Apostila 2014 parte I 2

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CS 331O –2 o SEMESTRE / 2014 ENSINO SOCIAL CRISTÃO Coletânea de artigos, reportagens e textos de estudo Profa. Marli Pirozelli Silva Prof. Rafael Mahfoud Marcoccia ÍNDICE DOS TEXTOS: INTRODUÇÃO.......................... ..................... 02 PRINCÍPIO PERSONALISTA ...................03 A Dignidade Humana.............................. ...06 A Natureza de experiência Humana....08 Sobre o Perdão.............................. ................09 1

Transcript of Apostila 2014 parte I 2

CS 331O –2 o SEMESTRE / 2014

ENSINO SOCIALCRISTÃO

Coletânea de artigos, reportagens e textos de estudo

Profa. Marli Pirozelli Silva Prof. Rafael Mahfoud

Marcoccia

ÍNDICE DOS TEXTOS:

INTRODUÇÃO............................................... 02 PRINCÍPIO PERSONALISTA ...................03

A Dignidade Humana.................................06 A Natureza de experiência Humana....08 Sobre o Perdão..............................................09

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DIREITOS HUMANOS.................................12 Discurso Direitos Humanos....................14 Política, Justiça e Caridade.......................16 Questões de Bioética: Testemunho..................................................19 A Vida e a Pessoa antes do nascimento..23 Matadouros ....................................................25 Panorama atual ............................................27

PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE: texto 1...........................................................28

texto 2 ..........................................................31 Os princípios do ESC e a ATST........... 32 PIRNCÍPIO DA SOLIDARIEDADEJuventude e Amor ................................... 36Deus Caritas Est.........................................37Arrancados do Nada................................39A caridade que se torna método.........43Caritas in Veritate.....................................45LIBERDADE RELIGIOSA ........................49Histórico do Ensino Social Cristão......53BIBLIOGRAFIA..................................55

O que é Ensino Social Cristão?

O Ensino Social Cristão ou Doutrina Social da Igreja é um campo deconhecimento muito rico, que permanece pouco conhecido até hoje.

A razão disto encontra-se em nossa cultura que procura negarde forma teórica e prática sua raiz cristã, considerando de formapreconceituosa toda a reflexão que tenha por base a experiênciareligiosa.

Desta forma, criticam-se as posições da Igreja sobrequestões polêmicas sem examinar seus fundamentos e suaconsistência (séculos de experiência e reflexão), mas se aceitafacilmente todas as posições atuais sem discutir ou procurar

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conhecer suas razões. Tudo é natural e deve ser aceito como sinalde modernidade.

O cristianismo tem gerado ao longo do tempo muitas obras quetransformam a realidade de forma marcante e também um conjunto dereflexões sobre os mais diversos temas que dizem respeito aohomem.

Não há nada de mais valioso dentro do cristianismo que apessoa humana e, portanto, tudo que atinge o homem pode e deveser examinado pela Igreja.

Trata-se de compreender o homem em toda a sua verdade: ohomem concreto, histórico, real e não a imagem que temos dele.

Por isto a Igreja emite um juízo moral em matéria econômica,social e política quando o exigem os direitos fundamentais dapessoa, quando está em jogo o homem, não podendo “ficarinsensível a tudo o que serve o verdadeiro bem do homem assimcomo permanecer indiferente a tudo aquilo que o ameaça”.

Sua missão é distinta da missão desempenhada pelasautoridades políticas: ela se preocupa com aspectos temporais dobem comum, com a forma como o homem se relaciona com a natureza,com os bens materiais e com os outros homens em razão do BemMaior - sua plena realização.

O ESC trata dos diferentes aspectos que envolvem odesenvolvimento da vida humana desde sua concepção e nascimento,passando pelo âmbito da família, de contextos diversos nasociedade, da própria nação ou povo.

Trata-se de interpretar essas realidades tendo como critériode juízo o ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre sua vocação à realização total e não apenas à realização de aspectos particulares como o desenvolvimento técnico, o bem-estar social ou sucesso profissional.

O Princípio Personalista

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A PESSOA E OS SEUS DIREITOS

Para compreender o mistério da pessoa humana nas suas diferentesdimensões, é preciso abordá-lo considerando a verdade da sua existênciacomo ser pessoal e, ao mesmo tempo, como ser social.

A Igreja vê no homem, em cada homem, a imagem do próprio Deus vivo, o que lheconfere uma incomparável e inalienável dignidade. O ser humano não podeser reduzido a um organismo que possui alto nível de complexidade, omais complexo entre os seres da natureza, ou compreendido como umelemento anônimo da coletividade, que desempenha um papel funcionalneste sistema, ou apenas como um sujeito portador de direitos. Ele éalguém que deve tornar-se cada vez mais consciente de sua altíssimavocação, do chamado à realização plena de sua natureza.

107. O homem, tomado na sua concretude histórica, representa o coração e a alma doensinamento social católico. Toda a doutrina social se desenvolve, efetivamente, a partir doprincípio que afirma a intangível dignidade da pessoa humana.1

106. Toda a vida social é expressão do seu inconfundível protagonista: a pessoa humana. Esteimportante reconhecimento encontra expressão na afirmação de que «longe de ser o objeto e oelemento passivo da vida social», o homem, pelo contrário, «é, e dela deve ser e permanecer, osujeito, o fundamento e o fim». Nele, portanto, tem origem a vida social, a qual não poderenunciar a reconhecê-lo seu sujeito ativo e responsável e a ele deve ser finalizada toda equalquer modalidade expressiva da sociedade.

Por isto a doutrina social reconhece e afirma a centralidade dapessoa humana na vida social, política e econômica. A pessoa é sempre ocentro e a finalidade de todas as ações nos diversos âmbitos da vida:na família, nos grupos, no trabalho, no lazer e nas manifestaçõesculturais.

Ela está à frente do Estado e do Mercado. Constitui a bússola deorientação dos processos econômicos e das decisões políticas e por esta

1 Todos os parágrafos numerados fazem parte do Compêndio da Doutrina Social daIgreja. A numeração original foi conservada para facilitar a consulta ao textooriginal.

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razão cabe ao Estado criar formas de proteger e valorizar a pessoa emsuas dimensões e expressões.

A consciência do primado de cada ser humano deve estar na origemdo desenvolvimento científico e dos programas culturais, que devemsubordinar-se ao bem da pessoa, já que a ordem das coisas devesubmeter-se à ordem pessoal e não o contrário.

133. Em nenhum caso a pessoa humana pode ser instrumentalizada para fins alheios ao seumesmo progresso, que pode encontrar cumprimento pleno e definitivo somente em Deus e emSeu projeto salvífico.

A pessoa não pode ser instrumentalizada para projetos de caráter econômico, social epolítico impostos por qualquer que seja a autoridade, mesmo que em nome de pretensosprogressos da comunidade civil no seu conjunto ou de outras pessoas, no presente e no futuro.É necessário, portanto que as autoridades públicas vigiem com atenção, para quetoda a restrição da liberdade ou qualquer gênero de ônus imposto aoagir pessoal nunca seja lesivo da dignidade pessoal e para que sejagarantida a efetiva praticabilidade dos direitos humanos. Tudo isto,uma vez mais, se funda na visão do homem como pessoa, ou seja, comosujeito ativo e responsável do próprio processo de crescimento, juntamentecom a comunidade de que faz parte.

144. «Deus não faz distinção de pessoas» (At 10, 34; cf. Rm 2, 11; Gal 2,6; Ef 6, 9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criaturas à Sua imagem esemelhança. Uma vez que no rosto de cada homem resplandece algo da glória de Deus, adignidade de cada homem diante de Deus é o fundamento da dignidade do homem perante osoutros homens. Este é o fundamento último da radical igualdade efraternidade entre os homens independentemente da sua raça,

Quem é Homem: apontamentos da antropologia cristã

Criatura à imagem de Deus

O cristianismo coloca a pessoa no centro e vértice de criação,porque afirma que a pessoa humana é criatura de Deus: «Deus criou ohomem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher»(Gên 1, 27).

