Análise das principais influências ideológicas na constituição do MST
As Principais Críticas Aos Direitos Humanos E Fundamentais
Transcript of As Principais Críticas Aos Direitos Humanos E Fundamentais
As Principais Críticas Aos Direitos Humanos E Fundamentais
Rogério César de Almeida Ribeiro*1
1
* Mestrando em Filosofia do Direito, Universidade de Coimbra
Coimbra, Maio de 2013
SUMÁRIO
1. Introdução! 3
2. Críticas aos Direitos do Homem e do Cidadão! 5
3. Críticas a Declaração Universal dos Direitos do Homem! 10
3.1. De Michel Villey! 10
3.2. De Frederick August von Hayek! 13
4. Críticas não Diretamente Associadas às Declarações Dos Direitos Humanos ! 16
4.1. Hannah Arendt (1906-1975)! 16
5. A Utilização Funcional dos Direitos Humanos ! 17
6. A Pós-Modernidade e Os Direitos Humanos! 24
7. Conclusão ! 26
8. Referências Bibliográficas ! 27
2
1. Introdução
A busca por uma vida bem-sucedida, aplicada a todos os aspectos vivenciais de um homem,
quer em seus relacionamentos interpessoais, quer na capacidade de exercê-la de forma a
olhar sua história e perceber que a vem conduzindo para produzir sua felicidade, contribuindo
no mesmo sentido com seus elementos pessoais, permitindo que aqueles com quem se
relaciona participem do mesmo sentimento, reunidos em torno de uma convivência pacífica e
realizadora, tem sido um dos principais aspectos aos quais se dirige o anseio e o pensamento
humanos. Em tudo isso domina a percepção de que a vida transcorre num pequeno interregno
que já aponta a finitude da existência individual, trazendo um sentido de urgência e importância
à mencionada busca juntamente com esperança alicerçada em suas atitudes permitindo, numa
qualquer expressão de comparabilidade cósmica, um saldo positivo eliminador dos pesos
advindos de experiências que, porventura, negaram as contribuições dessa busca constante.
A referência que se faz, traz a memória dos tempos mais antigos, mesmo aqueles que não se
inseriam nos relatos históricos escritos, mas que a arqueologia vem procurando demonstrar em
suas minuciosas pesquisas em torno dos primeiros grupamentos humanos identificados por
seus resíduos ainda visíveis. Enfatizam um significado religioso que indicam a perseguição de
um estilo de vida que permitisse associar o tempo de cada existente indivíduo com alguma
fruição eterna resultante de seus atos e atitudes conscientes, que, sopesados, ultrapassassem
o crivo de um juízo de reprovação vivencial. Pode-se traduzir tal anseio com sentidos mais
próximos dos nossos conceitos relacionados com a salvação (integral ou parcial, mas
preservadora da consciência pessoal existencial) para um desfrutar da verdadeira paz
contemplativa eternamente indissolúvel.
A irreversibilidade temporal que integra a existência de cada indivíduo e lhe disponibiliza um
certo período vivencial no universo percebido (como realidade?) foi o foco principal de filósofos
da antiguidade. A morte inevitável de cada um despontou como o interesse dos estóicos, pois a
filosofia por eles propugnada, e não menos importante o foi para os epicuristas, pretendia
estender o manto da salvação para homem, não apenas com promessas de imortalidade, mas
com a libertação do imenso medo suscitado pela certeza de sua ocorrência através do
exercício da razão. Percebe-se um alinhamento entre a filosofia e a religião neste propósito,
3
mas com diferentes abordagens, visto que nas religiões havia a promessa de uma imortalidade
(ou de um recomeço, seja em ciclos desenhados em consequência da vida de cada um, seja
em ato salvífico único e definitivo), não necessariamente partilhada pela filosofia.
Nesse tempo, a vida comunitária que se desenvolvia nas pólis era o espaço para a expansão
das experiências vivenciais de cada um de seus integrantes na prática de uma vida
intencionada ao alcance do bem-comum. A filosofia sustentava a percepção religiosa de que o
universo (o cosmos grego) fora criado obedecendo as regras que tornavam todas as coisas
harmoniosamente colocadas. O equilíbrio da vida comunitária era um reflexo dessa ordem
cósmica inerente também aos homens e suas pólis. Durante muitos séculos que se seguiram,
ultrapassando a idade média, a filosofia e a religião (ou a teologia, que se embrenhava em
estudos mais aprofundados) caminharam juntas na compreensão de um cosmos divinamente
ordenado e organizado, do qual os homens retiravam as normas para, em obediência,
aplicarem-se na busca de uma vida bem-sucedida. Havia, assim, o entendimento de que o
cosmos era regido por uma lei natural pré-existente, antecedendo a própria existência humana,
que sobrepunha-se a leis criadas nas comunidades por seus governantes, conducentes da vida
comunitária capaz de direcionar seus integrantes num caminho harmonioso e equilibrado numa
prática de vivências baseadas na prudência, como expressão da produção de atos e atitudes
que ressaltavam a sabedoria aplicada às relações comunitárias. Foram tratadas, assim as três
questões fundamentais da filosofia, a saber: Theoria, que etimologicamente foi formada por
theion orao (ta theia orao, vejo o divino); a práxis, ou filosofia prática, cujo fundamento era a
phronesis, a prudência; e a soteriologia, doutrina da salvação.
A quebra dessa secular percepção veio a partir dos séculos XVI e XVII com a publicação das
teorias de Copérnico, Galileu e das que se seguiram, na mesma linha, culminando com a
Principia Mathematica de Isaac Newton que se tornou o novo padrão para a física até o início
do séc. XX. Estas teorias desvelavam um universo de forças descomunais que se
entrechocavam, fazendo perderem-se as referências de harmonia, paz e equilíbrio, os antigos
modelos de inserção do homem neste. Perderam-se, também nestas novas pesquisas, as
referências que se solidificaram e apontavam um caminho para uma vida bem-sucedida. Se
essas teorias identificavam ser o universo um caos sem valor (axiologicamente neutro), nada
mais haveria na natureza que pudesse servir de base num plano moral, sendo inútil como
modelo ético para os seres humanos. Nesse sentido, pensadores e filósofos sofreram os
impactos dessa revolução científica que destruiu a ideia de um mundo criado como um todo
bem-ordenado, no qual a estrutura espacial dispunha uma hierarquia de valores e perfeição.
4
As antigas pressuposições perdidas nas observações científicas trouxeram a certeza de um
vazio de referências ético-morais. O homem estava só. Tinha que descobrir seus próprios
caminhos na gestão de suas experiências que atingissem um re-ordenação do próprio cosmos
como uma imagem de sua humanidade. Os pensadores iluministas dedicaram-se a estas
questões, criando o conceito de sociedade, que incluía o nascimento do indivíduo e uma nova
ontologia que observasse a realidade dos objetos e a indescritível subjetividade componente
deste indivíduo-sujeito (de certa forma, o nascimento do indivíduo). As obras de Hobbes e
Locke enfatizavam uma relação contratualista, referindo-se ao estado de natureza como algo
ultrapassado e impossível de ser recuperado, e, somente na visão contratualista se poderia
erguer um novo momento para a humanidade pela criação da sociedade.. Dentre os
pensadores iluministas, Rousseau e Kant marcaram mais profundamente essa criação em seu
sentido moderno. Do primeiro ficaram o estabelecimento das bases reestruturantes do estado e
sua construção em torno de uma vontade geral estabelecida a partir das vontades subjetivas.
Do segundo, o estabelecimento das bases ontológicas que seu desenvolvimento filosófico
produziu, numa síntese que tem, ainda hoje, forte influência sobre os atuais pensadores,
cristalizada nas suas três críticas.
A obra produzida por Rousseau foi o apoio ao espírito revolucionário que compunha a França
do séc. XVIII, que, ao se realizar, acabou por fazer uma completa ruptura com o antigo regime,
revisando a ordem, redistribuindo os poderes estatais e os papéis exercidos pelas classes
existentes (claramente privilegiando a burguesia e seu controle sobre os meios de produção).
