ANÁLISE JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIA ACERCA DO CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO NO CÓDIGO PENAL...

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Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo DPM - Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia. DPM0211 - Direito Penal I Professora Doutora Helena Regina Lobo da Costa Arthur Rodrigues de Moraes Nº USP: 8082125 Alberto Shin Kuromoto N° USP: 2367751 Danilo Herrero Macedo N° USP: 8590309 Fábio Medeiros Monteiro Nº USP: 6829061 Renato Xavier Bovo N° USP: 5121522 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIA ACERCA DO CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO São Paulo, 2014

Transcript of ANÁLISE JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIA ACERCA DO CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO NO CÓDIGO PENAL...

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

DPM - Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia. DPM0211 - Direito Penal I

Professora Doutora Helena Regina Lobo da Costa

Arthur Rodrigues de Moraes Nº USP: 8082125

Alberto Shin Kuromoto N° USP: 2367751

Danilo Herrero Macedo N° USP: 8590309

Fábio Medeiros Monteiro Nº USP: 6829061

Renato Xavier Bovo N° USP: 5121522

ANÁLISE JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIA ACERCA

DO CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO NO CÓDIGO

PENAL BRASILEIRO

São Paulo, 2014

SUMÁRIO

1. TRANSCRIÇÃO DA LEGISLAÇÃO RELATIVA .................................. 2

1.1. Constituição da República Federativa do Brasil ............................ 2

1.2. Código Penal (Decreto-Lei N.2.848, de 7 de Dezembro de 1940) 2

2. ANÁLISE DOUTRINÁRIA ................................................................... 3

2.1. Considerações Gerais – bem jurídico protegido e sujeitos do delito

............................................................................................................ 3

2.2. Tipicidade objetiva e subjetiva ...................................................... 4

2.2.1. Acórdão n° 646.106/TJDFT .................................................. 7

2.3. Formas qualificadas ...................................................................... 9

2.4. Causas de aumento de pena ...................................................... 10

2.5. Exclusão de ilicitude, pena e ação penal .................................... 10

3. O princípio da insignificância quando ocorrida a violação domiciliar . 12

3.1. Análise da antinomia jurisprudencial ........................................... 14

4. Elementos probatórios criminais extraídos de invasão injustificada de

domicílio ............................................................................................... 15

5. BIBLIOGRAFIA ................................................................................. 20

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1. TRANSCRIÇÃO DA LEGISLAÇÃO RELATIVA

1.1. Constituição da República Federativa do Brasil

Art. 5º, inciso XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo

penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou

desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

1.2. Código Penal (Decreto-Lei N.2.848, de 7 de Dezembro de 1940)

Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a

vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas

dependências: Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

§ 1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego

de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas: Pena - detenção, de seis

meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.

§ 2º - Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público,

fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei,

ou com abuso do poder.

§ 3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas

dependências:

I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou

outra diligência; II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está

sendo ali praticado ou na iminência de o ser.

§ 4º - A expressão "casa" compreende:

I - qualquer compartimento habitado; II - aposento ocupado de habitação coletiva; III

- compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

§ 5º - Não se compreendem na expressão "casa":

I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta,

salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior; II - taverna, casa de jogo e outras do

mesmo gênero.

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2. ANÁLISE DOUTRINÁRIA

2.1. Considerações Gerais – bem jurídico protegido e sujeitos do delito

A tutela jurídica ao domicílio e manutenção íntima de sua posse permeia

diferentes momentos históricos do Direito. O Direito Romano tratou violação de

domicílio prevendo que o ingresso violento em casa alheia era considerado delito de

ofensa à pessoa (seja o proprietário, inquilino ou hóspede). O Direito Germânico

elevou o domicílio a um prolongamento da personalidade do próprio homem. Ao

longo da Idade Média, tal instituto sofreu acentuado retrocesso, até que, já à luz da

Revolução Francesa, o código penal francês de 1810 tipifica tal delito, influenciando

o Código Criminal do Império brasileiro de 1830. Posteriormente, o Código Penal

brasileiro de 1890 foi influenciado pelo Código italiano

O Código Penal vigente (de 1940) posicionou a violação do domicílio como

uma ofensa à liberdade individual, dedicando-lhe Seção própria no Código (Dos

Crimes contra a inviolabilidade do Domicílio). Já à luz da Constituição Federal, a

inviolabilidade do domicílio está prevista no Capítulo I (Dos Direitos e Deveres

Individuais e Coletivos) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), em seu

art. 5º, inciso XI, sendo um direito fundamental.

No particular aspecto da inviolabilidade do domicílio tutela-se a liberdade

individual, à qual se vincula o direito que a todos assiste de não ter a tranquilidade

de seu lar ou local de trabalho perturbada pela presença desautorizada de outrem.

