A Missão da República: Política, Religião e o Império Colonial Português (1910-1926)

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Índice

O (DES)ENCONTRO REPÚBLICA-IGREJA NO CAMPO DA MISSÃO . . . 9

ENTRE A COOPERAÇÃO CIVILIZADORA E O CONFLITO POLÍTICO:

MISSÃO E IMPÉRIO DURANTE O NOVO IMPERIALISMO. . . . . . . . . . . . . 11

AGRADECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

1. DA CONFERÊNCIA DE BERLIM À REPÚBLICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

1.1. Direito Internacional das Missões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

1.2. Diplomacia missionária. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

2. A REPÚBLICA E A QUESTÃO MISSIONÁRIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

2.1. Legislação republicana e política missionária. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

2.2. O caso dos jesuítas em Moçambique . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

2.3. Missões católicas e protestantes num “império laico” . . . . . . . . . . . . . . 76

3. SEPARAÇÃO E IMPÉRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

3.1. Uma Separação para o império. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

3.2. Reacções à Separação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

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4. NACIONALISMO E INTERNACIONALISMOS DA MISSÃO . . . . . . . . . 117

4.1. Pensar a “missão nacionalizadora” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118

4.2. Um novo Direito Internacional das Missões? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

4.3. Internacionalismos missionários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140

5. PARA UMA MISSÃO CIVILIZADORA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

5.1. 1919: o ano dos Decretos missionários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158

5.2. O ineditismo das missões laicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174

5.3. O Estatuto João Belo: antecâmara da política do Estado Novo? . . . . . . 182

CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

FONTES E BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201

BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

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Introdução

A 13 de Março de 1911, o presidente do Governo Provisório da República, Teófilo Braga, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernardino Machado, e o ministro da Justiça e Cultos, Afonso Costa, receberam dois bispos anglicanos: William Edmund Smyth, bispo da diocese dos Lebombos (no sul de Moçam-bique) e Frank Weston, bispo de Zanzibar. O encontro, patrocinado pelo minis-tro britânico em Lisboa, Francis H. Villiers, tinha como objectivo dar conti- nuidade a diversos esclarecimentos pedidos ao governo português, durante a vigência da Monarquia, a respeito da aplicação das disposições contidas nas Portarias Provinciais de 1907, sobre educação colonial, publicadas sob as ordens do governador-geral de Moçambique, Freire de Andrade. No final do encontro, Smyth e Weston saíram optimistas acerca da boa vontade da Repú-blica laica face à actividade das missões britânicas em Moçambique.

Entretanto, Villiers enviou a Bernardino Machado um memorandum onde expunha as sugestões feitas pelos missionários protestantes, instalados em Moçambique, para se alterar parte do conteúdo das Portarias. O diplomata esperava que a mudança de regime pudesse trazer alterações à política missio-nária do país. Com a República, vista como meio de concretização de uma sociedade laicizada, o Estado deixava de ser constitucionalmente católico e, por conseguinte, não havia porque manter o favorecimento ao catolicismo que os missionários britânicos atribuíam à Monarquia(1).

(1) O início das negociações de esclarecimento sobre as ditas Portarias ocorrera em 1908.

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A 18 de Maio de 1911, um parecer da Direcção-Geral das Colónias mos-trava-se favorável ao acordo mas estabelecia algumas condições, sublinhando a obrigatoriedade dos missionários terem certificados para poderem ensinar, uma vez que estes documentos deveriam ser acompanhados por um compro-vativo das condições de “idoneidade moral e as habilitações indispensáveis” do seu portador, nomeadamente o conhecimento da língua portuguesa(2).

Um outro parecer da mesma Direcção-Geral reafirmava a necessidade de o ensino missionário ser feito em português, recordando que favorecer a utili-zação da língua nacional era uma prática corrente noutras colónias, “até nas da própria Inglaterra”. Por outro lado, deixava claro que os missionários deveriam “abster-se de, na prédica ou no ensino, ou por qualquer outro modo, incutir no ânimo dos indígenas ideias contrárias à obediência às leis e às autoridades portuguesas, e de intervir, directa ou indirectamente nos assuntos de política”. Este era um aspecto fundamental para a administração colonial portuguesa(3).