Foi sob a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que o novo regime foi
fundamentado. Os efeitos de sua edição, como a posterior promulgação dos Direitos do
Homem e documentos complementares editados pela ONU (Organização das Nações Unidas)
desde 1948 até a década de 60, tiveram por base a construção jurídica das diversas escolas
do direito que procuraram adequar as demandas e enormes pressões de grupos sociais aos
objetivos estatais.especialmente as atinentes às críticas que, a partir destas, se construíram,
são o objeto do presente trabalho.2
2. Críticas aos Direitos do Homem e do Cidadão
5
2 FERRY, L. Kant, uma leitura das três críticas. Trad. Karina Jannini, Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 2009.; MARQUES, M. R. Introdução ao direito. Almedina, v. 1, 2007. pp. 130-131
Em 1790, cerca de um ano após a promulgação francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão, o anglo-irlandês Edmund Burke escreveu o texto “Reflexões Sobre a Revolução
Francesa”. Representante das tradições conservadoras que formavam a Inglaterra, adotou
uma posição crítica a esses direitos, vendo-os como um marco de ignorância e brutalidade em
vista das execuções que se seguiram durante o período de consolidação da revolução francesa
(nestas foram mortos vários “homens bons”, como Lavoisier e outros muitos), que estabeleceu
um reino de terror. Desprezava os filósofos iluministas revolucionários, considerando-os
confusos e decadentes “audaciosos experimentadores da nova moral”. O novo regime opunha-
se a Constituição Inglesa por ele apoiada, visto ser uma construção secular harmonizadora de
costumes, preconceitos e instituições que não ensejavam rupturas extremas residentes na
análise precipitada de um específico universo de regras e princípios gerais.
Ressaltou, em suas críticas, a abstração do conceito de “homem” universal que foi adoptado,
afirmando a impossibilidade de sua aplicação geral em todos os cantos (especialmente na
Europa), visto que a disposição e direção dos poderes tratados pela revolução francesa não
podiam ser adequados à natureza do “homem”, ou à qualidade dos seus negócios. Para Burke
haviam, simplesmente, direitos, conquistados e construídos gradativamente na história pela
força das instituições, onde se encontravam os vínculos emocional/afetivos da realidade
concreta, e sem estes não haviam condições de imposição da obediência e, muito menos, uma
estabilidade social compatível com as relações entre governo e governados. Uma classe
especial de direitos, atribuídos ao “homem”, enquanto construção geral e abstrata feita por um
“grupinho de franceses” pertencentes a uma elite pensante era imprópria, precipitada e irreal.
A declaração francesa não passava de pedaços de papel borrado, discorrendo sobre direitos
especialmente fabricados para os fins de uma ruptura com tradições seculares
institucionalizadas que formavam as relações entre todos os franceses, com consequências
trágicas em sua adoção. Burke confiava na tradição que dispunha os direitos herdados das
gerações passadas, considerando os direitos revolucionários, criados como inalienáveis, sem
valor, por se apoiarem na visão metafísica de uma lei natural, na qual a ordem e harmonia do
universo obrigavam, por sua imanência, a servirem de regra entre as relações humanas,
subjugando seus governos no cumprimento de tais direitos metafísicos. 3
O desenvolvimento do direito que se seguiu enfatizou a criação e cristalização de direitos
aplicados a todos, com objetivos de travar a voracidade estatal no exercício de seus poderes
6
3 BURKE, E. Reflections on the revolution in france, Cambridge UK, The Eletric Book Company, 2001.
contra sociedade e seus indivíduos, caracterizando uma ontologia que percebia a subjetividade
das vontades individuais que, numa racionalidade objetiva, permitia a edição de leis que
assumia a ponderação destas na criação de uma vontade geral de todos, conforme os
pressupostos da revolução francesa, mas não diretamente ligada aos direitos do homem e do
cidadão. Mesmo na era napoleônica e nas que se seguiram, os objetivos se circunscreviam ao
trabalho legislativo de controle da sociedade através da construção de leis que abarcavam os
direitos necessários à consolidação da sociedade, sem privilegiar hierarquicamente os direitos
humanos propagados.
A escola romântica de Savigny absorveu as críticas tecidas por Burke, propondo, em sua
construção, que só no alinhamento entre tradição e história o direito podia expressar-se como
auto-determinação dos povos. Imprescindível, portanto, que estivesse arraigado às tradições
culturais particulares, entrelaçadas às circunstâncias concretas de um lugar geograficamente
circunscrito. É de se observar que Savigny dedicava-se a reunificação germânica, que, em seu
tempo, estava fragmentada em ducados, condados e principados. Para ele, o direito constituía-
se em instrumento cultural sob o qual os povos estabeleceriam identidades indissolúveis,
permitindo o estabelecimento de uma sociedade completa na relação entre estado, governo e
indivíduos.4
Também o positivismo, nascido na França e contemporâneo da escola romântica, adotou,
contra o racionalismo e o idealismo (centradamente na proposição filosófica de Hegel) ser a
verdadeira ciência aquela que observava tão-somente o mundo físico sensível, que, através
dos dados (positivos) percebidos através dos sentidos, era capaz de atingir a plena
compreensão do universo. Substituía-se, assim, o metafísico, o espírito, pelo material, o real
apreensível pelos sentidos. Não cabia, portanto qualquer valoração ético-moral no direito, visto
ser este uma ciência neutra e imparcial, produto da aplicação do método positivista proposto.
Inicialmente, com seu fundador Auguste Comte, privilegiou uma visão sociológica (sendo
considerada o criador da ciência da sociologia), mas rapidamente foi incorporada ao direito
dando-lhe um status científico. Em sua neutralidade e imparcialidade, não tratava dos aspectos
ético-morais, considerados pertencentes a antiga visão metafísica jusnaturalista, contra a qual
se insurgia. Os direitos só podiam ser criados e introduzidos em decorrência do método
utilizado, sendo impossível o trato dos direitos humanos herdados (mesmo que na passagem
do estado de natureza para a sociedade construída), especialmente como direitos
7
4 MARQUES, M. R. op.cit. pp. 165-169.
hierarquicamente superiores aos positivos. A crítica, neste sentido, era mais extensa e
profunda, já envolvendo um método que fixava o que se considerava ciência (e o direito era
ciência). O positivismo jurídico teve vida longa, atravessando as intempéries européias e a
mutiplicidade de críticas que se desenvolveram no passar dos anos, as quais atingiam o cerne
de seus pressupostos teóricos. Foi capaz de desenvolver-se, adaptando-se às condições que
historicamente se interpunham e, ainda hoje, tem influência relevante no pensamento jurídico e
científico.
Em período bastante próximo, Karl Marx iniciou seus estudos que o direcionaram a uma
concepção materialista e histórica reinterpretando a vida social de acordo com sua
compreensão da dinâmica da estrutura produtiva das sociedades conducentes a luta entre as
classes que se desenvolviam das concepções modernas da sociedade, especialmente entre a
burguesia e o proletariado. A propriedade, especialmente aquela que afirmava o controle dos
meios de produção, e sua relação com o capital e o trabalho distanciava-se das propostas
deterministas do positivismo, para o qual o controle dos meios era uma imposição natural no
processo evolutivo até uma sociedade positiva, caracterizando um materialismo mecanicista.
