As Formas de Pão de Açúcar da Ilha da Berlenga. Sandra Lourenço e Jacinta Bugalhão

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As Formas de Pão de Açúcar da Ilha da Berlenga Sandra Lourenço e Jacinta Bugalhão

AbstractThe Sugar Loaf Moulds of Berlenga Island

This paper presents the results of the study of the “sugar ceramics” (sugar loaf moulds) recovered during archaeological excavations at the “Bairro dos Pescadores” (fisher village) on Berlenga Island, between 2002 and 2004. The paper further aims at interpreting and explaining the presence of such vessel forms at this anchorage, relating this fact with the known existence of a 16th century monastic community on the island.

1. LocalizaçãoO Bairro dos Pescadores localiza-se na costa Norte da Berlenga Gran-de, numa pequena e encaixada baía chamada Carreiro do Mosteiro. Trata-se de um pequeno aglomerado que se localiza junto a uma das principais zonas de ancoradouro da ilha, onde actualmente existe um pequeno cais. A maioria das construções remontam a meados do século XX, destinado-se essencialmente à habitação temporária da comunidade piscatória, incluindo igualmente alguns equipamentos de apoio aos visitantes e turistas (restauração, balneários). O local pertence administrativamente ao concelho de Peniche, distrito de Leiria. A sua implantação cartográfica é visível na Carta Militar de Portugal, escala 1: 25 000 n.º 325-B (Serviços Cartográficos do Exér-cito) e na Carta Topográfica de Portugal, escala 1:2 000, referente à Ilha Berlenga (Instituto Geográfico e Cadastral), com as seguintes coordenadas geográficas, Latitude 39º24’42’’ e Longitude 9º30’13’’.

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2. AntecedentesDesde 1999 que a Reserva Natural da Berlenga e a Câmara Municipal de Peniche promovem um conjunto de obras de pequenos melhoramentos estruturais em equipamentos existentes no Bair-ro dos Pescadores e respectivas infra-estrutu-ras.

No decurso destes trabalhos, no início de Março de 2000, o técnico de imagem Gustavo Carvalho, frequentador habitual da ilha e colaborador do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Su-baquática, observando o terreno remexido pelas obras na encosta entre o Bairro dos Pescadores e o cais, verifica a existência de fragmentos de cerâmica, nomeadamente anfóricos. Esta obser-vação foi então comunicada ao CNANS, que por se tratar de vestígios arqueológicos em terra, so-licita a intervenção do IPA.

Assim, foi realizada uma primeira deslocação ao local com o intuito de proceder a uma avaliação arqueológica dos achados. Analisada a situação e confirmada a ocorrência de materiais arque-ológicos (nomeadamente cerâmicas) de crono-logia romana, optou-se pela realização de uma pequena intervenção arqueológica que simulta-neamente melhorasse a leitura daquelas reali-dades arqueológicas e procedesse no terreno, às remoções de sedimentos ainda necessárias para conclusão da obra.

Em função dos resultados desta primeira inter-venção, foi delimitada uma área arqueológica, onde as intervenções com impacto ao nível do subsolo ficaram condicionadas à realização pré-via de intervenção arqueológica de diagnóstico e minimização.

3. Intervenções arqueológicasAs intervenções arqueológicas efectuadas no Bairro dos Pescadores foram essencialmente intervenções de emergência, tendo consistido sobretudo na observação e no registo de cortes expostos pelas obras, na realização de pequenas sondagens e na recolha de materiais arqueoló-gicos.

A primeira intervenção arqueológica decorreu em de Março de 2000 e consistiu na limpeza, registo gráfico e fotográfico de 3 Cortes previamente abertos durante as obras (Áreas 1, 2 e 3). Na Área 1, correspondente à área da plataforma do elevador de volumes, numa zona de declive acentuado, com um desnível aproximado de 15 m, procedeu-se à escavação de uma faixa de terreno com cerca de 50 cm de largura e 10 m de comprimento.

Durante esta campanha, efectuou-se ainda a limpeza e o registo fotográfico do corte correspondente à Área 2, coincidente com a área de implantação de uma canalização para escoamento de águas pluviais, o qual atingia cerca de 11 m de comprimento e uma potência estratigráfica de cerca de 50 cm.

Finalizou-se a intervenção na Área 3, correspondente à plataforma para a construção de arrumos para artigos de pesca, junto ao troço inferior do caminho de acesso ao Bairro dos Pescadores. Apenas na extremidade Nordeste desta faixa foi possível verificar a existência de algum potencial estratigráfico, tendo-se realizado a limpeza e o registo gráfico dessa área em dois eixos com cerca de 1,5 m de extensão cada, até à camada geológica.