Portanto, «por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem adignidade de pessoa: ele não é apenas uma coisa, mas alguém. É capaz de

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conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhãocom outras pessoas, e é chamado, por graça, a uma aliança com o seuCriador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém maispode dar em seu lugar».

109.  Toda a vida do homem é uma pergunta e uma busca de Deus. Estarelação com Deus pode ser tanto ignorada como esquecida ou removida,mas nunca pode ser eliminada. Dentre todas as criaturas, com efeito,somente o homem é «“capaz”de Deus» («homo est Dei capax »). O serhumano é um ser pessoal criado por Deus para a relação com Ele, quesomente na relação pode viver e exprimir-se e que tende naturalmente aEle.

110. A relação entre Deus e o homem reflete-se na dimensão relacional esocial da natureza humana. O homem, com efeito, não é um ser solitário,mas «por sua natureza íntima um ser social» e «sem relações com osoutros não pode nem viver nem desenvolver seus dotes». Em relação aisso é muito significativo o fato de que Deus criou o ser humano comohomem e mulher (cf. Gn1, 27), que têm a mesma dignidade e são de igualnível e valor.

112 O homem e a mulher estão em relação com os outros antes de tudocomo guardiães de sua vida. « E ao homem pedirei conta da alma dohomem, seu irmão » (Gn 9, 5), reafirma Deus a Noé após o dilúvio. Nestaperspectiva, a relação com Deus exige que se considere a vida do homemsagrada e inviolável. O quinto mandamento «Não matarás» (Ex 20,13; Dt 5, 17) tem valor porque só Deus é Senhor da vida e da morte. Orespeito que se deve à inviolabilidade e à integridade da vida físicatem o seu cume no mandamento positivo: «Amarás o teu próximo como a timesmo » (Lv 19, 18), com que Jesus Cristo obriga a responsabilizar-sepelo próximo (cf. Mt 22, 37-40; Mc 12, 29-31; Lc 10, 27-28).

Unidade da Pessoa

129, O homem, portanto, tem duas diferentes características: é um ser material, ligado a estemundo mediante o seu corpo, e um ser espiritual, aberto à transcendência e à descobertade «uma verdade mais profunda», em razão de sua inteligência, com aqual participa «da luz da inteligência divina». Nem o espiritualismo,que despreza a realidade do corpo, nem o materialismo, que considera oespírito mera manifestação da matéria, dão conta da natureza complexa,da totalidade e da unidade do ser humano.

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Aberto à transcendência

130. À pessoa humana pertence a abertura à transcendência: o homem é aberto ao infinitoe a todos os seres criados. É aberto antes de tudo ao infinito, isto é, aDeus, porque com a sua inteligência e a sua vontade se eleva acima detoda a criação e de si mesmo, torna-se independente das criaturas, élivre perante todas as coisas criadas e tende à verdade e ao bemabsolutos. É aberto também ao outro, aos outros homens e ao mundo,porque somente enquanto se compreende em referência a um tu podedizer eu. Sai de si, da conservação egoística da própria vida, paraentrar numa relação de diálogo e comunhão com o outro.

 Ser único e irrepetível

131. O homem existe como ser único e irrepetível, existe com «eu», capaz deautocompreender-se, de auto possuir-se, de autodeterminar-se. A pessoa humana é umser inteligente e consciente, capaz de refletir sobre si mesma e,portanto, de ter consciência dos próprios atos. Não são, porém, ainteligência, a consciência e a liberdade a definir a pessoa, mas é apessoa que está na base dos atos de inteligência, de consciência, deliberdade. Tais atos podem mesmo faltar, sem que por isso o homemcesse.

Homem livre em busca da Verdade

Além possuir a Razão, o homem também possui liberdade.A liberdade é outro aspecto que forma a natureza particular do

ser humano, que o distancia dos demais seres da natureza e revela suaaltíssima vocação.

A vida animal é determinada pelos instintos. O animal satisfazsuas necessidades instintivamente (comer, se defender, acasalar), vivee se realiza colocando em prática seus instintos.

O homem, ao contrário, possui liberdade e pode guiar sua vidapessoal e social na direção do Bem, de acordo com sua consciência evontade livre, movido por uma convicção pessoal interior, não por umimpulso cego ou coação externa.

“A liberdade é dada ao homem para que ele possa realizar a simesmo, seu próprio ser, para que ele realize o que a natureza apenascomeçou a esboçar”. (Mondin,B. p18, 1998).

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15. “ O significado profundo do existir humano, com efeito, se revelana livre busca da verdade, capaz de oferecer direção e plenitude àvida, busca à qual tais questões solicitam incessantemente ainteligência e a vontade do homem. Elas exprimem a natureza humana noseu nível mais alto, porque empenham a pessoa em uma resposta que medea profundidade do seu compromisso com a própria existência. Trata-se,ademais, de interrogações essencialmente religiosas: «quando o porquê das coisas éindagado a fundo em busca da resposta última e mais exaustiva, então arazão humana atinge o seu ápice e se abre à religiosidade. Com efeito,a religiosidade representa a expressão mais elevada da pessoa humana,porque é o ápice da sua natureza racional. Brota da profunda aspiraçãodo homem à verdade, e está na base da busca livre e pessoal que ele fazdo divino».O texto completo encontra-se em: http://www.hottopos.com/videtur/mateus.htm

A Dignidade Humana Mateus Deckers Leme

6. Pelé

Há dignidade apenas quando há consciência? Como admitir a dignidade de alguém que está há muitos anos em coma profundo ou a de umembrião? Pensemos num caso mais próximo e menos radical: o Pelé. Será que oPelé é um craque só enquanto está jogando bola? Quero dizer, será que,após ter saído de um Santos x Palmeiras no qual ele fez 3 gols, o "rei"se transforme misteriosamente num "perna de pau" e sua habilidade sóvolte a renovar-se misteriosamente cada vez que ele entra em campo,como a Fênix?

Não parece razoável.

O Pelé continua em todos os momentos a ser o Pelé; inclusive, aser "o" Pelé, o atleta do século, maior craque do futebol de todos ostempos, mesmo quando faz propaganda para as Casas Bahia. Só que, nessesmomentos, ele não está exercitando a sua habilidade.

Da mesma forma que o Pelé não deixa de ser o Pelé dentro ou forado campo (e não deixa de ser "o" Pelé), o Joãozinho não deixa de ser oJoãozinho dentro ou fora do útero materno. Inclusive, ele não deixa de

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ser “o" Joãozinho, diferente do Antenorzinho e do Arnaldinho e de todosos outros colegas de berçário, isto é, ele é ao mesmo tempo ele mesmo eúnico.

A melhor prova disso são as mães: que mãe aceitaria trocar seu

filho com a vizinha de quarto na maternidade? Quer dizer, a naturezahumana, ao mesmo tempo em que torna os seres humanos semelhantes entresi, torna-os também diferentes uns dos outros, faz com que cada umdeles se torne uma pessoa.

Alguns filósofos se referem a essa qualidade do homem como“pessoalidade”.

Funciona mais ou menos como com as montanhas: de certa forma,são todas iguais: elevações do terreno, na maioria das vezes com umaforma aproximada de pirâmide. Mas, ao mesmo tempo, são todasdiferentes: pergunte para um alpinista.

Desta forma, a consciência, na verdade, não importa grande coisa

para determinar a dignidade. Podemos (e devemos) falar em dignidadesempre que nos referirmos a uma pessoa. A consciência, entendida aquicomo capacidade de conhecer racionalmente, isto é, como a capacidade dedizer para si mesmo "Penso, logo existo", é apenas uma manifestação danatureza pessoal de um homem, que antes de dizer "penso, logo existo"foi capaz de aprender o que significam "penso", "logo" e "existo", quesão idéias bastante abstratas. Assim, a consciência é um estado dapessoa, e não a pessoa uma consequência da consciência.