Na sua pesquisa, o materialismo histórico e dialético compreendia as ideias formuladas no
tempo e a realidade material, também histórica. Negando, categoricamente, o idealismo
hegeliano, uma de suas fontes inspiradoras, absorveu a visão materialista de Feuerbach,
construindo um teoria dialética onde o material sobrepunha-se ao ideal (contradizendo a
dialética hegeliana), cuja realização dependia da práxis que vivenciava a realidade material e
ideológica, tornando dinâmica e relativa a síntese dialética. Aos direitos humanos dedicou, em
sua publicação “Sobre a questão Judaica” severas críticas. Escrito em 1843 como resposta a
dois ensaios de autoria de Bruno Bauer que enfatizava serem as demandas religiosas judaicas
incompatíveis com os Direitos do Homem e do Cidadão (também, como Marx, à época um
jovem hegeliano), mesmo antes de confeccionar sua teoria, o jovem Marx expôs sua crítica ao
documento francês. Observa a inevitável constituição metafísica dos direitos humanos, herança
de uma ultrapassada ilusão naturalista, acabando por desaguar em palavras sem efeitos,
dominados por uma ideologia impeditiva de garantir proteção, e, por sua dependência da
soberania estatal, inexequíveis em sua abrangência universal, mas aplicável, tão-somente, a
uma categoria específica de indivíduos vinculados a um estado-nacional. Tais direitos só
puderam prevalecer em seu determinado momento para legitimação e acobertamento das
relações de interesses e exploração do proletariado por parte da burguesia. Assim
representaram, em seu momento histórico, um postulado legalista-formal vazio. O título dado
ao documento francês enfatiza a dualidade homem-cidadão e sua separação no trato dos
8
direitos especificados. Marx observa tal separação enfatizando ser o homem, enquanto
pertencente a sociedade burguesa distinto de suas referências políticas que o fazem um
cidadão, é tratado na abrangência dos direitos do homem por enquadrar-se na proximidade de
sua experiência sensível e individual (a ponte para o materialismo mecanicista positivista),
distinto do cidadão, politicamente inserido, mas tratado de forma abstrata, genérica e artificial,
mais uma alegoria moral. Nessa base, o homem real somente se reconhece como indivíduo de
vontades subjetivas, egoísta, enquanto que o cidadão, geral e abstrato, é o homem verdadeiro,
objeto dos direitos propugnados. Parece, assim, ser a Declaração francesa formadora da
sociedade civil um instrumento de trato diferenciado do indivíduo apolítico e egoísta em
oposição ao verdadeiro sujeito dos direitos, o cidadão, contribuidor ativamente político da
sedimentação do novo regime. Por isso o cidadão representava o universal que se
contrapunha ao particular. Obviamente que o indivíduo interpretava os dois conceitos, sendo,
enquanto cidadão, livre para exercitar sua individualidade subjetiva na perspectiva privada,
tratando os outros como meios em seus objetivos egoístas, e, ao mesmo tempo, participante
político da construção da sociedade civil, no exercício de sua cidadania comunitária,
submetendo-se aos valores revolucionários do novo regime. Essa considerações descritas por
Marx partem de uma análise detalhada de cada um dos Direitos da Declaração francesa e sua
conclusão é direta e precisa: os direitos propugnados são apenas os direitos da sociedade
burguesa, do homem separado de si e da comunidade.
Das críticas já apresentadas percebem-se as ligações profundas com a filosofia kantiana
(liberal moderna) que pressupõe o homem como ser transcendental possuidor de um dever
moral e absoluto (pré-condição inerente a sua existência) independente de atributos de sua
munidivivência. É ele, portanto, autônomo, mas autodisciplinado, e inacessível em sua
condição subjetiva. No exercício de uma razão objetiva é que este se converte de
transcendental em agente que se submete aos imperativos da sociedade construída. Nessa
contraposição entre o indivíduo de vontades próprias, soberano em suas decisões
encaminhadas aos seus fins projetados, e o sujeito de direitos e deveres, pessoa juridicamente
definida componente da sociedade construída, que se submete à liberdade controlada pelo
direito na construção da vontade geral de todos, é que se extinguem os apelos metafísicos e as
antigas percepções de um universos ordenado e harmonioso que submeteria os homens às
suas regras externas universais. É este o ponto de rompimento com a pretensa lei natural
existente, o qual obrigava a interação participativa de todos na construção de um novo mundo,
a sociedade, visto já não existirem suportes externos referenciais anteriores capazes de formar
uma existência pacificada em torno destes. A responsabilidade da administração da vida é
9
exclusiva do homem e só dentro dele se encontrariam suas soluções. Mas o projeto filosófico
de apoio ainda estabeleceu pontes de ligação com a visão jusnaturalista (ponto focal da crítica
inicialmente estabelecida) e a descrição geral e abstrata dos elementos componentes exercida
por meio da fragmentação da razão e opção da racionalidade objetiva como única capaz de
interpretar e inserir as vontades perceptíveis no projeto da sociedade, também ligada à lógica
utilizada nos antigos modelos. Por isso a ênfase crítica à separação do indivíduo em duas
faces, além da crítica ao modelo de generalização e abstração introduzidos 5.
3. Críticas a Declaração Universal dos Direitos do Homem
Os impactos negativos causados pelas duas grandes guerras (a primeira entre 1914 e 1918 e a
segunda entre 1939 e 1945) proporcionou a criação da Organização das Nações Unidas (ONU,
em 1948, substituindo a antiga Liga das Nações). Um de seus primeiros atos foi a edição da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em dezembro de 1948. Durante as décadas de
60, 70 e 80, acordos e pactos fortaleceram vários dos aspectos que não vinham sendo tratados
de forma mais específica, como os direitos sociais. Esta Declaração é composta de 30 artigos
e um preâmbulo, os quais foram resultado de composições de forças político-estatais dos
membros da Organização na época. Destinava-se a ser um instrumento não juridicamente
vinculativo, mas orientador dos estados-nações no estabelecimento interno e externo de
condições perpetuadoras de uma relação mais pacífica entre os povos.
3.1. De Michel Villey
Michel Villey, filósofo neotomista, nascido em 1914 e falecido em 1988, erudito francês que
transitava com facilidade nos campos da Filosofia, História, Direito e Filologia, editou, em 1983,
seu livro “Le droit et les droits de l’homme” no qual tece suas críticas às Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão e Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ligado ao
movimento do renascimento do Direito Natural que se introduziu após a segunda grande guerra
do qual também participaram, dentre outros, Leo Strauss, Gustav Radbruch (em sua
maturidade) e John Finnis. Foi considerado um antimodernista por sua proposta de
descentralização do pensamento jurídico, buscando fazer voltar o homem à “ordem das
coisas”, retornando ao estágio anterior da “revolução” científica copernicana da ordem de uma
universo criado, conduzido pela ordem divina e nesta em harmonia. Considerava a
10
5 MARX, K. Sobre a questão judaica (inclui as cartas de Marx a Ruge nos anais franco-alemães. Trad. Nélio Schneider, São Paulo, Editora Boitempo, 2010.
modernidade um declínio (uma evolução ao contrário, uma involução), o último “avatar” da
história de um esquecimento de origens, crítica dirigida ao positivismo no uso que fazia do
conceito de história para adaptá-la ao evolucionismo por este movimento propugnado com
grande ênfase. Para o autor a história, maioritariamente, correspondia a história da linguagem,
submetendo sua pesquisa ao estudo da linguagem que gerou a ideia de direitos humanos
desde a modernidade. Sua pesquisa, para tanto, verificou a construção dos conceitos de
direito, direito natural, sujeito e indivíduo.
Criticou esta construção moderna por ter sido elaborada por filósofos e sociólogos, mas não
por juristas, criando um grande abismo entre as ideias modernas e a tradição histórica do
direito natural. Em sua concepção a passagem para o modernismo foi trágica tanto para o
direito, como para as sociedades e comunidades que por ela foram abrangidas.
Observou que os direitos humanos, pretensiosamente universais (especialmente os constantes
da Declaração da ONU) causava uma indesejável ingerência nos assuntos públicos das
diversas nações em relação aos processos democráticos exigíveis e à cultura em geral. Eram,
assim, propostas inaceitáveis e, mesmo, indecentes e descabidas para 3/4 dos países
existentes no mundo. Antes, vinculavam-se a um projeto hegemonista e neocolonialista
absolutamente incompatível com a administração, dedicada pelos países à ONU, de um mundo
que por este instrumento já não podia estar reunido em comunhão. Portanto, evidenciava uma
administração por fragmentação que impunha o domínio das grandes potências sobre países
(especialmente os mais fragilizados e dependentes). Era uma processo de retirar a história de
suas próprias comunidades e sociedades.
Por não serem vinculativas ao direito, apresentavam-se com grande indeterminação pela
carência de medida (limites). Entendia que, portanto, eram direitos contraditórios, verificando
serem cada um destes a negação de outros direitos do homem, e, quando praticados
separadamente originariam injustiças (usava os exemplos: direito à vida contra a liberdade de
abortar, o direito ao silêncio contra a liberdade de manifestação e, especialmente, o direito à
intimidade contra o direito à informação). Eram resultantes da ideologia aplicada à sua
formação, perceptível nos textos iluministas propugnados para finalidades específicas, como
na concepção de Hobbes em favor da dinastia dos Stuarts, e, no caso de Locke, contra a
mesma dinastia, ambos os autores tinham uma situação diferente que os obrigava ajustar o
contratualismo sob óticas diferentes. Concluia que os direitos humanos não são direitos (stricto
11
sensu), pois por serem espirituais e interiores aos sujeito, careciam da nota de exterioridade
para aplicação a todos.