Se para os missionários e os diplomatas britânicos as Portarias de 1907 representavam uma clara violação dos preceitos do Tratado Luso-Britânico de 11 de Junho de 1891 (assinado no rescaldo do Ultimato), que protegia os mis-sionários, a liberdade de ensino religioso e a tolerância religiosa, para as auto-ridades portuguesas estava em causa um dos principais fundamentos da política missionária gizada para o seu espaço imperial: a estratégia de nacionalização das populações autóctones, através da acção educativa e civilizacional das missões, como forma de consolidar o seu domínio político. E não obstante as regras internacionais, o país tudo tentava para conseguir que as missões pro-testantes e católicas estrangeiras, que estava obrigado a tolerar, ensinassem em português, mecanismo essencial nesse processo nacionalizador.

Esta concepção sobre o papel que a missionação deveria ter na estrutura imperial de Portugal é transversal aos regimes monárquico e republicano, sendo a sua compreensão um dos elementos essenciais para a análise da construção de uma política de missão para o império português na contemporaneidade. Além disso, permite perceber os níveis de continuidade em matéria religioso--missionária entre a Monarquia Constitucional e a I República. Apesar de este

(2) Director-Geral das Colónias a Bernardino Machado, 18 de Maio de 1911; Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros [AHD/MNE], Missões religiosas estrangeiras nas colónias portuguesas, Maço 361, fls. 12A.

(3) Director-Geral das Colónias a Bernardino Machado, 18 de Maio de 1911; AHD/ /MNE, Missões religiosas estrangeiras nas colónias portuguesas, Maço 361, fl. 13. Bernar-dino Machado a Villiers, 26 de Maio de 1911; AHD/MNE, Missões religiosas estrangeiras nas colónias portuguesas, Maço 361, fl. 21 a).

INTRODUÇÃO

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livro se centrar no estudo sobre o período republicano, é imperativo deixar expresso que a história das missões no império português dificilmente é com-preensível se ficar repartida em cronologias estanques, onde uma nova etapa política traz um admirável mundo novo de processos até aí inexistentes. A questão missionária tem de ter em atenção as diferentes dimensões onde ela decorre – local/colonial, imperial, metropolitano, internacional – e os diferen-tes actores que nela participaram – Estados imperiais, Santa Sé, sociedades missionárias – com as suas respectivas motivações, mundividências e expec-tativas sobre o papel da missão.

Um dos objectivos declarados deste livro foi dar conta dessa diversidade de interesses, objectivos e práticas concretas, sem deixar de demonstrar o seu dinamismo histórico. A apreciação destes actores, das suas motivações, inte-resses objectivos e práticas procurou estar atenta ao dinamismo da sua relação com diversos contextos, interlocutores e problemas históricos, tanto políticos como religiosos. Qualquer conjunto de premissas pré-concebidas em relação a estes actores, à “natureza” e ao sentido da sua acção, não resiste ao confronto com os factos empíricos.

Se é evidente que o poder político tinha uma percepção clara sobre a função que a missão, enquanto instrumento de afirmação imperial, devia comportar, a realidade demonstrou que essas intenções estavam condicionadas pelas pos-sibilidades materiais e humanas de levar a cabo esse plano e pelos constrangi-mentos, manifestos em várias escalas e oriundos de várias proveniências, com que os decisores nacionais se depararam. As dificuldades, várias vezes propa-gadas, de o Estado português empreender um projecto missionário eficaz, no sentido de concretizar os seus intentos, dependiam de diferentes factores. A falta de missionários de origem portuguesa, os diminutos recursos financei-ros ou a pressão internacional, por exemplo por instigação dos missionários estrangeiros, são apenas alguns deles. Para a sua importância nenhuma expli-cação se pode apresentar simples e linear. Mas é indiscutível que esses factores não são apenas internos ou apenas externos, pelo que se pretende demonstrar que o processo missionário no império tem de ser compreendido numa escala que ultrapasse os limites nacionais e que relacione esses aspectos internos (metropolitanos e coloniais) e externos (transnacionais e internacionais), com duas dimensões essenciais à sua análise: religião e política, ou melhor, “missão” e “império”.

