhe segostaria de vir comigo para umasalinha de brinquedos. Expliquei-lheque ficava no seu colégio, na partefinal do corredor. Estendi-lhe minhamão. Ele hesitou por um momento, e,depois, segurou-a, sem dizer umapalavra. Juntos caminhamos. Durante opercurso, escutava-o murmurandopalavras que não pude entender. Nãolhe perguntei o que havia dito. Estavacuriosa para conhecer sua reação. E

surpreendida pelo fato de ter aceito oconvite de uma pessoa estranha e comela ter saído de sua sala sem olharpara trás.

Na verdade, senti o seu forteaperto quando segurou a minha mão.Estava tenso, embora quisesse vir.

Já debaixo da escada, havia umambiente designado como sala deLudoterapia. Era um ambiente sóbrio,sem grandes atrativos, um poucomonótona pela sua falta de cores edecoração. Pela janela estreita, a luzdo sol esgueirava-se deixando orecinto obscuro, até mesmo quando asluzes estavam acesas. As paredes eramde marrom esquálido, cor de couromoreno, com diferentes manchas, jálavadas aqui e ali. Algumas marcasestavam acompanhadas de nódoas detintas, que se uniam à rústicasuperfície dos remendos de gesso. Opiso, recoberto por um linóleocastanho, apresentava-se riscado pelarápida passagem de esfregões. Pairavano ar o cheiro de barro úmido, deareia molhada e de tintas velhas deaquarela. Os brinquedos encontravam-sena mesa, espalhados no piso e emalgumas prateleiras que circulavam asala. No chão havia uma casa debonecas. Os compartimentos erammodestamente mobiliados com peçasfortes e simples. A família debonequinhos encontrava-se deitada emfrente à casa. Todos ali amontoados:mãe, pai, filhos e filhas e também umbebê. Próximo, ainda estava uma caixaaberta contendo outras miniaturas debonecas e alguns animaizinhos deborracha, como um cavalo, um leão. umcachorro, um gato, um elefante e umcoelho. Havia carrinhos e aviões.Caixas de blocos para armar econstruir. No grande depósito deareia, várias panelas, colheres epratos estavam espalhados; sobre amesa, encontrava-se uma jarra deargila e algumas tintas. No cavaletepapéis para desenhos e pinturas. Umamamadeira cheia de água estava expostana prateleira. Uma grande boneca depano exibia-se em uma cadeira. No

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canto, ficava um alto boneco deborracha, cheio de ar, que, pela suabase pesada, poderia reassumir suaposição inicial logo depois deesmurrado. Os brinquedos eram feitoscom material resistente, mas pareciammuito usados e até gastos.

Nada havia naquela sala quetendesse a refrear qualquer atividadeda criança. Nada parecia ser tão fracoou requintado que não pudesse sertratado violentamente, se necessário.O ingrediente da experiência pessoalde cada criança faria o ambiente únicoe diferente para ela. Aqui cada umapoderia buscar, no silêncio, oentendimento dos velhos sons, gritarsuas descobertas e encontros com o seuprofundo eu e escapar da prisão deincertezas. ansiedades e pavores. Cadauma poderia trazer para dentro da salao impacto de todas as configurações evozes, o choque das cores e dosmovimentos e reconstruir seu mundo,aqui reduzido a um tamanho que elamesma pudesse enfrentar.

Enfim, este recinto poderiaproporcionar a cada pequeno uma zonasegura, onde pudesse extravasar seussentimentos sem receios e, assim,aceitando-os e entendendo-os,desabrochar a original unicidade doseu ser.

-Nós ficaremos uma hora juntosaqui nesta sala de brinquedos, disse-lhe quando entramos. Você poderá ver eexaminar todo o material que temos. Eentão decidir o que gostaria de fazer.

Sentei em uma cadeirinha pertoda porta. Dibs permaneceu no meio dasala, de costas para mim, torcendo asduas mãozinhas. Esperei. Tínhamosbastante tempo. Não havia pressa paraexecutar qualquer coisa. Poderiabrincar ou não brincar. Conversar, oumanter-se silencioso. Aqui, não farianenhuma diferença. A sala era pequenae em qualquer local que ficasse nãoestaria longe demais de mim. Havia umamesa, sob a qual poderia esconder-se,se quisesse. Cadeira, brinquedos, tudoà sua disposição. No entanto, Dibs

continuava parado no centro da sala.Observava todos os detalhes. Suspirouvagarosamente, virou-se e começou aandar com muita vacilação,atravessando a sala e depois,passeando em volta, junto às paredes.Trocava um brinquedo por outro, naânsia de experimentar todos. Nãoolhava diretamente para mim. Em rarasocasiões, quando tentava ver-me,desviava o seu olhar temendo oencontro com o meu. Continuava suatediosa caminhada ao redor da sala.Seus passos eram pesados. Aquelacriança parecia desconhecer asimplicidade que brota num sorriso.reveladora da alegria de existir. Avida para ele era um negóciodeprimente.

Chegou à casa de bonecas. Roçousua mão no telhado, ajoelhou-se pertoe, assim, diminuindo de tamanho,penetrou no seu interior. Sem pressa.segurava, uma por uma, as peças domobiliário. Como havia feito antes,enquanto caminhávamos pelo corredor,ia murmurando com pausada inflexão devoz. Falava muito baixo e commonotonia.

-Cama? Cadeira? Mesa? Berço?Guarda-roupa? Rádio? Chuveiro?Banheiro?

Cada objeto da casinha foi,assim, erguido, indagado na suadenominação e recolocado nos seuslugares. Virou-se para o monte debonequinhos e identificou-os um a um.Escolheu um homem, uma mulher, umgaroto, uma garota e um bebê. Foi comose ele tentasse reconhecê-los.

-Mamãe? Papai? Irmã? Bebê? Entãoescolheu os pequenos animais.

-Cachorro? Gato? Coelho? O seu olhar era insistente e

profundo. Parecia ser uma tarefadifícil e dolorosa aquela que ele sehavia imposto.

Cada vez que ele inquiria sobrea denominação de um objeto, tentavacomunicar-lhe meu entendimento pelasua palavra falada.

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-Sim. Isto é uma cama; ou, éverdade, é um guarda-roupa; ou, ainda,é mesmo um coelho, confirmava.

Tentava responder de uma maneirabreve, de acordo com o que havia dito,mas com a variação necessária paraescapar à monotonia.

-Papai? -questionou erguendo oboneco. -Pode ser papai, respondi-lhe.

E foi assim que começamos anossa conversa. Imaginei que fosseeste o caminho que ele escolhera paracomeçar nossa comunicação verbal.Denominar os objetos parecia ser uminício bastante seguro.

Sentou-se no chão. Olhoufixamente a casa de bonecas por umlongo tempo. Não o estimulei aqualquer atividade. Se o que desejavaera sentar-se ali em silêncio, assim ofaria. Deveria haver algumas razõespara agir deste modo. Queria queiniciativa de tecer os laços de nossasrelações fosse dele. Muitas vezes,esta abertura do ser pela comunicaçãoé realizada pelos adultos, em suaansiedade, privando a criança deconstruí-la.

Dibs apertava as mãozinhasjuntas contra o peito e disse,repetindo-o várias vezes:

-Portas trancadas, não. Portastrancadas, não. Portas trancadas, não.

Sua voz trazia um apelo dedesesperada urgência.

-Dibs não gosta de portastrancadas, insistiu com a voz onduladapelo soluço.

-Você não gosta que as portasestejam trancadas, repeti-lhe.

Dibs parecia sofrerdramaticamente sua tragédia. Sua voztomou-se um sussurro.

-Dibs não gosta de portasfechadas. Não gosta de portas fechadase trancadas. Dibs não gosta de paredesem sua volta.

Obviamente, ele vivencioualgumas experiências infelizes comportas fechadas e trancadas. Reconhecio que sentia e expressava. Começou,então, a tirar um após outro osbonecos da casa onde os haviacolocado. Primeiro foi o boneco-pai ea boneca-mãe, a quem ordenou:

-Vá para a loja. Vá para a loja.Vá embora para a loja. Vá embora;ordenava enquanto os colocava longe dacasa.

-Então a mamãe vai para loja,comentei. E o papai também? E a irmã?

Para sua surpresa, descobriu queas paredes divisórias da casa debonecas eram removíveis. Deslocou-as,uma a uma, dizendo:

-Não gosto de paredes. Dibs nãogosta de paredes. Joga fora, bemlonge, todas as paredes, Dibs.

E nesta sessão de Ludoterapia,Dibs começou a libertar-se dasasfixiantes paredes que, em suaprópria volta, havia construído.

Era desta maneira que brincava.Dolorosa e fértil brincadeira.

Quando tínhamos completado umahora, falei-lhe que o nosso períodoneste recinto estava quase terminado edeveríamos voltar para sua classe.

-Teremos mais 5 minutos e entãodeveremos ir, avisei-lhe.

Sentou-se no chão, bem em frenteà casa de bonecas. Não se moveu, nemfalou. Não o importunei com gestos oupalavras. Logo que os minutos seesgotassem, voltaríamos. Não lheperguntaria, se gostaria ou não de ir,pois, na verdade, não havia outraalternativa. Não lhe indagaria sedesejaria retomar àquela brincadeira.Não estaria em condições decomprometer-se consigo mesmo. Alémdisto, não se tratava de uma opçãoexclusivamente dele. Não prometireencontrá-lo na próxima semana, poisnada havia decidido com sua mãe.

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Não deveria objetivar promessas,ignorando qualquer possibilidade decumpri-las. Também não lhe perguntariase se havia divertido. Por que deveriaespetá-lo, obrigando-o a avaliar umaexperiência que apenas começava? Se abrincadeira para a criança é o seumodo natural de expressão, por quetentarmos modelá-la com esquemasrígidos de respostas estereotipadas?Acredito que todas as perguntas que jáencerram uma resposta do interlocutorpossam gerar conflitos para a criança.

-Está na hora de irmos, Dibs,falei quando os 5 minutos seesgotaram.

Lentamente, ele ergueu-se, tomoua minha mão, e deixamos a sala.Retomamos pelo mesmo corredor. Quandohavíamos percorrido a metade dotrajeto e já visualizávamos a suaclasse, perguntei-lhe se ele julgavaque poderia ir sozinho até lá.

-Está bem, respondeu. Soltou a minha mão e, por si

mesmo, dirigiu-se à porta de sua salade aula.

Assim procedi, pois desejava queDibs fosse gradualmente tomando-semais e mais seguro de si mesmo e maisresponsável. Queria comunicar-lheminha confiança nas suas habilidades eestimulá-lo com minha expectativa.

Acreditava que poderia fazeraquela tarefa. Se ele tivessehesitado, mostrando sinais de que eulhe estava pedindo demais,considerando ser esta a primeiríssimafase da terapia, teria, sem dúvida,conduzido-o um pouco mais; ou levando-o até à porta de sua sala, se sentissea necessidade deste apoio. Mas elequis i.r sozinho.

-Até logo, Dibs, despedi-me. -Está certo, foram as suas palavras,pronunciadas num tom suave e moderado.

Olhei-o, descendo todo o restodo corredor e depois abrindo a portade sua sala. Antes de entrar elevirou-se para trás. Acenei-lhe um

adeuzinho com a mão. A expressão doseu rosto era interessante. Pareciasurpreso, quase satisfeito. Penetrouna sua classe e firmemente fechou aporta. Foi esta a primeira vez queDibs se encaminhou sozinho para umlugar.

Um dos meus objetivos, no meurelacionamento com Dibs, era ajudá-loa conseguir independência emocional.Não gostaria de complicar seuproblema, promovendo-me como umelemento de apoio tão indispensável,que o fizesse dependente de mim. Istoadiaria um desabrochamento maiscompleto de sua interioridade. Se Dibsfosse uma criança com carências naesfera emocional, e os sintomaspareciam confirmar esta alternativa,tentar desenvolver uma fixação afetivaa esta altura poderia assemelhar-se asatisfação de necessidade profunda dacriança, mas o problema central de sercapaz de acreditar em si mesmo -ficaria protelado para ser resolvidopela criança.

Quando terminei a 18 sessão deLudoterapia de Dibs, pude, compreenderpor que os professores e os outrosmembros do corpo administrativo daescola não conseguiram inscrevê-lo nolivro dos casos perdidos e semesperança. Senti um profundo respeitopela sua força e capacidade interior.Dibs era uma criança de extraordináriacoragem.

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CAPÍTULO III

Telefonei para a mãe de Dibs,solicitando-lhe uma conferência o maiscedo possível. Respondeu-me que estavaaguardando uma comunicação minha e queteria o maior prazer de receber-me emsua casa para um chá, no dia seguinte.Agradeci-lhe e aceitei o convite.

A família morava em uma belamansão antiga, revestida de pedras,faustosamente conservada. A porta deentrada apresentava-se lustrosa epolida, com o puxador de metal muitobrilhante. Privilegiada em sualocalização, a vivenda compunha umarequintada rua tradicional. A essênciado momento histórico, pleno deromantismo, da época em que foramconstruídas aquelas residências,parecia ali preservada. Abri o portãode ferro todo decorado. Subi a escada.Puxei a campainha da porta. Enquantoaguardava ser atendida, chegavam aosmeus ouvidos gritos abafados:

-Portas fechadas, não. Portasfechadas, não. Não! Não! Não! A vozrepetia até que foi cortada pelosilêncio.

Pressenti que Dibs não iriaparticipar do nosso chá. A empregadauniformizada abriu a porta.Apresentei-me e fui então conduzida auma formal e requintada sala devisitas. O ambiente, caracterizadopela beleza e sobriedade domobiliário, exibia uma tão impecávelordem, que ninguém ousaria afirmar queali houvesse permanecido uma criança,ainda que por cinco minutos. De fato,não havia sinais de que qualquerpessoa vivesse naquela casa.

A criada, muito sisuda,aparentava tal seriedade que pareciaestar com aquela família há bastantetempo. Era precisa, protocolar edistante. Vendo-a, mil cogitaçõesocorreram-me: Será que esta criaturajá sorriu alguma vez? Será que jáexperimentou o lado bom da vida? Se,na verdade, isto aconteceu, uma rígida

disciplina a envolve, anulando os seusaspectos de identificação individual ede espontaneidade.

A mãe de Dibs cumprimentou-mecortesmente, embora bastante séria.Fizemos os costumeiros comentáriosacerca do clima e sobre o prazer denos encontrarmos.

O chá foi então servido em umalouça deslumbrante.

-Sabemos que você foi chamada àescola como psicóloga para observarDibs, começou ela tratando do assunto.É muita gentileza sua assumir estatarefa. Gostaríamos que você soubesseque nós não esperamos nenhum milagre.Já aceitamos a tragédia de Dibs.Conhecemos sua reputação profissionale temos um grande respeito pelapesquisa em todas as áreascientíficas, inclusive nas ciências docomportamento humano. Não mantemosexpectativas de obter qualquer mudançana conduta de Dibs; mas, se o estudodo seu caso lhe proporcionar umamelhor compreensão do fenômeno humano,creia que estamos mais que disponíveispara prestar nossa cooperação.

Era inacreditável! Uma mãe, emnome da ciência, oferecia-me algunsdados para estudos. Não uma criançadoente e torturada. Uma criança queera seu próprio filho. Não. Apenasalguns elementos para pesquisas. E fezquestão de esclarecer que não esperavanenhuma alteração nos dadosfornecidos. Pelo menos nenhumamelhoria. Passou a relatar informaçõesestatísticas em relação à vida deDibs. Data do seu nascimento. Seulento progresso. Seu retardamentoóbvio e a possibilidade de umadeficiência orgânica.

Sentada à minha frente,demonstrava terrível nervosismo.Tentava sufocá-lo, dominando-o sobcontrole. Mas, de quando em quando,mordia os lábios desconcertadamente. Aface pálida. Os cabelos acinzentadospresos na nuca. Os olhos azuis claros.Lábios finos. Era uma bela senhora,

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porém fria e fugidia no seurelacionamento. Usava um vestidocreme, em estilo simples e clássico.Seria difícil calcular sua idade.Aparentava estar aproximando-se dos 50anos, mas provavelmente era bem maisnova. Expressava-se com elegância einteligência. Parecia assumir acoragem e a estatura de um guerreiro.Não obstante sua aparente bravura, nãoera difícil adivinhar que escondia tãoprofundo e trágico drama quanto Dibs.

Finalmente, perguntou-me sepretendia observar Dibs em sua própriacasa, no seu quarto de brinquedos, quese localizava no andar superior, nosfundos da residência.

-É um recanto tranquilo eninguém os interromperá. Por outrolado, ele tem grande número debrinquedos. E teremos o maior prazerem adquirir qualquer outro que vocêqueira ou julgue necessário.

-Não, muito obrigada, respondi-lhe. Será melhor que as sessões sejamrealizadas na sala de Ludoterapia doCentro de Orientação Infantil. Teremosuma entrevista semanal com a duraçãode 1 hora.

A minha firme decisão causou-lheimpacto, mas não a impediu de novosargumentos.

-Dibs possui um incalculávelnúmero de brinquedos encantadores. Eteremos a maior satisfação em aumentaros seus honorários para que venha emcasa.

-Lamento, mas não posso atendê-la, disse-lhe. E, além disso, aterapia não será paga de maneiraalguma.

-Oh! mas nós podemos pagar,retorquiu imediatamente. E, até mesmo,insisto para que paguemos seushonorários.

-É uma gentileza sua, respondi-lhe. Mas, de fato, não recebemosremuneração. O que nós solicitamos éque o levem regularmente ao Centro, nahora certa, e, só em caso de doença, o

deixem faltar. Gostaria de suaaquiescência para escrever osrelatórios completos de todas asentrevistas para nossos estudos. Deminha parte, dar-lhe-ei uma declaraçãopor escrito, que, se por umaeventualidade este material assimrecolhido for usado para rins deensino ou qualquer tipo de publicação,todas as informações identificadorasde Dibs e de sua família serão de talforma omitidas, que ninguém será capazde reconhecê-los. Entreguei-lhe adeclaração que já havia sido assinadaantes do encontro. Ela estudou-acuidadosamente.

-Muito bem, disse depois dealgum tempo. Poderei guardar esta via?

-Sem dúvida. E a senhora e o seumarido poderiam assinar oconsentimento para a elaboração dosrelatórios? -indaguei-lhe,apresentando o documento deaquiescência já redigido.

-Poderia guardá-lo para discuti-lo com meu marido? Enviaria pelocorreio se o aceitássemos na íntegra.

-Certamente, respondi-lhe.Apreciaria muito se me; fizesse cientede sua resolução tão logo a tomasse.

Segurou a folha de papel comcuidado. Umedeceu seus lábios.Provavelmente, sentia-se constrangidadiante do momento presente e de suasimplicações para o futurodesconhecido. Seu filho iria iniciaruma ludoterapia. Mas seria sua, adeliberação. Percebi que deveriaaceitar o período necessário para quea decisão fosse assumida. Assim,poderia contar com a presença de Dibsno Centro de Orientação Infantil.

-Logo que optarmos, avisá-la-ei,declarou-me.

Meu coração parou. Será que estaoportunidade de escolha ajudá-la-ia afugir do confronto consigo, a que aterapia do filho poderia conduzi-la?Mas, por outro lado, caso aceitasse anossa ajuda, estaria comprometida atéo seu final. E cumpriria a sua tarefa,

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como um dever livremente escolhido.Mas, se o tratamento lhe fosseimpingido, não poderíamos esperar umafreqüência regular.

-Não compreendo por que, quandouma família é capaz de pagar umaremuneração substancial, que lhepossibilitaria assistir uma outracriança cujos pais não têm recursosfinanceiros, você formalmente serecusa a não receber, insistiu depoisde uma longa pausa.

-O meu trabalho éfundamentalmente dedicado à pesquisa,visando maior aprofundamento da.psicologia infantil, expliquei-lhe. Járecebo o meu salário pelo trabalho quedesenvolvo. Isto, portanto, independede sua possibilidade de pagar. E nãoposso receber honorários de ninguém.Se a senhora. quiser, poderá dar umacontribuição para o Centro, sem nenhumvínculo com o nosso caso particular.Isto a senhora poderá decidir àvontade. Aliás, as pesquisas sãobasicamente financiadas por fundosassim coletados.

-Entendo, respondeu. Mascontinuo ainda querendo pagá-la,pessoalmente.

-Estou certa disto, respondi-lhe. E agradeço toda a sua preocupaçãoa meu respeito. Entretanto, já fuibastante clara sobre as condições emque posso atender Dibs.

Mantive a minha posição comfirmeza. Sabia que, com a velocidadede uma serra elétrica, suas palavraspoderiam cortar todos os liames que meunia a Dibs. Mas, se conseguíssemoscontornar aquela pequena controvérsia,estaríamos construindo importantedegrau inicial, no edifício de suaresponsabilidade como mãe. Seria, semdúvida, mais confortável pagar suasaída, para eximir-se de suaineximível missão em relação ao seufilho. Por isso mesmo, decidi queseria da maior importância eliminareste elemento.

Percebi-a estarrecida por algunsminutos. Apertava as mãos, comsofreguidão, sobre seu colo. Olhava-as. De repente, lembrei-me de Dibs,jogando-se no chão, rosto para baixo,imóvel, rígido. Novamente, senti entreambos a identidade de problemas.Levantou a vista e ao encontro dosmeus olhos desviou os seus.

-Devo dizer-lhe alguma coisamais, confessou. Em caso de necessitarmaiores detalhes sobre o caso de Dibs,posso apenas lhe indicar a escola comoa melhor fonte para obtê-los. Nadamais posso pessoalmente acrescentar. Enem tampouco comparecer a entrevistas.Se as suas condições de trabalhoimplicam em um assíduo contato com amãe da criança, prefiro que cancele ocompromisso que assumiu há pouco.Nenhuma informação tenho paraadicionar às que já lhe forneci. É umatragédia -uma enorme tragédia. Dibs é.Bem, Dibs...é... um retardado mental.Assim já nasceu. Quanto a mim, não mesinto em condições de responderquestionários e participar deconferências sobre seu caso,enfatizou, olhando-me por segundos, denovo.

A perspectiva de uma sistemáticaaproximação com ela aterrorizava-a.

-Compreendo, tranqüilizei-a. Eesteja certa de que respeitarei suavontade. Entretanto, gostaria de lhedizer que, se em alguma ocasião,quando quer que seja, desejar falar-mesobre Dibs, creia-me que será muitobem-vinda. Isto ficará a seu critério.

Por minutos, sentia-a menoscontraída. Um pouco aliviada, talvez.

-Meu marido também não gostariade ser solicitado para conferências,continuou.

-Está certo, concordei. O quedecidirem será respeitado.

-Bem, quando for levar Dibs aoCentro, não poderei esperá-lo.Voltarei mais tarde, para apanhá-lo,quando estiver na hora.

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-Não haverá problema, assegurei-lhe. A senhora poderá deixá-lo noCentro, e no horário combinado,recebê-lo. Ou ainda, se preferir,poderá enviar uma pessoa de suaconfiança.

-Muito obrigada, retorquiu. Asenhora não imagina como apreciei suacompreensão, expressou-se depois de umlongo silêncio.

Terminamos o nosso chá.Conversamos sobre assuntossuperficiais. Dorothy foi lembrada comsuas estatísticas indicadoras de suasanidade, característica evidente deuma "criança perfeita".

A mãe de Dibs havia demonstradomuito maior medo, ansiedade e pânicona sua primeira entrevista do que Dibsna sua sessão inicial de terapia.Senti que não havia clima propíciopara persuadi-la dos benefícios de umtratamento pessoal. Seria ameaçá-lademais. E não quis assumir este risco.Representaria a possibilidade deperder Dibs. E acreditava no potencialemergente daquela criança que oimpulsionava a protestar contra apermanência de portas trancadas.Queria abri-las. Entendi o seuesforço, percebendo as inúmeras portasque sua mãe fechara na sua vida. Narealidade, quantas tentativas delapartiram para impedir-nos deentreabrir a porta da ajudaterapêutica? Ainda na saída, voltou ainsistir na modificação de nossascondições de trabalho.

-Você está certa de que nãoprefere atendê-lo na sua sala debrinquedos? perguntou-me. Seus jogossão variados e atraentes. E poderíamoscomprar qualquer outro objeto que vocêindicasse. Qualquer um.

Percebi-lhe o seu visíveldesespero. Agradeci-lhe ooferecimento, e, de novo, afirmei-lheque só poderia atendê-lo no Centro.

-Comunicar-lhe-ei logo quedecidamos, disse-me balançando opapel, que não mais soltou das mãos.

-Muito obrigada, respondi-lhe,já saindo. No percurso para o meucarro sentia o peso opressor de umafamília acorrentada. Pensei em Dibs eno seu quarto de brinquedosmaravilhosamente equipado. Nunca tinhaentrado lá. Mas estava convicta de quetodos os objetos para fins lúdicos,que o dinheiro pudesse comprar, aliestariam reunidos. E mais. Tudozelosamente guardado por trás de umasofisticada porta polida. E trancadapor uma fechadura segura!

Lembrei-me da mãe de Dibs. Seráque, mais tarde, ela decidiria relataros fatos relevantes da estória de seufilho? Sem dúvida, ser-lhe-ia umapenosa tarefa caracterizar asdinâmicas do relacionamento de suafamília. Como se sentiria diante dodrama de sua criança? Que papelatribuía a si nesta tragédia, que atornava apavorada perante aperspectiva de ser entrevistada ouquestionada sobre o assunto?

Perguntei-me: havia conduzido aentrevista pelo caminho maisfrutífero? ou se, pelo contrário, aminha posição firme e radical a haviapressionado a tal ponto queestimulasse o seu recuo. impedindo-nosde estudar a problemática de Dibs?

Quis muito adivinhar a decisãoque aquele casal assumiria. Será quevão aceitar as condições propostas?Será que terei outra oportunidade derever Dibs? E se, em nome daesperança, sua e de seus pais, eu oencontrasse na sala de ludoterapia,quais seriam os resultados que daliadviriam?

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CAPÍTULO IV Por um longo período de várias

semanas, a família de Dibs manteve-seem completo silêncio. Telefonei para aescola e indaguei da diretora serecebera alguma comunicação dos seuspais. Respondeu-me que nada lhe haviamdito sobre o assunto. Perguntei sobreDibs. Soube que a sua condutacontinuava sem alterações. Permaneciafreqüentando a escola com assiduidade.Todos lá apoiando-o, enquantoaguardavam o início da ludoterapia,que desejavam ansiosamente nãotardasse.

Enfim, em uma manhã, recebi afolha liberatória, assinada pelos seuspais, dando-me a permissão paraescrever 'Os relatórios das sessões.Uma pequena observação ao final dapágina reafirmava o seu desejo decooperar com o nosso estudo dacriança. Sugeriam, também, quetelefonássemos para sua casa com oobjetivo de marcar nossa entrevistainicial com Dibs.

Marquei a sessão para a próximaquinta-feira, à tarde, na sala deludoterapia do Centro. Pedi à minhasecretária que confirmasse, com suamãe, a possibilidade de atendimentonaquele horário, por parte dela e deDibs. Não houve nenhum inconveniente.

Foi um verdadeiro alívio! Ajulgar pelo tempo consumido, seus paisnão tomaram esta decisão comfacilidade. Era bastante significanteesta demora. E o que estariaacontecendo com Dibs durante esteintervalo? Seus pais o teriamexaminado com olhares proféticos,tentando avaliar suas possibilidades?De qualquer maneira, vacilaram,medindo e pesando todos os ângulos easpectos envolvidos nesta aventura.Uma grande tentação me aconselhava atelefonar para a sua mãe,pressionando-a a trazer Dibs aoconsultório ou pedindo que me desseciência de sua deliberação. Só nãoobedeci a este impulso porquecompreendia que nada de importante

ganharíamos ao forçar-lhe uma decisão,caso não a tivesse tomado, e muitoperderíamos se os perturbássemos noperíodo de considerações. Foi umalonga espera cheia de frustrações eperguntas.

No dia combinado, Dibs chegou aoCentro com sua mãe. Ela dirigiu-se àrecepcionista dizendo que voltariapara buscá-lo dentro de uma hora e queele poderia aguardá-la, ali mesmo, nasala de espera. Caminhei ao seuencontro para cumprimentá-lo. Estavaimóvel, no exato lugar em que sua mãeo havia deixado. Muito bem agasalhado,com casaco, chapéu, luvas e botas.

-Boa tarde, Dibs, saudei-o. Comoé bom vê-lo de novo! Vamos para nossasala de brinquedos. Fica bem no finaldo corredor.

Dibs estendeu sua mãozinha aoencontro da minha. Silenciosamente.Juntos, dirigimo-nos para a sala deludoterapia.

-Esta é uma outra sala, avisei-lhe. Mas bem parecida com aquela ondeestivemos há várias semanas.

Tá bem, falou hesitante. A salaficava no andar térreo. Cheia de luzsolar. Mais atraente que a outra,embora o equipamento não diferissesignificativamente. As janelas abriam-se para um parque de estacionamento decarros, e, mais adiante, poder-se-iaver uma grande igreja revestida depedras cinzentas.

Logo que entramos, Dibspercorreu o recinto vagarosamente,tocando o material, nomeando osobjetos com a mesma inflexão de vozque havia usado na sua primeira visitaà outra sala de terapia.

-Depósito de areia? Cavalete?Carteira? Tinta? Carro? Boneca? Casade bonecas? Cada um era segurado eindagado sobre sua identidade. Depoisvariou um pouco.

-Isto é um carro? Sim, é umcarro. Isto é areia? Sim, é areia.Isto é tinta? Sim, é tinta.

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Quando concluiu o circuitocompleto da sala, falei-lhe:

-É mesmo. Quantos objetosdiferentes estão neste compartimento,não é? E você segurou-os dizendo osseus nomes.

-É, respondeu suavemente. Não desejava apressá-lo. Por

isso dava-lhe tempo para ver eexaminar o que o cercava. Toda criançaprecisa de tempo para explorar o seumundo, a seu modo.

Parou inerte no centro da sala. -Dibs, será que você gostaria de

tirar seu chapéu e casaco, perguntei-lhe, depois de um período de espera.

-Está bem, retorquiu. -Tire seu chapéu. E o seu

agasalho, Dibs. Falava mas não fazia amais leve menção de movimento.

-Bem, você falou-me que gostariade tirar o seu casaco e chapéu, nãofoi Dibs? Ótimo! Vá. Tire-os, então.

-Tire as luvas e as botastambém, completou ele.

-Está certo, respondi. Tire suasluvas e botas também, se assim vocêquer.

-Está bem, sussurrou. Mas alipermaneceu estático e sem confortodentro do seu casaco de mangascompridas. começou a choramingar.Mantinha-se à minha frente, com acabeça inclinada, chorando baixinho.

-Bem, você gostaria de ficar semagasalhos mas queria que o ajudasse aretirá-los. É isto?

-É sim, concordou com um soluçona voz. -Está certo, Dibs. Você queruma mãozinha para retirar seu casaco echapéu. Venha até aqui que eu oajudarei.

Estava sentada em uma cadeirinhae mantive-me nesta posição com umpropósito: ofereço-lhe meu auxílio,mas como estou um pouco afastada, ele

deverá andar alguns passos para obtê-lo.

Dibs caminhou em minha direção.Trôpego e vacilante.

-As botas também, falou em tomáspero. -Pois não. Vou tirar suasbotas.

-E as luvas, insistiu torcendosuas mãos. -Claro, as luvas também,respondi-lhe.

Quando acabei esta tarefa, Dibsestava mais leve, sem dúvida. Coloqueias luvas nos bolsos do casaco eentreguei-lhe com o seu chapéu.Deixou-os cair no chão. Ergui-os edependurei-os na maçaneta da porta.

-Vamos pendurá-los aqui, até ahora da saída, disse-lhe. Ficaremosjuntos por uma hora. E, depois, vocêvoltará para casa.

Nada respondeu. Dirigiu-se aocavalete e examinou as tintas. Ficouali por um longo tempo. Pronunciou onome das tintas que ali encontrara.Reorganizou-as com calma. Colocou overmelho, o amarelo e o azul naprateleira do cavalete. Com cuidado,separou-os nos seus espaços adequadose acrescentou as outras cores,completando assim o número das seiscores básicas do espectro. Colocouentão as cores terciárias nos lugarescorretos, adicionou o branco e o pretoe assim organizou uma escala com todasas cores de acordo com seus valoreshierárquicos. Tudo foi por eleelaborado com calma e em silêncio.Quando os percebeu em ordem exata,escolheu uma jarra e examinou-a.Observou o seu interior. Misturou atinta dentro com o pincel. Suspendeu-opara melhor vê-la sob a luz. Correu osdedos suavemente sobre o rótulo. Leu amarca comercial da tinta e o nome dacor.

-Tinta Favor Ruhl. Vermelho.Tinta Favor Ruhl. Azul. Tinta FavorRuhl. Preto.

Esta era uma parcial resposta auma velha indagação. Sim, Dibs sabia

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ler. Estava agora obviamente lendo osrótulos de uma maneira completa. E,ainda, a escala de cores foi por elecorretamente organizada e denominada.

-Bom, você sabe ler os rótulosdas jarras de tinta, disse-lhe eu. Esabe muito bem os nomes das cores.

-É verdade, respondeu comvacilação. Então, sentou-se na mesinhae apanhou a caixa de lápis de cor. Leuo nome que estava escrito no estojo.Tomou o lápis vermelho e escreveu comletras de imprensa em letras firmes ebem definidas. VERMELHO. Fez o mesmocom todas as outras cores, escrevendoo nome na seqüência exata, formando umcírculo. Escrevia e soletrava em vozalta.

Olhei-o. Tentei responder-lheverbalmente que estava reconhecendoseu esforço para comunicar-se comigopor meio daquela atividade.

-Você está dizendo os nomes dascores e registrando-os com o lápiscorrespondente, não é? Estoupercebendo. V.E.R.M.E.L.H.O, formavermelho.

É, concordou. -E ainda está elaborando um arco

de cores, não é verdade? -É, repetiu. Apanhou, em

seguida, a aquarela de tintas d'água.Leu o nome da marca registrada nafrente da caixa. Deu pequenos toquesde tinta colorida em um pedaço depapel de desenho, obedecendo à mesmarígida e deliberada hierarquia dascores. Tentava manter os meuscomentários de acordo com a sua ação,evitando falar em demasia para que nãoindicasse qualquer orientação oudemonstrasse alguma expectativaespecífica, que dele esperasse aconcretização. O que queria eracomunicar-lhe compreensão ousimplesmente reconhecimento de suaexteriorização referencial. Desejavaque fosse ele quem abrisse oscaminhos. Deveria segui-lo, respeitá-lo e entendê-lo. Desejava fazê-losentir que a ele caberia as

iniciativas a serem assumidas naquelerecinto. Quanto a mim, reconheceria oseu esforço, numa dupla comunicação,baseada na realidade concreta, quefuncionaria como experiênciascompartilhadas por nós dois. Nãogostaria de proclamar admiração pelassuas habilidades. Por que surpreender-me diante da evidência de suacapacidade?

Quando a liberdade deiniciativas abre-se para o indivíduo,sua escolha recai nas atividades emque se sente mais seguro. Qualquerexclamação de surpresa ou elogio podeser interpretada por ele comoindicadoras da direção que deveráseguir. E, com isso, outras esferas deexploração são fechadas, representandoperdas da maior importância. E esta éa sua oportunidade de encontrar suasnovas estradas redentoras.

Todas as pessoas procedem comprecauções para proteger a suapersonalidade. Estávamosfamiliarizando-nos um com o outro.Aqueles objetos que Dibs mencionou, aosituar-se na sala, eram realidades quenão estavam envolvidas em nenhum sériocontexto afetivo. Constituíam, noentanto, ingredientes compartilhadospor nós dois, uma' ponte para nossacomunicação. Para Dibs, eram conceitosseguros.

De quando em quando, relanceavaos seus olhinhos em minha direção maslogo os desviava.

Sem dúvida, estas atividadesiniciais transbordavam uma riqueza derevelações. Hedda tinha, de fato,soberbas razões para ter fé em Dibs.Na verdade, aquela criança estava nãosomente pronta para emergir mas jácomeçando a longa aventura dodesabrochar. Qualquer que fosse o seuproblema, podíamos agora retirar-lhe orótulo de retardado mental.

Dibs entrou no depósito deareia. Enfileirou os soldadoscombinando os pares, dois a dois. Aareia penetrou-lhe os sapatos. Olhou-

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me, apontou para os seus pezinhoschoramingando.

-Que é isto? perguntei-lhe. Aareia está entrando nos seus sapatos?

Acenou com a cabeçaafirmativamente. -Se você quiser,poderá tirá-los.

-Está bem, respondeu-me em tomáspero. Mas não fez nenhum movimento.Pelo contrário, sentou-se fitando osseus calçados e lamuriando-se.Esperei.

-Você tira os meus sapatos,pediu, com a voz arrastada, fazendo umesforço para expressar-se.

-Você gostaria de ficar descalçoe quer que ajude a remover os sapatos,não é? Novamente respondeu com umgesto, inclinando a cabeça emconfirmação à minha pergunta. Prestei-lhe a assistência solicitada.Desamarrei os laços e retirei-lhe ossapatos dos pés. Com muita cautela,tocou os pés na areia. Mas, não pormuito tempo. Logo quis sair.

Aproximou-se da mesa e observouos blocos e peças de jogos de armar.Então, calma e deliberadamente,começou a sobrepor peça sobre peça. Ogrande bloco assim formado tremeu e sedesmoronou. Dibs esfregou as mãos umana outra.

-D.A.! -gritou, chamando-me pelonome, com que, a partir daí, iriatratar-me. Ajude-me e bem depressa.

-De fato, você gosta de pedir aminha ajuda, não é verdade?

-É sim, respondeu fixando-me oseu olhar. -Bem, que quer que eu faça?Diga-me, Dibs. Perto da mesa, Dibsolhava os blocos, apertando asmãozinhas contra o peito. Silencioso.Ele e eu.

Em que estaria pensando? O queestaria procurando? Qual seria amelhor maneira de ajudá-lo? Queriacomunicar-lhe meu esforço decompreendê-lo. Pouco sabia sobre seumistério. E ele também. Mas. nesta

nossa ignorância, repousava parte denossa esperança. Por isso esperava.Seria um ato de violência arrombar oseu mundo privado, para tentararrancar-lhe respostas. Se conseguissefazê-lo sentir a minha confiança nele,como pessoa que tem verdadeiras razõespara as suas atitudes; se pudessetransmitir-lhe a convicção de que nãohá respostas escondidas, nem padrõesde conduta estandardizados. nem umasolução pronta para o seu problema emminha mente. para ser por eleadivinhada; e nem pressa para fazerqualquer coisa assim Dibs poderiaconquistar, mais e mais, um sentimentode segurança e coragem em si mesmo,para entender e aceitar suas própriasreações. Isto levaria tempo, exigiriabuscas e lutas, honestidade epaciência.

De repente, levantou-se,estendeu os braços, segurando umbloquinho de construir em cada mão eos fez colidir com estampido.

-Uma destruição! -exclamou. -Foi uma destruição? -Foi sim, respondeu-me. Uma

destruição! Um caminhão entrou noparque de estacionamento e parou juntoda nossa janela aberta. Dibs correupara fechá-la, apesar do calor quefazia.

-Fecha a janela, dizia. -Vocêquer fechar a janela? Perguntei. Masestá quente aqui dentro com a janelaaberta.

-É verdade, retorquiu. Fechevocê a janela, Dibs. Ah! Se você quermesmo a janela fechada, de qualquerforma, pode fechá-la.

-É isto mesmo. Dibs vai fechá-la. Falou com bastante firmeza.

-Realmente, você sabe o quequer, não é? Esfregavadesajeitadamente seu rosto, onde aslágrimas haviam deixado tantosvestígios. Teria sido tão fácil tomá-lo nos braços e consolá-lo.Ultrapassar o horário, e tentar

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abertamente dar-lhe demonstração deafeto e simpatia. Mas qual o valor queesta atitude teria diante dosproblemas emocionais da vida daquelacriança? Não teria ele que voltar paracasa independente de sua vontade?Evitar o enfrentar a realidade nãopoderia representar ajuda verdadeira.Dibs precisava desenvolver sua forçapara encarar o seu mundo. Mas estafortaleza deveria brotar-lhe dedentro. O exterior deveria serexperimentado tal qual se apresentava.Qualquer mudança significativa paraDibs deveria originar-se no seuinterior. Não podíamos transferi-lapara seu meio ambiente.

A hora se havia esgotado e Dibsestava pronto para sair. Tomou a minhamão e encaminhamo-nos para a sala derecepção. Sua mãe lá o aguardava. Seuolhar muito se assemelhava ao dofilho. Desconcertado. Inseguro.Revelador da desconfiança de si mesmae do ambiente onde estava. Quando Dibsa viu, atirou-se no chão, esperando.Gritava o seu protesto. Despedi-medele, cumprimentei sua mãe e lembrei-lhe que a próxima entrevista seria napróxima semana. Deixei-os, então.Houve um tremendo alarido na sala deespera, enquanto sua mãe tentava levá-lo. O seu embaraço crescia com aresistência de Dibs.

Não estava satisfeita comigomesma por ter-me omitido de qualqueratitude. Mas, como poderia terprocedido, a não ser deixando-os a sóspara resolverem o seu problema à suamaneira? Pareceu-me que, se ali eupermanecesse observando-os ouinterferindo, somente iria confundi-los e complicar a situação. Nãopoderia ficar a favor ou contra Dibs.Não queria tomar nenhuma posição queimplicasse em crítica dos seuscomportamentos, da conduta da mãe oudo filho.

CAPÍTULO V Na semana seguinte, Dibs retomou

ao Centro de Orientação Infantil,exatamente na hora marcada para aterapia. Encontrava-me no meuescritório, quando a recepcionistaapertou o sinal que anunciava a suachegada. De imediato, fui para a salade recepção e encontrei-o perto daporta. Sua mãe já havia saído.

-Boa tarde, Dibs, cumprimentei-o, aproximando-me dele.

Nada respondeu. Mantinha-se alide olhos baixos.

-Vamos para a sala debrinquedos, convidei-o, estendendo-lheminha mão.

Tomou-a e percorremos ocorredor. Esperei a seu lado quetomasse a iniciativa de entrar. Depoisde ter' penetrado no recinto, Dibsrecuou repentinamente, segurando aporta. Havia um letreiro reversívelnela pendurado. Ergueu-se e o retirou.

-Não perturbe, leu. Virou o letreiro e olhou as

palavras no reverso. -Sala de ludo, leu pausadamente.Bateu de leve com seus dedos

sobre o final da palavra. Era um nomenovo para ele. Terapia. Estudou-o emtodos os detalhes.

-Terapia, pronunciou. -Terapia, repeti com a pronúncia

correta. -Sala de Ludoterapia? -indagou-

me. -Exatamente, respondi-lhe. -Sala de Ludoterapia, repetiu,

entrando e fechando a porta atrás denós.

-Você vai tirar o chapéu e ocasaco, disse ele.

Sabia que estava referindo-se asi mesmo. Dibs raramente tratava-se asi próprio como a um eu.

-Você quer que tire meu casaco emeu chapéu? Perguntei-lhe.

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-É verdade, concordou. -Mas eu não estou' usando chapéu

e agasalho. Dibs olhou-me confusamente. -Você tira seu chapéu e seu

casaco, falou puxando sua roupa. -Gostaria que eu o ajudasse a

remover seu casaco e chapéu? É isto? Tinha desejado focalizar sua

atenção no eu quando o pronunciei comênfase. Mas, este era um problemamuito complexo.

-É isto, respondeu-me.... -Bem,ajudá-lo-ei.

Desta vez, no entanto, eleparticipou bem mais ativamente.Entreguei-lhe então gorro e sobretudo.

Relanceou sobre mim seu olhar,recebeu-os e caminhou em direção àporta.

-Você vai dependurá-los aqui,disse, colocando-os na maçaneta.

-Coloquei-os aí na semanapassada. Hoje quem faz esta tarefa évocê.

Sentou-se ao lado do depósito deareia e enfileirou os soldadinhos empares. Depois, foi à casa de bonecas earrumou a mobília.

-Onde está a porta? Onde está aporta? questionava apontando para aabertura da frente da casa de bonecas.

Acho que está dentro do armário,aqui perto. Dibs foi até lá e apanhouo painel frontal, onde estavamrepresentadas as janelas e a porta. Emseu retorno, bateu, por acidente, nacasinha. Uma das suas principaisparedes caiu. Levantou-a, recolocando-a no seu encaixe correto. Tentoucolocar o painel no seu lugarprevisto. Era uma tarefa difícil.Tentou repetidas vezes e em todasfalhava na conexão das peças.

-Tranca! -murmurou. Tranca! -Você quer a casinha trancada? -Trancada, insistiu tentando fixar a

peça, de novo, Oh!. ..Oba! Agora estábem trancada.

-Pois é, você encontrou o painele fechou a casa. Dibs olhou-me eesboçou a promessa de um sorriso.

Eu fiz isto, disse vaidosamente.De fato, você o fez e ainda

sozinho, comentei. Dibs sorriugratificado consigo mesmo. circulou acasa de bonecas, deliberado a fechartodas as janelas e portas.

-Todas estão fechadas. Todas! -exclamou. -Verdade, todas as janelas eportas estão fechadas agora,concordei. Abaixou-se em suas mãos ejoelhos, para observar a base da casa.Havia duas portinhas neste primeiroandar.

-Oh! Aqui é o porão, anunciouabrindo as portas e verificando ofarto material ali reunido. Vou jogartudo fora. Paredes, divisões,separações.

-Faça a fechadura da porta,disse a si mesmo.

E obedecendo, apanhou o lápis ecom cuidado desenhou a maçaneta daporta.

-Você acha que deve haver umafechadura na porta?

-Sim, murmurou concluindo-a.Agora a porta tem fechadura! Exclamouvitorioso.

-Hum! -você pôs-lhe uma maçanetacompleta.

-É uma fechadura que tranca comuma chave. Veja as paredes altas efortes! E a porta. Uma porta trancada!-Estou vendo. A casinha balanceouligeiramente quando Dibs a tocou.Deteve-se, então, a examiná-la.Apanhou uma das divisões tentandoapoiar um dos seus cantos. Continuavaa oscilar. Uma nova peça foi colocadajá em outra direção. Uma outra mais.

-Pronto! -anunciou. Nada mais detremores e balanços. A casa estáfirme.

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Levantou uma parte do telhado,mexeu em alguns móveis. A parededivisória escorregou e, de novo, acasinha oscilou. Dibs recuou um poucopara reexaminar.

-D. A, pregue algumas rodinhasna base, que esta casinha não irá maistremer.

-Você acha que assimresolveremos o problema?

-Resolveremos sim, respondeu.Evidentemente, Dibs tinha umvocabulário rico embora não o usasse.E, ainda, sabia observar e definirproblemas. Mas, sobretudo, conseguiasolucioná-los por si mesmo. Por quedesenhou uma fechadura com todos osacessórios na porta de sua casa debonecas? As portas fechadas que haviaencontrado em sua vida, sem dúvida, oimpressionaram profundamente;

Dirigiu-se para o depósito deareia e saltou dentro. Escolheu algunsdos soldadinhos que se encontravamespalhados pela sala. Olhou-os emtodos os detalhes à medida em que ossegurava.