A segunda campanha realizou-se em Agosto de 2001 e consistiu na escavação de uma sondagem arqueológica de 2x1,7 m, prévia à implantação de uma caixa de esgoto junto ao “castelinho” (Área 4), não tendo sido identificado qualquer vestígio arqueológico.

Em 12 de Setembro de 2002 foi necessário proceder à abertura de valas de esgoto na plataforma central do Bairro dos Pescadores (Área 5), onde a potência estratigráfica atingia no máximo 50 cm, e de uma caixa de esgoto no talude inferior do bairro (Área 6). Infelizmente, a intervenção só ocorreu quando todas as valas já se encontravam abertas, tendo apenas sido possível analisar e registar os cortes expostos, bem como aceder aos materiais recolhidos pelos trabalhadores.

Em Março de 2004, na orla poente do Bairro dos Pescadores (Área 7), procedeu-se à destruição de uma plataforma em cimento onde se encontrava um depósito de água, para a edificação de uma estrutu-ra de apoio à recolha de lixo e de um armazém frigorífico. Devido às fortes intempéries que se fizeram sentir e que impossibilitaram o acesso à ilha, não foi possível realizar o acompanhamento destas

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obras. Somente em Abril foi possível aceder ao local e observar as terras revolvidas. Estas encontravam-se misturadas com blocos de granito resultantes do rebentamento do afloramento e entulhos recentes e depositadas num local declivoso junto à obra, sendo de salientar a frequência do material arqueológico, destacando-se a ce-râmica anfórica.

Em Junho de 2004, procedeu-se à escavação arqueológica prévia da área onde se pretendia edificar o novo depósito de água (Área 8), de modo a se efectuar uma avaliação do potencial arqueológico da zona de cota superior do Bairro dos Pescadores. Após a limpeza dos entulhos e cobertura vegetal, efectuou-se a escavação de uma faixa de terreno com 1 m de largura e 8 m de comprimento.

4. Estratigrafia e realidade arqueológica identificadaAtendendo às condicionantes das diversas acções arqueológicas realizadas, acima referidas apenas foi possível efectuar uma leitura estratigráfica mais detalhada nas Áreas 1, 2, 3, 5 e 8. Na área 1, os trabalhos decorreram apenas até à cota necessária à construção do murete, não se tendo atingido o substrato geológico. Foi detectada a seguinte sucessão estratigráfica:

Camada1 – camada humosa, heterogénea e solta, de coloração escu-ra, com muito entulho e lixos recentes.

Camada2 – camada de terra siltosa, de coloração castanha, com mui-tas pedras e argamassa desfeita e em nódulos. Esta camada continha ainda algum lixo e materiais de cronologia recente, mas de ocorrên-cia mais esporádica. Também se verificava o aparecimento de ma-teriais arqueológicos mais antigos, essencialmente constituídos por escorrimentos das áreas de cota mais elevada.

Camada 3 – camada argilosa, castanha avermelhada, homogénea, semi-compacta, com escasso material cerâmico, mas cronologica-mente homogéneo. Este contexto relaciona-se com as estruturas quinhentistas do Mosteiro identificadas na escavação e que corres-ponderão às fundações deste edifício religioso, cuja a construção acompanharia o declive do terreno, surgindo por vezes associadas a áreas de concentração de telhas.

Camada 4 – camada argilosa, castanha escura, homogénea, semi-compacta, com características semelhantes à camada anteriormente descrita.

Camada 5 – esta unidade é idêntica à camada 3, revelando apenas uma ligeira diferença de coloração.

Relativamente à estratigrafia das Áreas 2 e 3, identificaram-se apenas duas camadas, uma su-perficial e outra de escorrência, correspondentes às camadas 1 e 2 da Área 1.

Na Área 5, foi possível observar dois estratos, correspondentes às camadas 1 e 2 acima descri-tas.

Na Área 8, foi registada a seguinte estratigrafia:

Camada 1 – camada humosa, heterogénea e solta, de coloração castanha escura, com muito entulho e lixos recentes, com uma potência es-tratigráfica que oscila entre os 38 e os 10 cm, que cobria as camadas 2 e 3.

Camada2 – camada siltosa de cor castanha com uma potência estratigráfica que oscila entre os 24 e os 12 cm, com abundantes blocos graníticos de pequena e média dimensão, que assentava directamente sobre o substrato rochoso. Pratica-mente estéril do ponto de vista arqueológico.

