Aspectos do culto dinástico no Egito ptolomaico

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Fábio de Souza LessaRegina Maria da Cunha Bustamante

Organizadores

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ASPECTOS DO CULTO DINÁSTICO NO EGITO PTOLOMAICO

Alex dos Santos Almeida " I

Este artigo se propõe a apresentar alguns elementos da política ptolomaica referentes aoculto dinástico. Em linhas gerais, o culto dinástico pode ser observado como uma ação políticaempreendida pelos governantes gregos no Egito, com a finalidade de tornar a casa real existen-te, sob os diversos Ptolomeus, mais próxima de seus súditos gregos e egípcios. Em outros ter-mos, legitimar a dinastia Lágida por meio de uma política religiosa.

Há dois elementos, entre tantos, a respeito dos quais gostaríamos de comentar aqui, quepossuem uma estreita relação com a promoção da memória familiar através das festas. O primei-ro deles é a festa conhecida como Ptolomaieia; o segundo é o cerimonial de ascensão ao tronoconhecido como Anacletéria.

Antes de expormos esses dois aspectos do culto dinástico, precisamos comentar, em linhasgerais, o processo que desembocou na divinização da monarquia ptolomaica.

O interesse dos gregos pela realeza concentra-se no aspecto de reavaliação do papel dohomem na sociedade; passo este que teve a contribuição de pensadores como Platão, Aristótelese Xenofonte - que foram os primeiros a avançar na idéia de que somente um indivíduo divina-mente talentoso podia, através das suas ações, ser capaz de trazer paz e prosperidade à socieda-de (KOESTER, 1995, p. 34). Deste modo, a população podia ou até mesmo deveria demonstraruma reverência por' estes indivíduos mais proeminentes e, eventualmente, consagrar-Ihes hon-ras divinas, em muitos casos ainda em vida. Isto é claramente perceptível em um trecho daRetórica, de Aristóteles:

"( ...) honra é um reconhecimento de uma boa reputação por benefícios, e é comjustiça que ela é especialmente concedida para aqueles que tem conferido favores, aindaque seja honrado quem é um benfeitor em potencial (...). Honras consistem de sacrifícios.comemorações métricas e não métricas, privilégios, recintos sagrados, (...), tumbas. ima-gens, alimentos na despesa pública, (....)" (Aristóteles, Retórica, 1.5,136Ia).

*Professor mestrando em Arqueologia do MAE/[email protected]

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o vazio político gerado entre as cidades gregas pela Guerra do Peloponeso e as mudançpolíticas ocorridas ao longo do séc. IV a.c. criaram o ambiente ideal para a ascensão de Alex -dre, o Grande, que, por sua vez, foi o motor pelo qual a expansão grega para além dasfronteiras continentais impulsionou um contato mais íntimo entre gregos e outros povos, entro este que já existia, mas que se aprofundou em uma dimensão até aquele momento inexiste(AYMARD, 1993). Quando os novos reinos helenísticos se estabeleceram no terceiro sécuma mudança já havia ocorrido e todo um corpus de doutrinas para a interpretação das rnonzr-

quias estabeleci das já existia (WALBANK, 1999, pp. 75-79). Pensadores do porte de Aristótel -Xenofonte e Hecateu de Abdera já haviam procurado compreender a nova realidade. Oucomo estes escreveram tratados sobre a realeza, tratados muitas vezes encomendados pepróprios soberanos, de sorte a justificarem ou legitimarem seus anseios políticos como dedentes de linhagens divinas - isto é muito claro no caso dos Ptolomeus, que têm em Heracles eDioniso seus ancestrais divinos, conectando-os a Zeus. Observe-se, por exemplo, esta pgem da Inscrição Adulis, um documento datado da época de Ptolomeu III:

"O grande rei, Ptolomeu (/lI), filho do Rei Ptolomeu I e da rainha Arsinoe, osdeuses Adelfos, as crianças do Rei I Ptolomeu e da Rainha Berenice, os deuses Soteres.I descendente através de seu pai de Héracles, o filho de Zeus, e através de sua mãe deDioniso, o filho de Zeus, tendo herdado de seu pai I domínio sobre o Egito e Líbia eSíria I e Fenicia e Chipre e Licia e Caria e as I ilhas Ciclades, ele marchou para ointerior da Ásia com I forças da infantaria e da cavalaria e uma frota Ii e elefantes -Trogrodítico e Aithíope - que seu pai I e ele caçaram primeiro nestas regiões, e, tendotrazido-os de volta ao Egito, treinado para I uso militar. (. ..r (Orientis graeciIncriptiones selectae, 54, 1960).

Com a morte de Alexandre, em 323 a.c., havia dois candidatos naturais ao cargo deca da Macedônia - Felipe Arrideu, o irmão mentalmente incapacitado de Alexandre, e Aledre IV, o filho recém-nascido de Alexandre e Roxana, uma princesa bactra. Com a impossiblide regência de ambas as partes, o cargo de regente do império acabou confiado a Pérdicas. Cas disputas entre os generais de Alexandre - os Diádocos - pelo controle do império, UIIlZ

primeiras medidas que Pérdicas tomou para assegurar seu controle e posição foi enviarmensageiro à Babilônia para trazer o corpo morto de Alexandre de volta à Macedônia, paraa ele se pudessem conferir as honras fúnebres de acordo com a tradição macedônica. No ecto, o cortejo foi interceptado por Ptolomeu I, que assegurou a posse do corpo para si, levpara o Egito, pois a sua presença em solo egípcio daria a Ptolomeu o aval de que necessitavaa legitimação de seu governo:

"Quando Arrideu passou aproximadamente dois anos preparando este trabalho [acarruagem fúnebre de Alexandre], ele [Ptolomeu] trouxe o corpo do rei da Babilôniapara o Egito. Ptolomeu, além disso, prestando honra a Alexandre, foi encontrá-lo [o

corpo] com um exército até a Síria, e, recebendo o corpo, considerou merecedor degrande consideração. Ele decidiu, no momento, não o enviar a Amon, mas sepultá-lona cidade que foi fundada pelo próprio Alexandre, o qual faltou pouco para ser a maurenomada das cidades habitadas da terra. Aí ele preparou um recinto digno da glória

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e as mudançI ãodeAle.. além dass povos, euento inexi -terceiroção da m - -s de Aristúalidade.aendado r

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de Alexandre em tamanho e construção. Sepultando-o neste [recinto] e honrando-ocom sacrifícios tais prestados a semideuses e com magníficos jogos, ele ganhou recom-pensa justa não somente aos homens, mas também aos deuses. (...)" (DIODOROSÍCULO, Livro XVIII, 28.2-5).

A existência de uma monarquia no território egípcio era uma realidade há muitos séculos,mesmo durante os confusos anos em que diversos reis foram se sucedendo no conflito com ospersas. Pode-se considerar que a instituição monárquica no Egito manteve uma continuidadeaté a éppCil de Alexandre, quando este libertou o Egito do jugo do império persa e se fez aclamarfilho de Zeus-Arnon pelo oráculo de Siwah, no deserto líbio. O reconhecimento de umaancestral idade divina das dinastias macedônicas era um tema que já havia sido trabalhado porFelipe II e, sendo assim, não foi uma novidade nem para Alexandre nem para seus generaisBADIAN, 1996). Uma das tradições da época helenística cita, até mesmo, que Alexandre erafilho de Zeus e de sua mãe, Olímpia. A conquista do Egito pelo exército de Alexandre permitiuque a divinização fosse oficializada e que o limite entre deus e o homem ficasse diluído diantedos povos conquistados, e também diante do exército. Ainda assim, uma coroação oficial comofaraó não poderia acontecer, pois isso significaria que o monarca deveria renunciar à condiçãode herdeiro e filho legítimo de Felipe 11, o que não seria visto com bons olhos pelas tropasBADIAN, 1996, pp. 13-14; KOESTER, 1995, p. 36). Contudo, Alexandre adotou o papel de:Jfotetor do Egito com todos os atributos de um soberano egípcio, e sua imagem como faraó foi:nantida na documentação e na arte (HÓLBL, 2001, pp. 78-79; BADIAN, 1996, p. 14). Apesarzas constantes tentativas para estabelecer um reconhecimento divino, o máximo que os gregose concederam foi uma aceitação não universal como isothéos, que era uma designação distan-~ de divino (BADIAN, 1996, pp. 20-21). Apesar da existência de um culto espontâneo ofereci-