-Dibs ganhou uns parecidos comestes pelo Natal, disse-me, exibindo-me um exemplar. -Você ganhousoldadinhos no Natal? -Sim. Iguais aestes. Bem, não totalmente iguais, masda mesma espécie. Veja só a variedade.Aqueles têm fuzis nas mãos. Estes têmos fuzis apenas encostados aos seuscorpos. Aqueles outros estão atirando.Fuzis, fuzis reais que disparam. Umcarregava o fuzil no seu ombro. Ooutro atira. Como são diferentes. Mashá muitos iguais. Estes quatro aqui,por exemplo. E, logo ali, quatro mais.Estes três com armas fazendo pontaria.E mais este aí. Quatro e quatro sãooito. Se somarmos quatro a estesúltimos, teremos doze.

-Isto mesmo, concordei, enquantoele agrupava os soldadinhos. Você sabeformar os conjuntos de soldados esomá-los corretamente.

-É verdade. Dibs falou comhesitação. É... é. ..eu sei.

-Sim, você sabe, Dibs. -Estesdois homens estão com bandeiras,continuou, apontando para outrasfiguras.

Enfileirou-os todos ao lado dodepósito de areia.

-Todos estes têm armas. E estãodisparando-as. Felizmente para o outrolado da sala.

-Você quer dizer que todos estãoatirando na mesma direção?

Dibs encarou-me. Fitou ossoldadinhos e inclinou a cabeça.

-Eles não estão atirando emvocê, gritou com firmeza.

-Compreendo. Eles não estãoatirando em mim.

É isto mesmo, confirmou Dibs. Enterrou sua mãozinha na areia e

encontrou mais soldados de brinquedo.Retirou-os e alinhou-os. Enterrou ospés calçados na areia.

-Tira os sapatos, gritou derepente. Desamarrou seus calçados eremoveu-os. Descalço, voltou aorganizar os seus guerreiros. -Tudopronto. Estão em filas, juntos. Todosjuntos.

Selecionou, em seguida, trêssoldados e preparou com eles uma novafila. Com cuidado e firmeza, empurrou-os, um a um, na areia. O terceiro nãoficou tão soterrado quanto eledesejava. Retirou-o para reenterrá-loem um buraco mais profundo. Ao final,acrescentou, para sua segurança, umpunhado extra de terra sobre todos ossoldados sepultados.

-Agora ele se foi mesmo! -exclamou. -E você libertou-se dele,não foi? -É verdade, concordou.

Com uma pá, encheu todo um baldecom areia e despejou-a sobre ossoldados enterrados.

O carrilhão da igreja, próximaao parque de estacionamento, tocouanunciando o fim da hora. Dibsinterrompeu sua atividade.

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-Ouça, disse. Um, dois, três,quatro. São quatro horas!

-Sim, são quatro horas. Daqui apoucos minutos, estará na hora de vocêvoltar para casa.

Dibs ignorou minha observação.Saiu do depósito de areia e correupara a mesa. Observou as jarras detinta-a-dedo e perguntou comotrabalhar com elas. Expliquei-lhe.

-Tintas para serem usadas com osdedos?

Como? -Você molha o papel. Despeja

nela a tinta e a distribui da formaque lhe aprouver com o auxílio dosseus dedos. Espalhe do seu jeito,Dibs.

Prestou atenção à minha rápidademonstração. -Tinta-a-dedo?perguntou. -Sim, tinta-a-dedo.

Introduziu o dedo na jarra detinta vermelha. -Espalhe um pouco,disse. Mas debalde tentou suportar atinta no seu dedinho. Esfregou-a sobreo papel molhado. Decidiu pegar umaespátula de madeira e com ela tocou atinta distribuindo-a, em seguida, nopapel.

-Não é bem assim. Afinal decontas penso que é tinta-a-dedo,censurou-se. Sim, você disse tinta-a-dedo. Distribua por onde quiser comseus dedos.

-Certo. -Oh! -limpe-os; pediu logo que

tentou utilizar os dedos para pintar. Dei-lhe uma toalhinha de papel e

ele retirou a tinta. -Você não gosta que a tinta

agarre em sua mão, não é? -É uma tinta melada. Lambuza e

engraxa. -Você sente assim? -Isto é tinta-a-dedo vermelha.

Vermelha, anunciou, suspendendo orecipiente e lendo o rótulo.

Colocou a jarra na mesa ecirculou-a com a palma da mão aberta,sem contudo tocá-la. De repente, levouas pontinhas dos seus dedos aoencontro da tinta.

-Espalha isto. Pega a tintavermelha e espalha, Dibs. Espalhaprimeiro a vermelha, depois a amarela.A azul, em seguida. Coloca-as emordem, ele ordenava a si próprio.

-É interessante tentar usar astintas, não é? -Estas são asinstruções, disse, olhando para mim eapontando os rótulos. -Sim, estão aías instruções.

Enterrou os dedos na tinta denovo, e de imediato, retirou-os.Apanhou outra toalha de papel elimpou-se vigorosamente.

-Você se sente atraído parapintar desta maneira e, ao mesmotempo, não gosta, comentei.

-Estes lápis são diferentes,observou Dibs. Foi a Cia. Americana delápis quem os fabricou. Enquanto estesoutros foram feitos pela Cia. Shaw detintas-a-dedo. E as tintas d'águaforam feitas pela Indústria Prang.

-É verdade. -Bem, tenho à minha frente as

tintas-a-dedo, disse, enterrando osseus dedinhos na tinta amarela eespalhando-a calma e decididamentesobre o restante de sua mão.

Em seguida, limpou-os com atoalha de papel. E, de novo, levou osdedos para a tinta, desta vez azul.Pousou a sua mão no papel e debruçou-se sobre ela, absorto no que estavafazendo. Distribuiu a tinta, pintandoos seus dedos.

-Oba! Olha! -gritoutriunfalmente exibindo suas mãozinhas.

-Você, de fato, espalhou a tintaem todos os seus dedos desta vez, nãofoi?

-Olha. Todos os meus dedos estãoazuis agora, exclamou, examinando suamão.

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-Agora estão verdes, disse,trocando a tinta. Primeiro, eu ospintei de vermelho, depois de amarelo,azul e, então, verde e marrom. Pintei-os e removi a tinta. Limpei-os eapliquei nova cor. Por isso, estájusta a denominação de tinta-a-dedo!Oh! vamos embora, Dibs. Esta é umatinta muito tola. Vamos embora.

Retirou a tinta de sua mão etorceu a toalha de papel usadaatirando-a no cesto. .Balançou suacabeça em sinal de desagrado.

-Tintas-a-dedo, disse. Não sãodo meu interesse, de modo algum.Pintarei uma gravura.

-Você prefere fazer uma gravura?-Sim, respondeu. E com aquarela.

-Há apenas cinco minutos mais,avisei-lhe. Você acha que poderiapintar uma gravura neste período?

-Dibs pintará, reafirmou,apanhando a caixa de tintas eprocurando encontrar água.

Indiquei-lhe a pia e ele encheuum pequeno recipiente.

-Você terá tempo somente parapintar esta gravura. Depois estará nahora de voltar para casa, enfatizei.

Foi uma afirmação perigosa. Dibspoderia estender o tempo de suapintura tanto quanto desejasse, poiscom o meu último aviso o tempo limitehavia se tornado elástico e flexível.Desde que resolvi que o períodorestante era de cinco minutos deveriater sustentado esta decisão, nãocomplicando a situação introduzindo umsegundo elemento.

Entretanto, Dibs ignorou a minhaordem.

-A pintura corre, afirmou.Enxugarei as sobras da tinta com atoalha de papel. Isto ajudará nasecagem. Isto será uma gravura. Comrápidos e carinhosos gestos, iniciou apintura com tinta vermelha fazendosobre o papel o que à primeira vistapareciam ser pequenos borrões.

Respingou em vários pontos do papel efoi acrescentando as cores de acordocom a ordem do espectro solar. Quandoadicionou mais cores e tintas a figuraemergiu. Ele estava pintando uma casacircundada pelo céu, grama flores esol. Todas as cores foram usadas.

Havia uma completa relação napintura, forma e significado!

-Isto é...Isto é... Estava gaguejando e tateando com

o pincel preso nas mãos, a cabeçapendurada. De súbito, apresentava-semuito e muito tímido.

-Isto é...a casa de D. A, eledisse. D. A.., vou dar-lhe esta casa.

-Você quer dar-me este presente,não é?

Em resposta, Dibs sacudiu acabecinha concordando. O meu objetivo,respondendo-lhe com uma questão aOinvés do rotineiro muito obrigado, oua um elogio, era preservar a dinâmicado nosso processo de comunicação,aprofundando-o. Assim, se desejasse,poderia expressar-se mais sobre seussentimentos e juízos e não seriacortado abruptamente pela minharesposta formal e estandardizada.

Dibs segurou o lápis e com omaior esmero desenhou a fechadura naporta. Nas janelinhas do primeiropavimento acrescentou barras. Haviatambém uma janela ampla pintada de umtom amarelo vibrante. No peitoril umjarro com flores vermelhas. Era umacombinação criativa e bela e que haviasido conseguida de uma maneiraoriginal.

Dibs fitou-me. Seus olhos eramde um azul translúcido. Sua expressãodo rosto transbordava medo einfelicidade. Apontou para a porta dasua pintura.

-Pode ser fechada, disse. Trancarápido com a chave. E ainda tem umporão que é escuro.

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Olhei para sua gravura, e depoispara ele. -Hum! -esta casa também temchave e um porão escuro.

Fixou os seus olhinhos na casa.Tocou na fechadura da porta e, denovo, encarou-me.

-Esta casa é para você, falou,torcendo todos os seus dedos juntos. Ésua casa, agora.

E respirou profundamente parapoder acrescentar com grande esforço.

E também nela há um quarto debrinquedos, disse ainda, indicando ajanela amarela guarnecida com asflores vermelhas.

-Ah! sim. Esta é a janela doquarto de brinquedos, não é?

-É, aquiesceu, acenando com acabeça. Caminhou até a pia e esvaziouo recipiente d'água já misturada àtinta. Abriu a torneira com toda aforça. O carrilhão da igreja encheu desom o ambiente. Era hora de terminar asessão.

-Ouviu, Dibs. Nossa horaterminou. Você ouviu, Dibs?

Dibs ignorou meu aviso. -Tinta marrom colore a água de

marrom e tinta laranja torna a águalaranja, continuava falando.

-Bem, é isto mesmo. Sabia que ele havia ouvido meu

lembrete sobre o final do horário enão queria agir como se julgasse ocontrário.

-Isto é água QUENTE. -Quente. EF.R.I.A. Água fria, lia nas torneiras.Liga e desliga. Desliga e liga.

-Você acha que a água fria equente lhe estão interessando agora?

-É verdade, respondeu. -Mas que lhe disse sobre nosso

tempo? Dibs torcia as mãozinhas juntas.

Virou-se, olhando em minha direção.Parecia infeliz e miserável.

-D. A. disse que terminasse apintura da casa e então deixasse você,falou com a voz rouca.

Observei como sua linguagemhavia se tornado confusa. Em minhafrente estava uma criança muito capaz,de um alto nível intelectual, cujashabilidades estavam dominadas pelosdistúrbios emocionais.

-Então foi isto que disse. Evocê já terminou a sua pintura e estána hora de voltar para casa.

-Bem, mas preciso um pouco maisde grama aqui e algumas flores ali,disse de súbito.

-Não há tempo para isto hoje. Anossa hora já se esgotou.

Dibs encaminhou-se para a casade bonecas. -Tenho que consertar acasinha. Devo deixá-la bem firme,declarou. -Ah! você pode pensar emvariadas tarefas a fazer e assim adiarsua ida para casa, não é? Mas o seutempo por hoje já terminou. Você iráagora para casa.

-Não. Espere. Espere, Dibsgritava. -Entendo que você não querir, Dibs. Mas o nosso tempo, por hoje,já terminou.

-Não vou agora, soluçava. Nãovou agora. Não vou nunca mais.

-Você se sente infeliz quandolhe digo que tem de sair daqui, não é,Dibs? Mas você voltará de novo, napróxima semana. Na quinta-feira quevem.

Apanhei seu chapéu, casaco ebotas. Dibs sentou-se em umacadeirinha perto da mesa. Fitou-me comos olhos cheios de lágrimas, enquantocolocava seu chapéu na cabeça.

De repente, faiscou-lhe oentusiasmo de uma idéia salvadora.

-Sexta-feira? perguntou. Voltosexta-feira? -Você retornará napróxima quinta-feira.

Sabe, Dibs, quinta-feira é o seudia de vir à sala de brinquedos.

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Dibs enrijeceu-se e vociferou. -Não. Não saio daqui. Dibs não vai paracasa. Nunca mais. -Bem sei, Dibs, quevocê preferia não voltar. Mas você eeu temos somente uma hora em cadasemana para ficarmos juntos aqui,nesta sala de brinquedos. Sendo assim,quando este tempo termina, embora vocêsinta tristeza, embora eu deseje ficarmais e mais junto de você, emboraqualquer outra pessoa prefira que orelógio não marque o final do horário,o tempo se esgotou e nós dois temosque sair daqui. Agora, por exemplo,está na hora de sairmos. Na verdade,já passaram alguns minutos de nossahora.

-Não posso fazer outra pintura?-Dibs interrogou-me com as lágrimas abrotar-lhe dos olhos, correndo em suaface.

-Não hoje, Dibs. -Uma pinturapara você? -insistiu. Uma únicapintura, mas feita especialmente paravocê?

-Não. O nosso tempo já terminou,por hoje. Ele permaneceu na minhafrente segurando seu casaco. -Vamos,Dibs. Coloque seus braços nas mangasdo seu paletó.

Obedeceu. Pedi-lhe, então, quese sentasse para que lhe ajudasse a secalçar.

-Não vou para casa, murmuravaentre lamúrias. Não quero ir paracasa. Não sinto vontade de ir paracasa.

-Bem sei como você se sente. Umacriança adquire seus sentimentos desegurança a partir de conhecimentosprevisíveis e limitações realísticas.Desejava ajudar Dibs a diferenciarentre seus sentimentos e suas ações.Parecia ter ele conseguido um poucodisto. Também desejava comunicar-lheque esta nossa hora era apenas uma,entre outras múltiplas e variadaspartes de sua existência. Isto deveriadar-lhe indícios de que aquelas horasde terapia não deveriam ter prioridadeabsoluta sobre todos os seus

relacionamentos e experiências e que operíodo decorrido entre as sessõeseram também muito importante. O valorde qualquer sucesso em um processoterapêutico, em minha opinião, dependedo equilíbrio mantido entre o que apessoa traz para a sessão e o que delaleva. Tenho sérias dúvidas sobre aeficiência de um tratamento que setorna uma influência predominante econtroladora na vida quotidiana de umser humano. Queria que Dibs sentisse aresponsabilidade de conduzir a suavida, com uma habilidade crescente aassumir sua autonomia pessoal,conquistando sua independênciapsicológica.

Quando lhe calcei as botas,relanceei um rápido olhar sobre ele.Havia-se esticado e apanhado do outrolado da mesa uma mamadeira quecontinha água. Estava sugando-a, comose fosse um bebê pequenino.

-Pronto, as botas já estão nosseus devidos lugares.

-Coloco as tampinhas nas jarrasde tinta?, perguntou, tentando ter umanova oportunidade de permanência.

-Não agora. -Elas vão secar? -insistiu. -Bem, se, de fato, forem

deixadas sem tampa secarão, mas voufechá-las daqui a pouco.

-E as tampinhas da tinta-a-dedo?-perguntou.

-Vou cuidar delas também. -Limpaos pincéis?

-Sim. Não esquecerei de fazê-lo.Dibs levantou o olhar.

Aparentemente havia esgotado todas assuas fontes de apelação. Ergueu-se eencaminhou-se para fora da sala. Logoque saiu, parou abruptamente. Ficou naponta dos pés e virou o letreiro daporta. Ao invés de "Não perturbe",expôs "Sala de Ludoterapia." Eacariciou a porta com pequenaspancadas, dizendo baixinho:

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-Nossa sala de brinquedos.Caminhou até o salão de recepção, ondesurpreendeu sua mãe com a suaveaquiescência de acompanhá-la paracasa.

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CAPÍTULO VI Quando Dibs retomou, na semana

seguinte, o seu primeiro cuidado foiobservar a situação real dos frascosque continham tinta-a-dedo. Apanhou,pote por pote, examinando as tampas erecolocando-os na sua caixa comprida eestreita.

-Ah! Dibs, não esqueci de cuidardeles, você viu?

-É, estou vendo, confirmou. Sentiu-se novamente atraído pela

mamadeira e avisou-me de que gostariade sugá-la. Segurou e começou a mamar,olhando fixamente para mim. Emseguida, colocou-a sobre a mesa.

-Tire suas roupas, disse. Desabotoou seu casaco, retirou-o

sem nenhuma ajuda e foi pendurá-lo namaçaneta da porta. Tirou o chapéu,colocando-o sobre uma cadeira.Encaminhou-se para a casa de bonecasabrindo, de par em par, todas asjanelas.

-Olhe, todas as janelas estão,abertas, anunciou. Agora vou fechá-las.

Apanhou, decididamente, o painelda casa. Mas algo o fez modificar osplanos de repente. Deixou-o cair nochão e voltou para a mesa, segurando,de novo, a mamadeira.

-Vou sugar a mamadeira, afirmou.-Você gosta de sugar a mamadeira?

A minha questão visava deixaraberto nosso canal de comunicação enão acrescentar qualqueresclarecimento à nossa conversa.

-Gosto, respondeu. Mamou emsilêncio por um longo tempo, olhando-me. Depois, colocou a mamadeira sobrea mesa e dirigiu-se ao armário,abrindo-lhe as portas e examinando seuinterior. Apanhou uma caixa vazia quecontinha pequenos blocos.

-Os cubos de contagem cabemexatamente aqui, concluiu.

Colocou então vários blocos ali.-Viu? Esta é a caixa destes blocos.Veja o que diz o rótulo, argumentou,enquanto apontava para a tampa dacaixa.

-Sim, eu sei, confirmei. Estavavivamente interessada na maneira comque, Dibs vinha demonstrando suahabilidade de ler, contar e resolverproblemas. Parecia-me que quando elese aproximava de qualquer tipo dereferência emocional retraía-se,fugindo para uma área mais objetiva, aleitura por exemplo. Talvez, sentissemaior segurança em manipular conceitosintelectuais do que em sondar comprofundidade os seus sentimentos.Talvez, isto evidenciasse um dosconflitos básicos por ele vivenciado:de um lado a pressão de uma forteexpectativa em relação às suasaquisições intelectuais, e do outro aluta em busca de sua afirmaçãopessoal! Dibs oscilava entre obrilhantismo invulgar e as freqüentesatitudes típicas de um bebê. Já haviaassumido a posição de fuga em variadasocasiões na Sala de Ludoterapia.Talvez, ainda, sentisse que suacapacidade intelectual fosse a únicaparte dele decantada e valorizadapelos outros. Por que, então, havialutado tão extenuadamente paracancelar a exteriorização desta suacapacidade, em casa e na escola?

Seria porque, acima de tudo oque, de fato, desejava, era ser aceitocomo uma pessoa que era, em toda a suapolivalência e multiformidade deaspectos?

Seria porque desejava ser amadoe respeitado na sua heterogêneaglobalidade?

Como pode uma criança escondertão bem sua riqueza intelectual atrásde um comportamento paradoxal?

Como teria Dibs aprendido a ler,a contar, e resolver seus problemas? Asua habilidade neste aspectoultrapassa qualquer previsão para onível de sua idade cronológica. Como

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as teria adquirido, sem demonstrar aevidência de uma coordenada esignificativa linguagem verbal? A suaastúcia e o seu vigor eraminacreditáveis. Como pôde ocultarestas habilidades conquistadas de suafamília, como até então o fizera?

Seria extremamente interessantepreencher todas estas respostasvazias. Mas a mãe de Dibs e eutínhamos feito um acordo de que nãotocaríamos em tais questões. Apesardisto, desejava e acreditava que umdia ela se sentisse bastante segura eque partilhasse comigo alguns dos seusconhecimentos sobre a experiência dodesenvolvimento de Dibs. Além de tudo,é evidente que o aprimoramentointelectual sem o devido apoioemocional e estímulo à maturidadesocial não é bastante para bem viver.Seria esta a razão pela qual Dibsvivia insatisfeito com sua família? Ousua mãe amedrontava-se diante de suaincapacidade para compreender eatender Dibs?

Em qualquer das alternativasassumida, havia muitas e complexasrazões para explicar a deficiênciadaQuele relacionamento familiar.Precisava observar Dibs. Necessitavailuminar toda aquela floresta de "nãoentendimentos", para encontrá-lo.

Em minha frente, ele flutuavaentre o ato de sugar a mamadeira,retorno a um nível elementar decomportamento infantil, e uma precisa,quase compulsiva, demonstraçãointelectual.

Na verdade, Dibs continuavasentado na cadeira, mamando tranqüiloa fitar-me. De súbito, sentou-se deuma maneira ereta e firme, removeu obico da mamadeira e bebeu a água naboca da garrafa, entornando boa doseno chão.

-Olha ali as campainhas! disse,apontando para as duas cigarras,presas próximas à porta.

Segurou, de novo, a chupeta,mastigou-a, chupou-a, sempre com os

olhos presos em mim. Finalmente,aproximou-se olhando para os meus pés.Estava usando galochas vermelhas. Eleusava botas.

-Tire minhas galochas, ordenou,sacudindo seus dedinhos, para mim.

-Você acha que devo tirar minhasgalochas? -perguntei-lhe.

-Claro, sempre que entramos emcasa, devemos retirá-las.

Inclinei-me e atendi suasugestão, colocando minhas galochas emum canto da sala.

-Que tal agora? -Melhor, respondeu-me. Tentou recolocar o bocal na

mamadeira mas não conseguiu. Trouxepara mim.

-Eu não sei. Ajude-me, pediu-me.-Está bem, vou ajudá-lo.

Logo que acabei de recompor amamadeira, ele, de imediato removeu obocal derramando a água na pia. Virou-se e mostrou-me o recipiente vaziopara que visse.

-A garrafinha está vazia,queixou-se. -É sim. Você a esvaziou.

Dibs permaneceu perto da pia,segurando fortemente a mamadeira vaziaao encontro do seu peito. Fitou-me porum longo tempo. Olhei-o também,esperando que ele liderasse o caminhopara nossa conversa ou atividade, oucontinuasse ali, observando e pensandoem silêncio, se assim decidisse.

-Estou pensando, falou. -Estápensando?

-Sim. Eu estou pensando,reafirmou. Não o pressionei para quedissesse em que pensava. Queria queexperimentasse mais que um simplesexercício de perguntas e respostas.Queria que sentisse e vivenciasse oseu eu total em nosso relacionamento.Não desejava confiná-lo a um tiporestritivo de comportamento. Queriaque aprendesse que era uma pessoa comseus múltiplos aspectos, seus altos e

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baixos, seus amores e seus ódios, seusatos de pavor e coragem, seus desejosinfantis e seus interesses maduros.Queria que aprendesse pela experiênciaa responsabilidade de assumir ainiciativa de usar suas capacidadesnas suas relações com as pessoas. Nãodesejava dirigi-lo para um únicocanal, pelo elogio, pelas sugestões eperguntas insinuadoras. Poderia perdera essência da personalidade destacriança se lhe impingisse conclusõesprematuras. Esperava enquanto Dibsrefletia em silêncio. Um leve efugidio esboço de sorriso aflorou emseus lábios.

-Vou usar a tinta-a-dedo,brincar na areia e fazer uma festa comchá, decidiu.

-Está planejando o que farádurante o resto de nossa hora?

-É verdade, respondeu com umsorriso um pouco mais liberado. Maisuma vez você falou a verdade,acrescentou.

-Bem, isto é encorajador paramim. Ele riu. Foi um riso rápido. Masfoi a primeira vez que ouvi o seuriso.

-Vou preparar tudo para o chá,programou enquanto pegava a bandejacom as xícaras.

-Você vai preparar uma festa comchá em primeiro lugar?

-Sim. Penso que sim. Encheu amamadeira com água, mordeu o bico queainda não havia recolocado na garrafa.Entornou a água com toda a sua força,e fechou as portas do armário, onde apia estava encravada. Olhou-me,obviamente aguardando minha reaçãosobre sua atitude. Nada disse.

Atravessou a sala, encostou seucotovelo no peitoril, segurando agarrafinha em uma mão e mastigando achupeta. Fitava-me com insistência.Então, riu de novo, correndo na salaem direção ao armário. Abriu as portase entornou a água na pia. Depois dever a mamadeira vazia, reencheu-a.

Mastigou e sugou a chupeta. Emseguida, abriu uma das portas doarmário e olhou na prateleira, onde osuprimento de variados artigos estavaarmazenado. Olhou-me de novo.

-Vou retirar minhas calças deneve agora, disse apontando para a suaroupa externa, que vinha usando desdeo primeiro dia sem nunca haverinsinuado a vontade de removê-la.

-Você quer tirá-las agora? -Quero, respondeu.

No entanto, ao invés de executarsua vontade, voltou ao armário ecomeçou a examinar todos os objetosque se encontravam na prateleira.Pegou as caixas de argila. Expliquei-lhe que havia uma jarra com materialidêntico àquele já em uso sobre amesa, e que as caixas fechadas seriamabertas e usadas na medida em que aoutra estivesse terminada. Falei-lheque todo suprimento ali guardadodeveria ser usado quando fossenecessário.

-Ah! eu sei. Este é o seuarmário de suprimento, concluiu.

-Isto mesmo! -Minhas calças de neve! -

reclamou, olhando com ar de reprovaçãopara elas.

-Que você acha delas? -Está correndo um vento gelado

aí fora hoje, disse. -Sim, está muito frio, lá fora. -Aqui também está frio, disse.É sim. -Então, tiro minhas calças? -

perguntou indeciso. -Isto quem decide é você. Se

quiser tirá-las, não há problema. Mas,se não quiser, está certo também. Estáfrio aqui dentro hoje.

-É certo, concordou. Está muitoe muito frio.

O carrilhão da igreja anunciouas quatro horas, mas parecia que ele

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não se havia apercebido do fato.Correu para a areia, subindo nodepósito. Brincou com aviões esoldados. Suspirou.

-Tire suas botas sempre quandoestiver dentro de casa, recomendou.Mas, deixe as calças de neve porque éfrio aqui, hoje.

-Parece que há uma série decoisas que se deve tirar sempre quandose entra em casa e outras que se podecontinuar usando em recinto fechado ouao ar livre.

-É verdade, disse Dibs. Econfunde as pessoas.

-Estas regras geram confusão, àsvezes, -E muitas! -comentou, sacudindoa cabeça como um sinal de suacompreensão do problema,

Havia uma peque nina casa debonecas, de sala e quarto, no depósitode areia. Estava com uma das folhas dajanela quebrada. Dibs encontrou-a econsertou-a com eficiência. Ergueu umacaixa de pesado papelão querepresentava uma miniatura de fazendae que era sustentada por umaplataforma de madeira.

-D. A. ajudará você a consertá-la Dibs falou para Si mesmo. Você vaiajudar-me a endireitar, não é D. A.?

-Que você acha? -Você vai ajudar-me, respondeu. Iniciou sua tarefa recolocando

os animais na plataforma sem nenhumaassistência. Começou a cantarbaixinho, colocou a casinha no centrodo depósito de areia e os animaizinhosem volta, em diferentes lugares.Parecia estar completamente 'absorvidona sua atividade.

-Gatos vivem nesta casa, falou.O homem brigador tem um gato. Um gatode verdade. E aqui mora um pato. Opato não tem lagoa, mas queria teruma. Veja, aqui estão dois patos. Esteé o pato grande e bravo. E aqui umpatinho que não é tão bravo. O patogrande pode ter um lindo lago em algum

lugar. Mas o patinho não tem um lagoque seja seu, embora queira e queiramuito ter o seu próprio lago. Masagora estes dois patos se encontraramaqui e permanecem juntos, olhando ocaminhão que corre do outro lado dajanela.

Sua linguagem fluía comfacilidade e eficiência traduzindo assuas buscas e desejos. Observei que,enquanto ele falava. um grandecaminhão entrou no parque deestacionamento.

-Então o patinho precisava deuma lagoa tranqüila e segura que fossesua e talvez parecida com aquela que opato grande tinha?

-É isto mesmo. respondeu. Juntosestão olhando o enorme caminhãomovimentando-se. O caminhão estaciona,o homem vai até o edifício e ;traz ocarregamento para o seu carro gigante.

Quando terminar de transportar,vai embora para longe.

Dibs pegou o caminhão debrinquedo e brincava movimentando-o emsintonia com aquilo que para mimnarrava. Depois veio o silêncio. Umlongo silêncio.

-Dibs, você terá mais 5 minutos.Como de costume ele ignorou meu

aviso. Repeti-lhe. -Sim, já ouvi, anunciou exausto.-Bem, você me escutou falar que

daqui a cinco minutos deveremos deixaresta sala; mas ainda nada fez queindicasse que realmente me entendeu.

-Está certo. Mas respondi hápouco, explicou.

-Sim, depois que lhe perguntei. Estava tentando suavizar o final

da hora, para que não terminasseabruptamente sem uma preparação.

-Muitas coisas vão acontecer emcinco minutos, Dibs prenunciou.

Fez então uma estrada na areia,em frente e em volta da casinha.

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-Isto faz um barulho engraçadoenquanto corre na areia, disse,olhando-me e rindo. O caminhão estácheio. Quando ele anda faz uma marca,um sinal de caminho e vai jogando aterra por aqui.

Rapidamente agrupou ossoldadinhos e selecionou três deles eos fez embarcar no caminhão

Cobriu-os então com areia. -Estaé uma estrada de mão única, e estastrês pessoas que tomaram o caminhãonão vão mais voltar.

-Eles vão embora e ficarãolonge?

-É verdade, confirmou. E parasempre.

Empurrou o caminhão na areia. Emseguida os enterrou. Jogou mais areiasobre ele. Sentou-se e fitou ovolumoso monte que havia feito.

-Veja! Dibs, falei-lhe. Faltamestes minutinhos mais (mostrei-lhetrês dedos) .

Reclamou com o seu olharsôfrego. -Três minutos mais, repetiu.

Acrescentou mais areia em cimado monte já feito, reforçando oenterro do caminhão e das três pessoasaté então não especificadas.

-Agora, patinho, falou elegentilmente, você viu o que aconteceu.Eles foram embora. Tomou, então, opatinho e colocou-o bem no topo dacolina, que sobre os sepultados fizeraelevar-se. Limpou suas mãos, sacudindoa areia e afastou-se dali.

-Ah! -hoje é dia de S. Valentim,falou subitamente.

-É, sim. -Deixe-os aqui durante toda a

noite e todo o dia, disse. Não os tiredaí debaixo.

-Você quer que sejam mantidosjustamente no lugar em que você osdeixou?

-Sim, respondeu.

Veio até junto de mim e tocou nopequenino bloco de notas que estavasobre meu joelho.

-Escreva também isto nas suasnotas, sugeriu. Dibs veio. Ele achou aareia interessante hoje. Dibs brincoucom a casinha e os soldados pelaúltima vez. Adeus.

Apanhou seu casaco e chapéu eretirou-se da sala de brinquedo,dirigindo-se pelo corredor para a salade recepção. Sua mãe ajudou-o a vestirseu agasalho e colocou o seu gorro.Foi embora sem mais nenhuma palavra.

Voltei para meu escritório esentei na carteira. Que criança!Alguém poderia especular, interpretare provavelmente ser muito justo emconcluir a riqueza da significação doseu brinquedo simbólico. Entretanto,isto não parecia ser desnecessário,redundante, e talvez até mesmorestritivo -ter de verbalizarinterpretações.

Na minha opinião, o valorterapêutico deste tipo de ajudapsicológica é baseado na experiênciada própria criança, como um ser capaz,como uma pessoa responsável em umrelacionamento que tenta comunicar-lheduas verdades básicas: que ninguémconhece realmente tanto do mundointerior de um ser humano quanto opróprio indivíduo; e que a liberdaderesponsável cresce e desenvolve-se apartir do interior da pessoa. Acriança deve, antes de tudo, aprendera respeitar-se a si mesma e aexperimentar um sentimento dedignidade que desabrocha do seucrescente auto-entendimento.

Só, então, lhe será possívelapreciar com autenticidade aspersonalidades, direitos e diferençasdos outros.

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CAPÍTULO VII Dibs sorriu ao entrar, na semana

seguinte, no Centro de OrientaçãoInfantil. Cumprimentou-me e estavaansioso para retomar à sala debrinquedos. Encaminhou-se à minhafrente. Logo que penetrou no recintoprocurou a casinha de bonecas.

-Isto está diferente! -reclamou.As coisas foram trocadas de lugares.

-Alguém deve, provavelmente, terbrincado com eles.

-Sim, concordou Dibs. Elerodopiou em volta, inspecionando odepósito de areia.

-E os animais também não estãono lugar em que os deixei, queixou-se.

-Possivelmente, uma outracriança esteve brincando com elestambém.

-Veja como ficou tudo! -disse.Parando no meio da sala, ficou atentoa escutar algo. Você está ouvindo obarulho da máquina de escrever? Alguémdeve estar datilografando.

-Sim, estou ouvindo. Dibsmantinha o seu esquema de restabelecersua aparente segurança, tratando osobjetos inanimados como principalassunto, na sua conversação. Istoservia-lhe de uma defensiva, quandoqualquer atitude lhe desagradava.Estava triste porque os brinquedos nãoestavam nos lugares, onde os haviacolocado. Ele havia pedido para quenão fossem trocados de lugar, quandosaiu da última sessão. Nada lheprometemos nem lhe explicamos.

Aliás. foram, mesmopropositadamente, evitadasjustificativas, pois parecia-meimportante para Dibs, como para todasas crianças, aprender, pelaexperiência, que nenhuma parte do seumundo é estático e controlável. Agoraque havia se defrontado com a concretaevidência da mutabilidade do seuambiente, seria prioritário trabalharcom suas reações e não tentartranqüilizações superficiais, longas

explicações ou ainda desculpas. Todasestas alternativas seriam traduzidasem palavras, palavras e palavras. Masa experiência lhe possibilitariaavaliar sua própria habilidade paraassumir a dinâmica surpreendente domundo em permanente processo.

Aproximou-se mais ainda dodepósito de areia e observou aplanície em que sua colina havia sidotransformada. Examinou as figurasespalhadas ao seu redor.

-Onde está o meu patinho? -perguntou. -Você está imaginando o queteria acontecido com o seu patinhodepois que o deixou no cume do montede areia?

-Sim, respondeu zangado,virando-se para poder fitar-me. Ondeestá o meu patinho?

-Você havia dito que o queriaconservado no mesmo lugar em que odeixou. Mas alguém mais brincou aqui.

Tentei recapitular-lhe asituação. Deste modo, possibilitariaum conhecimento mais profundo de suasreações e uma identificação maisapurada dos seus sentimentos epensamentos.

Dibs veio caminhando para bemperto de mim e penetrou o seu olharnos meus.

-Por que você permitiu isto? -inquiriu em tom enfático.

-Você acha que seria minhaobrigação zelar para que os seusbrinquedos permanecessem inalterados?

-Acho, respondeu. E sinto raiva.Raiva de você. Não devia ter deixadoque isto acontecesse.

Agora deveria fazer-lheperguntas mais incisivas e decisivas.

-Por que? Prometi a você que osguardaria intocados?

Baixou o olhar e respondeu quenão, com a voz sussurrante.

-Mas você queria que fizesseisto? -Sim, murmurou. Queria muito que

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os mantivesse em seus lugares, só paramim.

-Outras crianças tambémfreqüentam esta sala e brincam comestes objetos. Alguma delas, semdúvida, pegou o seu patinho.

-E a minha montanha? -insistiu.O pato estava bem em cima da montanha.

-Bem sei. E agora sua montanhatambém não está lá, como antes, não é?

-Tudo estragado! lamuriou-se. -Evocê sente-se zangado e desapontadopor causa disto, não é, Dibs?

Sacudiu a cabeça concordando.Olhou para mim. Fitei-o. O que poderiade fato ajudá-lo não seria a colina deareia, nem o poderoso patinho deplástico, mas o sentimento desegurança e adequação que elessimbolizaram na criação que Dibselaborara na semana anterior. Agoraque os símbolos objetivosdesapareceram, esperava que pudessevivenciar sua coragem ao enfrentareste desapontamento e abrir-se para assurpresas do desconhecido.

Embora, algumas vezes, possamoscontrolar em parte o ambiente à nossavolta, nada mais decisivo que aprendera utilizar nossas infinitas forçasinteriores. Com elas carregamos asegurança em nosso redor.

Dibs sentou-se do lado dodepósito de areia.

Silenciosamente. Olhava asfiguras dispersas e passou a recolhê-las e agrupá-las segundo a suasemelhança. Levantou-se e pegou meulápis e tentou esgravatar um dosburacos, onde um dos animais apoiava-se. Quebrou a ponta do lápis.

-Ah! Olhe só! A ponta quebrada!E agora o que vai fazer? Perguntou-meenquanto me devolvia o lápis.

-Vou lá fora apontar o lápis,Dibs. Voltarei logo. Você poderá ficaraqui.

A nossa sala de brinquedos erafreqüentemente usada para pesquisas

sobre o comportamento infantil. Tambémera o local onde desenvolvíamos nossoprograma de aperfeiçoamentoprofissional. O que parecia ser umimenso espelho decorativo, revestindotoda a parede, era, na realidade, umvidro transparente que permitia avisão de um único lado. Atrás dali, emum quarto escuro, um ou maisobservadores, selecionados comcritério e especialmente treinados,movimentavam os gravadores eelaboravam relatórios com descriçõescronometradas dos comportamentos. Maistarde, as gravações eram transcritase, novamente, redigidas, incluindo aconduta observada, da criança e dapsicóloga. Este material constituíauma fonte de dados para pesquisas, ediscussões, em nossos avançadosseminários de doutoramento. Todos osnomes e informações identificadoraseram mudados antes que fossemutilizados. Por outro lado, em nossotrabalho, há tanta similitudefundamental em torno dos problemaspsicológicos que, embora uma pessoapudesse sentir que o materialdivulgado estava sendo identificado,no caso dos brinquedos da criança, osdados podem não oferecer nenhumaindicação significativa.

Assim, quando saí da sala paraapontar o lápis, o observador por trásdo espelho continuava a sua gravação.

Dibs apanhou a pá e enterrou-ana areia. -Está bem, areia, falou.Você acha que pode permanecer aqui,agora e não ser mais perturbada? Etodos os animais e pessoas também? Voumostrar-lhes várias coisas. Vouescavar. Vou encontrar o que procuro.Encontrarei o homem que enterrei. Voucavar e escavar até encontrá-lo.

E assim fez. Trabalhou comagilidade e obstinação até queencontrou o primeiro dos soldadinhos.

-Bem, aqui está você, dissevitorioso. Agora quem está na minhamira é aquele homenzinho lutador, queestá em pé, tão duro e firme, queparece até um ferro velho pendurado na

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cerca. Logo que o ache, vou colocá-loaqui de cabeça para baixo. Vouarrancá-lo de dentro desta areia aqualquer preço.

Enfim, puxou o soldado.Enterrou-lhe a cabeça na areia eempurrou-o mais e mais, até que o viusubmergir totalmente. Limpou suasmãos, sacudindo-as uma de encontro àoutra. Sorriu. Gargalhou. Então aexpressão de sua voz transformou-senum tom de canção e festa.

-Tire seu chapéu e casaco, Dibs.Está frio aqui, disse depois depassado algum tempo.

Voltei com o meu lápis com pontafeita. Dibs olhou-me.

-Está frio aqui, repetiu. Tirameu casaco?

-Bem, está mesmo frio. Talvezseja melhor conservar sua jaquetahoje.

-Ligue o aquecedor, disse,atravessando a sala e tocando-o.

-O aquecedor está frio, avisou. -Sim. Eu sei. -Vou ligá-lo, preveniu, enquanto

tentava executar o seu plano. -Você acha que vai ficar mais

agradável agora? -Sem dúvida, desde que tenha um

foguinho lá em baixo. -Fogo lá em baixo? -No forno do regulador central,

respondeu. E fica sempre no andarsubterrâneo.

-Ah! o sistema central não estáfuncionando hoje. Os homens estão láembaixo consertando-o.

-O que é que há com ele?perguntou. -Não sei.

-Mas poderia procurar saber,comentou. -Deveria? Como?

-Poderia ir lá em baixo, nosubsolo, e ficar rondando, por perto.Um pouco fora do caminho, ao lado do

material. De quando em quando,arriscaria uma olhadela, sempreconservando seu ouvido atento àsexplicações dos operários.

-Ah! Então você acha que deveriaagir desta maneira?

-Por que não? -perguntou. -Para falar a verdade a você,

Dibs, nunca me ocorreu tal idéia. -E o que você está perdendo!

Quantas coisas interessantes poderiaaprender deste modo, testemunhou.

-Estou certa disto. A certeza de que Dibs havia

aprendido muito dos seusconhecimentos, daquela formaassistemática, estimulado pela suaprópria curiosidade, afirmou-se emmim. Ficando por perto. fora docaminho, ao lado do material,arriscando olhadelas furtivas emantendo seus ouvidos presos àsexplicações sobre o assunto.

Atravessou a sala, abriu oarmário e examinou dentro.

-Aqui está tudo vazio, comentou.-É verdade.

Dibs queria exibir-me todas assuas observações.

-Está muito frio para tirarminhas calças de neve, hoje, afirmou.

-Também acho. -O fomo de aquecimento já não

estava funcionando bem desde quinta-feira passada, falou.

-Provavelmente foi isto mesmo. -Mas por que parou de vez? Por

quê? -insistiu. -Não sei. Nunca estudei a

maneira como o aquecimento quebra. Nãosei muita coisa sobre isto.

Dibs gargalhou. -Você apenas sente quando está

frio, disse. -É isto mesmo, Dibs.Enquanto está aquecendo adequadamente,creio que tudo deve estar funcionando

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bem. E não me preocupo. Quando oaquecimento fica interrompido, sei queo aparelho está precisando de reparos.

-Sim. Só então você observa queestá parado, disse.

-É. Só assim eu noto. Dibs vagueou, aproximando-se da

mesa e apanhando a mamadeira, sugou aágua que ela continha. Parava, de vezem quando, para um comentário.

-D. A. não está usando galochas,observou. -É sim. Não as calcei hoje.

-Que bom! --expressou-se,empurrando uma cadeira para um armáriode três quinas que estava no canto dasala.

Uma das suas portas havia sidocortada em forma de um quadrado e nelacolocada uma cortina. Era um teatro defantoches. Dibs subiu na cadeira,abriu a cortina e olhou para dentro dopalco.

-Vazio! -exclamou. De novo,empurrou a cadeira para perto da pia,ergueu-se e examinou o interior doarmário verificando que também estavavazio.

-Não há nada nestes armáriosaltos, avisei-lhe.

Ele, no entanto, quis comprovarpela sua própria observação averacidade das minhas palavras.Verificou os armários um por um. Puxoua cadeira para fora do caminho,permitindo que abrisse as portas queencobriam a pia. Abriu a torneira,tirou o bocal da mamadeira, enquantoque a água penetrava e transbordava norecipiente com força. Encheu amamadeira, despejou em seguida a águae guardou a chupeta em cima da mesa.Fechou a torneira, pegou o revólverenchendo-o de areia, acionou o gatilhoe tentou atirar. Não conseguiu. Aareia caía em gotas no chão. Sentou-seao lado do depósito de areia e renovoua carga. De novo, tentou disparar.

-Isto não funciona deste jeito,concluiu. Limpou a borda do depósito

de areia e sentou-se, de frente paramim. Começou a apanhar os animais queestavam espalhados, conversandoenquanto agia.

-O galo canta, mas a galinha põeovos. E os dois patos estão nadando.Ah!, já sei, eles conseguiram ter seupróprio lago, seu laguinhoespecialmente deles. O patinho falou-"qua! qua! qua!" e o pato grandetambém falou -"qua! qua! qua! " Enadaram juntos em volta do seu lago,tranqüilo, pequenino e seguro. Bem, oque mais? Dois coelhinhos, doiscachorros, duas vacas, dois cavalos,dois gatos. Sempre aos pares, dois adois. Ninguém está sozinho aqui.

Apanhou a caixa vazia, onde ossoldados eram geralmente guardados.

-Esta é a caixa de todos oslutadores, apresentou-me. Deve serguardada sempre muito bem fechada.

Ajoelhou-se na borda do depósitopara melhor examinar a casinha.Circulou em torno dela.

-Nenhuma pessoa mora nesta casa,somente um gato e um coelho, comentou.Marshmallow é o nome do coelho danossa escola, acrescentou, dirigindo-me seu olhar. Nós o guardamos em umagrande jaula num canto de uma denossas salas. Às vezes o deixamos sairpara correr e pular em volta, parasentar e pensar.

-O gato e o coelho moram juntosna casinha? E o nome do coelho éMarshmallow?

-Bem, o nome do coelho daescola, interrompeu-me Dibs para fazera distinção. -Não este coelhinho quemora nesta casa com o gato. Mas, sim,o coelho que temos na nossa escola.Aquele é chamado Marshmallow. É muitogrande e todo branco, um poucoparecido com este aqui, este coelhinhode brinquedo. Foi por isto que ele melembrou o outro.

-Ah! -o coelhinho domesticadoestá na escola. -O coelho enjaulado,corrigiu-me. Mas vez por outra

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deixamos que ele saia com liberdade.E, algumas vezes, quando ninguém meestá vendo eu abro a porta para queele fuja.

Esta foi a primeira referênciaque Dibs fez sobre sua escola.Imaginava como estava procedendo lá,agora. Seria sua conduta semelhante àque observei no dia em que nosencontramos pela primeira vez?

Logo que recebi o assentimentoescrito de sua mãe, avisei a diretorado estabelecimento de ensino. Disse-lhe, com honestidade, que não sabiacomo Dibs reagiria às sessões deterapia. E queria colocar-nos àdisposição da equipe docente eadministrativa. Aceitaria, sempre debom grado, qualquer convocação paraparticipar de outra conferênciarelacionada à problemática de Dibs oupara escutá-los sobre algumaobservação que julgassem oportuna eimportante para o meu conhecimento.

Assim procedi, porque seria maisobjetivo obter informações nãosolicitadas diretamente por mim, doque respostas às minhas questões,desde que estava envolvida na terapia.No entanto, nada mais me foinotificado pela escola.

Estava interessada na observaçãoque Dibs havia feito sobre o coelhinhoda escola. Era um indício de que,embora não fosse um membro ativo eparticipante do grupo, mantinha-seobservando, aprendendo, refletindo,extraindo conclusões, enquantoengatinhava em volta, ao lado dostrabalhos. Seria, realmente,interessante saber qual o seucomportamento na escola e em casa. Semdúvida, seria também interessante,para aqueles que conheciam Dibs sabero que ele expressava na Ludoterapia.Entretanto, não tencionava mudar asdiretrizes de procedimento que haviaadotado, pois a minha preocupaçãoprioritária era com a percepção atualde Dibs a respeito do seu mundo, doseu relacionamento, dos seussentimentos, do desenvolvimento dos

seus conceitos, das suas conclusões,deduções ,e inferências. Podiaimaginar Dibs abrindo a porta para queo coelho enjaulado vivesse a sualiberdade. Podia compreender o impulsoque o predispôs a esta atitude.