Camada3 – bolsa de terras de cor castanha, com escassos blocos graníticos de pequena dimen-são, com uma potência estratigráfica de 50 cm, que assentava directamente sobre a rocha gra-nítica. Distinguia-se da camada 2, pela presença abundante de material cerâmico de cronologia moderna.

Até ao momento os trabalhos arqueológicos rea-lizados permitiram distinguir três momentos ocupacionais do Bairro dos Pescadores: o roma-no (patente nos fragmentos cerâmicos recolhi-dos), o moderno (relacionado com o Mosteiro da Misericórdia da Ordem de São Jerónimo, aí construído no século XVI) e o contemporâneo (relacionado com a ocupação recente e actual do bairro).

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Quanto à ocupação romana, não foi identificada até ao momento nenhuma camada estratigráfica in situ, verificando-se apenas a dispersão de ma-teriais em deposição secundária, resultante de fenómenos de escorrência e/ou de perturbações pós-deposicionais antrópicas. Apesar desta rea-lidade, os materiais romanos dispersam-se por quase todas as áreas intervencionadas e de for-ma mais ou menos intensa, em todos osestratos identificados. As excepções verificadas situam-se na Área 4 (onde não foi recolhido qualquer espólio arqueológico) e na camada 3 da Área 8 (onde se exumaram exclusivamente materiais de cronologia moderna). Devemos ainda acres-centar que o facto de termos detectado a presen-ça de tegullae e tijolos de quadrante nos indicia a existência de construções no local onde hoje se implanta o Bairro dos Pescadores, junto à me-lhor zona de ancoradouro da ilha.

No que respeita à ocupação moderna, os contex-tos identificados centram-se no Mosteiro da Mi-sericórdia, fundado em 1513 na vertente Leste do Carreiro do Mosteiro e abandonado em 1548. Os vestígios desta ocupação foram identificados em algumas das camadas estratigráficas acima referidas, nomeadamente nas camadas 3, 4 e 5 da Área 1 (valas de fundação) e na camada 3 da Área 8 (interpretada como uma bolsa detrítica). Na intervenção das Áreas 1 e 2, identificaram-se as fundações das estruturas quinhentistas, construídas com blocos de granito de média di-mensão, mal aparelhado e unidos com uma ar-gamassa de cor esbranquiçada. As estruturas do Mosteiro caracterizam-se por uma implantação topográfica que acompanha o desnível acentu-ado da encosta do Bairro dos Pescadores, apre-sentando, aparentemente, uma orientação Este-Oeste. A existência desta estrutura religiosa é igualmente identificável no reaproveitamento de cilhares calcários (material exógeno à ilha),

na construção do “castelinho”. Saliente-se, que nos registos fotográ-ficos mais antigos, são ainda visíveis as paredes existentes naquela encosta, sendo que actualmente pode observar-se a existência das mesmas estruturas no terreno, sob a vegetação que aí prolifera. Parte dos elementos construtivos do mosteiro terão sido reutilizados na construção do forte de São João Baptista, em meados do século XVII (Engenheiro, 1999).

Às evidências arqueológicas (estratigráficas e estruturais), deve-se ainda acrescentar as referências orais à existência do cemitério do Mosteiro, existindo testemunhos que relatam a observação de ossos humanos, durante a construção do pavilhão-restaurante. Estas refe-rências parecem confirmadas pelos fragmentos de ossos humanos recolhidos nos terrenos revolvidos pela obra, na Área 1.

Relativamente à ocupação contemporânea, embora já existissem al-gumas edificações anteriores, encontra-se essencialmente centrada na ocupação do chamado Bairro dos Pescadores. Este equipamen-to foi construído em meados do século XX pela Câmara Municipal de Peniche, a fim de garantir condições de habitabilidade dignas à comunidade de pescadores que sazonalmente habita a Ilha. Trata-se de um conjunto de habitações térreas, construídas em bandas. Nas suas imediações, foram surgindo durante a segunda metade do século alguns equipamentos de restauração e apoio aos visitantes, nomeadamente o Pavilhão/Restaurante (1969) e o “Castelinho”. Como consequência desta ocupação (construção e sucessivas remo-delações), verifica-se a dispersão de materiais (cerâmicos e outros) e lixos recentes presentes em todas as áreas intervencionadas. Esta realidade teve como consequência uma profunda mobilização do subsolo, perturbando de forma muito intensa a estratigrafia arqueo-lógica do sítio.