Assegura-se ao indivíduo a possibilidade de atuar conforme sua vontade dentro do

âmbito espacial onde desenvolve suas atividades privadas. A intromissão indevida

no espaço físico alheio lesa inequivocamente a tranquilidade doméstica e a paz

íntima de seus moradores, merecedoras da proteção jurídica.

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, sem restrições (delito comum).

Mesmo o proprietário do imóvel pode ser agente do delito quando a posse estiver

legitimamente com terceiro. Sujeito passivo é o morador - que pode permitir ou

impedir a entrada ou permanência de outrem em seu domicílio - seja o proprietário,

locatário, possuidor legítimo etc.

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Quando há mais de um morador, faz-se necessário analisar a titularidade do

direito de inclusão/exclusão mediante dois regimes, quais sejam, o de subordinação

e o de igualdade. No primeiro, há uma relação hierárquica entre os diversos

moradores. Cabe ao superior ou a alguém por ele designado, de modo expresso ou

tácito - permitir ou não o ingresso ou permanência de estranho. Sob o regime de

igualdade, pertence a todos os moradores o direito de inclusão/exclusão. Em caso

de divergência de opiniões entre os moradores, aplica-se a negativa.

2.2. Tipicidade objetiva e subjetiva

A conduta típica consiste em entrar ou permanecer (tipo misto alternativo),

“clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de

direito, em casa alheia ou em suas dependências”. ‘Entrar’ significa ingressar,

introduzir-se nos limites da casa alheia ou de suas dependências (trata-se, portanto

de delito instantâneo). É preciso a entrada efetiva, que somente ocorre quando todo

o corpo do sujeito ativo penetra na casa ou em suas dependências, não bastando

sua inserção parcial (neste caso haveria apenas tentativa). ‘Permanecer’ significa

recusar-se a sair, relutar em aceder à vontade do titular que deseja que o agente se

retire (trata-se, portanto de delito permanente). Pressupõe a permanência a entrada

lícita do sujeito ativo, que, todavia, se recusa a deixar a casa ou suas dependências,

apesar do subsequente dissenso da vítima. A permanência deve se prolongar por

certo tempo, não sendo suficiente a hesitação momentânea em atender ao apelo do

morador. Inexiste concurso de delitos, mas crime único, se a permanência sucedeu

à entrada igualmente arbitrária, pois há fungibilidade entre as condutas (delito de

ação múltipla ou de conteúdo variado).

A entrada e a permanência podem ser: clandestinas, astuciosas ou francas.

Clandestina é a entrada ou permanência sorrateira, realizada às escondidas do

morador, driblando sua vigilância. O agente entra sem ser visto ou permanece sem

que a vítima saiba. A entrada ou permanência serão astuciosas quando o agente

utilizar de meios fraudulentos para induzir ou manter o morador em erro e, assim,

obter o seu consentimento, ou para escapar à sua vigilância. Há, portanto, o

emprego de fraude, ardil ou artifício para o ingresso ou continuação na casa. É o

que ocorre quando o agente, por exemplo, finge ser o entregador de pizza que traz o

pedido. Por fim, tem-se que a entrada ou permanência serão francas quando o

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agente contraria abertamente, sem subterfúgios, a vontade do sujeito passivo, seja

por seu dissenso expresso ou tácito.

Tanto na entrada ou permanência clandestinas quanto nas astuciosas, é

presumido o dissenso do morador; na forma franca, pode ser tácito ou expresso. O

dissenso tácito é demonstrado por fatos concretos (por exemplo: porta fechada,

campainha, alarmes) dos quais se deduz a vontade do dono de que não se entre

sem sua permissão; enquanto o expresso é evidenciado por palavras, escritos,

gestos ou meios simbólicos. A vontade tácita não se confunde com a presumida.

Naquela há uma manifestação de vontade, evidenciada por fatos positivos e

concretos; na vontade presumida, porém, há em verdade uma ficção, que demonstra

a vontade neste ou naquele sentido.

O domicílio tutelado pela lei penal não corresponde ao domicílio civil, definido

como o lugar onde a pessoa natural estabelece a sua residência com ânimo

definitivo, o centro de suas ocupações habituais ou o ponto central de seus negócios

(arts. 70 a 73, CC). Na esfera penal, a expressão “domicílio” engloba qualquer

compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva ou compartimento

não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (art. 150, § 4.°,

CP). A lei penal não protege apenas o domicílio tal como a lei civil o define, mas

todo lugar de habitação ou atividade privada. O termo ‘casa’ compreende qualquer

espaço delimitado habitado por alguém. Desnecessário que se trate de construção

fixa ao solo: pode perfeitamente consistir em estrutura móvel. A entrada ou

permanência em casa vazia ou desabitada não configura o delito em apreço.

Entretanto, uma vez ocupada a casa, não obsta a caracterização do delito a

ausência do morador. O termo ‘dependências’, por sua vez, abarca os locais que se

incorporam funcionalmente à casa, embora não a integrem materialmente (jardins,

quintais, garagens etc.). Esses lugares devem guardar um vínculo com a casa de

moradia.