Dibs continuava o seu brinquedo.Ergueu a cerca de papelão em volta dosanimais.

-Farei uma porta na cerca,avisou, enquanto cortava e dobrava opapelão para fazer a abertura. Assimos animais poderão sair quando bemquiserem.

-Estou vendo. Apanhou, então,vários pedacinhos de papelão de formasmuito originais para delimitar acerca, e os examinou detalhada ecriticamente.

-Isto é. ..Isto é. .., falava,tentando definir o objeto. Bem, isto éum pedaço de nada. Assim é que o nadadeve ser, concluiu levantando-os paraque eu pudesse vê-los.

Ouvindo-o, percebi quão acuradahavia sido aquela sua inferência.

-Este homem aqui tem umaespingarda, comentou. Este estámontado a cavalo. Aqui estão maissoldados. Que tal enfileirá-los àborda do depósito de areia? Ah!, jásei! Vou colocá-los na caixa, disse,executando seus planos. Este caminhãoestá, mais uma vez, abrindo umaestrada em volta da casa. O coelho e ogato estão olhando pela janela. Apenasobservando.

Dibs sentou-se ali com as mãosentrelaçadas em seu colo, olhando paramim, em completo silêncio. A expressãode sua face era séria, mas seus olhosfaiscavam, revelando seus pensamentos.Inclinou-se para aproximar-se mais demim.

-Hoje não é o dia daIndependência, falou. E não será atéque chegue o dia quatro de julho. Mas,quatro de julho será uma quinta-feira.

-Daqui a quatro meses e 2semanas, eu virei aqui neste dia,

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conversarei com D. A. Olhei nocalendário para saber se primeiro dejulho caía em uma segunda-feira.Então, terça-feira é dia dois, quarta-feira é dia três. Quarta é quase o diada Independência, mas ainda não é.Então, vem quatro de julho que é o diada Independência e é justamente umaquinta-feira -dia da semana em que avejo, comentou, segurando o coelhinhode brinquedo. Quarta-feira, três dejulho será um longo dia, terá comotodos os dias do ano unta manhã, umatarde, uma noite. Então virá a luz damanhã seguinte. Dia da Independência!Quatro de julho, quinta-feira, e euestarei aqui!

-Você deve gostar realmente devir aqui. -Ah!, e como gosto. Gostotanto!, reafirmou sorrindo. O dia daIndependência é o dia dos soldados emarinheiros, falou, alterando sua vozcom uma tonalidade suave e moderada.Os tambores tocam: "Bum, bum, bum." Eas bandeiras são penduradas para foradas casas, acrescentou, cantarolandouma marcha.

Parou a conversa e voltou aescavar a areia. Com ela encheu ocaminhão. Empurrou-o, fazendo-ocircular por ali.

É um dia festivo, continuou. Diada Independência. E os soldados estãotodos vibrando de alegria. Na verdade,estão proclamando a liberdade edestrancando todas as portas.

A beleza e a força de linguagemdesta criança eram impressionantes. Epensar que toda esta capacidade deexpressão havia crescido e florescido,embora reprimida e encoberta, naimpetuosidade do seu medo, solidão eansiedade. Mas, agora que começava aentender o seu medo, e a descobrirverdades, Dibs ia crescendo edesabrochando. Estava trocando seupavor, sua raiva e suas angústias pelaesperança, confiança e alegria. Suaprofunda tristeza e o seu sentimentode derrota estavam dissolvendo-se.

-Você também sente aquelaalegria, não é verdade, Dibs? ,perguntei-lhe depois de um pequenointervalo.

-É uma alegria que não queroperder, confessou. Ela vem como afelicidade nesta sala.

Examinei-o, sentado junto aareia, irradiando um sentimento depaz, que estava experimentando naqueleinstante. Parecia tão pequenino, eassim mesmo tão cheio de fé, coragem egrandeza, que percebi e senti a forçade sua dignidade e firmeza.

-Venho com alegria para estasala, declarou. Quando saio é comtristeza.

-É assim? Nenhuma dessasalegrias, aqui experimentadas, vai comvocê?

Dibs enterrou três soldadinhosna areia. -Isto os faz infelizes. Nãopodem ver, não podem ouvir, não podemrespirar. Dibs, desenterra-os logo,ordenou a si mesmo. Você não sabe queestá quase na hora de ir embora? Seráque quer deixá-los enterrados, Dibs?

-Daqui a cinco minutos estará nahora de ir. Decidiu deixá-losenterrados?

-Vou brincar com os soldadosaqui no chão, disse, saltandorapidamente para fora da areia. Voufazer uma fila com eles de acordo como tamanho.

No pular, caiu sentado no chão.Arrumou os soldados e voltou para aareia em busca dos restantes que haviasoterrado. Escolheu um deles,verificou com cuidado todos os seusdetalhes e segurando-o exibiu-o paramim.

-Este é papai, declarou. -Ah! este é o papai, não é? -

Sim, respondeu. Em minha frente, Dibs permaneceu

agarrado ao soldado-papai, em um sérioconfronto. Fechou bem seu própriopulso e espancou-o. Ergueu-o e bateu-

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lhe mais e mais. E, de novo, repetiu asurra por várias vezes.

-Estão faltando quatro minutos?perguntou. -Certo. Faltam quatrominutos.

-Então, estará na hora de voltarpara casa afirmou.

-Exatamente. Continuou a brincar com o

soldado-papai, colocando-o em pé paraem seguida fazê-lo cair pelo efeito desuas pancadas. Novamente, interrompeupara confirmar se, de fato, ainda lherestavam três minutos.

-Certo. E então estará na horade você voltar para casa.

Repeti-lhe a sua previsãoanterior, já por ele expressa, maispara reforçá-la do que para chamar-lhea atenção sobre um fato do seuconhecimento.

-É verdade. E mesmo que nãoqueira ir para casa, estará na hora deir para casa, Dibs concluiu.

-É sim. Mesmo que você nãoqueira ir, estará na hora de ir.

Dibs concordou e deu um longosuspiro. Manteve-se em absolutosilêncio durante um minuto. Queextraordinário sentido de tempo tinhaaquele garoto!

-Dois minutos agora? -Sim. -Voltarei na próxima quinta-

feira, afirmou. -Voltará, é claro. -Amanhã é o dia do aniversário

de Washington. É sexta-feira. Sábado éum dia vazio. Sem significado. Domingoé dia vinte e quatro. Então virásegunda-feira e voltarei para aescola, anunciou com um lampejo dealegria no olhar.

Embora o seu comportamento nãoindicasse, a escola significava muitopara ele. Embora os seus professoresse sentissem perplexos, frustrados ederrotados, haviam atingido Dibs. Elesabia o que ocorria na sua classe. Amarcha que há pouco cantava,

provavelmente, era uma das que haviamsido ensinadas às crianças na escola.Marshmallow era seu animalzinho deestimação, mais que um bichinhoenjaulado. E também compunha uma dasexperiências escolares. Pensei naconferência de que participamos no seucolégio. A narrativa de D. Jane sobreo seu monólogo acerca dos princípiosda atração magnética ocorreu à minhamemória. As professoras deveriam estarsendo guiadas pelo seu coração. Naverdade, nunca sabemos quanto do queapresentamos a uma criança é por elaaceita.. Cada uma tem o seu própriocaminho para integrar o novoconhecimento na sua estrutura deexperiências, na qual se apóia nabusca e construção do seu mundo.

-Receberemos a revista da escolaprimária na segunda-feira, falou Dibs.E sabe? Desta vez, sairá com uma capacolorida amarelo brilhante, azul ebranco. Terá trinta páginas. Há umcartaz no jornal mural, na entrada,que anuncia todos estes detalhes. Odia seguinte será terça-feira. Depoisvirá a quarta-feira. E então quinta-feira. Na quinta-feira estarei aqui,de novo.

-Você já fez uma previsão geralda próxima semana, não foi? Dia doaniversário de Washington, ojornalzinho da escola, todos os outrosdias e enfim de volta à nossa sala debrinquedos.

-É sim, respondeu. –“Você jápode ler com compreensão e eficiência”comentei com os meus pensamentos semnada exteriorizar a este respeito.Estava acertando a sua habilidade paraleitura como natural. Embora fosseobviamente um excelente leitor, istonão era suficiente para ajudá-lo noseu desenvolvimento global e efetivo.

-Um minuto mais? perguntou. -Sim, um minuto mais.

Segurou a figura que haviaidentificado com o seu papai earremessou-a dentro do depósito deareia.

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-Papai é quem vem me buscar hojeaqui, contou-me.

-É? , perguntei numa exclamação,pois senti que o papai estavacomeçando a emergir no mundo de Dibs.

-Sim, respondeu fitando-me. E olhamo-nos então em silêncio.

O tempo esgotara-se e nós dois distosabíamos, mas nenhum de nós sepronunciou a respeito. Finalmente Dibslevantou-se.

-O tempo acabou!, anunciou comum profundo suspiro.

-É, acabou. -Eu quero pintar, disse Dibs. -Você quer dizer que não quer ir

embora. Saiba que está na hora. Dibs levantou os olhos ao

encontro dos meus. Havia a vacilanteluz da promessa de um sorriso na suaface. Inclinou-se e com rapidezmovimentou todos os soldadinhos queestavam enfileirados no solo. Alinhou-os todos com a mira em minha direção.

-As armas são úteis quando elascomeçam a atirar, exclamou.

-É, sim. Apanhou seu chapéu e caminhou

para a entrada. Fui com ele. Desejavaconhecer o Papai.

-Até mais, despediu-se Dibs. -Até mais. Até quinta-feira,

Dibs. Papai olhou-me furtivamente,

cumprimentando-me segundo a etiqueta.Pareceu-me um homem embaraçado.

-Papai, disse Dibs. Você sabeque hoje não é o dia da Independência?

-Vamos, Dibs, estou com pressa. -E não será antes de julho,

persistiu. Mas será em uma quinta-feira, e faltam quatro meses e duassemanas.

-Vamos, Dibs, respondeu como sesentisse constrangido ao máximo pelaconversa de Dibs, que, possivelmente,

lhe soava como sem sentido evexatória, -isto, se, na realidade, aomenos estivesse escutando-o.

-O dia da Independência, Dibstentou de novo, é quatro de julho.

O seu Papai empurrou-o para forada porta, resmungando entre os dentes.

-Será que você pode parar estebate-boca sem sentido?

Dibs suspirou. Foi como se elepróprio murchasse o seu esplendor.Saiu silencioso com o seu pai.

A recepcionista olhou-me. Nãohavia outras pessoas na sala deespera.

-Bode velho!, exclamou ela,indignada. Por que não vai dar os seuspulos às margens do rio?

-É sim, concordei. Seria uma boaidéia. Voltei à Sala de Ludoterapiapara reorganizá-la para a próximacriança. Os observadores vieramajudar-me. Um deles falou-me o queDibs havia dito, enquanto saí dorecinto para apontar o lápis. Colocouo gravador para reproduzir o monólogo.

-Puxa! Que garoto! Um delescomentou.

E como ele é perceptivo,pensava. Tão duro e firme. Parece umferro velho pendurado na cerca.

É isto que você é. Senti-medesejosa de enterrar o Papai na areiae ali conservá-lo por toda uma semana.Ele não tinha ouvido a criança. Dibstentou conversar com ele, mas elecancelou o bate-boca sem sentido. Dibsdeve ter uma força interiorextraordinária para não deixarsucumbir sua personalidade, face aestes constantes ataques.

Às vezes, é muito difícilconservar na mente o fato de quetambém os pais têm razões paraexplicar sua conduta, razões que sãotrancadas nos profundos abismos desuas personalidades e que os impede deamar, de compreender e de dar-se àssuas próprias crianças.

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CAPÍTULO VIII O telefone chamou-me muito cedo

na manhã seguinte. Era a mãe de Dibsque solicitava uma entrevista paraela. Desculpou-se por fazer estepedido e, de imediato, acrescentou queentenderia se não a pudesse receberface aos meus compromissos. Estudeiminhas possibilidades no meucalendário e ofereci-lhe váriasalternativas de horários: um naquelamesma manhã, outro na tarde daqueledia e, ainda, um possível na 2.", 3.8e 4.8 feiras. Ela tinha um amplo lequede escolha para sua conveniência. Noentanto, senti sua hesitação quando meperguntou qual o horário que eupreferia, sugerindo-me que indicasse asua hora. Expliquei-lhe que para mimnão faria nenhuma diferença e operíodo que lhe parecesse melhor seriasatisfatório para mim. Falei-lhe queestaria no Centro em todos aqueleshorários e que assim poderia ficar àvontade para optar pelo quepreferisse. De novo vacilou. Depois deum considerável intervalo tomou suadecisão.

-Então irei hoje mesmo às 10horas. Muito obrigada. Apreciei muitoa sua consideração.

Fiquei imaginando o que a haviaestimulado a tomar aquela decisão.Estaria contente, insatisfeita outriste com Dibs? Teria o seu maridoreagido desfavoravelmente a partir desua rápida visita ao Centro, no diaanterior, quando veio apanhar Dibs?Enfim, faltava menos de 1 hora parainiciarmos a entrevista marcada eentão iríamos conhecer um pouco maissobre a situação.

Seria difícil prever como aconferência se desenvolveria. A mãedeveria estar perplexa com odesenrolar do processo e não ser maiscapaz de exercer o controle sobre asituação como antes. Então, de novo,advir-lhe-iam as crises deinfelicidade, de frustração, e umsentido de inadequação pessoal e dederrota, que, sem dúvida, a incitaram

a buscar uma oportunidade dedividir.pelo menos, uma parcela do seufardo com uma outra pessoa. Seriaextremamente importante não assustá-lacom veladas ameaças e tentarcomunicar-lhe um sentimento desegurança confidencial naquelaconferência. Estava certa de que estaentrevista deveria ser-lheextremamente difícil e emocionalmenteexaustiva, independente de como elausasse o tempo -quer permanecessesilenciosa, ou conversasse sobreassuntos superficiais e seguros, ouformulasse perguntas e falasse umpouco de sua estória tão hermética efechada. Seria minha responsabilidadecomunicar-lhe, com a major empatiapossível, que a sua intimidade, o seumundo pessoal lhe pertenciam, de fato,e que só a ela caberia decidir sequeria abrir a porta e deixar-mecompartilhar de alguns aspectos dele.Esperava que sobretudo minhas atitudestransbordassem esta filosofia pessoal.Bem, se ela decidisse abrir-se para oencontro, não a apressaria e n~mtentaria arrancar-lhe qualquer pedaçoque pela sua livre vontade nãooferecesse. Não arrombaria as suasportas, mas confiaria no seu desejo deabrir o seu mundo em um encontro comoutra pessoa. E se, porventura, eladecidisse conservar suas portasfechadas, sem dúvida, não alimentariaa intenção de nem de leve bater.Deixaria que, à hora certa, ela mesmatentasse abrir-se sem pressõesexteriores.

Seria muito interessante ouvi-lafalar sobre Dibs e sobre si mesma,mas, bem mais importante, erapossibilitar-lhe a experiência desentir sua dignidade de pessoarespeitada e reconhecida como um serúnico, dono de sua vida íntima epessoal.

A hora combinada, a mãe de Dibschegou ao Centro. Fomos, então,imediatamente, para meu escritório.Ela havia falado comigo que não sesentiria bem se tivesse que esperar nasala de recepção. Desde que ela marcou

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a sua entrevista para a hora maispróxima que lhe foi oferecida,pareceu-me que seria indelicado expô-la a esperas, sem necessidade.

Sentou-se na cadeira junto deminha escrivaninha, à minha frente.Estava muito pálida. Esfregava suasmãos entrelaçadas, seus olhosesvoaçavam em várias direções, e, dequando em quando, um relance me eraespecialmente dirigido. E o olhar, denovo, empreendia sua fuga. PareciaDibs quando o observei pela vez 1.8 naSala de Ludoterapia. Ofereci-lhecigarro.

-Não, muito obrigada, respondeu.Deixei o pacote na mesa e ela entendeuo gesto.

-Não fumo, avisou. Mas se vocêfuma, por favor, fique à vontade.

-Também eu não fumo. Guardei opacote na gaveta da mesa mais paraquebrar a tensão dos primeiros minutosdo que por qualquer outro motivo.Depois, voltei a olhá-la -havia umaexpressão de ansiedade e pânico no seuolhar. Sentia ser importante nãoempurrá-la para a discussão de seusproblemas; não assumir a liderançapela exteriorização de perguntas; nãofazer daquela sessão uma conversa sobtrivialidade. Se ela encaminhasse aentrevista para um destes caminhos,seria diferente. Quanto a mim, umaatitude destas representaria a própriademissão dos meus objetivos daqueleencontro. Havia sido ela quemsolicitou a conferência. E deveria tersuficientes razões para fazê-lo. Se ainiciativa houvesse sido minha, aresponsabilidade de conduzi-la teriaoutros aspectos.

Momentos cruciais e decisivos emqualquer entrevista são os iniciais,que condicionam, em parte, aeficiência da experiência total.Tentar explicar as finalidades de taletapa é algo tão estéril, que não medeterei em maiores explicações ou emqualquer "estruturação da vivência"como, em termos gerais, se denomina. O

silêncio não me fez sentir embaraçada.Estava confiante que ela teria força ecoragem de vencer aqueles minutosconstrutivamente e não deveria ser eua iniciar a conversação para aliviar o"gelo" do silêncio. Afinal de contas,não queríamos uma conversa de rótulo.

-Não sei por onde começar,falou. -Compreendo. Às vezes é difícilcomeçar. Ela sorriu, embora o seusorriso não transbordasse nenhumaalegria.

-São tantas as coisas a dizer etantas a não dizer. ..

-Geralmente é assim. -Certos fatos são melhores

quando guardados em silêncio, disse,olhando-me bem diretamente.

-Às vezes, assim parece. -Mas o volume de eventos

silenciados, contidos, podem tornar-seum grande fardo, confessou.

-Sim. Isto pode acontecertambém.

Sentada ali, com olhar perdidona ampliação que a janela lhe permitiavislumbrar, permaneceu em silêncio porum longo tempo. Começou a relaxar-seum pouco.

-Que vista linda se descortinade sua janela! Aquela igreja éencantadora. Parece tão grande e fortequanto cheia de paz. -É, sim. Baixouseu olhar. Deparou com suas mãosentrelaçadas com sofreguidão. Nossosolhares se encontraram. Percebi-lhe aslágrimas. -Estou muito preocupada comDibs. Muito. Terrivelmente preocupada.Não havia previsto este comentário,mas tentei aceitá-lo com toda anaturalidade. -Preocupada com Dibs?Nada mais perguntei, nem mesmo oporquê. -Sim, reafirmou. Estou muito emuito preocupada. Nestes últimos diasele parece estar muito infeliz.Permanece por perto de mim, olhando-mesempre, sempre silencioso. Sai do seuquarto com maior freqüência, masmantém-se ao lado das coisas como asombra de um fantasma. E, quando, falo

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com ele, então, foge para longe.Somente retoma para de novo acusar-mecom a trágica tristeza do seu olhar,confessou-me, enquanto apanhava umlenço para enxugar seus olhos. Estaera, na verdade, uma informaçãopreciosa. Dibs agora estava saindo deseu quarto com maior freqüência. E deacordo com sua narrativa, aparentavamaior infelicidade. Poderia ser queela estivesse mais consciente do seusofrimento, agora, mais do que nunca.Poderia ser que Dibs estivessedemonstrando seus sentimentos em casade uma maneira mais franca. E o fatode manter-se silencioso, quando jápossui desenvolvido comando delinguagem, indica tremendo controle eforça interior. -Sinto-me muitoconstrangi da quando ele se comportaassim, acrescentou, depois de umalonga pausa. É como se estivessereclamando por alguma coisa -algumacoisa que não posso dar-lhe. Ele é umacriança muito difícil de entender.Tenho tentado. Na verdade, tenhotentado com todas as minhas forçasentendê-lo. Mas tenho falhado. Aliás,desde o início, quando ele era apenasum bebê. Nunca havia cuidado denenhuma criança antes de Dibs. Nãotinha experiência como mulher, parater contacto com crianças e recém-nascidos. Não intuía, de formanenhuma, como eles eram -pessoassemelhantes a nós. Bem, conhecia-osperfeitamente sob seus aspectosbiológico, físico e médico.Entretanto, nunca pude entender Dibs.Ele foi uma espada no meu coração -talo desapontamento que me trouxe com seunascimento. Não tínhamos planejado teruma criança, sua concepção foi umacidente. Ele desmoronou todos osnossos sonhos. Tinha a minha carreiraprofissional também. Meu marido viviamuito orgulhoso das minhas conquistas.eram os um casal muito feliz antes deDibs. Mas que bebê estranho era elequando nasceu. Tão grande e tão feio.Tão grande e sem forma, como um pedaçode qualquer coisa. Não reagia a nada.De fato, rejeitou-me desde o exatomomento em que nasceu. Ele se

endurecia e gritava cada vez que otirava do berço.

As lágrimas rolavam em sua facee ela as tentava enxugar com umlencinho, enquanto entre soluçosnarrava sua estória. Tentei falar-lhe,mas silenciei a seu pedido.

-Por favor, não diga nada. Estouconseguindo colocar tudo isto parafora. Pelo menos desta vez. Tenhocarregado, há tanto tempo, este fardo,que o sinto como uma pesada pedra emmeio ao meu coração. Pense o quequiser de mim mas, por favor, deixe-mecontar-lhe. Não pretendia falar-lheassim. Quando lhe telefonei pedindo aentrevista, planejava perguntar-lhesobre Dibs. Seu pai ficou muitocontrariado ontem. Chegou a pensar quea terapia está tornando-o pior. Mas háalguma coisa que deveria conversar comvocê. Tenho guardado tudo trancado nasminhas profundezas.

Parou por um minuto e recomeçou8. catarse.

-Minha gravidez foi bastantedifícil. Estive doente durante quasetodo o período. Meu marido sentiu-seofendido com a minha gestação. Sempreachou que deveria tê-la evitado. Oh! -não o estou censurando. Eu também meressenti com o fato. Não podíamosfazer a maior parte das atividades quecostumávamos realizar juntos. Nãopodíamos sair. Suponho que deveriadizer que "não fazíamos" ao invés deafirmar "não podíamos". Meu maridoafastava-se mais ê mais de mim,enterrando-se no seu trabalho. Ele écientista. Um homem brilhante, masfechado. E muito e muito sensível.Talvez a surpreenda. Nunca mais faleisobre este assunto com ninguém. Nuncamencionei-o nem mesmo na escola,acrescentou com um ar miserável e umsorriso de profunda infelicidade noslábios.

Antes de ficar grávida, eracirurgiã. Adorava meu trabalho. E mehavia mostrado tão hábil na minhaprofissão, que já pressentia os

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auspícios da conquista do sucesso.Realizei duas operações muitocomplexas no coração, com êxitoabsoluto. Meu marido orgulhava-se demim. Nosso círculo de amizadescompunha-se de homens e mulheresbrilhantes, encantadores e cheios deêxitos. E, então, Dibs nasceu edestruiu todos os nossos planos enossa vida. Senti-me como quemfalhasse miseravelmente. Decidi Quedeveria abandonar meu trabalho. Algunsdos meus amigos profissionais maisíntimos não puderam compreender minhaatitude ou minha decisão. Nada lhesfalei sobre Dibs. Oh! -apenas sabiamque estava grávida. Mas não chegaram aconhecê-lo. Logo, tomou-se evidenteque Dibs não era normal. Já erabastante desagradável ter um filho,mas ter uma criança retardada mentalsignificava muito mais do que eu podiasuportar. Uma enorme vergonha cobriu-nos. Estávamos humilhados! Não haviaem nossas famílias um caso semelhantea este. Meu marido é conhecido em todoo país pela sua genialidade. E o meucurrículo sempre revelou um desempenhoinvulgar. Todos os nossos valoresforam hierarquizados dando prioridadeà inteligência -aprimoramento enotabilidade nas conquistasintelectuais.

E nossas famílias! Nós doiscrescemos em famílias onde estasqualidades eram valorizadas acima detudo. E, então, aparece Dibs! Tãopeculiar! Tão estranho! Tãoexcêntrico. Tão intocável. Sem falar.Sem brincar. Atrasado no andar.Babando nas pessoas como umanimalzinho selvagem. Estávamosenvergonhados. Não queríamos quenenhum dos nossos amigos soubesse comoera Dibs. Afastamos-nos, mais e mais,do convívio com nossos colegas,porque, se eles continuassem afreqüentar a nossa casa, naturalmenteque iriam ver o bebê. E nãodesejávamos que ninguém o conhecesse.Seria uma humilhação catastrófica!Havia' perdido toda a confiança em mimmesma. E já não poderia continuar o

meu trabalho. Sabia-me incapaz derealizar uma operação de novo.

Desconhecia um lugar para ondepudéssemos enviá-lo. Tentamos resolvero problema da melhor maneira quepodíamos. Não queríamos que ninguémviesse a saber do seu triste caso.Levamos Dibs uma vez a umneurologista. Mas em outra cidade, naregião ocidental do país. Usamos outronome. Não queríamos que nenhuma pessoasoubesse do que suspeitávamos.Entretanto, o neurologista não Pôdeencontrar nada organicamente erradonele. Então, há pouco mais de um ano,levamo-lo a um psiquiatra, também emuma cidade distante. Pensávamos quepoderíamos deixá-lo em uma casaparticular para o diagnósticopsicológico e psiquiátrico. Sentíamosque Dibs sofria de esquizofrenia. Oude autismo, se não fosse retardadomental. Percebíamos que seus sintomassugeriam claramente lesão cerebral. Opsiquiatra insistiu em entrevistar,várias vezes, meu marido e a mim. Estafoi a primeira e única vez querevelamos nossa própria identidadenuma clínica que havíamos procuradopara esclarecer o diagnóstico de Dibs.

Foi uma experiência chocante. Opsiquiatra afrontou-nos. Investigousem misericórdia nossa vida particulare íntima. Quando reagimos, porqueavançava muito além da necessidadeprofissional no questionamento, fomos,então, advertidos pelas assistentessociais de que a nossa reaçãoexpressava hostilidade e resistência.Parecia-me que eles gozavam um prazersádico na sua cruel perseguição. Opsiquiatra falou-nos que, considerandoa nossa carreira profissional eexperiência de vida, seria muitofranco conosco. Segundo sua opiniãoDibs não apresentava deficiênciamental. Nem psicose. Nem lesãocerebral. Era uma criança rejeitada. Acriança mais rejeitada eemocionalmente carente que até entãohavia conhecido. E continuou afirmandoque quem necessitava de ajuda clínicaéramos meu marido e eu. E por isso

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sugeria tratamento para nós dois. Foia experiência mais chocante que tantoeu quanto ele vivenciamos. Qualquerpessoa poderia comprovar que meumarido trabalhava com muita adequação.Nunca fomos inclinados a participar davida social, mas os nossos amigos ecolegas profissionais nos haviamrespeitado e aceito nosso desejo deter nossa vida íntima e particular anosso próprio gosto. Nunca tivemosqualquer problema pessoal que nãopudéssemos superar por nós mesmos.

Trouxemos Dibs de volta paracasa e temos tentado conviver com eledo melhor modo. Mas isto quebrou,muito intimamente, nosso casamento.

Jamais confidenciamos a qualquerpessoa esta nossa experiência. Nunca arevelamos aos nossos familiares.Tampouco nos pronunciamos sobre esteveredicto na escola. Mas meu marido,cada vez mais, se vai afastando demim. Dorothy nasceu no ano seguinte aDibs. Julgávamos que uma outra criançadeveria ajudá-lo. Mas eles não serelacionam bem. Na verdade, Dorothytem sido sempre uma garota perfeita.Sem dúvida, isto prova que adeficiência não é nossa. Então,colocamos Dibs na escola particularonde você inicialmente o conheceu.

Confesso-lhe que ninguém conhecea terrível tragédia e agonia de ter umfilho com deficiência mental, a nãoser por própria experiência. A únicapessoa, com quem Dibs se relacionamelhor, tem sido sua avó. Ela esteveconosco durante o primeiro mês de suavida, e visitava-nos uma vez por mêsdurante 3 anos, até que se transferiupara Flórida. Então, passou a vir duasvezes por ano e conosco permanece ummês em cada visita. Dibs sempre selembra dela, sempre demonstra suaafeição e alegria à sua chegada esempre sente desesperadamente suafalta, quando ela volta. E parece quefica a contar os dias até que de novoa possa ver de regresso.

Tenho feito tudo o que posso porDibs. Com todas as coisas que o

dinheiro pode comprar o temospresenteado, desejando assim ajudá-lo.O seu quarto de brinquedos estárepleto de discos, jogos, livros,enfim de todos os objetos que julgamospossam diverti-lo, educá-lo e entretê-lo. E, algumas vezes, ele temaparentado ser feliz no seu quarto, emnossa casa. Sempre se sentiu maisfeliz sozinho. Esta é a razão por queenviamos Dorothy para um internatoperto daqui. Só nos fins de semana enas férias ela retoma à casa. Pensoque Dibs é mais feliz com a distânciada sua irmã. É difícil a convivênciaentre os dois. Dibs a espanca e aagride como um animalzinho feroz, casoela se aproxime dele ou do seu quarto.

Entretanto, ultimamente, a suainfelicidade cresceu. Ontem, quandomeu marido o trouxe para casa, estavamuito confuso. Ambos decepcionados.Ele falou que Dibs estava balbuciandouma conversa como um idiota. Assim seexpressou em frente ao garoto.Inclinando-se sobre a mesa, a mãe deDibs soluçava amargamente. Perguntei-lhe o que Dibs dissera e elerespondeu-me, reafirmando que haviabalbuciado uma conversa qualquer comoum idiota. Dibs atravessou a sala,agarrou uma cadeira e atirou-a contrao piso. Derrubou várias peças da mesade café com um movimento circular desua mão e vociferou contra ~u pai,declarando que o odiava. E com toda aênfase repetia sua declaração deraiva. Então meu marido o agarrou e,depois de uma luta, carregou-o para oseu quarto trancando-o ali. Quando meumarido desceu, estava chorando. Seique de nada adiantam as lágrimas.Conheço que meu marido odeia cenas edesdenha o pranto. Mas não pudesuportar e falei-lhe:

"Dibs não estava balbuciandocomo um idiota agora. E ele disse queodeia você!"

Meu marido sentou-se em umacadeira e chorava verdadeiramente. Foiterrificante! Nunca havia visto umhomem chorar assim, antes. Jamais

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havia suposto que alguma ocorrênciafizesse o meu marido sufocar-se em umturbilhão de suas próprias lágrimas.Fiquei apavorada, de repente.Aterrorizada. Ele mostrou-se estar tãocheio de medo quanto eu. Creio quenunca estivemos tão próximos um dooutro quanto naquele instante. Desúbito, éramos tão-somente duaspessoas amedrontadas, solitárias einfelizes, com as nossas defesasquebradas e abandonadas. Foi terrível.E sinto um alívio em pensar que somoshumanos, que podemos falhar e admitirque nós falhamos! Finalmente a dor nosempurrou um ao encontro do outro, eele falou que talvez tivéssemosfalhado em relação à nossa conduta comDibs. Respondi-lhe que viria até você,ouvir sua opinião sobre o nossogaroto. Olhou-me com uma expressão demedo e pânico nos olhos. Diga-me comsinceridade, você acha que Dibs é umdeficiente mental?

-Não, repliquei, respondendo asua pergunta e não dizendo mais nadado que ela me havia questionado. Nãocreio que Dibs tenha deficiênciamental.

Houve uma longa pausa. E longossuspiros. -Você. ..você. ..pensa queele ficará bom e que aprenderá acomportar-se como as outras crianças?-perguntou-me.

-Creio que sim. No entanto,ainda mais importante que minharesposta é que creio que você mesmapoderá responder esta questão, atémais acuradamente que eu, desde quevocê vive com ele em casa, conversa ebrinca com ele e observa-o. Acreditoque você poderia tentar responder suapergunta.

Sacudiu a cabeça vagarosamente.-Sim, respondeu com a voz declinandoaté o sussurro. Tenho notado muitosaspectos no comportamento de Dibsindicadores de suas habilidades. Masparece-me tão infeliz, à medida que serevela mais e mais em casa. Os seusataques de raiva desapareceram. Nãomais foi acometido

deles, em casa ou na escola. Acena de ontem não foi um acesso deraiva. Mas, sim, o seu protesto ante aobservação de seu pai, que sentiu comoum verdadeiro insulto. Não tem maischupado o seu polegar constantemente,como outrora o fuja. E tem conversadomuito mais em casa. Conversa consigomesmo. Não conosco. Exceto quandodirigiu-se a seu pai, com aqueleclamor, ontem. Está transformando-se.E melhorando. Somente espero em Deusque ele consiga viver bem, disse elacom , muita fé.

-Assim o desejo também. E umlongo silêncio seguiu-se. Ela apanhouna bolsa o seu pó para o rosto e emgestos rápidos refez sua maquilagem.

-Não me lembro de outraoportunidade em que houvesse choradoassim, falou, apontando para a pilhade lenços de papel usados. Mas vocêparece estar preparada para isto. Semdúvida, não sou a única a chorar noseu ombro.

-Não. Você tem um grande númerode companheiros.

Um sorriso pairou na suafisionomia. Ela e Dibs tinham muitosgestos em comum.

-Não posso dizer-lhe o quantoesta entrevista significou para mim.Não parece possível. Não encontrariapalavras. Mas a hora já terminou. Ouvios sinos da igreja. São 11 horas. Otempo, às vezes, foge da gente! -exclamou.

Não ficaria surpreendida seafirmasse, a esta altura, que nãogostaria de voltar para casa.

Levantou-se, vestiu o seu casacoe agradeceu-me por tudo. Saiu depois.

Não obstante a freqüência comque tenha ouvido este tipo de "jorrardas comportas da vida interior",sentia vivamente a complexidade eunicidade da motivação humana e docomportamento demonstrado de formasdiferentes. Não há uma experiênciaisolada que acione determinados

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modelos de reação. Há sempre umaacumulação de experiênciasentrelaçadas com emoções, altamentevivenciadas pela pessoa e articuladascom seus próprios objetivos e valores,que motivam e condicionam seucomportamento. Lembrei-me do que elafalara, como prefácio de suanarrativa:

"Tanta coisa a falar e tantas asilenciar. Alguns fatos são mais bemguardados no silêncio, mas, assimsilenciados, tornam-se um terrívelfardo."

Mostrou-se consciente doselementos que pesavam dentro de si.Provavelmente os mais temidos eram oscobertos pelo tortuoso silêncio. A suavigilância constante para preservá-losem segredo fizeram-na deles tomarconsciência. Possivelmente ela e o seumarido haviam aprendido, muito cedo emsuas vidas, que, com suas aguçadasinteligências, poderiam erigir umaproteção em volta deles, uma fortalezaque poderia isolá-los das emoções, quenão aprenderam a compreender e amanejar em seu próprio benefício. Dibstambém havia introjetado isto. Liaqualquer coisa que lhe caía sob avista, e manifestava esta habilidadequando confrontado por uma reaçãoemocional desconfortável, como umaevasiva que o livrava de umaconfrontação com o sentimento. Era umesquema de proteção.

Sua mãe e seu pai eram tambémvítimas de sua falta de entendimentopróprio e maturidade emocional.Sentiram com grande perspicácia suatotal inabilidade para se relacionarcom Dibs afetivamente. E com todas asprobabilidades com Dorothy também.Estavam lutando em volta dasprofundezas de seus sentimentos deinadequação e insegurança.

Quando ela inquiriu-me sobre ocomprometimento da saúde mental deDibs, poderia ter-lhe falado comênfase que ele, em absoluto, não tinhanenhuma carência mental, e que,provavelmente, era uma criança dotada

de inteligência superior. Entretanto,se tivesse alardeado estes seus dotes,estaria sufocando o seu melhorpropósito: compreender Dibs em suatotalidade. Além disto, poderiaintensificar um sentimento de culpa,já indicado pela cena por ela descritaentre Dibs e seu pai, e pela suareação ao episódio do dia anterior. Seos país de Dibs se sentissemencorajados pela minha avaliação,poderiam concentrar-se nos talentosintelectuais de Dibs, como partecentral do seu desenvolvimento. Ele,na verdade, já estava utilizando quasecompletamente sua inteligência. Era afalta de equilíbrio no seudesenvolvimento global que criava oproblema. Ou talvez, beminconscientemente, seus paispreferissem vê-lo como um deficientemental, do que como a personificaçãointensificada de sua própriaincapacidade emocional e social.

O âmago do problema não estavano diagnóstico intelectual das razõesque fundamentavam os comportamentos,embora muitas pessoas aceitem esteprincípio como básico para promover odesenvolvimento pessoal. Se vocêcompreende porque age desta maneira,ou sente determinadas emoções, muitosestudiosos acreditam que você venceu aetapa que lhe possibilitará modificarsua conduta. Entretanto, penso que asmaiores modificações que talcompreensão acarretam são mudanças nasatitudes exteriores que, pouco apouco, vão alterando as motivações esentimentos. Creio que a alteraçãoprofunda exige tempo bem mais longo.Algumas vezes, requer preocupaçãoIntensa com o eu que ficou colocadoindistintamente no relacionamento doindivíduo com o grupo social. Isto fazo seu mundo mais egocêntrico, emborasuas atividades possam tentardesmentir isto. Há muitas e diferentesformulações teóricas sobre a estruturada personalidade, que inspiram umavariedade de métodos empregados empsicoterapia.

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Parecia-me ser altamenteimprovável que a mãe de Dibs ignorasseos talentos intelectuais de suacriança -pelo menos em certo grau.Para ela a realização intelectualisolada não tinha sido uma respostamuito satisfatória. Sua incapacidadeem relacionar-se com seu filho comamor, respeito e compreensão era, semdúvida, devido à sua própriadeficiência emocional. Quem pode amar,respeitar e compreender uma outrapessoa senão quem vivenciou em simesmo tais sentimentos? Evidenciei quenada poderia ser-lhe mais útil nestaentrevista que possibilitar-lhesentir-se respeitada, entendida eaceita. Também ela tinha suficientesrazões para o que fazia. Também elatinha capacidade para alterar seucomportamento. As alterações deveriambrotar-lhe do seu íntimo. E como as deDibs, de seu marido, e as suaspróprias, estas mudanças seriammotivadas por variados componentesacumulativos de suas experiências.Afinal, ela mesma havia expresso suasincipientes e novas perspectivas devida:

"Duas pessoas apavoradas,solitárias e infelizes com suasdefesas quebradas e abandonadas. ...umalívio lembrar que somos humanos quepodemos falhar e admitir que nósfalhamos."

CAPITULO IX Dibs retomou bastante feliz à

Sala de Ludoterapia, na 5.. feiraseguinte. Sua mãe havia telefonadopara estudarmos a possibilidade detrazê-lo 15 minutos antes do horário.O garoto deveria ir ao pediatra paraalgumas vacinações. Foi feito o

arranjo satisfatoriamente. -Hoje devo ir ao médico tomar

vacinas. A hora já está marcada, Dibsavisou ao entrar.

-Sim, eu soube. E você poderáchegar lá na hora.

-Estou contente com a troca dohorário, falou com um sorriso muitoamplo.

-Está feliz. Por quê? -Estou contente porque me sinto

feliz. Isto parece bastante,argumentou, encaminhando-se para acasinha de bonecas. Vejo que tenho umserviço para fazer aqui.

-Qual é? -Este. respondeu, indicando com

um gesto a casa de bonecas. Devoconsertá-la e trancá-la. Fechar asjanelas!

-Então, você já decidiu o quevai fazer? -O sol está brilhando! Ah,que lindo! Vou tirar os meusagasalhos, anunciou, depois de terolhado pela janela.

Removeu, uma por uma, suas peçasprotetoras: o chapéu, a jaqueta, asperneiras. Tudo sem ajuda alguma. Eatravessou a sala para dependurá-losna maçaneta da porta.

-Gostaria muito de pintar hoje,avisou. -Bem, isto quem decide é você.

-Sim. Bem sei que sou eu quemdecide sobre isto, respondeu Dibs,caminhando em direção ao cavalete.Tirarei todas as tampas dos potes detinta e em cada uma colocarei umpincel. Agora vou arranjá-los emordem. Vermelho -Laranja -Amarelo -

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Azul -Verde. É assim, posso decidir emalgumas coisas, em outras não.

-Verdade. Também acho que isto éverdadeiro.

-É certo, reafirmouenfaticamente, continuando o arranjodas cores.

Iniciou então a pintura decamadas de tinta no seu papel.

-Puxa! A tinta corre! O lápisnão corre assim. O seu colorido ficasó onde o deixamos. Mas as tintas?Não. Correm. Vou pintar uma bolinhalaranja. Viu como corre? Agora umalista verde. Escorre em Rotas parabaixo. E como forma gotas para baixo!Vou tirá-las!

Atravessou a ala e dando algumaspancadinhas no espelho declarou:

-Há alguém mais nesta salinha.Antes. algumas pessoas estavamsentadas neste quarto escuro, mas hojeparece que não. Não as vejo agora Noentanto, sei que estão aí dentro.

Fiquei surpresa ante oinesperado de sua observação.

-Você acha? -Bem, eu sei disto.Uma conversinha abafada indicou-meisto, confirmou.

Esta pequena prova revela oquanto as crianças estão informadassobre os ambientes que as circundam,embora nem sempre comentem na ocasiãoda descoberta. Isto é verdadeiro nãosó para Dibs. É também em relação anós, adultos. Não expressamosverbalmente tudo quanto ouvimos,olhamos, pensamos e concluímos.Provavelmente. só um muito pequenopercentual de nossas aprendizagens éexplicitado aos outros.

-Você também já sabia disto? -perguntou. -Sim.

Voltou-se então para o cavaletee recomeçou a pintar listas no papel.

-Estes são os rastros do meupensamento, concluiu.

-São? -Claro. E agora mesmo vouexpulsar aquele homem lutador.Especialmente aquele soldadinho.

Enquanto caminhava em direção àareia, fez uma pequena pausa paraolhar as minhas notas. Havia abreviadoo nome das cores que ele usavaregistrando apenas a primeira letra.Dibs observou minhas anotações queconsistiam no registro de suas ações,não de frases. Estas estavam sendogravadas por observadores maissilenciosos, que controlavam osgravadores naquela ocasião.

-Oh! por que não os escreveu porcompleto? V representa V -E -R -M -E -L -H -O. L representa L -A -R -A -N -J-A. A, invés de A -M -A -R -E -L -0etc.

-Então, porque você sabe comoescrever os nomes das cores, acha quesó desta maneira deveríamos registrá-los? Não concorda que possamosabreviá-los, se sentimos vontade defazê-lo?

-Hum? refletiu. Bem. ..Sim. Masnão faça isto com os nomes das cores.Sempre faça as coisas corretas.Escreva-os com todas as letras. Façaisto corretamente. .

-Por quê? Dibs olhou-m'e esorriu. -Porque estou dizendo,respondeu. -E é uma razão suficiente?

-É sim. A não ser que vocêprefira escrever do seu modo, concluiusorrindo.

Encaminhou-se para a mesa,retirou um pouco de argila da jarra,atirou-a para o ar; conseguiu apanhá-la e recolocou-a no recipiente deorigem. Havia uma gravura no chãoperto do cesto de papel. Logo que Dibsolhou, inclinou-se para pegá-la.

-,,Ah, quero isto! Quero muitorecortar estas figuras. Onde está atesoura?

-Pronto, Dibs. Aqui você a tem.Sentou-se e recortou. Em seguida,voltou-se para a casa de bonecas,

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lembrando-se de suas tarefas auto-impostas.

Com cuidado, removeu todas asparedes da casinha, carregando-as paraa areia. Utilizando a enxada, cavou umgrande buraco onde enterrou as partesdivisórias.

Retomou à casa de bonecas e comuma pesada pá de m~tal ergueu a portae enterrou-a também na areia.Trabalhou com eficiência e intençãodefinida, no mais completo silêncio.Quando completou o seu trabalho,olhou-me.

-Livrei-me das paredes e daporta, anunciou. -Sim. Vi vocêlibertar-se das paredes e da

porta. Escolheu a parede dafrente da casa de bonecas, que agoramostrava o caminho de entrada semporta, e tentou armá-la na areia.Depois de várias tentativas,conseguiu. Procurou um carrinhoespecial e empurrou-o em volta dacasa. Estava mal sentado sobre a bordado depósito de areia, inclinado, dandoa impressão de estar sendo incomodadopela posição assumida. Enfim, pareceque entendeu a situação. -Entrareicompletamente no depósito de areiaagora, disse, decidido. E, deimediato, começou a engatinhar naareia indo sentar-se bem no centro dodepósito. Com o seu olhar comunicou-mea sua festa. -Hoje, entrei na areia.Pouco a pouco consegui entrar. Umpequeno caminho da vez anterior àpassada, depois outro na vez passada eagora. .. -Sim, você conseguiu. Hojevocê está dentro do depósito. Naareia. -A areia está penetrando no meusapato. Vou tirá-los. Quando removeu osapato pisou firme. Deixou que seuspés afundassem. Deitou-se na areia.Esfregou nela suas bochechas. Colocousua língua para fora e provou-a.Sentiu a areia entre os dentes. -Porque esta areia é tão arenosa e áspera

e tem o gosto de nada? O gostodo nada é assim? perguntou, olhando-mee apanhando um punhado de areia,

despejando-a sobre sua cabeça eesfregando nos seus cabelos.Gargalhava. -Olhe, estou com a meiafurada. Minha meia tem um buraco,comentou, exibindo o seu pé. -É, sim.Espichou-se, ganhando sua dimensãototal. Rolou na areia. Virou-se de umlado para outro. Cobriu-se de areia.Seus movimentos eram livres,expansivos, relaxados.

-Dê-me a mamadeira, pediu. -Aquiestá, Dibs.

-Vou fazer de conta que este é omeu beicinho. Ficarei encolhidinhocomo uma bola e fingirei que sou bebêde novo.

Sugou a mamadeira com alegria.De súbito, parece que o seucontentamento cresceu.

-Vou cantar para você, anunciounum tom festivo. Inventarei umacanção, para cantá-la apenas paravocê. Está certo?

-Claro. Sentou-se com as pernas cruzadas

e exteriorizando o que pensava. -Imagine, como se estivesse

sentindo o que cantasse, sugeri-lhe. Dibs

gargalhou. -Vou compor os versosenquanto for cantando.

-Está bom. Respirouprofundamente. E começou a cantar.Parecia-me que ele também estavacompondo a mÚsica. Sua voz era clara,melodiosa e doce. A melodia em sicontrastava com a maior parte dosversos da canção. Suas mãos estavamentrelaçadas. Sua expressão era deseriedade. Assemelhava-se a ~mparticipante de coral infantil. Apenassuas palavras em nada se pareciam àsde uma criança do coral.

-Oh! -eu odeio, odeio, odeio,cantou. Odeio as paredes e as portasque fecham, e as pessoas que nosempurram para dentro, para nostrancar. Odeio as lágrimas e aspalavras de zanga. Vou matar a todos

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com minha machadinha. Martelarei seusossos e cuspirei em cima dos seusdestroços. Inclinou-se para apanhar naareia um soldadinho. Nele executoutudo que havia planejado.

