AFORISMOS VOLUME I

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AFORISMOS

VOLUME I

AMAURI FERREIRA

www.amauriferreira.com

2011

SUMÁRIO

Escondido 04Falar 05Despedida 06Caminhar 07Relações 08Confinamento 09Ler 10Imortalidade 11Ser 12Depressão 13Sentidos 14Criação 15Respiro 16Viver 17Pensamento 18Essência 19Fascismo 20Resignação 21Vulgarização 22Conservação 23Ritmo 24Erudição 25Questões 26

Autonomia 27Explorador 28Amizade 29Arte 30Massificação 31Violência 32

Continuidade 33Impotência 34Escrever 35Ressentimento 36Indolentes 38Aula 39Privatização 40Revolução 41Inclusão 42Repressão 43Educação 44Amor 45Ignorância 46Introspecção 47Imprevisível 48Opinião 50

Notas 51

ESCONDIDOViver anonimamente, escondido, não nos parece ser uma fuga

covarde. Pelo contrário, além de ser um altivo cuidado de si, é umagrande prova de força, de uma conquista da vida corajosa. A vida sábia éconquistada quando encontramos, através das mais variadas coisas domundo, as companhias que pertencem à nossa natureza. Talvez umadas tarefas mais árduas da nossa existência é sabermos nos livrar dasamarras, isto é, fazer morrer o que pode morrer, pois o que se tornoudispensável não pode mais ter sentido para ser carregado conosco. Taisrelações venenosas com as coisas do mundo nos impedem de dispor onosso corpo e a nossa mente para tudo o que é novo. Assim, levamosuma vida que assemelha-se à massa – e, pior, nos preocupamos cadavez mais em viver assim. Fazemos o que os outros querem e, como éinevitável, colhemos os piores frutos em razão dessa ignorância.Perdemos tempo e forças com tarefas inúteis – ser recompensado,admirado, invejado, famoso ou, simplesmente, ser um sujeito “normal”,demanda doses absurdas de compromissos enfadonhos e decompanhias insuportáveis, tudo para preservar uma imagem que destoacompletamente da nossa singularidade. Viver como a maioria torna-nosagitados, perturbados, impotentes para pensar e agir. Não há algo maisnocivo do que viver em um ambiente errado. Em vez de utilizarmos asnossas forças para coisas muito mais nobres, utilizamo- as para afastarde nós o que nos corrompe, tentamos encontrar atalhos, momentos deboa companhia ou momentos para ficar com nós mesmos. Mas o deversocial nos chama, o telefone não para de tocar, os compromissos sãoinadiáveis e, mais uma vez, o que nos daria a chance de começar aentender o processo da nossa diferenciação é adiado mais uma vez. Nãohá dúvida de que, assim, a vida transforma-se, cada vez mais, em umgrande tédio.

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FALAR

Falar, falar, falar. Certamente falamos demais por termos poucacoisa – ou nada – a dizer. A tagarelice parece não ter fim. As palavrassão excessivamente desperdiçadas e mutiladas porque perdemos adilatação das experiências que não são faladas. Uma pausaindispensável para o burburinho das ruas, da televisão, do trabalho.Passamos, então, a permitir que o tempo, através de nós, gere palavrasvivas. Agora, em cada palavra dita, um rasgo é feito. O desejo passa,atravessa a palavra, toca e modifica o ouvinte: estranhamento,hilaridade, repulsa, medo, amor... De qualquer modo, algo vai serproduzido em quem é tocado por palavras impulsionadas por um desejolivre... É livre porque destrói tudo aquilo que a moral, a religião e arazão querem limitar ao estabelecerem o que pode e o que não pode serdito – e o efeito disso não poderia ser mais nocivo: as palavras mortaspassam a dominar a nossa vida. Precisamos encontrar o nosso tempopróprio de processar o que nos atinge, a nossa maneira singular desermos tocados por elementos da vida que não são falados... Mastambém podemos privilegiar as palavras faladas que expressam algonovo, diferente – e isso existe. Basta selecionarmos aquelas que nostocam com uma força que nos impulsiona – para aonde? Poucoimporta. Uma palavra, bem utilizada, pode fortalecer. Núpcias e não amorte! – já que as palavras mortas não têm, de fato, algo a nos dizer.

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DESPEDIDA

É notória a objeção que muitos indivíduos têm diante do ato tãograndioso de despedir-se: talvez a despedida seja a coisa mais difícil deser desejada porque a ideia comum que se tem da existência ainda estáimpregnada de concepções demasiado utilitárias, e de uma avaliaçãoprofundamente torpe dos pressupostos mais essenciais à criação. Mas,apesar disso, a despedida é, talvez, o ato mais importante para quem éimpelido por uma grande inspiração: um pensamento maior surgenaquele que percebe o movimento inexorável das mudanças que estãopresentes em absolutamente tudo que existe. Para quem tem no corpo osangue do artista, despedir-se das coisas que, temporariamente, fazemparte da sua existência é a condição vital para que a sublime obra demanter-se na transposição de limites não seja interrompida por umaleviandade qualquer que pode assolá-lo em certas circunstâncias, e que,por isso, torna-se perigosa – melhor que seja interrompida por uma causamuito mais nobre, que é a produção infinita da existência... A dor dadespedida, por ser honesta, é infinitamente menor do que a dor doadoecimento que, inevitavelmente, surge quando estamos dominadospelo medo do desconhecido. Mas há tanta coisa para ser explorada nesse

mundo desconhecido que, inclusive, nos habita! É, sem dúvida, umproblema nosso saber quando não podemos mais esperar para irmosembora. Mas enquanto não partimos, um vento forte – que se repeteincontáveis vezes durante a nossa existência – continua a nos empurrarpara efetuarmos a despedida de tudo aquilo que tornou-se umadesarmonia – não há dúvida de que somos impulsionados, a todomomento, à musicalidade. Somente assim podemos nos unir aos quepuderam despedir-se: eles tornam-se compreensíveis para nós porqueexperimentamos o que são as dores e as lágrimas de uma despedida,mas também aprendemos que a alegria e os sorrisos também estãoimplicados no ato de despedir-se... Nasce uma união dos quesuperaram o medo de se diferenciar. Apenas essa união é legítima, pois,afinal, é a própria vida que quer expandir-se que a legitima. Grandecelebração dos que ousaram trocar de pele! E tal união é radicalmentedistinta daquelas que são realizadas pelas instituições que foramerguidas por aqueles que não conseguem efetuar a despedida: éinevitável que sejam uniões artificiais, marcadas por um ínfimo traço devida...

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CAMINHAR

O caminhante tem sede por exploração. Durante o seu percursoem terras desconhecidas, ele é acompanhado por sensações que lhe fazemcantar, interiormente, músicas imaginadas e inventadas, e que são cadavez mais intensas quando o seu corpo exprime um novo ritmo alcançado.Ele percebe que, durante a experiência de caminhar sem rumo definido, asua memória é convocada para dançar junto com o seu corpo... Não, asolidão do caminhante não é uma covardia, como provavelmente muitospodem imaginar. Trata-se, na verdade, de uma permissão para que a suasolidão seja povoada por imagens, ritmos, afetos, memórias e percepçõesque, gradualmente, permitem um abandono da desarmonia demovimentos que condicionavam o seu corpo, para, somente assim,conquistar a liberdade de criar novos movimentos. Podemos dizer que ocaminhante é inevitavelmente um amante do conhecimento. Por isso elepode recorrer à escrita para expressar os seus pensamentos que nasceramcaminhando. Afinal de contas, o caminhante-escritor sabe que o sentidomais elevado da escrita é o de mudar a vida de quem lê os seus escritos. E,além disso, ele também sabe que a leitura, por ser um ato solitário,necessita de uma escrita honesta, isto é, uma escrita que ajude o leitor aamar a sua própria solidão.

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RELAÇÕES

A carência de relações profundamente afetivas entre osindivíduos expõe cada vez mais a importância política da produção deafetos. Não há dúvida de que as divisões hierárquicas e o confinamentoservem para tornar as relações humanas cada vez mais artificiais eutilitárias. Por isso elas são estabelecidas em ambientes demasiadoorganizados, onde a eficácia das tarefas que são consideradas “urgentes”quase não permite que relações de outra natureza aconteçam. Aprivação da constituição de relações autênticas é, talvez, a maior causado adoecimento humano, restando ao homem relacionar-se com omundo de modo falso, vagueando pelos caminhos que,imaginariamente, foram construídos para ele. É impossível que sejaproduzida uma revolução social que ignore as relações afetivas. Asrelações que são tecidas sem a mediação do homem-parasita possuemuma sustentação própria e, além disso, têm um poder de contágio porvários canais da sociedade. Através das nossas atividades cotidianasdevemos expandir isso, com toda a nossa força! Chegaremos a um graude tamanho envolvimento afetivo que, muitas vezes, já não será sequernecessário pedir um abraço ao outro, pois apenas com o encontro dosolhares tudo já é dito... Um canto pode mudar a vida de alguém, assimcomo um carinhoso toque na pele, acompanhado de palavrasdelicadamente sussurradas ao ouvido do outro – é impossível que,através do afeto, não seja criada uma outra perspectiva da existência. Oamor que surge nessas experiências passa a nos guiar por toda a nossavida.

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CONFINAMENTO

O animal que é colocado à força em um cativeiro reageagressivamente contra essa situação. Entretanto, quando ele está, dealguma forma, adaptado ao cativeiro, apenas come, bebe água, dormemuito. Nessa situação, o animal apenas sobrevive. Embora esteja livre dasameaças dos predadores, esse animal apresenta comportamentos muitodiferentes dos que vivem livremente. Limitado pela arquitetura docativeiro, a sua força não encontra a via suficiente para agir e modificar oambiente. Enquanto sobrevive no cativeiro, ele não passa pelasexperiências fundamentais de procurar o seu alimento, de voar, deenfrentar riscos, de fugir do que o amedronta, de explorar o seu ambiente,de inventar soluções para os problemas que sempre surgem no seuhabitat. Com o passar do tempo, esse animal torna-se inevitavelmenteentediado porque praticamente tudo que acontece no ambiente artificial

em que habita é previsível – as condições em que vive impedem que oimprevisto surja como uma abertura para a sua ação. Em suma, oanimal que vive no cativeiro é incapaz de criar um mundo próprio. Astentativas de introduzir nos cativeiros objetos que provocam ummínimo de imprevisto para estimular os sentidos do animal, de maneiraque ele possa ter alguma ação, apenas funcionam como paliativos... Já oanimal homem, escondido sob o invólucro da racionalidade, busca oconfinamento voluntariamente. Ele sobrevive enclausurado no mundoartificial arquitetado para que a sua força seja continuamente impedidade vazar. No seu cotidiano, desloca-se de um cativeiro a outro, o que lhedá uma aparência de “liberdade”: seja no transporte público, no seulocal de trabalho, nos estabelecimentos de ensino ou na sua própriacasa, a potência do seu corpo de criar as conexões com outros corpos écontinuamente refreada. Tal como o animal que sobrevive no cativeiro,o homem experimenta, na maioria das vezes, uma violência contra oseu próprio corpo, realizada dentro dos espaços modernos deconfinamento – violência que é autorizada por leis que visam o seu“bem-estar”. Assim é produzido um indivíduo covarde, resignado,inofensivo e, evidentemente, muito fácil de ser enganado. Diante dessaviolência, é inevitável que o seu corpo passe a reagir através de váriossintomas que apontam para uma degradação acelerada. Uma vida assimexige respiro e alívio. Constituída por seres aprisionados que amam opoder, a máquina social que organiza os indivíduos dentro dos espaçosde confinamento também oferece os paliativos necessários paracombater o tédio que os assola, de modo a mantê-los distraídos antesque esses sofredores destruam o funcionamento do perverso sistema dereprodução de seres atrofiados. Consumidor voraz das quinquilhariasreproduzidas sob medida para os doentes, o homem-confinado padececada vez mais porque nem sequer pode imaginar que a criação de ummundo próprio corresponde à liberdade de efetuação da sua natureza –liberdade que se exprime em um corpo apto a fazer, na maioria dasvezes, as coisas que somente lhe interessa; liberdade que se exprime emum indivíduo que ama o risco, que dá boas-vindas ao imprevisto, quecria as suas próprias condições de sobrevivência ao inventar os atalhosno mundo em que vive. Antes a ação do que a crença em umaideologia... Pois somente enquanto vive, o homem é capaz de desprezaros engodos que servem para aliviar, de modo efêmero, o desespero dosconfinados. 9

LER

“Você vive aquilo que lê?”. Esta questão torna-se urgente numaépoca em que os leitores não conseguem criar a partir daquilo quecostumam ler. A relação com os livros é, muitas vezes, uma atividadeenfadonha, o que desperta no leitor uma vontade de terminar a leitura omais rápido possível. Assim, ele imagina que pode aplicar rapidamente os“ensinamentos” daquilo que foi lido. O leitor da nossa época funcionacomo uma caixa de ressonância do que é escrito nos jornais, revistas elivros. Quando ele escreve ou fala algo a respeito do que leu, praticamentenão expressa nada de diferente, pois como não sabe selecionar e digerir oque leu, age como um papagaio. Mas quando vivemos aquilo que lemos érevelada para nós uma estranha paciência, de modo que, sempre quandoretornamos ao mesmo escrito, continuamos a descobrir outras nuanças

do texto. Quem é sábio lê aquilo que remete diretamente às suasexperiências de vida. Esse tipo de leitura torna-se produtiva porque elanos prepara para a ação: fazemos das nossas lembranças, que sãoevocadas durante a leitura, a ocasião para nascer em nós ideias que vãoalém daquilo que lemos. Mas isso, para o autor que escrevehonestamente, é tudo o que ele deseja... Passamos a participar dacontinuidade da produção de pensamento ao lançarmos uma ideia paralugares inexplorados. Apenas entendemos que há movimento nanatureza quando nos colocamos no processo de produção. Não hádúvida de que, se vivemos aquilo que lemos, transformamos a nossaprópria vida e, em razão disso, amamos o texto que lemos... Deixamosde ser reprodutores de falácias institucionalizadas e transmitidas àexaustão pelos mass media para sermos criadores – somente aípodemos perceber que o sentido elevado da leitura aponta sempre paraa direção da criação e não para a erudição. Pois, ao contrário do leitorsábio, o leitor erudito sempre está preocupado em memorizar aquiloque lê. Ele demonstra a sua ignorância quando interpreta um texto coma finalidade de encontrar alguma verdade escondida. Diferente doerudito, o sábio trata o texto como algo vivo, interpretando-o paramaquiná-lo, para levá-lo adiante ao produzir algo diferente a partirdele – no próprio movimento da interpretação, faz da leitura umaexperiência intensiva. Em suma, o leitor erudito apenas reproduz o quecostuma ler; já o leitor sábio modifica, de fato, a realidade com aquiloque lê. Enquanto o leitor erudito torna-se dependente dos aplausos querecebe dos seus admiradores, o leitor sábio, ao devolver ao mundo o seuato singular como um agradecimento à vida, experimenta o mais altosentimento da produção de realidade. 10

