Aula 2 - inicio da psicologia cientifica

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Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul Aula 02 - História de Psicologia 2007/2 O início da psicologia científica Leslie Spencer Hearnshaw Hearnshaw, L. S. (1987). The shaping of modern psychology (Capítulo 9, pp. 124-148). London: Routledge. (Traduzido por Caroline Passuello, Mariana Raymundo e Mayte Amazarray e revisado por Cristina Lhullier e Janaína Pacheco.) I A psicologia científica nasceu nas Universidades alemãs no século XIX e, desde então, difundiu-se para todo o mundo desenvolvido. Este nascimento na Alemanha não foi acidental. A psicologia científica é um produto da universidade moderna que, com sua dupla ênfase no ensino e na pesquisa, foi primeiramente estabelecida na Alemanha. Conforme observou, um século atrás, o historiador James Bryce “não existe nenhum povo que tenha dado tantas idéias e tanto suor para o desenvolvimento do sistema universitário como os alemães têm feito - em nenhum outro setor da vida nacional eles se dedicaram tanto”. 1 Como resultado da fragmentação da nação alemã em numerosos reinos, ducados, bispados e cidades autônomas, bem como da falta de um governo central efetivo antes de 1870, havia muito mais universidades na Alemanha do que em qualquer outro país europeu. Na ausência de um Estado ou de uma Igreja unificados, as universidades tornaram-se um condutor primordial da cultura nacional. Com o desenvolvimento da faculdade de filosofia no século XVIII, a fim de complementar as tradicionais faculdades de teologia, direito e medicina, surgiu a idéia da ampla e enciclopédica Wissenschaft”, abrangendo todo o conhecimento, humanístico e científico. A Universidade de Göttingen, fundada em 1734, foi a incorporação da “Wissenschaft, assim como do importante ideal de Lehrfreiheit” - a liberdade dos professores universitários de dirigirem suas aulas e suas pesquisas sem interferência ou constrangimento, e a liberdade do aluno de estudar o que fosse de seu interesse e escolher os professores de sua preferência, em qualquer

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Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Aula 02 - História de Psicologia 2007/2

 

O início da psicologia científicaLeslie Spencer Hearnshaw

 

Hearnshaw, L. S. (1987). The shaping of modern psychology (Capítulo 9, pp. 124-148). London: Routledge.

(Traduzido por Caroline Passuello, Mariana Raymundo e Mayte Amazarray e revisado por Cristina Lhullier e Janaína Pacheco.)

 

I

A psicologia científica nasceu nas Universidades alemãs no séculoXIX e, desde então, difundiu-se para todo o mundo desenvolvido. Estenascimento na Alemanha não foi acidental. A psicologia científica éum produto da universidade moderna que, com sua dupla ênfase noensino e na pesquisa, foi primeiramente estabelecida na Alemanha.Conforme observou, um século atrás, o historiador James Bryce “nãoexiste nenhum povo que tenha dado tantas idéias e tanto suor para odesenvolvimento do sistema universitário como os alemães têm feito -em nenhum outro setor da vida nacional eles se dedicaram tanto”.1

Como resultado da fragmentação da nação alemã em numerosos reinos,ducados, bispados e cidades autônomas, bem como da falta de umgoverno central efetivo antes de 1870, havia muito maisuniversidades na Alemanha do que em qualquer outro país europeu.

Na ausência de um Estado ou de uma Igreja unificados, asuniversidades tornaram-se um condutor primordial da culturanacional. Com o desenvolvimento da faculdade de filosofia no séculoXVIII, a fim de complementar as tradicionais faculdades de teologia,direito e medicina, surgiu a idéia da ampla e enciclopédica“Wissenschaft”, abrangendo todo o conhecimento, humanístico ecientífico. A Universidade de Göttingen, fundada em 1734, foi aincorporação da “Wissenschaft, assim como do importante ideal de“Lehrfreiheit” - a liberdade dos professores universitários de dirigiremsuas aulas e suas pesquisas sem interferência ou constrangimento, ea liberdade do aluno de estudar o que fosse de seu interesse eescolher os professores de sua preferência, em qualquer

universidade, onde receberia a melhor instrução. Esse elemento deliberdade foi um fator importantíssimo para o surgimento de novasdisciplinas como a psicologia. Foi, entretanto, a fundação daUniversidade de Berlin, em 1810, por Wilhelm von Humboldt querealmente consolidou o modelo da universidade moderna. Issocoincidiu com a reforma da educação primária e secundária por Baronvon Stein, com a abolição da servidão e do sistema de castas, bemcomo com a extensiva modernização do Estado Prussiano, após suahumilhante derrota para Napoleão na batalha de Iena em 1806.

O excelente padrão de ensino e de pesquisa estabelecido naUniversidade de Berlin propagou-se rapidamente às outrasuniversidades alemãs que eram instituições mantidas pelo Estado e,deste modo, recebiam grandes quantidades de livros e deequipamentos. Laboratórios bem aparelhados foram estabelecidos parapesquisa em física, química, fisiologia e outras disciplinascientíficas. Como Flexner observou em seu livro sobre asuniversidades, “nenhum outro país, durante o século XIX, reuniusemelhante grupo de cientistas e de estudantes tão notáveis,providos com tantas facilidades ou recompensados com igualrespeito.”2 Portanto, não foi acidentalmente que a psicologiacientífica teve origem na Alemanha.

Apenas no final do século XIX as instituições acadêmicas deoutros países ocidentais começaram a competir com aquelas daAlemanha. De fato, antes da fundação do “University GrantsCommittee” (Comitê de Outorga Universitário), em 1919, asuniversidades inglesas dificilmente recebiam algum apoio do governo;e antes do estabelecimento da ordem de PhD, no mesmo ano, haviapouca tradição em pesquisa neste país. Nas universidades maisantigas, Oxford e Cambridge, predominavam as disciplinastradicionais; escolas renomadas em ciências naturais não foraminauguradas antes de 1850 e, até 1870, não existiam laboratóriosadequados para pesquisas. Novos temas propostos para estudofreqüentemente confrontavam-se com a oposição conservadora, e issoaconteceu especialmente com a psicologia. Quando, em 1877, JamesWard e o racionalista Dr. Venn organizaram um movimento parapromover a psicologia experimental como disciplina independente emCambridge, o “University Senate” (Senado da Universidade) opôs-se àidéia, alegando que iria “insultar a religião  pondo a alma humananos pratos de balança”. Em Oxford, não havia ensino oficial depsicologia experimental até 1936.

No início de 1870, nos Estados Unidos a situação era muitosemelhante. Antes da inauguração da Universidade de Johns Hopkins,em 1876, nenhum estudo ou pesquisa significativa, que seguisse o

padrão alemão, fazia parte do modelo de educação americana. Durantea breve liderança de Stanley Hall, que foi nomeado para o corpodocente em 1881,3 Johns Hopkins logo se tornou a pioneira nodesenvolvimento da psicologia americana. Progressos similaresrapidamente seguiram-se em Harvard, Yale, Columbia, Princeton e emoutras universidades americanas, apoiados pela fundação de revistase de associações acadêmicas. O ambiente necessário para ocrescimento de uma psicologia científica espalhou-se de sua terranatal, a Alemanha, para o outro lado do Atlântico, acarretandoimportantes conseqüências.

De acordo com o que comentamos no último capítulo, a psicologiacientífica foi a união resultante da antiga psicologia filosóficacom o novo espírito experimental das ciências naturais, emparticular da fisiologia experimental. As universidades alemãspossibilitaram as condições necessárias para este  encontro. Aprimeira parte do século XIX foi um período de um vigoroso debatefilosófico na Alemanha. A figura gigantesca de Kant havia elevado adiscussão filosófica a um novo nível de sofisticação, mas suafilosofia crítica, enquanto aparentemente solucionadora de algunsproblemas, acabou dando origem a outros, e a dicotomia entre osmundos material e espiritual gerou tantas discussões  quanto odualismo mente-corpo de Descartes. Um poderoso grupo de pensadoresidealistas, dos quais Fichte, Schelling e Hegel eram os maisproeminentes, tentaram transcender as restrições que Kant haviaimposto ao pensamento especulativo, e, por algum tempo, dominaram afilosofia alemã. Contudo, seus delírios metafísicos e dogmatismosnão-científicos contribuíram para a alienação de vários pensadoresrealmente preocupados com os rumos da ciência. Depois da morte deHegel, em 1831, a escola idealista perdeu terreno, embora suainfluência jamais tenha se extinguido. A escola idealista sedesenvolveu sob ataque constante. Feuerbach, que foi alvo de atençãode Marx e Engels, em sua Critique of the Hegelian Philosophy (Crítica daFilosofia Hegeliana - 1839) acusou-a de ser uma mera teologiadisfarçada. Em todas essas vigorosas controvérsias metafísicas, ostatus da mente e a possibilidade de uma psicologia científica tiveramuma participação fundamental. Uma corrente de obras filosóficascentradas na psicologia, a maior parte delas hoje esquecida, emergiudas universidades alemãs entre 1830 e 1860. Havia bastantesargumentações, mas ainda faltavam conclusões concretas. Foi aqui queos progressos na fisiologia pareciam estar abrindo novaspossibilidades, e pelo menos em certas áreas restritas dapsicologia, particularmente a psicologia sensorial, estavam sendoproduzidas respostas experimentais. O primeiro laboratóriofisiológico foi inaugurado na Universidade de Breslau, que naquelaépoca fazia parte da Alemanha, pelo fisiólogo J. E. Purkinje,

conhecido pelos psicólogos principalmente por sua contribuição noestudo da visão. Em seguida, outras universidades seguiram estemodelo. Em 1833, Johannes Müller foi indicado como professor deanatomia e fisiologia na Universidade de Berlin, e foi aí que eleproduziu seu monumental Handbuch der physiologie des Menschen (Manual deFisiologia Humana - 1833-40, tradução para o inglês- 1842). Müllerfoi um pesquisador produtivo em vários campos: microanatomia,embriologia, zoologia marinha, fisiologia experimental e psicologiafisiológica. Ele sintetizou o conhecimento fisiológico de sua época.O seu estudo mais importante foi o das sensações, segundo o qualtanto os fatores psicológicos como fisiológicos tinham participaçãonestas; e sua lei das energias específicas, na qual afirmava quecada rota de um nervo sensorial, uma vez estimulada, originavaapenas um determinado tipo de sensação. Ele contou com váriasfiguras famosas entre seus alunos, inclusive o grande Helmholtz. EmLeipzig, E. H. Weber conduziu suas investigações pioneiras sobre otato sensível, publicadas no clássico Der Tastsinn und das Gemeingefühl(Sobre o tato e a sensibilidade comum, 1846).4 Em suas pesquisas, eleempregou pela primeira vez o método das “diferenças apenasperceptíveis”, que pode ser considerado como o início da psicofísicae do acesso quantitativo à psicologia, e formulou a lei na qual asdiferenças perceptíveis são constantemente proporcionais àsmagnitudes do estímulo original. Entre os alunos de Weber, emLeipzig, estava R. H. Lotze, formado em medicina, mas com umainclinação à filosofia, que reuniu as correntes fisiológicas efilosóficas em seu influente Medizinische Psychologie, oder Psychologie der Seele(Psicologia Médica ou Psicologia da Alma 1852).