Remetia os princípios fundantes dos direitos humanos que apareceriam séculos depois, ao
evento de uma disputa interna eclesial ocorrida durante a baixa idade média, de cuja
argumentação usada para resolução conflituosa acabou por introduzir o nominalismo frente ao
realismo vigente, oportunisticamente trazido por razões extrajurídicas (o interessante caso em
que participou William Ockham). Como o nominalismo gravitava em torno do indivíduo, visto
que só este tem existência real, sendo, assim, o autêntico objeto de conhecimento, por este
nominalismo não poderia haver ordem jurídica que não procedesse da vontade individual.
Consequentemente a lei tornava-se a expressão da vontade individual, primeiramente de Deus
e, em seguida, do rei temporal. Constituía-se, assim, que a obrigação provém dos atributos de
uma pessoal individual, efetuando encargos e abstendo-se de atos através de contrato que
exprimisse as vontades das partes. Esse direito passava a ser atributo do indivíduo na forma
de direito subjetivo (em inglês, right). Pois deste nominalismo, de inspiração teológica
extrajurídica, originou-se, muito tempo depois, a “invenção” dos direitos humanos. A base do
argumento medieval adotado estava na doutrina cristã da liberdade, dada ao homem pela
graça de Cristo, libertando-o (cada homem) da escravidão do pecado e da lei no “estado de
natureza restaurado”. Portanto, com o evangelho, uma parte essencial do indivíduo escapa da
sujeição ao estado. Ali encontrava-se o germen das liberdades modernas do indivíduo
oponíveis ao estado.
Para Villey, no conceito grego, romano e cristão da idade média, da existência de uma
comunidade de toda humanidade podia-se observar a ética e a moralidade como lei comum,
cujas regras abrangiam a misericórdia, a hospitalidade, a caridade e a fé. Só no renascentismo
estes conceitos centraram-se no indivíduo e não se radicaram no direito civil próprio de cada
comunidade, num anseio por um direito universal e cosmopolitada aplicável a todos os
homens. Tal anseio foi tratado por Hobbes e Locke, adeptos da ciência moderna, usando o
método de Galileu (resolutivo-compositivo) para a construção do contrato que preconizava uma
vida genuína, mas em sociedade (não mais comunitária). Ambos reconheciam que o estado de
natureza refletia os direitos humanos, mas com o risco de, nesse estado, chegar-se à anomia,
cabia à razão conceber o melhor modo de evitar tais riscos. Para Hobbes, o contrato social era
a resposta que convocava um leviatã que conservava os direitos pré-existentes, cabendo aos
indivíduos sacrificarem suas liberdades (ou parte significativa delas) para suas seguranças,
12
evitando a violência praticada por lobos contra lobos. Locke via o estado de natureza como lei
comum que governava os homens no respeito mútuo de suas propriedades e, nos tempos em
que esse estado de natureza não fosse vivido em miséria e guerra, desfrutando, assim de suas
propriedades, era o contrato que permitia não abdicarem de seus direitos (a propriedade,
liberdade de consciência, de opinião e resistência às tiranias que se tentassem ser impostas).
Ora, a sociedade foi invenção humana do período iluminista, tentando trazer para essa nova
realidade, fortemente institucionalizada e fragmentada em suas funções, na sua racionalidade
objetivamente reguladora, um resgate, mesmo parcial, dos princípios ético-morais que existiam
nas comunitas, que podiam ser verificadas na frase de Aristóteles “O meu direito é o bem do
outro” e no jurisprudencialismo romano de dar o justo na conformidade de cada caso. Se
fossem observados assim, o ius (o direito) não podia reduzir-se ao conceito que se impunha na
modernidade de direito subjetivo. Assim, os direitos humanos das Declarações (que nem
mesmo eram direitos) só se realizariam na volta às tradições anteriores à revolução
copernicana, sendo esta volta pregada por Villey6 .
3.2. De Frederick August von Hayek
Frederick August von Hayek, nascido em 1899 e falecido em1992 foi um erudito que aplicou-se
às áreas da Psicologia, Direito, Economia e Política, tendo recebido o prêmio Nobel em
Economia em 1974. Era defensor do liberalismo econômico, entendendo ser a economia um
sistema demasiado complexo para ser planejado por uma estrutura centralizada de poder,
antes deveria evoluir espontaneamente por meio do livre mercado. Suas críticas aos direitos
humanos são mais restritas e aplicam-se àqueles que pressupõe uma ação interventiva do
estado para concretizá-los.
Defendia o conceito de que as sociedades são ordens espontâneas em seu desenvolvimento,
de acordo com um processo não intencional (não planejado), o que significava dizer que o
próprio capitalismo não era um projeto de homens (representantes de elites, p. ex.) e
desenvolvia-se naturalmente sem intervenções, enraizado na tradição. Concordava com
Popper na crença de que estas não eram justificáveis sem pressupostos iniciais, e, quando
justificadas não se podia libertar-se de seus vínculos. Inútil era, portanto, qualificá-las de boas
ou ruins, antes dever-se-ia considerar a eficiência das tradições que permitiram que certos
13
6 VILLEY, M. Le droit et les droits de l’homme. Quadrige grands textes, Wook, reimpressão, 2008.; MARQUES, M. R. op. cit. p. 142.
grupos humanos prevalecessem sobre a maior parte dos outros. Neste sentido seria impossível
impor, por lei, novos direitos sem destruir outros mais antigos que visavam manter a ordem
social que construiu a sociedade civil. Assim havia incompatibilidade entre os novos direitos
sociais, referidos na Declaração da ONU, e os tradicionais direitos civis.
Sua tese era que os direitos humanos presentes na Declaração eram abstratos e imprecisos,
incapazes de atribuir a obrigação por seus cumprimentos e, ainda que um dia se definissem os
agentes responsáveis por uma obrigatoriedade de cumprimento, os novos direitos sociais
destruiriam a ordem liberal (e a riqueza material a ela relacionada). Na tradição dos direitos
individuais encontravam-se as regras da justa conduta individual reconhecidas nas leis gerais e
abstratas que atribuiam a responsabilidade dos agentes para sua obediência.
A insistência na elaboração de leis sob a égide dos direitos sociais demonstrava a intenção do
controle de contingências imprevisíveis e de acidentes no sistema econômico, incompatíveis
com a natureza do sistema capitalista, observando-se nessas contingências as características
do processo natural da evolução para o aperfeiçoamento e desenvolvimento das sociedades.
Embora considerando desejável a aplicação dos enunciados contidos nos direitos sociais em
razão dos princípios ético-morais ainda enraizados na concepção da comunitas (verificável
desde a antiguidade), impô-las legalmente permitiria o avanço do totalitarismo por meio das
intervenções estatais (cujo exemplo era visível na antiga União Soviética e responsável por sua
queda). Assim, os direitos sociais se resumiam a pretensões de benefícios específicos, direito a
recursos, cujos custos inviabilizariam sua sustentabilidade estatal, pois seriam pulverizados na
repartição aos indivíduos componentes da sociedade.
Hayek entendia que a riqueza material existe na ordem liberal porque os indivíduos utilizam
seus melhores conhecimentos e recursos para perseguir seus próprios fins. Frisava, então, a
liberdade de ação, como obrigação negativa da interferência estatal, como o instrumento para
estabelecer e fazer prevalecer a vontade individual contra as intempéries naturais a fim de
satisfazer suas necessidades. Por isso seu ideal associado à ordem liberal era o de permitir um
estado de liberdade com um mínimo de coercitividade no trato entre os indivíduos. Assim o
monopólio da coerção era dado ao estado sob rígido controle legal, aplicado igualmente a
todos. Igualdade, neste sentido, só se apresentava perante a lei. A aplicação legalmente
imposta dos direitos sociais produziria uma profunda distorção social produzida pelo injusto
14
privilégio protetivo aos menos favorecidos e negado aos que sustentavam por seus esforços
seu próprio progresso econômico-social.
