A_sorveteria_PNLD2020_PR.pdf - Saber Educação

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A SORVETERIA Tadeu Pereira 2 a edição

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OR

VE

TE

RIA

Tadeu Pereira

Na pequena cidade de Ipê D’Oeste, a Sorveteria Pinguim é palco de paixões, revelações, reencontros. Ah, se aquele balcão em forma de U falasse... Seria o primeiro balcão de sorveteria contador de histórias do mundo.E que histórias: comoventes, engraçadas, intrigantes... Por trás de todas elas, a fi gura amiga de seu Atílio, que não faz apenas sorvetes: faz remédios para a alma.

2a edição

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Tadeu Pereira

Ilustrações

Bernardo França

A SORVETERIA

Histórias para refrescar a alma

2a edição

2018

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pereira, Tadeu

A sorveteria : histórias para refrescar a alma /

Tadeu Pereira ; ilustrações Bernardo França. —

2. ed. — São Paulo : Saraiva, 2018.

1. Contos - Literatura juvenil I. França, Bernardo. II. Título.

18-17097 CDD-028.5

Índice para catálogo sistemático:

1. Contos : Literatura juvenil 028.5

Maria Paula C. Riyuzo – Bibliotecária – CRB-8/7639

ISBN 978-85-472-3481-2 (aluno)

ISBN 978-85-472-3590-1 (professor)

Copyright © Tadeu Pereira, 2010

Gerente editorial: ROGÉRIO CARLOS GASTALDO DE OLIVEIRA

Editora-assistente: KANDY SGARBI SARAIVA

Auxiliar de serviços editoriais: RUTE DE BRITO

Estagiária: MARI KUMAGAI

Gerente de artes: NAIR DE MEDEIROS BARBOSA

Coordenação da produção editorial: TODOTIPO EDITORIAL

Preparação de texto: MARIA CECÍLIA CAROPRESO

Revisão: HÉLIA DE JESUS GONSAGA (GER.), KÁTIA SCAFF MARQUES (COORD.), ROSÂNGELA MURICY (COORD.), CÉLIA CARVALHO, DIEGO CARBONE E GABRIELA M. ANDRADE

Projeto gráfico e capa: ALICIA SEI / TODOTIPO EDITORIAL

2a edição2018

Todos os direitos reservados à SARAIVA Educação S.A.Rod. Presidente Dutra, km 136, bloco 4, módulo 5, Eugênio de MelloSão José dos Campos – SP – CEP 12247-004

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Um sorvete para cada história

Quem é que não tem uma sorveteria, uma pizzaria ou uma

pastelaria guardada na lembrança?

Aquele lugar onde a turma se reunia para paquerar, discutir fu-

tebol, falar dos professores, do novo colega, desta ou daquela música,

enfim, um templo com mesinhas e cadeiras onde todo mundo parava

para orar alguns minutos ou algumas horas à deusa do bate-papo.

Era bom demais. Tão bom que acabou, e para não ficar gripado

de saudades resolvi dar vida à minha (nossa) sorveteria, colocando no

papel as histórias que aconteceram naquelas mesinhas e cadeiras que

estarão sempre empilhadas na lembrança de quem as ocupou.

Portanto, não se acanhe. Venha você também para a Sorveteria

Pinguim, ocupe uma das mesinhas próximas aos janelões, e boa leitura!

Tadeu Pereira

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Sumário

Remédios para a alma 07

Sorvete de caju com calda de pitanga e a moça caprichosa 10

Os picolés de tamarindo e as galinhas da tia Dolores 12

Sorvete de nata com lascas de chocolate e as fronhas do Agenor 16

Sorvete de carambola com calda de marmelo

e as travas do prefeito Pastel 19

Sorvete de coco com calda de groselha e os medos do Dodô 21

Sorvete de ameixa com calda de pera e a longa espera 24

Os picolés de melancia e as sensibilidades do Dagoberto 27

Os picolés de goiaba e o presente do Vadinho 30

Sorvete de frutas cristalizadas com chocolate granulado

e o Gersinho Braço de Ferro 32

Sorvete de flocos com calda de jabuticaba e a professora de piano 35

Sorvete de tangerina com calda de cereja

e a depressão da divina Pieromonti 40

Sorvete de creme com calda de framboesa

e a maldição do laço de sapato 44

Sorvete de abóbora com calda de figo e a namorada do Neno 47

Sorvete de amendoim com calda de baunilha

e a complicada linguagem do amor 49

Sorvete de abacaxi com calda de romã

e o adeus feliz do Nicanor 51

Sorvete de milho verde com calda de laranja

e o mosquito que picou o padre 54

Sorvete de nata com lascas (muitas!) de chocolate

e o beijo do Fefeu Boca Murcha 58

Doutor de almas 60

Tadeu Pereira e a obra 62

Bernardo França e a obra 62

Sobre a obra 63

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Remédios para a alma

A população de Ipê D’Oeste costumava dizer que a cidade fi-cava entre as costas de Deus e o colo da Virgem.

Para quem nunca vadiou por aquelas bandas poder compreender melhor, as costas de Deus eram o fim da serra do Agrião, que começava lá bem longe, para os lados das terras roxas onde os italianos plantavam uva, azeitona e tomate-caqui. Já o colo da Virgem nada mais era do que o início do vale das Hortênsias, sempre infestado de ecologistas e observadores branquelos correndo atrás de pássaros, borboletas e in-setos raros.

Pois bem no meio dessas duas graças da natureza erguia-se Ipê D’Oeste, que ganhou esse nome por causa do hábito que os anti-gos moradores do lugar tinham de colocar cadeiras sob o grande ipê-amarelo da praça da estação para ali poderem curtir melhor o pôr do sol na lagoa Mansa.

Porém, mais que os encantos do vale, a paisagem da serra e o pôr do sol na lagoa, o que contribuiu de verdade para tornar a cidade nacionalmente conhecida foram os sorvetes da Pinguim, que ficava no cruzamento da rua da Árvore com a rua do Ginásio.

A sorveteria funcionava em um prédio de tijolos aparentes, com dois janelões na frente que se abriam para dentro. No toldo azul, ao lado do nome pintado de branco – Sorveteria Pinguim –, havia um pinguim equilibrando bolas de sorvete no nariz.

Era ali que seu Atílio e o neto, Quico, faziam a felicidade de moradores e visitantes.

— Não sei o que é… tenho andado meio jururu, caidão...— Ah, pois manda ver um sorvete de tangerina com calda de

cereja! É tomar e sair feliz como um bezerro amamentado!Sim, os moradores de Ipê estavam cansados de saber...Desânimo? Melancolia? Frustração? = Sorvete de tangerina

com calda de cereja.Nervosismo? Estresse? Irritação? = Sorvete de maracujá com

calda de amora.

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Sonhos não realizados? Falta de esperança? Vontade de sumir?

= Sorvete de chocolate com calda de laranja.

Insônia? Ansiedade? Suspiros sem fim? = Sorvete de flocos

com calda de ameixa.

Insatisfação profissional? Trabalho mal remunerado? Vontade

de chutar a marmita? = Sorvete de creme com calda de figo.

Dor de cotovelo? Amores não correspondidos? Coração saco

de pancadas? = Sorvete de jabuticaba com calda de framboesa.

Timidez? Travamento? Notas baixas? = Sorvete de carambola

com calda de marmelo.

Atrás do balcão em forma de U, bem ao lado do quadro de

sabores, um cartaz branco de letras pretas fazia sorrir os forasteiros.

Nos fundos do prédio, onde se localizavam tanto a residência

do velho sorveteiro como sua pequena fábrica de sorvetes, seu Atí-

lio, de cabelo branco e óculos de aros finos, ensinava o segredo do

bom sorvete ao neto Quico.

— Depois de colocar o leite desnatado, o açúcar, a manteiga e

a fruta que vai dar o sabor, mexa bem, até obter uma mistura homo-

gênea. Em seguida vem a pasteurização, processo que aquece e res-

fria a massa, promovendo assim um choque térmico que vai eliminar

possíveis bactérias. E aí… Bem, meu querido Quico, aí vem a parte

principal: bater o sorvete com os olhos, até sentir que a cor e a textura

estão fazendo sua alma cantar. Nunca deixe apenas a cargo de uma

máquina a tarefa de bater. O segredo está no olhar. No seu olhar.

O velho respirava fundo, contemplava com carinho as tigelas

de barro sobre a bancada de madeira. E continuava.

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— Também com os olhos você vai dar o ponto da calda, que nada mais é do que a namorada do sorvete.

— Mas, vô, isso de bater com os olhos é meio complicado… E se um dia a gente acordar com conjuntivite?

Seu Atílio ria, tirava os óculos para soprar a poeira das lentes. Tornava a falar.

— É muito simples, Quico. Bater com os olhos significa fazer com amor, carinho e dedicação. Não só os sorvetes e as caldas, meu filho. Tudo o que você vier a fazer na vida faça dessa maneira: com amor, carinho e dedicação. Só assim o resultado será bom para to-dos, e principalmente para você mesmo.

— Será que um dia vou conseguir fazer sorvete como o senhor?— Claro que sim. É só querer.Quico tinha treze anos e morava com o avô desde os sete,

quando a mãe morreu. O pai não pôde ficar com ele porque tra-balhava fora do país. Mais tarde, o pai casou-se novamente, mas o menino ficou ali em Ipê, naquela cidade em que o sorvete era tão importante quanto a missa de domingo, a macarronada e o futebol.

Sorvete de caju com calda de pitanga e a moça caprichosa

Ele estava sentado em um dos banquinhos enfileirados ao longo do balcão.

Era jovem, tinha cabelo preto, olhos claros e um jeito tímido de falar.Seu Atílio acabara de lhe servir uma taça de sorvete de caju

com calda de pitanga. O preferido do rapaz.— O senhor lembra de quando eu vinha aqui com ela?Seu Atílio balançou a cabeça. Lembrava.— Ela gostava do sorvete de coco com calda de amendoim. E

eu nunca sabia se tomava o meu sorvete ou se ficava olhando ela to-mar o dela. O sorriso, o olhar, o cheiro… tudo nela me hipnotizava, me deixava sem ação. O mundo era ela, o Sistema Solar era ela, nada

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mais tinha importância quando eu ouvia sua voz ao meu ouvido pe-

dindo coisas. Que prazer enorme eu sentia em realizar os caprichos

dela… Esse foi o meu erro, seu Atílio, realizar todos os desejos dela!

— Não se torture, meu jovem. Apenas procure curtir seu sorvete.

— Por favor, seu Atílio, eu preciso falar. Tenho quase certeza de

que esta é minha última chance de conversar com alguém tão querido.

O velho sorveteiro sorriu, cheio de compreensão e emocionado.

O jovem continuou seu desabafo.

— Os primeiros pedidos eram simples… flores, frutas, ani-

mais de estimação, mas depois seu olhar foi adquirindo um brilho

estranho quando ela formulava desejos, que foram se tornando cada

vez mais estranhos e complicados. E tentar realizá-los acabou sendo

a minha ruína! Fui caindo, caindo, até acabar no fundo do poço. O

roubo daquela joia vai custar os melhores anos da minha vida... atrás

das grades. Fale a verdade, seu Atílio, eu estou acabado...

— Nada disso, você não está acabado. Agora, sim, é que vai ter a

oportunidade de provar seu valor. De mostrar que tem fibra e dignidade.

— Ninguém mais acredita em mim, seu Atílio. Meus pais, meus

parentes, meus amigos, todos me abandonaram. Ela me abandonou!

Ela, seu Atílio, que jurava me amar como ninguém jamais me amou!

— Ela nunca soube o que é gostar de alguém, meu jovem.

Aquela mulher ama uma única pessoa neste mundo: a si mesma.

