Antropologia da religião

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GUERRIERO, S. . Antropologia da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.). Compêndio de ciência da religião. 1ed.São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 243-256 Antropologia da Religião Silas Guerriero A religião sempre esteve presente como tema nos estudos antropológicos. Não existe até os dias atuais uma definição clara do que se compreende por antropologia da religião, a começar pela própria singularidade ou pluralidade da temática em foco. Para uns, não é possível falar em antropologia da religião no singular, pois essa unicidade indicaria a ideia de busca de uma essência da religião. Para outros, essa é uma questão menor. É por antropologia da religião que a disciplina ficou conhecida e não se faz exigência que o tema permaneça no singular ou no plural. No entanto, essa questão já aponta para um debate bastante sério que diz respeito ao objeto próprio. Afinal, qual o conceito de religião que se está utilizando? A antropologia se caracteriza pelo estudo do outro, do contato com a alteridade. Parceira da sociologia, insere-se no campo das disciplinas auxiliares da ciência da religião no que tange à dimensão sociocultural do fenômeno religioso. Os estudos de religião e especificamente a ciência da religião utilizam-se dessas disciplinas como instrumentos de compreensão de um dos componentes fundamentais da religião, sua conotação social e cultural. Afinal, não há religião que não esteja inserida numa sociedade e num ambiente simbólico e cultural. Além do mais, não há sociedade ou cultura que não apresente algum tipo de sistema de crenças religiosas. Para a ciência da religião, o fenômeno religioso não se limita aos aspectos sociais e culturais, mas existe uma compreensão que sem lhes dedicar um olhar apurado não será possível obter um entendimento global do fenômeno. No interior da antropologia o estudo da religião constitui uma temática em si, comparável a outras em importância como a do parentesco ou a das estruturas sociais, abrangendo uma complexidade no interior das suas próprias fronteiras. Essa complexidade, para a antropologia, se refere ao conjunto da dimensão social dos agrupamentos humanos ou ainda à complexidade da espécie humana, sendo a religião um dos componentes constituidores de ambas. Nesse sentido, a antropologia dá as costas à ciência da religião, prescindindo desta. Não se trata de definir qual delas é dependente e qual é matriz. O que nos importa reter é que a antropologia auxilia a ciência da religião no que se refere à discussão dos aspectos simbólicos que envolvem o fazer religião no interior das sociedades humanas. Tem por excelência o estudo de elementos básicos das religiões como o ritual, a mitologia e o sistema de crenças em geral.

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GUERRIERO, S. . Antropologia da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.). Compêndio de ciência da religião. 1ed.São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 243-256

Antropologia da Religião

Silas Guerriero

A religião sempre esteve presente como tema nos estudos antropológicos. Não

existe até os dias atuais uma definição clara do que se compreende por antropologia da

religião, a começar pela própria singularidade ou pluralidade da temática em foco. Para uns,

não é possível falar em antropologia da religião no singular, pois essa unicidade indicaria a

ideia de busca de uma essência da religião. Para outros, essa é uma questão menor. É por

antropologia da religião que a disciplina ficou conhecida e não se faz exigência que o tema

permaneça no singular ou no plural. No entanto, essa questão já aponta para um debate

bastante sério que diz respeito ao objeto próprio. Afinal, qual o conceito de religião que se

está utilizando?

A antropologia se caracteriza pelo estudo do outro, do contato com a alteridade.

Parceira da sociologia, insere-se no campo das disciplinas auxiliares da ciência da religião

no que tange à dimensão sociocultural do fenômeno religioso. Os estudos de religião e

especificamente a ciência da religião utilizam-se dessas disciplinas como instrumentos de

compreensão de um dos componentes fundamentais da religião, sua conotação social e

cultural. Afinal, não há religião que não esteja inserida numa sociedade e num ambiente

simbólico e cultural. Além do mais, não há sociedade ou cultura que não apresente algum

tipo de sistema de crenças religiosas. Para a ciência da religião, o fenômeno religioso não se

limita aos aspectos sociais e culturais, mas existe uma compreensão que sem lhes dedicar

um olhar apurado não será possível obter um entendimento global do fenômeno. No interior

da antropologia o estudo da religião constitui uma temática em si, comparável a outras em

importância como a do parentesco ou a das estruturas sociais, abrangendo uma

complexidade no interior das suas próprias fronteiras. Essa complexidade, para a

antropologia, se refere ao conjunto da dimensão social dos agrupamentos humanos ou ainda

à complexidade da espécie humana, sendo a religião um dos componentes constituidores de

ambas. Nesse sentido, a antropologia dá as costas à ciência da religião, prescindindo desta.

Não se trata de definir qual delas é dependente e qual é matriz. O que nos importa reter é

que a antropologia auxilia a ciência da religião no que se refere à discussão dos aspectos

simbólicos que envolvem o fazer religião no interior das sociedades humanas. Tem por

excelência o estudo de elementos básicos das religiões como o ritual, a mitologia e o

sistema de crenças em geral.

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As origens da antropologia da religião

Em suas origens, a preocupação da antropologia com a religião, ou algo que naquele

momento não se denominava religião, mas se aproximava do campo dos sistemas de

crenças, não era tão nobre assim. A antropologia nasceu como fruto da exigência de

compreensão sobre o outro, aquele que não era ocidental. À medida que a sociedade

europeia avançava por sobre os outros povos e por outros continentes, houve a necessidade

de compreender quem era aquele outro, que naquele momento já era visto como um ser

humano, mas que em nada se assemelhava a um civilizado. Fruto do processo colonialista,

a antropologia representou o esforço de empreendimento de um olhar científico sobre os

outros povos. A grande indagação que moveu, e ainda move, a nascente ciência era a de

compreender a imensa diversidade humana apesar da unidade biológica da espécie humana.

