Actas do Seminário de Estudos Urbanos: Vazios Úteis

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vazios úteis Julho 19-20-21| Lisboa | ISCTE Actas do Seminário Estudos Urbanos 2007

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Actas do

Seminário Estudos Urbanos 2007

Actas do Seminário Estudos Urbanos 2007 Mafalda Teixeira de Sampayo Mauro Moro (Organização) Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - 2007

A POLITIZAÇÃO DO VAZIO.

Ana Cabral Rodrigues email [email protected]

Doutoranda pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ), bolsista CNPq. Prédio da Reitoria, sala 543, Cidade Universitária – Ilha do

Fundão, Rio de Janeiro – Brasil.

A politização do vazio

1- O nascimento da urbe: a ordem como mote e meta

As cidades adquirem na modernidade um estatuto novo na história, não somentequantitativo, mas, sobretudo, qualitativo. Pois, se podemos afirmar que cidades existemdesde a mais remota antigüidade, não é senão no século XIX que vemos emergir umaciência da cidade: o urbanismo, quando “pela primeira vez a cidade se torna foco deobservação, análise e discurso”(PECHMAN,1997).

Apesar se alinhar com uma proposta de reforma social que está em curso desdea segunda metade do século XVIII – encarnada especialmente na medicina higienista,na estatística sanitária, e na criminologia ambientalista – o urbanismo estabelece umcorte radical e preciso na história, no modo de olhar a cidade, ou melhor, inaugura ummodo de observação da cidade, um olhar perscrutador. Este olhar tenciona ser a síntesede todos os olhares que convergem para a cidade, e neste sentido pretende transcenderas práticas que o precederam. Pois, se em um primeiro momento, esta reforma social foicaracterizada por ações pontuais de intervenção, moralização e disciplinarização doscorpos no espaço, sob uma perspectiva de que a aglomeração e estrutura das cidades sãocausadoras de epidemias, vícios e degenerescências sociais, em um segundo momento,com o advento do urbanismo, esta reforma procedeu através de um planejamento globale permanente, para que assim fosse possível construir a cidade modelo. Isto é,estabelecer um formato urbano ideal, preciso e descolado de qualquer contingência; umformato que funcionasse em qualquer tempo e parte do mundo, porque garantido poruma razão positiva. Ou ainda, que buscasse nas origens da cidade sua face autêntica, seuformato acertado1. Seria, portanto, necessário descobrir, através de métodos científicos aordem que subjaz as cidades e que a elas deve ser aplicada.

Mas seria a ordem uma questão exclusiva da modernidade ou das cidadesconstruídas pelo urbanismo? Decerto que não. Basta que se diga sins e nãos, aquilo quese pode e o que não se pode, que se estabeleçam interdições, para que algo do alcancede uma ordem esteja constituída. Como é o caso, por exemplo, das igrejas e imponentescatedrais medievais localizadas sempre em posição destacada no cenário da cidade, demodo que os habitantes vivenciassem a soberania da Igreja e buscassem a salvação em

1 “O discurso sobre o urbano pretendeu, de imediato, constituir-se em ciência e construiu, com esta

finalidade, modelos com os quais fundar o urbanismo”; foram elaborados dois grandes modelos: os

progressistas e os culturalistas. Enquanto o primeiro é marcado pela primazia da razão e fé no progresso,

o segundo busca a imagem das cidades antigas para evocar os valores de harmonia e totalidade cultural

necessários à cidade. (CHOAY, F. 1994)

seu espaço sagrado. Espaço este que não poderia ser adentrado de qualquer modo:haveria de se usar vestimentas adequadas, além de serem necessários rituais como o degenuflexão, e o reconhecimento de locais nos quais não se podia pisar, como o altar. Háainda inúmeros outros exemplos que vão desde as cidades gregas com suas praçaspúblicas e templos até mesmo territórios indígenas nos quais há uma clara organizaçãodas ocas e delimitação de seu uso, seja por gênero ou por idade.

Deste modo, devemos salientar que, o que marca a especificidade da ordenaçãodos espaços modernos é o fato de que a ordem se apresenta como um fim em si mesmo,isto é: ela é o mote e a meta – é a garantia do funcionamento do organismo, e é o modoideal de seu funcionamento. É estabelecida, neste sentido, uma estreita ligação entre aordem espacial e o progresso social e econômico – a cidade é positivada e o seudomínio como objeto passível de deciframento e gestão racional resulta neste progresso.Nesta condição, a cidade não poderia ser enxergada apenas como mero abrigo, espaçofísico de circulação e habitação humana, pois, na medida em que, na modernidade, seestabelece uma estreita ligação entre a cidade e o processo civilizatório, ela éapresentada como o destino inexorável da humanidade, sua sina e possível salvação.

2- Novos modelos, novos lixos da história.

A cidade constituída objeto passa a ser enxergada como um organismo, umsistema integrado no qual cada uma de suas partes têm de ser tratadas em consonânciacom o todo. No entanto, haveremos de estar atentos que, mediante a instauração de umacidade modelo, de uma cidade ideal, elege-se o que faz de uma cidade bela e funcional,estabelecem-se sonhos, promessas de felicidade, promessas de completude. E,sobretudo, é sob uma proposta de neutralidade que se vai construindo uma espécie decorolário da concepção de beleza, assim como a importância de banir, de exterminartudo que contribua para manchá-la. O ideal que instaura o que é o belo, instaura tambémo que é o desviado, o crime, a desordem como mal em si. Assim, se por um ladoimperam os padrões estéticos de harmonia, limpeza e organização das cidades, por outrolado, tornam-se necessárias práticas de exclusão2 que garantam esse mundo asséptico. Eé em defesa da vida que a sociedade se volta contra seus detratores, numa metáforasempre repetida da sociedade como um organismo que se defende de bactérias e vírus(RAUTER, 2002: 195).

Os novos traçados da cidade moderna, importados principalmente da Paris doBarão Haussmann, com suas largas avenidas iluminadas que incitavam o movimentoincessante das multidões, foram aclamados como exemplos a serem seguidos em todasas cidades, de Camberra ao Rio de Janeiro. A concepção iluminista da cidade comoveias e artérias, como um indivíduo, ou um organismo que deveria funcionar bem emcada uma de suas unidades e em sua totalidade, ficará a serviço dos novos usosatribuídos no século XIX. As ruas, antes tortuosas e bifurcadas foram transformadas emruínas; quarteirões inteiros, populosos habitados por gente de toda espécie foramreduzidos a pó (JOSEPHSON, 1997). E sobre estas ruínas ergueram-se ruasimensamente amplas construídas a partir dos princípios lineares usados pelos romanos,para que não só o comércio escorresse com maior facilidade, como para que as massas

2 O termo exclusão, nesta acepção, não indica apenas o movimento de expurgação – eliminação por

afastamento ou destruição – ele deve contemplar, sobretudo, o caráter de negação da diferença, seja por

quais meios forem.

fossem pacificadas e as tropas pudessem impedir possíveis insurreições populares(BERMAN, 1982).

Façamos uma pergunta inicial: estariam os urbanistas simplesmenteinvestigando, decifrando a cidade, e propondo soluções para problemas já existentes?Em outras palavras, teria, por exemplo, a “tortuosidade” do traçado das cidadesconstituído um problema para um sem-número de gerações que precederam a dosprimeiros urbanistas, mas que permaneceu sem resolução por deficiências técnicas,tecnológicas, e de conhecimento? Pensamos que não. Julgamos que ela se tornaevidente apenas neste momento, em que a retidão, o planejamento global e racional dascidades e a circulação fluida – inspirada no corpo humano – são apresentados comoelementos de uma cidade ideal.

Adentramos o pensamento de que a necessidade de transformar o traçado urbanonão se instaura a partir da tortuosidade como um mal em si que finalmente pôde serresolvido através dos conhecimentos mais avançados do que as antigas técnicas esaberes. Assim, é a partir da separação entre virtudes e problemas – o que se destaca apartir do caráter eminentemente político-ideológico da intervenção haussmaniana emParis – que o urbanismo esquadrinha seus objetivos e modos de operação.

Se dissemos, porém, que objetivos e problemas não emanam do objeto – noexemplo que demos, equivale a dizer que a tortuosidade não é um mal em si – mas são aele imputados, somos levados a concluir que aquilo a que o urbanismo atende não sãodemandas da realidade, mas sim que uma certa realidade é criada a partir de suaspráticas. Em outras palavras, ele não nasce para resolver determinadas demandas; assoluções que propõe não sucedem aos problemas que atacam, mas sim nascem juntodeles. Apontamos, assim, para a produção de uma nova realidade instaurada a partir deum campo de pensamentos, proposições e soluções e, com ele, novos modelos,necessidades e problemas são gestados.

3- Vazios urbanos... refugos do progresso?

Em meio às cidades contemporâneas são apontados alguns espaços que sãodenominados de vazios urbanos. Milton Santos3 afirma que “as cidades, sobretudo asgrandes, ocupam, de modo geral, vastas superfícies entremeadas de vazios” Estesespaços são assim definidos fundamentalmente por estarem desconectados do tecidourbano, isto é, por possuírem baixo valor imobiliário, pouca utilidade e comunicaçãocom o seu entorno. Os vazios urbanos podem ser pequenas, médias ou grandes glebas,edifícios e estruturas abandonadas, enfim, toda uma sorte de enclaves ou apêndices quesão comumente lidos como mácula ou evidência de certas falhas no processo deurbanização de uma cidade. Mais ainda, são compreendidos como um mal, uma doençaque deve ser tratada para que a cidade alcance uma condição saudável, ou sustentável;conforme nos indica o (então) presidente nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil:

“É como se houvesse num corpo humano pedaços vazios, pelosquais passam veias, nervos, irrigando sangue por artérias eveias maiores que as necessárias. Seria preciso que tivéssemosum coração – bomba – mais poderoso que o necessário se nãoexistissem os vazios. Então, a primeira missão para se ter

3 SANTOS, M. A urbanização Brasileira, São Paulo: EDUSP, 2005

cidades sustentáveis é ocupar inteligentemente ecoordenadamente os seus vazios” (ANASTASSAKIS, 2004).

A metáfora do corpo humano, da cidade como um organismo vivo, utilizadadesde o século XVIII, continua, como podemos ver, atualíssima e – aliada às atuaistecnologias e cânones da racionalidade – dão as pistas de como podemos compreender ecomo intervir na cidade. Mas, sobretudo, tal discurso tece olhos, pele e olfatoincomodados, e fazem tais vazios apresentarem-se como insidiosa ameaça aos sonhos...sonhos de progresso, de desenvolvimento... sustentabilidade!

É preciso mais inteligência e mais ordem para preencher (de maneira eficaz) osvazios. Deste modo, nos perguntamos: preenchê-los com o que? A reposta é tanto claraquanto messiânica:

“Eis, portanto, a terceira grande missão para se ter cidadessustentáveis: estender a todo o tecido urbano e a todo oambiente construído o urbanismo e a arquitetura. Socializartodas as camadas da população, ricos e pobres, trabalhadores edesempregados, não somente concedendo o teto, mas também odireito à arquitetura, ao urbanismo e ao espaço construído comqualidade.” (idem, 2004)

Os vazios urbanos devem ser preenchidos com o que lhes falta: com o própriourbano – com o que mais poderia ser? Assim, é importante estarmos atentos para umacerta tautologia que se mostra nesta afirmativa. Pois é a partir da cidade constituída urbe– cidade regida pelos ideais de cientificidade e funcionalidade que viriam a solucionaros problemas nas cidades modernas – que se torna possível visualizar os espaços queescapam à sua lógica ou ideal, de modo que o problema que se instaura e que deverá sersanado pelo urbanismo consiste no (ainda) incompleto alcance de sua efetivação nacidade.

Mas não deixemos, igualmente, passar por despercebido a intenção bemmarcada da ampliação do tecido urbano sobre os vazios: socializar todas as camadasda população. O que quer exatamente propor o autor? Recorramos ao dicionário paraque evitemos interpretações precipitadas:

“Socializar: v. tr. dir. Tornar social, reunir em sociedade;sociabilizar; colocar sob o regime de associação(BUENO, 2000– grifo nosso)”

Haveria na história do urbanismo algum momento no qual se buscou e seefetivou tal proposta: reunir em sociedade ricos e pobres? Ou seria a história dourbanismo amplamente marcada por estratégias segregativas que buscam delimitarclaramente: “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. E assim, na medidado possível, impedir o encontro entre as diferentes classes?

Lembremos os programas de renovação urbanas implementados por RodriguesAlves no início do século XX no Rio de Janeiro, então capital do Brasil.

“Tratada como questão nacional, a reforma urbana sustentou-seno tripé saneamento – abertura de ruas – embelezamento, tendopor finalidade última atrair capitais estrangeiros para o país. Erapreciso sanear a cidade e, para isso, as ruas deveriam ser

necessariamente mais largas, criando condições para arejar,ventilar e iluminar melhor os prédios. Ruas mais largasestimulariam igualmente a adoção de um padrão arquitetônicomais digno de uma cidade-capital. (...) Apoiada nas idéias decivilização, beleza e regeneração física e moral, a reformapromoveu uma intensa valorização do solo urbano da áreacentral, atingindo como um cataclisma a população de baixarenda que ali se concentrava. Cerca de 1.600 velhos prédiosresidenciais foram demolidos”.4

Ou ainda, podemos lançar um breve olhar sobre o moderno bairro da Barra daTijuca - Rio de Janeiro, para que se tenha uma dimensão de que o que o urbanismo temproposto – e sobre o qual as grandes construtoras do ramo imobiliário tem se apoiado –difere-se largamente de qualquer proposta de encontro entre ricos e pobres. Mais ainda,o próprio encontro na cidade entre os indivíduos (mesmo que pertencendo à mesmaclasse social) é cada vez mais algo a ser evitado.

As inúmeras propagandas dos condomínios de luxo construídos neste bairroafastado do resto da cidade indicam um determinado modo de habitar na cidade:câmeras de segurança, grades e cancelas, portarias blindadas, sistema de identificaçãoe monitoramento no trajeto dentro dos condomínios, profissionais de segurançatreinados, escolas anexas aos condomínios, lojas, academias, áreas de lazer, etc. Tudoestruturado e apresentado aos futuros moradores de modo que compreendam que, aoadquirir um apartamento nestes condomínios, estarão “comprando” também um novoconceito de morar, um novo estilo de vida. Estilo este que prescinde ou quase prescindeda cidade. Isto é: esquiva-se da necessidade de encontrar com estranhos, característicadas cidades modernas. É esta a lógica que sustenta e alimenta a criação destescondomínios de classe média-alta/classe alta: constituir locais de moradia cada vez maishomogêneos e exclusivos, contribuindo para a tentativa de escapar da proximidade comas classes mais pobres que são amplamente associadas à violência urbana.

De volta à citação em questão: Socializar tanto ricos quanto pobres, seria, entãodar-lhes o estatuto social?

“Social: adj 2 gên. Relativo ou pertencente à sociedade; queconvém à sociedade; sociável; urbano; cortês (...)” (BUENO,2000 – grifo nosso)

Ou seja, tornar algo/alguém que não pertence à sociedade, ou que não seenquadra nos moldes corretos de agir em público e mesmo na vida privada, parteconsonante desta sociedade. Certamente este que ganhará novo estatuto (social) não seráa classe mais bem provida de recursos financeiros, materiais e políticos. A ação ficaobviamente restrita às classes mais pobres, visto que são estas que precisam serurbanizar – ou em outras palavras, são estas que precisam se civilizar. Assim posto,urge a seguinte pergunta: as classes mais pobres estão fora da sociedade? Estariam elasalheias aos processos de construção da sociedade contemporânea? Os modos desocialibidade que possuem seriam errados ou inferiores aos modos de urbanidade ecortesia esperados?

4 Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz, A reforma Urbana. Disponível em:

http://www2.prossiga.br/ocruz/principal.htm

Mais ainda, pois se o que autor em questão propõe é a socialização de certosdireitos a ricos e pobres, perguntamo-nos: quais direitos deveriam ser socializados aosricos? Seriam os direitos de não mais avistarem de suas janelas favelas e moradores derua? Seria o direito de construir, de uma vez por todas, a cidade cartão postal – bela efuncional?

O poema de Baudelaire, intitulado “Os olhos dos Pobres”, que situado na épocada reconstrução de Paris por Haussmann, coloca estas questões de maneira muito clara,e, em seu cerne, em nada distante dos dias atuais:

De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novona esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e jámostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O caféresplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor deuma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredesofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos,os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de carasrechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo parao falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos nacabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendoa pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetesmatizados; toda a história e toda a mitologia a serviço dacomilança. (BAUDELAIRE, 1995)

Olhos nos olhos, os dois amantes deste conto trocam juras de amor, confidênciase prometem-se a união de suas almas e pensamento para que possam estar eternamentejuntos e em paz. No entanto, este plácido ‘olhos nos olhos’ é interrompido pela presençaatordoante de outros olhos – estes arregalados de fascínio. A estranha família de olhosarregalados se aproxima da cena dos apaixonados que tinham a oportunidade de viverseu amor tão privado sob as luzes da nova Paris.

Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito!Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessasparedes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito,mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós."Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais paraexprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda(BAUDELAIRE, 1995)

A distância que separavam os habitantes nobres de Paris dos seus ‘ex-habitantes’indesejados era tão falaciosa quanto a proximidade que uniam os dois amantes. Pois onarrador-personagem do poema, ao sentir-se incomodado, e mesmo com algumaafinidade pela estranha família, olha para a amante a fim de encontrar o mesmosentimento em seus olhos, o que se mostrou uma busca vã. Extremamente indisposta, amulher manifesta seu desejo de que o maître venha intervir e tirar da vista, de uma vezpor todas, a indesejada família.

Marshall Berman faz uma precisa análise deste conto: “A família em farrapos,do poema baudeleriano, sai de trás dos detritos, pára e se coloca no centro da cena. Oproblema não é que eles sejam famintos ou pedintes. O problema é simplesmente queeles não irão embora” (BERMAN, 2003). O problema é o quanto estes farraposmaculam nossos sonhos... sonhos de progresso, de desenvolvimento, desustentabilidade!

No dia 20 de março de 2006, no Jornal do Brasil, um dos principais jornaisimpressos do país, publicava a seguinte manchete: “Mais ordem para o Leblon eIpanema”. A reportagem que se seguia contava da insatisfação dos moradores destesbairros de classe média/ média-alta da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, em relaçãoaos moradores de rua, flanelinhas, vendedores ilegais que começavam a circular maisfrequentemente o bairro. Estaria o incômodo dos moradores voltados para a condiçãodaqueles que usavam a rua do bairro das mais diversas formas para ganhar a vida; talvezcomo fizera o personagem de Baudelaire? De certo que não. A própria manchete jáindica que o que está em questão não é uma problemática social, mas da necessidade deordenamento – e por que não – limpeza urbana. O depoimento de uma das moradorasratifica nossa conclusão:

“É preciso combater o problema na origem. Ipanema é o bairro que atrai osestrangeiros, que tem os melhores restaurantes. Se não houver policiamento e um poucode ordem, vamos acabar perdendo turistas” (JB 20/03/2006).

Assim compreendemos que a cidade moderna será para os filhos do progresso, e

não para os bastardos – lixos da história. Refugos que devem ser observados somente namedida em que possam ser abençoados pelas luzes do progresso, retirados das trevas deseu obscurantismo, que muito têm a ouvir do progresso, e nada a lhe dizer. No entanto,não nos furtando em afirmar estes detritos como produtos do próprio processo deconstrução dos novos modelos de sociedade, de subjetividade, e de cidade, torna-seclaro que sua condição de despojos não se deve a estarem aquém do ritmo do progresso.

4- Invisibilidades e a potência dos espaços vivos de história: enfrentamentospossíveis.

Os vazios urbanos enquanto espaços que sobram na cidade, que são esquecidos,são vazios, sobretudo, de significado; “não que sejam sem significado porque sãovazios: é porque não tem significado, nem se acredita que possam tê-lo [nas condiçõesem que se apresentam] que são vistos como vazios (melhor seria dizer, não vistos)”(BAUMAN, 2000). Ou seja, vazios podem não ser apenas terrenos baldios, construçõesabandonadas e ruínas, mas também bairros inteiros.

Zigmund Bauman relata que em uma de suas viagens para uma conferência naEuropa foi recebido por uma amiga no aeroporto que, para levá-lo até o hotel, demorouquase duas horas no pesado trânsito do centro da cidade. No entanto, quando Baumanprecisou retornar ao aeroporto para sua viagem de volta, optou pelo táxi que,surpreendentemente, demorou do hotel ao aeroporto apenas cerca de dez minutos. Istoaconteceu porque o táxi tomou um outro trajeto que passava pelo subúrbio da cidade: “omotorista foi por fileiras de barracos pobres, decadentes e esquecidos, cheios de pessoasrudes e evidentemente desocupadas e crianças sujas vestindo farrapos.” (BAUMAN,2000).

Sua conclusão do porquê de sua anfitriã ter tomado o outro caminho nos éinstigante:

”A ênfase de minha guia em que não havia como evitar otráfego do centro da cidade não era mentira. Era sincera eadequada a seu mapa mental da cidade em que tinha nascido eonde sempre vivera. Esse mapa não registrava as ruas dos feios

‘distritos perigosos’ (...). No mapa mental de minha guia, nolugar em que essas ruas deveriam ter sido projetadas havia purae simplesmente, um espaço vazio” (BAUMAN, 2000)

Deste modo adentramos o pensamento de que ao falarmos de vazios urbanosestamos falando não somente de espaços que não teriam sido beneficiados pelastecnologias do urbanismo, mas também – e para nós tem especial importância – estamosfalando de invisibilidades na cidade.

O bairro inexistente, a rua que é esquecida, o terreno que é contornado, o prédioabandonado nunca antes notado, o terreno impossível de se pensar que exista atrás doshopping, a comunidade do morro ao lado da escola... Espaços invisíveis porqueparecem em nada dialogar com a lógica dos espaços urbanos. Invisíveis porque parecemeles mesmos serem contraponto às luzes da cidade: “excluir tais lugares permite que oresto brilhe e se encha de significado” (BAUMAN, 2000).

A visibilidade destes espaços, no entanto, ocorre apenas na medida em que estespassam a ser identificados com algum dos males da cidade, como, por exemplo, a tãocorrente associação da vida na favela à violência urbana. O que não é de todoinfundada, porém, cabe-nos a seguinte a pergunta: quantas vezes lemos ou assistimosreportagens sobre as comunidades dos morros do Rio de Janeiro – seu cotidiano, suasfestas, suas reivindicações, dificuldades e história? Talvez se possa contar nos dedos apresença destas narrativas na mídia; por outro lado, reportagens de capa sobre tiroteios,assassinatos, confrontos com a polícia, pontos de tráfico de drogas têm presençagarantida nos jornais toda semana.

A invisibilidade pode ser diluída assim também quando vazios urbanosmostram-se passíveis de serem incorporados na lógica do mercado e especulaçãoimobiliária. Vide algumas regiões do Rio de Janeiro que foram anteriormentecondenadas como antros da marginalidade e risco à moralidade pública e atualmente sãoexploradas pela iniciativa privada dotando-lhes de glamour e uma nova roupagem.

Compreendemos, entretanto, que inserir estes espaços meramente nos trilhos dodesenvolvimento, dos cânones da ordem urbana, do utilitarismo ou da lógica domercado em nada garante sua visibilidade, enquanto espaços públicos, ou doadores desentidos à cidade. Afinal, como aponta Richard Sennett (1995), os espaços públicos docontemporâneo têm se apresentado como mera passagem ou como mercadoria a serconsumida, o que compromete seriamente sua condição de dispositivos de trocas,embates, de sociabilidades, enfim, como espaços ricos de vidas compartilhadas.

Pensar a cidade como espaço rico de vidas compartilhadas nos evoca a imagemtrazida pelo filósofo alemão Walter Benjamin a respeito da cidade de Nápoles.

Em Imagens do Pensamento (1987), Benjamin apresenta a partir da cidadeitaliana de Nápoles o que se entende como um tempo de cesura, de interrupção de umacerta ordem que segmenta os corpos, tempos e espaços, que os dota de certezasinquestionáveis e opacidade. Este rompimento se torna possível através da força dopercorrer histórias que se tornam porosas, que se interpenetram.

Em Nápoles “construções e ações se entrelaçam uma à outra em pátios, arcadase escadas. Em todos os lugares se preservam espaços capazes de se tornar cenário denovas e inéditas constelações de eventos” (BENJAMIN, 1987). A porosidade nos dá aidéia de incompletude, de um inacabamento constitutivo, a partir do qual nenhum

traçado das ruas, ou das sensibilidades na cidade de Nápoles aparece como destinada atodo sempre, ao contrário, arriscam-se em uma paixão pela improvisação.

É fundamental salientarmos que Benjamin não apresenta Nápoles como umideal, como um novo modelo urbano; radicalmente oposto a isso, ele evoca a imagemde um tempo desestabilizador e de um espaço poroso. Assim também devemos entenderque o termo “imagem” (em Imagem do Pensamento) não é aqui usado como sinônimode ilustração, de representação; mas como força possível de produzir estranhamento;estranhamento este tão raro quanto mais temos certeza nos modelos e modos de vidaque levamos contemporaneamente.

Vejamos como Benjamin apresenta a vida doméstica de Nápoles:

[...] a casa é muito menos o asilo, no qual pessoas ingressam,do que o reservatório, do qual efluem. Não apenas de portasirrompe a vida. Não apenas para os átrios, onde, sentadas emcadeiras, as pessoas executam seus afazeres (pois tem afaculdade de transformar o corpo em mesa). Lides domésticaspendem das sacadas como plantas em vasos. Das janelas dosandares mais altos vêm cestas em cordas para correio, frutas ecouve.Do mesmo modo como o quarto retorna à rua como cadeiras,fogão e altar, a rua peregrina quarto adentro, só que com muitomais rumor. Mesmo o mais pobre dos quartos está tão repletode velas, santos de argila, tufos de fotografia na parede ebeliches de ferro, quanto o está a rua de carretas, gente e luzes.[...]Como seria possível dormir em tais aposentos? Sem dúvidaneles existem tantas camas quantas o espaço permita. [...] Estesono [no entanto] não é o sono dos nórdicos. Aqui também háuma interpenetração do dia e da noite, do ruído e do silêncio, daluz de fora e da escuridão de dentro, da rua e do lar(BENJAMIN, 1987).

Os atravessamentos dos tempos e espaços, usos e sentidos na cidade de Nápolesimpedem que se cunhe o definitivo; as inúmeras camadas, diferentes vitalidades, quecompõem seu cotidiano indicam a impossibilidade de se dizer definitivamente: “destamaneira e não de outra”. Das experimentações cotidianas inventam-se novos sabores,texturas e aromas que percorrerão suas ruas. Assim também, a decoração destas ruaspossui estreito parentesco com a do teatro, afirmando a fragilidade e a finitude daquiloque há, mas acima de tudo sua plasticidade e possibilidade de se profanar o sagradocomo território asséptico.

Notemos que, em sua significação mais corrente, profanar significa fazer maluso, macular ou sujar aquilo que é puro, sagrado e eterno. O sentido que aqui trazemosdo termo talvez não se distancie totalmente deste comumente utilizado; sim, poisprofanar é sujar. Entretanto, não se trata de degradar, fazer uso incorreto, ou ainda, nãose refere a uma afronta à religiosidade; profanar é permitir que as histórias narradassejam “sujas de mundo” (BAPTISTA, 2005), isto é: marcadas por aquilo que acontece –sob o entendimento de que acontecimento é irrupção, jogo tenso das forças que apontampara incompletude como sinal de desligamento de qualquer eternidade ou teleologia5.

5 Seguimos aqui o conceito de acontecimento segundo o filósofo francês Michel Foucault.

E é principalmente através da provisoriedade que compreendemos tal desligamento ouenfrentamento:

“Alguém se ajoelha no asfalto, ao seu lado uma caixinha, e arua é uma das mais animadas. Com giz colorido desenha napedra um Cristo, mais ou menos em baixo da cabeça daMadona. Entrementes, um círculo se fechou a sua volta; oartista se ergue, e, enquanto espera ao lado de sua obra durantequinze, trinta minutos, da roda caem escassas moedas contadaspor sobre a cabeça, o tronco e os membros de sua figura. Atéque ele as recolha, todos se dispersam, e, em poucos instantes,o desenho está pisoteado” (BENJAMIN, 1987).

As narrativas – trazidas pelos riscos e borrões de giz no chão, pelas cestas queatravessam de casa a casa levando cartas e frutas, pelas brigas domésticas que pendemdas janelas, pelas inúmeras camadas de histórias – enfrentam cotidianamente a assepsiadas cidades “cartões-postais” que fazem crer que nelas nada está acontecendo, isto é,essas narrativas enfrentam a construção de um espaço uníssono, aplainado egeometrizado. Em Nápoles “ninguém se orienta pela numeração das casas. São lojas,fontes e igrejas que dão os pontos de referência” (BENJAMIN, 1987) são seus traçadose arquiteturas que os podem orientar já que são estes que contam as vivas histórias dacidade.

Deste modo, a partir deste caminho que viemos traçando propomos, enfim,afirmarmos a importância de que os discursos sobre a cidade e especialmente, sobre osespaços públicos, possam estar atentos às práticas que enfrentam este esvaziamento desentido e conferem força criativa ao cotidiano da cidade: são usos, escapes, táticasinventadas e reinventadas, que, em sua efemeridade nos apontam caminhos possíveispara a vivificação e politização dos vazios urbanos.

REFERÊNCIAS:

ANASTASSAKIS, D. (2004) ‘Sustentabilidade das cidades’ – Revista do Confea anoVIII nº 20. Disponível em: http://www.confea.org.br/revista/materias/edicao_20/materia_12/materia.asp

BAPTISTA, L. (2005) ‘Arte e Subjetividade na Experiência Teatral: Contribuições deJurema da Pavuna’. In: MACIEL, A. et al. Polifonias: Clínica, Política e Criação.(Editora Contra Capa, Rio de Janeiro)

BAUDELAIRE, C. (1995) ‘Os Olhos dos Pobres’. in: Spleen de Paris. (Imago, Rio deJaneiro).

BAUMAN, Z. (2000) ‘Modernidade Líquida’. (Zahar, Rio de Janeiro).

BENJAMIM, W. (1987) ‘Nápoles’. in: Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única. SãoPaulo: Ed. Brasiliense.

BIBLIOTECA VIRTUAL OSWALDO CRUZ. (s/d) ‘A reforma Urbana’. Disponívelem: http://www2.prossiga.br/ocruz/principal.htm.

BUENO, S. (2005) ‘Minidicionário da Língua Portuguesa’ (FTD, São Paulo).

BERMAN, M. Tudo que é sólido se desmancha no ar – a aventura da modernidade. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2003.

CHOAY, F. (1994) ‘A história e o método em urbanismo’. in: BRESCIANI M. (Org.)Imagens da Cidade. Séculos XIX e XX. (ANPUH, São Paulo).

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Brasília, o Museu, a Biblioteca e o Vazio Urbano: elementos para reflexões

Dra. Ana Elisabete de Almeida Medeiros Arquiteta e Urbanista, Mestre em Urbanismo e Doutora em Sociologia

[email protected] PPG-FAU/UnB

Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília

Campus Darcy Ribeiro, ICC Norte, Subsolo Cep: 70.910-900

Asa Norte, Brasília – DF. Telefone: 0XX 61 33 07 24 54

Resumo Brasília parece destinada, desde o lançamento do edital para o concurso do Plano Piloto, a ser tema de debates e discussões que se processam ora dentro, ora fora da Academia; em alguns momentos de forma acalorada e em outros, nem tanto. Hoje, as comemorações dos seus quarenta e sete anos e a proximidade do centenário de Niemeyer servem de pretexto para que a cidade esteja, mais uma vez, no centro das atenções. Nesse contexto, olhar para Brasília significa divisar, no cenário da cidade, em pleno Eixo Monumental, dois novos pontos centrais de interesse: os edifícios do Museu Nacional e da Biblioteca Nacional. Projetos de Oscar Niemeyer, recentemente inaugurados, o Museu e a Biblioteca vieram “completar” o projeto urbanístico inicial do Plano Piloto de Lucio Costa, constituindo o denominado Setor Cultural Sul que, embora idealizado e projetado nos anos cinqüenta do século passado, somente agora se torna realidade, materializa-se. Para além da “assinatura” ou “griffe” Oscar Niemeyer, em termos arquitetônicos, o interesse em torno desses projetos reside, sobretudo, na dimensão que ambos assumem no cenário urbano, inseridos que estão na escala monumental de Brasília que, ainda esse ano, comemora duas décadas de inscrição na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. E mais: se é verdade que, hoje, a investigação arquitetônica se volta para o seu alter ego, compreendido como os espaços públicos de caráter urbano, palcos naturais do exercício da autêntica prática cidadã, então, o Museu e a Biblioteca se revelam lugar privilegiado para a reflexão em torno da condição urbana atual, de uma maneira geral e, particularmente, da situação social, por meio do vazio que representam numa visão negativa da sua essência positiva. Em outras palavras: tais projetos ocupam, hoje, o que durante quarenta e seis anos permaneceu como um “vazio urbano”, no sentido físico de lugar destituído de uma ocupação real material/funcional. Percebido desde sempre como espaço flexível, lugar do possível, pelo mercado imobiliário, o referido “vazio urbano” foi apropriado pela sociedade brasiliense, durante todos esses anos, mental e materialmente, como um espaço cheio, pleno, a partir de uma visão positiva da sua essência negativa, ao mesmo tempo em que foi tido, dentro do discurso competente associado à prática preservacionista local e nacional, como efêmero, condição temporária do vir a ser, do reservar-se à função destinada por ocasião da Brasília idealizada, projetada, ainda não vivida ou materializada. Flexível, estrutural ou efêmero e, ainda, paradoxal sob qualquer ponto de vista, o fato é que o Museu e a Biblioteca recolocam a questão dos “vazios urbanos” encarados como poderosos instrumentos de requalificação urbanística e prática arquitetônica. Daí o porquê desse artigo: sem querer oferecer respostas prontas, propõe-se a discutir arquitetura, intervenção urbana e prática preservacionista a partir de Brasília, do Museu, da Biblioteca e do Vazio Urbano como novos elementos de reflexão.

Antecedentes: Brasília(s) idealizada, projetada, construída e vivenciada. Em toda parte são os princípios de racionalidade, funcionalidade e universalidade que constituem o alicerce sobre o qual se constrói o Movimento Moderno. Porém, para além das fronteiras européias, a Arquitetura Moderna se apresenta como um meio de se alcançar o progresso, a modernidade e a soberania. Neste contexto, o Brasil não constitui uma exceção à regra. Todavia, aqui, a busca pela modernidade está indissocialvemente ligada ao passado nacional. No dizer de Santos1, no Brasil dos anos vinte do século passado prevaleceu a seguinte equação: “ser moderno = ter uma tradição”. Dois eventos ilustram nos anos trinta do século XX, esta tensão entre modernidade e tradição que permeia o Movimento Moderno brasileiro: a construção do Ministério da Educação e Saúde - MES, obra-prima da arquitetura moderna nacional; e a institucionalização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, órgão responsável pela preservação dos bens culturais brasileiros. Por trás de ambos os eventos uma mesma figura-chave: Lucio Costa. O fato é que, no Brasil, aqueles que introduziram o modernismo como um movimento de avant-garde foram também os responsáveis pela construção social do patrimônio histórico e artístico nacional. Naquele momento, tanto a arquitetura moderna quanto a prática preservacionista se colocavam como instrumentos do projeto modernista de construção de uma identidade nacional. E foi exatamente este ideal nacionalista que conduziu o movimento moderno brasileiro ao poder político. Na verdade, se o movimento moderno se deixou usar como símbolo nacionalista de grande visibilidade, capaz de legitimar um poder ou uma estratégia política, também usou deste poder ou estratégia de modo a garantir a hegemonia da arquitetura modernista, considerada não apenas um update da expressão artística nacional, mas também um meio de fortalecer a identidade brasileira. Neste sentido, pode-se afirmar que a proposta vencedora de Lucio Costa para o Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil constituiu o ponto alto do projeto modernista. A idéia da transferência da capital brasileira para o interior do país remonta ao século XVIII, alicerçada em motivos de ordem, sobretudo, política. Depois, encontrou continuidade na sugestão do nome “Brasília” por José Bonifácio e na profecia de Dom Bosco ou nos trabalhos de exploração e mapeamento do Planalto Central pela Missão Cruls, no início e final dos oitocentos, respectivamente. Mas, será preciso o tempo adentrar o século XX em cinco décadas para que, no âmbito de um projeto político, econômico e cultural de integração, desenvolvimento e fortalecimento de uma identidade nacional, a idéia da nova capital passasse da teoria à prática. Do ponto de vista do Governo Kubtischek, Brasília, então denominada “capital da esperança”, significava uma iniciativa capaz de acelerar o processo de modernização e desenvolvimento nacional. Sob a perspectiva da Arquitetura Moderna brasileira, já hegemônica, naquela ocasião, Brasília representava o clímax. Pelas relações estabelecidas, desde os anos vinte, entre arquitetura moderna, identidade nacional e poder político, Brasília não poderia ser senão cidade moderna. O próprio edital para o Concurso do Plano Piloto da Nova Capital já orientava, segundo leitura de Ficher e Batista2, os candidatos na direção do urbanismo modernista ao estabelecer, em seu item três (3) que o

“Plano Piloto deverá abranger o traçado básico da cidade, indicando a disposição dos principais elementos da estrutura urbana, a localização e a interligação dos diversos setores, centros, instalações e serviços, distribuição dos espaços livres e vias de comunicação” (GDF, 1991: 13)

1 - Ver (SANTOS, 1992). 2 - (FISCHER & BATISTA, 1991: 56).

Desta maneira, a partir da Brasília idealizada, no Edital, surge, com a proposta vencedora do Plano de Lucio Costa, uma outra Brasília, a cidade projetada. Embora Costa apontasse, ainda em artigo da Revista Módulo de 1957, como “ingredientes” da concepção urbanística da nova capital, entre outros, a lembrança amorosa de Paris, os imensos gramados ingleses, ou seja, os lawns da sua infância, e as auto-estradas e belos viadutos-padrão de Nova Iorque, ainda assim, quarenta e sete anos após a sua inauguração, a capital brasileira continua a ser um paradigma do urbanismo funcionalista. E é como tal, primeira tradução completa e materializada dos princípios preconizados no contexto dos CIAMs – Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, da Carta de Atenas de 1933, que a cidade foi inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco, em 1987.

Fig. 1 - Plano Piloto (Fonte: CODEPLAN, 1991)

Fig. 2 – Lucio Costa: desenhos (Fonte: Lucio Costa, Registro de uma Vivência, 1995)

Segundo o próprio Lucio Costa, no Relatório do Plano Piloto, Brasília “(...) nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto (...)”. Porém, muito mais que um primeiro ato de apropriação do novo território, os eixos do Plano Piloto de Costa assumem uma função estruturadora. A partir deles a capital brasileira se define como um espaço produtivo, racional e eficiente, como sempre preconizou o Movimento Moderno. No sentido norte-sul, ao longo do Eixo Rodoviário encontra-se a área residencial e, perpendicular a este, no sentido leste-oeste, o Eixo Monumental dispõe múltiplos setores: hoteleiro, comercial, bancário, cultural e institucional. Se a Carta de Atenas estabelece um compromisso entre o planejamento urbano e o zoneamento das atividades cotidianas, tais eixos incorporaram, de forma quase literal, uma das quatro funções básicas do urbanismo modernista, o circular, delimitando as outras três, o habitar, o trabalhar e o se divertir. Todavia, a despeito do aspecto de preservação da Brasília projetada por Costa, tanto o Eixo Monumental quanto o Rodoviário sofreram transformações. Na realidade, a Brasília projetada não corresponde ipsis litteris à cidade que se materializou na forma construída. Conforme alerta Carpintero, algumas das alterações do projeto original se apresentam imediatamente após o concurso, ou seja, antes mesmo do início das obras.

“A NOVACAP deslocou cerca de 800m o ponto de intersecção dos níveis e, portanto, todo o conjunto urbano, na direção do eixo monumental, em sentido leste. Aumentou também a extensão do eixo monumental, para leste e para oeste. Ao mesmo tempo, aumentou as áreas disponíveis para residências e serviços, acrescentando uma faixa de superquadras, outra de residências geminadas e mais duas para serviços” (CARPINTERO, 1998: 161)

Além de deslocado para leste e estendido para leste e oeste a partir do ponto de cruzamento com o Eixo Rodoviário, o Eixo Monumental foi ampliado no sentido norte-sul. De acordo com o Documento “Brasília 57 - 85”, de autoria de Adeildo Viegas de Lima e Maria Elisa Costa, subscrito pelo próprio Lucio Costa,

“No plano piloto as faixas do terrapleno destinadas à implantação dos ministérios eram nitidamente mais largas que o canteiro central. Em decorrência do projeto do Congresso, as duas pistas foram ligeiramente afastadas, aumentando a largura da faixa gramada e, ao mesmo tempo, os blocos dos ministérios (...) tiveram suas dimensões reduzidas por questões de economia (...) aumentando ainda mais a distância de confronto das empenas” (LIMA & COSTA, apud CARPINTERO, 1998: 185)

No Eixo Monumental leste, as ligações cobertas previstas entre os diversos ministérios e a praça autônoma para os ministérios militares também foram suprimidas. Do lado oeste do Eixo, o Jardim Botânico e o Jardim Zoológico da cidade projetada cederam seus lugares, na Brasília edificada, ao atual Parque da Cidade e ao Setor Esportivo, respectivamente; e o Setor Militar, concebido para ocupar os dois lados, norte e sul, do Eixo, concentrou-se em sua face norte. No ponto de interseção com o Eixo Rodoviário, a parte central do Setor de Diversões foi desconsiderada, desestruturando o conceito inicial da área central da capital federal. Todo este conjunto de alterações serve para demonstrar, tendo por base o exemplo paradigmático do Eixo Monumental, que a Brasília que foi construída não corresponde à Brasília que foi projetada. Então, hoje, quarenta e sete anos depois, de que Brasília se fala? Uma das mais clássicas vistas da capital brasileira é aquela que se oferece ao observador a partir do belvedere da Torre de Televisão. Ali, em pleno Eixo Monumental, duzentos e dezoito metros acima do nível do solo, o olhar apreende, sem muito esforço, a totalidade preservada de uma cidade idealizada, projetada, construída, definitiva em sua escala. Todavia, basta pisar uma vez mais o solo para perceber que, para além das alterações imediatas ao concurso, a Brasília vivenciada cotidianamente no decorrer destes últimos quase cinqüenta anos, traz marcas de muitas outras modificações posteriores.

Fig. 3 - Brasília a partir da Torre de Televisão (Fonte: Augusto Areal)

Fig. 4 - Brasília a partir da Torre de Televisão - Sul (Fonte: Augusto Areal)

O mastro de cerca de cem metros de altura que empunha a bandeira brasileira e o conjunto do Panteão constituem acréscimos das décadas de setenta e oitenta à Praça dos Três Poderes. A mudança de uso da Plataforma Rodoviária como terminal local e metropolitano de transporte urbano conferiu a este espaço uma urbanidade não prevista, como bem o afirma o próprio Lucio Costa quando diz, em entrevista concedida in-loco, em 1984:

“Então eu senti esse movimento, essa vida intensa dos verdadeiros brasilienses, essa massa que vive nos arredores e converge para a Rodoviária. Ali é a casa deles, o lugar onde se sentem à vontade. Eles protelam, até, a volta e ficam ali bebericando. (...) Isso tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta deles foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. É o Brasil ... E eu fiquei orgulhoso disso (...) Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. (...) Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade.” (COSTA, 1995: 311)

A oeste da Rodoviária, no canteiro central, vários foram os equipamentos alocados: Centro de Convenções, Planetário, Museu3, Memorial JK e Catedral Militar. O Setor de Autarquias Norte continua ocupado de forma rarefeita. Parte do conjunto da Esplanada dos Ministérios, os Setores Culturais Norte e Sul contavam, até pouco tempo atrás, com duas únicas construções: o Touring Clube do Brasil, ao sul, e o Teatro Nacional, ao norte. O restante de ambas as áreas permaneceu, durante quarenta e seis anos como um grande vazio urbano. No último dia 15 de dezembro, data em que o arquiteto Oscar Niemeyer completou 99 anos foi inaugurado, por meio da abertura do Museu Nacional Honestino Guimarães e da Biblioteca Nacional Leonel Brizola, o Complexo Cultural da República João Herculino. Situados a oeste da Catedral, em pleno Eixo Monumental, o Museu e a Biblioteca compõem o Setor Cultural Sul e representam muito mais do que o alardeado pela imprensa local: marco do início das comemorações do centenário de Oscar Niemeyer. Para além deste fato, a ocupação desta área sob o pretexto de materialização de um dos pontos importantes e incompletos da Brasília projetada, coloca uma série de outras questões, entre as quais, a dos vazios urbanos como vazios úteis. Vazios Urbanos em Questão: Situando o Debate à Luz de Brasília. Vazio urbano: fenômeno típico da sociedade pós-industrial, este termo designa, grosso modo, espaços residuais resultantes de zonas industriais obsoletas, de corredores e pátios ferroviários esquecidos, dos movimentos de especulação imobiliária, de catástrofes ou mesmo de edifícios centrais abandonados. No contexto do urbanismo moderno, onde a cidade é percebida como um espaço produtivo e eficiente, os vazios são encarados como uma disfunção, um ponto de ruptura do tecido urbano. Ao exigir a organização racional da vida social cotidiana, o modo de ser moderno impõe, portanto, aos vazios, a obrigatoriedade de reintegração à cidade funcional. Normalmente, esta reinserção à trama produtiva se efetua por meio da imposição de uma ocupação arquitetônica maciça. No debate contemporâneo, ao termo genérico de vazios urbanos, vêm se somar outros como terrenos vagos, terras vagas, brownfields, terrain vague... É Sola-Morales4 quem introduz esta nova visão dos vazios urbanos. Segundo este autor, o terrain vague constitui um espaço que se apresenta, de um lado, constituído de fronteiras e significados vagos, ainda indefinidos, desprovidos de horizontes futuros e, do outro lado, impregnado de memórias urbanas plurais, disponível, livre de compromissos e pleno de originalidade: uma área estrutural, posto que parte dos mapas físico, mental e emocional da organização coletiva das cidades. Aqui, é a

3 - Inicialmente projetado como Museu do Índio, transformado, depois, em Museu de Arte Moderna. 4 - Ver (SOLA-MORALES, 1995)

idéia do “silêncio arquitetônico” que prevalece. Sob esta perspectiva, os vazios urbanos se revelam, na verdade, “cheios” urbanos, na qualidade de espaços que, apesar de destituídos de uma materialidade se apresentam repletos de uma imaterialidade potencialmente criadora. Se a discussão inicial a respeito do destino dos vazios urbanos esteve restrita às intervenções de caráter arquitetônico e/ou urbanístico, o fato é que o debate atual recoloca a questão também em termos da prática preservacionista. Afinal, ao vazio urbano se atribui um valor de memória! O vazio passa a ser apreendido como uma ausência que significa e, portanto, deve ser preservada. Todavia, a esta visão contrapõe-se uma outra: a da requalificação urbana entendida como intervenção segundo a qual a preservação do ambiente – natural ou edificado, em suas escalas arquitetônica e urbanística – atende às demandas de um desenvolvimento que se quer sustentável e cada vez mais, humano. Não se trata mais de renovar ou revitalizar cenograficamente, de substituir ou mascarar a realidade existente e sim de requalificá-la. Sob este ponto de vista mais amplo, a idéia de fazer tabula rasa e substituir edifícios centrais abandonados ou de preservar um vazio, ainda que significante, não se sustenta. Em suma: tema cada vez mais recorrente, os vazios urbanos permeiam o debate atual no âmbito das intervenções arquitetônicas e urbanísticas sobre a cidade contemporânea. No Brasil, não é diferente. Aqui, a partir de estudos de caso de cidades como Vitória ou São Paulo as discussões giram em torno da contraposição dos vazios urbanos entendidos, ora como vazios úteis a serem reincorporados à trama produtiva da cidade, ora como vazios significantes a serem preservados como experiência da memória. Mas, como pensar este conceito à luz de Brasília, de uma maneira geral e, mais especificamente, do Complexo Cultural da República?

“(...) tratado à maneira de parque para melhor ambientação dos museus, da biblioteca, do planetário, das academias, dos institutos, etc., este setor também contíguo à ampla área destinada à Cidade Universitária, com o respectivo hospital das clínicas, é onde também se prevê a instalação do Observatório” (GDF, 1991: 24)

É desta forma que Lucio Costa descreve o Setor Cultural, no Relatório do Plano Piloto de Brasília. Entretanto, a descrição da cidade projetada não corresponde nem à cidade construída, tampouco a atualmente vivenciada. Conforme alertado anteriormente, o fato é que, à exceção do Teatro Nacional e do Touring Clube do Brasil, o Setor Cultural foi, até recentemente, um vazio urbano. Mas, de que vazio urbano se trata? Não constitui um espaço residual, fruto de uma catástrofe, de uma zona industrial obsoleta ou de corredores e pátios ferroviários relegados ao ostracismo. Também não configura objeto de especulação imobiliária, posto que terra de domínio público. O que dizer, então? Considerando o caráter moderno e planejado de Brasília, o vazio urbano em que se traduziu o Setor Cultural, por tantas décadas, revela-se, no mínimo, intrigante, peculiar. Afinal, como justificar esta disfunção, que é o vazio urbano, em uma cidade moderna planejada, onde o espaço é percebido como produtivo e eficiente? E mais: como justificar este silêncio arquitetônico tão duradouro justamente em área tão especial quanto àquela reservada à escala monumental da nova capital do Brasil? Em conhecido depoimento no Seminário do Senado Federal, em 1974, Lucio Costa relata a reação do Presidente da República por ocasião da construção de Brasília, Juscelino Kubitschek, diante da possibilidade de não levantar a Plataforma da Rodoviária, considerada desnecessária para o funcionamento imediato da cidade:

“Não senhor. Eu faço questão de levantar esta Plataforma (...). A concepção do plano é baseada no cruzamento dos eixos, em vários níveis. Sem plataforma, isso não funciona, ainda que para o uso inicial da cidade não seja, de fato, necessária. É preciso fazer o supérfluo porque o necessário será feito de qualquer maneira”. (apud Costa, 2002)

Uma vez que não se materializa senão agora, o Setor Cultural parece não ter sido considerado nem supérfluo, nem necessário. Mas, então, como explicar esta posição indefinida? Sobretudo, como entender o desinteresse em torno do tema “museu”, já considerado não apenas um ator importante no processo de construção da identidade nacional, mas também, ao lado das cidades universitárias, o programa por excelência da arquitetura moderna latino-americana do período? Como contrapor, no mesmo momento, a sonoridade do Museu de Caracas - projeto de Oscar Niemeyer - ao silêncio do Setor Cultural de Brasília? É Valerie Fraser5 quem dá algumas respostas. De um lado, os naquele momento recém inaugurados MAM – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e o MASP – Museu de Arte Moderna de São Paulo, surgem como fortes argumentos. Afinal, além de abrigarem acervos de alta qualidade, o MAM e o MASP também constituíam projetos de dois grandes expoentes da arquitetura moderna nacional: Affonso Eduardo Reidy, no Rio, e Lina Bo Bardi, em São Paulo. Ou seja, um novo museu de arte, na nova capital, teria obrigatoriamente que fazer face à qualidade arquitetônica, dos edifícios, e técnica e artística, dos acervos carioca e paulista. De outro lado, Fraser levanta a hipótese do museu percebido como espaço de fragmentação das artes, ao qual se contrapõe o ideal da cidade modernista entendida como obra de arte total. A exemplo de Roma ou Atenas, Brasília já seria vista, naquele instante, como expressão artística acabada e inteiramente integrada à prática democrática. Na capital brasileira de então, as pinturas saem das telas e voltam para as paredes, constituindo um cenário no qual, portanto, designar um papel ao museu não faria o menor sentido. Independente das razões por trás do silêncio arquitetônico, o fato é que ele ocorreu, gerando um vazio urbano que perdurou durante quase cinco décadas e, de certa forma, ainda permanece, pelo menos parcialmente, do lado norte do Eixo Monumental. Ao longo destes quase cinqüenta anos, tal espaço foi sendo apropriado, mental e fisicamente, pela sociedade brasiliense. Alheia, em sua grande maioria, aos desígnios da Brasília projetada no Relatório do Plano Piloto, a população veio vivenciando o espaço real a ela oferecido: um vazio que, na medida da passagem dos anos se tornava mais e mais cheio, repleto de significados. A partir do belvedere da Torre de TV; da parte superior da Plataforma Rodoviária; do alto do Congresso Nacional; do automóvel, do ônibus, do táxi, da bicicleta ou da charrete em movimento; ou ainda simplesmente a partir do olhar do pedestre, o fato é que o vazio urbano que foi o Setor Cultural Sul se dava cotidianamente aos brasilienses, estabelecendo relações humanas, urbanas e arquitetônicas, impregnando a paisagem, as memórias. Ora memória, ora paisagem, ora passagem, o vazio que foi o setor cultural nunca foi vazio no sentido estrito do termo, tanto pelos significados intangíveis a ele atribuídos, quanto pela ocupação material do lugar. Feirinhas, comércio informal, estacionamentos de ônibus trazendo manifestantes contra ou a favor do Governo: entre funções mais e menos nobres, o vazio urbano, que foi o setor cultural sul, foi apropriado, vivenciado. Todavia, talvez uma das associações mais fortes deste espaço à memória coletiva local seja o Gran Circo Lar. Projeto do arquiteto Fernando de Andrade, da equipe de Oscar Niemeyer, com painéis em azulejos de autoria do artista português Júlio Pomar, o Gran Circo Lar foi concebido como uma estrutura provisória. Como tal, consistia, basicamente, em uma cobertura em lona e arquibancada capaz de receber cerca de três mil e quinhentas pessoas – os painéis de Pomar serviam como fechamentos laterais. Em termos de localização, situava-se no extremo oeste do então vazio em que se constituía o Setor Cultural sul, bem próximo à plataforma da Rodoviária. Ali, serviu de palco a diversas manifestações culturais e sociais: escola de circo, 5 - Ver (FRASER, 2007). Este artigo foi originalmente publicado como Brasília: a national capital without a national museum. In: The Architetcture of the Museum. Manchester University Press, 2003.

patinação no gelo, espetáculos populares, shows musicais, entre outros. Inaugurado em 1987, o Gran Circo Lar desafiou o seu caráter provisório e, de show em show, de espetáculo em espetáculo foi se deixando ficar, por mais de uma década. Incorporou-se à paisagem, ao circuito local, nacional e até internacional de shows, à vida do brasiliense, à memória da cidade. Em 1999, sob o pretexto de não oferecer segurança ao público, na avaliação do Corpo de Bombeiros, à época, foi interditado. Falou-se em reforma, mas o que se ouviu, de fato, foi o seu “desmonte”, no ano seguinte. Segundo opinião de alguns, já ia tarde!