Por que as pessoas têm dignidade e os animais, plantas e coisasnão?

Esta é a pergunta. Chegamos aqui ao cerne da questão: qual é essevalor especial que reconhecemos nas pessoas para lhes atribuirmos o quechamamos dignidade? Conhecemos apenas três tipos diferentes de seres pessoais: oshomens, os anjos e Deus. O que há de comum a todos eles? O seguinte: anatureza dos seres pessoais inclui pelo menos uma parte espiritual (nocaso dos anjos e de Deus, 100 % espiritual). A natureza mista do homemé facilmente provada: aparte material nem precisa de comentários. E, sobre a parte espiritual,eu sinceramente não espero receber cartas dos babuínos de algumzoológico cumprimentando-me por este trabalho, nem que as cadeirasabram um processo contra mim por tê-las usado como exemplo sem pedirpermissão, como poderiam fazer o Pelé ou a família Dickens.

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Assim, as pessoas têm espírito. O espírito, por definição, éimortal, pois não tem partes em que possa dividir-se, e assim não podequebrar-se ou morrer. Além disso, o espírito não precisa de uma formapara existir, ao contrário de uma moto, por exemplo, pois ela só serámoto enquanto todas as peças estiverem juntas de um determinado jeito.Por isso, a natureza dos seres pessoais entra no campo do infinito.Quer prova mais clara disso do que o namorado que promete amar anamorada "para sempre". O simples fato de dizermos "para sempre" a todahora já mostra quão profundamente estamos ligados ao infinito.

Diz Tomás de Aquino que "toda a nobreza de qualquer coisa lhepertence em razão de seu ser". Quer dizer, quanto mais perfeita for amaneira como uma coisa possui o ser, tanto mais valiosa, nobre, dignaela será.

Um pé de abóbora, por exemplo, é mais valioso que uma pedra,

porque tem vida. Um cachorro é mais valioso que o pé de abóbora, porquetem sensibilidade. Um homem é infinitamente mais valioso que umcachorro, porque tem espírito, o que faz sua natureza dar o salto parao nível mais elevado dos seres pessoais. E Deus é infinitamente maisvalioso do que tudo, porque é o Ser por definição.

Juntando todas essas características, podemos agora tentar umadefinição: a dignidade é a medida (ou grau) da perfeição espiritual deum ser pessoal.

Explicando melhor: medida da perfeição, porque um ser espiritualpode ser mais perfeito do que outro (nesse sentido, o ser humano éúnico, porque é o único que tem, além da sua dignidade intrínsecaimutável, uma dignidade extrínseca que pode ser aumentada oudiminuída); perfeição espiritual, porque, como já vimos, a dignidade serefere a valores espirituais, como inteligência, bondade, etc.; de umser pessoal, porque o ser pessoal é o únicoque tem natureza espiritual.

Do que dissemos derivam várias coisas: É possível perdercompletamente a dignidade, no caso de um criminoso convicto, porexemplo? Um amigo contava-me que tinha assistido natelevisão a uma rebelião de presos. E, durante a reportagem, o microfone acidentalmente captou a voz damãe de um dos detentos, berrando: "Meu menino! O que fizeram com o meumenino?". Para essa senhora, não havia o "Zé do Crime", mas apenas o

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"meu menino". E não há como negar que ela via mais longe do que osoutros, pois enxergava o homem por trás do criminoso. É um fato: ele éo "seu menino".

Além disso, uma pessoa não consegue deixar de ser uma pessoa. Não

se pode esquecer que uma pessoa é um ser espiritual, e que por isso éimortal.

Quer dizer, tendo sido criada, não há mais como desfazer: uma vezpessoa, sempre pessoa. Isso vale até para o caso mais extremo dossuicidas: devem ter uma bela decepção ao descobrirem na prática que nãoconseguem deixar de ser. Mas não tem jeito: o suicídio é tentar passaruma borracha sobre uma página escrita a caneta, ou melhor ainda, sobremármore entalhado.

Dessa, forma, é praticamente impossível perder totalmente adignidade extrínseca, aquela que se conquista, e é totalmenteimpossível perder a dignidade intrínseca, da mesma forma como épossível cair da escada, mas não passar do chão.

A Experiência Humana: sua naturezaTrecho adaptado da Apostila de Filosofia do curso de Engenharia

Numa reflexão atenta sobre a própria experiência, o homemdescobre que sua existência é composta por duas dimensões:

a) um tipo de realidade quantitativamente descritível,mensurável. Trata-se da dimensão material, que apresenta-se de formasemelhante no homem e nos outros seres vivos;

b) porém, se o homem está totalmente empenhado naquele instantede reflexão sobre si, notará em seu “eu” um tipo de conteúdo que não seidentifica com a materialidade. Trata-se do fenômeno da idéia, do juízoe a capacidade de tomar decisões. Este é a dimensão espiritual do homem, queo diferencia dos outros animais.

O “eu” é composto por duas dimensões, e negligenciar uma delas énegar a evidência da experiência. É evidente que a experiência especificamentehumana é fruto da riqueza e do dinamismo do fator que denominamos de realidade espiritualdo “eu”. Atualmente, no entanto, é muito mais discutida e evidenciada arealidade material do homem, como suas necessidades físicas e seus

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instintos. Se quisermos nos empenhar a sério com a vida, seránecessário, portanto, retomarmos com clareza a consciência datotalidade dos fatores da experiência humana, sem esquecer nenhuma desuas dimensões.

Podemos nos perguntar agora: como se manifesta o fator quedenominamos de dimensão intelectual ou espiritual do homem? Em queconsiste a especificidade da existência humana? O fator intelectual e espiritualdo homem se expressa sobretudo em certas perguntas: “qual é o significado últimoda existência? Por que existem a dor e a morte? Por que, no fundo, valea pena viver?” Este questionamento, mesmo quando o clamor e aobtusidade da vida social pareçam querer silenciá-lo, é inextirpável,pois constitui a própria essência da vida humana.

Note-se ainda que, ao colocar estas perguntas, não nossatisfaremos com respostas incompletas ou parciais: o homem verdadeiroexperimenta, de fato, a exigência de uma resposta total a seu questionamento,uma resposta que abranja todo o horizonte da razão. Com efeito, podemosdefinir o “eu” como “o lugar da natureza onde é afirmado o significado de tudo”.

Desproporção estrutural à resposta total

Quanto mais avançamos na tentativa de responder às perguntasconstitutivas de nosso “eu”, mais percebemos a sua potência e a nossadesproporção em relação à resposta total. O homem que leva a sério a si mesmo,com efeito, sempre está insatisfeito com o que já conseguiu alcançar ebusca continuamente algo que possa responder de forma mais completa edefinitiva a seus desejos. A resposta total, no entanto, sempre pareceestar mais além. Esta incapacidade estrutural de conquistar um bem último edefinitivo faz com que o homem se perceba, frequentemente, como “umacontradição insolúvel”; S. Tomás de Aquino expressou este sentimentocom uma fórmula admirável: “o homem é desejo de um bem ausente”. Ouseja, o homem é capaz de imaginar e intuir a resposta total a seusquestionamentos, mas na prática se revela incapaz de realizá-la ouconquistá-la plenamente.

Esta limitação humana também se reflete na pesquisa científica. Omatemático F. Severi, amigo de Einstein, ao notar este fato, descreveuo trabalho de pesquisa científica nos seguintes termos: “Tudo aquiloque descubro, à medida que avanço na pesquisa, é função de um absolutoque se opõe como barreira elástica à sua superação com os meioscognitivos”. O próprio Einstein, numa carta enviada a Severi, afirma

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também que “quem não admite o mistério insondável não pode sequer serum cientista”.