Esse outro, seja ele um aborígene da Oceania, um negro do interior da África ou um índio

da Amazônia, tinha de ser compreendido como um ser humano, dotado das mesmas

condições que caracterizavam toda a espécie. Para alguns pais fundadores dessa ciência, o

que mais chamava a atenção na comparação desses outros com o europeu branco, cristão e

civilizado, era o fato de haver um enorme fosso no universo de compreensão e visão do

mundo e nos hábitos um tanto exóticos daqueles nativos. Não se reconhecia nessas crenças

uma verdadeira religião. Religião, afinal, seriam somente as monoteístas, reveladas e

denominadas religiões do livro. No máximo poderiam ser incluídas as grandes tradições do

Oriente, como as religiões da Índia, da China e do Japão. Os povos tidos como primitivos

eram detentores, dizia-se, de uma mentalidade primitiva, que enxergava feitiçarias e

animismos em todos os cantos.

O estudo dessas crenças ditas primitivas entrou na antropologia como forma de

diferenciação em relação ao modo de pensar considerado evoluído e civilizado e não como

uma temática eleita com distinção. A antropologia da religião não nasceu como área

específica, mas por vias paralelas como um esforço de compreensão das diferenças entre os

povos. Pensar o diferente passava por pensar as diferentes mentalidades, fossem essas tidas

por animista, mágica, mítica ou até pré-lógica.

Dois dos mais eminentes fundadores da antropologia reservaram lugar especial à

religião em suas análises. A preocupação de fundo de ambos era, justamente, perceber

como esses povos primitivos podiam pensar de modo tão distante da maneira dos

ocidentais. Tratava-se de perceber a espécie humana por meio de uma unidade psíquica que

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ligaria o primitivo ao civilizado. O que os distinguiria seria justamente o estágio de

desenvolvimento das ideias. Enquanto uns pensavam ainda de maneira animista ou mágica,

outros já teriam alcançado um estágio superior de desenvolvimento e de compreensão da

realidade, sabendo separar a ciência, voltada às coisas materiais, da religião, voltada à

dimensão da relação com o criador e a verdade última. Para Edward Tylor (1832-1917) o

animismo seria universal e o primeiro estágio do processo evolutivo daquilo que viria a se

tornar a religião.1 Embora sem a crença em deuses, o primitivo atribuía os fenômenos

naturais à intervenção de espíritos benevolentes ou malévolos. Para o animismo, o mundo

estaria povoado por seres que habitam os objetos, as plantas, os animais e os homens. As

experiências da doença, da morte e, sobretudo, dos sonhos, estariam nas origens da noção

de alma. Isso levaria o primitivo a imaginar que existe um ser, dotado de uma substância

espiritual, que estaria além do corpo físico. Com a evolução das culturas, o animismo daria

lugar ao politeísmo e depois ao monoteísmo. É famosa a definição de religião elaborada por

Tylor. Para esse britânico pioneiro, religião é a crença em seres sobrenaturais ou

espiritualizados. Para ele, num gradiente evolutivo haveria desde a crença animista até a

formulação mais sofisticada do divino. Essa definição básica de religião foi muito criticada,

desde as formulações de Durkheim2 até as de muitos antropólogos atuais. No entanto, não

são poucos os que retomam constantemente essa proposição básica, embora certamente

reformulada e sem as conotações de cunho evolucionista que a original de Tylor carrega,

como é o caso da posição das ciências cognitivas, que prefere substituir a noção de seres

espirituais por agentes sobre-humanos.

James George Frazer, outro dos grandes heróis civilizadores da antropologia, afirma

ser a magia uma forma primitiva de ciência, mas que fracassou pela sua precocidade. Esse

fracasso da magia em atingir os resultados materiais esperados leva o primitivo a

desenvolver a religião. Frazer estabelece uma sequência evolutiva que vai da magia, passa

pela religião e atinge o ápice na ciência moderna.3 Ele percebe a superstição como um

desvio intelectual que desvirtuava o pensamento lógico. Frazer vê no feiticeiro alguém que

acreditava compreender as leis que regem o mundo e assim controlar os fenômenos da

natureza. Da mesma forma que a ciência, a magia também trabalha a partir da associação de

ideias, numa relação causa e efeito. Se para Frazer a magia utiliza de maneira errônea o

princípio de associação de ideias, pode então ser considerada como uma falsa ciência. Para

ele, a magia é a primeira forma de pensamento humano. O primitivo procura controlar, por

1 Cf. E. Tylor, Primitive culture. 2 Cf. E. Durkheim, As formas elementares da vida religiosa. 3 Cf. J.G. Frazer, O ramo de ouro.

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seus próprios meios, as forças da natureza. Após perceber que não consegue utilizar essas

forças, abandona a magia para se dedicar à adoração de seres divinizados e superiores.

Passa, assim, a uma etapa mais evoluída que, por meio da prece e do sacrifício em nome

desses deuses, procura o caminho da salvação. Este seria o momento da religião para

Frazer. Quando, enfim, percebe os limites da religião, o ser humano volta para o princípio

da causalidade, mas dessa vez não mais de maneira mágica, mas sim experimental e

científica. Desta forma, atinge o grau mais evoluído, ou seja, a moderna ciência da

civilização ocidental. Frazer exerceu papel fundamental na legitimidade dos estudos de

religião. Sua influência não se limitou ao meio acadêmico, mas teve forte impacto também

entre os religiosos e na população em geral. Enfatizou a erudição e o estudo comparativo de

civilizações antigas e trouxe para um público mais amplo o gosto pela busca das origens da

religião.