O caminho havia sido preparado para o nascimento de umapsicologia que era tanto quantitativa quanto qualitativa, tantoexperimental quanto introspectiva, organizada, sistemática e com suaidentidade própria. Entre 1850 e 1879 três grandes figuras emparticular marcaram este caminho. Fechner formulou os métodosbásicos de psicofísica quantitativa, Helmholtz sistematizou o acessoexperimental aos problemas da percepção sensorial, bem como mediu avelocidade dos impulsos nervosos; e Wundt organizou toda a área dapsicologia fisiológica, relacionado com o grande domínio dapsicologia em geral, e deu à psicologia sua identidadeinstitucional.

 

II

G. T. Fechner (1801-1887), uma estranha mistura de físico, filósofo,esteta, místico e psicólogo ‘inadvertido’, fez mais que qualquer

outro individualmente, exceto talvez por Helmholtz, modificando ocurso da psicologia acadêmica.5 Trabalhando assiduamente em umproblema estritamente individual - a relação entre estímulo esensação - ele introduziu a metodologia, a experimentaçãosistemática e a avaliação quantitativa dos resultados. Apesar dadiscussão de suas hipóteses e de suas conclusões, ele inaugurou umanova era no estudo dos processos mentais. Segundo Boring, “Elemente derPsychophysik” (Elementos de Psicofísica - 1860) de Fechner encontra-seno topo da nova ciência da psicologia.”6 Nas palavras de umcomentarista mais recente, Fechner “inventou métodos de mensuraçãopsicológica baseado em considerações estatísticas, que são osverdadeiros fundamentos da psicologia experimental de nossos dias”.7

Embora Fechner tenha se iludido ao pensar que estaria lançando osfundamentos da “ciência exata da relação (ou relações) funcional dedependência entre corpo e mente”,8 e que sua lei psicofísicaalcançaria no campo das relações mente-corpo um significado tãogenérico e fundamental como a lei da gravitação no campo damecânica;9 ele defendeu, contudo, a necessidade para a psicologia dehaver recursos de “seu próprio laboratório, sua própria aparelhageme seus próprios métodos”.10  E isto foi revolucionário. Experimentos,mensurações e propostas psicofísicas ocasionais já haviam sidofeitos anteriormente, mas com Fechner tornaram-se sistematizados eestudados detalhadamente.11

O “Elemente der Psychophysik” finalmente foi publicado em 1860,depois de dez anos de trabalho assíduo, seguindo-se o afastamentoprematuro de Fechner  das cadeiras de física em Leipzig, e umperíodo prolongado de invalidez. Fechner, filho de um pastor, estavaprofundamente contrariado com o progresso do materialismo de suaépoca e, em oposição aos materialistas, acreditava na presençauniversal da alma - inclusive escreveu um livro sobre a alma dosvegetais - e defendia a idéia de que mente e corpo são doisaspectos, interno e externo, de uma realidade implícita. Ele começoua provar que isto funcionava desta forma, experimentalmente ematematicamente, estabelecendo uma relação constante e legítimaentre os dois. Essa foi a motivação do trabalho que ele intitulou de“psicofísica”. Iniciou com o que chamou de “psicofísicas externas”,a relação entre estímulos externos e sensações, porém ele acreditavaque os mesmos princípios poderiam ser aplicados também às funçõesmentais complexas. “As atividades mentais superiores”, escreveu,“não menos que a atividade sensorial, a atividade da mente como umtodo, assim como em detalhes, é o objeto para a determinaçãoquantitativa.”12 Isto, entretanto, foi uma área que ele nuncainvestigou a fundo, exceto na área da estética.13

O problema essencial, caso a mente fosse mensurável, era o deestabelecer uma escala de unidades e um ponto zero, a partir do qualas mensurações poderiam iniciar. A mente não poderia ser medidadiretamente, mas Fechner acreditava que havia encontrado uma escalaindireta apropriada nas diferenças apenas perceptíveis (d.a.p.) deE. H. Weber, que havia estabelecido alguns anos antes baseando-senas evidências experimentais que d.a.p., no domínio de cadasensação, revelavam uma razão constante à magnitude do estímuloinicial. Assim, se poderia tomar como ponto zero, o limiar absoluto,abaixo do qual um estímulo é imperceptível. A magnitude de qualquersensação poderia então ser verificada pelo número de d.a.p.superiores ao ponto zero. Para expressar isso numericamente e paraestabelecer a lei relacionando as magnitudes do estímulo e dassensações, Fechner levou adiante prolongadas séries de experimentos,conferindo pesos, estimando brilhos visuais, julgando diferençastáteis e visuais. Fechner reconheceu que a experimentaçãopsicológica envolvia dificuldades especiais, pois os resultadosvariavam segundo as condições, que não podiam ser completamentepadronizadas, portanto os resultados deveriam ser avaliadosestatisticamente. Os três métodos psicofísicos de Fechner, foramdenominados de: os métodos das d.a.p.; o método dos casos certos eerrados; e o método do erro médio. Estes foram os primeiros projetossistemáticos experimentais em psicologia, assim como sua aplicaçãoda teoria de probabilidades para a avaliação dos resultadosnuméricos foi o começo da psicologia estatística.14  O capítulo 8 do“Elemente der Psychophisik”, no qual Fechner discute sobre métodos demensuração das sensações e sobre as precauções necessárias no usodestes, é um clássico na história da psicologia e inclusive pode serlido com proveito do pesquisador até mesmo nos dias de hoje. Oresultado da longa pesquisa de Fechner foi a formulação de sua famosa lei logarítmica, que postulava que a grandeza de uma sensaçãovaria de acordo com o logarítmo do estímulo.

O trabalho de Fechner não foi tão importante pelo queestabeleceu, mas também pelo que iniciou. Houve desde o inícioobjeções aos seus procedimentos. Ele assumiu a validade geral da leide Weber, que as d.a.p. poderiam ser tomadas como unidadesequivalentes e que os limiares poderiam ser considerados como pontoszero.15 Brentano prontamente suscitou objeções contra a leilogarítmica, sugerindo uma alternativa, porém ele nunca a provou comevidências experimentais, e, por isso, foi ignorada até que, muitosanos depois, fosse embasada empiricamente pelo pesquisador suecoEkman.16 William James ridicularizou essas iniciativas, negando queas sensações poderiam ser consideradas unidades de massa “nossasensibilidade pelo rosa certamente não é uma porção de nossasensibilidade pelo vermelho”.17

O problema de quantificar as sensações tem sido infinitamentediscutido pelos psicólogos por mais de um século sem se chegar a umacordo.18 Durante o domínio do behaviorismo, inclusive haviam dúvidasquanto ao que a psicofísica se referia. Entretanto, a leilogarítmica foi largamente aceita como uma útil generalização até aprimeira metade do século XX. Foi aplicada em situações práticas,como a escala de decibéis para medir a intensidade sonora. Até mesmoa antiga escala de magnitudes estelares, formulada pelo astrônomogrego Hiparcos, no segundo século AC, foi aproximadalogaritmicamente, e, desde a introdução da medida fotométrica, temsido ajustada a uma função logarítmica. A confirmação fisiológicaveio do trabalho das correlações nervosas das sensações feito porAdrian,19 que descobriu que a frequência dos impulsos neuraisaumentavam como uma função logarítmica da intensidade da luz. Depoisde 1950, S. S. Stevens20 apresentou claras evidências de que naavaliação da sonoridade e do brilho não se obtinha a funçãologarítmica, propondo, então, uma poderosa lei que afirmava que emtoda modalidade sensorial, a magnitude de uma sensação é uma funçãodireta do estímulo.

Quaisquer que fossem as objeções às propostas iniciais deFechner, o uso de métodos quantitativos em psicologia temproliferado, e uma nova psicologia tem surgido baseada no antigomodelo Fechneriano. Métodos de escalas diretas tem conduzido a umagrande variedade de aplicações de técnicas quantitativas a outrasáreas além da sensação;21 e no campo da sensação novas teorias, comoas teorias do quanta neural22 e da detecção dos sinais,23 temoriginado novas áreas de investigação. A psicologia matemática temse desenvolvido enormemente, bem como tem se tornado uma áreaaltamente especializada com suas próprias revistas técnicas.24 Tudoisso se deu graças à iniciativa de Fechner.