— Esse foi o meu erro, então? Acreditar nela?

— Talvez. Mas a questão é outra…

O jovem deixou a colher de sorvete a meio caminho da boca,

esperando o sorveteiro concluir.

— Nunca mais se aproxime de alguém que gosta de sorvete de

coco com calda de amendoim!

O rapaz explodiu numa gargalhada longa e espontânea. Seu

semblante iluminou-se, o corpo pareceu ganhar vida.

— Está vendo como fiz bem em passar aqui antes de ir embo-

ra? — Ele ainda ria, alegre como um garoto correndo livre pela areia

— O senhor pendura esse, seu Atílio?

— Claro que não! Esse é oferta da casa.

O jovem estendeu a mão para o sorveteiro.

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— Obrigado por tudo, seu Atílio. Um dia eu volto e nós va-

mos retomar a nossa amizade.

Ficou de pé, acariciou devagar o mármore do balcão, olhou em

volta Os policiais que o aguardavam na porta aproximaram-se para

algemá-lo. Depois, saíram apressados, levando o rapaz.

Na calçada, antes de entrar na viatura, ele se voltou e acenou

para seu Atílio, que lhe sorriu e acenou de volta.

Os picolés de tamarindo e as galinhas da tia Dolores

Tinham sido grandes amigos. No ginásio, um sentava ao lado do

outro, e aprontavam mil e uma. No futebol, os dois jogavam na lateral,

e um cobria o outro quando um deles descia para apoiar o ataque.

A vida os separara até um feriado nacional uni-los novamente.

Claro que o reencontro se deu na Sorveteria Pinguim, antigo tem-

plo de encontros, confissões e devaneios. O sorvete era o mesmo

das tardes de futebol e das noites de paquera: picolé de tamarindo.

Um era magro, o outro, gordo.

— Você continua um lápis vestido.

— E você, um melão de camiseta.

Riram. E, enquanto os palitos dos picolés iam se amontoando

no balcão, os amigos falaram de Deus, do diabo, de anjos e demô-

nios. Aí o magro propôs uma antiga brincadeira.

— Lembra do nosso jogo benfeito, malfeito?

— Como eu poderia esquecer!

— Então, vai, começa aí. Dê um exemplo de uma coisa boa

que você fez e de outra que se arrepende de não ter feito.

O gordo mordeu os lábios, recuou no tempo.

— Bom… Acho que a melhor coisa que eu fiz foi escrever

no muro do ginásio que o professor de Química usava peruca. O

sujeito era insuportável. Chato, ranzinza, arrogante. Depois que o

segredo dele foi revelado, sumiu que nem poeira, lembra?

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— Rapaz! Então foi você que pichou o muro?O gordo exibiu um sorriso triunfal e confirmou com a cabeça.— Agora conte a coisa que você se arrepende de não ter feito.— Ah, cara, sem dúvida nenhuma meu grande erro foi não ter

pedido a mão da Júlia antes de eu ir para a capital. Marquei.O magro lambeu os dedos lambuzados de sorvete. Também

recuou no tempo.— Quer saber? Pois o que fiz que não deveria ter feito foi

botar pimenta-do-reino no açucareiro da cantina. A Margarida, que atendia no balcão, perdeu o emprego por isso. Às vezes acordo du-rante a noite pensando como é que ela se virou. O pai e a mãe eram doentes, dependiam do trabalho dela.

— E você, hein, com aquela cara de anjo de procissão…— Bom, já a melhor coisa que fiz, agradeço aos céus!, foi ter

me casado com a Júlia.O gordo engasgou com a própria saliva. Arregalou os olhos.— Você se casou com a Júlia?— Hã-hã. Temos dois filhos lindíssimos.O gordo tossiu, piscou, remexeu-se no banquinho.— Como você foi capaz de se casar com a Júlia?! Justo você,

meu melhor amigo!— Muito simples. Fui lá, falei que estava apaixonado e que

queria me casar com ela. Ela pediu um tempo para pensar: dois dias. Eu passei as horas rezando e voltei à casa dela depois de dois dias. Os anjos ouviram minhas orações. Ela aceitou o meu pedido.

— Pô, que cara de pau, você…— Ora, por quê? Que foi que eu fiz de errado? A Júlia, por

acaso, era exclusividade sua?— Não, mas eu achava que ela era caída por mim… Lançava

uns olhares na minha direção…— Olhares não querem dizer paixão, meu amigo.O gordo balançou a cabeça, inconformado.— Resumindo — falou o magro —, você se casou com outra

e é feliz, certo?— Certíssimo.

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— Então, ponto final. Você é feliz. Eu sou feliz. A Júlia é fe-liz… Só a tia Dolores não é lá muito feliz.

— O que é que a sua tia tem a ver com a história?O magro pediu outro picolé. Encarou o amigo.— O professor de Química namorava a tia Dolores. Iam ficar

noivos na semana em que apareceu a tal inscrição no muro.O gordo fez uma careta.— Poxa, eu sinto muito… A tia Dolores sempre foi legal. Coi-

tada da tia e do Italiano…— O que é que tem o Italiano?! — surpreendeu-se o magro.O gordo suspirou.— Foi expulso de casa depois que marcou o gol da vitória

sobre o Piratininga. E o lançamento saiu dos seus pés, lembra?O magro lembrava.— Pois é, a família inteira do Italiano torcia para o Piratininga.

Naquela tarde, depois de ser carregado em campo pela nossa tor-cida, ele chegou em casa e deu com a mala, prontinha, no portão. Não deixaram nem o coitado se despedir do periquito de estimação.

— Caramba!E os dois ficaram em silêncio por uns bons cinco, seis minutos.

Tempo que serviu para meditarem sobre os caprichos da vida, que às vezes joga de maneira a fazer bons amigos se olharem de canto de olho.

Em seguida, os dois se encararam e caíram na risada, como nos velhos tempos em que a diversão era a matéria preferida da dupla.

— Então você se casou com a Júlia, seu conquistador barato.— E, por sua causa, hoje a tia Dolores cria galinhas.— É. E o Italiano mora na Bolívia.Tornaram a rir. E pediram outro picolé.

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Sorvete de nata com lascas de chocolate e as fronhas do Agenor

Dirce e Dulce são irmãs, têm 72 anos e foram as mais famosas namoradeiras da cidade e de toda a região.

Não havia baile ou festa em que as duas não marcassem presen-ça, acabando por ficar com os amarildos mais cobiçados pelo público feminino. Eram amadas e odiadas. Serviam de bom e mau exemplo. E divertiam-se de montão.

Solteiríssimas e muito falantes, todas as tardes ocupam a mesi-nha próxima do janelão direito da Sorveteria Pinguim, justamente a que possui vista privilegiada da rua da Árvore e da rua do Ginásio. Saboreiam seus sorvetes de nata com lascas de chocolate enquanto repassam suas movimentadas aventuras.

— Lembra do Dirceuzinho da floricultura?— Bonitinho, mas nanico.— É. E tinha uma coriza miserável.— Tá brincando!— Sério. Devia ter algum problema de encanamento. Escorria

que nem torneira sem courinho.— Santa Clara! Isso me faz lembrar do Abelardo da farmácia…— Um chato de galocha!— Sim, mas tinha uns olhos cor de mel que… Bem, e não

é que o dito-cujo chorava que nem criança quando abraçava uma mulher? Dizia que se lembrava do útero da mãe!

— Papagaio, que memória!— Pois o chorão dizia que os nove meses na barriga da mãe

foram os melhores da vida dele.— Virgem santa! Devia odiar quem fez o parto!— Por falar em parto, lembra do Vanderlei enfermeiro?— Tipão. Moreno, alto, dentes bonitos.— Hã-hã. E usava calcinha.— O quê?!

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— Vermelha. Vi com estes olhos de ex-musa do verão. Ele me mostrou durante a queima de fogos na Festa do Tomate-Caqui. Lem-bra dessa festa?

— Como eu poderia esquecer? Foi nessa festa que eu rocei as unhas na nuca do Luciano da tapeçaria e ele ficou doidão. Começou a uivar que nem cachorro em noite de Lua cheia. Tiveram de dar um calmante e levar o moço para casa. Ficou três dias murmurando o meu nome. O pai dele foi lá em casa pedir indenização, disse que eu havia enfeitiça-do o infeliz. E aí eu fui à polícia e o acusei de chantagem. Depois fiquei com dó e tirei a acusação. O velho era asmático e tinha catarata, coitado.

— Mamma mia! Lembro que nesse dia fui com você à delega-cia e pisquei pro delegado novo.

— Foi. Aí ele começou a mandar flores todos os dias. E era casado.— Só que eu não sabia. Ah, que boca linda ele tinha, lembra?— É verdade. Mas do que eu me lembro mesmo é da boca da

mulher dele. Falou cobras e lagartos pra você.— Pobrezinha. Era complexada porque mais parecia uma

geladeira vestida.As duas se dobraram de rir. Pediram outra taça de sorvete.

Retomaram a conversa.— Afinal, minha querida, por que foi mesmo que você não se

casou com o Vantuir do banco? Ele não era um bom moço?— Boníssimo, sem dúvida. O problema era o amendoim.— Amendoim?!— É. Ele gostava de comer amendoim torrado, só que esque-

cia as casquinhas nos dentes. Horrível! Mas vem cá, filhinha, você também poderia ter tido outra vida… Por que raios você foi chutar o Agenor quando faltavam quinze dias para o casamento? Olha que o rapaz era um advogado de futuro.

— Quer mesmo saber o verdadeiro motivo?— Estou me coçando de curiosidade.— Numa tarde, quando fomos à nossa futura casa, pedi ao

Agenor que colocasse fronha nos travesseiros. Menina, que desastre! Ele embolou tudo de tal maneira que no fim o travesseiro parecia um saco com um monte de pedregulho enfiado. Aí eu pensei com as

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minhas sardas: como é que alguém que não sabe botar uma simples

fronha num travesseiro pode ser um bom marido?

— E daí você deu um bico no pobre Agenor?

— Hã-hã. E com o sapato de andar no cascalho.

E lá se foram a tarde, os sorvetes, as histórias.

Sorvete de carambola com calda de marmelo e as travas do prefeito Pastel

Olavo Pastel era um bom prefeito. Trabalhador, homem justo

e honesto. Cumpria o segundo mandato à frente da prefeitura de

Ipê D’Oeste, e tinha tudo para fazer do vice, Tiago Boquinha, seu

sucessor. Olavo Pastel tinha apenas um defeito: em certas ocasiões,

geralmente imprevisíveis, dava de travar a língua, piscava sem parar,

engasgava, tossia e não dizia coisa com coisa.

Em tais situações sempre contava com o auxílio providencial do

Pedro Cheiroso, seu amigo de infância, compadre, fiel escudeiro e quase

cunhado. Prestativo, Cheiroso costumava recorrer a uma pequena vasi-

lha de sorvete de carambola com calda de marmelo, único remédio sem

efeitos colaterais capaz de destravar a problemática língua do prefeito.

Pauleira mesmo era quando faltava carambola no mercado, época em

que o mandatário local trocava os discursos e entrevistas pelo silêncio

acolhedor de seu gabinete. Mas o imprevisível é como dente, está sem-

pre se fazendo notar nos momentos impróprios.

Certa vez, em viagem pelo interior do estado, o governador

decidiu dar uma esticada na cidade de Ipê D’Oeste para tomar um

refresco. Bem instalado e bem servido no gabinete refrigerado do

prefeito Pastel, o governador mostrou-se grato na hora da despedi-

da: por acaso o prefeito estaria precisando de algo para o município?