a Alexandre nas cidades da Ásia Menor, não há evidências de que, mesmo usando umaariedade de trajes divinos, para sua identificação para com os deuses, Alexandre tenha dernan-o uma deificação ainda em vida, mesmo quando tentou, sem sucesso, estabelecer uma ado-

ção de tipo oriental (BADIAN, 1996, pp. 24-25; KOESTER, 1995, p. 36). A efetivação con-zreta de um culto só foi realizada quando da apropriação do corpo de Alexandre por PtolomeuEste general iniciou e fundamentou o seu próprio direito à realeza no Egito, valendo-se,

.entre outras ações, da continuidade da cunhagem de moedas de Alexandre e, conseqüenternen-- da adoção do retrato de Alexandre em suas próprias emissões monetárias. Além disso, instau-

o culto a Alexandre como fundador da cidade de Alexandria com o estabelecimento de umcerdote epônimo que serviria de base para o culto dinástico dos Ptolomeus nesta cidade. Istoclaro na passagem abaixo, extraída de um papiro do séc. II a.C., no qual toda a linhagemomaica já se encontra devidamente e cronologicamente estabeleci da. Neste caso, a funçãoexercida por um membro da casa real antes de ascender ao trono:

"No ano 02, 18 de Phamenoth, da Rainha Cleópatra (/lI) e Ptolomeu (IX) deusSoter Filometor; quando o Rei Ptolomeu, o deus Soter Filometor, era sacerdote de Ale-xandre, dos deuses Soteres (Ptolomeu I e Berenice I), e dos deuses Adelfos (Ptolomeu /le Arsinoe lI), e dos deuses Euergetes (Ptolomeu /lI e Berenice /l), dos deuses Filopatores(Ptolomeu IV e Arsinoe I/l), dos deuses Epifanes (Ptolomeu Ve Cleópatra I), (...)" (P.

Cairo demo 30602 + UPZ 1130).

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Com o estabelecimento desse culto a Alexandre, uma primeira fase do processo de divinizaçãoda casa real foi completada. Embora Ptolomeu I tenha estabelecido esse culto, ele próprio nãose atreveu a tomar para si o manto da divindade, ainda que cidades, como Rodes, tenhamestruturado honras divinas para esse governante (DIODORO, Livro XX, 100). Contudo, evi-dências materiais apontam para a apresentação da imagem do soberano com 'uma aura divina':essas evidências são demonstradas por uma cabeça-retrato de Ptolomeu do tipo criselefantina(estátuas erigidas com materiais nobres como o ouro - chrysos, e marfim - elephas, reservadossomente para os deuses), datada do início do terceiro século, e em sua própria efígie monetârizatravés de um estilo qualificado como dramáiico-chiaroscuro, que denotaria uma imagem ins-pirada pela divindade (BROWN, 1995). Notemos aqui que, se não há uma autodeclaração dedivindade por parte de Ptolomeu I, ela se encontra muito próxima.

Antes de passarmos a comentar os dois tipos de celebrações (a Ptolomaieia e a Anacletériprecisamos retomar aqui algumas características principais no tocante à questão do culto dinástico, que se diferencia do culto ao soberano, que era uma forma de veneração oferecida exclus -vamente ao rei e que podia ser estabeleci da em um templo, recinto, altar, podendo incluir obje-tos ritualísticos específicos. O culto ao soberano era basicamente de caráter não-estatal, isto é__sua prática vinha dos adoradores e não era instituída pelo próprio rei.