O “eu” como promessa

Vimos, portanto, que o homem aspira a uma resposta total,resposta que ele, no entanto, não consegue alcançar em plenitude. Defato, o sentido último da existência se apresenta para o homem como mistério e nossatarefa é buscá-lo continuamente. Se negarmos a possibilidade daexistência de uma resposta última, ou se desistirmos de buscá-la, oresultado será o desespero. Se a natureza do homem está indomavelmenteà procura de uma resposta, se a estrutura do homem é esta perguntairresistível e inexaurível, a pergunta é suprimida se não admitimos aexistência de uma resposta.

No íntimo da consciência humana, há como que uma promessa derealização, e é isso que nos impele continuamente a buscar atingi-la. Oescritor Cesare Pavese, vencedor do prêmio Nobel de literatura,escreveu certa vez em seu diário: “É uma coisa grande o pensamento deque nada seja a nós devido. Alguém acaso jamais nos prometeu algo?Então, porque esperamos?”. Esperamos porque esta é a própria estruturade nossa natureza, a essência de nosso “eu”. A promessa está na própriaorigem da nossa criação. Quem fez o homem o fez promessa.

Pelo simples fato de viver, o homem coloca a pergunta acerca dosentido de sua existência, porque esta é a raiz da sua consciência doreal. Mas o homem não apenas coloca a pergunta, como também a responde,afirmando algo “último”: porque pelo simples fato de que um homem vivecinco minutos, afirma a existência de um “X” pelo qual vale a pena, emúltima instância, viver aqueles cinco minutos. É um mecanismo estrutural darazão, uma implicação inevitável. Por isso a estas perguntasconstitutivas nós damos sempre uma resposta: consciente eexplicitamente, ou prática e inconscientemente. Seremos tanto maishumanos e verdadeiros, quanto enfrentarmos com mais seriedade estasquestões.

Sobre o Perdão

Na Espanha, até hoje dez vítimas do grupo terrorista ETA se encontraram com terroristas presos, dentro do “Programa de Encontros

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Restaurativos”. Uma delas foi Mari Carmen Hernández, viúva de um político assassinado pelo ETA em janeiro de 2000.

O assassinato de seu marido havia mudado a vida de sua família para sempre, mas ela se agarrou à fé até converte-la em âncora e motor para as feridas da alma. Desde os primeiros momentos teve claro que tinha que perdoar aos assassinos de seu marido, porque “eles não eram culpados por todo o ódio que lhes foi inculcado desde pequenos”. Muitasvezes se dirigia ao Sagrado Coração de Jesus para lhe pedir paz, para que a raiva e o ódio não encontrassem abrigo, mas poucos sabem o quantoé difícil perdoar, quando aquele que destroçou sua vida não dá o primeiro passo.

Mari tinha necessidade de fazê-lo: “o perdão não é uma obrigação,não é esquecimento, não é uma expressão de superioridade moral, nem é uma renúncia ao direito.

O perdão é um ato libertador. Perdoar é ir além da justiça.” (Alfa Ômega, abril de 2012).

Sobre o tema da justiça leia também:“Na prisão, um gosto de vida nova” - relato da experiência de algumas jovens que dão aulas num presídio em Brasília - textos de apoio.

Não é o ódio queme fará justiça"por Benedetta Consonni

28/8/2012 - No Meeting de Rímini omédico palestino IzzeldinAbuelaish, autor do livro "Não aoódio", conta sobre as razões desua fé e esperança apesar de terperdido suas filhas em umbombardeio israelense na Faixa deGaza.

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16 de janeiro de 2009, 16h45. É o dia e a hora em que um carroisraelense armado matou as três filhas e uma neta de IzzeldinAbuelaish, um médico palestino autor do livro “Não ao ódio”. "Naquelemomento, eu disse, esta deve ser a última tragédia”.

Ele contou sobre a história de sua vida na Faixa de Gazano Meeting. Uma vida provada pelo intenso sofrimento, mas iluminadapela fé e esperança. "Abuelaish é um extraordinário exemplo detestemunho de paz", disse Robi Ronza que no encontro apresentou o tema"Vida: exigência de felicidade". Abuelaish nasceu em um campo derefugiados em Gaza e com esforço conseguiu alcançar seu sonho de setornar um médico. Chegou e é um caso único, aceito para trabalhar em umhospital israelense, especializado em ginecologia. "Meu sonho era sermédico e acredito que na vida nada é impossível, a única coisaimpossível é fazer com que as minhas filhas voltem à terra” contaIzzeldin.

A perda dolorosa o marcou mas ele não tonou o caminho fácildo ódio. Como um homem jovem, durante um verão Abuelaish trabalhou emum campo de trabalho onde desenvolveu relações positivas e pacíficas.Alí nasceu sua decisão de dedicar sua vida ao fortalecimento dasrelações entre palestinos e israelenses em busca de diálogo. Eleensinou seus seis filhos a defender a paz e não desistir de suahumanidade. Em seguida, o teste foi iniciado. "O 16 de setembro de 2008entre as 1,6 mil pessoas morreu minha esposa. Eu pensei que era o fimdo mundo, eu sempre acreditei que as crianças tinham o direito de sercriadas por sua própria mãe” diz.

Após a perda de sua esposa, sua filha mais velha, de 20 anos,assumiu a casa para que seu pai pudesse continuar trabalhando. Apenasseis meses após a casa da família foi bombardeada, quatro pessoasmorreram, três filhas de Abuelaish e uma de suas netas. Uma outra ordemviria um dia depois. Mas Abuelaish não se detém na dor. "Era hora dedefender a vida de todos. Ninguém deve ser morto por defender suaprópria liberdade e ninguém é livre se não são também os demais. Minhaavó sempre disse que a vida é o que fazemos dela. Portanto somos nósque damos forma à vida, ao nosso futuro. Tenho certeza de que um dia mereencontrarei minhas filhas assassinadas e quero poder dizer-lhes quefoi resolvido o que causou o seu derramamento de sangue. Osinstrumentos para resolver a situação não são balas, mas atos,sabedoria e bondade. As palavras são muito mais forte que as balas".

Ele escolheu o caminho das palavras e escreveu um livro sobresua vida para dar esperança aos outros. "Depois do que aconteceu, eraesperado de mim que odiasse, mas não é ódio que me fará justiça. O ódioé um veneno que destrói as pessoas que o provam. Se odiasse as pessoasque mataram minhas filhas estaria destruído. Devemos opor o ódio, a nãoculpar os outros, mas assumir nossa responsabilidade. Devemos nosperguntar: o que eu posso fazer para que algo mude? A melhor arma dedestruição em massa é o ódio em nossas almas”.

Outra de suas filhas ficou gravemente ferida no bombardeio edurante os quatro meses que passou no hospital israelense onde seu paitrabalhava pode sentir a proximidade de amigos e colegas. Outra pequenavitória contra o ódio. "A vida me ensinou que há três inimigos: aarrogância, a ignorância e a ganância. Nós odiamos porque não nosconhecemos e, na medida em que continuamos sem nos conhecer,continuamos odiando. Conhecer significa manifestar respeito ecompreensão. Precisamos de justiça e de verdade”, diz Abuelaish.

Como foi possível não odiar? "A fé tem me sustentado", repetiutrês vezes. "A fé é a vida para mim, é o que resta quando todo o restose foi, é a luz na escuridão que nos mostra o caminho. Todos nós temosfé, qualquer que seja, também os ateus acreditam em algo. Eu acreditoem Deus que nos criou. A fé é o elo entre Deus e eu ", explica opalestino de fé muçulmana. "Acho que tudo está nas mãos de Deus e nós,os homens, somos seus instrumentos. Tudo na vida é para algo e esse é oplano de Deus. Quanto mais vivo a fé, mais perto estou de Deus e maissatisfeito e protegido estou. Quando enfrentamos uma dificuldade, Deus,que conhece nossas capacidades, nos envia uma prova de que apenasnossas forças não pode suportar”.