O sentido penal para o termo ‘domicílio’ está na mesma esteira do sentido

constitucional. De acordo com a doutrina de Alexandre de Moraes, o termo domicílio

tem amplitude maior do que no direito privado ou no senso comum, não sendo

somente a residência, ou ainda, a habitação com intenção definitiva de

estabelecimento. Domicílio seria todo local, delimitado e separado, que alguém

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ocupa com exclusividade, a qualquer título, inclusive profissionalmente, pois nessa

relação entre pessoa e espaço, preserva-se, mediatamente, a vida privada do

sujeito.

Reconhece-se também como inviolável o local onde alguém se dedica à sua

ocupação habitual (escritório de advocacia, estúdio fotográfico, atelier de arte etc.),

que sirva ao desempenho de uma atividade individual privada, mesmo que ausentes

seus ocupantes no momento da entrada arbitrária. Tal abordagem está em

consonância com a jurisprudência do STF que considera ‘domicílio’ até mesmo o

local onde se exerce a profissão ou atividade, desde que constitua um ambiente

fechado ou de acesso restrito ao público.

Não se compreendem na expressão ‘casa’ a hospedaria, estalagem ou

qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta (salvo o aposento ocupado), bem

como a taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero, precisamente por serem

abertos ao público, e, consequentemente, não apresentarem a natureza de espaço

reservado à vida privada do indivíduo. Entretanto, os recintos fechados, destinados à

moradia de alguém, ainda que localizados nos lugares acima apontados, conservam

seu caráter de invioláveis.

O tipo subjetivo do delito de violação de domicílio é integrado pelo dolo (direto

ou eventual) - consciência e vontade de entrar ou permanecer em casa alheia sem o

consentimento de quem de direito. O conhecimento do dolo compreende o dissenso

do sujeito passivo. O erro acerca do consentimento exclui o dolo. O não

consentimento da vítima pertence ao tipo. Como o bem jurídico protegido é

disponível, o consentimento de seu titular exclui a tipicidade. É requisito típico

(desvalor da ação) que a ação ou omissão se realize contra ou sem a vontade do

sujeito passivo.

Trata-se de delito de mera conduta: a simples entrada ou permanência

consuma o delito. Além disso, é delito subsidiário, ou seja, se a violação de domicílio

figurar como elementar de outro delito, tal como ocorre, por exemplo, no delito de

furto (art. 155, CP), não haverá concurso material. Nessa hipótese, verifica-se uma

relação de subsidiariedade tácita, de modo que o tipo penal subsidiário (art. 150,

CP), de menor gravidade, entra na composição de outro, como elemento objetivo do

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tipo ou circunstância agravante (qualificadora/causa de aumento de pena).

Configurado o tipo principal, afasta-se a aplicação concomitante do dispositivo

subsidiário. A invasão de domicílio subsistirá, porém, como delito autônomo sempre

que for um fim em si mesma, quando houver dúvida quanto ao verdadeiro propósito

do agente, ou, quando este desistir do crime-fim ou a invasão de domicílio constituir

mero ato preparatório, ante a frustração do início da execução do crime-fim.1

2.2.1. Acórdão n° 646.106/TJDFT

O Acórdão n° 646.106 da 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito

Federal e Territórios na Apelação Criminal 2010 10 1 004633-5 APR, de relatoria da

Desembargadora SANDRA DE SANTIS, nos mostra em sua ementa a necessidade

de existência da tipicidade objetiva e subjetiva para configurar o tipo penal, como

segue:

E M E N T A

PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – VIOLAÇÃO DE

DOMICÍLIO – CONCEITO DE CASA – DOSIMETRIA –

AGRAVANTE DO ART. 61, II, “F”, DO CÓDIGO PENAL.

I. Para caracterização do delito do art. 150 do Código

Penal, basta a intenção genérica de entrar em habitação alheia,

sabendo que procede ilegitimamente.

II. O conceito de casa estende-se aos jardins, pátios,

quintais, garagens e afins, desde que se trate de recintos

fechados.

III. A insignificância não se verifica apenas pelo resultado,

mas principalmente pela relevância e ofensividade da conduta.

O fato foi praticado no contexto de relações domésticas e

1 Com lastro na teoria da prevalência, de Carrara, vários autores concluem que o segundo crime

absorve a violação de domicílio, salvo se menos severamente punido. Em sentido oposto, sustentando a existência de concurso material, argumenta-se que se ocorre novo delito, a violação de domicílio já está perfeita e acabada e, portanto, tem-se concurso real de delitos, como ocorrer, por exemplo, quando o agente entra em casa alheia e pratica adultério, sedução, injúria ou constrangimento ilegal.

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familiares, o que demanda resposta rápida e efetiva do Estado

para coibir e prevenir o agravamento da relação.

