Movimentos sociais: aspectos históricos e conceituais

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Educação e movimentos sociais BOLETIM 03 ABRIL 2005

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Educação e movimentos

sociais

BOLETIM 03

ABRIL 2005

Educação e movimentos

sociais

BOLETIM 03 ABRIL 2005

SUMÁRIOSUMÁRIO

PROPOSTA PEDAGÓGICA

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS .................................................................................................................... 03Paulo Afonso Barbosa de Brito

PGM 1

MOVIMENTOS SOCIAIS POPULARES ....................................................................................................................... 14Movimentos sociais: aspectos históricos e conceituaisPaulo Afonso Barbosa de Brito

PGM 2

ASSOCIATIVISMO COMUNITÁRIO E LUTAS URBANAS ...................................................................................... 22 Relação estado e sociedade civil na construção dos Direitos HumanosFrancisco Mesquita de Oliveira

PGM 3

IDENTIDADES E SOLIDARIEDADES ......................................................................................................................... 27 Educação popular e movimentos de mulheresCarmen Silvia Maria da Silva

PGM 4

CULTURAS JUVENIS .................................................................................................................................................... 33 Movimentos juvenis: mudanças e esperanças Nerize Laurentino Ramos Paulo Afondo Barbosa de Brito

PGM 5

REDES E FÓRUNS SOCIAIS ......................................................................................................................................... 40 O Movimento das Redes e as Redes de Movimentos Carmen Silvia Maria da Silva Luciene Mesquita (Mana)

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 2

PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICA

Educação e movimentos sociais

Paulo Afonso Barbosa de Brito 1

Os Movimentos Sociais Populares emergiram no contexto social e político brasileiro com uma

fantástica capacidade criativa, organizativa e mobilizadora, principalmente na década de 80, sendo

responsáveis por expressivas conquistas que garantem melhorias na qualidade de vida de amplos

setores sociais, afirmação de direitos e exercício da cidadania para um número cada vez maior de

agrupamentos humanos, construção de identidades coletivas e auto-estima pessoal e social de

setores e grupos historicamente discriminados ou oprimidos, intervenção nas políticas públicas,

modificando ou inibindo as seculares práticas assistencialistas e clientelistas, contribuindo assim

para mudanças em nível do poder local e da política tradicional. Tais conquistas são permeadas por

processos educativos, tanto dos participantes diretos de tais movimentos, quanto das pessoas e

grupos atingidos por sua ação e da sociedade envolvente.

Portanto, estamos considerando movimentos sociais os agrupamentos de pessoas, geralmente das

classes populares ou de grupos minoritários (no sentido de destituídos de poder) e discriminados,

que agem coletivamente, com algum método, realizam parcerias e alianças, abrem diálogos e

negociações com interlocutores, como processos articulados para conquistas de direitos e exercício

da cidadania. Os movimentos sociais multiplicaram-se no Brasil durante a década de 80 e,

principalmente, nos anos 90, percebendo-se, no país, progressiva ampliação e diversificação de

organizações populares, com diversos modelos organizativos, formas de mobilização, bandeiras de

luta, relações com mediadores e interlocutores, processos de formação das lideranças populares.

Neste período se consolidam muitos grupos e entidades locais, mas também expressões locais de

movimentos nacionais, principalmente aqueles que lutam mais diretamente em torno de questões

centrais da sobrevivência das pessoas, como: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST); o Associativismo Comunitário nas suas mais diversas formas de expressão; diversos

movimentos de luta por moradia popular e de defesa dos favelados; movimentos com forte caráter

identitário, como os de mulheres, de negros, de portadores de deficiência, de homossexuais;

Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); vários movimentos de defesa e de organização de

crianças e adolescentes.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 3

Consolidaram-se também, neste período, vários movimentos e organismos de inspiração religiosa,

pastorais sociais, bem como os Centros de Educação Popular e as Organizações Não-

Governamentais (ONGs).

Esta rápida apresentação – quase em forma telegráfica – do que existe atualmente de movimentos

organizados no país quer valorizar o conjunto dos movimentos e organizações existentes e evitar os

riscos de separação entre os movimentos de reivindicação e os movimentos identitários, ou entre os

da sobrevivência e os da cidadania. Estamos optando por uma apresentação didática sucinta, uma

vez que não concordamos com a dicotomia criada entre identidade e estratégia, ou entre existência e

cidadania. Consideramos que há um continuum ou uma articulação entre estas dimensões. Neste

sentido, consideramos importante a ação de tais movimentos, que vai desde a indicação de

representantes para a participação nos Conselhos setoriais de proposição e gestão de políticas

públicas, nas Conferências de definição de políticas, nas passeatas e nas ocupações de terras rurais e

urbanas, até as campanhas de amamentação, de uso do “soro caseiro”, da fabricação comunitária de

complemento alimentar de alto teor nutricional, ou outras pequenas iniciativas populares capazes de

ter incidência na diminuição da mortalidade infantil. Ou seja, uma série de distintas iniciativas que

dialogam de forma diferenciada, mas complementar, com resultados para melhorar a qualidade de

vida das pessoas e o seu modo de vida.

O importante neste momento é registrar que estas expressões organizativas mobilizam grupos

específicos, levantam bandeiras bem definidas, apresentam formas diversas de mobilização,

conseguindo consistência cada vez maior, construindo teias de articulação às vezes invisíveis e

redes de comunicação e solidariedade responsáveis por importantes conquistas. Entre estas

podemos destacar:

- Melhorias nas condições de existência e mesmo garantia de sobrevivência de expressivos

grupos populares no país – muitas pessoas têm acesso à terra para trabalhar, à casa para morar, à

água para beber e para a higiene doméstica, a serviços públicos de saúde, de educação, de

atendimento à criança, ao adolescente, aos idosos, aos portadores de deficiência, porque elas se

mobilizaram através de seus movimentos organizados;

- Auto-estima pessoal e solidariedade social – muita gente confirma que passou a se valorizar

mais, a se amar mais, a defender sua dignidade humana, a partir de sua participação em alguma

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 4

forma de organização popular. Mulheres desrespeitadas ou violentadas, negros que eram

desprezados e desvalorizados, portadores de deficiência física que eram discriminados, todos

passam a intervir na cena pública e a experimentar novos valores humanos e solidários;

- Consciência de direitos e exercício da cidadania – vítimas de uma herança profundamente

paternalista e assistencialista, os setores populares no país experimentam diversas formas de

controle e dominação. A existência de diversos movimentos sociais tem conseguido romper este

círculo, contribuindo para que o atendimento de necessidades sociais básicas seja percebido como

direito antes negado e agora reconquistado pela própria luta popular;

- Mudanças no poder local e deslocamentos na política tradicional – o avanço na capacidade de

intervenção dos movimentos tem provocado importantes e visíveis mudanças locais, como a

participação em Conselhos de Gestão em políticas públicas, eleição de parlamentares oriundos de

processos reivindicatórios e que se formaram na luta popular e constituição de grupos de produção

ou grupos de “economia solidária”. Tais campos ou situações, historicamente, eram altamente

controlados pelas elites locais, e atualmente passam a incorporar novos atores e a abrir novos

campos de batalha.

2. Objetivos da série

• Discutir possibilidades e experiências educativas fora do sistema formal de ensino, sobretudo as

vivenciadas através dos movimentos sociais populares;

• Aprofundar o debate atualizado sobre o papel dos movimentos sociais, seus modelos

organizativos, suas bandeiras de luta, sua constituição enquanto sujeitos sociais, sua dimensão

educativa e emancipatória;

• Debater as diversas expressões dos movimentos sociais, destacando o que diferencia e o que

unifica esses movimentos;

• Relacionar a ação dos movimentos sociais e do conjunto da sociedade civil, com um projeto

político e pedagógico da educação brasileira;

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 5

• Destacar as experiências de constituição de Redes e Fóruns sociais e educativos, como

perspectivas de viabilizar projetos estratégicos para a sociedade brasileira contemporânea.

3. Fundamentação teórica

A prática e a temática dos movimentos sociais se incorporam como objetos de estudo das ciências

humanas e sociais, projetando-se, em seguida, como um novo paradigma, devido à grande

importância prática e analítica que tais objetos de estudo atingiram, tanto na sua concepção

empírico-analítica, quanto na sua dimensão de categoria teórica. Daí a grande atração que a

problemática provoca para as principais escolas teóricas das ciências humanas e sociais

contemporâneas.

Os principais estudiosos dos movimentos sociais no Brasil gravitam entre as correntes teóricas

neomarxistas e a corrente teórica culturalista-acionalista. Esta última foi gradativamente se

consolidando como teoria dos novos movimentos sociais 2 .

Nossa perspectiva teórica assume um distanciamento dos esquemas utilitaristas e das teorias

baseadas na lógica racional. E, ao fazer o diálogo com a teoria dos novos movimentos sociais,

assumimos esquemas interpretativos que enfatizam o cotidiano, a cultura, a ideologia, as lutas

sociais, a solidariedade entre pessoas e grupos, os processos de construção de identidades coletivas

e de vivências de subjetividades. Mas enfatizamos, sobretudo, a centralidade da ação social como

ação política, portanto, como construção de força social-política, que tem um valor em si mesma

através do vínculo social, e um valor universal, contribuindo para os processos de consolidação da

democracia participativa.

A experiência brasileira, tanto na peculiaridade dos movimentos sociais, que têm em seu interior

forte hegemonia da parcela conhecida como movimentos populares, quanto no “ineditismo” de

experiência da democracia participativa 3 , reforça tal opção teórica e metodológica.

Nesta opção interpretativa, consideramos importante retomar o conceito de movimentos sociais, tal

qual assumido por Eder Sader, um dos seus principais estudiosos no Brasil, herdeiro de certa

tradição emancipacionista marxista. Tal conceito inova ao romper com esquemas rigidamente

predeterminados, priorizando dimensões mais da ação que de estruturas, mais de movimento que de

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 6

classe estruturalmente dada, mais de simbólico-cotidiano que de racionalidade proletária. Eder

Sader enfatiza “(...) que não se pode deduzir orientações e comportamentos de ‘condições objetivas

dadas', tais deduções pressupõem uma noção de ‘necessidades objetivas' que moveriam os atores

sem as mediações simbólicas que as instituem enquanto necessidades sociais. Quem pretender

captar a dinâmica dos movimentos sociais, explicando-os pelas condições objetivas que os

envolvem e poupando-se de uma análise específica de seus imaginários próprios, irá perder aquilo

que os singulariza” 4 (Sader, 1988, p. 42).

Para uma teorização dos movimentos sociais, Alberto Melucci propõe um roteiro com cinco pontos

centrais:

1º) A construção da ação coletiva, em que enfatiza que o agir coletivo não é o resultado de forças

naturais ou de leis necessárias da História, nem simplesmente produto de crenças e de representação

de atores; é um objeto construído pela vontade consciente;

2º) Aponta cinco princípios de análise dos movimentos sociais: a) Um movimento social não é uma

resposta a uma crise, mas uma expressão de conflito; b) Um movimento social é uma ação coletiva

cuja orientação comporta solidariedade, manifesta um conflito e implica a ruptura dos limites de

compatibilidade do sistema ao qual a ação se refere; c) O campo analítico da ação de um

movimento social depende do sistema de relações no qual tal ação coletiva se situa e à qual ele se

refere; d) Todo movimento concreto contém sempre uma pluralidade de significados analíticos; e)

Cada movimento é um sistema de ação coletiva, com oportunidades e vínculos;

3º) Como nasce um conflito antagonista;

4º) Integração e mudança – o potencial de conflito e de antagonismos não elimina a construção de

diálogos e consensos;

5º) A ação invisível aqui aponta uma aproximação com a Teoria da Mobilização de recursos, mas

não se confunde com a mesma.

Este é um roteiro-proposta para teorizar os movimentos sociais numa sociedade complexa, ou, para

quem preferir outras adjetivações, pode ser sociedade pós-industrial, destacando os conflitos e os

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 7

movimentos contemporâneos, como os juvenis, ecológicos, feministas, pacifistas 5 (Melucci, 2001).