Bem, Ipê D’Oeste daria um belo salto econômico se tivesse uma

ponte moderna que facilitasse o escoamento de sua produção agrícola, mas

a bendita língua do mandatário local mais uma vez resolveu roubar a cena.

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Desprevenido desta vez, Pedro Cheiroso correu à Sorveteria Pinguim em busca da salvação do amigo, chefe e quase cunhado.

— Seu Atílio, pelo amor de Santo Inácio, descola o que o senhor tiver aí de sorvete de carambola com calda de marmelo! Urgente!

Calmo, o velho sorveteiro expôs o problema.— Sinto muito, seu Pedro, vou ficar devendo. Não é época

de carambola.— Minha santa Ernestina! O que é que eu faço agora?!— Por que o senhor não experimenta levar o de ameixa com

calda de marmelo? Não é a mesma coisa, mas numa emergência…Cheiroso topou e retornou à prefeitura levando a meia solução

numa embalagem de isopor. Dois dias depois, lá estava ele de novo na sorveteria.

— E então, como é que foi? — perguntou seu Atílio.— Mais ou menos. O prefeito deu só uma meia destravada, e

o governador liberou só uma meia verba.Mais tarde descobriu-se o seguinte: como naquele dia o prefeito

Olavo Pastel só conseguiu explicar parte do problema, o governador só disponibilizou parte da verba, com a qual só se pôde construir um pedaço da ponte, que por isso mesmo ficou conhecida na região como Metadinha.

Uma tarde, observando o mato se alastrar abusivamente na meia ponte, o prefeito teve a ideia de pedir ajuda à União para concluir a obra, e logo na manhã seguinte tocou direto para a capital federal.

Na bagagem, Pedro Cheiroso levou um quilo e meio de sorve-te de carambola com calda de marmelo.

— Dessa vez é pau no gato! Não tem erro! — exclamou o escudeiro, exibindo com orgulho ao prefeito Pastel a caixa térmica adquirida para a ocasião.

— Tudo certo, então? Ótimo!Mas não é que a disgramada da caixa térmica falhou na hora

H e o bendito sorvete derreteu? Pois foi. Pastel piscou, gaguejou, tossiu. O ministro do Interior entendeu a explanação à sua maneira e acabou liberando uma determinada verba.

Um dia, quando viu Pedro Cheiroso outra vez na sorveteria, seu Atílio perguntou:

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— E aí, seu Pedro, então vamos finalmente terminar a nossa Metadinha?

— Que nada, seu Atílio. O ministro liberou dinheiro foi para implantar um programa de saúde.

— Não diga! E que programa é esse?— Semana de Prevenção e Combate à Gagueira.Semana que, na verdade, acabou se estendendo por um mês,

por causa da dificuldade de os participantes exporem seus problemas dentro dos dez minutos previstos para cada um.

É bom lembrar que o destaque do evento foi o sorvete de ca-rambola com calda de marmelo da Sorveteria Pinguim. Ele fez tanto sucesso que seu Atílio teve de comprar às pressas toda a colheita do Cido Serrote, o maior produtor de carambola da região.

Sorvete de coco com calda de groselha e os medos do Dodô

A Laurinha e o Dorival conheceram-se na Sorveteira Pinguim ainda adolescentes e namoraram ao longo de dez anos. Dez anos de sorvete de coco com calda de groselha, o preferido do casal nas calorentas tardes de domingo.

Um dia, finalmente, resolveram marcar a data do casamento, para a alegria de familiares, amigos e conhecidos. Mas aconteceu de o Dorival contrair certa virose e precisar curtir duas semanas de leito de hospital, suportando as mais variadas e angustiantes picadas. Quan-do saiu, mais magro e abatido, deu de cismar com vírus, bactérias e fungos misteriosos, passando a fazer uso de uma máscara de látex que adquirira pela internet.

— E aí, Dodô, a gente não vai mais se beijar, é? — perguntava Laurinha.— Deus me livre, Laurinha! O ar vive infestado de porcaria.

A gente pode muito bem levar uma vida saudável sem precisar trans-mitir micróbios um para o outro.

— Você quer dizer uma vida sem beijos e beijocas?

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— Pois fique sabendo que muita pegação é contagiosa, minha santa!

Os parentes e amigos da Laurinha ficaram de queixo caído

quando souberam da história.

— Desiste! O cara pirou!

— Eu sempre achei esse rapaz meio esquisito!

— Laurinha, querida, você tem coragem de viver para sempre

com um rascunho de monge?

E a Laurinha, aflita:

— O que é que eu posso fazer? Eu amo o Dodô!

E amava mesmo. Tanto que manteve a decisão de se unir ao

Dorival, embora soubesse que viveria num deserto de carícias.

Padre Floriano arregalou os olhos e repuxou um dos cantos da

boca ao saber de Laurinha o que Dodô pretendia.

— Ele vai entrar na igreja de máscara?!

— Que remédio, padre? Ele não tira aquela coisa nem pra

tomar banho.

O padre suspirou, fez o sinal da cruz: seja feita a vontade do moço.

Acertaram a cerimônia para um sábado, início da primavera. E naquele

dia, com as andorinhas fazendo algazarra no madeiramento da nave da

igreja, o padre Floriano abençoou a união de Laurinha e Dorival.

Ela estava linda, de vestido azul-turquesa e grinalda de flores do

campo. O noivo até que ficou simpático no terno café com gravata

prateada, combinando com a inseparável máscara de látex. Tudo corria

bem, até o padre pedir o beijo que selaria definitivamente a união.

Os noivos viraram-se de frente um para o outro, observados ansio-

samente pelo padre, pelo Cristo na cruz e pelos cento e dezenove con-

vidados. O Dorival, paralisado, suava frio. A Laurinha, trêmula, aguar-

dava o desfecho da situação. As andorinhas, caladas, sentiam o clima.

Por toda a igreja o inevitável cochicho: ele vai beijar ou não?

Foi então que a tia Cinira, que criara o Dorival até os doze

anos, saiu lá do fundo e foi caminhando na direção do altar. Na

mão direita, a famosa bengala de carvalho, de cabo curvo e ponteira

de borracha. Os convidados prenderam a respiração quando a idosa

parou diante dos noivos e encarou Dorival brandindo a bengala.

— Lembra da “Marieta”, Dodô?

— Le-lembro sim, titia.

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— Pois bem. Agora tira essa tranqueira da cara e beija a sua

mulher. Vamos.

— Ma-mas, titia…

— Deixa eu lhe dizer que a Marieta anda morrendo de sauda-

de das suas canelas de seriema. Quer que eu mate a saudade dela?

— Nã-não, po-por favor!

— Então vai, cabeça de funil. Cumpra a sua missão.

O beijo foi cinematográfico, para alívio dos convidados, do

padre e das andorinhas.

Terminados os cumprimentos, todo mundo seguiu a pé para

a Sorveteria Pinguim, com a Laurinha e o Dorival à frente, devida-

mente escoltados por tia Cinira e Marieta.

Sorvete de ameixa com calda de pera e a longa espera

A garota loira entrou na sorveteria, sentou-se no banquinho

ao lado do senhor grisalho e pediu sorvete de ameixa com calda de

pera. O senhor grisalho virou-se para ela.

— Conheci uma pessoa que também gostava desse sorvete.

Uma moça bonita como você.

A garota ajeitou o cabelo que lhe caía nos olhos.

— Era sua namorada? — ela perguntou.

— Sabe que eu não sei? Na verdade, tudo que eu sei é que

ainda gosto muito dela.

— O que aconteceu?

— Ela foi embora e até hoje estou esperando por ela. Na últi-

ma vez que nos vimos, combinamos de um dia nos encontrarmos

aqui na sorveteria.

— E quando foi isso?

O homem franziu a testa e olhou o balcão como se em algum

ponto dele estivesse marcada a data do último encontro.

— Há mais ou menos vinte anos.

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— Nossa! — disse a garota, espantada, erguendo as sobran-celhas. — Eu não conseguiria esperar alguém por tanto tempo!

— Quantos anos você tem?— Vinte.— Quantos namorados você já teve?A menina riu e uma covinha surgiu-lhe no lado direito do rosto.— Tenho um namorado, que ficou na capital por causa do

trabalho. Eu mesma estou perdendo aulas na faculdade lá. Vim só fazer companhia à mamãe.

— Você tem outros parentes na cidade?— Minha mãe é daqui e meu avô ainda mora na mesma casa

em que ela nasceu. Talvez o senhor a conheça, ela se chama Nara.O senhor grisalho prendeu a respiração. Foi soltando o ar de-

vagarinho, procurando reviver a sensação de paz que sentia há vinte anos, quando Nara entrava na sorveteria de vestido amarelo e cabelo solto. Fez de tudo para disfarçar a emoção.

— O nome não me é estranho. O problema é que hoje em dia eu faço alguma confusão com rostos, datas, lugares…

— Como é o seu nome? — quis saber a garota. — Vou per-guntar à mamãe se ela se lembra do senhor.

Perturbado, ele se remexeu no banquinho. Mentiu.— Pedro.— A mamãe com certeza vai se lembrar do senhor! Ela pagou o sorvete e despediu-se, deixando o homem pensativo.Ele permaneceu algum tempo olhando para a parede branca à

sua frente. Às vezes sentia frio, às vezes sentia calor. Picolé de laranja ou de goiaba? Não, melhor ir embora. Pagou a conta e foi saindo lentamente, certo de que era a última vez que vinha à Sorveteria Pinguim. Não precisava mais esperar por ela.

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Os picolés de melancia e as sensibilidades do Dagoberto

Dagoberto e Viviani estavam chupando um picolé de me-

lancia na Sorveteria Pinguim quando seus olhares se cruzaram e

eles se apaixonaram. Sessenta dias depois, estavam casados. Viviani

tornou-se a nova filha da família de Dagoberto, para a sorte de suas

unhas, já que a mãe dele era manicure. Dagoberto tornou-se o novo

filho da família de Viviani, para o azar de seu estômago delicado, já

que o pai dela era um imbatível cozinheiro napolitano.

— Eu preciso mesmo ir a esse almoço de domingo, Vivi?

— Claro, Dagô. Agora você é da família. Se não for, todos vão

ficar ofendidos.

— Você sabe qual é o cardápio?

— Lasanha com queijo romano e presunto de Parma ao

molho f lorentino. Berinjela recheada com carne de carneiro à

moda siciliana e…

— Para, para, pelo amor de São Genaro! Pode anotar, Vivi,

depois disso vou passar três dias no purgatório!

— Ai, Dagô, não faz drama!

Mas Dagoberto não estava exagerando. Depois do almoço de

domingo, passou realmente três dias de cão, tomando soro, injeções

e líquidos intragáveis.

Recuperado, abriu-se com a mulher.

— Não dá mais, Vivi! Não posso mais ir a esses… a esses…

banquetes de ogros!

— O papai não é um ogro, Dodô. Ele é um excelente cozi-

nheiro, e especializado na cozinha napolitana. O seu estômago é

que é, digamos, um tanto frágil.

— Tudo bem, não estou querendo tirar os méritos do seu pai.

O homem é fera na cozinha. Mas o xis da questão é que o meu es-

tômago foi acostumado com arroz branco, purê de batata e suflê de

espinafre. Se não encontrarmos uma solução bem rápido, qualquer

dia eu vou para o hospital e não volto.

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— Ai, Dagô, como você é trágico!

— Quando será o próximo sacrifício… quer dizer, banquete?

— Domingo que vem. Na casa da tia Nicoleta.

— Jesus Cristo! Escuta, acabei de ter uma ideia! Vou ser se-

questrado no sábado à tarde! Que tal?

— Tá maluco? Quem é que vai sequestrar alguém com um

emprego mixuruca como o seu? Se liga, Dagô!