Fig. 5 – Gran Circo Lar (Fonte: Arquivo Público - DF)

Fig. 6 - Painel de Júlio Pomar (Fonte: Arquivo Público - DF)

Certamente, no jogo de forças entre os atores locais e nacionais da década de oitenta, foi o caráter provisório que permitiu a instalação e permanência do Gran Circo Lar em um dos espaços mais significativos do Plano Piloto de Brasília: o Eixo Monumental. Isto porque, de um lado, para alguns setores da iniciativa privada, provavelmente conhecedores do destino reservado à área pelo projeto de Lucio Costa, o grande vazio significava flexibilidade, possibilidade. Ou seja, se naquele momento admitia-se a presença de estruturas para feiras livres ou shows era por conta do seu caráter passageiro que cederia espaço, em um futuro não muito distante, à permanência das grandes obras de engenharia e arquitetura. De outro lado, dentro do discurso competente associado à prática preservacionista local e nacional, o vazio urbano em que se constituía o Setor Cultural Sul sempre fora e continuava a ser visto como efêmero, na condição temporária do vir a ser, do reservar-se, do resguardar-se à função que lhe fora atribuída quando do projeto de uma Brasília ainda não edificada, vivenciada ou tombada. Afinal, é preciso não esquecer que o Gran Circo Lar foi criação do Governo José Aparecido de Oliveira, cuja preocupação maior foi a questão cultural, de uma maneira geral e, particularmente, a preservacionista. Tanto é assim que foi sob a égide deste Governo que Brasília foi reconhecida pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade, em 1987. Na realidade, a preocupação com a salvaguarda da capital brasileira não era algo recente, como bem o atesta a Lei Santiago Dantas que estabeleceu, ainda em 1960, a estrutura organizacional da nova capital e instituiu que toda modificação do plano original da mesma deveria ser submetida ao Congresso Nacional. Todavia, são os anos oitenta que recolocam o tema patrimônio de volta ao centro das atenções. Segundo Bicca e Kohlsdorf, foi a “necessidade de abordar de forma culturalmente consciente, tecnicamente sistematizada e politicamente institucionalizada a questão da memória da cidade” (BICCA e KOHLSDORF, 1985: 3) que conduziu à criação do GT Brasília – Grupo de Trabalho para a Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Natural de Brasília. É somente a partir de 1981, com os trabalhos do GT, que a prática preservacionista foi institucionalizada e começou a ser tratada

de forma sistemática, na capital brasileira. Os estudos empreendidos pelo Grupo de Trabalho tinham por objetivo promover a preservação da memória local e permitir a permanência da identidade brasiliense, apesar das pressões crescentes advindas da valorização do solo, da ausência de um instrumento de planejamento físico-territorial ou da não-representatividade de diversas classes da população. É neste sentido, a partir de uma análise que se estruturava nas relações de temporalidade e espacialidade (RIBEIRO, 2005), que o GT Brasília percebia a cidade a ser preservada como algo mais que a dimensão em pedra e cal do conjunto arquitetônico e urbanístico do Plano Piloto. Brasília patrimônio se apresentava em suas dimensões histórica e sociocultural, como resultado de uma vontade nacional cujas origens se encontravam nos setecentos ou como construção social que se materializava na arquitetura vernacular dos centros históricos de cidades pré-existentes ou dos acampamentos dos pioneiros. Em resumo: a Brasília a ser preservada, segundo a ótica do referido Grupo de Trabalho, era uma cidade entendida como um espaço dinâmico, ainda em construção para além e aquém dos limites do Plano Piloto e cuja gestão, na condição de patrimônio, era de responsabilidade de todos. Todavia, esta não era a única visão que se tinha, naquele instante, da construção social de Brasília como patrimônio mundial. Em um duplo movimento, José Aparecido de Oliveira6 ao mesmo tempo em que convidou o GT Brasília a elaborar o dossiê de candidatura da capital federal à Lista da Unesco, também promoveu a reaproximação com os “artistas construtores” da capital, Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Roberto Burle Marx, a fim de “recolocar a Brasília dentro do plano original”, segundo suas próprias palavras (apud REIS, 2001:131). Esta reaproximação, em um momento de construção de Brasília como patrimônio significou, entre outros, ver a cidade ser revisitada analiticamente, trinta anos depois do concurso, pelo próprio Lucio Costa. Esse retorno gerou o documento “Brasília Revisitada” (COSTA, 1987) no qual o urbanista propõe áreas de preservação, adensamento ou expansão. Trata-se de idéias que, embora sejam convergentes na análise dos problemas, se contrapõem, em vários aspectos, aos estudos que vinham sendo realizados pelo GT Brasília, no que diz respeito às soluções. Dentre as divergências do que Ribeiro vai chamar grupo local e grupo do Rio - em referência às visões do GT-Brasília, de um lado, e dos “artistas construtores”, do outro – talvez a principal seja a definição do que era Brasília. Nesse sentido, “Brasília Revisitada” restringiu a percepção da capital brasileira ao projeto de Lucio Costa, na qualidade de obra de arte acabada de natureza arquitetônica e urbanística, cuja gestão e preservação deveriam caber, somente, aos especialistas. Entre o local e nacional, o que dizer, então, da postura internacional? Nestes termos, o reconhecimento de Brasília como patrimônio mundial se fez tendo por base dois dos critérios culturais da Unesco, a saber: (i) representar uma obra mestra do gênio criador humano e (iv) oferecer um exemplo eminente de um tipo de construção ou de conjunto arquitetônico ou tecnológico ou de paisagem, ilustrando um ou mais períodos da história humana. Segundo o Comitê de Avaliação da Lista do Patrimônio Mundial n0 445, do ICOMOS,

“while expressing an opinion favourable in principle to the inclusion of Brasilia on the World Heritage List, considers that the property should be inscribed on condition that minimal guarantees of protection ensure the preservation of the urban creation of Costa and Niemeyer” (ICOMOS, 1987: 3).

Embora a tônica sobre a criação urbana de Costa e Niemeyer se faça perceber tanto nos critérios da Unesco como no Relatório do ICOMOS, o fato é que este último considerou o dossiê de candidatura preparado pelo GT Brasília. Tanto é assim que este documento

6 - José Aparecido foi Deputado entre 1963/1967 e 1983/1987. Nesse último período, entretanto, foi indicado como Governador do Distrito Federal (1985/1987) e também Ministro da Cultura (15 de março a 29 de maio de 1985). Volta ao Ministério da Cultura entre 20 de setembro de 1988 e 14 de março de 1990. Depois, torna-se, ainda Embaixador do Brasil.

reconhece o lugar de destaque do Plano Piloto na história da arquitetura e urbanismo, mas menciona, também, na proposta de legislação em seu anexo, a proteção dos antigos acampamentos de pioneiros ou de cidades que testemunharam o nascimento de Brasília, como Planaltina e Brazlândia. A verdade, contudo, é que 1987 trouxe consigo um novo olhar sobre Brasília e, consequentemente, sobre a área destinada ao Setor Cultural. Às Brasílias idealizada, projetada, construída e vivenciada, veio somar-se a Brasília tombada, preservada. E a visão da cidade patrimônio que prevaleceu, naquele momento, não foi a do GT Brasília, mas sim a do Grupo do Rio, ou seja, a da Brasília cidade projetada e construída como obra de arte definitiva, em pedra e cal, a ser imperativamente completada. Neste contexto, o perímetro definido como patrimônio mundial corresponde, praticamente, à área do Plano Piloto. A proteção do polígono pelo Decreto 10829, de 1987, previa, e ainda prevê, a salvaguarda do conjunto urbanístico por meio da preservação das suas escalas monumental, bucólica, gregária e residencial. É, portanto, nesta situação de destaque, dentro deste perímetro, em plena escala monumental e sob pressão direta da Brasília projetada, que se encontra o Eixo Monumental e, com ele, o vazio urbano que correspondia, naqueles idos anos oitenta, ao Setor Cultural. A partir de então, se houve um momento em que seria possível, com o GT Brasília, entender o vazio urbano como espaço estruturador, guardião da memória, este ficou para trás. Tampouco sobrevive o vazio como o espaço do possível, flexível o efêmero: não se trata mais do vir a ser, pois o que era o “vir a ser” em breve “será”. O Vazio Urbano, a Biblioteca e o Museu

“A mim o que mais me constrange é sentir como os visitantes de Brasília caminham, com entusiasmo, da Praça dos Três Poderes até a Catedral, e aí, diante da terra vazia que se estende até o viaduto, perguntarem surpresos: ‘O que é isto? Por que este espaço vazio7 e abandonado?’ E isso explica por que os que como eu viveram aqueles velhos tempos de Brasília sentem-se hoje obrigados a apoiar o governador Roriz, ao vê-lo tomar todas as providências necessárias para a construção do museu e da biblioteca previstos no setor cultural”. (NIEMEYER, 2007)

Fig. 7 – Biblioteca Nacional (Fonte: Augusto Areal)

Se a idéia da materialização da Brasília projetada sempre esteve, de uma forma ou de outra, latente, inegável é que, depois da elevação da cidade à categoria de Patrimônio Mundial este

7 - Grifo nosso

desejo só se afirmou. A cerimônia que deu início ao processo de retomada do projeto do Plano Piloto pelo então Governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, aconteceu em 2002. A despeito da propagada idéia de concluir, mais de quarenta anos depois, o projeto original pelo qual Brasília havia sido reconhecida como patrimônio, o Conjunto Cultural da República não corresponde, de fato, à Brasília projetada. Do lado norte, o já chamado projeto Roriz-Niemeyer prevê a construção, a leste do já existente Teatro Nacional, de um Centro Musical, um Conjunto Multiplex de Cinemas e Lojas e um Cinema 1800 funcionando ao lado de um Planetário. No Setor Sul, área de construção inicial, a Biblioteca Nacional viria a ocupar o espaço anteriormente usado pelo Gran Circo Lar e, um pouco mais a leste, bem próximo à Catedral, seria construído o Museu Nacional. Entre os setores norte e sul, uma galeria de ligação, subterrânea, com iluminação natural disporia de lojas e serviria, ainda, como generosa área de estacionamento. Euforia por parte de uns, incredulidade no sentido positivo ou negativo, por parte de outros, revolta e críticas por parte ainda de terceiros: a decisão de concluir o Setor Cultural gerou e ainda gera polêmica e está longe de ser consenso. O argumento maior a favor da conclusão do projeto da Esplanada dos Ministérios foi o de caráter patrimonial: preservar a unidade da proposta original ameaçada. Nas entrelinhas, o risco, a ameaça deixam-se vislumbrar na forma da apropriação espontânea do espaço pela população; das idéias insurgentes de abrir um concurso público para os projetos, cujo julgamento pudesse ser duvidoso colocando em questão o caráter da obra mestra do gênio criador humano; e do próprio processo de construção patrimonial para além do núcleo inicial da pedra e cal, valorizando imaterialidades. As críticas que afloraram e ainda afloram, por vezes mordazes, o fizeram e o fazem a partir do ângulo de visão dos diversos atores sociais e em vários sentidos: funcional, estético, da reserva de mercado e político.

Fig. 8 – Catedral e Museu Nacional (Fonte: Aline Batista)

Fig. 9 – Catedral, Museu Nacional e Biblioteca Nacional (Fonte: Edfotos)

Em termos funcionais, questionou-se e ainda se questiona a validade da proposta de um Cinema 1800 com Planetário, tendo em vista o caráter ultrapassado de cinemas desta natureza e a existência de um Planetário, na parte central do Eixo Monumental, a oeste da Plataforma Rodoviária. Ainda que inoperante, nos dias atuais, fechado e abandonado, a construção de um novo Planetário significaria condenar, definitivamente, o já existente a um processo de demolição ou reciclagem. Diante da presença de inúmeras salas de cinema na cidade e da proximidade do Shopping Conjunto Nacional, o sentido da proposta das dez salas de cinema e lojas do Conjunto Multiplex também foi e continua a ser interrogada. As salas Villa Lobos e Martins Pena, do Teatro Nacional, a sala Funarte, bem como os espaços da Caixa Econômica Federal, entre outros, serviram e ainda servem de argumento contra a idéia do Centro de Música. O estado de deterioração e mau uso das galerias ou passagens subterrâneas que cruzam o Eixo Rodoviário no sentido leste-oeste, ao longo de toda a sua extensão, puseram e

ainda põe em xeque a viabilidade da galeria de ligação entre os setores cultural sul e norte. A crítica à Biblioteca se construiu e ainda se constrói tendo por base a existência da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e na proximidade da Biblioteca do Congresso Nacional. Quanto ao Museu, a grande interrogação sobre a sua existência foi e continua sendo a necessidade de um vigésimo oitavo8 equipamento deste tipo na cidade. Mais um museu para quê ou para quem? No que diz respeito à estética, à forma, em artigo publicado na sessão Minha Cidade, da Revista Eletrônica Vitruvius, a arquiteta Gabriela Izar expõe duramente uma visão que não é só sua ou de parte da classe profissional a qual pertence, mas também é partilhada por cidadãos comuns de Brasília:

“Niemeyer é o arquiteto autofágico, o que devora sua própria obra, o que devora sua própria história (...) O edifício [o Museu] calou a catedral e a Esplanada, na efêmera novidade de seu recente espasmo criativo. Sombreia a história do ‘arquiteto do modernismo brasileiro’. Devora seu repertório, ofusca-o com formas desnecessárias, deturpa a Brasília que ele estudou e ajudou a construir e ora esquece (res mortem) sua inédita definição de monumentalidade”. (IZAR, 2007)

Para muitos, na capital brasileira, a arquitetura do Museu incomoda como um grito que ecoa a partir do que foi um suave silêncio arquitetônico proveniente de um vazio urbano repleto de significados, porém deixado para trás, ignorado. Sob o olhar crítico, o Museu, sobretudo, mas também a Biblioteca surgem a partir de um processo que, embora tenha sido considerado válido há quarenta e sete anos atrás, já não o é mais, hoje: projetar a partir do zero, risco preto sobre papel branco. Interpretado no sentido restrito do termo, como simples vácuo, espaço destituído de memórias plurais, o vazio urbano que foi o setor cultural se transmuta em gritos arquitetônicos isolados: o museu e a biblioteca como monólogo ilegítimo de um único arquiteto com a cidade! E é neste ponto que se chega à crítica ao projeto a partir do argumento da reserva de mercado. Neste contexto, o vazio em que se constituiu o Setor Cultural Sul volta a se apresentar como o espaço do possível, objeto de uma clara disputa de classe entre arquitetos, contrapondo a esfera local à Niemeyer, numa aparente retomada do embate GT Brasília X grupo do Rio. O que se questiona, aqui, muito mais que a qualidade estética ou funcional do museu e/ou da biblioteca é o porquê da escolha quase sempre exclusiva de Niemeyer, quando se trata de projetar sobre áreas nobres da Brasília vivenciada. A questão não incide na competência do escritório Niemeyer no que diz respeito ao conhecimento da Brasília projetada ou inicialmente construída, mas coloca em xeque a postura confortável e passiva do mesmo em aceitar este papel hegemônico do ato de pensar e solucionar problemas arquitetônicos de uma cidade vivenciada localmente, cotidianamente, a partir de um olhar pontual lançado de fora para dentro. O fato é que, a despeito da ciranda política no Palácio do Planalto, o Estado sempre foi um cliente fiel à Niemeyer, e Niemeyer um arquiteto que, apesar das convicções políticas pessoais, nunca se manteve à sombra do mercado. Basta um olhar retrospectivo sobre o conjunto de sua obra para perceber a importância que os contratos do Estado, em Brasília, representam: o edifício sede e o anexo do Tribunal de Contas da União, a Procuradoria Geral 8 - Segundo levantamento do Guia Brasília, a cidade conta com 27 museus, a saber: o Catetinho, o Museu Vivo da Memória Candanga, o Museu Histórico e Artístico de Planaltina, o Conjunto Cultural da Praça dos Três Poderes / Espaço Niemeyer, o Museu de Arte de Brasília, o Memorial dos Povos Indígenas, o Museu da Limpeza Urbana, Museus da Academia de Polícia Civil, o Memorial JK, o Museu da Imprensa, o Museu Assis Chateaubriand, o Museu de Brasília / Museu da Imagem e do Som, Museu de Valores do Banco Central, Museu da Caixa Econômica Federal, Museu Brasileiro de Contabilidade, Museu da Justiça Militar da União, Museu do Tribunal Superior Eleitoral, o Museu do Ministério do Trabalho, o Museu da Fundação Nacional de Saúde, Museu do Superior Tribunal de Justiça, Museu do Supremo Tribunal Federal, Museu Histórico do Senado Federal, Museu Postal e Telegráfico da ECT, Museu Nacional de Gemas e Jóias, Museu de Geociências, Museu de Artes e Tradições do Nordeste e Museu da Polícia Federal.

da República, o TST – Tribunal Superior do Trabalho, o STJ, Superior Tribunal de Justiça, entre outros. Projetar para o Governo Roriz, em si, não soa estranho, o que causa estranheza é a validação do discurso oficial da continuidade do projeto da Esplanada dos Ministérios ora como resgate de uma dívida de mais de quarenta anos para com os seus criadores, ora como o ponto final, antes que seja tarde, de uma cidade reconhecida como patrimônio mundial e interpretada como obra de arte inacabada. À Guisa de Conclusão Em resposta a uma demanda do Comitê do Patrimônio Mundial chegou ao Brasil, em dezembro de 2001, uma missão de monitoramento da Unesco em associação ao ICOMOS.

“the problem proposed to the mission was to determine if the city bears today the features that made it a site of outstanding universal value. In order to find an answer, the first question could be which Brasilia we should consider as a reference: the Brasilia imagined by Lucio Costa in 1957, the city inaugurated in 1960 or the city of 1987, when it was inscribed on the World Heritage List, because they are all different. Another question is what we should call Brasilia today: Costa’s Plano Piloto, the protected area or a bigger agglomeration, including planned and spontaneous outskirts.” (ICOMOS, 2001).

Cinco anos transcorreram desde o Relatório da Missão Unesco-ICOMOS. Neste período, a idéia do Plano Piloto entendido como centro histórico de uma Brasília maior e polinucleada se consolidou. Sob esta perspectiva, que outra cidade no cenário nacional ou mesmo internacional apresenta um centro histórico tombado nos níveis federal e mundial dotado das características do Plano Piloto enquanto cidade modernista, planejada e sede do Poder? Assim, se no contexto nacional e internacional os vazios urbanos são encarados como vazios úteis à causa preservacionista, na qualidade de poderosos instrumentos de requalificação urbana por meio da prática arquitetônica, em Brasília, o Museu e a Biblioteca recolocam esta questão em outros patamares. Não se trata de requalificar o vazio à luz das necessidades atuais, mas completá-lo, preenchê-lo, terminá-lo, tendo por base uma realidade pretérita. Sem pretender oferecer respostas prontas ou tomar partido, o presente texto procurou lançar elementos de análise em torno da prática preservacionista, a partir de uma reflexão sobre o Museu, a Biblioteca e o Vazio Urbano. Paradoxal sob qualquer ponto de vista, seja ele o estrutural, o efêmero ou o flexível, o vazio exige que a prática arquitetônica preservacionista aprenda a lidar com ele, no seu silêncio ou no seu grito arquitetônico, na qualidade do que parece ser o mais novo paradigma para intervenções urbanas. Neste sentido, em um país como o Brasil, onde a Constituição Federal garante ao cidadão à participação popular no processo decisório do desenvolvimento da política urbana, parece ter chegado a hora de entender a construção de Brasília como patrimônio mundial a partir não mais de um monólogo e sim de um diálogo. Mas, ainda há tempo: o Setor Cultural Norte, à exceção do Teatro Nacional, ainda constitui um vazio urbano – vazio útil? Referências BICCA, Briane e KOHLSDORF Maria Elaine (1985). A Memória de Brasília. In: Síntese de

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Cidade Oculta – A Vila Operária

Ana Leonor Tomás/Prof. Doutora Arquitecta – Estabelecimento de Ensino Superior de

Setúbal da Dinensino

Bairro de Belém, Rua 3 – nº 1, 1400-345 Lisboa, [email protected]

VAZIOS ÚTEIS – Seminário Estudos Urbanos – ISCTE/ Julho 2007 CIDADE OCULTA – A Vila Operária A Vila Operária, entendida como argumento narrativo do facto arquitectónico, surge no âmbito do tema - Vazios Úteis - através do estudo crítico da sua arquitectura, num apelo ao sentido de identidade e consciência cultural, fazendo prevalecer a especificidade da sua relação tipo-morfológica mais comum, enquanto forma de colonização interna do quarteirão. Na cidade oculta, através da organização do espaço e da forma construída, os camponeses tornados operários, imprimiram um traço de ruralidade, humanizando um espaço abstracto reflectido na casa, também esta inscrita num processo de transformação, tornando-se o intervalo cronológico admitido (1870-1930), fundamental para entender o momento contemporâneo da cidade e da sua arquitectura.

Pretende-se por um lado aprofundar os meios e modos da sua génese, o entendimento das suas relações tipo-morfológicas e a sistematização das suas características tipológicas. Da leitura tipo-morfológica sobre o objecto em questão, ressalta a especificidade do seu enquadramento, sendo no seu carácter marginal e por vezes oculto relativamente à estrutura urbana em que se insere, que parcialmente reside a sua singularidade. O reconhecimento de uma estrutura compositiva específica induz uma reflexão mais ampla baseada no intercâmbio entre as práticas vernaculares e eruditas da arquitectura e o modo como estes dois campos se influenciaram mutuamente ao longo de vários séculos, no universo específico da arquitectura portuguesa.

Vila Macieira (1890) – Estrutura compositiva baseada no quadrado e no retângulo √2.

Apreendida na dimensão de tipo arquitectónico é ainda possível observar a sua adequação a posteriores contextos. A arquitectura surge assim, numa perspectiva universal enquanto

Vila Macieira

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organismo vivo, capaz de sobreviver adaptando-se a todas as mudanças que lhe são exteriores, que em cada passo ou tipologia concreta, respondem a uma informação genética de ordem interna superior. A sua realidade é o devir que a faz ressurgir sucessivamente.

Contexto Oitocentista – a estrutura funcional da cidade

Do Pátio à Vila Operária

“Los primeros estudios científicos sobre las ciudades surgieron en la segunda mitad del siglo pasado, frutos del pensamiento higienista, precedente directo de las teorías urbanísticas contemporáneas. Nacidos como reacción al entorno social e cívico creado por la Revolución Industrial, se hallan impregnados desde su origen de un cierto carácter de conocimiento para la acción que transmitirán al urbanismo posterior, conformador de la ciudad actual”(Pozo y Barajas, 1996). O quadro de intervenções arquitectónicas que marcaram a cidade oitocentista, reflecte a profunda contradição do seu universo social. O contingente migratório oriundo do meio rural improvisou as suas próprias soluções de habitação, elegendo o Pátio, como primeira solução neste domínio. O Pátio tal como é entendido no final do século XIX, consiste na apropriação espontânea de estruturas pré-existentes, formando um conjunto heterogéneo de escala e conformação diversas. As formas de ocupação são condicionadas pela natureza dos espaços residuais, estendendo-se de logradouros de edifícios e palácios arruinados, a conventos desafectados, quintas e pátios de antigas casas senhoriais em zonas rurais. Apesar da dificuldade em definir tipologias precisas, é possível distinguir os que surgiram da ocupação espontânea de um logradouro ou dos pátios de palácios e claustros de conventos, dos que foram construídos com essa finalidade. Os Pátios distribuem-se por toda a extensão da cidade, com maior concentração nos bairros antigos, de construção mais densa, e nas zonas periféricas que outrora constituíam a franja rural da cidade (Ameixoeira, Olivais, Chelas , Lumiar, Charneca, Benfica), abrangendo também as novas áreas de implantação industrial (Alcântara, Marvila, e Beato). A falta de condições mínimas de higiene que de um modo geral caracterizou toda a cidade oitocentista, resultou em fortes surtos epidémicos, sentidos particularmente nas zonas ocupadas pelas classes laboriosas. As designadas doenças da habitação atingiram preferencialmente as classes mais desfavorecidas que oriundas do meio rural não possuíam em relação à cidade, as necessárias defesas. As elevadas taxas de mortalidade constituíram o argumento do discurso de higienistas e reformadores sociais, que ao longo do século XIX defenderam o combate à chaga da habitação operária, implementando o debate da casa barata e salubre. O levantamento da situação foi feito através de Inquéritos à habitação, destacando-se o Inquérito Industrial de 1881 e o Inquérito aos Pateos de Lisboa, elaborado em duas partes (Prado e Ruiz, 1902;1905). A escassez ou pouca objectividade do enquadramento legal elege o Regulamento de Salubridade das Edificações Urbanas1, como uma das principais normativas. O discurso higienista estende-se igualmente à cidade através das orientações que em termos urbanísticos acompanham a legislação que serve de enquadramento aos Planos Gerais de Melhoramentos da Capital2, ecoando as preocupações que se fazem sentir por toda a Europa.

1 Regulamento Geral de Salubridade das Edificações Urbanas (Condições Higiénicas a adoptar nas construções dos prédios), aprovado por decreto de 14 de Fev. de 1903. 2 “No decurso do ultimo quartel do século XIX, Lisboa tinha desenvolvido um conjunto de estudos sob a orientação de Frederico Ressano Garcia, que vêm a integrar o Plano Geral de Melhoramentos de 1904. Em 1927, J.C. Forestier desloca-se à capital como consultor do Município, para colaborar na elaboração de um novo

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Estrutura urbana

A vertente segregacionista associada a este período, determina a existência de áreas da cidade às quais estão atribuídas funções específicas. Assim, constituem-se os primeiros bairros industriais, aos quais está significativamente associada a implantação da habitação operária. Embora disseminadas por toda a área urbana, as Vilas acompanham a implantação das zonas de forte concentração industrial em particular ao longo do vale de Alcântara a ocidente e do vale de Chelas a oriente, reforçando numa primeira fase a relação da cidade com o rio. Concentradas igualmente nos bairros antigos, num processo de densificação da malha urbana tradicional, estender-se-iam posteriormente para zonas de baixo valor fundiário na influência directa das primeiras, como foi o caso da escarpa dos Prazeres e Campolide a ocidente, Graça e Penha de França a oriente. Entendida numa vertente abstracta enquanto cidade industrial, Lisboa organiza-se de acordo com parâmetros de funcionalidade. As obras do porto de Lisboa, o estabelecimento de vias férreas urbanas e suburbanas, em particular a Via de Cintura, juntamente com a definição do novo perímetro urbano através do traçado da 1.ª Estrada de Circunvalação (1852), serão as principais condicionantes de todo o processo de urbanização e industrialização da cidade; o estabelecimento da rede de transportes acentua a relação com o rio, pois a área vocacionada ao comércio desenvolve-se na zona próxima ribeirinha dependente do tráfego fluvial, sobretudo o tráfego marítimo além Atlântico. Neste contexto é necessário atender às transformações sociais, culturais e económicas que desencadearam os diferentes processos de formação/transformação sobre o tecido urbano. Profundamente classista, Lisboa vive nesta época, uma “dupla realidade” (Madeira Rodrigues, 1979). A cidade laboriosa cresce sobre si própria, num processo de densificação das áreas mais antigas, ou estende-se às periferias pouco valorizadas subordinada à proximidade das áreas industriais. Paralelamente, em resposta aos preceitos urbanísticos higienistas e à vontade de uma classe social emergente, a cidade cresce para Norte, originando novos bairros residenciais, baseados numa prática comum que elege o quarteirão oitocentista, resultante do traçado ortogonal e do loteamento informado pela referência normativa que corresponde à implementação de uma nova tipologia arquitectónica (o edifício residencial de rendimento), introduzindo no tecido urbano, profundas transformações tipo-morfológicas. A um modo empírico de fazer cidade, associado aos problemas de habitação das designadas classes laboriosas, corresponde uma forma racional e planificada, orientada pelos poderes públicos e dirigida às classes dominantes. As classes menos favorecidas, não vão ser alvo de qualquer política concertada por parte da administração central ou municipal. A resposta a este problema surge no sector privado, como uma possibilidade de rentabilização dos terrenos pouco valorizados, através do investimento de pequenos capitais na construção de alojamentos precários. Apesar dos inúmeros projectos lei que se sucederam ao primeiro Inquérito Industrial (1881), a que vem somar-se a esperança nascida da implantação da República, a instabilidade sócio-política foi adiando progressivamente a intervenção do Estado neste domínio. O problema da habitação para as classes mais desfavorecidas vai ser resolvido por construtores privados e em menor escala por industriais, sociedades filantrópicas e cooperativas prediais.

Plano Geral de Melhoramentos, concebendo uma nova expansão da cidade para norte, numa linguagem que Lisboa não conhecia” in Lôbo, M. S. (1972) Planos de Urbanização – A Época de Duarte Pacheco, (DGOTDU/FAUP Publicações) 13.

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Promoção do alojamento operário

Inaugurando o programa da casa económica e sadia, as construções levantam-se inicialmente sob a responsabilidade de dois tipos de senhorios: os donos de fábricas e armazéns; os modestos e ricos proprietários de terrenos urbanos. No primeiro caso as habitações destinam-se prioritariamente aos operários das empresas, rentabilizando e fixando a mão-de-obra. O Inquérito Industrial de 1881 incluía uma secção subordinada ao tema, Condições de Aprendiz e do Operário, habitação, escolas e instituições operárias, na qual se perguntava expressamente: “A Fábrica tem habitações para operários? Máximo e mínimo de rendas”3. Neste contexto destaca-se o papel de algumas empresas tais como a pioneira Companhia Lisbonense de Fiação e Tecidos, que em 1873 constrói um pequeno número de habitações próximo da fábrica da Companhia, em Alcântara; segue-se a Companhia Lisbonense de Estamparia e Tinturaria de Algodões, que ergue em 1885 na Quinta do Carimba (Rua da Fábrica da Pólvora em Alcântara) um bairro para operários. O exemplo mais expressivo é promovido pela Companhia de Fabrico de Algodões de Xabregas, fundada em 1858, que ergue em 1887 a Vila Flamiano, no recinto da Fábrica de Fiação e Tecidos de Xabregas (Fábrica da Samaritana). Neste âmbito, recorda ainda António de Azevedo, a fundação do primeiro grande núcleo fabril (o Real Colégio das Manufacturas e o Bairro Fabril das Amoreiras) no contexto dos projectos pombalinos de fomento manufactureiro e simultaneamente inserido nos planos de reconstrução e reestruturação da cidade após o terramoto. Ligado à Real Fábrica das Sedas, este núcleo visava em termos programáticos, concentrar no mesmo local, unidades de produção industrial e núcleos de habitação para artesãos, a partir de um plano que previa a edificação de 470 casas, das quais se elevaram 60 habitações entre 1759 e 1769. Como expressão das motivações e filosofias filantrópicas dos seus promotores, destacamos o exemplo paradigmático do Bairro/Vila Grandella, reflectindo na habitação, a hierarquia do local de trabalho. Cada tipologia era destinada a um estatuto específico dentro da “Organização Grandella”. A fábrica e o Bairro Operário de Benfica /Vila Grandella, integram o complexo industrial e comercial monopolista, associando unidades fabris (que abastecem os armazéns comerciais da Rua do Carmo) à habitação para os trabalhadores. O Bairro recriava um mundo de ordem, vacilando entre a casa e a fábrica, perseguindo a pacificação de uma classe que se sentia explorada e que emergia para a realidade da sua força económica. As Companhias e Sociedades Construtoras constituem-se em sociedades anónimas de accionistas, visando a obtenção de lucros com os empreendimentos imobiliários. Destacam-se neste universo, a Cooperativa Popular de Construção Predial (1893), a Cooperativa e Instrução (1898) e a Ocidental 1.º de Janeiro (1901). No quadro associativista, evidencia-se o papel da Companhia Comercial Construtora, criada em 1890, que irá levar a cabo a construção do Bairro Operário dos Barbadinhos concluído em 1892. A vila Operária

Refere Maria João Madeira Rodrigues, centrando-se no caso de Lisboa, que “A vila, na ausência de um programa de habitação social, deve ser vista como um ensaio de solução, cristalizada num tempo e conservando o seu sentido nesse tempo. (...) A vila pode ser considerada, a partir dos últimos anos da década de 70, como uma forma de colonização interna, ocupando novos espaços, operando a transformação de áreas rústicas e levando mais tarde a sua influência, a áreas cuja carga histórica anterior é exemplar” (Madeira Rodrigues, 1979).

3 Inquérito Industrial de 1881, 2.ª parte, Livro 1.º, 1881-1883, 19-20.

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A Vila operária surge como modelo de habitação multifamiliar intensiva para famílias de baixos rendimentos, racionalizada de raíz, numa resposta clara aos problemas de saúde pública, associados à falta de salubridade das habitações. Pretende ser útil, económica e simples, fornecendo um espaço salubre e habitável. Situada à margem da estrutura urbana em que se insere, surge frequentemente implantada no interior do quarteirão, dado que o “negócio consistia em rentabilizar espaços no interior dos quarteirões, os quais, segundo critérios do urbanismo convencional, não são edificáveis” (Madeira Rodrigues, 1979).

Vila Rodrigues (1902)

A marginalidade destas estruturas é reconhecida no Regulamento Camarário de 1930 (que proíbe a construção de novas vilas, regulamentando as existentes) no Capítulo XII (Das Edificações interiores ou vilas), Art. 235.º, definindo-as como “grupos de edificações destinadas a uma ou mais moradias, construídas em recintos que tenham comunicação directa ou indirecta com a via pública por meio de serventia”4; evidenciando a importância dada às serventias como forma de articulação com o espaço público. A relação tipo-morfológica mais comum (interior do quarteirão), sublinha o sentido da cidade enquanto lugar habitável em detrimento da sua estrutura funcional, acentuando o valor do espaço construído, acomodado a um lugar pré-estabelecido, que se traduz num sistema de ocupação relativamente fechado. Dissimulada no tecido urbano através do seu sistema de implantação no interior do quarteirão, ou visível no espaço público em zonas mais segregadas da cidade, a Vila operária assume-se como estrutura marginal, voltando costas à malha urbana, através de uma organização em redor de um espaço comum semi-privado, através do qual se acede às habitações. Característica comum às construções com fins lucrativos, a racionalização do espaço traduzida no aproveitamento máximo da área disponível constitui a qualidade dominante. Pretende-se construir o maior número possível de fogos, reduzidos a áreas mínimas e concentrar o espaço livre, inútil ou pouco lucrativo. Esta exigência, particularmente expressiva quando a Vila se implanta no interior de um quarteirão, resulta numa organização espacial em que as habitações se agrupam à volta do terreno, ocupando todo o seu perímetro, com acesso através de um espaço central. Este espaço central funcionando como um corredor, ou mais desafogado funcionando como um pátio, torna-se o prolongamento da casa em contraponto à exiguidade das habitações, constituindo o suporte espacial de uma vivência comunitária. Esta forma de organização em redor de um espaço comum de tipo pátio, a partir do qual se acede à habitação, elege-a como modelo de transição entre o rural e o urbano.

4 Regulamento Geral da Construção Urbana para a Cidade de Lisboa – Disposição aprova em 28 de Agosto de 1930 (Edicto de 6 de Dez. de 1930), in Nobre, S.M.P., (1972)Legislação Camarária de Lisboa , (Imprensa Nacional, Lisboa) 282.

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Módulo bifamiliar (pré-existência) Vila Mendonça (1912) - pormenor de vãos e divisão do módulo O sistema distributivo é resolvido através de escadas e galerias exteriores, no sentido de reduzir os espaços não directamente rentáveis. Os módulos bifamiliares das habitações (geralmente divididas em quatro partes) organizam-se à volta de todo o perímetro do terreno e as áreas mínimas dos compartimentos bem como a articulação dos mesmos, reflectem os enunciados do Regulamento de Salubridade das Edificações Urbanas (Condições Higiénicas a adoptar nas Construções dos Prédios). A forma de agrupamento resultante da justaposição de módulos, vulgarmente designada correnteza, é comum desde tempos remotos, estendendo-se às primeiras realizações dos Bairros Económicos do Estado Novo. Um dos testemunhos mais antigos, de casas em correnteza, obedecendo a um modelo único, refere-se à fundação de uma vila de raíz, marco simbólico da programação urbana portuguesa – a vila do Infante, em Sagres. Nesta vila concebida como vila muralhada “(...) as casas desenhavam-se em correnteza adjacente ao plano sul da muralha que lhes servia de fundo. Apenas com cobertura de uma água e vãos igualmente espaçados, cada uma das casas tinha chaminé própria de igual volumetria cilíndrica, funcionando a cisterna ameiada como módulo do sistema” (Correia, 2001).

Cabos de S. Vicente e Sagres (século XVI) Rua das Necessidades - correnteza in Leite, D. (1955-59) História dos Descobrimentos (Vol. I, Ed. Cosmos, Lisboa) 208. Na cidade de Lisboa, surgem vários exemplares desta forma de agrupamento, construídos no século XVIII, ou na primeira metade de oitocentos. A sua presença é bastante expressiva nas construções destinadas a alojar os trabalhadores de algumas instituições, como é o caso dos palácios. Trata-se geralmente da adição de pequenas unidades de dois pisos, com dois ou quatro fogos no total, que se alinham ao longo de uma rua (servindo de exemplo os conjuntos associados ao palácio de Belém e ao palácio das Necessidades). Igualmente no âmbito da arquitectura popular nas regiões a Sul de Portugal, podemos destacar as correntezas do Vale do Sado e os conjuntos para trabalhadores dos núcleos piscatórios da Fuseta e Olhão. Como exemplo de excepção surge nos arredores de Mafra o conjunto de casas para trabalhadores agrícolas da herdade da Picanceira.

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Conjunto de casas para trabajadores agrícolas – (Herdade da Picanceira), in Arquitectura Popular, 1980, p. 414. Apesar da sua finalidade expressa, enquanto “edificação multifamiliar intensiva, construída pela iniciativa privada e destinada a famílias de baixos rendimentos”, (Pereira, 2002) a Vila operária apresenta algumas variantes tipológicas, que tendo em atenção o modo como se articulam com a via pública e tomando como base a proposta de classificação de Nuno Teotónio Pereira, permitem a definição de cinco grupos tipológicos distintos: Formando correntezas ao longo das vias de acesso No interior do quarteirão formando pátio ou rua Em comunicação directa com a rua formando pátio Em comunicação directa com a Via Pública formando Rua Em edifícios de estrutura diversificada

A Vila Operária – No interior do quarteirão formando pátio

São particularmente numerosos os exemplos em que num mesmo lote de terreno, se constróem duas tipologias distintas, sugerindo uma hierarquia social traduzida ao nível do próprio lote. Assim, confrontando-se com a via pública surge um prédio corrente para a burguesia, residência frequente do proprietário. No interior do quarteirão, nas traseiras deste edifício, desenvolve-se a Vila, cujo acesso pode ser feito de três modos: À ilharga do prédio através de um corredor lateral a descoberto, situação que conduz geralmente a esquemas de ocupação assimétrica, ou obriga a fazer cotovelos para contornar o prédio; a eixo do lote, também através de corredor a céu aberto, que é prolongado em linha recta através do pátio; através de passagem aberta por vezes em arco, sob o próprio prédio, aproveitando toda a extensão da frente para a construção. Qualquer dos modos de acesso referidos é vulgarmente resguardado por um portão de ferro, ostentando uma placa com o nome da Vila. Esta indicação toponímica constitui um atributo importante deste tipo de edificações, permitindo aos construtores o cunho de uma marca pessoal. A construção da Vila no interior do quarteirão pode ser feita paralelamente à consolidação do mesmo; noutros casos ocupando os interstícios do quarteirão já consolidado, a Vila operária estabelece-se num logradouro geralmente de forma irregular, produto de uma urbanística de “rapidez forçada”. A uma área máxima de ocupação interior, com forte compartimentação, produzindo numerosos fogos, contrapõe-se um espaço único e restrito no logradouro, como representação exterior, concentrando todas as actividades colectivas, bem como todo o sistema distributivo.

A Vila operária entre vernáculo e o erudito

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Ao entendimento das suas relações tipo-morfológicas e sistematização das suas características tipológicas, acresce o reconhecimento de uma estrutura compositiva específica, introduzindo uma reflexão mais ampla sobre as práticas arquitectónicas eruditas e vernaculares e o modo como estas se interpenetram no campo específico da arquitectura portuguesa. A racionalização do espaço e dos processos construtivos, directamente associada ao tipo de promotores envolvidos, assim como a procura de resposta a condições mínimas de salubridade, condicionaram um modelo de habitação, cujas características nos remetem numa primeira leitura para um universo de cariz ruralizante, adequado à origem dos seus potenciais destinatários. Exprime-se aparentemente numa expressão vernacular, cujos valores formais dominantes são a clareza, ordem, proporção e simplicidade, entendidos como específicos e correspondendo a uma visão da arquitectura portuguesa, base dos argumentos que conduziram Kubler ao conceito de arquitectura chã5(Kubler, 1972). A associação imediata a universos vernaculares, facto a que não é alheia a ausência do arquitecto na sua concepção, é reforçada pela presença de indicadores tais como o dimensionamento de certos elementos construtivos, referenciados a antigos sistemas como o sistema craveiro português. Admitindo ou não, as suas raízes vernaculares, verificamos através da sua leitura em termos planimétricos e altimétricos, a existência de uma regra compositiva, baseada em relações de proporcionalidade apoiada na utilização dos rectângulos dinâmicos, pertencente a uma tradição clássica de ordenamento compositivo, suportado eventualmente pela prática artesanal da produção dos materiais de construção em uso. Essa prática, perdida no decurso do processo de transformação dos valores e dos sistemas construtivos introduzido na sequência do Movimento Moderno, envolverá saberes de suporte tradicional, no verdadeiro sentido etimológico da palavra - transmissão oral - provavelmente provenientes das antigas guildas de construtores, que atravessaram a cultura edificatória, da Idade Média aos finais do século XIX, sobretudo nos artefactos construídos de menor erudição, pertencentes ao domínio da arquitectura dita corrente. Acompanhando a antiga organização dos mesteres na cidade de Lisboa e a história dos Regimentos dos diversos ofícios, verificamos que a reforma de 1572 inicia um período da história da regulamentação dos ofícios que se estende ao terramoto de 1755 e que apesar dos regimentos do século XIX serem raros, existiram até 1834, vários acrescentamentos que comprovam o prosseguimento da vida corporativa. Torna-se provável a existência de uma “erudição tradicional” na prática do vernáculo português, que transmigrou por via operativa medieval europeia e nacional, em paralelo com a via especulativa ou “genuinamente” erudita, reajustada e sistematizada, quer no período Manuelino, Joanino ou ainda Pombalino, até aos primórdios do século XX, através da prática dos velhos artesãos ou construtores. Qual o âmbito da arquitectura erudita em Portugal e onde termina a classificação de popular? Se por um lado a arquitectura dita popular se resume à aplicação de soluções sóbrias e rudimentares de grande imutabilidade dependente das condições naturais da região, visando a satisfação funcional de necessidades básicas, por outro lado, reflecte muitas vezes, marcadas influências urbanas e cultas, com preocupações decorativas e de representação. A arquitectura portuguesa, porventura ligada a um vernáculo que transcende épocas, categorias estilísticas e situações sócio-económicas, combina esta vasta herança com as fortes persistências classicizantes, transmitidas por via consuetudinária através de sucessivas

5 “As alterações ocorridas em Portugal no período 1520-1580 são pois do mesmo nível da que se operou na presente centúria, quando o gosto decorado e ecléctico sobrevivente dos fins do século XIX cedeu ao racionalismo e à necessidade económica mediante o abandono da superfície superdecorada. (...) Aproveitando a idéia de Júlio de Castilho do «estilo chão» designei-a por arquitectura «chã»”, in Kubler, G. (1972), Entre as Especiarias e os Diamantes 1521-1706, (Veja, Lisboa) 3.

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gerações de construtores e pedreiros e por via escolar, através de gerações de engenheiros militares e arquitectos. A esta constatação, não são alheios factores como a dinâmica corporativa, registada desde muito cedo, através da organização dos mesteirais; a existência de normativas referentes à estandardização de materiais e elementos construtivos; e o modo fortemente centralizado como foram enunciados os princípios que aplicados à arquitectura erudita, através de uma arquitectura serial ou de programa, terão posteriormente sido estendidos à arquitectura corrente. Ainda a influencia da arquitectura militar e a presença do engenheiro militar, poderão explicar parcialmente o forte pendor pragmático e despojado da arquitectura portuguesa. As grandes reformas Manuelinas entendem pela primeira vez a cidade enquanto organismo global, implementando as bases de uma praxis arquitectónica e urbanística, a partir do estabelecimento de uma arquitectura de programa, baseada em relações métricas de base proporcional. São enviadas para todo o país normas arquitectónicas e urbanísticas sob a forma de regimentos, contratos de obras e cartas régias, que emitidas a partir de um núcleo central, diluem progressivamente as autonomias estéticas e as práticas construtivas de tradição medieval por que se regiam os diferentes estaleiros e obras régias. É assim divulgada uma praxis arquitectónica e urbana de programa, cujos conteúdos estéticos manifestam uma teorização de inspiração aritmética com aplicação de séries numéricas – 6,12,15,24 e 30 – de base proporcional. Pela primeira vez nestes regimentos e contratos de obra é proposta a sistematização da largura do nembo e a determinação de vãos rectos, quadrados por cima, em métricas de quadrado, duplo quadrado e rectângulos proporcionais. Com uma forte insistência, os vãos de sacada são definidos nas medidas de 6x12 ou 5x10 (o duplo quadrado), medidas estas que se perpetuam ao longo de todo o período moderno. Igualmente são propostas séries numéricas para vários blocos de arquitectura de programa, estabelecendo relações geométricas entre o alçado e a planta (altura, largura e profundidade do lote). Dos finais do século XVI, resulta a definição de uma arquitectura de fachadas iguais, com volumetrias simples, vãos normalizados, sacadas com dois palmos, afirmando-se uma tipologia teorizada em métricas proporcionais e elementos construtivos estandardizados. É ainda elaborado um Regimento “...dos carpenteiros e pedreiros e braceiros e aprendizes e call e tijolo e madeira e pregadura...” que regula a qualidade, preço e medida dos materiais de construção, determinando a estandardização de elementos construtivos. (Carita, 1999). No período Pombalino, novamente um poder fortemente centralizado condicionou a aplicação de uma normatividade, veiculada através de uma arquitectura de programa imposta através do “prédio de rendimento”, motivando o aparecimento de um novo sistema de produção serial, ainda que sob influência dos valores estéticos iluministas; as zonas atingidas pelo terramoto constituíram a prioridade das acções desenvolvidas pelo governo de Pombal, destacando-se no conjunto de planos elaborados para diferentes zonas da cidade, o emblemático plano da Baixa. Herdeiro da experiência de reconstrução de Lisboa, refira-se o plano de Vila Real de Santo António, edificado simultaneamente com a criação em 1773 da Companhia Geral de Pescarias Reais do Reino do Algarve, reflectindo os mesmos princípios teóricos que orientaram o traçado de outras cidades contemporâneas no Brasil. Trata-se de um traçado ortogonal regular, simétrico, com uma praça central quadrada funcionando como elemento gerador do plano, construída com edifícios que obedecem ao mesmo programa. Decorrente do sistema de uniformização estandardizada, a arquitectura sintetiza-se em quatro grandes tipos de fachadas uniformizadas.

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“Toda a pedra de cantaria oriunda das pedreiras que forneciam as obras de reedificação de Lisboa, veio da Corte já talhada e aparelhada, pronta para ser aplicada. (...) os cunhais, socos e degraus de todas as casas de 1.º andar, as pilastras da Alfândega, as pilastras, socos e frontão da Igreja. Também os guarnecimentos dos vãos, com um palmo de espessura como os de Lisboa, chegaram já talhados e aparelhados, prontos para serem colocados nos locais previstos nos projectos. Iriam guarnecer vãos que na sua totalidade formam um pequeno número de modelos: vãos de 12/6 palmos (portas da Praça e da Baixa-Mar e janelas de sacada); de 8/6 palmos (janelas do 1.º andar da Praça); de 7/6 palmos (janelas do rés-do-chão da Praça); de 5/6 (janelas das casas térreas); de 5/8 (janelas laterais e traseiras do primeiro andar da Baixa-Mar e traseiras do 1.º andar da Praça); 5/10 (portas das casas térreas); de 12/10 (portões de salgas, armazéns e similares). Para além destes modelos de forma rectangular ficam apenas os dois tipos de portais barrocos da Baixa-Mar e da Praça. Por exemplo, uma pedra de 8 palmos tanto servia para verga de porta de Praça e Baixa-Mar, como de peitoril de janela de rés-do-chão ou peitoril, verga e ombreira de janelas do 1.º andar da Praça. E as pedras de 7 palmos, além de servirem de verga de porta e peitoril de janelas das casas térreas, serviam ainda para ombreira das janelas do rés-do-chão da Praça e de alizares, vergas e ombreiras das janelas laterais e traseiras da Baixa-Mar e trapeiras da Praça” (Correia, 1984). Cabe ainda referir o sistema de composição arquitectónica utilizado nos blocos de edifícios que integram o plano do Bairro Fabril das Amoreiras, com base na leitura de Walter Rossa. O esquema do alçado resume-se a um par de janelas em rectângulos de √2 no piso superior; uma janela próxima do quadrado e uma porta em duplo quadrado no rés-do-chão. Um quadrado de cerca de trinta e dois palmos, define o alçado de uma casa, estando a cumeeira a uma altura, que com o plano da fachada, completa mais uma vez um rectângulo √2. Os trinta e dois palmos exactos relativos às oito casas que constituem a frente de cada quarteirão, dariam duzentos e cinquenta e seis palmos, valor próximo dos duzentos e sessenta cotados na planta. Seiscentos e quarenta (para o comprimento da praça) divididos pelos quarenta da largura das ruas dão dezasseis; dezasseis é o número de lotes por quarteirão tipo, dezasseis palmos é o lado de cada quadrado onde se insere um vão da fachada que por sua vez se compõe (incluindo as guarnições de cantaria) a partir de um quadrado com oito palmos de lado; a largura das ruas é cinco vezes oito palmos. Em planta, cada lote ocupa na profundidade √2 da largura, o que faz com que o corte em profundidade do edifício nos dê também um rectângulo √2, que ao nível do topo da cumeeira é também um quadrado.

Bairro das Águas Livres – Casas do projecto Pombalino Praça das Amoreiras, N.ºs 25 a 32. in Rossa, W. (1998) 125. Relativamente à Vila operária verifica-se o seguinte: Os temas geométricos que servem de suporte compositivo quer em termos planimétricos, quer em termos altimétricos, são apoiados num traçado a partir do quadrado (ad quadratum) e de alguns rectângulos dinâmicos dele derivados: o duplo quadrado (proporção de 1 para 2) e o rectângulo √2 (utilizando para o lado menor o comprimento do lado do quadrado matricial e cujo lado maior resulta do rebatimento da sua diagonal). Em casos isolados foi também

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identificada a proporção áurea (1 por (√5+1)/2, ou seja 1/φ) e o falso quadrado (1 por √3/2, ou seja, o rectângulo que contém o triângulo equilateral);

Vila Dias – Composição apoiada no rectângulo √2.

Esta situação verifica-se quer no ordenamento e parcelamento do sistema morfológico do conjunto edificado, incluindo os espaços exteriores inerentes, quer na composição interna de cada unidade tipológica (parcela) e na sua subdivisão; sublinhando a relação entre o alçado e a planta. Do mesmo modo e com suporte no mesmo sistema geométrico matricial, são dedutíveis os elementos compositivos das fachadas, nomeadamente os vãos. A persistência do tipo arquitectónico

A Vila operária constitui a génese do percurso estabelecido em torno das questões ligadas à prática da habitação social, iniciando em Lisboa por intermédio da iniciativa privada uma primeira actuação neste domínio, seguida pelas designadas “vilas à escala urbana” que “(...) pelo volume de edificação, ou pela complexidade da sua estrutura, atingem uma escala que as impõe ao nível do espaço da cidade, constituindo neste último caso um sistema viário que, sem perder o carácter segregado, ganha uma dimensão urbana. É assim que surgem verdadeiras unidades de habitação horizontal, como o Bairro Estrela D`Ouro, ou conjuntos massivos de blocos em altura, como o Bairro Clemente Vicente”(Pereira, 1999).

Bairro Estrela D` Ouro – Unidades em U.

Depois de 1910, os republicanos, fazendo valer a sua dedicação à causa operária sob a designação de bairros sociais, desencadeiam uma intervenção pública sistematizada neste domínio, pondo em andamento uma máquina administrativa reguladora da produção habitacional; surgem assim os bairros sociais da Ajuda e Arco do Cego, que acabam por ser concluídos no contexto das Casas Económicas criado pelo Estado Novo, inaugurando a intervenção directa do Estado em colaboração com as Câmaras Municipais, os corpos administrativos e os organismos corporativos. Nesta sequência surge a Federação de Caixas de Previdência – Habitações Económicas, que entre os anos 40 e 60 se constitui como

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principal promotor de habitação social, estreando-se com a construção do Bairro de Alvalade. Paralelamente ao seu funcionamento, estabelece-se na Câmara Municipal o GTH – Gabinete Técnico de Habitação, responsável pelo lançamento das grandes operações urbanísticas de Olivais e Chelas. A continuidade destas operações poderá ser avaliada através do Fundo de Fomento da Habitação, por via dos Planos Integrados. O SAAL, pelas suas características, desde o contexto político à relação estabelecida entre projectista e destinatário, constitui-se como excepção, constituindo as cooperativas e as grandes operações de realojamento os elos mais recentes neste percurso centenário. Na sua dimensão de tipo arquitectónico e admitindo com Caniggia que “un determinado entorno cívico que tenga caracteres de unidad cultural, tiende a realizar homogéneamente las estruturas edilícias de las que se sirve; queremos decir que en una misma época y en un mismo lugar las estruturas realizadas, sí actúan para resolver exigencias similares, tienden a ser idénticas; y en un mismo lugar las estructuras que se suceden en el tiempo tienden a modificarse unitariamente, a excepción de traumas o intervenciones externas, y a conformar lo que denominamos processo tipológico” (Caniggia, 1973), verificamos que a Vila operária sobrevive nas experiências que imediatamente lhe sucederam e das quais destacamos o Bairro Estrela D`Ouro; na sua adaptação morfológica aos bairros periféricos do pós-guerra e ainda através da persistência de elementos formalizadores tais como a galeria, largamente divulgada nas propostas desenvolvidas entre 1947 e 1972 no contexto específico do movimento moderno.