O papel desempenhado pela diplomacia, nas suas diversas manifestações políticas e religiosas, é fundamental para perceber as possibilidades e os cons-trangimentos associados ao plano de estruturar uma política missionária que

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suportasse as intenções imperiais – políticas e religiosas – portuguesas. A importância que o assunto teve no Ministério dos Negócios Estrangeiros é representativa dessa premissa. As questões missionárias eram constantemente pautadas de elementos de política internacional, fosse no caso da relação entre autoridades portuguesas e missionários protestantes, pouco explorada pela historiografia, como na questão das Portarias de 1907 e a sua repercussão na diplomacia portuguesa e nas relações Estado-império-missão. Mas também a intervenção da Santa Sé na acção da missionação católica comporta essas dinâ-micas internacionais. A posição pontifícia, tal como a portuguesa, procurava um equilíbrio em matéria missionária, oscilando entre as suas aspirações uni-versalistas, o problema da concorrência confessional e as preocupações deri-vadas do lugar da religião no Portugal contemporâneo.

Aliás, importa frisar que as preocupações recentes com os temas da histó-ria dos impérios e dos fenómenos transnacionais vêm incluído as dinâmicas globalizadas do processo missionário(4). Basta pensar que as decisões estraté-gicas de cada instituto missionário presente no império português passavam pelas suas sedes, fosse na Baptist Missionary Society em Londres, na casa-mãe da Congregação do Espírito Santo em Paris ou na Sagrada Congregação de Propaganda Fide em Roma, tendo sempre em aberto a possibilidade de apelo aos governos imperiais de onde esses institutos eram originários. Contudo, as expectativas ou discursos, reais ou retóricos, dessas entidades a respeito do movimento missionário em que participavam não correspondia apenas a ense-jos de matriz evangelizadora, muitos imbuídos de elementos de argumentação humanitária. As redes de contacto e de influência destas passavam pelos minis-térios das Colónias e dos Negócios Estrangeiros, pela opinião pública e pelos institutos missionários. Todos interagiam entre si, com os seus respectivos interesses e especificidades.

A actuação destes agentes decorria numa dimensão local/colonial, com o trabalho nas missões, como num âmbito inter-imperial, pela presença das suas sociedades em diferentes espaços coloniais administrados por potências dis-tintas, operando também numa escala internacional através das relações com

(4) A. G. Hopkins, «Back to the Future: from national history to imperial history», Past and Present, Vol. 164 (1999): 189-243; Vincent Viaene, «International History, Reli-gious History, Catholic History: Perspectives for Cross-Fertilization (1830-1914)», Euro-pean History Quaterly, 38 (Outubro, 2008): 578-607; Eric Morier-Genoud, «Missions and Institutions: Henri-Philippe Junod, Anthropology, Human Rights and Academia between Africa and Switzerland, 1921-1966», Schweizerische Zeitschrift für Religions- und Kultur-geschichte (Fribourg) (2011): 193-194.

INTRODUÇÃO

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os Estados imperiais nas metrópoles e da intervenção das suas sedes e centros, como fosse a Propaganda Fide ou o International Missionary Council. A defi-nição de um plano missionário decorria em diversas dimensões, usando pro-cessos top-down ou bottom-up, isto é, do governo imperial ou organização central missionária para a missão num determinado território, ou desta até às instâncias de decisão internacional.