— Peraí, peraí. E se eu disser que não estou almoçando aos do-

mingos porque fiz uma promessa para o meu time ser campeão? Hã?

— Seu time foi campeão no ano passado, Dagô!

— E daí? Quero que ele seja campeão de novo!

— Esquece. E trate de ir preparando o seu estomagozinho. Va-

mos ter bife de búfalo acompanhado de cebola roxa, chouriço calabrês,

arroz refogado em manteiga de leite de cabra e torta de alcachofra.

Dagoberto tapou a boca e correu para o banheiro.

Sem alternativa, ele compareceu ao banquete de domingo na

casa da tia Nicoleta. Passou mal naquela noite e continuou mal na

manhã e na tarde de segunda-feira. Na terça-feira, Viviani falou

em chamar o médico.

— Não, não, chama o padre. Dessa vez eu vou, Vivi.

— Para com isso, Dagô! Parece criança!

E foi ali na cama, com o estômago revirado como quarto de

república, que Dagoberto encontrou o caminho para a salvação.

— Vivi! Vivi!

Dagoberto tentou sair da cama, a cabeça girou e ele acabou

despencando no tapete de crochê, presente da tia Nicoleta. Viviani

chegou correndo e o ajudou a voltar para a cama.

— Achei, Vivi, achei! Como é que eu não pensei nisso antes?

E o Dagoberto contou que a ideia era convocar o Dagomir,

seu irmão gêmeo, para substituí-lo nos banquetes da família. O Da-

gomir, garantia o Dagoberto, tinha estômago de jacaré.

— Uma vez ele comeu feijoada, buchada de bode e linguiça de

carne de cavalo. De sobremesa, banana assada e licor de jaca — contou

Dagoberto.

— Credo!

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— Pois dormiu e sonhou com a Madonna, os dois estavam…

Bem, o que você acha da minha ideia, Vivi?

Viviani ficou sem saber quem era quem quando, no domingo

de manhã, o Dagomir sentou ao lado do irmão no sofá.

— Nossa! Um é xerox do outro!

Graças à tal semelhança, todos na família de Viviani jamais

desconfiaram de que o Dagomir não fosse o Dagoberto. E durante

os quatro meses seguintes, enquanto Dagomir engordava, Dagober-

to deliciava-se com seu cardápio à base de purê de batata.

Um dia, porém…

— Vivi, nem te conto! — exclamou o Dagoberto, desabando

no sofá, deprimidíssimo.

— Que foi, Dagô?

— O Dagomir foi transferido. Vai trabalhar na filial de Curitiba.

— Ih, Dagô! Sábado agora tem outro banquete.

— Cadê meu livro de orações?

No final da tarde de sexta-feira, quando Dagoberto retornou

do trabalho, Viviani contou a nova do dia.

— Papai sentiu-se mal e foi ao médico. Ele está com a pressão

e o colesterol altos, tem diabetes e má circulação.

Dagoberto fechou seu livro de orações e encarou a mulher.

— E isso quer dizer o quê?

— Que ele vai ser obrigado a entrar numa dieta à base de caldo

de ervilha e purê de mandioquinha.

Dagoberto ajoelhou-se no tapete e ergueu os braços para o alto.

— Deus seja louvado! Deus seja louvado!

— Não sei se você deveria comemorar, Dagô. Os banquetes

foram transferidos para a casa do tio Piero, especialista em lula ao

alho e óleo e ostra caramelada.

Dagoberto desabou no tapete, e seu estômago começou ime-

diatamente a gritar.

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Os picolés de goiaba e o presente do Vadinho

Ao longo dos anos, Osvaldo Malota tornou-se um dos mais co-

nhecidos e prósperos criadores de cavalos da região. Sua propriedade

e seus animais viviam em uma agitada evidência, filmados por emis-

soras de televisão e fotografados por jornais e revistas especializados.

Osvaldão, como era conhecido, não tinha inimigos. Sabia como

ninguém os segredos de agradar a grandes, pequenos, gordos e magros.

Havia só uma coceirinha que incomodava o homem: Vadinho, seu único

filho, um jovem amante da arte de desenhar, pouco afeito a animais de

quatro patas.

— O que acontece com esse moço, Rosalice? Será que ele é…

— Não me venha com bobagens, Valdo! O Vadinho é um

rapaz normal. Aliás, até passa do normal! Não é qualquer um que

ama tanto desenhar como ele!

— Desenho! Só me faltava isso na vida!

— Não reclama, Valdo. Você é um sujeito realizado.

— Graças aos meus cavalos!

— Ah, então a sua família são os cavalos, é?

Nessas ocasiões, quando o leite começava a derramar, o ho-

mem batia em retirada. Refugiava-se nas baias e por lá ficava o resto

do dia. Aquele era o seu paraíso particular.

Vadinho, magrelo e branquelo, passava os dias na Sorveteria

Pinguim chupando incontáveis picolés de goiaba enquanto devora-

va volumosos livros de arte. Vez ou outra olhava a rua e suspirava,

pedia outro picolé e voltava aos livros.

Certa vez, o bem-sucedido Osvaldo foi correndo contar à mu-

lher uma ideia que acabara de ter.

— O aniversário do Vadinho é na próxima semana, não é?

Pois o presente dele será um cavalo árabe! O que você acha?

— Bacana. Só que eu nem imagino o que ele vai fazer com o presente.

— Como não imagina? De um jeito ou de outro ele vai ter de

usar o cavalo. Não seria educado recusar um presente dos pais.

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— Pensando bem, não é má ideia. Quem sabe…O aniversário do Vadinho caiu numa quinta-feira, e logo de

manhã os pais foram procurá-lo.— Ele não está nem no quarto nem no banheiro — disse a mãe.— Na cozinha e no quintal também não está — disse o pai.Foram achá-lo na Sorveteria Pinguim, chupando picolé de

goiaba e consultando seus inseparáveis livros de capa dura.Osvaldo e a mulher abraçaram e beijaram o filho, e ele agrade-

ceu emocionado quando a mãe desejou-lhe saúde, arte e felicidade. O pai falou do presente e pediu-lhe que fosse espiar na janela. Vadi-nho esticou o pescoço e piscou três vezes antes de gaguejar.

— É o ca-cavalo?— Isso mesmo! — respondeu o pai. — Você não vai montar nele?O rapaz olhou para o pai, olhou para a mãe, olhou para o

cavalo parado no meio-fio. Pediu desculpas pela indelicadeza, le-vantou-se e caminhou para fora. O pai ficou radiante.

— Está vendo? Agora ele vai sair cavalgando como um caubói!E saiu correndo da sorveteria para ver. Lá fora, encontrou o

filho dando voltas com o cavalo, sim, só que puxando-o pela rédea.O pai não resistiu, gritou como um maluco:— Monta, seu besta! Monta!Mas Vadinho nem deu bola. Continuou descendo a rua, le-

vando seu cavalo árabe pela mão.

Sorvete de frutas cristalizadas com chocolate granulado e o Gersinho Braço de Ferro

Todo mundo conhecia o casal como “a Odete e o Gersinho da Odete”, e tal identificação correspondia à realidade.

A Odete era grande, forte, mandona. O Gersinho era peque-no, franzino, serviçal. Ela vivia sorridente e bem-disposta. Ele estava sempre cansado e tristonho.

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Não era para menos, afinal Gersinho já acordava com vassou-

ra, rodo e balde nas mãos, e passava o dia varrendo, lavando, enxu-

gando. Cuidando da casa.

Já com a Odete era bem diferente. Todos os dias ela saía da cama

e logo se refugiava em seu banheiro privativo, onde tomava seu demo-

rado banho matinal. Depois, fazia exercícios leves, espalhava quilos de

creme hidratante no corpo, penteava-se, maquiava-se e ia às compras.

Voltava no meio da tarde carregada de sacolas de frutas, doces e sucos

naturais. Também trazia comida pronta, já que nunca chegava perto

do fogão. Certa vez chegou a questionar o marido.

— Gersinho, aquele treco na cozinha cheio de botões não tem

controle remoto?

— Evidente que não, Odete. Aquele treco chama-se fogão,

funciona a gás, e as chamas das bocas do fogão é que fornecem calor

para o preparo da comida.

— Eu, hein! Cruz credo!

No final da tarde, após lavar as louças do almoço e do lan-

che, Gersinho acompanhava a mulher à Sorveteria Pinguim, onde

ocupavam uma mesa próxima do janelão esquerdo. Aí, a Odete

tomava o seu sorvete de ameixa com calda de caramelo, enquanto

o Gersinho delirava com sua taça cheinha de sorvete de frutas cris-

talizadas com chocolate granulado. Esse, aliás, parecia ser o único

momento feliz do dia de Gersinho.

Em um final de tarde abafado, em que todas as mesas da sorve-

teria estavam ocupadas, o Gersinho levantou-se para apanhar mais

guardanapos de papel no balcão. Na volta, distraído, pisou num pé

enorme que obstruía boa parte da passagem. O dono do pé, para a

infelicidade do Gersinho, era o Tonhão Borracheiro, tipo grande e

forte, conhecido pelos modos nada civilizados.

— Pe-perdão, senhor — desculpou-se Gersinho.

O homão franziu a testa curta, fantasiada com sobrancelhas

que pareciam tiras de fita isolante.

— Aonde vai com essa pressa, meu irmão? O sorvete não vai

derreter até você chegar à mesa!

— Tem razão, claro. Perdoe a minha desatenção.

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— De jeito nenhum! Taí um tipo de desfeita que eu não levo

pra casa! Vamos tirar a questão a limpo!

O silêncio tomou conta da sorveteria. Ouvia-se apenas o vup-vup

dos ventiladores do teto. Enquanto seu Atílio pensava numa maneira

firme mas educada de intervir, para evitar mais constrangimentos, o bor-

racheiro já afastava as taças de sorvete da mesa e ordenava ao Gersinho:

— Senta aí, meu irmão! Alguma vez o cidadão já disputou

uma queda de braço?

Gersinho sentou lentamente, sem deixar de pensar um único

segundo no sorvete derretendo na taça. Sentiu um calor que come-

çou em algum lugar do couro cabeludo e desceu até o dedão do pé.

Nunca havia sentido aquilo, mas achou bom.

— Chega de conversa! — falou Gersinho, de cara fechada. —

Vamos acabar logo com isso!

Ao ver os dois homens posicionando os braços e preparando-se

para a disputa, Quico, o neto de seu Atílio, pensou em desligar os ven-

tiladores. Por um momento, achou que o vup-vup poderia atrapalhar

a concentração dos competidores. Desistiu da ideia quando, de queixo

caído, viu o braço comprido e fino do Gersinho forçar o bração do bor-

racheiro e arriá-lo sobre a mesa. As taças tombaram com o movimento

brusco, o sorvete que escorria delas começou a pingar no chão.

Envolto no silêncio hospitalar da sorveteria, Gersinho levan-

tou-se e encarou Tonhão.

— Tudo certo, meu irmão?

E o borracheiro, esfregando o pulso do braço perdedor.

— Tá limpo, meu irmão.

Alguém no fundo da sorveteria puxou os aplausos, que foram

ouvidos até por quem passava na rua de baixo. O borracheiro pagou a

conta e saiu apressado, deixando o Gersinho curtindo abraços e elogios.

Mais tarde, quando as pessoas desfizeram a roda em torno do

Gersinho, ele se aproximou da mesa que ele e sua mulher ocupa-

vam. Odete o recebeu com um misto de alegria e espanto.

— Nossa, Gersinho!

— Gersinho, não! De hoje em diante é Gérson. Termina o

seu sorvete e vamos embora. A senhora ainda tem de fazer o jantar!

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A partir daquela tarde, tudo mudou na vida do casal, que pas-sou a ser conhecido como “o Gérson e a Odete do Gérson”.