Considerava ser o mercado a instância que melhor distribuiria os recursos necessários, através
do trabalho assalariado ou pela capacidade empresarial, sendo este neutro eticamente e
imparcial, aplicando meritoriamente as recompensas que levariam a vida de um indivíduo ao
sucesso no atingimento de seus próprios alvos de bem-estar. A desigualdade social, a
pobreza e a miséria não podiam ser atribuídas ao mercado (essa instância neutra e imparcial),
mas resultavam das consequências da inserção social dos indivíduos neste espaço da
interferência natural evolutiva onde a seleção ocorria espontaneamente em todas as áreas em
direção ao aperfeiçoamento da sociedade. O mercado apenas recompensaria o esforço e os
méritos individuais resultantes da adaptabilidade e da consequente seleção naturalmente
imposta. A justiça social era considerada uma abstração irreal e não se encontrariam culpados
por esta nos mecanismos utilizados na economia de mercado e nos processos de distribuição
de bens. Sue livre funcionamento não era justo ou injusto e seus resultados não eram
intencionalmente dirigidos e, muito menos, previsíveis, antes dependiam de uma multiplicidade
de fatores circunstanciais, não dominados por quaisquer instituições sociais. Tal como a
existência e ocorrência de catástrofes naturais impunham desigualdades na sociedade, o
exercício da economia de mercado estava sujeito às mesmas variações, não podendo ser
considerado moralmente culpado pelas desigualdades existentes. Os governos deveriam
submeter-se às leis (gerais e abstratas) representantes das tradições, evitando a interferência
nas tentativas de controle do que se desenvolvia naturalmente, pois se assim o fizessem
seriam prisioneiras da miragem da justiça social.
Frisava que a ajuda ocasional aos que, por razões naturais não se podiam sustentar, era
louvável e moralmente necessário, mas tal dever era tão somente um decorrente de
imposições pessoais ético-morais, nunca através de obrigação de cumprimento legal imposto,
de um tal dever estatal de satisfação das necessidade básicas humanas que contrariava a
natureza em seu processo evolutivo. Concordando com Popper, afirmava ser melhor, mais fácil
e simples, amenizar o sofrimento do que promover a felicidade.7
15
7 ZYWICKI, T. J. e SANDERS, A. B. Posner, hayec & the economic analysis of law, School of Law, George Mason University Press, 2005.; PIRES, S. P. Do conceito de liberdade em Friedrich A. Hayek: um contributo para o estudo do liberalismo clássico em Portugal. Dissertação de Mestrado, Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2011.; VIEIRA, O. V. Desigualdade e limites do governo das leis. São Paulo, Rev. Perspectiva, n.13, 1999.
4. Críticas não Diretamente Associadas às Declarações Dos Direitos HumanosVários autores, em suas proposições filosóficas e sociológicas, embora não tivessem como
objetivo principal a crítica aos direitos humanos, acabaram por estabelecer, em seus conceitos,
posições que acabavam estabelecendo algumas críticas às bases, extensividade, utilidade ou
aplicabilidade dos direitos humanos.
4.1. Hannah Arendt (1906-1975)
A autora analisa, principalmente em sua obra “As Origens do Totalitarismo”, as experiências e
as condições que possibilitaram o estabelecimento de estados que se utilizaram da forma de
opressão política do totalitarismo, vendo que em sua essência diferiam de outras formas já
utilizadas. Para sua análise, afirma a volta ao passado com condição da melhor compreensão
do contexto do surgimento do fenômeno, mas frisava que tal retorno analítico não se
caracterizava por um retorno às tradições que historicamente se inscreveram na sociedade, era
assim um trabalho de reapropriação seletiva dos fatos esclarecedores do presente, depois de
recuperados do esquecimento e reiluminados pela nova visão retrospectiva (uma clara
influência da filosofia hermenêutica heideggeriana e da proposta recente a seu tempo da
hermenêutica filosófica de Gadamer). Sua atenção foi, então, dirigida aos conceitos da
condição humana, ação política, liberdade e igualdade, conforme propunha em sua filosofia.
Em consequência de sua pesquisa, acabou por defrontar-se com a instituição dos direitos
humanos, tecendo observações importantes, mas não exaustivas, na composição do quadro
dos conceitos em evidência.
Frisou a importância das relações estabelecidas pelos indivíduos na espaço público como a
atividade que representava a dignidade do ser humano, visto ser neste que se estabeleciam as
relações marcads pela existência individual unívoca iluminada por suas particularidade. Neste
espaço as ações tinham sua importância por serem fruto da atividade livre de cada indivíduo,
revelando sua identidade única e singular. Portanto a ação política, centrada nesta liberdade e
singularidade, revela seu agente aos demais, confirmando para si mesmo que é ele de fato.
Em vista dessas conceituações, concluia que a definição dos direitos humanos, como aqueles
que emanam do homem (ou de uma ideia de homem), definido como um ser abstrato e
inatingível, opunha-se à condição humana da pluralidade, que se constituía essencial à ação e
16
dignidade humana8. O homem só, despido da teia das relações humanas, fica despido da
própria dignidade e suas atividades não teriam importância9.
A contradição entre os direitos humanos pensados desde o séc. XVIII e aplicados na
Declaração da ONU, e a condição da pluralidade humana, uma contradição que afetaria a
dignidade humana. Esta se evidenciava nos casos das pessoas excluídas de suas
comunidades, como os apátridas e as minorias étnicas obrigados a viver sob a cobertura de
Estado de uma etnia diferente. Para estes os direitos humanos não lhes chegariam, visto que
ficariam privados da participação na teia das relações humanas, justamente onde se lhes
seriam assegurados tais direitos. Continuavam sendo homens, na definição genérica e abstrata
das concepções contidas nas Declarações, mas esta não lhes garantia o acesso e manutenção
dos direitos propagados. Ficavam, assim, impedidos de agir (conforme a definição de ação
acima descrita), entregues à mercê da sorte ou do infortúnio circunstanciais10.
Os direitos humanos só são exercidos no contexto nacional para os indivíduos que são
cidadãos de um Estado, submetidos ao seu governo. Estão circunscritos à esfera de poder de
um determinado governo e tutelados por este. Assim, os apátridas e as comunidades etnicas,
em geral minoria em determinado espaço-tempo, estão fora da ordem política local e à margem
de qualquer lei ou sistema de direito. Estando excluídos do governo estatal perdem a condição
que lhes permite a proteção dos direitos humanos instituídos por não restar nenhuma
autoridade para protegê-los, ou instituições dispostas a garantí-los11.
Assim, conclui a autora que o direito fundamental de cada indivíduo, antes de qualquer dos
direitos enumerados nas Declarações, é o direito a ter direitos, significando dizer, é o direito de
pertencer a uma comunidade disposta e capaz de garantir-lhe qualquer direito12.
5. A Utilização Funcional dos Direitos Humanos
17
8 Na análise de isolamento e solidão, cita-se “O que chamamos de isolamento na esfera política é chamado de solidão na esfera dos contatos sociais. Isolamento e solidão são a mesma coisa.” ARENDT, H. The origins of totalitarianism. Ohio, World Publishing Company, 1958, parte 3, cap. 4. pp. 525-528.
9 Ibdem. op.cit. parte 2, cap. 5. pp.123.
10 Ibdem. op. cit. parte 2, cap. 4. p. 262.
11 Ibdem. op. cit., parte 2, cap. 5, pp 308-309.
12 Ibdem. op. cit., parte e, cap. 5. p. 331.
Os funcionalismos materiais atentam-se à aplicação do direito para os fins propostos segundo
a eficácia e eficiência de programas político-econômico. Especialmente nas crises do
capitalismos, como a de 1929 e a de 1973 (a crise do petróleo), os programas governamentais,
na tentativa de debelar suas causas e retornar a uma certa estabilidade, utilizaram-se do direito
como instrumento ratificador destes programas.
No momento atual, em que a inserção de um país no jogo internacional, que não mais é
exclusivo de estados e instituições internacionais (a ONU e seus organismos), é de
fundamental importância para o comércio e aspectos financeiros internacionalizados, integrar-
se nos movimentos com os instrumentos corretos, especialmente para as nações. Sem tal
inserção, a nação acaba excluída do jogo, correndo riscos sérios da deflagração de
contigências desestabilizadoras do regime. Na abertura que se interpôs às relações
internacionais incluíram-se grandes conglomerados industriais e empresariais, o setor
financeiro, instituições e organizações não governamentais, agentes do mercado responsáveis
pela imposição de padrões adotados internacionalmente, e outros, mudando completamente a
configuração do jogo que vinha sendo utilizado pelo direito internacional13.