Outros dos objectivos deste livro foi sublinhar que a política de missão não foi uma realidade estanque, dependente apenas do contexto nacional, seja na sua dimensão metropolitana ou colonial (no local), pois as suas causas e as suas repercussões têm de ser compreendidas num processo histórico onde se sobre-põem diferentes níveis e perspectivas. Daí que tivesse sido dada importância à dimensão protestante e à dimensão pontifícia, aprofundando a questão cató-lica. Deste modo, procurou-se superar alguns dos condicionantes que marcaram uma parte da historiografia portuguesa sobre as missões no império: como a centralidade das dinâmicas nacionais ou do religioso, mas também a secunda-rização da missão nos estudos imperiais ou ainda o estudo destas questões no local ou num acantonamento nacional, ignorando dimensões internacionais(5). Assim, houve uma declarada intenção de incluir a problemática missionária portuguesa no contexto internacional dos processos missionários e imperiais da época(6).

(5) Recentemente, Glenda Sluga chamou a atenção da importância da análise interli-gada do nacional e do internacional de modo a pensar a sociedade, as comunidades políti-cas, os governos, a liberdade e a igualdade. Cf. Sluga, Internationalism in the Age of Nationalism (Filaadélfia: University of Pennsylvania Press, 2013), 150.

(6) Sobre as relações entre a história do império e a história das missões, entre a vasta bibliografia disponível: Andrew Porter, Religion versus Empire? British Protestant missio-naries and overseas expansion, 1700-1914 (Manchester: Manchester University Press, 2004); Brian Stanley, The Bible and the Flag: Protestant missions and British imperialism in the nineteenth and twentieth centuries (Leicester: Appollos, 1990); Alice Conklin, A Mission to civilize: The Republican Idea of Empire in France and West Africa, 1895-1930 (Stanford: Stanford University Press, 1997); J. P. Daughton, An Empire Divided: Religion, Republicanism, and the Making of French Colonialism, 1880-1914 (Oxford: Oxford Uni-versity Press, 2006); Marvin D. Markowitz, Cross and Sword: The Political role of Chris-tian Mission in the Belgian Congo, 1908-1960 (Stanford: Hoover Institution Press, 1973); Miguel Bandeira Jerónimo, A Diplomacia do Império. Política e Religião na partilha de África (1820-1890) (Lisboa: Edições 70, 2012); Hugo Gonçalves Dores, «Uma Missão para o Império: Política missionária e o “novo imperialismo” (1885-1926)» (tese de doutora-mento, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2014); Jerónimo, «A escrita plural dos impérios: economia, geopolítica e religião na obra de Andrew Porter», em O Imperialismo Europeu (1860-1914) (Lisboa: Edições 70, 2011), 7-67; Jerónimo e Dores, «As Missões do Império: Política e Religião no império», em O Império Colonial

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Ao explorar-se o lugar da missão como elemento indispensável à constru-ção de uma estrutura imperial em África – dominada ou reclamada por Portu-gal – destacou-se os conflitos políticos nacionais (nomeadamente visíveis nos debates parlamentares sobre a indispensabilidade ou não da missão), a elabo-ração e adaptação de um corpus legislativo de controlo e estruturação da acti-vidade missionária, as obrigações internacionais (como os Actos Gerais de Berlim e de Bruxelas, o Tratado Luso-Britânico de 1891, o Tratado de Versalhes e a Convenção de Saint-Germain-en-Laye) e a intervenção dos seus vários actores (os governos em Lisboa, os Governos-Gerais no ultramar, a Secretaria de Estado da Santa Sé, a Propaganda Fide, as sociedades missionárias protes-tantes, as congregações religiosas católicas, as diplomacias imperiais). Procu-rou-se uma fluidez entre os limites teóricos historiográficos – do colonial, ao metropolitano, ao internacional, ao imperial, ao transnacional.