A paixão pela fé e a vida fazem grandes coisas. Abuelaish agoravive no Canadá e ensina saúde pública da Universidade de Toronto. Ele éespecialista em problemas de infertilidade feminina para ajudar asmulheres a realizar o seu desejo de ser mãe. "Toda vez que, após oparto, entrego o recém-nascido à sua mãe é um momento de grandefelicidade para mim. O bebê chorando no nascimento é um grito deesperança". As mães e as mulheres em geral, de acordo com oginecologista palestino, devem ser apoiadas e valorizadas. Em memóriade suas filhas e para promover a educação das mulheres no Oriente Médiocriou a Fundação Daughters for Life. Este ano foram dadas 50 bolsas deestudo para meninas palestinas, israelenses, jordanianas e libanesas."Sem minha esposa e filhas não estaria aqui. Em toda sociedade, a

figura mais importante é a mulher, porque mantém viva a esperança. Eusou otimista e tenho esperança”.

Uma esperança que contagia o Meeting: "Eu vim aqui porqueacredito que se pode espalhar esta mensagem". O livro de IzzeldinAbuelaish foi traduzido em 17 línguas, incluindo o árabe e o hebraico,língua que o autor fala perfeitamente. No próximo 11 de setembro umaadaptação do livro será apresentada no Teatro Nacional de Israel poruma companhia palestino-israelense.

Fonte: http://passos.tracce.it/default.asp?id=376&id_n=3076

Direitos Humanos: fundamentos

Os Direitos Humanos são universais, invioláveis e inalienáveis porque derivam da própria natureza humana e dela não podem ser separados. Esta máxima deveria ser reconhecida por todos, principalmente pelas autoridades que são chamadas a promover e garantiro seu respeito.

Mas como falar em Direitos Humanos universais se, em nossa culturacontemporânea o conceito de natureza humana suscita desconfiança e parece ter se perdido? Os Direitos Humanos só podem ser compreendidos eaceitos de modo universal quando pressupomos que o homem carrega no seupróprio ser uma mensagem moral, é portador de valores e princípios que devem ser reconhecidos, redescobertos e não inventados ou impostos de forma subjetiva e arbitrária.

Se não consideramos a existência de um fundamento ontológico para os valores essenciais da vida humana, as legislações e o próprio direito passam a depender das correntes de pensamento predominantes na sociedade num determinado período, transformando o direito num instrumento de poder da ideologia dominante, em vez de submeter o poderao direito.

O reconhecimento da lei natural constitui a única “verdadeira garantia oferecida a cada um para viver livre e respeitado na sua dignidade de pessoa, e para se sentir defendido de qualquer manipulaçãoideológica ou abuso perpetrado com base na lei do mais forte” (Bento XVI, 2005).

O texto abaixo nos ajuda a compreender melhor o que é a Lei Natural:

Trechos do Discurso do Papa Bento XVI aos participantes do Congressosobre a Lei Moral – Pontifícia Universidade Lateranense – 12/02/2007

O que é a Lei Natural

“(...) É precisamente à luz destas verificações que se manifesta emtoda a sua urgência a necessidade de refletir sobre o tema da leinatural e de reencontrar a sua verdade, comum a todos os homens. Tallei, à qual se refere também o Apóstolo Paulo (cf. Rm 2, 14-15), estáinscrita no coração do homem e, por conseguinte, também hoje não ésimplesmente inacessível. Esta lei tem como seu princípio primordial egeneralíssimo o de "fazer o bem e evitar o mal". Trata-se de uma verdade cujaevidência se impõe imediatamente a cada um.

Dela brotam os outros princípios mais particulares, que regulam ojuízo ético sobre os direitos e os deveres de cada um. Trata-se doprincípio do respeito pela vida humana, desde a sua concepção até ao seutermo natural, pois este bem da vida não é uma propriedade do homem,mas um dom gratuito de Deus. Trata-se também do dever de buscar a verdade,pressuposto necessário de todo o verdadeiro amadurecimento da pessoa.

Outra exigência fundamental do sujeito é a liberdade. Todavia, tendoem consideração o fato de que a liberdade humana é sempre uma liberdadecompartilhada com os outros, é claro que a harmonia das liberdades sópode ser encontrada naquilo que é comum a todos: a verdade do serhumano, a mensagem fundamental do próprio ser, precisamente a lexnaturalis. E como deixar de mencionar, por um lado, a exigência da justiça,que se manifesta em dar unicuique suum e, por outro, a expectativa dasolidariedade, que alimenta em cada um, especialmente se estiver emdificuldade, a esperança de uma ajuda por parte daquele que teve umasorte melhor? Nestes valores expressam-se normas inderrogáveis einadiáveis, que não dependem da vontade do legislador e nem sequer doconsenso que os Estados lhes podem conferir. Com efeito, trata-se denormas que precedem qualquer lei humana: como tais, não admitemintervenções em derrogação por parte de ninguém.

A Lei Natural: fundamento do direito positivo

A lei natural é a nascente de onde brotam, juntamente com osdireitos fundamentais, também imperativos éticos que é necessáriorespeitar. Na atual ética e filosofia do Direito são amplamentedifundidos os postulados do positivismo jurídico. A consequência é quea legislação se torna com frequência somente um compromisso entrediversos interesses: procura-se transformar em direitos, interessesparticulares ou desejos que contrastam com os deveres derivantes daresponsabilidade social. Nesta situação, é oportuno recordar que cadaordenamento jurídico, tanto a nível interno como internacional, haureem última análise a sua legitimidade da radicação na lei natural, namensagem ética inscrita no próprio ser humano.

Em definitivo, a lei natural é o único baluarte válido contra oarbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica. Oconhecimento desta lei inscrita no coração do homem aumenta com oprogredir da consciência moral. Portanto, a primeira preocupação paratodos, e particularmente para quem tem responsabilidades públicas,deveria consistir em promover o amadurecimento da consciência moral.Este é o progresso fundamental, sem o qual todos os outros progressosterminam por ser não autênticos. A lei inscrita na nossa natureza é averdadeira garantia oferecida a cada um, para poder viver livres e serrespeitado na própria dignidade.

Consequências e implicações: família - ciência- ética

O que dissemos até agora tem implicações muito concretas, se se fazreferência à família, ou seja, àquela "íntima comunidade conjugal devida e de amor fundada e dotada de leis próprias pelo Criador"(Constituição pastoral Gaudium et spes, 48). A este propósito, o ConcílioVaticano II reiterou oportunamente que a instituição do matrimóniorecebe a sua "estabilidade do ordenamento divino" e, por isso, "estevínculo sagrado, por causa do bem tanto dos esposos e da prole, como dasociedade, está fora do arbítrio humano" (Ibidem). Portanto, nenhuma leifeita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador, sem quea sociedade seja dramaticamente ferida naquilo que constitui o seupróprio fundamento basilar. Esquecê-lo significaria debilitar afamília, penalizar os filhos e também tornar precário o futuro dasociedade.

Enfim, sinto o dever de afirmar mais uma vez que nem tudo o que écientificamente realizável é também lícito sob o ponto de vista ético. Quando reduz o serhumano a um objeto de ensaio, a técnica termina por abandonar o sujeitofrágil ao arbítrio do mais forte. Confiar cegamente na técnica como a

única garantia de progresso, sem oferecer ao mesmo tempo um códigoético que mergulhe as suas raízes na mesma realidade que é estudada edesenvolvida, equivaleria a causar violência à natureza humana, comconsequências devastadoras para todos.