-Cuspo-lhe a face. Cuspo-lhe nosseus olhos. Então, posso enterrar-lhea cabeça no fundo da areia, cantou coma voz clara e suave. Está escutando?

-Sim. -Os pássaros voaram deleste para oeste é um desses pássarosque quero ser. Só assim voarei muitoalém das paredes, livre das portas,livre, longe e longe dos meusinimigos. Cavarei a areia, enterrareicoisas na areia. Jogarei areia.Brincarei na areia. Contarei todos osgrãos de areia e, de novo, serei umbebê.

Sugou a mamadeira e rindoperguntou-me. -Que tal a minha canção?-Uma verdadeira canção.

-É, sim, uma canção, concordou,saltando da areia e aproximando-se demim para olhar o meu relógio.

-Dez minutos mais, avisou-me,mostrando os

dez dedos. -Justamente dez minutos. -Você acha que só restam dez

minutos e depois estará na hora em quedevo voltar para casa? -indagou.

-Certo. É exatamente isto quepenso. E você, o que acha?

-Ah! -exclamou. Quer saber? Bem,penso que daqui a pouco estará na horade ir. Vou retirar o restante dossoldadinhos. Estes dois estão comespingardas. Ah, e esteavião. ..Parecido com um pássaro. Oavião voa. O avião cheIo de areia voa.Voa por perto. Voa por volta! Voa nocéu! Voa circulando a sala debrinquedos, falou segurando com graçae ritmo. Oh! avião, converse comigo!Diga-me até que altura voa? Poderávoar além do azul, do azul do céu?Poderá você voar para além do céu? Nadireção das nuvens e ventanias que

guardam as chuvas, lá muito no alto?Até onde poderá voar? Diga-me,aviãozinho adorável. Até onde vocêpoderá voar.

Abruptamente parou todas asatividades e concentrou-se em escutar.De repente, toda aquela exuberância ealegria pareceu esfriar-se earrefecer-se.

-Aqui está Dorothy, falou. Voltou para a areia e com sua pá

desenterrou a porta e as janelas dacasa de bonecas.

-Ainda não podem ficarenterradas, disse, olhando-me com aaflição a apertar-lhe os lábios e afranzir-lhe a testa.

-Agora, só faltam nove minutos?-indagou com um tom desolado.

-Não. Temos apenas 5 minutosmais.

-Oh! -replicou Dibs, levantandouma das mãos com os cinco dedosabertos. E os outros quatro minutos,para onde foram?

-Não acha que os outros 4minutos já passaram por você?

-Daqui a bem pouco estará nahora de voltar para casa, relembrou.Mesmo que não queira ir. Ainda assim,o tempo chegará para dizer-nos: abrincadeira aqui terminou.

-Verdade, Dibs. A despeito detudo, o tempo passa.

Um som de caminhão em movimentochegou até nós.

-Lá vai nosso caminhão,comentou. Você ouviu?

-Sim, Dibs. -Está na hora do caminhão ir

para casa também, expressou-se. -É. suponho que sim. -Talvez o caminhão também não

queira voltar. -É possível.

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-Quantos minutos ainda tenho?perguntou. -Três minutos.

Dibs segurou a porta da casinhae programou: -Tenho que colocá-la devolta na casa de bonecas e trancartodas as janelas. Onde está o martelopara pregar a porta?

-Não há nenhum por aqui, agora.Você pode deixar a peça na prateleiraou na casa de bonecas. A arrumadeiracolocará nos seus devidos lugares,depois.

Dibs colocou a porta sobre amesa mas, em seguida, mudou de idéia,removendo-a para a casa de bonecas.Fechou todas as janelas.

-Preciso de SUa ajuda para mecalçar, pediu-me, em tom de indigente,entregando-me os sapatos e sentando-se.

-Pronto, Dibs. -Sabe em que estou pensando

agora? -Em quê? -Todas as pessoas, que estão

nesta casa, dormem agora. E começa acair a noite. Noite de primavera, aífora. Tempo escuro e cheio de sombra.Todos dormem e parecem dizer quedormirão mais e mais. Dormirão aquionde algumas vezes é frio, outrasvezes é confortável e morno, massempre seguro. Dormem e esperam. Ecolocam em sua casa outro tipo deporta. Uma porta que abre por dentro epor fora. Uma porta que se abre logoque você dela se aproxima. Semfechadura. Sem chaves. Bem. ..agoradirei até logo, acrescentou, paradodiante de mim. Não esqueça, voltareidepois.

-Está certo, Dibs. Nãoesquecerei. Você voltará de novo, emoutro dia.

Dibs notou um dos animais quehavia recortado dentro do cesto depapel.

-Quero isto, disse, enquanto oapanhava. Posso levá-lo comigo?

-Claro, Dibs.

-Bem, diga assim: Claro, Dibs,você pode levá-lo para casa Se isto éo que você quer, então está certo.

Repeti palavra por palavra. Umgrande sorriso iluminou toda a suafigura. Aproximou-se de mim eacariciou minha mão.

-Ótimo, falou. Abriu a porta edeu um passo para fora. Num relancevoltou-se e veio verificar o tempo queo meu relógio marcava. Com violência,fechou a porta.

-Não, ainda não está na hora.Faltam 15 minutos para as 4 horas.Esperarei até que o sino da igrejatoque.

-Você veio mais cedo hoje, entãodeverá sair mais cedo. Cada encontronosso 'deve durar 1 hora inteira.

-Minha hora de chegada foi maiscedo, mas a minha saída deve ser a decostume, declarou firmemente.

-Não. A saída também deverá sermais cedo. -Oh, não. Cheguei cedo, masnão saio cedo. -Sim, você sairá. Amodificação do horário foi porque vocêtem de ir ao médico. Lembra-se? -Lembrar nada tem a ver com o casoaqui,

declarou. -Você apenas não deseja ir

agora. Mas. .. -É verdade,interrompeu-me para confirmar .Durante um longo minuto ele mediu-mecom o seu olhar.

-Você está completamente certodisto? Dibs suspirou.

-Creio que estou certo. Estábem. Eu vou agora. Só desejo que odoutor espete sua agulha em Dorothy.Tomara que doa tanto, que isto a façagritar e chorar. Se assim acontecer,dentro de mim vou rir e gargalhar esentir alegria porque ela sofre.Quanto a mim, fingirei que não me dóiabsolutamente nada. Até mais. Até 5..feira.

Encaminhou-se para a sala derecepção onde sua mãe e Dorothy o

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esperavam. Ignorou por completo a irmãe segurando a mão da mãe deixou oCentro sem nenhuma palavra paraqualquer pessoa.

CAPÍTULO X Quando Dibs voltou na semana

seguinte, caminhou para a Sala deLudoterapia com passos tranqüilos erelaxados. Parou junto à porta e viroua tabuleta, lendo-a: "Favor nãoperturbar."

Entrou na sala, tirou o seuchapéu e agasalho e pendurou-os nolugar habitual. Sentou-se na borda dodepósito de areia e removeu ossapatos. Colocou-os no chão, debaixodo casaco. Recolheu as quatroespingardas que estavam espalhadas emvolta da sala e colocou-as dentro doteatrinho de fantoches. Saiu, apanhouo chapéu e o casaco e levou-os tambémpara o palco. De novo, saiu, desta vezpara apanhar o aviãozinho que estavacom a hélice quebrada. Sentou-se juntoà mesa, e, com rapidez e eficiência,consertou-o.

Apanhou a caixa de animaizinhosda fazenda e separou-os de acordo comas figuras, denominando-os. Dirigiu-separa a areia e examinou a casinha queali estava.

-Sabe, já vi uma casa de bonecascompletamente igual a esta em uma lojade ferragens na A v. Lexington.comentou.

-Você viu? -Sim, replicou. E eraigualzinha a esta. O mesmo tamanho. Ame~ma cor. Feita de metal. Custava 2dólares e 98 cents Suas peças vinhamtodas colocadas numa caixa. Quem acomprasse deveria armá-la,acrescentou, batendo sua mão sobre ometal. Umas peças bem finas.

Voltou-se para o radiador,examinando-o. -Está quente aqui hoje,é melhor desligá-lo,

comentou, inclinando-se parafazê-lo.

-Não precisamos do aquecedoragora. -Havia muitos brinquedos nestaloja. Um

caminhãozinho, também parecidoco.m este, disse, apresentando aminiatura a que se referia. E ainda,

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um caminhão para carga com umdispositivo que se pode puxar parafazer subir a tampa e fazerdescarregar a areia.

Dibs parecia estar usando otempo para entreter-se por uma .razãoou outra. Sua aparência revelava seuestado de descontração.

-Quase igual a este. Mas nãoexatamente. Quase diria que era domesmo tamanho e com o mesmo mecanismo.Mas, a cor era outra. Além disso,estava escrito o nome da fábrica e omaterial de que era feito. Pesava bemmais que este. O preço era de 1 dólare 75 cents por unidade.

Encheu o caminhãozinho comareia, movimentou à manivela,inclinando a carroceria. Assimdescarregou a areia. Usando odispositivo, fez o recipiente docaminhão voltar à sua posição inicial.Repetiu esta atividade várias vezes.Um monte de areia foi-se formando.

-Formarei uma colina e nelasubirei, falou. E brincarei Que oshomens estão lutando.

Num salto afastou-se da areia eatravessou a sala correndo paraapanhar o tambor. Sentou-se nas bordasdo depósito de areia. Come~ou atocar .

-Tambor engraçado! Oh! tambortão cheio

de sons. Sons suaves. Sonsfortes. Sons lentos. Bate, bate, batetambor. Briga, briga, briga,respondeu-me o tambor. Vem, vem, vem.Segue-me, segue-me, segue-me, continuaa falar.

Colocou o tambor cuidadosamentena borda do depósito.

Retomou à areia. Iniciou aconstrução de uma montanha. -Agoracomeçarei a trabalhar. Vou construirum monte muito alto. Uma colinaaltíssima. E todos os soldados lutarãopara atingir o seu cume. Eles queremmuito conseguir escalá-lo.

Rapidamente executou o seuplano. Selecionou alguns soldadinhos,colocando-os em tal posição que davama impressão de estar subindo.

Eles, de fato, parecem quequerem atingir o pico, não é mesmo?

-'-Oh! sim, Dibs respondeu. E,na verdade, eles querem.

Recolheu todos os soldadinhosque pôde encontrar e colocou-os emvolta do monte.

-Colocarei mais soldados. Muitossoldados, declarou. E deixarei quetentem subir alto, bem alto atéatingir o topo da colina. Todos sabemo que há lá. Mas, só poderão encontrá-lo se conquistarem o cume. E é porisso que. querem tanto alcançá-lo.

Os seus olhos tinham um brilhoespecial, quando ele me fitou.

-Você sabe o que está lá em cimado monte, no seu cume?

-Não, o que é? Dibs gargalhoucom vivacidade, mas guardou o seusegredo. arrumou os soldados algunspolegares para cima, aproximando-osgradualmente do pico. Quando ossoldados estavam separados apenas poruma pequena distância do alvo, Dibspolvilhou mais areia no ápice,tornando-o mais alto. Em seguida, fezcom que os soldados retrocedessem, umpor um, muito lentamente, até tê-lostodos na base. Enfileirados, marcharampara a casinha de bonecas, quepermanecia na areia.

-Não foram capazes de atingir ocume hoje, explicou. Por isso voltarãopara suas casas. Tristemente sedespedem com o aceno das mãos. Queriamtanto chegar até o pico da colina. Masnenhum deles foi capaz de atingi-lo,hoje.

-E sentem-se tristes por nãopoderem fazer o que queriam tanto?

-Sim, respondeu e suspirou.Queriam tanto. E tentaram. Mas nãopuderam fazer a escalada completa. Masjá encontraram sua montanha. Subiram

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nela. Foi uma verdadeira escalada.Enfim, os soldados sentiram quepoderão atingir o seu alvo. E estacerteza os fez felizes.

-A tentativa para atingir o picoda colina os fez felizes?

-Sim. Você já subiu num monte? -Já. E você, Dibs?

-Também. Uma vez tentei. Mas nãoconsegui subir até o topo, acrescentoupensativamente. Permaneci na base eolhei para cima. Penso que cadacriança deveria ter uma colina quefosse sua. E nela tentasse subir.Também, penso que toda criança deveriater uma estrela no céu que fosse sua.E ainda mais. Penso que toda criançadeveria possuir uma árvore que, defato, lhe pertencesse. Assim é quepenso que deveria ser, concluiu,olhando-me e gesticulando.

-Estas coisas são importantespara você, não ?

-Sim, respondeu-me. Muitoimportantes. Apanhou a pá de metal ecalma e intencionalmente cavou umburaco muito profundo na areia.Observei que ele havia escolhido eseparado um dos soldadinhos. Quandoconcluiu a escavação, colocou aquelesoldado no fundo do buraco, enchendo-ode areia, em seguida. Comprimiu com apá o topo do pequeno monte formadosobre o buraco.

-Este, apenas, conseguiu serenterrado, anunciou. Não teve aoportunidade, se quer, de tentar denovo escalar aquela colina.Naturalmente não chegaria ao seu cimo.Oh! -bem que ele queria! Queria estarcom os outros. Poder, pelo menos, teresperanças também. Queria tentar. Masnão terá esta oportunidade. Já estáenterrado.

-Então, um já está sepultado. Enão mais terá a possibilidade de subirtoda a colina. Morreu sem haveralcançado o seu alvo.

-Já está enterrado, Dibsconfidenciou-me, inclinando-se para

ficar bem próximo de mim, à medida quefalava. E não somente está sepultado,mas vou construir uma outra colina tãoalta e imponente bem em cima de suasepultura. E nunca sairá daí. E nunca,nunca, nunca, terá a oportunidade deescalar qualquer colina, de novo.

Enchia fartamente sua mão deareia e jogava sobre a sepultura,fazendo surgir logo um morro. Lá embaixo estava um sepulcro. Sob este, umsoldado enterrado. Quando a colinaestava completa, Dibs limpou sua mãoda areia, sentou-se, cruzou as pernase completou o seu trabalho.

-Aquele soldado era papai, faloutranqüilamente, afastando-se da areia.

-O que ficou enterrado sob omonte ,é o papai?

-Sim, respondeu. Era papai. Osino da igreja tocou. Dibs contou osrepiques que anunciavam as horas.

-Um, dois, três, quatro. Quatrohoras! Tenho um relógio em casa que mediZ as horas.

-Você tem? E sabe ver as horas? -Sim. Há muitas espécies

diferentes de relógios. Algunsnecessitam de cordas. Outros sãoelétricos. Alguns têm alarma. Outrosrepicam com carrilhão.

-E qual é o tipo do seu? Dibsparecia defender-se do enterro do seupapai, passando para um discursointelectualizado e, portanto, menosperigoso.

Deveria eu respeitar a suamaneira de evoluir. Teríamos tempopara nos aprofundar no exame destessentimentos relacionados com seu pai.Se ele estava sentindo que os eventosultrapassam a esfera da suaconsciência, e se amedrontava diantedo conteúdo do seu brinquedo,procurando defender-se na segurança deuma conversa sobre objetos materiais -como relógios -não seria eu quem dealgum modo o apressaria a enfrentarseus próprios sentimentos. Compreendi

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que ele já havia feito váriasafirmativas concisas e efetivas.

-Meu relógio é despertador etoca as horas. Dou corda nele. Tambémtenho .um relógio de pulso. E umrádio-relógio.

Pegou, de novo, o tambor etocou-o suavemente. Estou tocando otambor por papai.

-Então estes toques lentos sãopara seu papar?

-Sim, concordou Dibs. -E o quêque o tambor lhe diz agora? -Durma.Durma. Durma, falou, batendo no tamborcom deliberação. Durma. Durma. Durma.DURMA. DURMA. DURMA. DURMA. DURMA.

Enquanto pronunciava as sílabas,gradualmente fazia crescer o ritmoaproximando as batidas. Terminou comum vigoroso soar do tambor.

Dibs sentou-se e inclinou acabeça. O tambor silenciou. Levantou-se e tranqüilamente guardou-o nointerior do teatro de fantoches.

-Coloca o tambor aí. Ponha-odentro deste armário e feche a porta,ordenou-se.

De novo, retomou à areia e alificou olhando a sepultura ressaltadacom o volumoso monte. voltou para oteatro. Entrou, fechando a porta atrásde si. Dentro havia uma janela que seabria para o parque de estacionamento.Dali Dibs poderia ver os fundos daigreja. Eu não poderia vê-lo, masouvia suas palavras muito bem.

-Daqui, pode-se ver a parte detraz da igreja, comentou. Da igrejagrande que sobe para o céu. A igrejaque toca música. A igreja que tocacarrilhão -1, 2, 3, 4, quando são 4horas. A grande igreja, toda cercadade plantas e árvores pequenas. Igrejaonde tantas pessoas vão.

E silenciou por um longointervalo. Depois, continuou aexpressar-se:

-É o céu. Tão grande o céu, lámuito em cima. E um pássaro. E o

avião. E a fumaça. ...e Dibs, olhandoatravés de uma janela pequenina, todaesta grandeza, conclui, depois de umalonga pausa.

-Parece que daqui você vislumbraum mundo grande, enorme.

-É certo, respondeu suavemente.Enorme. Uma grandeza.

-Todas as coisas lhe parecemmuito e muito grandes.

-Mas não Dibs, respondeu, saindodo teatrinho e depois de um longosuspiro. Dibs não é do tamanho daigreja.

-Todas as coisas grandesfizeram-no sentir-se tão pequeno?

-Aqui, sou grande, disse,pulando para o depósito de areia. Voudesmoronar esta colina. Tudo ficaráplano.

E assim o fez. Nivelou amontanha a uma só altura e, então,limpou as mãos da areia.

-Oh! colina desaparecida. Oh!montanha aplainada! Sabe, estou-melembrando de um fato.

-Qual? -Outro dia fomos a uma lojinha

de consertos de calçados, apanhar osapato de papai. Tomamos a Av.Lexington, descemos a Rua VigésimaSegunda. Na Av. Terceira encontramosvários ônibus, táxis e caminhõescarregados. Poderíamos ter chamado umtáxi ou ter caminhado um pouco. Masnão o fizemos. Tomamos nosso própriocarro.

-Você teria diferentes maneiras,mas voltou no seu carro?

Dibs aproximou-se bem perto demim. Seus

olhos cintilavam. -Oh! não esqueça, censurou com

brandura. Fomos apanhar os sapatos dopapai.

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-Oh, sim. Não devo esquecer quevocês foram receber os calçados de seupapai.

-O sapateiro consertou-os,disse. -Restaurou o sapato?

-Consertou-os e engraxou-os.Ficou todo restaurado.

-Bem, Dibs. Nossa hora játerminou. -Está na hora de ir embora,Dibs concordou.

Aliás, o meu tempo já terminouhá 5 minutos. . Dibs estava bastantecerto. Não o tinha inter

rompido, esperando que findasselogo o seu relato sobre o passeio.

-Sim, você está certo, Dibs. Jápassam 5 minutos.

Dibs foi até o teatro apanhar oseu chapéu c casaco.

Este .é um armário gozado,falou, enquanto sala, vestIndo o seuagasalho. Um armário engraçado que temum buraco na porta e uma janela.

Atravessou a sala e apanhou osseus sapatos. -Os meus sapatos sãonovos.

Sentou-se e calçou-os semnenhuma ajuda. Antes, levantou ospezinhos, mostrando-me.

-Viu? Estou com meias novastambém. Nenhum buraquinho. Mamãe ficoumuito envergonhada no médico.

E gargalhou. Deu o laço bemapertado no cadarço do sapato. Ergueu-se. Dirigiu-se até a porta e parandovirou a tabuleta.

-Podem perturbar, falou. Nós jásaímos.

CAPÍTULO XIQuando Dibs retomou à Sala de

Ludoterapia, na quinta-feira seguinte,estava bastante agitado. Tirou deimediato seu gorro e jaqueta logo queentrou, arremessando-os sobre umacadeira.

-O escritório de D. A é númerodoze. E esta sala aqui é númerodezessete. E esta cadeira também énumerada. Seu número é treze. Viuisto?-falou, virando rapidamente acadeira para exibir o número sobre oqual passou os dedos.

-Certo, Dibs. Dirigiu-se até o armário e

escolheu uma caixa de pequenos prédioscom os quais poder-se-ia armar umacidade. Sentou-se no chão e agrupou asminiaturas de lojas, fábricas, igrejase outros. Havia algumas pequenasárvores para a decoração da paisagemcitadina. Dibs ficou encantado comeste material.

-Esta é uma cidade de brinquedo.Vamos ver o que temos aqui. Igrejas.Casas. Árvores. Construirei uma cidadecom todas estas peças. Aqui estão duasigrejas. Por elas começarei. Fareidesta igreja mais alta o centro deminha cidade. E esta pequenina serácolocada aqui. Escolherei as minhascasas e com elas construirei ruasalinhadas. Será uma cidade pequena epor isso mesmo haverá mais espaço emvolta das casas. Nos vilarejos epovoados há sempre igrejas. Viu ocampanário no alto da igreja ? Em suavolta vai se erguer um mundo todo decasas. Uma cidade.

Deitou-se no chão com o rostopressionado sobre a juta do tapete.Remexeu alguns dos edifícios.

-Eu criei esta cidadezinha,disse. Fiz aqui um mundo de casas. Eplantei as árvores em volta. Imagineio céu, a chuva e o vento gentilcorrendo todo este mundo. Idealizei asestações. Agora está justamentesurgindo a primavera. As árvores estãocrescendo pelo desabrochamento das

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folhas e flores. Tudo é lindo,deslumbrante e agradável neste calmopovoado. Há pessoas caminhando nasruas. E as árvores em silênciocrescem, sombreando os caminhos. Asárvores ficam diferentes. Elas se re~vestem nos seus troncos de cascasnovas.

Rolou no chão e olhou-me. -Pergunte-me se ainda tenho

algumas casas a mais; pediu. -Você tem outras casas? -Já armei todas as casas. Não

tenho mais nenhuma, respondeu,colocando algumas árvores extras emvolta do vilarejo para completá-la.Estas árvores têm o tronco verde,continuou. Deverão permanecer aqui,apontando para o alto, para o alto,para cima. Para o céu. Elas contarãoos seus segredos ao vento, quando porelas passar. Diga-me: por onde vocêandou? perguntarão ao vento. Vocêpoderia contar-me os fatos que temvisto? Sabe, tenho profundas raÍzesque me prendem à terra e por isso aquipermaneço. Todos os dias. Todo osempre. O vento lhe responderá. Poisnunca, nunca paro, sopro durante todosos dias, todas as horas, todos osminutos. Sopro sempre. Para longe. ..Ea árvore pedirá aos gritos. Não queroficar aqui sozinha e triste. Quero ircom você. Leve-me. Não me deixe. Vocêparece tão feliz. Oh, bem. ..

Dibs levantou-se e dirigiu-separa a mesa. Apanhou um quebra-cabeçaque ali havia sido deixado. Sentou-seno tapete perto de mim e rapidamenteuniu as peças.

-Este é Tom. Tom, o filho doflautista. Sabe, nós aprendemos umacanção sobre ele na escola. Vou cantarpara você.

É assim. Dibs cantou unindo amelodia à letra corretamente. Eanunciou o fim, logo que concluiu.

-Você aprendeu esta cantiga naescola, não foi, Dibs?

-Foi sim, respondeu, D. Jane éminha professora. D. Jane é uma mulheradulta. D. A é uma mulher adulta.Ambas são adultas e adultas.

-Adultas, mas parecem muitodiferentes uma da outra, não é?

-Na verdade, são muitodiferentes, respondeu enfaticamente.

-Você conhece outras pessoasadultas? -Claro que sim, respondeu. AHedda, por exemplo. E muitas outraspessoas na escola. E,ainda, Millie, anossa lavadeira. E Jake, que cortouuma das grandes árvores do nossoquintal, lá em casa. Havia uma árvoreque crescia em frente ao meu quarto,mas ela aproximou-se tanto que eu jápodia alcançá-la da minha janela eacariciá-la. Papai decidiu que deveriacortá-la. Falou que se estavaesfregando contra a casa. Eu olheiJake subir na árvore, serrando-lhe osseus galhos. Abri minha janela edisse-lhe que aquela árvore era minhaamiga e eu precisava daqueles ramos, eespecialmente daquele que chegava àminha janela. Falei-lhe que não queriaque o cortassem. Jake ouviu-me. Então,veio papai. Ordenou que aquele galhotambém fosse cortado, porque estavamuito perto da casa e ainda porquequebrava a forma da árvore. Jakeexplicou que eu gostava muito dela,pois ficava bem perto de minha janela.Papai escutou, mas continuou firme emsua decisão. Declarou que não gostavaque me debruçasse nela. E, ainda mais,que não sabia que vinha fazendo isto eque, portanto, ele colocaria uma gradede segurança, de um metal pesado,fechando-a, para que eu não ,caíssepara o lado de fora. Em seguida,mandou Jake cortar o ramo. Bemdepressa. Jake disse que cortaria umpouco, de maneira que não mais roçassena casa. E tentou mais. Lembrou-lheque eu gostava muito daquele galho.Mas papai disse que eu vivia cercadode brinquedos e objetos para brincar.Fez Jake cortá-lo até que ficasse bemdistante da janela e que não maispudesse tocá-lo. Mas Jake guardou a

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pontinha do ramo para mim. E conversoucomigo, dizendo que eu poderia guardaraquela parte da árvore dentro de meuquarto. Contou-me que não são todas asárvores que têm a oportunidade de terseu ramo favorito morando em uma casa.Falou-me que aquele olmeiro era umaárvore velha, muito velha. E quetalvez tivesse duzentos anos de vida eque, em todo este longo tempo,provavelmente, ninguém a tinha amadotanto quanto eu. Então guardei opedacinho final do ramo. E até hojeainda o tenho comigo.

-Quando isto aconteceu? -Há umano atrás, respondeu Dibs. Mas Jakenão pôde impedir isto. Teve mesmo deserrar o ramo. Mais tarde, colocaram agrade de segurança na janela. Mandaramum homem sair para fazê-la. E, devolta, ele prendeu uma na minha janelae outra na de Dorothy.

-Alguém soube que Jake lhe deu apontinha do galho?

-Não sei. Nunca falei com alguémsobre isto. Apenas o guardei. Ainda otenho guardado. E não deixaria ninguémtocá-lo. Chutaria e morderia a pessoaque tentasse pegá-lo.

-Aquele ramo significa muitopara você, não, Dibs?

e, 1 s. -Oh! muito! -respondeu.-E você esteve muito tempo junto comJake? -Sim. Cada vez que podia escaparde casa

para o quintal, ficava pertodele. Ele conversava comigo. Prestavaatenção a qualquer coisa que ele mefalasse. Sabe, ele contou-me todos ostipos de estórias. Falou-me sobre SãoFrancisco de Assis. Disse que eleviveu há muito tempo atrás e amava ospássaros, as árvores, o vento e achuva. Para ele, todos eram amigos. Esabe que são mesmo. Mais simpáticosque as pessoas, Dibs acrescentou comênfase.

E caminhou em volta da sala debrinquedos, sem descanso.

-Até hoje olho aquela árvore. Naprimavera as folhas saem, abrem ecrescem verdes porque a chuva lhestraz a vida fresca de novo. As folhasdesabrocham por causa da alegria deviver a primavera novamente. E durantetodas as vezes que o verão chega, elaoferece sombra fria, como uma boaamiga. Depois, no inverno, as folhascaem. Vão sopradas para longe. Jakedisse que, no outono, o vento vem e asrecolhe todas fazendo com elas viagensem volta do mundo. E narrou-me umaestória, certa vez, sobre a últimafolha que ficou naquela árvore.Conto;\I-me que a folhinha estavatriste, porque pensou que havia sidoesquecida e nunca estaria livre parair conhecer outros lugares. Mas ovento veio caminhando, logo atrás, esoprou sobre aquela folhinhasolitária, carregando-a para a maismaravilhosa das viagens. A maisencantadora que sobre a terra já serealizou. A folha pequenina foi levadaao redor do mundo, pôde ver todas ascoisas belas que há por aí. Quando aviagem terminou a folhinha quis voltarpara o meu quintal. Sabe por quê? Jakedisse que ela sentia saudades de mim.E Jake encontrou-a debaixo de umaárvore em um dia de inverno. Estavatoda cansada e fina. Rota, rasgada desua longa viagem. Mas Jake disse queela quis voltar, porque no mundointeiro não encontrou ninguém a quemamasse tanto quanto a mim. Então, eledeu-me a folha pequenina.

Dibs levantou-se, e, de novo,deu uma volta pela sala inquietamente.Veio parar bem à minha frente.

-Guardei a folha. Está muitocansada e muito velha. Mas conservei-a. Montei-a, unindo os pequenosfragmentos que se soltavam dela, ecoloquei-lhe uma moldura. E ficoimaginando todas as coisas que eladeve ter visto, voando em volta domundo com o vento. E li nos meuslivros sobre os vários países por ondeela passou.

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Parou a sua narrativa porinstantes e encaminhou-se para a casade bonecas.

-Vou trancá-la. Vou trancar aporta e fechar todas as janelas.

-Por que você quer trancar aporta e fechar as janelas, Dibs?

-Não sei, murmurou. Retomou à minha frente,

assumindo um velho tom de indigência. -Meu sapato. Amarre o cadarço do

meu sapato para mim, D. A. -Está bem, Dibs. Amarrarei para

você. E assim o fiz. Ele apanhou a

mamadeira, sugando-a, em seguida.Suspirou.

-Está sentindo uma espécie detristeza, Dibs?

-Tristeza, respondeu, acenandocom a cabeça em assentimento à minhapergunta.

-Jake ainda é o seu jardineiro? -Não. Não será nunca mais. Papai

disse que ele estava muito velho e nãoseria bom trabalhar assim, desde quesofrera um ataque do coração. Mas,assim mesmo, de vez em quando, eleaparece por perto. Sempre me conta umaestória. Mas há muito tempo não temaparecido. E tenho sentido saudadesdele.

-Sim, Dibs. Estou certo de quevocê tem razão para sentir saudades.Jake deve ser uma pessoa muitosimpática.

-Oh, é sim. Gosto muito, masmuito dele. Será que é assim umverdadeiro amigo? -perguntou,pensativamente.

-Suponho que sim. Jake é umamigo. E um amigo muito e muito bom.

Dibs atravessou a sala eaproximou-se da janela. Olhou parafora, em silêncio, por prolongadosminutos.

-Jake ia à igreja todos osdomingos, Dibs comentou, apontandopara o campanário. Foi ele quem medisse.

-E você, vai à igreja, Dibs? -Oh, não, respondeu

apressadamente. Papai e mamãe não sãopessoas que sigam uma religião.

Então, nem Dorothy nem eufreqüentamos igreja. -Ah! -compreendo.

-Mas Jake acredita. E vovótambém. Novamente ele fez um profundosilêncio. -Dez minutos mais? -perguntou então.

-Não. -Nove minutos? -insistiu. -Não. -Oito minutos? -continuou

perguntando. -Sim. Você ainda tem oitominutos mais.

-Então, brincarei com a famíliade bonecas na sua casinha, durante oresto do tempo, decidiu.

Começando, de imediato, ospreparativos da brincadeira, apanhouum invólucro de papel de escrever.

-Vou colocá-lo em minha casa,disse, dispondo um a um noscompartimentos da casinha. Alguémconsertou a porta, de novo.

-Sim. -Este será o mirante dacasa, determinou, indicando o quarto,que se localizava no nível mais alto,bem próximo ao telhado.

-É, sim. Bem que pode ser. -Reúno todos os adultos e os preparopara que se deitem, comentou, enquantocolocava os bonecos maiores nos seusquartos. Bem, agora as crianças. Aquiestá o bebê. E a cozinheira. E alavadeira ali. A lavadeira disse queestá cansada. Queria descansar. Aquiestão as camas. Este é o quarto dopai. Você não deve entrar lá. Não deveincomodá-lo. Ele está ocupado. Bem,está é a cama do homem. Este é oquarto da mãe. A sua cama está aqui. Ecada criança tem sua própria cama. Ecada uma tem o seu próprio quarto. A

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cozinheira tem o seu quarto e suacama. Ela diz que está cansada,também. Só a lavadeira não tem cama.Tem que ficar em pé e acompanhar asmáquinas de lavar e secar. E estacriança algumas vezes desce para alavanderia e pergunta-lhe por que nãoSe deita em uma cama, já que se sentecansada. Mas ela responde que lhepagam para trabalhar. Portanto, nãopode descansar. Mas a mãe fala que alavadeira poderia sentar-se em umacadeira de balanço, ali mesmo,embaixo. Não há razões para não sebalançar, se assim o deseja. Ela vemlavando para esta família há quarentaanos. Pode sentar-se um pouco de vezem quando Pelo amor de Deus, não pode?-a cozinheira pergunta. Mas alavadeira continua a falar que não,pois se a cadeira estala ou rangeseria um incômodo para o homem. Deusnão nos ajudará se atrapalharmosaquele homem, diz ela. Mas acozinheira acha que não serianecessário tantas preocupações. Que sedeixe o homem com seus problemas. Elaresolve mandar o garoto lá para cima,dizendo que ali na lavanderia não hábastante coisa para inventar ebrincar. Ele obedece.

Neste momento, bati por acidentemeu pé no quebra-cabeça que Dibs haviaarmado no chão, bem junto a mim.Inclinei-me para recompô-lo. Dibsrelanceou-me com seus rápidos olhos.

-Que está você fazendo? -inquiriu-me. -Chutei o seu quebra-cabeça -Tom Tom, o filho do flautista,desmontou-se.

Dibs não entendeu a minharesposta. Olhou-me com muitacuriosidade e perguntou:

-Que foi que você disse? Nãoentendi o que você falou.

-Bem, acidentalmente chutei seuquebra-cabeça -Tom Tom, o filho doflautista e, assim, separei as peças.

-Oh! -respondeu Dibs. Certamente, Dibs estava sempre

bem alerta para qualquer movimento que

ocorresse naquela sala, não importandoquão absorto ele parecesse estar nasua própria atividade. Ajoelhou-se evoltou-se para verificar se haviarecomposto corretamente o seutrabalho. Feita a inspeção, levantou-se para brincar com a chave da Sala deLudoterapia.

-Tranco isto? -perguntou-me. -Você quer que a porta fique

trancada? -Quero sim, respondeufechando a porta. Depois de algunsmomentos acrescentei:

-Bem, agora que você fechou aporta, deixe-me vê-lo reabri-la, poisjá está na hora de ir para casa.

-É verdade, disse Dibs. Mesmoque você saiba que eu não quero ir.

-Sim. Ainda que eu saiba quevocê não sente vontade de ir paracasa, há ocasiões em que você precisair. E esta agora é uma dessasocasiões.

Dibs permaneceu em minha frente,olhando fixamente dentro dos meusolhos, suspirou.

-Sim, acrescentou. Eu sei. Aquiposso fazer tudo o que desejo, mas, nofinal, sempre devo ir embora.

E decididamente abriu a porta,começando a retirar-se da sala.

-Seu chapéu e seu casaco, Dibs.-Oh! sim. Seu chapéu e seu casaco.Repetiu. Voltou-se. Vestiu o agasalho.Enfiou seu chapéu na cabeça. -Meuchapéu e meu casaco, corrigiu. Atémais, D. A, despediu-se, olhando-me.Até quinta-feira. Estarei aqui denovo. Todas as quintas-feiras.

E atravessou o corredor, fUmandopara a sala de recepção. Acompanhei-ocom o olhar. Ao longe, virou-se parame acenar a mão em despedida.

-Até mais, disse-lhe novamente.Tão novo. Tão pequeno. E assim mesmotão cheio de força. Pensei em Jake.Será que ele soube o quanto a suacompreensão, sua sabedoria edelicadezas tornaram-se decisivas no

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processo de desenvolvimento daquelacriança? E repensei a riqueza desimbolismo que a pontinha, que a parteterminal do galho, e ainda a folhapequenina, cansada e rota, guardavam.E, de novo, lembrei-me da sábiapergunta de Dibs:

-"Será que assim é um verdadeiroamigo!"

CAPÍTULO XII Todas as semanas incluem uma

quinta-feira e a semana seguinte nãopoderia constituir exceção.Entretanto, Dibs não pôde comparecer àludoterapia. Estava com sarampo. Suamãe telefonou e cancelou a consulta.Já na semana que se seguiu, . havia-serecuperado o suficiente e, portanto,apareceu pronto para brincar. No seurostinho pálido, destacavam-se asmarcas produzidas pela doença, quandoele penetrou na sala de recepção.

-O sarampo acabou. Estou melhoragora. -Você terminou com o seusarampo, não

foi? -acrescentei sem acreditarna possível resposta afirmativa.

-Claro. Terminei. Curei-me.Vamos voltar para o quarto debrinquedos.

Quando passamos pelo meuescritório, Dibs olhou para o seuinterior e observou dois homens queali se encontravam, consertando algunsgravadores.

-Há dois homens no seuescritório, observou. Eu quero dizerque há dois homens dentro do seuescritório.

-É verdade. Eles ficarãotrabalhando ali, enquanto nós vamospara a sala de brinquedos.

-E você deixa pessoas no seuescritório? -Sim, algumas vezes.

-Que estão eles fazendo? -Consertos em algumas máquinas

gravadoras. Logo que Dibs entrou na Sala de

Ludoterapia, tirou seu chapéu ecasaco, atirando-os sobre a cadeira.

-Perdi a quinta-feira passada esenti muita falta.

-Sim, eu sei, Dibs. E lamentoque você tenha tido sarampo e que, porisso, não tenha podido vir.

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-Recebi o cartão que você meenviou. Senti-me feliz. Gosto dereceber cartões.

-Fico contente em sabê-lo. -Bem,você me disse no cartão que ficariabom depressa. E, também, que vocêsentia saudades de mim.

-É, foi isto mesmo. -Gostei dasflores que você me enviou. Elaspareciam a primavera. Flores lindas. Ecom gatinhos de decoração em cadagalho. Gostei tanto! Papai falou queaquele tipo de flor se, deixada por umlongo tempo na água, desenvolveraÍzes. Depois, poderão ser plantadasno quintal e crescerão como arbustos.Isto pode acontecer?

-Você disse que seu pai lheassegurou isto. Então, o que vocêacha?

-Eu acredito que ele estejacorreto. Mas vou verificar por mimmesmo. Tentar para ver. Ver para crer.

-Este é um caminho paradescobrir verdades. Estava interessadana referência de Dibs em

relação aos ensinamentos de seupai. Era difícil saber se estaconversa significava uma aproximaçãonova entre ambos ou se era umatentativa a mais, dentro de uma sériede outras, para explicar fatos eobjetos a Dibs; embora sem recebernenhuma resposta consistente de suaparte. Como D. Jane fazia na escola.Como Jake, que narrava e explicava,enquanto Dibs apenas ouvia. Agora, noentanto, ele expressava para mimconhecimentos que assim haviaadquirido, de uma maneira bastantefactual.

-Que disse você ao seu papaiquando ele descreveu o que poderiaocorrer com este tipo de flor? -insisti, na esperança de captar umoutro fragmento para compreender o seuprocesso.

-Nada lhe respondi, replicouDibs. Apenas ouvi.

-Você conversa com seu pai?

Dibs circulou a sala debrinquedos, olhando os potes de tintae o material sobre a mesa. Em seguida,dirigiu-se ao depósito de areia esaltou dentro dele com um movimentolivre e espontâneo. Ali deitou-se,relaxando-se.

-Você quer retirar seus sapatos,Dibs?-perguntou-se.

-Não, retorquiu. E o que vocêdeseja fazer, Dibs? Decida-se! -continuou o seu monólogo, virando-se edispondo o seu rosto em contato com aareia. Não tenho pressa. Por enquanto,apenas serei eu, falou com firmeza,empurrando suas mãos profundamente naareia e dali retirando alguns dospequenos edifícios que haviam sidoenterrados por outra criança. Oh! -estou descobrindo coisas na areia.Pequenos edifícios. Bagatelas.Coisinhas.

De repente, abandonou esta parteda areia para pesquisar na extremidadeoposta, começando a removê-la e cavá-la. Enfim, a sua pá arranhou o metaldo fundo de uma caixa. Dibs inclinou-se e apanhou um soldadinho debrinquedo. E levantou-o bem alto.

-Oh! Oba! Logo este homem! -exclamou. Viu aqui? Viu estesoldadinho. Foi este homem queenterrei embaixo da minha montanha.Que bom encontrá-lo e sabê-loenterrado durante todas estas semanas!Agora volte de novo, senhor! O senhorirá de volta! De volta para dentro desua sepultura, concluiu, reenterrando-o, enquanto cantava.

Oh! Você conhece o homem de pão?O homem de pão, o homem de pão? Oh!Você conhece o homem de pão, Que jazna rua tristonha?

Olhou-me e sorriu com grandeexpressão de alegria.

-Aprendi esta canção na escola,falou.

Agora cantarei para o homementerrado:

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Oh! Você conheceu o homem denada? O homem de nada, o homem denada? Oh! Você conheceu o homem denada? Ele mora na tristonha sepultura.

Dibs gargalhava. Batia com a páno cume da sepultura para dar maisênfase ao que cantava.

-Não, falou para mim, muitocasualmente, embora houvesse decorridoum considerável intervalo de tempoentre a formulação de minha pergunta esua resposta. Eu não converso muitocom papai.

-Não conversa? -Não. -Por que não conversa? -Não sei, respondeu Dibs. Eu

acho que é porque. ..bem. ..eu apenasnão converso.

E cantarolou uma outra melodia:-Aprendi também esta na escola,comentou. -Você canta esta na escola?

-Aprendi na escola, mas cantarsó aqui, para você.

-Oh! Sei. Em terapia, a formulação de

perguntas é tão importante quanto oobterem-se para elas respostasprecisas e honestas. Freqüentemente,fico imaginando se algumas mudanças setêm processado no comportamento deDibs na escola. Aparentemente, nãoocorrera nenhuma transformaçãosignificativa, desde que osprofessores não me notificaram. E foraesta a nossa combinação. Entretanto,Dibs vinha aprendendo no colégio, emcasa, e em qualquer lugar onde ia, masde tal maneira se conduzia, que suaaprendizagem não podia ser avaliada outestada.

-Tire seus sapatos, Dibs, faloupara si mesmo.

E assim o fez. Depois de removê-los, encheu-os com areia, para istomanuseando a pá em elaboradosmovimentos. Em seguida, retirou umadas suas meias, colocando areia no seuinterior. Puxou a extremidade da outrameia fazendo a areia penetrar pelo

bocal, na altura de sua perna. Aofinal, descalçou o pé de todo e, com apá, completou a tarefa de enterrá-lo.

De súbito, arrancou o seu pé dopeso da areia, saltou do depósito eabriu a porta da sala. Pôs-se de pontade pé e alcançou a tabuleta que aliestava pendurada. Retirou-a e com elanas mãos voltou para a sala. Fechou aporta e exibiu-a para mim.

-Que é terapia? -Terapia? -perguntei, surpresa.

Bem, deixe-me pensar por um minuto. Por que me teria dirigido esta

questão? -procurava compreender. Queexplicação poderia dar de minha partecomo uma contribuição positiva?

-Diria que terapia quer dizeresta oportunidade de vir aqui brincarcom o que você quer e falar sobre oque mais deseja. É o tempo em que vocêpode ser da maneira que quiser. É umperíodo que você pode usar do modo quemais lhe agrade. Enfim, uma hora emque você aprende a ser, de fato, você.Esta é a melhor explicação que lheposso dar agora.

Dibs apanhou o cartaz da minhamão e, de imediato, exibiu o reverso.

-Sei o que isto significa. Nãoperturbe quer dizer para todos que,por favor, deixem sozinhos os queestão aqui dentro. Que não incomodem.Não entrem. Não batam à porta. Deixemos dois serem o que quiserem. Bom.Deste lado diz que já estão sendo,vivendo como querem. Deste outro,apenas pede que permitam estaoportunidade. Que não os interrompam.É assim?

-Claro, Dibs. É isto mesmo.Alguém caminhava no corredor. Dibsouviu as suas passadas.

-Há uma pessoa andando em frenteà nossa sala. Mas esta é nossa sala.Eles não entrarão aqui, não é verdade?-indagou.

-Não creio que entrem. -Bem,esta sala é apenas para mim, não é? -

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Apenas para mim e para mais ninguém.Não é certo? -insistiu.

-É apenas você durante estehorário semanal, se você assim o quer.

-É nossa, falou Dibs. Não apenaspara mim. Mas é também sua.

-É nossa, Dibs. -Colocarei ocartaz no seu lugar, de novo. E,assim, não nos incomodarão.

Antes de fechar a porta, Dibs aacariciou e, então, entrou com umlargo e feliz sorriso a brincar-lhe norosto. E tomou a direção do cavalete.

-Dibs, agora que você já saiu daareia, não seria melhor calçar seusapato e as meias?

-É verdade, Dibs concordou.Ainda mais que estou com sarampo. Mas,primeiro, colocarei as meias e depoisos sapatos.

-Oh! Sim.. Naturalmente. Eudisse sapato e

meia, não foi? -Foi sim, Dibs confirmou,

sorrindo. Depois de calçar suas meias e

sapatos e dar o laço apertado eseguro, voltou a brincar na areia.

-Quando o sarampo me cobriutodo, tive de ficar na cama. E elesdesceram as persianas, de forma que oquarto era mantido tão escuro quantopossível. Por isto não poderia ler,desenhar ou escrever.

-E o que você fazia então? -Escutava disco.s que colocavam

para mim. Mamãe contou-me algumaslendas. E como tenho pilhas de discosde estórias, ouvi-os todos, repetidasvezes. Na verdade, prefiro meus discosde músicas e canções.

-As narrativas e as músicasdevem tê-lo ajudado a passar o tempo.Não foi?

-Mas, senti tanta falta dos meuslivros! ... -Você gosta muito de ler,não é verdade?

-Oh! Sim. Muito e muito. É umprazer escrever estórias sobre o quevejo e o que penso. Também gosto dedesenhar e pintar. Mas, para mim, leré melhor que qualquer outra atividade.

-Que gosta você de ler? Qual otipo de livros que você tem?

-Oh! Tenho todos os tipos delivros: livros sobre pássaros eanimais, sobre árvores e plantas,sobre rochas e peixes, sobre pessoas eestrelas, sobre climas e países e duascoleções de enciclopédias e umdicionário. Meu dicionário ilustradoque ganhei há muito e muito tempoatrás. E, ainda, um outro dicionáriogigante, que havia sido de papai.Enfim, tenho prateleiras enormescheias de livros. Livros de poemastambém. E alguns livros de velhasestórias. Mas, sem dúvida, os livrosde ciência são os meus preferidos.Porém, mais querido do que qualquer umdesses é o cartão que você me enviou.Eles permitiram que o guardasse nacama comigo. Deixaram-me abri-lo.Mamãe deixou-me ler em primeiro lugar.Então guardei-o e reli-o e reli-o,tantas vezes que nem sei quantas.

-Imagino que você utiliza umaboa parte do seu tempo lendo, não éverdade, Dibs.

-É,sim. Todo o tempo livre deque disponho, respondeu. Mas gosto.Sabe, é uma alegria ler sobre ascoisas que vejo. Por outro lado, gostode conhecer objetos, fatos sobre osquais já li. Coleciono todas asespécies de rochas e folhas,classifico insetos e borboletas.Pilhas e câmaras também. Algumas vezestiro retrato de coisas do meu quintal.E da árvore que cresce em frente àminha janela. Acontece que minhasfotografias não são lá muito boas.Creio que meus desenhos são melhores.Mas, na verdade, nada me parece melhorque este seu quarto de brinquedos,acrescentou, balançando a cabeça.