Embora o modelo analítico proposto por Melucci apresente um arcabouço teórico consistente, o

mesmo salienta que este modelo refere-se às sociedades complexas, na realidade de países como os

da América Latina, onde movimentos relevantes ainda se situam na reivindicação por terra,

moradia, saúde, direitos humanos fundamentais. Certamente que o diálogo com a teoria dos

movimentos sociais precisa ser relacionado com tudo o que se tem elaborado em torno da

construção de redes sociais.

No sentido das Redes sociais, Ilse Scherer-Warren define rede como “uma articulação de diversas

unidades que, através de certas ligações, trocam elementos entre si, fortalecendo-se reciprocamente,

e que podem se multiplicar em novas unidades, as quais, por sua vez, fortalecem todo o conjunto,

na medida em que são fortalecidas por ele” 6 (Scherer-Warren, 1999). Esta autora resgata ainda a

contribuição de Castells em torno das redes sociais e suas características de intensividade,

extensividade, diversidade, integralidade e realimentação. “Está aí embutida a idéia de que a rede

poderá assumir um caráter propositivo, tendo em vista o seu efeito multiplicador e conseqüente

mecanismo de difusão simbólica de novos valores e de empoderamento dos movimentos. Portanto,

a rede desempenha, segundo esta ótica, um papel estratégico, enquanto elemento organizador,

articulador, informativo e de empoderamento do movimento no seio da sociedade civil e para

relação com outros poderes instituídos” 9 (Scherer-Warren, 2001).

Outra referência mais tradicional, mas que certamente oferece uma grande contribuição ao debate

atual sobre as conseqüências da ação dos movimentos sociais e, portanto, também ao atual debate

sobre redes, pode ser encontrada nos estudos de Antonio Gramsci, através dos conceitos de luta

ideológica, hegemonia, bloco histórico, guerra de posição e guerra de movimento, vontade coletiva,

unidade intelectual e moral... Como tal referência enfatiza a ação política como ato criador, criativo,

inovador, provoca inovações, ou resgata primitivas elaborações no interior do marxismo,

fornecendo consistência para o debate que estamos travando. Pois, ao valorizar a ação, Gramsci não

menospreza o papel das estruturas, uma vez que “(...) a ação nasce no terreno permanente e

orgânico da vida econômica, mas supera-o, fazendo entrar em jogo sentimentos e aspirações em

cuja atmosfera incandescente o próprio cálculo da vida humana individual obedece a leis diversas

do proveito pessoal”. Nesta mesma linha, retoma o papel da identidade, mas articulando-a com o de

organização: “(...) uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins heterogêneos, se

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 8

solidificam na busca de um mesmo fim, sobre a base de uma idêntica e comum concepção de

mundo. (...) As idéias e as opiniões não nascem espontaneamente no cérebro de cada indivíduo;

tiveram um grupo de homens ou inclusive uma individualidade que as elaborou e apresentam sobre

forma política de atualidade” 8 (Gramsci, 1978, p. 14-34).

Tal perspectiva analítica parece muito importante para os debates dessa série, pois concentra a

reflexão em torno das disputas de hegemonia, através do processo de consolidação da práxis social.

Ainda no debate em torno da ação da sociedade civil, na relação com o trabalho das redes, podemos

destacar as contribuições de Jean Cohen e Andrew Arato, ao conceber a sociedade civil como rede

de associações autônomas, com interesses comuns, que deve exercer o controle sobre o Estado,

utilizando meios institucionais ou informais. Nesta perspectiva, apontam ainda como composição

da sociedade civil os seguintes elementos: a) Pluralidade – famílias, grupos informais, associações

voluntárias; b) Pluralidade – instituições de cultura e comunicação; c) Privacidade – domínio e

autodesenvolvimento de escolha moral; d) Legalidade – leis gerais e direitos básicos 8 (Oliveira,

2003).

Temas que serão abordados na série Educação e movimentos sociais , que será apresentada no

programa Salto para o Futuro/TV Escola de 10 a 15 de abril de 2005:

PGM 1 - Movimentos sociais populares

Este programa vai apresentar uma introdução inicial aos movimentos sociais populares, destacando

alguns conceitos fundamentais. Neste sentido, serão discutidos: a composição social dos

movimentos sociais populares, suas bandeiras de luta e reivindicações, suas estratégias e seus

objetivos, seus modelos organizativos, e ainda: os métodos de ação, os diversos tipos de

movimentos, as alianças e os interlocutores, a cultura política e as práticas educativas que os

movimentos sociais populares desenvolvem ou fortalecem.

PGM 2 - Associativismo comunitário e lutas urbanas

A conquista de direitos e o exercício da cidadania

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 9

Este programa tem como proposta apresentar experiências significativas de organizações e lutas

comunitárias, para conquista de direitos fundamentais dos menos favorecidos e dos trabalhadores,

destacando as ações de Associações de Moradores, de Movimentos de Luta por Moradia Popular, de

Defesa dos Favelados, de saúde para as classes populares, de mutuários do Sistema Financeiro de

Habitação, de Mutirões Habitacionais. Neste sentido, deve ser destacada a passagem entre uma

situação de necessidade para uma situação de conquista de direitos, como a conquista de casa,

escola, transporte, coleta de lixo, energia elétrica, equipamentos de uso e consumo coletivo. Tudo

isto foi possível porque o povo se organizou e se mobilizou, portanto os direitos são conquistados

ou construídos a partir da mobilização popular, e este processo se converte num exercício

democrático da cidadania. Devem ser destacados, também, os processos de aprendizagem que vão

se tornando possíveis no processo de mobilização: como entusiasmar as bases para a participação,

como se formam as lideranças, como se cria uma nova prática educativa e política.

PGM 3 - Identidades e solidariedades

Gestos e impactos sociais

Este programa deverá discutir as questões dos movimentos que se formam a partir de identidades

coletivas, de enfrentamentos de discriminações e opressões específicas, ou a partir de valores éticos

de defesa da vida. Neste sentido, deverão ser destacados os movimentos de mulheres, de negros, de

portadores de necessidades especiais, de meninos e meninas de rua, de homossexuais, de ajuda

humanitária, de presença fraterna e solidária junto a grupos empobrecidos. Este programa deverá

destacar, portanto, as experiências organizativas em que as pessoas se sentem bem-vindas, amadas e

respeitadas nos grupos de que participam, condição para a elevação da auto-estima pessoal e

coletiva, experiências de solidariedade que estão ajudando as pessoas a viverem melhor, a se

libertarem dos preconceitos e das discriminações. Deverão ser evidenciadas as aprendizagens e

práticas educativas que conduzem à elevação da auto-estima, a novas relações de gênero e etnia,

bem como os impactos sociais advindos dessas práticas, como a diminuição da mortalidade infantil

e materna, os projetos de segurança alimentar.

PGM 4: Culturas juvenis

Valores sociais e novas expressões comunicativas

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 10

Este programa tem como objetivo discutir as expressões juvenis e culturais presentes nas periferias

urbanas, como elas se relacionam com a tradição das lutas juvenis do Brasil e o que trazem de

inovador e criativo para as juventudes contemporâneas, buscando destacar porque tais expressões

têm demonstrado capacidade de seduzir e entusiasmar os jovens, criando formas de comunicação

entre si e com o conjunto da sociedade. Deverá abordar, também, como estas expressões culturais e

comunicativas proporcionam uma dimensão educativa para os seus participantes, para os setores

sociais e políticos que se relacionam com as juventudes, portanto, que conseqüências podem

oferecer para a proposição e realização de políticas públicas de/com e para as juventudes.

PGM 5: Redes e fóruns sociais

Alternativas de sobrevivência e de projetos estratégicos para sociedade brasileira

Este programa vai discutir como os movimentos sociais e suas articulações em Fóruns e Redes

estão conseguindo construir estratégias de sobrevivência e de elevação da qualidade de vida para

amplos setores e grupos sociais, criando formas de relações horizontais que fortalecem os próprios

movimentos e a sociedade civil e, a partir daí, propondo novos processos democráticos e novos

modelos de desenvolvimento. Deverá debater, também, os processos educativos desenvolvidos a

partir das práticas sociais e econômicas, que tornam os participantes dos movimentos sociais, de

suas redes e fóruns mais capacitados para proposição de modelos organizativos e produtivos para

suas próprias organizações e para a sociedade brasileira.

Bibliografia

BRITO, Paulo A. B . Movimentos populares; possibilidades e limites de um novo sujeito histórico. Dissertação de Mestrado. Campina Grande, PB: 1990.

COSTA, Sérgio. As cores de Ercília: Esfera pública, democracia, configurações pós-nacionais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

DAGNINO, Evelina. Anos 90: política e sociedade no Brasil (Os Movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania). São Paulo: Brasiliense, 1994.

GENRO, Tasso Fernando. O futuro por armar: democracia e socialismo na era globalitária. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

GONH, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais – Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 11

GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre factividade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

JACOBI, Pedro. Movimentos sociais e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1993.

LYRA, Rubens Pinto. Textos de teoria política. João Pessoa, PB: UFPB/ FUNAPE, 1989.

MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001.

OLIVEIRA, Francisco Mesquita. Cidadania e cultura política no poder local: o Conselho de Administração Participativa de Camaragibe – PE. Dissertação de Mestrado de Ciência Política na UFPE. Texto mimeografado. Recife, 2003.

SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970 – 1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SCHERER-WARREN, Ilse. Cidadania sem fronteiras – ações coletivas na era da globalização. São Paulo: Hucitec, 1999.

SCHERER-WARREN, Ilse. Movimentos sociais: um ensaio de interpretação sociológica. Florianópolis, Editora da UFSC.

Notas

1 Sociólogo e educador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares – EQUIP, Recife- PE. Consultor dessa série.

2 Maria Glória Gonh, embora reconheça que estes dois blocos não possam ser separados com uma delimitação muito precisa, nem que eles sejam homogêneos internamente, reconhece traços identificadores de um e outro bloco. Gonh cita como representantes da corrente neomarxista os historiadores Hobsbawm, Rude e Thompson; além dos teóricos ligados à corrente histórico-estrutural representada por Castells, Borja e Lojkine. E, na corrente dos novos movimentos sociais, destaca três linhas: a histórico-política, de Clauss Offe; a psicossocial de Alberto Melucci, Laclau e Mouffe; a acionalista de Alain Touraine (Gonh, 1997, p. 119).

3 Os argumentos em torno do “ineditismo da experiência brasileira” são apresentados por Rubens Pinto Lira, em: Textos de teoria política. João Pessoa, PB: UFPB/FUNAPE, 1989.

4 Eder Sader analisa quatro importantes movimentos sociais presentes na Região Metropolitana de São Paulo durante a década de 70: Movimento de Saúde da Zona Leste, Movimento sindical dos metalúrgicos do ABC, Movimento de creches da grande São Paulo. Sistematiza tais estudos no livro: Quando novos personagens entram em cena: falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970 – 1980 . Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988.

5 Roteiro apresentado no livro: A invenção do presente: Movimentos sociais nas sociedades complexas . Petrópolis: Ed Vozes, 2001.

6 Ver Ilse Scherer-Warren, em Cidadania sem fronteiras – ações coletivas na era da globalização . São Paulo: Ed. Hucitec,1999.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 12

7 Ibidem.

8 Ver Antonio Gramsci, em Maquiavel, a política e o Estado Moderno . Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1978.

9 Síntese citada por Francisco Mesquita de Oliveira, em dissertação de mestrado em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE, 2003 .

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 13

PROGRAMA 1PROGRAMA 1

MOVIMENTOS SOCIAIS POPULARES

Movimentos Sociais: aspectos históricos e conceituais

Paulo Afonso Barbosa de Brito1

1. Um rápido olhar sobre o passado

A história brasileira é profundamente marcada pela efervescência dos Movimentos Sociais, embora

só muito recentemente estes tenham aparecido com o lugar de destaque nas publicações e registros

da história oficial. Faz-se necessário resgatar a dívida social e histórica que a nação tem com os

empobrecidos e trabalhadores, enquanto se organizam e lutam por direitos, tanto para

reconhecimento de sua participação na constituição da própria nação, quanto para o reconhecimento

da pluralidade de sujeitos sociais presentes na dinâmica política nacional.

Só para partir de um marco de referência consistente, reconhecido por todos os estudiosos da

história brasileira, registremos a existência dos Quilombos, uma vez que eles enfrentaram uma das

dimensões mais perversas de nossa história, a existência de escravidão humana, de pessoas serem

tidas apenas como mercadoria e trabalho, mas também registraram, com suas experiências,

importantes lições de dedicação e luta pela emancipação social, política, econômica, cultural.