Os problemas, evidentemente, persistem. Um especialista na áreada psicologia matemática é modesto em relação às realizações destaciência e ainda tem dúvidas quanto ao seus fundamentos, dizendo queainda existe “o medo assustador de que a matemática existente nãoseja, na verdade, particularmente adaptada para os problemaspsicológicos”.25 Aparte disso, duas questões fundamentais estavamenvolvidas nos problemas Fechnerianos e, principalmente, napsicofísica a natureza da mensuração e o status das sensações. Umgrande foco de discussões relacionadas com a natureza da mensuraçãofoi conduzido tanto por físicos como por psicólogos; gradualmenteuma visão menos restrita da mensuração tem prevalecido, legitimandotécnicas mais moldadas ao domínio psicológico do que escalascomumente empregadas na física.26 O status das sensações originou doisproblemas centrais: a relação da ordem sensorial com o mundo externo

e seu espaço dentro do domínio psicológico. Com o fim do simplesdualismo, o empenho de Fechner ganha um caráter diferente. Assensações passam a ser mais uma forma de linguagem do que algoparalelo à física, e o estabelecimento de uma relação funcionaldireta entre estímulos e sensações torna-se uma prática incertaquando transduções complexas intervêm no processo. Além disso, assensações não podem ser totalmente separadas de seu ambientepsicológico. Como Stern apontou, “todos os limiares que nósestudamos através da ciência empírica estão sujeitos não apenas afatores constitucionais genéricos, mas também a fatores individuaisestabelecidos pelo estímulo e o significado pessoal daquele estímulono momento”.27 Contudo, apesar destes problemas, não há dúvidas deque Fechner deu uma nova dimensão à psicologia, e o que havia sidoaté o momento uma disciplina essencialmente filosófica tornou-setanto quantitativa como experimental. Ele é, portanto, uma dasfiguras chaves na história da psicologia moderna.

 

III

Hermann von Helmholtz (1821-1894), um jovem contemporâneo deFechner, certamente foi outro pesquisador importante. Um dos grandescientistas da época, igualmente renomado como físico, fisiologista,matemático e psicólogo, trouxe todo o arsenal científico para darapoio a uma área de investigação psicológica, a da percepçãosensorial, e mais do que qualquer outro estabeleceu o modelo para odesenvolvimento de uma psicologia experimental. Graduado em medicinapor Johannes Müller em Berlim, tendo, depois de sua qualificação,trabalhado por cinco anos como cirurgião do Exército, ele dedicou-sea lecionar cadeiras em fisiologia, anatomia e física em diferentesuniversidades alemãs. Além disso, ele foi um homem de cultura amplae geral, versado em diversos idiomas e ainda admirador de música eartes visuais. Ele atribuiu muito de seu sucesso ao fato de que nãoera estritamente especializado e lamentou o crescente abismoexistente entre a ciência e as humanidades.28 Ele estava idealmenteequipado para o lançamento da psicologia a um novo plano, mesmo quejamais tivesse a pretensão de ser um psicólogo. Como Brett observou,o trabalho de Helmholtz constituiu “a verdadeira base da psicologiaexperimental”.29

Helmholtz, ainda muito jovem, mesmo antes de alcançar seuprimeiro posto acadêmico, disparou repentinamente para a fama em1847 com seu discurso “Sobre a conservação da força” para aSociedade Física de Berlim.30 Este tem sido descrito como sendo,juntamente com a doutrina da evolução, uma das duas grandes

generalizações científicas do século XIX.31 Apesar de haver sidopronunciada por vários outros cientistas, a concepção de Helmholtzde um estoque fixo de energia no universo destacou-se das demais porsua formulação precisa e apoio em provas experimentais. Emparticular, Helmholtz demonstrou que os ganhos e as perdas deorganismos animais estavam submetidos à lei da conservação e,contrariamente aos dogmas do vitalismo, deveriam ser consideradoscomo parte da ordem natural. Em 1850, depois de se transferir deBerlim para Königsberg como professor de fisiologia, foi bemsucedido ao medir a velocidade dos impulsos nervosos, primeiro nossapos e depois no homem, e estabeleceu o fato de que estes não eraminstantâneos, ou quase instantâneos, como se acreditavaanteriormente, mas comparativamente, lentos. Esta descoberta logofoi sustentada pelo problema da “equação pessoal” na cronometragemprecisa das observações, enfrentado pelos astrônomos, e conduziu aum dos maiores tópicos de investigação nos primeiros anos dapsicologia experimental: os tempos de reação.32 Isto implicavaclaramente que os processos mentais, uma vez que envolviamsequências causais no tempo, eram parte do mundo físico. Foi duranteo andamento desta pesquisa que Helmholtz proferiu sua importanteconferência “On methodos of measuring very small intervals of time, and theirapplication to physiological purposes” (Sobre os métodos de mensuração depequenos intervalos de tempo e suas aplicações às questõesfisiológicas),33 que veio a ter uma influência significativa tanto napsicologia experimental como na fisiologia. No mesmo ano, eleinventou o oftalmoscópio, um instrumento genialmente simples paraexaminar a retina do olho, e sua atenção direcionou-se cada vez maisao estudo dos processos visuais. Seu discurso inaugural emKönigsberg, em 1852, foi On the Nature of Human Perceptions (Sobre aNatureza das Percepções Humanas). O resultado final desses estudosfoi seu triplo volume “Treatise on Physiological Optics” (Tratado sobre ÓticaFisiológica)34, o qual William James, que era crítico de algunsaspectos das teorias de Helmholtz, descreveu como “uma das quatro oucinco maiores obras do gênio humano na linha científica”.35 A obraPhysiological Optics foi seguida de um tratado igualmente exaustivo sobreo sentido da audição em Sensations of Tone (As sensações dos sons).36 Como surgimento dessas obras mestras, segundo as palavras do próprioHelmholtz, “a arte da experimentação, que tem se tornado tãoimportante nas ciências naturais, encontrou uma entrada no campo atéagora inacessível dos processos mentais.”37

Essas obras continuam ilustrando exemplos de metodologiacientífica e de perfeição até os dias atuais. Helmholtz aproximou oestudo dos sentidos à precisão de um pesquisador científico. Todaconclusão era confirmada por observação ou experimentaçãocuidadosas. “A principal preocupação que eu tenho tido tem sido a de

verificar todos os fatos importantes através das evidências de meuspróprios olhos e de minha própria experiência”.38 Nos seus estudos emmatemática e física, Helmholtz aprendeu a importância da precisão.Em uma carta para seu pai ele escreveu: “nós que aproximamos asciências naturais ao ponto de vista matemático somos disciplinadospara uma plena exatidão na testagem dos fatos e consequências, assimcomo somos compelidos a proceder através de passos pequenos eseguros nas hipóteses nas quais nos empenhamos em examinar, o queainda é um oceano inexplorado”.39 Quando necessário ele recorria àsferramentas instrumentais; inventou novos aparelhos, como ooftalmoscópio; o oftalmômetro para medir a curvatura da córnea,ressonadores para amplificar tons parciais e o taquistoscópio.Também era um adepto à improvisação de equipamentos e construção de“partes de instrumentos para seus experimentos óticos a partir doscarretéis de sua esposa e dos blocos de brinquedos de seus filhos,com extremidades cônicas de cera e pedaços de barbantes”.40 Eleenfatizou a necessidade do cientista de possuir habilidades manuais.A isto ele acrescentou poderes extraordinários de observaçãoanalítica; na verdade, este cientista prático foi um dos maisbrilhantes dos introspeccionistas psicológicos, havendo dúvidas senão foi ele, acima de todos os outros, que teria estabelecido omodelo de introspecção formal, o qual se tornou a característicacentral da primeira era da psicologia experimental. Finalmente, esteperito em experimentação ainda enfatizou a necessidade dosconhecimentos teóricos: “o único experimentador bem sucedido naciência física será o homem que possuir um conhecimento teóricocompleto e que souber como propor as questões corretamente de acordocom isso; enquanto que, por outro lado, só poderão teorizar comproveito aqueles que tiverem um amplo conhecimento prático dotrabalho experimental”.41 Helmholtz trouxe para suas investigaçõesnão só uma poderosa mente teórica, mas também um amplo conhecimentoda história dos estudos anteriores. Talvez sua contribuição maisimportante para a psicologia seja seu domínio da metodologiacientífica e seu reconhecimento de que essa metodologia eraaplicável a pelo menos alguns problemas da mente.

As pesquisas psicológicas de Helmholtz foram restritas aos doissentidos superiores da visão e da audição. Ele considerou essa áreaespecialmente importante porque “a fisiologia dos sentidos é olimite de uma área em que as duas grandes divisões do conhecimentohumano, as ciências natural e mental, invadem uma o domínio da outrae os problemas levantados são importantes para ambas, bem comosomente um trabalho conjunto das duas pode resolvê-los”.42 Ele foirealmente um tanto cético quanto a até que ponto os métodoscientíficos poderiam ser aplicados à “ciência mental”. Ele falou deuma “diferença genérica entre as ciências naturais e morais”43 e

afirmou que “na vida mental as influências são tão interligadas quenenhuma seqüência definida pode, exceto raramente, serdemonstrada”.44 Contudo, ele sustentou que “a memória, asexperiências e as práticas, também são fatos, portanto suas leispodem ser investigadas”;45 e o futuro comprovaria que os métodosexperimentais poderiam ser aplicados bem mais extensivamente do queda maneira como ele próprio os aplicava. Sua importância foi terestabelecido um modelo metodológico.

Suas duas obras sobre visão e audição foram fruto de anos detrabalho paciente, nos quais todos os aspectos desses dois sentidos:físico, fisiológico, psicológico e estético, eram comparados,examinados e testados.46 Por meio de observação extremada emeticulosa, e pelo uso de engenhosos equipamentos, Helmholtz reveloumuitas novas facetas dos processos sensoriais, algumas das quaiseram comumente ignoradas e outras combinaram-se para criar umaimpressão completa. “O trabalho de Helmholtz sobre ótica”, comentouJames, “é um pouco mais do que um estudo daquelas sensações visuaisque o homem comum nunca toma conhecimento pontos cegos, muscaevolitantes, pós-imagens, etc... Percebemos somente aquelas sensaçõesque significam alguma coisa para nós”.47 Ao ouvir acompanhamentosmusicais muito atenciosamente, tons parciais e tons combinados “nãoeram, como pensava-se anteriormente, fenômenos isolados de poucaimportância, mas, com raras exceções, determinavam as qualidades dotom de quase todos os instrumentos”.48 Helmholtz percebeu que essefenômeno “pode ser submetido a objeto de percepção analítica semqualquer outra ajuda do que a própria direção da atenção”,49

lançando, assim, o modelo de introspecção experimental do final doséculo XIX. Muitos dos seus experimentos eram extremamente simples epoderiam ser executados por qualquer um sem nenhum equipamento muitosofisticado. Um exemplo: para explicar os efeitos do contrasteHelmholtz cobriu metade de uma folha de papel branco com um pedaçode papel preto; fixava seus olhos em direção a um ponto da partebranca próximo à parte preta; depois de mais ou menos um minutoretirava a folha preta, e então a metade da folha branca agoraexposta aparecia repentinamente com muito mais brilho. Essasobservações e esses experimentos simples eram significativos porcausa de seu embasamento teórico. É graças a seus propósitosteóricos, que o trabalho de Hemholtz é particularmente famoso aredescoberta da teoria tricromática das cores de Young, sua teoriada ressonância da audição e sua teoria geral da percepção assimcomo pela riqueza de detalhes com que ele descreveu a fisiologia e apsicologia dos sentidos.