Nesses dois casos vemos que a religião, ou mesmo a magia, ganha espaço não como

uma temática central, mas como instrumento de compreensão das formas mais primitivas e

arcaicas da humanidade. A preocupação com as origens gerou muita especulação sobre qual

teria sido a primeira religião da humanidade. Várias foram as escolhidas. Falou-se em

fetichismo, baseado em feitiçarias, ou ainda em animismo ou o totemismo, visto que o culto

ao totem, ou ancestral, assemelhava-se a um culto aos deuses. Embora essas teses tenham

sido há muito tempo refutadas pela antropologia, permaneceram impregnadas no senso

comum e no imaginário da nossa sociedade. De certa maneira influenciaram nossos

modelos de pensamento sobre a religião dos outros.

Esse alvorecer da ciência do antropos não foi o de uma antropologia da religião de

forma exclusiva. Tanto Frazer como Tylor, assim como outros daquela época e das

seguintes, preocuparam-se com vários outros elementos das sociedades estudadas. Para

muitos antropólogos não se pode falar numa antropologia da religião propriamente dita,

pois a antropologia se ocupa de várias temáticas. O que caracterizaria essa ciência seria o

estudo da espécie humana em geral ou daquilo que ela carrega de especificidade, ou seja, a

própria diversidade de comportamentos. Em última instância, não se poderia separar a

antropologia da religião (ou das religiões) de outras antropologias, uma vez que essa

ciência tem por pressuposto o estudo da cultura na sua totalidade, envolvendo aí aspectos

materiais, práticas, regras, costumes, economia, política e também crenças, mitos, ritos e,

por assim dizer, religião. O estudo do universo religioso de um povo é justificado pelo que

pode contribuir para a compreensão dessa cultura como um todo.

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A originalidade do olhar antropológico sobre as religiões

Vários especialistas de diferentes áreas estudam, escrevem e falam sobre religião.

Qual seria, portanto, a originalidade da abordagem antropológica sobre todas as demais?

Costuma-se afirmar que o que caracteriza a antropologia não é seu objeto de estudo, a

cultura ou as práticas e valores, mas uma maneira particular de olhar sobre as coisas

humanas. Independentemente da abrangência do olhar antropológico, e aqui podemos

incluir as mais diferentes aproximações, temos de levar em conta que se trata de uma

disciplina teoricamente orientada. Ao longo de sua história a antropologia construiu

diferentes teorias que com rigor acadêmico permitiram olhar para o fenômeno religioso de

maneira bastante acurada. Essas diferentes teorias contribuíram, de maneira significativa,

para uma melhor compreensão da religião, cada uma delas tomando significativo cuidado

com os termos e conceitos utilizados.4 Mas a distinção mais significativa fica por conta dos

métodos de estudo e dos tipos de religiões que foram sendo estudadas e que acabaram

contribuindo para a construção das teorias apontadas. O trabalho de campo, a busca do

“ponto de vista do nativo”, o olhar relativizador e o distanciamento são elementos

essenciais desses métodos. Para uma antropologia que não segue mais os pressupostos

evolucionistas preconizados pelos iniciadores, não existe uma religião mais verdadeira que

outra. Nesse sentido, é o olhar do antropólogo que permite penetrar nas redes de

significados das diferentes culturas e perceber os sentidos intrínsecos que cada sistema

religioso possui.

Não é fácil apagar a herança evolucionista. Permanece até hoje, sem seu cunho

etnocêntrico, quando busca explicações mais amplas, genéricas, a partir de grandes

comparações, sem se ater a particularidades muito específicas. Da busca de uma origem da

religião permanece a dívida da procura, num amplo sentido, por uma essência ou natureza

da religião. A negação dessas origens, por sua vez, trouxe a ênfase nos particularismos, nas

negações das grandes comparações e também na busca das funções dos elementos culturais

olhados numa totalidade circunscrita do grupo estudado. Esse olhar só poderia ser o das

particularidades empíricas. Na antropologia da religião, como preferem os que tendem a

pensar numa natureza religiosa do ser humano, ou na antropologia das religiões, para

aqueles em que só é possível enxergar os aspectos empíricos ou as particularidades,

qualquer teorização mais geral só ocorre a partir de infindáveis casos concretos. De acordo

4 R. Winzeler, Anthropology and religion, p. 13.

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com Obadia, existem alguns postulados de base que servem a todos.5 Trata-se de um

empirismo que rompe com qualquer perspectiva fenomenológica, não no que ela pode

trazer de reflexões para a análise (com foco nas formas observáveis de religião), mas com o

objetivo empreendido de busca de uma essência, suprassocial. Olhar para as outras culturas,

diferentes da ocidental, força um olhar que nega uma universalidade do religioso

identificada nos monoteísmos largamente conhecidos. Cada forma nova e diferente de

sistema religioso que a antropologia foi desvendando foi estabelecendo a certeza que não se

poderia mais pensar num sagrado para além das constituições históricas e nem mesmo para

um continuum entre formas primitivas e civilizadas de religião. A religião do outro ganhou

reconhecimento e valor. A magia, as feitiçarias em geral, os mitos e tudo que envolve

qualquer sistema de crenças passaram a ser vistos no valor que trazem em si mesmos.

Essa nova perspectiva está muito longe de uma antropologia religiosa. Não existe

uma preocupação com a veracidade daquilo que é preconizado pelas religiões ou qualquer

sistema de crenças. Em última instância isso significa dizer que não parte, como método de

análise, do pressuposto da existência de uma essência do sagrado ou de uma divindade.