Os Quilombos foram, justamente expressões marcantes destas lutas, a organização de negros

escravizados, que criavam vários mecanismos para fugirem dos engenhos onde viviam e

trabalhavam, para construírem comunidades livres, atraindo também brancos pobres, indígenas,

caboclos, motivados pela perspectiva de uma vida livre. Nestas comunidades, experimentavam uma

organização da produção em certos casos muito desenvolvida, com técnicas agrícolas avançadas,

artesanato, metalurgia, uma nova organização política, qualitativamente diferente da Colônia de

Portugal, uma dinâmica social com princípios de liberdade e igualdade. Centenas de Quilombos se

espalharam por todo o país durante os anos de Colônia e Império. O mais importante deles foi o

Quilombo dos Palmares, situado em uma extensa faixa de terras entre os estados de Pernambuco e

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 14

Alagoas, uma experiência que durou quase um século, e que foi destruído pelos governos e

senhores de terras, através de uma das mais sangrentas guerras patrocinadas no período colonial

brasileiro.

Outro movimento social, inspirado em valores liberais (de forte influência na Europa naquele

período), mas formado, em grande parte, por setores minoritários das elites, como religiosos,

advogados, poetas, foi o abolicionismo, que também teve papel importante para que a nação

superasse esta terrível fase de sua história.

Entre o final do período Imperial e os primeiros anos da República, realizaram-se os chamados

“Movimentos Messiânicos”, que eram movimentos em geral conduzidos por líderes religiosos, mas

com forte apelo político, formados fundamentalmente por camponeses pobres, que tentaram as

primeiras experiências de reforma agrária no Brasil. Entre estes, podemos destacar a experiência do

Contestado no Paraná, de Canudos na Bahia, de Caldeirão no Ceará. Todas experiências

brutalmente destruídas pelo poder da República, através de guerras sangrentas com verdadeiros

genocídios tendo sido praticados.

Durante todo o século XX, possivelmente, o movimento sindical se expressou como a principal

forma de organização entre os movimentos sociais, tendo assumido diferentes influências, como a

dos anarquistas no início do século, dos trabalhistas e dos comunistas entre a década de 30 e o

Golpe Militar de 1964, do novo sindicalismo (que veio a se consolidar na construção de Central

Única dos Trabalhadores – CUT), a partir da década de 80.

Para esse texto, que visa oferecer subsídios para os debates do programa 1 desta série de programas,

concentraremos nossa análise nos chamados novos movimentos sociais, que tiveram os primeiros

ensaios nas décadas de 60 e 70, mas puderam se expressar com maior dinamicidade e mobilidade a

partir da década de 80.

2. A atualidade dos Movimentos Sociais Populares

Principalmente na década de 80, os Movimentos Sociais Populares emergiram no contexto social e

político brasileiro com uma fantástica capacidade criativa, organizativa e mobilizadora, sendo

responsáveis por expressivas conquistas que garantem melhorias na qualidade de vida de amplos

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 15

setores sociais, afirmação de direitos e exercício da cidadania para um número cada vez maior de

agrupamentos humanos, construção de identidades coletivas e auto-estima pessoal e social de

setores e grupos historicamente discriminados ou oprimidos, intervenção nas políticas públicas,

modificando ou inibindo as seculares práticas assistencialistas e clientelistas, contribuindo assim

para mudanças em nível do poder local e da política tradicional. Tais conquistas são permeadas por

processos educativos, tanto dos participantes diretos de tais movimentos, quanto das pessoas e

grupos atingidos por sua ação, e da sociedade envolvente.

Portanto, estamos considerando movimentos sociais os agrupamentos de pessoas, geralmente das

classes populares ou de grupos minoritários (no sentido de destituídos de poder) e discriminados,

que agem coletivamente, com algum método, realizam parcerias e alianças, abrem diálogos e

negociações com interlocutores, como processos articulados para conquistas de direitos e exercício

da cidadania. Multiplicaram-se no Brasil durante a década de 80 e principalmente nos anos 90,

percebendo-se, no país, progressiva ampliação e diversificação de organizações populares, com

diversos modelos organizativos, formas de mobilização, bandeiras de luta, relações com mediadores

e interlocutores, processos de formação das lideranças populares.

Apesar de reconhecermos os riscos de qualquer tipologia, para efeito didático, apresentaremos a

seguir alguns agrupamentos dos principais movimentos sociais em atividades no país, reconhecendo

que esta é apenas uma aproximação metodológica e organizativa, não uma delimitação de fronteiras

rígidas entre os diversos tipos de movimentos existentes. Assim podemos destacar:

• Associativismo Comunitário – várias redes de Associações Comunitárias ou de Moradores,

Conselhos Populares, Sociedades de Amigos de Bairro, Associações Beneficentes,

Comunidades de Base, espalhadas pela maioria dos municípios brasileiros;

• Movimentos Criados em torno de Necessidades Coletivas – os que têm demonstrado maior

capacidade mobilizadora e organizativa no país, destacando-se os Movimentos de Luta pela

Moradia, os Movimentos Populares de Saúde, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

(MST), responsáveis por importantes conquistas para as classes populares;

• Movimentos Criados em torno de Identidades Coletivas, ou para o enfrentamento de

discriminações específicas – como os de mulheres, de negros, de portadores de necessidades

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 16

especiais, de orientação sexual diferenciada, de idosos, que têm sido responsáveis pela

mudança de valores e comportamentos na sociedade brasileira;

• Movimentos Indígenas – que têm garantido a sobrevivência e a cultura dos primeiros

habitantes das terras brasileiras;

• Movimentos nascidos em torno de valores humanos e solidários de seus membros – como a

Pastoral da Criança, a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida (que não se

reconhece como um movimento, mas como uma ação articulada), e que têm tido uma

incidência extraordinária para melhorar a vida das pessoas;

• Movimentos de Juventude e de Crianças e Adolescentes – desde os tradicionais, como o

Movimento Estudantil e as Pastorais Juvenis, até os novos movimentos e expressões juvenis

das periferias urbanas, fortemente marcados pelas iniciativas culturais e comunitárias;

• Movimentos ligados ao mundo do trabalho, à produção e distribuição de renda – diversos

grupos que se articulam em torno da chamada “Economia Popular e Solidária”.

Consolidaram-se também, neste período, vários movimentos e organismos de inspiração religiosa,

pastorais sociais, bem como os Centros de Educação Popular e as Organizações Não-

Governamentais (ONGs). Nos últimos anos, tem crescido a articulação destes Movimentos,

Entidades, Pastorais, ONGs em torno de Redes, Fóruns e outras expressões de comunicação

permanente, com destaque para o Fórum Social Mundial, e os diversos Fóruns Sociais nascidos em

sua conseqüência.

Esta rápida apresentação, quase em forma telegráfica, do que existe atualmente de movimentos

organizados no país, quer valorizar o conjunto dos movimentos e organizações existentes, e evitar o

risco de separação entre os movimentos de reivindicação e os movimentos identitários, ou entre os

da sobrevivência e os da cidadania. Estamos optando por uma apresentação didática sucinta, pois

não concordamos com a dicotomia criada entre identidade e estratégia, ou entre existência e

cidadania. Consideramos que há um continuum ou uma articulação entre estas dimensões. Neste

sentido, consideramos importante a ação de tais movimentos, que vai desde a indicação de

representantes para participação nos Conselhos setoriais de proposição e gestão de políticas

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 17

públicas, nas Conferências de definição de políticas, as passeatas e ocupações de terras rurais e

urbanas, até as campanhas de amamentação, de uso do “soro caseiro”, da fabricação comunitária de

complemento alimentar de alto teor nutricional, ou outras pequenas iniciativas populares capazes de

ter incidência na diminuição da mortalidade infantil, ou seja, uma série de distintas iniciativas que

dialogam de forma diferenciada, mas complementar, com resultados para melhorar a qualidade de

vida das pessoas e o seu modo de vida.

O importante neste momento é registrar que, embora estas expressões organizativas mobilizem, a

cada vez, grupos específicos, levantem, a cada vez, bandeiras bem definidas, apresentem, a cada

vez, formas diversas de mobilização, elas têm conseguido consistência cada vez maior, construindo

teias de articulação às vezes invisíveis e redes de comunicação e solidariedade responsáveis por

importantes conquistas. Entre estas podemos destacar:

• Melhorias nas condições de existência e mesmo garantia de sobrevivência de expressivos

grupos populares no país. Muita gente tem acesso à terra para trabalhar, à casa para morar, à

água para beber e para a higiene doméstica, a serviços públicos de saúde, de educação, de

atendimento à criança, aos adolescente, aos idosos, aos portadores de deficiência, porque o

povo se mobilizou através de seus movimentos organizados;

• Auto-estima pessoal e solidariedade social – pessoas que passaram a se valorizar mais, a se

amar mais, a defender sua dignidade humana, a partir de sua participação em alguma forma

de organização popular;

• Consciência de direitos e exercício da cidadania – as descobertas tratadas no item anterior

contribuem para muitos grupos populares romperem os círculos de dominação, em que os

direitos são recebidos como dádivas do político de plantão, para perceber que o atendimento

de necessidades sociais básicas é um direito antes negado e agora reconquistado pela própria

luta popular;

• Mudanças no poder local e deslocamentos na política tradicional, como sinal do avanço do

exercício da cidadania e a afirmação de novos instrumentos de ação pública, reconhecidos

como democracia participativa – a participação em Conselhos de Gestão em políticas

públicas, eleição de parlamentares oriundos de processos e formação na luta popular,

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 18

constituição de grupos de produção ou grupos de “economia solidária”, campos ou situações

historicamente altamente controlados pelas elites locais, que passam a incorporar novos

atores, e a abrir novos campos de batalha.

3. Conceitos e categorias analíticas dos Movimentos Sociais

Destacamos, neste texto, a experiência dos Movimentos Sociais Populares, com todos o

significados anteriormente explicitados, não só no Brasil, mas em todo o mundo. E o Fórum Social

Mundial (que não é composto só por Movimentos Sociais, mas tem importante participação destes)

é a expressão mais visível deste significado, e se incorpora como objeto de estudo das ciências

humanas e sociais, projetando-se, em seguida, como um novo paradigma, devido à grande

importância prática e analítica que atingiu, tanto na sua concepção empírico-analítica, quanto na sua

dimensão de categoria teórica.

Pelas razões apresentadas até aqui, em torno da concepção e das práticas dos movimentos sociais,

nossa perspectiva teórica assume um distanciamento dos esquemas utilitaristas e das teorias

baseadas na lógica racional. E, ao fazer o diálogo com a teoria dos novos movimentos sociais,

assumimos esquemas interpretativos, que enfatizam o cotidiano, a cultura, a ideologia, as lutas

sociais, a solidariedade entre pessoas e grupos, os processos de construção de identidades coletivas

e de vivências de subjetividades.

Os conceitos que pretendam captar a dinamicidade dos novos movimentos sociais precisam inovar,

rompendo com esquemas rigidamente predeterminados, priorizando dimensões mais da ação que de

estruturas, mais de movimento que de classe estruturalmente dada, mais de simbólico-cotidiano que

de racionalidade proletária. Daí que se reforça a necessidade da análise a partir das subjetividades e

identidades, bem como dos imaginários e dos sistemas simbólicos que permeiam suas práticas e

dinâmica de funcionamento.

Mas, se faz necessário enfatizar, a centralidade da ação social como ação política, portanto como

construção de força social-política, tem um valor em si mesma através do vínculo social, e um valor

universal, contribuindo para os processos de consolidação da democracia participativa.

A experiência brasileira, tanto na peculiaridade dos movimentos sociais, que têm em seu interior

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 19

forte hegemonia da parcela conhecida como movimentos populares (aquelas organizações e lutas

mais diretamente vinculadas às classes populares, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

– MST, o Movimento Nacional de Luta por Moradia – MNLM, o Movimento Popular de Saúde –

MOPS, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais – MMTR), quanto no “ineditismo” de

experiência da democracia participativa 2 , reforça tal opção teórica e metodológica. Esta opção

incorpora outros conceitos ou categorias de análise, dentre os quais podemos destacar:

• Movimentos Sociais como expressão dos Conflitos na Sociedade – a parte mais visível destes

conflitos está em torno dos direitos de propriedade, uma vez que as lutas por terra, por moradia, por

água, enfrentam-se com a tradição de concentração das terras e das riquezas, tão fortemente

presentes na história brasileira. Mas também os conflitos de valores, como os presentes nas relações

de gênero, de raça, de gerações.