IMORTALIDADE

A crença na imortalidade da alma ainda alimenta a esperança dosque querem encontrar uma resposta definitiva para os seus problemasexistenciais. Mas a crença numa vida imortal, que seria alcançadasomente no mundo do além, sofreu adaptações para atender aos anseiosda época “moderna”. As noções de “alma” ou de “eu” ainda permanecempraticamente inatacáveis, à medida que o homem continua a viver,sobretudo, preocupado em defender-se contra os imprevistos da vida.Essas noções são realmente muito estranhas para quem vive o momento,porque o homem criador já experimenta uma felicidade de naturezaabsolutamente distinta daquela inventada pelos homens impotentes. Paraele, soam estranhas questões como “Há vida após a morte?” ou “Paraaonde irá a nossa alma?”. Ora, como as religiões oferecem as “respostas”para estas questões, mais um membro doente é adicionado por uma seita.Mas estas questões não diferem, de fato, de outras, tais como “Quanto euvou ganhar se eu me formar em tal especialidade?”, ou então, “Qual é aprofissão que mais combina comigo?”. Estas questões indicam umaaflição para buscar, alcançar e conservar um “eu” – essa é a aspiraçãomáxima que move a vida dos homens que não criam. A identidade está àvenda, portanto, aos impotentes... Aos homens criadores, tais questõesnem passam pela mente deles, porque já vivem de uma maneira quesentem a eternidade vibrar a cada novo ato de superação de si. Afinal,seus problemas são muito mais nobres do que os dos atrofiados... Durantea noite, há momentos em que os criadores adiam o sono, não por causadas preocupações que costumam assolar o homem comum, mas porqueainda sentem reverberar os efeitos de um dia de intensa criação... Aexperiência da felicidade refreia a necessidade da crença na imortalidade.

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SER

Quando observamos um corpo, imaginamos que ele é e não queele devém. Fixamos e atribuímos um nome e algumas qualidades a ele(a cadeira é um corpo sólido, é de cor cinza...). Não agimos de maneiradiferente quando dividimos os corpos em humanos e não humanos,para, em seguida, fazermos distinções de nome, cor, sexo, raça,nacionalidade, profissão. Dizemos que alguém é Maria, é mulher, ébranca, é brasileira, é bióloga. E assim imaginamos que também somos,no fundo, uma realidade fixa. Dessa maneira, reduzimos toda arealidade ao verbo ser: eis o nosso grande vício, a grande armadilha doressentimento! Mas não há nada fixo no mundo, nem a cadeira, nemMaria, nem nós mesmos. Assim como acontece com todas as coisas domundo, não paramos de mudar. É necessário compreendermos que nãonos separamos do mundo nem mesmo quando acreditamos que somosisso ou aquilo – nem o mais fervoroso defensor da sua identidade estáseparado do devir. Mas compreender isso é uma tarefa muito difícil,pois a noção de identidade, que é um sintoma de ressentimento, éreproduzida através de uma violência cada vez maior pelos aparelhos doEstado. Certamente, o maior exemplo dessa violência que domestica asmassas são os meios de comunicação. Quanto mais somos informadospelos mass media, cada vez mais sentimos a necessidade de “corrigir” arealidade – em outras palavras: o péssimo hábito de julgar o mundo éintensificado pelos mass media. E isto é perfeitamente compreensível,já que uma quantidade cada vez maior de entretenimento faz aumentara tagarelice. Mas, mesmo sob o império da besteira, a realidade segueescoando em nós e de nós para o mundo, sem nenhum objetivo a seralcançado – mas continuamos a querer encobrir tudo isso através dalinguagem! Se ainda nos agarramos à mentira do “eu”, continuamos areprimir os nossos “eus”, isto é, os estranhos que nos habitam... Maspodemos fazer emergir esses estranhos através da arte, por exemplo. Aarte nos faz tocar a fluidez do real porque ela suspende o nosso hábitode falar, de querer fixar tudo que muda. Afinal, sentimos a vida quandodeixamos de tagarelar. Passamos a ouvir a enorme beleza das vozes domundo quando acompanhamos o ritmo que escoa da eternidade...

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DEPRESSÃO

O maior valor da depressão é que ela expõe a necessidade de umagrande mudança no percurso de uma vida. Mudança mesmo, ruptura.Somos honestos com nós mesmos quando não desejamos mais o engododas distrações enlatadas, porque percebemos que elas não servem paradarem conta de uma dor crescente, sufocante, uma sensação do nada, dovazio, de um “para quê a existência?” que insiste em cutucar nas horas docafé, do trabalho, no cotidiano que foi banalizado, tornado insosso,enfadonho – o mundo, as pessoas, a história pessoal parecem ser erros,embustes que bloqueiam alguma coisa que sentimos ser realmente maior,que é verdadeiramente nossa, porém ainda sem força suficiente para vir àtona e mudar um percurso que parece não ter mais saída alguma. Nomínimo o deprimido expõe à sociedade o erro da conservação dasobrigações que apenas reproduzem seres resignados com as migalhasdistribuídas por quem precisa farejar a impotência alheia para extrairvantagens – desse modo, cada sofredor entrega a sua própria vida aostubarões famintos. Mas, para os tubarões, a depressão pode ser uma sériaameaça à permanência das suas leis. Os moralistas agem rápido quandoquerem impedir que alguém se afunde na tristeza, e por isso recorrem ao

seu método mais usual para “corrigir” o comportamento de todos queousam desviar-se do “bom” caminho: o julgamento. Eles dizem, com otom de uma “inteligência suprema”, que o deprimido só pode serdoente ou louco. Mas, comparado com esses funcionários de reproduçãodos valores de uma moral utilitária, o deprimido está muito mais vivo,muito mais próximo de um autêntico renascimento. A depressão podenos ensinar que o abandono do que nos esmaga é a condição pararespirarmos um ar absolutamente renovado, de modo que, ao virarmospara trás, olhamos para tudo que se desprendeu de nós, tudo aquilo quefoi maravilhosamente desprezado (todo sentimento de dever, de culpa,entre outras prisões), e nos alegramos pela passagem, pela conquista daautonomia, do querer, do nosso querer, curados de todas as doençasque uma sociedade fraca quer nos contaminar e, por isso, vibramos emcada músculo, em cada pensamento – e assim seguimos adiante, masreinventados. Certamente, isso não é um processo simples e rápido,pois envolve muita paciência, disfarce, aliança, querer, sobretudo umquerer que a vida passe mais intensa, de outro jeito, do nosso jeito. Masantes que tudo isso seja, de fato, experimentado, o nosso maior perigosão as muitas opções oferecidas para uma fuga cada vez mais rápida dadepressão: “nada de tristeza, isso é coisa de preguiçoso!”, gritam oscatequizadores. “O reino de Deus”, a “alma gêmea”, a “profissão ideal”:tais opções reforçam o conformismo, e vemos, desse modo, “omundinho encantado” ser novamente objeto de crença... e a ação passaa ser adiada, mais uma vez – o que, com certeza, faz um parasitafestejar... O entretenimento e o trabalho utilitário são apenas algunsremédios para que a massa não seja incomodada pela depressão,mantendo-a submetida aos compromissos que, evidentemente,continuam a esmagá-la. A imagem de um indivíduo que deseja amentira por medo de assumir aquilo que, nele mesmo, não cessa deexigir, que o incomoda, que continua a gritar, isso sim que é deplorável.Como ele não sabe o que fazer quando o ritmo que o mantém distraídode si é momentaneamente suspenso, deseja que essa suspensão váembora rapidamente. O domingo é o seu grande dia dedicado aodescanso, mas que é também o dia do seu grande tédio, de umsentimento de desperdício de vida, de uma dor que será apaziguada comqualquer coisa que tenha que preencher esse vazio (as horas dedicadas àtelevisão, distrações, dormir em excesso para não sentir o tempopassar). Mais uma vez: isso sim que é deplorável! 13

Quando escutamos uma música, percebemos que há um mundoenvolvido na maneira de fruí-la: o conforto da poltrona onde sentamos, aausência de ruído na sala, a necessidade de fecharmos os olhos, aslembranças que emergem juntamente com os movimentos musicais, osbraços que balançam, as eventuais lágrimas que escorrem, em suma, umestranho que nos habita revela-se para a nossa consciência – aexperiência musical, por não limitar-se à audição, é, antes de tudo, umagrande aliança entre os nossos sentidos. Mas uma poltronadesconfortável, um ruído na sala, os olhos que se abrem, interrompembruscamente o mergulho cada vez mais profundo em nossas lembranças:

SENTIDOS

então, a experiência torna-se radicalmente diferente, apesar da músicaser a “mesma”. Experiências singulares, acontecimentos: isso ocorrecom todas as coisas que nos relacionamos, mesmo quando não nosatentamos à múltipla riqueza de um mesmo objeto, pois, afinal, o nossocorpo sempre deseja outros corpos, pois ele é renovado por cadaelemento da natureza que exprime uma riqueza própria. Os nossossentidos deleitam-se com a imensidão de um novo mundo que abre-separa eles. Assim ocorre quando ouvimos uma voz sussurrada bempróxima ao nosso ouvido, com um tom tão delicado, que nos fazperceber que ela expressa um enorme cuidado de não afastar a presençado silêncio – afinal, as palavras sussurradas e o nosso pensamento seentendem muito bem com o silêncio... Quando menosprezamos o corpo,cometemos o nosso maior erro: como não mudamos a nossa vida, nãopodemos mudar a vida de alguém... Devemos amar o que se passa emcada sentido para compreendermos que não somos apenas um, masmuitos. Isso é uma relação de amor para com o mundo. É impossívelque cada toque, olhar, cheiro, som, sabor, seja uma experiência igual aoutra. Afinal, cada sensação tem o seu ineditismo, e viver é alimentar-sea todo momento das diferenças, do inesgotável.

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CRIAÇÃO

Contra todo dever ser, contra todo modelo de perfeição, osentimento de felicidade é a nossa maior arma no combate aoesmagamento contínuo da vida humana. Criar é uma resistência àsubmissão, e a felicidade que provém do ato criativo passa a nos guiarcada vez mais, já que através dela podemos avaliar as nossas atividadescotidianas sempre do ponto de vista do favorecimento ou do obstáculo àfruição da vida. Como o criador é movido por um desejo contínuo dedistribuir os seus filhos ao mundo, é inevitável que, ao perceber que estámuito próximo da morte, tenha como a única preocupação não a mortemesma, mas sim ter a certeza de que tudo o que foi possível criar foiefetivamente distribuído ao mundo. Por isso que o pensamento damorte, quando nele surge, funciona apenas como mais um estímulopara tornar-se cada vez mais fecundo e para não desviar-se do seucaminho. Há, nele, um conhecimento de que tudo continua e que ascoisas permanecem sempre de modo diferente... e a sua felicidadecorresponde a uma certeza de que a roda gira desde sempre: esteja comvinte, quarenta ou oitenta anos, o criador não conhece cansaço porquenão para de beber da fonte onde jorra toda a matéria para o novo. Ummúsico transporta para a música as experiências que ele viveu – assimtambém faz o escritor ou todo aquele que cria. Mas quem cria é quemestá aberto às novas experiências – e por isso as suas obras podemexprimir cada sentimento vivido. Como cada gesto nosso é umacontecimento absolutamente inédito no universo, o criador faz de suaobra um estimulante para que os outros também participem ativamenteda criação do universo... Uma humanidade que não cria, não poderesistir por muito mais tempo ao seu próprio cansaço.

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RESPIRO

Nos momentos de respiro estamos acompanhados da nossaprópria experiência porque ousamos nos entregar, mesmo quetemporariamente, ao aspecto inútil da existência. Somente assimpodemos perceber que, de fato, não paramos de mudar um só instante,que nos diferenciamos ininterruptamente – nesse processo sentimosemergir uma grande alegria por participarmos de uma realidade que sealimenta de si mesma. Passamos a amar e a desejar a potencialização danossa capacidade de sermos profundamente afetados pelo tempo. Comoaprendemos a amar as experiências dessa natureza, somos pressionados acomunicar aos outros essa grande emoção da mente – e é inevitável queos pensamentos nunca antes imaginados tornem-se presentes para nós.Essa grande sensação nos coage a vivermos cada vez mais assim: o inútil,o maravilhosamente inútil, expressa a interrupção temporária daagitação, do barulho que provém das quinquilharias eletrônicas, da insanacorreria para atender aos compromissos do trabalho, do consumo dasdistrações, enfim, de tudo aquilo que caracteriza o cotidiano do homemutilitário. Com uma virtude encarnada, quem é grande esforça-se, semprenaquilo que pode, para varrer para longe de si a maior parte dasobrigações sociais estabelecidas, e trava um combate contínuo contra oautomatismo crescente dos indivíduos que reproduz uma humanidadeembotada, escrava do seu fanatismo utilitário, da sua repugnância contratudo que é estranho, do seu ódio contra o tempo. Mas a criação e todagrande sensação apenas podem ser filhas do inútil!... Somente assimpodemos redimir o útil... Nada nos falta quando entendemos que, paraque haja a geração do novo, basta nos aprofundarmos no nosso própriotempo – um tempo que maquina silenciosamente cada modificação emnós. É através dele que encontramos o nosso ritmo para o que fazemoscom amor.