5. As Formas de Pão de Açúcar No conjunto das cinco intervenções levadas a cabo no Bairro dos Pescadores, foi recolhido um total de 1468 fragmentos cerâmicos, essencialmente agrupados em três grandes horizontes cronológicos, correspondentes aos principais momentos de ocupação do local: época romana, época moderna (1ª metade do século XVI) e época contemporânea (século XX). Não é possível descriminar de forma inequívoca a cronologia de todos os fragmentos cerâmicos, uma vez

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que os materiais foram encontrados quase sempre em deposição se-cundária e muitas vezes remexida. De qualquer forma, na genera-lidade das áreas intervencionadas, foram recolhidos materiais dos três momentos de ocupação acima referidos, sendo possível apenas datar de forma definitiva aqueles materiais cuja especificidade e ti-picidade permitem uma atribuição cronológica imediata (ânforas, terra sigillata e alguns tipos de cerâmica comum moderna, como por exemplo, as formas de pão de açúcar). Relativamente às formas de pão de açúcar, foram recolhidos um total de 77 fragmentos, entre os quais 65 bordos e 12 fundos.

5.1. Referências e organização espacialConforme se pode observar no quadro abaixo apresentado, a maio-ria destas cerâmicas são provenientes da Área 8, camada 3, uma bol-sa detrítica preenchida, exclusivamente, com material de cronologia moderna (ver figura 5). Também na Área 7 foi recolhido um conjun-to significativo de exemplares, em terrenos revolvidos interpretados como eventual enchimento da plataforma, no momento da sua cons-trução. Na Área 5, registam-se apenas 2 fragmentos. Parece assim provável que a deposição destes recipientes na Ilha da Berlenga seja interpretada como despejo, situação eventualmente idêntica à veri-ficada na Casa da Travessa do Mercado, Machico, Madeira (Sousa, 2004: 98).

Área Bordos Fundos TotaisÁrea 5 1 1 2Área 7 20 3 23Àrea 8, Camada 1 11 1 12Área 8, Camada 3 33 7 40Totais 65 12 77

5.2. Pastas e características técnicasNa análise macroscópica das pastas do conjunto, foi possível verificar a existência de dois fabricos muito semelhantes entre si:

Fabrico 1 – Pasta de cor alaranjada (2YR 6/8 e 2YR 7/8), de textura tendencialmente compacta, com abundantes elementos não plásti-cos de pequena e média dimensão, nomeadamente, quartzo, calcá-rio, mica branca e partículas de óxido de ferro de cor escura; ocorrem igualmente escassos nódulos de argila mal cozida e de óxido de ferro de média e grande dimensão. São frequentes os vestígios de inclu-são de elementos vegetais na pasta, nomeadamente negativos, por vezes carbonizados. Ambas as superfícies seriam alisadas, verifican-do-se residualmente um engobe (10%) de cor beige e acinzentado, embora o facto de grande parte das peças apresentar uma alteração significativa das superfícies, impossibilite uma análise mais segura dos tratamentos de superfície utilizados. A cozedura é predominan-temente oxidante; apenas em 5% das peças se observa a cozedura redutora-oxidante.

Fabrico 2 – Pasta de cor laranja escuro ou aver-melhado (10R 5/8; 10R 6/6; 10R 6/8), de textura tendencialmente compacta, com abundantes ele-mentos não plásticos de pequena dimensão, no-meadamente calcário, quartzo, mica, partículas de óxido de ferro de cor escura. Ocorrem alguns vestígios de inclusão de elementos vegetais na pasta, nomeadamente negativos As superfícies interna e externa encontram-se, maioritaria-mente, alisadas. Neste fabrico é mais frequente a presença de engobe (36%), apresentando uma tonalidade beige e acinzentada. A cozedura oxi-dante é também predominante; apenas em 9% se verifica uma cozedura redutora-oxidante (perceptível na cor cinzenta do cerne da pasta, nomeadamente nos pontos de parede mais es-pessa).

Dos 77 fragmentos estudados, verifica-se que 46 (59%) se inserem no fabrico 1, e 31 (40%) no fa-brico 2. Constata-se que a composição das pas-tas nos dois fabricos é muito idêntica, apresen-tando-se a pasta do fabrico 2 bastante mais de-purada e composta por elementos não plásticos de reduzida dimensão Esta característica parece revelar um procedimento técnico deliberado (uma maior limpeza da argila). Tendencialmen-te, a cor das pastas nos dois fabricos é ligeira-mente diferente o que poderá corresponder a condições de cozedura diferentes, ou mesmo à utilização de um forno diferente.