Bairro Clemente Vicente – Sistema distributivo Pantera-cor-de-rosa in Revista Arquitectura, N.º 141(III)1981.

“Era a euforia da galeria. O esquerdo/direito era considerado muito individualista; os vizinhos

não se conhecem, não se relacionam. A galeria era uma bandeira. Todos a comunicar entre si. O Chombart de Lauwe deu uma explicação, e foi muito importante o que ele disse: as classes bem instaladas criam as suas amizades pela cidade, pelo país mesmo; enquanto as com menores recursos têm que se limitar à vizinhança. São obrigadas à entreajuda. Então pensámos que o que estávamos a fazer era obrigá-los a fixarem-se nessa condição de pobreza. Ou obrigá-los à ascensão”(Pereira, 2002). “As últimas e já raras realizações da iniciativa privada na construção de Vilas datam da década de 20. É assim que, com a construção dos primeiros bairros sociais de iniciativa oficial, se dá uma espécie de passagem de testemunho na tentativa de construção de casas para estratos populares. Tentativa que não vai ter grande sucesso, já que desde o início do século a população de mais fracos recursos se via obrigada a habitar os chamados “bairros de lata”, constituídos por barracas improvisadas. Estes bairros vão alastrando ao longo do século, apesar de alguns terem sido demolidos, com o realojamento das populações em casas provisórias que muitas vezes duravam décadas. Mais tarde nos anos 50, começam a constuir-se não já na cidade de Lisboa, mas na sua periferia os chamados “bairros clandestinos, à margem de qualquer licenciamento camarário,

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onde curiosamente vêm reproduzir-se algumas tipologias de construção características das vilas operárias (...)”(Pereira, 1994). A tipologia é abordada como uma ferramenta precisa e analítica, proporcionando uma base racional no processo de concepção, enquanto que a ideia de tipo se prende com uma procura de sentido mais lacta, estabelecendo uma ideia de continuidade histórica, tida como necessária ao conferir à arquitectura um sentido dentro de uma determinada cultura. O tipo surge “(...)mas que como un recuento a posteriori de semejanzas en objectos de un conjunto, como aquél sistema de nociones correlativas (dimensiones, materiales, forma, usos, etc.) que son el bagage de la experiencia antecedente en la actuación de cada individuo, y que constiuyen su patrimonio cultural, la base de cada formulación específica, el proyecto no debujado pero mentalmente existente, que atenderá a la creación de cada objecto futuro. El tipo puede considerarse así una prefiguración sintética del objecto, una síntesis a priori. Bajo estas premissas podemos aislar comportamientos tipificados, codificados y por tanto reconocibles para nosotros, en un cierto intervalo espacial y temporal. También podemos verificar la variación de esos comportamientos al cambiar tal intervalo. Podremos, por tanto, reconstruir una serie de procesos tipológicos que conectan objectos análogos de diversas épocas, rastreando las mutaciones en la codificación espontánea de los tipos”.(Pozo y Barajas, 1996). A essência dos conceitos de morfologia e de tipo que directa ou indirectamente influenciam os agentes da teoria e da prática da Arquitectura e da Arquitectura da Cidade no contexto ocidental pode situar-se um pouco anteriormente, através do extenso trabalho de Goethe, sobre a Metamorfose das Plantas. Tudo o que é vivo se escapa, deixando uma marca de vazio na sua retenção ou fixação. A morfologia é o termo designado por Goethe para a maneira adequada de estudar as características dos seres vivos. Tudo o que vive, se apresenta aos sentidos como inacabado, numa acepção positiva do termo. Nenhuma fase do desenvolvimento de um organismo vivo é esse mesmo organismo: a sua realidade é o devir, que as faz sucessivamente surgir. Assim, tudo o que vive, existe em permanente metamorfose.

Referências:

Carita, H. (1999), Lisboa Manuelina e a Formação de Modelos Urbanísticos da Época Moderna 1495-1521 (Livros Horizonte, Col. Cidade de Lisboa, Lisboa). Correia, J.E.C.H. (2001), ´A importância da Arquitectura de Programa na História do Urbanismo Português`, Actas do V Colóquio Luso-Brasileiro de História de Arte (Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Faro) 162. Goethe, J.W. (1992) La Métamorphose des plantes et autres écrits botaniques (Triades, 3º Ed., Paris).

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Kubler, G. (1972) A Arquitectura Portuguesa Chã – entre as Especiarias e os diamantes 1521-1706 (Col. Artes/História, Ed. Vega, Lisboa). Lôbo, M. S. (1995) Planos de Urbanização – A Época de Duarte Pacheco (DGOTDU/FAUP Publicações, Porto). Madeira Rodrigues, M. J. (1979) ´Tradição, Transição e Mudança, a produção do espaço urbano na Lisboa oitocentista`, Separata do Boletim Cultural (Assembleia Distrital de Lisboa, III Série, N.º 84, Lisboa) 41. Pozo y Barajas (1996) Arrabales de Sevilla – Morfogénesis y Transformación – El Arrabal de los Humeros (Universidad de Sevilla/Consejería de Obras Públicas y Transportes/Fundación Fundo de cultura de Sevilla, Sevilla) 13; 135; Cf. Caniggia, G. (1973) 67. Pereira, N. T. (1994) ´Pátios e Vilas de Lisboa, 1870-1930: a promoção privada do alojamento operário`, Análise social - Revista do Instituto de Ciências sociais da Universidade de Lisboa, Vol. XXIX, 512-513. Pereira, N. T. e Buarque, I. (1995) Prédios e Vilas de Lisboa (Livros Horizonte, Lisboa) 348. Pereira, N. T. (2002) ´Pátios e Vilas de Lisboa, 1870-1930`, Jornal Arquitectos N.º 204, 38. Rossa, W. (1998), Além da Baixa – Indícios de Planeamento Urbano na Lisboa Setecentista (IPPAR, Arte e Património, Lisboa) 125. Prado, A. de S e Ruiz A. J. M. (1902;1905) Inquérito aos Pateos de Lisboa (Imprensa Nacional, Lisboa).

Nota: Autoria das imagens em que não é referenciada a fonte.

ARQUITETURA EFÊMERA DOS MERCADOS POPULARES: CONSTRUÇÕES FORMAIS PARA EVENTOS TURÍSTICOS.

André L. Carvalho Cardoso Email: [email protected] / FAU / UFRJ.

Avenida Bartolomeu Mitre, 297/404. Leblon, Rio de Janeiro – RJ – Brasil.

Mercados Populares

O presente estudo tem como foco de interesse a arquitetura dos mercados populares. A prática secular dos mercados nos estimula a entendê-los como espaço das trocas, uma atividade de “mão na mão, olhos nos olhos”1. Assim, tal empreitada cotidiana, nesses mercados, era marcada por uma certa proximidade íntima e informal entre o vendedor e seus clientes. Locais de vida própria, pulsante, que têm no uso sua constante transformação. No entanto, o termo mercado engloba não só o espaço destinado às trocas, mas também o hábito de comprar e vender as chamadas mercadorias. Segundo Gorberg, a palavra “mercado”, no início do século XIX, “era usada de forma genérica, designando uma aglomeração de pessoas com o intuito de comercializar determinados produtos no mesmo local” (GORBERG, 2003, p.1).

Hoje em dia, muitos desses mercados informais, no Brasil, vêm sendo apropriados pelo poder público. As Feiras Livres, consideradas em 2000 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)2 como patrimônio cultural imaterial3, são exemplos desses espaços de trocas. Podemos destacar como exemplo dessas feiras: a Feira de Caxias, no Rio de Janeiro; a Feira de São Joaquim, em Salvador; a Feira de Caruaru, em Pernambuco; etc. Alguns desses espaços de comércio informal, além de figurar em novos interesses nos poderes públicos, agora também estão vinculados a um potencial turístico. Canclini cria uma análise que expõe, de forma muito clara, a existência de um sistema que se articula passando por todas as camadas e agentes configurando assim um desses espaços de troca.

Pensemos em uma festa popular, como podem ser a festa do dia dos mortos do Carnaval em vários países latino-americanos. Nasceram como celebrações comunitárias, mas num ano começaram a chegar os turistas, logo depois fotógrafos de jornais, o rádio, a televisão e mais turistas. Os organizadores locais montaram barracas para venda de bebidas, do artesanato que sempre produziram, souvenirs que inventam para aproveitar a visita de tanta gente. Além disso, cobram da mídia para permitir que fotografem e filmem. Onde reside o poder: nos meios massivos, artesanato ou souvenirs, nos turistas e espectadores dos meios de comunicação que deixassem de se interessar desmoronariam todo o processo? Claro que as relações não costumam ser igualitárias, mas é evidente que o poder e a construção do acontecimento são resultado de um tecido complexo (grifo meu) e descentralizado de tradições reformuladas e intercâmbios modernos, de múltiplos agentes que se combinam (CANCLINI, 2000, p.262).

1 Expressão alemã que definia este tipo comércio, usada por Braudel. (BRAUDEL, 1996, p.15).2 O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é uma autarquia do Governo do Brasil, vinculado ao Ministério da Cultura, responsável pela preservação do acervo patrimonial, tangível e intangível, do país.3 O Decreto nº 3.551, de 4 de Agosto de 2000 “instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o programa nacional do patrimônio imaterial e dá outras providências”.No IV livro temos o “Livro de Registros dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças, e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas”.Disponível em: http://www.iphan.gov.br/legislac/ decreto 3551.htm. Consultado em 12/11/2003.

Desta forma, o Estado, ao encarar este quadro, procura o controle tanto sócio-econômico, quanto estético-arquitetônico. Assim, vários mercados informais vêm passando por processos de requalificação urbana4 ou arquitetônica. Dentre os exemplos, podemos destacar a transformação da antiga Feira dos Paraíbas em Centro de Tradições Nordestinas, no Rio de Janeiro; o mercado Ver o Peso, em Belém do Pará; o Camelódromo de Recife; o Mercado Modelo, em Salvador; a concentração de camelôs no bairro carioca da Rocinha no Rio de Janeiro, transformada em mercado popular, etc. Destacamos que tais tranformações acabaram por gerar estruturas fixas para práticas culturais efêmeras, na tentativa de formalizar a informalidade.

Dupla origem: Formal x informal

Para entender as relações da formalização da informalidade dos mercados populares ou feiras, é relevante o fato de que tais características encontram-se imbricadas em nossa própria formação de cidade colonial. Esta tensão entre forças distintas parece delinear, no vinculo histórico, as várias justificativas que vêm sendo usadas, sobretudo, para modificação da cidade. Estas modificações que fazem parte de nossa história são conhecidas hoje em dia também sob o termo requalificação do espaço urbano. A idéia de mercados populares está muito associada a esta imagem da cidade, e ao verificarmos estas relações tanto no passado do Rio de janeiro como nos dias atuais veremos, refletido nesta história, o rebatimento das tensões entre o formal versus informal.

Definiam-se então, como algumas características principais herdadas na cidade colonial das cidades da idade média as forma de uma cidade que:

[...] não obedecia rigidamente a um plano prévio, mas nem por isso se pode dizer que tudo seguia a esmo [...] seguia o método indutivo, partindo do particular para o geral [...] cada casa ligava-se à anterior por alguma coisa em comum. Uma nota de intimidade de pensamento, através da similitude ou contraste formal. Aproveitamento do acidental, do particular. Costumamos chamar a isto de pitoresco (SANTOS, 2001, p.22).

Esta cidade, ao mesmo tempo em que era exaltada por cronistas da época por suas peculiaridade e sua organicidade, por ser distribuída respeitando ou seguindo a topografia que desenhava os espaços, também era muito criticada por sugerir para alguns uma “desordem”. Este fato pode ser constatado na declaração de Sergio Buarque de Holanda:

A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta confunde-se com a linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, sempre esse abandono característico, que exprime a palavra “desleixo” (HOLANDA, apud SANTOS, 2001, p.17).

Em contraponto a esta cidade informal, a outra herança do Brasil colonial vem da cidade formal, renascentista que traz como características básicas, o contrário das cidades medievais, trata-se de uma cidade racional indutiva, elaborada e pensada por seus arquitetos e criada para reelaborar a anterior sob justificativa de uma suposta modernidade baseada em segurança e

4 A idéia de requalificação será analisada, então, neste trabalho segundo abordagem de Vaz e Jacques. Essas autoras nos mostram que “Nos anos noventa também se utilizam os termos ‘requalificação urbana’ e “regeneração urbana” para designar estes processos, progressivamente induzidos pela competitividade entre as cidades. Através de projetos estratégicos passou-se a oferecer não somente melhores condições de acessibilidade, comunicação, segurança, e educação, recuperando edifícios e áreas abandonadas [...], mas também a enfatizar os aspectos culturais e simbólicos. As transformações espaciais não se restringem mais a sua dimensão físico-territorial, mas envolvem, considerações de ordem simbólica. O lugar, a sua imagem e a sua identidade se tornaram fundamentais” (2003 p. 131).

higienização. Geraldo Serra nos mostra como tais relações se justificaram e a influência decisiva do capitalismo mercantil para tais mudanças:

[...] no século XV e, mais notadamente, no século XVI, o crescimento da população é retomado e as cidades voltam a crescer. Os comerciantes agora já não estão mais fora das cidades, mas são seus donos... O surgimento das armas de fogo e o fim da era da espada tornam, mais uma vez, obsoletas as muralhas. O crescimento dos excedentes permite agora uma maior concentração de investimentos de obras urbanas, outras que não os fossos e as muralhas, que por tanto tempo haviam absorvido o grosso dos recursos municipais (SERRA, 1987 p. 16).

Alem das relações vistas agora, que eram usadas como discurso fundador das transformações urbanas de embelezamento da cidade vinculadas a uma nova ordem de segurança, essas tais transformações urbanas também eram fundamentadas no Renascimento por um discurso de higienização 5.

Essa dicotomia entre cidade informal e cidade formal nos define referências históricas de um Brasil colônia que já nasce com esta herança, ampliada posteriormente, por toda nossa história da arquitetura e do urbanismo.

Ao se vincular o Renascimento com uma suposta modernidade transformadora, configura-se também a idéia de que a informalidade estava ligada a uma tradição com muitas precariedades, tanto nos vínculos estéticos como nos sociais. Assim, “informalidade” virou sinônimo de adversidade, de tudo aquilo que está à margem de uma sociedade formal vinculada às classes dominantes.

A relação entre o poder oficial e as classes menos afortunadas que constituíram as cidades brasileiras jamais conseguiu privilegiar toda a população. A informalidade passa a definir a condição desigual de distribuição de rendas e, também, da herança escravocrata, onde trabalho se ligava a sofrimento e menos-valia. Com isso, os excluídos da abolição ou das reformas urbanas, como a de Pereira Passos6, tornaram-se potencialmente formadores de tal informalidade. A venda de produtos era feita por negros ou imigrantes que, a princípio, poderiam burlar os controles de impostos determinados pelo Estado.

Da mesma forma, a passagem abrupta de uma sociedade rural para a urbano-industrial constituiu, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, pólos contrastantes que dificultaram a inclusão da população em profissões oficiais, com controles formais. Como nos alerta Canclini (2000, p.25), fomos pós-modernos sem ao menos estabelecer as bases da modernidade. De fato, o capitalismo criara desejos nas políticas de consumo e nos mecanismos de distinção das classes, ativando camadas da população constituídas por minorias privilegiadas. O acesso à formalidade não foi o mesmo para todos.

Com isso, as feiras e os mercados informais passam a figurar como comércio típico deste setor informal da sociedade. Cria-se, assim, uma parcela da população que vive nessa e dessa informalidade, à margem da sociedade formal.

Marca-se uma geografia humanizada das cidades, na qual a divisão e o controle estatal entre formal e informal torna-se cambiante. Mas, o poder público sempre funcionou como um

5 “Não existia propriamente uma cidade renascentista. Há, contudo, uma idéia clara de como ela deveria ser e, principalmente, de como não deveria ser. Deveria ser, de certa forma, a negação da cidade medieval; embora não exista uma clareza sobre a forma pela qual se transmitem as doenças, existe uma suspeita contra os becos e as ruas estreitas e sombrias” (SERRA, 1987, p. 17).6 “No momento em que Pereira Passos assume a gestão da cidade, esta apresentava um cenário complexo no tocante à estruturação urbana e distribuição do comércio, herdado de séculos de um longo passado colonial. Quando o prefeito inicia seu tão famoso bota-abaixo, remodelando a área central do Rio de Janeiro não apenas na fisionomia, mas, sobretudo nas práticas sociais (expulsando os deselegantes, arcaicos e promíscuos usos populares)” (MASCARENHAS, 1997, p.31).

agente controlador, por mais que algumas soluções surgissem e fossem administradas longe das vistas do Estado.

Mercados Populares e Feiras Livres: pontes entre mundos

(o mercado) Mesmo elementar, é o lugar predileto da oferta e da procura, do recurso a outrem, sem o que não haveria economia no sentido comum da palavra, mas apenas uma vida ‘encerrada’... O mercado é uma libertação, uma abertura, o acesso a outro mundo. É vir a tona... se multiplicam, tornando-se a sociedade, no fim do caminho, uma ‘sociedade de mercado generalizado (BRAUDEL, 1996, p.12).

Depois de verificar o cerne histórico da relação entre formal e informal, herdado pelas cidades coloniais, nos cabe agora verificar as heranças históricas que nos foram deixadas pelo mercantilismo. A própria descoberta do Brasil está diretamente ligada à ampliação do comércio nacional em direção aos continentes africano7 e asiático, onde se marca a mudança do valor da nobreza por uma burguesia mercantil. Esta burguesia européia buscava o caminho marítimo que a levasse diretamente às fontes produtoras das especiarias8. Percebe-se, então, que a conquista das terras brasileiras está intrinsecamente ligada à idéia de mercado. Mais do que isto, sua própria formação enquanto “civilização mestiça e tropical” (RIBEIRO, 1995, p.455) está imbricada com esta mistura entre mercadores e mercadorias.

Braudel descreve que a feira tornou-se uma engrenagem para a cidade do Ocidente que “sorveu tudo, submeteu tudo a sua lei, às suas exigências, aos seus controles”.(BRAUDEL, 1996, p.14).

Estas relações econômicas - que foram se fortalecendo ao longo da história com grandes articulações de economia e poder - também podem ser vistas em Richard Sennett A cidade medieval tipificava o que hoje chamaríamos de economia mista, segundo modelo japonês. O transporte de mercadorias ao longo do Sena dava um idéia de como se misturavam, o governo e a iniciativa privada. (2003, p.167).

Vemos, aqui, indícios históricos do que continuaremos discutindo mais adiante, onde o poder estabelecido vai se apropriando de atividades informais, criando também estratégias e organizações econômicas, sobretudo para uma atividade que se tornava cada vez mais lucrativa na economia capitalista. Mesmo com esta tentativa de apropriação dos setores formais da sociedade sobre as feiras livres, estas ainda sobrevivem guardando características antigas 9.

Com o passar do tempo, a divisão entre formal e informal tornou-se um fato. Os antigos mercados populares foram substituídos pelos hoje conhecidos Super e Hiper-mercados. Ainda assim, as feiras continuaram acontecendo, regulamentadas, pelo poder oficial do município. Contudo, por uma frouxa fiscalização, muitas dessas feiras tratam de espalhar pela cidade sua peculiar informalidade estética e econômica. Cria-se uma ordenação estética que continua, até hoje, caracterizando muitas feiras livres. As bancas e os toldos das feiras já eram ordenados pelo Estado, ocupando espaços numerados e devidamente registrados, que estabelecia o controle e a

7 Portugal fundou vários entrepostos coloniais no continente africano onde comercializavam marfim, ouro, sal, e negros escravos. Portugal desenvolveu o tráfico escravo, uma das atividades mais lucrativas para burguesia mercantil.8 Até então a Itália possuía o monopólio sobre o comércio dos produtos orientais.9 “Sob sua forma elementar, as feiras ainda hoje existem. Pelo menos vão sobrevivendo e, em dias fixos, ante nossos olhos, reconstroem-se nos locais de nossas cidades, com sua desordem, sua afluência, seus pregões, seus odores violentos e o frescor de seus gêneros [...] Algumas bancas, um toldo contra chuva, um lugar numerado para cada vendedor, fixado de antemão, devidamente registrado é necessário pagar conforme as exigências das autoridades ou dos proprietários” (BRAUDEL, 1996, p.14).

cobrança pela ocupação do espaço. A este controle são definas outras normas, tais como dias específicos de funcionamento:

[...] nas grandes cidades as feiras tendem a ser diárias, como em Paris, onde, em princípio, só deveriam realizar-se às quartas e sábados. Seja como for, intermitentes ou contínuos, esses mercados elementares entre campo e cidade, pelo seu número e incansável repetição, representa a mais volumosa de todas as trocas conhecidas (BRAUDEL, 1996, p.16).

A feira, então, é defina também como espaço de sociabilidade, e mantêm-se como vinculo ou ponte de ligação entre o urbano e o rural. Ainda que esteja agora sob controle e fiscalização por parte das “autoridades”, Braudel nos mostra que a feira continua crescendo e colocando-se “no centro da vida citadina”. Configura-se, com isso, um espaço de encontros efêmeros e trocas, tanto de produtos quanto de informações.

Outra relação que nos cabe enfatizar é o fato de que ao ser destacada como “centro natural da vida social”, a feira passa a figurar como espaço político. Braudel ainda nos mostra que as feiras e mercados se multiplicam e se especializam: “Por toda a parte, o aumento das trocas levou as cidades a construir mercados (halles), isto é, feiras cobertas (grifo meu), muitas vezes rodeadas pelas feiras ao ar livre. São quase sempre mercados permanentes e especializados” (BRAUDEL, 1996, p.19).

Aqui vemos, então, que o mesmo termo “mercado” que é usado inicialmente para designar a idéia de circulação e troca de mercadorias, também passa ser usado para designar uma arquitetura fixa para atividade de mercar. Ou seja, o que é feira coberta agora é chamada de mercado que ao se especializar muitas vezes tem este nome associado à mercadoria que abriga, definindo assim ao que se destina10. O nome feira livre estaria, então, associado à antiga arquitetura efêmera das feiras que por não acontecerem em construções fixas estão colocadas ao “ar livre”. Esse termo associa-se também ao fato de que estas feiras, por serem montadas e desmontadas, ocupam espaços urbanos livres de construções fixas.

Ao mesmo tempo, o que permanece materializado no espaço está vinculado à modernidade e ao progresso das cidades. Esta modernidade vira o centro e a referência. A feira ao ar livre, caracterizada como prática secular e antiquada, rodeia ou, quando possível, ocupa o entorno desta construção, figurando assim como periferia efêmera fixada no espaço fixo oficializado.

É importante destacar também os múltiplos significados destes mercados populares e feiras livres vinculados às diversas correntes culturais. Torna-se evidente o encontro de saberes. No Brasil, por exemplo, a cultura africana e indígena influenciam diretamente essa atividade das trocas. Produtos e conhecimentos muitas vezes perseguidos pela cultura “oficial” passam a ser clandestinamente comercializados nas feiras, tais como ervas e materiais ligados às crendices populares:

Consultando a bibliografia internacional consagrada às feiras, uma constante que se observa é a múltipla significação dos mercados – notadamente dos africanos representando não apenas o local de encontro da oferta e da procura de bens e mercadorias, mas também o lugar onde se realizam e cristalizam um sem número de atividades paralelas: sociais, religiosas, político-administrativas, recreativas etc. Rituais são, em algumas partes, praticados durante e na praça do mercado, tendo em vista obter-se maior êxito nos negócios. Mesmo em Portugal, muitas feiras rurais possuíam e ainda hoje possuem, importante significado lúdico. (MOTT, apud. PANDOLFO, p. 33).

Perceber estas relações históricas tanto da informalidade quanto dos mercados e feiras livres, torna-se de grande relevância. Isto torna evidente que o território cria uma significação

10 No Rio de Janeiro isto ainda hoje pode ser visto em locais como mercado das flores, mercado de peixes, etc.

variada que amplia-se para além das configurações formais: “territórios, que são no fundo antes relações sociais projetadas no espaço” mais do que “espaços concretos”11. Estes históricos vistos aqui serviram como base para entendermos as contradições sociais que convivem no Brasil, e que em grande parte são heranças do Brasil colônia.

Verificamos então, que compreender a relação da informalidade, hoje em dia, nos remete à própria história da sociabilidade no Brasil. Percebemos as relações de uma sociedade colonialista, que se torna republicana e, posteriormente, teve de se vincular ao capitalismo. Como nos alerta os autores de “capitalismo tardio sociabilidade moderna”, vivemos uma sobreposição de relações sociais, onde “na base da sociedade urbana está o trabalho subalterno, rotineiro, mecânico. Falamos dos pobres [...] falamos de porteiro... de empregadas domésticas [...] prostitutas de rua, cobradores de ônibus, vendedores ambulantes” [...] (grifo meu) (MELLO, 1998, p.623).

Construindo a imagem das ruas no Rio de Janeiro

Veremos aqui, então, como esta informalidade foi se desenvolvendo à margem desta historia oficial. Podemos traçar um paralelo entre a arquitetura dos mercadores escravos de ontem transformados em feirantes desempregados de hoje. Construir-se-á, assim, um panorama do que chamo de arquitetura da adversidade. Mesmo com grande precariedade, esta informalidade cria soluções de arquitetura e marketing, muitas vezes tão criativas que acabam por superar as já estabelecidas pela formalidade, e figuram como importantes referências na construção da imagem das ruas do Rio de Janeiro 12 .

Os mercados eram descritos e retratados pela estrutura das barracas, a forma de armazenamento das mercadorias, o jeito de organizá-las, o depósito dos cestos no chão, etc. Com estas características, temos contato com a idéia da informalidade que gerou e continua gerando, até os dias atuais em muitas feiras livres e mercados informais, tais particularidades estéticas.

Essas características podem ser vistas ate hoje em feiras como a de Caruaru, em Pernambuco; a feira de São Joaquim, na Bahia; o mercado Ver o Peso, em Belém do Pará, e até mesmo a feira de Caxias, no Rio de Janeiro.

Um tópico comparativo, nesses locais, é a valorização da celebração. Desde a escravidão o mercado informal era uma das únicas possibilidades de encontros e comemorações, vinculava-se, então, a esta atividade a possibilidade do encontro entre pessoas que estavam à margem da sociedade estabelecida. Nos mercados, escravos libertos e “negros de ganho” podiam estar juntos lembrando de suas histórias, celebrando sua terra natal, ou mesmo falando de suas atuais realidades. Era comum, nestes grupos, a música e a dança, fossem por rituais ou por pura celebração.

A feira livre pode ser vista também como espaço de lazer, no passado, vinculando-se às referências de época, onde, “na Alta Idade Média, a exposição dos artigos torna-se uma verdadeira festa [...] Sua época coincidia com celebração e feriados religiosos, o que aumentava mais ainda a clientela em potencial [...]” (SENNETT, 2003, p.169). As relações religiosas com as festas vinculadas às feiras estariam, então, relacionadas a nossa cultura tanto pela herança dos africanos como pela herança católica.

11 Marcelo de Souza define que “vários tipos de organização espaço-temporal, de redes de relações, podem surgir diante de nossos olhos, sem que haja uma superposição tão absoluta entre o espaço concreto com seus atributos materiais e o território enquanto campo de forças”. Define então que “territórios, que são no fundo antes relações

sociais projetadas no espaço que espaços concretos... podem, formar-se e dissolver-se, construir e dissipar-se de modo relativamente rápido” (Souza, 2005, pp. 86-87).12 “Eu amo a rua [...] esse amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós [...] Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua” (RIO, [1908] 1987, p. 3).

Hoje, o mercado continua a valorizar a celebração coletiva. Nesses espaços, a música e a dança continuam a ganhar destaque. Transforma-se, assim, em um dos principais espaços de sociabilidade e lazer.

Com todas estas misturas entre tipos exóticos, musica, dança, alimentos - e os cheiros e calores que acabam por serem produzidos - esses espaços despertam um grande interesse nos cronistas de ontem e na imprensa de hoje. Construía-se uma “alma encantadora das ruas”, descrita por João do Rio no início do século XX:

Pelos boulevards sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios... na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras (RIO, 1987, p.23).

Alem da imagem arquitetônica que estes espaços passam a estabelecer, temos a construção de imagens pitorescas, envolvendo os mercadores como personagens numa “galeria de tipos” (KOSSOY, 1994, p.27). Os mercadores passam a ser retratados por suas peculiaridades nas vestimentas, na forma de carregar suas mercadorias, etc. No século XIX, Debret constrói uma iconografia, incluindo os mercados e os mercadores, principalmente no que diz respeito à mão-de-obra escrava nas ruas do Rio de Janeiro. Cria-se, assim, segundo Boris Kossoy, o “olhar europeu” que se voltava para o típico ou o exótico. As atividades vinculadas ao comercio passam também a figurar não só em postais. Estas atividades também são usadas como relato de viajantes que, ao descrevê-las, constroem um panorama das ruas do Rio de Janeiro. Isto foi permanecendo ao longo da história urbana na cidade.

O olhar do viajante ontem, transformado em olhar do turista hoje.

O olhar europeu materializar-se-ia segundo diferentes técnicas pictóricas, além de fotografias a partir dos meados do século XIX. Ao retornarem a suas terras de origem, o destino final destas imagens era a publicação, e, na maior parte dos casos, eram impressas pela litografia. (KOSSOY, 1994, p.20).

Figura 01: As mulheres do mercado do Rio de Janeiro. De Chamberlain. (KARASCH, 2000, fig. 16).

Figura 02: Barraca com as lonas coloridas que predominavam na feira dos Nordestinos. O espaço para restaurantes era compartilhado por vários comerciantes, muitas vezes, sem divisões demarcadas. A organização informal predominava na estética e no lazer. (Feira dos Paraíbas: 07/2003. Foto: André Carvalho).

O pesquisador que participava destas viagens exploratórias servia como uma espécie de veículo, ou divulgador, de uma realidade ainda não conhecida na Europa. Através de seus relatos e imagens era mostrada uma paisagem cultural, que vinha do recorte feito por este viajante a partir de suas próprias referências, definindo um “olhar” estrangeiro, que buscava através destas pesquisas empíricas, explicações para fatos culturais diferentes dos dele.

Com a implementação do turismo13 na virada do século XIX para o XX, o espectador não necessita mais de um interlocutor. As situações passam a ser vivenciadas in loco por este próprio espectador que entra na condição de viajante. A prática do turismo se desenvolveu com amplo crescimento. Segundo Martins, (2002, p.57) “este fenômeno é hoje responsável pelo setor econômico que mais cresce e um dos que geram a maior quantidade de empregos”. Esta atividade passou a movimentar grande parte do capital mundial moderno. Para John Urry (2001, p.25) “o turista é uma espécie de peregrino contemporâneo, procurando autenticidade em outras ‘épocas’ e em outros ’lugares’, distanciados de sua vida cotidiana. Os turistas demonstram um especial fascínio pelas ‘vidas reais’”.

Os espaços de atividades populares sempre despertaram o “olhar europeu”, conforme já vimos no texto, e passaram a despertar nos tempos atuais o “olhar do turista” vindos de outros países, de outros estados, ou mesmo visitantes das mesmas localidades. Esses espaços são caracterizados como pitorescos ou típicos, e evocam a teatralização da identidade local, a partir de uma suposta “autenticidade encenada”14. Cria-se a ilusão de conseguir, sem se aprofundar, entender a cultura que ali é construída. Reduz-se a idéia de determinadas localidades ao conjunto de produtos típicos e personagens estereotipados. Tais características transformam esses espaços urbanos em potenciais turísticos para suas cidades. Ao perceber o potencial turístico de espaços de comercio informal, o poder publico passa a interessar-se por estas atividades. Cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Belém do Pará, e Recife, dentre outras, têm estes espaços urbanos requalificados por iniciativa deste poder público. Outro fator de destaque é a reestruturação estilística dos locais, equipando-os de coberturas e modernos mobiliários urbanos.

Trajetórias na apropriação de práticas informais

Cria-se, com o passar do tempo, uma relação entre a prática informal de comercializar produtos e o interesse, por parte do poder público, pela apropriação formal destes espaços. Tais fatos geram questões relevantes, a saber: a) o controle, por parte do Estado, do espaço, gerando impostos e aluguéis; b) a organização estética das barracas e dos espaços construídos; c) a geração de valores imobiliários agregados ao espaço, conseqüentemente, evidenciando os mecanismos de exclusão sócio-culturais.

Esta prática de apropriação de atividades informais, por parte do poder público não é recente. Na história do urbanismo na cidade do Rio de Janeiro, algumas coincidências podem ser apontadas entre o Mercado da Candelária, construído no início do século XIX e o Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas (CLGTN) inaugurado no início do século XXI, por exemplo.

O Mercado da Candelária, criado por iniciativa do poder público, foi projetado pelo renomado arquiteto Grandjean de Montigny15. Em 1835, conclui-se a primeira etapa da obra. O arquiteto teve como incumbência projetar um espaço destinado à venda de peixes e outros

13 “O turismo foi um fenômeno lançado pelos “retiers” que era a camada social européia considerada como elite, como modelo social a ser copiado nos fins do século XIX.” Estas pessoas pelo seu elevado poder aquisitivo, criaram um estilo de vida de deslocamentos constantes. (MARTINS, 2002, p.53).14 “MacCannell mostra-se particularmente interessado no caráter das relações sociais que surgem do fascínio que as pessoas demonstram, sobretudo em se tratando de como os outros exercem um trabalho. Nota que ‘vidas reais’ podem ser encontradas apenas nos bastidores e que elas não são imediatamente evidentes para nós. Segue-se que o olhar do turista implicara uma invasão óbvia na vida das pessoas, o que e geral seria inaceitável. Assim, as pessoas observadas e os promotores do turismo passam gradualmente a construir bastidores, de maneira forçada e artificial. Os espaços turísticos organizam-se, portanto em torno daquilo que MacCannell denomina uma ‘autenticidade encenada’” (URRY, 2001, p.25).

gêneros de alimentação. Este espaço seria o principal distribuidor destes gêneros na cidade. O Mercado deveria substituir as precárias barracas de madeira, cobertas com telhas, construídas na Praia do Peixe16.

A criação do Centro Luiz Gonzaga de tradições Nordestinas, em setembro de 2003, figura-se como um exemplo atual de apropriação da informalidade, por um processo de requalificação urbana. Esta transformação se dá intermediada pela Caixa Econômica Federal, a Prefeitura do Rio de Janeiro e a Cooperativa dos Comerciantes da Feira dos Nordestinos no Campo de São Cristóvão (COOPCAMPO). Uma das principais características desta mudança foi a transferência da antiga Feira, que acontecia desde 1945 naquele lugar, para dentro do Pavilhão de exposições, construído pelo renomado arquiteto Sergio Bernardes, em 1958, e que encontrava-se abandonado na ocasião.

Com a junção dos dois espaços, tenta-se encapsular uma suposta identidade nordestina em âmbitos formais e legalizados. Sabe-se que a contemporaneidade tratou de produzir vários sincretismos culturais, como se tivessem colocado em um “liqüidificador”17, usando termo de Canevacci, o Pavilhão e a Feira dos Nordestinos transformando-os no CLGTN. Com isso, torna-se evidente a espetacularização da cultura popular com objetivos turísticos. Há um jogo de forças onde as identidades tornam-se fragmentárias, perdendo sua fixação. A história do local, desta forma, é fixada por placas de sinalização, estátuas de bronze, galhardetes.

Gilberto Velho, ao definir identidade em uma análise das sociedades complexas, aponta uma contradição na tentativa de se fixar características imutáveis aos fatos culturais multicondicionados18. Para este autor:

A memória é fragmentada. O sentido de identidade depende em grande parte da organização desses pedaços, fragmentos de fatos e episódios separados. O passado, assim, é descontinuo. A consciência e o significado desse passado e da memória articulam-se à elaboração de projetos que dão sentido e estabelecem continuidade entre esses diferentes momentos e situações. (VELHO, 1999, p. 103).

A partir desta definição de Velho, podemos entender por que os projetos de requalificação, sobretudo os turísticos, que usam a cultura como propaganda, tentam fixar, através da arquitetura, ícones encapsulados de identidade.

A efemeridade estaria então, exatamente vinculada a essa identidade cultural característica desses locais de trocas. Em minha pesquisa de mestrado sobre o Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas19 (CLGTN), pude concluir que apesar de muitas mudanças definidas pelo projeto de transformação arquitetônica, locais como o CLGTN continuam guardando o que, talvez, os espaços de antes da transformação tinham de mais interessante: a efemeridade. Com isso, esses espaços de troca, tornam-se únicos a cada fim de semana.

Vejo nesta questão um de nossos maiores desafios como arquitetos ou como sociólogos: trabalhar com elementos vivos, oferecer ao cotidiano criações de cimento, pedra e cal para que a vida possa animá-los. Neste caso, o “espírito do lugar” está na cultura imaterial, na efemeridade do lazer e não nas marcas do terreno ou no paisagismo.

15 O projeto do Arquiteto “Auguste-Henri-Victor Grandjean de Montigny” não foi inteiramente respeitado. (GORBERG, 2003, p. 12).16 Situava-se, desde o séc XVII, num trecho que compreendia o espaço entre a Praça XV de Novembro e a Rua da Alfândega. (GORBERG, 2003, p.12).17 Canevacci, ao esclarecer o conceito de sincretismo, utiliza a metáfora do “Grande Liquidificador que está despedaçando todos os lugares-comuns do trio estética-ética-etnia” (CANEVACCI, 1996, p. 13.).18 Velho ao falar do fenômeno da negociação da realidade, nos mostra que “a cultura, nos termos de Schutz, enquanto comunicação, não exclui as diferenças, mas, pelo contrário, vive delas” (VELHO, 1999, p.22).19 Ver: CARDOSO, 2006.

Com isso, a idéia de construção do nosso lazer / trabalho pode ser vista em um exemplo dado por Sidney Chalhoub:

Baleiros, carregadores, vendedores de jornais e outros trabalhadores autônomos costumavam se reunir em torno dos quiosques para tomar a “branquinha” enquanto esperavam a freguesia. O hábito desses homens assim proceder mostra que para eles o ideal burguês de separação rígida entre lazer e trabalho não tem significado algum (2001, p.258)

Essas características corroboram ainda mais a idéia de efemeridade e que acabam por criar o evento. Com isso, o vínculo que uma arquitetura formalizadora e reducionista poderia criar, ao se requalificar os mercados populares, elementos contraditórios, já que tenta-se materializar o etéreo, o efêmero, o “espírito do lugar”. Ao verificar essas problemáticas, a idéia de território, na era de globalização, descrita por Milton Santos, transforma o evento como uma primeira categoria de análise:

(O evento) permite unir o mundo ao lugar; a História que se faz e a História já feita; o futuro e o passado que aparece como presente. O presente é fugaz e sua análise se realiza sempre através de dois pólos: o futuro como projeto e o passado como realidade já produzida. O evento aparece como essa grande chave para unir também a noção de espaço e tempo [...] como um todo único. (SANTOS, 1999, p.15).

Muitas vezes, ao tentar se apropriar de espaços populares, usando a arquitetura como ferramenta desta apropriação, os poderes públicos acabam por perder o controle. Essas mudanças arquitetônicas acabam, sem dúvida, gerando novos espaços. Contudo, nos cabe aqui alertar que este “novo” é contaminado, mas que também contamina a arquitetura.

A diferença entre material e imaterial se coloca como um dos principais impactos destes novos espaços de trocas. A materialização arquitetônica acaba gerando uma especulação imobiliária que começa a valer mais do que a própria atividade efêmera da troca. Contudo, o que se quer manter nos mercados transformados é exatamente o patrimônio imaterial dado pelo evento, pelo uso, pelas vidas que animam esses espaços.

A arquitetura, então, é muito mais que uma forma. Até me arrisco a dizer que a arquitetura dos mercados populares só se completa quando é animada pela vida humana. Mas afinal, não é para isso que é feito um projeto arquitetônico?

Assim, a própria idéia de mediação, deveria ser revista pelos arquitetos. E talvez, necessitassem entender que o espectador é o co-autor da obra, pois voltamos a afirmar que a arquitetura reelabora, mas também é reelaborada pelo social. Então, como dissociar estas relações tão fortemente imbricadas?

Figura 04: Lonas tensionadas do CLGTN, no dia da inauguração. (Foto: André Carvalho. Rio de Janeiro, dia 20/09/03).

Figura 03: Lonas da Feira dos Paraíbas antes da obra. (Foto: André Carvalho. Rio de Janeiro, dia 03/08/03).

Figura 06: As antigas lonas são substituídas por marquises em lonas tensionadas, pagas pelos próprios comerciantes. (Foto: André Carvalho. Dia 08/06/04).

Figura 07: as lonas tensionadas, do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, sujas e rasgadas precisando da manutenção, relembram as antigas lonas da Feira dos nordestinos. (Foto: André Carvalho. Rio de Janeiro, dia 21/05/06).

Figura 05: Lonas tensionadas misturam-se as antigas no CLGTN. para resolver o problema da insolação. (Foto: André Carvalho. Rio de Janeiro, dia 15/02/04).

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VAZIOS ÚTEIS Desenho, representação, conteúdo e vivência

Rui Barreiros Duarte e-mail: [email protected] Arquitecto, Professor Associado, com Agregação, da FA/UTL

Rua Sá Nogueira – Pólo Universitário Alto da Ajuda 1349-055 Lisboa Introdução Lao Tsé perguntava o que era mais importante num vaso: o vazio interior ou a matéria que o contém. Esta questão pode induzir à tomada de uma posição relativamente a um dos componentes, mas sobretudo significa que eles constituem um todo indissociável, o que dá ao objecto uma configuração específica. Identidade ou dissociação, são duas vertentes que regem as composições - correspondendo a princípios clássicos ou à modernidade -, aos quais se podem associar leituras reversíveis, rela-ções híbridas e fragmentárias. A reversibilidade entre cheios e vazios constitui um sistema operativo da psicologia, metodo-logicamente explorado por Escher nas suas gravuras, ou por Bruno Zevi na escola de Arqui-tectura de Roma nos anos 60, que continua a ser investigado conceptualmente em vários domínios. Em termos filosóficos, os cheios e os vazios constituem valências equivalentes, sendo espaços de relação onde se jogam silêncios e tensões, propondo com os edifícios e com as pessoas noções de escala e de encaminhamento. As características do espaço existente entre os edifícios é importante para a qualidade da sua percepção, mas há edifícios emblemáticos e referenciais que necessitam de distanciamento e profundidade de campo para serem vistos, impondo o domínio da perspectiva e do escorço. Mas como se moldam os limites dos cheios e vazios, que tipo de relações e que intensidade se estabelece no seu limiar, é uma questão que pode ser analisada sob o ponto de vista dum pro-cesso dissociativo quando se pretende fazer emergir o significado. “Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou” (San-tos, Boaventura de Sousa, 1987). Na cidade em quarteirão, quando há uma concepção integrada, o desenho dos vazios que constituem o espaço público é indissociável do edificado, pois as ruas e as praças constituem tipos de espaços bem definidos. Assim, o tipo, é um factor estruturante, é o que é identificável, é o que preside a um conjunto diversificado de ocorrências sendo ele próprio uma ocorrência. Os espaços privados existentes no interior dos quarteirões ou entre os edifícios, são compar-timentados em lotes ou configuram uma estrutura comunitária que privilegia sistemas de rela-ções sociais libertas de barreiras físicas, podendo estabelecer diversos graus de permeabilida-de com a rua ao nível do solo. “A rua e a praça são os únicos modelos para reconstruir um espaço público e social. Neste contexto, nós sublinhamos a dialéctica necessária entre a tipologia das construções e a morfo-logia dos espaços públicos, e no interior desta dialéctica, a relação correcta entre monumentos (edifícios públicos) e o tecido urbano anónimo (edifícios de uso privado)” (Leon Krier , A.A.V.V., 1978). A forma da composição pode ser híbrida, fragmentar-se ou propor sistemas de relações articu-lados por vazios significantes em diferentes escalas, mas as qualidades pragmáticas dos espa-ços (dimensão/funcionalidade) devem ser sempre complementadas pelas vertentes sintácticas e semânticas que organizam o discurso relacional dos objectos entre si e dos objectos com as pessoas. Potenciam-se deste modo os signos da representação e da comunicação referenciados a analogias, arquétipos, metáforas e modelos, que estabilizam a memória colectiva e criam

memória colectiva e criam identidades culturais, fazendo com que esses espaços possam ser apropriados, e constituirem lugares no contexto urbano. “O lugar é uma porção do espaço significada, ou seja, a cujos fixos e fluxos são atribuídos sig-nos e valores que reflectem a cultura de uma pessoa ou grupo” (Duarte, Fábio, 2002). A sua utilidade relacional deve-se manifestar na sua vivência, estrutura, e na contribuição para o desenho da cidade, fazendo com que se evite o vazio emocional e de sentido, apesar de se poder tirar partido da vertente niilista que cria o lugar da solidão e da angústia. Com as cidades destruídas depois do trauma da 2ª Guerra Mundial, a Europa criou uma nova emblemática no espaço público seguindo os princípios ideológicos, higienistas e científicos da Carta de Atenas, ou de urbanistas como Cerdá. Mas em lugares e circunstâncias específicos, torna-se útil referenciar simbolicamente o trauma como monumento, e o vazio niilista assume a utilidade de evitar que se esqueça o genocídio, para que nada possa reconduzir os totalitarismos, a perversão do sentido, a angústia e o horror. O “Ground 0” em Nova Iorque, referencia também um vazio urbano que tem sido questionado simbolicamente de modo a preservar a memória do ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001. O espaço público e o privado, constituem vertentes complementares que envolvem diferentes níveis de apropriação comunitária e simbólica. Uma das caracterizações essenciais, decorre da deslocação do conceito de interior e de exterior que, na modernidade, explora os limites físi-cos mas também de representação, aos quais se associam os momentos de transição entre o público/privado, dentro/fora e sagrado/profano que devem ser clarificados nas suas múltiplas vertentes. O desenho de espaços onde os limites são bem definidos, permite circunscrever duma forma inequívoca o domínio público e privado, clarificar as geometrias dos espaços, mas é necessá-rio considerar que “a dialéctica moderna do interior e exterior foi substituída por um jogo de graus e de intensidade, de hibridez e de artificialidade” (Hardt, Michael e Nagri, António, 2004) onde se desenvolve o processo de diferenciação. Ao se explorar o significado emergente das deslocações em vez de pares de opostos, substi-tuem-se os limites por sistemas indutores de relações, tensões, inter-penetrações e graus de intensidade. “O exterior é o lugar próprio da política, o lugar onde a acção do indivíduo é exposta na pre-sença dos outros e onde o primeiro procura ser reconhecido. Todavia, com o processo da pós-modernização tais espaços públicos tendem a ser cada vez mais privatizados. A paisagem urbana tende a deixar de centrar-se no núcleo, característico da modernidade, da praça comum e do encontro, para privilegiar os espaços fechados das ruas para peões, das auto-estradas e dos condomínios residenciais estanques” (Hardt, Michael e Nagri, António, 2004). São deslocamentos que tendem a dissolver a vida comunitária não propondo qualquer tipo de imaginário ou sedução para além da facilidade comercial, da acessibilidade e da segurança, sob o signo da persuasão. Neste sentido, também a oferta habitacional para os diversos estratos económicos das popula-ções, apresenta dominantemente um urbanismo residual simbolizado pelas “urbanizações de praceta”, proliferando as zonas incaracterísticas que potenciam a violência urbana criando um sentido atávico de ghettização do espaço público, tendo como expressão as rupturas e a des-territorialização que se manifestam nos actos de vandalismo, provocações e violência.

As estruturas comunitárias que nos planos organizam as “unidades de vizinhança”, hierarqui-zam funcionalmente a cidade estruturando-a ao nível do bairro. A cidade-jardim, privilegia as relações humanas com a escala da paisagem, mas hoje a escala metropolitana aglutina novas centralidades urbanas e regionais, engloba o território e rompe com os anteriores limites físicos e administrativos, ficando disponíveis espaços residuais, vazios que se vão preenchendo por densificação e extensão, deixando em aberto contornos que se ampliam numa progressiva dissipação do exterior.

As acessibilidades - baseadas no tempo das deslocações -, passam a ter proeminência em rela-ção ao espaço, e este regista o impacto das infra-estruturas que se dissociam do conjunto, pois tudo se tende a processar duma forma rápida e pragmática, relativizando o tempo e espírito do encontro gerador de significado onde se recompunha o ego, que Christopher Alexander defi-niu no conceito de “unidade de cidade”. No movimento moderno, a ideologia do plano constituiu uma conquista que influenciou os princípios organizadores do território, do sistema produtivo e da vida em geral. Dissecada em zonamentos sob a égide dos espaços verdes de cariz social, esses espaços de liberdade frag-mentada perderam as qualidades de criar referências espaciais e sociais, embora a sua estrutu-ra equacionasse a vivência citadina. O sistema social do espaço O espaço público deve induzir sentimentos pessoais de agradabilidade e beleza para que as pessoas dele se apropriem. Deve também permitir uma satisfação universal que é dada pelo bem que “é o que agrada por meio da razão, pelo mero conceito. Uma coisa é boa para algo (útil), quando agrada apenas como meio” (Pina, Álvaro, 1982). Há elementos estruturantes do espaço público que propiciavam locais de encontro, de sociali-zação e de representação que por vezes se inseriam em praças “de aparato”. “Mesmo quando o ponto de partida é utilitário, como na fonte ou no chafariz, a obra realizada transcende largamente essa função. Poète e Rossi, dão-nos o entendimento que o Renascimen-to e o Barroco têm do espaço urbano, como lugar de obras significantes e simbólicas” (Lamas, José M. Ressano Garcia, 1992). Há transmutações funcionais decorrentes do progresso, da época e da renovação das mentali-dades. Há princípios que podem ser redesenhados a várias escalas, tirando partido do espaço público como aconteceu na Expo’98 em Lisboa, onde a presença da água adquire uma função lúdica, ambiental, artística e participativa do público. Encontramo-nos assim perante três está-dios de desenvolvimento: dimensão cultural popular, da representação do poder e da partici-pação democrática. Apesar dos novos tipos de relações que privilegiam a comunicação cada vez mais rápida potenciada pela rede, há teorizações sobre a cidade que têm assumido um pendor contextual. Os valores ou são decorrentes da História - por vezes de cariz radicalmente sincrónico -, ou encontram nas rupturas da modernidade signos dos novos tempos, do caos e das transforma-ções decorrentes da revolução social, das máquinas, do consumo e do software. As diversas escalas que equacionam os tipos de organização do espaço - abstractamente defi-nido nos planos -, decorrem de estratégias urbanas, regionais, ou de princípios compositivos.

Quer haja uma representação do Poder - político, religioso e económico -, ou se questione o tipo de socialização que se pretende estabelecer, há que considerar sempre o valor da convi-vência na organização social e comunitária, ou o consumismo. Hoje, com o assentimento do poder, o território tornou-se um emaranhado urbano, donde emerge a eficácia comercial definindo centralidades que constituem signos dos fluxos e não-lugares. As auto-estradas e as vias - mais ou menos rápidas -, o caminho de ferro, as pontes, e todos os demais espaços distribuidores, são infra-estruturas feitas pelas instituições para resol-ver os problemas urbanos. Mas também têm um papel determinante na sua expansão incontro-lada, das quais beneficiaram as urbanizações privadas que desenvolveram um híbrido urbano que ruraliza a cidade e urbaniza o campo. Contrariando esta tendência de disseminação contaminada, há atitudes de intervenção que equacionam a especificidade da cultura comunitária. “Riechl preserva (…) a imagem dum espaço concreto, vivo, activo, que escapa à formaliza-ção e reclama a reactivação das representações e denominações familiares ameaçadas pelo urbanismo. Este espaço já não é só unicamente acessível ao intelecto, mas oferece-se a todas

oferece-se a todas as sensibilidades que, informadas pela experiência e pela emoção, investigam e exploram as ruas, as praças e os movimentos, disponíveis a todos os prazeres e a todas as frustrações” (Wieczorek, Daniel, 1981). Estes espaços permitem que aí se organize a festa, os jogos e outros acontecimentos sociais, funcionando como signos agregadores do encontro cultural. Constroem-se espaços de repre-sentação que, na sua diversidade e precariedade, têm a capacidade de produzir uma fabulação que reactualiza os mitos e os ritos processando a identidade colectiva, o civismo, as trocas comerciais, onde se enquadram diversos tipos de acções sociais. Entre o monumento e o efémero define-se o tempo - época e quotidiano num processo cíclico -, criando uma representação simbólica do poder ou organizando a memória colectiva consi-derada na dimensão da cidade como arquitectura. Os monumentos urbanos, para Aldo Rossi, são espaços únicos: utilitários, de experiências repartidas, possuidores de significado e depositários da memória colectiva - como é o caso das praças, igrejas, escolas, teatros, museus, etc. -, inscrevem o tempo no seu lento mas implacá-vel registo. Equacionando o processo de reversibilidade cheio/vazio, pode-se aferir a sua importância na estrutura urbana, mais as qualidades relacionais que estabelecem com os edifícios e as pes-soas. Assim, o espaço de enquadramento adjacente aos edifícios significativos na cidade, quer sejam ruas, largos ou praças, pela sua dimensão, configuração ou localização especial, quando conjugados com os acontecimentos e a vivência em geral, estruturam o imaginário colectivo.