As relações internacionais já não podem acontecer com base no modelo do Tratado de
Westphalia, ou de outros bilaterais, visto que propunham cooperação simétrica, decorrente da
reciprocidade na qual os interesses de proteção os direitos humanos de seus cidadãos era o
mesmo para os países envolvidos, e assimétrico, na qual o interesse de um estado refere-se à
proteção pelos direitos humanos em outros estados que, porventura, os esteja violando,
usando-se, como instrumentos, a cooperação para consecução dos objetivos do primeiro, ou
mesmo a coerção (um exemplo foram os tratados britânicos implementados no séc. XIX contra
as nações que permitiam a escravidão)14.
Os estudos empíricos adotados pelos funcionalistas observam que a participação que gera
melhor equilíbrio neste jogo enfoca a coincidência de interesses, cooperação, coordenação e
coerção, aplicados pelas nações na aplicação dos direitos humanos, base do processo
inclusivo no mundo internacionalizado. Tais direitos têm, portanto, importância capital para os
estados e seus governos. A inclusão ou exclusão de um país do cenário internacional
independe, atualmente, dos compromissos assumidos em Tratados (em simetria ou
18
13 GOLDSMITH, J. e POSNER, E. The limits os international law. New York, Oxford University Press, 2005, cap. 1 e 2.
14 Ibdem. op. cit. pp. 108-122
assimetria), mas das considerações de adequação das políticas governamentais para o
cumprimento dos direitos humanos. Não se trata de dar importância valorativa-axiológica a
estes direitos, mas de estabelecer uma regra impositiva que visa, por meio destes, permitir
uma base global que torne mais fácil o jogo internacional atualmente em andamento. Não se
pretende responder, nestas circunstâncias, as perguntas sobre o por quê dos direitos humanos,
ou sobre a justiça que deles decorre, mas tão-somente “para que aplicar os direitos
humanos”15.
Assim os organismos internacionais entregaram a agentes do mercado a prerrogativa da
construção de índices que medem a aplicabilidade dos direitos humanos em todas as nações e
a outros agentes da área financeira a análise das vantagens de deslocamento do fluxo dos
capitais internacionais para os estados, considerando estes índices a valoração da capacidade
de proteção dos investimentos para cada país16. Percebe-se neste movimento o
enfraquecimento do antigo conceito de soberania estatal resultante desta concepção
funcionalista hegemônica dos sete ou oito mais poderosos países do mundo17, e a
consequente utilização dos direitos humanos em uma racionalidade que os esvaziam da ética
de suas construções constantes das Declarações.
Os índices formados pelos agentes privados do mercado adquiriram importância não somente
nos novos processos íncitos às relações internacionais. São também fundamentais para
estabelecer as condições para avaliação dos governos de cada nação, instituindo a obrigação
política da adoção de modelos para a melhoria no ranking comparativo produzido por tais
índices, estabilizando-os como indicadores para melhoria da governança governamental que
lhes permite o necessário equilíbrio governativo (governabilidade) perante suas sociedades. Já
não são mais as concepções filosóficas dos modelos de governo que importam ser
diferenciados no processo democrático da escolha dos governantes, mas a capacidade
19
15 Ibdem. op.cit. pp.127-130.
16 DAVIS, K. E. e KINGSBURY, B. e MERRY, S. E. Global governance by indicators, texto constante da página da matéria Direito da Energia, ministrada pela Prof. Dra. Suzana Tavares da Silva na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 2013. pp. 3-28.; KINGSBURY, B., e KRISCH, N. e STEWART, R. The emergence of global administrative law. Artigo publicado pela Duke University, 2005.
17 Estudos tem apontado esta faceta representativa da imposição dos direitos humanos. Por este observa-se uma forte crítica aos direitos humanos constantes das Declarações, considerados incompatíveis e impossíveis de serem absorvidos por várias sociedades, especialmente as orientais, exigindo-se uma profunda revisão de tais direitos. Sugere-se: BALDI, C. A. Organizador. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2004. pp. 207-237.; SANTOS, B. S. Concepção muticultural de direitos humanos. Artigo editado pela Universidade de Coimbra, 2004.
gerencial de melhoria nos indicadores avaliativos que permitem participar com vantagens do
jogo internacional18.
Para o funcionalismo sistêmico proposto por Luhman os direitos humanos demonstram o
paradoxo do direito fixado na oposição dos conceitos de unidade e diversidade. Estes direitos
adquiriram uma força simbólica19 originada do plano reflexivo da realidade construída
socialmente (desde a revolução francesa) constituindo-se signos como formas de referência à
realidade que, de alguma forma, constroem essa mesma realidade e a transformam naquela
absorvida pela sociedade (signos-objetos). São socialmente construídos (inventados) na
âmbito de uma nova semântica da sociedade, advindos das transformações radicais da sua
estrutura. São, portanto, substitutos modernos da noção mais antiga de direito natural e sua
fundamentação é uma herança que a descendência do direito europeu natural antigo deixou. A
emergência dos direitos humanos implica a distinção entre o normativo e o cognitivo em uma
orientação para o futuro, servindo para a transformação da complexidade desestruturada em
outra estruturada, justificando expectativas normativas e excluindo a validade jurídica de outras
(já desatualizadas no contexto).
A positivação destes direitos, tornando-os direitos fundamentais, é a resposta ao paradoxo da
universidade/diversidade ao perigo da desdiferenciação do sistema social (a incapacidade de
formação de subsistemas especializados), mantendo abertas as comunicações para a
manutenção de uma ordem diferenciada comunicacional. Dessa forma a semântica dos direitos
humanos desenvolve-se na mesma medida em que as transformações estruturais levam a uma
pluralidade conflituosa de expectativas, valores e interesses. Esta pluralidade associa as
diversas esferas discursivas e sistêmicas com pretensão de autonomia (os subsistemas já
existentes em suas relações de intercomunicação) aos do entorno (pessoas e grupos) no
mesmo campo discursivo. Tem-se, então, a conclusão que os direitos humanos não se
relacionam a um consenso ou condições ideais discursivas, mas, ao contrário, emergem do
dissenso (em clara oposição a Habermas).
20
18 BERGGRUEN, N. e GARDELS, N. Governação inteligente para o século XXI: uma via intermédia entre ocidente e oriente. Editora Objectiva, Portugal, 2012.
19 NEVES, M. A força simbólica dos direitos humanos. Salvador, Bahia, IDPB, Rev. Rede, n. 4, 2005.
Luhman, em vista das evidências descritas acima, contrapõe-se a pretensa organização
histórica dos direitos humanos em gerações de direitos 20, por considerar que foram acoplados
artificialmente às ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, da revolução francesa, como se
as considerações valorativas tivessem alguma importância, frisando que tais direitos só têm
aplicabilidade no contexto paradoxal que impõe em sua tese (no entorno talvez algumas vozes
se baseiem em premissas valortivas, mas os sistemas e subsistemas, vazios do homem, não
podem aplicar-se a estas considerações, antes implicam a absorção funcional da sociedade,
organizando-a sistemicamente). Entende, ainda mais, que nas violações flagrantes desses
direitos, ocorridas em diversas nações, devem fixar-se os discursos de inclusão/exclusão no
cenário global (tese já abordada anteriormente na apresentação de ideias gerais dos
funcionalismos materiais que, também neste ponto se identificam com este funcionalismo
sistêmico), com a importância acentuada dos direitos da dignidade da pessoa humana,
liberdade e igualdade perante a lei, mas eliminando do contexto do debate todos os direitos
sociais, visto não serem passíveis de institucionalização e implementação processual no plano
de uma sociedade mundial (frisa-se que o argumento baseia-se nas condições sistêmicas de
diminuição da complexidade).