A missionação não foi e não é uma questão meramente religiosa. Ela é parte integrante da problemática dos impérios modernos e contemporâneos e indis-sociável do projecto imperial. Mas como Norman Etherington refere, a “simples analogia” da missionação com o imperialismo formal é “enganadora”, pois as relações entre império e missões decorreram em diferentes níveis de interacção, marcados pela procura de um equilíbrio relacional que pudesse corresponder aos objectivos dos diferentes actores da problemática missionária nos impérios. Claude Prudhomme defende que as rivalidades entre missionários e coloniza-dores não impediram uma certa convergência de interesses e até, conivência numa colaboração instrumentalizada pela propaganda colonial. A missão era necessária para o império, enquanto parte da estrutura e do projecto imperial, mas também era necessária para as entidades religiosas contemporâneas empe-nhadas na reformulação e revalorização dos seus princípios confessionais numa sociedade em mutação(7).

O estudo da missão no império português, e não apenas o da missão por-tuguesa no império, tem sido secundarizado enquanto realidade constituinte da problemática imperial, em particular na época contemporânea. Em grande medida, isto deve-se à ideia de que o fenómeno religioso teria entrado em declínio nas sociedades liberais europeias durante Oitocentos, na decorrência

em Questão (sécs. XIX-XX). Poderes, Saberes e Instituições, org. Miguel Bandeira Jerónimo (Lisboa: Edições 70, 2012), 119-156, a desenvolver em Jerónimo e Dores, As Missões do Império. A Política do Religioso em Portugal (1870-1930) (no prelo, 2015).

(7) Norman Etherington, «Introduction», em Missions and Empire, org. Norman Ethe-rington (Oxford: Oxford University Press, 2005), 1- 18; Claude Prudhomme, Missions Chrétiennes et colonization. XVI-XXe siècle (Paris: Cerf, 2005).

INTRODUÇÃO

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de um processo de secularização que se teria inaugurado a partir da Revolução Francesa, levando a uma progressiva descristianização no contexto social europeu(8). Contudo, acontecimentos como o Kulturkampft alemão, as polé-micas em torno das decisões do Concílio Vaticano I ou o crescente movimento missionário, com a consequente concorrência confessional cristã, são ilustra-tivos de que a religião não estava em decréscimo, mas sim em reformulação nas sociedades liberais, onde se deparou com novas e concorrenciais fontes e princípios de legitimação societária(9).

É intenção deste livro demonstrar que a religião, na sua vertente missioná-ria, é essencial para compreender a constituição e a evolução das realidades imperiais e coloniais. Isto explica a decisão de abordar a questão na África central dominada pelos portugueses – Angola e Moçambique – pela importân-cia e centralidade inequívocas que ambos os territórios tiveram para se perce-ber as diferentes dimensões co-constituintes da questão missionária no império português. A progressiva ocupação e submissão das duas regiões à soberania portuguesa acompanharam a expansão imperialista europeia que vinha desde o último quartel do século XIX e decorreram paralelas à expansão do movi-mento missionário no continente africano, criando convergências e divergências entre projectos políticos e missionários.

Este contexto não surgiu com a I República Portuguesa, nem derivou da sua actuação, era a realidade com a qual os republicanos se depararam, quando a 5 de Outubro de 1910 chegaram ao poder. Aí viriam a perceber que os planos estruturados numa base eminentemente ideológica deparavam-se, por vezes, com realidades para as quais esses planos não foram pensados. A política missionária da República era parte do problema mais vasto da ques-tão religiosa em Portugal, mas com condicionalismos e especificidades inexis-tentes no espaço metropolitano, a começar por essa legislação internacional, assinada pela Monarquia Constitucional, que a República recebia em herança do regime anterior. A questão missionária implicava a articulação entre os vectores essenciais à sua compreensão: Estado, religião e, principalmente, império.

(8) António Matos Ferreira, «Secularização», em Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. P-V, dir. Carlos Moreira de Azevedo (Lisboa: Círculo de Leitores, 2001), 196.