Sorvete de flocos com calda de jabuticaba e a professora de piano

O seu Miguel da Padaria Horizonte, estabelecimento que fica-va do outro lado da rua da Sorveteria Pinguim, entrou apressado e quase encostou o nariz no rosto do seu Atílio para anunciar.

— Hoje é a primeira lua cheia do ano, Atílio!O sorveteiro acabou de torcer o pano azul na pia do balcão,

olhou para o seu Miguel e abriu um sorriso saudoso.— Nunca vou me esquecer do riso dela no dia em que deixou

pingar calda de jabuticaba no joelho.— Pois eu — emendou o outro — vou me lembrar do prazer

estampado no rosto dela quando provou pela primeira vez a esfirra de frango com manjericão.

Ambos assentiram com a cabeça, trocaram uma piscada de olho e, depois de apertarem as mãos, retomaram cada um sua rotina.

Quico, que limpava as cadeiras do salão, aproximou-se do avô, curioso.— Vô, que história é essa de vocês se lembrarem dela primeiro

de um jeito, depois de outro? De quem é que vocês estavam falando?O sorveteiro encolheu os ombros e, deixando de lado o que es-

tava fazendo, acomodou-se num dos banquinhos de madeira. Quico sentou-se ao seu lado.

— É uma história de amor — disse o velho —, ou de amores, se você preferir… Ela se chamava Marina, tinha cabelo preto, liso e enormes olhos negros que encantavam a todos. Era professora de piano. O nome dele era Vinícius, tinha cabelo dourado e olhos verdes muito vivos. Era professor de violino. Conheceram-se aqui na sorveteria. Ela, tomando sorvete de flocos com calda de jabuticaba, que ele resolveu experimentar. Depois desse encontro eles passaram a andar sempre juntos, e você não

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encontrava uma só pessoa na cidade que não considerasse os dois o par

mais bonito daqui. Quando não estavam namorando, promoviam belos

espetáculos musicais no coreto da praça. Ela ao piano, ele ao violino. E

tudo, Quico, simplesmente para compartilhar conosco o prazer de ouvir

uma boa música. Tocavam tanto peças clássicas como populares, e por

esse motivo eram adorados por velhos, jovens e crianças.

O sorveteiro fez uma pausa para limpar os óculos. Depois prosseguiu.

— Marcaram casamento e anunciaram a data durante um espetáculo

no coreto. A multidão aplaudiu, e naquele dia ninguém deixou o local sem

antes cumprimentá-los. No resto do mês, o assunto das rodas foi a união

da professora de piano com o professor de violino. Mas aconteceu de o pai

do moço adoecer de repente e ele ter de viajar às pressas para a cidade onde

o pai morava, em outro estado. Na despedida, prometeu voltar a tempo

para a realização do casamento, só que nunca mais ninguém viu o Vinícius!

— Caramba, vô! Que foi que aconteceu com ele?

— Bem… Os amigos ligaram para a família dele e ficaram

sabendo que o professor de violino nunca chegou à cidade do pai.

Teve gente daqui que fez o mesmo roteiro da viagem que o Vinícus

tinha dito que faria, percorreu o mesmo caminho que ele, interro-

gando aqui e ali, mas nem sombra do noivo…

Seu Atílio soltou um suspiro, balançou a cabeça, conformado,

e prosseguiu.

— Isso mesmo. Nada. Nem sequer uma pista que pudesse lançar

um pouco de luz sobre aquele mistério. Quanto à professora de piano,

Deus sabe como ela foi forte o bastante para acreditar e esperar, esperar…

No início, ficava esperando por ele aqui, no banquinho onde os dois se

conheceram, e também na padaria do Miguel, onde costumavam comer

esfirras com molho de pimenta. Um dia a Marina decidiu levar o piano

para baixo da figueira da praça, e passou a morar ali, onde se distraía

tocando para os pássaros, para as crianças, para os visitantes. Vinha gente

de longe só para ouvi-la. A professora não aceitava dinheiro de ninguém,

só alguns alimentos levados pelas crianças. Até que um dia uma chuva de

verão inutilizou seu instrumento, levando-a a abandonar sua moradia e

também a desaparecer para nunca mais ser vista por ninguém.

O velho parou e olhou a rua. Soltou outro suspiro.

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— Ninguém viu a Marina partir, provavelmente deixou a ci-

dade de madrugada. Metade da população tem como certo que ela

perambula até hoje por aí, maltrapilha e transtornada. A outra meta-

de acredita que ela mora no fundo da lagoa e que um dia, quando o

som de um violino se espalhar no ar, ela voltará para tocar seu piano.

— Tem mais uma coisa, vô. Por que o senhor e o seu Miguel

falaram na primeira lua cheia do ano?

O sorveteiro olhou novamente na direção da rua e notou que estava

escurecendo. Sentiu um bem-estar com o arrepio que lhe percorreu o corpo.

— Foi numa noite dessas que o Miguel e eu descobrimos que

o nosso coração batia agitado quando ela estava por perto.

— Quer dizer que o senhor e o seu Miguel…

— Isso mesmo, Quico, nós também amávamos a Marina!

— E nunca contaram para ela?

— Não. Porque estávamos certos de que ela só seria feliz com

o professor de violino.

— Mas ela nunca foi feliz, vô! Ele sumiu!

O velho caminhou até o interruptor e acendeu as luzes da

sorveteria. Voltou a sentar ao lado do neto.

— Sabe, Quico. Tenho cá pra mim que ela era feliz na angústia

da espera e na desilusão da realidade. Dito assim parece complicado

de entender, mas não é. Você um dia vai ver que não é…

Sorvete de tangerina com calda de cereja e a depressão da divina Pieromonti

Certo dia, para espanto dos moradores de Ipê D’Oeste, baixou na

cidade a diva da música lírica italiana, Veneza Pieromonti. Dizia-se que a

cantora fora aconselhada a passar três ou quatro dias no município antes

de seguir para a capital, onde cumpriria longa e cansativa agenda.

— Mas vem cá. O nosso clima seco e abafado não vai afetar a

garganta preciosa da moça? — perguntou um morador.

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— Sei lá. O que ouvi por aí é que recomendaram passeios e repou-so num lugar sossegado e de paisagens relaxantes — respondeu outro.

— Será que isso inclui uma visitinha à delegacia da cidade e à Câmara Municipal?

Aconteceu, porém, de Veneza Pieromonti cair em repentina e moderada depressão assim que se fechou na suíte do segundo andar do Hotel Vale do Rio Tranquilo, ainda que a janela de seu apartamento se abrisse para o dito vale.

— Estranho. Daquela janela dá para ouvir os pássaros cantando nas árvores do vale.

— Pois aí é que está o detalhe. A dona não gostou da concorrência.Ao mesmo tempo que nas ruas fervilhavam os mais variados co-

mentários, na suíte do segundo andar a divina passava horas deitada de bruços na cama larga, suspirando e comendo fatias de maçã cuidadosa-mente descascadas por Sofia, sua acompanhante, confidente e secretária.

À noite, após ler em voz alta trechos de A divina comédia para a pa-troa, Sofia ocupava o sofá marrom do hall do hotel e ali deixava-se ficar, contemplando o reduzido movimento da rua em frente.

Filha de pai italiano e mãe brasileira, a moça dominava com graça os dois idiomas, motivo pelo qual era capaz de manter um bom diálogo com Tomazinho, o prestativo carregador de malas e espécie de faz-tudo do hotel.

— Sinceramente, Tomás, não sei o que pode estar afetando o âni-mo da Veneza.

— Talvez, quem sabe, a falta da comida italiana.— É pouco provável. Ela sempre leva nas viagens uma boa quan-

tidade de linguiça calabresa, sua iguaria preferida.— Você já pensou que pode ser alguma frustração amorosa, uma

paixão não correspondida?— Humm, também não. Veneza se casou e se separou duas vezes.

Não guarda mágoas nem ressentimentos, é uma mulher resolvida. Aliás, hoje vive feliz na companhia de Paolo Rossi.

— Ahá! Um namorado!— Não, não. É o gato branco dela.Na tarde do quarto dia, a secretária torcia nervosamente as

mãos, andando de um lado para o outro na recepção do hotel.

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— Hoje ela recusou as fatias de maçã e já avisou que não quer

ouvir trechos d’ A divina comédia. Infelizmente, vou ser obrigada a can-

celar os compromissos assumidos e levar a Veneza de volta pra casa. Não

vejo outra saída.

Tomazinho, aflito, olhava a rua ensolarada através da porta

de vidro. De repente seu rosto iluminou-se.

— Papagaio! Como é que eu não pensei nisso antes?!

Sofia deteve-se, curiosa.

— Sorvete de tangerina com calda de cereja! — exclamou

o rapaz. — Foi isso que me livrou da tristeza de ter perdido a Geralda.

— Sua namorada? — perguntou Sofia, solidária.

— Nada. Minha tartaruga de estimação.

Mais tarde, tamborilando os dedos no balcão da recepção, To-

mazinho mal conseguia disfarçar a ansiedade. Meia hora se passara

desde que Sofia subira com o sorvete de tangerina com calda de

cereja da Sorveteria Pinguim. Teria a divina Veneza se recusado a to-

má-lo? Teria jogado o conteúdo no vaso sanitário? Estaria passando

um sermão na pobre Sofia por aquela iniciativa maluca?

E, como resposta aos seus pensamentos, ouviu-se do segundo

andar do Hotel Vale do Rio Tranquilo uma escala melódica afina-

díssima, que em menos de um minuto espalhou-se pelo hotel, pela

rua em frente e por toda a cidade.

Nas casas, nos escritórios, nas lojas, nas ruas, as pessoas

deixavam de lado seus afazeres e, emocionadas, reconciliavam-se

consigo mesmas ao se darem conta de como era bela a voz que

Deus ofertara aos humanos.

Arrepiado, Tomazinho chorava como daquela vez em que seu

time fora campeão com o gol da vitória marcado no último minuto

da partida. E, quando Sofia veio correndo pela recepção do hotel

para abraçá-lo e beijá-lo em sinal de gratidão, Tomazinho sentiu-se

dando a volta olímpica no gramado com a taça na mão.

Tomazinho pensou que talvez nunca mais devesse lavar o

rosto outra vez.

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Sorvete de creme com calda de framboesa e a maldição do laço de sapato

Os dois estavam frente a frente, três anos depois de tudo.

Ela olhava o porta-guardanapos, evitando encará-lo.

Ele estava ansioso, com uma bola de boliche dando voltas no estômago.

Sabia que precisava ser hábil e, acima de tudo, paciente. Respirou fundo.

— Você ainda gosta daquele sorvete?

Ela confirmou com a cabeça, ainda sem olhar para ele. Ele fez

o pedido.

— Vou tentar resumir a história — ele começou. — Mas pri-

meiro eu queria pedir desculpas por tudo que aconteceu.

Ela ergueu a cabeça num movimento brusco. Ele viu ódio

nos olhos dela.

— Você acha que merece alguma consideração? Você acha que

alguém que deixou a noiva esperando no altar, para só aparecer ago-

ra, três anos depois, pedindo desculpas como se tivesse esquecido de

devolver um livro emprestado, merece alguma consideração?! Acha?!

— Tudo bem, tudo bem. Então vou entrar direto na explicação. Bom,

no dia que eu achava que ia ser o mais feliz da minha vida, aconteceu…

— Não seja cínico, por favor! Não fale daquele dia como uma

data que lembra felicidade — reagiu ela.

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Ele tornou a puxar ar para os pulmões. Mentalmente pediu

calma aos seus neurônios.