Para o autor, o paradoxo dos direitos humanos apresenta-se visívelmente na história, com as
soluções sistemicamente produzidas em respostas que auxiliam a formatação sistêmica da
sociedade. Observa que este tratamento foi visível na época de construção dos argumentos do
contrato social (Hobbes, Locke, até a revolução francesa). Na resolução do paradoxo estavam
em evidência os direitos individuais e a resposta foi a tese do contrato social (diversidade/
unidade). Da mesma forma a positivação desses direitos em constituições, ocorrida anos após
a revolução francesa, procura resolver o paradoxo sob a ótica da validade jurídica (neste caso,
pergunta se tais direitos são válidos após sua positivação, ou já o eram antes, num período
pré-positivo, anterior, portanto, ao direito que os positivou). Responde a este questionamento
observando que a resolução do paradoxo optou pela ideia de positivação do que é pre’-
positivo, mas com o uso da expressão verbal “ser” ao invés de “dever ser”, sugerindo serem
direitos naturais reconhecidos pelo direito positivo - distinção semântica política e social desses
direitos e a semântica jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Isto frisa que os direitos
humanos estão no entorno, e ali permanecem na espera de sua integração aos sistemas,
especialmente ao sistema jurídico através da positivação e da validade procedimental positiva.
A terceira manifestação do paradoxo corresponde a pretensão de validá-los no plano
21
20 BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Editora Elsevier, 2004. pp. 99-206.
internacional, na busca de um direito de características mundiais, esbarrando nos diferentes
estágios dos estados nacionais na validação e positivação constitucional desses direitos.
Nestes diferentes estágios verifica-se a rejeição de parte, ou mesmo do todo, em vários países
o que se considera uma intenção de não aderir ao projeto de um direito mundial. Para este
caso têm-se que aplicar o conceito de que a validade da norma manifesta-se em sua violação,
argumento em forte uso no cenário da internacionalização, frisando que o paradoxo
mencionado demonstra que os direitos humanos são tanto mais conhecidos e afirmados
quanto mais graves e frequentes forem suas violações, o que, ao contrário das estratégias de
vários países na rejeição de parte ou do todo destes direitos para combatê-los (não importando
a justeza de seus argumentos), acaba por reforçá-los e torná-los, cada vez mais fortemente,
obrigatório para participação no cenário da internacionalização21.
Habermas observa que o desenvolvimento do conceito de legitimação, sobrepondo-se ao de
legalidade (não eliminando-o), é capaz de interferir nos resultados para assimilação dos
direitos humanos em sua validade. Refere-se a legitimidade da ordem política dirigida ao
Estado Constitucional Democrático. Só neste contexto verifica-se o nexo interno entre
democracia e direitos humanos, visto que dessa forma o poder estatal se constitui na forma do
direito que reclama a si próprio a aceitação, reconhecimento fático e pretensão de ser digno de
reconhecimento.
O Direito que pretende ser válido tem seus ordenamentos jurídicos constituídos a partir de
direitos subjetivos, concedendo a uma personalidade jurídica a abrangência de sua
possibilidade de agir, conforme legalmente definido pelo direito, separando os mandatos morais
ou os preceitos éticos, constituindo uma comunidade jurídica que, em certo tempo e espaço,
tem a capacidade de proteger a integridade dos membros da sociedade na medida em que
estes assumem o status artificialmente instituído de portadores de direitos subjetivos. Dessa
forma a validade representa o entrelaçamento da faticidade da imposição estatal com a
pretensão de um procedimento racional para sua própria produção. A legitimidade verifica-se
no acatamento da consensual da sociedade de normas, com seus conteúdos e coerções, por
estrito respeito à lei (uma sociedade consciente desta necessidade da regência por meio das
22
21 Sugere-se a leitura de: LUHMAN, N. O paradoxo dos direitos humanos e três formas de seu desdobramento. Tra. Ricardo Henrique Arruda de Paula, Rev. Themis, Fortaleza, v. 3, n.1., 2000. pp. 153-161.; e LUHMAN, N. El derecho de la sociedad. formatação eletrônica em ebook da tradução mexicana do original Das Recht Gesellschaft, encontrada para download em diversos sites pelo título ou autor. 2000. pp. 85-171 e pp.315-427.; LUHMAN, N. A terceira questão - o uso criativo dos paradoxos no direito e na história do direito. Trad. Cícero Krupp, Revista Estudos Jurídicos, n. 39 (1), Universidade UNISINOS, 2006.
leis), na expectativa efetivação da soberania popular e da aplicação protetiva dos direitos
humanos (quaisquer que sejam, em sua seleção). A teoria política não foi capaz de obter um
compromisso válido em que se integrasse a sociedade na tensão entre a soberania popular e
os direitos humanos (no sentido da resolução do paradoxo da liberdade dos antigos frente a
liberdade instituída na modernidade).
Ora, a solução dos governantes da imposição de direitos fundamentais (positivados nas
constituições), representam uma interferência direta à própria soberania popular e às
expectativas do direito subjetivo, simples limite externo que não pode ser instrumentalizada
com um simples requisito funcional para consecução de fins. Direitos fundamentais devem ser
outorgados recíproca e mutuamente pelos cidadãos livres, se quiserem regular suas vidas em
comum através do direito (um exercício da práxis que conecta a soberania popular que com a
criação de um sistema de direitos com a consequente legitimidade dupla).
O autor, com base nestes argumentos, verifica a criação ideológica dos direitos humanos
constantes das Declarações e de seu uso também ideológico, sem o exercício que permite a
dupla legitimidade nas sociedades representadas nas nações espalhadas pelo mundo.
Significa perceber um profundo distanciamento de tais direitos por parte significativa de seus
cidadãos, como fruto da visão intervencionista e impositiva de seus governos sem os cuidados
de preparação das condições permissivas da aceitação maioritária integrativa e indispensável
ao seu aparecimento nos sistemas de direito (a formação da dupla legitimidade).
Verifica, ainda mais, serem os direitos humanos propagados por uma visão de base européia
que se incompatibiliza com as concepções de várias nações, que só as aceitariam (a visão
européia), numa concepção hegemonista e colonizadora aplicada, especialmente, pelo
ocidente contra o oriente (em alguns aspectos, pelo norte, contra o sul). Claramente
compreende que 2/3 dos direitos humanos emanados das Declarações são, mesmo,
afrontosas a comunidades seculares representadas por nações e governos orientais.
Mesmo assim, propõe que os direitos humanos sejam os componentes de uma pauta a ser
mundialmente debatida para a formação de um consenso que permita a internacionalização
político-econômica, indispensável para o desenvolvimento das sociedades em todos os seus
aspectos. Embora não se considere Habermas um adepto dos funcionalismos, por apresentar
23
sua visão num contexto de debate com os funcionalistas, é importante apresentá-la em
conjunto com as análises desses funcionalismos sobre os direitos humanos22.
6. A Pós-Modernidade e Os Direitos Humanos
Os teóricos da pós-modernidade identificam as profundas transformações advindas das
mudanças dos processos industriais, da constituição de comunidades no conceito de
sociedade em rede, da recuperação da comunitas frente aos insucessos da construção
moderna da societas, das novas relações econômicas com o mercado e das novas imposições
aos sistemas políticos.
Dentre estes autores selecionou-se Costa Douzinas como representante das críticas neo-
comunitárias aos direitos humanos, especialmente tratadas em seu livro “The End Of Human
Rights”, no qual defende a tese de que o objetivo dos direitos humanos é resistir à dominação e
opressão política, mas que vêm perdendo tal objetivo ao se transformarem em ideologia
política ou idolatria do capitalismo neoliberal, ou, ainda, na versão de uma missão civilizatória.
Observa que o sentido de humanidade não tem significado estático e não pode atuar como
fonte de regras morais ou legais, antes deve-se considerar que poder e moralidade, império e
cosmopolitanismo, soberania e direitos, lei e desejos, não são inimigos mortais quando
tratados sob a devida ótica. Universalismo e comunitarismo são, assim, dois tipos de
humanismo dependentes um do outro que são confrontados pela ontologia da igualdade
singular. Claramente enfatiza que as singularidades da comunitas não vem sendo tratadas pela
societas, o que vem impedindo seu relacionamento interdependente que impede quaisquer
considerações de comparabilidade, inviabilizando até mesmo um conceito de justiça. Por esta
razão, considera que os direitos humanos, no conceito das relações de interdependência entre
a comunitas e a societas, são vazios e impossíveis de servirem de referência, o que, na
atualidade pós-moderna, implica seu fim como direcionador humano. A questão, então, não
está relacionada ao valor contido nos princípios dos direitos humanos (os quais são
defendidos), mas na forma de implementação que ignora a relação de interdependência.