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-É este o seu preferido? Ebastante diferente do seu quarto decasa, não acha, Dibs?

-Certo, respondeu. Há uma grandediferença.

-De que maneira são diferentes?Você poderia caracterizar asdiferenças?

-Tal como você disse, afirmouDibs, com toda a seriedade. São muitodiferentes. E parece que é só.

Deixei-o escorregar. Todos estesdetalhes adicionais eram, de fato,interessantes, mas não podiam explicarde que maneira Dibs havia aprendido aler, escrever e desenhar. De acordocom as teorias existentes, ele deverianão ser capaz de adquirir qualquer umadestas habilidades sem o domíniobásico da linguagem verbal e asapropriadas experiências que lhefornecessem o indispensável apoio.

O costumeiro barulho do caminhãoindicava que o parque deestacionamento estava, de novo, sendopercorrido por um carro de carga. Esteestacionou em frente à janela da Salade Ludoterapia, chamando a atenção deDibs.

-Olhe para fora da janela!-Dibsexclamou. Ficou a observar o motoristaque descarregava

o caminhão, até que, ao final datarefa, Dibs o olhou retomando adireção e partindo. Abriu a janela edebruçou-se para olhar o trajeto docaminhão, até o seu completodesaparecimento. Só então fechou ajanela.

O sino da igreja começou atocar. Dibs virou-se e olhou para mim.

-Ouça, pediu. São 4 horas agora.Um. Dois. Três. Quatro, contou osrepiques. Quantos minutos mais aindatenho?

-Quinze minutos. -Oh! Dibs exclamou

interrogativamente, conferindo em seusdedos para sentir o significado

concreto daquele tempo. 15? Cincominutos mais 10 minutos? Dez minutosmais 5 minutos?

-Exatamente. -As vezes os minutos são felizes

e outras tantas são tristes. Há tempostristes e tempos alegres.

-Ê verdade. Tempos tristes etempos alegres se misturam na vida.

-'-Estou feliz agora, confessou.-Você está?

-Sim, muito feliz. Abriu a janela e inclinou-se

para melhor perceber a paisagem. -Oh! dia lindo! Oh! dia feliz!

Com o céu tão azul. E pássaros voando.Oh! Você ouviu aquele avião. Oh,pássaro alegre! Oh! Dibs feliz. Oh!Dibs que tem ramos de flores paraplantar e para vê-los crescer. Oh!fale, Dibs, o quanto você é feliz,reafirmou, enquanto contemplava apaisagem, debruçando-se no peitoril.Tão feliz que vou novamente inclinar-me sobre a janela, antes que a feche!-exclamou.

-Quando os sinos tocarem outravez, será o sinal de que nosso tempoterminou, avisei.

-Oh? É, sim. Devo lembrar-medisto. Aproximou-se de mim e, comgestos rápidos e em silêncio, tocouminha mão. Encaminhou-se para ocavalete. Reorganizou as jarras detinta. Apanhou a caixa de animaizinhosda fazenda. Recolheu algumas peçaspara armar a' cerca e examinou-as,planejando que iria construir umafazenda encantadora e alegre.Cantarolou:

Oh, farei uma fazenda. Oh, fareiuma fazenda. Uma fazenda feliz,

Para você e para mim. -Quantos minutos ainda tenho?

Escrevi o número cinco em um pedaço depapel que levantei alto, para que elepudesse visualizar. Dibs olhou-o esorriu. Segurou o meu lápis, e

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aguardou alguns segundos, e entãoescreveu quatro. Esperou um pequenointervalo e escreveu três. E nomomento seguinte escreveu dois. E,quase de imediato, substituiu-o pelonúmero um.

-Está na hora de ir para casa,anunciou. Apenas os sinos da igrejaainda não tocaram.

-Você está na frente dos sinos! -É verdade. Você viu a grande

cerca que eu construí na nossa sala? -Ah! Sim. e uma longa cerca. -

Não é assim tão grande. E voltou acantarolar:

Fiz uma cerca, Uma grande cerca. O seu fim nem posso ver. Por que uma cerca? Onde está uma cerca? Não quero nenhuma para mim. Dibs gargalhava com

espontaneidade, enquanto planejavaconcluir a sua fazenda, colocandoanimaizinhos dentro da cerca. E assimos foi dispondo na medida em que osnomeava. Os primeiros foram umcavalinho e uma vaca.

-Esta vaca dá leite. É umavaquinha amiga. Todas as vacaspermanecem em fila, prontas para darleite. Fiquem em fila, vaquinhas,ordenava com voz bem aguda. Uma atrásda outra. Estão ouvindo o que digo avocês? Não se comportem como idiotas eestúpidas.

Voltou sua atenção para um galoe o fez entrar na sua cerca,anunciando-o devidamente. Os sinoscomeçaram a tocar.

-Ouça, Dibs, avisei-lhe. -Sim,respondeu. Uma hora. Teremos trêshoras mais até as quatro horas.

-Sim, venha agora, Dibs. Seráque você está tentando fazer de mimuma boba? Não está na hora de ir paracasa?

-Está sim, respondeu. Mas pode-se fingir.

-Fingir? -Claro. Vamos fingirque é apenas uma hora, sugeriu.

-E você imagina que fingindomudaria de fato o tempo?

-Bem, isto não. Mas há doistipos de fingimentos, 'replicou.

-E quais são eles? -Bem, o fingimento que é correto

praticar e o fingimento que faz aspessoas passarem por tolas, explicou,levantando-se e dirigindo-se a mim. Ealgumas vezes estas duas formas semisturam tanto, que chegam aconfundir-se. E ninguém poderia dizeronde acaba uma e começa a outra. Estouindo agora para o consultório domédico. De fato, hoje deveria ir lá. Epassei por aqui primeiro, porquequeria tanto, tanto, brincar. Mamãeestava certa de que poderia trazer-metambém. Ela me disse que lhe haviaperguntado se você já tinha tidosarampo e sua resposta foi que sim.Mas talvez o médico não me tivessepermitido, continuou, vestindo ocasaco e o chapéu. De fato, já estoubem, reafirmou. E não posso passar osarampo para ninguém agora, falousorrindo. Até mais! Bem, até a próximaquinta-feira. Novamente nos veremosquinta-feira. Até lá!

Dibs foi embora e eu fiquei comas minhas interrogações e inferências.Parecia que esta conversa com Dibs medava razões para acreditar que seurelacionamento com sua mãe processava-se agora de uma maneira mais saudável.Havia indicaçÕes de que Dibs estavasendo tratado com mais consideração,respeito e compreensão, em sua casa.Mesmo seu "papai" parecia estarpermitindo que suas potencialidadeshumanas desabrochassem. Mas estariameles modificando-se para melhorentender Dibs? Ou seria Dibs quemestava alterando suas atitudes emrelação aos pais, de tal maneira quepodia então usufruir suas qualidadesmais espontaneamente?

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Sem dúvida, eles haviamprovidenciado amplo e variado materialpara alimentar a aguçada capacidadeintelectual de Dibs. Certamente, seuspais tentaram comunicar-se com ele eensinar-lhe o que julgavam importante.Era dificílimo compreender como elespodiam sentir que seu filho eraretardado mental, quandoprovidenciavam material muito além dacapacidade média de uma criança nafaixa etária de Dibs. É provável que,inconscientemente, tenham pressentidoque os problemas de Dibs não eramcausados por falta de habilidadeintelectual. Entretanto, por que Dibsainda mantinha estes dois tipos decomportamento: um tão assombrosamentesuperior e outro terrivelmentedeficitário?

CAPITULO XIII A alegria transbordava no rosto

de Dibs, quando ele retornou ao Centrona semana seguinte.

-Mamãe deverá apanhar-me umpouco mais tarde hoje, disse. .

-É. sim. Já soube. -Ela deverá dar alguns recados e

avisou-me que deveria esperá-la aqui.Disse-me que havia combinado estedetalhe com você.

-Está tudo certo, Dibs. Caminhando em volta da sala com

o sorriso em seu semblante, Dibsplanejava a sua próxima atividade.

-Penso que vou cantar, anunciou.-Se você quer cantar, cante.

-E se quiser ficar parado, quefique parado, continuou gargalhando.Caso deseje somente pensar, que eupense apenas. E logo que eu queirabrincar, que brinque. Assim, comoagora.

-Sim, Dibs. Aproximou-se do cavalete e

observou atentamente os tons de tinta.Um por um. Escolheu a jarra azul ecomeçou a cantar. Ao som de suacanção, Dibs fazia a jarra dançaracompanhando o ritmo suave e alegre,oscilando de um para o outro lado.

Oh, tinta! Oh, tinta tão azul! Que você pode fazer? Pintar o céu. Pintar o rio. Pintar as flores, Pintar os pássaros, Todas as coisas são azuis, Se você as faz azuis.Oh, azul! Oh, tinta tão azul! Encaminhou-se para mim com a

jarra de tinta nas mãos.

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Ela vai entornar, respingar .Vai derramar, escorrer.

Minha adorável tinta azul!

E as palavras fluíamnaturalmente em uma seqüênciacancionada.

É uma cor emocionante. Mexe-se emexe conosco. Oh, azul! Oh, azul! Oh,azul!

E a dança vibrante da jarra azulimpulsionada pela música e pelosmovimentos de Dibs só terminou quandoa tinta verde foi escolhida como suasubstituta. A azul retornou ao seuplácido repouso.

Oh, tinta verde! Tão verde! Como és calma e agradável, Envolvendo a primavera, Envolvendo o verão, Nas folhas, na grama, nas

colinas. Oh, verde! Oh, verde! Oh, verde!Com gestos harmoniosos e

decisivos, Dibs recolocou a tintaverde no seu lugar e elegeu a pretapara expressar e simbolizar os seussentimentos, exteriorizando-os na suacanção.

Oh, preto! Oh, noite! Oh, terrível escuridão! Por que me cercas de todos os

lados? Atrás das sombras e dos sonhos,

Das tempestades e das noites? Oh, Negro! Oh, preto! Oh,

escuridão!

Desta vez, Dibs optou pelavermelha e trouxe-a par.a que apudesse ver de perto. Mantinha-alevantada e cuidadosamente apoiada emsuas duas mãozinhas. Seu timbre de voz

enfatizava cada palavra por elepronunciada.

Oh, vermelho! Oh, malvada tinta!Oh, tinta carregada de zanga e

testa franzida! Oh, sangue tão vermelho! Oh, ódio! Oh, loucura! Oh,

pavor! Oh, lutas barulhentas e

misturadas com sangue! Oh, raiva! Oh, sangue! Oh,

lágrimas! Pouco a pouco foi baixando a

tinta vermelha. Em silêncio, fixou-lheo olhar. Suspirou profundamente antesde guardá-la. Pegou, então, a tintaamarela.

Oh,cor chamada amarela! Oh, cor zangada! Oh, grades na

janela, Que mantêm as árvores distantes

das crianças! Oh, portas fechadas com chave

passada e repassada!

Eu te odeio, amarelo! Velha cor! Cor das prisões! Cor dos sozinhos e apavorados! Oh, cor chamada amarela!

Devolvendo-a a seu lugar deorigem, Dibs dirigiu-se para a janelae admirou aquele pedaço de mundo quesua vista alcançava.

-Que dia lindo está hoje! -É verdade. Durante um longo tempo, Dibs,

embebido, permaneceu contemplativo.Sentada perto, imaginava por que haviaele projetado estas associações com ascores de tinta. Por que teria mostradotão negativas ligações com o amarelo?E, logo, Dibs voltou para o cavalete.

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-Esta tinta turquesa é nova? -É,sim, Dibs.

Colocou duas folhas grandes depapel no cavalete e cuidadosamentemexeu a tinta turquesa com o pincel.Em seguida, levou o pincel à pia esobre ele deixou correr a água.

-Oh, veja! A água tornou-seazul.

Vedando a passagem da água com aponta de seus dedos, fez uma fonted'água aspergir jatos por todos oscantos da sala.

-Água! saia com mais força.Estoura! gritava entre gargalhadas.Eu, Dibs, posso fazer da água correnteuma fonte de jatos d'água. Possotornar azul a cor da água.

-Eu vi. Você pode. O pincel caiu inesperadamente de

sua mão e foi logo absorvido peloescoadouro da pia. De imediato, Dibstentou alcançá-lo. Mas em vão. Jáestava no meio do cano.

-Bem, exclamou. Que bonitodesfecho! Não posso mais retirá-lo.Ele lá se foi, bem para baixo, fora doalcance da minha vista. Apesar disto,sei que está no cano. Em sua parte bemprofunda. E isto é, de fato, muito,muito mau, comentou gargalhando.

Sim. O pincel está no meio doencanamento.

Voltou, então, a brincar com aágua, fazendo-a saltar em todas asdireções. Apanhou a mamadeira eencheu-a. Tentou colocar-lhe o bico,mas a excessiva umidade, tornando asuperfície escorregadia, dificultava atarefa. Mordeu e apertou com os lábioso bico. Deixou a mamadeira na pia, emtal posição que a corrente d'água lherenovava sempre o conteúdo. Depois,colocou o frasco bem em cima doescoadouro e logo a água contidacomeçou a encher toda a pia. Ligouentão a torneira de água potável. Denovo brincou com a chupeta damamadeira e expôs o rosto ao contatoda água que jorrava do bebedouro.

-A água está subindo, anunciou.Lave, lave, lave o seu rosto e o quedesejar .

O seu olhar percorreu a suavolta. Foi recolhendo variado materialpara ser lavado.

As duas jarrinhas vazias e sujasde tintas foram as primeiras a sercolocadas no lavatório. Entretanto, umconjunto de pratinhos de plástico, queestavam na prateleira, pareceram aDibs mais apropriados para a suaatividade. E a segunda opçãosubstituiu a primeira. Ou melhor: umaescolha completou a outra~ É que eleentornou as sobras de tinta sobre ospratos. Ao verificar o efeito pulou,aproximando-se de mim e expressandosua decisão.

-Lavarei a louça! Eles estãonadando e ficando molhados. Tudo estámolhado. E tudo fica salpicado d'água!Onde está a toalha da louça? E odescanso de pratos? E o sabão? Que boaágua brincalhona que espirra! Quedivertido!

-Você está gostando dabrincadeira, não é verdade, Dibs?

-Estou, sim. A água estásubindo. Tudo ficando molhado. Algunspratos permanecem de cabeça parabaixo, outros para cima. Dê-me sabão.

Forneci-lhe um pouco de sabão, opano de louça e uma toalha. Ele lavoutudo com muito cuidado. Enxaguou-os eenxugou-os.

-Já viu, algum dia, louças tãobelas? Até parecem as que vovó meenviou pelo correio.

-Oh? E sua vovó mandou algumaslouças como estas pelo correio?

-Foi, sim. Havia ido visitá-la equando voltei para casa vovó esqueceude empacotar meus animaizinhos. Então,ela resolveu remetê-los para mim.Colocou uma surpresa. Louçasparecidíssimas com estas. Lindas,exatamente como estas.

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-Você gostou de sua vovó ter-lheenviado uma surpresa, não foi?

-Oh! Claro! E no dia 12 de maiovovó virá para a nossa casa!-avisoucom olhos brilhantes a fitar-me e umgrande sorriso no rosto. Vovó vem paranossa casa! Que alegria! -exclamou. Nodia 12 de maio vovó virá para nossacasa.

-Penso que a perspectiva destavisita o faz sentir-se muito e. muitofeliz. Você ficará contente em ver avovó, não é mesmo?

-Certo, confirmou. E tão, tãofeliz que posso explodir.

Tornou a cantar de novo. Para Dibs, com o amor da vovó,

Para Dibs, com amor, com amor, Vovóvirá. Vovó virá.

Vovó está vindo para a nossacasa. Com amor!

Bateu palmas entusiasmado. -Voufestejar este acontecimento que vemvindo, agora mesmo, com uma festa.Exatamente agora, comentou, enquantodispunha as xícaras em fila e asenchia com água. Para cada criança umafesta. Para todas as crianças umaespecial bebida. Estou organizando umafesta e deverão vir muitas criançaspara dela participar.

-Você fará uma festinha paracrianças, agora? -Naturalmente.Crianças. Turmas de crianças amigas.Haverá sete crianças na minha festa,deliberou, conferindo o número exatode xícaras.

-Você convidará sete criançaspara a sua festa?

-Bem, serão seis convidados eDibs, replicou.

-Oh. Seis crianças e você entreelas.

-Perfeito. Seis crianças e maisDibs, então teremos o total de setecrianças.

-Está claro. Naquela sessão Dibsexpressava o seu desejo de ser uma

criança compartilhando do mundoinfantil com outros.

A mamadeira que ele houverausado para vedar o dreno da piadeslizou. A água borbulhava. Dibs riaa cântaros.

-Que barulho gozado, comentou.São quatro horas. Está ficando escuro.Já está tarde. Vou jogar a água queestá nas xícaras fora. Colocarei umanova para a festa. É hora de prepararas bebidas.

Encheu a jarra de água ederramou cuidadosamente um pouco emcada uma das xícaras. Cantava.

-Oh, xícara número um, aqui estáágua para [você.

E xícara número dois e xícaranúmero três. Todo cuidado. A jarra nãovai entornar toda.

Mas você poderá deixarrespingar.

Xícara número quatro, cinco eseis,

e agora número sete, umaquantidade extra. Transbordou!Transbordou! Transbordou! Águaespalhada em todos os secadores delouça. Água escorrendo no chão. Águaem toda parte!

Voltou a encher a jarra ederramou a água no secador de pratos,no chão e na mesa. E, como ele mesmofalou, um lago formado por grandesrespingos e poças d'água cobriu todasas suas proximidades. Mas ele sedeleitou com cada pingo e cada minutodaquela atividade. Casualmente,encontrou duas outras xícarasplásticas.

-Oh! -duas xícaras mais,exclamou fazendo um alarido. Serãonove crianças participando de minhafestinha. Oferecerei uma festa de chá.E distribuirei chá para todos. Agora,esvaziarei todas as xícaras paraprepará-las. Teremos uma festa,repetiu, deixando pingar outras

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porções d'água. Quantos minutos aindatenho?

-Oito minutos mais. -A festadeverá durar os oitos minutosinteiros, anunciou. Usaremos nossomelhor aparelho de chá, hoje.

A sua última frase foipronunciada com um tom de voz bastantediverso do habitual. Parecia preso eformalizado. Imitava com perfeição ainflexão precisa e a expressão da vozde sua mãe.

-Se "vai haver uma festa de chá,devemos organizá-la adequadamente,afirmou. Sim. Haverá uma reunião comchá. Um pouco de chá em cada xícara edepois encheremos o restante comleite. Esta é uma quantidade muitogrande de chá, disse. Apenas umpouquinho em cada xícara. Se vocêquiser um pouco mais d'água, não háproblemas. Mas não será possível maischá. Não adianta argumentar, declarou,colocando água às colheradas nasxícaras. A xícara seis está com chádemais, conclui com um tom severo navoz. Por favor, retire um pouco do cháda xícara seis e siga minhasinstruções mais atenciosamente. E estaquantidade de açúcar é o suficientepara crianças. É bastante açúcar. Enão deveria ser necessário repetirtudo o Que digo. Se você quer umafesta de chá, sente-se quieto junto àmesa e espere até que cada um sejaservido. Também deverá comer um pedaçode torrada com canela. E não fale comalimento na boca.

Dibs arrumou a mesa. Puxou acadeira para sentar-se. Suas atitudestornaram-se humildes. submissas, quasepassivas. Segurou o recipiente d'águae, vagarosamente. movimentou-o emvolta da mesa, e, com delicadeza,entornou uma pequena quantidade d'águaem cada copo.

-Um pouco de chá em cada xícara,insistiu em um tom moderado e precisode voz. A quantidade de chá da xícaranúmero três está exagerada. Removereium pouco, afirmou. enquanto jogava um

pouco d'água fora. Você deve colocaruma colher de açúcar em cada xícara.

Assim ordenava-se, a si mesmo,os encargos e providências para servira mesa. A outra jarra ficou designadacomo leiteira. Uma pequenina colher deareia era acrescentada como se setratasse de açúcar.

-Sirva a colher de açúcar comatenção, Dibs recomendava-se. A xícaranúmero seis tem chá demais. E istodeve ser corrigido. Cuidado com oaçúcar. Crianças não devem comer tantoaçúcar. Tire o seu cotovelo da mesa.Se houver qualquer outra barulheiraaqui, você irá para seu quarto.Trancarei -você -em seu quarto.

Dibs sentou-se diante dasxícaras. Suas mãos estavampropositadamente colocadas nas bordasda mesa.

-Você deve comer a torrada comeducação, Dibs, continuava,intransigente, a observar.

Tentando colocar o prato detorradas situado do outro lado damesa, Dibs derrubou uma das xícaras.Num salto, levantou-se da mesa, comuma expressão de pavor na face.

-Acabou a festa, vociferou. Nãoteremos mais festa. Derramei o chá,confessou, esvaziando as xícaras erecolocando-as na prateleira.

-A festa terminou porque vocêentornou o chá?

-Estúpido. Bobo. Idiota,gritava. -Foi um acidente.

-Pessoas idiotas fazemacidentes, respondeu aos gritos e comlágrimas nos olhos. A festa estáterminada. Todas as crianças já foram.Não haverá mais festa, confirmou comvoz entrecortada pelo choro. Foi umacidente. Mas a festa terminou.

-O imprevisto do derramamento dochá na festa acabou com a reunião e ofez sentir-se apavorado. Infeliz. Ogaroto que ocasionou o acidente foimandado de castigo para o seu quarto?

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Sem dúvida, Dibs haviaexperimentado vivencialmente tal fato.Caminhou em volta da sala torcendosuas mãos.

-Foi, sim. Claro. Ele deveriater sido cuidadoso. Que estupidez asua de promover tanta sujeira,acrescentou, dando ponta-pés nacadeira. Não quero mais festa, gritou.Não quero mais nenhuma criança porperto de mim.

-Você sente-se zangado e tristequando um fato parecido com esteocorre?

-Vamos para o seu escritório,pediu logo que de mim se aproximou.Quero sair daqui. Vamos embora. Eu nãosou idiota.

-Claro, você não é idiota. Juntos, encaminhamo-nos para o

meu escritório. Dibs sentou-se numadas cadeiras, em silêncio. Depoisolhou-me com uma promessa de sorrisonos lábios.

-Desculpe, sim? -falou. ~Desculpar? Por quê?

-Derramei o chá. Fui descuidadoe não deveria ter sido.

-Você acha que poderia ter sidomais cuidadoso?

-Sim, respondeu Dibs. Poderiater tido mais atenção, mas não souidiota.

-Você pode ter-se descuidado,entretanto não é um idiota.

-Certo. Isto mesmo, concordoucom uma expressão suave e alegre norosto.

Dibs havia conseguido entender oseu temporal. Havia descoberto, em simesmo, a força necessária paraenfrentar seus sentimentos feridos.

-Vou escrever uma carta,anunciou.

De imediato, apanhou papel,lápis e começou a escrevê-la com letra

de imprensa, à medida em que soletravaem voz alta cada palavra que escrevia.

Querido Dibs Lavei o aparelho de chá e fechei

o escoadouro da pia. Fiz uma festa. Ascrianças estiveram lá.

Beijos Eu. Olhou o meu calendário de mesa e

puxou-o em sua direção. Desfolhoupágina por página até chegar o diaoito de abril. Desenhou um circulo emvolta do oito e escreveu seu nome.

-Oito de abril é o dia do meuaniversário. Continuou a folhear até -encontrar a data do

aniversário de sua mãe.Assinalou-a escrevendo "Mamãe", logoao pé da página. Em outro diaregistrou "Papai" e, depois, em outrafolha, "Dorothy". Voltou para a páginaonde havia escrito papai e, ao seulado, acrescentou "Vovó".

-O aniversário de papai e devovó são no mesmo dia.

-Ah, são? -São, respondeu. Há apenas uma

diferença: um é mais velho que ooutro.

-Qual é o mais velho? -Vovó! -replicou com um tom de

surpresa na sua voz. Vinte e oito defevereiro. E este aqui é o aniversáriode Washington, também.

-No dia vinte e oito defevereiro?

-Não, Washington nasceu no diavinte e dois. Mas do mesmo mês.

Dibs inclinou o olhar e revistoutodos os seus registros.

-Creio que vou apagar este aqui,falou, apontando para o registroreferente ao seu papai.

-Vai apagar? -Não, retorquiu com um suspiro.

Deve permanecer assim, porque é seuaniversário.

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, -Mesmo que você não queira,este é o seu aniversário, não éverdade?

-É sim, respondeu Dibs. Eleprecisa disto. -O que você quer dizer?

-Ora, ele precisa, precisadisto. -Oh.

Continuando a brincar com aspáginas descobriu uma folha em branco.

-Posso retirar esta? -perguntou.-Sim. Se você assim o quiser.

-Então vou arrancar. Afinal decontas não existem dias em branco.Todos têm um número e um nome epertencem a alguém.

-Realmente? -Claro, afirmou. Não há nenhum

dia que não pertença a uma pessoa. Prosseguiu a brincadeira no

calendário. Parou em vinte e três desetembro e lembrou-se do começo dooutono. Escreveu a sua saudação: "Bem-vindo outono."' Em seguida, observou omeu fichário e perguntou:

-O meu nome consta no seufichário? Será que aqui haverá umcartão com o meu nome, como o meumédico tem?

-Por que você não procura everifica?

Dibs percorreu todos os cartõesque constavam entre os classificados,segundo a letra do seu sobrenome.

-Não. Não está aqui, concluiu.Vou tentar localizá-lo junto aos nomesque se iniciam com D. Talvez vocêtenha preparado o cartão a partir domeu primeiro nome, embora o maiscorreto fosse ter usado o meusobrenome. Procurarei então na letraD.

-Procure e veja. Apesar de sua alternativa em

buscar num e noutro, Dibs só conseguiuconstatar que o seu nome não constavanaquele fichário.

-Definitivamente, aqui não está.

-E você quer que ele figure ai?-Quero, replicou decidido.

-Por que você não o coloca,então?

Depois de selecionar um cartãoem branco, ele escreveu cuidadosamentecom letras de imprensa seu nome,endereço e número do telefone. Emseguida, classificou-o corretamente noíndice, considerando a inicial do seuúltimo nome. Continuou o seu trabalho,preenchendo outra ficha com o meunome, completando o espaço destinadoao meu endereço com o nome do Centrode Orientação Infantil. Perguntou-mequal o número do telefone do meuescritório e registrou-o. Inseriu ocartão entre os classificados sob aletra A.

O sino da igreja tomou a repicare Dibs levantou-se e olhou para forada janela. Observou o crescente fluxode pessoas em direção à entrada dometrô.

-Está quase na hora de jantar.Oh! -quantas pessoas já vão voltandodo trabalho. Terminado o trabalho,voltam para casa. Do trabalho parasuas casas. Do trabalho para o seular. Vão em direção leste por queretomam dos seus empregos para os seuslares. Lá jantarão. Amanhã, estarão devolta ao trabalho. E tomarão a direçãooeste, rumo aos seus empregos.

-É o que acontece diariamente. -Todas as pessoas se estão dirigindopara as suas casas para jantar, paradormir. Todos em direção leste. Equando voltarem amanhã para otrabalho, tomarão a direção oposta;direção oeste.

-Sim, é verdade. Bem, se elesvêm pelo metrÔ ou de ônibus será estaa sua direção. Agora estão regressandoa seus lares. Provavelmente, amanhãretomarão ao trabalho.

-É isto. Vão e voltam. Dia apósdia. Todos

os dias. Como é monótono.

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Dibs permaneceu em pé, olhandopela janela durante longo tempo.Virou-se depois e, fitando-me,perguntou:

-Onde está mamãe? -Ainda não chegou. Qualquer um

dos funcionários da recepção avisar-nos-á sobre sua chegada, tocando acampainha.

-Eles farão isto? -Sim. -Você tem certeza de que assim

irá acontecer? -Tenho sim, Dibs. -Você conversou com eles, para

que assim o fizessem? -Sim. Que pensou você? -Bem, se eles nem sempre fazem o

que prometem. ..acrescentou. -Você sente que, algumas vezes,

espera que alguma coisa aconteça efica desapontado quando não ocorrecomo desejava.

-Sim, replicou. Isto temacontecido. Mas se você diz queacredita e confia nos seusfuncionários, deve haver alguma coisaque devo fazer.

-O que você deve fazer? Dibs puxou o calendário para

perto dele e folheou-o com o intentode localizar uma outra dataimportante. Enfim, parecia tê-laencontrado.

É hoje, anunciou. Marcarei comum X este número.

-Um X no dia de hoje. Por quê? -Bem, porque este é um dia muito

importante para mim. O dia maisimportante para mim.

-Por que hoje é um dia tãoimportante para você?

-Este é o dia mais importantepara mim. respondeu com muitaseriedade. Sinto isto.

De novo manuseou o calendário.Nesta oportunidade com displicência.

-Este é o dia da Páscoa,comentou, indicando corretamente adata.

-Certo, Dibs. -Será um dia lindo! -Realmente? -Claro! É Páscoa. Flores e

música que vêm da igreja. Não é istobastante?

-É sim, Dibs. A campainha soou, anunciando a

chegada de sua mãe. -Como você havia previsto,

observou, apontando para a porta. Jáentendi a mensagem: Mamãe chegou. Atémais. Até a outra vez, despediu-se,falando bem próximo, tocando em minhamão com timidez.

Acompanhei-o até a sala deespera. Sua mãe cumprimentou-meamigavelmente e pareceu-me maisdescontraída. Dibs, por instantes,manteve-se do seu lado. Logo que iamdeixando o centro, sua mãe falou.

-Diga até mais para. .. -Até outra vez, Dibs interrompeu

para repetir a protocolar despedida. -Ele já se havia despedido de

mim, no meu escritório, disse à suamãe.

-Até outra vez! Adeus, de novoD.A, Dibs exclamou com !'-,1,;-..i!;mo. Um feliz até logo para você!

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CAPÍTULO XIV Estava na sala de recepção

quando Dibs e sua mãe .chegaram nasemana seguinte.

-Veja, mamãe! -Dibs exclamou.Que vestido lindo D.A está usando. Nãoé muito bonito? Não acha lindo?

-Oh,sim! É, de fato, um vestidoencantador. -Que cores! Coresdeslumbrantes!

Quanta espontaneidade naquelasua maneira de entrar! Nenhuma fórmularotineira. Sua mãe sorria.

-Dibs insistiu em trazer um dosseus presentes de aniversário paramostrar-lhe. Será que você tem algumaobjeção a fazer quanto a isto?

-Absolutamente, não. Se ele quistrazê-lo, nada tenho a opor.

-Bem, ele fez a maior questão.Quer explicar como funciona este seubrinquedo para você. Bem, ele dirámelhor do que eu o que na verdadedeseja. Começo a acreditar que Dibssabe o que quer, acrescentou com uminconfundível tom de: orgulho na suavoz.

Dibs ansiava para chegar à Salade Ludoterapia. Suas pernasmovimentavam-se com sofreguidão e osseus braços apertavam o importantepacote. Entrou antes de mim. Segui-o.Sentou-se às margens do depósito deareia e desembrulhou o presente.

-Estou aqui, avisou-me. Estouaqui.

-Está bem. Fique à vontade comose estivesse em sua casa.

-Como se estivesse em minhacasa, não. Como se estivesse na salade brinquedos.

-Certo. Fique bem à vontade nasala de brinquedos.

Dibs caminhava em posição ereta.com um grande sorriso a transbordar-lhe no rosto, em volta da sala.

-Eu fiz aniversário, disse. -Efoi um aniversário feliz? -Sim,respondeu, voltando a remexer opacote. Sabe o que é isto? É umconjunto internacional de códigos compilhas e tudo. Viu? Estes pontos eestes traços servem para transmitirmensagens; para transmitir mensagensem códigos. Você escreve com pontos etracinhos e envia sua mensagem. Nãoprecisa letras, apenas código.

Enquanto Dibs movimentava obrinquedo, a bateria soltou.Rapidamente, ele a recolocou.

-Estas pilhas saltam sem razão.Não se ajustam muito bem. Está ouvindoum pequeno barulho que ressoa quandopressiono a chave? Isto é a mensagem.Não é interessante?

-Sim, Dibs. É muitointeressante. -É interessantíssimo!

Dibs renovou a demonstração.Pressionou a chave, estalou amensagem. Viu como funciona ? É umconjunto de códigos internacionais eninguém pode ler, desde que nãoconheça o código.

-Estou observando. O caminhãopercorreu o parque de estacionamentoaté bem perto da janela.

-Vá ver o caminhão, Dibs, falouele, revertendo ao seu antigo modo deexpressar-se. Abra a janela! Oh, ocaminhão já foi, comentou, depois deter-se debruçado sobre o peitoril.

-Já foi? -Mas está-se aproximando um

outro caminhão. Um auto-cargapercorreu o parque e estacionoupróximo. Dibs olhou-me com uma alegriacontagiante. Talvez aquele seuretrocesso para o linguajar de bebêfosse um alívio, um escape, face àpressão das expectativas para as quaisaquele presente de aniversário o haviaestimulado.

-Aqui está o caminhão. Parado.E. ..agora movimenta-se, de novo. Vem,em marcha-ré. Enfim estaciona. Omotorista salta e carrega alguma

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coisa. Quatro caixas empilhadas, umasobre a outra. Retoma para o auto. Eapanha mais quatro grandes caixas. Vaipara dentro do edifício.

Dibs inclinou-se no peitoril dajanela e observou o auto-carga em seusdetalhes. Virou o rosto e por sobreseu ombro relanceou-me.

-Que caminhão enorme! Sua cor éum vermelho carregado. Está cheio decaixas. Não sei o que as caixascontêm, mas este auto-carga transportamuitos pacotes. O homem entra e sai dacarroceria do auto. Carrega os pacotespara dentro do prédio. Vai e volta.Entra e sai. Sempre levando bagagens.

Duas jovens colegiais com osseus equipamentos de livros passaramperto da janela. Levantaram o olharpara ver Dibs que, a esta altura, seinclinava sobre a janela.

-Alô! -uma delas falou,dirigindo-se a Dibs.

Ele pareceu ignorá-la. -Falei alô, a garota insistiu

num tom mais alto. Dibs continuou silencioso. -Você não pode responder ao meu

alô? perguntou-lhe. Você não sabefalar? Que há de errado com você? Seráque o gato comeu a sua língua?

Dibs não respondeu uma palavra.Permaneceu na janela, olhando-as,mudo, até que as duas garotasdesapareceram de sua vista.

-Olho estudantes passando. Masnão falo com elas. E aqui estácaminhando uma senhora. Também, nãoconverso com ela. Não digo nenhumapalavra para qualquer destas pessoas.Bem, mas o caminhão já vai. Até logo,caminhão!

E o auto-carga deslizou peloestacionamento, acompanhado do barulhoressoante do seu motor em movimento.

-Você não pode responder ao meualô? Você não sabe falar? Dibs repetiuimitando a voz da garota.

Fechou a janela com uma fortebatida e virou-se, fitando-me com osolhos em chamas de cólera.

-Não quero dizer alô! Não ireifalar com elas! Não conversarei.vociferou.

-Bem, você pode olhá-las e ouvi-las. Entretanto, suas perguntasferiram os seus sentimentos e você nãoquer conversar com elas.

-É justamente isto, concordou.As pessoas são assim e não gosto defalar-lhes. Mas converso com ocaminhão. Digo-lhe até logo!

-O caminhão não pode dizer nadaque possa magoá-lo. não é verdade?

-O caminhão é simpático! -acrescentou.

Encaminhou-se para o depósito deareia e à sua borda sentou-se.Revolveu a areia com seus dedinhos.Reencontrou o soldado de chumbo esegurou-o firmemente, por um longotempo, fitando-o. Voltou-se, emseguida, para a areia. cavou com suasmãos um buraco e enterrou-o sob umacolina.

No pico do monte de areiacolocou um caminhãozinho. Sem nenhumapalavra, elaborou esta forma dedeclaração dramática dos seussentimentos íntimos. Que riqueza desimbolismo nesta representação!

Apanhou um balde de areia, umabacia de plástico, uma colher, umapeneira. Dispôs todos estes objetos namesa.

-Agora, vou fazer bolinhos ebiscoitos, avisou. Hoje será um dia debiscoitos e vou preparar alguns bemespeciais. Descansarei minha cabeçadas preocupações, afirmou, medindo emisturando a farinha na tigela.Colocarei trigo, açúcar e manteiga.Vou peneirar toda a farinha. Peneirá-la três vezes. Deste modo, Dibs, elaficará mais leve. E os biscoitosficarão mais saborosos. Acrescentareigordura. A manteiga é, algumas vezes,chamada de gordura. Bem, há várias

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outras coisas também chamadas degordura. Como banha, margarina e óleosvegetais, explicou, absorvido na suafunção assumida naquela brincadeira.

Continuou acrescentando olíquido, que significava ali o leite,conforme explicara.

-Você observou que acendi, já háalgum tempo, o forno para que elepossa estar pre-aquecido para recebera massa pronta? Pre-aquecido significatorná-lo quente antes do tempo. Então,posso apanhar os cortadores debiscoito. Há uma grande variedade deformas. Estes têm o contorno docoelho. Estes aqui de estrelas. Estesoutros de pequenas abóboras. Você temuma forma preferida? Se tem, avisepara mim ou simplesmente coloque domeu lado direito. Queria saber se vocêestá compreendendo o que estoufalando. Você entende sobre cortadoresde biscoitos? Gostaria que desse aforma de coelhinhos aos biscoitos?Agora, vou espichar a massa com esterolo e então poderei cortar com aforma que você escolher.

Na verdade, a sua mistura nãoformava uma massa compacta. Percebendoisto, passou de relance sua vista emmim, afirmando que uma verdadeiramassa esticaria melhor.

-Mas vou fingir que esta minhatambém se espalha bem. E vou cortá-laem forma de coelhinhos. Colocarei amassa na assadeira e lá mesmo voucortá-la. Bem, se fossem biscoitos deverdade, deveria cortá-los primeiro esó, em seguida, dispô-los naassadeira.

-Estou vendo, Dibs. -Pronto! Agora é só colocá-los

no forno pre-aquecido, disse,executando o seu plano no forno debrinquedos. Sentarei, então, paraesperar que os biscoitos assem.

Dibs sentou-se na moldura dodepósito de areia e retirou oscadarços de suas botas. Tirou-as eentão engatinhou na areia cantando:

Oh, biscoitos, assem. Enquanto sentado, aqui estou eu,Oh, biscoitos, assem. Enquanto os meus sapatos, tiro

eu. Enquanto derramo areia nos meus

pés. Enquanto conto os dedos.

Um, dois, três, quatro, cinco, cinco dedos em um pé. Oh! -o que vem depois de um? a

que disse a você? Pense. Pense. Pense. Farei tudo de novo. Olhe-me e ouça-me: Um, dois, três, quatro, cinco. O que foi que disse?

Você é quem diz agora. Um. Um. Um. O que foi que lhe ensinei? Ouça de novo. Um, dois, três, quatro. Um. Um. Um. Ouça-me com atenção, Você criança idiota, Um, Dois, Dois, Dois. Agora diga de novo: Um, dois, três, quatro, cinco. Certo. Certo. Certo. Um biscoito quentinho para você!Dibs dava gargalhadas. -Bem,

cinco dedos em um pé e cinco mais nooutro pé, fazem dez dedos nos doispés. Você poderia aprender isto? Ouvocê bem que sabe e apenas não me querresponder?

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-Algumas vezes você sabe aresposta, mas simplesmente não desejafalar. É desta maneira que ocorre?

-Não sei quando conheço ou não aresposta, respondeu Dibs, verbalizandoa confusão que freqüentemente oameaçava.

Deitou-se na areia e torceu detal maneira o seu corpo até tocar oseu pé nos lábios.

-Viu o que posso fazer?perguntou exibindo-se. Sou capaz dearquear-me o dobro do que fiz agora, eninguém me ensinou a fazê-lo.

Rolou na areia. Ergueu-se, puloue deixou-se cair novamente. Emseguida, correu para a mesa, ondeapanhou a mamadeira e retomou para aareia. Então, ali deitado, mamou comoum bebê bem pequenino. Com os olhinhosfechados. Com o corpo inerte.

jatos, que atingiam a beirada eo escoadouro da pia até o piso dasala.

-Faça uma poça d'água, sugeriu-se. Faça uma verdadeira misturada.

Num dos seus relances visuais,Dibs percebeu um detergente em pó naprateleira. Subiu e apanhou-o.

-O que esta lata contém? -Detergente em pó para limpeza. Cheirou-o, sacudiu a lata de

modo que pequena quantidade do pósaltasse para a sua mão. Observou-o e,de repente, levou-o até a sua bocapara provar.

-Oh! -não, Dibs! Isto édetergente em pó. Não deve serprovado.

Virou-se e encarou-me friamente.Minha reação súbita havia sidoinconsistente.

-Como posso saber qual o seuverdadeiro gosto sem prová-lo?perguntou-me com dignidade.

-Não sei nenhuma outra maneira.Entretanto, creio que você não pode

engolir nenhuma porção disto por serprejudicial à saúde.

Dibs cuspiu na pia. -Por que não lava a sua boca com

um pouco d'água? .Ele acedeu. Mas a minha reação

perturbou-o. Recolocou a lata dedetergente na prateleira e lançou-meum olhar magoado.

-Lamento tê-lo assustado, Dibs.Acho que nem pensei; mas não pude vê-lo testar o sabor de tal quantidade dedetergente.

Dibs mordeu o seu lábio, eencaminhou-se para a janela. Seusensível escudo estava pronto para serusado, desde que sentia os seussentimentos magoados. Finalmente,voltou para a pia. Encheu a jarra comágua e derramou-a na pia. Colocou asmamadeiras boiando na pia e fez asmamadeiras estalarem ao encontro umasdas outras. A água corria com forçatotal. Dibs gargalhava enquantomovimentava os frascos. Deixou cair umdos vidros de sua mão, que bateu napia.

-Podem quebrar e cortar!~gritou. Você está com medo que mefira?

-Penso que você sabe cuidar-sebem neste caso, respondi, aproveitandoa recente lição anterior.

Dibs removeu as mamadeiras devidro da água e nela arremessou ospratos plásticos.

-Mergulhem e aprendam a boiarnas bordas, exclamou. Copinhos,molheiras, pratos e pires venham todosdivertir-se com a água. Venham atirar-se!

Lançou uma boa porção d'água nasala. Sobre a superfície já molhada dasala, atirou um copo cheio de líquido.

-Recue, recue, ordenou-me.Cuidado com o seu vestido. Afaste-semais para trás. O máximo que puder.Atenda ao aviso ou ficará molhada.

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Recuei até um canto protegido. Achuva intermitente de água com objetoscontinuou.

-Nunca fiz uma bagunça tãomaravilhosa quanto esta em toda aminha vida! -confessou.

A pia foi-se enchendo e o nívelda água cada vez mais se aproximava dotransbordamento.

-Veja só a água! -exclamou.Daqui a pouco teremos uma cascata.Será uma queda d~água.

Junto, Dibs apreciava oespetáculo e previa o curso dosacontecimentos. Pulava, levantando ebaixando as mãos. Mergulhou osbracinhos na água e, em seguida,elevou-os fazendo com que respingostocassem a sua face.

-Oh! água molhadora. tão fria etão rápida! -saudou, inclinando orosto até que tocasse a suasuperfície, a qual, emergindo,começara a extravasar. Deixarei quederrame um pouco, avisou, fechandologo a torneira vigorosamente. Dibsmovimentou em círculo todas as peçasplásticas do serviço de chá e jantar.Recolheu pequenas facas, garfos ecolherinhas de plástico.

-Estas coisinhas poderiam irpara o esgoto, afirmou, despejando-asfora. Este orifício é bastante grandepara retê-los, observou, puxando atampa.

A água começou a borbulharenquanto descia pelo esgoto. Dibsligou a torneira de água quente.

-Esta água é quente demais,Dibs, avisei-lhe. Use a água fria.

Dibs arrumou os garfos.contando-os. Com rapidez, voltou aligar a torneira quente e pôs o seudedo em baixo, apenas por poucossegundos.

-Puxa, como está quente! -confessou, tirando às pressas odedinho.

-Você queria verificar por vocêmesmo? Agora você já tem certeza?

-Sim, Dibs concordou. Quentedemais. Apanhou então a mamadeira queestava sobre

a mesa, colocou a chupeta em suaboca e sugou-a. Sentou-se nacadeirinha ao lado da mesa, desanimadoe chupando a sua água.

-Não sou muito grande,conversava. -Não é?

-Tenho apenas seis anos. -Mas é justamente agora que você

não se sente muito grande. -~, confirmou, continuando a

beber água em sua mamadeira, olhando-me sempre. Finalmente, deixou demamar, colocando o frasco a seu lado.

-D. A mora em um grande edifíciocoberto de ladrilhos. A sua sala é an.O 17. Ela pertence a umainstituição. A sala 17 é sua. E éminha também.

-Esta sala pertence a nós dois,não é isto? -É, respondeu sacudindo acabeça. Como é

lindo este lugar. O seuescritório também. Vamos até lá.Levarei o meu aparelho de mensagenscomigo.

Assim o fizemos. Dibs sentou-sena cadeira junto à minha carteira.Dali, examinou o novo quebra-luz,ligando-o. Abriu, então, sua caixa,que continha o conjunto de códigos. -Isto envia mensagens. -Que tipo demensagens? -Mensagens de qualquertipo, replicou. Este é o código paraa. Este para h. Enfim, para cada letrado alfabeto há um código. O segredoestá na correspondência entre os sonse as letras equivalentes.

-Ah! -para cada letra há umsinal e um barulho correspondente.

-Meus braços estão doentes.comentou. Aí es~ tá a razão por queminha pele está áspera. Vou esfregá-lae massageá-la com um creme. Oh, veja

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que livrinho encantador! -exclamou,segurando-o. Já sei, é o PequenoDicionário de Oxford. Devo procuraruma palavra nele. Vamos ver. Fermento.Encontrarei e poderei ler a suadefinição. Achei, anunciou sem grandesdelongas. O que se usa em pão parafazer crescer de tamanho, antes delevá-lo ao forno, leu compassadamente.Gosto muito de procurar palavras nodicionário. Será que você entendeu eaprendeu o código? -perguntou-me.

-Se puder olhar a codificaçãodescrita na tampa da caixa, não tereiproblemas.

Acreditando que eu seria capazde captar e decifrar sua mensagemcodificada, Dibs inclinou-se sobre oseu papel e escreveu em código. Puxouo aparelho transmissor para bem pertodele e velozmente fez ressoar osruídos indicadores.

-Está ouvindo? Ouviu bem?Entendeu a mensagem?perguntou-me comansiedade.

-Teria que olhar a descrição natampa da caixa.

-Certo. Olhe, então. E nãoesqueça que esta é uma mensagem muitoimportante, avisou.

-Está bem, Dibs, penso que jáentendi. -Então que a diz mensagem?

-Eu sou Dibs. Eu sou Dibs. Eusou Dibs.

-Ótimo! gritou. Exatamente!Agora veja esta outra, exclamou,disparando os acionadores dossignificativos estalos telegráficos.