• Movimentos Sociais implicam Ações Coletivas – Trata-se de ações de grupos, Associações,

Comunidades, motivados por demandas sociais, situações de carências, ou por valores humanitários

e libertários, articulados em torno de um discurso, uma linguagem comum. As ações coletivas

tornam mais provável o atendimento das reivindicações, ou a afirmação dos valores.

• Afirmação de Identidades e Solidariedades - As pessoas participam de aspirações e sonhos

comuns, às vezes em busca de bens materiais imediatos e necessários à sua sobrevivência, às vezes

de bens simbólicos, mas igualmente necessários à manutenção da vida, e em torno destes bens

constroem identidades e vivenciam solidariedades.

• Relação dialética permanente entre Integração, Inclusão e Mudança Social – Se a grande

maioria das demandas dos movimentos sociais diz respeito à inclusão e à integração das pessoas ao

sistema, uma vez que o sucesso do próprio sistema, que cria a exclusão, demonstra a capacidade de

também incluir, e o processo de tal conquista tem criado as condições para mudanças e

transformação da ordem social existente, o que já é percebido em várias situações.

• As ações coletivas articulam Pluralismo e hegemonia – Embora os espaços coletivos sejam

ocupados e valorizados como o ambiente de todos, portanto da pluralidade de idéias, de opções

políticas, de credos religiosos, a existência da organização se configura também como espaços onde

se consolidam direções, se constroem decisões majoritárias, o que necessariamente apresenta os

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 20

movimentos como ambientes de disputas. Mas, para além das disputas internas, os movimentos

expressam disputas gerais que existem na sociedade, num exercício muitas vezes difícil de construir

acordos entre os seus participantes, e entre os diversos movimentos, para os enfrentamentos

externos, os conflitos estruturais presentes na sociedade e nas relações de poder e de propriedade.

Notas

1 Sociólogo e educador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares – EQUIP, Recife- PE. Consultor dessa série. Texto escrito para o programa “Salto para o Futuro”.

2 Os argumentos em torno do “ineditismo da experiência brasileira” são apresentados por Rubens Pinto Lira, em: Textos de teoria política . João Pessoa, PB: UFPB/FUNAPE, 1989.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 21

PROGRAMA 2PROGRAMA 2

ASSOCIATIVISMO COMUNITÁRIO E LUTAS URBANAS

Relação estado e sociedade civil na construção dos Direitos Humanos

Francisco Mesquita de Oliveira 1

1. Características da constituição política e econômica do Estado brasileiro

Por construção política do Estado, entende-se o processo de concepção do Estado, que lhe deu

forma, expressão, jeito de agir e de se relacionar, em suma, a forma como ele foi configurado.

Nesse sentido, o Estado brasileiro, grosso modo, passou por duas grandes fases: o Estado imperial,

que fundou as primeiras bases políticas, econômicas e sociais da nossa sociedade, e o Estado

republicano.

- O Estado republicano brasileiro, no processo de constituição e consolidação, não assumiu as

diferentes contribuições dos variados grupos populacionais da sociedade; apenas as elites foram

contempladas nesse processo.- Até o início dos anos 30, do século XX, o Estado foi crivado pelas

práticas políticas das elites agrárias brasileiras, gerando uma cultura política patrimonialista (em

que o privado sobrepõe-se ao público), clientelista (com uma concepção de cidadão cliente), a

cultura do “jeitinho” (que permite “se dar bem na vida” àqueles que têm quem lhes abra caminhos),

em resumo, a cultura do que “é dando que se recebe”. Nesse período os conchavos, acordos e troca

de favores deram o tom na formação do Estado. Portanto, as práticas políticas das elites nortearam a

relação do Estado com a sociedade civil. E o clientelismo foi a base de todas as relações do Estado.

- Dos anos 30 aos anos 50, o Estado se moderniza na lógica capitalista moderna. Nasce a elite

urbana, que assume o processo de consolidação do Estado, sem, contudo, incorporar novos valores

e práticas culturais, mas apenas reproduzindo novos padrões da velha cultura política.- Nos anos 60

e até meados dos anos 80, período dos governos militares, o Estado rompeu todas as possibilidades

de relação com a sociedade civil. Vivemos o “período de chumbo”. Ou seja, intensa perseguição às

liberdades, atitudes e práticas políticas. - Na era de Redemocratização, com a Constituição de 1988,

e até os dias atuais, surgem novos elementos que reconfiguram o Estado, como a doutrina

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 22

neoliberal, a mundialização econômica, os efeitos da terceira revolução industrial (expansão

microeletrônica, as novas mídias, a internet – que tornam a realidade virtual). Mas, também, pela

primeira vez, aparece no cenário político uma sociedade civil forte e atuante. Pois bem, este

processo produziu um misto de cultura política, que orienta a relação do Estado com a sociedade

civil e, até hoje, essa relação se estabelece com base nos princípios corporativistas e práticas

clientelistas e na pouca disposição do Estado para romper com estes vícios.

2. Sociedade civil pós-anos 80 e sua relação com o Estado

- A disputa entre o Estado e a sociedade civil, que se acirra no chamado período de

“redemocratização”, ou seja, a partir dos anos 80, produziu avanços significativos na construção das

relações sociais e políticas que apontam para o fortalecimento da sociedade e para a melhor

definição do papel do Estado. Nesse processo, o tecido social brasileiro ganhou consistência e

impulsionou a constituição de parâmetros políticos para as novas relações entre o Estado e a

sociedade. - Cada vez mais se busca compreender as relações de dependência, de autonomia, de

complementaridade e de exclusão que se estabelecem entre esses dois sujeitos. Essas relações

produzem comportamentos políticos que contribuem, efetivamente, na construção política social do

tipo: (a) uma sociedade civil mais forte; (b) existência de espaços de disputa e de negociação de

políticas públicas; e (c) introdução de um novo modelo de relação entre o Estado e a sociedade – a

relação política em que o Estado convive com o papel crítico da sociedade e esta, por sua vez,

coopera com o Estado naquilo que a fortalece, de forma autônoma e independente. - A sociedade

civil é uma composição de sujeitos sociais formais e informais, heterogêneos, com diferentes graus

de organização, de interesses políticos e objetivos; é diferente das organizações do mercado, dos

órgãos públicos de Estado e dos partidos políticos. Nessa concepção, a sociedade civil é bastante

abrangente. A sociedade civil se diferencia do mercado, pela lógica econômica, financeira e

lucrativa deste. Em relação ao Estado, a diferença está no poder que ele tem de estabelecer regras

legais, de coagir e de tutelar os indivíduos na sociedade. E, por fim, em relação aos partidos

políticos, diferencia-se pelo seu objetivo principal de chegar ao poder político para exercer o

controle do Estado. - A sociedade civil contemporânea inclui um grande número de sujeitos sociais,

com práticas, objetivos, modalidades de atuação e projetos diferentes. A sociedade civil, à qual nos

referimos, é aquela que se constitui por movimentos, cujo elemento característico aglutinador é

exatamente o caráter de intervenção no processo de aumento da democratização do Estado, de

conquista de direitos políticos, sociais, econômicos, culturais, ambientais – direitos humanos, numa

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 23

concepção abrangente – que passa pela capacidade de negociação, diálogo, intercessão, mas sem

perda da identidade, da autonomia, da capacidade de crítica – uma concepção de sociedade civil

forte, coesa na sua diversidade, e ativa. - A relação do Estado com a sociedade, do ponto de vista de

uma relação democrática, aberta, transparente, verdadeira ou, ao contrário, autoritária, casuística,

dissimulada, de certa forma, está relacionada com as características de construção do Estado,

anteriormente apresentadas, e a cultura política tradicional. 3. Estado e Sociedade civil na promoção

dos direitos humanos - A concepção de direitos humanos com a qual trabalhamos é aquela, já

anteriormente explicitada, dos direitos políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais,

incluindo o direito a ter direito. Trocando em miúdo, estes direitos dizem respeito às liberdades

políticas; à eqüidade de condições econômicas; à garantia e universalidade das políticas sociais; ao

direito ao lazer, à cultura, ao meio ambiente saudável, renovável e sustentável estendidos a todos os

homens e a todas as mulheres, independente de raça, crédulo e etnia. E que cada ser humano

reconheça e assuma seu direito de ter direito à vida digna. - Ao Estado cabe o dever de assegurar os

direitos de forma universal. No entanto, não é bem isto que, historicamente, acontece aqui no

Brasil: é comum a transgressão aos direitos humanos: milhares de pessoas vivem sem moradia,

embaixo de pontes, nas ruas, em favelas, nos locais onde ninguém mais quer viver (só na RMR do

Recife existem mais de 600 favelas), sem serviços de educação, de saúde, de segurança adequados.

- Não é fácil estabelecer parceria com o Estado que, historicamente, tem se esquivado de suas

responsabilidades na promoção dos direitos humanos (nessa concepção) de forma universal. - Mas

não se pode negar que por meio de várias ONGs e movimentos populares, a partir do fim da década

de 90, com a reforma do Estado promovida pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, têm

crescido as parcerias entre Estado e sociedade civil em vários serviços de saúde, educação,

agricultura familiar, proteção a testemunhas de casos de violência e outras área de políticas sociais...

- Algumas dessas parcerias têm resultado no fortalecimento da identidade e da missão da

organização parceira, resguardando sua autonomia, independência o jeito próprio de realizar as

atividades.

- Mas, no geral, tem-se observado que em grande parte as parcerias têm sido mais uma transferência

de responsabilidade do Estado para a sociedade civil. É o Estado assumindo a lógica neoliberal de

desresponsabilizar-se dos serviços sociais (que tem tudo a ver com os direitos humanos),

repassando-os para o mercado e para a sociedade executar. Nessa concepção de parceria, as

organizações da sociedade civil não passam de meras executoras de serviços públicos. É a inversão

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 24

das lógicas: o Estado passa a ser fiscalizador e a sociedade executora de políticas.- Este tipo de

parceria não é benéfica às organizações sociais, porque as fragiliza, as submete às regras do Estado

e impede seu poder de criticidade. Não é parceria, é cooptação. Creio que é necessário explicitar

qual parceria se quer estabelecer com o Estado, pois a parceria que leva à cooptação e não ao

fortalecimento da identidade e da autonomia das organizações não deve interessar à sociedade civil

organizada. Nesse sentido, retomo o início desse texto: as características do patrimonialismo, do

clientelismo, da subserviência e da lógica do privado, preponderando sobre o coletivo, também

estão presentes na sociedade civil; por isto, a parceria em prol da exigibilidade de direitos e da

efetivação dos direitos humanos é também uma possibilidade de se construir novos valores culturais

para a sociedade e para o Estado.

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Nota

1 - Francisco Mesquita de Oliveira - Licenciado em História, mestre em Ciência Política (UFPE), Professor da Faculdade de Pernambuco - FAPE e Educador na Federação de Órgãos Para Assistência Social e Educacional - FASE - Pernambuco.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 26

PROGRAMA 3PROGRAMA 3

IDENTIDADES E SOLIDARIEDADES

Educação popular e movimentos de mulheres

Carmen Silvia Maria da Silva 1

Tem muita gente espalhada por este Brasil afora fazendo coisas para mudar o mundo e uma boa

parte mantém a Educação Popular como fontes de inspiração e de aprendizagem contínuas. Mas

quem são estas pessoas? Por que insistem em desenvolver ações referidas à educação popular?

Onde trabalham? O que fazem? São homens e mulheres, educadores e educadoras populares, que

seguem acreditando numa perspectiva de transformação social a partir da luta dos empobrecidos,

discriminados, violentados, daqueles que são excluídos dos processos decisórios e do direito à

expressão. Educadores e educadoras populares, engajados em entidades de movimentos sociais,

organizações não-governamentais, pastorais e serviços eclesiais, universidades e sindicatos, que

continuam fazendo o mundo mudar, ajudando a desenvolver consciência crítica e solidária, a

organizar grupos que manifestam seus interesses e constroem direitos. Homens e mulheres que

trabalham acompanhando os esforços de atuação articulada dos movimentos em redes, as

intervenções junto aos poderes públicos, a organização de novas formas econômicas e a

participação política. São pessoas para as quais a democracia, a justiça e a ética são ideais de vida

manifestos na conflitiva experiência cotidiana.