IV. Recurso improvido.

O acórdão se baseia na denúncia de que o acusado e apelante pulou o muro

que delimita a propriedade da vítima, bateu à sua janela e ao não obter resposta,

abriu sua janela. Nesse sentido, a Relatora observa e conclui a existência da

tipicidade subjetiva demonstrada pelo dolo do acusado, caracterizado em seu voto,

na seguinte forma: "Para caracterização do delito do art. 150 do Código Penal, basta

a intenção genérica de entrar em habitação alheia, sabendo que procede

ilegitimamente.".

A Desembargadora também demonstra, a existência da tipicidade objetiva na

ação do acusado, ao apontar, através de citação doutrinária, de que a mera invasão

das limitações da propriedade já assinala invasão ao domicílio. Essa demonstração

se observa no seguinte trecho de seu voto: “O conceito de casa, ao contrário do que

sustenta a defesa, estende-se ao quintal”. O muro delimita os limites da residência,

ao saltá-lo o acusado invadiu a propriedade da vítima. Conforme ressaltou o

sentenciante “entende-se por dependências ‘os jardins, pátios, quintais, garagens

etc., desde que se trate de recintos fechados (muros, grades, cercas)’(H. Fragoso,

lições de Direito Penal – Parte Especial, 1995, vol. 1, p.163).”.

Ao observarmos o voto da Desembargadora SANDRA DE SANTIS, notamos

que para ela, o crime de invasão de domicílio se aproxima mais da violação ao bem

jurídico-propriedade, composto pela invasão ao terreno em que se encontra a casa,

do que propriamente à liberdade individual. Em nosso entendimento, a invasão de

propriedade configurada quando o acusado pulou o muro não remete à invasão ao

domicílio. Essa simples invasão, em nosso entendimento, possui as mesmas

características da ideia da invasão em busca de uma simples bola que cai no

quintal. Não há, em ambos os casos, o dolo de afetar o bem jurídico liberdade

individual no sentido da tranquilidade do lar, como exposto acima no item 2.1., mas

afetou-se, no entanto, a propriedade. Em nossa visão, a invasão ao domicílio

ocorreu no momento em que o acusado abre a janela do quarto da vítima, afetando

agora sim, sua liberdade individual, pois esse ato atinge sua intimidade de uma

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forma mais intensa e também causa uma quebra do seu sentimento de segurança,

demonstrando dessa forma, uma real afetação ao bem jurídico tutelado.

2.3. Formas qualificadas

O §1.° do artigo 150 versa sobre o crime é cometido durante a noite, ou em

lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais

pessoas. Por noite entende-se o período compreendido entre o completo pôr do sol

e o seu nascer2. É o fenômeno da absoluta obscuridade ou ausência de luz solar. A

prática do delito durante a noite debilita a defesa da vítima e facilita a impunidade do

agente, por isso implica maior gravidade do injusto. Vale lembrar que é preciso que

a circunstância da noite diminua a capacidade de resistência ou de defesa do sujeito

passivo ou dificulte a identificação ou detenção do delinquente

É prevista ainda como qualificadora a prática do delito em lugar ermo, dado

que a produção do resultado delituoso revela-se mais provável, pois a vítima está ao

desamparo e o agente é favorecido pela clandestinidade para a aproximação e a

prática do delito, além de protegido para a fuga e impunidade. Ermo é o local

habitualmente isolado, deserto e pouco frequentado. Afasta-se a qualificadora se o

local está acidentalmente ermo (pois nessa hipótese a relativa privação de socorro

não se opera de modo constante) ou se o lugar normalmente não frequentado

encontra-se habitado por ocasião do abandono.

Por fim, qualifica-se o delito se há o emprego de violência ou de arma, ou se

praticado por duas ou mais pessoas, pois a prática do delito revela-se mais facilitada

e a vítima tem diminuída sua capacidade de resistência. A violência é a força física

empregada para suplantar a resistência oposta pelo sujeito passivo. Pode ser

imediata (quando efetuada diretamente sobre o sujeito passivo) ou mediata (quando

exercida sobre terceiro ou sobre coisa, por exemplo, arrombamento). É necessário

que haja o efetivo emprego da arma (própria ou imprópria). Isso significa que o

2 Há, no tocante a este tema, certa divergência doutrinária. Para José Afonso da Silva, dia é o período

das 06h00 às 18h00. Para Celso de Mello, deve ser levado em conta o critério físico-astronômico, como o intervalo de tempo situado entre a aurora e o crepúsculo. Guilherme de Souza Nucci afirma que noite é o período que vai do anoitecer ao alvorecer, pouco importando o horário. Alexandre de Moraes acredita que a aplicação conjunta de ambos os critérios alcança a finalidade de maior proteção ao domicílio durante a noite, resguardando-se a possibilidade de invasão domiciliar com autorização judicial, mesmo após as 18h00, desde que, ainda, não seja noite (no horário de verão, por exemplo).