-Eu gosto de Dibs. Você gosta deDibs. Ambos gostamos de Dibs, falei,descodificando.

-Perfeito! -exclamou vitorioso.Nós podemos trabalhar juntos. Agoravocê escreverá qualquer coisa que eutransmitirei.

-Quantos anos tem você?escrevi. -Tenho seis anos -escreveu como

resposta. Há pouco tempo festejei o

meu aniversário. Gosto de mim. Vocêgosta de mim. Guardaremos estasmensagens.

Dobrou o papel, no qual havíamosescrito nossas frases codificadas, eguardou-o no fichário de acordo com oíndice. Inseriu-o, logo em seguida, aocartão com o seu nome.

-Todas as fichas que seguem aletra A pertencem a você. E todas asque seguem meu cartão pertencem a mim.Vou tirar todos os outros cartÕesdaqui. Um para você. Outro para mim. Esomente nossas fichas juntas ficarãonesta caixa. De ninguém mais.

-Você quer conservar arquivadosomente dados referentes a você e amim neste fichário?

-Exato. Somente nosso material.E de mais ninguém, disse, confirmandosua decisão.

Voltou a deter sua atenção noseu telégrafo em miniatura. Fechoucuidadosamente o conjunto.

-Este é um aparelhointeressante. -Presente deaniversário. Quem me deu foi

mamãe. O de papai foi umlaboratório de química. Dorothypresenteou-me com um livro. E vovóenviou-me um enorme e encantador piãoque tem música. Remeteu-o pelocorreio. E ainda alguns caramelosespeciais com geléia e uma caixa debalÕes, recordava-se entregargalhadas. Não esqueci o ursinho queela me deu no ano passado. Ainda hojeele é o meu animalzinho de estimação.

-Como você gosta do seu ursinho!Bem, mas ao que parece você vibrou comtodos os seus presentes deaniversário.

-É verdade. Gostei do seu cartãode aniversário também. Puxa, queaniversário maravilhoso tive este ano!

-Fico contente em saber. -Está quase no fim da hora, não

é verdade? -perguntou virando orelógio em sua direção.

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-É, sim. -Bem, ainda temos três minutos,

observou, entrelaçando os dedos sobrea mesa e examinando o movimento dorelógio.

-Como você se sente? -Sou tão feliz! Quando o tempo se esgotou, Dibs

apanhou o seu presente e rumou para aporta.

-Até mais, D. A, despediu-se. -Até mais, Dibs. -Você pode ficar aí mesmo.

Voltarei na próxima semana. Até lá! -Boa tarde! -Dibs saudou-me,

logo que foi entrando na sala debrinquedos. Um outro dia traz-me devolta à nossa sala mágica, onde aquiloque parecia impossível pode tornar-serealidade. Hoje, planejei algumascoisas a fazer.

-Você tem planos para hoje? Bem,que decidiu você fazer?

Dibs vagueou, caminhando emvolta da sala. Apesar dos passosdisplicentes, ele olhava a areia,observava a casa de bonecas eexaminava cada membro da família debrinquedo.

-Vejo papai aqui, começou.Também mamãe. E nesta família há umairmã e um garoto. Todos estão nestacasa, comentou, recolocando-os nosseus devidos lugares. Dirigiu-se paraa janela onde conservou-secontemplativo, por um longo

tempo. -A família está em casa,

insinuei e logo recuei aderindo ao seumutismo.

Dibs conservava o olhar perdidona amplidão. Finalmente, seu peitoencheu-se de ar e um longo suspiroexpressou o seu esforço. Virou-se osuficiente para captar-me com os seusrelances visuais.

-Há tanta coisa no mundo, disse.Apenas olhando. por esta janela, possover tantas e tantas coisasmaravilhosas. Arvores que crescemaltas e fortes! Uma igreja que tentaalcançar o céu com suas torres!Pessoas caminhando para lá e para cá!Tão diferentes tipos de pessoas! Vejo,ainda, automóveis e caminhões. Eaquelas pessoas. Há todos os tipos depessoas. Algumas vezes sinto medodelas.

-Algumas vezes você sente medodas pessoas? -repeti esperando que arepetição de sua afirmativa, em formade questão, o estimulasse a continuara investigação neste sentido.

-Mas, outras vezes, não ficoamedrontado diante delas. Não tenhomedo de você.

-Você não sente medo de mim? -Não, afirmou. E suspirou. Não

tenho medo agora. Estou com você. Caminhou e apanhou uma porção de

areia, que peneirou com os dedos. -A areia é útil em tantas

atividades, observou, enquanto com umapá cavava um buraco. Para enterrar aspessoas, por exemplo. Alguém pode sersepultado nesta cova. Simplesmentedeve ser enterrado!

-Oh! Uma pessoa pode sersepultada aí? -Talvez não possa,emendou, recuando diante da idéiainicial.

-Você ainda não decidiu? Dibs abandonou a areia e

atravessou a sala em direção à mesa,onde preguiçosamente segurou algunslápis de cor.

-Sou um garoto, faloucalmamente. Tenho um pai, uma mãe euma irmã. Mas tenho uma vovozinha eela me ama muito. Vovó sempre me quisbem. Papai não. Papai nem sempre meamou.

-Você se sente seguro quanto aoamor de sua vovó, mas, às vezes, temdúvidas sobre o amor do seu pai.

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-Há ocasiões em que você achaque o microscópio é muitointeressante.

Aguardei sua reação. Ele segurouum lápis de cor e preguiçosamenterabiscou algumas linhas sem objetivono papel.

-Aqui estou seguro e protegido.Você não deixaria nada me ferir.

-Você se sente em segurançacomigo.

Dibs subia a metafórica estradado autoconhecimento, com saltos decapital importância para ele. Deveriaeu proceder com toda a precaução paraque não o impedisse de qualquermaneira na sua caminhada, mas tambémnão o puxasse antes que estivessepronto para galgar o próximo degrau.

-Papai agora parece que gostamais de mim,

expressou-se, torcendo as mãos.Papai conversa comigo.

-Você acha que seu pai o amamais agora? Sentia que vivíamos umasituação de extrema

delicadeza e que qualquer"empurrão" poderia estimular a fuga deDibs para a concha silenciosa de suaparede defensiva.

-Um pouco mais agora, respondeu,esfregando as mãozinhas, num jáconhecido sinal de agitação e buscainterior. Tenho um microscópio, disse.Por ele vejo muitas coisasinteressantes. E tudo através deletorna-se maior do que é na realidade.Deste modo, pode-se conhecer melhorcada objeto examinado. Algumas coisas,que você pode ver no microscópio, nãoapareceriam sem sua ajuda.

Dibs havia escorregado, de novo,para o mundo seguro do seuintelectualismo. O microscópio era umobjeto e não havia necessidade detemê-lo. Não oferecia sentimentos comque tivesse de se envolver .

Aproximou-se da casa debrinquedos e retirou toda a família debonecos. Arrumou a mobília.

-A mãe está saindo para passearno parque. Como ela quer ficarsozinha, resolveu caminhar entre asárvores, as flores e os pássaros. E,talvez, atravessar as alamedas,aproximar-se do lago e olhar a água,descrevia ele enquanto movimentava aboneca-mãe através de seu imagináriopasseio. Encontrando um banco, sentou-se e deixou-se cobrir pelos raios dosol. Ela gosta do sol.

Dibs recostou a "mamãe" em umbloco e retornou à casa. Escolheu a"irmã" e segurou-a decididamente,

-A irmã vai embora para aescola. Eles empacotaram sua bagagem eenviaram-na para longe de casa. Eladeve prosseguir o seu caminho sozinha.Por si mesma.

Dibs removeu a "irmã" para umadas mais afastadas esquinas da sala.Voltou-se para a casa de bonecas embusca do "papai".

-Ele está sozinho em casa. Lendoe estudando, e ninguém deve incomodá-lo. Está isolado. Não deseja serincomodado. Acendeu seu charuto e fumaporque está indeciso, sem saber querumo deverá tomar. Então, foi até oquarto do seu garoto e abriu afechadura. O menino saiu correndo,pois não suporta portas trancadas.

Dibs expressava e caracterizavaos seus sentimentos, movimentando osbonecos em sincronia com suas frases.

O garoto, projetado pelaoportunidade da porta aberta, não foicolocado longe da casa.

Dibs cobriu seu rosto com assuas mãos e conservou-se imóveldurante alguns instantes. Suspiroumuito profundamente e suspendeu oboneco-papai.

-Então, papai decidiu sair paraum passeio. Afinal, ele não sabe o quedeve fazer. Desceu a rua pela calçada,mas o trânsito está violento. Muitos

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carros e ônibus fazem um barulhoterrível. Papai não gosta de barulho.Mas continuou a sua caminhada emdireção a uma loja de brinquedos.Queria comprar brinquedos encantadorespara o seu garoto. Ele pensou quetalvez o menino apreciasse muito ummicroscópio. Então ele comprou um eregressou à sua casa. Dibs levantou-see deu alguns passos e, de quando emquando, procurava com os seus olhos omeu olhar. Ajoelhou-se junto à casinhae segurou o papai-boneco. -Ele chamoutanto e tanto o seu garoto. Sentiaremorsos. O filho atendeu o chamado!-"Já vou correndo"-respondeu.Mas apressa em atender foi tal, que omenino bateu na mesa e derrubou oquebra-luz. O pai gritou com toda asua força que o menino era idiota. Umgaroto idiota, estúpido e sem cuidado!"Por que fez isto?" -indagou. O garotonada respondia. O pai desesperou-se eordenou que o filho subisse para o seuquarto. Havia demonstrado ser umidiota, um tolo, um estúpido. Porisso, o pai sentia-se envergonhadodele. Dibs estava tenso, imersonaquela cena que exteriorizava. Olhoue, provavelmente, percebeu que tambémeu estava experimentando o seu drama.-O garoto deslizou pela casaprocurando um lugar para se esconder,disse Dibs num murmúrio. Mas o seu painão notou o que acontecera. Então...(Levantou-se e com pressa atravessou asala em busca da "mamãe" e trouxe-apara casa.) Tendo terminado o seupasseio, a mãe retomou à sua casa. Opai, ainda terrivelmente zangado,contou à mãe o que o garoto estúpido eidiota havia feito.

E a mãe repetia: "Oh, meu bem!Oh, meu bem! Qual será o problema comele?" Num misterioso estalo repentino,um menino gigante apareceu. Era tãogrande, que ninguém poderia maltratá-lo. Ninguém, acrescentou, assumindouma posição ereta. Este garoto giganteolhou sua mãe e seu pai, queconversavam, e ouviu todas as palavrastemíveis que diziam. Então decidiuensinar-lhes uma importante lição.

Passou por todas as janelas e portas etrancou-as muito bem. Assim, os doisnão poderiam escapar da casa. Estavamtrancados ali.

Olhou-me com a face pálida masradiosa de alegria.

-Viu o que está acontecendo? -Sim. Estou acompanhando osacontecimentos. O menino gigantetrancou o pai e a mãe dentro da casa.

-Então o pai disse que ia fumaro seu charuto e para isto apanhou acaixa de fósforo e acendeu um palito,que deixou acidentalmente cair nochão" O fogo se espalhou pelo piso edepois pela própria casa. A casa estápegando fogo! A casa está em chamas!Eles não podiam escapar. Estavamtrancados dentro da casa e o fogocorria na sua pressa de espalhar-se. Ogarotinho olhou-os trancados em suacasa que se incendiava e falou:"Deixe-os queimar! Deixe-os queimar!Deixe-os queimar! ,. Dibs faziarápidos movimentos para salvar sua mãee seu pai. Agia como se fosse salvá-los, mas transformava seus gestos ematitudes protetoras para sua face.Parecia que o fogo imaginado possuía acrueldade" destruidora do real equeimava-o, enquanto ele tentavasalvar seu pai e sua mãe.

-Eles gritavam, vociferavam ebatiam na porta. Queriam e queremescapar. Mas a casa permanece fechadae o fogo devorador cresce e ambos nãoconseguem sair. Gritam desesperadospor ajuda.

Dibs entrelaça as mãozinhas elágrimas deslizam em sua face.

-Eu choro! Eu choro! -gritava.Por causa disto é que choro!

-Você chora por que sua mãe eseu pai estão trancados na casa e nãopodem sair para livrarem-se daschamas?

-Oh, não! -explicou. Um soluço embargou sua voz,

sufocou~lhe todas as palavras. Entretropeções e incertezas, Dibs

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atravessou a sala e atirou seus braçosem volta do meu pescoço, chorandoamargas lágrimas. Dolorosas.

-Choro porque sinto, de novo, osmachucados das portas fechadas etrancadas contra mim, soluçou.

Envolvi-o com o meu abraço,sentindo a repercussão em seu serdaquele "curativo emocional".

-Você está sofrendo agora comoacontecia antigamente? Está revivendo?

Dibs com um relance de olhoscobriu a casa

de brinquedos. Enxugou suaslágrimas e conservou-se ali,respirando profundamente.

-O garoto irá salvá-los,decidiu.

Pegou o boneco e conduziu-o atéo interior da casa.

-"Salvarei vocês. Eu salvareivocês" gritou. "Irei destrancar asportas. Permitirei que vocês saiam. "

E assim o menino procedeu. Abriuas portas, o fogo pode sair e seuspais salvarem-se.

Veio então em minha direção.Tocou em minha mão sorrindo.

-Eu os salvei! Não deixei queficassem queimados e feridos,enfatizou.

-Você os ajudou. Você os salvou.Dibs sentou na mesa com o olhar fixo.

-Eles estavam acostumados a metrancar no meu quarto, contou.Ultimamente nunca mais fizeram isto.Era um velho hábito!

-Eles faziam sempre isto. Mas,ultimamente não têm feito?

-Nunca mais fizeram, disse comum suspiro estremecido. Papai, defato, deu-me um microscópio e tenho-medivertido, usando-o.

Dibs levantou-se e dirigiu-se aocanto onde jazia a boneca-irmã.Reconduziu-a à casa e colocou os

quatros bonecos sentados em poltronasna sala de estar.

Retomou à mesa e escolheu umlápis preto com o qual coloriu umpedaço de papel de desenho. Todopreto, exceto o centro, pequeninocírculo bem no meio da peça que foipintado de amarelo. Nenhum comentárioDibs fez sobre o seu desenho. Quandoconcluiu, recolheu os lápis no estojoe rumou para a areia. Segurou a pá ecomeçou a preencher o buraco que haviacavado no início da sessão.

Esta havia sido uma horaterrível para Dibs. Seus sentimentos otinham torturado sem piedade. Asportas fechadas de sua infânciatrouxeram-lhe intenso sofrimento. Nãosomente a porta trancada do seuquarto, em seu lar, mas principalmentetodas as portas de aceitação que foramtão fechadas contra ele, privando-o doamor, do respeito e da compreensão, deque tão desesperadamente necessitava.

Dibs apanhou a mamadeira esugou-a por instantes. Depois,abandonou-a e olhou-me com firmeza eseriedade.

-Não sou um bebê e não o sereinunca mais! Sou um garoto grandeagora. Não preciso de mamadeira debebê, portanto.

-Você não precisa mais damamadeira? A felicidade era grandedemais para ser expressa por aquelerostinho e corpo frágil. Era intensasua expressão de alegria.

-A não ser que algumas vezesqueira ser um bebê de novo. Serei oque eu quiser. Entretanto eusinto. ..Sinto. Serei grande!

Abriu amplamente os braços numgesto expressivo. Có -có -ró -có.Cacarejou. Có -có -ró -có.

Estava relaxado e feliz agora.Quando saiu da Sala de Ludoterapiaparecia ter deixado atrás de si ostristes sentimentos que haviaexteriorizado.

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CAPÍTULO XVI

Quando Dibs entrou na sala debrinquedos sorria, como se se sentisseorgulhoso de si mesmo. Notou, logo, apresença de uma cerca, que uma outracriança havia construído bem no centroda areia.

-Eis uma cerca! -disse. E vocêsabe que não gosto de cercas. Ireiretirá-la logo.

De imediato, removeu-a. Apanhouuma espingarda e levou-a para a mesa,onde a guardou na gaveta. Foi, então,que notou a presença de uma casinha debonecas danificada, encostada naprateleira. Pegou-a e examinou-a.

-Vou consertá-la e logo! -anunciou. Onde está a fita durex.

-Quanto você vai precisar? -perguntei. -Uns 20 cm.

Calculei o pedaço e entreguei-lhe. -Ótimo. Muito obrigado!

-Estou sempre à sua disposição.-Bem. E eu também. Sempre à suadisposição. Agora abrirei a janelapara que o ar puro possa entrar.Entra, ar fresco! -exclamou. Vem,vento e fica conosco. Papai não gostaque eu fale com o vento, mas aquiposso conversar com o que bem quiser.Desde que sinta vontade.

-Aqui você realizou muitos dosseus desejos.

-Papai acredita que as pessoassó devem falar com outras pessoas,explicou com um brilho cintilante nosolhos. Papai sempre me aconselha aconversar com ele, mas isto não faço.Apenas o escuto. Nada lhe respondo. Oumelhor, a maior parte das vezes ficocalado. Isto o deixa muito triste.

A conversa se havia tornado umponto nevrálgico entre Dibs e seuspais. O seu mutismo representava umaagressão ao criticismo paterno, àdeficiência de afeto de sua mãe.

-Quando papai me cumprimenta como seu "bom dia ", não lhe respondo.Ele insiste em me perguntar o porquê.Qual o problema que você tem? Sei quevocê pode falar. Continuo sem dizeruma palavra. Não o fito também.Mantenho o meu silêncio, Dibsconfessou entre gargalhadas. Ele ficafurioso.

Encaminhou-se para a mesa, abriua gaveta e retirou a espingarda.Atravessou a sala, rumo à janela.Olhou a paisagem. Observou o caminhãoque passava por ali. Virou o rostinhoe olhou-me.

-Jogo esta arma fora? -Você sabeque não poderemos apanhá-la de novo.

-Poderia dar um pulo rápido echegar até debaixo da janela.

-Sei disto. No entanto, nãopoderemos sair para buscá-la.

-E mais tarde já não estará ali.Alguém que passar, poderá levá-la.

-Sim. Isto também é possível. -Bem, então não vou atirá-la.

Andou vagarosamente ao redor dacasinha e examinou a família debonecos. Parou diante do papai eapontou a arma, tendo-o como mira.

-Não diga uma palavra ou matá-lo-ei. Não abra sua boca, sequer umavez mais, ordenou, preparando aespingarda. Estou quase pronto. Sevocê não for bastante cuidadoso serámorto.

-Vou esconder a arma aqui noporão, decidiu, enquanto abria a portaque lhe dava acesso. Ninguém precisaráficar ferido, continuou, fechando aporta.

Então, abandonou aquelabrincadeira e colocou-se bem à minhafrente, fitando-me.

-Sabe, há muitas crianças naminha classe da escola. Paulo, João,David, Carlos, Mário, Daniel, Andréa eÂngela. Há um grupo muito grande decrianças.

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-Na sua escola há um grupogrande de crianças. E você sabe o nomede alguns, não é verdade?

-Sei o nome de todos, corrigiu.Há garotos e garotas. E são muitointeressantes.

Esta foi a primeira vez em queDibs mencionou os nomes dos meninos emeninas da sua escola, expressando oseu interesse.

Havia pensado que no processo dedesenvolvimento de Dibs seria benéficopropiciar-lhe uma oportunidade departicipar de um pequeno grupo deinteração. Aguardava o momentoadequado para decidir sobre aviabilidade desta alternativa. Aindanão tinha recebido informações do seucolégio e continuava sem conhecer onível de progresso que Dibs haviademonstrado, se é que o fizera.ResolvI perguntar ao próprio Dibssobre o que ele achava da idéia detrazermos uma outra criança parabrincar com ele na nossa salinha deludoterapia.

-Dibs, você gostaria que umaoutra criança, garoto ou garota,viesse brincar com você às quintas-feiras?

O inesperado do convite sacudiu-o. Seus olhos explodiram comagressividade.

-Não! Não! -gritou. Não queroninguém mais aqui.

-Não quer uma criança com você? Dibs parecia naufragar naquela

onda de incertezas que parecia havê-loenvolvido.

-Ninguém mais deve vir para cá,falou tristemente.

-Você não quer imaginar apresença de outra pessoa aqui? É porisso que você disse não?

-Não, resmungou. Ninguém me querbem. Ninguém deve vir então. -Mas seesta outra criança quisesse vir eficar aqui com você, faria algumadiferença ?

-Não, gritou Dibs. Isto aqui émeu! E quero que seja sempre só meu!Não quero que outra pessoa entre.Quero que seja apenas para mim e paravocê, confirmou. virando as costas ecom os olhos já submersos em lágrimas.

-Entendo, Dibs. Se você prefereque esta hora aqui vivida sejaparticipada somente por você e pormim. assim será. Não haverá dúvidas.

-É assim que quero. Quero queseja só minha, de nenhuma outra pessoamais, insistiu.

-Como você queira. Dibs encaminhou-se para a janela

e deixou que o silêncio caísse sobrenós dois.

-Há muitas crianças na minhaclasse na escola. falou.Eu. ..eu. ..hesitou e virou-se paramelhor olhar-me. Bem,eu. ..gosto. ..delas, gaguejou. Equero muito que também elas gostem demim. Mas. não os quero aqui conosco.Não. Você está aqui apenas para mim. Eisto é muito especial. Só minha! Tudoaqui existe só para nós dois.

-Você gosta das outras crianças,entretanto deseja guardar esta horaunicamente para nós dois?

Dibs concordou e atentamenteconferiu as badaladas do carrilhão daigreja.

-Quatro horas! Quatro horas! Osino da igreja anuncia e as flores dojardim também. O sol está ainda nocéu. Na terra estão os girassóis. Hátantas c tão variadas coisas! ! !

-É verdade. Aproximou-se, então,da pia e abriu a torneira no seu pontomáximo. Logo, modificou o impulso daágua, restringindo-o a um filetecorrente.

-Bem, posso fazer a água gotejarou jorrar a cântaros. Da maneira quebem quiser.

-Sim. Você pode controlá-la aquiao seu modo e ao sabor do seu desejo.

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-Posso tê-la sob o meu domínio.-Certo, falou calma e deliberadamente.Eu posso. Eu. ..Eu. ..Eu. ..tentavaexpressar-se enquanto andava, batendode leve no peito. Eu. ..Eu. ..Eu. ..Eu. ..insistia parado emminha frente. EU SOU DIBS. E possofazer coisas. Eu gosto de Dibs. Eugosto de mim! ! !

Um sorriso de vitória efelicidade seguiu as suas afirmativas.E a brincadeira com a água foirecomeçada. Dispôs a mamadeira sob atorneira em sua capacidade plena. Aágua jorrava em profusão em toda asala. Saltava para trás e ria comsinceridade.

-Não me está molhando,comentava. Sei pular para fora doalcance do seu jato. Sei comodefender-me.

Com habilidade, Dibs inseriu umfrasco menor dentro de um maior.Segurou um outro frasco no ar ederramou a água no menor.

-Oh, posso fazer coisas! -exclamou. Posso fazer isto e aquilo.Até mesmo experiências! Que divertido!-insistia.. As coisas juntas tornam-sedivertidas. Posso tornar-me tão grandequanto o mundo aqui. Posso fazer o quequer que seja, desde que queira. Sougrande e poderoso. Posso fazer a águavir ou parar. Qualquer coisa quedeseje fazer, poderei realizá-la. Alô,frasquinho! Como você vai? Estáaproveitando para sentir sua alegria?Não fale para o outro frasco. Ele éapenas uma coisa. Fale com as pessoas.Com uma pessoa. Alô, João. Alô, Paulo.Alô, Reto. Fale com pessoas. Mas queroainda dizer alô para aquelagarrafinha. E se assim desejo e aquiestou, então, posso fazê-lo.

De súbito, apanhou a mamadeira eo bico e pediu-me que adaptasse umapeça na outra. Entreguei-a de volta,logo que terminei. Sem pausas, sugouquase toda a água, olhando-mefixamente.

-Quando quero ser um bebê, possoser. Quando quero ser um adulto,também posso. Se desejo falar, falo.Se sinto vontade de calar-me, emudeço.

-Sim. É deste. modo que você temfeito. Removeu o bico e bebeu a águapelo gargalo da mamadeira.

-Deixe-me mostrar-lhe algumacoisa muito interessante.

Apanhou vários copos, colocou-osem fila e derramou pequenasquantidades de água em cada um. Comuma colher bateu levemente nos copos.

-Ouviu os sons? Não sãodiferentes? Pois posso fazer cada coposoar de uma maneira. É a porção daágua que faz a diferença, Escute.Compare o som que vem deste cano com oque surge desta caixa, quando batidospor uma mesma palheta. Cada um tem oseu som. E há muitos sons que não seifazer, mas que se produzem. O trovão éum deles. O cair das coisas produzruídos especiais'. Os frascos tambémtêm os seus sons. Sim. E possoproduzir muitos tipos deles. Mas possotambém ficar tão quieto a ponto de nãoproduzir o mais leve som. Isto seria osilêncio.

-Você pode fazer sons e podefazer silêncio.

Durante um longo tempo Dibsconservou suas mãos imersas na água.

-Olhe. Minhas mãos ficaramcompletamente encolhidas! -exclamou aosuspendê-las, exibindo-as para mim.

-É, sim. -Agora tenho alguma coisa muito

importante a executar. Uma a uma, foi dispondo as

jarras de tinta ao lado do cavalete,sem diretriz prévia.

-Veja! Vermelho, azul, amarelo,cinza, laranja, violeta, verde,branco. Todas misturadas.

Havia colocado justamente opincel trocado em cada cor. Riu e

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gargalhou, enquanto observava ocavalete.

-Esta é a maneira com que estãoarrumados. Todos misturados. E, ainda,o pincel errado na jarra errada.

-Tudo misturado: tintas epincéis.

-Sim. Uma bagunça total. Umamisturada completa. Provavelmente éesta a primeira verdadeira bagunça quefaço. Mas, agora, devo recolocá-losnos seus devidos lugares. de acordocom a ordem, dispondo os pincéiscorretamente.

Os antigos modelos ordenados,até então desprezados, começaram a serbuscados por Dibs.

-Você sente que deve colocá-losem uma certa ordem?

-Oh, sim. Há 12 pincéis e 12cores, respondeu rindo. Vamos, Dibs,conserte tudo o que fez, ordenou a simesmo com delicadeza. Há uma maneiracorreta para fazer cada atividade.

É bom que você organize astintas de um modo apropriado.

-Você acha que sempre as tintasdevem seguir uma certa ordem?

-Claro, respondeu com presteza ealegria. Quer dizer, desde que nãoestejam misturadas.

-E podem ficar misturadas? -Aqui, sim. Lembra-se? Aqui, os

fatos, as coIsas acontecem. É a suamaneira de ser. ..E isto basta! -declarou, aproximando-se e batendocarinhosamente em minha mão. Vocêentende não é? Que tal irmos para oescritório? Vamos visitá-lo?

-Podemos ficar lá o resto dotempo de que dispomos, se assim lheparecer melhor.

Com esta decisão, Dibs saiuansioso em direção ao meu escritório.Logo apercebeu-se de um pacotecontendo placas decorativas paralivros, que estava sobre minha mesa.

-Posso abrir e usá-las? -perguntou suspendendo-as.

-Se isto lhe agrada, claro quepode. Dirigiu-se para a estante eexaminou em detalhes alguns livros,lendo em voz alta o título de umdeles: "Seu Filho encontra o mundo".

Encostou-se na janela e espiou. -Alô, mundo! Faz um dia lindo

neste mundo! E que cheiro bom delevem! Ah! -lá vem vindo o meu amigocaminhão.

Dibs silenciou, absorto por umlongo tempo. -Alô, caminhão!-falouenfim: Alô, homem!

Alô. mundo! Dibs sorria com todo o seu ser e

retomou à escrivaninha onde manuseou odicionário ilustrado.

-Velho livrinho cheio depalavras. Acrescentarei mais al~mas:"Meu pequeno dicionário, livro depalavras de capa azul."

Colocou as placas decorativas nolivro e recostou-se na poltrona,olhando-me. Havia um grande sorriso emDibs.

-DaQui a pouco estará na hora deir para casa. Quando for, levarei estaalegria, bem dentro

de mim. Voltarei na próximaquinta-feira. E lembre-se: eu somente.Ninguém mais. Eu e você.

-Não esqueceria isto, Dibs. Sevocê quer que esta hora seja apenaspara você, está muito bem para mim.

-Quero que seja só nossa,murmurou. Mas, não para qualquerpessoa extra.

-E assim será. Nenhuma pessoaextra. Apesar da recusa, imaginei quetalvez a semente, que havia plantado,brotasse mais tarde, e o encorajasse aconvidar um amigo para participar desuas brincadeiras na ludoterapia. Ou -quem sabe? -o estimulasse a aproximar-se mais de um amigo na escola.

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A cigarra soou anunciando achegada de sua mãe.

-Até logo! Voltarei na próximaquinta-feira e vou enchê-la defelicidade!

Logo que saiu do escritórioavistou sua mãe. Olhou-me e repetiusua despedida. Então iniciou umacarreira tão veloz quanto podia. E eminstantes venceu toda a distância queo separava da mãe e abrindo os seusbracinhos envolveu-a num abraço.

-Oh! mamãe. eu lhe quero tanto!Ficamos surpresas diante daespontaneidade da expressão de Dibs.De súbito lágrimas afloraram aos olhosde sua mãe. Ela balançou a cabeça emdespedida e, apertando a mão do filhona sua, deixaram ambos o Centro.

CAPÍTULO XVII No dia seguinte, a mãe de Dibs

telefonou pedindo uma entrevista. Entrou no meu escritório com

toda a sua ansiedade sob controle. Aexteriorização espontânea de afeto,que Dibs transbordara na véspera,estimulou-a a entreabrir as suasportas de defesa.

-Queria que você soubesse oquanto lhe somos gratos. começoufalando. Dibs se está transformando.Já não é a mesma criança. Nunca.antes, o havia visto expressar seussentimentos livremente como fez ontem,quando saíamos daqui. Eu. ..eu fiqueiprofundamente emocionada.

-Bem sei. -É tão sensível o seuprogresso! -continuou com um brilho defelicidade nos olhos e um leve sorrisonos lábios. Está mais calmo e feliz.Nunca mais foi acometido de acessos deraiva. Dificilmente chupa o polegar.Fita-nos nos olhos. Responde-nos, amaior parte das vezes, quando lhefazemos perguntas. Mostra-seinteressado no que está ocorrendo comnossa família. Algumas vezes, brincacom sua irmã. quando ela está em casa.Não é sempre, mas várias vezes. Estácomeçando a demonstrar um pouco deafeição por mim. Em certas ocasiões.Dibs tem-se aproximado de nós parafazer comentários por si mesmo. Outrodia foi até à cozinha onde eu estavafazendo uns biscoitos. Disse-me queele sabia que estava ocupada,cozinhando, fazendo biscoitos. Eacrescentou que os meus biscoitos eramdeliciosos. E que eu preparava paranós. Nós. Penso que Dibs começa asentir que faz parte de nossa família.Penso. .. Bem. Penso que ele começa asentir-se como um de nós.

Não sei o que houve de tãoerrado. Desde o início, pareciadifícil não ter de negá-lo, negando-mea ele. Percebia-me completamentesitiada e ameaçada. Dibs haviaarruinado tudo o que mais importava emminha vida. Expôs o meu casamento ao

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fracasso. Terminou minha carreiraprofissional. Agora, questiono a mimmesmo o que eu fiz para causar esteproblema entre nós? Por que tudo istoaconteceu? Que posso eu fazer agorapara ajudar a consertar esta situação?Tenho perguntado para mim tantasvezes: Por quê? Por quê? Por quê? Porque temos lutado uns contra os outros,tanto assim? Tanto que quasedestruímos Dibs. Lembro-me quandoconversei com você pela primeira vez.Insisti que Dibs era um retardadomental. Entretanto, sabia que não eraeste o seu problema. Por isso vinhaensinando-lhe, testando-o e tentandoforçá-lo a comportar-se de acordo comos modelos normais, desde quecompletou dois anos. Tudo isto semnenhum contato verdadeiro entre nósdois. Sempre usava coisas. Não sei oque ele faz aqui na ludoterapia. Nãosei se você já percebeu alguns sinaisindicadores do quanto ele sabe e doquanto ele pode executar. Dibs lêcorretamente quase todas as palavrasque lhe caem sob sua vista. Escreve,expressando a significação da suamensagem. Guarda a descrição e osdetalhes dos objetos ou fatos, nosquais está interessado. Coleciona emálbuns diferentes espécies de folhas ecascas de troncos. Confecciona floresprensadas. Tem um quarto cheio delivros, figuras. e objetos educativos,jogos pedagÓgicos, brinquedos ematerial científico. Uma radiola e umacoleção variada de discos. Ele ama amúsica, especialmente os clássicos. Epode identificar partes de qualquer umdeles. Sei disto, porque ultimamenteele responde, quando toco um trecho elhe pergunto o que está ouvindo.Coloco um disco na radiola e faço-aparar, em seguida, pedindo-lhe queidentifique o que tocou. E Dibsresponde corretamente. Durante muitashoras toquei discos para ele,explicando-lhe tudo o que sabia sobreaquela música. Nunca realmente sabiase o estava atingindo; se ele meescutava com atenção; se mecompreendia. Tenho lido centenas delivros para Dibs -embora o vissepermanecer escondido debaixo da mesa.

Tenho conversado sempre, buscandoexplicar-lhe o mundo ao seu redor.Tentando alcançar esta meta, repetidasvezes, incessantes vezes. eraencorajada apenas pelo fato da suaproximidade física em relação ~ mim,pOSsibilitando-lhe escutar evisualizar o que lhe mostrava.

Uma pausa rápida seguiu-se.Suspirou e balançou angustiadamente asmãos.

-Tinha de provar alguma coisa amim mesma, continuou. Devia provar queDibs era capaz de aprender. Sentia-meobrigada a provar que eu podiaensinar-lhe. E, embora seucomportamento fosse tal que nunca mepermitisse conhecer o quanto ele haviacaptado e o quanto as nossasinformaçÕes lhe eram significativas.Continuava ensinando-lhe. E, emdiferentes circunstâncias, observava-odebruçado sobre as coisas com que ohavia presenteado, quando estavasozinho no seu quarto. Refletia então,animando-me: "Jamais ele teria talatitude de interesse e atenção seaquilo nada significasse para ele."Mas a dúvida estranguladora não morriadentro de mim.

-Provavelmente, seus sentimentosem relação a Dibs eram extremamenteambíguos, comentei. Tentando,observando, duvidando de você mesma edele. Alimentando esperanças edesesperadamente sentindo o seufracasso, mas querendo impedi-lo dealguma forma.

-Sim, respondeu. Sempretestando. Sempre duvidando de suacapacidade. Buscando um meio de meaproximar mais dele e todo o tempoapenas construindo paredes entre nós.E ele sempre agiu para me manter nestaatitude. Não creio que nenhuma outracriança houvesse sido mais atormentadacom demandas feitas sobre si.Esforçava-me para que passasse nesteteste e naquele outro sempre, sempretendo que provar que tinha capacidade.Não havia paz! Exceto quando sua avóvinha visitar-nos. Eles mantinham,

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entre si, um bom relacionamento. Dibstornava-se mais tranqUilo com suapresença. Embora não conversassemuito, era ele então aceito no seumodo de ser e ela sempre acreditavanele. Da sua calma e sabedoria muitassugestões e conselhos me chegaram."Esperar. Deixá-lo desabrochar comcalma. Acreditar nas possibilidades deDibs. Confiar que enfim tudo dariacerto." Mas não podia crer em seusensinamentos. Sentia que devia lutarpara compensar todas as outrasdeficiências de que o havia acumulado.Sentia-me responsável pela sua maneirade ser. Sentia-me culpada eirremediavelmente arrependida.

De súbito, os seus olhoscobriram-se de lágrimas e as palavras,por instantes, foram substituídas porum intervalo silencioso.

-Nem sei como pude fazer tantomal a ele, disse exaltando-se. Minhainteligência parecia ter era voadopela janela. Minha conduta eracompulsória e completamenteirracional. Podia ter a prova, masnada me satisfazia e buscava veraquela habilidade revelada em umpeculiar comportamento. Não podiaadmitir, para mim mesma, que haviatomado atitudes que determinaram o seuproblema. Não podia admitir que ohavia rejeitado. Só agora possoafirmá-lo, porque não mais o rejeito!Dibs é meu filho! Estou orgulhosadele, afirmou, olhando-me como quepedindo uma exteriorização da minhaparte.

-Tem sido extremamente penosopara a senhora admitir seussentimentos em relação a Dibs. Mas,agora, sua maneira de sentirmodificou-se. A senhora não só oaceita, mas nele acredita e dele seorgulha.

-Deixe-me falar-lhe mais sobreas habilidades do meu garoto,continuou, depois de haver concordadocomigo por um largo gesto deassentimento. Além de ler, escrever eestudar fenômenos de uma maneira

científica, Dibs desenha com muitaoriginalidade. Veja alguns dos seusdesenhos. (Um rolo de papéis foiretirado de sua bolsa e por elalibertados da liga elástica.)

-Olhe-os, solicitou-me,entregando-os. Observe os detalhes eas perspectivas.

Examinei cada desenho. Naverdade, fugiam ao padrão dos desenhosinfantis. Não pareciam ter sidoproduzidos por uma criança de seisanos. Os objetos ali representadosguardavam uma precisão e fidelidademantida até o último detalhe. Numa dassuas. pinturas, Dibs havia desenhadouma escada em caracol que dava acessoa uma colina. As linhas definidoras daperspectiva estavam excelentes.

-Sim. São muito fora do comum,sobretudo considerando a idade doartista.

Ela espalhou-os diante de si econtemplou-os. -Estes desenhos sãoextremamente invulgares, concluiu comfirmeza. E é isto o que mais mepreocupa: toda a sua estranhahabilidade. Tenho. -me torturado empensar que Dibs possa seresquizofrênico. Bem, se esta minhahipotética previsão for verdadeira,qual o valor da sua habilidadesuperior? Que importância terá suaprecocidade? Mas, agora começo aliberar-me deste medo. Vejo-ocomeçando a conduzir-se de maneiranormal.

Como médica e estudiosa demedicina, esta mãe sabia que o seudiagnóstico podia estar correto. Ocomportamento anormal, que ela haviaimpelido o seu filho a assumir,mantinha-o afastado da própriafamília, das outras crianças e dosadultos que havia encontrado naescola. Quando uma criança é forçada aprovar para si mesma que temcapacidade, os resultados sãofreqüentemente desastrosos. Umacriança necessita de amor, aceitação ecompreensão. Uma devastação na sua

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interioridade se processa quando éconfrontada pela rejeição, dúvida einfindáveis testes e comprovações.

-Continuo confusa sobre muitasatitudes a tomar. Se Dibs ésuperdotado, claro que esta riquezanão deve ser desperdiçada. Devemosorgulhar-nos de suas realizações.

-Todas as expressões de seutalento significam muito para asenhora. Mas creio que se sente aindaconfusa diante do seu desenvolvimentoglobal, não é verdade?

-Sim. As suas realizações sãoimportantíssimas, tanto para ele, comopara mim. Lembro-me bem quando Dibstinha apenas dois anos. Foi nesteperíodo que aprendeu a ler. Seu paiacusou-me de louca na época em que lhecomuniquei que nosso garoto já podialer. O seu argumento era que Dibs eraimaturo demais. No entanto, eu previaque Dibs seria capaz. Ensinei a ler.

-Como ele aprendeu? -Comprei-lhedois conjuntos de alfabeto. Letras quedeveriam ser recortadas. Mostrei-lheuma por uma, dizendo-lhe o nome e osom de cada uma delas. Em seguida,alinhei-as em ordem e deixei-as emfrente dele. Retirei-as e pedi-lhe querepetisse justamente o que há poucolhe havia ensinado. Mas, em um minuto,Dibs fugiu do quarto. Recoloquei todoo alfabeto em ordem e do seu ladodispus a outra caixa de letras. Logoque saía do quarto, observava que Dibsretomava e estudava, olhando asletras. Tomei o outro conjunto,arrumei-o, mostrando o modo correto dedispô-los em pé e repetindo o nome decada letra, à medida que a manuseava.Derrubei a fila, que há pouco havialevantado, e pedi-lhe que areorganizasse. De novo, ele saiucorrendo do quarto. Também eu,retirei-me certa da sua volta, certade que ele estudaria, logo que ficassesozinho. Uma vez mais, repeti toda ademonstração. Desta terceira vez,quando me afastei, Dibs colocou todasas letras em pé, com correção. E, logo

depois, aprendeu a enfileirá-las deacordo com a ordem.

Mais tarde, organizei umacoleção variada de figuras,representativas de objetos a elefamiliares. Cada ilustração que lhemostrava, escrevia-lhe o nomecorrespondente. explicando-lhe. Emseguida, compunha, com o alfabeto deletras recortadas, a palavra emestudo. Em pouco tempo, Dibs já armavaos vocábulos, colocando-os perto dasfiguras que os simbolizavam. Bem, Dibsjá estava lendo. Então, dei-lhe várioslivros com gravuras e palavras.Presenteei-o com livrinhos simples deestórias e as li, repetidas vezes,para ele. Adquiri também discos dejogos cantados, de estórias e poemas.

Sempre tentando novasabordagens. Ensinei-o a utilizar a suaradiola. Aprendeu a ler os títulos dosseus discos. Dizia-lhe, por exemplo:"Dê-me o disco que narra a estória dotrenzinho." Ele procurava em toda apilha de discos e voltava com aqueleque lhe fora pedido, colocando-o sobrea mesinha de café, à minha frente.Sempre conseguia localizar o discoprocurado. Quando, de outras vezes,solicitava-lhe que trouxesse a palavraárvore ou qualquer outra, Dibs atrazia. Depois de um período dedescrença, seu pai acedeu à evidênciade que Dibs estava lendo. E, algumasvezes, ele também lia para o filho!Sempre que encontrava objetosinteressantes explicava-lhe emminúcias as suas funções. Em seguida,deixava-os expostos, para que Dibs osexaminasse. Ele os carregava para seuquarto. Comecei a ensinar-lhe osnúmeros. Rapidamente aprendeu.Resmungava com freqüência e sentia queera a sua forma de conversar consigomesmo. Na verdade, nunca haviaacontecido um encontro profundo entrenós dois. Esta é a razão por que tantome preocupava com ele.

Sua voz arrastou-se até osilêncio completo. Deslizou sua vistapara fora da janela. Não fiz

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comentários. O perfil que ela haviatraçado de sua vida com seu filhoenvolvia um espinho da mais dolorosanatureza. Na verdade, podíamos. mantera esperança de que Dibs haviaconservado sua integração básica e suareceptividade. A pressão, que haviasuportado, fora suficientementeviolenta e forte para impelir qualquercriança a uma desistência da busca desi mesmo. Sua mãe conseguiu demonstrara si própria que Dibs aprendera tudoquanto ela lhe demarcou como meta. Massentiu a ausência de um relacionamentoestreito com seu filho. E estaexploração das habilidadesintelectivas da criança, com asubestimação de uma equilibrada vidaemocional, ameaçou destruí-la.

-Encaminhamos sua irmã para umaescola distante de nossa casa -aescola dirigida por uma tia minha.Assim, poderia concentrar-me em Dibs,falou com a voz baixa. Continuoinquirindo-me por que, ainda agora,creio que suas conquistas na esferaintelectual sejam tão importantes. EraDibs apenas um bebê quando comecei aforçá-lo a fim de que provasse suacapacidade para mim. Por que não lhepermiti que fosse simplesmente umacriança? Minha criança! Por que nãoaproveitei a alegria de tê-lo? Lembro-me de quando confessei-lhe que, desdeo início, Dibs me rejeitou. Por quê?Por que não aceitei meus própriossentimentos? Por que fiquei tãoamedrontada ante a perspectiva de seruma pessoa com emoções? Por quedeveria lançar sobre Dibs o estiloartificial de relacionamento que sehavia desenvolvido entre meu marido eeu? Porque foi isto o que aconteceu.Pensava que a função de uma mãe nãodeveria interessar ou prender um homemcom a genialidade de meu marido. Elejamais desejou crianças. Brigávamosdiante de qualquer indicação queapontasse para nossa "falta". Culpa,derrota, frustração, fracasso. Esteseram os nossos sentimentos e nãopodíamos tolerá-los. AmaldiçoamosDibs. Pobre pequeno Dibs! Qualquer

ocorrência desagradável entre nós,Dibs era sempre o responsável. Era suaa culpa. Imagino se nós poderíamoscontinuar indefinidamente a projetar-lhe nossos problemas.

-Havia muitos sentimentosexacerbados e feridos, emaranhadosneste relacionamento. A senhoramencionou alguns deles. E sobretudoreferiu-se aos sentimentos do passado.E, atualmente, o que sente?

-Meus sentimentos transformaram-se, disse calmamente. Ou melhor, meussentimentos estão em processo detransformação. Estou orgulhosa deDibs. Quero-lhe muito bem. Agora, nãoé necessário que prove, a todoinstante, diante de mim, suacapacidade. Porque ele se transformou.E foi ele quem primeiro se modificou.Ele teve que se tornar maior que eu.As atitudes e sentimentos de seu paitambém se alteraram. Havíamosconstruído paredes altas em volta denós -de cada um de nós. Não apenas deDibs. Eu possuía as minhas. E o meumarido as suas. Bem, e se estasparedes ruírem, na verdade já se estãotornando menores, então, seremos todosnós muito mais felizes e próximos unsdos outros.

-Atitudes e sentimentosmodificam-se. Adivinho que a senhoratenha vivenciado esta transformação.

-Sim. Graças a Deus,experimentei-a, replICOU.Provavelmente por ter sido aceita talcomo era, sem indicações que aameaçassem como mãe, ela pôde penetrarno fundo dos seus próprios sentimentose deles aurir significante visão eentendimento.

Quantas vezes uma criança não éaceita para terapias, face à recusados pais em participar do tratamentoou buscar ajuda clínica para elesmesmos. Ninguém pode imaginar o númerode crianças que retomam aos seus laresbloqueados, sem apoio profissional,por este motivo. Em muitascircunstâncias, o processo terapêutico

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é bem mais significativo quando ospais também procuram esclarecer osseus problemas de relacionamento. Maso que ocorre é que, apesar daaquiescência consciente de certos paisem tentar curar-se, permanecem elescom tal nível de resistência, quemuito pouco pode ser conseguido. Se,de fato, não estão prontos e desejososde encontrar-se, raramente captam asvantagens da terapia. A defesa nascidade uma pessoa, que se percebeameaçada, pode tornar-se insuperávelpor qualquer abordagem. Para afelicidade de Dibs, seus pais foramsuficientementes sensíveis.Modificaram-se entendendo e apreciandoo crescimento do seu filho. Não apenasDibs se estava encontrando. Os seuspais também.

CAPÍTULO XIIIUma onda de ansiedade invadiu-

me, quando D. Jane telefonou-me na 2..feira. De há muito desejava saber quala evolução do comportamento de Dibs naescola. Sem dúvida, algumas de suasatitudes, expressas na ludoterapia,deveriam ter sido transbordadas naescola. D. Jane não me deixaria emsuspense por um longo período.