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VIVER Amadurecemos muito mais quando nos relacionamos comindivíduos que ativam os diferentes “eus” que estão em nós. Issoacontece nas relações que são desprovidas de julgamento, de censura,de vergonha, de cobrança – são as relações de amizade. Não há dúvidade que o lúdico e a inocência dos nossos atos nos dão a confiançanecessária para desejar que esses estranhos em nós continuem a serevocados. Nas relações dessa natureza, podemos até afirmar quepraticamente existe uma “disputa” de quem pode doar mais, de quempode produzir mais. A qualidade da relação não poderia ser avaliadapor tudo aquilo que nos desperta, que nos leva à ação e à nossadespersonalização?... Nessas experiências sentimos que somos ora maisjovens, ora mais velhos, e que também somos pais, filhos, homens,mulheres, animais. E, além disso, aprendemos a viver num ritmo emque o tempo cronológico deixa de ser a referência do nosso percursoespiritual – assim conquistamos o tempo dos afetos... Isso tudo éexatamente o oposto das relações tristes, que reproduzem o ódio e ociúme, que envolvem julgamento, censura, vergonha, medo e, em suma,constrangimento da nossa natureza. As relações tristes não cessam dereprimir os nossos “eus” ao reforçar a identidade, a função social, opapel familiar, o lugar correto no mundo. Tristeza e falta são apenasconsequências de uma vida que não aprendeu a rir, que leva demasiadoa sério os “problemas-do-cotidiano-que-atormentam-o-seu-euzinho”...Mas quando beijamos os dedos de uma de nossas próprias mãos para,em seguida, encostá-los carinhosamente sobre o peito de alguémquerido, talvez muita coisa pode ser mudada... Viver é, sobretudo, tocare ser tocado, doar e receber...

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PENSAMENTO

A capacidade que temos de pensar não está dissociada das relaçõesque o nosso corpo tece com os ambientes que frequentamos, quemoramos, que lemos, que comemos. O mais elevado estado de espírito éfruto de uma vivência nos ambientes certos – pensar nunca é algopassivo, mas, ao contrário, é uma potência da vida que envolve umaatividade do nosso próprio corpo, de uma fuga dos ambientes errados.Um pensador é esmagado quando se deixa levar pela afobação daquelesque não costumam pensar, quando é envenenado pelo império dainsensatez que assola os homens. Daí a necessidade de vivermos nasregiões mais profundas de nós mesmos, ou seja, passamos a pensar

quando mergulhamos numa natureza que já pensa em nós. Por serdistinto da banalidade, do senso comum, é inegável que há uma doceloucura no pensamento, ao ponto que podemos dizer que a força deuma ideia – e o respeito que ela exige de nós – está em alguma loucuraque nos faz viver. O pensador e a sua loucura: eis os companheirosinseparáveis, que não se confundem, de nenhum modo, com a opinião.O pensamento nos liberta da mesmice e da covardia, do gosto amargoda racionalidade, da consciência que quer prever tudo. Pensar exigecoragem para dizer as coisas que não se ousa dizer, para dizer de umjeito que habitualmente a sociedade não deseja saber. E o nosso perigoé esse: deixamos de pensar quando somos engolidos pelo mais terríveldispositivo de antipensamento que serve para distrair as massas – aproliferação da besteira.

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ESSÊNCIA

A semente precisa de certos corpos para desenvolver-se, para,enfim, morrer e nascer ao mesmo tempo, dividindo-se quando deixa deser semente para ser planta. Sua metamorfose somente ocorre quando elase mistura com corpos que são fundamentais para esse processo, como aágua e a terra. Sem isso, ela não germina. Uma semente misturada comcorpos que são contrários à sua natureza, como o cimento e a madeira,por exemplo, não irá germinar. Continuará a ser semente, mas,certamente, dessa mistura não veremos derivar uma planta. Essasobservações não são nada misteriosas, já que pertencem ao senso comum.“Os alunos observam continuamente a evolução do plantio e chegam àsprimeiras conclusões. Reconhece-se a semente por sua capacidade demudar: cresce se é colocada na terra; uma semente que cresce dá umaplanta. Em uns quinze minutos (observação e registros escritos) – a cadadois dias durante uma semana a dez dias – em função da evolução doplantio, as crianças observam as mudanças; é uma observação contínua. Acada vez, cada um desenha e escreve o que observa, colocando a data.Após cada observação, os alunos que querem relatam suas observações aogrupo ou à classe. À medida que o tempo passa, diferenças aparecem na

evolução dos plantios: novas plantas saem da terra no terceiro dia,outras apenas após sete dias. Os alunos propõem remover a terra paramelhor observar o que colocaram. Constatam o que mudou. Umasemente se reconhece pelo que é capaz de transformar. Estacapacidade de mudar com o tempo e de fazer trocas com o ambientesão propriedades que permitem identificar o ser vivo”. Assim comoocorre com as sementes, as mudanças da nossa essência exigem umtempo, mais precisamente um tempo próprio, para, somente assim,percebermos que nos tornamos diferentes de nós mesmos – mudançasque implicam a arte da experimentação, de um convívio com os corposque são favoráveis à nossa metamorfose e que nos relacionamos demodo amoroso, onde, literalmente, roubamos tudo o que pode servir aalgo que nos impulsiona a viver, que é a produção da nossa essência –assim, percebemos que existe uma “planta” em nós mesmos... “A noçãode semente, estando agora esclarecida do ponto de vista morfológico,ontogênico e anatômico, parece interessante questionar sobre asnecessidades fisiológicas deste ser vivo, ou seja, sobre as condiçõesambientais necessárias ao seu desenvolvimento. As crianças procuramsaber o que a semente precisa para que consiga germinar com êxito. Aobservação das diferenças na evolução dos plantios leva as crianças aperguntarem ‘O que faz com que certas sementes cresçam mais rápidoque outras?’ Os alunos discutem os resultados obtidos nos seusexperimentos e escrevem suas conclusões: para germinar, a sementeprecisa de água, sem água não germina. O professor propõe que ascrianças analisem os resultados dos experimentos. Após alguns dias,pode-se constatar que nos setores onde não há água, semente nenhumagerminou. Por outro lado, nos setores onde as sementes estavam empresença de água, os brotos apareceram”. A efetuação disso não sedissocia de um autêntico combate: encontrar a nossa “água” exige ação,uma dose de coragem, ruptura com relações que não combinamconosco, que travam o processo da nossa germinação, porque sãoorganizadas de fora e não por nós mesmos. E a consciência desseprocesso irreversível de metamorfose torna-se cada vez mais rara àmedida que os homens nem sequer imaginam que eles são, na verdade,como tudo na natureza – essência que não remete a uma identidadeperdida, mas a uma capacidade de modificar-se cada vez mais. Afinal,reconhecemos alguém que vive quando percebemos que é capaz deefetuar isso. 19

FASCISMO

“Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”.Assim Mussolini resumia a lógica fascista, para o agrado de uma massaenfraquecida, amedrontada e, ao mesmo tempo, esperançosa. Mas issonão se trata de um caso isolado. O fascismo apenas expõe uma moralunificadora, que pretende espantar, a todo custo, qualquer ameaça ao“conforto” e “sossego” dos “bem sucedidos economicamente”. Através detamanho descaramento, é evidente que esse tipo de fascismo não podedurar muito. Os dogmáticos do liberalismo, neste ponto, são muito maisastutos, já que pretendem operar a homogeneização através dademocracia. Não temos dúvida de que a sociedade capitalista é umfascismo disfarçado de democracia. A democracia realiza de forma muitomais eficiente e sutil a empreitada fascista, que é a homogeneizaçãoatravés da inclusão das supostas “minorias”, tudo em nome dahumanização dos excluídos de um modelo que é imposto para todos. Ainclusão é para a mesma educação, para o mesmo trabalho, para a mesma

família. A inclusão democrática facilita a busca pela identidade quefalta! A democracia moderna... eis o grande golpe burguês para mantera crença das massas numa suposta proteção do Estado. Os mass media,por exemplo, tentam esconder, de todas as maneiras, que o Estadomoderno está a serviço da acumulação do capital, que a burguesia seserve dele para os seus interesses vampirescos, de modo que osrepresentantes da massa no poder são apenas peças (que sãorenovadas a cada nova eleição) para manter a máquina capitalistafuncionando. Mas esconder isso a todo custo, simulando objetivos paraque uma vida melhor possa ser alcançada através da lógica democráticada inclusão, faz parte desse grande circo. A inclusão, de fato, é realizadaatravés da captura de um desejo que passa a amar a identidade e opoder. O que decorre disso é que os incluídos passam a vigiar e punir...mas estes também são vigiados e punidos! Não é mesmo fácil ser livrenum mundo assim, não é fácil manter-se numa vida revolucionária quenão se confunde com um grito de “Viva a revolução!”, mas que é umconstante afastamento do poder em si mesmo. Alguém que viveenfraquecido, impedido de ampliar suas conexões e de criar novasmaneiras de viver (notem bem: criar e não ser incluído), tende adesejar o poder (eis um fascismo emergente...). Talvez a grandecontribuição de Pierre Clastres seja essa: a sociedade primitiva não ésem Estado, mas contra o Estado, ela esconjura, constantemente, oEstado que está sempre ali, virtualmente... Não se tem a menor ideiadisso quando há exigências por “mais segurança!”, “mais direitosiguais!”, “mais punição”. O horror, o horror de outrora dos regimesfascistas passa a ser exercido pelo homem democrático, progressista ecínico – o homem de bem da nossa época.

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RESIGNAÇÃO

Querer manter-se distante de si mesmo ao interromper asexperiências das mais estranhas e incômodas sensações – que sãorapidamente abortadas com algumas doses muito bem-vindas dedistrações para a mente, entre elas, o telefone, a revista, o jornal, atelevisão, a internet, o amante, objetos que devem estar sempredisponíveis e facilmente acessíveis para anestesiar uma dor que não sesabe mais como vivê-la –, não querer enfrentar os verdadeirosimpasses: isso tudo indica que há uma impostura, uma práticacriminosa contra a produção de sensações e de sentimentos, contra oprocesso irrefreável da vida de realizar-se de maneira que não agrada opobre paladar do homem da nossa época, este que ainda se recusa aaprender que também no gosto amargo das coisas a vida se exprimecom toda a sua dádiva. Este indivíduo que sofre poderia aprender quenão adianta esconder o que não funciona mais para ele; que, onde hálodo, certamente nenhuma distração irá fazer a limpeza que expulsariaaquelas coisas que costumam entravar um livre caminhar sem rumopredeterminado, sem futuro já dado ou planejado – tal limpeza pode terinício a partir de uma experiência realmente vivida daquilo que lheincomodou, através de questionamentos que fazem um hábito nocivoser, gradualmente, enterrado. Seus impasses devem ser solucionados dedentro – mas isso torna-se incompreensível se este homem continua aenvenenar-se pela resignação social com o estado atual das coisas domundo. Portanto, a sua existência funcional e a sua memória sãosubterfúgios para convencer-se da sua resignação: “Tudo que eu queriater feito, que eu poderia ter feito, infelizmente já não posso mais. Otempo não volta para trás. Resta-me continuar a viver assim,alimentando-me de ilusões! Afinal, ainda bem que elas existem!”. Oconsumo de ilusões como única saída possível para anestesiar-se – oentorpecimento social da indústria das ilusões (o ensino, as viagens, oemprego, o esporte...). Iludir-se para suportar a sua própria resignação.Assim, é inevitável que o cansaço do homem contemporâneo cresçarapidamente à medida que aumenta a sua instrução, que é a sua ilusãode conhecimento. América, Europa, Ásia, em suma, todo o mundocapitalista caminha para a sua inevitável ruína através do mais altograu de instrução: o cansaço absoluto da absoluta automatização...

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VULGARIZAÇÃO

Envolvida pela tecnologia, distraída pelos mais diversosaparelhos eletrônicos, a vida humana está com o seu tempo, o seu corpoe a sua vida sugados. Mesmo quando se tem uma vaga ideia disso, atentação é tão forte que, como resultado, os indivíduos se adaptam, debom grado, ao ritmo frenético de estímulos sonoros e visuais queembotam os seus sentidos para a experiência das sensações que sãodistintas de um cotidiano que se assemelha a um videoclipe. Algunssintomas dessa vulgarização: dominada pela poluição sonora e visualque distrai a mente, que rouba a ocasião primordial para que as suasregiões inconscientes possam se manifestar com toda a sua riqueza, umsujeito assim quase não amadurece – percebemos isso quando, aoreencontrarmos alguém após alguns anos, constatamos que essa pessoapraticamente não mudou...; a capacidade de pensar é esmagada pelopéssimo vício de reduzir a vida à sobrevivência e, também, ànecessidade de interpretar, de associar tudo; a escrita cada vez maisenxuta, objetiva, refém de uma linguagem vulgarizada, gregária, queserve para os que não têm tempo disponível para leituras quedemandam um mínimo de paciência – o que denota uma atrofiacerebral crescente; um excesso de instrução que obscurece as coisaselementares da existência (a arte, a fruição da vida, o pensamento, aalegria, os devires) – assim a instrução também serve deentorpecimento; a ignorância da importância do corpo para a invençãode tudo que serve para a superação de problemas, ou seja, impassesnum cotidiano que se tornou insuportável de ser vivido (efeitos disso:intoxicação do corpo através de um hábito alimentar que é induzido porinteresses mercadológicos – como a ingestão de alimentos e bebidas queaté os cães se recusam a ingerir – e a consequente sensação de fomecontínua... a fome orgânica e também a fome psicológica, esta comosintoma de uma péssima alimentação do tempo). Percebe-se que o nívelde inteligência – não a erudita, mas a do modo de viver – está tão baixo,que estamos caminhando para uma época em que se alguém falar ouescrever duas ou três frases que expressam alguma complexidade deideias, será chamado de gênio... Nunca será tão fácil ser um “gênio” nomeio de tanta vulgaridade.