A contribuição dos homens de ciência é de importância primária.Juntamente com o progresso das nossas capacidades de domínio sobre anatureza, os cientistas devem contribuir também para nos ajudar acompreender profundamente a nossa responsabilidade pelo homem e pelanatureza que lhe é confiada. Tendo isto como base, é possíveldesenvolver um diálogo fecundo entre crentes e não crentes; entrefilósofos, juristas e homens de ciência, que podem oferecer também aolegislador um material precioso para a vida pessoal e social”.

DISCURSO DO PAPA BENTO XVI NA ONU Nova Iorque, 18 de Abril de 2008

(...) A referência à dignidade humana, que é o fundamento e o

objetivo da responsabilidade de proteger, leva-nos ao tema sobre o qual

somos convidados a concentrar-nos este ano, no qual se celebra o

sexagésimo da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O documento foi o

resultado de uma convergência de tradições religiosas e culturais, todas

motivadas pelo comum desejo de colocar a pessoa humana no centro das

instituições, leis e intervenções da sociedade, e de considerar a pessoa

humana essencial para o mundo da cultura, da religião e da ciência.

Os direitos humanos estão cada vez mais presentes como linguagem

comum e substrato ético das relações internacionais. Ao mesmo tempo, a

universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos

humanos servem todas de garantias para a salvaguarda da dignidade

humana. Contudo, é evidente que os direitos reconhecidos e traçados na

Declaração se aplicam a todos em virtude da comum origem da pessoa, a

qual permanece o ponto de referência mais alto do desígnio criador de

Deus para o mundo e para a história. Tais direitos estão baseados na lei

natural inscrita no coração do homem e presente nas diversas culturas e

civilizações.

Remover os direitos humanos deste contexto significaria limitar o

seu âmbito e ceder a uma concepção relativista, segundo a qual o

significado e a interpretação dos direitos poderia variar e a sua

universalidade seria negada em nome de contextos culturais, políticos,

sociais e até religiosos diferentes. Contudo não se deve permitir que

esta ampla variedade de pontos de vista obscureça o fato de que não só

os direitos são universais, mas também o é a pessoa humana, sujeito

destes direitos.

A vida da comunidade, a nível quer interno quer internacional,

mostra claramente como o respeito dos direitos e as garantias que deles

derivam sejam medidas do bem comum que servem para avaliar a relação

entre justiça e injustiça, desenvolvimento e pobreza, segurança e

conflito. A promoção dos direitos humanos permanece a estratégia mais

eficaz para eliminar as desigualdades entre Países e grupos sociais,

assim como para um aumento da segurança. Certamente, as vítimas das

privações e do desespero, cuja dignidade humana é violada impunemente,

são presa fácil da chamada à violência e podem tornar-se em primeira

pessoa violadoras da paz. Contudo o bem comum que os direitos humanos

ajudam a alcançar não se pode realizar simplesmente com a aplicação de

procedimentos corretos nem sequer mediante um simples equilíbrio entre

direitos contrastantes.

O mérito da Declaração Universal consiste em ter permitido que

diferentes culturas, expressões jurídicas e modelos institucionais

convirjam em volta de um núcleo fundamental de valores e, portanto, de

direitos. Contudo hoje é necessário duplicar os esforços face às

pressões para reinterpretar os fundamentos da Declaração e de comprometer

a sua unidade íntima, de modo a facilitar um afastamento da proteção da

dignidade humana para satisfazer simples interesses, muitas vezes

interesses particulares.

A Declaração foi adotada como "comum concepção a ser perseguida"

(preâmbulo) e não pode ser aplicada por partes destacadas, segundo

tendências ou opções seletivas que simplesmente correm o risco de

contradizer a unidade da pessoa humana e portanto a indivisibilidade dos

direitos humanos.

A experiência ensina-nos que com frequência a legalidade prevalece

sobre a justiça quando a insistência sobre os direitos humanos os faz

sobressair como o resultado exclusivo de resoluções legislativas ou de

decisões normativas tomadas pelas várias agências dos que estão no

poder. Quando são apresentados simplesmente em termos de legalidade, os

direitos correm o risco de se tornarem débeis proposições separadas da

dimensão ética e racional, que é o seu fundamento e finalidade.

Ao contrário, a Declaração Universal fortaleceu a convicção de que o

respeito dos direitos humanos está radicado principalmente na justiça

que não muda, sobre a qual se baseia também a força vinculante das

proclamações internacionais. Este aspecto muitas vezes é desatendido

quando se procura privar os direitos da sua verdadeira função em nome

de uma mesquinha perspectiva utilitarista.

Dado que os direitos e os consequentes deveres surgem

naturalmente da interação humana, é fácil esquecer que eles são o fruto

de um sentido comum da justiça, baseado primariamente na solidariedade

entre os membros da sociedade e por isso válidos para todos os tempos e

para todos os povos. Esta intuição foi expressa desde o quinto século

por Agostinho de Hipona, um dos mestres da nossa herança intelectual, o

qual disse em relação ao Não faças aos outros o que não queres que seja feito a ti que

esta máxima "não pode de modo algum variar segundo as diversas

compressões presentes no mundo" (De doctrina christiana, III, 14).

Por isso, os direitos humanos devem ser respeitados como expressão

de justiça e não simplesmente porque podem ser feitos respeitar

mediante a vontade dos legisladores.

Política, Justiça e Caridade

Discurso do Papa Bento XVI no Parlamento Alemão 22 de Setembro de 2011

“ (...) Seja-me permitido começar as minhas reflexões sobre osfundamentos do direito com uma pequena narrativa tirada da SagradaEscritura. Conta-se, no Primeiro Livro dos Reis, que Deus concedeu ao jovemrei Salomão fazer um pedido por ocasião da sua entronização. Que irápedir o jovem soberano neste momento tão importante: sucesso, riqueza,uma vida longa, a eliminação dos inimigos? Não pede nada disso; mas sim:«Concede ao teu servo um coração dócil, para saber administrar a justiçaao teu povo e discernir o bem do mal» (1 Re 3, 9). Com esta narração, aBíblia quer indicar-nos o que deve, em última análise, ser importantepara um político. O seu critério último e a motivação para o seutrabalho como político não devem ser o sucesso e menos ainda o lucro

material. A política deve ser um compromisso em prol da justiça e,assim, criar as condições de fundo para a paz. Naturalmente um políticoprocurará o sucesso, sem o qual não poderia jamais ter a possibilidadede uma ação política efetiva; mas o sucesso há-de estar subordinado aocritério da justiça, à vontade de atuar o direito e à inteligência dodireito. É que o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindoassim a estrada à falsificação do direito, à destruição da justiça. «Sese põe de parte o direito, em que se distingue então o Estado de umagrande banda de salteadores?» – sentenciou uma vez Santo Agostinho (Decivitate Dei IV, 4, 1).

Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estaspalavras não são um fútil espantalho. Experimentámos a separação entre opoder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu espezinharo direito, de tal modo que o Estado se tornara o instrumento para adestruição do direito: tornara-se uma banda de salteadores muito bemorganizada, que podia ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira doprecipício. Servir o direito e combater o domínio da injustiça é epermanece a tarefa fundamental do político.

Num momento histórico em que o homem adquiriu um poder até agoraimpensável, esta tarefa torna-se particularmente urgente. O homem écapaz de destruir o mundo. Pode manipular-se a si mesmo. Pode, por assimdizer, criar seres humanos e excluir outros seres humanos de seremhomens. Como reconhecemos o que é justo? Como podemos distinguir entre obem e o mal, entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente? Opedido de Salomão permanece a questão decisiva perante a qual seencontram também hoje o homem político e a política.

Grande parte da matéria que se deve regular juridicamente,pode ter por critério suficiente o da maioria. Mas é evidente que, nasquestões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade dohomem e da humanidade, o princípio maioritário não basta: no processode formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve elamesma procurar os critérios da própria orientação. No século III, ogrande teólogo Orígenes justificou assim a resistência dos cristãos acertos ordenamentos jurídicos em vigor: «Se alguém se encontrasse nopovo de Scizia que tem leis irreligiosas e fosse obrigado a viver nomeio deles, (…) estes agiriam, sem dúvida, de modo muito razoável se,em nome da lei da verdade que precisamente no povo da Scizia éilegalidade, formassem juntamente com outros, que tenham a mesmaopinião, associações mesmo contra o ordenamento em vigor.