Na análise do tratamento das superfícies des-te conjunto deve considerar-se que uma parte considerável das peças apresenta as superfícies muito alteradas, situação igualmente verificada para o conjunto anfórico já estudado (Bugalhão e Lourenço, no prelo 2). Esta alteração estará cer-tamente relacionada com as características dos sedimentos que não favorecem a boa conserva-ção dos materiais cerâmicos neste local. Assim, é possível que o engobe tenha já desaparecido na maioria das peças cerâmicas. Contudo, veri-ficou-se que a pasta de fabrico 2 apresenta uma maior resistência às condições adversas de de-posição, sendo por isso mais fácil, nestas peças, observar o tratamento de superfícies original.

Concluindo e no que respeita às características técnicas deste conjunto, há a referir o pouco cui-dado técnico patente ao nível da preparação da pasta, torneamento e acabamento das peças.

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no Machico (Sousa, no prelo) e na Mata da Machada (Carmona e Santos, 2005: 24).

Relativamente à dimensão das formas, verifica-se ao nível do diâ-metro de bordo uma variação entre os 169 mm e os 234 mm (valor médio de 196 mm), sendo que acima dos 220 mm, somente se con-tabilizam 2 peças num total de 44 fragmentos em que foi possível calcular o diâmetro. Remetendo-nos ao quadro tipológico da cerâ-mica do açúcar elaborada a partir dos exemplares identificados na cidade do Machico, Madeira (Sousa, 2004), pode concluir-se que os exemplares da Ilha da Berlenga apresentam dimensões mais reduzi-das do que o tipo mais pequeno e menos representado identificado naquele centro de consumo (tipo 3 das formas de pão de açúcar, de diâmetro de bordo entre 280 e o 220 mm). Já em relação à tipologia estabelecida para as produções da Mata da Machada (Carmona e Santos, 2005: 24), pode considerar-se que os exemplares da Berlenga se aproximam do seu tipo 1 (a que se atribui um diâmetro médio de 200 mm), maioritário naquela olaria.

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5.3. Morfologia e tipologiaNo que concerne à morfologia, verifica-se que se trata de recipientes de forma simples, ten-do-se apenas identificado 10 bordos com bordo emoldurado. No entanto, deve ressalvar-se que as peças se encontram muito fragmentadas, pelo que não se coloca de lado a hipótese de, origi-nalmente, o número de peças emolduradas ser superior ao presentemente contabilizado. A presença desta moldura, mais do que um efeito decorativo, tinha um objectivo utilitário, uma vez que se destinaria a facilitar o encaixe das formas na plataforma de madeira, no engenho (Sousa, no prelo). Deve ainda assinalar-se que apenas dez bordos são ligeiramente espessados externamente. Quanto aos fundos, verifica-se uma situação idêntica, uma vez que em 12 fundos, apenas um exemplar apresenta orifício emoldurado, morfologia igualmente presente

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No que respeita à espessura das paredes dos bordos analisados, ve-rifica-se que oscila entre 9 e 17 mm (valor médio de 12 mm), não parecendo verificar-se uma relação proporcional entre o diâmetro do bordo e a espessura de parede. A este respeito, ressalva-se que as espessuras indicadas para os exemplares que apresentam superfícies muito alteradas devem ser encaradas como meramente indicativas.

Ainda em relação às dimensão das formas, que parece ser o parâme-tro mais relevante na definição das tipologias acima referidas, são pertinentes algumas observações. Em primeiro lugar a questão da frequência: embora em termos de contabilização geral as formas de dimensão maior (tipos 1 e 2) sejam maioritárias na cidade do Machi-co, o autor também salienta que, se considerados isoladamente os quatro sítios arqueológicos estudados, apenas na Casa da Travessa do Mercado estes tipos são maioritários (Sousa, 2004: 101). Nos res-tantes três sítios – Solar do Ribeirinho, Junta de Freguesia e Alfande-ga – o tipo não emoldurado, ou seja o de menor dimensão, é predo-minante. Em segundo lugar, considera-se que o açúcar purgado em formas de maior dimensão é de qualidade inferior ao purgado em formas mais pequenas, o que terá até motivado a regulamentação da dimensão destes recipientes (Vieira, 2000: 26 e Sousa, no prelo). Por fim, parece evidente que a utilização de formas maiores é compatí-vel com uma produção em escala maior. Assim, poderá levantar-se a hipótese da utilização de formas mais pequenas em engenhos com capacidade produtiva mais moderada, ou mesmo onde a qualidade do produto final era mais cuidada ou controlada, por desejo dos seus

proprietários ou por imposição das normas en-tretanto impostas. Uma segunda possibilidade é a das formas de menor dimensão se destinarem à purga do açúcar em ambiente doméstico, o que poderia explicar as diferenças de ocorrência nos diferentes sítios do Machico (Sousa, 2004: 105). A mesma explicação poderá ser aplicada à dimensão das formas presentes na Ilha da Ber-lenga.