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CONSERVAÇÃO

Um mal-entendido ocorre quando alguém imagina que, porreceber um salário, por viver com a função de “tarefeiro”, por cumprir asordens que mais detesta por medo de perder o seu emprego, estará seconservando... As coisas desagradáveis são atenuadas pela sensação deconservação do seu “poder de compra” ou de “consumo” – consumo delazer, de tudo que serve para aliviar o cansaço e a dor de realizar umtrabalho sem sentido algum. O mandamento “Antes a conservação doque o risco!” está impregnado por toda a sociedade - até em reuniõessobre as alterações no clima vemos os chefes de Estado se esforçando paraconservar o atual sistema econômico. Mas como conservar um sistemacapitalista que desconhece os limites do planeta? – eis um problema quecada vez mais demanda esforços dos defensores do capitalismo.Distraídos pela ameaça da ruína daquilo que reforça a sua conservação, overdadeiro problema nem é colocado pela sociedade, porquesimplesmente não interessa aos chefes de Estado, aos empresários, aostrabalhadores, aos consumidores – onde todos são peças de uma máquinade destruição ambiental, social e... deles mesmos!

A vontade de se conservar ainda fala mais alto. Mas essa é uma falsaconcepção do que podemos chamar de conservação. Uma outraconservação deve ser desejada: conservar a nossa natureza de operarmodificações em nós, no ambiente, no social, no mundo, de expressar onosso desejo de outro jeito. Apesar do imperativo social aoconformismo, é necessário conservar o anseio de vivermos de outramaneira. É necessário conservar a chama que nos mostra onde há vidaao nosso redor, mesmo que isso ponha em risco a conservação dosideais dos que estão entediados do seu cotidiano: talvez, um dia, algunsdesses que abriram mão da luta para se venderem por umas migalhas,agradecerão à chama que lhes fez despertar o desejo por uma outraconservação – a da potência singular de ser senhor do seu própriodestino...

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RITMO

Chega um momento em que nos esgotamos das coisas de maugosto que fazem parte do cotidiano de uma metrópole: a rigidez doshorários, o barulho das ruas, a multidão das calçadas, o trabalhoapressado, organizações que nos envolvem perigosamente (poisdeixamos para depois o que sabemos ser primordial para nós) e, quandosentimos isso, queremos que o nosso corpo seja tocado por outras coisasmais calmas, afetado por outras cores, banhado por águas de um mardesconhecido, que ele faça parte de uma outra paisagem. Passamos adescobrir uma maneira diferente de expressar o nosso querer, sembanalizar os gestos comuns ao dar-lhes um outro ritmo, mais estendido,que brilha para nós. Assim, aprendemos até a nos despedir de mododiferente, mais suave, tal como a moça que, no portão de sua casa, beijaas próprias mãos e estende os braços, levemente inclinados, para sedespedir de alguém querido. Dentro de um mundo que corre cada vezmais rápido, urge aprendermos com a singeleza das experiências quepossuem um outro ritmo – é esse outro ritmo que devemos descobrir.

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ERUDIÇÃO

Os criadores não estão preocupados em “saber” mais que alguém.Sem fazer rodeios, eles fazem uso da erudição como meio para invenções:“O que isso serve para a minha obra?”, assim perguntam eles. Conservamo olhar estrangeiro, veem as coisas de outro jeito, dão valor às coisas que amaioria despreza, possuem uma inteligência que não tem nada a ver coma prática – uma inteligência do seu próprio tempo para amadureceremideias, atos, metamorfoses. Afirmam os sentidos do corpo, desejam omaior contato possível com obras que alimentam o seu instinto criador,porque sabem que o conhecimento não está pronto para ser acessado,mas está associado à música, à literatura, ao mar, às montanhas, àsconversas. Os criadores têm a consciência de que a natureza é, tambémem nós, um continuum intensivo – eis o conhecimento que estáinseparável de uma emoção que exprime aquilo que não morre, de umsupremo pensamento que está acompanhado de uma raríssima alegria ede uma perfeita confiança em si mesmo. Trata-se de um acontecimentoque não faz barulho, que acontece nos lugares mais improváveis, queninguém ao redor tem a menor noção da louca ideia que acabou de brotarali: sem ingerir algum alucinógeno, os criadores podem alucinar atédurante uma simples caminhada... Há uma verdade maravilhosa nessepensamento, que a razão nem chega perto. Toda erudição de todos ostempos é incapaz de dar conta da experiência que faz com que o criadorencare a existência como uma criança que brinca em um jardim.

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QUESTÕES

É necessário destacar a diferença que há entre um cotidiano que sebanalizou de outro que se tornou enriquecido, que se exprime, muitasvezes, na sensação de que tivemos um dia prolífico, satisfeitos com nossopróprio trabalho, com a certeza de termos avançado ainda mais longe nanossa própria tarefa. Costuma-se imaginar que aqueles que falam com ecomo todo mundo são “sociáveis”, pois eles são facilmente identificados,facilmente tornados familiares, enquanto outros seriam “dissociáveis” e,

justamente por isso, supostamente pagariam um preço alto por nãoviverem “como todo mundo”, por não fazerem as coisas que “todomundo faz” – e assim são acusados de viverem “isolados”. Mas não setrata de isolamento, mas de algo que é muito sutil, que não se percebe,que é ignorado frequentemente: trata-se da capacidade seletiva de nosrelacionar com as coisas que realmente nos interessam, que, inclusive,podem ser pouquíssimas, quando comparadas à abertura leviana e semseletividade vivida pela massa. Não se constrói um mundo próprioquando se vive de maneira vulgar – em oposição a isso, o mundoselecionado de acordo com nós mesmos, devido à nossa potênciasingular de existir, torna a indolência difícil de suportar. Fazemosexplodir a organização tirânica da vida que é sustentada pela censura,culpa, sofrimento, recompensa, reconhecimento, igualdade e medo,muito medo. Como nos parecem os que se preocupam em defender asua honra e, em razão disso, agem movidos pelo medo de seremjulgados por aqueles que mais temem? Vigiam porque têm medo dequem os vigia, reprimem para sustentar a boa opinião que os vizinhosterão deles. É inevitável que eles se assemelhem pela falta, pelafraqueza, pela baixeza dos seus hábitos. Por outro lado, o anonimato ésigno de distinção, de liberdade, de possibilidade de perceber quem é oinimigo para que as suas forças não sejam desperdiçadas gratuitamente.E, além disso, o anônimo faz a distinção fundamental entre pequenas egrandes questões. Grandes questões nascem quando se vê a folha deuma árvore inserida num todo: galhos, tronco, a árvore no ambienteonde vive e cresce. Grandes questões não estão dissociadas dahabitação, do ar que se respira, do que se alimenta, de como se ganha oseu próprio pão. Grandes questões colocam em dúvida valores queentravam a exploração de novas capacidades de agir. Já as pequenasquestões (que são mais frequentes) se contentam com a folha da árvoree ignoram o resto. Pequenas questões nos dizem que tal pessoa é “assimou assado” em razão disso ou daquilo – e lá se vão grandes doses deenergia desperdiçadas para a preservação de alguém que imagina viverdesconectado do resto, de um “eu” que ora sofre, ora está feliz, quetambém canta, dorme, come, que vive para se exibir. Assim, as grandesquestões são adiadas, pois elas não são interessantes quando o orgulhodoentio à raça, ao sexo, à classe social e às demais representações servepara manter um cotidiano banalizado.

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AUTONOMIA

Testemunhamos uma concorrência insana entre os indivíduos queforam educados para seguirem rigorosamente as obrigações que sãoconsideradas “boas” – não por eles, certamente, mas pela sociedade emque vivem. Cada um deseja passar por cima dos seus concorrentes, fazertrapaças, chegar aos objetivos já dados de fora: tudo para se sentiremorgulhosos de serem apenas peças de uma máquina destruidora delesmesmos. Como estão impossibilitados de caminhar com as suas própriaspernas, fogem de quem pode ensinar-lhes a conquistar a vida autônoma.Sua covardia torna-se evidente quando sentem que o “bem” moral a quese submetem, mesmo sendo contrário à natureza deles, deve serconservado por meio de uma luta diária contra os seus instintos.Enquanto estão incapacitados de inventar para si próprios o seu bem,desperdiçam o tempo que seria fundamental para se libertarem do ritmodoentio que é imposto pela organização tirânica da vida humana. Masexistem indivíduos que desejam encontrar os seus mestres, que desejaminventar o seu próprio bem, que desejam lutar pelo seu próprio destino.Nesse processo de evolução, eles deixam de pertencer à imagem habitualque se faz dos homens; tornam-se cada vez menos familiares, passam aser estranhos, maravilhosamente estranhos, começa a brilhar nelesalguma “loucura” que os faz distinguirem-se dos indivíduos “normais” edomesticados. Quem se liga a eles percebe, com o passar do tempo, queexiste a impossibilidade de tentar definir o que, na verdade, não para deescapar, de mudar, de ser inventado. O indivíduo autônomo escapa dasgarras do poder porque é produtor de si próprio, pois, ao se alimentar dofluxo do real, faz os seus disfarces se multiplicarem cada vez mais. Suamultiplicidade de estilos, de vozes, de gestos, esse ator encarnado,exprime a força da vida que, finalmente, no meio de tanto ódio ao seuredor, tornou-se madura, feliz, capaz de dar frutos, de ensinar aos outrosa amar cada momento vivido. Mais do que nunca, a nossa época precisade indivíduos assim, mesmo que os que servem aos interesses dasinstituições continuem a se esforçar para que eles não existam.

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EXPLORADOR

O explorador não quer respostas ou explicações, ele quer cada vezmais alimentos – com isso ele ensina que são os alimentos que nos fazemevoluir, ao contrário das explicações que servem para nos manter nomesmo mundinho pobre. Querer os alimentos envolve risco, abertura aodesconhecido – isso permite que as tarefas utilitárias sejamtemporariamente deixadas de lado, reservadas para os lugares e osmomentos mais apropriados. Por isso seu ensinamento nos diz: organizar

a nossa vida para privilegiar a exploração, para não deixarmos que essafome por conhecimento se esgote, para que o nosso pensamento sejacapaz de ir para regiões inexploradas – isso, certamente, não é parachegarmos a algum lugar e nem para encontrarmos respostasdefinitivas, mas, pelo contrário, é para não permitirmos que a vidaescape das nossas mãos, para seguirmos o seu movimento de ir adiante,sem falsos temores. “Estou triste, tenho andado muito tristeultimamente. Hoje, até senti as minhas pernas balançarem com tantatristeza...” – assim o indivíduo enfraquecido expõe para nós osentimento que lhe atormenta tanto, com o seu coração oprimido,misturado com lágrimas impossíveis de serem contidas. A tristezaalojou-se nele porque perdeu a vontade de explorar, de ser um curiosoinsaciável (o que o faria sair da mesmice). Ao olhar para trás, a suatendência é tentar encontrar alguma justificativa no seu passado, na suainfância, na sua educação, no seu casamento, na sua profissão, paraquerer convencer-se de que é incapaz de fazer algo novo, diferente,desconhecido. Ele imagina que, se as coisas ocorreram como nãodeveriam, então não existe mais possibilidade de saída. Mas o que deuerrado não serve como justificativa para nos resignarmos! A vida nosempurra para irmos adiante e a tristeza alojada em nós é indicadoradisso... Tentativa e erro: nem sempre o que fazemos dá certo, por issotentamos novamente, de outro modo, pois, afinal, as circunstâncias sãocompletamente diferentes. Nós e o mundo não podemos ser mais osmesmos. O explorador aprende com os erros, não os leva a sério,inclusive se fortalece por meio deles e é capaz de agradecê-los. Eledomina porque é paciente, observador, sabe esperar e age quando senteque deve agir. Alegra-se por seguir nesse movimento de exploração daprodução do real. Com oitenta anos, olha para si e ao seu redor econstata que permanece jovem, que o mundo todo continua jovem.Tomado por esse pensamento, seu corpo arrepia-se inteiramente e suaalma se enche de gargalhadas – ele tem absoluta consciência que éimpossível que a exploração do mundo seja concluída. Ele explora paraseguir mudando... 28

AMIZADE

Os amigos nos abrem portas surpreendentes quando nosapresentam coisas que nem imaginávamos que poderiam existir. Cores,sons, imagens poéticas que passamos a conhecer por causa deles. Somosgratos a eles porque o que nos apresentam serve para ampliar aexperiência dos nossos sentidos: passamos a ouvir, a escrever e a falar deoutro jeito, sem termos vergonha de mudar. Quem precisa censurar ereforçar a passividade de alguém não tem como conhecer a importânciada amizade para a liberdade humana. Um amigo músico, um amigo poeta,um amigo filósofo, um amigo cientista, enfim, um amigo qualquer que,por meio do que ele faz, é sempre uma provocação para irmos adiante – enão podemos ter outro interesse na amizade de alguém além deste.Precisamos de gente assim, capaz de doar alguma coisa, de gente quepodemos chamar, sem erro, de amigo. Com efeito, coexiste na nossa obraalguma coisa das nossas amizades: um, dois, três amigos, não importaquantos são, desde que saibamos que por meio da amizade tecemos demodo grandioso o nosso próprio destino. Desse modo, esculpimos a nósmesmos lentamente, silenciosamente, amorosamente, agradecidos aosque nos doaram algo valioso.

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ARTE

O artista se alimenta de imagens e de afetos para materializarsuas ideias na sua obra. Ele parte do que é efetuado para, através daexperimentação, criar algo capaz de engendrar novas imagens esensações naquele que frui uma obra sua. Desse modo, a arte serve àsmais elevadas necessidades da vida humana. Não há nada para serinterpretado, nada para ser julgado, pois, afinal, a natureza é inocentedemais para ser julgada. A obra de arte é para ser sentida,experimentada, para provocar os indivíduos a sentirem de outro modo,para conhecerem novas imagens, para agirem de acordo com suastendências, interrompendo temporariamente a ordem parasitária dosseus corpos – assim eles são coagidos, através da arte, a considerarempresentes estranhas sensações que mudam a vida deles para sempre.Certamente, não cabe à arte nenhum discurso inflamado, ideológico,mas outra coisa que acontece de modo subterrâneo: revolução. A artesempre foi revolucionária – e sempre será, por isso ela é tão indesejadapelos horrorosos homens de poder. Ela liberta pensamentos, atrai osindivíduos para uma face da realidade que é ignorada enquanto estãohabituados a julgar a vida a partir das imagens e afetos que têmconsciência. Mas ao contrário de quem julga, o artista faz das imagens edos afetos os seus alimentos para que suas obras possam permitir que ohomem comum conheça essa face da realidade que é anterior àsimagens, isto é, a face da produção ininterrupta das coisas que temosconsciência. O encontro com a obra de arte ativa forças desconhecidasno homem e por isso ela é sempre necessária em cada dia que vivemos.