Com base nesta convicção, os combatentes da resistência agiram

contra o regime nazista e contra outros regimes totalitários, prestando

assim um serviço ao direito e à humanidade inteira. Para estas pessoas

era evidente de modo incontestável que, na realidade, o direito vigente

era injustiça. Mas, nas decisões de um político democrático, a pergunta

sobre o que corresponda agora à lei da verdade, o que seja

verdadeiramente justo e possa tornar-se lei não é igualmente evidente.

Hoje, de facto, não é de per si evidente aquilo que seja justo e possa

tornar-se direito vigente relativamente às questões antropológicas

fundamentais. À questão de saber como se possa reconhecer aquilo que

verdadeiramente é justo e, deste modo, servir a justiça na legislação,

nunca foi fácil encontrar resposta e hoje, na abundância dos nossos

conhecimentos e das nossas capacidades, uma tal questão tornou-se ainda

muito mais difícil.

Como se reconhece o que é justo? Na história, os ordenamentos

jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa

referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens.

Ao contrário doutras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao

Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento

jurídico derivado duma revelação.

Mas apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do

direito; apelou para a harmonia entre razão objetiva e subjetiva, mas

uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão

criadora de Deus. Deste modo, os teólogos cristãos associaram-se a

um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século

II (a.C.). De facto, na primeira metade do século II pré-cristão, deu-

se um encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos

filósofos estóicos, e autorizados mestres do direito romano.

Neste contato nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e

é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da

humanidade. Desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o

caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento

jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos e depois à

nossa Lei Fundamental alemã, pela qual o nosso povo reconheceu, em

1949, «os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento

de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo».

Foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso

da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o

direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem

colocado da parte da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica válida

para todos a razão e a natureza na sua correlação. Esta opção

realizara-a já São Paulo, quando afirma na Carta aos Romanos: «Quando os

gentios que não têm a Lei [a Torah de Israel], por natureza agem

segundo a Lei, eles (…) são lei para si próprios. Esses mostram que o

que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, como resulta

do testemunho da sua consciência» (Rm 2, 14-15). Aqui aparecem os dois

conceitos fundamentais de natureza e de consciência, sendo aqui a

«consciência» o mesmo que o «coração dócil» de Salomão, a razão aberta

à linguagem do ser.

Deste modo se até à época do Iluminismo, da Declaração dosDireitos Humanos depois da II Guerra Mundial e até à formação da nossaLei Fundamental, a questão acerca dos fundamentos da legislação pareciaesclarecida, no último meio século verificou-se uma dramática mudançada situação. Hoje considera-se a ideia do direito natural uma doutrinacatólica bastante singular, sobre a qual não valeria a pena discutir

fora do âmbito católico, de tal modo que quase se tem vergonha mesmo sóde mencionar o termo.

Queria brevemente indicar como se veio a criar estasituação. Antes de mais nada é fundamental a tese segundo a qualhaveria entre o ser e o dever ser um abismo intransponível: do ser nãopoderia derivar um dever, porque se trataria de dois âmbitosabsolutamente diversos.

A base de tal opinião é a concepção positivista, quase geralmenteadoptada hoje, de natureza. Se se considera a natureza – no dizer deHans Kelsen - «um agregado de dados objetivos, unidos uns aos outroscomo causas e efeitos», então realmente dela não pode derivar qualquerindicação que seja de algum modo de carácter ético (Waldstein, op. cit.,15-21). Uma concepção positivista de natureza, que compreende anatureza de modo puramente funcional, tal como a conhecem as ciênciasnaturais, não pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, massuscitar de novo respostas apenas funcionais. Entretanto o mesmo valepara a razão numa visão positivista, que é considerada por muitos comoa única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável oufalsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito. Por isso,a ética e a religião devem ser atribuídas ao âmbito subjetivo, caindofora do âmbito da razão no sentido estrito do termo. Onde vigora odomínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, ocaso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas deconhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. Esta é umasituação dramática que interessa a todos e sobre a qual é necessário umdebate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção essencialdeste discurso.

(...) Aqui deveria vir em nossa ajuda o património cultural daEuropa. Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criadorque se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdadede todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade dadignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade doshomens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossamemória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria umaamputação da nossa cultura no seu todo e privá-la-ia da suaintegralidade.

A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas eRoma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dosGregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a

identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade dohomem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável dohomem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cujadefesa é nossa tarefa neste momento histórico.

Ao jovem rei Salomão, na hora de assumir o poder, foiconcedido formular um seu pedido. Que sucederia se nos fosse concedidoa nós, legisladores de hoje, fazer um pedido? O que é que pediríamos?Penso que também hoje, em última análise, nada mais poderíamos desejarque um coração dócil, a capacidade de distinguir o bem do mal e, destemodo, estabelecer um direito verdadeiro, servir a justiça e a paz.Agradeço-vos pela vossa atenção!

Texto 2 Bioética

A vida e a dignidade da pessoa humana antes do nascimento – o início da Vida Humana- parte II

DaltonLuiz de Paula Ramos- Porf livre-docente da USP

O fato de que a vida começa com a fecundação é uma certeza para aBiologia. No encontro do óvulo com o espermatozóide, se inicia uma novavida, um novo programa de desenvolvimento. A escolha de outra data parao início da vida é arbitrária e sem sentido biológico.

Alguns argumentam que o embrião não é um ser humano antes de 5 a 7dias, quando então se ligaria ao útero da mãe (nidação) e que sua mortenão seria um aborto, já que ainda não houve ligação ao organismo materno. Mas a nidação é apenas um processo através do qual o embrião passará a receber alimento da mãe.

Nos primeiros dias, enquanto o embrião ainda não se implantou no útero materno, se alimenta daquilo que encontra no óvulo que foi fecundado, enquanto já passa por processos de desenvolvimento que lhe deixarão apto a realizar a nidação, ou seja, o embrião já está ativo. No momento posterior, se implanta para ser alimentado pelo corpo da mulher.

Assim, desde os primeiros momentos esse embrião já é tem umaidentidade própria e já está ativo e se desenvolvendo. Não é uma massade carne amorfa no corpo da mãe, nem é um outro animal qualquer. O queele pode ser? Apenas um ser humano, já distinto, apenas ainda emformação.

Outros dizem que se o embrião implantado ainda pode se dividir emdois, então não temos certeza da sua identidade. Mas o momento dacisão, no caso de gêmeos, não deve modificar a identidade ontológica doser humano. Há um indivíduo que dá origem a um outro indivíduo, sendoque ambos continuam sua existência do início: para o primeiro iniciadacom a fecundação, para o outro qualquer dia depois, até o final de seuprocesso vital. Então temos o dobro das razões para defendê-los porquesão dois embriões.

Outra afirmação sustenta que até os 15 dias ainda não se formaramos sinais daquilo que vai ser o cérebro. Mas sabemos que o cérebro sedesenvolve não por ação da mãe, mas através dos genes que estão dentrodo embrião desde o primeiro momento da fecundação. É possível garantirque ele não sente dor? E, se não sentir, isto justificaria matá-lo?

É possível identificar os movimentos do coração do embrião naprimeira semana de atraso menstrual. Com vinte dias de existência játem o sistema nervoso delineado. Na idade gestacional de sete semanas,ou seja, com o atraso de três semanas da primeira menstruação, já épossível gravar um eletrocardiograma e o embrião já tem movimentos egesticulação espontâneos. Com nove semanas, embora pese três gramas, oembrião já pode ter o seu eletro encefalograma registrado.