Relativamente, aos fundos dos exemplares es-tudados, os diâmetros do orifício oscilam entre 10 e 20 mm (valor médio de 15 mm) e a espes-sura das paredes entre 4 e 9 mm, confirmando a morfologia cónica deste tipo de recipientes, mais volumosos (mesmo ao nível da espessura de paredes) na parte superior da peça.

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N.º Área Camada Tipo Morfologia Pasta Superfície Interna

Superfície Externa Ø * Espessura de

parede*

158 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 203 9

193 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 220 14

194 7 Sem contexto Bordo Espessado

exteriormente Fabrico 1 Alterada Alterada 200 9

195 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 185 10

196 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 203 12

197 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 2 Engobe

Acinzentado Alterada 197 11

201 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada - 14

202 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Beige Engobe Beige - 12

203 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 2 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado 180 12

204 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado - 14

206 7 Sem contexto Bordo Emoldurado Fabrico 2 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado - 12

207 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 2 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado - 12

209 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada - 16

211 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 2 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado - 8

212 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada - 12

213 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 190 15

214 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alterada 208 16

217 7 Sem contexto Bordo Emoldurado Fabrico 1 Engobe Beige Engobe Beige 208 10

220 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 2 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado 200 12

222 7 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado 210 14

225 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 182 11

226 8 Camada 3 Bordo Espessado exteriormente Fabrico 1 Alterada Alterada 204 9

227 8 Camada 3 Bordo Espessado exteriormente Fabrico 1 Alterada Alterada 187 8

228 8 Camada 3 Bordo Emoldurado Fabrico 1 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 208 12

229 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 202 11

231 8 Camada 1 Bordo Emoldurado Fabrico 1 Alterada Alisada 190 10

237 8 Camada 1 Fundo Emoldurado Fabrico 1 Alisada Alisada 20 7

238 7 Sem contexto Fundo Simples Fabrico 2 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado 14 4

239 7 Sem contexto Fundo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada 16 6

240 7 Sem contexto Fundo Simples Fabrico 2 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado 14 7

241 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada - 11

242 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 193 15

243 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Beige Engobe Beige - 15

244 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada 211 15

245 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado - 12

246 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada 193 11

247 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 1 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 204 12

248 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado - 16

249 8 Camada 1 Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alterada - 11

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N.º Área Camada Tipo Morfologia Pasta Superfície Interna

Superfície Externa Ø * Espessura de

parede*

250 8 Camada 3 Fundo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 20 6

251 8 Camada 3 Fundo Simples Fabrico 2 Engobe Beige Engobe Beige 18 5

252 8 Camada 3 Fundo Simples Fabrico 2 Alisada Alisada 16 6

253 8 Camada 3 Fundo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada 14 4

254 8 Camada 3 Fundo Simples Fabrico 1 Engobe Beige Engobe Beige 14 9

255 8 Camada 3 Fundo Simples Fabrico 2 Alisada Alisada 12 4

256 8 Camada 3 Fundo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada 14 5

257 5 Sem contexto Fundo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 10 4

258 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado - -

259 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada - -

260 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada 202 17

261 8 Camada 3 Bordo com Emoldurado Fabrico 1 Alterada Alterada 181 13

262 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 187 12

263 8 Camada 3 Bordo Emoldurado Fabrico 1 Alisada Alisada 169 13

264 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 234 13

265 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 173 10

266 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 184 14

267 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado - 12

268 8 Camada 3 Bordo Espessado exteriormente Fabrico 2 Alisada Alisada 202 10

269 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado - 12

270 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 196 14

271 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado - 13

272 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 169 11

273 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado - 14

274 8 Camada 3 Bordo Emoldurado Fabrico 1 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 180 12

275 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 197 13

276 8 Camada 3 Bordo Emoldurado Fabrico 1 Alterada Alterada 204 11

277 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada 192 13

278 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Alterada Alterada 214 14

279 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado - 12

280 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 185 13

281 8 Camada 3 Bordo Emoldurado Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 203 9

282 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Acinzentado

Engobe Acinzentado 209 11

283 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 2 Engobe Beige Engobe Beige 164 11

284 8 Camada 3 Bordo Emoldurado Fabrico 2 Alisada Alisada 208 11

285 8 Camada 3 Bordo Espessado exteriormente Fabrico 1 Alisada Alisada 200 9

286 8 Camada 3 Bordo Simples Fabrico 1 Alisada Alisada 210 17

287 5 Sem contexto Bordo Simples Fabrico 1 Engobe

AcinzentadoEngobe

Acinzentado 200 10

* Em milímetros.