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MASSIFICAÇÃO

“Arte para todos!”. A inclusão“cultural” promovida pelo Estado resultanuma diminuição da potência subversiva daarte – a sua massificação impede, de fato,que ela seja fruída de modo a produzir noindivíduo sensações e ideias que podemtorná-lo autônomo. Então, a velha políticado “pão e circo” continua a ser ferramentade distração para as massas e, comoresultado disso, a fruição da obra de artecontinua a ser privilégio parapouquíssimos. Por isso o Estado compra oartista e a sua obra para si – e, o que édeplorável, o artista se permite sercomprado em troca de riqueza, fama,reconhecimento, entre outras “vantagens”que fazem os seus olhos brilharem. Comoproduzir os mais elevados sentimentos eideias quando a sua obra é executada ouexposta em ambientes que tendem a

diminuí-la, no meio do corre-corre da multidão, invadida por estímulossonoros e visuais que impedem a sua fruição? Contrário a isso, o artistaque não se vende deve estar preparado para conviver com a sabotagem ea ameaça de destruição da sua obra (muitas vezes, nem uma linha nojornal sobre algo que produziu; pouco ou nenhum estímulo financeiropara a produção da sua obra). Glauber Rocha já esbravejava: “Eu meencontro no Brasil mar-gi-na-li-za-do!”. Assim acontece também com ofilósofo, como já dizia Nietzsche, que, ao submeter-se ao Estado, éimpedido de pensar. Portanto, é necessário que o artista e o filósofo nãose tornem servidores do Estado, já que os movimentos de intensificaçãoda vida por meio da arte e da filosofia nunca serviram aos interesses deconservação do Estado. É necessário que eles mantenham o poderafastado de si mesmos, sem dar importância a títulos, fama, riqueza oualguma autorização para criar e pensar. É necessário seguir adiante naprodução da própria obra sem esperar aplausos de uma massa que nãosabe experimentar, sem aguardar a autorização de alguma instituiçãopara falar, escrever ou expor os seus mais sinceros desejos, ideias,ações. Certamente, submeter-se à organização exterior da vida forneceao indivíduo lugar garantido na mídia oficial, grande público naspalestras, muitos livros vendidos, mas, em razão disso, paga-se umpreço alto: a sua criação é anulada... Em contrapartida, o indivíduonômade diz, com todo coração, “Adeus!” ao Estado, porque inventa oseu próprio trabalho, a sua escola, a sua família, a sua distração, os seusencontros, os seus movimentos sociais – assim ele é fiel aos seus afetose não cúmplice dos modelos (organizados pelo Estado) de trabalho, deescola, de família e de distração que servem para massificar os homens,para impedi-los de fruir a obra de arte e, em razão disso, tornam-seignorantes e incapazes de organizar a sua própria existência.

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VIOLÊNCIA

A ideia de que a vida humana possa se desenvolver de modocompletamente distinto do que é atualmente percebido ainda está longede ser nítida para a maior parte da sociedade. Testemunhamos odesespero das instituições para aumentar a vigilância e o controle sobre osindivíduos na esperança de varrer, para bem longe, as forças do acaso quesempre ameaçam a gregaridade. Para defender suas crenças, as reformasdos modelos de educação, de trabalho, de família, são, inevitavelmente,apenas tentativas de conservar os princípios que buscam ahomogeneização máxima dos homens. Dessa forma, aqueles que sededicam a esse serviço nefasto de violência contra a vida humana tornam-se, como é notório, úteis à gregaridade enfraquecida: suas invençõesabastecem o anseio da sociedade para aperfeiçoar a domesticação dosindivíduos. Uma sociedade sustentada pela mentira tem necessidade denovas mentiras que servem para mantê-la afastada das grandes questõesque ela não quer enfrentar. Com efeito, a violência dos seus métodos temcomo função ampliar a semelhança de agir, de desejar e de pensar entreos homens gregários, o que expressa o desejo fascista de alcançar uma“raça pura” constituída por indivíduos comuns e previsíveis e que, porisso mesmo, não representem mais nenhuma ameaça à sociedade. Taismétodos variadíssimos são sempre renovados por novas “comprovaçõescientíficas” que abastecem a conta bancária dos carrascos da vidaautônoma. Não se pensa, ou melhor, não se quer pensar, que quandouma criança se rebela contra o ensino atual está apenas expondo aviolência que ela sofre diariamente por meio de um modelo de ensino quepouco tem a ver com a sua vida. Seus anseios são outros, suasnecessidades são inteiramente distintas das obrigações escolares quepretendem domesticá-la em razão de um “futuro melhor”, isto é, de umfuturo sem diferenças, sem perturbações, sem imprevisibilidade. Diantedisso, a criança responde com desdém, com “rebeldia” (com aquilo queatualmente chamam de “déficit de atenção” e “hiperatividade”) e contraisso os salvadores das instituições se veem com um trabalho de “correção”que parece interminável (será que eles sustentarão por muito mais temposuas próprias crenças?). Mas contra essa tirania temos a invenção como anossa única saída. O que é inadiável é inventarmos o nosso ensino, onosso trabalho, a nossa família, as nossas distrações, tudo isso segundo

os nossos mais sinceros anseios – por efeito, os modelos estabelecidosque violentam as singularidades são desprezados por nós. Em vez daideologia, preferimos enfrentar a tela em branco. Tornamo-nosexperimentadores e organizadores do nosso próprio modo de aprender– um sagrado autodidatismo, acompanhado também de grupos que sereúnem apenas... para aprender. Amar o que estudamos, como meio deintensificação da nossa própria vontade, faz jogar para longe o tédioque, inevitavelmente, abate os espíritos mais potencialmente livresquando estão entupidos de exames, tarefas e obrigações curriculares datriste educação oficial – pois a filosofia, a biologia, a antropologia, porexemplo, enquanto são conduzidas segundo as necessidades dediferenciação da vida humana, aparecem sempre como uma ameaça aosque precisam organizar o ensino segundo os seus interesses maismesquinhos. Mas se podemos fazer isso com o ensino, podemostambém fazer com o nosso trabalho, com as nossas viagens, com asnossas relações amorosas: sem contratos, sem classificações, umaabertura à produção dos afetos que nos interessam... A tela em brancodiante de nós é uma provocação para enfrentarmos a difícil tarefa dearriscarmos, de amarmos o imprevisível, de sentirmos aquilo quefazemos sem ter a necessidade de nomeá-lo, de defini-lo racionalmente.Entregar os pincéis para que alguém pinte por nós, que nomeie paranós, é muito mais fácil, mas, certamente, somos desonestos com a nossaprópria existência quando nos limitamos a isso.

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A ausência total de origem e conclusão na produção do mundoelimina a noção de que seríamos a criação de uma entidade sobrenatural,que cumpriria um projeto ou modelo finalista predeterminado por meiode uma vontade superior à vida. Contra isso, radicalizamos o nossopensamento quando podemos afirmar que sempre existimos e quesempre existiremos, desde que se compreenda que essa afirmação nãotem nenhuma relação com o que dizem os espíritas ou outras doutrinas dareencarnação da “alma”. As nossas noções de origem e conclusão,nascimento e morte, por serem produtos da nossa capacidade deimaginar, deixam de alimentar as superstições religiosas quandopensamos a vida – e nós mesmos – como continuidade que se diferenciade si mesma, como potência indestrutível de superação. Ao invés da noçãode origem, podemos pensar a vida como diferenciação, como mudançacontínua. Afinal, existe apenas a mudança, o mundo é mudança, somosmudança – e podemos compreender que esse eterno escoamento do realnão pode ser, essencialmente, fragmentado por etapas, tais como as quenos habituamos a fazer a respeito do conhecimento da nossa existência,quando esta aparece como “infância”, “juventude”, “vida adulta”, “velhice”e “morte”, pois é impossível que seja apreendido o instante que alguémnasce, que se torna jovem, adulto, idoso ou quando morre. Reduzir assima nossa vida e a vida em geral nos mantém afastados do conhecimento deque vivemos sempre de maneira contínua, sempre de modo diferente – eé inevitável que a ignorância disso alimente as mais variadas superstições.Desejar que a vida continue através de nós, mas de outro modo, nadamais nos faz do que sentirmos que essencialmente jamais podemos serdestruídos – eis o saber do guerreiro, corajoso, que põe a faca entre osdentes e vai à luta, com a absoluta confiança de que seguirá presente parasempre. Ele tem a consciência de que cada instante que vive jamais vai serepetir do mesmo modo, que jamais deixará de pertencer ao elo que omantém ligado ao devir do mundo de toda a eternidade... É impossíveldizer com clareza todas as nossas mudanças de um dia para o outro, nocorpo e na mente. É, também, impossível prever o que seremos no diaseguinte, como expressaremos as nossas ideias, o nosso querer, quemudanças viveremos – um seguir-no-mundo que nunca se submete aocálculo e à previsão. O conhecimento de que jamais deixaremos de seralgo da natureza nos empurra para participarmos ativamente dessacontinuidade criadora, tecendo o nosso futuro e o futuro do universo comautonomia e alegria, comandados por um autêntico amor cosmológico.

CONTINUIDADE

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IMPOTÊNCIA

Quando nada mais parece nos tocar, nenhuma música, nenhumlivro, nenhuma conversa, fazemos seguidas tentativas (frustradas) paraexpressar alguma ideia interessante, mas, então, finalmentepercebemos que a nossa vontade de doar algo ao mundo está,momentaneamente, entravada. A partir disso, podemos até imaginarque a roda da criação parou de girar em nós – mas isto é, certamente, onosso maior engano. Os momentos de impotência criativa nos ensinam,no mínimo, a compreender o que constitui o cotidiano dos indivíduosque estão capturados pela organização moral: como eles estãoimpedidos de evoluir conforme os seus mais sinceros desejos, são alvosfáceis da indústria do passatempo. A “felicidade dos acomodados” (umaespécie de alegria derivada do “tapinha nas costas”) impede que aimpotência criativa seja, de fato, experimentada – ela é covardementeescondida pelos brinquedos industriais que são produzidos para ossofredores da realidade... Tagarelar, por exemplo, ainda é uma das viasmais fáceis para distrair-se de si mesmo (para isso, uma boa lista de“amigos” pode ser bastante útil). Agir como todos devem agir nosmantém distantes do conhecimento da nossa singularidade de ruminar,de escutar as múltiplas vozes interiores que vão, gradualmente,emergindo em nós, vozes que desejam conduzir a nossa existência,acompanhadas de cores, sons, sentimentos – assim a nossa consciênciaé enriquecida pela força da vida que nos impulsiona. Sem dúvida,existem coisas que nos tocam, que nos mobilizam, mas, nos momentosde crise, elas parecem passar por nós sem nos deixar nada, como se nosobrigasse a uma pausa e a um desvio necessário para que seja possível,enfim, alguma experiência sem falsos temores, longe de questões dotipo “onde é que isso vai dar?”, como saída necessária para quepossamos retornar ao nosso querer. Outrora, o sentimento deimpotência artística poderia nos levar a agir como os massificados, istoé, desejar as distrações enlatadas e fazer a nossa própria existênciasimplesmente passar, de maneira entorpecida. Mas, depois de tantasmudanças e já com algum respiro de vida autônoma, não queremosmais fugir dos momentos de crise, pois na verdade já passamos por elesalgumas vezes e sabemos que a impotência adormece quando a nossanatureza volta, regenerada, a fluir para o mundo através das nossasobras. É preciso ser grande para não se opor aos momentos de crise...

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ESCREVER

Desejar que as palavras sejamcapazes de expressar algo das vivênciasinteriores que as engendraram é,podemos afirmar, a mais difícil tarefa dequem escreve, ou melhor, de quem temuma relação artística com a escrita. Umescritor assim consegue perceberimportantes mudanças no seu antigohábito, torna-se consciente doamadurecimento do seu pensamento,pois à medida que sua escrita continua alhe servir como demonstração de que oato de escrever carrega inevitavelmente

as suas experiências com o corpo, ele necessariamente adquire a grandesabedoria de que somente é possível escrever de maneira honesta quandose vive honestamente com a vida. O escritor afirmativo passa a expressaras ideias que jamais nasceriam se, ao contrário, ele estivesse limitado àmesmice, às ilusões de “verdade”, “início” e “conclusão” que a linguagemgregária poderia levá-lo a acreditar. Portanto, por priorizar uma relaçãoartística com a escrita, faz com que o uso gregário das palavras estejareservado apenas para o que lhe convém. O silêncio e a solidão, e não atagarelice, são os melhores meios para fazer da escrita a testemunha maispróxima da sua evolução criadora. Dito de outro modo: o escritor-artista

deseja comunicar aquilo que é comum a todos, ou seja, a capacidadeque cada um tem para expressar, mesmo de modo limitado, a suamultiplicidade de afetos. A força dos seus escritos quer nos dizer isto:“Sinta, pegue isso, leve-o para mais longe do seu jeito...”. Um ensino quetivesse como fio condutor o estímulo à capacidade criativa dosindivíduos quando se lê ou se escreve algo, isto é, um ensino quepriorizasse a relação com a leitura e com a escrita como maneiras deevoluir, certamente não teria nada a ver com o ensino atual, cujoestímulo à leitura e à escrita tem objetivos bem claros: a instruçãomáxima dos indivíduos como garantia da manutenção das “verdades”vigentes, como processo contínuo da reprodução dos funcionários dopoder, da proliferação dos juízes da vida. Diante disso, torna-secompreensível que a escrita honesta seja, de fato, uma raridade nomundo dominado pela comunicação global. Quem disponibiliza suasmãos para se limitar a escrever algo que não é vivido, quem escreveporque alguém lhe ordena escrever, quem se serve das palavras paradisseminar os afetos de ódio e de vingança, quem escreve para “seralguém” na vida, quem escreve apenas por causa do salário, comete omaior crime contra a sua própria vida, que é esmagar as suas vivênciasinteriores em troca de um quinhão do lucro dos “bem-sucedidos”. Oescritor-comum é apenas o produto de um receio imaginário deperceber a si mesmo como caos desejante e, assim, protege-seexageradamente na noção de “ser”: “Eis, meus caros, um 'grande'escritor!”. Limita-se a escrever para um público que anseia por palavrasque alimentam suas esperanças de eliminar os “males” da existência,ansiosos por receitas que sejam facilmente aplicadas ao seu cotidiano.Nada mais explícito sobre isso do que os livros dos “gurus da felicidade”(esses sacerdotes modernos...) e, sem dúvida, também os textosjornalísticos que derrubam e elegem políticos, que ditam padrões decomportamento, que reforçam a “verdadeira” percepção da realidade,que dizem para todos o que “aconteceu”... – a era dos mass media étambém a era da maior vulgarização do homem e, também, da maiortirania sobre a vida. Mas os grandes escritores redimem a escrita do seuexcessivo uso gregário para comunicar a felicidade que sentem por seapropriarem das palavras conforme o seu desejo. Eles escrevem paratocar no coração de seus leitores, criando, desse modo, o seu público, enão para serem compreendidos por um público que se arrasta nomundo, sedento por “explicações” que servem para consolá-lo. 35