Essa é uma questão que não cabe aos antropólogos. É famosa a colocação de Evans-

Pritchard de que não se trata do antropólogo ter ou não uma religião, pois esse não está

preocupado com a verdade ou falsidade do pensamento religioso uma vez que as crenças

são fatos sociais.6 O que importa para a antropologia da religião são os significados

subjacentes aos sistemas de crenças religiosas de um ou mais grupos sociais. Acrescenta-se,

ainda, a preocupação com os hábitos, práticas e costumes desses mesmos grupos advindos

desses sistemas. Para Radcliffe-Brown7, a função social da religião é independente da sua

verdade ou falsidade. Todas as religiões, por mais excêntricas que possam parecer,

desempenham papéis importantes no mecanismo social. Esse autor, assim como outros da

primeira metade do século XX que buscaram inspiração a partir das ideias de Durkheim,

como Marcel Mauss, Malinowski e Evans-Pritchard, romperam com o modelo explicativo

dos evolucionistas, que viam a religião reduzida aos mecanismos mentais (falsos), e

buscaram fundamentar suas análises a partir de um consistente conjunto de dados

empíricos. O contato com o outro, com suas maneiras particulares de se comportar e de

crer, possibilitado pelo imprescindível trabalho de campo, deslocou a preocupação sobre as

origens da religião para o campo das funções sociais. Nesse processo abandonou-se a busca

de uma teorização geral sobre a unidade psíquica humana e focou-se nos pormenores da

5 L. Obadia, Antropologia das religiões, p. 30. 6 E. Evans-Pritchard, A religião e os antropólogos. 7 Cf. A.R. Radcliffe-Brown, Estrutura e função na sociedade primitiva.

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vida religiosa de um determinado povo. A grande contribuição para os estudos de religião

foi, sem dúvida, o reconhecimento de valor desses universos religiosos que deixaram de ser

vistos como vestígios de um passado para se tornarem atuais e alternativos aos modelos

então considerados únicos, como o monoteísmo cristão. Houve uma ampliação conceitual

sobre a religião. Malinowski e Evans-Prtichard contribuíram, sobremaneira, para uma

compreensão das racionalidades do pensamento mágico e religioso. Ambos, cada um a seu

modo, reconheceram que o pensamento mágico é também dotado de uma lógica e que o

indígena tem consciência da distinção entre o racional e o não-racional. Religião e magia

deixaram de ser categorizadas como heranças de uma situação pré-lógica, ilógica ou

irracional. Importante ressaltar aqui que embora tenham características distintas quanto à

finalidade e modo de operação, religião e magia passaram a ser vistas pelos antropólogos

como elementos de um mesmo sistema mais amplo de crenças. A própria separação entre

religião e magia, tão claramente definida por Durkheim8, deixa de ser tranquila, pois há

vários sistemas mágicos em torno de comunidades semelhantes a que chamou de igreja,

assim como há muito de magia nas religiões fortemente institucionalizadas. As duas

dimensões se interpenetram e são tratadas como um todo.

Também herdeiro dessa perspectiva funcionalista, porém com características

bastante peculiares e com forte tom intelectualista, surge o pensamento estrutural de Claude

Lévi-Strauss. Embora não haja em sua obra uma explicitação da religião em si, este autor

desenvolveu um extenso estudo sobre as mitologias e sobre o pensamento dito selvagem ou

pensamento mágico.9 A religião tem interesse na medida em que espelha as estruturas

inconscientes da mente humana. Estas sim que serão sua preocupação central. De certa

maneira retoma uma preocupação das origens da antropologia, pois estava em busca das

invariáveis universais de pensamento presentes em toda a espécie. Para ele, o pensamento

humano trabalha e sempre trabalhou conforme o mesmo princípio. Embora o contexto

histórico marque os contornos de cada cultura, há um substrato comum que permanece

sempre o mesmo. Em seu artigo “A ciência do concreto”, Lévi-Strauss defende que o

selvagem elabora seu conhecimento a partir das mesmas regras que o civilizado. No

entanto, enquanto a ciência moderna ocidental se faz a partir de abstrações, a ciência das

sociedades tradicionais ou do selvagem, como ele prefere chamar, se faz a partir de

classificações do mundo concreto. Mas nesse sentido não haveria uma distinção valorativa

entre a magia e a ciência.

8 E. Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 32. 9 Cf. C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem.

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Pelo que foi tratado até este momento, a maneira pela qual a antropologia retratou a

religião trouxe implicações para a própria concepção sobre o outro, aquele que é diferente,

mas ao mesmo tempo semelhante por ser também um ser humano. Ampliou a noção de

humanidade e do reconhecimento de que as diferenças religiosas, tão caras uma vez em que

podem separar povos e provocar conflitos bélicos, são frutos das vivências sociais e de

como os diferentes povos constituíram, ao longo da história, suas trajetórias e visões de

mundo. A constatação antropológica da não existência de povos ou culturas que prescindam

da religião teve várias consequências. Essa universalidade da religião, que para um crente

religioso pode ser atribuída à comprovação da existência do sagrado, para a antropologia

trouxe mais indagações que certezas. Trata-se de uma natureza religiosa humana ou de uma

origem religiosa da cultura e das sociedades humanas? Émile Durkheim, em sua famosa

obra As formas elementares da vida religiosa10

, afirma que a natureza religiosa do ser

humano é um aspecto essencial e permanente da humanidade. Entretanto, Durkheim diz ser

a religião um constructo das sociedades, numa evidente redução do religioso a um fato

social. Mas mesmo em suas épocas iniciais nunca houve um consenso sobre a definição de

religião e sobre os métodos de análise que poderiam ser empregados em seus estudos.

Portanto, há aqui uma questão conceitual. Longe de demonstrar fraqueza teórica, essa

diversidade evidencia uma riqueza e um eterno questionamento que fez com que essa

ciência avançasse e renovasse a si mesma na busca de uma melhor compreensão da religião

e do ser humano em geral.

A definição de religião

As teorias antropológicas de religião podem ser percebidas divididas entre aquelas

que enfatizam os aspectos simbólicos, as que se preocupam principalmente com as práticas

e aquelas que priorizam as estruturas sociais. No entanto, mesmo para aqueles de cunho

mais intelectualista, como Lévi-Strauss, há o reconhecimento de um empirismo como

negação da busca de uma essência para o religioso.