-Estou feliz em comunicar-lheque uma grande modificação seprocessou em Dibs. Tem sido umatransformação gradativa, mas todosestamos encantados. Não mais ficaramnossas perguntas sem respostas. E emvárias ocasiões é ele próprio quemtoma a iniciativa de abrir a conversa.Suas atitudes dominantes refletemcalma, alegria e interesse pelasoutras crianças. Sua linguagem écorreta e sua expressão rica, a maiorparte das vezes. Entretanto. se alguémo magoa, o retrocesso, a forma defalar abreviada e imatura, instalam-se. Geralmente, refere-se a si própriousando o eu. Hedda parece pequena paraconter todo o seu extravagantecontentamento. Estamos todos alegrescom seu progresso. Pensamos, então, emdividir com você a nossa alegria,comunicando-lhe estas informações.

-Com certeza participo de todaesta satisfação. Seria possívelcombinarmos uma hora, em quepudéssemos ficar juntas, para queouvisse mais detalhes sobre odesenvolvimento da conduta de Dibs?Que tal você, Hedda e eu almoçarmosjuntas um dia desses, o mais próximopossível?

-Claro que também nós teremosenorme prazer nisto, respondeu Jane.Respondo também por Hedda. Elacontinua acompanhando o grupo já naetapa seguinte. Concordamos que teriamelhores condições para atender Dibs.E certamente era esta sua grandevontade. Na verdade, o apoio que delao nosso garoto vem recebendo tem sidoinestimável. .

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No dia seguinte, encontramo-nospara o almoço, quando tivemos umaconversa reveladora sobre Dibs. Asprofessoras narraram as débeistentativas iniciais que Dibs enfrentoupara romper o seu isolamento habitual.

-Nenhuma de nós duvidava de queele estava consciente de tudo que aoseu redor ocorria. Nossas conjecturaseram corretas -Dibs permanecia ouvindoe aprendendo, enquanto se agachavadebaixo da mesa, ao lado do grupo, ounas outras oportunidades em que sesentava de costas voltadas para oscolegas, num aparente afastamento.Pouco a pouco, foi-se aproximando dogrupo. De início, respondia com brevespalavras às questões que lhe eramdirigidas. Gradualmente, começou afazer as atividades rotineiras que asoutras crianças realizavam. Quandoentrava na escola, retribuía oscumprimentos. Com cuidado, tirava oseu casaco e chapéu pendurando-os noseu próprio cabide, no vestiário.Ladeava os colegas e cada dia chegavasua' cadeira para mais perto do grupo,para ouvir estórias, música ou aprópria conversação. Uma vez ou outra,respondia a uma pergunta. Comhabilidade, as professoras coordenavamo trabalho de classe, de modo a nãoconcentrar exagerado foco de atençãona participação ou não de Dibs nostrabalhos. Mas sempre cuidavam empreservar oportunidades que elepoderia usar para participar.

-Há tanto tempo não lhe advêm osacessos de raiva que até já osesquecemos, disse Hedda. Ocorre agorao contrário, o seu sorriso quasesempre está presente em suafisionomia. Ele sorri para as outrascrianças e para nós. Logo que inicioua aproximação com o nosso grupo,mantinha-se perto de mim e tomava, dequando em quando, as minhas mãos paradirigir-me uma curta resposta. Cuidavade fazer aceitar a sua realidade,satisfazendo-me com o que na ocasiãoele podia oferecer. Nunca o forcei aavançar. Cada expressão sua erareconhecida por mim como uma

conquista. Talvez este apoio amigo oencorajasse a tentar mais e prosseguirno seu processo. As outras criançasestavam tão ocupadas no seuengajamento que aceitavam o que Dibsfazia sem questionamentos. Novosdegraus foram galgados por elepaulatinamente. ComeçOu, então, aseguir as direções. E exteriorizavaseus talentos superiores pela formacriativa com que seguia as instruções.Passou então a encaminhar-seperiodicamente para o cavalete.Gostava de pintar. Foi este o primeirotrabalho por ele executado.Concentrava-se tanto na sua tarefacomo se estivesse produzindo uma obrade arte, continuou Hedda, exibindo umasérie de pinturas suas. Bem sei quenão se trata de artista, mas pelomenos é uma produção sua.

Olhei as figuras. Todas muitosimples. Desenhos típicos de criançasda faixa etária de seis anos. A casaprimitiva, as árvores e as flores.Tudo em cores claras e alegres. Maspor que seria que Dibs pintava daquelemodo, quando era capaz de ir muitoalém, em uma arte complexa? Semdúvida, aquelas pinturas seriam ascomuns para uma criança de sua idade,entretanto, o bizarro é queconstituíam a contribuição de umacriança que em casa elaborava desenhose pinturas muito além do padrãoconvencionado para a sua idade.

-Trouxe-lhe também vários deseus outros trabalhos, acrescentouHedda. Aqui estão algumas estorietasque ele escreveu. Através delas,percebe-se o seu conhecimento doalfabeto e sua habilidade em escreveralgumas palavras.

Passou-me então as páginas ondeDibs laboriosamente havia escrito emletras de imprensa:

Vejo um gatoVejo um cãoVejo você -Fixamos cartões embaixo dos

objetos com os seus nomes99

correspondentes, para auxiliar ascrianças a reconhecer a forma gráficaque os representa. Quando um dosnossos pequenos deseja escrever umanarrativa ou frases, nós oassessoramos. Algumas de nossascrianças estão começando a ler. Poucosjá sabem ler bem. E Dibs participa dogrupo de leitura elementar.

Examinei os nomes escritos porDibs. Tão vacilantes e rascunhadosquanto os de um principiante. Seussentimentos em conflito lutavam dentrodele. Aquela pintura tão simples.Aquelas frases tão elementares. Porque seria que Dibs estava sufocandosuas possibilidades? Ou seriam estessinais indícios de uma tentativa desua parte para adaptar-se ao grupo desua idade?

-E ele também já sabe ler,continuou Hedda com entusiasmo. Comolhe dizia, está participando do grupode leitura. Senta-se no círculo com asoutras crianças e esforça-se na lutada aprendizagem das palavras. E,quando chega a sua vez, lê os nomespausadamente, não muito seguro de simesmo, mas, em termos gerais,corretos. Creio que poderia ler melhordo que o faz, apesar de sua posiçãoser igual à dos seus colegas.

Fiquei estupefata com todaaquela descrição. Claro que oentusiasmo dos seus professoresfuncionava como um componente de muitasignificação para Dibs. Falei-lhes quesua capacidade lhe permitia, naverdade, realizar muito mais do queaté então havia demonstrado na escola.Mas esta certeza não seriadesencorajadora e não poderia nublar oseu progresso. Dibs havia vivido emdois mundos durante um longo tempo,para qualquer de nós esperar umaimediata e completa integração.

O desenvolvimento social de Dibsrepresentava o fator mais importanteagora na conquista da suapersonalidade. Sobre suas habilidadesintelectuais não havia nenhuma questão-a não ser que a indagação implicasse

na perda ou no descuido dos seusdotes. Porém, neste estágio, não seria() ajustamento pessoal e social osaspectos decisivos para Dibs? E mesmoprioritários em relação à exibição desuas capacidades para ler, escrever,ou desenhar em um nível que superassequalquer criança de sua idade? Qual avantagem em apresentar uma altadotação intelectual, se isto nãoproporcionava, em determinadascircunstâncias, um correspondente embem-estar e harmonia para o indivíduoe para os outros?

-Então vocês estão sentindo queDibs está progredindo no seurelacionamento com o grupo? -indaguei.Percebi, no entanto, que a minhaobservação havia sido fraca einadequada.

-Ele adora música, D. Janeacrescentou. É sempre o primeiro aapresentar-se para formarmos o grupo.Sabe todas as nossas cantigas,Participa na banda rítmica. Oferece-separa ser o ele fante, o macaco ou ovento. Tudo com espontaneidade. Logoque começa a encenar, suas pernasapresentam-S"e trôpegas. Mas ele vaiganhando em graça e ritmo, à medidaque se deixa envolver pela música. Nãoo empurramos para nada. Mascompartilhamos de sua satisfação, cadavez que ele dá um passo, por pequenoque seja, ao encontro de si mesmo.Sentimos, cada dia, a sua alegria em ;ser membro participante do nossogrupo. Acreditamos, também, que asatitudes de sua mãe se têm modificadoenormemente. Quando o traz à escola,parece-nos respeitosa e feliz comDibs. Na volta, ele segura a sua mão eseguem juntos com naturalidade. Quecriança interessante!

-Sim. Na verdade, Dibs é umacriança muito interessante, reafirmei.Parece estar tentando com todas assuas forças realizar-se como pessoa emembro do seu grupo.

-A sua mais notável modificaçãoevidenciou-se quando da passagem doseu aniversário. Temos, na nossa

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escola, um quase ritual paracomemoraçÕes natalícias. Começamossempre formando um círculo. Entãocontamos uma estória e, em seguida,entramos com o bolo iluminado pelasvelas. Todos cantam "Parabéns pravocê" e o aniversariante, quepermanece ao meu lado, apaga asvelinhas. Cortamos o bolo edistribuímos as fatias com a garotada.

Pois bem, no dia em queanunciamos o aniversário de Dibs, nãoadivinhávamos qual seria a sua reação.Há algum tempo atrás, ele nãoparticipava de. sua festa, embora ofestejássemos da mesma forma que ofazíamos para as outras crianças. Esteano, logo que chegou a hora deorganizarmo-nos em círculo, Dibsreservou-se, de imediato, o lugar aomeu lado. Quando lhe cantamos os"Parabéns pra você", sua voz soavamais alta do que a doscompanheiros.Impregnado desentimentos,cantava:

"Parabéns, querido Dibs, Nestadata querida

Parabéns para mim! " Seguiu-se a distribuição dos

pedaços de bolo, entreguespessoalmente por ele, com um grandesorriso na face. Qualquer um que delese aproximasse poderia ouvi-lorepetindo:

"Hoje é o meu aniversário. Meuaniversário.

Estou completando seis anos. " As professoras estavam felizes

com Dibs. E eu também. Mas a alegriade suas conquistas não deveria anuviara visão de nossa próxima caminhada.Deveríamos ir mais além. Dibs deveriaaprender a aceitar-se e utilizar seurico potencial, e não desprezá-lo. Elehavia alcançado novos horizontes,indispensáveis para o seudesenvolvimento total. Confiava que oseu talento demonstrado na Sala deLudoterapia e em sua própria casatransbordassem em suas outrasexperiências. As suas habilidades

intelectuais haviam sido exploradaspara testá-lo e, assim, tornaram-seuma barreira e um refúgio em relaçãoao mundo, que Dibs tanto temia. Eleacostumou-se a usá-las como ummecanismo de defesa e auto-proteção. Enelas começou a insular-se. Secomeçasse a conversar, ler, escrever,desenhar, bem além do nível de seuscolegas, correria o perigo de ser poreles cortado e isolado pelas suasdiferenças:

Quantas crianças bem dotadas quese desenvolveram de uma maneiradesequilibrada e que ficaramaprisionadas no seu mundo solitário!Im porta atender a todas as exigênciasfundamentais da criança,providenciando um quadro harmonioso deestímulos. N o caso de Dibs, comopromover tal complementaridade? Haviaclasses especiais para os bem-dotados,entretanto ele ainda não estavasuficientemente amadurecido paraassumir um comportamento que ocapacitasse a participar destas turmas-ou para que esta experiência lhefosse, de fato, proveitosa.

No mais profundo do seu ser,Dibs envolvia-se na procura de simesmo, Era imperativo saber esperar asvitórias -cada uma a seu tempo -econfiar na força interior destacriança. A atmosfera em sua voltadeveria ser tranqüila, otimista esensível.

-Programamos um congraçamentoestudantil na escola, outro dia, Heddacontou-me com um sorriso. Reunimos noauditório os alunos menores. Nãoestávamos certas se as condições deDibs permitiriam sua participação emuma experiência de tal ordem. deixá-lolivre para formular a sua decisão. Naverdade, esta foi a nossa posição emrelação a todos os nossos alunos.Respeitamos a deliberação de cada umem inserir-se, ou não, no programa.Resolvemos apresentar uma atividade jávivenciada em classe. Havíamosmontado, certa vez, uma estória em queo grupo representava, a partir de

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invenções espontâneas e casuais,elaborando livremente a letra e amúsica. Solicitamos a opinião dascrianças na ocasião em que dividimosos papéis. Dibs candidatou-se. Quisser o vento. Dançou, sacudindo-se esoprando em volta de seus colegas.Todos se divertiram. Pois bem. Logoque demos a notícia de nossa próximaparticipação na assembléia geral,muitas crianças sugeriram que Dibsdeveria encenar o vento, como o fizeraem nossa classe. Dibs concordou.Executou o seu papel encantadoramente.De súbito, no meio da dança decidiucantar. Improvisou a letra da canção ea melodia. Lembro-me ainda de algumasde suas expressões:

"Sou o vento E sopro. Sopro E subo. Subo, Subo nas colinas e movimento as

nuvens. Dobro as árvores e balanço agrama. Eu sou o vento.

O vento amigo que você não podever . Mas eu sou o vento!"

Parecia haver esquecido aaudiência. Os alunos estavam surpresose fascinados. Nem era possível dizer oquanto nós ficamos alegres. Pensamos,então, que Dibs havia, finalmente; seencontrado e se percebido como um doselementos do nosso grupo. Uma pessoaentre pessoas.

Dibs, sem dúvida, localizava asua estrada, entretanto ainda nãopoderia regozijar-se com o seuencontro consigo mesmo. Deveriacontinuar o seu caminho. E se neste,algumas vezes, teria que enfrentarexperiências aflitivas, seria por seuintermédio que se abriria para ele acrescente consciência dos seussentimentos, atitudes erelacionamentos com aqueles que ocercavam. Não duvidava da existênciade muitos sentimentos que Dibs nãoescavara ainda do seu passado, paralançar no seu brinquedo e assimconhecê-los e compreendê-los paramelhor usá-los. Esperava que elepudesse encontrar na Sala de

Ludoterapia oportunidades queauxiliassem a sentir suas própriasemoções, de tal maneira que qualqueródio ou medo, que ainda guardasse,fossem expressos e encarados. Seria omodo de domesticá-los e diminuí-los.

Fez a fita retomar ao seu inícioe escutou-a. com uma expressão deseriedade no rosto. Repetiu váriasvezes os gritos do pai e só entãopermitiu que a gravação chegasse aoseu final. Desligou.

-Papai não gosta de ser mandadopara o seu quarto. Não suporta serchamado de estúpido, comentou,retomando à janela. Daqui posso ver asárvores. Posso até contá-las. Vejooito árvores ou, pelo menos, partedelas. Que agradável tê-las em voltade nós. São tão altas e tão amigas.

Voltou a brincar com o gravador.E a narrativa do garoto, que morava emum casarão com seu pai, sua mãe e suairmã, reapareceu uma vez mais.

-Certa vez, continuou; o paichegou em casa e logo dirigiu-se parao seu gabinete de estudo. O meninoentrou sem bater. Você é um homem dementirinha, gritou-lhe. Eu o odeio! Euo odeio! Você me ouviu? Eu o odeio! Opai começou a gritar, pedindodesculpas e suplicando para que omenino não o odiasse. Vou puni-lo,estúpido, idiota, avisou-lhe o garoto.Quero sentir-me livre de você. Nãodeixarei que você se aproxime de mim.

Desligou e falou-me que todaaquele drama era apenas uma estória dotipo faz-de-conta.

-Quis apenas inventar algumacoisa sobre papai. Outro dia fiz ummata-borrão e presenteei-lhe. E tambémum cinzeiro de argila. Levei-o aoforno, pintei-o e dei para papai.

-Você tem feito alguns presentespara o seu papai. E esta estória éfeita apenas para "fazer-de-conta?"

-Sim. Mas vamos ouvi-la de novo.Escutamos toda a dramatização e, aofinal, ele acrescentou:

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-Aqui é Dibs quem está falando.Odeio meu pai. Ele é desprezível paramim. Odeio o meu pai.

Ele não gosta de mim. Não mequer ver perto dele. Vou descrevê-lopara que possa vigiá-lo. Ele é umhomem desprezível. Muito desprezível.Mencionou-lhe o nome e o endereço. Éum cientista. Um homem terrivelmenteocupado e adora o silêncio e a calma.Tudo quieto. Não gosta do garoto. Etambém o garoto não lhe quer bem,concluiu, interrompendo a gravação edirigindo-se a mim.

-Ele já não significa muito paramim. Mas havia acostumado a senti-locomo importante. Talvez, nem go~te demim agora, comentou, fazendo a fitavoltar. Eu o odeio, papai! -exclamouaos gritos. Nunca mais tranque-me láem cima ou eu o matarei, de qualquermaneira, por todas as coisas que vocêfez comigo! Presentes e passadas.

Reenrolou toda a fita, retirou-a, e entregou-ma. -Terminou, Dibs?

-Guarde-a. Coloque-a em umacaixa e guarde-a. Conserve-a apenaspara nós dois.

-Está certo. Vou guardá-la econservá-la apenas para nós.

-Queria ir para a sala debrinquedos, avisou. Terminaremos isto.Espero que seja de uma vez por todas.

Mal penetramos no recinto, Dibscorreu para a areia. Começou a escavarum buraco profundo. Encaminhou-se atéà casa de bonecas e apanhou o papai.

-Você teria alguma coisa adizer? indagou ao boneco. Lamentatodas as palavras enraivecidas com queme tratou? -perguntou-lhe, sacudindo-oe arremessando-o junto ao depósito deareia, e, em seguida, batendo-lhe coma pá. Vou fazer uma prisão. E com umagrande fechadura na porta. Isto o farálamentar todas as coisas que tem feitocomigo.

Escolheu alguns blocos e começoua construir a prisão para o seu pai

sobre o buraco de areia. Trabalhavacom eficiência e rapidez.

-"Por favor, não faça istocomigo", clamava. pelo boneco-papai."Peço que me desculpe por tê-lomagoado. Mas, por favor, dê-me umanova oportunidade.

-Agora é a minha vez de puni-lopor tudo quanto tem feito, Dibsgritava, colocando o "papai" láembaixo, na areia.

-Estava acostumado a ter medo depapai, comentou dirigindo-se a mim.Habituei-me a vê-lo como uma pessoamuito importante para mim.

-Estava acostumado a temê-lo? -Agora, já não o sinto importante paramim. Mas vou puni-lo de qualquerforma!

-Mesmo se ele não lhe importamais, você continua a querer puni-lo?

-Sim. Vou castigá-lo. Voltou aodepósito de areia e à sua tarefa deconstruir a prisão do seu pai. Enfim,colocou o pai na prisão, fechou-a nasua parte superior com um papelão ecobriu-a com areia.

-"Quem vai cuidar de você?" -gritava, enquanto me olhavaexplicando-me: -É papai quem estágritando. Diz que lamenta tudo o queaconteceu. "Quem vai comprar-lhe ascoisas e tomar conta de você? Lembre-se de que sou o seu pai! Por favor,não me maltrate. Desculpe-me por tudoque lhe tenho feito sofrer. Lamentotanto! Por favor, Dibs, conceda-me oseu perdão. Estou tão arrependido!"

Dibs continuou ainda a jogaralgumas pás de areia até que seu paificou totalmente enterrado na suaprisão. Atirou-se em meus braços,estimulando-me para que o abraçasse.

-É o meu pai. Ele é quem tomaconta de mim. Mas estou punindo-o portodas as coisas que me fez e que metomaram triste e infeliz.

-Você o está castigando portodas as atitudes que ele costumava

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tomar e que o maltrataram e oentristeceram?

Dibs caminhou para a casinha eapanhou o boneco-garoto.

-O garoto ouviu o seu paipedindo auxílio e corre para ajudá-lo,falou, pulando na areia com o boneconas mãos. Veja, este é Dibs,apresentou-me o boneco, erguendo-opara que melhor o visualizasse. Vaipenetrar nesta imensidão deserta àprocura da montanha que cobre a prisãodo seu pai. O garoto já está cavando.Dibs remove e cava, apanhando a pápara instrumentá-lo. Atinge a prisão.Levanta-lhe a tampa. Espia o seuinterior com curiosidade.

-Oba! Ali está ele. Como estáarrependido por tudo quanto fez. Agoraa sua voz é diferente. "Eu o amo,Dibs", é o que diz. "Por favor, ajude-me. Preciso de você", ele suplica.Então o meninozinho abre-lhe a prisão.Seu pai está livre.

Cuidadosamente, suspendeu oboneco-papai e o garotinho em suasmãos e manteve-os assim, enquanto osestudava com atenção e calma.Recolocou-os na sua casinha, dispondo-os lado a lado em um banco.

Dibs limpou suas mãos de areiae, uma vez mais, retomou à janela,onde em silêncio contemplou apaisagem.

-O garoto salvou o seu pai eeste lamentou tudo o que havia feitoque magoara o seu filho, comentei. Eledisse que amava Dibs e que precisavadele.

Dibs virou-se para mim, com umpequeno sorriso a brincar-lhe no cantodos lábios.

-Conversei com papai hoje,narrou-me com tranqüilidade.

-Conversou com o seu pai? -Bem,ele estava na sala de jantarterminando seu café e lendo o jornalda manhã. Encaminhei-me diretamentepara ele e cumprimentei-o. "Bom dia,papai. Que você tenha um dia feliz

hoje." Ele colocou o seu jornal delado e respondeu-me. "Bom dia, Dibs.Tenha um dia muito feliz também." Esabe que tive? Foi, de fato, um diafeliz o de hoje.

Dibs caminhava em volta da sala,mantendo no semblante a luz do seusorriso.

-Papai levou-nos à praia decarro, no domingo. Fomos a uma ilhagrande e vimos o oceano. Papai e euandamos à margem da água. Eleexplicou-me muitas verdadescientíficas sobre o oceano; as marés,as diferenças entre oceanos, lagos,rios, riachos e poços. Depois, comeceia construir um castelo de areia e eleperguntou-me se poderia ajudar-me.Dei-lhe a minha pá de início e, emseguida, cada um tinha a sua vez.Quando terminamos, fomos brincar naágua. Estava tão fria, que nela nãopermanecemos muito tempo. Fizemos onosso almoço de piquenique no própriocarro. Todos estávamos felizes. Mamãesorria e sorria.

-Você divertiu-se muitopasseando com seu

pai e sua mãe? -Oh, e como foi agradável! Uma

viagem deliciosa até a praia e de láaté nossa casa. E não houve palavraszangadas. Nenhuma!

-Passearam sem nenhuma palavrade zanga

e aborrecimento. Dibs dirigiu-se para a areia e

sentou-se na borda do depósito. -Bem, ali construí a prisão para

ele, onde o tranquei e cobri de areia.Perguntei a mim mesmo por que deveriapermitir-lhe sair da prisão e serlivre. Mas sabe o que respondi? Apenaspara deixá-lo ser. Apenas parapermitir-lhe ser livre.

-Então você decidiu que eledeveria ser livre?

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-Sim. Não queria tê-lo preso etrancado e ainda enterrado. Desejavasomente dar-lhe uma lição.

-Compreendi. Você queria dar-lheuma lição. -Hoje, conversei 'compapai, disse Dibs com um sorrisoaliviado. É interessante observar queDibs expressou seu desejo de vingançae ódio, de uma forma mais aberta,apenas depois que sentiu maiorsegurança no seu relacionamento com oseu pai. Gratificante foi ouvi-lofalar de suas experiênciassatisfatórias com sua família. E saberque seu pai, não somente derramou-lheinformações sobre oceanos, rios ecorrentes, mas que alternava às vezespara manusear a pá e ajudava aconstruir o castelo de areia do seufilho.

105

CAPÍTULO XX-Aqui estou eu! -exclamou Dibs,

quando entrou na sala de espera, na

quinta-feira seguinte. Não tereimuitas oportunidades de a ver antesdas minhas férias de verão. -Sim.Teremos três encontros, incluindo o dehoje. Então, cada um de nós sairá deférias. -Iremos para uma ilha,comentou Dibs. Espero gostar destepasseio. Vovó está planejando passar overão conosco ao invés do seu habitualperíodo de férias. Que boa idéia!Circulou a sala com passos largos.Apanhou uma bonequinha. -Bem, aquiestá a irmã, apresentou, embora nãohouvesse visto aquela boneca antes.Não é mesmo uma pirralha? Devo livrar-me dela. Vou oferecer-lhe um pouco deum saboroso pudim de arroz para quecoma. Mas, lá dentro, despejareiveneno para, assim, ela desaparecerpara sempre. Por toda a eternidade.

-Você quer livrar-se de suairmã? .-Muitas vezes ela grita.arranha-me, machuca-me tanto que ficocom medo dela. Outras tantas bato nelatambém. Mas ela não fica em casa muitotempo. Entretanto, daqui a algunsdias, permanecerá conosco. Será anossa viagem. Dorothy tem cinco anos.

-Algumas vezes vocês brigam e semachucam um ao outro?

-Sim, respondeu. Mas, raramente,ela permanece em casa. Neste últimofim de semana ficou conosco.

-E como foram as coisas, então? -Oh! -hesitou, encolhendo os

ombros. Nem me importo. Quando sintovontade, brincamos juntos. Mas nãodeixo que ela penetre no meu quarto.Tenho muitos tesouros ali. Ela tentaagarrá-los e destruí-los. Por issobrigamos. Mas nunca tanto quantoantes. No próximo ano, Dorothy virámorar conosco em casa. E deveráfreqüentar a mesma escola que eu.

-E como você se sente diantedesta perspectiva?

-Bem, isto não me importa. Asvezes, penso que fico contente sabendoque ela vem para ficar. Com certeza,deve sentir-se muito só, tão longe desua casa. A escola é de nossa tia-avó.Contudo, todos acreditam que o melhorlugar para ela seja a nossa casa.

-E você está contente? -Sim. Realmente estou, replico~.

Sua presença não me perturba mais.Quando estou brincando com os meusblocos, trens, carros ou meu conjuntode construção, ela se aproxima ebrinca comigo. Ajuda-me. entregando-meblocos ou peças da minha construção.Não procura destruir ou demolir o quefaço. Por isso, às vezes, brincamosjuntos. No domingo, li uma estóriapara ela. Era um livro novo com quepapai me havia presenteado Era aestória da eletricidade. Disse-me quenão havia ainda pensado o quantoaquele assunto era interessante. Eu jáprevia isto. Aconselhei-a a prestaratenção aos fatos que se passam ao seuredor para que aprendesse tudo quantolhe fosse possível.

Sabia que aquela seria umaestória fascinante. Papai contou-meque estava na livraria e olhou aquelenovo livro para crianças e logoimaginou que eu deveria gostar de lê-lo. E acertou!

Aproximou-se da mesa e começou abater sobre uma pequena quantidade deargila.

-Daqui a pouco o verão vaichegar, observou. Irei para a praia.Para o sol. Sentirei o vento. Que bomserá! Mas antes tenho alguma coisa afazer.

Encaminhou-se para o cavaleteapanhou uma jarra de tinta e um copo.Derramo~ uma pequena quantidade detinta no copo, acrescentando umaporção reduzida de água. Outras coresforam somadas à mistura. Tudo bemagitado para perfeita homogeneização.

-Este é o veneno para a irmã,avisou. Ela pensará que é um cereal ecomerá. Será, então, o seu fim.

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-Então este veneno é para a irmãe depois que ela beber estará morta?

Dibs acenou com a cabeçaafirmativamente. Fitou-me.

-Não vou dar-lhe por enquanto,falou. Esperarei um pouco, pararepensar sobre "o assunto.

Foi até a cozinha e dirigiu-se àmamãe-boneco. -O que você tem feitocom o garoto?

inquiriu-lhe. Como você o temtratado, idiota? Já lhe repeti a mesmafrase tantas vezes. Será que sentevergonha de você mesma? -indagou-lhe.enquanto carregava a boneca-mãe para aareia. Erga aqui uma montanha,ordenou-lhe. Vamos. faça-a e cuidepara que seja correta a construção Omenino permanecerá aqui parafiscalizar a perfeição da sua tarefa.Melhor será para você tomar todo ocuidado, pois terá fiscal para vigiá-la todo~ os minutos. "Meu Deus! MeuDeus! Por que ele

é assim? Que fiz eu para merecê-lo como filho?" Construa a montanha, enão me venha dizer que não pode fazê-lo. Pois eu vou mostrar-lhe qual amelhor maneira. Vou ensinar-lhe, uma,duas, três vezes. Mas você terá deerguê-la.

Atirou a mamãe-boneca na areia eencostou-se na janela:

-"É tão difícil fazer o que vocême ordena ", falou expressando oconflito da mãe. "Ninguém podeconstruir uma montanha'.:' Mas eufarei com que você cumpra a minhatarefa. Terá que erguer a montanha e ofará corretamente. Há sempre um modocerto e outro errado de fazer ascoisas. E você fará o seu trabalho deforma certa.

Vagueou pela sala até chegarjunto à mesa. Pegou a mamadeira esugou-a durante muito tempo, enquantomantinha o seu olhar fixo em mim.

-Sou apenas um bebê, observou. Enada posso fazer. Alguém deve cuidarde mim. Serei o bebê. O bebê não

precisa sentir medo. Vovó tomarácuidado com ele, murmurou.

Retirou a mamadeira de sua boca,recolocando-a sobre a mesa.

-Mamãe não pode construir amontanha, falou com resignação. E osbebês também não são capazes de taltrabalho. Ninguém pode construir umamontanha.

-Mamãe não pode? E os bebêstambém não? Parece-lhe uma tarefagrande demais para ser executada?

-Uma tempestade monstruosapoderia desabar e soprar para bemlonge todas as pessoas.

-Poderia? -Apenas não quero queesta tempestade aconteça, falou Dibssuavemente. Não quero Que ninguém sejasoprado pelo vento para longe daqui.

-Ah! -sei. -Por que você não constrói

aquela montanha? -Dibs vociferou,ordenando. Por que você não faz aquiloque lhe foi mandado fazer? Se vocêgritar ou chorar mandarei trancá-la noquarto. Ela está tentando, tentando,tentando, explicou-me, dirigindo-meseu olhar. Está apavorada, porque nãogosta de ficar trancada, sozinha noseu quarto E agora, chama-me paraajudá-la.

Dibs continuou em pé, próximo aodepósito de areia, olhando lá embaixoo drama da mamãe-boneca.

-A mamãe está tentando construira montanha, mas está amedrontadaporque não gosta d~ ficar trancada,sozinha no seu quarto?

-É isto mesmo, concordou. Dibsrecurvou-se para apanhar a boneca quehá pouco identificara como sua irmã.Abraçou-a.

-Pobre irmãzinha! Você sentemedo? -perguntou com meiguice. Sabereiprotegê-la. Vou dar-lhe a mamadeira.Isto a fará sentir-se maisreconfortada. disse ele segurando amamadeira na altura dos lábios daboneca, enquanto gentilmente a

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balançava em um braço. Coitada dairmãzinha! Cuidarei de você. Vouconvidá-la para a minha festa. Eninguém irá maltratá-la.

Carregou-a até o quarto daboneca onde a deitou com delicadeza nacama, cobrindo-a com cuidado. Devolta, trouxe a mamadeira recolocando-a na mesa. Chupava o bico.

-Você vai ajudar a irmã? -Sim,respondeu. Tomarei conta dela. Equedou-se em silêncio durante um longoperíodo.

-Dois dos nossos peixinhos daescola morreram hoje. contou-me. Nãosabemos o que lhes aconteceu. Heddafalou-nos que os encontrou mortos.

-Ah, foi? -Fiz um livro paramamãe na escola, hoje. Ela adoraflores. Assim recortei algumas de umcatálogo de sementes. Preguei-as numpapel colorido e escrevi o nome decada flor debaixo da gravura. Costureitodas as páginas juntas com linhaverde.

-Que interessante! E o que fezcom isto? -Ainda está na escola. Voufazer alguma

coisa para papai. E estoutentando imaginar um presente paraDorothy. Quando tiver preparado umalembrancinha para cada um, então,levarei tudo para casa.

-Assim, você planeja preparar umpresente para cada um?

-Bem, este é o meu plano. Aindanão fui capaz de decidir o que fazerpara minha irmã. Estou confeccionandopara papai um peso para papéis.

-Você deseja preparar algumacoisa para cada membro de sua família?

-Certo. E não quero que ninguémfique esquecido. Darei para vovó umpedacinho do final do ramo de minhaárvore favorita.

-Vovó ficará alegre com isto? -Sem dúvida. Ficará muito feliz! Este éum dos meus tesouros.

Retomou à areia, recordando atarefa que para a mamãe-boneca haviaatribuído.

-Muito bem, mamãe! -gritou. Queestá fazendo aí sozinha? Não deveriaestar construindo a montanha? Venhacá. Vou ajudá-la. Venha para perto demim, falou gentilmente, embalando-ana~ mãos. Algumas vezes ela costumachorar, declarou em tom baixo de voz.Deve haver lágrimas. Que rolarão dosseus olhos quando o pranto a sacudir.Penso que, talvez, esteja triste.

-Talvez esteja triste. -Voucolocá-la em casa junto com a família,anunciou. Todos ficarão em volta damesa de jantar, onde poderão estarjuntos.

Observei com que cuidadorecompunha a família de bonecoscarregando-os em volta da mesa.Ajoelhou-se do lado da casinha ecantarolou suavemente para eles.

-Juntos estamos e as bênçãos deDeus suplicamos.

Interrompeu a canção, de súbito,e censurou-se.

-Não, não devo cantar estacantiga. Esta é somente para vovó.Este povo aqui não freqüenta a igreja.

Atravessou a sala em direção aocavalete. Lá pintou em forma desalpicadas e respingos de coresbrilhantes figuras indefinidas.

-Isto significa felicidade,explicou, enquanto o seu pincelespalhava de leve novos pingos na suapintura. Todas as cores estão felizes,e todos, lá dentro, estão reunidos,bonitos e amigos. Haverá apenas duasquintas-feiras mais depois desta.Então será a nossa viagem de verão.

-Sim, duas quintas-feiras mais eteremos as férias de verão. Talvez,você possa voltar para uma outravisita no outono, se assim o desejar.

-Sentirei falta de você. Tereisaudades das minhas vindas aqui. Vocêtambém sentirá minha falta?

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-Sim, Dibs. Sentirei sua falta. .-Ambos sairemos em férias de

verão, falou, batendo levespancadinhas na minha mão.

-Sim, sairemos em férias. -Que maravilhosa sala de

brinquedos! Sim, a Sala de Ludoterapia havia

sido um recinto feliz para Dibs emdeterminadas ocasiões.

No entanto, momentos tristes edifíceis ali foram por ele vividostambém. Escavara os seus própriossentimentos, aliviando-se deexperiências passadas que o haviamferido e marcado.

Dibs estava em minha frente.Cabeça erguida. E um sentimentoprofundo de segurança desabrochando,crescendo dentro dele. Seus desejos devingança haviam sido temperados com operdão. Dibs estava construindo o seuconceito próprio, como se apalpasse umemaranhado de espinheiros dos seusconflitos emocionais. Podia amar eodiar. Condenar e perdoar. Estavaaprendendo com a experiência que ossentimentos podem ser torcidos emodificados até perderem as suasafiadas pontas. Estava aprendendo ocontrole responsável e novas formas deexpressar as suas emoções. Atravésdeste crescente conhecimento pessoal,Dibs seria capaz de liberar suashabilidades e sentimentos maisconstrutivamente.

CAPÍTULO XXI Havia tomado emprestado um

conjunto de "World test", que estavana sala de brinquedos, quando Dibsentrou na semana seguinte. Estematerial consiste em várias miniaturasdetalhadas de "pessoas, animais,edifícios, árvores, barreiras, carros,aviões etc. Foi projetado,inicialmente, como um teste depersonalidade, mas não iria usá-lopara esta finalidade com Dibs. Pensavaque ele se interessaria pelaspequeninas figuras e, se desejasseutilizá-las na sua brincadeira,poderia usufruir da plasticidade doconjunto. Não tinha a intenção desugerir-lhe o uso daquele material oude qualquer outro. Pois não desejavadirigir suas atividades. Seria mais umbrinquedo disponível para ser usado,caso fosse por ele escolhido.

De imediato, Dibs observou apresença do estojo contendo as peçasda cidade e abriu-o em poucos minutos.

-Temos alguma coisa nova poraqui! Que objetos pequenos! -comentoumanuseando e misturando todo omaterial. Há pessoas em miniatura,'prédios e animais. O que é isto?

-Você pode construir o mundo comisto, se o quiser, respondi-lhe. Háuma peça para ser espalhada no chão eestas listas azuis podem simbolizar aspartes cobertas pelas águas.

-Oh! -entendi. Como éinteressante! Pode ser uma cidade debrinquedo. Posso construí-la dediferentes maneiras. desde que queiraarmá-la.

-Sim, você pode. Dibs espalhou otecido no piso e sentou-se ao lado domaterial. Selecionou cuidadosamente a~peças. Iniciou com uma igreja, umacasa e um caminhão.

-Irei construir o meu mundo,planejou com alegria. Gosto destespequeninos prédios, deste pessoal edestas coisinhas. Narrarei a estóriaenquanto vou construindo. E vocêobservará o seu crescimento.

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-Esta é a igreja. a grandeigreja branca, expressou-se, erguendoa primeira miniatura. Uma igreja paraDeus e para este povo pequenino. Estaé uma cidade cheia de coisas. As casase os caminhões estão cheios debarulhos. Há choques entre os ruídos.É o barulho da cidade, explicouiniciando o traçado das ruas. As casasenfileiram-se umas atrás das outras.Esta é uma cidade completa. E aqui umaacanhada ruela de fundos. Agora, aqui,corre uma estrada que vai até oaeroporto. Este fica próximo ao mar.Colocarei aviões no aeroporto. Jáaqui, no oceano, localizarei osbarquinhos. Oh, veja! Aqui estão asplacas das ruas. Esta é a segundaavenida. E, na verdade. existe umasegunda avenida aqui em Nova York.Estes são os sinais de trânsito queindicam "pare" ou "prossiga". Aquiestá uma cerca e uma barreira ali. Oavião está sobrevoando a cidade,anunciou. produzindo um ruídosemelhante ao de uma aeronave

O barco está parado no mar.Flutua para cima e para baixo. Agora,três aviões estão pousados noaeroporto. Oba! -aqui está um hotel.Agora, onde deveria situá-lo? Vouarmá-lo aqui. Em frente dele fixarei olugar da banca de jornais e revis tas.Em seguida, completarei o espaço comcasas. Ah, e as lojas? Bem, as pessoasprecisam de armazéns e casas paracompras. Onde estão as lojas? Ah, aquias encontrei. E também um hospital euma garagem. Enfim, tenho tudo o deque preciso para construir o meumundo.

-É. Parece que sim. -Estehospital é um prédio bastante grande.Vou colocá-lo aqui, na primeiraAvenida. É justamente isto que a placaindica. Portanto, aqui o hospitalficará situado. Deve servir às pessoasdoentes. Cheira doença e remédios e éum lugar triste. Agora, vejamos aquique casa encantadora. Bem, mas esta éuma cidade imensa, barulhenta eprecisa de um parque. Construirei oparque, portanto. Cheio de árvores e

trepadeiras. Logo aqui será a escola.Não, recuou, guardando a miniatura noestojo. Ali ficará uma outra casa.Tantas casas prÓximas umas das outras!E todas habitadas. Formam umavizinhança amiga. Levantarei uma cercaem volta do aeroporto. Será uma medidade segurança. Agora as cercas vivas,decidiu, selecionando as plantas deespuma de borracha. Estão crescendo.Plantas divisórias e arbustos. Muitasárvores. Todas enfileiradas pelaavenida. Arvores cobertas de folhas.Temos uma cidade em tempo de verão,enfim!

Sentou-se no seu calcanhar efitou-me. Espichou os braços e sorriu.

-Oh, adorável verão, pleno defolhas! Mas ao lado da cidade haveráuma fazenda com muitas vacas pastando,avisou, dispondo-as em .filas. Elasestão encaminhando-se para o estábulo.Aguardam a hora de serem ordenhadas,comentou, voltando-se, em seguida,para a caixa em busca de novoselementos.

Agora será a vez das pessoas. Hásempre um mensageiro do correio,disse, exibindo uma das figuras. Quegrande bagagem carrega! São cartas.Por isso movimenta-se pelas ruas,parando em cada casa. Assim as pessoasvão recebendo suas cartas. E Dibs -atéDibs recebe uma carta dirigida só paraele. O carteiro continua o seutrabalho. Chega ao hospital. Também osferidos e os doentes recebem suascartas. E quando isto acontece,sorriem por dentro. Riem com ocoração. O caminhão ruma para oaeroporto. O muro mantém os aviões noseu campo próprio, impede-os deultrapassar os limites e, assim, deacidentar as pessoas. O avião estávoando no céu, sobrevoa a cidade. Vejasó! Sobre a cidade. O avião cortando oazul do céu, bem próximo do brilho eda brancura das nuvens.

Interrompeu o seu brinquedo esentou-se contemplativamenteobservando o mundo que estava criando.

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Suspirou. Apanhou novas figuras nodepósito.

-Aqui estão crianças com suamãe, expressou-se. Vivem juntas nafazenda, em uma casa aconchegante. Emvolta, ficam as galinhas e oscarneiros. A mãe está descendo a ruaem direção à cidade. Não sei para ondeSe dirige. Será que vai ao açouguecomprar carne? Não. Prossegue sempredescendo, descendo até parar ao ladodo hospital. Tento adivinhar por quedecidiu parar justamente ali.

-Também eu tento adivinhar oporquê, Dibs. Olhei-o sentar-se imóvelpor um longo tempo,

perscrutando a figura materna. -Bem, retornou à sua função descritiva;lá está ela ao lado do hospital. Háfilas de carros correndo pelas ruas. Eum carro de bombeiro. Todos devemafastar-se para dar-lhe passagem,avisou, enquanto os movimentava paracima e para baixo. produzindo obarulho característico de um trânsitotenso.

Mas onde estão as crianças? Oh,aqui está uma delas. Encaminhando-sesozinha para o rio. Coitada destacriancinha tão solitária. O jacarénada no rio. Bem próximo, arrasta-seuma cobra. Algumas vezes as serpentesvivem dentro d'água. O garotoaproxima-se mais e mais do rio. E acada passo, mais perto fica dosperigos.

U ma vez mais, Dibs parou suaatividade para estudar o seu mundo.Sorriu.

-Sou um construtor de cidades. Ocozinheiro saiu para esvaziar a cestade lixo. Aquela senhora vai fazercompras. A outra dirige-se para aigreja. Cantará um hino. É uma boamulher, concluiu. voltando-se para asmargens do rio onde colocou outracriança ao lado do garoto. Estacriança segurará o menino. Brincandona água, ele ignora a existência dojacaré e das cobras. Mas o outrogaroto é seu amigo e irá avisá-lo

sobre os perigos e aconselhá-lo atomar um barco. O menino assim o fará.

O barco é seguro. Os dois serãosalvos! São, de fato, amigos, afirmou,colocando-os num barquinho.

Agora é o policial quem organizao trânsito. Manda parar e prosseguir.Fixa sinais de trânsito em toda acidade. Algumas ruas permitem a subidae a descida de carros; em outras,porém, a mão é única. Ah! -nesta placaestá escrito: "Escola n.O 1 " Devemos.ter escolas, observou entregargalhadas. As crianças necessitam deescolas. Assim, poderão ser educadas.Esta criança aqui -esta garotinha -ficará em casa. Ficará com sua mãe,seu pai e seu irmão. Todos querem queela permaneça em casa, para que não sesinta sozinha.

Dibs estava absorvido na tarefade criar o seu mundo. Selecionou todasas miniaturas humanas que encontrou noestojo e as foi distribuindo em voltada sua cidade. Havia criado um mundocheio de gente.

-Aqui é um lar, falou, indicandouma das casas. Há uma árvore grande noquintal. Uma árvore muito especial.Aquele homem que caminha na calçadadirige-se para o seu lar. É o pai.

Dibs levantou-se, atravessou asala rumando à parede recoberta deespelhos, onde bateu com vigor.

-Tenho novos brinquedos. Umacidade completa para construir, comcasas, pessoas e animais Criei umacidade -uma imensa e povoada cidadetoda comprimida, como Nova York. Semdúvida, alguém tem muito quedatilografar neste escritório.

Retomou à sua construção,ajoelhando-se no chão, ao seu lado.

-O caminhão de lixo vem descendoa rua O sinal de trânsito indica-lheque deve parar. Mas quando o policialo vê, troca o sinal, permitindo-lheque continue. O caminhão segue a suadireção feliz. Um cachorro também estádescendo a rua e o policial substitui

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o sinal para que ele não tenha queesperar. Pare. Siga. Pare. Siga. Digo-lhe que há vida nesta cidade. Coisasmovem-se. Pessoas vão e vêm. Casas,igrejas. carros, pessoas, animais elojas. Aqui, ao ar livre, estão osanimais em uma fazenda fresca everdejante.

De repente, apanhou o carro debombeiros e zunindo percorreu as ruas.O corpo de bombeiros recebeu umchamado urgente. A casa está sendotomada pelo fogo. e aS pessoas estãono segundo andar -as pessoas grandes.Gritam e vociferam e não conseguemsair. Mas o carro de bombeiros chega ederrama água em toda a casa. Estavamaterrorizados ao extremo, mas foramsalvos.

Dibs riu levemente, perguntando-se por que tudo aquilo ocorrerá com oseu pai e sua mãe. Encaminhou-se paraa mesa e sentou-se fitando-me.

-Papai continua tão, tãoocupado, queixou-se. Outro dia, o Dr.Bill foi à nossa casa ver mamãe. Elescostumavam ser bons amigos. Conversoumuito e muito com mamãe. Dr. Billgosta de minha mamãe. Falou que euestava bem.

-Foi isto que ele disse? -Opa! Não posso me perder no

caminho. Quando sair daqui hoje devoir ao barbeiro para cortar os meuscabelos. Costumava fazer um tremendoalarido. No entanto, nunca mais fizisto. Sabe? Uma certa vez mordi obarbeiro.

-Você o mordeu? -Sim, estava amedrontado. Na

verdade, não me tenho mais sentidoapavorado.

-Então, você não se tem sentidoamedrontado?

-Penso que é porque estoucrescendo. Mas devo terminar a minhacidade. Vou colocar vária~ árvores,arvoredos e plantas em sua volta.Então, ela ficará mais bonita. Esta éuma rua muito movimentada. Colocarei

todas estas pessoas dentro da cidade.Olhe só este táxi que veio ao encontrodo trem. As pessoas estão semprevisitando-se. Todo~ felizes pelos seusencontros. Lá vem o carteiro. Quantasruas já percorreu distribuindo cartaspara as pessoas. Mas aqui está papaitentando chegar em casa. Foi obrigadoa parar no sinal de trânsito que dizia"pare". Esperou. esperou para que osinal trocasse e o mandasse seguir.Mas o sinal continua o \ mesmo e elenão pode prosseguir. Oh, quantasárvores há pelas ruas! As cidadesprecisam de árvores porque delas vemsombra amiga. Veja minha cidade! Olhemeu mundo! Eu construí o meu mundo. Éum mundo cheio de gente amiga!