O culto dinástico tem basicamente os mesmos componentes e rituais praticados no cultosoberano, com duas diferenças importantes. Em primeiro lugar, a sua motivação não vinhaadoradores, mas, sim, do próprio rei, que pretendia legitimar o seu governo e a sua dinatravés do estabelecimento desta modalidade de culto. A outra diferença importante são as fes-tas e cerimoniais que este reis promoviam, justamente para se autopromover, principalmente ~épocas de crise ou de guerra. Entre as diversas festas 'reais' existentes no passado, teBasiléia - em honra a Zeus Basileu e a Ptolomeu li Filadelfo -, a Arsinoéia - em ho _Arsinoe II -, e a Nikefária - em honra a Ptolomeu IV (PERPILLOU-THOMAS, 1993) .. -_contexto de festas e de cerimoniais do culto dinástico é que se insere a Ptolomaieia.

A Ptolomaieia foi um festival criado por Ptolomeu II para honrar os seus pais fale ipara divinizá-Ios. Ela se apresenta como uma combinação de jogos esportivos de czrisolímpico e de uma procissão dionisíaca, ambos ocorrendo a cada cinco anos, daí tam 'chamado de festival Pentetérico. A finalidade última destes festivais era promover a imagrei junto aos seus súditos gregos, além de expor a grandeza da dinastia para os outrohelenísticos. Há muito debate entre os especialistas no que concerne à data de sua cria, - _sua verdadeira razão de existência.

A procissão dionisíaca foi o alvo de trabalho de um antigo escritor grego chamado Cal!::.~=de Rodes, cuja obra nos chegou por meio de Atenaios, um escritor do séc. II d.C. Em seu ~Calixeino descreve essa procissão com uma riqueza de detalhes, em que estão presentes ~postos o poder militar e econômico ptolomaico, além de apresentar Ptolomeu II e seuem forma já divinizada e, inclusive, ligá-los aos seus ancestrais, como Dioniso e Alex

"(. ..). E depois destas coisas vieram as procissões de Zeus e de todos os odeuses, e depois deles, a procissão de Alexandre, cuja estátua dourada era apresemsobre uma quadriga de elefantes reais com a Niké e Atena em cada lado. Na pro .eram também conduzidos em companhia de muitos tronos construidos de ma -ouro; sobre um destes permanecia uma stéfane dourada, sobre um outro um c· -

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dourado, e sobre um outro um diadema de ouro, e ainda sobre um outro um chifre deouro puro. Sobre o trono de Ptolomeu Soter permanece uma coroa feita de iO.OOOpeças de ouro.(. ..)"

a( ... ). Ptolomeu (i) e Berenice [eram honrados] com três estátuas em carruagensdouradas e com recintos sagrados em Dodona. O total gasto em moeda somou 2.239

talentos e 50 minas; e todo este dinheiro era considerado pelos oikonomoi antes do fimdo espetáculo (...). Seu filho Ptolomeu (Il) Filadelfo [era honrado] com duas estátuasdouradas em carruagens de ouro, e com outras sobre colunas, uma de 9 pés, cinco de 7Vz pés e seis de 6 pés" (Athenaeus, Deipnosophistae, Livro V 197C - 203B).