A atitude básica de Helmholtz para o estudo da percepção humanafoi empirista e Lockeana. A aproximação metafísica aos Hegelianos

ele considerou fundamental para “a tomada de falsas conclusões”50 e,apesar de admirar a crítica doutrina Kantiana do conhecimento,rejeitou sua teoria a priori de intuição espacial. A percepção,incluindo a percepção espacial, era construída a partir daexperiência. As sensações eram meros símbolos ou signos para asrelações reais dos objetos. Os signos não eram imagens ou cópias doque eles representavam a forma dos signos dependia de sua ordenaçãosistemática ou de suas combinações. Nós aprendemos através daexperiência, principalmente pela atividade e pelo movimento emnossos primeiros anos de vida, o significado desses signos. Então“os testes que empregamos através dos movimentos voluntários docorpo são da mais alta importância para reforçar nossa convicção daexatidão da percepção que temos de nossos sentidos”.51 Nossointeresse básico em olhar e ouvir é prático. Reconhecemos objetos einterpretamos sons a fim de reagirmos apropriadamente em relação aeles. Desta forma, os numerosos defeitos do sistema visual(aberração cromática, astigmatismo, pontos cegos, sombreamentosvenosos, etc.) são negligenciados, e, apesar da mobilidade dosolhos, um mundo estático dos objetos é percebido. Percepções queparecem imediatas e simples são na verdade adquiridas vagarosamentee de forma complexa. Em sua última contribuição para a teoria dapercepção, um artigo escrito no último ano de sua vida, eleescreveu,

Através de repetições freqüentes de experiênciassemelhantes, nós podemos atingir a produção e o contínuoreforçamento de uma associação regularmente repetida entreduas percepções ou idéias diferentes, por exemplo, entre osom de uma palavra e a percepção visual ou tátil deimagens, que originalmente não precisam possuir nenhumaconexão natural; e quando isto tiver acontecido nãoestaremos longe de reportar com detalhes como chegamos aesse conhecimento no qual se baseia a observaçãoindividual.52

Uma grande quantidade de nossos julgamentos perceptuais, dessaforma, dependem do que Helmholtz denominou “inferênciasinconscientes”, e no caso das ilusões perceptivas essas inferênciasnos enganam. Nas palavras recentes de Gregory, “as percepções sãocomo hipóteses científicas”.53

O trabalho de Helmholtz sobre os sentidos humanos da visão e daaudição foi um enorme avanço em relação a seus antecessores e foi ofundamento de todo o trabalho futuro, assim como o verdadeiro inícioda psicologia experimental. Na geração anterior, James Mill escreveusobre visão e audição somente utilizando termos gerais e vagos,54 e

até um contemporâneo de Helmholtz, Bain, que pretendia unir apsicologia à fisiologia, produziu muito pouco para a época e limitousuas observações sobre visão em cores a uma nota de rodapé semimportância.55   Helmholtz transformou o panorama. Nem todas as suasdescobertas têm sido aceitas. Em particular psicólogos influenciadospela tradição fenomenológica, Hering com respeito à visão, e Stumpf,com respeito à audição, apontaram para aspectos não abordados porHelmholtz e propuseram teorias alternativas. Um século a mais detrabalho naturalmente produziu novas descobertas desconhecidas porHelmholtz. Mesmo assim, ainda continua sendo verdadeiro que, nocampo da psicologia sensorial, Helmholtz formulou os fundamentos nosquais se baseia todo o trabalho subseqüente, e os métodos empregadospor ele para estudar os sentidos têm sido incorporados por grandeparte da psicologia.

 

IV

Os anos posteriores a 1850 constituíram um divisor de águas nahistória da psicologia. Até então, o estudo da mente, excetuando asobservações clínicas dos médicos, tinha sido basicamente filosófico.Em 1842, J. S. Mill levantou a possibilidade de uma ciência da mentebaseada em “observação e experimentação”,56  mas foram os alemãesFechner e Helmholtz que realmente deram os primeiros passos nessesentido. A separação, consolidação e institucionalização dessa novaabordagem psicológica foi o resultado do trabalho de Wilhelm Wundt(1832-1920).57 Antes de 1862, Wundt já havia considerado apossibilidade de uma psicologia experimental quando escreveu que “aimportância que a experimentação terá para a psicologia tem sidomuito pouco visualizada em toda a sua extensão. Nós temos, comcerteza, muitas iniciativas notáveis no campo da investigaçãopsicológica, mas, como uma ciência coerente, a psicologiaexperimental ainda aguarda seus fundamentos”.58 Em 1874, ele foi oresponsável por prover tais fundamentos, proclamando o fato no seuclássico Grundzüge der Physiologischen Psychologie (Elementos de PsicologiaFisiológica): “Das Werk, das ich hiermit der Offentlichkeitübergebe, versuchten ein neues Gebiet der Wissenschaft abzugrenzen”(A obra que estou oferecendo agora ao público faz uma tentativa dedefinir o novo domínio da ciência).59 Não é, portanto, inapropriadodescrever Wundt, nas palavras de Boring, como “o psicólogo veteranona história da psicologia”,60 já que ele foi o primeiro a identificá-la claramente como uma disciplina científica distinta.

A principal importância de Wundt está na consolidação einstitucionalização da psicologia. O seu próprio sistema psicológico

teve poucos seguidores e, de fato, não estava livre de conflitos,mas possuía alguns aspectos de interesse. Formado em medicina naUniversidade de Tübigen, e passando um curto período em Berlin comJ. Müller e Du Bois Reymond, Wundt trabalhou aproximadamente vinteanos na Universidade de Heidelberg, oficialmente como psicólogo,mesmo assim de 1860 em diante seu interesse voltou-se ainda mais àpsicologia. Por um período ele trabalhou como assistente deHelmholtz, que naquela época era o responsável pela cadeira depsicologia, mas, ao que parece, eles nunca estabeleceram uma relaçãomuito próxima. Sua primeira publicação relacionada à psicologia foium tratado sobre percepção sensível, em 1862, seguido no anoseguinte por Lectures on Human and Animal Psychology (Conferências sobrePsicologia Humana e Animal)61 e, em 1873-4, pela edição de Grundzügeder Physiologischen Psychologie. Em 1875, Wundt foi escolhido para serprofessor de filosofia em Leipzig e ele se manteve nessa cadeira até1917, três anos antes de sua morte. O Instituto de Psicologia, porele fundado em 1879,62 rapidamente tornou-se o foco principal da novapsicologia experimental, atraindo estudantes de muitas partes domundo. O ano de 1881 presenciou o primeiro artigo do jornalPhilosophischen Studien (Estudos Filosóficos), onde as descobertas doInstituto eram publicadas, e sucessivas edições do “Grundzüge” eramconferidas e organizadas. Essa atividade experimental, no entanto,constitui uma pequena parte dos trabalhos pródigos de Wundt. Eleexerceu sua função de professor de filosofia seriamente e compiloutrabalhos sobre lógica, ética e filosofia em geral; e, na virada doséculo, inclinou-se a um estudo compreensivo sobre cultura,linguagem, mito e religião humana, o qual foi apresentado vinte anosantes de sua morte em uma coleção de dez volumes Völkerpsychologie(Psicologia Cultural).63

Existem dificuldades consideráveis ao se tratar da psicologiade Wundt. O volume do seu trabalho era enorme, trabalho esse que eraconstantemente revisado, ampliado e modificado; e em psicologia eletrabalhou assiduamente cerca de sessenta anos. Além disso, existiauma divisão básica na abordagem psicológica de Wundt, duas partesopostas que nunca foram integradas. Suas inclinações filosóficaseram idealistas e enraizadas nas principais correntes da filosofiaalemã, porém ele foi treinado nas ciências naturais na época em queas idéias de vitalismo e “naturphilosophie” (filosofia da natureza)eram vigentes. Essa divisão é aparente no seu sistema psicológico ejustifica a divergência de interpretações que a ele foram dadas.Enquanto que Titchener, Boring e os antigos comentaristas deramgrande importância aos aspectos empíricos e científicos de seutrabalho,64  estudos mais recentes têm enfatizado os componentesidealistas e humanistas de Wundt.65 Parecia haver um elemento de

verdade nos dois pontos de vista, embora cada um com sua própriaversão.