O nosso horário terminou. Dibsolhou o seu mundo, por ele mesmoconstruído. Um mundo repleto depessoas amigas. Mas "papai" estavaparado, impedido de continuar o seupercurso pelo sinal de trânsito quenão o deixara chegar em casa. QuandoDibs saiu da sala de brinquedos haviaum sorriso nos seus lábios. Haviaimobilizado o "papai" no seu mundo depessoas amigas.

Dibs havia construído uma cidadebem organizada, cheia de pessoas e demovimento! Seu plano demonstrou suaprivilegiada inteligência, suacapacidade de globalização do todo,bem como a valorização dos detalhes.Havia nele finalidades a serematendidas, integração de variadoselementos e criatividade. As atraentesminiaturas o estimularam. Na verdade,ele construía um mundo altamentedesenvolvido e pleno de significados.Sentimentos hostis foram expressos deuma forma direta, em relação ao seupai e à sua mãe. Afloraram tambémexplicitações da consciência de suaresponsabilidade. Dibs estavacrescendo.

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CAPÍTULO XXII Dibs chegou para sua última

sessão antes das férias sugerindo-meque permanecêssemos parte do períodono meu escritório. Sentou-se na minhaescrivaninha e fixou o olhar num pontolongínquo. Seu semblante revelavaseriedade.

-Esta será a minha últimaquinta-feira antes do verão.

-E verdade, Dibs. -Então irei para longe. Para a

praia. Há muitas árvores fora dacidade -pelas estradas e fazendas. Masnão na praia. Lá a água é tão azul.Gosto do mar. Entretanto. vou sentirfalta das minhas vindas até aqui.Sentirei saudades de você.

-E eu também, Dibs. Foi tãoagradável tê-lo conhecido.

-Queria ver se o meu nome aindaconsta do seu arquivo.

-Olhe e verifique. Assim o fez. E encontrou a sua

ficha tal qual a havia inserido. -Irá conservá-la aqui sempre?

Sempre você irá lembrar-se de mim? -Sim. Dibs. Sempre lembrar-me-ei

de você. -Ainda guarda a fita quegravei? -Claro, guardo-a sim.

-Deixe-me ver, uma vez mais. Localizei a fita no armário e

entreguei-a. Seu nome estava escritona tampa da caixa.

-Já fiz gravações, Dibs, disseela. Gravei nesta fita minha próximaconversa. E a fita pegou minha voz eguardou-a. A minha voz está na fita.

-Sim. Foi exatamente isto que ogravador fez.

-Será que poderia acrescentaroutras palavras ao que foi gravado?

-Só depende de sua vontade. -Pois quero. Farei com que o

gravador retenha a minha voz de novo.Gosto dele.

Colocamos a fita no gravador eouvimos até a parte que ele anteshavia gravado. Depois ele preparou ogravador para uma gravação adicional.

"Esta é a minha última visita àsala de brinquedos", disse ele,falando ao microfone. " Aqui é Dibsfalando. Esta é a minha voz. Eu vimpara a sala de brinquedos. Fiz tantase tantas coisas na sala de brinquedos.Eu sou Dibs." Houve uma longa pausa."Eu sou Dibs", repetiu elevagarosamente. "Pode ser que no outonoeu volte ainda uma vez para umavisita. Talvez só para mais uma visitadepois do verão. Estou indo emborapara as férias de verão e irei ficar àbeira do oceano. Ouvirei as ondas.Brincarei na areia."

Houve uma outra longa pausa. Emseguida, ele desligou o gravador."Vamos voltar para a sala debrinquedos", disse ele. "Quero brincarcom o mundo construído de novo."

Voltamos para a sala debrinquedos. Dibs retirou os materiaise, mais uma vez, começou a construir asua cidade. Rapidamente ergueu osedifícios e as árvores. Colocou asoutras figuras pelo meio da cidade e àsua volta. Depois, selecionou quatroedifícios e colocou-os em seu lugar,cuidadosamente. "Vê estas duas casas",disse ele. "Esta é uma casa. E esta éuma casa. Este edifício é uma cadeia,e este, um hospital". Colocou as duascasas uma ao lado da outra. "Esta é asua casa e esta é a minha casa", disseele, indicando as duas casas. ., Aminha é toda branca e verde. Háárvores e flores e pássaros cantandoem torno dela. Todas as portas e todasas janelas estão largamente aberta~.Você mora justo ao lado de mim. Vocêtem uma casa muito bonita, também. E,em volta de sua casa, há flores eárvores e pássaros cantando. Não hámuro nem cerca entre a sua casa e aminha."

Ele passou os olhos entre osedifícios e retirou a igrejinha.Colocou-a atrás de sua casa. " Aqui

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está a igreja", disse. "Ela está atrásda minha casa;" Removeu-a um pouco, osuficiente para colocá-la justo nomeio entre as duas casas. "Ela estáatrás e no meio de ambas as nossascasas", acrescentou. "Respeitamos aigreja. Respeitamos os que lá vão. Etambém ouvimos a música da igreja.Agora, aqui está a cadeia. Ela está nadireção da minha casa. E aqui está aescola, Veja: nós respeitamos a igrejae respeitamos a escola, mas a cadeia ésó minha. Você nada tem a ver com asprisões. Você não gosta delas.Portanto, não teria utilidade. Mas eugosto."

-Há um cavalo enorme e umanogueira no meu pomar. Está no verão esão tantas as árvores! Algumas verdese outras desfolhadas pelo vento.

Abriu os braços como Se fora elemesmo um arbusto balançado pelo vento.De súbito, ergueu-se e passeou pelorecinto. Vislumbrou a paisagem da,janela.

-Há carros estacionados aí fora.Mas não vi nenhuma outra pessoa noparque.

Parecia um pouco frustrado. Masretomou a sua cidade, começando amovimentar as figuras.

-Aqui é a Rua da Prisão,informou. Não há árvores nos seusarredores. Situa-se um pouco afastadadas casas amigas e longe da igreja. Ésolitária e fria. Mas a igreja ficapróxima de nossas moradias, comentou,acariciando a sua torre. A cruz fixadano seu alto dá-nos as direções. Maseste prédio aqui é a prisão. É paraonde papai irá. Meu papai. Seuescritório ficará no primeiro andar daprisão, planejou entre gargalhadas.

Imitou o ruído característicodos carros que subiam e desciam asruas. Cantarolou uma pequena canção.Reuniu as figuras da mãe, do pai, dagarota e do menino, segurando-as nasua mão.

-Estas são as pessoas. O pai, amãe, a irmã e o garoto. O pai está

aproximando-se de sua casa. Não sabe oque irá fazer. Esta é a mãe. E o nomedeste menino é Dibs. Esta garotinha ésua irmã. Ela deve ir para a prisão. Airmã e a mãe irão para a cadeia -poisnão preciso de irmã, concluiu,atirando-a de volta à caixa.

De novo, ergueu-se e caminhoupela sala, suspirando com toda aprofundidade.

-Passo, geralmente, todo odomingo em casa. Domingo é o dia denada. Jake falou-me que o domingo eraum dia sagrado. Mas, está vendo aprisão?

-Sim. Veio a prisão. -É umacadeia de uma única entrada. É umaprisão de entrada única numa rua demão única. Por isso não há caminho devolta. uma vez que uma pessoa apenetra. A irmã foi para lá agora.

-Sim. Notei a ida da irmã. -Comoesta cidade está comprimida! Muitosdesejam sair, espalharem-se pelointerior. E várias pessoas destascasas começam a mudar-se. Dibs ficaráe você também.

-Sabe de quem é esta casa nova? -De quem é? -É de vovó. Sua casa

não tem árvores em volta. Mas ela amatanto as árvores. Por isso devecaminhar até a minha casa paradeleitar-se com as minhas plantas.

Revolveu as figuras e daliretirou um homem. Estudou-ocuidadosamente.

-Este é o garoto grande,apresentou-o, estudando-odetalhadamente. Penso que seja Dibs.Vou retirar esta criancinha esubstituí-la por Dibs já crescido.Esta é vovó. Boa vovozinha. Vovó tãoamiga! E o carteiro está vindo paraentregar uma carta a Dibs. Dibs estáadulto agora. Penso que está tãogrande quanto papai, expressou-secomparando as miniaturas entre si.

Sim. Dibs está tão grande quantopapai, e maior que mamãe. Há plantas ecercas vivas em volta da cidade.

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Crescem para embelezá-la. Cadaplantinha verde dá a sua ajuda.Colocarei cercas em volta do aeroportopor medida de segurança. O carro debombeiros está trafegando comdificuldades, pois a rua está com umtrânsito intenso. Mas não há maisincêndios. Todos estão salvos efelizes.

Vou viajar na próxima semana.Por lá ficarei todo o verão. Vovóestará conosco durante as nossasférias. Mas quando retornar emsetembro, quero voltar aqui para umavisita.

-Podemos providenciar para queisto aconteça. E desejo que você tenhaum verão muito feliz.

-Recebi o meu álbum da escola,contou-me, depois de ter permanecidosorrindo por momentos. Meu retratoestá ali. Estou na fila da frenteentre José e Frederico. Nele, há umaestória escrita por mim. É sobre aminha casa e a árvore minha amiga quecresceu junto à janela do meu quarto.Você se lembra do que lhe narrei sobreaquela encantadora árvore do meuquintal? -Sim, lembro-me. -Pois ospássaros vieram para visitá-la. Abri ajanela e com eles conversei. Sugeri-lhes que empreendessem uma viagem emvolta do mundo. Por todos osdiferentes lugares. Mandei que fossemà Califórnia, Londres, Roma ecantassem canções e fizessem aspessoas felizes. Amo os pássaros.Somos bons amigos.

Bem, agora tenho uma coisaimportante a fazer. Devo tirar a minhairmã da caixa e decidir o que devofazer com ela. Irá permanecer em casa.E quando o pai chegar do seuescritório, vai repreendê-la. Então, airmã sairá de casa pra morar com osporcos. E a mãe também, acrescentougargalhando. Não é verdade. Todosmoram juntos na casa. A mãe, o pai, airmã e o garoto.

Suspendeu a figura do pequenomenino que havia designado como Dibs e

a miniatura do Dibs adulto. Segurou-asambas na sua mão.

-Aqui está o pequeno Dibs e oDibs grande. Este sou eu e também esteoutro.

-É mesmo, Dibs. Você é o pequenoDibs e o Dibs grande.

-Lá vem uma mulher andando pelacalçada. Dirige-se para minha casa.Quem é ela? Por que é D. A, se elavive aqui com Dibs? A irmã mora com oseu pai, não tem mãe. Tem somente umpai. Ele compra as coisas das quaisprecisa, mas deixa-a sozinha quandovai para a rua. A mãe caiu no rio. Masconseguiu salvar-se. Ficou apenasmuito molhada e terrivelmenteassustada. Esta mulher está andando nacalçada. Encaminha-se para a igreja.Está na direção certa, comentoucolocando a figura junto da igreja.Estes homens estão indo para a guerra.E lutarão. Haverá sempre lutas ebrigas, imagino. Entretanto, estasquatro pessoas formam uma família eresolveram juntas sair da cidade. Eassim o farão. Viajarão para a praia eserão felizes. Então a vovó chegará eos cinco serão felizes.

Dibs inclinou-se sobre suacidade e remanejou o prédio-prisão.

-A cadeia deve ficar à direitada casa de D. A. Ela recusa-se a teresta vizinhança, afirmando que nãogosta de prisões. Joga-a para longe.Enterra-a na areia. Estamos livres decadeias. Permanecem, no entanto, asduas casas. Sua casa e a minha casa. Epouco a pouco, começam a afastar-se. Aminha casa e a sua estão distanciando-se, quase uma milha já existe entreelas. A irmã é agora a garotinha de D.A. E vem à sua casa para visitá-la,acrescentou, dispondo a irmã e D. Ajuntas ao lado da casa.

A manhã apenas se inicia e ogrande Dibs vai para a escola. Temvários amigos por lá. Mas estegarotinho é o Dibs pequeno. Manteve aúltima figura em sua mão, estudando-o.Este meninozinho é muito doente. Vai

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para o hospital porque está frágil ederretendo-se lentamente. O pequenoestá-se encolhendo, prestes adesaparecer, falou Dibs, levantando-see enterrando a figura na areia. Mas ogrande Dibs está forte, corajoso ebravo. Já não mais sente medo,observou com rosto erguido a dirigir-me o seu olhar.

-Grande, forte e corajoso e nãomais sentindo medo.

Dibs suspirou. -Devemosdespedir-nos hoje. Ficarei ausente porum longo tempo. Você vai para longe eeu também. Teremos as nossas férias. Ejá não mais sinto medo.

Dibs havia encontrado o seumanancial interior. Com o seubrinquedo simbólico pôde curar suasferidas, os seus sentimentos pisadose, assim, emergiu experimentando suaforça e sua segurança. Havia buscado asi mesmo e podia orgulhar-se de suaidentidade. Agora estava começando aelaborar o seu autoconceito emharmonia com suas capacidades. Estavarealizando sua integração pessoal.

Os sentimentos de hostilidade evingança que expressara contra seupai, mãe e irmã explodiram com rapideze não eram alimentados com ódio oumedo, portanto já não queimavam tanto.Na verdade, Dibs substituíra o frágil,imaturo e pequenino garoto que era,pelo conceito de si mesmo, fortalecidopelos sentimentos de adequação,segurança e coragem. Aprendera aentender seus sentimentos. Encarou-osde frente e vivenciou o seu controle.Já não estava submerso sob o pavor, aansiedade, o ódio e a culpa, Havia-setornado uma pessoa em exercício dosseus direitos. Livre. Encontrara osentido da dignidade e respeitopessoal. Com esta confiança esegurança estaria apto a aceitar erespeitar as outras pessoas em seumundo, Já não tinha medo de si mesmo.

CAPÍTULO XXIII Só voltei das minhas férias no

dia 1º de outubro. Encontrei cartas emensagens. Uma era da mãe de Dibs.Telefonei-lhe ansiosa para saber quaisas experiências que o verão trouxerapara

aquela família. -Dibs queria umencontro mais, falou-me ela. Já no dia1.0 de setembro ele pediu-me que olevasse para visitá-la. Expliquei-lheque a senhora só regressaria no iníciode outubro. Nada mais mencionou a esterespeito, até que setembro findou.Lembrou-se no dia 1.0 de outubro que asenhora já deveria ter voltado. Pediu-me que lhe marcasse uma visita mais. Asua última visita. Foi por isto quelhe telefonei, expressou-sesuavemente.

Ele tem sido maravilhoso.Vivemos um verão profundamenteagradável. Jamais poderemos dizer-lheo quanto estamos agradecidos. Dibs nãoé a mesma criança. É feliz edescontraído. Relaciona-se conoscomuito bem. Durante todo o tempoconversa. Creio que não mais precisade terapia. Portanto, se a senhoraestiver ocupada demais, sinta-se àvontade para dizer-me, que lheexplicarei.

Não seria necessário dizer quenão estava ocupada demais para verDibs. Organizei o meu horário de modoa reservar-lhe um período, na quinta-feira imediata.

Dibs veio, pisando firme, com umsorriso vivo e olhos brilhantes. Paroupara conversar com as funcionárias quedatilografavam e transcreviamrelatórios na secretaria. Perguntou-lhes o que faziam e se gostavam dosseus trabalhos.

-Vocês são felizes? -indagou.Devem ser sim.

Era fácil evidenciar uma notávelmudança Dele, considerando a sua vindaanterior. Estava tranqüilo,espontâneo, feliz. Havia graça enaturalidade nos seus movimentos. Logo

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que fui encontrá-lo na sala de espera,correu em minha direção e estendeu suamão para cumprimentar-me.

-Quis vê-la uma vez mais, disse.Vamos primeiro para o seu escritório.

Entramos. Dibs deu alguns passosaté o centro do ambiente. Parouolhando em volta. Toda sua face estavailuminada por um grande sorriso.Correu, passando a mão naescrivaninha, nos armários, cadeiras eestantes. Suspirou.

-Ah, que lugar deslumbrante efeliz! -Você tem gostado daqui, não éverdade? -Ah, sim, respondeu. Tanto!Tanto! Tanto!

Tanto! Há tantas coisasmaravilhosas aqui. -Coisasmaravilhosas?

-Livros, livros e livros,retorquiu, acariciando-os naprateleira. Amo os livros. Mas, não éde fato tão interessante quepequeninas marcas escuras no papelpossam ser tão agradáveis? Folhas depapel com marquinhas pretas escondemuma estória, que podemos decifrar.

-É sim, Dibs. Isto éextraordinário. -Que dia lindo! -exclamou olhando para fora. Esta é umajanela encantadora, por seu intermédiocontemplamos o mundo.

Sentou-se junto à escrivaninha epuxou a caixa-arquivo. Examinou oscartões. Abriu-se em sorriso.

-Por que você a reservou somentepara você e para Dibs? -perguntou.Ninguém mais está incluído nestacaixa. Apenas você e eu. Nós dois.

-Não era isto que você queria? -Sim. Justamente isto. E você

jogou fora os cartões das outraspessoas?

-Não. Coloquei-os em outracaixa. Naquele arquivo que ali está.

-Mas este aqui, você reservouapenas para nós?

-Como você disse que desejava.

Dibs recostou-se na cadeira efitou-me por um longo tempo. Havia umaexpressão de perspicácia e ponderaçãona sua face.

-Esta é a maneira com que vocême tem atendido: "Como você disse quedesejava." Como eu disse que queriaisto.

Sorriu. Levantou e escolheu umaficha em branco. Pegou um lápis eescreveu algumas palavras. Dobrou-a ecuidadosa e deliberadamente continuoua escrever com letras de imprensa. Emseguida, entregou-a a mim pedindo quelesse.

-Adeus, querido escritório,cheio de livros fascinantes. Adeus,janela, através da qual vi o céu.Adeus, fichas. Adeus, querida senhoradesta maravilhosa sala de brinquedos.

Depois que li em voz alta, Dibspediu-me o cartão de volta.

-Quero acrescentar outrascoisas.

Escreveu nas costas da ficha eentregou-me. Três linhas estavamescritas:

"Como você disse que queria""Como eu falei que desejava"

"Como nós conversamos quequeríamos"

Terminada a leitura, Dibsrecebeu-o, e depositou-o no fichário.

-Vamos agora para a sala debrinquedos, sugeriu. Vamos! Vamos!Vamos!

Num pulo entrou na sala. Abriuos braços e rodopiou em gargalhadas.

-Que engraçado! Que divertido!Que gostoso! Que sala de brinquedosencantadora.

Correu para a pia. Abriu atorneira no seu limite máximo. Recuouum pouco para trás e, rindo, observavaa força da água jorrando!

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-Água! Água! Água! Saiaborbulhando! Espalhe-se em volta!Divirta-se!

Fechou a torneira, sorriu paramim e dirigiu-se para o cavalete.

-Alô, tintas! Estão todasmisturadas. Oba! Já vi que estão.

Apanhou a jarra de tinta amarelae virou-se

para mim. -Sabe o que vou fazer? -O que é?-Deliberei entorná-la no chão. -Então você deliberou entorná-la

no chão? -Sim, respondeu-me. E o quemais? -Você não está sentindo vontadede fazê-lo,

mas assim mesmo o fará? Dibs abriu a tampa. Foi

inclinando a jarra devagar, deixandoque a tinta caísse no chão.

-Que belo lamaçal de tinta! -Está gostando, Dibs?

-Gosto de entorná-la. Afinal, éum alívio livrar-me dela.

Quando o frasco já estava vazio,Dibs colocou-o na pia.

-Haverá alguma razão peja qual atinta deva ser usada unicamente parapintura? Sobretudo em uma sala debrinquedos? Nunca fiz isto. Mas por setratar desta tinta amarela, senti-mebem. Queria livrar-me dela. Agora, vouprocurar um pano de chão para fazer alimpeza.

Toda a tinta amarela foi por eleremovida da melhor maneira possível.Voltou-se para ~m, então.

-Não posso entender todas estascoisas. -Que é que você não podeentender? -Todas estas coisas. E você.Você não é

uma mãe. Nem uma professora. Nãoé sócia de um Clube de mães. Não é?

-Você não pode entender que tipode pessoa eu sou?

-Não posso, respondeu encolhendoos ombros. Mas, na verdade, isto nãome importa, declarou, penetrando osmeus olhos com o seu olhar. Você é asenhora da maravilhosa sala debrinquedos.

De súbito, ajoelhou-se e passouseus dedos na minha perna observando amalha de minha meia.

-Você é a senhora que temcentenas de buraquinhos nas suasmeias, definiu-me com uma explosão deriso.

Pulou e atravessou a sala até amesa. Apanhou a mamadeira.

-Mamadeira de bebê, falou.Querida e confortante mamadeira,quando preciso de você recebo o seuconforto.

Sugou repetidas vezes amamadeira. -Quando eu era bebê gostavade você, mamadeira. Mas Dibs, que temseis anos de idade, não mais precisade você, agora. Adeus, mamadeira debebê. Adeus!

Percorreu a sala com o olhar.Buscava algo. Localizou-o no ferro doaparelho de calefação.

-Adeus, mamadeira de bebê.Adeus. Não necessito mais de você.

Arremessou o frasco contra oradiador. Quebrou-o em mil pedaços. Aágua nele contida espalhou-se no piso.Dibs olhou para o chão observando oresultado.

-Terminei com isto. -Você não mais precisa de uma

mamadeira de bebê. Por isso resolveulivrar-se de uma vez por todas dela?

-Claro. Isto mesmo. Voltou-se para a areia e cavou-a

vigorosamente. -Coisas enterradas. Coisas

enterradas. Coisas enterradas.Desenterre todas e deixe que subam, seassim você o deseja. Direi que estaareia é um bom material. Podem-se

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fabricar vidros com ela. Li em umlivro a este respeito.

Dirigiu-se para a casa debonecas. Reuniu a família de bonecos eos dispôs na sala de estar.

-Velhas pessoas de brinquedos.Devo despedir-me de vocês. Por isso osdeixei sentados na sala para queesperem até que uma outra criançavenha para cá brincar com vocês.

Depois que me for, outra criançavirá para ocupar o meu lugar, não émesmo?

-Outra criança virá à sala debrinquedos.

-Você atende outras criançasaqui, além de mim?

-Sim. Atendo outras crianças. -Isto faz as crianças felizes.

Afastou-se fUmando para ajanela. Debruçou-se e aspirou o arprofundamente.

-Para além desta janelaenxerguei o mundo Vi os caminhões, asárvores, os aviões, as pessoas eaquela igreja que repica uma, duas,três, quatro vezes. quando está nahora de voltar para casa.

Aproximou-se de mim e falou-mequase murmurando.

-Mesmo quando não queria ir paracasa, deveria voltar .

Tomou as minhas mãos entre assuas. Fitou-me por um longo tempo.

-Quero visitar aquela igreja,falou. Será que poderemos atravessar,caminharmos em volta dela e depoisentrarmos para olhar o seu interior?

-Penso que podemos. Era um procedimento bastante

fora do comum. Mas a solicitaçãotambém o era. Pareceu-me importante nasua última visita satisfazer seupedido.

Saímos do Centro e passeamos emvolta da igreja. Dibs erguia o seuolhar para captá-la na sua

grandiosidade, impressionado pelo seutamanho gigantesco.

-Vamos entrar agora. Vamos ver oseu interior . Subimos a escadariafrontal. Abri as pesadas portas.Penetramos no recinto. Dibs pareciadiminuído de tamanho pelos altivosarcos. Ele caminhava calmamente pelanave central. Correu um pouco. Parou.Olhou para cima. Para todos os lados.Tinha uma expressão de respeito eadmiração na sua face resplandecente.Estava impressionado com amagnificência do templo.

-Sinto-me tão e tão pequeno.Penso que talvez tenha encolhido,falou virando-se e contemplando abeleza que o circundava. Você semprediz que a igreja é a casa de Deus.Nunca vi Deus, mas acredito que o seutamanho deve ser espantosamente grandepara precisar de tal imensidão decasa. Jake disse-me que a igreja é umlugar sagrado.

De repente, correu pela nave emdireção ao altar. Jogou sua cabeçapara trás. Espichou ambos os braçospara cima como se quisesse tocar nagrande janela de vitral colorido.Virou-se para me olhar.momentaneamente sem palavra~.

Naquele momento o organistainiciou a tocar, Dibs correu para mime apertou a minha mão.

-Vamos! Vamos! -Estou com medo!-A música o apavorou? -perguntei-lhe,enquanto encaminhávamo-nos para aporta.

Dibs não respondeu. Parou. Olhoupara trás. Escutou.

-Ouça. Não vamos ainda. -Estava com medo de tanta

grandeza. Estava com medo do barulho.Mas é tão belo! Enche-me com a suabeleza e esplendor.

-Com medo disto, mas amando-otambém? É uma igreja belíssima.

Dibs desligou-se de minha mão eandou pela ala central.

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-Que será que produz estaestranha música? -É o homem tocando oseu instrumento, o órgão.

-Oh! Nunca havia ouvido estamúsica antes. Senti um frio. Deu-me umarrepio, confessou, segurando minhamão com força. Não me lembro de terouvido nada tão lindo, sussurrou.

O sol brilhava através do vitralcolorido. Seus raios espalhavam sualuz e sua beleza em nossa volta.

-Vamos sair daqui, convidou-mesuavemente.

Caminhamos para a saída. Dibsolhou por cima do ombro para ver, umavez mais, o que ia deixando atrás desi. Já no portão, parou de novo.

-Espere um momento, segredou-me.Acenou com timidez a mão em direção aoaltar .

-Adeus, Deus! Adeus! falou com avozinha fraca.

Dibs não pronunciou uma palavrano seu trajeto de volta. Retomamos àsala de brinquedos. Sentou-se em umacadeira junto à mesa. Sorriu-me.

-Como foi lindo! Estive na casade Deus hoje, falou. Pela primeira veze pela única vez estive na casa deDeus.

E com a cabeça curva, o olharfixo em suas mãos entrelaçadas,guardava o seu silêncio.

-Diga-me, perguntou de súbito,por que algumas pessoas acreditam emDeus e outras não?

-Acho que não sei responder asua pergunta, Dibs.

-Mas é verdade que algunsacreditam em Deus, enquanto outrosnão?

-Sim. É verdade. -Vovó acredita. Mas papai e

mamãe não são pessoas religiosas. Jakeacredita. Ele disse-me isto.

-Penso que cada um se decide aeste respeito. Cada um delibera-se porsi mesmo.

-Como será Deus? -perguntou.Vovó contou-me uma vez que Deus era onosso pai do céu. Não queria que Deusfosse como o meu papai. Porque, àsvezes, penso que papai não me ama. Seeu creio em Deus, como vovó, queriaque Ele me amasse. Mas vovó diz quepapai, de fato, me ama. Entretanto, seé verdade, por que não sinto isto?Vovó me ama e eu a amo muito também. Esei disto, porque sinto lá. ..dentro,no fundo de mim, expressou-se,apertando as suas mãozinhas contra seucoração e fixando os seus olhos nosmeus, enquanto sua testa franzidapesava-lhe sobre as sobrancelhas. ,

-É difícil entender coisas comoesta, concluí, depois de um longosilêncio.

Foi até a janela e mais uma vezvislumbrou a igreja.

-Ali está a casa de Deus,pronunciou-se calmamente. Vovó diz queDeus é amor. E Jake falava queacreditava em Deus. Rezava, o que, deacordo com suas explicações, significaconversar com Deus. Mas eu nuncarezei. Bem que gostaria de conversarcom Deus. Gostaria de ouvir o que Eletem para me dizer. Há um garoto daminha classe, na escola, que acreditaem Deus. É católico. Há um outro que éjudeu e freqüenta a sinagoga, a casaque os judeus constroem para Deus,acrescentou, estendendo os braços emminha direção. Mas papai e mamãe nãosão pessoas religiosas e, portanto,também eu não sou. Isto me faz sentir-me solitário e triste porque nãoconheço Deus.

Dibs caminhou em todas asdireções na sala. -Vovó é uma senhoraboa, continuou. Freqüenta a igreja ecanta para Deus. Ela acredita. Voltou-se para mim. Tomou minhas mãos nassuas. Seu olhar procurava comansiedade perscrutar-me.

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-Diga-me, pediu. Por que algumaspessoas acreditam em Deus e outrasnão?

Era uma pergunta difícil deresponder. -Cada um toma sua própriadecisão quando é mais velho. Cadapessoa decide-se por si mesma sobre oque deve acreditar. Mas, agora, é umaquestão bastante confusa para você,não é verdade?

-Sim, respondeu. Muito confusa.Um novo e longo silêncio caiu entrenós. :-Sabe o que estou tentando fazeragora? -Não. O que é?

-Estou tentando aprender a jogarbeisebol. Papai está procurandoensinar-me. Vamos ao parque juntos.Acontece que papai também não é um bomjogador de bola. Não é fácil bater-sena bola com o bordão do beisebol. Masirei aprender, porque todos os meninosda minha escola jogam e quero jogarcom eles. Não gosto muito. Prefirobrincar de ladrão e policial. Ou decorrer pelo quintal de D. Henriqueta.Ela tem-me repreendido.

A campainha soou. Era a mãe deDibs que chegara ao Centro paraapanhá-lo.

-Adeus, Dibs, disse-lhe eu. Foimuito, muito agradável tê-loconhecido.

-Sim. Foi ótimo, replicou-me.Adeus. Fomos até à sala de recepção.Dirigiu-se à sua mãe.

-Alô, mamãe! Não mais voltarei.Hoje foi a despedida.

Juntos saíram -um garoto pequenoque teve a oportunidade de revelar-sea si mesmo através da brincadeira eque pôde desabrochar como uma criançacapaz e feliz, e uma mãe que sepermitiu crescer em compreensão eapreciação pelo seu filho tão bemdotado.

CAPÍTULO XXIV Dois anos e meio se passaram.

Morava num apartamento de esquina,térreo e estava lendo quando uma voz -uma voz forte e ritmada uma voz que mesoou muito familiar, penetrou pelaminha janela.

-Pedro, desce aqui e vem olhar omeu jardim. Tenho vinte e setediferentes qualidades de arbustos eplantas. Venha ver.

-Vinte e sete o quê? tipos dearbustos e plantas em meu quIntal.

-Oh! -Venha ver. -Viu o que já consegui aqui? -O que é? Oh, bolinhas de gude!

-Isto mesmo. Quer trocá-las. -Sim. Com o que você quer trocá-

las? -O que você tem? O que você tem,Dibs? Sim. Era Dibs quem estavaconversando com um amigo.

-Digo já para você. Digo já paravocê, falou Dibs fascinado. Você me dáaquela bolinha azul, que parece o olhode uma cobra. Em troca, darei paravocê uma das primeiras lagartixas daprimavera.

Ê certo? Onde estão? Aqui mesmo!Dibs cavou no seu bolso e de lá

retirou uma pequenina jarra de vidro.Abriu a tampa perfurada e com cuidadoretirou uma lagartixa, que depositouna mão encardida de Pedro. Dibs ficousorridente e seu amigo impressionado.

-Lembre-se, expressou-se Dibscom ênfase, esta é uma das primeiraslagartixas nascidas nesta primavera.

Aparentemente, Dibs havia-semudado para um grande apartamento,tipo casa, com jardins, situado umpouco antes da minha residência.

Alguns dias depois, encontrei-ona rua. olhamos um para o outro. Dibssorriu. Um grande sorriso. Apresentousua mão para apertar a minha.

-Alô!

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-Alô, Dibs! -Sei quem é você, afirmou. -

Sabe? -Claro que sim! Você é a senhora

da maravilhosa sala de brinquedos.Você é D. A.

Sentamo-nos na escadaria dafrente de um dos apartamentos.

-Sim. E você é Dibs. -Estou crescido agora,

continuou. Mas lembro-me sempre dequando era bem, bem pequeno e fui pelaprimeira vez vê-Ia. Lembro-me dosbrinquedos, da casa de bonecas, daareia, do homem, da mulher e dascrianças, do mundo por mim construído.Lembro-me do repicar dos sinos, dahora de ir para casa e do caminhão.Lembro-me da água, das tintas, daslouças. Lembro-me do nosso escritório,de nossos livros e de nosso gravador.Lembro-me de como você brincavacomigo.

-Como nós brincávamos, Dibs? Dibs inclinou-se em minha

direção. Seus olhos brilhavam. -Tudo o que fazia, você

aceitava, murmurou. Com tudo o que eudizia, você concordava.

-Este foi o caminho queseguimos. -Sim. Esta sala é sua, Dibs.Foi assim que você me falou. É todapara você, Divirta-se. Brinque.Ninguém entrará aqui para magoá-lo,falou com um suspiro. E, na verdade,diverti-me e brinquei. E foi o maismaravilhoso tempo de minha vida.Construí o meu mundo com você na salade brinquedos. Lembra-se?

-Sim. Eu também me lembro. Vaifazer dois anos e seis meses daqui aquatro dias que me despedi de você.Recordo isto perfeitamente bem. Tireieste dia do meu calendário ecircundei-o de vermelho. Emoldurei-o ependurei-o na parede do meu quarto.Outro dia, aconteceu que olhei paraele e observei quanto tempo havia

passado. Conferi que ia fazer doisanos e seis meses daqui a quatro dias.

-Então, este dia parece muitoimportante para você. Por issocircundou-o de vermelho e o emoldurou!Por que você fez isto, Dibs?

-Não sei. Não poderia nuncaesquecê-lo. Já o recordei muitasvezes.

Dibs silenciou. Cravou os seusolhos nos meus. Suspirouprofundamente.

-Na primeira vez fui ao Centro,a sala pareceu-me tão grande. E osbrinquedos não me pareciam amigos.Estava com medo.

-Estava com medo, Dibs? -Sim. -Por que sentia medo? -Não sei!

Apavorei-me, a princípio, porque nãosabia o que você faria e o que deveriaeu fazer. Mas você disse. Tudo isto éseu Dibs. Divirta-se. Ninguém virámagoá-lo aqui.

-Eu disse isto? -Sim, respondeu Dibs

decisivamente. Foi o que você dissepara mim. Pouco a pouco, comecei aacreditar em você. E o caminho foi-seabrindo. Você me sugeriu que lutassecontra 0$ meus inimigos até que elesgritassem que estavam arrependidos porme haverem ferido.

-E assim você o fez? -Sim. Encontrei os meus inimigos

e lutei contra eles. Então, descobrique já não mais estava amedrontado.Descobri que já não era infeliz esenti amor. Agora. sou forte, grande ecorajoso. Lembro-me da igreja quevisitamos no dia da despedida. Lembro-me de quando descobri o quanto Deusera imenso. A porta era tão alta. Oteto lá bem em cima, quase tocando océu. Quando a música começou aressoar. de repente, senti um arrepiotomando-me. Desejava sair e queriaficar . Passei outro dia. por lá. Subias escadarias da frente. Mas a portaestava fechada. Bati e falei pelo

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buraco da fechadura: "Há alguém emcasa hoje?" Mas penso que não, porqueninguém apareceu para abrir e entãotive de ir embora.

Imaginei Dibs subindo asescadarias da igreja e batendo,timidamente, na porta maciça eesculpida.

Subitamente, Dibs ergueu-se numsalto. -Venha ver o meu quintal,convidou-me.

É um quintal enorme e tenhomuitas e variadas plantas e arbustos.Adivinha quantas?

-Oh! Vinte e sete diferentestipos?

-Sim. Mas como você sabe?Conferi-as há pouco mais de duassemanas atrás. Você já foi ao meuquintal?

-Não, nunca fui lá. -Bem, então, como você sabe? -

insistiu visivelmente intrigado. Diga-me como você descobriu.

-Você pensa que não poderiasaber, a não ser que houvesse idopessoalmente contá-las.

-Mas, respondeu Dibs exasperado,para saber é necessário bem mais doque simplesmente contá-las. Você teriade observar, com cuidado, cada plantae arbusto para saber em que são elasdiferentes. Então, teria descobertoqual a sua classificação. Só depoisdisto, poderia contá-las. Seria,portanto, necessário escrever o nome ea localização de cada planta. Não éuma operação simples ou rápida paraser feita. Mas, também não é nada quevocê possa simplesmente adivinhar. ,Sevocê jamais foi ao meu quintal ejamais realizou todas estas operações,como na terra poderia descobrir quetenho vinte e sete diferentes tiposali?

-Bem, Dibs. Vou contar-lhe.Outro dia, estava sentada no meuapartamento lendo, quando ouvi, pelajanela aberta, sua conversa com Pedro:

"Há vinte e sete diferentes plantas earbustos em meu quintal." Foi no diaem que você lhe deu uma das primeiraslagartixas nascidas nesta primavera.

-Oh! -exclamou Dibs. Você estámorando aqui perto? Então D. A e eusomos vizinhos!

-Sim. Somos vizinhos. -Isto é bom. Bem, então venha

agora olhar o meu jardim. Alguns dias depois encontrei sua

mãe e seu pai na rua. Trocamoscumprimentos e novamente seus paisagradeceram.;me pela contribuição quelhes dei. Narraram os progressos deDibs. Continuava bem ajustado e feliz.Relacionava-se satisfatoriamente comas outras crianças. Estava matriculadoem uma escola para bem dotados e iamuito bem.

Neste momento, Dibs aproximou-se, pedalando uma bicicleta e imitandoíndio com a sua voz.

-Dibs! -chamou sua mãe. Dibs,venha ver quem está aqui. Você selembra desta senhora?

Dibs deu uma corridinha e riu. -Alô, cumprimentou-me. -Alô, Dibs,respondi-lhe.

-Sua mãe lhe fez uma pergunta,Dibs, disse seu pai.

Sim, papai. Escutei-a. Indagou-me se eu reconheci esta senhora.Naturalmente que a reconheci. Foi elaa minha primeira amiga.

O seu pai pareceu-me um poucoembaraçado. -Bem, se ouviu a sua mãe,porque não lhe

responde? -Desculpe, papai,falou com um piscar de olhos.

-Foi um prazer tê-lareencontrado. Desculpe-me, mas tenhode ir-me agora, despediu-se o seu pai,dirigindo-se para seu carro.

Dibs. no entanto, continuou afalar-lhe. -Você e mamãe estão muitoatrasados. Já

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encontrei D. A há cinco diasatrás.

Seu pai tornou-se vermelho edesapareceu no seu carro. Sua mãepareceu um pouco triste.

-Que é isto menino, repreendeu-osua mãe, por que não a trata pelo seunome completo? Por que sempre a chamade D. A ?

Dibs voltou a montar em suabicicleta.

-D. A, D. A. É um nome especialpara uma especial amiga, concluiu.

E desceu a rua fazendo o barulhode um carro de bombeiros.

Dibs havia mudado. Aprendeu comoser ele próprio. Aprendeu a acreditarem si. E libertar-se.

Estava tranquilo e feliz. Eracapaz de ser criança.

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EPÍLOGO Dibs havia sofrido amargos

momentos; vivido por um período nassombras da vida. Teve, entretanto, aoportunidade de libertar-se daescuridão e descobrir por si quepoderia enfrentar as sombras e aluminosidade do sol em sua vida.

Talvez haja mais compreensão ebeleza na vida quando os raiosofuscantes do sol foram suavizadospelos contornos da sombra. Talvez hajaraízes mais profundas numa amizade quesofreu tempestades e as venceu. Aexperiência que nunca desaponta ouentristece, que nunca toca nossentimentos é uma vivência neutra compequenos desafios e variações de cor.Quando sentimos confiança, fé eesperança de que podemos concretizarnossos objetivos, isto constrói dentrode nós um manancial de força, corageme segurança.

Somos personalidades quecrescemos e nos desenvolvemos como oresultado de todas as nossasexperiências, relacionamentos,pensamentos e emoções. Somos umatotalidade que, fazendo-se, faz aprópria vida.

Porque acreditei ser a estóriade Dibs digna de ser partilhada tenhoapresentado parte deste material paraestudantes em algumas conferências quetenho pronunciado nas universidades enos encontras com profissionais.

Outro dia recebi uma carta de umex-aluno:

Não podia deixar de usar partedo meu tempo para escrever-lhe. Souapenas um entre centenas dos que aescutam em suas aulas e provavelmentenão cheguei a ser para a senhora umaface distinta, mas, creia-me, fui umouvido atento. Estou no exterior agoranovamente de uniforme -e esperando sertransferido logo. Nas barracas, outranoite, escutei um pedacinho deconversa e toda a América e minha casainvadiram-me. Recordei-me de que asenhora freqüentemente afirmava que só

as coisas importantes são lembradasquando nos esquecemos de tudo o mais.E as experiências podem certamenteobrigar-nos a trocar a nossa maneirade focalizar a vida.

Estava, há dias atrás,desencorajado, deprimido. Indagava amim mesmo em que inferno me haviametido. Quando, de súbito, a lembrançade Dibs. rompeu as minhas trevas. U mamigo, sentado na mesa à minha frente,conversava sobre Dibs. Não perdi tempoe dele me aproximei. Em que pedaço domundo você ouviu falar em Dibs? -perguntei-lhe. Ele narrou-me tudo. Nãofora da minha classe, nem do mesmoano; nem ainda da mesma universidade.Mas era sobre a mesma criança de quefalava. É difícil expressar o quantoesta evocação me ajudou. E não apenasa mim. Mas a todos nós. Juntos,narramos aos demais toda a estória deDibs. Sentimos que Dibs se haviatornado para nós um símbolo de todosos valores. -E um dos nossos amigosfalou: " A coragem de Dibs sustenta-nos."Mas o que mais me impressionoufoi sentir quanto vivenciado era Dibs.Que verdadeiro poder dinâmico tinha.Como se havia tornado uma parte minha.Comecei a refletir sobre educação.Graduei-me em Administração e não soumuito profundo em psicologia. Estoucerto de que perdi todas asimplicações psicológicas do caso, masguardei a imagem de Dibs, como daúnica pessoa real que pude encontrarna sala de aula e que pôde ensinar-meo que significa ser uma pessoacompleta. Nunca me esqueci destas trêsfrases: "Como você disse que queria.Como eu falei que desejava. Como nósconversamos que queríamos." Penso queDibs apenas queria o que nós queremosnuma escola mais ampla: umaoportunidade de sentir-s'e valorizado.Uma oportunidade de ser 'uma pessoaquerida, respeitada, aceita como umser humano, portador de dignidade.

A família de Dibs mudou-se paraum outro bairro e perdi o contato comele. Os anos se passaram. Um dia. umamigo meu, que estava ensinando numa

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escola para garotos bem dotados,mostrou-me uma carta publicada nojornal da escola. Foi dirigida aodiretor e ao corpo docente da escola.Meu amigo nada conhecia a respeito deDibs. Sabia o quanto estavainteressada em qualquer comentáriofeito por crianças, que deixavamevidente sua capacidade de compreensãoe sua coragem, vivenciadas no seucotidiano, pela sua afirmação pessoal.

Li a carta aberta do jornalescolar:

Esta é uma carta de protestocontra a demissão de um dos meuscolegas e um dos meus amigos. Estou,de fato, indignado com a sua falta desensibilidade, de compreensão, desentimento de V. Sas. Corre o boato deque meu amigo foi suspenso com desonraporque foi apanhado colando nosexames. Meu amigo afirmou que nãoestava colando. Acredito nele. A suaexplicação é que estava verificandouma data importante na história -desdeque a exatidão dos dados é essencialpara estabelecer sua existênciahistórica. Então deveria mesmo serverificado. Penso que V. Sas falharamem entender as razões pelas quaisagimos de determinada maneira. Chamam,por exemplo, de falta, quando umapessoa procura verificar a exatidão?Prefeririam que ele anuviasse suadúvida honesta na ignorância? Quaissão os objetivos dos exames? Devemeles constituir elementosenriquecedores de nossas aquisiçõeseducacionais? Ou são instrumentosusados para trazer sofrimentos ehumilhação e para ferir profundamenteuma pessoa que está tentando com todasas dificuldades ter êxito?

Um dos membros da equipe deprofessores disse ao meu amigo, emfrente a um grupo de colegas, ontem,que, se o ritmo da escola fosse rápidodemais para ele que o obrigasse acolar para manter-se à tona, seriamelhor que procurasse outra escola.Estou pessoalmente insultado por estaobservação. Sinto-me envergonhado da

minha escola, se ela não pode manter-se de portas abertas para qualquerpessoa que queira participar conoscode nossas investigações. Há coisasmais importantes neste mundo do quemostrar autoridade e poder, maisimportante que a vingança, a punição ea humilhação. Como educadores vocêsdeviam abrir as portas da ignorância,do preconceito e das atitudes semsignificação. Enquanto não for pedidodesculpas ao meu amigo pela afrontaque recebeu ao seu orgulho e amorpróprio e chamado a participar danossa escola, a ela também nãoretomarei durante este outono. Comsinceridade e intenção de contribuir.

Sinceramente Dibs.

-Qual é a idade deste garotoagora? -Quinze anos.

-Escreveu uma cartainteressante. Como é o seu tipo? .

-Ah! É um rapaz brilhante. Cheiode idéias. Responsável por si epreocupado com todos os seres humanos.Um verdadeiro líder. Age de acordo comsuas convicções. A escola não desejaperdê-lo. Provavelmente seguirão a suasugestão. Bem, você gostaria deguardá-lo na sua coleção de palavrasheróicas em prol da justiça eigualdade para todos?

-Muito grata. Acredito naautenticidade da sua contribuição.

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NOTA DA AUTORA Na semana anterior, ao final da

terapia, um psicólogo clínico aplicouem Dibs o teste de inteligência deStanford-Binet. Dibs manteve-seinteressado e cooperativo. Relacionou-se bem com o examinador a quem nãohavia conhecido antes. O resultado doteste atestou-lhe um quocienteintelectual de 168.

Um teste de leitura também lhefora administrado, confirmando o seualto nível de leitura e compreensão dotexto. Logo que concluiu as respostasfinais explicou para a examinadora queele não gostava daquele tipo deleitura que "pulava de um assunto paraoutro sem nenhuma razão". Explicitou-lhe que quando lia "preferia livrosque seguiam assuntos de realinteresse".

Os resultados dos testesindicaram que Dibs era uma criançaexcepcionalmente dotada e quedemonstrava estar usando suacapacidade intelectual com eficácia.

Os pais de Dibs haviampermitido, por escrito, que usássemosas gravações das sessões deludoterapia de seu filho parapesquisas, aulas e publicaçÕes, desdeque fossem feitos os cortes dos dadosidentificadores e se a terapeutasentisse que tais relatórios poderiamcontribuir para uma melhor compreensãodo comportamento infantil.

Na verdade, uma das minhasnormas de trabalho é nunca processaras gravações das entrevistas a não sercom a permissão escrita fornecidapelos pais da criança.

Este livro foi escritofundamentado nas sessões gravadas.Foram retiradas das fitas asinformações reveladoras da identidadede Dibs e várias observaçÕes repetidascom o objetivo de condensar anarrativa. Os diálogos entre Dibs e aterapeuta foram transcritosliteralmente das sessões gravadas noCentro de Orientação Infantil. A

participação de sua mãe foi tambémtranscrita da gravação, mas não na suaíntegra, por causa da natureza íntimae pessoal de sua confidência e que nãoestava especialmente relacionada aocaso de Dibs.

Entretanto, nenhuma palavra foiusada que não tenha sido originalmenteexpressa por Dibs ou sua mãe.

Uma criança, quandopossibilitada a oportunidade, podevivenciar a alegria de uma comunicaçãohonesta e sem hipocrisias. Uma mãe.quando respeitada e aceita comdignidade, sabendo que não serácriticada ou censurada, podeexpressar-se com autenticidadesincera.

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