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6.ConclusãoA ocupação de período moderno do, actualmen-te chamado, Bairro dos Pescadores na Ilha da Berlenga relaciona-se de forma indelével com o Mosteiro de São Jerónimo da Ordem dos Jeróni-mos, construído em 1513. Sobrevivendo a con-dições de habitabilidade e mesmo de segurança muito precária, a comunidade monástica aí per-maneceu até 1548, quando o mosteiro foi encer-rado (Trindade, 1985). Os indícios arqueológi-cos relacionados com esta ocupação (fundações, paredes, elementos arquitectónicos reutilizados, restos osteológicos humanos e estratos arqueo-lógicos) têm sido registados nas diversas inter-venções arqueológicas preventivas que o Insti-tuto Português de Arqueologia, com o apoio da Reserva Natural das Berlengas, tem promovido no local, desde 2000.

O conjunto cerâmico aqui estudado – as formas de pão de açúcar – surge integrado nos estratos desta época e, também em deposição claramen-te secundária. Estes recipientes de forma cónica, com um característico orifício na extremidade inferior, eram utilizados no processo de depura-ção do açúcar. No século XVI, existia um conjun-to considerável de engenhos de açúcar na Ilha da Madeira, que utilizavam formas cerâmicas produzidas no território continental português (Sousa, 2004 e no prelo; Sousa, Silva e Gomes, 2005). A época em que o Mosteiro de São Jeró-nimo funcionou na Ilha Berlenga, corresponde a uma fase de difusão da cultura e tecnologia do açúcar que, após o apogeu madeirense do final do século XV, começa a ser experimentada nou-tras regiões atlânticas (Açores, Canárias, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Antilhas e Brasil) com maior ou menor sucesso. Assim, na pri-meira metade do século XVI, existiam diversos centros de produção açucareira no Atlântico, sendo que alguns deles (nomeadamente a Ma-deira e as Canárias), devido às características desadequadas dos barreiros locais, dependiam da produção oleira continental para o necessário abastecimento de cerâmica industrial, designa-damente no que se refere às formas de pão de açúcar. A partir de meados do século XVI, a “ex-plosão” económica que representou a produção de açúcar no Brasil em regime esclavagista viria a causar a decadência da produção açucareira

noutros centros produtores, como a Madeira. Esta realidade terá motivado a interrupção da produção da “cerâmica do açúcar”, nas olarias continentais. No contexto exposto, parece mais provável, no momento actual da investigação, considerar a Madeira o destino principal das formas de pão de açúcar produzidas nas olarias portu-guesas da 1ª metade do século XVI.

Actualmente, encontram-se referenciados quatro centros oleiros, em Portugal continental, que produziam “cerâmica do açúcar”: a olaria de Mata da Machada (Torres, s.d.; Carmona e Santos, 2005), a olaria de Santo António da Charneca (Barros, Cardoso e Gonzalez, 2000 e 2003) (ambas no Barreiro), a região de Aveiro e a eventual olaria de Pai Mogo, na Lourinhã (Sousa, no prelo). No que respeita à região de Aveiro, apesar de não ter sido ainda identificada qualquer olaria, considerou-se a tradição oleira da região, as referência documentais concretas (Sousa, Silva e Gomes, 2005) e a presença destes materiais em ambiente subaquático (Alves, Rodrigues, Garcia e Aleluia, 1998: 200-202) como indicadores prováveis da produção destes contento-res. Posteriormente, análises químicas realizadas a exemplares re-colhidos na cidade Machico indicam que o seu local de fabrico terá sido Aveiro (Sousa, Silva e Gomes, 2005). Estudos ainda em curso indicam igualmente a presença de formas produzidas no Barreiro, na cidade do Funchal (Sousa, no prelo).

Relativamente às formas de pão de açúcar da Ilha da Berlenga, di-versas questões se colocam, sendo difícil, na fase presente da inves-tigação, apresentar conclusões definitivas. Não existindo para já qualquer indício de fabrico de açúcar neste local, a ocorrência destas peças poderá relacionar-se com a função de ancoradouro desempe-nhada pela Ilha, nas rotas atlânticas de longo curso. Esta função já sobejamente comprovada da Ilha (Blot, 2003) permite conjecturar so-bre a utilização do local como porto de abrigo pelas embarcações que transportavam as formas dos seus locais de produção no continente para os centros açucareiros que estes abasteciam (nomeadamente, a Madeira). Neste caso, o transporte ocasional destes recipientes va-zios para terra só poderia justificar-se por uma utilização secundá-ria, o que não parece muito provável.