Há, ainda, quem diga que dada a grande incidência de abortosespontâneos nas duas primeiras semanas da gravidez não haveria que sefalar em vida neste período! Ora, a interrupção desta vida, isto é, umepisódio de morte quer seja ele prematuro ou tardio não descaracterizao fato que esta vida ocorreu. Seria o mesmo que dizer que não somospessoas humanas porque um dia iremos morrer! Fatalidades ocorremdiariamente na vida das pessoas, seja nas nossas vidas, seja na vidaintra-uterina. Essas fatalidades podem acabar em desventuraspassageiras e remediáveis ou, ainda, irremediáveis, como a morte paratodos nós e o aborto para a o feto. Isso jamais poderia nos desproverda condição de seres vivos e humanos.

Em todos esses argumentos existe uma discussão não a respeito dadistinção da existência do embrião como um ser vivo distinto, pois adistinção entre a identidade materna e a identidade do embrião éuniversal no mundo biológico. O que se discute, ainda queimplicitamente, é se essa vida é “humana”, isso é compartilha de todosos atributos de um indivíduo humano já independente.

O primeiro grupo de argumentos se baseia no pressuposto que essaidentidade só seria “humana” a partir do momento em que se mostrasseclaramente viável, por estar implantado no útero, por ter menoreschances de morrer, por não poder mais se dividir em dois indivíduos,etc. O segundo grupo de argumentos (o desenvolvimento neurológico), jácaracteriza a “humanidade” a partir de sua potência. É humano quem podefazer alguma coisa.

Inicialmente, deve-se notar que esses dois tipos de argumentofogem totalmente da questão biológica. Se perguntarmos para um analista

forense se um material biológico (ossos, restos de sangue ou outrostecidos) é “humano”, ele utilizará, para dar sua resposta, evidênciasde natureza bioquímica ou anatômica, decorrentes de um patrimôniogenético reconhecido como “humano”. Assim, a “humanidade” –biologicamente constituída – é genética e não depende da viabilidade oupotência do organismo.

A questão que temos pela frente é, portanto, de índole ética esocial. Devemos (ou queremos) reconhecer a “humanidade” em um ser quenão tenha sua viabilidade e sua potência garantidas?

É preciso saber por qual motivo, ao longo de nossa história,passou-se a reconhecer o atributo de “humanidade” desde a fecundação,independentemente da viabilidade e da potência que aquele ser viria ademonstrar. Veremos que o problema está na garantia da universalidadeda norma.

Em sociedades tribais e mesmo entre os povos que estão na origemda civilização ocidental, existe freqüentemente a dupla permissão parao aborto e o infanticídio. Essa dupla permissão é uma decorrência óbviado princípio da continuidade da vida. O nascimento, ainda que se tratedo evento por excelência de uma vida, não rompe o processo contínuo davida.

Assim, se era permitido abortar em determinadas condições, tambémé permitido praticar o infanticídio dos recém-nascidos nessas mesmascondições.

Essa, contudo, era a mesma lógica que legitimava a escravidão, adiscriminação sexual e racial, a exclusão política dos pobres, etc. Apessoa só era dotada de direitos quando satisfazia certas condições.

A universalização do conceito de pessoa, o reconhecimento dosdireitos humanos de todos, implica que não existam limites ou condiçõespara que alguém seja pessoa. Isso vale tanto para os nascidos quantopara os ainda não-nascidos.

Por tudo isso, a sociedade até poderá assumir um critério de “humanidade” que se baseie na potencia e viabilidade do organismo, porém não poderá negar que essa opção (1) contraria o dado biológico, que caracteriza o “humano” por seus atributos genéticos e por sua expressão orgânica; (2) traz o perigo do casuísmo e da própria negação da dignidade da pessoa e da universalidade dos direitos humanos.

Texto 3 - Bioética Folha de São Paulo – 16 de fevereiro de 2010

Matadouros

João Pereira Coutinho

Empresa suíça que oferece suicídio assistido choca pela natureza industrial

SOU contra a pena de morte. Não interessa se a pessoa a merece. Ou se a

solicita. Matar é matar. Excluindo casos de autodefesa, que não entram

na categoria, penas capitais são homicídios voluntários.

Ludwig Minelli discorda. Quem é Minelli? Segundo a última edição

da revista americana "The Atlantic", que dedica ao homem artigo notável

e arrepiante, é fundador da polêmica Dignitas, empresa suíça que

permite uma morte eficaz a quem não tem uma vida plena. Ou, no mínimo,

perspectivas de uma vida plena.

Até o momento, foram mil os clientes da Dignitas que entraram pelo

próprio pé e saíram entre quatro tábuas, ou reduzidas a uma urna de

cinzas. Existem 6.000 na lista para limpeza futura. E o sonho de

Minelli, se "sonho" é a palavra certa para aspiração tão macabra, é

poder um dia aplicar o tratamento a qualquer pessoa que o deseje,

doente ou não. Nas palavras de Minelli, o suicídio é "o último direito

humano".

Verdade que a Suíça não está isolada na lista dos países onde o

suicídio assistido é legal. Na Holanda, na Bélgica, no Luxemburgo e em

certos Estados americanos, como em Wa- shington ou Montana, doentes

terminais podem apressar o fim. Mas a Suíça é mais "liberal" na

prática; e a Dignitas é o símbolo dessa liberalidade, aceitando

clientes de todo o mundo que viajam para Zurique em busca de uma saída.

"Turismo suicida", eis o nome do fluxo. Que nome.

O artigo não tece nenhum julgamento sobre as práticas de Minelli.

A lei permite. Cumpra-se a lei. Mas, lendo as descrições do negócio, é

difícil não sentir um arrepio de horror pela espinha abaixo.

O horror começa na natureza "industrial" das matanças. O cliente

chega. É instalado em quarto da empresa. No dia combinado, e na hora

estabelecida, é levado para uma divisão apropriada, onde recebe uma

mistura química que vai neutralizando os seus sinais vitais.

Finalmente morto, o corpo é removido. Conta Minelli que,

antes da Dignitas ter instalações mais apropriadas, longe da vista

comum, o cortejo de corpos provocava indignação entre as vizinhanças

burguesas. Imagino.

Depois de removidos, os corpos são levados para os fornos

crematórios. Onde eu já ouvi isso? Aliás, as ressonâncias do cenário

não ficam pelos fornos. Também se aplicam ao método. Na Suíça, existem

quatro grandes empresas que operam no negócio da morte. E todas elas

usam pentobarbital sódico, uma combinação poderosa que permite uma

morte "limpa" e "indolor".

Infelizmente para Minelli, os médicos não são generosos na

prescrição do pentobarbital, e a maioria desaprova os entusiasmos

mórbidos da Dignitas. Minelli tem procurado outros meios para os mesmos

fins .

Nos últimos tempos, tem gaseado os clientes. O espetáculo, admite

o próprio, não é bonito de ver. Um corpo moribundo, perpassado por

violentos espasmos, nunca é bonito de ver. Mas, garante Minelli, não há

qualquer dor no processo.

Acredito. Mas a dor não é apenas uma questão física; também existe

uma dor moral que parece ausente da consciência do homem. Minelli e

seus cúmplices aproximam-se da morte, e da eliminação física de seres

humanos, com a mesma naturalidade mecânica que podemos observar nos

matadouros.

A lei permite? Sem dúvida. Mas essa espécie de positivismo ético não

nos leva longe: uma história da legislação humana, ao longo dos tempos,

seria sempre uma história de brutalidades abençoadas pelos códigos. O

negócio de Minelli suplanta os códigos e lida com a pergunta última da

nossa condição: seremos apenas meros animais para abate quando a doença

nos visita?

Sobre os temas de bioética leia também (textos de apoio -

moodle):

A questão do aborto

Um cromossomo a mais

Eutanásia e qualidade de vida