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agente deve dela fazer uso, para atacar a vítima ou lhe incutir temor, empunhando-a

ameaçadoramente ou portando-a de modo ostensivo. Para o crime praticado por

duas ou mais pessoas não é necessário que todas estejam presentes no momento

da execução.

2.4. Causas de aumento de pena

O § 2.° do artigo 150 acrescenta que a pena aumenta-se se o fato é cometido

por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das

formalidades estabelecidas em lei (mandado de despejo, penhora etc.), ou com

abuso do poder, fatores que indicam maior desvalor da ação. Os casos legais são

aqueles que excluem a ilicitude da conduta (art.150, § 3.°, CP). O abuso de poder

ocorre quando o agente excede no poder de fiscalização ou assistência que lhe

incumbe. Em se tratando de autoridade, é possível a caracterização do crime

previsto no artigo 3.°, b , da Lei 4.898/1965 (Abuso de Autoridade).3

2.5. Exclusão de ilicitude, pena e ação penal

É lícita a invasão de domicílio quando praticada nas condições estipuladas

pelo artigo 150, § 3.°, I e II, CP. Assim, não constitui crime a entrada ou

permanência em casa alheia ou em suas dependências: a) durante o dia, com

observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência

(compreendendo tanto as de natureza judicial ou policial como as de cunho

administrativo ou fiscal); b) a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime

está sendo ali praticado ou na iminência de o ser. O artigo 150, § 3.°, II, é norma

penal não incriminadora excepcional ou singular em relação à norma não

incriminadora geral (art. 23, CP), de modo que não é de ser aplicada a analogia,

ainda que para beneficiar o réu.

A própria Constituição, em seu artigo 5.°, XI, determina que “a casa é asilo

inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do

morador, salvo em caso de flagrante delito [art. 302, CPP4] ou desastre, ou para

3 Lei 4.898/1965, art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: (...)

b) à inviolabilidade do domicílio; 4 Art. 302, CPP. Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II –

acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer

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prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial [busca e apreensão

domiciliar, etc]”. Assim, violação de domicílio legal, sem consentimento do morador,

é permitida, porém somente nas hipóteses constitucionais: a) durante o dia: flagrante

delito ou desastre ou para prestar socorro, ou, ainda, por determinação judicial.

Somente durante o dia, a proteção constitucional deixará de existir por determinação

judicial; b) durante a noite: flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro. O

STF já decidiu que mesmo sendo a casa o asilo inviolável do indivíduo, não pode ser

transformado em garantia de impunidade de crimes, que em seu interior se

praticam.5

Comina-se à violação de domicílio, alternativamente, pena de detenção, de

um a três meses, ou multa. Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar

ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas, as

penas abstratamente previstas são de detenção, de seis meses a dois anos, além

da pena correspondente à violência. Se o fato é cometido por funcionário público

fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei,

ou com abuso do poder, aumenta-se a pena base em um terço.

O processo e o julgamento do delito insculpido no artigo 150, caput, e § l.°,

CP, incumbem aos juizados Especiais Criminais (art. 61, Lei 9.099/19956). Admite-se

ainda em ambas as hipóteses a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei

9.099/19957), ressalvada a hipótese de vítima mulher, no âmbito do art. 41 da Lei

11.340/2006 que prescreve que “aos crimes praticados com violência doméstica e

familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº

9.099/95”.

pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. 5 RTJ, 74/88 e 84/302.

6 Lei 9.099/1995, art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os

efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. 7 Lei 9.099/1995, art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano,

abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). (...) Este artigo ainda contém outras providências acerca da suspensão condicional do processo.

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A ação penal é pública incondicionada.

3. O princípio da insignificância quando ocorrida a violação

domiciliar

O Princípio da Insignificância remonta ao Direito Romano. Já à época, dizia-

se que “o pretor não cuida de minudências” – minimis non curat praetor. “Bagatelas”

não são do escopo do Direito Penal, segundo tal princípio. Faz-se necessária a

análise do caso concreto para a aplicabilidade de tal princípio, não se podendo falar

em generalização, no plano abstrato.

O direito brasileiro não positiva expressamente o princípio em tela. Crimes de

menor potencial ofensivo, definidos ao art. 61 da Lei 9.099/95 e submetidos aos

Juizados Especiais, não guardam relação simbiótica com o Princípio da

Insignificância. Porquanto fora jurisprudencialmente que se assentou entendimento

dos critérios que, embora não conduzam o réu à extinção da punibilidade do ato,

resultam na atipicidade e absolvição (STF, 2ª Turma, HC 98.152-6/MG, rel. min.

Celso de Mello, j. 19/05/2009). Capez (2009) elencou as circunstâncias que orientam

o poder jurisdicional a enquadrar um caso concreto no princípio descrito, quais

sejam, (i) a mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) a nenhuma

periculosidade social da ação; (iii) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do

comportamento; e (iv) a inexpressividade da lesão jurídica provocada" (STF, 1ª

Turma, HC 94439/RS, rel. min. Menezes Direito, j. 03/03/2009).