Nas passagens acima, temos a presença importante dos deuses e de Alexandre sobre umaquadriga de elefantes. A referência a Alexandre sobre uma quadriga aparece em uma das primei-ras imagens monetárias de Ptolomeu I, em que Alexandre representa o papel de Dioniso retomandoda Índia. Dois pontos nos chamam a atenção nessas passagens: o primeiro é a ocorrência decarruagens douradas, e o segundo são as estátuas de ouro dedicadas aos elementos da famíliaLágida, inclusive Alexandre. Na ideologia real helenística, os reis, entre outras qualidades apre-

entadas aos súditos, tinham de ser grandes guerreiros, e os seus reinos e a manutenção destesteriam de ser conseguidos 'pela espada'. A arte da guerra tinha de ser uma qualidade inerente atodo soberano - principalmente no período helenístico, em que as guerras entre os diversosreinos eram fatores constantes -, assim como a manutenção da estabilidade interna destes rei-nos. Tanto Alexandre quanto Ptolomeu I eram guerreiros naturais, grandes generais que obtive-ram o direito aos seus reinos por meio da guerra. Ptolomeu 11, ao contrário do seu pai, não eraum líder militar, mas, antes, um grande diplomata, ainda que Ptolomeu 11 tenha enfrentado aGuerra Cremonídea e dado início à primeira das Guerras Siríacas (HÓLBL, 2000).

Richard Hazzard, em sua obra lmagination of a Monarchy: studies in Ptolemaic propagan-da, nos apresenta uma tese interessante sobre a razão de ser da Ptolomaieia. Para ele, essaprocissão nada mais foi do que uma grande propaganda política, inserida em algo maior que eleintitula de Era Soter. Essa Era Soter teria sido uma tentativa de Ptolomeu 11 de promover o seuramo familiar, ao se ligar como herdeiro legítimo de Ptolomeu I, garantindo assim o seu direitoao trono, em detrimento do ramo euridiciano (de Eurídice, uma esposa anterior de Ptolomeu I,antes de ele desposar Berenice, a mãe de Ptolomeu 11). Essa promoção foi estabeleci da com adivinização do casal monárquico já falecido como deuses Soteres (deuses salvadores), isto é,Ptolomeu I e Berenice I. A divinização pode ser vista em uma emissão monetária da época dePtolomeu 11 (por volta de 263 a.c.), em que no anverso se- encontra o busto de Ptolomeu I como diadema e, no reverso, a águia ptolomaica com a inscrição em caracteres gregos "PTOLEMAiOUSOTEROS". Essa emissão permitiu a Filadelfo apresentar o seu ancestral já divinizado, da mes-ma forma que, daquele momento em diante, o distinguiria, pelo menos nos documentos, doantigo Ptolomeu.

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Na imagem n" 1 nós temos um exemplo material dessa ligação entre Ptolomeu II e PtolomeI. Trata-se de uma moeda, um octadracma de ouro, emitida por Ptolomeu II por volta de 26.a.c. No anverso, temos os bustos sobrepostos de Ptolomeu II e Arsinoe II com a inscrição emcaracteres gregos "ADELPHON" acima das faces reais; no reverso, os .bustos sobrepostos dePtolomeu I e Berenice I e a inscrição "THEON". Essa moeda é muito interessante, pois ela f -emitida logo em seguida àquela com a inscrição em caracteres gregos "SOTEROS". EmboraPtolomeu tenha divinizado seus parentes falecidos, Ptolomeu II nunca instituiu um culto con-junto com eles; ao contrário, no título honorífico do sacerdote epônimo consta apenas o nomede Alexandre e os dos deuses Adelfos (Ptolomeu II eArsinoe II divinizados). Os deuses Soterespossuíam um culto à parte, que só viria a ser integrado àquele de Alexandre e dos demaisPtolomeus durante o governo de Ptolomeu IV. Mesmo assim, Ptolomeu fez questão de cunharessa moeda como prova da ligação familiar entre ambos os casais.

Em linhas gerais, a Ptolomaieia pode ser compreendida como uma festa monárquica quecomportava uma procissão (pompé), um sacrifício, um concurso isolímpico e um banquete(PERPILLOU-THOMAS, 1993, p. 154), cujo objetivo era aumentar o prestígio da dinastiajunto aos gregos.