A universalidade do religioso insere-se, assim, na escolha do conceito utilizado.

Uma acepção clássica de religião, como aquela utilizada nos primórdios da antropologia

incorreria no risco da impossibilidade de transpor o conceito para além do Ocidente e dos

monoteísmos. O reconhecimento de que a palavra religião guarda fortes aspectos políticos e

ideológicos, por se tratar de uma concepção ocidental colocada a força por sobre outros

10 E. Durkheim, As formas elementares da vida religiosa.

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povos, levou alguns a uma rejeição pura e simples do conceito, embora isso não resolvesse

a questão. Portanto, longe de rejeitar o conceito, ou negar sua existência, deve-se

reconhecer que é preciso sempre levar em consideração o que se entende por religião.

Lionel Obadia chama a atenção para o fato de que os antropólogos acabaram

seguindo basicamente duas grandes definições de religião.11

Por um lado o conceito

original de Tylor, já apontado anteriormente, e por outro o de Durkheim. Para o primeiro, a

ênfase do religioso, ou o que torna um ato ou uma ideia religiosa, é o fato de se reconhecer

a presença de seres espirituais ou sobrenaturais. Para Durkheim, é a ideia de sagrado, em

oposição à de profano, que evidencia o religioso. Essas duas grandes acepções do religioso

evidenciam a complexidade do fato e as dificuldades em se tentar reduzir num único

parâmetro algo tão abrangente. Embora Tylor tenha influenciado alguns antropólogos de

língua anglo-saxônica, é a posição de Durkheim que vai estar mais presente nos estudos

antropológicos no que tange à ideia de religião como construção social. Essa vertente

acabou sofrendo inúmeros acréscimos e modificações, inclusive na ampliação do conceito

de maneira a abarcar a noção de representação coletiva, também pelas mãos de Durkheim,

mas que com Marcel Mauss ganhou bastante consistência. É desse último a definição de

religião como conjunto de crenças e ritos, discursos e atos, definição essa bastante

abrangente e inclusiva, mas que permite delinear os contornos de um sistema religioso ou

outro sem reduzi-los a um lugar comum.

Afastando-se de uma perspectiva funcional, seja ela das funções sociais ou das

psicológicas, o norte americano Clifford Geertz abre uma nova via para compreensão

antropológica da religião. Em seu estudo ainda dos anos 1960 estabelece uma definição de

religião tida como clássica nos dias atuais. Religião para ele é um sistema de símbolos e a

possibilidade de estudo se dá por uma via hermenêutica e semiótica. Procura focar no que a

religião representa para seus atores e como ela estabelece a nossa própria noção de

realidade. Para este autor, religião é

um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras

disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de

existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições

e motivações pareçam singularmente realistas.12

Essa noção parece bastante útil. Não fala de sobrenaturalidade ou divindade, muito

menos em sagrado, podendo ser, dependendo do que se busca compreender, bastante

11 L. Obadia, Antropologia das religiões, p. 31. 12 C. Geertz, Religião como sistema cultural, pp. 104-105.

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conveniente. Pode-se perceber que ela serve tanto para religião como para as

espiritualidades difusas. Geertz atribui o poder da religião ao fato desse sistema simbólico

realizar a junção entre o ethos, a maneira de ser e de sentir de um determinado grupo, com a

visão de mundo, a formulação da ordem geral das coisas elaborada por esse mesmo grupo.

A junção dessas duas dimensões tem o poder de formular uma imagem geral da estrutura

do mundo e um programa de conduta humana em que um e outro se reforçam mutuamente.

Hanegraaff estabelece uma revisão crítica do conceito elaborado por Geertz de

maneira a poder analisar aquilo que chamou de religião secular. Amplia enormemente a

noção de religião. Sem fugir do dilema imposto pelos próprios antropólogos de se discutir

religião em termos amplos, procura abarcar tanto a dimensão singular (religião) como a

plural (religiões). Para esse antropólogo holandês, religião (aqui entendida como religião no

singular) é qualquer sistema simbólico que influencia as ações humanas pela oferta de

formas ritualizadas de contato entre o mundo cotidiano e um quadro metaempírico mais

geral de significados13.

Essa formulação responde, segundo o autor, pela noção de religião em geral, mas

ela deve ser desdobrada para podermos enxergar as formas que efetivamente se manifestam

socialmente. Para tanto, ele se utiliza de duas subcategorias: a de religiões (no plural) e a de

espiritualidades. A diferença entre essas subcategorias da classe geral e mais ampla de

religião está no fato de que nas religiões o sistema simbólico é representado por alguma

instituição social. Assim, religião necessita inevitavelmente de um grupo articulado em

torno de um conjunto de mitos, com hierarquia e papéis definidos, e de uma doutrina que

manifeste ou demonstre um conhecimento sistematizado. Ao mesmo tempo, essa definição

permite englobar sistemas de crença que não tratam explicitamente de aspectos

sobrenaturais, de seres espirituais ou de distinção entre sagrado e profano. Essa ampliação

conceitual é que permite compreender uma série de novas manifestações espiritualizadas da

nossa sociedade, como a Nova Era, e que não são englobadas pelos conceitos mais

tradicionais de religião.

Tal discussão remete à questão do que é ou não é religioso. Uma vez que a

antropologia não parte de um pressuposto da existência de uma manifestação de um

sagrado, que responderia pela substância religiosa de um objeto, de um ato ou de uma ideia,

é preciso procurar esses fundamentos em outros terrenos. A definição de Hanegraaff tem

esse atributo.