RESSENTIMENTO

O ressentido volta-se para o seu passado e, quanto maismergulha nele, mais encontra objeções contra si e contra o devir domundo. Se fosse possível, ele desejaria ter feito outras escolhas, talveznão ter se calado, talvez ter enfrentado alguns riscos e incertezas, talveznão ter feito isso e aquilo. Desejaria, até, ter sido outra pessoa – mascomo imagina que o seu passado é impossível de ser alterado, resta-lheolhar para o seu futuro, para o futuro do mundo, e a resposta para apergunta “Para aonde vai a existência?” parece-lhe teimosamenteescapar. “Haverá um futuro melhor do que o triste e injusto presente?”,insiste ele. A dor por não viver de acordo com o seu desejo é, de fato, asua maior objeção contra o mundo. Seu cansaço crescente, a obrigaçãode cumprir os desejos dos outros, a vida que não para de passar, asucessão dos acontecimentos que são desfavoráveis ao seu desejo, asruminações das impressões que servem para alimentar o seu ódio àvida, o ódio às supostas causas dos seus males, tudo isso lhe fazimaginar que o mundo, sua realidade inalterável, nada mais é do querepressão. Cansado também de si mesmo, da inutilidade do seu ódio, o

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ressentido imagina que sua luta pela vida, isto é, sua busca pelafelicidade permanente, é algo que parece ser impossível de ser alcançado.Afinal, ele se dá conta de que as forças da vida excedem o seu desejo –como isso o atormenta, percebe que a vitória sobre o acaso é apenas umaquimera, uma ficção, um engodo. Resta resignar-se com o sentidoimposto do exterior, tornando-se cúmplice da ordem moral que sealimenta do seu sangue, que, através dos entorpecentes, faz livrá-lomomentaneamente do terrível sentimento do nada, mas que também oameaça, castiga, produz medo. Portanto, as relações de poder não seexplicam pela famigerada noção de luta de classes. Elas se constituem porindivíduos que não agem, que padecem, que sofrem com o que lhesacontece, e que por isso são movidos por vingança, por vontade de corrigiros homens, de corrigir o mundo. Em razão do ressentimento, éestabelecida uma dependência mútua entre o senhor e os seus servos, demodo que os servos dizem para si mesmos: “Não conseguiríamos viversem o rei!”; e o rei, da mesma forma, diz para si: “Não conseguiria viversem os meus súditos!”. Impotente, o ressentido quer uma pequenafelicidade, uma pequena ocasião para ser invejado, algum elogio, algumreconhecimento, algum sucesso, alguma fama – e isso tudo ele recebe,sem dúvida, desde que seja submisso ao poder. Mas o homem de poder,por ser ressentido, também é servo daqueles que o servem: como tambémquer ser invejado, bajulado, reconhecido, é inevitável que dependa dequem se submete para satisfazê-lo. Então, todos servem, os impotentes eressentidos lutam por sua própria servidão, antes a servidão, antes umamigalha de prazer, do que viver de outro modo, onde haja algum risco,alguma imprevisibilidade, alguma criação. Eles querem, ou melhor,necessitam do poder econômico, da acumulação de bens materiais, debens culturais (de uma suposta “sabedoria”), para que a sua misériaexistencial seja disfarçada. Querem dinheiro, muito dinheiro, para seremadmirados, invejados, para se sentirem distintos, superiores, senhores dealguma coisa. Portanto, o capitalismo não é nada misterioso, pois ele éapenas sintoma da necessidade dos ressentidos esconderem, até de simesmos, o seu sofrimento. É possível perceber que não há, de fato,oposição entre “ricos” e “pobres” : enquanto os indivíduos sãoressentidos, permanecem de mãos dadas para a reprodução de tudoaquilo que envenena a vida humana... Ah, e como eles olham com ódioquando se sentem “incultos” e “medíocres” diante de alguém forte,exuberante, alegre e livre do ressentimento! Mas é inevitável que a

mediocridade do ressentido – que faz até ele se sentir incomodado –leva-o a tentar algum destaque numa atividade que não seja a do“trabalho-pelo-lucro”: essa é a razão que o leva a tentardesesperadamente algum sucesso (leia-se: alguma admiração, algumainveja...) na música, na literatura, nas artes plásticas. Mas como ele lutacontra o tempo, a superficialidade da sua “atividade artística” apenasdenuncia a sua esterilidade, fruto de sua péssima alimentação dassensações e do tempo. E a política dos ressentidos modernos é para rir:sua democracia representativa é pura distração, circo, passatempo,ferramenta de poder – o próprio ressentido percebe cada vez mais queela não pode ser levada a sério. A democracia serve para desviar o olharde si mesmo e, dessa forma, reforçar os afetos de rancor quemultiplicam as exigências de que alguém (o que habitualmente sechama de “político”) deve resolver os problemas do mundo. E quais sãoos problemas do “mundo”? Certamente são os que ameaçam a suatranquilidade, a sua pequena felicidade, em suma, o seu mundoprivatizado... “Um mundo sem dor, por favor!”. Mas tudo se decideaqui: a dor, para o ressentido, é sempre o começo do seu fim, enquantopara quem é sadio, é apenas o começo da sua liberdade de agir. Masisso é dizer que, enquanto o ressentido nega a vida, odeia a vida, ooutro, o criador, afirma a vida, ama a vida. Mas isso é também dizerque, enquanto o ressentido olha para o seu passado com um olhar dereprovação, o homem afirmador não apenas olha para o seu passado,mas também se diverte, brinca, se alegra com ele, faz alguma coisarealmente grande com ele. Mas isso tudo é, enfim, dizer que, enquantoo ressentido entrega o seu destino nas mãos de um parasita, quepromete livrá-lo do “mal”, o homem sadio recusa essa submissão eassume a responsabilidade pelo seu próprio destino – ele não foge, nãoprecisa fugir da vida, porque sabe que não há nada fora da vida.

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INDOLENTES

Os “gurus da felicidade” não cansam de pregar o “conhecimento desi”, a busca compulsiva pelo “verdadeiro eu”, de ter o “cuidado de si”, ouentão, o “amor a si mesmo”, o “estar de bem consigo mesmo” e tantasoutras expressões vulgares que servem para capturar um número cada vezmaior de indivíduos que sofrem da realidade, que padecem dos valoresmodernos e que, por isso, procuram ajuda. Querer ajuda é algo que nuncairemos censurar, pois em certos momentos ela é parte necessária daexistência – mas o que censuramos é a ajuda oferecida pelos maisvariados sacerdotes modernos, que vestem a roupagem de escritores,sábios, especialistas da psique, espiritualistas, místicos: não passam deterapeutas charlatães que pregam a “sabedoria-aplicada-no-cotidiano”.Difícil passar por eles e não perceber a enorme carência de se tornaremindispensáveis para quem lhes procura, pois, afinal, dependem dosdoentes para acumular mais dinheiro. Mas, por outro lado, tão ruimquanto esses gurus são os que precisam deles, os que pedem receitasfáceis de serem decoradas e aplicadas (a liberdade oferecida na bandeja),de unir a “teoria” (sempre a mais banal) com a “prática” (a aplicação como

prova da “verdade” teórica). Pois bem, estes são os seres indolentes,sedentos para aplaudir uma nova receita, uma nova instrução, que sealegram com novas doses de conscientização, de interpretação designos, de “verdades” que reforçam a sua passividade e o seu “eu” – nãohá como negarmos que eles realmente merecem os seus gurus.Depender de alguém para organizar as suas relações – seja na família,no trabalho, nos estudos – apenas expõe a inércia, o descuido de si, aausência de si e, também, o temor diante de si, dos pensamentos edesejos mais próprios que podem, sim, organizar suas relações semdever nada a ninguém. O indolente tem pavor do silêncio e da solidão,não para de odiar a vida que tende a manifestar-se nele por meio deideias e desejos absolutamente inocentes. Portanto, ele necessita dosgurus para manter-se afastado das forças revolucionárias doinconsciente. “Afastai-vos das tentações do mal!” – esta é a moral dopadre e também, é claro, a dos “gurus da felicidade”... De um lado, osindolentes querem mudanças artificiais e, por outro lado, seus gurusaconselham mudanças confundidas com um novo cargo na empresa,um novo parceiro conjugal, uma nova oportunidade de enriquecer, alémde viagens banais que não passam de deslocamentos no espaço – oindolente pode viajar ao redor do mundo para encontrar o seu“verdadeiro desejo”, mas jamais o encontrará, porque simplesmentenão há “verdadeiro desejo”, assim como também não há “verdadeirapersonalidade”, “verdadeiro amor”...

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AULA

Imaginamos um ouvinte que está disposto a fruir uma aula, ouseja, que não pretende ser instruído por ela, mas, ao contrário, serdestruído nos seus mais arraigados hábitos de julgar, de perceber e depensar – imaginamos, sim, a experiência-aula como banho mental, comoproblema social de higiene, onde o ouvinte tem seus falsos tormentossuspensos, restando-lhe apenas o que é, no fundo, o essencial: suanatureza modificada como condição para que ocorra uma autênticaregeneração a partir do que ele é capaz de fazer com isso... Mas o que éisso? Tudo o que se passou nele através da experimentação-aula... Mas asideias e a transformação mais profunda são assassinadas quando oouvinte, devido ao hábito da educação oficial, mete-se a tagarelar, a serum pedante inevitavelmente estéril. Interromper um fluxo de ideias éestorvar a revolução silenciosa que uma aula pode proporcionar. Quem sededica de coração para ministrar uma aula deve ter isso na sua mente: aaula tem que ser uma obra de arte – e mesmo sabendo que a aula comoobra de arte sempre será uma exceção, ela deve ser desejada, uma aulatem que ir além dela mesma, pois cada aula é um meio para que aconteçaa aula maior, isto é, a aula como obra de arte. Para isso, é condiçãoindispensável que o professor seja capaz de viver o que ensina: assim eletem o nosso amor, respeito e admiração; assim ele é capaz de, realmente,mudar a vida de alguém e, por isso mesmo, cria os seus próprios alunos.

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PRIVATIZAÇÃO

O consumo de representações de modo acelerado, algocaracterístico nos nossos dias, aparece através do amor (e também doódio) pela identidade sexual e racial, assim como o fanatismo pelo time defutebol, o patriotismo e, também, pela necessidade de “vestir a camisa daempresa”. O perigo disso tudo, longe de ser ignorado por nós, é que a vidaaprisionada nessas representações faz despertar o fascista-em-nós,fenômeno que se torna explícito em situações que envolvem uma sériaameaça à manutenção de determinados privilégios pessoais. “Brancos vs.Negros”, “Sulistas vs. Nordestinos”, “Homem vs. Mulher”, “Rico vs.Pobre”, são apenas alguns exemplos da reação ressentida ao orgulhoferido. Sente-se ferido por ter sido atacado naquilo que, essencialmente,não se é: uma identidade qualquer. O homem privatizado, bem instruído,bem informado, faz do conforto dos espaços que lhe são familiares umaespécie de defesa contra os fluxos nada familiares que ameaçam o seuorgulho, o seu culto à personalidade, o seu cargo na empresa, o seu papelna família. Reduzida a essa fotografia do desejo que apenas conheceobjetos que lhe faltam e fins a serem alcançados, a sociedade se vêobrigada a reprimir os “desejos selvagens e fascistas” como meio para“domesticar” e “civilizar” o homem, tornando-o “apto na sociedade”(Elisabeth Roudinesco, por exemplo, reforça essa tese do senso comum aodizer: “Muitas pessoas são inconscientemente racistas e antissemitas.Quando não há lei, esses sentimentos se exprimem”). Mas a sociedadeainda não compreendeu que é o desejo aprisionado, refém darepresentação, que se manifesta de modo reacionário. O processodesejante é essencialmente criador, doador, não se confunde jamais com afalta, estabelece relações de amor e de amizade entre os homens, ou seja,o desejo é necessariamente social, coletivo, conecta diferenças reais, éirredutível à representação. Mas isso tudo é violentado quando seimagina que o desejo pertence a um sujeito envaidecido que diz: “Meudesejo!”. Tal desejo do homem privatizado caracteriza-se por ele querertudo o que limita-se ao seu umbigo, e por isso alia-se aos que prometemconservar o seu mundinho próprio, dando as costas para os problemassociais e ambientais mais urgentes. Com efeito, ele passa a ter um horrorcrescente pelo espaço público, odeia quem não pensa como ele, quem não

age como ele, quem não trabalha a favor dele. O gosto pelo poder vemdaí, desses seres sisudos, tristes, impotentes, incuráveis enquanto estãodependentes das imagens que constituem a artificialidade da suaexistência. A corrupção de uma sociedade não está dissociada de umaartificialidade das relações humanas que constituem os espaçosprivatizados: os condomínios e as casas vigiadas, os automóveisblindados e os shopping centers são apenas alguns ícones desse pavorao estranho, ao novo, ao imprevisível. A necessidade deenclausuramento não resolve nada, apenas adia o desinvestimento nosmodelos.