A segunda festa que comentaremos é a Anacletéria, evento ocorrido no Egito helenístico eque marcava a ascensão do monarca ao trono quando era estabelecida sua maioridade. Os úni-cos dois testemunhos de sua realização são uma passagem em Políbio, em que ela seria prepara-da para Ptolomeu V, e o Decreto de Mênfis, de 27 de março de 196 a.C. (mais conhecido comoPedra de Roseta, vide imagem abaixo), em que os sacerdotes egípcios registraram esse aconte-cimento erigindo esse documento redigido e exposto em todos os templos egípcios do país.

Abaixo temos a passagem em que Políbio relata a preparação da Anacletéria:

"Depois que os oficiais da corte tinham estabelecido fazer justiça ao assunto doEtôlios. eles imediatamente começaram a se ocupar com a celebração da Proclamaçãodo rei [Anacletéria). Embora sua idade não fosse, por exemplo, para fazer isto urgente,eles pensaram que isto contribuiria para o estabelecimento dos negócios e ser o come-ço de uma mudança para melhor se o rei fosse considerado ser recentemente investidocom autoridade completa. Tendo feito preparações em uma generosa escala, eles exe-cutaram a cerimônia de certa forma merecedora da dignidade de Sua Majestade,Policraies, como parece, tomou participação na promoção deste esquema (... )"(POLÍBIO, Livro XVIII, 54).

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No Decreto de Mênfis, temos a seguinte passagem:

"O alto sacerdote, os profetas, e aqueles que entram no santuário para o vestir dosdeuses, os pterophoroi, os hierogrammates (escribas sagrados) e todos os outros sa-cerdotes que vindos dos templos do interior para Mênfis para estar com o rei para acelebração da coroação de Ptolomeu, o eterno, amado de Ptah, Epifanes Eucaristos,sucessor de seu pai, e se encontrou no templo em Mênfis neste dia, declarou: desde queo Rei Ptolomeu o eterno, amado de Ptah, Epifanes Eucaristos, nascido do Rei Ptolomeue da RCf:inhaArsinoe, deuses Filopatores, conferiu benefícios de muitos modos aos tem-plos e c:- todos aqueles neles e sobre todos os súditos de seu governo, e sendo um deusnasêido de um deus e uma deusa, (...)" (Orientis Graeci Incriptiones selectae, 90).

Ainda que o testemunho de Políbio não seja muito esclarecedor com relação ao própriocerimonial, ele nos assegura que uma festa de grandes proporções foi realizada para a ascensãode Ptolorneu V ao trono, e nos permite também fazer uma ligação com o testemunho do decreto.E mesmo que o cerimonial em sua versão grega não esteja a nosso alcance, a versão egípcia está.

Algumas considerações são necessárias para que o Decreto sacerdotal de Mênfis pos a ercompreendido aqui como um documento inserido dentro de um contexto histórico muito e pe-cífico. Como mencionado mais acima, ele foi escrito em 217 a.C. e expõe a decisão tomada emum conselho sinodal realizado na cidade egípcia de Mênfis, primeira capital real do Egito eainda muito importante na época ptolomaica. O texto descreve em minúcias os de ere realiza-dos pelo rei ptolomaico (no documento ele é apresentado em seu papel faraônico de mantenedorda ordem), além das honras conferidas pelos sacerdotes ao rei e a sua família, incluindo osfazeres diários para com a estátua do rei e de seus parentes:

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"Os sacerdotes de todos os templos através do reino resolveram aumentargrandemente as {honras] existentes {nos templos] para o Rei Ptolomeu o eterno, ama-do de Ptah, Epifanes Eucaristos, e também para aqueles seus parentes os deusesFilopatores, e para aqueles seus antepassados os deuses Euergetes {e aqueles] para osdeuses Filadelfos, e para os deuses Soteres. Uma estátua do Rei Ptolomeu o eterno,Epifanes Eucaristos, precisa ser instalada em cada templo nos mais diferentes locais,para ser chamada [a estátua] de Ptolomeu o vingador do Egito, próximo da qual per-manecerá o deus principal de cada templo lhe apresentando uma arma da vitória, queserá preparada no estilo [egípcio], e os sacerdotes venerarão as estátuas três vezes aodia e colocará sobre eles a vestimenta sacra, (...)"