Não há dúvida de que Wundt, na psicologia, preocupou-seessencialmente com o estudo da consciência. Ele introduziu sua obra“Lectures” (1863) afirmando que “A psicologia deve investigar aquiloque nós chamamos de experiência interna” 66 , e ele jamais abriu mãodesse ponto de vista. Passados quase cinqüenta anos, na suapublicação final sobre psicologia geral, ele escreveu “a questão dosujeito em psicologia é toda a multiplicidade de conteúdoqualitativo existente na nossa experiência”.67 Portanto, métodoessencial de toda psicologia deve ser “unmittelbaren subjectivenWahrnehmung der Bewusstseinsvorgänge oder Selbstbeobachtung”(percepção subjetiva imediata no processo de consciência ouintrospecção).68  A introspecção, no entanto, precisava serdisciplinada pelo controle experimental e manejada com muito cuidadose o objetivo fosse a obtenção de resultados confiáveis. O objetivodessa introspecção experimentalmente controlada era descobrir oselementos da consciência e suas leis de associação. Em sua última, edefinitiva, obra Introduction to Psychology (Introdução à Psicologia),completada após as revisões finais do Grundzüge e do menor Grundriss(Compêndio científico),69 Wundt afirmou categoricamente , “Toda atarefa da psicologia pode ser resumida em dois problemas: (1) Quaissão os elementos da consciência? (2) Quais são as combinaçõespossíveis entre esses elementos e quais as leis que regem essasmesmas combinações?” 70  É, portanto, ir longe demais ao afirmar, comoum recente editor o fez, que “Wundt, ao contrário das interpretaçõesde Titchener e Boring, rejeitou a tradição de atomismo individual emental”.71 Para se certificar de que os elementos se fundiam e secombinavam de diversas maneiras, a tarefa do psicólogo eraprimeiramente analítica, e Wundt se dedicou a isso em um terceiro“Grudzüge” (de mais de seiscentas páginas) para uma consideração “vonElement des Seelenlebens” 72 e os dois tipos básicos de elementosque ele considerou como sensação e sentimento. É, porém, incorretodescrever a psicologia de Wundt simplesmente como uma psicologialimitada, como Boring o fez, porque Wundt deu bastante espaço aprocessos volitivos. Mesmo tendo sido influenciado por Schopenhauer,ele manteve que “atividades do tipo volitivas são as que constroemtodos os outros fenômenos psicológicos”.73 Do mesmo modo, ele nãoconsiderou a vontade como um elemento psíquico primário, preferiuconsiderá-la como “um processo afetivo”,74 reduzível, portanto, asentimentos. Logo, a análise dos elementos foi certamente o fatorproeminente na psicologia de Wundt. Porém, existiam ainda processossintéticos e sínteses produzindo compostos. Esses podiam ser de doistipos: fusões associativas e unidades aperceptivas, sendo que asfusões e as unidades podiam ser combinadas entre elas em várias

proporções. Wundt não era, de acordo com os moldes britânicos, umassociacionista enfático: as idéias eram processos, que associadas,mais do que separavam entidades psíquicas, as tornavam ligadas. Maisimportante do que a associação, que era uma relação passiva, era oprocesso ativo da apercepção, o aspecto volitivo ordenado da mente,centrado em atos internos da volição ou da atenção.75

Claramente, na psicologia de Wundt, havia componentes dastradições Lockeanas e Leibnizianas. Historiadores da psicologiapodem ter distorcido o ponto de vista de Wundt, dentro de limitesaceitáveis, por ignorar características de Leibniz76; todavia adistorção é a mesma se forem ignorados os elementos empíricos.Grundzüge de Wundt apresentava não apenas um acúmulo detalhado doconhecimento comum sobre o cérebro, sistema nervoso e órgãos dossentidos, como também uma revisão compreensiva da pesquisa empírica,a maior parte realizada em seu próprio laboratório; na psicologiados sentidos; em medidas psicofísicas; na percepção do espaço; nasensibilidade em relação ao tempo; sentimentos; atenção e tempos dereação. Mesmo centrado na consciência, a principal parte dessapesquisa foi realizada objetiva e meticulosamente e dentro datradição das ciências naturais. A divisão, porém, permaneceu. Wundtobstinadamente insistiu que o psíquico e o físico eram domínioscompletamente distintos; e que as causas e as leis psíquicas eramtotalmente diferentes das leis causais da física. Ele nuncareconciliou satisfatoriamente esses dois domínios. Ele falou sobre“a unidade psicofísica do indivíduo”, mas nunca explicou como,através de suas próprias premissas, tal unidade poderia seralcançada. Algumas vezes ele parecia estar defendendo o paralelismopsicofísico,77 em outras, negando a existência de qualquerparalelismo significativo entre ordens essencialmente diferentes. Odualismo fundamental do seu ponto de vista encontrou expressão nasua divisão da psicologia em duas diferentes ciências, psicologiafisiológica e o que chamamos de “Volkerpsychologie” (PsicologiaCultural). Ele acreditava que as funções mais superiores e complexasda mente humana não poderiam ser examinadas experimentalmente com ométodo das ciências naturais, mas deveriam ser estudadas através dassuas manifestações históricas na cultura, linguagem, mito ereligião. A psicologia era tanto uma disciplina humanista quanto umaciência natural. No sistema de Wundt não existia uma ponte realentre as duas.

As hesitações e a ambivalência de Wundt, sem dúvida, pesaramcontra a extensa aceitação da sua psicologia, e enfraqueceram seupoder sobre seus alunos, já que suas hesitações eram umreconhecimento de problemas filosóficos subjacentes profundamenteenvolvidos no estudo da mente problemas que permanecem até hoje e

que ainda dão origem a “modelos humanos” conflitantes. Muitos poucosdos alunos de Wundt, no entanto, estavam preocupados com essasquestões e, principalmente para os seus alunos americanos, o queinteressava era o lado experimental e da ciência natural de Wundt.Quando eles voltaram para a América, encontravam-se influenciadospor Wundt para fundarem laboratórios, mas os tópicos por elespesquisados, os métodos por eles utilizados e a doutrina que elesvieram a se apoderar divergiam das de Wundt, e eles rapidamentepassaram a ignorar as restrições feitas por Wundt à respeito daexperimentação. Contudo, havia aspectos na psicologia de Wundt quepermaneceram causando interesse. Seu princípio de “resultantecriativa” foi o reconhecimento dos aspectos ativamente construtivosda mente e o lugar das inovações emergentes. Seu princípio da“heterogeneidade dos fins” (O fato de todas as ações propositaisenvolverem não só conseqüências intencionais como também não-intencionais.) implicava a impossibilidade de prever com detalhes asconseqüências das ações humanas. Alguns dos tópicos estudados porWundt, mas negligenciados por seus sucessores, acabaram por retornarparcialmente. Porém, mais influente do que qualquer uma de suasidéias ou do que seu sistema como um todo, foi o fato do seuestabelecimento de um instituto de pesquisa experimental empsicologia. Isso foi realmente um grande exemplo da “heterogeneidadedos fins”, para conduzir as conseqüências muito mais extensivamentedo que o próprio Wundt poderia sequer conceber ou realmente teriaaprovado o florescer da psicologia experimental.

 

V

O crescimento da psicologia experimental durante o século passadopode ser considerado excepcional. Não só tem se desenvolvido comouma disciplina experimental, aumentando seu escopo, refinando seusmétodos e estabelecendo suas bases institucionais; mas também tempromovido o crescimento de uma de variedade de ramificações eaplicações. Tem se expandido geograficamente sobre maior parte domundo civilizado 78 e tematicamente veio a abranger muitas áreas deinvestigação além do que Wundt havia confinado ao domínioexperimental 79. Mesmo que qualquer dificuldade filosófica tenhapermanecido, é inconcebível que a psicologia pudesse algum diavoltar a ser uma mera disciplina não-experimental. Meio séculoatrás, Stern declarou que “a visão que nós agora temos da mentehumana é incomparavelmente mais rica do que o inadequado esquema dotempo de Hume e Herbart”. 80 Hoje, mesmo que tenha havido muitas

rupturas, a visão é ainda mais rica. Julgando-se pelos frutos, ainiciativa de Wundt foi recompensada.

Nos vinte e cinco anos após o estabelecimento do laboratório deLeipzig, o cenário psicológico transformou-se rapidamente.Laboratórios foram fundados em diversas partes da Alemanha, EstadosUnidos, França, Canadá, Bélgica, Holanda, Áustria, Grã-Bretanha,Argentina e Espanha. Jornais especializados seguiram os padrõesWundtianos de Philosophischen Studien: o American Journal of Psychology em 1887,o Zeitschrift für Psychologie und Physiologie der Sinnesorgane em 1890, o PsychologicalReview em 1894, L’Année Psychologique em 1895, o British Journal of Psychology eo Journal de Psychologie normal et pathologique em 1901, a Revista di Psicologia em1905. Juntamente com os jornais, surgiram as sociedades de ensino: aAmerican Psychological Association em 1892, a British Psychological Society e aSociété Française de Psychologie em 1901, e a Deutsche Gesellschaft für Psychologieem 1904. O primeiro Congresso Internacional de Psicologia aconteceuem Paris, em 1889, e congressos similares, até maiores, têm sidorealizados periodicamente desde então, sendo interrompidos apenaspelas Guerras Mundiais. No início do século XX, a psicologia nãoconsistia mais em meditações desordenadas de filósofos; tornou-se umorganizado e independente corpo de conhecimento com seus própriosmétodos e com suas próprias bases institucionais.

Até a Primeira Guerra Mundial, o mundo que falava alemãopermaneceu sendo o principal centro da nova psicologia.81 O próprioWundt não se aposentou até os oitenta e cinco anos de idade em 1917.Nessa época, porém, sua predominância e muito da sua influência jáhavia começado a diminuir. Alguns dos psicólogos mais proeminentesna Alemanha não estiveram diretamente associados a Wundt e, mesmoaqueles que o foram, nem todos seguiram seus passos. Como umrenomado psicólogo alemão falou “Wundt atraiu muitos alunos, masficou com apenas alguns”.82 Mesmo Külpe que foi primeiro aluno e emseguida assistente de Wundt, depois de dedicar seu próprio Outline ofPsychology (Linhas gerais em Psicologia 1893) “Para o meu respeitadomestre, Wilhelm Wundt, sincero agradecimento e afeição”83 transferiu-se para Würzburg em 1894 e começou a se atualizar, realizando umaprolongada série de estudos introspectivos sobre processos depensamentos de alta complexidade, que Wundt desaprovavaveementemente.84 Ebbinghaus, Müller e Stumpf fizeram parte daquelesque não tinham nenhum tipo de associação com Wundt. Ebbinghaus(1850-1909), depois de fazer carreira em diversas universidadesalemãs e estrangeiras, fixou-se em Berlim, em 1880, e desenvolveuseus famosos experimentos sobre memória85 que abriram um novo campode experimentação, agora com uma nova dimensão. Em 1881, Müllersucedeu Lotze em sua cadeira em Göttingen e construiu umdepartamento experimental (especializado principalmente em

psicofísica, percepção visual e memória) que antes da suaaposentadoria, em 1921, já havia se tornado rival do departamento deLeipzig. Stumpf (1848-1936), que dirigiu a cadeira de Berlin entre1894 e 1921, contribuiu notavelmente para a psicologia da audição epara a teoria da música. No entanto, sua fama se deveu,primeiramente, a aceitação dada às idéias filosóficas de seuprofessor Brentano, que estudou para exercer o sacerdócio católico,e que reintroduziu as idéias aristotélicas e escolásticas napsicologia moderna; e, em segundo lugar, seu incentivo aospsicólogos da Gestalt, que dominaram a psicologia alemã nos anos 20.Durante à eclosão da Primeira Guerra Mundial, vários departamentosde psicologia experimental estavam florescendo na Alemanha eempurrando as pesquisas para além dos limites Wundtianos.