Como resultado, as manifestações urbanas em diversas épocas, testam as qualidades relacio-nais e simbólicas dos lugares e dos objectos arquitectónicos perante a densidade e diversidade de utentes. As funções e os acontecimentos são importantes por induzirem um sentido de apropriação - devendo ser equacionados no processo de desenho -, tal como tudo o que religa o tempo cícli-co e a memória colectiva. Propondo soluções específicas decorrentes da particularidade de cada lugar - nas suas ruas, praças ou no âmbito mais geral da criação do espaço público -, sedimentam a tradição e a ocorrência natural que lhe confere um profundo sentido de adequação. Há racionalidades que o desenho não pode ignorar, pois deve atender à vida colectiva, às razões simbólicas e aos propósitos dos acontecimentos que criam identidade e constituem um princípio não racionalista. Também existem espaços públicos em zonas desenhadas ex nuovo - parques desportivos, Expos ou nas frentes urbanas de rio e de mar -, que tentam qualificar os vazios tornando-os vividos. É o objectivo dos programas POLIS, agindo em zonas significativas das cidades pre-tendendo conferir-lhes uma estrutura vivencial e carácter público, qualificando zonas com funções e objectivos específicos. Há que atender ao tipo de programas mas também aos utentes - com a sua cultura e dimensão económica -, para que todos possam participar na vivência colectiva dos espaços. Podem ser mais tematizados ou mais radicalizados respondendo a vários tipos de eventos culturais, mas há uma tendência social que leva a experimentar e radicalizar novos programas, já longe dos propósitos românticos que informavam a paisagem urbana, cujo conceito é decorrente do pai-sagismo. Propondo espaços de participação e de contemplação, fazendo reinterpretações de parques na estrutura da cidade onde se sobrepõem vários tipos de matrizes perseguindo a complexidade - como o projecto para o Parque de La Villete de Bernard Tschumi -, constituem-se por vezes áreas verdes de descompressão que permitem tipos diferenciados de lazer. Na cidade, esta ver-tente é referenciada aos jardins racionalistas, barrocos, românticos, ou exploram as qualidades ambientais e vivenciais da contemporaneidade, funcionando como zonas de protecção paisagística.

Incute-se por vezes também o espírito da Arte Urbana de Camillo Sitte em enquadramentos mais contextualizados valorizando os percursos pedonais - como o contextualismo da Escola de Bruxelas ou em Bolonha -, ou que apenas se reportam a dissociações modernas. O não entendimento das qualidades do espaço e as subversões dos princípios enunciados, constituem aspectos negativos se não existir nenhuma referência estruturante ou princípio ordenador. “Um dos paradigmas do ‘espaço urbano moderno’ é o que resulta da articulação entre edifi-cação e espaço livre nos centros político-administrativos, direccionais e comerciais modernos” (Fraga, Francisco Javier Monclús e Bañales, José Luis Oyón, 1998). 1 - Tipo, desenho e adequabilidade Em Lisboa, a “baixa” pombalina corresponde a uma estrutura racional que, nos seus limites, se articula com as Praças do Comércio, do Rossio e da Figueira, estabelecendo uma continui-dade do tecido urbano numa clara lógica padronizada, que redistribui o comércio e os serviços de acordo com a morfologia adjacente. A matriz como sistema gerador, teve desde Mileto várias dimensões e formas de preenchi-mento, desde a compactação pombalina às super-quadras de Brasília. Mas outras formas par-celares explicitam-se em cidades como Nova Iorque ou Tóquio. Por vezes, introduzem-se direcções axiais como na Roma barroca de Sisto V, ou como em Washington ou Barcelona.

Devolver a cidade aos cidadãos, representa a dimensão idealizada duma vertente cívica, onde se compatibilizam acessibilidades, usos diversificados e vivência, num processo cultural de coexistência plural de identidades. O espaço público privilegia o encontro urbano, onde o valor de uso e de troca atinge a sua plenitude, onde se trocam experiências, reactualizam os mitos e se produz a emblemática do quotidiano. Também aí se constrói a metasimbólica do Poder através de significantes espaços públicos de representação institucional, que conferem à cidade uma geometrizada estrutura hierárquica, signos dum claro sentido de ordem quer seja iluminista - referenciada na estrutura de Lisboa no Terreiro do Paço, na malha pombalina, nos eixos de Poder como a Avenida da Liberdade -, ou nas estruturas urbanas do Estado Novo como nas Avenidas Novas ou no Bairro de Alvala-de. A afirmação do Poder, induz um dimensionamento dos espaços vazios com grande escala como é o caso de Brasília com a Avenida dos Ministérios - que faz a aproximação à Praça dos Três Poderes -, a Praça Tienamen em Pequim ou a Praça Vermelha em Moscovo, que são sím-bolos de regime, dimensionadas para as grandes paradas militares. Em Lisboa, a Alameda Afonso Henriques ou a Alameda da Cidade Universitária, cumprem uma função de distanciamento posicional dos cidadãos em relação às Instituições de Ensino, criando uma ritualização de aproximação ao lugar do saber-poder, cujo desenho e inserção na cota mais elevada do terreno, assinala e sacraliza a distância sendo complementada com um escadório e com um subtil desenho de pódio. Também o Parque Eduardo VII constitui um espaço de representação ascendente rematado por um pódio que deveria ser chancelado pelo Palácio da Justiça, para que se transmitisse a ideia de uma cidade justa conotada com o sentido de Justiça coincidente com o anterior regime. Tudo se organiza signicamente duma forma ordenada e subtil, devendo exprimir os indicado-res duma irrefutabilidade ordenada de integração urbana. Traduzindo diversas qualidades decorrentes das dimensões das ruas e das praças, assim como as suas relações de desenho e desenvolvimento no terreno, desenvolvem-se estratégias de uti-lização que se devem cruzar com as suas orientações, exposição ao regime dos ventos ou pon-tos de vista, factores essenciais que enfatizam a sua aprazibilidade e interesse.

“A partir do Renascimento e do Barroco, a forma da cidade europeia será desenvolvida e aperfeiçoada até hoje. A cidade não será apenas o lugar da vida e abrigo dos habitantes, mas também o campo de actuação político-social, o lugar das significações e da ostentação do poder” (Lamas, José M. Ressano Garcia, 1992). Num estudo sistematizado explorando múltiplas configurações formais, Rob Krier enunciou os princípios dum léxico gráfico-espacial cuja informação necessita de ser cruzada com indicadores dimensionais, de localização e ambientais como os acima referidos, aos quais se devem referenciar os tipos de vivência urbana escalonada nas diferentes horas do dia e da noite, épocas do ano e nos dias de excepção com diversos acontecimentos públicos e festas. A teatralidade urbana, indicia que os elementos da arquitectura com forte presença urbana como por exemplo as escadas - que referenciam um limiar entre o interior e o exterior -, pos-suam para além dum sentido funcional, o propósito de estar e ritualizar. Configurando anfitea-tros e a sacralização enfatizada pelos pódios, marcam uma relação altimétrica dimensional entre o edifício, o terreno e os utilizadores. Há sempre uma função simbólica que não pode ser esquecida nem menorizada e que constitui um permanente e intemporal valor relacional do espaço público. Muitas destas qualidades encontram-se nas estruturas dos percursos - tal como o que liga a Rua do Alecrim ao Rato em Lisboa -, propondo tensões, pontos de vista diferenciados e dis-tanciamentos que se enfatizam nos diafragmas constituídos pelos arcos, induzindo à latente descoberta labiríntica, e ao propósito de experimentar transições espaciais. Os miradouros têm em Lisboa um papel relevante na leitura da cidade, da paisagem e do posi-cionamento “lynchiano” dos utentes, permitindo-lhe o “reconhecimento e identificação”, urbana e a visualidade ambiental e sequencial analisada por Gordon Cullen. Com as suas qua-lidades cinematográficas e fotográficas marcadas pela temporalidade, ainda possui o interesse fenomenológico de criar identidades e emoção em estruturas que explicitam nas suas diferenças inegáveis qualidades de animação e sedução. A enunciação de programas arquitectónicos com vazios centrais como os estádios, anfiteatros, praças de touros, hipódromos, e outros de âmbito desportivo - pistas de corridas, piscinas, campos de tiro, etc. -, constituem espaços específicos de grande valor simbólico, lúdico e cul-tural. 2 – Limites, conteúdo e caracterização Os vazios urbanos reflectem também a génese do seu propósito funcional, decorrente de locais de encontro e de estruturas comerciais. A sua espacialidade foi estabilizada pela morfologia urbana transformando-os em praças, largos ou ruas, conferindo-lhe a tradição e os aconteci-mentos sociais uma forte dimensão pública vivencial cuja memória é também reavivada pela toponímia. Este princípio pode constituir apenas um programa de boas intenções se não se identificarem os aspectos comportamentais e culturais, as formas de agir e as relações que existem entre as pessoas, especificamente no respeitante aos aspectos comerciais. Não é por acaso que a “Rua Direita” das nossas cidades e vilas (rua directa, que vai directa-mente ao centro) possui uma identidade própria no modo de fazer o comércio, com as lojas a extravasarem para o exterior, implicando a forma de negociar que estabelece uma efectiva relação cultural personalizada entre o comprador e o vendedor. Tradicionalmente, a praça do Martim Moniz em Lisboa tinha uma ocupação comercial com estruturas de levante, definindo um espaço inter-étnico cuja qualidade decorria da vivência - e que tem hoje um equivalente na feira do relógio, que cria uma identidade própria e um bulício que em nada se relaciona com o espírito individualista e pontual de intervenções assépticas vazias de sentido e de vida. O desenho transformador dos espaços deve aprofundar a possibilidade de interacção comer-cial que é determinante na sua estrutura. São registos importantes da utilização dos espaços

espaços públicos que nos remetem para uma tradição de utilização das feiras de levante como ainda hoje acontece com a “Feira da Ladra” que constitui uma persistência duma valência das antigas feiras. A primeira ocupação no Rossio - que significa local de encontro às portas da cidade -, foi a de comércio indiscriminado, por isso existem tantos rossios nas povoações portuguesas e uma que tem esse mesmo nome: Rossio ao Sul do Tejo. Em Lisboa, essa função veio a ser transferida para o Parque Mayer quando se começou a transfigurar o espaço público, tendo-se subdividido funcionalmente a partir daí em dois tipos de ocupação: a feira de gado que foi para o Campo Pequeno e a das roupas e quinquilharias que foi para S. Vicente de Fora onde ainda hoje existe. “O estruturalismo de Sitte não pretende de maneira nenhuma negar as particularidades histó-ricas: cada detalhe de tal lugar ou de tal rua pode pelo contrário ser explicado por um momen-to da sua história. E as mesmas energias que estão no princípio da criação arquitectónica estão intimamente ligadas à tradição cultural ou étnica, que Sitte chama sucessivamente Weltans-chauung, Zeitgeist, Tradition, ou Künstlerische Grundidee” (Wieczorek, Daniel, 1981).

Na cidade-jardim, o espaço exterior adquire uma dimensão geográfica, fluida, separa os edifí-cios das ruas, valoriza as questões decorrentes da orientação solar tidas como prioritárias, e a afectação do solo cria um sistema híbrido onde co-existem ruas, parqueamentos e o espaço verde que constitui um “interland” aglutinador. Nas cidades com estrutura em quarteirão, os espaços verdes significativos englobam o contí-nuo natural, os parques e jardins de carácter público ou privado. Outra questão, são os vazios intersticiais incaracterísticos, constituídos pelas áreas de cedência. Expectantes duma perspec-tiva contextualizadora, tornaram-se factor prioritário de reflexão do desenho no racionalismo dos anos 70 e no pensamento da cidade como arquitectura. Contudo, hoje existe uma proliferação de espaços colectivos que correspondem a espaços pri-vados de uso público. “O espaço público foi privatizado em tal grau que se tornou absurdo compreender a organiza-ção social nos termos duma dialéctica entre espaço público e espaço privado, entre interior e exterior” (Hardt, Michael e Nagri, António, 2004). Em Berlim, nos anos 80, na renovação urbana da zona de Wedding, criaram-se “novas áreas livres no organismo urbano para substituir o arbitrário e o estranho: pátios e jardins para as casas em vez de traseiras; cinturões verdes, parques e água para substituir velhos quarteirões e blocos de apartamentos (…) constituindo pré-requisitos para um novo estilo de vida íntimo com áreas em pátios diferenciadas, ruas semi-públicas e passagens entre os quarteirões … Os grandes espaços vazios davam-nos espaço para experiências no planeamento dentro do siste-ma de quarteirões existente” (Kleihues, Josef Paul, 1982). Também a situação do interior dos quarteirões fechados, dominantemente constituídos por zonas de reduzido interesse público, inverteu-se tanto na recuperação do Chiado de Siza Viei-ra como no plano da antiga garagem militar de José Lamas ambos em Lisboa. Nas Avenidas Novas, a dimensão dos quarteirões possibilita englobar no seu interior signifi-cativos espaços verdes públicos que podem ser urbanisticamente refuncionalizados como espaços verdes alternativos à rua, criando condições de segurança e de convivência. Cria-se assim um domínio relevante de pesquisa - que não tem sido devidamente aprofundado no desenho da cidade -, com a qualificação de zonas de estar potenciando a interacção de várias camadas etárias, complementando-se as zonas de habitação com serviços de apoio quo-tidiano a jovens, idosos, a estruturas familiares fragmentadas, ou a solteiros. Mas é também na caracterização dos limites que a questão dos vazios úteis se coloca com maior acuidade, uma vez que eles são depositários da carga simbólica, não devendo ser enten-didos por determinarem fracturas de vivência. Ledoux, em Chaux, criou alamedas que marcavam os limites da cidade - que tinha deixado de possuir muralhas -, construindo uma transição verde de carácter urbano com o espaço rural, de modo a evitar zonas ambíguas e indefinidas.

Numa escala regional, o “Planning Act” fez com que Londres fosse envolvida por um “Green Belt” com 50Kms de raio, evitando as cornubações e permitindo estruturar um espaço de des-compressão à volta da cidade. Na Holanda, a macro-escala regional é organizada através duma estrutura anelar policêntrica onde se localizam quatro cidades históricas não-hegemónicas - com cerca de 1 milhão de habitantes cada uma -, que constituem regiões urbanas com funções regionais específicas - Haia (sede do governo Holandês), Roterdão (porto internacional), Amsterdão (capital) e Utre-que (centro de convenções e serviços) (Jenks, Mike e Dempsey, Nicola, 2005). Entre elas, existe uma unidade regional chamada Randstad constituída por um anel verde que abrange um espaço de 100 kms totalmente acessível em 1 hora, e as infra-estruturas existentes permitem um acesso rápido. As redes começaram por ser físicas, estruturadas por percursos lineares de que o eléctrico e o comboio foram factores de desenvolvimento permitindo a extensão das malhas urbanas. Assim, também o estuário do Tejo pode corresponder a um vazio central de relação. Num território que articula a região da Grande Lisboa através de um sistema de acessibilidades circular estruturado a partir do comboio, pode-se criar um sistema em semi-rectícula que articula as acessibilidades com a paisagem humanizada em equilíbrio. 3 – Significado, vivência e acontecimentos Assim, é necessário que exista um significado cultural que permita enquadrar de uma forma atractiva a participação da comunidade através de um imaginário mobilizador, para que a nar-rativa se construa através de temas e ambientes estimulantes que criem um processo de identi-ficação colectiva, onde se joga a importância da dimensão simbólica. Criam-se assim sistemas de apropriação e vivência dos espaços, evitando-se zonas indefinidas de sentido e de limites que geram desterritorializações. Os limites, o centro e as relações vivenciais que se estabele-cem, conferem-lhes uma identidade que coexiste com a dimensão cultural induzindo a sua apropriação. A criação de sentido e significado, envolve a dimensão física dos espaços, a sua caracterização ambiental e, sobretudo, a sua vertente simbólica que é essencial para que eles existam mais profundamente no imaginário colectivo. Por vezes, é em campo aberto que se criam locais de encontro e de festas ou de comércio, procedimentos que sendo ancestrais, decorrem das características dos sítios e da fácil acessibilidade. Tirando partido das características do espaço existente redefinindo os seus parâmetros ou atra-vés do recurso a estruturas efémeras, cria-se um sentido sintagmático nos vazios urbanos, por vezes com uma estrutura dentro doutra estrutura. Transfigura-se o espaço e potencia-se a dimensão comunicacional da arquitectura através de objectos, elementos ou estruturas que introduzem uma animação pontual dando um novo sentido e significado ao espaço público, relevando a sua disponibilidade e polivalência para gerar o encontro e redefinir o imaginário colectivo. O Espaço Público / Os Acontecimentos “A polaridade público-privado dá lugar à oposição produção-consumo, trabalho-lazer, e os lugares onde se efectuavam estas actividades fecham-se ao exterior” (Wieczorek, Daniel, 1981). 1 – Políticos

Também é através dos acontecimentos políticos que a cidade vive o seu clima de liberdade, sendo as avenidas, as praças e as alamedas os espaços de eleição para que a mensagem seja mediatizada com maior intensidade. Complementarmente, a expressão visual simbólica dos acontecimentos é gerida de forma diversa, desde a grande encenação totalitária até ao caos dispersivo mas vivido da pluralidade de materiais, sinais e cores que arregimentam as populações na transmissão da mesma mensa-gem colectiva. 2 – Tematizados Assim, existe uma disponibilidade para a criação de arquitecturas efémeras que enquadram manifestações colectivas na cidade. Numa ordem tematizada, há motivos adicionais para potenciar a qualidade das imagens e do ambiente, situação que tradicionalmente se coloca com maior empenho na época do Natal ou nas festas populares, mas que têm uma expressão agregadora de gerações e de novas populações nos concertos musicais que animam os está-dios, os pavilhões, as praças ou os parques da cidade. 3 - Religiosos As vias sacras existentes em várias cidades como em Guimarães, correspondem a um sentido de festa sazonal, possuindo a estrutura urbana sinais de retábulos que identificam pontos espe-ciais da ritualização procissional e de temporalização dos percursos. O desenho de Roma de Sisto V introduziu uma ordem urbana que era dada pela abertura de vias que relacionavam igrejas importantes no tecido urbano. 4 - Festas Apesar da importância das festas na animação da cidade com uma grande visibilidade no espaço público, este âmbito de intervenção não se encontra devidamente explorado em termos eruditos. A capacidade de se construírem enquadramentos cénicos com valor urbano acrescido dado pelo seu forte sentido apelativo, seria capaz de transfigurar a cidade e animá-la nos bre-ves momentos de festa. Contudo, não se deve subverter o sentido genuinamente popular das festas, uma vez que aí o participacionismo adquire um valor simbólico agregador da comunidade traduzindo-se em qualificados ambientes urbanos. Um outro aspecto que adquire cada vez maior relevância - dada a radicalização das condições atmosféricas e as enxurradas momentâneas -, refere-se à utilização diversificada dos leitos dos rios e linhas de água que atravessam as povoações. Quando secos e estabilizados, constituem espaços lineares rebaixados relativamente às margens, servindo com múltiplas vantagens diversas manifestações públicas como mercados de levante, feiras ou animações lúdicas e desportivas. Criam-se assim espaços confinados que, não poluindo visualmente o ambiente envolvente, possibilitam uma fácil limpeza. Os vazios urbanos não devem configurar vazios de sentido, constituindo apenas números que entram para a contabilidade urbana dos índices e das áreas permeáveis, devendo contribuir para a criação do espaço humano de relação comunitária sem barreiras arquitectónicas ou segregações - propiciando a saúde mental, a segurança, enfatizando a vertente ambiental. Um vazio é um espaço relacional significante com idêntica importância ao cheio, é o lugar de manifestação da vida comunitária e política. A polis, afinal constitui a sua razão de ser, apesar de ter vindo a ser afectada e desintegrada pelas pulverizações dos zonamentos, dos espaços colectivos comerciais, de estacionamentos intermináveis, e por um somatório de infra-

estruturas de grande impacto como o caminho de ferro assim como as vias rápidas, com falta dum desenho integrador. “O modelo da cidade global apoia-se essencialmente em habitar em casas em bairros fecha-dos, trabalhar em centros terciários e divertir-se em centros de ócio e de consumo. Cada parte é um produto fragmentário e autónomo. Mas, para que estas novas peças fragmentárias fun-cionem, é necessário que cada estrutura urbana e territorial concreta se veja transformada com a potencialização das novas infra-estruturas reais e virtuais: auto-estradas urbanas, grandes pontes, largos túneis, interfaces em distintos níveis junto a aeroportos, estações, etc. Neste sentido, não é que a morfologia das infra-estruturas viárias e de transporte se tenham trans-formado ou se tenham integrado graças ao modelo da cidade global, mas que, precisamente, é a cidade global que outorgou aos bairros residenciais, áreas terciárias e centros comerciais a mesma morfologia de redes e de fragmentos autónomos que já possuíam as auto-estradas” (Muxí, Zaida, 2004). As infra-estruturas têm determinante importância na cidade e no território, pois são os elementos estruturantes geradores de polaridades constituídas por novas complexidades programáticas e correlações de usos, redefinindo a vivência quotidiana dos cidadãos neo-pendulares. Conclusão Nos anos 30, perspectivava-se o bem-estar do homem e do seu espaço de vida que se traduzia em espaços verdes que referenciavam o espaço do lazer do homem, da família e das crianças. Assim, perspectivava-se um sentido de progresso social sob a égide do Estado-providência, que deveria garantir para todos o acesso à saúde, habitação, trabalho (no Estado) e ensino, e a vida moderna baseava-se no princípio das boas intenções ainda imbuído do idealismo hege-liano. “Depois da primeira guerra mundial, sobre o fundo da recessão, alguns grandes temas cir-cunscreviam a procura social dirigida aos arquitectos: a desordem urbana e a emergência duma “ciência urbanística”. * O habitat das massas laboriosas - o alojamento mínimo, as habitações a bom preço, enfim a higiene, os espaços verdes e a circulação colocam uma nova relação entre a densidade das cidades e a construção em altura” (Joly, Pierre e Robert, 1995). *expressão utilizada por H. Sellier na apresentação dos primeiros problemas do H.B.M. em 1911. Contudo, a evolução actual neo-capitalista perspectivou a falência do Estado-providência – existindo ainda em apenas alguns resíduos – e, consequentemente, do sentido de ordem e de representação que organizava os lugares. Hoje substituído por objectos desreferencializados do contexto, sem hierarquia, criam-se não-lugares donde desaparece todo o tipo de vivência e de identificação, deixando de existir o espaço-tempo lúdico como o da brincadeira da criança fora da escola. Há medo e delinquência na sociedade onde a droga e todo o tipo de violência proliferam e também entra nas escolas. Este enquadramento faz com que as crianças não possam andar livremente nos espaços abertos, mas apenas em pequenas zonas confinadas, sob o olhar atento dos pais. Os condomínios constituem espaços fragmentados, heterotopias que criam simulacros de comunidades que representam as produções privadas de interesses económicos, dando status, segurança, relação com os espaços verdes e outras facilidades lúdicas. Acentua-se a dicotomia entre espaços abertos e fechados, sendo estes destinados ao uso privado em oposição aos espaços abertos de uso público. O aumento de densidade nas zonas de habitação permite a criação de zonas de lazer e não apenas de espaços de “embelezamento”. Aqui, o desenho deve considerar as qualidades de apropriação, a sua adequabilidade em termos de custos e de manutenção, assim como a

possibilidade de gerarem contrapartidas económicas. É neste domínio que se podem criar espaços vividos, mesmo enunciando o princípio da “marca” ou da tematização questionando o real, passando da era da representação à era do simulacro.

Referências

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Recherches / Pierre Mardaga, éditeur, Bruxelas, Bélgica) 112-175-149.

“LA AUSENCIA DE MATERIA URBANA EN LAS CIUDADES DEL SUNBELT” Carlos García Vázquez. E-mail: [email protected]

Universidad de Sevilla. c/ Espíritu Santo, 6 (41003 Sevilla – España).

Anorexia y bulimia. La cuestión de la densidad.

Vistas desde el aire, las ciudades del Sunbelt norteamericano (los estados situados por debajo del paralelo 37) parecen un gigantesco océano verde sobre el que flotan diminutos objetos arquitectónicos. Este abrumador vacío espacial es un acontecimiento urbano absolutamente novedoso que contradice radicalmente la lógica de la ciudad tradicional. Con él se consuma una de sus grandes paradojas: son inmensamente grandes, pero también extremadamente delgadas; padecen de bulimia y padecen de anorexia. En este subpunto vamos a analizar los datos que miden el fenómeno de la anorexia urbana, un fenómeno alimentado por dos fuentes semejantes pero diferentes: la baja densidad y los vacíos urbanos.

Houston Autor: Alex S. MacLean

Fuente: (MacLean, 2003: 54)

En Estados Unidos las áreas metropolitanas son entre tres y cuatro veces menos densas que en Europa, pero existen grandes diferencias norte-sur. Las del noreste son similares a las del Viejo Continente: oscilan entre los 5.398 habitantes por km2 de Nueva York y los 2.700 de Filadelfia1. Las del Sunbelt, en cambio, se caracterizan por densidades seis veces inferiores, de hecho, ocho de las diez áreas metropolitanas menos densas del país se encuentran allí. 1 El área metropolitana de Chicago cuenta con 3.420 habitantes por km2.

Según la Oficina del Censo, en el año 2000 oscilaban entre los 1.569 habitantes por km2 de Houston y los 688 de Atlanta.

Las razones que explican esta baja densidad son múltiples y, a menudo, complejas, pero tres de ellas son especialmente ilustrativas: las tipologías residenciales, los espacios para el automóvil y el crecimiento en “salto a pídola”.

Comenzamos por la primera. La baja densidad está asociada al modelo suburbano y su tipología residencial, la vivienda unifamiliar aislada, que contrasta con el bloque plurifamiliar característico de la ciudad tradicional. Las diferencias de densidad derivadas de una y otra son notables. Mientras que en un núcleo urbano denso donde predominen edificios de 6 plantas se cuantifican hasta 275 viviendas por hectárea; los entornos suburbanos oscilan entre las 2 y 10 viviendas por hectárea.

La segunda razón que explica la anorexia de las ciudades del tiene que ver con el imperio del automóvil. Una de las obsesiones de las ciudades del Sunbelt es reservar abundantes zonas de parking, sea cual sea la tipología arquitectónica de que se trate. Las ordenanzas municipales de Houston exigen 2 plazas de parking por vivienda; 2,5 plazas por cada 100 m2 de oficinas; 8 plazas por cada 100 m2 de restaurante. Ello quiere decir que un edificio de oficinas de 10.000 m2 precisa de una superficie idéntica de parking; y un restaurante pequeño, de 400 m2, 1.280 m2. Actualmente hay en la ciudad 30 plazas de aparcamiento por habitante.

Dado que el razonable precio del suelo de las ciudades del Sunbelt hace que sea más rentable construir parkings en superficie que en sótanos o edificios sobre rasante, esta generosidad se traduce en gigantescas playas de asfalto que rodean y separan los edificios. Ello explica que las ciudades norteamericanas dediquen al coche entre el 30 y el 50% de su superficie2. En las ciudades del Sunbelt mucho más: las 2/3 partes de Los Ángeles son autopistas, zonas de afección de las mismas, playas de aparcamiento o infraestructuras de apoyo a la red viaria.

Mesa (Phoenix) Autor: Carlos García Vázquez

Por último, la tercera responsable de la anorexia de las ciudades del Sunbelt es una lógica de crecimiento estrechamente asociada al modelo suburbial: el denominado “salto a pídola”. Se

2 Lo que contrasta con las ciudades europeas donde, como ocurre en Londres, la superficie dedicada al coche no supera el 25% del suelo urbano.

produce cuando una nueva urbanización, parque de oficinas o centro comercial se construye en discontinuidad con el tejido urbano preexistente, es decir, saltando por encima de zonas agrícolas o naturales que quedan sin urbanizar. Normalmente, el salto a pídola responde a estrategias de los promotores, que no quieren pagar por un suelo el sobreprecio que adquiere por encontrarse en continuidad con zonas urbanizadas. A veces, el salto a pídola se da, no entre propiedades, sino entre municipalidades. Lo que se pretende entonces es eludir ciudades que cuentan con regulaciones urbanísticas estrictas o que no ofrezcan incentivos fiscales. El salto a pídola se convierte entonces en un fenómeno de escala territorial que potencia exponencialmente la baja densidad. En todos estos casos, el futuro del área saltada dependerá de las expectativas de mercado: puede permanecer vacante durante meses o durante décadas.

Houston: salto a pídola. Autor: Carlos García Vázquez

La mitificación de la naturaleza y la ideología antiurbana en Estados Unidos.

Si para un europeo la anorexia urbana pondría en crisis el propio concepto de ciudad, para un estadounidense hace que el concepto de ciudad sea admisible. Para entender esta paradoja es necesario analizar la particular relación que la sociedad norteamericana mantiene con la naturaleza. Aún viviendo mayoritariamente en ciudades, los estadounidenses son profundamente antiurbanos y sienten que sus raíces están en el campo. La baja densidad, al descafeinar los hechos urbanos y hacer hueco al verde, consigue que lo que es ineludible, la ciudad, sea al menos soportable. Ello explica el éxito de las ciudades del Sunbelt como modelo urbano.

Este sentimiento colectivo nos remite a los mitos fundacionales del país. En la América preindustrial de la primera mitad del siglo XIX, los escritores del American Renaissance, con Ralph W. Emerson y Walt Whitman a la cabeza, inauguraron una filosofía netamente antiurbana que entendía que los valores morales de la sociedad estadounidense residían en el gran paisaje norteamericano, mientras que la esencia del mal se concentraba en las pujantes ciudades del noreste.

Su vinculación con los momentos fundacionales del país y su posterior conversión en potencia económica y militar, explica la vitalidad de la que continúan gozando la ideología antiurbana y la mitificación de la naturaleza. Esta última sigue siendo uno de los grandes

temas de la cultura norteamericana. La literatura, la música, el cine, la pintura… aluden permanentemente a su sublime presencia. También pervive en el ciudadano medio, el 77% de los cuales declara su pasión por los entornos salvajes. Por ello los principales destinos turísticos son territorios con valores paisajísticos, no urbanos; por ello las empresas de publicidad colocan automóviles, electrodomésticos o familias prototípicas sobre fondos verdes, lagos y senderos, granjas y establos.

El Sunbelt, y muy especialmente su mitad oeste, lleva más de un siglo explotando la querencia del norteamericano medio por la naturaleza. A finales del XIX, un grupo de escritores, movidos por la nostalgia de la “conquista de la frontera”, identificó las llanuras y desiertos del “salvaje oeste” con la esencia de América. Parte de ese discurso permanece en el imaginario del país, que sigue asociando al suroeste con los ranchos, los coyotes y las minas de oro. El espíritu del lejano oeste, en su versión más hollywoodiense (el de una tierra aún por conquistar, el de la promesa de libertad, el del cowboy de Marlboro…) sigue vivo.

Anuncio de Marlboro

Obviamente, tan sólo se trata de una ilusión colectiva. Los estados del Sunbelt son muy urbanos (en Arizona, el 80% de la población vive en dos ciudades: Phoenix y Tucson). Pero gran parte de su territorio se ha preservado como parques naturales: el Valle de la Muerte, el desierto de Mojave, el Parque Nacional de Joshua Tree, el Gran Cañón del Colorado, el desierto de Sonora, los territorios Navajo, White Sands… Aunque domesticados, es difícil no estremecerse ante la grandeza sin par de estos lugares: cañones sin fondo, mesetas sin fin, desiertos ignotos, montañas ciclópeas, geologías esculturales…

Ante tal solemnidad natural no es de extrañar que en el Sunbelt, y muy especialmente en su mitad oeste, las ciudades parezcan estar de más3. Según Richard Barlett son “lo menos Oeste del Oeste” (citado en Abbott, 1993; 165). Este hecho pone a las ciudades del Sunbelt en una difícil tesitura. Conscientes de que el abrumador territorio que les rodea las supera con creces en todos los sentidos, su dilema es: ¿cómo conciliar urbe y naturaleza, dos conceptos que en la ciudad tradicional eran antitéticos?

La teoría urbana norteamericana lleva más de un siglo dándole vueltas a esa cuestión. El urbanismo progresista estadounidense siempre aspiró a establecer una relación orgánica entre ciudad y paisaje. Para materializarlo, puso en práctica una técnica que incidiría enormemente en el descenso de la densidad: insertar en la trama urbana enormes trozos de naturaleza. Frederick Law Olmsted elevaría esta técnica a su máxima sofisticación en Central Park: 340 hectáreas de cascadas, praderas, colinas y arroyos enclavadas en pleno corazón de Manhattan. Central Park convenció a los norteamericanos de que era posible conciliar ciudad y naturaleza o, al menos, que aquélla contase con grandes espacios abiertos donde ésta era fielmente recreada.

Central Park (Nueva York)

Las ciudades del Sunbelt han llevado esta estrategia hasta sus últimas consecuencias: de la inserción de parques perfectamente delimitados en su contorno y claramente diferenciados del tejido edificado que los rodeaba, ha pasado a la inundación de la ciudad con gigantescas extensiones vegetales que se funden con el asfalto y el hormigón en un todo indeslindable. Campos de golf, espacios naturales, residuos agrícolas, solares abandonados... a los que se suman los jardines que rodean las viviendas unifamiliares de Suburbia, conforman el magma verde que inunda las ciudades del Sunbelt. Los biólogos norteamericanos han tenido que acuñar un término para denominarlo: “bosque urbano”, una mezcla de naturalezas domesticadas y salvajes.

3 Ello se percibe en series televisivas como Dallas. La acción se desarrolla en un rancho, donde viven los protagonistas. La ciudad que le da nombre está en un absoluto segundo plano.

Houston Autor: Carlos García Vázquez

Cuando se observan estas metrópolis desde algún rascacielos, uno llega a preguntarse: ¿dónde está la ciudad? La respuesta es bien simple: bajo los árboles. Houston es un buen ejemplo de ello. Vista desde el aire parece una idílica conjunción de naturaleza y espacio edificado, donde la primera es abrumadoramente dominante sobre la segunda. Si se llega en coche, la impresión sigue siendo extraña. Ada Louise Huxtable comentaba que se tiene la sensación de estar siempre en camino aunque “uno nunca acaba de llegar” (Huxtable, 1976). La ciudad es una agregación de grumos edificados debilísimamente cohesionados entre sí por un inmenso bosque urbano. En el centro, entendiendo por tal la zona interior al Loop 610, se encuentran varios: el Texas Medical Center, el “uptown” de Post Oak, el Arts District, el campus de la Rice University y el downtown. Fuera del Loop 610 prosiguen los grumos: el complejo espacial de la NASA, los centros terciarios de las edge cities, o el Energy Corridor, una especie de ciudad lineal donde se concentran las sedes de las multinacionales del petróleo.

Houston

Fuente: Texas Medical Center Archive. Lo que rodea a todos estos grumos es siempre lo mismo: bosque urbano, paisajes ambiguos, campos de indeterminación. Lars Larup lo ha denominado “paisaje intermedio”, una zona incompleta, un “espacio in-between” difícil de aprehender, difícil de describir (Larup, 2000).

En algunos casos, el paisaje intermedio acaba convirtiéndose en la seña de identidad de las ciudades. Ello ocurre cuando se asientan en territorios con carácter (lo cual es bastante habitual en la mitad oeste del Sunbelt). Albuqueque es un ejemplo. Situada en una verdadera reserva natural, a pocos kilómetros de su centro urbano se pueden encontrar paisajes que han sido comparados con el Gran Cañón del Colorado. No es de extrañar que sea la ciudad del Sunbelt donde la inserción de la naturaleza en el tejido urbano se haya producido de manera más contundente. El Middle Rio Grande Conservancy District es un sistema de acequias y campos de cultivos de más de 300 kilómetros de longitud, que comienza 50 kilómetros al norte de la ciudad y cruza su casco urbano. Por ello, el eje norte-sur de Albuquerque, que discurre en paralelo al río, es totalmente rural, un mundo de canales, huertas, granjas, establos y sendas para caballos enclavado en su columna vertebral.

En esta zona se pueden vivir sensaciones que serían inconcebibles en una ciudad europea. V. B. Price describe una de ellas: “Mi esposa y yo experimentamos la gracia salvadora de esta tierra con especial intensidad una noche de enero junto al Río Grande, escuchando el potente silencio de la corriente a través de la profunda calma invernal del bosque. Era casi medianoche. Albuquerque estaba rodeada por la nieve. No podíamos oír los sonidos urbanos debido al manto de hielo y árboles. La única señal de la ciudad era la opalescencia del cielo, que salía de las farolas y se difundía a través de nubes de nieve. Era como si nos hubiéramos levantado para encontrarnos con nosotros mismos en plena naturaleza, aislados del siglo XX, rodeados por la misteriosa paz del bosque. Y, sin embargo, habíamos llegado hasta allí andando desde nuestro coche, aparcado a 400 metros de distancia en el Rio Grande Nature

Center. Estábamos en la ciudad, no lejos de calles residenciales, a 800 metros de Coors Road, la autopista más congestionada de West Mesa” (Price, 1992; 82).

Rio Grande Nature Center (Albuquerque)

Autor: Carlos García Vázquez

El relato de Price demuestra que en las ciudades del Sunbelt la naturaleza no está “más allá de”, sino “dentro de”. La abundancia de paisajes intermedios hace que los fenómenos naturales se perciban con una extraña intensidad. Las puestas de sol pueden ser imponentes, las tormentas espectaculares, los arco iris deslumbrantes... Cuando la naturaleza se desata sobre ellas uno se siente en medio de la jungla, aunque esté rodeado por cientos de miles de personas. Ello sería impensable en ciudades como Nueva York o Chicago, donde la potencia de lo urbano ahoga cualquier ilusión de inmersión en la naturaleza. Ada Louise Huxtable lo pudo constatar por sí misma: “Houston es diferente desde el momento en que uno se levanta por la mañana para ver cómo la oscuridad es repentinamente disipada por una aureola carmesí de un horizonte que parece extenderse a un círculo completo, y un sol que parece desplegarse por debajo del nivel del ojo. Los neoyorquinos están acostumbrados a ver tan sólo trozos y porciones fracturadas de cielo” (Huxtable, 1978; 145). La intensidad de la naturaleza, la presencia constante del clima y la orografía, diluyen el sentimiento de urbanidad, avivando en los habitantes el ancestral mito antiurbano de los padres fundadores de la patria, la ilusión de vivir en campo.

En definitiva, la naturaleza es indeslindable de las ciudades del Sunbelt. No es de extrañar que muchas de ellas sean más conocidas por sus paisajes que por su arquitectura o forma urbana. De hecho, los iconos que utilizan como logotipo en sus campañas promocionales suelen ser plantas y animales. Así, si París es la Torre Eiffel y Roma es el Coliseo, Houston es la magnolia, Phoenix el saguaro, Los Ángeles la palmera y Lubbock el viento. Estos logotipos demuestran que en las ciudades del Sunbelt el genius loci se encuentra en la naturaleza, no en el espacio urbano. Su identidad depende más de la preservación de sus paisajes intermedios que de la conservación de su arquitectura.

La lógica económica de la baja densidad.

Hasta ahora hemos cuantificado la cuestión de la baja densidad, y hemos analizado la base cultural sobre la que se asienta, la mitificación de la naturaleza. Para acabar de entender el

fenómeno de los vacíos urbanos nos falta por abordar un tercer aspecto que en las ciudades del Sunbelt nunca es baladí: la lógica económica que los sustenta.

La calidad de vida es un gran atractivo para empresas y profesionales de alto nivel, los principales objetivos de las ciudades del Sunbelt en su competencia con otras ciudades. Esta coyuntura explica la fijación de sus campañas de promoción por las bellezas naturales y el buen clima… Los eslóganes del Sunbelt no paran de insistir en ellos cuando hablan del “cinturón del placer”, la “tierra prometida”, “los jardines del edén”... en definitiva, de la “buena vida”.

El sur de California lleva más de cien años explotando esta idea. A principios del siglo XX comenzó a promocionar sus campos de naranjas, sus días soleados, sus playas doradas… Millones de personas emigraron a Los Ángeles seducidos por las imágenes de huertos y naranjales que las revistas de la época difundían a todo color. En realidad, este paisaje tan sólo existió hasta los años 50, cuando Suburbia comenzó a devorarlo, pero el mito de la mediterraneidad perduró varias décadas más, atrayendo a empresarios, turistas y residentes norteños.

Valle de San Joaquín (California, 1937) Autora: Dorothen Lange

Fuente: (Wachs and Crawford: 58)

Para aquel entonces, la leyenda de la buena vida se había extendido al resto del Sunbelt. En los años 70, en los albores del tardocapitalismo, se convirtió en el leit motif de sus campañas publicitarias, que hablaban tanto de oportunidades de negocio como de campos de golf, días de sol y paisajes espectaculares.

Actualmente, muchos norteamericanos están convencidos de que las ciudades del Sunbelt son lo que su publicidad promete: fiestas nocturnas junto a las piscinas, paseos a caballo bajo la luz de la luna, pieles bronceadas en reuniones de trabajo... Y la verdad es que hay mucho de cierto en todo ello. La buena vida es perfectamente perceptible en ciudades como Phoenix: descapotables de marcas europeas, cuerpos “danone”, vestimenta deportiva y carritos de golf que trasladan a jubilados millonarios desde su casa al hoyo más cercano. Tocada con un aire de informalidad sureña, a la sociedad de Phoenix le gusta autorrepresentarse como una comunidad feliz y opulenta que tiene la suerte de vivir y trabajar en una inmensa Marbella.

El futuro de las ciudades: “posturbanización” o desaparición.

En su libro After the city, Lars Larup asimila Houston a un plano perforado que se asemeja más a una selva que a un artificio creado por el hombre. En una ciudad tradicional pensaríamos que sus oquedades son terrenos temporalmente vacantes que acabarán siendo construidos para completar así su destino de contigüidad. Pero las ciudades del Sunbelt no son ciudades tradicionales y su destino no es la continuidad. Como hemos visto, sus vacíos no son el resultado de un desarrollo urbano desequilibrado o incompleto, sino el fruto de lógicas culturales y económicas muy concretas. Sus paisajes intermedios, por tanto, han venido para quedarse, son parte de la ciudad (Larup, 2000). Es más, según Albert Pope, son una de las más poderosas características de las ciudades contemporáneas. Representan la esencia del tardocapitalismo: la desaparición del ciudadano, la desaparición de la comunidad urbana como sujeto político... la desaparición de la ciudad (Pope, 1996).

Es comprensible que el abrumador vacío espacial que inunda las ciudades del Sunbelt genere desconcierto. Se trata de un fenómeno urbano absolutamente novedoso que reta conceptos clave de la ciudad tradicional, que siempre se definió como “lo otro” de la naturaleza circundante. Andreas Ruby anuncia que las ciudades del Sunbelt han entrado en un proceso de “posturbanización”, un proceso donde se conjugan la progresiva urbanización del campo con la desurbanización de la ciudad, que tiende a diluirse en el paisaje. Es como si, en un extraño viaje en el tiempo, hubiéramos vuelto a una de las épocas que más fascinó a Frank Lloyd Wright: el mundo precolombino.

Numerosos historiadores europeos ponen en duda que los mayas construyeran ciudades. La razón es la bajísima densidad de sus asentamientos. El rosario de aldeas y centros ceremoniales del Petén no alcanzaba los 500 habitantes por km2. Curiosamente, esta densidad se asemeja a la del área metropolitana de Atlanta (688 habitantes por km2), lo que demuestra las dificultades que encuentran los europeos para identificar como “ciudad” fenómenos urbanos que están por debajo de una determinada densidad crítica. En cualquier caso, las “ciudades” mayas eran ciudades sin calles, conformadas por poderosos volúmenes arquitectónicos que sobresalían del plano terrestre sin encerrar espacios urbanos.

En este sentido, Houston está más cerca de Tikal que de Roma: “(...) es una ciudad donde todos los elementos urbanos tradicionales flotan en el espacio como estrellas y planetas en una galaxia cohesionada por una mutua atracción gravitacional, pero con grandes espacios vacíos entre ellas” (Pierce Lewis, citado en Lang, 2003; 79).

Houston

Autor: Carlos García Vázquez

El salto más arriesgado del cúmulo de especulaciones desatado por la inundación espacial de las ciudades del Sunbelt lo han dado los teóricos de las tecnologías de la información. Ellos han puesto una duda sobre la mesa: ¿es esta inundación espacial el anuncio del fin de las ciudades? Muchos piensan que sí, que Internet, la telefonía móvil, las cámaras de vigilancia a distancia… han logrado lo que los sistemas técnicos de la modernidad no consiguieron: traspasar las barreras y limitaciones de la ciudad tradicional, redefinir las coordenadas espacio-temporales de los ciudadanos. Si ello es así, significaría que ”lo urbano” habría dejado de ser una condición sine qua non para la existencia de la ciudad. Ello explicaría muchos de los dilemas de las ciudades del Sunbelt, donde los habitantes se sienten en la naturaleza, donde los habitantes no se sienten ciudadanos.

Referencias.

Abbott, C. (1981) The new urban America. Growth and politics in Sunbelt cities (The University of North Carolina Press, Chapel Hill).

Huxtable, A. L. (1978) Kicked a building lately? (Quadrangle Books, Nueva York).

Lang, R. E. (2003) Edgeless cities. Exploring the elusive metropolis (Brookings Institution Press, Washington).

Larup, L. (2000) After the city (The MIT Press, Cambridge (Mass.)).

MacLean, A. S. (2003) La fotografía del territorio (Gustavo Gili, Barcelona).

Pope, A. (1996) Ladders (Architecture at Rice and Princeton Architectural Press, Houston, Nueva York).

Price, V. B. (1992) A city at the end of the world (University of New Mexico Press, Albuquerque).

Wachs, M. and Crawford, M. (editors) (1992) The car and the city. The automobile, the built environment, and daily urban life (The University of Michigan Press).

CUERPOS MUTABLES. LA TRANSFORMACIÓN DE LOS ESPACIOS ABIERTOS PÚBLICOS DE LA

CIUDAD.Arq. Celso Valdez Vargas email: [email protected]

Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Azcapotzalco. México.Colectivo de Investigación Teoría y Proyecto.

Departamento de Investigación y Conocimiento.División de Ciencias y Artes para el Diseño.

RESUMOEste trabajo plantea que la condición actual de los espacios abiertos públicos es que estos son espacios confrontados, al expresarse en ellos la discusión de los distintos proyectos-país; y que esto tiene una importancia fundamental en términos de las condiciones de sus proyectos de intervención los cuales deben lidiar con ese carácter contradictorio.

Y lo anterior obedece a los procesos de permanencia en cuanto a las funciones y las significaciones que históricamente les han sido atribuidos a las calles y las plazas como componentes de la ciudad por las distintas vertientes del poder. Estas, al expresar los diversos intereses de ocupación y usufructo manifiestan la lucha por el control del espacio urbano y por tanto están llenas de significaciones sociales. Así, desde el origen fundacional, han obedecido a distintas lógicas de ocupación orientándose a cumplir su papel como parte constitutiva tanto de las estructuras materiales como simbólicas de la sociedad; partiendo de la fase en la que la plaza como elemento de la prescriptiva fundacional funcionó como núcleo de organización del crecimiento de la ciudad y también sitio de lo social, lo mismo que la calle al expresar el carácter asignado de espacios sacralizados por los rituales religiososo que contradecían las prácticas ciudadanas más comunes, sus transformaciones morfo-tipológicas consustanciales a su concepción como espacio didáctico de las nuevas prácticas sociales de la segregación espacial en el siglo XIX, hasta la pérdida de muchas de sus connotaciones de espacios de convivencialidad y prácticas ciudadanas bajo el embate de la prescriptiva funcionalista puesta a prueba en los oasis de la modernidad durante el siglo XX. Espacios cargados de memoria, también han sido el sitio de la tragedia colectiva: inundaciones, sismos y fraude electoral, adquiriendo significado como sitios en los que aún es posible la esperanza, la solidaridad y la utopía.

Por ello, convendría hablar de los ciclos de permanencia y de ruptura de las significaciones sociales: de la manera en la que se recrean la cultura y los relevos en las generaciones identitarias, y sobre todo de la disminución de la efectividad de las representaciones sociales asignadas por el poder a esos espacios y la contrastación por las formas de uso con las que los reconvierte los distintos sectores sociales.

Ello implica también la necesidad de entender estos espacios como, valga la expresión, CUERPOS MUTABLES, para formular maneras de instituir nuevos significados partiendo de los rasgos de las identidades sociales múltiples, diversas y cambiantes, enfatizando los nuevos carácteres de la condición actual, pero sin perder de vista las propias trayectorias del desarrollo histórico de estos espacios; y particularmente del como estas situaciones participan en la definición de las características de los espacios públicos en el momento actual; lo cual nos remite a la redefinción de la relación entre los grupos sociales y el proyecto de ciudad.

“Esta perversión del significado de la ciudad es acompañada por una reasignación del sentido de sus espacios. La ciudad actual es una urbe revertida, topológicamente contradictoria: si en un principio se construyó alrededor de un centro sagrado, relegando hacia la periferia lo menos valioso y el peligro, hoy levanta en sus suburbios las zonas residenciales, mientras que su centro deviene deterioro, caos, peligro. Así, la ciudad va invirtiendo sistemáticamente los signos que la constituyeron: sustituye la promesa de compañía por la de soledad, la de seguridad por temor, la de riqueza por miseria, la de belleza por mugre, la de lo sagrado por cotidianidad, la de pureza por contami-nación.” Luis Britto, Ciudad y Memoria.

Introducción.Con motivo de la temática de este seminario, presentaremos algunas reflexiones derivadas de los trabajos de discusión en el Colectivo de Investigación Teoría y Proyecto, acotaciones necesarias para la vuelta al proyecto, más allá de la fruición de la forma, y con la intención de recuperar el sentido ciudadano que estos espacios conllevan y no sólo como resultado del mero ejercicio de los especialistas en el despacho de diseño. Esto parte de la intención y la necesidad de recuperar la ciudad para la vida, considerando sus tejidos sociales como parte constitutiva del fenómeno ciudad. Ratificando lo que ha sido puesto de relieve desde hace ya bastante tiempo acerca de que la intervención en la ciudad no puede ser comprendida sólo en su dimensión edilicia y urbanística, dado que de los grupos sociales son las que confieren las características a las distintas vertientes de formas de vida y cultura en la ciudad. En pocas letras, que no hay construcción de ciudad sólo en las formas físicas, mucho menos en el contexto de las actuales problemáticas.

De allí que ente trabajo abordaremos los siguientes aspectos: en primer lugar lo referido a algunos rasgos de la ruptura, es decir ciertos elementos básicos de la problemática actual, haciendo una breve revisión de la histórica de los significados de los espacios abiertos, para concluir con algunos direccionamientos generales para la recuperación de los llamados vacíos urbanos.

I.- Algunos rasgos de la ruptura. Este trabajo plantea que la condición actual de los espacios abiertos públicos es que estos son espacios confrontados, al expresar las contradicciones de distinto orden en el desarrollo histórico de la ciudad y sus diversos sectores. Puesto que desde los distintos orígenes fundacionales de la ciudad los espacios abiertos han obedecido a distintas lógicas de organización y de ocupación, orientándose a cumplir su papel como parte constitutiva tanto de las estructuras materiales como simbólicas de la sociedad.

Así, en la época prehispánica la ciudad expresaba, a través de la concreción y organización de las formas físicas del asentamiento, una particular cosmovisión orientada a la comprensión de la ciudad como una forma de recreación del universo al consistir en “...un desgarro del espacio amorfo...y la constitución de un punto central de orientación” (Sica, 1977), siendo entonces mecanismo mediante el cual se hacía visible el vínculo con lo divino y se convertía

por ello en el centro cósmico, en el ombligo del mundo, en la centralidad absoluta de la que se investía este corazón del universo que era toda la ciudad (Ortega, 1992).

En esta idea las calles y plazas, si bien con un carácter diferenciado, formaban parte de entramado constituido en la conjunción de los:

“Los instrumentos de esta operación [que] son los mismos ejes, verticales y horizontales, del mundo que establecen en su punto de encuentro un centro y revelan la retícula primigenia de la orientación. La forma cuadrada, orientada por los ejes cardinales, es el arquetipo del mundo salido de su caos original (el rotundum, el huevo cósmico)...” (Sica, 1977)

y una concreción definida por el primer mecanismo de transformación morfológica del asentamiento que fue la expansión mediante una retícula con pretensiones de regularidad a partir de un sistema que permite evidenciar un profundo conocimiento del medio natural (Palerm, 1990) como es “...el enrejado de chinampas, acequias y canales constituían, en su mayor parte, el territorio de la ciudad, que se fue adosando artificialmente al islote original, siguiendo la estructura dictada desde la fundación, con los ejes hacia los cuatro puntos cardinales.” (Lombardo, 1973), haciendo crecer el espacio disponible de la originaria isla al conurbarse con otros islotes también de reducidas dimensiones (Valero, 1991). Estos espacios, asiento de los procesos que tenían lugar en la ciudad, tanto de su construcción como de las prácticas sociales que constituían la vida en ella, formaban parte de un ritual implicado en la construcción del cosmos a través de una constante regeneración vital. Del carácter escaso de los espacios abiertos en la zona central del asentamiento, da cuenta su cuidada utilización en la asignación de una función ritual-celebrativa en la cual las plazas se articulaba con las instancias de carácter religioso, también parte de la estructura nuclear a partir de la cual era organizada la ciudad.

Figura 1. Reconstrucción hipotética de Tenochtitlan.

En esta se aprecia la estructura jerarquizada de los espacios abiertos. Fotografía de Agustín Lizárraga/ Raíces del cuadro

Tenochtitlan de Luis Covarrubias, en Arqueología Mexicana

# 68, Vol. XII, Julio-agosto de 2004.

Figura 2. Coexistencia de las calles de

agua y de tierra en la estructura de un

sector de Tenochtitlan. Fotografía CNCA-

INAH Méx.-Fernando Osorio y Fernanda

Valverde-Acervo Fotográfico de la

BNAH, del Plano en Papel Maguey de la

Ciudad de México, en Arqueología

Mexicana # 38, Vol. VII, julio-agosto de

1999

Las plazas se integraban a las estructuras básicas de organización del crecimiento de la ciudad que eran núcleos conformados también por el templo y la escuela. Las calles por su parte, con

un carácter mixto, tanto de agua como de tierra o mixtas, permitían el desplazamiento de las personas o el trasiego de los diversos productos necesarios para el mantenimiento de la vida en la ciudad.

Durante la siguiente fase fundacional en la época colonial, los usos y funciones de los espacios abiertos fueron diversos, trasluciéndose sin embargo una confrontación entre la dominante voluntad ordenadora oficial y los diversos sectores sociales, particularmente los populares. Estos últimos, ponían de relieve la maleabilidad de estos espacios con su apropiación para diversos usos, distintos a los prescritos como expresión de una lucha por la permanencia en el espacio urbano y la realización de diversas actividades lúdicas y de subsistencia, tal como en la apropiación de plazas y plazuelas para apacentar y ordeñar ganado, para asearse, para trabajos artesanales diversos, para pernoctar con las recuas que traían sus preciadas cargas de los puntos más lejanos o inmediatos del interior del país.

Figura 3. La Plaza Mayor de la ciudad de México hacia 1562-1566, principal espacio abierto de la ciudad colonial.

Fotografía del plano del Archivo de Indias en Sevilla en AAVV. Plazas Mayores de México. Arte y Luz. 2002,

Bancomer, México.