Educação Popular é vista aqui como uma concepção pedagógica, mais precisamente um ideário

educacional que alimenta um conjunto de práticas sociais, marcadas fortemente pela dialogicidade e

pela perspectiva de formação de sujeitos autônomos, críticos e criativos, que se mobilizam pela

transformação social. Nascida das idéias de Paulo Freire, a educação popular inspirou-se nas

experiências revolucionárias latino-americanas e na experiência de formação dos novos

movimentos sociais no período da redemocratização, ao final da ditadura militar no Brasil. Neste

processo, constituiu-se como um ideário ético, político e educacional, que congrega valores e

problemas decorrentes deste processo histórico.

A redemocratização da sociedade brasileira foi alimentada, a partir de meados da década de 70, com

o aparecimento na cena política de manifestações públicas em torno de interesses comuns,

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 27

protagonizadas tanto por pequenos agrupamentos como por articulações de grupos que exigiam o

direito a ter direitos . No início daquele período, o Brasil vivia sob a ditadura militar, que bloqueava

qualquer processo reivindicatório ou de expressão de descontentamento. O fortalecimento desses

movimentos sociais colocou, na agenda política, novas temáticas, instituindo novos direitos e

impondo uma alteração na relação entre Estado e sociedade civil.

Manifestações contra a carestia; em defesa da anistia aos presos e exilados políticos; as greves

salariais; as passeatas por acesso à saúde, à educação, ao transporte coletivo; o movimento pela

cultura negra; os grupos de arte na rua; os grupos de mulheres se afirmando como cidadãs, donas do

seu próprio corpo – todos estes movimentos, entre outros, levaram às ruas milhares de pessoas que

se percebiam com força para alterar o rumo da história. Mas quem são essas pessoas? Por que, de

repente, foram às ruas? Eram, em grande número, componentes de uma rede invisível de pequenos

grupos de bairros periféricos, de escolas e universidades, de trabalho, teatros, igrejas e bares, que

faziam resistência cotidiana às formas de dominação e participavam de pequenas lutas por melhores

condições de vida, pelo direito à participação, por alterações culturais ou pela garantia da liberdade

de ter um estilo de vida particular.

As organizações criadas nesse contexto geraram novos espaços de manifestação de interesses e de

expressão de um discurso próprio, brotado das próprias lutas sociais nas quais os participantes

elaboraram suas representações dos acontecimentos e de si mesmos, mas também sob influência de

outras instituições. Ressignificaram antigas palavras; articularam-se em projetos, em cujo processo

passaram a construir suas identidades, com a afirmação como sujeitos políticos coletivos, “não

como atores desempenhando papéis prefixados, mas como sujeitos criando a própria cena através da

sua própria ação”, como afirmou Sader.

A Educação Popular, à época, foi uma presença forte nessas organizações de grupos, expressa nas

experiências de alfabetização de adultos, acompanhamento sistemático a grupos populares,

formação política e sindical, entre outras. As idéias de Paulo Freire, que articulavam ação cultural e

prática política, mesclaram-se a outros fundamentos destes novos movimentos sociais, para dar

vigor ao debate sobre autonomia dos sujeitos, processos de transformação, democracia e

organização de base, igualdade de direitos e construção de novos direitos.

Muitos grupos feministas que surgiram neste período conseguiram, na prática, articular elementos

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 28

da pedagogia freireana com dinâmicas de potencialização grupal originárias da psicologia e

desenvolveram técnicas e recursos próprios para fazer educação com grupos de mulheres. Esta

perspectiva pedagógica se fundamenta nos princípios feministas voltados para autonomia das

mulheres e para sua constituição enquanto sujeitos políticos, que falam por si mesmos no espaço

público e que lutam por seus direitos. Desta confluência surgiram vários elementos pedagógicos

próprios, que se baseiam na idéia da formação integral da pessoa, na dimensão da corporeidade, na

construção de identidade coletiva e com a necessária atuação política dos grupos de mulheres.

No processo de redemocratização, e identificadas com a defesa e construção de direitos, as

organizações de movimentos sociais foram capazes de fomentar um amplo processo mobilizatório

de participação popular na elaboração da Constituição Federal de 1988 – um marco à saída do

regime autoritário. A partir da nova Carta e de suas leis complementares, ampliou-se a possibilidade

de negociação de interesses entre os movimentos sociais e os governos, através dos conselhos de

gestão de políticas públicas, com todas as conquistas e os problemas daí decorrentes.

Articulações, formação política e intervenções sociais, vividas intensamente por esses movimentos,

geraram um conjunto de organizações com incidência política, que se expressa na presença pública

nacional, capacidade de formulação e atuação no espaço público, a partir de seus interesses

específicos, mas em alguns momentos em causas comuns, capazes de mobilizar todo o campo

político dos que lutam pela transformação da realidade. Esta nova teia organizativa colocou novos

desafios à Educação Popular como referencial do trabalho social. Por um lado, porque as

referências ao ‘popular' e à ‘base' não são mais suficientes como explicação do fenômeno em curso,

exigindo, portanto, uma profunda reflexão teórica fincada na prática social destes novos

movimentos. Por outro lado, frente a especificidades e diferenciações de intervenção, várias

organizações desenvolveram metodologias próprias, adequadas ao seu público e às suas proposições

teórico-práticas, a exemplo da pedagogia feminista, da educação social na rua, educação popular

junto ao público rural ou à juventude, ainda que, em grande parte, alicerçadas no ideário da

Educação Popular.

Mas, afinal, o que é Educação Popular? Na historiografia da educação, pouco é dito sobre este tema.

Ele está mais presente no universo da reflexão própria dos movimentos sociais, e para alguns

estudiosos isto seria mais um assunto de Sociologia dos Movimentos Populares do que

propriamente de Educação; para outros, seria fundamentalmente a produção de Paulo Freire e suas

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 29

derivações, que teriam demarcado uma curta experiência. Há quem a interprete como um fenômeno

situado no início da década de 60, com os círculos de cultura e alfabetização de adultos, e

ressurgido na década de 70, associado à ação comunitária e, ainda, estudiosos que, à luz da história

da educação, consideram-na o objeto da luta pela disseminação massiva da Educação.

Nesta última perspectiva, a Educação Popular teria sido forte com as escolas anarquistas, no início

do século passado, seguida da luta pela escola pública mobilizada pelos “pioneiros”, e teria tido

força associada à cultura popular na década de 60, expressando-se em seguida com a educação dos

movimentos populares, e hoje estaria dando base às propostas de políticas educacionais de alguns

governos democrático-populares, ou de iniciativas no interior de algumas escolas ou programas

como MOVA – Movimento de Alfabetização de Adultos e EJA – Educação de Jovens e Adultos.

No nosso entendimento, a Educação Popular pode ser tudo isso e um pouco mais. Muitas vezes, nos

relatórios de Congressos e Seminários, que reúnem quem faz educação popular, ela aparece como

um movimento de educadores/as, não como uma organização, mas como um pertencimento a uma

comunidade de sentido que tenta manter vivos um ideário construído e um jeito de fazer educação.

O fato é que nos processos de organização e luta dos movimentos sociais, assessorados ou não por

agentes externos, as pessoas compartilham saberes, enfrentam novos desafios de aprendizagem,

elaboram alternativas, isto é, se educam politicamente, o que expressa o caráter educativo dos

movimentos.

É um fato que a participação política, em si, é educativa, mas isso não nega os esforços de várias

organizações em ações pedagógicas específicas para formação das pessoas que as integram,

formuladas como “políticas de formação”, em cujo processo se estabelecem objetivos, linhas de

trabalho, estrutura própria, metodologia e um entendimento comum dos princípios que devem

nortear tais ações, programadas em cursos, seminários e/ou outros processos formativos no interior

destes movimentos, a exemplo da política de formação da CUT – Central Única dos Trabalhadores,

que possui um conjunto de escolas de formação sindical, e de outros movimentos nacionalmente

organizadas como o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, e o MNMMR –

Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.

Tais políticas, tomadas como objeto de pesquisa, ainda são pouco discutidas no campo teórico da

Educação Popular, assim como as experiências “de segunda ordem”, aquelas que são desenvolvidas

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 30

por entidades do estilo escolas/centros de formação de educadores/as populares e/ou de militantes

de movimentos sociais, para que estes trabalhem na organização e formação junto aos grupos

populares, a exemplo da experiência das ONGs, como a Escola de Formação Quilombo dos

Palmares. Há ainda aquelas experiências, das quais já falamos, que são desenvolvidas por

organizações da sociedade civil que se vinculam a movimentos sociais, como as ONGs feministas.

Estas organizações esboçaram uma metodologia própria, que articulou elementos da educação

popular com as ênfases específicas deste movimento relativas à formação da pessoa, ao

conhecimento do corpo, à fala pública, entre outras coisas, visando ao fortalecimento da mulher

como sujeito político.

Para algumas pessoas, a especificidade da Educação Popular se vincula apenas a interesses de

classe – no caso, a classe trabalhadora, entendida como o sujeito da transformação social. Para

outros, com os quais concordamos, a transformação social é toda uma construção de caráter

multifacetado, que incorpora a atuação de diversos sujeitos políticos coletivos explorados

economicamente e oprimidos política e culturalmente no atual estágio da sociedade. Portanto,

Educação Popular objetiva contribuir com a transformação, tanto no âmbito do sistema político-

econômico, como no âmbito da cultura e da política, no sentido da humanização e da construção de

relações democráticas entre os seres humanos e no interior das organizações. Isso implica que a

Educação Popular deveria constituir espaços de reflexão sobre as diversas faces da dominação,

incluindo fortemente a dominação de gênero, já que, historicamente, às mulheres é conferido menor

valor e menos poder que aos homens, no modo de organização social em que vivemos e que

queremos transformar.

A partir da matriz freireana, ramificaram-se diversos modos de fazer educação de movimentos

sociais, fincados na realidade e nas realizações de diversos educadores e educadoras, participantes

ativos dos movimentos sociais ou militantes de outros espaços educacionais, para quem a educação

popular não estava dando respostas, práticas e teóricas, suficientes. Assim é que vemos a concepção

metodológica dialética 2, metodologia feminista 3, a pedagogia social de rua 4, a formação em

direitos humanos 5, propostas de formação rural 6, metodologia do trabalho popular 7, metodologia

cutista 8, entre outras. Para algumas pessoas, todo este campo pedagógico poderia ser visto como o

campo da educação popular; para nós a educação popular foi a fonte, mas estas vertentes todas

tiveram desenvolvimento próprio, umas mais outras menos, a partir da perspectiva teórico-política

do movimento social ao qual cada uma delas se vincula.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 31

Beber na fonte da Educação Popular significa colocar-se na perspectiva da transformação social,

contribuir para a constituição de sujeitos políticos, posicionar-se na sociedade no pólo daqueles que

lutam contra toda forma de opressão e exploração, o que pode ser feito em qualquer espaço

educativo. Significa também reconhecer que esta transformação não será resultante apenas de um

processo específico ou da ação de um sujeito social, e sim, necessariamente, da ação estratégica de

uma multiplicidade de sujeitos políticos coletivos, que interagem uns com os outros a partir das

suas próprias identidades, gerando novos direitos 9 , mas também a partir de sua unidade identitária

construída, momentaneamente, com base no sentido de pertencimento ao campo político daqueles

que lutam.

Notas

1 Educadora do SOS – Corpo – Instituto Feminista pela Democracia (PE), e Mestre em Políticas Públicas.

2 Leis, Raul. O Arco e a Flecha. Anotações sobre a metodologia e prática da transformação . Trad.:Maria Viviana Resende. Recife, EQUIP, 1993.

3 Portella, Ana Paula e Gouveia, Taciana. Idéias e Dinâmicas para Trabalhar com Gênero . Metodologia SOS CORPO. Recife, 1995.