— Ok, ok. Recomeçando… Naquela tarde, depois de vestir a rou-

pa do casamento, me dediquei à tarefa mais difícil do dia para mim: fazer

o laço no cordão do sapato. E aqui eu peço sua compreensão… acredite,

eu nunca tinha aprendido a dar laço em cordão de sapato!

Ao ouvir isso, ela se levantou e apanhou a bolsa, preparando-se

para ir embora.

— Por favor, por favor! — ele implorou. — Depois você faz o

que quiser, mas me deixe terminar. Por favor!

Ela viu desespero e agonia nos olhos dele e por um instante

sentiu pena. Tornou a sentar.

— Minha mãe — ele recomeçou — conserva uma tradição de fa-

mília que ninguém sabe ao certo quando, onde e por que começou. A tal

tradição exige que ninguém, a não ser a pessoa que vai casar, dê o laço no

cordão do próprio sapato no dia do próprio casamento. Se o ritual não for

cumprido, o casal não terá filhos e envelhecerá solitário.

Ela fez uma careta sarcástica.

— E você espera que eu acredite nisso?

— Não, eu não espero nada. Só peço que me ouça.

Ela bufou, olhou a rua. Os sorvetes chegaram.

— Sorvete de creme com calda de framboesa — ele comentou.

— Durante todo esse tempo eu ficava imaginando nós dois tomando

esse sorvete como antigamente, cada um dando na boca do outro.

Ela não olhou para ele, mas sentiu um nó na garganta. Ele prosseguiu.

— Passei toda a tarde daquele dia tentando acertar o bendito

laço no cordão. As horas passavam e nada dos meus dedos trêmulos

acertarem as idas e vindas, as voltas e volteios. Meus irmãos, minhas

irmãs, meus tios e minhas tias, todos ali em volta de mim, dando di-

cas, ensinando truques, descrevendo macetes… e nada, nada, nada!

Pela primeira vez ela olhou demoradamente para ele e perce-

beu marcas de sofrimento em seu rosto. “Será que chorou como eu

nesses três anos?”, pensou.

— Alguém sugeriu que eu usasse outro modelo de sapato, um sem

cadarço. Mas a intransigente tradição que minha mãe cultiva não permite

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outro calçado a não ser o de cordões. E mentalmente eu amaldiçoei o

nosso antepassado que tinha inventado toda aquela baboseira.

Ele fez uma pausa e olhou a rua. Retomou a narrativa.

— Os ponteiros do relógio galopavam, e o desespero me sufo-

cava. Até que me trouxeram a notícia de que você havia se cansado

de esperar, tinha abandonado a igreja e cancelado o casamento. De-

cidi correr até sua casa com a intenção de contar tudo o que estou

contando agora para encontrarmos uma solução juntos. Mas todos

me aconselharam a não fazer isso, porque o mais provável era que

eu fosse maltratado e até surrado por sua família.

Ele levou à boca uma colherada de sorvete de creme com calda

de framboesa. Deu a impressão de engolir com dificuldade.

— Daí eu entrei em parafuso. Corri na direção da lagoa e me jo-

guei na areia para chorar a minha desgraça. Meus irmãos e minhas irmãs

foram atrás de mim, falaram e falaram, tentando me reanimar, mas eu

me recusei a ficar em Ipê. Eu teria vergonha de encarar as pessoas e não

suportaria passar pelos lugares que eu e você frequentávamos. Então re-

solvi procurar trabalho na capital, e por lá fiquei todo esse tempo.

Ele parou de falar para olhar um jovem casal que entrava na sorve-

teria. A moça levava um bebê no colo. Ele sorriu ao olhar o bebê, e ela

também sorriu ao vê-lo sorrir, mas disfarçou para que ele não notasse.

— Na capital — recomeçou ele — até procurei especialistas

em coordenação motora, alguém que pudesse me ajudar a destravar

os movimentos das mãos.

Calou-se repentinamente. E, como demorasse a retomar a nar-

rativa, ela o incentivou.

— E?…

— Nada — ele respondeu. — Todos os médicos deram o mesmo diag-

nóstico: meus dedos não foram feitos para dar laços, nenhum tipo de laço!

Ela mordeu o lábio e ficou olhando para sua colherzinha do

sorvete, triste. Os olhos dele brilharam quando voltou a falar.

— Então, quando tudo parecia sem saída, sem esperança, eu

encontrei a solução!

Ela olhou para ele, a respiração suspensa, o coração apertado

pela angústia de três anos.

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— Um casamento havaiano! — ele anunciou, radiante. — Na praia, à luz do luar e… descalços!

Ela piscou, abandonou o choro de noites infindáveis e voltou a rir o riso do primeiro encontro.

— E quando será? — ela perguntou.— Agora, imediatamente — ele respondeu rápido.— Será que alguma outra coisa pode nos impedir dessa vez?

— ela quis saber.— A conta! — ele disse e, levantando-se apressado, foi até o

balcão, pagou e não esperou o troco.Depois eles se deram as mãos e saíram correndo da Sorveteria

Pinguim como duas crianças que apenas tivessem esperado por três anos a chuva passar para poderem ir brincar lá fora.

Sorvete de abóbora com calda de figo e a namorada do Neno

Cabelo ralo, nariz de batata, orelhas de abano. Magro, pálido, puxan-do a perna direita. Assim era Neno, filho do seu Aroldo da Casa das Velas.

Tímido e complexado, o rapaz só saía à noite porque tinha o escuro como um fiel aliado para acobertar-lhe a feiura. Podia ser encontrado va-gando pelas ruas, sempre sozinho, parando aqui e ali para cumprimentar cachorros e sapos. Mania que lhe rendeu o apelido de Morcego.

Meia hora antes de seu Atílio descer as portas da Sorveteria Pinguim, ele entrava para saborear seu invariável sorvete de abóbo-ra com calda de figo. Tomava o sorvete de pé, com a perna bamba repousada no estribo do balcão. Estalava a língua, sorria satisfeito.

— Se eu ficar sem esse sorvete, seu Atílio, não consigo pegar no sono.— Não diga! É tão bom assim, é?— Fica tranquilo. Não vou dizer a ninguém que o senhor é

um bruxo disfarçado de sorveteiro.— Cuidado… Se alguém ouve você dizer isso, me mandam

pra fogueira.

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— Deus me livre! Não posso nem pensar em perder o senhor! Só tenho o senhor pra conversar.

Calou-se, repentinamente tristonho. Olhou para o fundo da taça.— Vou envelhecer sem ninguém, seu Atílio…O sorveteiro colocou uma nova bola de sorvete na taça do

Neno e a cobriu com uma generosa camada de calda de figo.— Nada como uma boa dose de paciência, Neno. Você é um

rapaz inteligente, estudioso, escreve poesia…— É, seu Atílio, mas pra que serve tudo isso? Ninguém quer

abraçar versos, beijar rimas.E, quando Neno caía no desânimo, seu rosto se cobrindo de

sombras, seu Atílio sabia que era hora de mudar o rumo da conversa.— Já contei que uma vez tropecei no fio do abajur da minha quase so-

gra, caí e quebrei o Buda de cristal dela? E ainda bati a minha cabeça dura no joelho todo inchado do meu quase sogro! A pretendida devolveu as flores que eu tinha levado e, de brinde, ainda prendi os dedos no portão da casa deles!

E assim, todas as noites, os desastres amorosos do velho sorve-teiro divertiam Neno e o faziam compreender que os infortúnios, pequenos ou grandes, também faziam parte da vida de qualquer pes-soa. Não eram exclusividade de ninguém.

E então, certa vez, em plena luz do meio-dia, Neno invadiu a sorveteria do seu Atílio vestindo roupa nova. Quase não puxava a perna e trazia uma caixa de papelão debaixo do braço.

— Bom dia, seu Atílio! Hoje eu vim apresentar ao senhor a minha namorada.

Surpreso, o sorveteiro espichou o pescoço em direção à rua.— O que você está esperando? Fale para ela entrar!Neno riu, colocou a caixa sobre o balcão e a destampou. Ali,

mansa e tranquila, repousava uma cobra prateada com listras pretas simetricamente distribuídas pelo corpo liso e lustroso.

— Não é linda?! — exultava o rapaz.Paralisado de espanto, o sorveteiro acompanhou o deslizar macio e

sensual do réptil pelos braços, pescoço e tronco de Neno. E só quando o rapaz beijou carinhosamente a cabeça da cobra é que ela enfim sossegou, indo se enroscar confortavelmente em torno de sua cintura.

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— E-ela não é venenosa?— Bem menos que muita gente, seu Atílio.E o sorveteiro entendeu que o solitário Neno havia, de alguma

forma, encontrado a felicidade.

Sorvete de amendoim com calda de baunilha e a complicada linguagem do amor

Vanusa e Vanderlei conheceram-se na fila do cinema. Entraram juntos, sentaram lado a lado, comeram pipoca do mesmo saquinho.

Quando o agente secreto encurralou o vilão no topo do edifício mais alto da cidade, Vanusa apertou a mão de Vanderlei. O Vanderlei beijou a Vanusa, e eles ficaram sem saber se o vilão era mesmo o pai secreto do agente secreto.

Saíram do cinema e foram para a Sorveteria Pinguim.— Sabia que o meu coração mudou de potência depois que vi

você? Antes ele trabalhava em velocidade de Kombi. Agora está que é uma Ferrari — gracejou o Vanderlei.

— Cuidado nas curvas, hein! — replicou a Vanusa.Vanusa pediu sorvete de amendoim com calda de baunilha.

Vanderlei ficou nos picolés de maçã.Dois meses depois, eles estavam casados. Pretendendo dar um im-

pulso na vida financeira do casal, Vanderlei prestou um concurso públi-co e foi aprovado. Assumiu um cargo burocrático na área administrativa do Departamento Municipal de Água e Esgotos de Ipê D’Oeste.

E desde então o casamento começou a entrar pelo cano.— Ah, Vandeco, diz que me ama como da primeira vez que

nos vimos naquele cinema, diz — pedia Vanusa.— Pois saiba que a amo como se eu fosse o beneficiário de uma ação

indenizatória originária de direitos adquiridos no exercício da função…— Credo! Que é que você quis dizer?— Que te amo muito, muito.

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No início Vanusa achou legal esse modo diferente de falar. Pensou que o marido quisesse inovar a maneira de se dizer apaixonado.

Só que a coisa evoluiu.— E aí, gostou da panqueca, Vandeco?— Sem dúvida, uma digna gratificação de setenta por cento

incorporada ao salário-base…— Hã?— Gostei, gostei, Vanusa.Quando iam à sorveteria, o Vanderlei levava trabalho a tiracolo,

numa pasta A-Z abarrotada de ofícios e portarias que ele se distraía em analisar. Mal falava com a Vanusa, preocupado em não deixar o sorvete pingar na documentação.

— Isso vai demorar? Vandeco, ô Vandeco…?— O andamento do processo vai depender do grau de cobrança

do órgão fiscalizador ao setor competente. Trata-se de uma questão que envolve gerenciamento administrativo e dinâmica participativa.

— Tá, tá. Deixa pra lá.Na cama, a situação pouco mudava.— Ai, Vandeco, me abraça forte…— Com ou sem timbre?…— Ai, Jesus! Que história é essa agora de timbre?— Com ou sem beijo?— Com beijo, claro!— Então, vai ter de protocolar.— Como assim?— Precisa emitir documento oficializando o pedido e esclare-

cendo a necessidade do mesmo.— Eu, hein! Eu vou é me mandar!— É bom registrar a decisão, sob pena de perder os benefícios

trabalhistas previstos na legislação específica.— Ah, vai te catar, vai!Quarenta dias depois, chupando picolés de maçã na Sorveteria Pin-

guim, Vanusa comentava com uma amiga como ia a sua vida sem o Vanderlei.— Uma resolução enxuta e pertinente, minha amiga. Trâmite

sem entraves burocráticos…

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— Sei, Vanusa, e isso quer dizer que… você está livre?