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É muito i;;'portante ter em mente que, quando este documento foi redigido, PtolomeuV tinha pouco mais de 14 anos de idade e a sua maioridade havia sido adiantada paraque ele pudesse assumir o trono e, assim, colocar fim à desordem política que vigoravano Egito nessa época. O contexto histórico do documento é muito relevante para com-preendermos a razão da sua existência. É nessa época (final do terceiro século e iníciodo segundo) que o Egito e o governo ptolomaico passavam por um momento de agita-ção política e social, tanto externa quanto internamente. No contexto externo, AntíocoIII avançava sobre as possessões ptolomaicas na Ásia Menor e na CoeI e Sír ia", e nocontexto interno, o governo mudava de mãos desde a morte de Ptolomeu IV, e o interiordo país, mais precisamente a região da Tebaida ', sofria mudanças e agitações políticas esociais.

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O Decreto sacerdotal de Mênfis, da mesma forma que os outros antes dele, indica umamudança em relação ao povo nativo do Egito. Se, antes, eles eram quase ignorados pelo gover-no de A\exandria, a partir dele observamos uma mudança de atitude com relação aos egípcio _Mudança política, social e visual. A inclusão de elementos da população nativa na administra-ção do reino e no efetivo militar é cada vez maior. A necessidade de suporte nativo faz com queum processo de egipcianização da dinastia ocorra cada vez mais rápido, embora haja estudiosoque discordem desse processo, afirmando que esta egipcianização nada mais é do que merapropaganda em favor dos nativos (JOHNSON, 1995). Isso é perceptível nos retratos reaisptolomaicos, principalmente os de Ptolomeu V, em que estátuas em estilo egípcio passam a teruma face grega com corpo e adornos egípcios, e os bustos numismáticos contêm cada vez maiselementos egípcios, como, por exemplo, um retrato monetário de Arsinoe II com o chifre deAmon, ou um camafeu com os bustos de Ptolomeu II e Arsinoe II (hoje no KunsthistorischesMuseum - Viena), em que se nota a referência à cobra egípcia uraeus (protetora da realeza) e aAmon.

Tanto a Ptolomaieia quanto a Anacletéria são manifestações festivas do desejo político do-monarcas ptolomaicos de legitimar a sua dinastia promovendo a memória de si mesmo e de seusancestrais, do mesmo modo que serviam como instrumentos de manutenção do poder sobre um

país de maioria não grega e sobre os seus súditos gregos em períodos de agitação política esocial.

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NOTAS

I Mestrando em Arqueologia Clássica sob a orientação da prof" Dra Maria Beatriz BorbaFlorenzano - Bolsista CAPES.

1A região da Coele-Síria corresponde hoje aos territórios do Líbano até a fronteira de Israel como Egito. No período helenístico, foi uma região que manteve uma posição estratégica muitovalorizada, pois servia de boI são contra ataques estrangeiros, além de ser uma importante rotacomercial para outra~ regiões. A Coele-Síria foi alvo de constantes disputas entre o reinoptolomaico e o selêucida pelo seu controle.~3 A região da Tebaid; corresponde ao Alto Egito e às regiões circunvizinhas da cidade de Tebas,fazendo fronteira com a região núbia ao sul. O seu controle permitia ao governo manter umaconstante rota de ouro, elefantes africanos, entre outras mercadorias. De 206 a.C. a 186 a.c., aregião foi mantida sob o governo de dois faraós rebeldes, Haronnophris e Chaonnophris, em umperíodo de grande turbulência social, econômica e política. A derrota dos dois faraós rebeldessob a investida de Ptolomeu V é testemunhada nos dois Decretos de Filae (HÓLBL, 2000).

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