24
22 Citações de Habermas no blog http://gilvanmelo.blogspot.pt/2012/09/opiniao-do-dia-habermas-dignidade.html, visualizado em 20/04/2013. Para melhor entendimento das propostas de Habermas, ver: HABERMAS, J. Sobre a legitimação baseada nos direitos humanos. Rev. Civilistica, A2, n. 1, 2013.; HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Siebeneichler, v. 1, Rio de Janeiro, Editora Tempo Brasileiro, 1997. pp. 17-48, 65-94, 113-154, 170-211.
Por enfatizar a visão comunitária, propõe uma releitura dos clássicos greco-romanos e da
produção medieval, utilizando-se dos trabalhos de Villey e Leo Strauss como ponto de partida,
visto não concordar com a radical opção por uma plena volta ao ambiente histórico medieval,
mas, sob esta base, construir as novas opções comunitárias transformadoras das relações
entre comunitas e societas.
Para tanto propõe sete teses: Humanidade não é qualidade compartilhada, não possuindo
significado fixo e não podendo atuar como fonte de regras morais ou legais; Uma amálgama,
historicamente específica, de poder e moralidade constitui a ordem struturante de cada época e
sociedade; A ordem pós 1989 combina um sistema econômico que gera enormes
desigualdades estruturais e opressão com uma ideologia jurídico-política, o que conduz a uma
instabilidade que gera seu fracasso; universalismo e comunitarismo são duas visões
interdependentes e não se constituem adversários, mas apenas são confrontados pela
ontologia da equidade singular; em sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos
despolitiam a política e se tornam estratégias para publicização e legalização do desejo dos
indivíduos; a virada bio-política transforma os direitos humanos em ferramentas de controle sob
a promessa de liberdade, e a organização biopolítica do poder se evidencia em todos os
fenômenos políticos importantes (guerra ao terror, migração em massa, refugiados políticos,
iniciativas de saúde pública, intervenções demográficas, segurança, o risco da sociedade sob o
qual, teoricamente, vivemos, e outros); a contraposição entre cosmopolitanismo do
neoliberalismo e do império e o comunitarismo tenta estabelecer o último princípio moderno de
justiça. Com a arrogância imperial e a ingenuidade cosmopolita, permite-se que o capitalismo
global e os direitos humanos (para exportação) são parte de um mesmo projeto.
Esta é uma crítica dirigida aos funcionalismos, desde a proposição de função social de
Durkheim até a implementação de funcionalismos durante as crises econômicas, atrelando o
direito às estratégias político-econômicas governamentais, além de incluir-se na visão da
construção da ideologia ocidental como forma colonizadora de outras culturas a fim de que um
projeto globalizante seja realizável.23
25
23 DOUZINAS, C. São os direitos universais? Sào Paulo, rev. Projeto Revoluções, n1. 2009.; DOUZINAS, C. Una breve historia de los críticos británicos, o de la jurisprudencia restringida a la general. Colombia, Universidade de Caldas, Jurídicas, v. 6, n. 2, 2009. pp. 45-58.; DOUZINAS, C. The end of human rights. Oxford, Hart Publishing, 2001.
7. Conclusão
O presente trabalho procurou trazer as principais críticas aos direitos humanos, organizando-as
num processo histórico, mas valorizando a persistência de ideias aplicadas nos contextos das
sociedades e nações.
Percebe-se, claramente, que não há uma unidade crítica em torno desses direitos, mas estas
são aplicadas conforme as implicações dos programas políticos, principalmente os que se
dirigiam à consolidação dos princípios fundantes e mantenedores da sociedade, se punham em
funcionamento em determinado local e espaço.
Há, portanto, que se reconhecer a grande importância dos direitos humanos emanados das
Declarações francesa e da ONU, na formação de uma consciência individual e coletiva,
expressa em convivências comunitárias ou adotadas, formalmente, pelas sociedades, na busca
de um relacionamento intersubjetivo, social, político e econômico, de mútuo respeito (não
simplesmente de tolerância) dirigido a uma melhor capacidade gerencial do homem sobre suas
próprias instituições.
As críticas destinadas aos direitos humanos durantes os séculos que se vem passando desde
suas concepções, reforçam a importância de existir um elenco de princípios ético-morais
declarativos e juridicamente protetivos para o desenvolvimento humano. Não os negam e nem
o fazem na dimensão de sua importância. Mesmo aquelas que buscam esvaziar seu conteúdo
valorativo, adaptando-o a uma perspectiva intervencionista globalizante, aceitam sua direção.
Talvez importe um debate mais minucioso em busca de um certo consenso entre as
comunidades e sociedades, mas tal debate teria sempre, como agenda central, os direitos
humanos que se produziram (criados que foram) no contexto iluminista, como ponte entre um
direito natural e quaisquer outras perspectivas de direito adotadas.
26
8. Referências Bibliográficas
ARENDT, H. The origins of totalitarianism. Ohio, World Publishing Company, 1958.
BALDI, C. A. Organizador. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2004.
BERGGRUEN, N. e GARDELS, N. Governação inteligente para o século XXI: uma via intermédia entre ocidente e oriente. Editora Objectiva, Portugal, 2012.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Editora Elsevier, 2004.
DAVIS, K. E. e KINGSBURY, B. e MERRY, S. E. Global governance by indicators, texto constante da página da matéria Direito da Energia, ministrada pela Prof. Dra. Suzana Tavares da Silva na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 2013.
DOUZINAS, C. São os direitos universais? Sào Paulo, rev. Projeto Revoluções, n1. 2009.
DOUZINAS, C. Una breve historia de los críticos británicos, o de la jurisprudencia restringida a la general. Colombia, Universidade de Caldas, Jurídicas, v. 6, n. 2, 2009.
DOUZINAS, C. The end of human rights. Oxford, Hart Publishing, 2001.
FERRY, L. Kant, uma leitura das três críticas. Trad. Karina Jannini, Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 2009.
GOLDSMITH, J. e POSNER, E. The limits os international law. New York, Oxford University Press, 2005.
HABERMAS, J. Sobre a legitimação baseada nos direitos humanos. Rev. Civilistica, A2, n. 1, 2013.
HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Siebeneichler, v. 1, Rio de Janeiro, Editora Tempo Brasileiro, 1997.
KINGSBURY, B., e KRISCH, N. e STEWART, R. The emergence of global administrative law. Artigo publicado pela Duke University, 2005.
LUHMAN, N. O paradoxo dos direitos humanos e três formas de seu desdobramento. Tra. Ricardo Henrique Arruda de Paula, Rev. Themis, Fortaleza, v. 3, n.1., 2000.
LUHMAN, N. El derecho de la sociedad. formatação eletrônica em ebook da tradução mexicana do original Das Recht Gesellschaft, encontrada para download em diversos sites pelo título ou autor. 2000.
LUHMAN, N. A terceira questão - o uso criativo dos paradoxos no direito e na história do direito. Trad. Cícero Krupp, Revista Estudos Jurídicos, n. 39 (1), Universidade UNISINOS, 2006.
MARQUES, M. R. Introdução ao direito. Almedina, v. 1, 2007.
27
MARX, K. Sobre a questão judaica (inclui as cartas de Marx a Ruge nos anais franco-alemães. Trad. Nélio Schneider, São Paulo, Editora Boitempo, 2010.
NEVES, M. A força simbólica dos direitos humanos. Salvador, Bahia, IDPB, Rev. Rede, n. 4, 2005.
PIRES, S. P. Do conceito de liberdade em Friedrich A. Hayek: um contributo para o estudo do liberalismo clássico em Portugal. Dissertação de Mestrado, Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2011.
SANTOS, B. S. Concepção muticultural de direitos humanos. Artigo editado pela Universidade de Coimbra, 2004.
VIEIRA, O. V. Desigualdade e limites do governo das leis. São Paulo, Rev. Perspectiva, n.13, 1999.
VILLEY, M. Le droit et les droits de l’homme. Quadrige grands textes, Wook, reimpressão, 2008.
ZYWICKI, T. J. e SANDERS, A. B. Posner, hayec & the economic analysis of law, School of Law, George Mason University Press, 2005.
28