4 Graciani, Maria Stela Santos. Pedagogia Social de Rua . São Paulo, Editora Cortez e Instituto Paulo Freire, 1997. Ver também Paulo Freire e Educadores de Rua - uma abordagem crítica . Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua. UNICEF, SAS, FUNABEM, 1987.

5 Candau, Vera Maria et alli. Oficinas Pedagógicas de Direitos Humanos . Petrópolis, Vozes, 1995.

6 FUNDEP – Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa. Coragem de Educar – uma proposta para educação no meio rural . Petrópolis, Vozes, 1994.

7 Peloso, Ranulfo et alli. Saberes e Olhares. A formação e a educação popular na comissão Pastoral da Terra . São Paulo, Loyola, 2002.

8 Revista Forma e Conteúdo nº 1. São Paulo, Secretaria Nacional de Formação da CUT, 1990.

9 Dagnino, Evelina. Anos 90: Política e Sociedade no Brasil . São Paulo, Brasiliense, 1994.

10 Freire, Paulo. Pedagogia da Indignação – Cartas Pedagógicas e Outros Escritos. São Paulo, Edições UNESP, 2000.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 32

PROGRAMA 4PROGRAMA 4

CULTURAS JUVENISCULTURAS JUVENIS

Movimentos juvenis: mudanças e esperanças

Nerize Laurentino Ramos 1 Paulo Afonso Barbosa de Brito 2

1. Apresentação

Na última década, as juventudes reconquistaram espetacular posição na agenda social e política do

Brasil. Entidades juvenis locais e nacionais, organizações não-governamentais, Governos

Municipais, Estaduais e Federal, parlamentares e igrejas, voltaram a pautar atenção e a estimular

iniciativas destinadas às juventudes.

Cotidianamente, jovens aparecem nas manchetes de quase todos os grandes jornais impressos do

país, nos noticiários radiofônicos e televisivos, normalmente vinculando-se a ações de rebeldia e

violência, à relação com galeras e com o narcotráfico, quase sempre como vítimas de tais ações e,

muitas vezes, como promotores.

Mas as juventudes voltaram para a agenda nacional também pela sua fantástica capacidade de

provocar mobilizações, de tomar iniciativas criativas e inovadoras, desde as tradicionais

movimentações estudantis, às novas formas de expressões culturais das juventudes das periferias

urbanas, das pastorais juvenis, das iniciativas no meio rural, tecendo uma articulação de ações, que

tem, na expressão do protagonismo juvenil, uma síntese tradutora e articuladora.

2. De quais juventudes estamos falando?

Desde o princípio, estamos falando de juventudes no plural, para deixar claro que existe uma a

diversidade em torno destes sujeitos sociais. Muitas vezes, as diferenças são grandes, entre as quais

podemos destacar:

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 33

• as idades, que vão de 14 ou 15 anos, até 25 ou 26 anos; embora não consideremos a faixa etária

como único critério definidor das juventudes, este é um importante elemento a ser considerado;

• as classes sociais de onde se originam e convivem, incluindo aí também os lugares onde moram,

trabalham, se divertem, estudam, como as periferias urbanas, o meio rural, as pequenas cidades do

interior, os bairros centrais das grandes cidades;

• as relações de gênero e de orientação sexual, bem como de raça ou etnia, que trazem cargas

culturais, marcas de preconceitos, discriminações, mas também de afirmações de identidades

importantíssimas.

Quando destacamos estas diferenças, não negamos que possam existir também semelhanças, como

as transformações experimentadas no próprio corpo, as novas sensações e emoções, os desejos

vivenciados, o crescimento dos seios e a menstruação, nas meninas, as carícias diversas, a

masturbação, os impulsos e desejos que afloram e que os jovens e as jovens sentem sem perceber

exatamente de onde vêm. Claro que tudo isso deve ser percebido dentro do contexto social e

cultural em que estão inseridos(as), pois, embora a sexualidade faça parte do desenvolvimento

individual da pessoa humana, quem dita a forma da sexualidade e dos comportamentos, em grande

medida, são os valores morais e culturais da sociedade. Nesse sentido, as juventudes também têm

dado grande contribuição para mudanças de tais valores e comportamentos.

Destacamos também, como elementos caracterizadores das juventudes, as diversas opções e estilos

de vida. Neste sentido, devem ser consideradas as multidões de jovens que, em nosso tempo, lotam

os estádios de futebol, se empolgam nos shows de rock, de hip-hop, de forró. Mas também devem

ser considerados os grupos, muitas vezes minoritários, que se entusiasmam pela participação em

entidades juvenis e/ou estudantis, os diversos grupos culturais, de dança, de capoeira, de teatro, de

música, de expressões religiosas, de projetos desenvolvidos por ONGs. E as juventudes que fazem

parte de diversos movimentos sociais populares, como a luta pela moradia, o Movimento dos Sem

Terra, de Meninos e Meninas de Rua, de Associações Comunitárias, de negros(as), de

homossexuais, de mulheres. E, ainda, as juventudes militantes dos partidos políticos. Diversas

juventudes que, a partir de sua participação social, religiosa, política, alimentam sonhos de mudar o

mundo, as relações, os valores.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 34

3. Uma herança histórica espetacular

A história brasileira e, especialmente, os movimentos sociais, são profundamente marcados pela

presença das juventudes. Durante todo o período colonial (Zumbi dos Palmares e Acotierene,

líderes do Quilombo dos Palmares, iniciaram sua atuação ainda na juventude), no Império e na

República, a presença de jovens nos grandes acontecimentos sociais e políticos se destaca como

uma marca significativa. Com isto, não estamos querendo afirmar que as juventudes são, pela

natureza de sua condição, contestatórias e mobilizadoras. Temos consciência de que todos os

valores, comportamentos e posições políticas e ideológicas, presentes no conjunto da sociedade, se

difundem também entre os jovens, mas a análise da realidade demonstra maior abertura, neste

período da vida, para o novo, para novas descobertas e experiências. Podemos, assim, recuperar

momentos significativos da história do país e das organizações juvenis.

A partir da segunda metade do século passado, setores das juventudes passam a intervir como

sujeitos sociais coletivos, com maior visibilidade na cena política e social nacional. No primeiro

período, entre os anos 50 e 70, a expressão mais forte desta intervenção foi o Movimento

Estudantil, sobretudo o Universitário. Na década de 50, tal movimento experimentava o embate

político entre grupos que controlavam a UNE (União Nacional dos Estudantes), os

udenistas/liberais e os grupos de esquerda, reunidos em torno do Partido Comunista. Este foi um

período de grandes campanhas nacionalistas, como “O Petróleo é Nosso”. Em seguida (anos 60), a

força maior da UNE passa para novos agrupamentos, reunidos em torno de lideranças vindas da

Juventude Universidade Católica (JUC), e sua expressão especificamente política, a Ação Popular

(AP). Neste período, houve um maior estreitamento da relação do Movimento Estudantil com os

setores, organizações e lutas populares.

Com menor visibilidade expandiram-se, também neste período, os Grêmios Estudantis e os Centros

Estudantis dos Secundaristas.

Nesta mesma época, desenvolvem-se as Juventudes Católicas, nas suas muitas ramificações: JAC

(Juventude Agrária Católica), JEC (Juventude Estudantil Católica), JIC (Juventude Independente

Católica), JOC (Juventude Operária Católica), JUC (Juventude Universitária Católica). No

ambiente universitário, a militância Jucista caminharia em direção à radicalização da sua

participação, desembocando na Ação Popular.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 35

Animados pelo método Ver-Julgar-Agir, estas organizações eram reconhecidas pela leitura

qualificada da realidade sócio-política-econômica, pela capacidade de analisá-la e de realizar ações

concretas para transformá-la. Tal método valorizou a organicidade dos movimentos e as

mobilizações para mudar o meio. Os grupos que foram radicalizando tal opção passaram a diminuir

seu interesse pelas discussões recreativas e eclesiais e dedicaram-se mais às grandes temáticas

sociais. A forte presença da hierarquia da Igreja Católica sobre estes movimentos impôs vários

mecanismos disciplinares, reduzindo sua capacidade de intervenção e dissolvendo algumas de suas

organizações.

Os movimentos evangélicos e ecumênicos de juventude ganharam força e expressão também nos

anos 60. A partir de uma experiência de articulação e reflexão sócio-política, jovens evangélicos

enfrentaram com vigor o debate por uma América Latina livre, contribuição fundamental à

formulação de um pensamento teológico brasileiro e latino-americano.

O Movimento Estudantil (ME) assiste, a partir de 1964, suas organizações sendo perseguidas,

enfrenta a repressão e forçosamente envia muitos dos seus líderes para a clandestinidade. Em março

de 1968, os estudantes preparavam uma grande manifestação: armavam faixas e bandeiras. A

polícia chegou, invadiu o recinto atirando. O estudante Edson Luís de Lima e Souto foi atingido e

morreu. Sua morte marcou o reinício das manifestações estudantis, com ampla participação popular,

até o endurecimento maior da ditadura. O destaque deste período foi a realização da passeata dos

cem mil no Rio de Janeiro, e atividades semelhantes realizadas em várias cidades, como Natal,

Recife, Goiânia. O Ato Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, retirou completamente dos

brasileiros todas as garantias individuais, públicas e privadas, o que representou um maior nível de

repressão do regime militar, empurrando muitos jovens para grupos guerrilheiros urbanos e rurais.

Mas muitos outros buscaram novas formas de ação política e social.

Na década de 70, multiplica-se a criação de grupos de jovens, em geral vinculados a comunidades e

paróquias. Fala-se que entre 10 e 30% de jovens de algumas cidades brasileiras foram alcançados

por estes grupos, seja participando diretamente de sua vida interna, seja freqüentando algumas de

suas atividades. São grupos com forte apelo emocional, intimista, e orientação voltada ao

tratamento de dimensões individuais: o egoísmo, as amizades, a conversão, a renúncia. As ações

estavam ligadas ora à vida eclesial, ora à ajuda mútua e à assistência aos mais pobres.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 36

É somente a partir de meados dos anos 70 que ressurgem, ainda discretamente, as primeiras

manifestações estudantis/juvenis e cidadãs. Mobilizações que vão ganhando vulto e tomando conta

do país – luta pela anistia e pela reconstrução da União Nacional dos Estudantes – UNE (1978-79),

campanha pelas Diretas (1984-85), processo de formação da Constituinte, que culminou com a

elaboração da nova Constituição (1988) e o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo.

4. Movimentos e expressões juvenis da atualidade

De maneira diferente das iniciativas que mobilizaram os jovens militantes da década de 60, os

jovens atuais buscam novas formas de aglutinação, participação e expressão. A nova geração não

parece concentrar suas preocupações em mudar o mundo, pelo menos nos moldes da geração

anterior; suas preocupações se dirigem para lutas imediatas, buscando sentir o prazer de cada

conquista. É a geração que alimenta suas expectativas no meio de sucessivas desilusões da

apregoada transição democrática, geração que desconhece o exílio, a perseguição, a participação

clandestina, a morte por motivos políticos.

Mesmo assim, neste período, percebe-se que, pelo menos em momentos, a rebeldia, a criatividade, a

espontaneidade voltam às ruas e expressam sua irreverência e combatividade. Foi assim em 1992,

com a experiência dos “Caras Pintadas”, atores centrais na campanha realizada contra o Governo de

Fernando Collor, que resultou no impeachment do presidente corrupto. Essa campanha levou para

as ruas das principais cidades brasileiras milhares de jovens esbanjando energias, alegres, eufóricos,

cheios de esperanças na força da sua geração. Iniciaram suas manifestações com cerca de 300 a 400

estudantes, foram crescendo, ganhando a adesão de outros segmentos sociais e políticos, até chegar

a mobilizações de dois milhões de pessoas em São Paulo, em agosto de 1992.

Depois disto, as principais expressões juvenis se deslocam para fora das universidades e o

Movimento Estudantil perde a centralidade das mobilizações juvenis.

Hoje, são redes de diferentes grupos, dispersos, esporádicos, permanentes ou transitórios que se

encontram em vários ambientes para resolver problemas específicos, que herdam o sentimento de

justiça das gerações anteriores: duvidam, buscam, questionam, afirmam, contestam.