Sob relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, o Supremo Tribunal Federal,

no Recurso Ordinário em Habeas Corpus 119.303 / MG, julgou pedido da Defensoria

Pública no tocante ao enquadramento do furto de um aparelho eletrônico de

R$90,00 ao Princípio da Insignificância como arguição para absolvição do réu, como

aduz a seguinte ementa:

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EMENTA

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL.

PACIENTE DENUNCIADO PELO CRIME DE FURTO.

INVASÃO DE DOMICÍLIO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

INAPLICABILIDADE. REPROVABILIDADE E

OFENSIVIDADE DA CONDUTA DO AGENTE.

REINCIDÊNCIA. REITERAÇÃO CRIMINOSA. RECURSO

IMPROVIDO.

I – A aplicação do princípio da insignificância, de modo a

tornar a ação atípica, exige a satisfação, de forma

concomitante, de certos requisitos, quais sejam, conduta

minimamente ofensiva, ausência de periculosidade social da

ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e

lesão jurídica inexpressiva.

II – Na hipótese dos autos, a conduta do recorrente não

pode ser considerada minimamente ofensiva, porque o furto de

um aparelho de DVD de valor estimado de R$ 90,00 (noventa

reais) foi praticado mediante invasão do domicílio da vítima.

III – Ademais, infere-se dos autos que o paciente dá

mostras de fazer das práticas criminosas o seu modus vivendi,

uma vez que além de ser

reincidente específico, há em seu desfavor registros de

diversos inquéritos policiais por crimes contra o patrimônio.

IV – Na espécie, a aplicação do referido instituto poderia

significar um verdadeiro estímulo à prática desses pequenos

furtos, já bastante comuns nos dias atuais, o que contribuiria

para aumentar, ainda mais, o clima de insegurança hoje vivido

pela coletividade.

V – Recurso improvido.

Acontece que, no caso, o furto foi precedido por invasão de domicílio da

vítima. Não fora tal precedente, associado à reincidência criminal do réu, o

posicionamento da Defensoria Pública potencialmente seria corroborado pelo

Tribunal no sentido de caracterizar o Direito Penal como resposta desproporcional à

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ação lesiva. O Ministro Relator, cujo voto fora acompanhado por maioria, afastou a

aplicabilidade do princípio haja vista a agressão à inviolabilidade do domicílio não

poder, de certo, ser esquadrada como dispensável ao Direito Penal. Lewandowski

explorou a proteção Constitucional da casa do indivíduo para elevar a intenção

legislativa de proteção de tal bem jurídico, individual e intimista, não lhe cabendo sua

lesão ser taxada como inexpressiva.

Em tal julgado, é mister destacar a posição antagônica apresentada pelo

Ministro Celso de Mello, que entendeu ser irrelevante a significância da invasão

domiciliar, uma vez que teria sido praticada única e exclusivamente como atividade-

meio para atingimento da subtração patrimonial, o que faria da violação de domicílio

um aspecto absorvido pelo delito-fim, por meio do critério da subsidiariedade ou da

consunção (“major absorbet minorem”). Desta forma, tratar-se-ía da resolução de um

conflito aparente de normas, implicando na desconsideração da violação domiciliar

como penalmente relevante.

3.1. Análise da antinomia jurisprudencial

Tal antinomia entre os Ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski

acerca do mesmo tema é igualmente observada no Recurso Ordinário em Habeas

Corpus 113.381 / RS. Neste último, entretanto, o enquadramento da violação

domiciliar como mera etapa do real delito em tela - o furto – foi entendido como

crucial à passividade da aplicação do Princípio da Insignificância. Há de se observar

que os dois casos foram avaliados pelo Plenário do Supremo quase

contemporaneamente e recentemente (ambos datados de 2013), levando-nos a

concluir que a ocorrência da invasão domiciliar procedida de furto, sendo este último

de irrelevante valor, não fora ainda pacificado em tal Corte quanto ao seu

abarcamento pelo Princípio da Bagatela.

Ao entendimento dos ora autores, data vênia, a aplicação do critério de

subsidiariedade (ou consunção) explorado pelo Ministro Celso de Mello não poderia

ter padecido de observar a gravidade das normas conflitantes, no caso concreto, e

nunca de forma abstrata. O delito de furto, a princípio, revela-se como mais grave do

que o bem jurídico protegido ao art. 150 do Código Penal. Outrossim, seria esse o

entendimento caso feita explicitamente a comparação entre a violação do domicílio

15

ante o furto de um bem de R$90,00? Neste sentido, o voto vencedor do Min. Ricardo

Lewandowski parece elevar de forma mais adequada a relevância social da violação

domiciliar enquanto delito que, em sendo atividade-meio ou fim do infrator, por si só

afasta os critérios jurisprudenciais que permeiam a aplicação do Princípio da

Insignificância, porquanto não há de se falar em invasão domiciliar sendo um delito

“menos amplo” ou “menos grave” (premissas da consunção e da subsidiariedade)

relativamente a um furto que, de tal ínfimo valor, é questionado como mera bagatela,

na acepção jurídica do termo.