(9) Ibidem; Christopher Clark e Wolfram Kaiser. Cultural Wars: Secular-Catholic conflict in nineteenth-century Europe (Cambridge-Nova Iorque: Cambridge University Press, 2003).

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Ora, desde cedo a República percebeu que a sua intervenção no império teria de ser diferente daquela que protagonizava no país, como se percebe pela complicada saída e substituição dos jesuítas de Moçambique ou pela permis-sividade com que foram tratadas outras congregações religiosas, apesar da legislação e dos ideais anticongreganistas de alguns dos seus dirigentes. Tam-bém a Monarquia Constitucional havia compreendido que a sua relação com a religião e com a Igreja teria de decorrer noutros parâmetros, quando se refe-ria ao império. Obviamente que a posição monárquica e a posição republicana face à religião foram diferentes e cada uma exprime os fundamentos ideológi-cos, as espectativas particulares e as concepções do lugar da Igreja e da religião de cada um dos regimes(10).

Quando os republicanos assumiram o poder em Portugal, a política mis-sionária portuguesa não era, pois, um assunto meramente interno. O Direito Internacional e a actuação dos missionários junto de outros governos davam à questão uma roupagem diplomática que os novos dirigentes não podiam menos-prezar. A 5 de Outubro de 1910, o palco imperial a que os republicanos chega-ram não tinha sofrido alterações, por isso, as regras que os governos monárquicos haviam enfrentado tiveram de ser assumidas pelos seus substitu-tos e as ambiguidades que marcaram um regime foram, em parte, transferidas para o novo. Destas sobressaem a atitude face aos congreganistas e aos protes-tantes.

Em parte, a premissa de que o regime republicano foi violentamente hostil ao catolicismo tem dificultado a compreensão do complexo, e ambíguo, pro-cesso relacional Estado-Igreja, especialmente pelo facto de o seu estudo se centrar nessa dimensão metropolitana e secundarizar o âmbito imperial (11). Da análise dos principais documentos legislativos saídos de diversos governos republicanos, das suas tentativas de aplicação ao ultramar e da correspondência

(10) Para uma visão transversal da política missionária entre o final da Monarquia e a Primeira República: Dores, «Uma Missão para o Império».

(11) “A memória existente sobre essa época é, muitas vezes e de forma repetida, per-cebida de modo dicotómico e simplista, gerando a partir de factos reais de uma visão persecutória da Igreja Católica e da religião ou uma percepção sobre os atavismos nacionais como produto dessa presença das instituições e vivências do religioso. Os combates sociais, políticos, culturais e religiosos na sociedade portuguesa dessa época não podem ser com-preendidos como se em 1910, a 4 ou 5 de Outubro, tivesse desaparecido uma realidade humana e social dando lugar a uma outra totalmente distinta, muito menos ainda quando esse processo é reduzido à produção legislativa ou ao protagonismo individual de determi-nadas personalidades.”, Ferreira, «Apresentação», Revista Agência Ecclesia, edição espe-cial 5 de Outubro de 2010, (2010): 4.

INTRODUÇÃO

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entre os principais intervenientes na questão das missões pretende-se superar esse discurso de Estado perseguidor e Igreja perseguida, para se afirmar que a realidade da missionação na República, e consequentemente da questão reli-giosa em lato sensu, não pode ser reduzida a essa visão maniqueísta.

As inúmeras fontes primárias e secundárias consultadas permitem-nos mati-zar essa ideia tradicional das relações entre a República e a religião, que já tinha sido sublinhada noutros estudos(12). Por outro lado, os arquivos romanos mostram-nos que a posição pontifícia perante a política republicana sobre as missões religiosas não foi um decalque da sua atitude aquando da publicação da contestada Lei de Separação. Quando esta foi aplicada ao ultramar, as instruções vindas da Santa Sé foram bem diferentes. O relevo histórico da expulsão dos jesuítas, da aplicação da Lei de Separação, da presença das con-gregações religiosas e dos protestantes impõe um enquadramento que ultrapassa os limites da sociedade e da política portuguesas, uma vez que a pressão diplo-mática internacional, a intervenção de outros Estados ou a acção da Santa Sé são factores decisivos na compreensão do processo missionário durante os dezasseis anos de regime republicano.