También en esta fase las plazas y plazuelas fungieron como núcleo de organización del crecimiento de la ciudad y sitio de lo social (Bonet Correa, 1978), ligados al fenómeno de la Parroquia (Lefebvre, 1987), característica recogida en la prescriptiva fundacional codificada posteriormente. De allí que expresan, junto con la calle, las distintas intencionalidades de ser espacios sacralizados por los rituales religioso, junto a las actividades profanas del diario subsistir, en un carácter de plurifuncionalidad nos remite a las plazas medievales hispanas (Linazasoro, 1978). En ellos se realizaban las diversas actividades ligadas a la religión como el Paseo del Pendón, las procesiones del Corpus, las de Semana Santa, etc., como otras de carácter secular como el abasto, tanto de víveres y otros productos mediante los tianguis y mercados, como del agua potable por medio de las fuentes públicas existentes en ellas:

“...rompían la calma...las fiestas de la ciudad que se llenaba del vuelo de sus innúmeras campanas: el muy suntuosos Paseo del Pendón; las brillantes procesiones del Corpus, las de Semana Santa; las juras reales; las celebraciones de bodas de los monarcas y de sus natalicios de príncipes y los solemnes funerales de los soberanos; las loas, comedias y autos sacramentales, en el cementerio de la catedral y ante el Santísimo Sacramento; las funciones religiosas a los titulares de iglesias y conventos; las canonizaciones de santos; las corridas de toros; los festejos en que ágiles caballeros...quebraban lanzas, corrían sortijas, jugaban estafermos, o tiraban bohordos; la entrada siempre suntuosa de los virreyes en la ciudad; los besamanos y saraos en el Real

Palacio y en las casas de los señores de calidad; la toma de grado en la Universidad y la de hábito y velo en los conventos.” (Del Valle Arizpe, 1977)

La intervención de las estructuras de poder sobre el espacio urbano para lograr y mantener el control sobre éste, tendía a regular las actividades realizadas en éste, en no pocas ocasiones en contra de los numerosos sectores populares que los ocupaban cotidianamente, intentando construir también una representación de la los espacios de la ciudad acorde con las concepciones dominantes, tal como se observa en una crónica de la ciudad de México en 1554:

“ZUAZO.- Estamos ya en la plaza. Examina bien si has visto otra que le iguale en grandeza y majestad.ALFARO.- Ciertamente no recuerdo ninguna, ni creo que en ambos mundos pueda encontrase igual. ¡Dios Mío!, ¡Cuan plana y extensa!, ¡Qué alegre!, ¡Que adornada de altos y soberbios edificios, por todos cuatro vientos!, ¡Que regularidad!, ¡Que belleza!, ¡Que disposición y asiento!. En verdad que si se quitasen de enmedio aquellos portales de enfrente, podría caber en ella un ejército entero.ZUAZO.- Hízose así tan amplia para que no sea preciso llevar a vender nada a otra parte. Aquí se celebran las ferias o mercados, se hacen las almonedas, y se encuentra toda clase de mercancías; aquí acuden los mercaderes de toda esta tierra con las suyas, y en fin, a esta plaza viene cuanto hay de mejor en España.” (Cervantes de Salazar, 1975)

En los espacios públicos de la ciudad colonial hay que incluir el primer espacio público arbolado, generado a finales del siglo XVI, puesto que tuvo una gran importancia para los rituales sociales novohispanos, por el papel de sitio de construcción de las formas de sociabilidad de esa época. En éste se expresaba la transposición de una tipología de ordenación interna, doméstica y conventual en uso en España, a la escala urbana, significando también la ampliación de las opciones de espacios públicos con los que contaba la ciudad. Constituyó una anticipación a:

“...los postulados del urbanismo europeo...lo que lo define no solo como el primer espacio verde público de América, sino de todo el mundo ibérico”. “Posiblemente, la Alameda de México es también original respecto de otras ciudades del mundo occidental, ya que aparece 58 años antes que el Jardín des Plantes (1650) y 74 años antes de la transformación del Jardín de las Tullerías por Le Nôtre (1666), fecha en lacual se hizo público. Estos dos ejemplos, tradicionalmente se han considerado como los precursores de los espacios verdes de uso público en el mundo occidental.” (Muñoz Rebolledo, 1993)

La ciudad del México barroco era un espacio de contrastes, de luces y de sombras, en el cual las desigualdades sociales hacían manifiestos por un lado el lujo y la ostentación y por el otro la pobreza y desamparo; en éste, la concepción de la teatralidad de las prácticas sociales se desplegaba en los espacios tanto públicos como privados que entonces fueron orientados a ser un marco adecuado para ello, como expresión del paso de la mentalidad conquistadora de la temprana época colonial a la actitud relajada y ostentadora de la mentalidad señorial barroca, conjurados ya los más graves peligros de sublevación indígena, dando paso a la constitución de nuevas prácticas sociales.

En el caso de los espacios abiertos, la difusión de nuevas concepciones derivadas de las polémicas europeas que planteaban la revisión de la relación ciudad-naturaleza y las formas de construcción de la ciudad, tuvo eco con tratamientos diferenciados de esos espacios mediante la aparición de calzadas arboladas, aderezadas con glorietas y semiglorietas.

Nuevas propuestas reforzarían la intencionalidad de la ruptura de la ciudad como un conjunto cultural; esto pretendía un mayor y mejor control sobre el espacio urbano, la creciente mercantilización de la economía urbana, la segregación de los grupos de menores recursos económicos y la apropiación de los grupos de poder (burocracia, comerciantes, etc.) de la parte central de la ciudad, disputar espacios en la vida social a la iglesia y a las diversas corporaciones religiosas en aspectos administrativos y económicos asi como de definición de las características urbanas; la justificación de ello era la regularización, mejoramiento, saneamiento y embellecimiento de la ciudad.

Esto sería aún más claro en la etapa del despotismo ilustrado con el ascenso de la casa Borbón cuya vocación modernizadora implicó cambios en diversos órdenes de la realidad urbana colonial; uno de ellos fue la recuperación del control y la transformación de los espacios públicos, apuntando a la reformulación de prácticas sociales efectuadas en ellos por medio de la ampliación de las opciones de nuevas formas de uso del tiempo con un carácter más abierto, menos exclusivista, como en el caso del Paseo de la Viga, en cuyas fiestas de Semana Santa se daba la mezcla de grupos sociales y un avance en el proceso de secularización de la vida perseguido por la Corona.

Figura 4. Permanencia de la estructura mixta de los espacios abiertos de la ciudad de México en 1628, Juan Gómez de Trasmonte. Fotografía de la litografía impresa en

Florencia en 1907 por Francisco del Paso y Troncoso, Museo de la Ciudad de México, en AAVV. Plazas Mayores de México. Arte y Luz. 2002, Bancomer, México.

Estos espacios tenían gran importancia en construcción de una nueva sociabilidad a través de la realización de distintas prácticas sociales que eran muestra de las divisiones étnicas y sociales. Esto se ratificaba con la asistencia de la nobleza novohispana y los grupos

económicos más poderosos a los paseos públicos, particularmente la Alameda, ya que tenía acceso a otros de carácter privado como el jardín privado y la huerta.

Fortaleciendo esas funciones del espacio público en la ciudad algunas obras empiezan a traslucir las concepciones que lentamente irían desplegando las políticas borbonas al incorporar los elementos vegetales en los espacios públicos de la ciudad si bien con un tratamiento diferenciado, tal como podemos observar en distintos documentos gráficos como los planos de la Ciudad de México de 1793 realizado por Diego García Conde y el de 1807.

La líneas de intervención sobre los espacios abiertos, que tuvieron un eje muy importante en la creación de espacios jardinados, significó la cristalización de los cambios en la concepción de las formas de vida urbana que se expresan en propuestas conceptuales u operativas como las planteadas en el "Discurso de Policía”, (Lombardo de Ruiz, 1982) de finales del XVIII o las diversas disposiciones relativas a las propuestas de reforma urbana (Lombardo de Ruiz, 1987). Implicaron, en síntesis, la asunción de los planteamientos de la Ilustración que concebían la inclusion de la naturaleza domesticada en la ciudad como una parte importante por los efectos higiénicos y salubres, pero también como espacios de gozo y de disfrute sensorial.

En este ciclo, sin embargo, se conserva la tradicional forma de tratamiento, iniciada con la época colonial, intervención diferenciada de los espacios abiertos públicos; las calzadas, tendieron a ser objeto de obras de distinto tipo que tenían como uno de sus componentes centrales la arborización. Los ilustrados desplegaron su intervención sobre los espacios públicos con la utilización de largas axialidades ampliadas en determinados puntos por la inclusión de glorietas circulares o semicirculares, utilizando en los paseos las divisiones internas como elementos de diferenciación y cualificación; para enfatizar la importancia de los puntos de corte de la linealidad del paseo recurrieron a fuentes y/o esculturas colocadas en las glorietas. Las intervenciones más importantes en este período se refieren a la adecuación y arborización de calzadas y paseos como largos sitios para transitar en coche o a caballo; dado que se realizaron sobre las calzadas de acceso a la ciudad, aprovecharon, mejoraron y resemantizaron los elementos ya existentes en una recuperación de los estratos previos.

Figura 5. El espacio de la Plaza Mayor de México transformado con la inserciónde estructuras para el comercio,1793. Fotografía de plano del Archivo de Indias

de Sevilla, en Sánchez Zurro, Domingo et al. Castilla y León en América. Cartografía histórica. 2002, Junta de Castilla y León-Consejería de Medio Ambiente y Ordenación del Territorio-Dirección General de Urbanismo y

Calidad Ambiental, España.

En tanto que otros espacios abiertos como plazas y plazuelas se mantuvieron sin contar con elementos vegetales, tratamiento constante durante toda esta larga fase. Esto puede verse en diversos testimonios gráficos, como en el anónimo “Planta y demostración de cómo estaba la

Plaza Mayor de esta ciudad de México antes de despejarla para la jura de nuestro católico

rey, el señor don Carlos III” de cerca de 1760, en el que se observa el espacio público más significativo de la ciudad con una caótica presencia de actividades.

En los espacios públicos siguieron realizándose una serie de eventos públicos en buena medida ligados aún al aspecto religioso, como las procesiones y las ejecuciones; fenómeno que nos puede mostrar los límites a los que pudieron llegar las intenciones borbonas de secularización de distintos aspectos de la vida social. Resulta interesante, por lo demás, sólo citar que esos empeños se expresaron en la promoción de eventos de carácter cívico o secular, que pocoa a poco irian gnando espacio tanto social como físico en la estructura de la ciudad. El espacio público siguió entonces siendo un objeto en disputa, como expresión de los poderes en la ciudad.

A principios del siglo XIX, la ciudad de México, presentaban una imagen en la que se acentuaban los rasgos de finales del siglo XVIII; tal como puede verse en diversos planos de la época se efectuaba un paulatino cambio, en el que las áreas públicas como calzadas y paseos con elementos verdes se vieron incrementadas

Algunas disposiciones emitidas en este período nos permiten vislumbrar los cambios que se efectuaban de manera silenciosa pero tenaz en cuanto a la manera en la que se entendía el tratamiento de los espacios públicos, como la restricción para que en los paseos arbolados no se llevasen a cabo las revistas militares, que no se permitiese la entrada de carruajes ni cabalgaduras a la Alameda, o bien el establecimiento de una tabla de órdenes para el uso de los paseos de la Alameda y Bucareli.

Los procesos de intervención sobre los espacios abiertos expresaban en el fondo la confrontación por el acceso al espacio urbano y el control de éste, así como las formas particulares de contrastación de esas intencionalidades que los distintos grupos sociales llevaban a cabo con sus prácticas. Esto nos habla de procesos de cambio y de permanencia, de tal forma que la transformación de los espacios abiertos se ubicaba en una dinámica en la que también se incluían la conformación de nuevos sujetos sociales en un largo camino de construcción de un gusto, de una sensibilidad acorde a la valoración y el disfrute de la naturaleza incorporada a la ciudad, del uso del tiempo libre, entre otros muchos aspectos.

Indudablemente que esto no fue fácil, pues cuando se intentó incorporar los elementos vegetales a ciertos espacios abiertos como con el plantado de árboles en la Plaza de la Constitución, diversas protestas obligaron a retirarlos al Paseo de la Alameda, (Álvarez, 1981-1982) hacia 1840 en fecha muy cercana a la realización del plantado, (García Barragán, 1990) debido a la permanencia del gusto formado a lo largo de la época colonial.

Pero la realidad de la vida en la ciudad era ya muy diferente, pues como señala Eguiarte para los inicios de la segunda mitad del siglo, los espacios públicos abiertos eran espacios ganados

a la iglesia por el Ayuntamiento (Eguiarte, 1986) y puestos en circulación mercantil e intentados apropiar en repetidas ocasiones por los particulares, como prueba clara del nuevo estatuto del espacio urbano como mercancía.

En la intervención en estos espacios se percibe una línea de continuidad en el sentido de arborizar calles, calzadas y otros espacios por lo menos desde 1831, en una intención resemantizadora muy acorde con los propósitos secularizadores de los gobiernos postindependentistas. Una de las acciones más significativas fue la creación de jardines sobre el espacio abierto público más importante preexistente de la ciudad colonial, la Plaza de la Constitución o Plaza Mayor; estos fueron el Paseo de las Cadenas, en el Atrio de Catedral a partir de 1840, lo mismo que el jardín de la Plaza de la Constitución, en el espacio central de dicha plaza, con antecedentes desde al menos 1839, para adecuarlos a los nuevos requerimientos de sociabilidad que estaban en marcha.

Asumiendo el nuevo carácter que la ciudad y sus espacios abiertos tenían en este período, al plantearse una nueva forma de relación con la naturaleza que fue traducida en la consideración de ésta última como un componente de la estructura de la ciudad y expresada mediante sus transformaciones morfo-tipológicas que darían como resultado un nuevo carácter de la calle (el Boulevard, el Paseo y la calle arbolada), la plaza (lugar del jardín) y los tipos habitacionales (casa unifamiliar con jardín), tanto las instancias de gobierno como los ciudadanos participaron en las dinámicas de inserción de elementos vegetales en los espacios abiertos de distinas zonas de la ciudad, con la arborización de calles y plazuelas, lo mismo en la zona central como en algunas otras periféricas para lograr la constitución de nuevos ambientes urbanos de la modernidad decimonónica, lo cual no hacía sino manifiestar las contradicciones sociales.

Figura 6. Implantación de nuevas concepciones de tratamiento de los espaciosabiertos mediante la arborización, la Plaza de la Constitución en el siglo XIX. Fotografía de la colección de litografías México y sus alrededores de Casimiro

Castro, en AAVV. Plazas Mayores de México. Arte y Luz. 2002, Bancomer, México.

Así, la solicitud de autorización para formar una alameda en la Plazuela de San Lucas, por cooperación entre los vecinos, presentada por el regidor del Ayuntamiento Miguel Rul en el primer mes del año de 1854, es una muestra de la extensión de las nuevas formas de entender la realidad urbana, que cristalizaba en la extensión de la intervención de los particulares en estos procesos de transformación ya no sólo con el plantado de algunos pocos árboles en el

frente de sus casas, sino como parte de una intervención de mayor escala derivada del fraccionamiento de terrenos para la constitución de una colonia. Esto significó también que en términos de las prácticas sociales y las formas de uso del espacio se buscó una redefinición de los ámbitos público-privado, lo cual se expresó en los intentos por crear una sociabilidad específicamente burguesa, con su consiguiente formulación de conductas y lenguajes tanto del ocio como del trabajo.

La ciudad del siglo XX pretendía ser moderna, dejar atrás lo que pudiera recordarle el origen campesino de muchos de sus componentes, seducida por la modernidad y sus signos tecnológicos, trato de despojar de los espacios abiertos a todo aquello que representara la persistencia. Precisamente por eso, los proyectos de los impulsores de la modernidad arquitectónica y urbana habrían de enfrentarse con los rasgos de la estratificación de la ciudad histórica, caracterizada por la permanencia de formas en las estructuras físicas, comportamientos y conductas sociales (aavv, 2004) consideradas como propias del atraso y en las que podían verse los patrones de diferenciación de los grupos sociales. El resultado fue que la ciudad pudo ser transformada sólo parcialmente en la dirección señalada por los proyectos modernizadores en algunas áreas, ejes o conjuntos emblemáticos, en, valga la expresión, “oasis de modernidad”.

Para ello pretendió concretar su transformación por medio del golpe final a buena parte de los pocos ríos que aún sobrevivían para truecarlos por vías rápidas y autopistas, tradujo el progreso en cambio de materiales y en la pretensión de mejorar su cuerpo regularizando la geometría de sus calles, particularmente en las zonas de barrios antiguos, asiento de la pobreza de la ciudad; jugó en fin con la díada luz-sombra afirmándose como esta última frente al atraso de la oscuridad.

Las calles y otros espacios abiertos empezaron a dejar de ser sitios para la convivencialidad de los ciudadanos, que sacudidos por el vértigo de los automóviles paulatinamente fueron despojando de sus espacios: el parámetro de definición de las nuevas escalas y formas de la ciudad era otro. Por ello no es extraño constatar que las expresiones más visibles de la modernidad arquitectónica y urbana se perfilaron a través de proyectos, propuestas e intervenciones en distintos sectores de la ciudad, que tenían ese nuevo medio de transporte como eje.

En los objetivos de esos proyectos pueden ubicarse la dotación de servicios, equipamiento e infraestructura, como la pavimentación o el alumbrado a las nuevas colonias y el mejoramiento de los de la ciudad preexistente, así como especialmente la apertura, la prolongación y ampliación de calles con la intención de dotar de mayor continuidad y fluidez a la trama viaria preexistente, al igual que la exasperante obsesión por los alineamiento, entre otros.

Figura 7. Representación de un espacio de la modernidad, la glorieta de Paseo de la Reforma y Avenida Juárez. Fotografía de Luis Márquez, en Noelle, Louise y Lourdes

Cruz. Una ciudad imaginaria. 2000, UNAM-INBA- CONACULTA-IIE, México.

La concepción moderna empezó a despuntar también en algunos instrumentos de planificación en los que la calle pensada para el tránsito vehicular articulaba la intervención y que fueron aplicados a determinadas zonas de la ciudad, como en el “Anteproyecto para la

apertura de 20 de Noviembre” de 1927, el “Proyecto de Planificación de la Ciudad de

México. Sección Norte” de 1928; incluso de ésta en su conjunto como es el caso del proyecto “Zona Catastral para el Estudio de la Planificación de la Ciudad de México”, lo mismo que en la mutación de las formas con las que se construía el espacio habitacional de la ciudad y así surgieron concepciones como las aplicadas en nuevas colonias en las que las calles dejaron de tributar a la ortogonalidad.

En la época actual los espacios abiertos públicos están determinados por una serie de condiciones, entre ellas estarían en primer lugar su pertenencia a una ciudad que es instituida en un paralelaje por los poderes formales y las prácticas y usos de los distintos grupos sociales convirtiéndola en sitio de las constataciones de la falta de directrices y de diluida esperanza de cambio; y en ese sentido podríamos decir que de manera más profunda esta determinada por los rituales del caos (Monsiváis, 1998) incluyendo entre ellos la virtualización de la realidad.

Figura 8. Persistencia de formas tradicionales de uso de los espacios abiertos públicos, calle 5 de Mayo esquina con la Plaza de la Constitución ca. 1935.

Fotografía Casasola, Colección Fototeca Nacional INAH, en 1950, en aavv. (2004) MEMORIA DE LA CIUDAD DE MÉXICO. Cien años, 1850-1950. (Gobierno

del D. F.-CONACULTA-INAH-INTEGRUS, Fundación Cultural-LUNWERG Editores-Fundación Televisa, España).

Esto es, un espacio social y físico en el que la problemática transcurre por diversos y a veces contradictorios cauces entre el más profundo desaliento y la más luminosa esperanza: la rampante inseguridad que oscila en grados de temor entre delincuentes y policías; las insuficiencias circulatorias debido a la cantidad de vehículos que magnifican la concentración macrocefálica; la acelerada insuficiencia u obsolescencia de la infraestructura que en temporada de lluvias remite a la originaria condición lacustre; la contaminación que provoca a la imaginación apuntando a la realidad de los mutantes.

Recuperar los espacios abiertos públicos implica en primera instancia entender su compleja realidad y que estos no se hallan vacíos dado que, aunque confrontados, son ocupados de diversas formas tanto material como simbólicamente, poniendo de relieve su inserción en la disputa por el espacio público. De tal modo que, pese a las prohibiciones, las diversas calles y plazas están pobladas por una multiplicidad de señales, de huellas, de prácticas permitidas y no, lo mismo que de resistencias que hacen perceptibles las presencias de los distintos proyectos que incluyen estos espacios dentro de sus territorios vitales.

Son por ello ocupadas por los paraderos de autobuses y la parafernalia de sus anuncios, los espacios más céntricos o más rentables de cada sector de la ciudad se disputan por el comercio informal y el poder formal, por los limpiadores de parabrisas de los autos, vendedores de pañuelos desechables, integrantes de la versión moderna y tecnologizada del tianguis ancestral que venden lo mismo remedios herbolarios de orígenes prehispánicos que las versiones más recientes del I pod.Estos espacios expresan, por lo tanto, un abigarrado conjunto de intereses y de significaciones que les han conferido los sectores sociales involucrados en su disputa. Desde el ejemplo más inmediato de puntos de encuentro para la relación amorosa hasta espacios para la manifestación de las contradicciones generadas por los evidentes límites y desvíos que amenazan con hacer naufragar la frágil democracia representativa, las crecientes protestas sociales por el rumbo que sigue el país, hasta los intentos de recreación de una abstracta

convivencialidad mediada por la bicicleta, o la reconstrucción de la dimensión lúdica ciudadana por medio de las playas artificiales en distintos puntos de la ciudad.

Presentan una situación en la que la condición de los espacios abiertos llega a ser la contrastación entre la saturación, de personas, señales, signos de una pretendida asunción de los estándares de calidad de vida de las Metrópolis y el vacío. Signos de una condición de “pirata” de múltiples productos que alimenta la reconstitución de la nacionalidad en las permanencias de las formas de producción y de consumo tradicionales, junto con las cuales los conglomerados internacionales generan productos de una elevada obsolescencia para conformar una marcada estética kitsch; en fin, prácticas diversas que bordan sobre las directrices de la internacionalización diferenciada de la producción y el consumo que tienen su asiento en el comercio informal instalado en los espacios públicos.

La disputa corporativizada del comercio informal por los espacios de la ciudad, particularmente los de las áreas centrales, trátese del Centro Histórico o de Coyoacán se complementa con su contraparte de privilegio a la inversión inmobiliaria que hace estallar determinadas zonas con su localización, recambiando los perfiles tanto sociales como físicos de los entornos elegidos; lo mismo que con la gubernamental intervención diferenciada que privilegia los espacios más prestigiosos, tanto de calles como de plazas, plazuelas y jardines.

Figura 9. Nuevos-viejos rituales en el espacio público, la resistencia civil pacífica en la Calle 5 de Mayo casi esquina con Plaza de la Constitución. Fotografía Francisco

García Noriega, en AAVV. RESISTENCIA. Del desafuero al plantón. 2007, La Jornada, México.

Es decir una situación en la que las cotas de la permanencia de la desigualdad social se mantienen pese a las políticas del gobierno de la ciudad, dando como resultado un espacio en el que las contradicciones son cada vez más visibles y explosivas. De igual modo, esto pone de relieve la incapacidad de los espacios abiertos públicos para responder a las exigencias actuales derivadas del desarrollo de la ciudad. Los espacios abiertos el día de hoy constituyen espacios de la inseguridad, la zozobra y la congestión, sitios carcomidos por la lógica del funcionamiento y la movilidad, tiende cada vez más a ser despojados de su condición de sitios de la convivencialidad y lo lúdico para ser eficaces mecanismos de la transportación y la ganancia en una concreción de lo alienado. Lo

mismo que su carácter de sitios de expresión de la discusión de los distintos proyectos-país, de tal modo que las calles y las plazas se han convertido en el campo de batalla en el que se enfrentan los proyectos de sociedad y son usados para manifestar algunas de las largas listas de la inconformidad social.

La calle, la plaza han perdido entonces sus antiguos caracteres y conllevan ahora los de la precariedad en el tránsito urbano y la dificultad de ser sitios de la convivencialidad. De igual modo la ruptura con las formas de representación y de vida han desplazado las formas de convivencia familiar hacia las de los seductores espacios del mercado; así la calle, la plaza, los jardines públicos han sido sustituidos por el Mall; los espacios públicos tienden a ser entonces un espacio yermo que apunta a servir sólo para el tránsito.

Figura 10. La conversión de los espacios públicos en cajas de resonancia, la Plaza dela Constitución y la resistencia civil pacífica. Fotografía Carlos Ramos Mamahua, en AAVV. RESISTENCIA. Del desafuero al plantón. 2007, La Jornada, México.

Efectivamente, los fenómenos de ausencia nos remiten en este caso a la inexistencia de identificaciones y de la capacidad para albergar alternativas de subsistencia para amplios sectores de la población. La primera de estas inexistencias refiere a los rasgos del cambiante perfil de las identidades que se construyen en la ciudad en la actual situación de la globalización de los consumos culturales codificados en los centros.

Pero, precisamente porque son estos algunos de los más importantes espacios donde se construyen y despliegan los rasgos de la ciudadanía, esto constituye un aspecto de gran complejidad, dado que los procesos de construcción de las identidades tienden a estar menos ligados a los factores territoriales y mucho más a aquellos desprendidos de las formas de codificación de la información que los medios transmiten, como una fase más de los procesos de occidentalización.

Esto obedece a los procesos de permanencia en cuanto a las funciones y las significaciones que históricamente les han sido atribuidos a las calles y las plazas como componentes de la ciudad por las distintas vertientes del poder, puesto que al expresar los intereses de ocupación

y usufructo expresan la lucha por el control del espacio urbano abierto y por tanto están llenos de significaciones sociales, poniendo de relieve el carácter contrastado de las funciones y significados que le han sido atribuidos. Lo cual tiene una importancia fundamental en términos de las determinaciones que ejercen sobre las condiciones de sus proyectos de intervención, los cuales deben lidiar con ese carácter contradictorio.

III.- Hacia la recuperación de los espacios públicos abiertos. Así, la intervención para recuperar los espacios abiertos nos plantea de entrada la necesidad de replanteamiento de la relación de dos conceptos profundamente entrelazados: democracia y urbanismo. Sin embargo, por supuesto que no constituye éste el único replanteamiento necesario, pues reconociendo ese carácter complejo de los espacios abiertos que son transformados continuamente pero que también conservan en esos procesos una cuota de permanencia aún en las más importantes transformaciones morfológicas de la ciudad y sus sectores, se precisa la reconsideración del carácter de los espacios abiertos públicos como componentes de la ciudad.

Esto es que no son elementos aislados, dado que forman parte de la estructura de los sectores de ciudad, y son por lo tanto un componente de la estructura completa de ella. Por tanto, en su intervención debe verse articulado el concreto de intervención y sus colindancias con al menos a dos niveles más; esto es el del sector en el que se ubican y en el papel que este sector juega en la ciudad. De tal modo que la intervención puntual ha de observar las consideraciones anteriores y vincularse a la configuración de un nuevo concepto de ciudad, considerando las siguientes orientaciones.

Apuntar hacia un proyecto del conjunto de la ciudad.

Esto significa la formulación de un proyecto de conjunto de la ciudad que implique diversas orientaciones tales como la consideración de ésta como un “…conjunto de sistemas abiertos, de naturaleza diversificada, en el que sea posible la coherencia de tensiones entre un todo casi integrado y unas partes diferenciadas.” (Fernández Alba, 1987, 106-107); de igual modo resulta ineludible la comprensión del fenómeno urbano en su dimensión medioambiental, dado que éste no puede “...entenderse sin una administración coherente de los sistemas de energía que la constituyen. Su forma (planificación física del ambiente), no puede reproducirse sin una interpretación adecuada de sus energías fundamentales: Movimiento

(transporte), Cambio (ocupación y renovación del suelo urbano), y la programación del consumo de los materiales energéticos no renovables.” (Fernández Alba, 1987, 96).

Y por consiguiente, la ciudad no puede ser entendida ya como una forma de infinito crecimiento, como si las limitaciones espacio-topográficas fuesen las únicas condicionantes a considerar, tienen que entenderse también que una perspectiva fundamental para el desarrollo de la ciudad es la de su viabilidad en términos de los usos energéticos que se hallan implícitos en su funcionamiento, no puede validarse en términos sociales y de una lógica científica, tanto derroche y desperdicio energético. Como si estos fuesen infinitos y no pudieran cuestionar la propia existencia del ser en el planeta y la convivencia en la ciudad.Esta transformación en las formas de uso hacia otras más racionales y comprometidas con el medio natural, implica en esencia la constitución de una nueva cultura ciudadana, o como dice Fernández Alba, una nueva filosofía de la ciudad. Esta implicaría necesariamente la reducción de nuestra dependencia de los recursos no renovables, y la reutilización, el reciclaje y la conservación de la energía como una actitud constante en nuestra forma de vida y de consumo.

Pero esta idea de optimización de los recursos existentes y el reciclaje de aquellos susceptibles de serlo, puede y debe aplicarse también a aquellos otros de los componentes más ligados a las definiciones de la forma y la imagen de la ciudad; así esta idea del reciclaje y la reutilización debe aplicarse con un enfoque globalizador “...hacia el reparto del suelo y la usurpación del espacio, tendrá que ser abordado por la administración de la gestión urbana, configurando prácticas y políticas ciudadanas que permitan el uso regenerativo de los espacios abandonados y de las propiedades reservadas.” (Fernández Alba, 1987, 112)

Ademas habrá de tomar en consideración al menos dos orientaciones más. La primera de estas está referida a la necesidad de entender este proyecto de una manera más abierta, es decir a la comprensión efectiva de que la ciudad es una construcción colectiva, tanto en lo referido a sus espacios habitacionales, abiertos, sus infraestructuras, en síntesis a su estructura física, como resultado de un largo y decantado proceso colectiva de acumulación efectuado durante siglos; como al sentido más profundo del concepto ciudad que nos remite al hecho de que sin las prácticas sociales inherentes ésta carece de sentido, es decir que no hay ciudad sin su componente humano.

De tal forma que no es posible ya considerar las conquistas y avances tecnológicos actuales de la sociedad actual como patrimonio exclusivo de los grupos que gestionan el poder, quienes lo manejan autoritariamente y a su antojo, en función de sus intereses, sin importar los impactos depredadores sobre la naturaleza y la calidad de vida de los habitantes. Así la ciudad no puede ser pensada sólo por los especializados grupos técnicos, así sean los de la planificación y el diseño urbano, la idea de ciudad nace o debe hacerlo de un proyecto colectivo. Este proceso de construcción colectiva requiere de la concurrencia de múltiples aportaciones, tanto sociales como científicas y artísticas, que se conviertan en materiales para “...construir con decoro los espacios de la ciudad.”

Por lo que la construcción de la ciudad no puede ser entendida sin la participación de los grupos sociales que la habitan, lo que conlleva a que una nueva forma de gestión ha de plantearse de manera diferente la relación entre democracia y urbanismo con la recuperación de este espacio social y físico para la vida, para la vida digna de los habitantes y no sólo para reducidos grupos detentadores del poder económico y político. “Una actitud tanto moral como crítica, por parte de las colectividades, será la que haga instaurar frente al talante ambiguo y paternalista del estado industrial moderno, el grado de coherencia entre medio (naturaleza), historia (tradición) y progreso (técnica) que necesita y reclama el modo de vida contemporánea.” (Fernández Alba, 1987, 113)

Mucho más ahora que se avizora ya la ruptura del proyecto mundo que ha guiado las directrices de la posmodernidad globalizada y en la que la ganancia en todos los aspectos de la vida urbana se ha considerado el emblema de cualquier gestión sea de izquierda o derecha, pretendiendo ignorar que esos direccionamientos mantienen al infinito las desigualdades sociales con sus estelas de miseria.

La segunda de ellas nos señala el caractér urgente de la revisión de los procesos de proyectación de la ciudad, dados los resultados obtenidos en su conjunto; con ello se pretende atenuar o corregir los fragmentarios resultados derivados de la concepción de la ciudad como un cúmulo de aproximaciones a lugares invertebrados que excluye al ciudadano y le incapacita para el desarrollo de sus formas de vida comunitaria y privada y lograr formalizaciones espaciales que permitan integrar las nuevas opciones tecnológicas frente al medio natural, con un talante de simbiosis no destructor (Fernández Alba, 1987, 112-113). Por lo tanto recuperar la idea de ciudad implicaría entenderla no como un mero esquema formal, tarea realizable desde una mesa de dibujo atrincherados en los resquicios de la

geometría o el cálculo económico, sino como un espacio en el que aún es posible la convivencia, la equidad y la participación pública.

Esto significaría también la superación tanto de la perviviente falacia funcionalista como de aquellas otras derivadas de los efectos más degradados de la diáspora posmoderna que se halla signada por profundas transformaciones en las formas de construcción de la realidad, que es entendida como una serie interminable de escenografías para el espectáculo mediático a través del intercambio de las preferencias morfológicas, estilísticas o tipológicas de la arquitectura, más que para la vivencia del ser humano, y más aún de las realizaciones de un pragmatismo exaltador de la ganancia que, en un juegos de espejos, ha convertido en pieza sustituible los entramados de la ciudad al ser entendida como reserva territorial u oportunidad de reinventar la ciudad según el sueño de la promoción inmobiliaria privada.

Condiciones específicas de cada sector de intervención

Contribuir a la búsqueda de una ciudad alternativa implica un conocimiento más acercado a los procesos de construcción histórico-cultural de la ciudad y a partir de ello el apoyo a la preservación, creación y desarrollo de las culturas e identidades, mediante el mejoramiento de las condiciones de vida y la preservación de la cultura material e inmaterial La definición de las líneas de intervención en los espacios abiertos públicos debe considerar los proceso de conformación histórica de la ciudad y sus correspondientes contornos urbanos delimitados por las distintas etapas de crecimiento histórico-cultural, estructurados a partir de sus unidades territoriales o porciones de ciudad. Es decir, el desarrollo de proyectos que contemplen de una manera integradora los diversos componentes que inciden en la calidad de vida, tales como el equipamiento, la vivienda, las infraestructuras, los espacios abiertos y las áreas verdes, el transporte, la ecología, etc.

A manera de ejemplo podemos señalar que la ciudad de México se caracteriza porque históricamente sus sectores, sobre todo la parte correspondiente al centro ceremonial prehispánico y posteriormente la traza de la ciudad colonial, han constituido el "axis" de la centralidad en el desarrollo del asentamiento urbano, esto es el centro de una red de centralidades. Esta manifestación expresa una manera particular de adecuación a las necesidades que los diversos grupos sociales han puesto en juego y que han dado como resultado una conjunción de sectores articulados morfológica, social y funcionalmente, constituidos todos ellos en sus estratos básicos hasta la primera mitad del siglo XX, con una compleja mezcla de formas sociales, económicas y tiempos históricos expresados material y simbólicamente.

Rescatar este papel histórico de centralidad puede resultar válido para potenciar la acumulación de recursos, infraestructura, parque construido, culturas e identidades locales y ciudadanas. Esto implica la reafirmación de las centralidades de los distintos sectores, sin olvidar su inserción en la metrópoli, es decir concebir la centralidad como un instrumento de generación de desarrollo y mejoramiento de la calidad de vida de los habitantes de este complejo organismo con un carácter dinámico, en constante transformación, de una vasta riqueza socioespacial.

Esta se expresa en la diversidad de lugares, por lo que resulta necesario reconocer la heterotopía como una de sus características constitutivas. La multiplicidad de actividades en ella desarrolladas contradice de clara manera los postulados prescriptivos de la urbanística funcionalista, por más que algunos funcionarios se empeñan en intentar seguir interviniendo y regular la vida de la ciudad a partir de ellos, es decir la ciudad y sus diferentes sectores son plurifuncionales.

La generación de núcleos en los lugares que condensan las actividades económicas, las expresiones culturales, los puntos de referencia e identidad, la estratificación histórica, permite la construcción de múltiples centralidades en la ciudad y sus sectores que deben ser valoradas y apoyadas por la riqueza y diversidad social cultural que aportan a la cultura de la ciudad, pero al mismo tiempo han de valorarse y potenciarse las capacidades de las estructuras económicas locales.

La morfología de la ciudad es resultado de un complejo proceso histórico-cultural de estratificación de la cultura material y simbólica que no puede ser tratado de manera homogénea, sino atendiendo a las características particulares de cada uno de los sectores que la constituyen. De allí que una intervención integral, debe ser el resultado de una visión global y el desarrollo de un conjunto de proyectos específicos.

Con base en lo anterior consideramos que abordar la complejidad de la intervención en los sectores de la ciudad debe hacerse considerando la articulación de los siguientes enfoques:

Como parte de un biosistema en el que juega un papel central la conservación de la base de recursos naturales y los equilibrios ecológicos como condición para un desarrollo sustentable, que satisfaga las necesidades actuales de la población y preserve su potencial para las generaciones futuras.

Como objetos de consideración sociocultural, en la intención de hacerlo habitable (útil) manteniendo sus componentes poblacionales y mejorando su confort. Dado que la construcción de la arquitectura y la ciudad es un proceso de construcción de lugares, de espacios socio-físicos, cualquier intervención actual debe estar dirigida al mejoramiento de la calidad de vida, elevación de estándares habitacionales y urbanísticos y no solo a cuestiones de embellecimiento urbano. De igual modo no pueden ni deben pasarse por alto que la ciudad esta formada por complejos tejidos sociales que deben ser incluidos en cualquier propuesta de intervención y no solo aquellos que constituyen los agentes económicos de mayor.

Como problema técnico-constructivo, según una práctica restauratoria o rehabilitadora de su estructura física, para su puesta en valor, rescatándolo de los procesos de degradación progresiva.

Desde su consideración urbanística, propiciando la búsqueda de mecanismos de inserción en la ciudad a la que pertenece, entendiendo que la Delegación Cuauhtémoc constituye el centro geográfico de la ciudad, al tiempo que se favorece una reflexión teórica sobre la continuidad entre ciudad antigua y ciudad moderna. “Al hablar de intervención en la ciudad construida resulta también necesario reconocer aquellos aspectos constitutivos de su forma que permitan establecer los límites que la modificación no debe superar, teniendo en cuenta los propios caracteres del espacio arquitectónico preexistente.” (De García, 1992, 23)

Desde la perspectiva de la renovación formal interna de los sectores de ciudad, reconociendo en ellos la existencia de una tensión regeneradora, aún considerándolos como totalidades que se desarrollan dentro de sus propios límites. Por lo que “...toda preservación del patrimonio edificado ha de apoyarse en acciones positivas, admitiéndose que la vieja arquitectura –también la vieja ciudad- ha de someterse a una verificación activa donde deberán determinarse los límites de la acción conservativa y de la acción modificadora, evitándose la hipertrofia de lo que Aloïs Riegl definió como el valor de la antigüedad.” (De García, 1992, 24), contemplando necesariamente también la inserción de nuevos elementos en los contextos.

Como campo de reflexión sobre los niveles de articulación entre las distintas dimensiones la ciudad histórica o central, o el núcleo fundacional, la ciudad intermedia y la ciudad periférica y la Metrópoli en su conjunto.

La recuperación del vacío urbano

Para recuperar el vacío urbano, entendido esencialmente en nuestra perspectiva como los espacios abiertos públicos, habremos de partir de entender estos espacios como Cuerpos Mutables, es decir porciones de ciudad en constante cambio y transformación, al ser configuradas y reconfiguradas partiendo de una estructura básica construida históricamente, esto es la transformación y/o permanencia de los estratos constituidos desde los procesos fundacionales.

Siendo los espacios abiertos públicos como estructura de la ciudad a la que nos hemos referido a lo largo de este trabajo, una red de centralidades vinculadas por un entramado de conectores de distintas características, definidas de acuerdo a las funciones que les son asignadas o reconvertidas y a las formas particulares que asumen los distintos proyectos en la construcción de la ciudad.

Es destacable un par de aspectos en esta misma línea. El primero es que a partir de constitución los espacios abiertos públicos, componentes básicos de la imagen de la ciudad, estos se convierten en estratos “contenedores” de las transformaciones de distinto orden de la ciudad, tanto de su morfología como de su cambio tipológico; ejemplificando podemos anotar que esto sucede con las plazas y plazuelas de la ciudad colonial que son intervenidas en distintos momentos históricos para escribir y reescribir sobre ellas distintos proyectos de ciudad.

El segundo de ellos es el referido al papel que en esas intervenciones juegan los espacios abiertos poniendo de relieve la importancia que les ha sido concedida como parte de la intervención no solo material, sino también como parte de la estructura simbólica de la ciudad. Estos al ser entendidos como uno de los componentes nuevo carácter que le estába siendo atribuido al espacio urbano, se hallaron insertos en la disputa por el poder material y simbólico de la sociedad. Pues fuertemente asociados en el origen a las significaciones religiosas, mutarían acorde con las nuevas concepciones orientadas a la conformación de la identidad nacional por parte de los grupos que intentaban la secularización de las formas culturales y sus expresiones en la ciudad, construyéndose para ello escultura monumental conmemorativa, fuentes y quioscos en los espacios públicos de la ciudad, dándoles énfasis como lugares de recreo, de higiene y salud para los habitantes en un sentido didáctico.

La escultura monumental incorporada a los espacios públicos abiertos jugó un importante papel en la configuración de éstos y en la enfatización de su carácter simbólico, ya que a decir de Gutiérrez Viñuales, cubrió diversas necesidades de los gobiernos y los países en Ibero América, al apoyar los procesos de “urbanización” de los grupos sociales, puesto que simbolizó el adelanto cultural de los pueblos, promovió las imágenes de los próceres definidos como modelos ciudadanos en una sociedad en cambio, y expresó emblemáticamente la obra pública gubernamental, convirtiéndose además en un efectivo mecanismo de enseñanza de las versiones consideradas válidas de la historia nacional (Gutiérrez Viñuales, 2004, 17-18). Pero, particularmente, diríamos, que su importancia radicó, sobre todo, en hacer posible la construcción visual de la idea de nación en su versión laica, a través de la expresión de las distintas versiones del discurso de la modernidad.

Todo lo anterior implicaría formular maneras de instituir nuevos significados partiendo de los rasgos de las identidades sociales múltiples, diversas y cambiantes, considerando los nuevos carácteres de la condición actual, pero sin perder de vista las propias trayectorias del desarrollo histórico de estos espacios. Particularmente del como estas situaciones definen los espacios públicos en el momento actual; lo cual nos remite a la relación entre los grupos sociales y el proyecto de ciudad para lograr que el mismo proyecto sea lograr que la participación de la gente se exprese en éste, en la construcción y asignación de significados y representaciones a los espacios públicos partiendo de las nuevas identidades múltiples, diversas y cambiantes.

En este sentido, la aseveración de la convocatoria a este seminario es correcta al señalar el carácter de efimero, mutable como rasgos propios de la actual condición que habría de expresarse en los proyectos, que entonces serían una propuesta de constitución de unas nueva mezcla de nuevos estratos en la intervención de los espacios abiertos públicos reconociendo su desarrollo histórico y sin perder de vista el sentido último de la intervención que es el mejoramiento de la calidad de vida de los habitantes de la ciudad y contribuir a la sustentabilidad de su desarrollo.

IV. A manera de conclusionesComo puede observarse la reconversión de los espacios vacíos en espacios utiles no resulta una tarea fácil, dado que está inserta en un conjunto de determinaciones que rebasan el reducido espacio del diseñador e implican la toma de decisiones y la definición de un proyecto distinto de ciudad.

Sin embargo, lo expresado en este trabajo no significa un llamado a la inacción, más bien se orienta a profundizar en las características del desarrollo de estos componentes de la ciudad, y a efectuar un llamado de atención sobre la necesidad de la concurrencia de los ciudadanos en la definición de los aspectos que tienen que ver con su vida cotidiana.

Cambiar el panorama en el que se desenvuelve el conjunto de hechos vitales que ocurren en la ciudad podra hacer de ésta un espacio mejor, y en ello indudablemente mucho pueden aportar los diseñadores desde distintas trincheras, tanto desde la del proyecto y la obra como en la del conocimiento de sus características y de su trayectoria, de sus procesos de crecimiento y de transformación, de su cultura y tradiciones, de las estrategias de sobrevivencia de los grupos sociales que la habita, de su sentido lúdico, del asombro, lo mismo que de sus luchas, en fin de lo que le es consustancial.

Puesto que como nos dice Luis Britto “La ciudad nos separa del orden natural y le fija límites: surgida de la escritura, ella misma es entonces un texto. Nada hay en ella que no haya sido primero idea: nada que no haya pasado por la mediación del signo. La ciudad es la caligrafía tridimensional mediante la cual la civilización inscribe su discurso. Habitamos una escritura sólida, que infatigablemente habla a nuestros cinco sentidos. Ciudadano es aquél que comprende ese misterioso lenguaje y lo divulga.”

ReferenciasAAVV. (2004) MEMORIA DE LA CIUDAD DE MÉXICO. Cien años, 1850-1950. (Gobierno del D. F-CONACULTA-INAH-INTEGRUS, Fundación Cultural-LUNWERG Editores-Fundación Televisa, España).

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SUPERFÍCIE ACTIVA Cláudia Sisti email: [email protected]

Universidade de Barcelona Em diálogo produtivo com a designação terrains vagues, que remete genericamente para o não construído, realçando no seu adjectivo o carácter vago, não definido, não codificado de um território, a expressão vazios urbanos alarga a temática para todos os elementos que representam espaços de descontinuidades na cidade, lugares externos e estranhos que ficam fora das dinâmicas urbanas, onde parece predominar a memória do passado sobre o presente, “amnésias urbanas” (Domingues, Solá Morales, Careri). Procurando perceber melhor a natureza intrínseca do conceito de vazio numa relação, às vezes, menos directa com o fenómeno urbano, proponho-vos reflectir sobre a especificidade de alguns elementos que compõem a paisagem urbana e da sua importância para o desenvolvimento da cidade. O tema gira em torno do carácter essencial da relação entre cheio e vazio, no binómio concreto terra / água, e mais propriamente na relação entre uma cidade e o seu rio.

Imagem Luís Pavão

Partindo da noção de complementaridade com o cheio da cidade, podemos olhar o Tejo como Reserva de Vazio. Esta proposta leva-nos à reflexão sobre uma ideia positiva de vazio, uma ideia construtiva de vazio e, consequentemente, sobre as suas funcionalidades, sobre a sua “utilidade” enquanto momento urbano; enquanto momento de pausa na cidade, espera, reserva, reverso do mundo organizado, espaços onde a desordem natural se deixa observar. A noção de complementaridade é necessariamente fulcral – complementaridade no sentido matérico; complementaridade no sentido formal.

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Imagem Stefano Riva

Nesta procura de explicação dos mecanismos de complementaridade, torna-se muito produtiva uma incursão, ainda que ligeira, em campos de conhecimento muito distantes das nossas ferramentas habituais de trabalho e, nestes, verificar uma interessante correspondência entre pensamento oriental taoista e alguns pressupostos da física quântica. Assume-se a relação Terra-Água como complementar e procura-se esclarecer o carácter essencial da relação entre cheio e vazio. Quaisquer que sejam as características que a estes espaços se queiram atribuir, a complementaridade necessária e dialéctica entre a categoria genérica de cheio e a categoria genérica de vazio constitui ponto de partida determinante.

Imagem Stefano Riva

Neste campo, o pensamento oriental desde há muito tem dado ‘pistas’ para uma visão positiva do vazio em si mesmo, em contraposição com uma necessidade mais ocidental de encher este espaço que pode ser interpretado como mental ou físico. O vazio assim como estamos habituados a pensá-lo, conflui no niilismo, quando, ao contrário,

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é a condição de possibilidade de todos os eventos, de todas as coisas. O vazio, neste sentido, é maximamente cheio. Este é, provavelmente, um grande legado do budismo.

Imagem Stefano Riva

O pensamento oriental mostra-se, de uma forma radicada e constante, pouco confiante em relação à pretensão de fazer teoria e manifesta uma, também radicada e constante, predilecção por todas as maneiras e circunstâncias capazes de produzir uma relação com a experiência directa, liberta de mediações intelectuais e culturais. A relação com a realidade é preferida à relação com os conceitos ou, pelo menos, aos conceitos que pretendem substituir-se à realidade.

Imagem José Pedro Croft

Um dos maiores especialistas italianos em cultura japonesa – Pasqualotto - diz que “ A civilização japonesa é um receptáculo de meios-tons esfumados, de espaços vazios que não têm de ser preenchidos mas gozados assim como estão, de uma infinidade de artes que têm como fim não o produto estético mas o acto que faz enriquecer a relação. Relação entre pessoas, relação com a natureza, relação entre as coisas. “ O núcleo central do pensamento taoista e budista é dado pelo vazio, não pelo conceito de vazio, mas pela experiência do vazio.

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A mais célebre e clara referência ao vazio é contida no capítulo XI do Daodejeing “…Bem podes trabalhar a argila para fazer vasilhame, a utilidade do vasilhame depende do que não existe. Bem podes abrir portas e janelas para fazer uma casa, a utilidade da casa depende do que não existe. Assim, tirando partido do que existe, se utiliza o que não existe.”

Mosteiro Ryoanij Kyoto

Na questão do vazio, é central o conceito de que: o vazio de espaço não é pura ausência do espaço, nem espacialidade absoluta - o espaço vazio existe só em relação a um espaço cheio. Ou seja: o vazio espacial, assim como o vazio temporal, têm uma função dialéctica, uma função de relação. O vazio espacial é transcendental, já que é intrínseco a cada uma das coisas específicas. Na linha da tradição produzida pelo pensamento budista sobre o vazio e sobre a vacuidade, o budismo zen também propõem uma atitude radical de “fazer vazio” que tire substancialidade e permanência aos objectos, aos pensamentos, até aos pensamentos sobre o vazio. O espaço onde isto se manifesta com maior ênfase, seja talvez no Roji, o trilho das pedras em relevo, experiência que melhor que outras exalta a presença do vazio, por causa do andar instável por cima delas, do acto de modificar a percepção do espaço. (Pasqualotto)

Imagem Martha Swartz

Existe uma palavra japonesa composta por ‘resto’ e ‘branco’, portanto o espaço vazio, o essencial, o não destinado a desaparecer, o que resta depois de se remover tudo o que pode ser tirado (Givone). Não é um nada conclusivo mas sim um gerador de realidade.

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A noção de vazio não é vacuidade no sentido depreciativo ocidental, mas condição de possibilidade, de potencial. O vazio é dinâmico, cheio de possibilidades em via de realização. A estética do vazio encontra o seu fundamento numa ética da atenção, ao Outro, aos Outros. (Carboni) A concepção ocidental, mecanicista, clássica do mundo era baseada na ideia de partículas sólidas e indestrutíveis que se mexem no vazio. A física moderna produziu uma mudança radical nesta imagem, chegando a uma noção completamente nova de “partícula”, assim como transformando profundamente o conceito de vazio (Capra). Matéria e espaço vazio, foram dois conceitos nos quais se baseou o atomismo de Demócrito e de Newton. Na teoria da relatividade estes dois conceitos não podem ficar separados, a matéria não pode ser separada do seu campo de gravidade, matéria e espaço são vistos como partes inseparáveis e interdependentes de um todo único (W. Thirring in Capra).

Imagem Stefano Riva

Fritjof Capra procura a explicitação da relação entre o pensamento budista de vazio e os fundamentos da física quântica: “A relação entre as partículas virtuais e o vazio é uma relação essencialmente dinâmica; o vazio é, com certeza, um “vazio vivo”, que pulsa nos ritmos sem fim da criação e da destruição. A descoberta da qualidade dinâmica do vazio é considerada por muitos físicos um dos resultados mais importantes da física moderna. De uma função de vazio contentor de fenómenos físicos, o vazio passou a ser uma quantidade dinâmica da máxima importância.”

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Painel 1 do Concurso “Intervenções na Cidade”

A complementaridade entre o Tejo e a Cidade: Estas reflexões resultaram da participação no Concurso “Intervenções na Cidade” Trienal de Lisboa em Fevereiro deste ano e são fruto da colaboração com os arquitectos Stefano Riva, Giorgio d’Ambrosio e Moritz Elbert Neste exercício, a escala de observação da complementaridade entre cheio e vazio, é a escala da Lisboa metropolitana, onde o Mar da Palha, elemento central do grande estuário, se manifesta em toda a sua grandeza e onde a margem oposta surge quase como uma referência mnemónica, margem pressentida, numa relação de saber sem ver. Citando Vítor Matias Ferreira: Terra e água: eis os dois elementos fundamentais que organizam … dois elementos que aparecem aqui na sua intima e estreita interacção, de tal modo que a formulação de um deles é condição de enunciação do outro. Estes espaços representam autênticos cheios de vida a um nível simbólico e biológico. O que de facto caracteriza a cidade de Lisboa de uma forma única é esta complementaridade entre elementos geográficos, a vacuidade da água a tornar significativo o cheio da cidade.

Painel 2 do Concurso “Intervenções na Cidade”

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A especificidade do espaço Água (vazio significante): A especificidade do espaço líquido do Tejo, superfície só aparentemente muda, pode-se tornar perceptível através de uma imagem mental onde se sobrepõem os desenhos gerados pelos inúmeros movimentos do Tejo, e que podem ser recolhidos em duas grandes famílias: - os movimentos naturais, endógenos, tais como as marés, as correntes, os baixios hidrográficos, a concentrações salinas, as temperaturas da água, movimentos rítmicos, ancestrais, respiração do vazio, natureza em si, variação constante ao longo do dia e das estações, dos anos e das eras geológicas, e que representam a riqueza deste enorme espaço. - os movimentos exógenos, os gerados pelos homens, os percursos dos grandes barcos de carga, as linhas perpétuas e constantes de atravessamento dos cacilheiros, os percursos de costa dos barcos de pesca, as linhas ziguezagueantes dos barcos de recreio. O cruzamento do significado biológico e ecológico do Tejo com o espaço antropizado e rico de imagens mnemónicas do rio fazem a sua importância como superfície urbana de excelência, superfície activa onde a margem percebida vai muito além da margem efectiva de separação entre terra e água. Qual é hoje o significado do Tejo, como é possível torná-lo elemento central da vida dos cidadãos da metrópole. Quanto é importante a experiência de um espaço vazio no ritmo da vida metropolitana?