13 W. Hanegraaff, The pragmatics of defining religion, p. 371.

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É nessa direção que vem uma das críticas mais contundentes da definição de

religião nos dias atuais. Talal Asad afirma que não é possível separar os símbolos religiosos

daqueles que não são.14

É preciso, no entender desse antropólogo, ir a fundo ao contexto

histórico em que se constituíram e se autorizaram esses símbolos religiosos. Asad parte de

uma perspectiva que vem ganhando notoriedade nos estudos antropológicos, a de uma

antropologia pós-colonialista. Essa disciplina deixa de ser uma construção de um olhar do

ocidental sobre os demais povos, mesmo que relativizada e antietnocêntrica. Quem fala,

agora, são os próprios “nativos”, como é o caso do próprio Talal Asad, saudita de

nascimento e criado no Paquistão, filho de pai judeu convertido ao islamismo. A questão

básica gira em torno da impossibilidade de uma tradução. Qualquer costume ou ideia fora

de contexto, traduzido, perde em poder explicativo e corre o risco de ser utilizado como

forma de dominação por quem o traduz. Esse é o caso da noção de religião. Fiona Bowie

acrescenta que é preciso sempre ter em mente que a construção da categoria “religião” se

baseou em línguas e costumes europeus.15

Em grande parte das línguas nativas não há

palavras para definir o que os ocidentais entendem, ou pensam entender, por religião. O

enquadramento a um significado preestabelecido é imediato. A perspectiva de quem

escreve a história é fundamental nesse aspecto. Por que aqueles que não eram ocidentais

foram obrigados a ler a história ocidental e o contrário não aconteceu? Para Asad, o fato

está em que os nativos são vistos como “locais” enquanto que os cristãos são “universais”.

Essa concepção de universalidade acaba, mesmo inconscientemente, justificando a

sobreposição do mundo e dos valores ocidentais por sobre os demais povos.16

Asad procura examinar os caminhos pelos quais a busca teórica por uma essência da

religião, trans-histórica, convidou a separar a religião da política. Faz isso por meio de uma

análise da definição de Geertz. Seu argumento é que não pode haver uma definição

universal de religião, não apenas porque seus elementos constitutivos e suas relações são

historicamente específicos, mas porque essa definição é ela mesma um produto histórico do

processo discursivo17

.

Para outros críticos, por se tratar de um conceito ocidental que guarda origem na

expansão da sociedade ocidental capitalista, servindo muitas vezes como forma de

dominação, o termo deveria ser simplesmente abandonado.18

Não poderia ser uma categoria

14

Cf. T. Asad, Genealogies of religion. 15

F. Bowie, The anthropology of religion, p. 19. 16 T. Asad, Genealogies of religion, p. 8. 17 Ibidem, p. 29. 18 T. Fitzgerald, The Ideology of Religious Studies.

GUERRIERO, S. . Antropologia da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.). Compêndio de ciência da religião. 1ed.São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 243-256

analítica porque não trata de algo transcultural. O argumento central é a da inexistência da

religião como fenômeno universal.

Longe de haver qualquer possibilidade de consenso, a diversidade conceitual sobre

religião demonstra a própria diversidade metodológica da ciência do antropos. É preciso

reconhecer que nessa caminhada a antropologia muito tem contribuído para a ampliação

dos horizontes sobre o que é religião e, especificamente, sobre as diferentes maneiras de

compreensão da realidade praticada pelos diferentes povos. Como numa via de mão dupla,

a antropologia elabora um esforço para compreender o universo religioso do outro, mas as

populações em geral também se utilizam dessa produção intelectual para olharem para si

mesmas e se posicionarem frente às diferenças, no eterno jogo das alteridades. Com o

conceito de religião tem sido assim. Com a antropologia a sociedade aprendeu a olhar

sempre de maneira mais crítica para aquilo que tenderia a ser visto como algo

absolutamente natural e, em geral, menosprezando todos aqueles que ousam pensar de

maneira diferente. Nesse movimento, a religião do outro deixa de ser mera superstição e

passa a ser vista como uma maneira alternativa de compreender e se situar no mundo.

Ao longo desse século e meio de ciência antropológica, a religião ganhou não

necessariamente contornos mais definidos, mas visibilidade no seio das sociedades

humanas. Pela própria trajetória do conceito pode-se perceber que está muito longe de se

obter uma posição definitiva, ressaltando que isso não seria nada salutar. Mas, por outro

lado, houve muito avanço na compreensão dos mecanismos e simbolismos que envolvem o

universo religioso, aumentando a amplitude e a profundidade nas análises. Todo esse

avanço trouxe para a ciência da religião o elemento fundamental da constituição simbólica

e social da religião. Com ele tornou-se possível um incremento nos estudos sobre múltiplas

manifestações religiosas presentes nas mais diferentes sociedades.

Mitos, rituais, símbolos e crenças

O estudo antropológico das religiões não se limitou à busca de uma definição mais

precisa do conceito religioso. Muitas propriedades das religiões particulares que foram

sendo estudadas ganharam um estatuto de objeto de estudo particular e constituíram

campos autônomos de análises. Dentre esses podemos destacar as crenças, os rituais, os

mitos e os símbolos.