O desenvolvimento nos Estados Unidos foi ainda mais dramático.O ímpeto original de transformar a psicologia de uma disciplinafilosófica para uma disciplina científica era Wunditiano. Comexceção de William James, a maioria dos líderes da primeira geraçãode psicólogos americanos foi treinada ou associada à Wundt - StanleyHall, J. Mck. Cattell, Scripture, Angell, Baldwin, Titchener,Witmer, Warren, Stratton e Judd, mencionando apenas os maisimportantes. O primeiro laboratório americano foi estabelecido porStanley Hall na Universidade de John Hopkins em 1883. Em 1895 jáhaviam mais de duas dúzias de laboratórios de psicologia nos EstadosUnidos. A princípio seus instrumentos eram basicamente Wundtianos eos primeiros manuais americanos de psicologia experimental, feitospor Standford (1894) e por Titchener (1901-5)86 eram moldados combase no “Gründzuge” de Wundt, tanto em relação ao método quanto aestrita área de cobertura. A psicologia americana foi, em seguida,responsável por renovar os padrões dentro das novas áreas deexperimentação, do campo aplicado da psicologia, das diferençascomparativas e da psicologia do desenvolvimento; e por englobarnovas maneiras de pensar. Com o advento do behaviorismo (1913), 87 apsicologia americana divergiu cada vez mais da Wundtiana e, após aPrimeira Guerra Mundial, os Estados Unidos começaram a ameaçar asupremacia alemã no campo da psicologia.

Ainda mais significante do que a expansão geográfica da novapsicologia tem sido a sua gradual expansão temática que cobriu novasáreas de experimentação. Wundt acreditou piamente que o experimentopoderia investigar somente aquelas áreas da mente “que sãodiretamente acessíveis a influências físicas ... seus órgãos dossentidos e movimentos”.88 Portanto, sua psicologia experimental foiessencialmente uma  psicologia fisiológica, que lidava com processosperceptivos e sensoriais, atenção, psicofísica, tempo de reação eassim por diante. Com altos e baixos, durante o século passado, os

psicólogos continuam estudando esses tópicos. Pesquisas sobreprocessos sensoriais e perceptivos sempre obtiveram o maior espaçonos textos padrões de psicologia experimental.89 Com a aplicação denovas técnicas e introdução de novos conceitos, a psicologiaexperimental tornou-se uma área importante e sofisticada depesquisa. O estudo dos tempos de reação, que acabou diminuindo nosprimeiros anos do século XX, recebeu vida nova com a aplicação dateoria da informação nos anos 50 e “é agora, novamente, o centro dapsicologia experimental”.90 Similarmente, o tópico da atenção, quequase desapareceu da pesquisa psicológica na primeira metade doséculo XX, voltou a ser mais uma vez um assunto de muita importânciaseguindo o trabalho de Hebb, Broadbent, Sokolov e outros.91 Todosesses assuntos tradicionais foram estudados com uma enormesofisticação, com melhores delineamentos estatísticos eexperimentais, com equipamento avançado, que requeriam umaassistência técnica especializada e, às vezes, até um controlecomputadorizado assim como um entendimento bem mais completo dasubstrutura fisiológica dos processos comportamentais.

Houve um igual investimento na expansão da experimentação emnovas áreas.92 Destas, talvez a aprendizagem tenha sido a maisimportante. Começando com o aprendizado de Ebbinghaus de suassílabas sem sentido, em 1880, foi no século XX que isso se tornou ofoco principal do trabalho experimental, envolvendo tanto sujeitoshumanos quanto animais e chegando até a ameaçar a tomar conta detodo o campo da psicologia. Nos anos 50, porém, o estudo central deprocessos cognitivos, iniciado por psicólogos de Würzburg nosprimeiros anos do século XX, voltou a ser favorecido, em parte pelosestudos de Piaget sobre o desenvolvimento do pensamento infantil eem parte pelos trabalhos de Hebb, Bruner, Bartlett e outros,juntamente com o surgimento dos computadores e o nascimento dainteligência artificial. A psicologia cognitiva e sua árearelacionada com a psicolingüística tornaram-se, atualmente, o maiorassunto da pesquisa experimental. O que Wundt considerava como umassunto em total decadência dentro do alcance de Völkerpsychologie, aser pesquisado não-experimentalmente, tem sido incorporado, ao menosparcialmente, no campo da psicologia experimental. Enquanto Wundt sepreocupava diretamente apenas com as generalidades de uma mentehumana, normal e adulta, empregando somente sujeitos treinados emseus experimentos; seus sucessores começaram a usar animais,crianças e casos patológicos em suas investigações, bem comopassaram a submeter seus sujeitos a diferentes ambientes e tipos deestresse. Além disso, eles os estudaram experimentalmente e seinteressaram tanto nas variações individuais como nas de grupo e noefeito das situações sociais. A psicologia experimental estendeuenormemente suas fronteiras. Existem ainda, obviamente, limites. A

experimentação não está ainda preparada, e pode ser que nuncaesteja, para abranger tanto a criatividade quanto a emoção humana.Existem ainda e talvez sempre existirão áreas da   psicologia quetranscendem os domínios das ciências exatas. A experimentação, noentanto, não é a única fonte dos dados psicológicos. A psicologia,nos anos mais recentes, foi parcialmente influenciada pela medicina,ciências sociais e filosofia. Porém, antes de examinar essasinfluências, é preciso mencionar resumidamente alguns outros avançoscientíficos da psicologia.

 

VI

O principal componente da transmutação da psicologia de umadisciplina filosófica para uma científica, como já visto, foi oresultado da união entre a filosofia e a fisiologia, nasuniversidades alemãs da metade do século XIX. Houve, porém, outroscomponentes significativos um francês e um inglês. O componentefrancês era muito ligado à medicina e enfatizava o valor daexperimentação natural de patologias que traziam informações tantode processos mentais normais, quanto anormais; assumindo que “adoença mental é, de fato, uma experimentação feita pela próprianatureza”.93 Essa aproximação será estudada no próximo capítulo sobreinfluências médicas. O componente britânico foi derivado da teoriade Darwin e permitiu, por um lado, o pioneirismo do trabalho deFrancis Galton e o estudo científico sobre diferenças individuais e,por outro, o desenvolvimento da psicologia comparativa e do estudodo comportamento animal. O primeiro impacto do trabalho de Galtonfoi no campo da psicologia diferencial e aplicada. O trabalho dospsicólogos comparatistas, no entanto, passou a influenciar apsicologia em geral, particularmente pelo trabalho de Lloyd Morgan.

Os movimentos iniciais que tinham como base uma psicologiacientífica fracassaram na Grã-Bretanha porque lhes faltou baseexperimental.94 Alexander Bain (1818-1903) esforçou-se para unir apsicologia às novas descobertas sobre a fisiologia do sistemanervoso e do cérebro. No entanto, nunca se preocupou em fazertrabalhos experimentais. Da mesma forma, Herbert Spencer (1820-1903)propôs uma psicologia da evolução, mas estava satisfeito com aexposição abstrata do seu ponto de vista associado com observaçõesgeneralizadas. W. B. Carpenter (1813-1885) extraiu material dafisiologia e da medicina, mas não de pesquisas em laboratórios.Restou para o próprio Darwin e para psicólogos pós-Darwinianos,Spalding, Lubbock, Romanes e acima de todos Lloyd Morgan, introduzira experimentação no estudo do comportamento animal e restou para os

psicólogos americanos incorporar os resultados desse trabalho na psicologia geral. A figura principal no desenvolvimento desseprojeto foi Lloyd Morgan.

Lloyd Morgan (1852-1936) tem sido negligenciado na história dapsicologia.95 Ele tem sido identificado por seu ‘cânone’ e algumasoutras coisas. Na verdade, na década que se extende de 1890 a 1900,ele foi uma das figuras mais importantes e progressivas dapsicologia e sua influência na revolução behaviorista que se seguiufoi considerável. Encorajado por Thomas Huxley, o ainda jovem Morganabandonou a mineração e metalurgia pela biologia, e através dopróprio Huxley ele teve o primeiro contato com estudos a respeito decomportamento animal. Depois de cinco anos lecionando na África doSul, ele foi indicado, em 1884, para a cadeira de geologia ezoologia em Bristol, onde permaneceu até 1919. Seu trabalho maisimportante em psicologia foi realizado em Bristol e publicado emquatro livros notáveis: Animal Life and Intelligence (1890), Introduction toComparative Psychology (1894), Habit and Instincts (1896) e Animal Behavior(1900). Em meados da década de 1890, Morgan visitou os EstadosUnidos fazendo palestras em Boston, Chicago e Nova Iorque. Suaspalestras em Boston, em 1896, foram apreciadas por E. L. Thorndike,que foi muito influenciado por Morgan a iniciar seu estudo deaprendizagem animal.

As contribuições de Lloyd Morgan para a psicologia podem serconsideradas dentro de três tópicos: metodológico, conceitual eteórico. Suas contribuições metodológicas são as mais conhecidas eseu cânone foi reconhecido como um marco divisório, principalmenteporque não é muito lembrado que Wundt havia proposto algo semelhanteanteriormente.96 O cânone que Morgan formulou era algo como: “Emnenhum caso devemos interpretar uma ação como conseqüência doexercício de uma faculdade física mais elevada, quando podemosinterpretá-la como exercício de uma faculdade que se localiza maisabaixo na escala psicológica”.97 A psicologia científica deveria, emoutras palavras, buscar as explicações mais simples. Esse princípiodeveria, portanto, funcionar também com dados obtidos em condiçõesestritamente controladas. “Os problemas deverão ser resolvidos nãoatravés da observação de um grande número de casos, mas porobservações experimentais cuidadosamente controladas”98 Também, comoThorpe já havia notado, Morgan deu prioridade à necessidade peladefinição operacional e precisa dos termos e da réplica dosexperimentos.