Quanto ao local de produção das formas de pão de açúcar recolhidas da Ilha da Berlenga, permanece por enquanto indeterminado, em-bora possa merecer especial atenção a eventual olaria de Pai Mogo, pela sua proximidade relativamente à Ilha. Pode afirmar-se desde já que se trata de um conjunto bastante homogéneo, aparentemen-te proveniente de apenas um centro produtor. Um elemento que se poderá revelar precioso futuramente é a presença de um bordo com a marca “X” na superfície externa (peça n.º261), para a qual até ao momento não foi reconhecido paralelo, pese embora alguma seme-lhança técnica com a marca em forma de “Y”, presente na Mata da Machada (Carmona e Santos, 2005: 29).

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Uma segunda hipótese, seria a utilização das formas de pão de açúcar como contentor, tendo o seu transporte para a Ilha da Berlenga ocor-rido a partir de embarcações que as tinham como carga, contendo o “pão de açúcar”, vindas da Madeira (ou de outro centro açucareiro) para o continente. O açúcar era transportado nas rotas marítimas de longo curso, segundo as referências documentais, dentro de caixas de madeira (Sarmento, 1945: 76 e 79; Sousa, no prelo). Contudo, os estudiosos desta problemática têm especulado sobre a possibilidade da utilização das formas de pão de açúcar como contentor, atenden-do à sua forma cónica, propícia ao transporte marítimo em porão. A identificação destes recipientes em ambiente claramente doméstico (Sousa, 2004: 105) levanta igualmente a possibilidade do transporte das formas, do engenho para as áreas habitacionais, onde decorreria a última e mais demorada fase do fabrico do açúcar (poderia de-morar cerca de 60 dias). Alberto Vieira divide o fabrico do açúcar em “…três espaços fundamentais: a moenda, a cozedura e a purga. Enquanto a moenda e a cozedura estavam próximas, a casa da purga era um espaço separado…” (2000: 24). Pode assim levantar-se a pos-sibilidade de que as formas, já cheias com o “mel” (suco da cana co-zido) e com o orifício vedado com “trapos” (Sarmento, 1945), serem transportadas para as habitações onde se processava a cristalização e posteriormente a purga. Também não é de excluir o consumo do mel, ou melaço, produto correspondente a uma fase intermédia do fabrico do açúcar e que poderia ser transportado nas formas de pão de açúcar.

Assim, a presença das formas de pão de açúcar na Ilha da Berlenga poderia corresponder a um abastecimento à comunidade monástica, ou ao pagamento de serviços de assistência em situação de acosta-gem na Berlenga. Aliás, uma das motivações para a fundação do mosteiro foi a necessidade de prestar assistência espiritual e religio-sa aos navegantes que ali acostavam (Trindade, 1985: 156). A própria natureza deste eventual abastecimento ao Mosteiro da Misericórdia poderia revestir-se de carácter institucional, uma vez que se conhe-cem determinações reais relativamente a “prestações sociais” que os comerciantes de açúcar madeirenses tinham que pagar a instituições religiosas de assistência social (Salgado, 1933).

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7. BibliografiaALVES, Francisco J. S., RODRIGUES, Paulo J. P., GARCIA, Cristina e ALELUIA, Miguel (1998) – A cerâmica dos des-troços do navio dos meados do século XV Ria de Aveiro A e da Zona de Ria de Aveiro B. Aproximação tipológica preliminar. Actas das 2ªs Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval. Tondela, Câmara Municipal de Tondela, p. 185-210.

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2 - Carta Topográfica de Portugal, 1: 5 000, Berlenga, Instituto Geográfico e Cadastral, 1967.

3 - Bairro dos Pescadores com implantação das áreas intervencionadas.

4 - Área 1: perfil estratigráfico Sul.

5 - Área 8: perfil estratigráfico Este.

6 - Bairro dos Pescadores.

7 - “Castelinho”, estrutura em que é visível a reutilização de blocos calcários e graníticos eventualmente pertencentes ao antigo Mosteiro da Misericórdia.

8 - Formas de açúcar: bordos emoldurados.

9 - Formas de açúcar: bordos simples.

10 - Formas de açúcar: bordos simples.

11 - Formas de açúcar: bordos simples.

12 - Formas de açúcar: fundos.

13 - Bordo de forma de açúcar com marca (Peça n.º 261).

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