Imagem Luís Pavão

Este discurso é igualmente actual e emergente para os outros espaços vazios que, em terra, assumem uma comparável qualidade potencial como vazio significante. São estes, espaços esquecidos, espaços que a cidade vai abandonando, resíduos urbanos aparentemente privados de função, resultantes do abandono de uma qualquer actividade, a “terceira paisagem” do Gilles Clément A terceira paisagem é o teatro de uma evolução globalmente inconstante. È o território de eleição da diversidade ecológica e biológica e, portanto, é o território de evolução, favorece a invenção, opõe-se à acumulação. Do ponto de vista cultural, a terceira paisagem manifesta-se em referência ao território organizado e em oposição a este, como seu complementar.

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Imagem Stefano Riva

BIBLIOGRAFIA: Capra, F. (1982), Il Tao della Fisica, Milano: Adelphi Carboni, M. “Tra estetica del vuoto e etica dell'attenzione” em Il Manifesto, 20 Abril 2002. Careri, F. (2002), Walkscapes, Barcelona: Gustavo Gili Certeau de M. (1980) L’invention du quotidien, Paris: Union Général d’Editions Clement G. (2004) Manifesto del Terzo Paesaggio, Ascoli Piceno: Quodlibet Crippa M “tutto il vuoto intorno a noi” em Il Manifesto, 20 Maio 2002 Debord, G. “Théorie de la derive”, em: Internationale Situationniste, nº 2, 1958, Paris Domingues A. Coord. (2006), Cidade e Democracia, Lisboa: Argumentum Givone, S. “Il nulla, ciò che resta dopo aver tolto tutto” emL'Unità, 20 Outubro 2001. Gnoli, A. “Il mondo dove l'estetica è alla base dell'etica” em La Repubblica, 9 Dezembro 2001. Govinda, A. (1974), Foundations of Tibetan mysticism, New York: Samuel Weiser Pasqualotto, G. (2002) Estetica del vuoto. Arte e meditazione nelle culture d'Oriente. Marsilio, Venezia. Pasqualotto, G. (2001)Yohaku. Forme di ascesi nell'esperienza estetica orientale. Esedra. Solá Morales de, I. “Urbanité Intersticielle”, em Inter Art Actuel, 61, Québec, 1995 Treib, M, “The Presence of Absence: Places by Extraction” em: Settings and Stray Paths, Treib M. (2005) London: Routledge

OS ESPAÇAMENTOS ILEGÍTIMOS OU

A CONDIÇÃO SUBURBANA DO VAZIO Cristina Soares Cavaco : [email protected]

(Assistente,Doutoranda) Departamento de Arquitectua

Faculdade de Arquitectura – Universidade Técnica de Lisboa Rua Sá Nogueira - Pólo Universitário da Ajuda, 1349-055 Lisboa, Portugal

Tel: 00351 213615059 Fax: 00351 213615138

RESUMO: Procura discutir-se a condição suburbana do vazio equacionando essa condição na perspectiva de uma cidade invertida – reverse city – onde o vazio urbano adquire um papel de espaço contentor por contraposição ao vazio fechado e contido da cidade tradicional. Identificam-se e exploram-se algumas das manifestações do vazio na contemporaneidade e defende-se o argumento de que estes novos espaçamentos são referências ilegítimas nos contextos canónicos da cidade herdada e da cidade moderna. A partir do paradoxo que nomea de espaçamentos ilegítimos os vazios urbanos emergentes, apela-se a uma nova condição de vazio que passa pela redefinição de referenciais normativos e pela restruturação de uma nova lógica morfológica e de sentido que permita restabelecer a legibilidade e inteligibilidade do espaço urbano contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: Vazio urbano, Espaçamento, Reverse city, lógica do sentido

1. INTRODUÇÃO

Esta comunicação pretende discutir a condição suburbana do vazio ou, numa tendência aparentemente mais vaga mas menos tendenciosa ou pejorativa, pretende discutir a condição do vazio urbano na contemporaneidade. Qual o papel do vazio no território da cidade contemporânea? Que diferentes manifestações adquire? Que sentido lhes está associado? Enfim, o que é que mudou na condição do vazio que nos leva a assumir uma nova era do urbano

Fig. 1 – Santo António dos Cavaleiros

(CHOAY, 1994) onde as referências canónicas da boa forma da cidade se veêm ultrapassadas, mas não redefinidas ou substituídas por outras referências normativas?

No sentido de se debaterem estas e outras questões, toma-se como referência bibliográfica

central a obra da italiana Paola Viganó, La Città Elementare (1999), equacionando a condição suburbana do vazio na perspectiva de uma cidade invertida – reverse city – onde o vazio urbano adquire um papel de espaço contentor por contraposição ao vazio fechado e contido da cidade tradicional.

A intenção está, desde logo, em tentar identificar e caracterizar os novos espaçamentos

(CHOAY, 1969) da cidade aberta, fazendo a ressalva de que a postura assumida é intencionalmente suportada por um sentido de experiência aberta e de evidencição empírica, que não tem para já pretensões científicas em termos metodológicos no que respeita a categorização proposta. Decorrentes de uma lógica de sectorização do espaço, das formas e das funções, estes novos espaçamentos acabaram por emergir, resíduos e residuários no território urbanizado da cidade-território (PORTAS, 1969) pondo, de certa forma, em causa o valor morfológico e semiológico, tradicionalmente estruturante, que tinham na continuidade da cidade canónica. Estará esse sentido estruturante do vazio urbano ferido de morte na condição suburbana que agora adquire?

Nesta linha de debate, e em tom de argumento para a comunicação, evidenciam-se estes

novos espaçamentos como referências ilegítimas num contexto canónico da boa forma da cidade. Mas muitos deles são também filhos bastardos do próprio paradigma da cidade moderna. Se a cidade herdada, na significação morfológica que lhe está associada, não contempla esta nova condição mais fluída e indeterminada do espaço vazio, também a cidade na acepção que o Movimento Moderno lhe atribui, não prevê nem acolhe um certo sentido anamórfico, niilista e residual que, sem dúvida, pelo menos nas visões mais cépticas, caracteriza os vazios urbanos da contemporaneidade.

No contexto do presente seminário e da temática agora em debate no âmbito da Trienal de

Arquitectura, não é intenção desta comunicação trazer respostas ou conclusões assertivas, ou, sequer, confirmar cientificamente alguma tese ou hipótese já explorada em anteriores pesquisas. A ideia passa sobretudo por partilhar reflexões, tomando este seminário como uma oportunidade para repensar, uma vez mais, as bases teóricas e conceptuais que suportam a leitura e entendimento da cidade contemporânea, a sua legibilidade e inteligibilidade.

2. REVERSE CITY: DA LÓGICA DA INVERSÃO À CONDIÇÃO SUBURBANA DO VAZIO

Como foi já referido na introdução, o debate que se tenciona introduzir em torno da

condição suburbana do vazio toma como embasamento conceptual e teórico a ideia da reverse city apresentada por Paola Viganó no seu livro La Città Elementare. Segundo a autora, a hipótese avançada é a de que no decurso do século XX seja reconhecível uma corrente e uma tradição de reflexão sobre a cidade que a conceptualize em termos de inversão, no que respeita o passado, mas sobretudo no que respeita o binómio de

Fig. 2 – Santo António dos Cavaleiros

relação entre cheio e vazio. A reverse city re-equaciona o papel do espaço aberto na cidade, um espaço aberto que já não é um espaço interno, delimitado e configurado pela continuidade construída que o envolve, mas sim um espaço de reconhecimento mais difícil, um espaço contentor e de extensão que passa, inclusive, a ser considerado como um elemento invasor.

O reconhecimento de uma cidade inversa, e a percepção do espaço como um continuum são temas de uma pesquisa que tem, afinal, precedentes significativos. As raízes desta inversão e a ascensão de uma nova condição de espaço aberto remontam, sem dúvida, à cidade modernista e, em particular, à cultura progressista veiculada por Le Corbusier e pelo grupo CIAM, ainda que anteriores reflexões e experiências explorassem já esta dimensão invertida do espaço urbano. Esta ideia foi, aliás, muito bem analisada por Phillipe Panerai et al ao exporem e reflectirem sobre os cinco modelos arquitectónicos e de cidade que nos conduzem na viagem do quarteirão à barra. Eles relatam precisamente a progressiva revolução conceptual que foi sofrendo o espaço urbano da modernidade, desde meados do século XIX, sob o argumento técnico da modernização e da salubridade, com a assunção haussmaniana do espaço como elemento de saneamento e de comunicação, física e visual, até à afirmação corbusiana da cidade condensada em bloco e convertida em paisagem. Com Le Corbusier o espaço é finalmente assumido na sua absoluta condição de vazio, de espaço livre, de plataforma abstracta suporte de representação da arquitectura, agora sublimada na qualidade de objecto que se densifica em termos de funções e de significações, e que concentra e sintetiza o essencial da cidade. A arquitectura, na qualidade de bloco-objecto, vem repensar e reorganizar toda a lógica do tecido urbano tradicional, invertendo e resumindo em novas formas os elementos herdados do quarteirão, da rua e do espaço livre em geral. A inversão de perspectiva é aqui total e extremada, fortalecida pela clareza e pela coerência teórica do discurso, muito embora esmorecida na falência das realizações que desse discurso directamente perfilham.

Segundo palavras de Panerai et al «La Cité radieuse est un mythe. (...) elle exprime le refus

de la ville. (...) n’a pas de nom, pas de lieu, elle n’éxiste pas, c’est un schéma. En la choisissant, nous voulons montrer le point extrême d’aboutissement du processus de désintégration du tissu urbain.. Exemplaire par la rédution théorique qu’elle opère sur l’espace urbain, elle l’est aussi par l’influence qu’elle a exercée, par le rôle de modèle qu’elle a joué dans la pensée urbanistique des architectes de l’apreès-guerre. Plus que les divers grands ensembles qu’elle indirectement produits mais où se glisse un compromis dû à une localisation précise, elle reste l’image abstraite et absolue, la fiction d’un urbanisme autre. » (1975-1997:131)

A obra de Viganó não é somente esclarecedora no que respeita o conceito de reverse city.

Também o entendimento e leitura do urbano veiculados pela ideia de uma cittá elementare são fundamentais para operar esta inversão de perspectiva e para formular uma reinterpretação do vazio urbano na contemporaneidade. A cidade elementar é uma cidade composta, resultado da combinação e recombinação de múltiplos elementos segundo lógicas, ritmos, sequências e sintaxes diversas. A cidade elementar representa-se por materiais urbanos, por partes ou componentes, sediada numa lógica de simplificação ou de redução racional tornada operativa

Fig. 3 – Unidade de Habitação de Marselha

pela decomposição do todo complexo nas suas partes mais simples. Este exercício lógico de redução facilita, afinal, a abordagem a um território urbanizado que se complexificou e cuja mutação de escala e de espacialidade requer um novo olhar, urge por novos métodos e conceitos.

Numa perspectiva elementar Corbusier opera, sem dúvida, uma revisão e inversão integral

dos elementos urbanos, do modo como eles estão tradicionalmente relacionados, dos sentidos e funções que suportam, das formas construídas que tradicionalmente lhes estão associadas. Conforme afirma Le Corbusier «Les matériaux de l’Urbanisme sont le soleil, l’espace, la verdure, l’acier et le ciment armé, dans cet ordre et dans cette hiérarchie. (Commentaire de la Charte d’Athènes des CIAM, 1993)» (Corbusier, 1946: 82) O vazio, agora entitulado espaço, é um desses componentes.

Regressar a Le Corbusier e à visão progressista da cidade ditada pela Carta de 1933 não

tem, contudo, por objectivo percorrer de novo a história de um desurbanismo, sequer os motivos ou experiência que encaminharam um progressivo processo de desintegração do urbano e de dissolução da forma e da significação dos seus vazios tradicionais. Como aliás é referido no texto introdutório deste seminário «não é intenção investigar os porquês da actual situação». Mas o recurso a estas figuras incontornáveis da história da arquitectura e do urbanismo interessam no sentido de, por um lado, captar a lógica dessa inversão e, por outro, fundamentar a condição de ilegitimidade do vazio urbano a que chegámos na falência do projecto moderno. É aí que se pretende fundar o argumento que serve esta comunicação.

Como referem Collin Rowe e Fred Koetter «The city of modern architecture (it may be

called the modern city) has not yet been built. In spite of all the good will and good intentions of its protagonists, it has remained either a project or an abortion; and, more and more, there no longer appears to be any convincing reason to suppose that matters will ever be otherwise».

A condição suburbana do vazio contraria a ideia tradicional de um vazio estuturante

configurado pela continuidade do espaço edificado e pela proximidade espacial. Mas retrata também a falência e corrupção do próprio modelo de inversão. À inversão da relação cheio/vazio, efectivamente realizada a partir da ruptura introduzida pela modernidade, não correspondeu a necessária densificação do objecto arquitectónico, nem em termos funcionais – o super-bloco – nem em termos de significação. A inversão ficou ferida na sua plenitude, destituída de sentido e privada da espessura funcional e significante que o discurso moderno lhe atribuiu. A actual condição suburbana do vazio significa, assim, a subversão de uma ideia de vazio enquanto ambiente e paisagem (environment) enriquecido pela presença dos elementos naturais, o sol e o verde mas, sobretudo, enobrecido por um sentido de artificialidade e de abstracção conferidos pela mão e razão humanas. A actual condição suburbana do vazio significa o esvaziamento e banalização da ideia de uma cidade condensada e sintetizada na arquitectura.

Como refere Françoise Choay «La banlieue présente l’illustration dégradée d’un espace

corbusien mal éclaté et mal classé, où la fonction de logement, hypertrophiée, ne laisse pas place aux autres types d’activité et d’où la rue a disparue sans la contreparite d’unités et de liaisons fonctionelles.» (1969: 104)

A condição suburbana do vazio é o sintoma da ruptura, da crise que afecta o espaço público

e os territórios urbanos em geral, a que a pós-modernidade, no impulso nostálgico, quase obsessivo, de exaltar e revisitar o passado, não soube responder e, menos ainda, soube ultrapassar. É, por isso mesmo, o sinal de que chegámos a um ponto de viragem, a uma linha charneira a partir da qual se impõe um renovado desígnio por referenciais normativos que

permitam atingir a verdadeira potencialidade da inversão e reposicionar o vazio no espaço urbano e nos territórios conceptuais da contemporaneidade.

3. AS MANIFESTAÇÕES DO VAZIO NA CONTEMPORANEIDADE

A partir deste posicionamento a ideia passa por rever algumas das figuras a que está sujeito

o vazio urbano na contemporaneidade, desde as denominadas «alcunhas» (PORTAS, 1969: 212) que o vazio foi ganhando na cidade moderna - «espaço livre, verde, não-edificado, infra-estrutural, expectante», até aos novos espaçamentos que a modernidade impulsionou e que a pós-modernidade não só gerou como admitiu.

Sem a preocupação científica de propôr uma categorização sistemática fundada num

conjunto de critérios metódica e cientificamente seleccionados e comprovados, a ideia é procurar “coleccionar” uma série de manifestações do vazio nos territórios urbanizados, reconhecíveis empiricamente e que, nesta perspectiva, possam ser entendidos como expressões-tipo do vazio urbano contemporâneo.

3.1. Vazio-paisagem

A primeira figura refere-se ao vazio paisagem, um espaço livre, natural mas artificializado, entendido na sua componente paisagística e ambiental, que não exclui contudo a componente urbanizada. É, em termos abstractos, um vazio contínuo, extenso, um vazio de horizonte. Do ponto de vista figurativo ele combina e mistura as características do espaço rural com as características da paisagem urbana. É um território urbanizado, um vazio indiferenciado dentro da sua heterogeneidade, que já não contempla e onde já não faz sentido a distinção dual entre cidade/campo, entre urbano/rural, entre centro/periferia. O vazio-paisagem vem de encontro ao conceito apresentado por Thomas Sieverts de zwischenstadt - urbanized landscape - um território urbano-rural que está entre os centros históricos da cidade herdada e o campo aberto, entre o lugar como espaço de estar e os não-lugares do movimento, entre os pequenos círculos económicos locais e a dependência do mercado mundial. «The term Zwischenstadt signifies that today’s city is in an ‘in between’ state, a state between place and world, space and time, city and country.» O vazio-paisagem é o sintoma territorial de como «(...) the speed of information and travel connections has blurred the notion of space, in which the old contrast between city and country has dissolved into a city-country continuum.» (SIEVERTS, 1999: X)

3.2. Vazio infra-estrutural

A segunda figura é a do vazio infra-estrutural. Trata da decomposição do vazio tradicional entendido como espaço de contacto, de ligação e circulação, e da sua recomposição num vazio de conexão. É um cheio-vazio que funciona como contruído, um objecto

Fig. 4 – Loures

Fig. 5 – IC 22 Odivelas

quase-escultórico no espaço livre e na vastidão do vazio-paisagem, dada a força expressiva que as estruturas físicas para infra-estruturação do território (pontes, viadutos, estradas, auto-estradas, linhas de caminho-de-ferro, etc.) adquirem na paisagem. É um vazio-cheio no sentido em que simultaneamente é o espaço dos fluxos, é no limite a desmaterialização extremada da ausência. Na mutação do sentido tradicional do vazio como espaço de contacto e de circulação, o vazio-infraestrutural perde em flexibilidade quando comparado com a malha apertada do tecido tradicional: perde na multiplicação dos possíveis esquemas de circulação e dos sentidos de trânsito. Mas ganha em conexão, em fluidez e fluxibilidade. No seu conjunto os vazios-infraestruturais configuram o espaço-rede, o Netstadt de Oswald & Baccini (2003), ou o espaço de conexão de que fala Choay (1969). Mas estes vazios conectam tanto quanto fragmentam e sectorizam; na articulação entre escalas, a continuidade das ligações, a vitalidade dos nós e articulações viárias, traduzem-se muitas vezes em cortes no tecido, em descontinuidades forçadas nas malhas configuradas pela granulometria mais minuciosa e apertada do espaço de contacto e de circulação, do espaço de vivência e percepção que, apesar de tudo, ainda persiste. 3.3. Vazio expectante

Também chamado de terrain vague ou fallow, o vazio expectante é outra das manifestações do vazio na contemporaneidade. São espaços intersticiais, normalmente grandes áreas vagas ou vazias, em que o estado de obsolescência se contrapõe a uma promessa de oportunidade em potencial. Tão depressa são junk spaces, sem qualidade nem razão aparente, como são territórios de pousio - para assumir a designação inglesa de fallow land - fundamentais a um processo de futura regeneração urbana. Afirmam-se simultaneamente como terrenos selvagens e como enlaces ou reservatórios estratégicos. É talvez a manifestação de vazio que, de forma mais flagrante e juntamente com a figura que se segue do vazio de cedência ou de interdição, desmonta o esquema da modernidade e afirma o estatuto da cidade contemporânea na condição suburbana do vazio. Não sendo um vazio restante, resíduo ou desperdício no conjunto do sistema urbano, é sim um espaço residuário que, no seu estado de expectante, assume simultaneamente a

Fig. 6 – Amadora - Brandoa

condição de depósito e de reservatório, de espaço de oportunidade provisoriamente abandonado. É esta situação provisória, mais do que efémera, duplamente associada a uma ideia útil de potencial oportunidade e a uma ideia de precaridade parasita, que essencialmente caracteriza este tipo de manifestações do vazio tão frequentes na actualidade. A inconstância dos vazios expectantes assume-se por contraposição à qualidade duradoura do vazio na cidade tradicional que, na mutação dos tecidos por reparcelamento e renovação do edificado, sempre permanecia na integridade pública do domínio colectivo a que normalmente o vazio tradicional está associado. O vazio expectante é na cidade contemporânea um valor-parasita, é uma impermanência, nem transitório, nem permanente ou de permanência. 3.4. Vazio de cedência ou de interdição

Os vazios de cedência ou de interdição devem essencialmente ser entendidos como distanciamentos, ou seja, como espaços resultantes de distâncias impostas regulamentarmente entre construções, edifícios e/ou infraestruturas. São espaços livres não tanto por vocação própria ou por determinação facultativa, mas por interdição forçada de construção, ainda que, algumas das vezes são as próprias características inatas do terreno que ditam a decorrente condição de non-aedificandi. Mas, aos vazios de interdição está também associada uma ideia de desperdício obrigatório, de espaço inutilizado pela obrigatoriedade útil de deixar vazios higiénicos, vazios de saneamento e de segurança. Por oposição, na cidade tradicional não havia desperdício de espaço. O valor da proximidade física sobrepunha-se aos valores ainda não conquistados da habitabilidade e da salubridade; a proximidade física era demasiado importante para tolerar que se despediçassem espaços livres. Por outro lado, na concepção moderna da cidade, o mito do progresso e o ideal da perfeita realização do homem também não contemplavam a inclusão de espaços-resíduo. Os vazios de saneamento estavam conceptualmente integrados numa ideia de espaço livre absoluto, exclusivamente trabalhado pela razão estetizante do arquitecto. Tal como os anteriores, os vazios de interdição são uma consequência pós-moderna que em muito contribuem para a representação da condição suburbana do vazio.

Fig. 7 – Amadora - Reboleira

3.5. Vazio verde

A figura do vazio verde é claramente um conceito moderno. Trata da inclusão do elemento natural no contexto construído da cidade, uma vez mais por razões de higienização, mas também por motivos de naturalização e de recreio. É um verde artificial e nele devemos incluir desde o parque e jardim urbanos até ao simples relvado que não tem dimensão para ser jardim mas também não é bem canteiro. O vazio verde é cada vez menos um espaço estruturante do tecido urbano (como acontecia por exemplo nos modelos de Olmsted ou de Forestier a partir do conceito de sistema de parques) e nem sempre chega a ser um elemento, ainda que tímido, da tão badalada estrutura ecológica. É, antes pelo contrário e cada vez mais, um vazio de cedência obrigatório resultante de uma urbanização feita por privados, no interior das suas quintas, e assente numa lógica de parcelamento fragmentário. O vazio verde é normalmente um espaço disponibilizando ao sector público pelas proporções mínimas exigidas, um suposto espaço de utilidade colectiva como o são também os cedidos para equipamentos e infra-estruturas. Resulta frequentemente da interdição propriamente dita: é que na impossibilidade de preencher com construção, por outras palavras, na inutilidade forçada a que estão sujeitos, mais vale «to take the second best» – antes verde que nada...

3.6. Vazio interior colectivo

A figura do vazio interior colectivo é a reinterpretação pós-moderna do espaço público colectivo e é a tradução mais directa do declínio do conceito de espaço colectivo de domínio público. Altera-se o estatuto de propriedade que de público passa a privado ou a situações mistas por protocolos de parceria; um domínio público expropriado pela força do capitalismo e pelo impulso da privatização, agora paradoxalmente extensível ao espaço colectivo público. Reinterpreta-se de modo extremado o sentido do conforto e da protecção. São espaços onde já não chove, onde já não faz vento, nem frio nem calor, de temperatura amena e controlada, e hipoteticamente extra-seguros pela vigilância contínua das câmaras de controle. São vazios híbridos que procuram recriar a ambiência exterior sem perder o sentido de resguardo que só um espaço interior pode garantir. Não dispensam a côr do céu e o sol, mas desta vez filtrados pelos extensos envidraçados das coberturas e das fachadas cortina; aproveitam-se da água, do verde, das palmeiras mas agora altamente ccntrolados, entubada, tratados, filtrados; no conjunto um alusivo quadro a simular no interior o exterior. Os novos vazios colectivos interiores são os espaços de contacto da contemporaneidade, agora intrumentalizados e circunscritos a um interior. (CHOAY, 1969:115) Como refere Gilles Deleuze eles representem «a autonomia do interior, são um interior sem exterior». (cit.MANGIN, 2004) 3.7. O fragmento ou o simulacro do vazio tradicional

O fragmento e o simulacro do vazio são a réstia sobrante do vazio herdado. Alguns permanecem ainda inteiros e intactos na sua razão de ser, em forma e em desígnio, eventualmente “perturbados” ou antes revitalizados pelas vivências e pela força dos hábitos mentais actuais.

Fig. 8 – Centro Comercial Colombo

Outros, foram já maquilhados pela vontade pós-moderna de salvaguadar, valorizar e adular tudo quanto seja histórico, antigo ou popular. É que se o urbanismo moderno representa a obsolescência da cidade tradicional e uma ruptura abrupta com o passado, o urbanismo pós-moderno não representa menos a sua adulação extrema, pela cópia aproximada, pela reposição ou simulação de uma imagem, do sentido pitoresco, a recomposição de uma ideia do que já não é nem pode ser o lugar tradicional. De certa forma, o sentimento de agonia face à cidade produzida pelos desígnios modernos, com todas as suas preversões e excessos, veio honrar e adular a cidade tradicional na mesma medida em que o Movimento Moderno a rejeitou. Esta apetência pelo passado explica a persistência fragmentada ou simulada na cidade-território dos vazios urbanos no sentido ainda tradicional do termo. Mas, mais do que um sentido de salvaguarda ou reabilitação, a condição suburbana do vazio tem retratado a distorção, por pastiche, por sobrecarga de clichés, dos lugares históricos e das referências culturais tradicionais. Citando Choay «(...) d’autres cherchent à donner à l’espace urbain une lisibilité qu’il a perdue, en lui rendant des limites, des repères, des différences, des textures, sans prendre conscience que ces notions concernaient le cadre pré-industriel, son rôle formateur et intégrateur, mais que pour l’espace contemporain elles ont une signification esthétique plus qu’opératoire. (...) tentatives bien-intentionnées, mais que trahissent en fait la force des habitudes mentales et l’impossibilité de rompre avec les concepts de ville et d’espace urbain, au moment précis où nous assistons pourtant à la naissace d’un nouvel espace.» (1969:105) 4. DOS ESPAÇAMENTOS ILEGÍTIMOS Feita a passagem pelas várias manifestações do vazio na contemporaneidade resta sintetizar o argumento desta comunicação que intitula essas mesmas manifestações de espaçamentos ilegítimos no contexto da cidade aberta. Em primeiro lugar, e seguindo a terminologia de Françoise Choay, fala-se de espaçamentos e não de vazios. No contexto do urbano o termo vazio está normalmente associado à ideia de um cheio, em que as densidades construídas materializadas sob a forma de estruturas e edificações confinam directamente com as ausências de construído conformadas ou emolduradas por essa mesma construção, numa correlação de dependência que sempre determinara até aqui o raciocínio morfológico e a própria interpretação semântica e semiológica dos lugares. Mas a condição suburbana do vazio e as manifestações que este adquire na contemporaneidade impõem outra lógica e um outro desígnio para os espaços de ausência. É por isso que passaram a chamar-lhes espaços-entre, in-between ou entre soi. Decorrentes de uma lógica de sectorização morfológica e funcional do território, os vazios urbanos

Fig. 9 – Pontinha

contemporâneos concretizam-se como interstícios, ou seja, como intervalos de espaço onde nada acontece mas onde, simultaneamente, tudo pode acontecer, e como hiatos no tempo fenomenológico dos lugares. Os vazios contemporâneos são – para usar a expressão de Deleuze – qualquer coisa alíquida que, de um ponto de vista morfológico, não chegam sequer a ter a capacidade de adquirir a forma que o recipiente contentor lhe dá. São viscosidades imateriais. São infiltrações por ausência, amórficas, invasoras e intrusivas, por vezes até predadoras. De um ponto de vista semântico e normativo, eles não se encontram suportados por uma tessitura de valores e de significações estabelecida e confirmada num encontro de subjectividades. São, por isso, espaçamentos ilegítimos, acontecimentos por antecipação, na ausência de referenciais canónicos que lhe sustentem a existência e lhe confirmem a significação.

Efectivamente, ilegítimo vem de lei, e o que não podemos dizer é que estas manifestações

contemporâneas do vazio sejam manifestações ilegais. Se, nalguns destes territórios vêm a posteriori a ocorrer acções e processos clandestinos, isso é outra questão que deriva em parte da imagem de precaridade e do próprio estatuto parasitário de abandono que inevitavelmente muitos deles adquiriram. Mas, na verdade, os espaçamentos contemporâneos são, na grande maioria dos casos, a consequência directa, senão explícita, da aplicação das imposições regulamentares, da acumulação de normas, índices e rácios que, «na opacidade das relações abstractas» e no somatório de uma série de constrangimentos pela negativa, resultam na dispersão “casuística” de numerosos espaçamentos non-aedificandi ou, como os intitula David Mangin, numa série de «laissé-pour-compte».

Numa época em que a questão do consumo do solo e da densidade construída estão na

ordem do dia, motivados por uma perspectiva ecológica em prol da tão badalada sustentabilidade, falamos aqui dos espaços não consumidos, ou melhor, dos territórios consumidos pelo inverso, pela dispersão e espaçamento da edificação, confirmando a manifestação ou protagonismo da ausência por contraposição à ocupação positiva através da construção. Uma vez mais, nesta preocupação abstracta de tudo medir e tudo converter em índices e indicadores (FSI floor space index; GSI ground space index; OSR open space ratio; etc. (PONT & HAUPT, 2007:63), se esquece que os índices pouco dizem acerca das qualidades da forma, mais precisamente, neste caso, acerca da forma dos vazios que, ou restam, ou se asseguram e se assumem entre-edificações, entre-infra-estruturas, entre-polígonos, entre-sectores. As densidades em rácio ou as outras regras tecnocráticas, seja sobre afastamentos ou sobre relações de proporção, não conformam nem informam os vazios urbanos; não lhes determinam o número nem o tamanho e, muito menos, a significação.

«Des règles sont bien sûr nécessaires. [diz David Mangin] Mais le trop-plein de règles

induit le trop-plein de vides» (MANGIN, 2004: 102). Entretanto, face a este excesso ou superabundância de rácios e regras, a juntar às três

figuras de excesso já identificadas por Augé na antropologia da sobremodernidade - «superabundância de acontecimentos, superabundância espacial e individualização das referências» (1992:45) – e sendo esta sobrelegalização da forma urbana a responsável pela emergência e multiplicação de novos espaçamentos, resta justificar porque é que se lhes atribui uma condição de ilicitude ou de ilegitimidade.

Em primeiro lugar é preciso dizer que, antes de ser convertido em norma de direito tornada

obrigatória pela força coercisa do Estado, o conceito de lei trata de uma relação constante e necessária entre fenómenos. Ou seja, lei é um princípio, uma estrutura de relação, uma convenção comummente aceite e que, no âmbito de uma teoria normativa da cidade, pode ser entendida como a tessitura de sentido que trata da relação entre valores colectivos e a forma das cidades que

cada colectividade produz (LYNCH, 1981). Legítimo (legitimus do lat.) é o que está conforme a lei, i.e., o que segue a convenção e com ela está de acordo, o que se encaixa, completando, na rede de significações dos lugares. É nesta perspectiva que os novos espaçamentos surgem como referências ilegítimas no contexto do modelo normativo que aceitamos como matriz canónica da boa forma da cidade.

Nem a cidade herdada, nem a cidade progressista contemplam um sentido intermitente de

vazio. Nem o modelo cósmico, nem o modelo máquina, sequer o modelo orgânico integram uma concepção do espaço vago como a que assistimos nas diversas manifestações do vazio na contemporaneidade. Seja em termos morfológicos, seja semiológicos, os novos espaçamentos rompem com a lógica, com a estrutura e com o esquema de representação urbanos tradicionais, invertendo o sistema de regras e hierarquias estabelecido. Vistos à luz do modelo tradicional, eles assumem-se por ruptura, por inversão, mas se entendidos à luz do modelo corbusiano, é mais um sentido de deformação que está em causa, por anamorfose e redução significante. Os novos espaçamentos são os filhos bastardos de um Movimento Moderno que não prevê nem acolhe o sentido anamórfico, niilista e residual do vazio contemporâneo.

5. UM DESÍGNIO: POR UMA NOVA CONDIÇÃO DE VAZIO NA CONTEMPORANEIDADE

Apelar a uma nova condição de vazio na contemporaneidade passa necessariamente pela

redefinição de referenciais normativos, pela restruturação de uma lógica de sentido que consinta o estabelecimento de uma estrutura de legitimidade para os vazios no contexto fragmentário, sectorizado e descontínuo da cidade contemporânea. Passa, eventualmente, por atingir a potencialidade da inversão já anunciada por Le Corbusier, segundo as normas contemporâneas, sem contrariar a força dos hábitos mentais actuais. Efectivamente a cidade moderna não chegou a

Fig.10 – Amadora - Brandoa

ser construída; ela regista-se na história da cultura arquitectónica ora como modelo, ora como aborto - a experiência falhada nunca acometida. E isso significa que é preciso sair de algumas das figuras de cidade e da urbanística tradicional que, verdadeiramente, nunca abandonámos em termos normativos, em particular a figura de continuidade do espaço edificado e a da ideia de uma forma encerrada na dependência de correlação com dispositivos abertos, para encontrarmos e definirmos o território conceptual onde poderemos edificar uma nova teoria normativa de cidade.

Segundo F. Choay «(...) le modèle de Le Corbusier (...): trop utopique pour avoir pu être

réalisé en son temps, pas assez radical pour que l’accélération de l’histoire lui permette de valoir encore aujourd’hui» (CHOAY, 1969:105)

É neste enquandramento que se pretende debater o desígnio por uma outra condição de

vazio a partir da definição de três temas chave: - Vazio: da presença figurativa ao protagonismo abstracto; - Vazio: de espaço de contacto e continuidade a espaço de conexão e a espaço de

articulação (Choay, 1969/2003) - Vazio: do sentido lógico à Lógica do Sentido (Deleuze, 1969)

4.1. Vazio: da presença figurativa ao protagonismo abstracto

Em primeiro lugar, o restabelecimento de uma nova condição de vazio passa pelo

reconhecimento do estatuto e do protagonismo que cabe agora aos novos espaçamentos na e da cidade aberta. O papel do vazio urbano na cidade alterou-se; e esta é a primeira consciencialização a fazer.

O novo protagonismo do vazio não pode passar despercebido de tal forma que, no contexto

da metápole, são os espaços desocupados que passam a determinantes no processo de metropolização do território1. (ASCHER,1995) São os espaços vagos, consoante o seu valor intrínseco, que conduzem e determinam a transformação, uso e ocupação do solo. Sofia Morgado, na sua tese de doutoramento o protagonismo da ausência, fala precisamente desta abordagem, ou seja, de uma metrópole que já não deve ser entendida exclusivamente a partir da forma da sua urbanização – da leitura das suas formas de ocupação - mas também a partir dos espaços de ausência, a partir do entendimento das formas do desocupado. «El espacio desocupado y sus formas son lo que confiere valor y distinción a los hechos metropololitanos» (MORGADO, 2005:1-17)

O protagonismo de que se fala é contudo um protagonismo muito diferente daquele que

sempre pertenceu, por vocação e por direito, ao vazio urbano tradicional. Enquanto na cidade herdada o espaço vazio prima por uma presença figurativa, afirmando-se fenomenologicamente pela legibilidade dos lugares (um protagonismo fenomenológico, portanto) – e a legibilidade dos lugares coincide com a legibilidade dos vazios públicos e colectivos, das ruas, das praças, das alamedas e outros espaços-de-estar urbanos, com a sua imagibilidade – na metrópole

1 Segundo François Ascher «uma metápole é um conjunto de espaços em que a totalidade ou parte dos habitantes, das actividades económicas, ou dos territórios, está integrada no funcionamento quotidiano (ordinário) de uma metrópole. Uma metápole constitui geralmente uma única bacia de emprego, de residência e de actividades, e os espaço que a compõe são profundamente heterogéneos e não necessariamente contíguos. (:..)» (1995:16) «(...) ao desenvolvimento das metrópoles junta-se, agora, um fenómeno um distinto: a “metropolização”, isto é, não somente o crescimento e a multiplicação das grandes aglomerações, mas também a progressiva concentração das populações, das actividades e das riquezas no seu interior.» (1995: 4)

contemporânea os espaços de ausência adquirem, pelo contrário, um protagonismo abstracto que já não assenta no referencial perceptivo do espaço de vivência, mas numa lógica abstracta, calculista e instrumental da economia de mercado, agora à escala global. Com a metropolização, o valor do espaço desocupado é muito mais do que um valor natural e ambiental, ou do que um valor sensível, um valor patrimonial ou de significação; é também e essencialmente um valor económico, um valor de troca e de uso, com base nos quais se constrói o protagonismo da ausência na contemporaneidade.

É este estatuto e este novo protagonismo abstracto que implicam que se considere a

legibilidade dos territórios e vazios contemporâneos em concomitância e conformidade com a sua inteligibilidade. Segundo Thomas Sieverts «(...) intensive efforts to improve the legibility and the intelligibility of the Zwischenstadt seem to be more than merely a nice cultural addition. Indeed, legibility and intelligibility are two of the most important condition for the difficult task of regenerating an identity of society and space for everyday life in the Zwischenstadt (1999: 61)

Se, na cidade herdada, a legibilidade dos espaços é o garante do seu valor estrutural, num

contexto de abstracção, de impermanência e aliquidade, a legibilidade dos vazios já não pode, por si só, ser fundadora. Ela deve ser revista em função ou em relação directa com a sua inteligibilidade.

Estes dois conceitos referem, na verdade, dois níveis na experiência do objecto estético implicando estádios de envolvimento entre sujeito e objecto diferentes e, por isso, não só perfeitamente conjugáveis como aliás inevitavelmente convergentes. A noção de legibilidade dirige-se para o acto perceptivo propriamente dito de onde se depreende a dupla capacidade, por parte do sujeito e do objecto/espaço respectivamente, de receber e produzir a imagem mental correspondente, e de evidenciar a suficiente clareza para se afirmar e estruturar mentalmente no sujeito. Já a noção de inteligibilidade refere a razão inteligível das coisas e dos espaços, ou seja, as qualidades que só podem ser reconhecíveis através do exercício da inteligência, num acto de redução qualitativa ao nível da abstracção, remetendo-nos para aspectos que não dependem tanto da experiência directa mas mais de aspectos relativos ao funcionamento do sistema, a regras e a conceitos, normalmente abstractos, para serem processados pela inteligência.

É no conceito de inteligibilidade que se acredita estar o desafio para compreender os

territórios e os vazios urbanos contemporâneos, e para revitalizar, no quadro fenomenológico, a legibilidade dos lugares.

4.2. Vazio: de espaço de contacto e continuidade a espaço de conexão e a espaço de articulação

Trinta anos depois da primeira edição de Espacements. L’évolution de l’espace urbain en France, F. Choay reedita a obra que nos oferece «une histoire structurale et discontinue des formes urbaines ou plutôt des figures d’espace emblématiques» (CHOAY, 1969-2003:7) E é precisamente esta passagem que nos ressalva outro aspecto fundamental a considerar num desígnio pelo vazio contemporâneo: o apelo a um novo espaço, agora um espaço de articulação. A viagem por que Choay nos orienta introduz-nos a história da cidade e do urbano a partir da experência do vazio em cada momento da história. Desde o espaço de contacto medieval ao espaço de conexão contemporâneo, Choay relata-nos os sentidos e as características do vazio e a forma como ele se foi alterando e moldando às necessidades e às aspirações colectivas:

a) em primeiro vêm o fechamento e a diferenciação que exprimem e configuram o espaço de contacto medieval. O vazio é por si acontecimento e acolhe os eventos públicos, os encontros,

as festas, os mercados, os mexericos; enforma ao mesmo tempo que informa: «En bref, la ville du Moyen-Age offre un espace de contact, qui à la fois informe (et forme) immédiatement par lui-même et fait médiatement, en tant qu’instrument, coïncider les voies de la circulation et de l’information.» (42)

b) Depois vem o espaço de espectáculo da época clássica e barroca, pela primeira vez dilatado face à proximidade e imediatismo medievais; e, por demais embelezado, convertido em cenário teatral, um espaço programado, desenhado, racionalizado e universalizado pela força iluminada da razão. «Néanmoins, du fait de son changement d’échelle et sutout parce qu’il est maintenant “composé” pour l’oeil – non plus destiné au corps et à l’ensemble des sens, mais consacré à l’hégémonie du regard – et qu’il prend valeur d’image, il perd son ancienne intimité et ne peut plus être vécu dans l’imédiatité» (72) .

c) Segue-se o espaço moderno de circulação, uma nova ordem urbana tecida pela vontade expressa de circular, de abrir e ligar, ainda que isso implique o aligeiramento da componente informativa e da semântica dos lugares. «(...)l’importance respective de la circulation et de l’information est strictement inversée, par rapport au Moyen-Age. La circulation deviant le sens premier de l’espace urbain que, au contraire perd sa charge sémantique et sa vocation informative (…)» (88)

d) A velocidade e as comunicações inauguram na nossa época o espaço de conexão, o território dos fluxos, na transferência de bens, pessoas e informações. «Ce grand concept opératoire du XIXe siècle acquiert une dimension nouvelle en devenant connexion, c’est-`-dire regroupement selon une logique don’t on pourrait dire, par métaphore, qu’elle passé de la linéarité à la topologie.» (110)

Conquistada a conexão, a capacidade quase instantânea de fluir, viajar, trocar bens e informações na topologia dos sistemas de comunicação, falta conquistar a articulação, a capacidade para: - articular velocidades - do telemático ao rodoviário, do rodoviário ao pedonal; - para articular escalas – da região à cidade, da cidade ao bairro, do bairro ao espaço de contacto e à habitação; – para articular elementos – do beco e da rua à autoestrada, do monumento à unidade de habitação, do conjunto habitacional à mega-estrutura comercial e de serviços; - para articular funções e sectores – do residencial ao comercial e ao industrial, do monofuncional à mistura de usos e funções; – enfim, para articular domínios e graus de abstracção - do abstracto ao concreto, do intelígivel ao sensível, do racional à perceptivo.

Efectivamente o estigma que marca a condição suburbana do vazio advém em muito do espaço de conexão ser também um espaço de descontinuidade e de ruptura, ou seja, capaz de estruturar a rede e conectar o sistema, mas incapaz de articular diferentes momentos, diferentes layers ou domínios. O estigma ou a lacuna não está na conexão em si (que, aliás, tem sido considerada e desenvolvida como uma mais-valia), mas na incapacidade opertiva de articulação.

O desígio por uma nova condição de vazio contempla uma quinta categoria de espaço, o espaço de articulação, o espaço das rótulas, das transições de escala, da flexibilização das conexões, das comutações intra e inter-sistemas, dos enlaces intermodais e intercircunstanciais. Será outro dos desafios contemporâneos. 4.3. Vazio: do sentido lógico à Lógica do Sentido

Do ponto de vista semiótico e da semântica dos lugares, o desafio passa por conseguir

romper com aquele que ainda se crê ser o sentido lógico das coisas e do mundo e partir, nas teias da Lógica do Sentido (DELEUZE, 1969), para uma nova lógica de sentido a marcar a contemporaneidade. Será talvez o desafio mais difícil, o mais moroso, o mais resistente, porque mexe com as normas e com a estrutura mental da colectividade.

Começámos, por isso, e tal como Gilles Deleuze aconselha, pela apresentação de um

paradoxo: os espaçamentos ilegítimos. Segundo Deleuze «le paradoxe est d’abord ce qui détruit le bon sens comme sens unique, mais ensuite ce qui détruit le sens commun comme assignation d’identités fixes.» (1969: 12). E é, por isso, o melhor estratagema para restruturar uma lógica de sentido que, e faça-se o parêntesis, interferirá na lógica do sentir e do pensar.

O próprio Deleuze constrói a sua teoria do sentido através da apresentação de uma

constelação de paradoxos a que ele atribui a capacidade de (re)formular a lógica do sentido. A referência à obra de Lewis Carol explicita bem este jogo do sentido e do não-sentido através do paradoxo, ou da quebra de referenciais normativos que se identificam com as verdades estabilizadas, confirmadas num encontro de subjectividades. Carol, nas suas histórias infantis desmonta a estrutura de significação através da ruptura operada com as mais naturais leis ou corriqueiras verdades. Da inversão da lei da gravidade à animação dos mais estranhos personagens, Carol joga com os efeitos, com os estados das coisas, com os imponderáveis, cria nomes e personagens esotéricos, mexe com situações impassíveis, articula o sonho e a realidade.

Já não falamos da dualidade platoniana descrita no mito da caverna entre sensível e

inteligível, entre o mundo das ideias e o mundo das coisas. Como escreve Deleuze referimo-nos a «une dualité plus profonde, plus secrète, enfouie dans les corps sensibles et matériels eux-mêmes», referimo-nos à rede de sentido, a uma terceira ordem, a do simbólico, que não se confunde nem se sobrepõe às outras duas, a do real e a do imaginário. A estrutura de sentido é a pauta que se estabelece entre elas, tão profunda quanto superficial, tão delgada quanto espessa, quase-carnal. É neste território intermédio da significação que também é preciso trabalhar a condição do vazio na contemporaneidade.

5. CONCLUSÃO Da ilegitimidade paradoxal à utilidade em potencial

Sem proferir conclusões, mas em jeito de concluir, apela-se a uma caminhada onde não se

pretende negar nem ignorar os valores ou a estrutura de mentalidades contemporâneas, mas sim redefinir referenciais normativos e restruturar uma nova lógica morfológica e de sentido para o espaço urbano contemporâneo.

Nesse restabelecimento contam: - o novo protagonismo abstracto dos vazios contemporâneos que impõe um valor

estruturante fundado duplamente na legibilidade dos tecidos e na sua inteligibilidade; - a capacidade de juntar a um espaço de conexão as mais-valias de um espaço de

articulação; - e a necessidade de rever a estrutura de significação que liga o legível ao intelegível, e

recria a tessitura de sentido útil, renovando assim a condição do vazio na contemporaneidade.

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CHAFARIZES DE LISBOA – MONUMENTO E FUNÇÃO PRÁTICA A IMPORTÂNCIA DAS FUNÇÕES DOS EQUIPAMENTOS E MOBILIÁRIO

URBANO PARA A SUSTENTABILIDADE DO ESPAÇO PÚBLICO

Cristóvão Valente Pereira e-mail: [email protected] Doutoramento Espaço Público e Regeneração Urbana da Universidade de Barcelona

Assistente da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal

Tel. +351 213 252 100, Fax. +351 213 470 689

Introdução É evidente o importante papel que a água desempenha como modelador da cidade. Não só as grandes superfícies de água como os rios e o mar configuram os seus limites, obrigando-a a contorná-los, como mesmo os cursos mais pequenos definem o desenho das suas ruas às quais vêm a ceder o lugar. Mas mesmo os pontos de acesso à água potável desempenham este papel: pela importância crucial que têm, a eles são reservados espaços que lhes confiram boa visibilidade e fácil acesso, um vazio com dimensões reservadas para poucos mais equipamentos da cidade. E o desempenho desta função vital que se atribui às fontes e chafarizes constata-se por serem uma importante referência na imagem e identidade de uma cidade. Mas a água teve um papel particularmente importante na História de Lisboa. Não só porque o rio Tejo teve papel fundamental na sua génese e crescimento, mas também porque este bem essencial modelou em grande escala a sua evolução, principalmente pela escassez que muitas vezes se fez sentir. Com efeito, a cidade dispunha, até dada altura, de recursos locais de água potável, mas em diversas ocasiões estes se demonstraram escassos, obrigando a medidas de grande envergadura. Grande parte dos seus chafarizes, ao desempenharem uma função vital para a cidade, constituem uma obra que exigiu grande esforço e recursos, pelo que eram também celebração e memória deste feito. Por consequência, ainda que a sua função de abastecimento já se tenha tornado obsoleta, estes equipamentos vêm a converter-se em monumentos, continuando hoje a ser importantes elementos da imagem da cidade. Contudo, no sentido oposto a esta monumentalização, verifica-se também o empobrecimento do espaço público, ou pelo menos, da diversidade das suas utilizações, pelo esvaziamento de muitas das suas funções ou utilizações práticas, transferidos em grande parte para os espaços privados. Através desta abordagem à evolução do abastecimento de água a Lisboa e dos seus equipamentos, pretende-se também contribuir para uma reflexão sobre a importância dos diversos elementos que constituem o espaço público e principalmente sobre a sua utilização com fins práticos enquanto agente para a sua dinamização e, por consequência, estima e valorização.

1- Vista do Rossio antes do terramoto, desenho à pena de Zuzarte. Ao fundo, em cima,

o convento da Graça e o Castelo de S. Jorge; em baixo, a Igreja de S. Domingos e o Hospital de Todos-os-Santos. E, à esquerda, em baixo, o chafariz de Neptuno (Moita (coord.) 1994)

O abastecimento de água em Lisboa A importância da água para o Homem é uma evidência que não necessita de demonstração. A sua necessidade verifica-se desde logo no modo como a cidade surge e cresce ao longo da História. A maioria das primeiras cidades terá surgido perto de rios, para que fosse possível o fornecimento de água para beber e para a irrigação dos campos de cultivo e do gado. A água é de facto um bem vital para a cidade: para além do seu consumo, é utilizada também para a sua defesa, para o seu saneamento, e para diversas manufacturas, tanto pela sua força motriz, como constituinte de distintas produções e fabricos desde os tempos mais remotos. A rede hidrográfica de uma cidade é pois um bem que obriga a uma cuidada gestão [Guillerme, 1983] pelo que, também por esta razão, a água vai moldar o crescimento e evolução da cidade. Assim teremos, naturalmente, desde Vitrúvio [Vitrúvio, 2006], o tema da água cuidadosamente abordado em vários tratados de arquitectura e urbanismo. A organização do aglomerado vai também, por sua vez, ser condicionada pela própria acessibilidade à água, pelo seu escoamento e distribuição. Os pontos de acesso à água, como as nascentes ou os poços, sendo pontos fundamentais da cidade, geram praças e largos, espaços não edificados que estão entre os de maiores dimensões dentro da cidade, necessários para facilitar o seu acesso e possibilitarem a permanência dos grupos de utilizadores. São espaços e equipamentos cuja importância será confirmada pela monumentalização a que tanto o equipamento em si como toda a praça frequentemente são sujeitos, preservando e garantindo o seu protagonismo da cidade. É a importância atribuída aos pontos de acesso à água que faz surgir os denominados chafarizes. A sua génese é o abastecimento de água à cidade, disponibilizando-a no seu espaço público, mas a sua componente ornamental é também uma importante função. Trata-se, com efeito, de equipamentos com presença marcante no seu local de inserção.

Do princípio à Idade Média

2- Vista do Terreiro do Paço, óleo sobre tela, Dirk Stoop, séc XVII. Ao centro, o Paço

da Ribeira e o chafariz de Apolo; No cimo da colina, o Convento de S. Francisco. (Moita (coord.) 1994)

Lisboa, situada desde a sua fundação no alto da colina do Castelo de S. Jorge e aí se mantendo predominantemente até à Idade Média, abastecer-se-ia em grande parte da água que extraía de poços ou de cisternas que recolhessem a água da chuva. No sopé da colina estão as nascentes que originarão a maior parte dos chafarizes mais antigos da cidade. Entre estes, aquele que veio a ser o Chafariz de El-Rei e o que veio a ser o Chafariz de Dentro eram os de maior caudal. É na direcção destas nascentes que a expansão da cidade romana se dirige, ocupando a colina na sua encosta em direcção ao rio. Os principais motivos terão sido a ocupação da encosta mais ensolarada, bem como a aproximação do porto, mas facto inegável é também a aproximação a estas fontes naturais de água, elemento de extrema importância para a civilização romana. Para além disso, vários autores confirmam que um aqueduto terá ainda sido construído nesta altura, uma obra de envergadura considerável já que trazia água de uma represa, construída para o efeito, em Belas, ideia que viria a ser inspiradora em iniciativas futuras. A queda da cidade romana de Olisipo Felicitas Julia terá levado à desactivação deste aqueduto, tanto porque a população diminuiu como também porque os hábitos de higiene mudam. Como exemplo, o desasseio virá mesmo a tornar-se signo de santidade [Guillerme, 1983]. O menor uso da água de então deixa de justificar a manutenção do seu funcionamento. Lisboa moura não dispõe de recursos de água suficientes dentro das suas muralhas para períodos prolongados. E assim, apesar ter 14 ou 15 mil habitantes [Moita, 1990], quando é cercada pelos cristãos em 1147, a principal causa da sua rendição terá sido o esgotamento das reservas de água. Até ao séc. XIV as principais nascentes ainda se encontravam fora de portas. Por isso, aquando do cerco dos castelhanos, a principal causa de capitulação da cidade ao inimigo

atacante em 1373 terá sido, mais uma vez, o esgotamento deste recurso [Moita, 1990]. Possivelmente por esta razão, a muralha de Lisboa construída por ordem de D. Fernando, concluída logo de seguida em 1375, passará a incluir dentro dos seus limites os ainda importantes mananciais do Chafariz de São João dos Canos, também designado chafariz de El-Rei desde as obras aí efectuadas por D. Dinis, bem como o Chafariz dos Cavalos, que mais tarde se passará também a denominar de Dentro.

3- “Lembraça da fonte para as Naos na Ribeira” e “Lembraça da fonte da Água Livre

trazida ao Resio”: as duas propostas de Francisco da Holanda de 1571. Na segunda, podemos ver também a ilustração “Da fonte e Lago da Agoa Livre”, a represa feita à imagem do que o autor imaginou os terem feito romanos. (Holanda, 1984)

Por ocasião dos Descobrimentos, a cidade estará prestes a atravessar uma época de grande crescimento. Consequentemente, mais carências de água surgirão, logo a partir da dinastia de Avis em 1385. Junto com o crescimento da população, as novas exigências de abastecimento das embarcações e os hábitos de higiene surgidos no Renascimento irão acentuar, mais uma vez, a crónica falta de água potável em Lisboa, a qual levará quatro séculos para ser devidamente resolvida.

Nas cidades europeias, manteve-se de um modo geral, a importância dos chafarizes e fontes, sendo estes dotados de uma construção com uma mínima presença no seu espaço colectivo. Mas será sobretudo a partir do fim da Idade Média ou do despontar do Renascimento que se testemunharão mais equipamentos destes dotados de uma estrutura mais imponente. De facto, terá sido sobretudo a partir da Europa renascentista que muitas fontes vão além da utilidade de disponibilizar água, ganhando uma forma e decoração escultóricas ou arquitectónicas concebidas para impressionar, o que reforça o objectivo de lhe atribuir importância enquanto monumentos civis [Symmes, Conneli, in Symmes (ed.), 1998].