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REVOLUÇÃO

Reinventar-se para não ser prisioneiro do poder; desejar a vidarevolucionária e não a revolução que se confunde com a posse do poder.Percebemos que a vida revolucionária não passa através dos gestospitorescos e discursos supostamente “imoralistas”. O revolucionário nãovive em função do aplauso, não quer confetes ou holofotes. A reinvençãocontínua de si é a sua arma silenciosa que pode alterar a percepção deuma sociedade sobre a noção de revolução: compreende-se a revoluçãoquando se vive de modo revolucionário e não quando se faz um projetopara que ela ocorra. Uma sociedade conduzida por uma contínuareinvenção promovida por esses seres que não cessam de reinventarem-se, que são usinas de ideias, que transbordam afetos de amor ao mundo,se torna profundamente artística – e por isso pode festejar seucrescimento em força, em autonomia, em alegria. É o contrário de umasociedade constituída pelo medo da reinvenção – atualmente, muitosdos seus artistas, por exemplo, são apenas sombras dessa revolução.Basta observá-los com cuidado para constatarmos que a “revolução” queeles dizem não consegue escapar do império da representação, de umaimagem que fazem do caos. Portanto, ora a liberdade aparececonfundida com a transgressão às leis, ora aparece confundida com aexigência do reconhecimento pelo Estado dos direitos dos que são“diferentes” do padrão social – eles ainda falam excessivamente de umaperspectiva da existência limitada à noção de humano (o caoshumanizado é um desses sintomas). Mas se o revolucionário não leva asério os direitos humanos é porque ele já cria os seus próprios direitos.Esses direitos criados não são, de nenhum modo, humanos – eles sãodireitos da vida que escapa das tentativas humanas de repressão. Eaquilo que escapa não é problema dele, é problema da sociedade; agora,ela vai ter que se mexer: ou seus indivíduos se reinventam paraevoluírem, ou então, resta tentar reprimir, inutilmente, as palavras, ospensamentos, os gestos, isto é, os signos que expressam uma potênciainesgotável de reinvenção do mundo – o revolucionário se alia a isto enão a um entediante ideal de revolução... O ideal assassina areinvenção... Reinvenção de si mesmo: por viver em função disto, orevolucionário se mantém jovem, curioso como criança. Luta com tudoque pode para não perder a inocência que o leva a poetar. Sua poesia évivida e não uma verborragia ou jogo de palavras.

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INCLUSÃO

A divisão do mundo em duas realidades, a teórica e a prática,enquanto estão sustentadas por uma moral, por uma irresistível vontadede corrigir os homens, torna-se nociva porque a insubordinação àverdade é julgada como “minoria”, “deficiência”, “corrupção”. Astentativas de converter o que é diferente, o que é julgado como falso, a umprincípio de verdade, de superioridade, atravessam a história dahumanidade há séculos: potências como a filosofia, a arte, a ciência e areligião aparecem enredadas na antiga noção do Bem universal. A posseda verdade, que se acredita como princípio do mundo sensível, justifica anecessidade de impor aos homens certos hábitos, modos de perceber e dedesejar, que atendem a interesses que são inerentes ao ressentimento:mesmo que se diga que há “neutralidade” ou “desinteresse” na imposiçãode uma verdade, o que se pretende com isso é apaziguar aquilo que éjulgado como causa do “mal”, ou seja, aquilo que faz o caos emergir.Através da “comprovação científica”, o homem do ressentimento acreditaser mais cômodo e mais justo para ele (e para a sociedade) aplicar umateoria que serve para interpretar as manifestações mais estranhas da vida– desse modo, ao amarrar a diferença, age de acordo com um saberacessado pelas muitas horas de estudos e de pesquisas durante a suaformação acadêmica (nesse sentido, o conhecimento passa a se confundircom o acesso a uma verdade). O seu sentimento de superioridade e oorgulho da sua “sabedoria” torna-o fascista, que ama exercer a sua

autoridade. O grande golpe do poder consiste em fazer com que oshomens acreditem que a verdade é o princípio, como se ela sempreexistisse e que poucos (geralmente os que são formados pelasuniversidades de maior prestígio) podem acessá-la. Mas a vida escapa,segue escapando e sempre escapará das seguidas tentativas de docilizá-la por parte dos que aplicam um saber em nome do “bem comum”. Oshomens de bem – e sua pretensão de neurotizar todos – pensam demodo semelhante ao que diz Elisabeth Roudinesco: “A psicanálisefunciona muito bem. Entretanto, é verdade que não curamos bem apsicose, embora tenhamos nos desenvolvido muito nesse tematambém. Os loucos hoje buscam na psicanálise um complemento, jáque os psiquiatras só querem saber de medicamentos”. Essa vontade deinclusão, de igualdade a partir de um modelo que é imposto por ser o“melhor” para todos, tem, para nós, duas faces: uma manifesta e outralatente. A que se manisfesta é o desespero para eliminar o que escapa domodelo. Por isso a necessidade de incluir para excluir: por mais que osdiscursos sejam de “inclusão da diferença”, a diferença que é incluída ésempre a da representação (diferenças de raça, de classe social, de sexo,de mobilidade física, etc.). Desse modo, a inclusão das supostas“diferenças” pretende impedir que a diferença real se expresse atravésda criação de maneiras de aprender, de trabalhar, de escrever, de falar,enfim, de se relacionar com o mundo sem referência exterior à vida,sem estar amarrado a um modelo de educação, de trabalho, de família,de consumo. Quem reage a essa imposição é marginalizado pelo sistemaou se adapta àquilo que não foi inventado por ele, mas imposto doexterior (na educação atual, o mais nítido exemplo dessa adaptaçãoviolenta é o fenômeno Ritalina, “a droga da obediência”). Já a outraface, latente, é quando se transmuta as políticas de inclusão em algo quefaz a vida passar, fugir, tecer conexões que rompem com aquilo que amoral da igualdade mais teme. O feitiço, então, volta-se contra opróprio feiticeiro. Nos parece que, de todas as políticas de inclusão (épossível fazer um uso potencializador de muitas delas), a digital é, nessesentido, a mais interessante. O Wikileaks, por exemplo, nos mostra queo desejo jamais estará destinado a estagnar-se: contra isso ele reage,escapa, flui, produz realidade. A alternativa à marginalidade e àadaptação é, portanto, criada através de um coletivo desejante deanônimos, maravilhosamente anônimos, que, ao se expandir, obriga ahumanidade a agir e, talvez, até a romper a casca que a sufoca. 42

REPRESSÃO

No mundo contemporâneo, o desejo contínuo por repressãomanifesta-se pelo modo vulgar de ouvir música, de ler um livro, de ver umfilme, de ouvir uma aula – modos nada revolucionários de fruir obras queforam generosamente doadas para nós. O domínio de um tempoimaginário que organiza a sociedade, isto é, a organização através daincerteza que caracteriza um tempo futuro, gera angústia, desconfiança navida e a consequente necessidade de maior repressão. Aprendemos aexperimentar não por meio de uma projeção do que irá acontecer notempo imaginário, mas somente aprendemos a experimentar...experimentando, sem deixar a nossa consciência atrapalhar. É agindo,caindo, rindo, dançando, tal como uma criança que não deixa aespeculação consciente assassinar a sua experiência com o corpo e com otempo. Redimimos o tempo quando tornamo-nos produtivos, quando

fazemos o que queremos, o que amamos, sem termos necessidade delutar contra o tempo do relógio. A repressão que um povo sofre – e que,no seu limite, faz explodir o ódio ao seu repressor – não é, de modoalgum, exclusividade do Estado despótico. No Estado democrático arepressão também existe. O tempo da criação e da felicidade éreprimido pela imposição do relógio, pela imposição da normalidade,pela imposição da inclusão, pela imposição da diversão, pela imposiçãodo consumo, pela imposição da informação. Mas a obra de arte nosredime do domínio do tempo artificial e nos permite mergulhar numaintensificação da vida em nós. Por isso qualquer poder odeia a arte, e asua massificação é uma tentativa de diminuí-la, de torná-la inofensiva,de reprimi-la. A filosofia também é reprimida quando o pensamento,dentro da academia, torna-se inofensivo – em geral, o filósofoacadêmico, em troca de salário (e também em razão da sua vaidade),resigna-se com uma vida de burocrata e reprodutor do saber oficial. Arepressão da democracia liberal é sutil e, assim como ocorre nasociedade despótica, também é perigosa, também é desejada, mas deum modo que lhe dá um sucesso singular: como não existe o tirano, elaimpede que o objeto de ódio tenha um rosto, que seja identificado. “O”repressor, de fato, não existe. O que existe são indivíduos que queremreprimir, que são educados para a repressão, que recebem recompensaspor reprimir. Mas o que também existe é a repressão que estes mesmosindivíduos sofrem por meio de outros que, no fundo, também sãoreprimidos, e assim segue um sistema de repressores-reprimidos... Éinevitável que os que aceitam este jogo perverso mantenham o sucessoda democracia liberal – eles lutam pela sua própria repressão porquedependem da preservação deste sistema.

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EDUCAÇÃO

Os estudantes que estão ávidos para acessar alguma teoria quepretendem aplicar, raramente chegam a questionar os motivos que osdeterminam a se prepararem durante anos para poder reproduzir, damaneira mais eficiente possível, aquilo que aprenderam nos seus anos deestudo informativo. Queremos dizer, com isso, que não podemosdispensar um tipo de ensino que seja distinto do ensino oficial. Portanto,é necessário que o estudante tenha uma “autodisciplina”, um certo esforçoque seja suficiente para escapar da disciplina imposta pela educaçãooficial, até que, enfim, ele se torne capaz, de acordo com suasnecessidades, de viver sem se submeter à transmissão de informação dasescolas – embora seja possível, é certamente difícil que esse estímulo paraencontrar as ideias que são as mais preciosas para a vida de alguém possaocorrer entre os muros da escola... Já disseram que a criança precisa deespaço para correr, de árvore para subir, de rio para mergulhar, ao invésde ficar confinada várias horas num ambiente que lhe é hostil, durante osanos mais exuberantes da sua existência. Não dar mais prioridade àsinformações que são impostas burocraticamente na sala de aula é uma viaimportante para quem deseja sinceramente o conhecimento, seja na idadeem que estiver. A diferença é enorme: o conhecimento do que acontececom alguém, o conhecimento das ideias que brotam em alguém e oconhecimento dos anseios de alguém se distinguem totalmente doconhecimento que é distante da vida de alguém, por simplesmente serimposto para todos obedecerem. A repressão do corpo e da mente que os

alunos sofrem durante uma parte considerável dos seus dias, sejaatravés do confinamento (que produz afetos de entristecimento, tédio,ódio e também o bullying), seja através do controle das horas de estudofora da escola (que roubam o tempo da experimentação), apenas osmantêm distantes de experimentarem um amor que redime o homemda sua existência triste, que é o amor ao conhecimento, pois somenteatravés desse amor o homem passa a zelar por seus momentos deestudo e de experimentação, e de também perceber a educação comoprocesso vital da sua existência, e não como obrigação de conhecer algopara poder chegar a algum lugar ou para ter alguma vantagem naconcorrência pelos “melhores cargos”, mas para viver com maior força,inventivo e cada vez mais capaz de transformar a si e o ambiente em quevive. Num caso, o estudante é um mero reprodutor de informação,inofensivo e dócil; no outro caso, o estudante permite que a vida gereideias através dele (a sua dedicação aos estudos permite que tenha essaaliança criadora com o pensamento), por isso seu conhecimento é frutodaquilo que apenas aconteceu com ele – o conhecimento une-se aosacontecimentos da sua existência... Num caso, o conhecimento estáalheio às questões mais essenciais da humanidade porque o estudante,independente da sua classe social, é severamente preparado para serapenas mais uma peça da máquina de reprodução do atual sistemaeconômico; no outro caso, o conhecimento está diretamente ligado àpele e ao coração dele, por isso tem necessidade de continuar a conhecero que, para ele, é a razão para continuar vivendo. Ser apenas umreprodutor de um saber é o destino de muitos estudantes intoxicadospela educação oficial, que os tornam ignorantes de si mesmos – libertar-se desse terrível sistema de “ignorantização” humana através da“democratização do ensino” é, evidentemente, muito complexo, já queenvolve muitos fatores, acasos, encontros alegres com lugares e comgente disposta a ensinar e aprender de outro jeito, além da coragem deseguir os seus instintos, ou seja, de ler aquilo que deseja, que maiscombina com sua vida, de escrever aquilo que pensa, de dizer o quenasceu das suas experiências. Enquanto a educação estiver separada davida, haverá apenas uma sombra do conhecimento dela, e os estudoscontinuarão associados com sentimentos de repressão, de fadiga e detristeza. Quem se alegra com o conhecimento, quem vive para ele, vivetambém para disseminá-lo – e busca redimir o conceito de educação aolhe dar um novo e nobre sentido. 44

AMOR

Para alguns homens, chega o momento em que são tomados porum sentimento impessoal que os leva a cuidar da sua existência para queela sirva de passagem para uma energia livre, que cresce e alcança umgrau de expansão que continua muito além da sua própria carne. Umolhar atento para o passado da humanidade permite percebermos algunsindivíduos que entregaram a sua existência por amor – uma entregairreversível, sem livre escolha, em razão de uma urgência de algo quesentem ser muito maior do que os seus nomes, os seus corpos, as suashistórias pessoais. Alguém experimenta isso quando se dá conta,finalmente, de que a própria obra está em processo: em certos casos,pode-se até dizer que parte dela esteja feita – isso pode ser um fato –, mascomo o amor ao que está efetuado apenas alimenta a ilusão do eu, éindispensável que o desejo para cuidar da sua existência – e, porconsequência, da própria obra em construção – não seja esquecido.Ousamos dizer que o maior entendimento entre os homens apenas podeser conduzido pela experiência desse sentimento de participar, de algummodo, do engendramento daquilo que é vital e indispensável para o futuroda humanidade. Se o que os homens amam é esse processo, está desfeita,então, a confusão do amor a algo que se imagina fixo, tal como o amor aooutro, ao objeto ou a qualquer coisa supostamente isolada. Se quisermosredimir o sentido vulgar da palavra “outro”, é preciso considerá-lo nãocomo uma realidade “em si”, mas como parte de um todo, o que permiteque ocorra uma aliança temporária que se constrói junto com alguém, istoé, uma amizade indispensável que é sustentada por um amor à vida. Oolhar distante e introspectivo, caro à experiência de amar, nos liberta doamor à verdade absoluta, do fanatismo religioso, do orgulho de pertencer

a uma seita, seja ela religiosa, moral, filosófica, artística. O amor dosfanáticos é mesquinho, venenoso, inibe o processo criativo, impede aautonomia, reproduz o temor dos indivíduos sobre tudo aquilo que temum fim. Sem o engendramento da obra, os fanáticos e crentes de todaespécie não conseguem compreender que o fim não se opõe ao processode produção da realidade – por isso o melhor remédio contra a fé é viverde modo criativo. E apenas há filosofia, ou melhor, conquista da criaçãofilosófica, quando se é conduzido pelo amor, pois, caso contrário, opassatempo da linguagem, a fé na razão, fazem derivar questõesdistantes da vida, que encobrem o processo e tornam a filosofia umaferramenta para interesses vis... A brevidade da nossa existênciaorgânica já seria motivo suficiente para entendermos a urgência de nãodesperdiçá-la. Acordamos, comemos, respiramos, trabalhamos, enfim,existimos em função de alguma coisa que pode não estarsuficientemente nítida para nós, mas que sentimos nos empurrar paraadiante. Esse cuidado de si, como já é possível compreender, somente ésustentado pelo amor.