O estudo das crenças não se restringe necessariamente ao campo da antropologia da

religião. Pode-se compreender que as crenças dizem respeito a um universo muito mais

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amplo que vai além daquilo que poderíamos chamar de crenças religiosas, ou crenças

sagradas. No entanto, em que pesem as críticas feitas à noção de crença, semelhantes às

empreendidas ao conceito de religião, as crenças religiosas compõem um dos objetos

verificáveis da antropologia da religião. Como um fenômeno mental, a crença foi

considerada um objeto próprio da psicologia, mas se pensado em termos de sua

materialidade, na encarnação em objetos específicos, as crenças ganham contornos

específicos e são tratados de maneira especial pela antropologia. Nesse aspecto, não há

necessário vínculo com a categoria “fé”, essa sim de cunho religioso. As crenças, para a

antropologia, ganharam destaque na medida em que foram sendo estudadas em suas

especificidades. Cada cultura possui, assim, um conjunto de elementos em que seus

integrantes creem fazer parte do mundo e que termina por moldar os contornos da realidade

mais ampla. No estudo clássico sobre a magia do feiticeiro, Lévi-Strauss afirma que o

aprendiz de feiticeiro que ambicionava desmascarar os truques realizados pelos xamãs

tornou-se ele próprio um grande xamã não pela sua convicção particular, mas pela crença

coletiva e confiança depositada pelo grupo.19

Da mesma forma, no estudo sobre os Azande,

Evans-Pritchard percebe que os nativos têm plena consciência de que as doenças podem ser

tratadas com remédios, visto que têm um vasto conhecimento sobre ervas e plantas

medicinais, mas é inconcebível não reconhecer que há obra de bruxaria ou feitiçaria em

todos os casos em que alguém fica acamado.20

Essas crenças compõem a materialidade do

mundo dos Azande.

Talvez uma das mais fortes contribuições da antropologia para o estudo da religião

se dê no fato dela ter dirigido especial atenção para a pesquisa de sistemas simbólicos.21

Considerar a cultura humana como fruto da capacidade de simbolização é apenas ponto de

partida. A grande contribuição se dá porque compreende o universo simbólico como

elemento fundamental das comunicações e das trocas. Percebe-se então o papel

fundamental de Lévi-Strauss que não apenas delineou o funcionamento da magia através da

eficácia simbólica, como trouxe enormes contribuições no campo das trocas simbólicas.

Mary Douglas elaborou uma teoria sobre a naturalidade dos símbolos, ao menos como eles

passam a ser manifestações previsíveis.22

Focada na dimensão do simbolismo da

experiência corporal, Douglas enfatizou o ritual como um sinônimo de símbolo. O efeito do

rito se liga à modificação da experiência. Experiências díspares ganham sentido quando

19

C. Lévi-Strauus, O feiticeiro e sua magia. 20 E. Evans-Pritchard, Bruxarias, oráculos e magia entre os Azande. 21 K. Hock, Introdução à ciência da religião, p. 157. 22 Cf. M. Douglas, Natural symbols.

GUERRIERO, S. . Antropologia da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.). Compêndio de ciência da religião. 1ed.São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 243-256

vivenciadas num quadro de estruturas simbólicas. Para ela, o ritual consiste essencialmente

em uma forma de comunicação. Clifford Geertz, como afirmado anteriormente, elegeu os

sistemas simbólicos de uma cultura como centro de suas análises, como o religioso, o

político, o científico e outros. A análise antropológica dos símbolos procura descobrir os

sistemas de significado subjacentes, num esforço interpretativo empreendido pelo

pesquisador.

Para a antropologia, a simbolização reflete a maneira como os símbolos religiosos

se constituem, se fixam e se transmitem na história e nas sociedades humanas. Ela se

diferencia de outras abordagens sobre os símbolos tanto as que possam vir da psicanálise

quanto as de uma concepção que parta do princípio que os símbolos têm um significado

fixo, inerente a eles mesmos, em todas as religiões e culturas.

Por fim, destacam-se ainda mito e ritual. Esses dois elementos da religião

constituíram campos de dimensões abissais nos estudos antropológicos. Muitas vezes vistos

como inseparáveis, pois um lida com o aspecto do imaginário e das mentalidades enquanto

o outro trata do universo das práticas, há quem veja uma supremacia do ritual sobre o mito,

como Jack Goody23

ou Victor Turner24

. Outros, como Lévi-Strauss, se preocuparam com o

estudo do mito, deixando o ritual praticamente de lado.

O rito é um elemento essencial da vida religiosa. São tipos especiais de eventos,

mais formalizados e estereotipados. Ritual é sempre comunicação. São formas que os

próprios membros de um grupo encontram de dizer a eles mesmos quem eles são25

, mas,

mais que isso, é uma maneira evidente de comunicação entre o mundo dos humanos e o

mundo dos deuses. O ritual tem o poder de instaurar uma condição social, reforçando os

vínculos entre os indivíduos e estabelecendo os papéis sociais de cada um. É importante

perceber que existe uma classe especial de rituais, estudada por Arnold Van Gennep26

e

depois aprofundada por eminentes antropólogos, dentre eles Victor Turner: os ritos de

passagem.27

Trata-se de uma ampla gama de rituais que marcam mudanças de estado, não

apenas definitivas, como as passagens entre as fases da vida, mas também temporárias,

como as festas de inversão de papéis que acabam, por fim, reforçando as posições sociais.

Para Van Gennep, os rituais possuem três fases principais: uma separação, um momento de

transformação e, por fim, um de reintegração. Todas essas fases são acompanhadas de

23

J. Goody, O mito, o ritual e o oral. 24

V. Turner, O processo ritual. 25 C. Geertz, Uma descrição densa. 26 A. Van Gennep, Os ritos de passagem. 27 V. Turner, op. cit.

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outros rituais tornando o universo extremamente complexo. Turner, por sua vez,

aprofundou suas análises no estado intermediário desses rituais, o do momento da

transformação, denominado de fase limiar. Para esse autor, o ritual tem o poder de renovar

a sociedade já que provoca uma abolição, mesmo que temporária, da estrutura social

vigente e instaura uma antiestrutura em que as posições sociais são rompidas. Trata-se de

uma abolição das hierarquias, das autoridades e das ordens sociais, numa espécie particular

de comunidade, a communitas. Após a fase de liminaridade, há um retorno, quando a

antiestrutura se refaz numa nova estrutura. Embora os ritos de passagem não se restrinjam

ao universo religioso, é nele que são vistos em sua plenitude.