— De acordo com as vias práticas. E absolutamente dentro do

prazo estipulado pela sindicância interna…

— Que bom! Então vamos pedir mais um sorvete pra comemorar!

— Positivo. Ainda disponho de uma parcela da verba de ma-

nutenção disponibilizada pelo órgão empregador…

Sorvete de abacaxi

com calda de romã

e o adeus feliz do Nicanor

Embora a contragosto, seu Nicanor tomava diariamente

uma variedade incômoda de remédios para os inúmeros males

que o assombravam.

Como morava sozinho no antigo bangalô da rua do Pedregu-

lho, sofria a marcação cerrada das filhas.

— Papai, o senhor tomou as pílulas da pressão?

— Hum-hum.

— Já tomou as gotas para o ácido úrico?

— Hã-hã.

— Não esqueceu de tomar os comprimidos da labirintite?

— Humpf!

— Tomou ou não tomou?

— Tomei, tomei.

— Peraí. Estou vendo que os comprimidos da gastrite estão do

mesmo jeito que eu deixei ontem.

— Argh!

— Que foi que o senhor disse?

— Nada. Foi só um soluço.

Certa manhã, atento ao minguado movimento da rua, seu Ni-

canor viu passar o caminhão do lixo. E ocorreu-lhe uma ideia.

— Esperem aí! — gritou. — Tenho uma coisa para vocês!

Levantou com dificuldade da cadeira de vime e, depois de sumir

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por um instante no interior da casa, ressurgiu radiante na varanda.

Trazia uma sacola plástica na mão trêmula.

— Pode levar — disse. — Não me servem para nada. — E

entregou a sacolinha a um dos lixeiros.

O caminhão do lixo foi embora, deixando na varanda um ve-

lho feliz como o garoto que subia em árvores na infância distante.

Na manhã seguinte as filhas ficaram agitadíssimas.

— O senhor jogou todos os remédios no lixo, pai?!

— Hã-hã.

— Mas, papai, o senhor endoidou?

— Hum-hum.

— Quer morrer, quer?

— Ora, ora. Todo mundo tem de morrer um dia, e eu já não

sou mais um garoto. Pensando bem, voltarei a ser daqui a pouco,

quando eu entrar na sorveteria.

— O quê? Como é que é essa história?

E o seu Nicanor, com um brilho maroto nos olhos, comunicou às

filhas que a partir daquela data passaria as tardes na Sorveteria Pinguim,

tomando o sorvete da sua infância: abacaxi com calda de romã.

— Mal posso esperar! — concluiu, para desespero das filhas.

— Pois o senhor não vai a lugar nenhum! — gritou uma das fi-

lhas. — Ninguém vai vir buscar o senhor para levar à sorveteria. Pronto!

Então o velho Nicanor abriu um sorriso largo e esperto.

— E quem é que precisa de vocês? Combinei com o meu ami-

go de peladas, o Ramiro, e ele vai passar aqui todos os dias para

irmos juntos à sorveteria. Lá vamos ficar recordando as nossas pe-

ripécias de criança enquanto tomamos nossos sorvetes prediletos.

— O senhor não vai fazer isso! Não vamos permitir!

O velho riu, abanando a cabeça.

— Não está na hora de vocês cuidarem da casa de vocês?

— O quê? O senhor está mandando a gente embora?

— Hum-hum.

Naquela mesma tarde e em tantas outras, seu Nicanor e Ramiro vol-

taram à infância em uma mesa de canto da Sorveteria Pinguim. As filhas

correram para lá, tentando fazê-lo deixar os sorvetes e voltar aos remédios.

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— Papai, desse jeito o senhor vai se acabar!

— Que nada. Estou me sentindo ótimo.

— O senhor precisa dos remédios, papai!

— Nem morto!

— Ei, para com isso! Deixe de ser criança!

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— De jeito nenhum. Eu acabo de redescobrir o sabor da infân-

cia e lá vêm vocês querendo enterrar tudo. Ora, vão para casa, vão.

E as filhas partiram, vencidas pela firmeza do antigo cabeça de

área que nunca deixava a defesa desprotegida.

Também os genros fizeram suas tentativas.

— Olha, seu Nicanor, não queremos ser chatos, mas suas fi-

lhas têm razão. O senhor precisa voltar a tomar os remédios.

— Quem falou que eu preciso deles?

— Os médicos, ora.

— E quem disse que eles sabem das coisas?

— Também não é assim, seu Nicanor, não radicalize. Eles es-

tudaram muito para cuidar da saúde das pessoas.

— Ah, é? E dos sentimentos, quem cuida?

Os genros bufavam, repuxavam as bocas e iam embora derro-

tados. Mas saboreando seus sorvetes.

Certa tarde, após uma rodada reconfortante de picolés, Ramiro

foi chamar o seu Atílio. Achava que o Nicanor estava cochilando além

da conta. O sorveteiro consultou o pulso do velho e, emocionado,

falou baixinho para o outro:

— Pois eu acho que ele vai continuar dormindo, Ramiro.

Quando as filhas chegaram aflitas, viram no rosto do pai um sorriso.

O sorriso do guerreiro que acabara de botar os invasores para correr.

Sorvete de milho verde com calda de laranja e o mosquito que picou o padre

Dora e Nestor estavam comemorando trinta anos de união sabo-

reando o sorvete predileto dos dois: milho verde com calda de laranja.

Felizes, falavam dos anos vividos juntos. Dos bons momentos,

dos filhos já criados e cada um às voltas com a própria vida.

— Meu Deus, que coisa incrível! Parece que foi ontem que

você me pediu em casamento na saída do cinema! — disse Dora.

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— É. Você ficou me olhando e depois começou a rir, seu rosto parecia um tomate maduro de tão vermelho — lembrou Nestor.

— Eu ri de nervoso. O seu pedido me abalou.— Pois foi o riso mais bonito que eu tinha visto na vida. E aí

eu pensei: puxa, se ela disser “não”, eu nunca mais vou poder ver esse riso de novo, e ficar sem ele é o mesmo que ficar sem oxigênio.

— Humm, dando uma de poeta, hein…— Eu sempre me transformo num poeta quando você está a meu lado.— Nossa, Nestor, essa eu vou anotar!Nestor mordeu o lábio, ficou olhando o movimento dos ven-

tiladores de teto.— Sabe, Dorinha, tem uma coisa que eu já deveria ter contado…

É só uma coisinha bem boba, nada muito importante.— Ah, não! Agora diz o que é!— Melhor deixar pra lá. É tão insignificante que…— Vai, Nestor, fala logo! Você está me deixando curiosa!— Bom… nós dois sabemos muito bem que antes de eu e

você nos casarmos, você estava de casamento marcado com o Geral-dinho da marmoraria, correto?

— Correto. Eu e ele só não casamos porque o padre pegou dengue e ficou trinta e dois dias de molho. Nesse meio-tempo, o pai do Geraldinho vendeu a marmoraria e a família se mudou para outra cidade. Com isso a nossa relação esfriou e depois eu acabei mudando de ideia, desisti do casamento. O resto você sabe.

— Pois é. O detalhe é a dengue.— Para de enrolar, Nestor! Quer explicar direito essa história?!— Na verdade, Dorinha, a dengue do padre foi coisa minha.

Eu provoquei aquilo.— Como assim, Nestor? Não estou entendendo!— Simples. Capturei cinco mosquitos transmissores do ví-

rus e soltei na sacristia sem o padre perceber. A ideia era afastar o homem das atividades por um tempo, para que o casamento fosse adiado e acabasse esfriando. Isso me daria tempo de conquistar seu coração. E deu tudo certo, como sabemos.

Dora piscou seis vezes. A colherzinha do sorvete escapou de sua mão.

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— Não acredito! Não posso acreditar que você foi capaz de fazer uma coisa dessa, Nestor!

— Fui.— E ainda confirma com essa cara de tonto?!— Bom, é a única que eu tenho, e foi com ela que eu me casei

com a senhora. Só agora você descobriu a minha cara de tonto?— Lógico, lógico! Só agora eu fico sabendo que o homem

que vive comigo há trinta anos é um… um… ai, Nestor, nem sei o que você é, viu!

— Eu sou o que eu sempre fui, Dorinha. Um homem apaixonado.— Ah, Nestor, deixa de… de… ah, meu São Jorge!— Afinal, minha querida, por que essa raiva? Por ter perdido

o Geraldinho? É isso?— Ora, faça-me o favor! E eu lá estou pensando nisso, homem?— Se não é isso, o que é então?— Santa Rita, me dê forças! O homem com quem eu me casei

é um despirocado!Nestor achou prudente ficar calado, e durante os minutos se-

guintes ouviu-se apenas o zumbido monótono do freezer da sorvete-ria. Até que Dora voltou ao ataque.

— Por acaso o senhor sabe quantos casamentos foram adiados e depois não realizados por causa da dengue do padre?

— Quantos?— Sei lá, Santo Deus! Deve ter sido uma infinidade! Uma penca

de gente deixou de se unir naqueles dias exclusivamente por culpa sua! Já pensou quantos casos de amor você frustrou? Já pensou?

Depois de uma pausa tensa, Dora soltou uma gargalhada que ecoou pela Sorveteria Pinguim. Precavido, Nestor manteve a seriedade. E somen-te quando Dora parou de rir para enxugar as lágrimas foi que ele arriscou:

— Posso saber o que está acontecendo com a senhora?E Dora, assoando o nariz, explicou:— Imagina só, Nestor, quantas mulheres solteiras você produ-

ziu com a sua maluquice! Eu mesma conheço três! Elas estavam de casamento marcado para aqueles dias, mas com a dengue do padre os noivos ganharam mais tempo para pensar e…

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As gargalhadas altas e incontroláveis de Dora e Nestor foram

ouvidas por toda a vizinhança. E se foram ouvidas pelas “solteiras

do Nestor”, sorte elas não saberem o motivo de tanto riso.

Sorvete de nata com lascas (muitas!) de chocolate e o beijo do Fefeu Boca Murcha

Faltavam dez minutos para as quatro da tarde quando as irmãs

Dirce e Dulce entraram papeando na Sorveteria Pinguim. Ocupa-

ram seus lugares de costume, cumprimentaram seu Atílio e fizeram

o pedido de sempre.

Isso mesmo, sorvete de nata com lascas de chocolate.

— Quer saber o que eu acho, Dulcinha? O casamento da Sa-

mira deu mais o que falar do que a Reunião Anual das Bordadeiras.

Pensa bem, foram três dias de festa, três dias de fuzuê. O pessoal

passou o resto do ano comentando o acontecimento.

— Você tem razão, Dircinha, foi um terremoto. Pobre Samira,

a festa do casamento durou mais que o casamento.

— Quarenta e oito horas de união… Durante esse tempo o

noivo lá, trancado no porão, meditando. Quando saiu, revelou que

havia “recebido” São Francisco de Assis e que ele o convocara para

proteger os vaga-lumes do vale do rio Tranquilo.

— Eu sempre achei aquele filho do seu Delmiro um belo pan-

cadão! Como era mesmo o nome dele?

— Yuri. Uma homenagem àquele astronauta russo que foi o

primeiro a viajar pelo espaço. Aliás, os dois Yuris viajavam, só que o

Yuri original pelo menos usava uma nave espacial.

— Eu lembro que, durante a festa, o irmão da Tânia tomou tanto

licor de hortelã que tentou beijar a dona Mira, mãe da noiva. A velha

pregou-lhe um safanão que o fez rodopiar uns cinco minutos antes de

cair em cima da Vilma, que segurava uma bandeja cheia de taças…

— Virgem Maria! Não sobrou uma taça! Os noivos tiveram de

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brindar em xícaras de café. Saíram na foto oficial segurando as xícaras.