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IGNORÂNCIA

Acreditar que um cérebro, ou um órgão qualquer, estãoseparados das relações com o mundo, traz consequências fundamentaispara a construção de uma cidade. Alguém é adoecido por viver nummeio violento: vemos, por exemplo, uma criança aprisionada quandohabita um espaço constrangedor que reduz sua locomoção, que impedea experimentação com o seu corpo, convivendo com adultos jáadoecidos socialmente. Será difícil imaginar o que uma criança assimpode se tornar? O que chamam estupidamente de “mente criminosa”não seria apenas o produto de uma cidade que violenta continuamente avida? Pois é essa violência que gera a outra, esta última apenas comoefeito da primeira, inegavelmente mais grave e que não é percebidapelos homens, pois até os mais instruídos entre eles continuam a gritarpela lei para se protegerem dos “maus” indivíduos. Muitos médicos,psicólogos, professores, arquitetos e outros tantos diversos especialistascontinuam a ignorar as relações do nosso corpo com o ambiente quevivemos – certamente eles trabalhariam a favor da vida se, ao invés dese limitarem à instrução, conquistassem o pensamento. A organizaçãode uma cidade é o resultado da ignorância ou do conhecimento de seushabitantes – e o mesmo podemos dizer com relação aos seusgovernantes. Toda mudança radical é absolutamente necessária para ofuturo de um povo que está enfraquecido – por isso que para umacidade ser construída a favor da vida implica a urgência de educar oshomens para o pensamento, libertando-se de um governo que somentefaz proliferar ainda mais a ignorância, onde os homens preferem julgarem vez de pensar cada manifestação da vida como produto dasrelações... A violência é filha da ignorância.

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INTROSPECÇÃOQuem pode ver a obra em processo, por introspecção, é somente

o autor. Fora isso, o mundo não pode vê-la em seu processo – quando avê, vê mal, quando geralmente percebe apenas o que, na obra, permiteque algo possa ser associado a alguma coisa já existente e familiar. Maso mundo também não vê o autor, não pode sequer suspeitar da suaexistência – ele é estranho demais para os códigos vigentes. Ver o autorseria identificá-lo, vulgarizá-lo, o que poderia bloquear a obra emprocesso. Mas se o mundo não pode ver o autor é porque, de fato, oautor, como agente causal, não existe: ele é apenas um meio detransmissão de afetos, de pensamentos, de desejos. Chamamos deintrospecção esta consciência de si como meio de passagem parapotências inesgotáveis do eterno que é a vida. Escrever porintrospecção, falar por introspecção, viver por introspecção, faz brotaralguma realidade muito original de nós – realidade que não quer dizernada, mas quer apenas... brotar e seguir, brotar e seguir, brotar eseguir... O homem mal começou a pensar, é ainda um iniciante na artede pensar, ainda não está maduro para ter uma consciência que é, aomesmo tempo, modesta e rica, que torna o pensador imperceptível nomundo das identidades que fazem dos homens objetos de consumo. Aintrospecção leva o autor a perceber a sua própria obra em processo, noque ela está se tornando, assim também no que ele está se tornando...Uma parte dela, certamente, já existe, já está salva, porém, ele éimperceptível o suficiente para não ser enganado por sua obra realizada(a vaidade como sintoma de envenenamento), tampouco é incomodadopelas distrações que o fariam desviar dessa dupla produção, queinevitavelmente caminham juntas: a produção da obra e a produção desi... Isto não deve parar.

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IMPREVISÍVEL

Se pensarmos no que leva os homens a desejarem a repressão, istoé, a fazerem aquilo que sentem como uma violência sobre si mesmos,sem cultivar um amor pela obra, resignando-se com a ausência de tempoe de pensamentos próprios, compreendemos que não se trata de rotulá-los como vítimas ou culpados por seus infortúnios. Mas também quandodizemos que a repressão é uma produção social, como uma constatação deque se os homens fazem aquilo que, no fundo, não gostariam de fazer, éporque não houve outra opção melhor para eles (por simples necessidadede sobrevivência), não nos faz ainda compreendermos o que move odesejo por repressão. Talvez tenhamos que dirigir a nossa crítica aomodelo familiar da sociedade capitalista, onde a criança é, de acordo comesse modelo, educada para ter direito a um futuro na sociedade, pois aspeças que constituem a máquina de reprodução do capital começam a ser

formadas na família. A criança que tem um impedimento das suasexperimentações com o corpo passa a ser, gradualmente, introduzidanuma ordem muito comum da vida dos adultos: horários rígidos para osestudos, para a diversão, para as refeições, além da exigência dedeterminados comportamentos, tarefas, espaços de confinamentoocupados por ela. Sua obediência é recompensada com elogios e com

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presentes e, como sua potência é reprimida num ambiente rígido, nãopodemos estranhar o fato de que a repressão seja considerada por elacomo algo “natural”, desde que se tenha sempre alguma recompensa poragir do modo que a família espera. Essa suposta “naturalidade” darepressão pode se seguir durante a sua existência: na escola, por exemplo,pode se esforçar para se comportar da maneira que a instituição deseja,mesmo se o que ela presencia na sala de aula é, em grande parte, inútilpara sua vida no presente. Seus pensamentos e desejos estão em outroslugares coloridos, leves, lúdicos, porque eles têm mais sentido para a suavida atual. Porém, desde cedo, na família, boa parte dos seus sonhos foirecalcada em razão do seu futuro que, embora incerto, não deixa de serum objetivo que será mais facilmente alcançado quando ela renuncia aosseus sonhos ditos “imbecis” e “inúteis”. Se, mais tarde, supostamente esteindivíduo “chega lá”, alcança o objetivo, isso não lhe deixa menosperturbado. De fato, nunca alguém “chega lá”, porque o futuro prometidoé uma quimera, um embuste, pois não há conclusão de nada, tudo nomundo flui. Ao contrário daquilo que muitos gostariam que fosse, o nosso

futuro é imprevisível... O que flui, o que vive, isto é, o que é real, éreprimido continuamente no capitalismo, seja na infância, na escola ouno exercício de uma profissão que é apenas tolerada, certamente comconflitos... e continua a ser tolerada apenas enquanto o homemcontinua a se servir dos benefícios que provêm do exercício de umaatividade que, em si mesma, já não lhe tem o menor sentido. Aconsciência de que a contínua repressão dos seus mais profundosdesejos, sonhos e pensamentos foi necessária para que uma vida normale bem-sucedida pudesse ser alcançada pode surgir em alguém, de modoimprevisível, como um engodo. Finalmente, um breve momento delucidez... Ou ele olha para trás, para o seu passado, e vai buscar algumculpado, um responsável por seu infortúnio (muitas vezes ele mesmo seconsidera o culpado por suas “escolhas erradas”), ou, então, retoma oque foi violentamente interrompido e – por que não? – passa a darvazão aos seus sonhos e desejos. Assim como uma criança, não há maisvergonha de se expressar por meio de um poema, de uma música, deuma aula ou, para falar de modo mais profundo, por meio de algo que éfeito com o coração – e isso vale para qualquer coisa que é feita quandosentimos a sua originalidade... ela vem de dentro, ela vem de nósmesmos. A não retomada do que foi reprimido faz o indivíduo carregarum, dois, três, muitos pedaços do seu passado, com um peso que podechegar ao insuportável: pedaços que surgem como escolhas infelizes eprejuízos causados pelos outros (sejam eles familiares, amigos,cônjuges). Já não há mais futuro prometido, e a estrada adiante parecese dirigir rumo ao abismo, ao nada... A retomada do que foiinterrompido, ao contrário, produz o futuro que lhe interessa, mas semimagem, porque é tecido conforme os seus imprevisíveis encontros. Istoocorre porque não é mais um vaidoso “eu” que está refém do passado esubmetido a uma imagem de futuro (mesmo que o futuro seja o nada),mas sim a um incansável “tornar-se”... O imprevisível – e que tambémpodemos chamar de acaso – é a abertura máxima para não padecermosdo nosso próprio passado e da nossa estúpida vaidade.

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OPINIÃO

Quando grupos de jovens ocupamuma rua, uma praça ou até a reitoria deuma universidade, costumam serconsiderados, por muitos comentadoresdos meios de comunicação, como“vagabundos”, “selvagens”, “violentos” e“criminosos”. É fácil associar a imagemde uma parede pichada ou de uma mesaquebrada com uma ação violenta ecriminosa – logo, boa parte da sociedadeespera que os que agiram assim soframalgum tipo de punição, pois, afinal, aordem deve ser preservada. Mas quandose comprova que um político é corrupto,

que se apropriou do dinheiro público, por exemplo, não é considerado“selvagem” ou “violento” pelos comentadores da mídia. Quando umpolítico é considerado criminoso, trata-se de um contexto muito diferentede quem picha parede ou quebra mesa. Como a mesa destruída ou aparede pichada são associados à “selvageria”, isto é, à incivilidade, éincomum considerar incivil um político corrupto, já que ele não quebraobjetos e não suja o espaço público – então, nesse sentido, não pode serconsiderado uma ameaça à ordem social... Em um caso, a ordem social éexplicitamente ameaçada; no outro caso, ela nem é considerada comoameaçada. Desse modo, é mais fácil que o ódio e a indignação para comum grupo de jovens considerados “delinquentes” sejam muito maiores doque para com um político corrupto, mesmo quando a sociedade tem umavaga noção de que o dano causado por um grupo de jovens é muitíssimomenor do que o dano causado pelo político corrupto... Certamente, sequisermos, apenas por convenção das palavras, chamar de “violenta” e

“criminosa” as ocupações de ruas, praças, reitorias ou edifíciosabandonados, isso não se compara, de modo algum, com a violênciacotidiana exercida por aqueles que se servem do Estado para garantir osseus interesses parasitários e perversos (interesses que são, de fato, deacumulação de dinheiro e de manutenção de poder). É para estesindivíduos que alguns comentadores da mídia trabalham, utilizando-sede clichês como “a culpa é de tal partido político”, “a polícia está aserviço do povo”, “é um bando de desocupados”, entre tantos outrosclichês, servindo para alimentar discussões improdutivas na sociedade,movendo desejos vaidosos onde cada um quer impor a “sua” verdadeou, para dizer mais claramente, impor uma opinião que foi, antes,construída pela mídia. Discussões, confusões, opiniões, tudo isso servepara manter escondida uma outra violência, que é muito, muito maisgrave: aquela que é exercida por juízes, políticos, empresários e tantosoutros que participam desse grande circo de horrores, servindo-se,inclusive, da mídia para não se tornarem alvos do ódio das massas. Oódio das massas é perfeitamente dirigido não somente aos jovensconsiderados “delinquentes”, mas muito mais frequentemente aosmendigos, aos pobres drogados, aos assassinos, já que estes sãoconsiderados – conforme já dissemos – como uma ameaça explícita àordem social. Por isso é importante questionarmos o que chamam de“ordem”... “Ordem” como manutenção de interesses mesquinhos?... Ese pensarmos que a manutenção dos interesses mesquinhos, que sãomantidos através de uma violência constante, são determinantes para areprodução de assassinos, pobres drogados, mendigos, invasões deedifícios abandonados, ruas, praças?... O poder exerce o seu domíniopela linguagem, e a mídia oficial, nesse sentido, não cessa de reproduzirsignificados que mantêm as massas reduzidas à opinião, inibindo, dessemodo, o exercício da crítica como força do livre pensamento. Acomunicação de massa, cada vez mais crescente, forma indivíduos queagem, escrevem e falam o que é legitimado e ditado pela linguagem dopoder. E na época onde a mídia continua a aumentar o seu domínio, éinevitável que os indivíduos massificados recorram aos mais antigosclichês para tentar compreender manifestações de desejo que sãoabsolutamente inéditas e singulares. A vulgarização crescente é sintomade uma penetração cada vez maior dos mass media no cotidiano dosindivíduos.

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NOTAS

Capa: Amauri Ferreira

Os aforismos deste volume foram escritos durante o período de Janeiro de 2009 a Novembro de 2011

Em Essência, os trechos citados entre aspas foram extraídos do artigo“Uma semente, uma planta?”, disponível no seguinte endereço:

http://www.cdcc.usp.br/maomassa/livro/livromm_III.pdf

Todas as imagens são de Amauri Ferreira, exceto as imagens emExplorador e Amizade (de Zezel) e Aula (de Paulo Papaleo)