Muitos grupos e/ou organizações se reúnem em torno das manifestações culturais: da música

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 37

popular, hip-hop, rock, reggae, folclore; das pastorais ou movimentos juvenis eclesiais; das

juventudes partidárias, das organizações de bairros e sindicais. Sentem-se convocados também

pelos temas: meio ambiente, ecologia, sexualidade, entre outros. É também freqüente a valorização

do lado gratuito das relações, das emoções, dos afetos.

O estilo hip-hop tem se revelado como uma das principais expressões organizativas, articuladoras e

mobilizadoras das juventudes da atualidade, através do encontro do break, rap, grafite, combinando

a dança de movimentos complicados, que exige muito treinamento e vitalidade (break), a dimensão

musical do rap, caracterizada pelo jeito falado de cantar, cujas letras são sempre carregadas de

denúncias das injustiças sociais, e o grafite, como um estilo de pinturas e desenhos em muros e

grandes paredes, utilizando latas de spray de tinta, resultando em belas obras artísticas.

Os grupos de teatro popular, de danças, de capoeira, os diversos projetos que agrupam jovens a

partir de iniciativas de ONGs, a diversidade de agrupamentos de jovens em torno da vivência

espiritual e religiosa, as várias iniciativas de ação coletiva de estudantes em escolas públicas e

privadas, as expressões específicas de jovens no interior das organizações e movimentos sociais,

como do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e de outras entidades de camponeses, das

mulheres, da moradia popular, dos negros, dos homossexuais, das organizações de bairros, das

entidades estudantis, dos Partidos Políticos, todos esses projetos, movimentos e ações demonstram

que uma nova esperança está se realizando.

Não se pode afirmar que as atuais formas de organização e mobilização são menos politizadas do

que as do passado, mas que a forma de fazer política atualmente, bem como o contexto sócio-

político, são bastante distintos. Neste sentido, as recentes articulações em torno da participação

juvenil nas políticas públicas, transformando situações de necessidades, iniciativas particulares e

localizadas, em políticas universais – inclusive criando instrumentos de ação política, para a

realização de tais ações, como as Conferências de políticas para as juventudes, e os Conselhos

Municipais e Estaduais com representação dos governos e dos vários segmentos sociais que

representam e/ou trabalham com jovens – são exemplos claros desta afirmação.

5. Novos desafios e esperanças

Sem uma pretensão conclusiva, destacamos como os batuques, sons, imagens, movimentos,

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 38

atitudes, mobilizações várias, que descem e sobem ladeiras de altos e morros de nossas cidades,

percorrem córregos e alagados, apertam-se nos ônibus suburbanos, acotovelam-se nas festas

populares, apresentam-se em praças públicas, são sinalizadores das novas formas de expressão das

juventudes.

Mas também o silêncio, a reflexão tranqüila, ou mesmo os debates acalorados nos congressos

estudantis, ou nos Festivais de Juventudes, tornam-se expressões das atuais formas de ação dos

movimentos juvenis, as disputas pela condução política das lutas, ou o empenho pela afirmação de

novos valores humanos, fraternos, solidários, são sinais de mudanças, mas também de esperanças,

para a continuidade e o avanço dos mais sinceros e comprometidos sonhos de justiça e liberdade de

nossas juventudes.

Bibliografia

ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis – Punks e Darks no espetáculo urbano. Editora Página Aberta Ltda.

ARQUIVO ECLESIÁSTICO DA PARAÍBA – Atas e Relatórios.

BORAN, Jorge. O futuro tem nome: Juventude. São Paulo, editora Paulinas.

NOVAES, Regina Célia Reis. Juventudes Cariocas: mediação, conflitos e encontros culturais. Texto mimeografado.

REVISTA TEMPO E PRESENÇA, nº 262. Publicação do Centro Ecumênico de Documentação e Informação.

SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários. São Paulo, Global Editora.

SPOSITO, Marília. A sociabilidade juvenil e a rua: novos conflitos e ação coletiva juvenil na cidade. Revista Tempo Social nº 5 – Revista de Sociologia da USP.

Notas

1 Socióloga e professora da Universidade Estadual da Paraíba.

2 Sociólogo e educador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares. Consultor dessa série.

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 39

PROGRAMA 5PROGRAMA 5

REDES E FÓRUNS SOCIAISREDES E FÓRUNS SOCIAIS

O Movimento das Redes e as Redes de Movimentos

Carmen Silvia Maria da Silva 1 Luciene Mesquita (Mana) 2

Quem assistiu ao filme “A Rede”, com certeza, sofreu um impacto com aquela visão de futuro tão

tenebrosa. Uma pessoa tem toda a sua vida completamente atrapalhada porque, legalmente, ela

deixa de existir. Todas as informações sobre sua vida cidadã, que foram absorvidas pelos mais

diversos computadores, podem ser deletadas ou re-adicionadas com alguns poucos comandos. Tudo

está interligado na rede. Em conseqüência, tudo é muito frágil. Esta imagem é bastante catastrófica

sobre o que pode vir a ser o mundo do futuro, interconectado em rede eletrônica, embora já

tenhamos tido indícios de coisas semelhantes acontecendo no sistema bancário.

Ao contrário disso, durante a recente campanha eleitoral para a Presidência da República, quem

apoiava a candidatura do nosso atual presidente viveu uma situação bem prazerosa: a sensação de

pertencimento a um grande grupo, formado por pessoas conhecidas e desconhecidas, que tinham

um mesmo objetivo. Entrar no supermercado e cruzar com alguém que sorri para você com uma

estrela no peito, encostar-se ao balcão da padaria e ser cumprimentado(a) porque tem o adesivo

colado na roupa, participar de uma caminhada de 200 mil, como a que aconteceu em Recife, e sentir

toda a vibração de milhares de pessoas com as quais você se liga a partir da vontade de mudar o

Brasil. Esta é outra forma de entender Redes, como vínculos que se criam entre as pessoas a partir

de símbolos de identificação e de relações de sociabilidade bastante leves, sem estabilidade, mas

nas quais não se percebe uma hierarquia, e sim uma identidade predominante entre os membros.

A mídia nos traz, constantemente, informações acerca de outras formas de organização em rede no

mundo da violência, do crime organizado, do narcotráfico, do terrorismo, que invadem a nossa casa

todos os dias, nos afrontam, violam os nossos direitos de cidadania. Fontes diz que “podemos

pensar em redes a partir de indivíduos, as chamadas redes egocentradas; também podemos pensar

em redes a partir das instituições, as chamadas redes organizacionais, as redes dos movimentos, as

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 40

redes de ONGs, as redes do narcotráfico, as redes de terrorismos e assim por diante” 3 .

Ao falar em rede no Nordeste, outras imagens nos chegam, de imediato. A rede de pesca, um dos

símbolos da luta pela sobrevivência do povo nordestino na busca de garantir a alimentação que vem

de seu litoral, enaltecido por muitos e fonte de renda com o turismo, no atual modelo de

desenvolvimento regional. A rede de dormir, onde o povo descansa o corpo cansado do trabalho

diário. Essas redes são teias de fios, laços e nós: uma que agarra os peixes, a outra que balança, que

move as pessoas, que acalenta. Mas essas redes também se desgastam e precisam ser reforçadas,

renovadas, enfim, precisam ser “cultivadas”, como a própria idéia de rede.

A rede de vizinhança, a rede de fofoca, a rede de intrigas, a rede de solidariedade, a rede da

esperança. Estas várias imagens, formas de redes, nos falam de como a idéia de rede tem sido

utilizada para falar de diferentes coisas e de como ela serve para tentar entender vários processos

sociais. No Seminário “Atuação em Redes: Impactos na Realidade”, realizado pela EQUIP, Cáritas

e RIPP, em 2002, foi possível conhecer parte da diversidade de experiências de movimentos sociais

que estão utilizando a idéia de rede como elemento central nos seus processos organizativos.

As Redes de Movimentos Sociais, isto é, as redes que articulam diversas entidades identificadas

com uma certa causa, em geral em torno da luta por direitos, se expressam no espaço público como

articulações em torno de um tema ou de um tipo de ação coletiva, com momentos de maior aparição

e momentos de imersão, dependendo da conjuntura específica. Elas congregam pessoas ou

entidades, em maior ou menor número, que possuem em comum, um certo sentido de

pertencimento ao campo político dos Movimentos Sociais 4 e àquela causa específica, a exemplo de

proteção à criança e ao adolescente, saúde, direitos reprodutivos, fiscalização do orçamento público,

etc.

No Seminário, estiveram presentes 14 experiências que se identificaram como redes, mesmo que

tendo como nome oficial fórum ou articulação. Isto quer dizer que estas experiências se identificam

com o que vem sendo discutido como sendo rede, ou seja, articulação entre diferentes sujeitos,

baseada em relações horizontais, em que estes sujeitos não se subordinam, mas somam esforços

para potencializar objetivos comuns, que não negam seus objetivos específicos.

No Nordeste, temos visto experiências bem diversificadas, algumas que se articulam em âmbito

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 41

nacional como a ASA – Articulação do Semi-Árido, que ficou mais conhecida em função do projeto

de 1 milhão de cisternas, mas que é bem mais que isso, uma vez que realiza outras iniciativas

voltadas para a convivência com o semi-árido. Outras experiências se voltam para articulação de

projetos produtivos e comercialização, como a Rede Abelha da Paraíba, que congrega Apicultores, e

a Rede de Sócio-economia Solidária do Ceará, ambas fomentadas pela Cáritas.

Algumas experiências de rede se sobressaem por agregar entidades que lutam pela implementação e

fiscalização de políticas públicas, como é o caso da Rede de Conselheiros do Piauí, apoiada pelo

CEPAC, e da Rede de Intervenção em Políticas Públicas do Maranhão, que reúne diversas entidades

entre ONGs, movimentos, serviços eclesiais, gabinetes parlamentares, entre outras representações

sociais. Há também aquelas que agregam segmentos sociais como a Rede de Jovens ou a Rede de

Educadores Populares, estimuladas pela EQUIP. Há redes que reúnem grupos populares vinculados

ao trabalho de uma certa entidade, outras reúnem diversas entidades de movimentos sociais e

organizações não-governamentais, e existem ainda aquelas que reúnem movimentos sociais, ONGs

e órgãos governamentais vinculados ao enfrentamento do mesmo problema, como é o caso da Rede

Amiga da Criança do Maranhão, voltada para o atendimento de meninos e meninas de rua.

No citado Seminário, ficou claro que a organização em rede não é, em si, uma novidade, entretanto,

é nova a ênfase que está sendo dada a este debate. Vários estudiosos dos movimentos sociais têm

tentado interpretar este fenômeno e esta forma de organização está impondo uma reflexão também

entre os participantes de movimentos sociais, não para construir modelos, mas para aprofundar o

debate sobre seus elementos constitutivos e os efeitos deste trabalho na realidade dos setores

populares.

Alguns aspectos chamam a atenção nestas experiências que estiveram representadas no Seminário.

Todas se voltam para objetivos definidos e afirmam que estão potencializando seus resultados,

ainda que com algumas dificuldades. Todas se pretendem com um formato organizacional

efetivamente de rede, onde flui a comunicação, onde há objetivos consensuais, onde se aglutinam

forças sociais, onde se combate o velho "corporativismo" das práticas, onde se assume

coletivamente as responsabilidades, embora sejam reconhecidas as limitações no processo

organizativo real.

Scherer-Warren 5 concebe redes como "formas mais horizontalizadas de relacionamento, mais

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 42

abertas ao pluralismo, à diversidade e à complementaridade, portanto, correspondendo, como

formato organizacional e interativo, a uma nova utopia de democracia". Características semelhantes

a estas sempre estiveram presentes no debate sobre Movimentos Sociais, mesmo quando ainda não

se usava a noção de rede para estudá-los. No Seminário, a organização em rede foi vista como uma

das formas de potencializar o ser e o fazer dos movimentos sociais.

Há Movimentos Sociais que se organizam em forma de rede e há redes que promovem

movimentação social através da articulação de organizações diversificadas, que não se declaram

como Movimentos Sociais, a exemplo de pastorais populares, ONGs, entidades populares,

sindicatos, núcleos de estudos acadêmicos, etc. Entendemos que estas redes que articulam diversos

tipos de organizações e que se posicionam no espaço público garantindo direitos aos setores

explorados e oprimidos da população também são Redes de Movimentos Sociais.