As contribuições conceituais de Lloyd Morgan têm sido muitomenos lembradas. Ele é, na verdade, a principal fonte dos conceitosbásicos da teoria behaviorista do aprendizado.100 Ao mesmo tempo, no

seu reconhecimento do conceito de instinto, ele deu contribuiçõespara aquilo que mais tarde foi chamado de etologia. Apesar de Morgannão ser behaviorista e sempre haver considerado a consciência,inclusive no nível animal, ele foi um dos maiores responsáveis pelotermo behaviour (comportamento) ter se tornado central em psicologia.Somente no início do século XX, este termo começou a ser utilizadocomo um termo específico de psicologia. Thorndike usou-oincidentalmente, em 1898, em sua monografia Animal Intelligence(Inteligência Animal).101 Porém, Lloyd Morgan em sua obra “AnimalBehaviour” (Comportamento Animal 1900) usou pela primeira vez otermo sistematicamente como um conceito central em psicologia. “Otermo em todos os casos indica e chama a atenção à reação aquilo quechamamos de comportamento em resposta a certas contingências ecircunstâncias que o evocam”.102 No seu trabalho sobre aprendizagemanimal, Lloyd Morgan escreve sobre “os efeitos condicionados pelomeio”103 alguns anos antes de Pavlov ter começado a trabalhar comreflexos condicionados; ele falou sobre o mecanismo básico de“tentativa e erro” antes de ter sido usado por Thorndike, e sobre“reforçamento” de respostas positivas e “inibição” de respostasnegativas, antes mesmo desses conceitos serem inseridos novocabulário do behaviorismo. Morgan também deu importância aosprincípios homeostáticos quando ele notou que “a tendência depassagem para uma condição de equilíbrio mais estável acontece emtoda gama de comportamento animal”.104 Assim, muitos dos conceitosbásicos da teoria behaviorista do aprendizado são encontrados nosescritos de Lloyd Morgan e ele baseou grande parte de seus conceitoscom o trabalho experimental conduzido, na sua maior parte, sobcondições naturais, porém estritamente controladas. Morgan criticavaa artificialidade dos labirintos de Thorndike, apesar de concordarcom algumas de suas conclusões.

O campo da aprendizagem animal, no entanto, foi apenas um ladodo trabalho de Morgan sobre o comportamento animal. Ele observou aexistência de “duas escolas contrárias na psicologia ... osempiricistas, que são aptos a relacionar a gênese psicológica comoconseqüência das importantes influências do ambiente ... e osapercepcionistas que insistem na importância central da sínteseseletiva em psicologia”.105 O sistema de Lloyd Morgan abrangia asduas visões. O condicionamento do meio explicava algunscomportamentos, mas não todos. Trabalhando basicamente com pássaros,Lloyd Morgan notou, e confirmou experimentalmente, que muitosexemplos de comportamento instintivo estavam associados a estruturasinatas e à coordenação central.106 Como Thorpe observou, na suaapreciação crítica do trabalho de Morgan ‘a contribuição de LloydMorgan foi tão importante que garante o seu lugar como um dosfundadores tanto da psicologia comparativa como da etologia’107

Não podemos deixar de notificar algumas das contribuiçõesteóricas de Lloyd Morgan, particularmente com respeito ao papel daconsciência e da teoria da evolução emergente. Ele concebeuconsciência como sendo essencialmente relacionada com ‘controle’.Comportamento sem a presença da consciência estava marcado peloautomatismo, por outro lado

o controle de atividades motoras envolve, e sempre deveenvolver, a linha de curva, no curso em que sedesenvolviam alguns centros, chamados centros de controle,cuja função é tanto para estimular ou inibir o centro decoordenação baixa do mecanismo automático. Associado com ocentro de controle da linha de curva existem centrossensoriais de atividades funcionais que é consciente, ouestá associada à consciência.”108

Segundo Morgan, a experiência consciente e seus produtosmentais eram constituídos de “constructos”; e ele definiu trêsníveis básicos desses constructos, que foram mais tarde chamados deperceptivo, aperceptivo e reflectivo.109 De acordo com seu cânone,ele considerou que não havia boas evidências de que os animaisapresentassem o nível reflexivo. Porém, ele considerou que existiauma similaridade básica entre os constructos dos diferentes níveis,o que gerava expectativa, e “as atividades dos organismos sãomoldadas de acordo com essas expectativas”.110  Nesse sentido, aconsciência entra no controle do comportamento. As várias faces dosistema teórico de Lloyd Morgan eram associadas com sua teoria da“evolução emergente”.111 Da qual ele não era o criador, mascertamente seu principal defensor. Essa era uma teoria que, numavisão ampla, evitava as dificuldades do dualismo, as simplificaçõesdo materialismo reducionista e as improbabilidades do idealismo.

O trabalho de Lloyd Morgan, que precisa ser melhor apreciado,contribuiu significativamente para o desenvolvimento da psicologiacientífica do século XX, suplementando e delineando a base doexperimentalismo Wundtiano. Infelizmente, Morgan nunca conseguiu umacadeira de psicologia comparada que estivesse unida aoexperimentalismo estabelecido na Inglaterra. E foi deixado aosamericanos a tarefa de unir os dois lados: o experimentalismo alemãoe o trabalho comportamental de Morgan. Essa fusão pode ser vista naobra de William James, de 1890, Principles of Psychology.

 

VII

O papel de William James (1842-1910) no desenvolvimento dapsicologia científica foi peculiar. Diferentemente de Fechner,Helmholtz, Wundt ou Lloyd Morgan ele não foi um cientistaexperimental. Na verdade, James precocemente admitiu possuir umtemperamento que não era compatível com trabalhos de laboratório,112 

e a isto acrescentava-se o desgosto por matemática e análiseslógicas.113  Então, em alguns aspectos, ele era incapacitado paraapreciar ou contribuir para o novo movimento em psicologia. Poroutro lado, ele era um gênio intuitivo com interesses em váriasáreas, com conhecimentos em medicina e ciências naturais e tambéminfluenciado por tendências literárias, artísticas e filosóficas desua época. Em qualquer ciência há dois ingredientes principais oconteúdo e a metodologia. James era fraco em metodologia, mas elepossuía um conhecimento intuitivo da riqueza e do alcance dopotencial do conteúdo da psicologia, fato que ocorria com poucospsicólogos. Em sua visita à Alemanha, em 1868, ele se deu conta deque uma nova fase havia sido aberta no desenvolvimento dapsicologia. “Me parece que talvez tenha chegado a hora”, escreveu emuma carta, “para a psicologia tornar-se uma ciência”,114 e tambémacreditava firmemente que tal  psicologia deveria ter suas raízes nabiologia, apesar dele nunca haver consentido na redução da riquezadas experiências vividas para as formulações abstratas da ideologiacientífica determinística e mecanicista. Na psicologia, ele foi umafigura de transição, mas uma figura de transição de enormeimportância, cujas idéias de longo alcance não podiam ser confinadasàs preocupações e limitações dos primeiros experimentalistas. Logo,enquanto absorvia boa parte do que estava acontecendo a sua volta empsicologia, juntamente com aspectos do passado, sua incansável menteestava constantemente aberta para o futuro.

William James deve muito a sua atípica formação familiar e asua peculiar educação.115 Sua família foi altamente privilegiada edotada de amplos recursos em diversas áreas, como o avô de William,que emigrou da Irlanda para a América no final do século XVIII eacumulou uma das maiores fortunas de sua época. Isto possibilitouque a família de James viajasse exaustivamente, e no período de 1855à 1860, a maior parte do tempo gasto viajando pela Europa, levouWilliam e seu irmão igualmente talentoso Henry a estudarem naInglaterra, França, Suíça e Alemanha. Conseqüentemente, Williamtornou-se fluente em francês e alemão, e desde jovem adquiriuconhecimentos continentais, assim como o inglês, filosofia eliteratura. Isto foi da maior importância para ele quando,posteriormente, interessou-se por psicologia. Igualmente importantefoi sua natureza psicológica, duplamente constituída pelo que Perry,seu biógrafo, denominou de seus traços ‘mórbido’ e ‘benigno’.116 Nolado ‘mórbido’ sua neurastenia e instabilidade geraram simpatia pela

‘alma doente’ e suas manifestações psicopáticas. Ele não sofreusimplesmente de ‘insônia, desordens digestivas, problemas visuais,debilidade nas costas, e algumas vezes de depressão do espírito’,117

mas ocasionalmente de ‘um medo terrível de minha própriaexistência”.118 Por alguns anos da década de 1870, ele era incapaz detrabalhar, e mesmo depois de sua melhora, ele cansava-se facilmente.A compensatória característica ‘benigna’ inclui sua imensavitalidade, sua sensibilidade refinada e sua relevante dádiva desociabilidade. Ele tinha um grande interesse por pessoas,especialmente por pessoas incomuns e estranhas; ele poderiaestabelecer uma afinidade com seres humanos com uma constituiçãocompletamente diferente da sua e possuía um entendimento natural danatureza humana. Como seu amigo filósofo C. S. Pierce observou, “eleera ainda melhor na prática do que na teoria da psicologia”.119 Comoresultado parcial das suas dádivas de sociabilidade, tinha contatoe, freqüentemente mantinha calorosas amizades, com muitas dasprincipais figuras da psicologia e da filosofia de sua época. Ogrande contato com estas figuras gerou comentários tanto sobre aspersonalidades, quanto sobre os principais assuntos daquele tempo.120

Havia, portanto, um ótimo motivo que solucionava o fato de Jamesnunca ter tido uma educação formal nem em psicologia nem emfilosofia. Como ele próprio admitiu “a primeira aula de psicologiaque eu ouvi foi a primeira que eu escrevi”121 A única aprendizagemformal que James teve foi em ciências biológicas e medicina, todavianinguém pode ler muito a fundo seu Principles of Psychology (Princípios dePsicologia) sem reconhecer que ele teve, de fato, um domínio daliteratura relevante de psicologia, fisiologia e filosofia, e oscomentários anotados nas suas cópias destes clássicos da literaturaindicam o cuidado e a minuciosidade que James teve ao lê-los.