4- “Lembraça da fonte para as Naos na Ribeira” e “Lembraça da fonte da Água Livre

trazida ao Resio”: as duas propostas de Francisco da Holanda de 1571. Na segunda, podemos ver também a ilustração “Da fonte e Lago da Agoa Livre”, a represa feita à imagem do que o autor imaginou os terem feito romanos. (Holanda, 1984)

A expansão de Lisboa e as novas necessidades

5- Planta de Lisboa, de 1650, segundo João Nunes Tinoco. Além das principais praças

e edifícios, como o Hospital de Todos-os-Santos e as igrejas, na margem ao lado direito vemos assinalados o Chafariz de El-Rei, o Chafariz de Dentro e, mais junto ao rio, o Chafariz Novo, mais tarde chamado chafariz da Praia (Gabinete de Estudos Olissiponenses)

Voltando à cidade de Lisboa, do séc. XV ao séc. XVIII encontram-se relatos sobre a cidade onde são descritos e analisados os seus recursos e equipamentos de água, dando especial ênfase aos chafarizes. Apesar de haver diferenças nestes relatos sobre a qualidade do abastecimento, os historiadores estão basicamente de acordo quanto à falta de água potável que de um modo geral grassava em Lisboa. Como principais chafarizes continuamos a ter o de El Rei – protagonista até que os chafarizes deixem de ter importância para o abastecimento de água à cidade – e o chafariz de Dentro ou dos Cavalos, sendo por vezes referidos outros recursos secundários, como poços ou chafarizes privados. A confirmar esta deficiência testemunham as diversas obras que se vão verificando: D. João II aumenta o número de bicas no chafariz de El-Rei em 1487, tal como para o chafariz dos Cavalos em 1494. Aliás, serão estas últimas obras que originarão também os chafarizes da Praia, ou Novo, conforme assinala ainda João Nunes Tinoco na sua planta de Lisboa de 1650, e o dos Paus ou das Aguadas. [Moita, 1990] Entre outras obras que efectua para melhorar o abastecimento de água potável, D. Manuel tenta introduzir água na cidade através de um aqueduto, pela primeira vez desde a ocupação romana, desde o chafariz do Andaluz até ao Rossio, intenção irá estabelecer aquilo que será o grande objectivo para o abastecimento de água nas próximas décadas: a captação de água de fora da cidade. Poucos são os chafarizes de Lisboa anteriores ao séc. XVIII que chegaram aos dias de hoje. Poderemos organizá-los do seguinte modo:

- Chafarizes de maiores dimensões, de configuração monumental, como é o caso

do Chafariz de El-Rei ou o já desaparecido chafariz de Apolo do Terreiro do Paço

- Chafarizes mais pequenos e bicas, de cariz sobretudo prática, como é o caso da Fonte Santa, ou o já desaparecido chafariz dos Paus

No que se refere ao contexto europeu, durante o séc. XVI, Roma terá tido um protagonismo no que se refere ao abastecimento de água das cidades. Vai testemunhar a reactivação de alguns dos seus antigos aquedutos, os quais vão originar o surgimento de imponentes fontes. As quantidades de água são tão abundantes que, provavelmente até à segunda metade do séc. XVII, esta cidade era um caso particular no que respeita à utilização da própria plasticidade da água no ornamento do equipamento.

A obra das Águas Livres

6- O chafariz das Janelas Verdes, encimado por “Vénus e Cupido”, por António

Machado, de 1783; tratava-se de um equipamento que afinal era também bebedouro de animais…(foto do autor, 2006)

No séc. XVI, a zona ocidental da cidade, e sobretudo a mais alta, onde se inclui o Bairro Alto, era quer a mais recente, quer a mais carenciada de água, tornando ainda mais urgente a resolução do problema de falta de água em Lisboa. Numa análise que faz à cidade e às suas carências de água, Francisco da Holanda [1984] propõe uma medida inspirada no que haviam feito os romanos, de restituir à cidade, através de um aqueduto, as águas da zona a noroeste da Amadora, perto de Belas, que talvez por serem tão abundantes – e pretendidas – já nessa altura se designavam de Águas Livres. Este autor desenha dois imponentes chafarizes, um para o Rossio e outro para a Ribeira das Naus, para abastecer as naus. Mas o projecto de trazer a Água Livre de Belas a Lisboa acaba por não se concretizar ou sequer iniciar durante este reinado. Seja pela sucessão de uma série de eventos, tais como a morte prematura D. Sebastião ou a perca da independência em 1580, seja pela hesitação face à grandeza da obra – o

aqueduto mediria cerca de 12 km – ou pelas duas, sucedem-se os reinados que deixam escapar a concretização desta ideia. Da dinastia Filipina apenas assinalamos a construção do Chafariz do Rossio ou do Neptuno, concluído em 1606 e do chafariz de Apolo, de 1655. O primeiro, que segue a ideia iniciada com o reinado de D. Manuel de utilizar água de um aqueduto, apresentava características monumentais, mas vai no entanto durar pouco, uma vez que, ainda que resista ao terramoto, não vai resistir à reconstrução do Rossio, vindo assim a ser demolido menos de 180 anos depois, em 1785. O monumental chafariz de Apolo, no Terreiro do Paço, também terá curtíssima duração, já que ruirá apenas um século depois com o terramoto.

7- O projecto para o imponente chafariz do Campo de Santana, do qual apenas se

concretizaram as duas estátuas, hoje na Av. da Liberdade em fontes ornamentais (Moita, 1990)

Mas o problema da escassez de água mantinha-se e era cada vez maior, especialmente para a zona do Bairro Alto; frequentes são as brigas nos chafarizes, o desespero abre caminho a alguns golpes de supostos entendidos com técnicas impossíveis para trazer água a Lisboa. Apesar das frequentes indecisões e desilusões já relatadas, a ideia de

trazer as Águas Livres a Lisboa manteve adeptos, e assim houve nova proposta em 1728, O rei D. João V estava determinado a conseguir o arranque da obra mas, fosse porque não reunia consenso, fosse pela falta de meios técnicos, ou fosse pela sua envergadura, a obra demora-se, falhando redondamente o prazo inicial de execução de seis anos. Manuel da Maia, engenheiro militar então responsável pela obra, propõe uma alternativa mais modesta e porventura mais segura, passando por Sete Rios e furando a colina de Campolide do que passar o aqueduto pela ribeira de Alcântara. Mas o rei terá insistido nesta solução [Moita, 1990] na qual, adiantamos a possibilidade, a grandiosidade dos arcos do vale de Alcântara ao resultar numa maior visibilidade e melhor monumentalidade, terá tido peso considerável.

8- O Largo do Chiado, ou das Portas de Santa Catarina, até 1855, com o seu chafariz

os aguadeiros (Arquivo Municipal de Lisboa) Carlos Mardel, o director seguinte, pegará na obra essencialmente a partir do conjunto das Amoreiras, onde estava decidida a construção. A rede emissária começa a partir da Mãe de Água no Rato, em finais de 1746, e a obra viria a ser solenemente inaugurada em 1748, acto marcado com o arco triunfal das Amoreiras. Mas, apesar de a partir de 1750 começar a chegar água a Lisboa através do aqueduto, nem as décadas que se se-guiram conseguiram ver concretizados todos os chafarizes que estavam previstos no projecto. A envergadura e complexidade da obra, aliadas à época de grande insta-bilidade que Portugal viria a atravessar em seguida, viriam a prolongar – ou mesmo até impedir, em certas partes – a sua conclusão. Mesmo a Mãe de Água só estará concluída mais de oito décadas depois, em 1834. O grande problema de abastecimento de água à cidade exigiu uma solução à medida, o que demorou quase 3 séculos a surgir depois de determinada a sua necessidade, mas foi uma solução cuja escala do projecto anuncia as grandes obras de urbanismo que iriam surgir em diversas cidades da Europa e do mundo ocidental.

Com efeito, a França, grande paradigma das obras de engenharia civil, é “especialmente após a Revolução de 1789” que efectua grandes obras de “índole civil”, pelo que o seu Estado promove a construção de “infra-estruturas imprescindíveis ao estabelecimento de comunicações mais rápidas e mais facilitadas” [Lisboa, 2002:12]. Em Lisboa, a escassez de água, cuja solução mesmo assim foi tardia, levou à obra das Águas Livres a começar ainda no início do séc. XVIII, cerca de um século antes das obras desta envergadura se tornarem habituais no resto da Europa. A Obra das Águas Livres inclui nos seus equipamentos os seguintes tipos de chafarizes:

- Os chafarizes monumentais, como é o caso do chafariz da Esperança, os casos onde a escultura ocupa maior protagonismo, como no chafariz das Janelas Verdes

- Os chafarizes de menores dimensões, localizados em zonas de menor centralidade, como é o caso do chafariz da praça das Flores

- Os chafarizes “interinos”, construídos para colmatar as necessidades mais urgentes e virem a ser posteriormente substituídos, como acontece com o chafariz de S. Pedro de Alcântara, já desaparecido

Conforme aconteceu com a maior parte das cidades da Europa, até ao séc. XIX o abastecimento de água potável em Lisboa continuou a fazer-se, sobretudo, através dos chafarizes que dispunha. Mas é de realçar que o abastecimento de água em Lisboa contava ainda com outro importante recurso, os aguadeiros, os quais, eram em grande número. Com efeito, Veloso de Andrade [1851] registou 3003 aguadeiros, os quais se abasteciam em 25 chafarizes, 15 bicas e 6 poços da cidade. Tendo a água sido sempre, como constatámos, um bem escasso em Lisboa, obrigando, por exemplo, a tempos de espera consideráveis nas filas dos chafarizes, não é difícil perceber porque a sua distribuição era um serviço tão solicitado.

9- A secção tipo para a Rue de Rivoli, Paris, segundo Alphand. Ao centro, a conduta

de esgoto, onde se encontram as condutas de água. Os novos e materiais e tecnologias permitiram a passagem virtualmente integral das condutas de água no sub-solo, o que também contribuiu para a diminuição da visibilidade dos equipamentos de abastecimento de água das cidades (Alphand, 2003)

Continuam, contudo, a crescer mais as necessidades de Lisboa do que as obras que se julgava trazerem solução definitiva. De facto, só no final do séc. XIX a sede de Lisboa foi de facto saciada, após séculos de secura.

Novos aquedutos e o abastecimento ao domicílio

10- Alguns dos tipos de chafarizes que começaram a surgir em Lisboa após 1880, em

ferro fundido, e os “marcos fontenários”, em pedra, surgidos pouco tempo depois (foto do autor, 2006)

A mentalidade do séc. XIX caracteriza-se pelos ideais de Higiene e Salubridade, entendidas estas como “factor e sinal de progresso” [Lisboa, 2002:151], que então se procuram estabelecer através de grandes projectos de urbanização concretizados sobretudo nas cidades ocidentais, na Europa e na América. Estes projectos visavam, na sua génese, combater os grandes problemas de saúde que começaram a surgir nas grandes cidades industriais, logo a partir do fim do séc. XVIII. Por isso, a segunda metade do séc. XIX vê também proliferar, de um modo geral, a melhoria do abastecimento de água, o qual era ainda neste século insuficiente na maioria destas capitais. Esta melhoria vai reflectir-se, como sucederá em Lisboa, num primeiro momento, na difusão generalizada de implantação de chafarizes, fontes ou

bebedouros nas principais ruas e praças de cada bairro. Esta primeira solução irá depois dando gradualmente lugar a uma segunda, o abastecimento domiciliário, a qual virá virtualmente a servir todos os cidadãos.

11- Alguns dos tipos de chafarizes que começaram a surgir em Lisboa após 1880, em

ferro fundido, e os “marcos fontenários”, em pedra, surgidos pouco tempo depois (foto do autor, 2006)

Como também era habitual nas restantes capitais da Europa, Lisboa tinha grandes problemas de insalubridade. Por esta razão, o projecto de reconstrução pombalino, com ruas amplas e ordenadas, já previa também a construção de uma conveniente rede de esgotos [Custódio, in Vários, 1994], o que, aliada à nova estrutura de abastecimento de água da Água Livre, anteveria as condições que posteriormente se vieram a generalizar na Europa. Mas a cidade continuava a crescer e apesar do fôlego que perdera com a sucessão de eventos que recentemente sofrera, procurava corresponder às aspirações de cidade cosmopolita. Cedo se definiu para Lisboa um conjunto de condições associadas à melhoria da higiene e limpeza da cidade, ainda que no geral estas tenham tardado em se concretizar, tais entre os quais o abastecimento de água ao domicílio [Lisboa, 2002]. Começam então a surgir na cidade, como equipamentos necessários para garantirem o melhor abastecimento de água à cidade, tanto pelo aumento do caudal como pela constância do mesmo, novos reservatórios e as estações elevatórias, edifícios que albergam a maquinaria de bombagem de água, como é o caso do primeiro sistema do Recinto da Praia e Reservatório das Mónicas, conforme proposto por Pezerat. Mas ponto de viragem no abastecimento de água de Lisboa seria em 1880 com a entrada em funcionamento da obra do adutor do Alviela, em conjunto com a Estação Elevatória dos Barbadinhos, cuja construção se tinha iniciado em 1871. O canal com 114,050 km transportava água por gravidade até à estação, que a elevava aos vários reservatórios que entretanto surgiram até 1898: o do Pombal, o do Monte da Penha, o do Arco (das

Amoreiras), o da Verónica, o da Patriarcal, o de S. Jerónimo e o das Amoreiras e o de apoio de Campo de Ourique. Estes reservatórios estavam ligados a uma rede de canais de distribuição, com diâmetro entre 50 e 400 mm, de 186 Km de comp, pelo sistema de gravidade. Catorze mil condutas destinavam-se ao consumo privado e duas mil aos serviços públicos. [Custódio, in Vários, 1994].

12- Mais recentemente, os chafarizes eram necessários no abastecimento de água

apenas nas zonas mais degradadas, onde as casas não tinham água canalizada (Arquivo Municipal de Lisboa)

A sede de Lisboa seria finalmente saciada. E deste modo seria também possível dar, finalmente, uma resposta eficaz aos incêndios, existindo já, em 1880, 2801 “torneiras de passagem” para este efeito [Custódio, in Vários, 1994]. As melhorias sucederam-se durante o séc. XX: em 1940 da entrada em funcionamento do Aqueduto Tejo, cuja ampliação em 1963 permitiu uma capacidade de produção diária de 240 000 m3 de água; em 1987, entra em funcionamento o subsistema de Castelo de Bode, cuja ampliação em 1996 permite uma capacidade de produção de cerca de 500 000 m3, o que totaliza um abastecimento diário por parte da EPAL, de mais de um milhão de m3 de água a 35 concelhos da margem norte do Tejo, num total de quase 7 mil Km2 de área, onde habitam cerca de 3 milhões de pessoas [EPAL, 2006]. O abastecimento domiciliário de água foi um serviço que ao início estava ao alcance de muito poucos, vindo só depois gradualmente a ganhar terreno. Por esta razão, os chafarizes continuaram, durante bastante tempo, a ser um recurso indispensável para muitos. A par dos chafarizes abastecidos pelas Águas Livres, que até 1880 formavam a maioria destes equipamentos em Lisboa, outros surgiram também neste espaço de tempo, utilizando águas provenientes de outras fontes. Mas logo a seguir a este ano, aquando da entrada em funcionamento do aqueduto do Alviela, a Câmara de Lisboa leva a cabo esta tarefa de providenciar água potável, da Companhia das Águas, a todos os bairros de Lisboa. Serão por isso implantados dezenas de chafarizes, com a coluna em ferro fundido, e seguidamente centenas, curiosamente de novo em pedra, já mais considerados como “marcos fontanários”. Os primeiros ainda apresentavam um ou dois

tanques e duas bicas, enquanto que os segundos apenas eram compostos por um fuste, com uma torneira, e uma base em pedra.

13- O chafariz dos Terramotos, o único que encontrámos a funcionar em Lisboa ainda

com água de nascente (foto do autor, 2006) Sistematizando os chafarizes que surgem após a inauguração do aqueduto do Alviela, determinamos:

- Os chafarizes em ferro fundido, de localização central. São semelhantes em tudo, havendo a opção de um segundo tanque para os animais beberem, como é o caso do chafariz da Cç. dos Barbadinhos ou o chafariz do Lg. de Palma

- Os chafarizes adossados em pedra, com a inscrição “CML”, como é o caso do chafariz da rua do Mirante, ou o chafariz de Campolide

- Os chafarizes tipo “marco fontenário”, também em pedra, são o último tipo de chafarizes instalados pela Câmara Municipal, a maioria já no séc. XX.

À medida que o tempo foi passando os chafarizes foram-se tornando cada vez menos essenciais à cidade, reduzindo-se a sua necessidade a bairros de camadas sociais cada vez mais baixas. Durante a década de 90, com o desaparecimento das últimas barracas em Lisboa, por aplicação do Plano Especial de Realojamento para as zonas de Lisboa e Porto, virtualmente todos os que moram em Lisboa passaram a ter água potável corrente em casa. Por consequência, a essencial e original função do chafariz, como meio de acesso à água potável na cidade, desaparece. Este equipamento passará a ter uma existência ligada, sobretudo, ao consumo ocasional no espaço público, ou unicamente como elemento constituinte da memória e ornamento da cidade, sendo quase sempre encontrados fechados. Quanto ao Aqueduto das Águas Livres foi gradualmente perdendo importância funcional, até ser oficialmente seco em 1967. A grande dimensão da secção das suas galerias, que para mais frequentemente se encontravam acima do solo, resultou no que seria um forte espartilho para a evolução da cidade. Por esta razão, o aqueduto cedo vai sofrendo sucessivas demolições logo a partir do início do séc. XX, apesar de se tratar de um Monumento Nacional, consagrado e protegido pela lei como tal desde 1910.

14- 15- A Fonte Santa, ainda em meados do séc. XX e actualmente. A transformação do

espaço que a envolve denuncia a sua obsolescência enquanto equipamento de abastecimento de água. Repare-se, já agora, na supressão dos pormenores formais do contorno da espalda e do pináculo, o qual anteriormente até seria um crucifixo (foto Eduardo Portugal, Gabinete de Estudos Olissiponentes) (foto do autor, 2006)

Alguns casos

O Rossio Como vimos, foi Francisco da Holanda durante o séc. XVI, quem primeiro propôs, conforme apresenta no seu documento “Da Fabrica que Falece à Cidade de Lisboa”, de 1571 [1984], a colocação de um chafariz com características monumentais no Rossio. Mas parece ter sido Nicolau Frias o autor do primeiro chafariz monumental no Rossio, o chafariz do Neptuno, em 1605. Poucas imagens nos chegaram até hoje, mas pela sua presença e relação com a praça onde se inseria, poderemos afirmar tratar-se de um equipamento elaborado segundo os programas do Renascimento vigentes para a cidade. Tratar-se-ia, com efeito, de uma estrutura monumental, um elemento importante para o

ornamento da praça, que desempenharia também uma função prática e, como já sabemos, vital para a cidade. Contudo, ainda que tenha sobrevivido ao terramoto, haveria de ser demolido 30 anos depois, e o Rossio nunca voltou a ter um chafariz, ainda que tenha havido o objectivo de construir um integrado na Obra das Águas Livres, na então Rua do Príncipe, actual Rua 1º de Dezembro, mais concretamente adossado à fachada do edifício do No. 7. Veloso de Andrade [1851] encontrará apenas dois poços no Rossio, os quais serão, por sua vez, sobrepostos por duas fontes ornamentais, da Fundição Val d’Osne, a partir de 1889, em harmonia com a operação de monumentalização que esta praça, agora de D. Pedro IV, estava a ser sujeita. Estas fontes, em ferro fundido, não tinham qualquer propósito nem possibilidade de abastecimento de água. Talvez por esta razão se tenha implantado, em data próxima, a fonte dos Anjinhos, também ainda hoje presente no Rossio, no local original. Temos então a obliteração, conforme foi frequente a partir desta altura, da função prática de um espaço público, neste caso de abastecimento público de água, em sacrifício da sua ornamentação segundo as exigências da utilização da burguesia, que se afirma e estabelece os parâmetros a vigorar. A água continua a figurar nesse espaço, porventura até com mais visibilidade, mas com um fim exclusivamente ornamental.

Chafariz do Loreto Como já referido, com a obra das Águas Livres vários chafarizes foram planeados com o objectivo de terem uma forte presença e visibilidade na cidade, tendo-se encomendado o trabalho dos escultores mais conceituados da época para a sua ornamentação, conforme era ainda hábito. No seguimento do novo plano pombalino de reconstrução da cidade, o chafariz do Loreto viria a ter localização central, sensivelmente onde se encontra hoje a estátua de António Ribeiro Chiado, segundo desenho dos arquitectos então responsáveis, Reinaldo Manuel dos Santos e Francisco António Ferreira Cangalhas. Para este chafariz, cuja construção se inicia em 1771, Machado de Castro esculpe uma figura de Neptuno, tema comum das fontes e chafarizes desde o Renascimento. Contudo, este chafariz monumental, concluído em 1774, terá uma vida extremamente curta, uma vez que vai durar pouco mais do que 80 anos, sendo demolido na década de 50 do século seguinte. Apesar de, até ao último quartel do séc. XIX, o fornecimento de água em Lisboa ser ainda bastante deficiente, dependendo ainda em grande parte dos seus chafarizes, estabeleciam-se novas noções de saúde e de higiene na cultura ocidental. A presença dos chafarizes torna-se pois incompatível com a imagem que então se importava; denunciava o desfazamento da cidade e do país com o que se divulgava das grandes metrópoles, onde se demonstrava as redes de água canalizada, e uma presença da água no espaço público cada vez mais exclusivamente ornamental. Em Lisboa, contudo, hordas de aguadeiros galegos sitiavam o espaço público, onde, esperando pela sua vez com as suas pipas, soltariam impropérios e se envolviam em rixas. A “ilha dos galegos”, como era chamado este chafariz, torna-se totalmente incompatível com o Chiado, a “Ladeira Vaidosa”, centro cosmopolita e burguês de Lisboa do séc. XIX. O chafariz é pois demolido, mas a estátua de Neptuno foi conservada até aos dias de hoje e encontra-se no Largo D. Estefânia, inserida numa fonte ornamental.

Contudo, o papel essencial que este chafariz desempenhava para o abastecimento de água ainda se mantinha: Veloso de Andrade [1851], com efeito, registará 198 aguadeiros para o chafariz do Loreto, sendo assim o terceiro chafariz a agregar mais aguadeiros em Lisboa. O primeiro era o de El-Rei, com 330, e o segundo o do Carmo, com 231. A remoção do chafariz do Largo das Portas de Santa Catarina implicava, necessariamente, a sua substituição imediata por outro. A concretização do chafariz substituto confirmará esta necessidade. O novo chafariz do Loreto, mais discreto e mais funcional, haveria de localizar-se não num largo, mas na então Rua do Tesouro Velho, actual António Maria Cardoso. As imagens que dele nos chegam revelam-nos, com efeito, um equipamento que, apesar de apresentar alguma dimensão, já tem uma intenção de ornamento muito menor do que o seu predecessor.

Fonte Santa, em Campo de Ourique: Se os chafarizes que hoje se mantêm venceram a sua destruição, isso não quer dizer, contudo, que tenham sobrevivido ao esquecimento e à ignorância. Caso que demonstra a total desconsideração de algumas das actuais urbanizações por estes equipamentos, outrora essenciais e respeitados pela cidade, é o da Fonte Santa. Possivelmente inaugurada ainda em 1598, é de facto uma das poucas fontes com esta idade que restam à cidade no seu espaço público no seu local de origem, ainda que seca. Contudo, para além das obras de restauro terem descartado alguns pormenores formais desta fonte, permitiu-se a construção de um prédio de habitação a poucos metros do seu espaldar, chegando-se mesmo a suprimir o tanque que aí se encontrava, conforme constatamos pelas imagens mais antigas. O fim da sua função prática deixa de justificar o espaço de acesso que lhe estava reservado, sem que tenha sido observada a sua importância enquanto monumento, para o qual era necessário preservar todas as suas características para memória do local e do equipamento.

16- Poucos sabem que a fonte monumental da Alameda D. Afonso Henriques,

inaugurada em 1948, é comemorativa da inauguração da obra do sistema do Tejo. Trata-se do único monumento do séc XX relativo ao abastecimento de água de Lisboa. (Arquivo Municipal de Lisboa)

Momentos chave para os chafarizes

17- Ortofoto da zona do Lumiar e de Telheiras, em Lisboa. Sobressaem à esquerda e ao

centro o supermercado Carrefour, perto da auto-estrada Eixo Norte Sul, à direita, em baixo,o estádio de futebol do Sporting Clube de Portugal, perto do cruzamento da Av. Padre Cruz e a linha do Metropolitano com a estação do Campo Grande. Todos estes elementos são referências desta zona para a maior parte dos lisboetas. Mas ao centro desta foto sobressai a cobertura do Reservatório de Telheiras, o maior reservatório de água de Lisboa que compete em tamanho de área urbana ocupada tanto com o estádio como com o hipermercado. Contudo, este equipamento não tem qualquer influência na identificação ou na referência desta zona, mesmo tratando-se de um meio fundamental para o abastecimento de água à cidade. Muito poucos sabem, sequer, da sua existência naquele sítio, ou mesmo que possa existir uma construção destas dentro da cidade, que é afinal uma sucessora da antiga Mãe-d’água das Amoreiras (www.lisboainteractiva.pt).

Resumindo aquilo que já foi descrito, podemos apontar os seguintes momentos mais marcantes para o percurso dos chafarizes de Lisboa:

Inauguração do Aqueduto das Águas Livres

A partir de 1748 Lisboa deixa de depender apenas dos recursos de água que se encontravam intramuros ou da recolha da chuva em cisternas e depósitos. Com a construção desta estrutura, triplica o volume de água abastecida em Lisboa a qual, ainda que insuficiente, permite o surgimento de um grande número de chafarizes. O grande esforço a que a cidade se propôs, para resolver o problema da sua carência, há muito por resolver, fica expresso na construção de arcarias, de arcos triunfais e um conjunto de chafarizes de cariz monumental, que se implantam dentro da cidade, enriquecendo o seu espaço público.

A ordem de interrupção das obras de construção do chafariz das Janelas Verdes Com o reinado de D. Maria I, a partir de 1777, o investimento em chafarizes monumentais passa a ser mais reflectido. A partir dessa altura, constroem-se dentro de Lisboa sobretudo chafarizes mais simples, de cariz mais utilitário, mesmo os que pertencem ao Aqueduto. Ainda surgirão chafarizes de maiores dimensões, mas alguns

projectos nunca passarão do papel, como é o caso do grandioso chafariz de Santana. A hesitação neste tipo de gastos acaba, entretanto, por tornar estas obras extemporâneas.

Demolição do Chafariz do Loreto

Em 1855 já nas outras capitais se falava no abastecimento da água ao domicílio; Londres e Paris há muito que tinham estações elevatórias a vapor. A demolição do Chafariz do Loreto, nesse ano, é a melhor demonstração desta nova “moda”. Apesar de se estar a 25 anos do início da resolução do problema do abastecimento de água de uma forma contemporânea, Lisboa começa a negar o protagonismo atribuído aos chafarizes até à primeira metade do séc. XIX. Esta resolução é, sobretudo, o marco do início do fim do chafariz-monumento. A água continuará a ser utilizada nos monumentos da cidade, por vezes até com um papel mais destacado, mas com fim apenas ornamental. No espaço público, separa-se assim a função prática da monumental e ornamental.

Inauguração do aqueduto do Alviela

Passados séculos de carência, finalmente se resolve em 1880 o grande problema de Lisboa. Esta abundância terá como efeito a gradual banalização da função de abastecimento de água. Os equipamentos que cumprem esta função espalham-se pela cidade, tornam-se facilmente acessíveis a todos, deixam de ser “forma” e passam a fazer parte do “fundo” diluindo-se no quotidiano da cidade. Continuam a ser implantados chafarizes, em maior número e com uma estrutura muito mais simples, configuração que deriva tanto das novas tecnologias de produção industrial que entretanto surgem, como da nova cultura, ou como ainda do grupo da população a que se destinava, a qual, à medida que o tempo passava, era cada vez mais pobre.

A secagem do Aqueduto das Águas Livres Em 1967 Lisboa já pouco ou nada dependia desta obra para se abastecer de água, pelo que a sua secagem é apenas um momento simbólico. Monumento Nacional desde 1910, sendo o primeiro do grupo da “arqueologia industrial”, este será o derradeiro momento que converte, definitivamente, este sistema de abastecimento de água exclusivamente em ornamento e monumento.

Início do PER (publicado em 1993) A partir dos anos 90 os bairros degradados em Lisboa começam a ser sistematicamente demolidos; por consequência, também os chafarizes que aí se encontravam, os últimos que exerciam a sua função prática de abastecimento de água conforme os moldes antigos, desaparecem. O chafariz e a Cidade A palavra chafariz deriva do termo árabe s'ahríj e aplica-se, tradicionalmente, aos equipamentos que disponibilizam a água potável no espaço público. Funcionalmente, o que o define são a existência de mais de uma bica de água e a possibilidade do utilizador aceder directamente à água que dela sai, especialmente para que com ela possa encher um recipiente com alguma capacidade. Na maior parte dos casos tem também um ou mais tanques, que servem de bebedouro para os animais ou, por vezes, para lavagens.

Por natureza, um chafariz localiza-se no espaço colectivo da cidade para que todos, sem excepção, possam ter acesso a esse bem único que é a água, razão pela qual desde os tempos mais remotos, na maioria das vezes, são equipamentos disponibilizados pelo poder central, o Estado ou a Autarquia. Temos, de facto as características que lhe conferem atribuições de bem público, bastante antes deste conceito ser devidamente instituído. O espaço que lhe permite o acesso, cuja configuração é a necessária para que a água possa circular e chegar a todos os habitantes e todos os pontos da cidade, é igualmente público por inerência.

18- A entrada principal do reservatório de Telheiras, onde figura a única (e discreta)

identificação deste equipamento. Só por acaso o transeunte se consciencializa do que se trata. (foto do autor, 2006)

Aos chafarizes e fontes de diversas cidades, como é o caso de Lisboa, sempre foi atribuído um papel fundamental na imagem da cidade. O serviço essencial que desempenhavam deriva numa atribuição de grande centralidade na cidade, pelo que estes equipamentos serviam frequentemente como veículo para comunicação de diversas mensagens e também de ornamento. O espaldar ou o corpo (para os chafarizes adossados) é não só estrutural como também é a parte que lhe confere maior visibilidade, sendo por isso que aqui que se ostenta os brasões da cidade, uma alusão àquele que empreendeu a obra, a data de inauguração, ou apenas elementos ornamentais. Percebe-se que de facto sempre houve uma preocupação expressa de atribuir ao chafariz uma presença mais marcante no local onde se insere do que apenas um simples conjunto de saídas de água com um tanque por baixo. É pela importância desta componente de visibilidade que por vezes os chafarizes são construídos no centro de praças ou de largos, ainda que tal fosse, pelo menos até recentemente, uma opção tecnicamente mais complexa. Naturalmente que a Obra das Águas Livres mantém esta “tradição”, mantendo um discurso formal que enfatiza a importância do abastecimento de água à cidade, pelo que na sua construção se seguiram critérios onde estivesse assegurada uma grande visibilidade dos seus chafarizes e até de partes das condutas. Claro que o facto de se

tratar de um empreendimento desejado durante vários séculos e a sua grande dimensão, o que obrigou a grande esforço e investimento, foram catalizadores consideráveis para este aspecto. À semelhança do que era habitual nas obras da época, a execução do projecto da Obra das Águas Livres terá seguido o princípio clássico Firmitas, Utilitas, Venustas. Entendia-se que estes três componentes eram inseparáveis e intrínsecos entre si, sendo que se considerava a necessidade da existência de todas elas para se garantir a boa concretização da obra [Vitrúvio, 2006; Alberti, 1991; Petra (Coord.), 2003]. Pelos documentos relativos á construção desta obra que nos chegaram, apresentam-se, de facto, as noções de firmeza e segurança como inseparáveis da noção de “Fermozura” [doc. CCLXXXVII, Moita, 1990:275], o que confirma a ligação estabelecida na altura entre o equilíbrio e harmonia visuais e o equilíbrio estrutural, ou a apreciação estética como juízo de bom funcionamento. Entendeu-se assim como necessária uma ornamentação e uma formalização que contribuísse para o bom funcionamento da obra, conforme seria entendido na altura, mas que também reforçasse e amplificasse a sua visibilidade à altura da importância efectiva que tinha. Ficaram deste modo definidas as características que lhe deram um importante lugar na imagem da cidade e, por consequência, a sua conversão em monumento. Nos dias de hoje uma obra como a das Águas Livres, feita sobretudo para o desempenho de uma função prática, ainda que fundamental, não teria certamente um documento orientador, como então teve, que demonstrasse qualquer preocupação sobre “Fermozura”. Actualmente, de facto, mesmo obras de grande visibilidade no espaço público respondem com frequência estritamente a requisitos funcionais e construtivos. Conclusões Conforme sucedia frequentemente para os equipamentos que abasteciam água a uma cidade, a muitos chafarizes de Lisboa e à obra das Águas Livres foi conferida grande visibilidade. Ia-se, à luz dos conceitos actuais, muito além da forma estritamente necessária para o seu funcionamento. Consequentemente, este requisito de visibilidade fez com que estes equipamentos venham a ter forte impacto na imagem da cidade e terão acabado por ser um importante factor para que hoje os preservemos e os consideremos monumentos. Contudo, a partir do séc. XIX e mesmo em Lisboa, cidade para a qual o chafariz era tão importante, este requisito vai deixando gradualmente de existir. De facto, aos chafarizes mais recentes não lhes foram atribuídas as características que permitissem ter este importante papel para a cidade. Percebe-se, com efeito, que quanto melhor se tornou o abastecimento de água, menor se tornou o contributo dos equipamentos que desempenhavam essa função para a identidade e ornamento da cidade e do espaço público. De facto, há uma relação inversa entre a monumentalidade – ou, pelo menos, a visibilidade – dos seus equipamentos de abastecimento de água e a melhoria desse abastecimento. A monumentalização depende dos produtos da relação entre as atribuições conferidas pela cidade e os desempenhos de um equipamento e da relação entre as suas

propriedades e as funções práticas a desempenhar. Ou seja, um chafariz perdurou até aos nossos dias e tornou-se monumento porque a sua função prática, a sua presença no espaço público e a dinâmica e evolução da cidade, em todos os seu níveis, assim o permitiram. Mas é pela contemplação das propriedades necessárias logo nas fases mais prematuras de concepção que se potencia esta atribuição. Com efeito, são os objectos aos quais se atribuiu, desde logo, a função de monumentos, que têm mais hipóteses de efectivamente serem aceites como tal do que aqueles para os quais não houve este desígnio na sua génese. Efectivamente, como o abastecimento de água, muitos outros artefactos, equipamentos, actividades e funções deixaram de estar presentes na rua, deixando de contribuir para a sua vitalidade, identidade e ornamento. Poderemos estar actualmente, segundo esta óptica, de facto com um problema de esvaziamento do espaço público. Porém, a cidade continua a ser um sistema que a todos concerne, que de todos depende e de que todos dependem. E este sistema, hoje mais que nunca, é altamente complexo, vários são os níveis que o compõem, várias são as técnicas, os meios e as tecnologias que continuam presentes, mesmo fisicamente, na cidade. Fica assim, então, o desafio de explorar e expor as actuais funções e utilidades da cidade, tornando-as elementos contributivos para o espaço público. Deste modo, ao atribuir visibilidade àquilo que faz uma cidade funcionar, estaremos a valorizar o seu espaço público, afastando a hipótese de este se estar a tornar inútil ou moribundo, mantendo o seu papel fundamental na cidade.

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UBIQUITÉS PUBLIQUES DESYNCHRONIZED PUBLIC SPACESProfessor Irena Latek e-mail: [email protected]

École d'architecture, Université de Montréal, P.O. Box 6128, succursale Centre-Ville,Montréal, Québec H3C 3J7, Canada

Ubiquités publiques Desynchronised Public Spaces is a research and creation project, anartistic exploration, taking the form of a series of temporary constructions and installations inpublic space. This project is realized by an academic research laboratory, medialabAU, at theSchool of architecture of the Faculty of Environmental Design at the University of Montreal,and is the object of the current paper. (1) Our work experiments with language and instrumentality (video, interactive documents) withinthe realm of different projects of architecture and public space involving abandoned sites ofMontreal and exploring the themes of the urban wasteland («friche urbaine»). Our projects thuspropose interventions that would reinforce the structure of public space while in the same timecelebrate urban culture in its most contemporary aspects. They emphasize flexibility ofindeterminate space, utility and beauty of its different ephemeral stages. Our work tries tocreate new forms and platforms of public life by using communication media; it also tries todevelop an urbanity defined by its technological and media-dense condition.

Figure 1. Fragment of work Flux, Alain Carle, Irena Latek, part 1 of Ubiquités publiquesDesyncronized Public Spaces, medialabAU 2005

Project

In our recent project, «Ubiquités publiques, Desynchronized Public Spaces», the question ofform and content of urban public space confronts that of the synchronic and a-synchronicperception of space. Here public space is assimilated to a space either civic or politic; it is thusconsidered beyond the mere physicality of its site. In parallel, the project chooses the space oftransit (urban highway) as an object of intervention and movement as a symbolic theme. Thework explores idea that today public space presents simultaneously both a global and a localdimension. The proposed interventions transpose the virtual (public) space of media into thecity public space. Through the interpretation of our urban landscape and a suggestion of its mutation, this workproposes to reconsider the urban space of rapid automobile transportation in order to explore itas a form of public space. The central subject of this piece is the political ramification of publicspace. The piece is made up of a series of still images, five videos and an interactive image.These proposals, or imagined situations, take place in the Montreal’s urban spaces oftransportation and in the vacant lots endemic to the freeway landscape. The project concentrateson the Ville-Marie freeway, which cuts across the downtown area, and on the Jacques CartierBridge. The work’s narrative is constructed primarily from these two physical sites, oneunderground the other aerial.

Figure 2 and 3. Fragments of work Flux, Alain Carle, Irena Latek, part 1 of Ubiquités publiquesDesyncronized Public Spaces, medialabAU 2005

«Ubiquités publiques Desynchronized Public Spaces» feeds off of the notion that contemporarypublic space presents, at one and the same time, both a local and a intercontinental dimensionof space. The ubiquitous nature of the user of public space, the desynchronized nature of itsexperience, is expressed also by the doubly relaxed manner with which people use publicspaces: most of the time the individual is simply a voyeur in civic space (that of the medias) oron a furtive promenade in urban space. Urban public space, lived in such a way, loses itspolitical signification.

Taking up this perspective, our project formulates a critical commentary on the urban freewayconsidered as a spatial manifestation of this emptiness. We imagine this void as being totallyimmersed in the media and as such we develop critical propositions on space of informationmedias, striping naked its re-presented and non-representative nature.

Figure 4. Fragment of video Détournements, Fannie Duguay-Lefebvre, Irena Latek, VéroniqueRoy, coll. Martin Bourgault, part 3 of Ubiquités publiques Desyncronized Public Spaces,medialabAU 2005

On the other hand we question the different temporal dimensions affecting our lives in one andthe same epoch and simultaneously in far away places, although constantly confronted bymedia coverage.

Mediated space, seen as a place where world news is transmitted, becomes in this project,analogous to physical space. Meditated messages keep us informed and fill our space; televisednews, the press and the Internet become sources of collective imagination and resources for the planning of urban places. The project tries to put into place a spatial mechanism that allows usto reveal (to denounce even) the ignorance (the indifference) of the passive spectator.

Works

Our work seeks to confront two types of public space: the space of traffic movement and thespace of the information medias. The project takes shape in a construction/fiction superimposedon the freeway, a sort of manifesto on the state of public space (the Flux series). This indicatesthat public space is political in its essence, a place where society organizes and regulates itself.Whereas today the political dimension of public space has been displaced by thecommunication medias insinuating themselves evermore into the private sphere. The void ismade up for by the function of traveling, which, more and more, generates city spaces lackingin any quality, bereft of any civic sense.

Today’s new technologies allow us to envisage a sense of space that brings together diversefunctions. In such a context, medias confront us directly, quasi-physically, with its messages –the virtuality of the message, its subtlety and rapidity of mutation are, a priori, compatible withthe flux of bodies and machines traveling through the freeway.

Figure 5. Fragment of video Détournements, Fannie Duguay-Lefebvre, Irena Latek, VéroniqueRoy, Martin Bourgault, part 3 of Ubiquités publiques Desyncronized Public Spaces,medialabAU 2005

Our project imagines a hybrid mediated space, a space of movement. In such a context themedia confronts us directly, viscerally - their messages impact us. The freeway becomes a riverof messages, a flux of «dis-placed» public action-places. The seven works «Ubiquitéspubliques Desynchronized Public Spaces» propose a gigantic landscape/message inserting itselfinto the gulf between Old Montreal and the modern town. Such a process is a metaphor ofcontemporary public space, becoming a possible hypothesis for a proposal. The status of such

an object is deliberately ambiguous; the representations proposed being as much a simulation ofpotentially lived events as they are revelations of hidden, or invisible, realities.

Figure 6. Fragment of video Décalages, Irena Latek, Darrel Ronald, coll. Anissa Rachidi, part 4of Ubiquités publiques Desyncronized Public Spaces, medialabAU 2005

Ubiquités publiques Desynchronized Public Spaces is constituted then by a network of worksthat indicate the entry and exit points of this «space of mobility» that they occupy. Each one inits own way conceives of the same hybrid object: the landscape/message placed on the urbanfreeway. The narratives of these seven works, seven spatial projects, are not imposed from theoutside but are constructed by the voyage, as different sites are encountered. Each of theprojects themes becomes the process by which the site is recomposed. In the same way, themessage that one encounters emerges from the site as its double. In displacing the interest fromthe form to the content, the work tries to show that public places are fabricated from the lifethat takes place in them.

The seven works are :I’m coming into town, video, Flux, printed images, Detours, video, Displacements, video,Deviations, video, Panorama, interactive image, Exit, video

Figure 7. Fragment of video Dérives, Martin Bourgault, Jean Philippe Brouillard, Irena Latek,Darrel Ronald, part 6 of Ubiquités publiques Desyncronized Public Spaces, medialabAU 2005

Instrumental explorations. «Moving collage» and «Interactive landscape» - notations forinstable forms and meanings

The project «Ubiquités publiques Desynchronized Public Spaces» is based for the most part onlinguistic developments and instrumental acquisitions of medialabAU’s previous projects,however it further develops the technique of a moving montage. Such experimentation allowsus to propose a new kind of architectural representation.

Our laboratory seeks to explore the universe of new media in order to better link projectprocess with contemporary reality, as new media leads analogy and reference – essentialaspects of architectural expression, down new avenues. More specifically, however notexclusively, we experiment with digital video as a tool for analyzing, reflecting upon andconceiving architecture and the city. This medium has been adopted, not only for its specificand essential qualities but also for its ability to support mixed resources and to incorporatemixed tools. Our experimentation involves various genres of work and is set in differentcontexts : research/creative endeavours conducted by the medialabAU team in our laboratoryand from student work produced during workshops and experimental studios. In both contexts,the works vary in regards to format and character. Video, often becoming the project documentbut always remaining the project itself, is generally the medium for interpreting a public spaceand built objects. It allows representation of possible interventions but at the same time is ameans of formulating critical commentary. It can become a critical essay within itself. Itsanalytical, descriptive and conceptual objectives are juxtaposed but are articulated in variable proportions. Furthermore, this medium (film and montage) is an unprecedented space in whichto shape an architect’s gaze. At the same time, the invention of our documents contributes to

new forms of visual culture.

Our approach is characterized by a video in collage. Our technique draws from the mostelementary cinematographic montage technique – the observation and composition of what isproduced in an image with that which is produced between images. However it deconstructsthis principle, juxtaposes and reorganizes both moments while making them spring up, oftensimultaneously, within the same frame. This process is enriched and made more complex bythe diversity of image sources.

Figure 8. Two fragments of video Dérives, Martin Bourgault, Jean Philippe Brouillard, IrenaLatek, Darrel Ronald, part 6 of Ubiquités publiques Desyncronized Public Spaces, medialabAU2005

Moving collage

Digital video in the form of a moving collage proposes a method of spatial examination, analysisand a conceptual tool. It is a hybrid document inheriting a vast range of modern and post-moderncollage methods that also draws, at various moments, upon the proximity between moving imageand the city (2). It is also a spatiality inspired by the palimpsest and by certain concepts stemmingfrom the morphological history of cities, from the idea of layers of urban development. Moregenerally, the moving collage bears the idea that each form of expression is a place ofsuperimposed meanings. Much broader than the montage of still digital images currently used inarchitecture, these means also differ from documentary video employed for urban analysis. Thelatter, being a result of linear montage based on narration and observation, is a diachronicrepresentation. The moving collage adopts a spatial montage, functions in a synchronic mannerand aims at the simultaneous notation of form and meaning evoking the latter’s unstable nature.This mode of representation at once permits translation of the typo-morphological comprehensionof an urban fragment, the reproduction of a territory’s topography, the qualification of thisterritory as landscape and the anticipation of situations that may occur. In a visual and auralregister with the assistance of analogous representations, the moving collage instantly evokes asite’s essential characteristics, cultural dimension, use, social meaning, and identifies theproject’s symbolic and critical intensions.

Figure 9. Fragment of video Détournements, Fannie Duguay-Lefebvre, Irena Latek, VéroniqueRoy, coll. Martin Bourgault, part 3 of Ubiquités publiques Desyncronized Public Spaces,medialabAU 2005

First and foremost, the camera plays the role of a moving eye (3). It records unstable spatialcharacteristics and captures flow (movement reflected in windows, the trajectory of a movingobject, one’s perception through a car windshield, etc.) It also provides a sensitive perspective,and thus a sensorial body - a visual, aural and tactile receiver. Finally, it is an instrument ofmeasure, the means to establish distance or proximity to a spatial fragment.

Interactive landscape

This mode of representation transposes the instantaneous and simultaneous spaces of the movingcollage within a more reflexive space. Equally adopting the principle of palimpsest, the documentcalls for an active discovery of place and its meaning. It can be considered an archeologicalapproach that explores layers and voids. The document at once encloses and liberates a place as itpermits to anticipate its multiple configurations. This mode of representation therefore welcomesrecomposition. Perception is supported within the work as much by the sense of vision as it is bythose of hearing and touch. The spectator in action is drawn nearer to the event and becomes apart of it; his vagabondage may even divert the project’s intentions.

Figure 10. Fragment of work Panorama, interactive document, part 5 of Ubiquités publiquesDesyncronized Public Spaces, medialabAU 2005

Conclusion

By its method and themes, our work on the one hand reconciles architecture with multimedia artsand on the other hand, roots itself to the city while confronting the architectural project with theidea of an instability of the entities of urban spaces. Our work strives to explore the concept ofurban landscape posed within a temporal and experiential perspective of urban places. It presentsthe hypothesis that the relationships between these two perspectives continually redefine the formand meaning of urban space. This view of the city constructed of the landscapes and gazes of itscitizens as they move about, as such, cannot be rendered intelligible without an instrument thatincorporates movement. Our work explores the city in its unstable form and develops means oftranscribing (and/or constructing) it in represented space imprinted by mixed media.

They are attempts to reflect on urban public space in its most contemporary aspects: to considercultural, social and political public space in a city affected by multi-configured communities,originating from diverse territories and having variable scales; and to grasp a new and radicaltemporality of urban space. Considering the city where the “others”, suburbanites, students,immigrants, transient workers, and tourists, have become majority citizens and the foreigninvestor a major decision-maker. Our work therefore aims to conceive this disembodied urbanspace that seeks to reconstitute itself in a reality where “a building’s public space disappears intothe background of an unstable public image” (4). They are aimed at reading and interpreting itshybrid reality with hybrid means.

The mixed techniques that we are developing seek to qualify a place over and above its strictlyconstructional and functional dimensions. Our work accepts the spontaneous and non plannedurban voids as positive urban, veritably «open», elements and attempts to describe the form of aplace through the collective events and individual situations that take place in it. The architecturalproject is considered as an installation of forms and materials, an introduction of ambiances,which encourage certain comportments. Our projects are then firstly thought about as spaces

with-in which life can take place. On the other hand, our projects criticise urban practices, andmore widely, social practices, exploring new forms of public space and proposes new metaphorsfor contemporary realities.

NOTES

1) Founded in 2001 and directed by Irena Latek, medialabAU is a research and creationlaboratory bringing together professors, young Montreal architects, a video artist and studentsfrom the School of architecture. The work of medialabAU has already been exhibited inMontréal, Weimar and Barcelona. It was also presented through public conferences andcolloquiums in Italy, France and Spain. Ubiquités publiques, Desynchronised Public Spaces, themost recent project of medialabAU, is subsidized by the FQRSC (Fonds Québécois de recherchesur société et culture). The project team consists of: Irena Latek, associate professor - director ofresearch; Giovanni de Paoli, associate professor - computer science specialist; Alan Knight,associate professor - researcher; Fannie Duguay, architect – associate researcher; Alain Carle,architect - associate researcher; Martin Bourgault, video artist - guest artist; Marianne Potvin isarchitectural interns and research assistant, Veronique Roy, Jean Philippe Brouillard, DarrelRonald, Marie-Eve Marchand and Annick Turi are master’s students and research assistants. Thepresentation « Ubiquités publiques Desynchronized Public Spaces» is written by Irena Latekand translated from French into English by Alan Khight. www.arc.umontreal.ca

(2) The moving collage’s sphere of influence extends from cubism to Dadaism, from techniquespopularized by Archigram and Superstudio, to the procedures of a young Rem Koolhaas andBernard Tschumi, from films by Moholy-Nagy to those of the situationists.

(3) The research and cinematographic work of Zbigniew Rybczynski provides very significantwitness of camera movement and, more largely, of the relationship between cinematographicimage and movement of the eye. Rybczynski studies the range of normal human observation anddemonstrates its extraordinary mobility. He conducts countless experiments, confrontations andjuxtapositions of different camera types, of filmed elements (figure versus ground) and finally,animations due to montage. Refer particularly to Z. Rybczynski, Kafka, Unites States, Fr, 1992,52min. To this effect, reference to the work of Norman MacLaren is also inevitable.

(4) An expression of Paul Virilio as proclaimed during a seminar at the Collège International dePhilosophie in 1992 and cited many times thereafter.

REVITALIZAÇÃO ESPONTÂNEA - ESTUDOS DE CASO - AV. MAJOR CARLOSPINTO NA CIDADE DO RIO GRANDE E DA RUA DA PRAIA EM PORTO ALEGRE,

RIO GRANDE DO SUL, BRASIL.Jane C. de Lima Borghetti Email: [email protected]

Rua João Manoel, 38 ap. 203 – Rio Grande/RS

Resumo: A proposta deste trabalho é apresentar as intervenções em duas cidades do sul doBrasil, Porto Alegre e Rio Grande, no estado do RS., observar as similitudes e evidenciar asdiferenças, com ênfase nas intervenções da cidade do Rio Grande, mesmo que não seja umcaso de grande representatividade no que diz respeito a investimentos e à divulgação da formade revitalização, muito significativa, considerando a forma de aceitação e apropriação doespaço por distintas classes sociais e faixas etárias.

Apresentação

As mudanças efetivas que vêm ocorrendo na Av. Major Carlos Pinto, localizada emuma zona residencial com caráter histórico na cidade do Rio Grande, e na Rua dos Andradasou (da Praia), na cidade de Porto Alegre, no Centro Histórico e Comercial da Capital do RS,a partir da Rua Caldas Júnior até a Casa de Cultura Mario Quintana. Ambas as ruas, comtodos os problemas gerados pela rigidez do zoneamento funcional e das legislaçõesurbanísticas e de preservação, são exemplos concretos de que uma nova postura sem grandesônus e boa vontade pode promover uma REVITALIZAÇÃO ESPONTÂNEA simples e capazde transformar espaços antes condenados à degradação em lugares de convivência e que,juntos aos espaços culturais, atraem tanto os moradores, antes sem opções, como aspopulações de outros bairros e turistas, que agora podem usufruir com segurança os espaçosem estudo após o horário comercial.

Na Av. Major Carlos Pinto, o passeio central já é local consagrado para caminhadas,desde que a Prefeitura trocou a pavimentação e melhorou a iluminação pública. Este foi oprimeiro passo antes de permitir aos bares a colocação de mesas e toldos nas calçadas e uso demúsica ao vivo. Além das atividades citadas, a Avenida passou a ser o local escolhidonaturalmente para comemorações eventuais de grande público.Tais atividades dão hoje a esseespaço uma nova dinâmica e animação e possibilitam novos usos, a valorização e a procurados imóveis na região.

Na Rua dos Andradas, mais conhecida como Rua da Praia, o mesmo tipo decomportamento ocorreu: um local que anteriormente era apenas uma área com prédiosabandonados em estado de deterioração, um local inseguro e de passagem, é hoje um doslocais de encontro e lazer nos finais de tarde e de semana, desde que foi permitido o uso demesas nas calçadas pelos bares daquela região do centro da cidade.

Nos casos apresentados, as mudanças estão vinculadas a uma maior flexibilidade

daquilo que é ou não permitido, com base na realidade e no uso coerente da legislaçãourbanística e de preservação, promovendo assim a revitalização espontânea, sem anecessidade de grandes investimentos por parte do Poder Público, que ao entender astendências e necessidades locais, oportunizou ao comerciante local a permanência emotivação para investir no seu negócio naquele local, passando a ver o seu patrimônio comoalgo viável e uma fonte de valorização e sustentabilidade.

Conclui-se que as políticas de revitalização muitas vezes estão distantes de grandesprojetos e investimentos públicos elevados e estão próximos da necessidade de uma parceriacom a comunidade em questão, respeitando a manutenção dos valores culturais e sociaisefetivos e a vocação do local como fatores importantes da valorização, permanência e daqualificação desses espaços.

Conceitos e definições

Cidade Tradicional: Segundo Comas, “Na cidade tradicional a fachada é o elo deligação entre o espaço público e o privado, dependendo do tipo de implantação no lote e estedentro do quarteirão, ela é sempre o elemento de ligação do espaço externo x interno. Atravésdo tipo edificado, se identifica as características e a linguagem arquitetônica (expressão daépoca, –Estilo –, a época), o conjunto destas relações que vai definir a imagem da cidade. Afachada é o elemento visível do todo construído.” (COMAS, C. E.,1986)

Rua: As definições e conceitos de “rua” mencionados aqui apenas como aporte para omelhor entendimento do valor de uma “rua” como espaço de permanência. A rua – é um doselementos básicos e responsáveis pela existência das cidades. É definidora da forma urbana, eque diferencia um lugar do outro pelas características e peculiaridades apresentadas pelos doisplanos: o horizontal, o logradouro, e o vertical, as fachadas.

A rua, com suas características tradicionais, sofre mudança de qualificação e delimitação de usos no zoneamento da Cidade Funcional. Mesmo assim é parte integrante eindissociável da idéia de “uma rua” permanecendo como elo fundamental de conexão eintegração entre o espaço público e o privado. As funções circular, movimentar, conectarestão sempre ligadas à existência da rua, independente das variações e do traçado, elapermanece como lugar de trocas, de delimitação e de subdivisão de parcelas urbanas, ou seja,de quarteirões, praças e outras. As características físicas e a forma de organização espacialidentificam espaços diferentes e o caráter e significado atribuídos pela apropriação e memóriacoletiva.