Uma das preocupações presentes neste estudo foi a de incluir, numa análise sobre as missões no império português, a dimensão protestante, que na histo-riografia portuguesa tem sido pouco abordada. Nesse sentido, pareceu interes-sante começar a introdução deste livro com o relato de um episódio, que comportando alguns dos principais dilemas das autoridades portuguesas na sua política missionária, não era originário do universo católico, muito mais refe-renciado quando se aborda esta temática. A breve apreciação do episódio acerca das Portarias de Freire de Andrade ilustra dois elementos essenciais para com-preender a política missionária republicana e, de um modo mais geral, toda a problemática missionária no império colonial português contemporâneo: a dimensão internacional da questão missionária e a dificuldade de elaboração de uma política de missão de cariz nacionalizador com efeitos práticos. Ambas as premissas implicaram um conjunto de decisões governativas onde se pro-curava conciliar as obrigações externas e os projectos internos. A procura deste equilíbrio explica, em grande medida, as ambiguidades da política missionária republicana quando confrontada com o seu discurso ideológico e a sua postura

(12) Helena Pinto Janeiro, «La Primera República Portuguesa y las Missiones católicas y Laicas en Angola: Financiación y Poder», Historia y Politica (Madrid), n.º 29, 1 (2013): 161-191; Morier-Genoud, «The Vatican vs. Lisbon. The relaunching of the Catholic church in Mozambique, ca. 1875-1940», Basel Afrika Bibliographien Working Papers (Basileia), n.º 4 (2002): 1-16.

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quanto à questão religiosa, normalmente abordada a partir de uma perspectiva essencialmente metropolitana(13).

A presença de missionários protestantes no espaço imperial português em África remontava a meados do século XIX e fora um dos assuntos mais espi-nhosos para a administração e a diplomacia nacionais. As relações entre ambas as partes não foram apenas marcadas pela oposição, tendo existido de cada lado uma preocupação crescente na procura de um equilíbrio relacional. Da parte dos protestantes, não obstante as garantias asseguradas pelo Direito Interna-cional e pelo apoio dos países-mãe, a tendência foi para se manter uma relação de cordialidade mútua, percebendo que estar nas boas graças das autoridades coloniais trazia muito mais vantagens do que uma atitude que motivasse a desconfiança e a oposição dos portugueses.

Este livro incide sobre aspectos políticos e diplomáticos e não tanto na actividade missionária per se, isto é, nos aspectos evangelizadores e educativos, e nas suas consequências enquanto processo religioso e cultural, cuja ausência nesta análise não implica nenhum tipo de secundariedade. Aliás, parece-nos que as expectativas das populações africanas, que se depararam com as possi-bilidades de conversão oferecidas por uma religião estranha e forasteira e as formas pelas quais os missionários interpretaram, aceitaram e procuraram cor-responder aos ensejos dessas populações, são fundamentais para perceber que a missão foi um instrumento de transmissão de um conjunto de valores e nor-mas morais, teológicas, eclesiais e culturais, e estava invariavelmente sujeita à intervenção activa de todos os envolvidos (missionários e missionados). Assim, o fim primeiro e último da missão religiosa cristã – criar cristãos – não é o objectivo deste trabalho. Será objecto noutros estudos e a partir de outras abordagens.

O estudo aqui apresentado resulta de uma cuidada investigação feita em diversos arquivos portugueses e estrangeiros com o objectivo de superar alguns dos problemas associados à problemática religioso-missionária na I República Portuguesa, acima referidos. Dos arquivos portugueses destacam-se o Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (AHD/MNE) e o Arquivo Histórico-Ultramarino (AHU). Na Santa Sé, a pesquisa decorreu no Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), em especial no Arquivo da Nunciatura de Lisboa (ANL), e no Arquivo da Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos (ASCEP) ou Propaganda Fide, estranhamente pouco explorado pelos

(13) Sobre a questão religiosa em Portugal na época contemporânea: Vitor Neto, O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911) (Lisboa: INCM, 1998).