James graduou-se em medicina em 1869.122 Isto foi cinco anosantes dele obter o seu primeiro cargo de professor de fisiologia, emHarvard. Nesse intervalo, ele experienciou um longo colapsoneurótico, do qual ele conseguiu recuperar-se após ler os escritosdo filósofo francês Renouvier, e aceitando sua estimulante doutrinado livre arbítrio. Após alguns anos de sua nomeação em Harvard, suasaulas foram basicamente de anatomia e fisiologia comparada dosvertebrados, mas logo começou a demonstrar interesse por psicologiafisiológica. Desenvolveu um curso de graduação sobre as relaçõesentre fisiologia e psicologia, em 1875, e introduziu demonstraçõesexperimentais no ano seguinte. Em 1878, o curso foi transferido parao departamento de filosofia e, em 1885, James foi nomeado professorde filosofia. Enquanto isso, em 1878, ele assinou um contrato comHolt, o editor, para escrever um compêndio de psicologia. Este foi ocomeço de Principles of Psychology, que surgiu, após muito esforço, dozeanos depois, em 1890. Talvez este seja o mais conhecido e o mais

lido de todos os compêndios de psicologia, e aproximadamente umséculo depois da primeira edição continua mantendo-se atualizado.123

O valor de Principles of Psychology está na combinação de James de ummaciço saber, com uma proposição radical e questionadora, além deuma brilhante capacidade de exposição. As viagens de James pelocontinente europeu deram-lhe em primeira mão conhecimento sobre oque estava se passando nos novos laboratórios da Alemanha e eleconheceu muitos dos principais vultos deste país, da Inglaterra e daFrança. Ele banhou-se nas obras científicas e filosóficasimportantes, na maioria dos idiomas europeus. Porém, recusou aidentificar-se com alguma escola de pensamento predominante. Foiigualmente crítico com o método sensacionalista-associacionista-materialista dos empiricistas e com a suposição religiosa dosidealistas. A hipótese da alma, ele manteve em um de seus maisconhecidos aforismas, “nada explica e nada garante”.124 Por outrolado, considerou o associacionismo como “contaminado com um grandeerro”,125  que era o atomismo mental. Sua psicologia consistia em duasbases principais: primeiramente a biologia e, em segundo lugar, oque ele definiu como ‘empiricismo radical’, pelo qual eledeterminava o reconhecimento de toda riqueza e variedade daexperiência. O fundamental “Weltanschauung”, ele diz, é “o máximo dariqueza tanto subjetiva quanto objetiva”.126 Em primeiro lugar,entretanto, a biologia: “o caminho para um entendimento maisprofundo da seqüência de nossas idéias”, ele afirmou, “está na rotada fisiologia cerebral”.127 A mais importante doutrina da fisiologiacerebral foi a doutrina do ato reflexo, que dava a entender que oresultado do funcionamento dos nervos e do cérebro era uma descargamotora. Em outras palavras “percepção e pensamento estão lá apenasdevido ao comportamento”128 Isso foi de extrema importância para amudança da análise da consciência para o estudo do comportamento, eJames reservou uma porção razoável de seu compêndio para descreveros vários tipos de ação: instintiva, habitual e voluntária. Ele foimais longe, explicando eventos mentais em termos fisiológicos;assim, a memória foi explicada pelo “caminho do cérebro”129 e na bemconhecida teoria da emoção, denominada teoria de James-Lange (emfunção da promulgação quase simultânea das idéias de James e dofisiologista dinamarquês Lange), as alterações fisiológicas eramprioritárias à emoção experienciada.130

Apesar da sua ênfase na ação, no comportamento e nos aspectosfisiológicos da mente, James nunca se tornou, e jamais poderia haverse tornado um behaviorista. Ele acreditava em estruturas internas “a mente é preenchida com relações necessárias e eternas”.131 Eleacreditava no livre arbítrio, o máximo poder de decisão, a‘ordenação’ da vontade,132 bem como na habilidade individual para

superar desafios;133 e na consciência, não como uma entidade, mascomo uma função orgânica “um órgão adicionado para dirigir umsistema nervoso muito complexo para regular a si mesmo”.134 Assim,observações introspectivas continuavam para ele como um métodoprimordial,135  e foi através da introspecção que ele chegou em umadas suas características mais típicas, a do “fluxo de pensamento”.136

A idéia de um movimento contínuo e definitivo, o qual poderia serdistinguido em partes nítidas “substantivas” e em partes maisimprecisas, “transitivas”.137  James enfatizou a “reafirmação doimpreciso para o valor do mesmo na vida mental” 138 e a importânciados detalhes da consciência. E achava duvidoso que o self fosseapenas o que ele ouvia na introspecção, e que “cada pensamento éparte da consciência pessoal”.139 Mas acreditava que o self era algomais complexo, havia “tantos self sociais, quanto há diferentesgrupos de pessoas cujas opiniões ele se importa”,140 e acima disso háum elemento ativo, um self espiritual “com o qual nós temos diretoconhecimento físico”.141

Isso foi útil também para outras áreas, além da psicologiaexperimental dos laboratórios alemães; e certamente a atitude deJames para esse experimentalismo alemão foi claramente ambivalente.Inicialmente ele estava intensamente interessado nele, chegando avisitar os importantes Helmholtz e Wundt. Ele começou comdemonstrações experimentais mesmo antes de Wundt criar o Institutode Leipzig, construiu um laboratório de primeira categoria emHarvard142  e, quando não estava mais em condições de dirigi-lo,trouxe um experimentalista alemão conhecido, Hugo Münsterberg pararealizar a tarefa. Logo após esse fato, ele tornou-se profundamentedesiludido com os resultados dos experimentos. Em 1899, ele escreveuem uma carta para Stumpf, “o pensamento de experimentaçõespsicofísicas e os instrumentos, assim como as fórmulas algébricaspara psicologia me enchem de horror”.143 Acreditava que “o resultadopsicológico apropriado (para a psicofísica de Fechner) erajustamente nada”,144 e como para Wundt, ele desprezou suas pretensõese descreveu-o como “um Napoleão sem genialidade e sem idéiascentrais”.145 Na conclusão de seu Briefer Course” (Breve curso - 1892)ele escreveu,

Quando, então, nós falamos de psicologia como uma ciêncianatural nós não devemos supor que signifique que estásolidificada sobre um terreno firme, significa justamenteo contrário; significa que a  psicologia é particularmentefrágil, e que a efemeridade da crítica metafísica torna-seevidente a cada instante, uma   psicologia cujassuposições elementares e dados devem ser reconsiderados emconexões mais amplas e transportadas para outros

termos ... Isto não é ciência, é apenas a esperança de umaciência.146

Isto não significa que James tivesse abandonado a esperança;isto significa que “as suposições da ciência natural que ospsicólogos adotaram deveriam ser consideradas como provisórias ereversíveis”.147 O futuro está assentado em novas idéias e em novosdados, e James estava sempre procurando essas idéias e esses dados.Ele tentava encontrá-los especialmente no campo da psicologiaanormal, na pesquisa física e nas proezas paranormais. No fim de suavida escreveu:

As concepções clínicas, embora mais imprecisas que asanalíticas, são certamente as mais adequadas, dão umaimagem concreta da maneira que a mente funciona e têmimportâncias práticas mais urgentes. Então, a “atitudemédica”, a “psicologia funcional”,  é a área que maismerece valor nos estudos.148

Ele expressou cedo a opinião que a descoberta, por volta de1880, da direção das atividades inconscientes em certas situaçõesera “o passo mais importante da psicologia”,149 e disse para Stumpfque acreditava que as pesquisas de Janet em histeria eram maisdignas de valor do que as mensurações de laboratório.150 Em 1896,comentou sobre a possibilidade da utilização das descobertasFreudianas no alívio das patologias histéricas,151 e após assistir,em 1909, na Clark University, uma conferência sobre psicanálise, naqual Freud formou seu Five Lectures upon Psycho-Analysis (Cinco Lições dePsicanálise), James comentou,

Eu espero que Freud e seus alunos promovam ao máximo suasidéias, a fim de podermos aprender o que elas são. Nãopodem deixar de iluminar a natureza humana, mas confessoque ele me deixou a impressão de um homem obcecado comidéias fixas. Não posso fazer nada de útil para mim comsua teoria dos sonhos, e obviamente, o “simbolismo” é ométodo mais perigoso.152

Há algum tempo atrás, esse mesmo James utilizou-se dos estudos decaso em seu Principles of Psychology e isto é o que parcialmente tornou olivro de tanto interesse humano. Suas conferências Gifford no Varietes ofReligious Experience (Variedades de Experiências Religiosas 1902) têmsido descritas como estudos em  psicologia clínica, tratandoduplamente das manifestações patológicas da “alma doente” e do “selfdividido”, do fenômeno da conversão religiosa, e da “enormediversidade das vidas espirituais que os diferentes homens têm”.153

Em tudo isso James estava olhando adiante do fechado mundo doslaboratórios do período de transição entre o século XIX para oséculo XX e ao que está relacionado com o mesmo o impacto das novasidéias vindas da medicina e das ciências sociais, a ascensão dapsicologia aplicada e diferencial, e as novas filosofias. Ointeresse dominante nas duas últimas décadas na vida de James foifilosófico.154 Ele foi atípico entre outros filósofos ao preferir odesordenado à ordem, as heresias às ortodoxias, a verdade dosresultados práticos à verdade abstrata e especulativa. “Realidade,vida, concretude, experiência, imediaticidade, use o termo quequiseres, exceda sua lógica, inunde e envolva isso”.155 Psicólogosnão têm prestado atenção na mensagem de James, mas ele não apenasfez a psicologia parecer um tema interessante, como também preparouo caminho para outros acontecimentos.