4. Elementos probatórios criminais extraídos de invasão

injustificada de domicílio

Ensina-nos Ada Pellegrini Grinover, em Liberdades públicas e processo

penal:

"A inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se

absoluta, sempre que a ilicitude consista na violação de uma

norma constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros. (...)

(...) toda vez que uma prova for colhida em desrespeito aos

princípios constitucionais, expressos ou implícitos, no que

concerne à tutela do direito à intimidade e de seus

desdobramentos, a referida prova não poderá ser admitida no

processo, por subsumir-se no conceito de inconstitucionalidade."

Em acórdão, o Tribunal do Distrito Federal e dos Territórios absolveu um

acusado de crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto

no artigo 16 da Lei no 10.826/03, ao entender sem eficácia probatória a prova obtida

ilicitamente, cuja apuração se deu diante de comportamento ilícito de policiais que

violaram o domicílio do acusado.

Esse entendimento foi confirmado pelo STF no Recurso Extraordinário

597.752. Neste recurso, o recorrente afirma a insubsistência da decisão proferida

pelo Tribunal, uma vez que a hipótese estaria relacionada com o tipo “flagrante delito

de crime permanente”, o que justificaria o ato de adentrar o domicílio do acusado em

face de garantia constitucional prevista no artigo 5o, XI.

16

O artigo 150 trata das condutas que consideradas ofensivas pelo legislador,

uma vez que tratam do respeito à perturbação do lar alheio.

A lei penal fala em entrar e permanecer. Esses são os verbos do tipo. Entrar

pode ser entendido como invadir ou ultrapassar limites. Permanecer configura-se

quando o agente recusa-se a sair da residência da vítima. De acordo com o caput,

para que se verifique o crime, é preciso que o agente tenha adentrado

astuciosamente, clandestinamente ou contra a vontade expressa ou tácita do dono.

Não há ilicitude quando a ação se der em caso de flagrante delito, e nem se for para

cumprir mandado judicial durante o dia.

Também podemos dizer que a objetividade jurídica da norma penal do art.

150 é a incolumidade doméstica. É o local de repouso da pessoa. Se houver

delimitação, com proteção ao público, podemos considerar como domicílio.

Nos dizeres de Cezar Bitencourt8: O bem jurídico protegido, nesse tipo penal,

continua sendo a liberdade individual, ou seja, o status libertatis na sua expressão

mais elementar, que é a inviolabilidade domiciliar, a invulnerabilidade do lar, que é o

lugar mais recôndito que todo o ser humano deve possuir, para encontrar paz,

tranquilidade e segurança junto aos seus familiares. A intimidade e a privacidade,

que são aspectos da liberdade individual, assumem dimensão superior no recesso

do lar e aí, mais que em qualquer outro lugar, necessitam de irrestrita tutela legal,

justificando-se, inclusive, a proteção constitucional (art. 5°, X).

No acórdão em questão, o relator Min. Luiz Fux menciona o parecer do

Ministério Público Federal (folhas 234/235), que observa que, para legitimar-se o

flagrante no crime permanente, e também para que seja dispensado mandado

judicial para ingresso em domicílio alheio, é necessário que a autoridade policial

tenha fundadas suspeitas sobre o cometimento do crime, e não mera desconfiança.

Não é admissível que, sem razão séria para o flagrante, e sem qualquer indício de

crime, a polícia efetue busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial. A

descoberta e apreensão domiciliar das armas ocultadas foi meramente acidental,

8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Vol. 2 Parte Especial Dos Crimes contra a

Pessoa. 7ª edição. Editora Saraiva. p. 395.

17

sendo possível validar flagrante ocorrido a partir de busca e apreensão feita ao

arrepio da lei e da Constituição.

No voto do condutor do julgamento, extrai-se pelos depoimentos colhidos, que

os policiais confessam o ingresso na casa do acusado, sem ordem judicial, sob a

alegação de que suspeitaram do apelante, por este ter ficado nervoso quando o

abordaram. O fato de terem desconfiado da conduta do réu não configura caso de

flagrante delito, e muito menos havia justa causa para que adentrassem em sua

residência sem expressa autorização.

Ainda que o apelante tenha confessado, quando interrogado na Delegacia,

que detinha em sua posse as referidas armas, não lhe restava outra alternativa

diante da prova material do delito, o que não aconteceria se não tivesse ocorrido o

procedimento ilícito dos policiais. Portanto, a confissão também restou imprestável,

respeitando a norma constitucional que veda a utilização da prova ilícita.