INTRODUÇÃO

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investigadores portugueses do período contemporâneo. De sublinhar, os Natio-nal Archives britânicos, com os fundos do Foreign Office, os Archives Diplo-matiques belgas e os Arquivos do American Board of Commissioners for Foreign Missions (ABCFM), sociedade missionária americana presente no ultramar português.

Estes arquivos – através de um vasto repositório documental, algum inédito em estudos portugueses sobre a questão –, assim como parte da bibliografia já disponível – da infindável bibliografia que temos à disposição e impossível de ser convenientemente citada, sobretudo se não directamente centrada ou neste período histórico ou neste enquadramento analítico – contribuíram para compreender o contexto e as particularidades do processo histórico da construção do espaço imperial europeu em África e da expansão da missiona-ção cristã, para aprofundar o entendimento sobre o império português e as relações Estado-Igreja na I República Portuguesa e para perceber que mais que confronto e oposição entre missionários e o Estado imperial, houve uma ten-dência para se procurar uma coexistência, por vezes contraditória, que favore-cesse uns e outros. Ao longo dos seus cinco capítulos, este trabalho mostra como e porquê.

O primeiro capítulo apresenta o contexto do mundo imperial e missionário nas décadas anteriores à República, momento de elaboração de um Direito Internacional das Missões e de uma diplomacia missionária, dois elementos de salvaguarda da actividade missionária, e que foram transversais aos regimes monárquico e republicano, mas também de uma política missionária portuguesa que correspondesse às expectativas do projecto imperial de Portugal. Esta síntese permite contextualizar as questões que seriam colocadas aos dirigentes republicanos após a implantação do novo regime, em Outubro de 1910.

O segundo capítulo explora as vicissitudes da primeira legislação republi-cana em matéria religiosa e a forma como a República se deparou com as diferentes e complexas dimensões da questão missionária, nomeadamente, o impacto que a aplicação legislativa causou nos meios diplomáticos internacio-nais, como no caso da expulsão dos jesuítas, ou a permissividade ambígua perante os missionários congreganistas católicos e os missionários protestantes estrangeiros.

O terceiro capítulo centra-se num tópico crucial na discussão sobre a ques-tão religiosa durante a República: a Lei de Separação e os princípios inerentes ao seu sistema. Aqui procura-se compreender o processo através do qual se tentou aplicar a separação ao espaço imperial e as reacções a essa medida, com destaque para a posição da Santa Sé.

A MISSÃO DA REPÚBLICA

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O quarto capítulo sai da esfera do estritamente nacional para analisar o contexto do pós-guerra e as mudanças ocorridas no rescaldo das inúmeras reuniões durante a Conferência de Paz de Paris que deram origem a novas formas de pensar o lugar da missão no mundo colonial, com a emergência de discursos sobre a supranacionalidade da actividade missionária, tanto no mundo católico como no mundo protestante.

O último capítulo aborda a fase final da República e as dificuldades de estabelecer uma política missionária que correspondesse aos seus intentos e se compatibilizasse com as exigências internacionais do pós-guerra. É neste perí-odo que se concretiza, pelo menos na legislação, a ideia de se constituir uma missão civilizadora laica, portadora dos princípios republicanos, mas também é o período de mudança na postura do regime face à participação da missão religiosa católica na obra civilizadora do império português. Por fim, observam--se as primeiras medidas do regime saído do golpe do 28 de Maio de 1926, deixando em aberto as perspectivas que contribuiriam para a formulação da política missionária do Estado Novo, que, no espectro católico, culminaria na assinatura do Acordo Missionário de 1940 e do Estatuto Missionário de 1941.