A do noivo estava sem asa.

— E não ficou nisso, minha querida. A pulseira da Vilma arrebentou e

foi parar embaixo da mesa da dona Elvira, que, quando viu a Vilma agachada,

achou que ela estivesse fazendo graça para Januário, marido de Elvira.

— Verdade. E como a Elvira sempre foi esquentada, arremessou

na hora um croquete na Vilma, que desviou e foi parar na orelha do

Carlito pasteleiro…

— Daí o maluco do Carlito, de brincadeira, começou a gritar

“Fogo, fogo!”. Foi um deus nos acuda! Teve gente saindo pelo basculante

da cozinha.

— A cozinha… Ela me faz lembrar do beijo! O que eu dei no

Mariano da Casa das Ferragens, atrás do paneleiro da dona Mira.

— O Mariano da Casa das Ferragens?! Aquele dos olhos azuis?

Por que você nunca me contou isso?

— Ora, ora. Porque o beijo foi uma decepção, minha cara.

— Como assim, decepção? Conta essa história direito, vai.

— Ah, nada digno de registro. Para seu governo, minha querida,

o belo Mariano usava uma dentadura.

— Epa, espera aí! Você está me dizendo que o Mariano das Mo-

ças usava dentadura?

— Justamente.

— Santa Bárbara! Dentadura! E a experiente Dulce caiu de

boca! Ha-ha-ha!

— Huumm, olha a especialista! A tarimbada Dirce, que beijou

o Fefeu Boca Murcha no velório do pai dele!

— Ei, espera aí! Naquela época a boca do Fefeu ainda não tinha murchado!

— Como não? A boca do sujeito já nasceu murcha! Tanto é ver-

dade que ele ganhou esse apelido quando ainda era bebê!

— Olha que mentir é pecado, hein!

— Sei. E bancar a tonta também é.

— Por acaso a senhora está me chamando de tonta?

— Imagina. Eu só sugeri.

Foi aí que o seu Atílio surgiu com uma nova rodada de sorvete,

o que sempre ajudava a esfriar o ânimo das irmãs.

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Doutor de almas

Certa manhã, quando seu Atílio e o neto arrumavam as taci-

nhas de sorvete para dar início a mais um dia de trabalho, entrou

na sorveteria um jovem de estatura média vestindo roupa esporte.

— Bom dia, todo mundo! — cumprimentou o homem, cami-

nhando rápido até o balcão.

— Pai! — gritou Quico, largando o que estava fazendo para

correr na direção do visitante.

Abraçaram-se emocionados, e seu Atílio juntou-se a eles.

— Você não mudou nada, Sérgio. Ainda parece aquele mesmo es-

tudante de Engenharia que consultava os livros enquanto tomava sorvete.

— Que nada, seu Atílio. Estou mais velho, cansado, cheio de

males urbanos. Gostaria muito de voltar no tempo, à época em que

eu vinha aqui e era atendido por ela…

Olharam-se em silêncio, tristes. Depois, os três se sentaram e con-

versaram sobre o trabalho, a saúde, a vida. A certa altura, o visitante reve-

lou que, agora de volta ao Brasil, estava ali para levar o filho com ele. Pre-

tendia matriculá-lo em uma boa escola, orientá-lo na escolha da profissão.

— Você está com treze anos, Quico. Já é hora de viver num lugar

maior, conhecer gente nova, encarar o mundo de outra maneira. Daqui a

pouco você vai precisar decidir o que pretende fazer na vida.

O menino interrompeu a fala do homem.

— Eu já decidi, pai.

O visitante piscou, surpreso. Tinha uma ruga de interrogação na testa.

— Já? E o que é que você decidiu?

— Quero continuar fazendo o remédio da alma. Quero ser sorveteiro.

— Sorveteiro! — repetiu o pai, franzindo a testa.

O garoto fez que sim com a cabeça.

— Isso mesmo, sorveteiro. A profissão mais alegre e mágica

que existe. Tão útil quanto a Medicina ou a Engenharia.

O visitante recostou-se na cadeira. Parecia cansado.

— Tem certeza de que é isso mesmo que você quer fazer na

vida, Quico?

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— Tenho.— Não quer ir comigo para uma

cidade maior, conhecer coisas novas, ver de perto o progresso?

— Pai, uma coisa é certa: eu amo você. Nunca vou deixar de amar você, pode acontecer o que for. Mas a minha vida está toda aqui. — Quico abriu os braços, olhou em torno, apontou as ge-ladeiras de sorvete. — Tudo isto aqui é o meu laboratório, lá naquelas geladei-ras estão os meus remédios… Por favor, pai, eu não quero me separar deles!

O visitante olhou o menino demo-radamente, quase sem piscar, em silêncio. Quando voltou a falar, tinha um sorriso jovial em seu rosto urbano.

— Um doutor de almas! É isso que você quer ser então?

O menino riu seu riso de menino.— É, pai. É isso.O visitante levantou-se, puxou o

menino pela mão e o abraçou.— Parabéns, filho. Quero que você

seja muito feliz nessa sua escolha.Depois, foi até onde estava seu

Atílio e também o abraçou.— Cuida direitinho do meu dou-

tor, seu Atílio.Seu Atílio apertou o abraço do

genro. Não precisava dizer nada.O menino acompanhou o pai até

a calçada, e lá mais uma vez eles se abraçaram.Quem passou na rua teve a impressão de que eram pai e filho

se despedindo.

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Tadeu Pereira e a obra

Nasci em Bebedouro (SP), em 1953. Atual- mente moro na cidade de São Paulo (SP), onde tra-balho como publicitário em uma assessoria de im-prensa. Em meus livros, costumo trazer à tona a importância de se discutirem questões sociais.

É muito importante que os problemas da rua, do bairro, da comunida-de sejam discutidos tanto em casa quanto na escola. Buscar um pequeno espaço na rotina do lar e no roteiro da aula para debater os assuntos é fundamental para que as coisas aconteçam. Família e escola são capazes de abrir clareiras onde parece impossível caminhar. Amizade e solidariedade são como pão e manteiga; portanto, deveriam estar sempre presentes no nosso cardápio.

Escrevi A sorveteria para colocar no papel algumas histórias que acon-teceram em uma sorveteria e que ficaram guardadas na minha lembrança. E, por falar nisso, aqui vai a sugestão de um cozinheiro amador e amigo veterano: procure encontrar tempo para reunir os amigos do peito na sor-veteria e se empanturrar de sorvete e amizade. Você vai voltar para casa tão feliz como se tivesse ganhado roupa nova.

Bernardo França e a obra

Nasci em Brasília (DF) e fiz Arquitetura na Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (RJ). Hoje moro em São Paulo (SP), onde trabalho para o mercado editorial e dou continuidade aos meus estudos de desenho. Faço ilustrações para livros, revistas, painéis, divulgação de fil-

mes e eventos. Em 2010 um de meus trabalhos foi selecionado para o XVIII Salão Internacional de Desenho para Imprensa, em Porto Alegre (RS).

Como artista para este livro (e fã declarado de sorveterias), minha intenção foi provocar lembranças refrescantes no leitor. Quis criar com-posições de forma a organizar cenários, personagens e texturas em favor desse pictórico mundo dos sorvetes que tanto mexe com os sentidos de todos nós.

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Sobre a obra

A sorveteria traz, por meio de seus dezenove contos, um variado

“cardápio” de tipos psicológicos e sociais que levam os leitores a des-

frutar, de maneira leve e bem-humorada, de uma gama de comporta-

mentos e situações que os transportam para suas próprias realidades

familiar, escolar e coletiva.

Por essas características, esta obra está plenamente adequada ao

desenvolvimento das competências e habilidades envolvidas no pro-

cesso de aprendizagem, em especial à prática de leitura nos 6o e 7o

anos do Ensino Fundamental – Anos Finais, conforme definidas na

Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Os estudantes dessa fase inserem-se em uma faixa etária que corresponde à transição entre infância e adolescência, mar-cada por intensas mudanças decorrentes de transformações biológicas, psicológicas, sociais e emocionais. Nesse período de vida, como bem aponta o Parecer CNE/CEB no 11/2010, “ampliam-se os vínculos sociais e os laços afetivos, as possibili-dades intelectuais e a capacidade de raciocínios mais abstratos. Os estudantes tornam-se mais capazes de ver e avaliar os fatos pelo ponto de vista do outro, exercendo a capacidade de descentração, importante na construção da autonomia e na aquisição de valores morais e éticos”.

(BNCC, 2017, p. 58)

A compreensão dos estudantes como sujeitos com histórias e saberes construídos nas interações com outras pessoas, tanto do entorno social mais próximo quanto do universo da cul-tura midiática e digital, fortalece o potencial da escola como espaço formador e orientador para a cidadania consciente,

crítica e participativa.

(BNCC, 2017, p. 60)

Seguindo esse raciocínio, a obra se enquadra principalmente com

o tema O mundo natural e social, uma vez que mostra como o mundo é

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um lugar de convívio com a diferença, estabelecendo a responsabilidade diante dele. Outro tema relevante é Família, amigos e escola, já que trata de relações sociais imediatas dos personagens, considerando-se a relação com as autoridades, a construção das amizades, os conflitos e as aprendi-zagens advindos da interação com o outro, etc.

Os encontros e desencontros vividos pelos personagens, tendo como pano de fundo o espaço da Sorveteria Pinguim, são variados e evidenciam o tema Autoconhecimento, sentimentos e emoções, em que são tratados emoções e sentimentos, tais como amor, alegria, dor, desilu-sões e conflitos familiares e sociais. Essas relações observadas pelo leitor podem levá-lo a uma avaliação de si mesmo e à construção de seu ama-durecimento, contribuindo para uma positiva interação com o outro.

O gênero literário trabalhado na obra A sorveteria é o conto. Isso significa que o livro é dividido em vários textos narrativos centrados em um relato de um acontecimento real ou fictício. Existe a tendência de classificar o conto em uma “régua”: o con-to é pequeno, em comparação à novela, que é média, e ao romance, que é grande. Gotlib1 e diversos outros autores e teóricos – entre eles Julio Cortázar, Machado de Assis e Norman Friedman – nos alertam, porém, que a estrutura do conto é de fato curta, mas não em virtude de uma convenção métrica, e sim por causa de uma condensação da narra-tiva que, longe de ser em vão, tem um objetivo claro: provocar impacto no leitor.

Os contos de A sorveteria são ligados entre si pelo espaço: uma sor-veteria com o sugestivo nome de Pinguim. Pela sorveteria, passam várias pessoas, levando consigo seus sonhos, seus dramas, suas angústias, seus conflitos e suas inquietações. Cada um dos vários personagens que prota-gonizam os contos tem um sorvete de preferência, sempre acompanhado de uma calda, pois, segundo seu Atílio, “a calda é a namorada do sorvete”. Em todos os contos, os personagens têm, de alguma forma, uma ligação com a sorveteria, ou porque guardam na memória o sabor do sorvete ou porque vivenciaram ali experiências marcantes.

1 GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006. (Série Princípios).

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OR

VE

TE

RIA

Tadeu Pereira

Na pequena cidade de Ipê D’Oeste, a Sorveteria Pinguim é palco de paixões, revelações, reencontros. Ah, se aquele balcão em forma de U falasse... Seria o primeiro balcão de sorveteria contador de histórias do mundo.E que histórias: comoventes, engraçadas, intrigantes... Por trás de todas elas, a fi gura amiga de seu Atílio, que não faz apenas sorvetes: faz remédios para a alma.

2a edição

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