Vários outros tipos de rituais foram bastante estudados pela antropologia da religião,

como os rituais de sacrifício, as peregrinações e os cultos de um modo geral. Um ritual

pode ser entendido como uma chave heurística, através da qual se podem ser acessados

aspectos de uma sociedade que dificilmente se manifestam em falas ou discursos. Por meio

de rituais podem ser observados aspectos fundamentais de como uma sociedade vive, pensa

a si mesma e se transforma.

De certa maneira os rituais encenam um ou vários mitos. Para muitos antropólogos,

a relação entre ritual e mito é direta. Os mitos são narrativas coletivas, contadas a partir de

um discurso metafórico, que tratam das questões mais íntimas de uma sociedade. Em geral

costumam-se ver apenas as narrativas que tratam das origens das coisas, de ordem material

ou social, e que ligam o mundo dos humanos ao dos deuses e heróis míticos. No entanto, o

mito é uma forma de linguagem muito mais ampla e presente em todas as sociedades. Num

primeiro momento, e seguindo as posições positivistas, a antropologia via nos mitos uma

expressão da irracionalidade dos povos tradicionais. A partir da crítica que a antropologia

empreendeu à visão evolucionista, os mitos começaram a ser compreendidos como tendo

relação com a estrutura social. Como fazem sentido para os povos que os vivenciam, os

mitos são tidos como manifestação de outra racionalidade, que tratam de verdades

profundas do grupo. Longe de perceber o mito como uma fábula infantil ou um discurso

ilusório, a antropologia percebe a presença de mitos em praticamente todas as religiões. As

histórias e narrativas sagradas são, em última instância, mitos. Estão longe do que poderia

ser chamado de falsidade. Trata-se de profundas expressões do imaginário humano.

Os mitos estão entre os objetos mais apreciados pelos antropólogos, visto que

permitem, na visão de muitos deles, penetrar nos universos cosmológicos e nas visões de

mundo de povos muito diferentes. Dada a linguagem cifrada dos mitos, o seu estudo nunca

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foi tarefa das mais tranquilas. Muitos dos primeiros estudiosos de religião se utilizaram de

informações advindas dos levantamentos etnológicos para empreender esforços na tentativa

de construções de mitologias comparadas. Utilizados também por outras chaves de leitura,

como a psicanálise ou a filosofia, os estudos de mitos foram ganhando consistência teórica

no interior da antropologia. O mito passou a ser visto como um sistema de códigos culturais

da experiência ordinária dos povos tradicionais, indiferente às aparentes contradições

lógicas internas.

Claude Lévi-Strauss buscou as propriedades universais dos mitos, não aceitando a

tese de que eles seriam a projeção ideológica do ritual. Esse autor se abstém de qualquer

juízo sobre a realidade histórica ou veracidade dos mitos. Para Lévi-Strauss, o que interessa

é a estrutura básica que está por detrás de várias versões de um mesmo mito e que permite

acessar o quadro de estruturas primordial do pensamento humano.

A antropologia nasceu como ciência das chamadas sociedades primitivas. Há um

bom tempo deixou de lado essa peculiaridade e ampliou seus olhares por sobre as demais

formas sociais. Hoje os antropólogos empreendem olhares sobre sociedades com dinâmicas

altamente complexas, como é o caso das sociedades ocidentais pós-industrializadas.

Crenças, símbolos, rituais e mitologias continuam sendo estudadas não mais no sentido de

encontro com o totalmente outro, diferente desse ocidental, mas o que tem de religioso no

seio de nossa própria sociedade. Há muito que a nossa sociedade deixou de ser vista como

um caminho inevitável para formas cada vez mais desencantadas. Hoje, as mais diferentes

formas de religiosidade são objetos de estudo dos antropólogos. As sociedades mantêm e

reinventam antigas religiões ao mesmo tempo em que novas surgem a todo o momento.

Além das religiões mais facilmente perceptíveis, por trazerem contornos institucionais

visíveis e verificáveis, surge uma infinidade de outras formas de expressões religiosas,

denominadas por alguns estudiosos como novas espiritualidades. A eles cabe perceber as

características dessas novas vivências, bem como desvendar e compreender as lógicas

subjacentes internas. Religiões interiorizadas e cada vez mais individualizadas parecem

querer contradizer tudo o que se entendia por religião. É a sociedade com sua riqueza e

imensa variabilidade que traz novos desafios para os estudiosos atuais.

Atualmente a antropologia se abre a novos diálogos com outras ciências no estudo

das religiões. Deixando de lado os particularismos que marcaram os avanços dessa ciência

por todo o século XX, retoma algumas das preocupações de seus momentos iniciais,

principalmente no tocante à busca da singularidade religiosa. Agora, as companheiras de

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viagem são outras. As trocas e avanços se dão pelos diálogos com as ciências cognitivas, a

biologia, a psicologia evolutiva, a primatologia, a etologia e até, quem diria, a antropologia

biológica. A religião permanece construção eminentemente humana, mas agora observada

sob novos ângulos. O que há na formação da mente humana que permite essa simbolização

e construção de universos religiosos? Terá sido a religião um elemento adaptativo no

processo evolutivo humano ou será ela apenas um subproduto de outras faculdades da

mente humana? Já são vários os estudos que apontam para uma forte relação entre o fazer

religião e a evolução da mente humana.28

O enigma da persistência da religião permanece. As novas respostas procuram sinais

que possam esclarecê-lo no próprio processo adaptativo evolutivo. Os avanços nessas áreas

científicas vêm trazer novos alentos para os estudos da religião. Se a antropologia

permanecer aberta a contribuições diversas continuará auxiliando para o avanço da

compreensão do fascinante mundo da religião. A ciência da religião só tem a ganhar.

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28 Cf. S. Minthen, A pré-história da mente.

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