As identidades são a mola propulsora que faz com que as pessoas se vinculem a um movimento

social. Mas elas parecem ter, na vida da maioria dos participantes, uma temporalidade curta, que os

mobiliza para grandes eventos, mas não para o cotidiano das entidades. Para outros, em número

menor, todavia, a participação é algo contínuo, em torno da qual eles organizam suas vidas. Em

geral, a força desta dedicação tem a ver menos com a capacidade organizativa da rede ou da

entidade de que a pessoa participa e mais com elementos de identificação que são predominantes

para cada uma, em um dado período, como ser mulher, a questão da negritude, a sensibilização com

a ausência de direitos de crianças e adolescentes, por exemplo. Estas pessoas constroem e mantêm a

vida interna das entidades de Movimentos Sociais , na maioria com trabalho voluntário e militante,

e também dão sustentação às redes que estas entidades criam. O que as mantém com permanência

pode ser a adesão à causa específica ou, o que é mais complexo, o sentido de ser militante, de atuar

intensamente em processos de mudança, o sentimento de fazer parte do Movimento.

No Seminário “Atuação em Redes” foi colocada em questão a situação organizativa das redes ali

representadas, discutindo as motivações, os sujeitos que agregam e a comunicação que estabelecem.

Sobre a organização, os participantes falaram que a maioria das redes agrega entidades ou grupos

que se reúnem em torno de potencializar seus objetivos; apenas uma das redes presentes congregava

indivíduos. Elas, em geral são sustentadas por projetos financeiros enviados para agências

internacionais, e a maioria conta com uma espécie de entidade-mãe, que funciona como

impulsionadora da articulação da rede. Apenas algumas redes são formadas por entidades do mesmo

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 43

porte, como é o caso das diversas experiências estaduais que se congregam na Articulação Regional

de Políticas Públicas.

Um dos problemas internos mais sentidos nas redes é exatamente a co-responsabilidade. Apesar de

intencionalmente desejarem relações horizontais, a dificuldade de compartilhar tarefas e recursos

igualitariamente acaba por colocar as redes, muitas vezes, dependendo de uma ou duas entidades.

Esta situação dificulta o dinamismo, a multiplicidade de lideranças e a comunicação

multidirecional, que são apresentados como elementos que caracterizam as redes.

Outro elemento chave neste debate é o papel que cumprem as entidades fomentadoras das redes. Há

duas situações relevantes para serem analisadas. A primeira é quando a rede é formada entre

entidades semelhantes em termos de recursos financeiros, técnicos, etc. como é o caso do Coletivo

de Políticas Públicas do Piauí, da RIPP-MA, da ASA, ou da Rede Amiga da Criança. Neste caso,

pode haver concentração em poucas entidades, mas é mais fácil pensar mecanismos de superação

disso, a exemplo do que vem sendo feito: rodízio de secretarias, coordenações colegiadas, rateio de

recursos para atividades, comunicação permanente entre os membros, planejamento com divisão

equilibrada de tarefas, reflexão sobre a importância, para o funcionamento em rede, da co-

responsabilidade, da solidariedade e do consenso.

A segunda situação é quando há, nas redes, uma entidade fomentadora, isto é, uma entidade que

detém maiores recursos financeiros e capacidade mobilizadora. Poderíamos citar como exemplos as

redes de grupos populares ligadas a projetos produtivos, que se articulam para ampliar as condições

de produção, comercialização e capacitação, como rede de Sócio-economia Solidária do Ceará,

estimulada pela Cáritas; ou a rede de conselheiros tutelares do Maranhão, fomentada pelo Centro de

Defesa da Criança e do Adolescente, ou a rede de conselheiros do Piauí, articulada pelo CEPAC.

Este caso exige uma reflexão que remonta aos princípios da metodologia de trabalho de base na

educação popular, ou seja, estas entidades, impulsionadoras da rede, procuram desenvolver um jeito

de trabalhar que impulsione a autonomia dos sujeitos envolvidos. A autonomia passa a ser uma

meta, incessantemente, buscada, e não se resume à autonomia financeira, mas também à política e à

metodológica.

A comunicação em rede, embora seja apontada como importante e necessária por todos os

participantes do Seminário, parece ser a maior dificuldade. Ainda não são suficientemente utilizados

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os recursos da rede eletrônica. No caso das redes que reúnem grupos populares com condições

socioeconômicas precárias, o próprio acesso a computadores ainda não é possível. Naquelas das

quais participam entidades mais estruturadas, o problema identificado é mais de hábito cultural e de

priorização política estratégica.

Outro aspecto fundamental na comunicação é como as redes se organizam internamente, da forma

menos piramidal e mais dinâmica possível, de modo a facilitar as relações entre os seus membros, a

descentralização das decisões, a partilha do poder. Dessa forma, utilizam diferentes instrumentos

comunicativos para sensibilizar e dar visibilidade à sua ação na sociedade como um todo, a fim de

garantir a adesão necessária da população e reforçar a sua intervenção na realidade.

Todos os representantes de rede apontaram como maior problema organizativo algo que é comum

também no interior das entidades de movimentos populares: o fato de que algumas pessoas

assumem as responsabilidades cotidianas com mais afinco e outras só se fazem presentes nos

momentos decisivos. Apesar disso, elas reconhecem que nas redes que reúnem entidades do mesmo

porte, que possuem igualdade de condições, este problema é bem menor.

Algumas redes adotaram uma forma mais estruturada de organização, outras preferem a

informalidade. Algumas possuem mecanismos de entrada definidos, como é o caso da ‘carta de

princípios' e ‘carta de adesão' na RIPP, em outras a adesão é menos formalizada. Algumas têm

documentos que explicam o seu funcionamento interno, outras vão fazendo coisas em conjunto sem

definir, precisamente, como deve ser a sua forma de organização. Sem querer estabelecer regras

para o que poderiam ser as redes, a reflexão que se colocou no Seminário foi sobre os problemas

que a grande informalidade gera para a adesão de membros e o funcionamento interno democrático,

em especial naquelas redes que contam com ‘entidades-mãe'. O tom da maior ou menor formalidade

vai variar a depender de seus objetivos, interesses, da relação de forças existentes e/ou do desejo das

pessoas.

Mas, para entender a noção de rede e o uso que dela está sendo feito nos Movimentos Sociais é

preciso perceber a amplitude desta idéia. Rede é um termo utilizado em diversas ciências, como

sintetizou Tomasin, em uma Gaveta Aberta de 1994: na telemática, as redes de telefones e

computadores; na biologia, a rede neuronal; na matemática, o chamado network analysis , que

nasceu a partir da teoria dos grafos ; na economia e na administração, as empresas que assumem

EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 45

formas de redes e/ou que se organizam com outras em redes de produção e distribuição de bens e

serviços, a partir das novas formas de organização do trabalho pós-fordista, etc. Nas ciências

sociais, destaca-se a antropologia, com o estudo das redes de sociabilidade, e com a idéia de

comunitas ; a psicologia, com as redes de interação; e a sociologia, com as redes de organizações, e

mais recentemente acoplando este conceito ao estudo dos Movimentos Sociais e/ou da mobilização

de recursos de poder para ação direta.

Segundo Tomasin, quando se fala em rede de Movimentos Sociais , estão implícitas as idéias que a

metáfora suscita, como horizontalidade, descentralização, desconcentração de poder, diversidade

interna de organizações, flexibilidade e agilidade para se moldar às novas situações,

interdependência e articulações, complexidade e abertura ao externo. Todos estes elementos, sem

dúvida, vêm à tona no debate sobre redes. Merece destaque para reflexão o problema da

interdependência. Acreditamos que esta característica está mais presente na idéia de sistema, onde

as partes constitutivas precisam (dependem) umas das outras para seu desenvolvimento. A noção de

rede, por sua vez, diz respeito muito mais à possibilidade de autonomia, de complementaridade para

potencializar objetivos específicos, a partir dos quais se dão as articulações, que não se sobrepõem

ao fazer parte individual de cada entidade, e sim os reforçam.

A questão ecológica e a questão econômica-produtiva têm sido duas importantes áreas de

articulação de redes de grupos populares. Mas elas também se verificam no esforço que as entidades

vêm fazendo para propor, negociar e fiscalizar as políticas públicas, em especial os programas

sociais e o orçamento público. No Seminário “Atuação em Redes” os participantes ressaltaram que

o fato de suas entidades trabalharem em conjunto tem facilitado muitas coisas na sua intervenção

social, possibilitando o uso de recursos comuns, a ampliação da capacidade mobilizadora, a

concentração de esforços, a possibilidade de construir agenda pública para seus temas prioritários, o

efeito multiplicador de suas ações formativas e a maior visibilidade social dos seus trabalhos.

Ana Maria Doimo 6 usou a noção de redes para estudar os Movimentos Populares na década de 70.

Ela considera possível estabelecer alguns cortes analíticos para tipificar as redes e estabelece dois

tipos: as redes territorializadas , nas quais se incluem desde as redes de organizações populares

locais até as de alcance nacional; as redes temáticas , que indica certa especialização de funções.

Cruzando estes dois tipos, encontram-se as redes de influência que, imprimem uma certa direção ao

movimento popular. As redes de influência conseguiriam, pela sua atuação, orientar práticas, através

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dos cursos de formação, e canalizar politicamente recursos de poder no interior de tais práticas.

Um exemplo da mobilização de recursos de poder seria o que gerou o processo de participação

popular na Constituinte, que só foi possível através de uma rede de influência nacional,

entrecruzando-se com as redes locais e temáticas, para elaboração de emendas populares e coletas

de assinaturas, que propiciou a elaboração da Constituição de 1988, correspondendo às várias

proposições dos Movimentos Populares .

Outro elemento fundamental é a relação inter-redes que se desenha como uma perspectiva de

congregar esforços e potencializar os impactos na realidade local, as mobilizações gerais da

sociedade, em campos específicos de intervenção.

Hoje, o estudo, a partir da noção de redes, pode nos ajudar a compreender melhor o fenômeno dos

novos movimentos sociais, em especial seus diversos tipos de entidades e sua capacidade de obter

resultados, a partir da intervenção coletiva na realidade, alterando a situação de vida do povo. No

campo das práticas dos participantes de Movimentos Sociais, a intervenção em rede vem se

afirmando como mecanismo de exercício de democracia, da construção de relações de parceria e

co-responsabilidade, da arte de negociação, da partilha do poder, da cooperação mútua, da

solidariedade entre os seus membros.

A ação em rede é, assim, um campo de aprendizagem coletiva, onde se desconstroem e constroem

novas mentalidades, novos valores e modos de convivência e onde se busca contribuir na

consolidação da prática democrática no Nordeste e no Brasil. São grandes os desafios financeiros,

de autonomia, de visibilidade, de comunicação, mas sobrepõem-se a esses desafios a própria idéia

de trabalhar em rede, a superação do isolamento, a construção destas novas relações, o

reconhecimento do outro como sujeito legítimo, a efetivação de novas identidades, a congregação

de interesses diferentes, em um mesmo espaço e tempo. A rede é, também, um grande campo de

possibilidades, onde se destaca a importância do processo de sistematização das experiências –

identificado neste Seminário como um dos grandes limites – o que possibilita que as experiências

inovadoras sejam socializadas na sociedade como um todo.

Na perspectiva da reorientação dos recursos de investimento social advindo do mundo da

cooperação internacional para o Brasil, a ação em rede se coloca como uma possibilidade real, não

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só de otimizar os recursos e potencializar os resultados, mas também de descobrir novas estratégias

de sustentabilidade que extrapolem a busca de recursos externos, em especial nesta nova conjuntura

que se abriu no Brasil, no atual cenário político. A história está nos mostrando que o movimento das

redes e as redes de movimentos contribuem na construção do presente e investem na consolidação

das práticas democráticas e solidárias do futuro.

Notas:

1 Mestre em História e Filosofia da Educação, pela PUC-SP, e mestre em Políticas Públicas, pela UFMA.

2 Mestre em Ciência Política, pela UFPE, membro da Rede de Educadores Populares do Nordeste e também educadora da EQUIP.

3 Fontes, 2002, p. 22.

4 Sobre a noção de campo político dos Movimentos Sociais ver Silva, 2001 e Doimo, 1995.

5 Scherer-Warren, 1999.

6 Doimo, 1995.

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