Os agentes da polícia militar sabiam que não dispunham de autorização

judicial para adentrar na casa do sujeito, sendo assim, a ação policial configura

invasão de domicílio. Não é admissível que, sem razão séria para o flagrante, e sem

qualquer indício de crime, a polícia efetue busca e apreensão domiciliar sem

mandado judicial. Além do mais, casos como esses, em que policiais entram sem

ordem judicial entram em casa alheia porque suspeitam de que lá atividades ilícitas

são praticadas ou dizendo que receberam “denúncias anônimas”, estão se tornando

rotina.

Podemos perceber que as populações mais atingidas por ações policiais

como essas, em que domicílios são violados, são as populações dos setores menos

favorecidos da nossa sociedade, ou seja, os setores marginalizados. Uma vez que a

maior parte das violações de domicilio cometidas por agentes do Estado são

direcionadas para esse setor, se faz necessário que o Estado se esforce para fazer

valer os direitos fundamentais garantidos pela constituição para todos os cidadãos.

De modo que as pessoas de menor poder aquisitivo não vejam seus direito

ignorados pelo poder público, mesmo porque todos são iguais perante a lei.

18

O estado não deve se omitir da responsabilidade quando seus agentes são os

responsáveis pela violação dos direitos fundamentais da garantidos pela

constituição, já que é dever desses selar para que os direitos constitucionais sejam

garantidos para todos. Assim, como nos diz Cezar Roberto Bitencourt;

Todos têm o dever constitucional de respeitar a inviolabilidade da “casa

alheia” ou de suas dependências, mormente os funcionários do Estado, que, antes

de tudo, devem protegê-la; assim, quando estes – funcionários públicos – infringem

o art. 150, violam também um dever funcional, justiçando-se a especial agravação

da pena.9

Assim, o relator do processo em questão, Ministro Luiz Fux, agiu em defesa

dos direitos garantidos pela nossa constituição federal ao negar o seguimento ao

recurso extraordinário.

É importante saber distinguir, porém, os casos em que realmente existe a

situação de flagrante delito. Sabendo que muitas vezes policiais se utilizam do

argumento da “denúncia anônima” para adentrar em residência sem ordem judicial e

sem a presença do flagrante delito, muitas defesas tentam usar dessa justificativa

para inocentar seus clientes alegando dúvida quanto a existência da situação de

flagrante.

No HC 86.082/RS, a questão consistiu novamente na possível existência de

prova ilícita, o que contaminaria o processo que resultou na condenação do réu.

Neste caso, porém, diferentemente do RE 597.752 (mencionado anteriormente), o

STF denegou o recurso de habeas corpus ao entender não ter havido violação de

domicílio e, portanto, não haveria o que se falar em prova ilícita.

Consta da denúncia contra o recorrente que os denunciados transportaram

479 kg de maconha em um avião de Dourados até Uruguaiana. Porém, quando o

aparelho pousava na propriedade rural arrendada por um dos denunciados, veio a

exceder os limites da pista de pouso e colidir com uma porteira, acidente que

provocou avarias na aeronave, as quais impediram-na de voar novamente. O fato foi

comunicado, por meio de telefonema anônimo, a policiais civis de Uruguaiana, os

9 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Vol. 2 Parte Especial Dos Crimes contra a

Pessoa. 7ª edição. p. 407.

19

quais dirigiram-se para o local onde apreenderam o avião escondido nas

proximidades da pista sob uma lona plástica preta. Os denunciados desembarcaram

o entorpecente e transportaram-no em uma camioneta, vindo a depositá-lo em um

mato existente nas imediações, onde foi apreendido pela Polícia. Vale notar, que o

local onde se encontrava o avião e a droga depositada havia sido informado pela

ligação telefônica anônima. Quando chegavam no local, os policiais civis

perseguiram a camioneta conduzida e tripulada pelos denunciados, os quais

tentaram livrar-se de partes danificadas da fuselagem da aeronave.

Em seu voto, a relatora Min. Ellen Gracie observa que sequer haveria de se

cogitar de prova no que tange à “denúncia anônima”, uma vez que, segundo os

autos, os dados repassados ao policial civil ensejaram a realização de diligência

policial, sendo que no trajeto ao local indicado, sobrevieram elementos indiciários

acerca da prática de ilícito penal. Diz ainda que: “Há elementos que apontam, no

caso concreto, para a situação de flagrância no que tange à prática de crime de

tráfico de entorpecente que tem a natureza de crime permanente, a autorizar que os

agentes policiais possam adentrar o domicílio das pessoas suspeitas sem

necessidade de ordem judicial para o fim de reprimir e fazer cessar a prática

delituosa.”

Finalmente, devemos perceber também que, nesse caso, não se trata de

opressão a setores menos favorecidos da sociedade, mas de combate a criminosos

com organização e recursos consideráveis.

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5. BIBLIOGRAFIA

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Permanente. Disponível em <http://www.gecap.direitorp.usp.br/index.php/2013-02-

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