A identidade de um espaço urbano não está relacionada somente as suas característicasfísicas e da organização pré-estabelecida por Lei e no desenho urbano. Os significados quecada espaço adquire são decorrentes da reunião da organização coerente, do desenho urbanocompatível, das funções e atividades desejadas, de forma que todos os atributos tenham umsignificado coletivo estabelecido por afinidade, identidade e relação espontânea entrecomunidade e lugar. Essa relação é, na verdade, o que distingue um lugar do outro, mesmoque a estrutura urbana seja aparentemente a mesma, a apropriação do lugar pode e deve serdiferente, pela forma como cada um participa. (BORGHETTI, J. de L., 1999)

Reabilitação: A palavra “REABILITAR como intenção de recompor atividades,habilitando novamente o espaço, através de políticas e incentivos às iniciativas privadas, parao exercício das múltiplas funções urbanas, historicamente localizadas numa mesma área dacidade, reconhecida por todos como uma centralidade e uma referência do desenvolvimentourbano.” (Reabilitação de centros urbanos. Ministério das Cidades. Brasília. 2005)

Revitalização: Segundo o dicionário Houaiss, significa “processo ou efeito de dar umanova vida a algo, ou novo vigor a alguma coisa”. Revigorar, reviver.

A Revitalização Urbana tem sido objeto de importantes discussões para a compreensãoentre dinâmica urbana e processos implantados e os resultados dessas ações, que nem sempreacontecem conforme o esperado.

A maioria dos processos e conceitos de revitalização busca a “cultura” como garantia deêxito dos investimentos. Esta é uma postura que nem sempre reflete as expectativas enecessidades das sociedades envolvidas; a cultura, da mesma forma que as demais atividades,deve se mesclar a outras atividades, pois sozinha nenhuma pode ser responsável pelarevitalização de área alguma.

LUGARES COMUNS, COMPORTAMENTOS E RESULTADOS DISTINTOS – A Rua daPraia em Porto Alegre e a Avenida Major Carlos Pinto na Cidade do Rio Grande

Existem diferenças e similaridades entre as duas cidades quanto a fatores queinfluenciaram a formação, organização e desenvolvimento do Sul do Brasil, desde o períodode colonização. Rio Grande foi a primeira capital da Província de São Pedro do Rio Grandedo Sul, transferida para Porto Alegre em 1773. O traçado urbano e a organização das duascidades seguem o modo português de conceber as cidades. A Rua da Praia, entre tantos outroselementos da forma urbana, é um dos que encontramos em comum nos centros históricos dasduas cidades. A Rua da Praia de Porto Alegre tem o nome oficial de Rua dos Andradas, mas onome original não se perdeu no tempo. Entre os significados e importância para a história doEstado essas cidades estão presentes na vida dos gaúchos desde as guerras entre portugueses eespanhóis no século XVIII e nas diferenças na Revolução Farroupilha em 1835. Considerandoo pioneirismo e a posição privilegiada das duas cidades, a capital, Porto Alegre, no centro doEstado e Rio Grande no extremo sul do país, que abre, através do seu Porto, o estado e oBrasil para o comércio internacional, justificando assim a sua importância no contextonacional. A tradição de grandes cidades sempre foi a de serem pioneiras em construçõessignificativas como as igrejas, os mercados públicos, os hospitais de caridade, Alfândegas,entre tantos de arquitetura imponente e singular, verdadeiros exemplos para outras cidades.As experiências das duas cidades na qualificação dos espaços urbanos deixam Porto Alegreem uma situação privilegiada no planejamento urbano das últimas décadas, já que apresentahoje uma das mais eficientes políticas de desenvolvimento urbano do Brasil, servindo demodelo para as políticas do novo Ministério das Cidades e do Estatuto da Cidade, com ênfasepara o Planejamento Participativo (Conselhos Populares).

A Rua da Praia (dos Andradas) sofreu grandes mudanças tanto na renovação dasconstruções como nas das atividades, o trecho de Calçadão, passeio peatonal, as atividadessão de comércio e serviços com características de pólo principal da cidade. O trecho analisadoé o mais antigo, inserido no Centro Histórico e parte do Programa Monumenta é o eixo delazer e cultura da cidade, desde a Praça da Alfândega até a Usina do Gasômetro. O Centro dePorto Alegre faz parte do Programa Viva o Centro, do Ministério das Cidades, que consiste nareabilitação de prédios públicos transformados em moradias para atender a população debaixa renda, financiadas pelo Governo Federal.

É denominada de Revitalização espontânea a que vem ocorrendo na Av. Major CarlosPinto na Cidade do Rio Grande (RS) e de programada a do trecho histórico da Rua dosAndradas (da Praia), dando especial atenção às diferenças de entendimento e de participaçãodo Poder Público e da comunidade como responsáveis pelas iniciativas e gestão das políticasde revitalização e pela escolha do tipo de intervenção.

A diferença entre o programado através de conceitos e o que a sociedade realmentedeseja é um dos mais importantes pontos para a consagração ou o fracasso do processo.Nesses aspectos é que identificam as semelhanças e as diferenças entre as intervenções daRua da Praia e da Avenida Major Carlos Pinto. Na primeira, a revitalização é calcada nasatividades culturais no entorno da Praça da Alfândega, museus e centros culturais, chamadosde guetos de elites no centro da cidade. Seguindo pela Rua da Praia, observa-se continuidade

do Monumenta e a tendência a atividades também consideradas espontâneas e não permitidas,isto é, sem aprovação na Prefeitura, como os bares colocarem mesas nos passeios públicos.Verifica um retorno à cidade tradicional, a rua como espaço de convivência e de troca, que hámuito estava perdido. O retorno de moradores ao Centro devolve também as atividades deatendimento diário, como academias de ginástica, padarias, fruteiras e floristas, dando à ruaum aspecto e uma dinâmica diferentes do período em que os militares e as atividades deserviços característicos dos centros urbanos predominavam neste trecho da cidade.

A comparação aponta diferenças e semelhanças significativas quanto à apropriação doespaço, no caso das atividades decorrentes da manifestação espontânea da população e dasatividades programadas. Neste caso é claro que as pessoas que vivem e trabalham no Centroirão encontrar amigos nos bares, mais vezes do que vão ao museu, ou ao centro cultural. Umarápida pesquisa oral e aleatória no Centro confirma que os moradores e os comerciantesformais e informais do local vão mais aos bares e quase nunca participam de eventos culturaisem locais fechados, o que confirma o êxito do espaço cultural da Usina do Gasômetro. Osvisitantes e freqüentadores de museus e centros culturais são estudantes, turistas, pessoas quevêm esporadicamente ao centro ou especialmente para algum evento cultural.

As articulações e posturas diferentes e inovadoras em busca do mesmo resultado, aotimização dos espaços em questão, com ênfase na participação “direta” dos atoresenvolvidos. As diferenças nas abordagens que são reflexo das políticas locais e dos valoresatribuídos e o comprometimento do Poder Público com a sua cidade e com seus cidadãosconstituem os fatores mais importantes de diferença no trato e no resultado da mesmaquestão: a Revitalização urbana.

No cenário da globalização as cidades precisam se diferenciar, isto é, a identidade e apeculiaridade de cada uma deve ser evidenciada como elemento de distinção, de forma atornar tais diferenças um fator de competitividade. A singularidade da oferta cultural, naprodução dos espaços e na forma de apropriação do lugar, através da valorização das tradiçõeslocais, precisa ser mais explorada e adotada nos programas de revitalização. O que seencontra na maioria deles são cenários altamente repetitivos, sem expressão local e queprecisam ser reavaliados para que a revitalização apresente competitividade e ao mesmotempo comprometimento com a sua identidade e, para tal, é importante a valorização dosplanos urbanísticos e arquitetônicos e da mudança de postura do planejamento urbano dianteda dinâmica da cidade dispondo instrumentos de política urbana que mantenham coerênciaentre os interesses dos atores, no caso Poder Público, comunidade e investidores, mantendo oequilíbrio nas ações e na produção da cidade.

A arquitetura dos elementos do espaço público e do mobiliário urbano, junto aoscasarios e vegetação, diferenciam o chamado Canalete da Av. Major Carlos Pinto, do restanteda cidade e o mais importante neste caso em estudo e a forma de apropriação coletiva dolugar, que deverá ser a preocupação constante do poder público.

FOTO 01: Mapa da Rua da Praia, Centro de Porto Alegre, RSÁrea em estudo e os pólos culturais. Arquivo PMPA

FOTO 02: Vista do Centro Histórico – Porto Alegre, RSAo centro da foto, a Praça da Alfândega – Programa Monumenta

FOTO 03: Mapa da Área de Intervenção, Pólos de Interesse e Centro HistóricoRio Grande, RS. Arquivo da PMRG

Legislação Urbanística

Sem aprofundar as questões do planejamento urbano moderno e a sua contribuição parao esvaziamento de algumas áreas das cidades, principalmente dos centros e de outras parteshistóricas, em que se identificam não apenas os problemas oriundos dos Planos Diretores emsi, mas também das diretrizes urbanísticas superadas que não acompanharam a evolução dacidade como um todo, separando o plano físico (espacial), das atividades e do comportamentosocial em renovação constante, possibilitando assim a dualidade ou até mesmo multiplicidadeno tratamento do mesmo espaço. Tais atitudes e dificuldades podem ser chamadas de “sombrado passado”, pois são entraves que não mais se justificam diante da sociedade de hoje.

Na Rua da Praia (dos Andradas), os efeitos dos Planos Diretores podem ser lidos nasrupturas da silhueta e sky line do Centro da capital gaúcha. Já na Avenida (Boulevard) MajorCarlos Pinto, na cidade do Rio Grande, as permanências foram maiores porque os PlanosDiretores de 1968/73 e 86 não incentivaram de forma tentadora o mercado imobiliário à

construção em altura, promovendo assim o desinteresse do mercado imobiliário pelos imóveisdesta rua. Esses aspectos beneficiaram indiretamente a permanência do patrimônio históricoconstruído dos dois sítios em estudo, mas que deteriorados, não conseguiram manter osmoradores que foram se mudando para locais mais distantes e os que permaneceram foram seafastando e perdendo o convívio, as referências e afinidades com o lugar.

Os Códigos de Posturas Municipais e outras legislações urbanísticas referentes àpermissão do uso do espaço público não apresentam muitas mudanças e flexibilidade,permanecem rígidos e sem alterações e atualizações pontuais no que se refere às taxações ecobrança de multas. São critérios de padronização que não consideram muito aspeculiaridades. Dificuldades na aprovação e entraves burocráticos tornam as decisões muitolentas, generalizadas, proibitivas. Refletem na verdade que não são tão participativas eeficientes quanto deveriam ser, mas sim impostas muitas vezes por falta de vontade e poridealismos no cumprimento da Lei.

As iniciativas de apresentarem soluções prontas representam uma atitude protecionista epatriarcal do poder público, que impõe o que pensa ser melhor sem consulta e participaçãoefetiva. A legislação do “Não pode” garante muitas vezes o trabalho e assusta quem teminteresse em investir e também quem tem um bem de interesse a ser mantido. Esse fato gerouinsegurança e desvalorização dos imóveis e o desinteresse no mercado imobiliário por muitotempo no trecho em estudo em Porto Alegre e que Rio Grande tenta superar e testar outrasalternativas ainda em experiência, tentando agilizar e se aproximar o máximo possível darealidade e das necessidades, com critérios coerentes, para tornar possível o que é viável.Porto Alegre tem legislações atuais, pouco permeáveis e eficientes quanto à garantia daestética e da qualidade dos espaços urbanos. Pois a clandestinidade é bem pior do que acoerência entre a realidade e a ordem (Lei). Isso é também de uma forma de participação dacomunidade nas ações de interesse da cidade.

A Cidade do Rio Grande e o Bairro Cidade Nova

Rio Grande foi o primeiro povoamento oficial do extremo sul do Brasil, a sua posiçãoestratégica entre o Canal do Prata e Santa Catarina, despertou o interesse da coroa portuguesaque, em 1736, instala as primeiras fortificações e assentamentos, criando a Vila do RioGrande de São Pedro em 1937, organizada no sentido norte – sul, de forma linear, paralela aárea portuária, definida e limitada sempre pelos condicionantes físicos e geográficos. Otraçado e tecido urbano edificado representam ainda hoje as influências portuguesa eespanhola das primeiras civilizações. A cidade e seu porto são referências e marco da origeme da evolução do Sul do país.

A industrialização tem como marco o ano de 1873, a implantação das indústriastêxteis, de pescado, de conservas, de cerveja e outras. Até as primeiras décadas do século XX,essas atividades geram um grande fluxo migratório de brasileiros e estrangeiros em busca detrabalho nas indústrias e no porto, aumentando as necessidades de habitações e de expansãourbana; a cidade novamente se expande por outros aterros, estendendo-se linearmente,estruturando-se então os novos bairros, os espaços públicos abertos, os existentes e os novos.

Os estrangeiros demonstram nas indústrias, na construção do Porto Novo, nasinstalações complementares e na construção dos molhes da Barra as suas experiências emanifestações através do uso de novas tecnologias, formas de construir e gostos diferentesque são adotados nas edificações projetadas e construídas por esses cidadãos, nas quaisrevelavam a preocupação com a qualidade do espaço privado, relação e integração com oespaço público na promoção da estética urbana e da imagem da cidade.

O Bairro Cidade Nova foi o primeiro Bairro Residencial projetado na cidade do RioGrande, em 1878. Construído com expansão da cidade a partir da linha de Trincheira, que

delimitava o perímetro urbano da cidade. Nesse local foi aberto o Boulevard ou AvenidaMajor Carlos Pinto1.

A Avenida (Boulevard) Major Carlos Pinto - Rio Grande. RS

Este trabalho não tem a intenção de apresentar uma receita de como fazer e sim umademonstração de experiências que muitas vezes passam despercebidas pelo fato de nãofazerem parte de um programa, projeto ou plano detalhado de grandes investimentos, prazospara início e término pré-estabelecidos. A pouca divulgação e muito experimento é o quecorre no caso específico da Revitalização da Avenida Major Carlos Pinto na cidade do RioGrande, Rio Grande do Sul. Uma experiência simples e de parceria com a comunidade queconsiste da flexibilidade dos instrumentos fixos de controle urbanístico e das atividades paraesta área da cidade.

A intenção é acompanhar a dinâmica e o comportamento deste lugar, através dapermissão de atividades antes proibidas e agora permitidas e monitoradas. A diferença talvezesteja na vontade de acertar, corrigir as falhas e entender as solicitações e tendências atravésda diversificação das situações apresentadas. Entende o Poder Público que essa experiêncianão significa intervenções sem critérios e sim uma nova situação de vivência junto à

comunidade e desta forma encontrando eco nas mudanças. Os problemas encontrados estãoalém da permissão de usos e de mecanismos que permitam resultados imediatos e de interessede poucos. O fundamental é a animação e convívio no local como forma inicial de um planomais abrangente e que venha gerar novas possibilidades de trocas e de convivência pacífica eharmoniosa entre as transformações e permanências.

A Avenida Major Carlos Pinto – Origem e Características

O Bairro Cidade Nova tem sua ocupação já registrada nos mapas 1909, é configuradopor um desenho urbano hierarquizado por classe social, diferenciado na dimensão dos lotes epelas ruas e avenidas arborizadas com distinção dentro conjunto urbano e em destaque a Av.

1 Nas décadas de 20 e 30 do século XX, as melhorias sanitárias e de drenagem urbana são fundamentais paraque a cidade possa manter o ritmo de crescimento e melhorar a qualidade de vida. Para realizar os projetosnecessários, em 1916 é contratado o Engenheiro Sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, consideradoo pioneiro no Brasil e na América Latina em engenharia sanitária e ambiental. Anteriormente já havia realizadoprojetos de saneamento e drenagem urbana em importantes cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro, Santos,São Paulo, Recife, Porto Alegre e Pelotas. Com estudos em Paris, o Engenheiro com visão moderna deurbanismo, prioriza o saneamento e a drenagem, unidos à estética urbana. Apresenta os princípios de CamilloSitte e forte influência do desenho da proposta de Pierre-Charles L’Enfant, para Washington (1791). Saturninode Brito é o precursor no Brasil do Zoneamento por atividade e desenvolveu para Rio Grande um Plano deSaneamento e de Drenagem Urbana juntamente a um plano de ordenamento de uso, atividades e de padrõesconstrutivos em harmonia com o lote e espaço urbano. Preocupação que não era de praxe na cidade comotambém em todo o país. Em síntese, o sistema de drenagem urbana proposto é o existente ainda hoje e que dividea área urbana da cidade em quatro setores, sendo três canais transversais à malha urbana e que deságuam naLaguna dos Patos e Saco da Mangueira e um Lago na Praça Central. Esses canais popularmente conhecidoscomo canaletes coincidem com os limites dos bairros e áreas de expansão urbana e foram projetadas com feiçãoe tratamento de Boulevares e que ainda demonstram eficiência como principais elementos no sistema viário dacidade. Os boulevares serviriam de cinturões verdes de contorno dos bairros, conforme a tendência européia dasCidades Jardins. A Praça Central da cidade, o grande lago projetado capta ainda hoje as águas de seu entorno edaí por bombeamento seguem até a Laguna dos Patos. Afirmam alguns pesquisadores que Brito avançou oconceito de cidade jardim, muito antes de Ebenezer Howard, formular o texto “To-morrow: a peaceful Path toReal Reform”, publicado pela primeira vez em 1898.

Major Carlos Pinto, é o melhor exemplar deste desenho e intenção e as construções doscasarões apresentam um padrão e qualidade diferenciado. Pertenciam a empresários e altosfuncionários das antigas indústrias ou de empresas ligadas às atividades portuárias, tendênciaque permanece até hoje. A contribuição dos estrangeiros está expressa na qualidade dapaisagem urbana da Avenida Major Carlos Pinto.

A Avenida Major Carlos Pinto é um dos elementos da drenagem urbana, programadopor Saturnino de Brito. A feição atual foi dada pelo projeto do Escritório de Engenharia RAHRONS - Secção de Architectura, de Porto Alegre nos anos 30 do século XX, segundo asplantas e fotos do Arquivo Municipal – SMCP - PMRG

Com esse espírito de modernidade se consolida o Bairro Cidade Nova, em especial aAv. Major Carlos Pinto, até meados do século XX. O uso essencialmente residencial e aelitização deste setor da cidade, que gera uma separação natural e o quase que isolamento emsi, inibindo a convivência da população não residente, que utilizava o espaço apenas comopassagem. No período da Ditadura Militar, entre 1964 e 1985, foi interrompido o trânsito nafrente dos quartéis localizados no extremo sul da Avenida, fazendo com que a população sesentisse vigiada e até mesmo proibida de circular nesta área da cidade.

Mantendo a comparação entre algumas semelhanças referentes à Avenida Major CarlosPinto, em Rio Grande e à Rua dos Andradas (da Praia) em Porto Alegre, é possível inferir queambas vivenciaram comportamentos semelhantes no mesmo período, sendo que na Rua daPraia, no trecho em análise, os Quartéis concentrados em quatro quarteirões mantinham quaseque constantemente interrompidas as ruas do seu entorno, para acesso de automóveis e à noitetambém era interrompida para pedestres. Tal postura de alguma forma foi fator proibitivo e dedesconforto de população residente, naquela parte do Centro da cidade, ao invés de se sentirprotegida, se sentia demasiadamente vigiada e foi se afastando.

A Avenida Major Carlos Pinto é o limite, é a franja entre o Centro e o Bairro CidadeNova, se apresenta como um local nobre da cidade, diferenciado pelo padrão das construçõesde residências palacianas, implantadas isoladas do grande lote ajardinado. Muitas em estiloNeo-Colonial, Proto-Modernistas, seguindo as Modernistas e Contemporâneas.

O espaço público, os passeios laterais são arborizados com jacarandás e cedros, apavimentação com ladrilho hidráulico formando tapetes individuais em frente às casas, que

ainda guardam a tradição da cidade. Os passeios centrais que ladeiam o canal central, floresdos arbustos proporciona uma beleza singular e reforçam a grandeza do conjunto. As muretascom balaustres e bancos....

A Revitalização Espontânea da Av. Major Carlos Pinto

Síntese das intervenções realizadas: as permissões

As intervenções:

- Melhoria nas Pavimentações e dos Passeios Públicos;- Melhoria na Iluminação Pública;- Instalação do Teatro Municipal;- Trânsito liberado na Frente do Quartel;- Permissão de instalação de bares e restaurantes;

- Permissão para colocação de mesas nos passeios públicos;- Permissão de colocação de toldos nas fachadas sobre os passeios públicos.- Permissão de música ao vivo e danceterias;

Os resultados:

Público-Alvo: População flutuante pertencente a todas as idades e classes sociais. Origem da população: diversos bairros da cidade e turistasHorários: TodosSegurança Pública: Guardas de trânsito e policiais, 24 horas.

Atividades Permitidas:

- Atividades Comerciais: Bares, Restaurantes, Danceterias, Teatro, Academias...;

- Atividades Lúdicas: Caminhadas, corridas, passeios com cachorros, encontros e rodas dechimarrão;

– Atividades Eventuais: com grande concentração de público. Comemorações e festejos detorcidas de clubes de futebol, passeatas e desfiles.

FOTOS 04 e 05 – Convivência em tardes de sol, na Av. Major Carlos Pinto, Rio Grande, RS

FOTO 07 - A

FOTOS 06 e 07 – Avenida Major Carlos Pinto: à noite, convivência em bares

FOTO 08 – Rua da Praia em Porto Alegre. Trecho em estudo:à tarde, convivência em bares e rua

FOTO 09 – Casa de Cultura Mario Quintana, Rua da Praia, Porto Alegre

FOTO 10: Praça da Alfândega, Porto Alegre: sábado à tarde

Realidade X Legislação – as tendências, as necessidades e as dificuldades

Leis de incentivo à preservação: a mais conhecida é chamada de Lei da Troca de ÍndiceConstrutivo. Pode ser considerada como um dos incentivos mais abrangentes e significativosque dispões o Município como importante instrumento de negociação para viabilizar as açõesdesejadas na preservação do patrimônio histórico, na reabilitação e na renovação urbana. É apreservação promovendo a renovação e a valorização de áreas importantes dentro da cidade.A Lei é de 1986, e estabelece critérios para que um Bem de Interesse a ser preservado, possanegociar o potencial construtivo de seu terreno, para ser construído em outro local,previamente definido pelo Plano Diretor.

A função do Planejamento Municipal deverá ser coerente e responsável visando aosinteresses da cidade, por isso a importância da participação da sociedade. Dotar o municípiode mecanismo adequado à Revitalização, o que deve variar de acordo com as particularidadese interesses de cada área; dimensionar a capacidade da área com equilíbrio entre habitação eoutras atividades, de forma que o mercado imobiliário possa produzir novas e readequar asedificações existentes.

Primeira intervenção: A Pavimentação dos Passeios Públicos e Nova Iluminação

A primeira medida do Poder Público foi buscar parceria com uma empresa privada quemanifestou interesse em financiar os ladrilhos hidráulicos para a pavimentação dos passeioscentrais, desde que, a cada trecho de 100 metros estivesse a sua marca estampada em umafaixa diferenciada na cor. A mesma empresa financiou as placas indicativas das ruas.

A iniciativa pareceu interessante e a Prefeitura reativou a fabrica de ladrilhoshidráulicos e repavimentou grande parte dos passeios centrais da Avenida. A partir daí oespaço passa a ser utilizado para caminhadas diurnas e a freqüência dessa atividade fez comque a Prefeitura logo melhorasse a iluminação pública. Assim oportunizou o uso do espaço ànoite para as caminhadas como também para passeios e contemplação, tanto para pedestrescomo para motoristas de automóveis.

O passeio central já é consagrado na cidade para caminhadas desde que a Prefeituratrocou a pavimentação e melhorou a iluminação pública. Estes foram os primeiros passosantes de permitir aos bares a colocação de mesas e toldos nas calçadas e uso de música aovivo. Além dessas atividades, a Avenida passou a ser o local escolhido naturalmente paracomemorações eventuais de grande público, dando hoje ao espaço uma nova dinâmica eanimação e possibilitando novos usos, a valorização e a procura dos imóveis nesta região.

Segunda intervenção: O Teatro Municipal

A Prefeitura, com a dificuldade em encontrar um local adequado para transformar emTeatro Municipal, desapropria em 1984 o Cine-Teatro Avenida, na Av. Major Carlos Pinto eE o transforma em um dos elementos de reabilitação da cultura local em todos os sentidos,desde a tradição do teatro, já quase perdida na cidade, o espaço físico (arquitetônico) até oespaço público da Avenida Major Carlos Pinto.

O Teatro não foi o único elemento de reabilitação urbana, mas veio somar ao conjuntodas ações desenvolvidas de forma espontânea em todo este espaço. Pode-se dizer que muitasdas ações que promoveram a reabilitação, não tinham previamente esta intenção.

A convivência e a participação da comunidade na Avenida passaram a serdiversificadas. Freqüentam esse espaço, atletas, jovens, idosos, mães com crianças em

carrinhos, cachorros que vão passear com seus donos, grupos amigos se reúnem parapaquerar, tomar chimarrão ou caminhar. Não existe a diferença de cor, idade e classe social.

Terceira Intervenção: A Legislação Urbanística

O Plano Diretor

O Plano Diretor de 1973 não incentivou a construção neste trecho da cidade, por sorte,preferiu densificar primeiramente a área central e, no Plano de 1986, a Avenida é um espaçolimite entre os bairros, uma espécie de franja menos sedutora que as unidades (zonas)

vizinhas, com oferta de lotes com as mesmas dimensões e com preços mais baixos para maisárea construída. A procura no Boulevard é para construções.

A Avenida Major Carlos Pinto é limite de unidade de planejamento, do Plano Diretor(1986), onde as maiores alturas permitidas são as voltadas no sentido Bairro – Centro, sendoesse fator de desinteresse dos investidores privados e da desvalorização imobiliária da área.Este condicionante de contenção era apenas um mecanismo para impedir grandes construçõesem locais com deficiência de serviços e redes de infra-estrutura. E que indiretamentecontribuiu para a preservação desta área.

Por que chamar de espontânea essa seqüência de ações que não foram estabelecidasdentro de um programa como meta, com verbas e projetos pré-estabelecidos? A melhoria naspavimentações e iluminação pública e a compra pela Prefeitura do desativado Cine-TeatroAvenida, para transformá-lo em Teatro Municipal, foram os primeiros elementos dereabilitação desta área. A partir daí o local passa a ser utilizado para caminhadas a qualquerhorário e por todas as classes sociais. Passou aos poucos a ser um local de passeios e deconvivência para qualquer idade, encontros, rodas de chimarrão.

O Código de Posturas Municipal

O Código de Posturas do Município do Rio Grande é de 1945 e faz muitas restrições(proíbe) ao uso do espaço público para muitas atividades, dentre elas colocação de mesas nospasseios públicos e praças e limita também aglomeração de pessoas e barulho com música apartir das 22 horas. Essa forma genérica e proibitiva das posturas e de vizinhança. Condiçõesproibitivas e não mais condizentes com as posturas atuais, não permitindo, por exemplo, ainstalação de bares, com toldos e mesas nos passeios públicos e de forma alguma o uso demúsica nos bares.

A Lei de Troca de Índice de Aproveitamento

A troca de índice construtivo permite que o proprietário de bens inventariadosconsiderados como de valor histórico possa vender o potencial construtivo (Índice deAproveitamento) que poderia construir em seu terreno e assim, vender para ser utilizado emoutra zona da cidade, onde a Prefeitura tenha interesse em induzir o desenvolvimento.

Esse é um dos instrumentos que a Prefeitura dispõe como recurso de negociação e decontrole das construções no caso. O Município através de um banco de oferta de área a ser

construída (Índice de Aproveitamento), que é oferecido para algumas áreas com especialinteresse e assim permitir maiores índices construtivos. No caso da Avenida Major Carlos, oseu potencial pode ser dirigido a áreas próximas, consideradas de indução ao crescimento. É apreservação e a renovação juntas revitalizando a cidade. O investidor deve ser informado dovalor que esta política urbana significa para a qualidade de vida da cidade e como diferencialno resultado do investimento, que antes parecia inviável e inibidor de desenvolvimento. Este éum recurso que deve ser mais bem aproveitado e divulgado, quebrando a cadeia negativa

entre os interesses da preservação e do investidor e o proprietário de imóveis em situaçãosemelhante, que passa entender que o seu patrimônio é rentável como ele é e, assim, forma-seuma cadeia de interesse entre a preservação, a reabilitação e a sustentabilidade (o potencialeconômico do bem histórico).

Conclusão

Na Revitalização proposta, as intervenções devem continuar espontâneas, sem pressão,com estratégias para humanização dos espaços e incentivo às atividades compatíveis com osinteresses já manifestados pela população usuária e não apenas por razões técnicas e/ou pelapressão dos investidores. Deverá estimular as atividades relacionadas à habitação e ao lazer.Essas intenções estão próximas do conceito de “centros de germinação”, que são locais ondese realiza uma intervenção planejada e que possa ser o início do processo de Revitalização.No caso da Av. Major Carlos Pinto, um processo linear, considerando a forma de incrementaras ações de iniciativa do Poder Público e que deverá induzir o desenvolvimento da área e dospólos de atração conectados por esse eixo, apresentado como atrativo ao mercado investidoros empreendimentos nos setores de habitação, comércio, turismo e lazer.

Conclui-se nesta análise que o processo de Revitalização deve envolver a sociedadecomo um todo com participação ativa e decisiva no processo, desde a escolha das atividades,até a implantação e o uso. A Revitalização deve recuperar aspectos e valores perdidos entre acomunidade, a habitação com as demais atividades.

O êxito da Revitalização está ligado diretamente aos incentivos e iniciativas do PoderPúblico na realização das ações e investimentos iniciais como base de preparação paradespertar o interesse do mercado e projetos futuros.

A REVITALIZAÇÃO não é mais apenas uma questão de preservação histórica e sim depotencialidade para resolução de alguns problemas de difícil solução na maioria das cidadesbrasileiras, como por exemplo, a questão da moradia. Portanto a condição privilegiada dasáreas centrais e de outras áreas degradadas, dentro do contexto urbano das cidades, tornairreversível a revitalização destas áreas que deixam de ser o problema para serem elementosde contribuição para a solução de tantos outros.

Referências

BORGHETTI, J. C. de L. (1999) Transformações e Permanências do Centro Cívico daCidade do Rio Grande. PRPAR/UFRGS. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, Brasil.BRITO, S. de. (1944) Urbanismo – Estudos diversos. Rio de Janeiro._____. (1944) Saneamento de Pelotas e Rio Grande. Rio de Janeiro.

COMAS, C. E. D.(1986). Cidade Funcional versus Figurativa. Revista AU. Nº 9, São Paulo:Pini.PESCI, R. (1987). “La Ciudad como Sistema de Interfaces: El caso del gran La Plata.Montevideo”. SEMINÁRIO REGIONAL SOBRE ESTRATÉGIAS ECOLÓGICAS PARACIDADES HABITABLES/Fundación CEPA.SITTE, C. (1992) A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo:Ática. MINISTÉRIO DAS CIDADES. (2005) Reabilitação de centros urbanos. Brasília.

Outras Fontes de Pesquisa:

Prefeitura do Rio Grande. Arquivo Municipal. Mapas e LegislaçãoPrefeitura de Porto Alegre. Arquivo Municipal. Mapas e Legislação

http://www.riogrande.rs.gov.brhttp://prefpoa.com.br

FOTOS: As fotos foram produzidas pelo Autor.

LA PERDURACIÓN DE LOS ESPACIOS SIMBÓLICOS ABIERTOS EN LA CIUDAD

DE MÉXICO. MANIFESTACIÓN COMPARATIVA ENTRE LOS SIGLOS XVII Y XX.∗∗∗∗ Dr. José Silvestre Revueltas Valle e-mail: [email protected]

Colectivo de Teoría y Proyecto. Departamento de Investigación y Conocimiento para el Diseño.

Universidad Autónoma Metropolitana. Unidad Azcapotzalco. México. RESUMO El espacio público en México ha tenido largos antecedentes. Ya desde la época prehispánica, la función primordial de los mismos ha sido vinculada con la religión, y, en su desdoblamiento más claro, con la fiesta. Pensados para albergar a grandes congregaciones, se utilizaron también como sitios de mercado, puntos de intercambio de productos, en algunos casos, provenientes de todas las partes del llamado reino mexica, como ocurrió con el famoso de Tlatelolco. Llegados los españoles en 1519, fueron prontos testigos de esta cualidad de las plazas, de las cuales pongamos el caso, las grandes matanzas en Cholula, Tepeaca y Tenochtitlan, no hubieran podido perpetrarse sino hubiese habido este soporte físico. Durante los tres siglos que abarcó la vida de la Nueva España, la plaza siguió ocupando un papel fundamental. Sitio primero de la evangelización desde 1523, los atrios fueron los grandes herederos de los espacios religiosos prehispánicos, a los cuales se agregaron la construcción de los centros urbanos, con raíces también en el pasado indígena si bien es cierto, pero con una organización física y espacial provenientes indudablemente de Europa. Ya desde mediados del siglo XVI fueron lugares de peregrinación, sitios de visitas de santos, espacios festivos ante la llegada de un nuevo virrey, de algún arzobispo, o puntos de reunión ante la celebración de acontecimientos inusitados, como el nacimiento de la hija de algún personaje importante, o de revueltas como las de 1621 y 1695 en México. La plaza así fue adquiriendo un conjunto de símbolos que, sin oponerse a los prehispánicos, perfilaron un uso muchas veces más simbólico que práctico. Y es consecuencia lógica: lo podemos entender dentro de una sociedad llena de símbolos, tantos como la vida misma. No debemos de olvidar que la preocupación más importante de quienes fueron nuestros vecinos cuatro siglos atrás, fue la salvación de su alma en el convencimiento pleno de que la vida se encuentra más allá de este llamado valle de lágrimas. Dicho lo anterior y a pesar de las leyes de Reforma de 1857, o de la declarada vocación laica del Estado Mexicano expresa en la Constitución de 1917, los espacios públicos en la ciudad de México hoy día, poseen con creces los usos y símbolos creados con muchos siglos de anterioridad. En ellos no cupo reforma posible. La explicación se encuentra en la naturaleza vital de la ciudad, pero también y en lo más importante, en la personalidad de quienes hacemos de esos espacios una de las manifestaciones más trascendentes que puede tener nuestra ciudad. “País castellano y morisco, rayado de azteca”. Ramón López Velarde. “No quiero más cuidados de bienes tan inciertos, sino tener el alma

∗ Este trabajo hubiese sido imposible de ser realizado si no es por la valiosa colaboración de Nayeli Mariscal Torres, alumna distinguida de la licenciatura en arquitectura de la UAM Azcapotzalco y miembro amiga de nuestro departamento.

como que no la tengo.” Sor Juana Inés de la Cruz. Para Ana Clara Fabaron. Es el mes de enero del año de 1613 en sus primeros días. El frío caracteriza a esta distante parte del reino, que al momento abarca a España, pasando por supuesto por Portugal, hasta llegar a buena parte de lo que será América Latina, entre otras posesiones. En la ciudad de México Tenochtitlán, reunido el Cabildo sesiona. La importante corporación que se autonombra la “ciudad”, se encuentra en el proceso de designación de los cerca de cincuenta principales puestos, con sus respectivos sueldos. Es el motivo principal que justifica la cita, en un martes en el que fueron honrados con la presencia de miembros importantes de la Real Audiencia y de la que se encuentra enterado Diego Fernández de Córdova, marqués de Guadalcázar, virrey de la Nueva España, apenas con unos meses de residencia en el virreinato y, él no lo sabe, en un cargo que ocupará durante nueve años. No obstante la trascendencia del acto, y con justificada razón, el virrey se encuentra más preocupado por otro tipo de asuntos, mismos de los que el acta de Cabildo del dos de enero del citado año dará fe: “Este día, habiendo la ciudad tenido noticia de que la noche antes había Dios alumbrado con bien de una hija, a nuestra señora la marquesa de Guadalcázar, en conformidad se acordó que para demostración del regocijo y del gusto que esta ciudad tiene de este buen suceso, y de que es la primera hija del virrey que nace en estas indias, de conformidad acordó que esta noche se hagan luminarias en estas casas de cabildo, y en las plazas frontera de ella, así que se da orden al mayordomo para que gaste lo que fuera menester en leña, piras y cohetes”, agregando además otro dato sumamente halagador: “que haya luminarias y máscaras y encamisadas por el parto. Así mismo, suplica la Ciudad al señor corregidor que haya luminarias generales en toda la ciudad y que de licencia para que haya máscara general y encaminada esta noche y mañana en la noche y se pregone.”1 Una gran fiesta que duró todo el mes, una fiesta en honor de la niña criolla, (hija de padres españoles pero nacida en América), una fiesta que tuvo en la plaza principal y en los edificios de su perímetro, el escenario digno, tanto para la niña como para una sociedad cortesana en su cúspide, necesitada de festividades religiosas y civiles, necesitada más aún de celebrarse y reconocerse así misma. Aprobada indirectamente por la cultura y quehaceres urbanos de la época, y por supuesto, por su institución más representativa en la estructura de poder, el Cabildo de la Ciudad fue capaz de desplazar recursos para honrar a la recién nacida, antes que para proponer arreglos urgentes en la capital del virreinato, mismos que demandaba por todas partes. Muestra de intereses y escala de valores, reflejo de la estructura patrimonial que la encabezaba. Años después, Sor Juana Inés de la Cruz en Los empeños de una casa escribió unas líneas que hubiesen venido muy bien para alabar a la causante del referido y feliz acontecimiento: “Decirte que nací hermosa / presumo que es excusado, / pues lo atestiguan tus ojos / y lo prueban mis trabajos.” La celebración por el nacimiento de esta niña es claro reflejo de una tradición en la cual la festividad ocupó un papel de primera línea en prácticamente todos los órdenes y lugares de la sociedad novohispana. Estas celebraciones, esencialmente, tuvieron una doble función: primero de cohesión entre los múltiples y variados componentes del reino, naciones y castas, con un personaje omnipresente: el rey. Esta condición se vio más acentuada en tanto las celebraciones se encontraban convocadas por un acto de carácter político, como es el caso del arribo de un nuevo virrey, o la llegada de un arzobispo, o de miembros de la Audiencia; es uno de los principios de unidad imprescindibles cuando la comunicación y relación entre el virreinato y el distante monarca fue mucho muy esporádica. Por el otro, en la fiesta tenemos la presencia de una comunión de la mayor importancia: la mezcla de la nación española con la nación indígena,

1 .- Actas de Cabildo de la Ciudad de México, dos de enero de 1613.

constituyentes ambas de un todo que se pretende y supone unitario, para bien del buen gobierno, pero que mucho dista de serlo, y que no obstante a pesar de la apariencia, fue una de las características de personalidad que se encuentran formando ese enorme mar de diferencias que constituyó al virreinato novohispano.

Ackermann,George, Vista de la ciudad de México 1826.

Es así la fiesta y sus múltiples motivaciones en la Nueva España lo que tiende, junto con otros elementos claro está, a la generación de símbolos, la recreación de mitos, la asignación de santos tutelares, la celebración de fechas peculiares, la creación de una historia un tanto más íntima que la oficial, la cotidiana, la de todos los días, a la que se agrega el necesario rompimiento de una aparente rutina. Una vocación “fiestera” presente en esta sociedad, cohesión y cemento de la misma, se convirtió en un proceso de identidad que requirió de la presencia del soporte físico, sea este la plaza, la calle, o la vestimenta elegante de los edificios más representativos. Todos integrados formaron parte de una múltiple manifestación de las creencias más sólidas que hacen que un grupo social se encuentre presentando los rasgos que lo definen en la forma en que son y no de otra manera, y en los cuales el virreinato se definió con creces en aspectos coincidentes y centrales: quizá la vocación por la salvación del alma, quizá el ser grandes donadores de limosnas, quizá un rasgo de orgullo frente a otras ciudades del mundo, seguro sí la creación de símbolos de identidad de primera importancia, materializados por ejemplo en plazas, iglesias y santos. Pierre Chaunu señala que la concepción hispánica del espacio urbano corresponde a los símbolos derivados de la fiesta. Octavio Paz en su trabajo sobre Sor Juana lo sintetiza en una manera brillante: “Todas nuestras localidades, de la aldea a la ciudad, tienen un centro de reunión y de convergencia: la plaza. En la plaza la fiesta se despliega y al desplegarse realiza: la fusión de los distintos elementos que componen a la sociedad y la reafirmación de los vínculos entre el señor y sus vasallos”. Y, agrega, en palabras de Chaunu: “La fiesta fue la relación pública privilegiada de la monarquía. De ahí que desempeñe un papel capital en la construcción del Estado. La fiesta tiene un lugar especial en la gran historia.”2 Este tipo de lugares de reunión, tiene una serie de antecedentes y coincidencias entre los distintos mundos que alimentaron a la naciente sociedad virreinal, tanto por la rama europea, como ya se ha adelantado, como por la americana. Muchas de estas coincidencias estarán presentes en la ciudad de México, desde el momento mismo en que Cortés respeta una porción de la plaza del Templo Mayor, asimilándola dentro de la concepción europea, pero en la cual no necesariamente desaparece del todo el simbolismo que se ha creado a través de los siglos en el 2.- Paz, Octavio, (2003) Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fe, (Fondo de Cultura Económica, Sección de Obras de Lengua y Estudios literarios, décimo tercera reimpresión, México, p.199.)

México prehispánico. Es la creación de lo que en el devenir del tiempo se llamará El Zócalo. Hay, en el siglo XVII para celebrar el nacimiento de esta niña por ejemplo, en la plaza central elementos coincidentes a las dos culturas, mucho más marcados de lo que en una primera instancia se pudiese considerar: ¿qué acaso no hubo múltiples plazas en las grandes ciudades prehispánicas y en ellas se realizaron, entre otras cosas, las trascendentes celebraciones religiosas?, ¿no fueron además, en algunas de sus variantes, lugares de mercado, transformando al intercambio comercial en uno de los parámetros más trascendentes de interrelación cultural que cualquier ciudad pudiese llegar a tener?, y, ¿no también, fue el lugar de reunión de la jerarquía religiosa y militar, sus símbolos y difusión de ideas?, y, por último, ¿qué acaso, por el otro lado, no muchas de las ciudades españolas tuvieron en estas plazas lugares en los que se alternaron el mercado y las festividades, puntos comunes de convergencia y socialización entre los distintos estratos y ramificaciones culturales y religiosas que conformaron a la peculiar sociedad española en la Edad Media? La plaza y la calle, determinación principal de la geografía urbana, poseen en sí mismas una cantidad muy importante de símbolos que el tiempo, la historia, las costumbres, y, en no pocas ocasiones la religión, van caracterizando. Señalando asimismo muchos elementos que van más allá del soporte físico inicial que aparentemente las define, ya como espacio de tránsito y distribución del espacio, ya como ordenadoras de la geografía urbana. Octavio Paz trae a colación una cita de Paul Valéry que es aplicable al proceso de continuidad histórica que representa la plaza en su proceso de integración histórica: para nuestro caso, insistimos, en que esta se transfirió del mundo prehispánico a la Nueva España. “El criterio que mide la importancia de aquellos hechos que debemos recordar es el que se refiere a las modificaciones de la vida en sus modos de conservación, difusión y relación.”3. Linda cosa. “Conservación”, referida –en apretada síntesis- a la identidad del núcleo social con todas sus desigualdades y variantes, y que para el siglo XVII novohispano, se presupone eterno y sin la mayor posibilidad de modificación. Herencia medieval es posible argumentar, pero suponemos que la otra rama parece acercarse también a esta característica: resultaría muy difícil que en el mundo prehispánico se hubiese dado una revuelta de opresores contra oprimidos, desde el seno mismo de la estructura social, digamos, en los últimos siglos de vida del imperio mexica. “Difusión”: la fiesta, entre otro de los múltiples usos de la plaza, es uno más de los hechos que tienden a definir a los estratos de personalidad que caracterizan a cualquier grupo social. Es un momento de integración, pero de una integración que jamás pierde la estructura racial, y de poder que la sustenta. En el caso novohispano la irradiación de modas, nuevas costumbres y formas de comportamiento se dieron desde la corte. La fiesta por tanto fue una extensión de actitudes y actividades mucho más maceradas que tendieron a que se diese la comunión entre el grupo gobernante y la sociedad en su conjunto: es, además, un gran escenario, un escaparate, un momento de afirmación del dominio y sus peculiares maneras. No sin razón Mijail Bajtin en su estudio sobre Rabelais propone que “en la práctica, la fiesta oficial miraba sólo hacia atrás, hacia el pasado, del que se servía para consagrar el orden social presente”.4 La sociedad francesa que describe Rabelais se parece particularmente a la sociedad novohispana del siglo XVII.

3 .- Paz, Octavio, op. cit. p. 43. 4 .- Bajtin, Mijail, (1993), La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento. El contexto de Francois Rabelais, ( Alianza Editorial, colección Alianza Universidad, México, p. 15).

Gómez de Trasmonte, Vista de la ciudad México 1629.

Relación, decimos, en la forma básica de socialización de la dominación, desde las clases más inferiores del aparato social hasta las cumbres más acabadas que se materializan en la corte. La concretización de ello y de muchas cosas más, se dieron en la plaza, en la calle, en la necesaria invención de un espacio que albergó muchos más elementos que casas o tiendas, canales o puentes, y que en la fiesta –no importa el pretexto- alcanzaron una dimensión mucho más amplia que, digamos, la causa inicial por las que se convocaban. De lo grandioso de la misma, y es parte de su esencia, es que fueron aceptadas en su condición universal: una fiesta religiosa, por ejemplo, jamás es cuestionada; jamás se ponderó por otro lado y como hemos señalado, los múltiples gastos que implicaron las luminarias de todo el mes de enero de 1613 en honra de la hija del virrey. Por la otra rama, en el caso de nuestro país es posible rastrear el uso de los espacios abiertos desde la aparición de las primeras ciudades. En los centros urbanos fundados por los olmecas hacia el siglo trece antes de Cristo, y vistos en la creación de las ciudades de San Lorenzo, La Venta y Tres Zapotes, dos siglos después, la plaza con sus múltiples usos, estuvo presente. Orden y simetría poseen estos primeros asentamientos, orden y simetría caracterizarán a todas las ciudades meso americanas en lo porvenir. Definidas la más de las veces como reflejo de una realidad que se encuentra en otra parte que es el mundo de los dioses, y como resultado de esta concepción, adquirieron de inmediato una de sus características más trascendentes: ser centros que se convirtieron en una parte central del ritual que define a la vida toda. El mundo cotidiano, el mundo nuestro, el que se asume como reflejo de una realidad existente en otra parte, demandó y requirió un espacio construido bajo este incuestionable argumento: pirámides y plataformas, juegos de pelota a no mucha distancia, zonas de vivienda de los principales sacerdotes, todos –en suma- construidos en torno a una plaza. Se encontraron presentes, ya siguiendo un eje a veces orientado según los puntos cardinales, ya siguiendo a los distintos equinoccios, o a la posición de alguna constelación vistosa en estas ciudades primeras de meso América. Tentativamente y por ejemplo, la civilización olmeca llegó a estar constituida por unos 350 000 habitantes5 dentro de su área fundamental en su época de apogeo. Geográficamente se desarrollaron hacia el sur del actual estado de Veracruz, incluyendo buena parte del estado de Tabasco. Destacan sí los centros urbanos referidos, pero también la creación de deidades en sus múltiples representaciones, cuyo desdoblamiento se presentó en la arquitectura, en la economía, y en un esquema comercial y agrícola capaz de soportar a tan alta población. Lo fue también en la existencia de un conjunto de

5 .- Véase: Davies, Nigel, (1988) Los antiguos reinos de México, (Fondo de Cultura Económica, Sección de Obras de Antropología, México, pp. 19-58)

espacios que pudieron aglutinar a una cantidad importante de pobladores para celebrar además de a las deidades, como hemos dicho, a sí mismo. Los olmecas fueron los iniciadores de una herencia que luego será posible rastrear siglos después en culturas tan avanzadas como la del Tajín, en el norte del estado de Veracruz o en Teotihuacán, o en ciudades tan distantes como Xochicalco, en el actual estado de Morelos, espacio contiguo al valle de México y cercano de la ciudad de Cuernavaca.

José Revueltas Valle, Uxmal 2007.

Podemos concluir que con los olmecas se dio el inicio de un prototipo presente a través del tiempo en las múltiples ciudades meso americanas y que incluirá a los mayas, mixtecos y zapotecos, toltecas y, finalmente, a los aztecas hasta 1519. Curiosamente, este ritual en torno a la plaza se convertirá en pieza central, primero para la dominación militar española, luego para la cristianización de los naturales. El año de 1519 que vio llegar a los españoles a la capital mexica, el de 1521 que marcó el final de su imperio, o el de 1523 que puntualiza el inicio de la evangelización, encontrará en la plaza un peculiar aliado para sus respectivos propósitos: en la conquista militar, luego para la evangelización de los indios, en la llamada y no sin razón “conquista espiritual”. Haciendo un poquito de historia, baste recordar que las tristemente célebres matanzas de Cholula, Templo Mayor y Tepeaca fueron realizadas en este tipo de espacios abiertos y en algunos casos previo a la celebración de una festividad religiosa. Poco más tarde en 1523, el célebre franciscano fray Pedro de Gante, planteando los problemas propios de la conversión de los indios al cristianismo, optará por respetar y adaptar una serie de prácticas de las maneras en que los nativos honraban a sus deidades en las plazas, para presentarlas, bajo el mismo soporte físico, pero ahora con una nueva orientación, hacia el nuevo Dios. Los múltiples atrios, o la construcción de conventos sobre las bases de pirámides, darán muestra de esta continuidad espacial pero bajo otro enfoque. Importante es traer a colación el que esta nueva forma de diseño conventual fue determinante en la creación del trazado físico de los asentamientos, fuesen los dirigidos hacia los naturales en la congregación de pueblos, y, por supuesto, también hacia las ciudades recién establecidas, en uso mayoritario para la población criolla. Si bien es cierto estas no estuvieron exentas de barrios e iglesias para los “naturales”, pero su uso original estuvo orientado hacia la población blanca, y fueron, entre otros, los casos de Guadalajara, San Cristóbal, Antequera, Valladolid, la Antigua en Guatemala, Puebla, y, por supuesto, en la redefinición de los espacios dentro de la antigua capital de los aztecas. Centro de reunión y de mercado, de tránsito de santos y procesiones, de inicio de un esquema que se seguirá en no pocos lugares, las plazas de Santo Domingo, la Mayor y la llamada del Volador, ya en la reordenada ciudad de México, adquirieron una importancia central: vestigio

indígena, creación del espejo en el que comenzaran a mirarse los herederos de los conquistadores: el grupo criollo. Es posible agregar, ya en los inicios del siglo XVII, al jardín de la Alameda, vecina inmediata de las plazas de San Diego y, un tanto más adelante hacia el poniente, la de San Fernando, como parte de este mosaico en que se convirtió la ciudad de México. Y de memoria son las múltiples cosas que allí pasaron. Pero no obstante, este aumento de las plazas de la ciudad, la coincidencia entre los variados usos españoles e indígenas, y la resultante fusión de los mismos, existe una discordancia de la mayor trascendencia, entre el uso colonial de la misma con el uso mayoritario que se le dio durante el siglo XX, siendo la de la ciudad de México quizá la mejor muestra; el doctor Antonio Rubial señala: “El centro de la ciudad era la plaza mayor, microcosmos que resumía los cambios que vivía la sociedad. Este espacio era el escenario donde ocurría todo lo importante, era un lugar único en el que se concentraban los poderes civiles y religiosos a diferencia de lo que pasaba en Europa, donde existían varias plazas en las que se distribuían ambas funciones, la plaza mayor americana era el teatro que monopolizaba el espectacular despliegue de lo público. La plaza mayor era la quintaesencia de la ciudad”. Para agregar: “En general, a los viajeros lo que más les llamó la atención de la Plaza Mayor fue el mercado, su abundancia de frutas y verduras todo el año, su colorido, sin parar mientes en la suciedad de las acequias, quizás porque la falta de higiene era algo común a todas las ciudades del mundo de entonces. A principios del siglo XIX, el barón de Humboldt hacía una enumeración pormenorizada de lo que se vendía en la plaza y daba un cálculo interesante que nos da idea de la magnitud de su mercado: en un día común llegaba a haber 60, 000 personas en ella comprando y vendiendo”6. La disonancia la da el siglo XX como pretendemos señalar. Concentración de funciones, pero también de anécdotas y miedos, en especial en el siglo XVII, el siglo barroco. La plaza y las vivencias de la ciudad pudieron inspirar versos como los de Sor Juana, escritos como los de Carlos de Sigüenza y Góngora, o apariciones milagrosas como la de la Virgen de Guadalupe. Fue testigo además de rebeliones en contra del virrey Diego Carrillo de Mendoza, marqués de Gelves en enero de 1624, o la del memorable motín de junio de 1692. Meses antes, en 1691, un eclipse de sol evidencia las preocupaciones y remedios de la población en su conjunto ante el inusitado fenómeno, muestra también de algunos de los más profundos sentimientos de los habitantes de la ciudad; esta anécdota, con fortuna es descrita por Sigüenza y Góngora: “Al mismo instante que faltó la luz, cayéndose las aves que iban volando, aullando los perros, gritando las mujeres y los muchachos, desamparando las indias sus puestos en que vendían en la plaza fruta, verdura y otras menudencias, por entrarse a toda carrera en la catedral, y tocándose a rogativas al mismo instante, no sólo en ella, sino en las más de las iglesias de la ciudad, se causó de todo tan repentina confusión y alboroto que causaba grima... desde las ocho y media hasta las nueve y media estuvo el aire tan frío y destemplado como por invierno”7. Casi un siglo antes, el franciscano fray Juan de Torquemada dejó también un peculiar testimonio de la ciudad de México y sus habitantes, peculiar en más de un sentido, en especial por ser la visión de un religioso. Cercano al convento grande de San Francisco, convento que fue su casa durante algunos años, escribe: “...hay en este sitio, antes de llegar al dicho mercado (se refiere al de San Hipólito), viniendo de la plaza, una alameda y bosque de mucha arboleda por sus calles, muy concertada que el virrey don Luis de Velasco, el segundo (1590-1595 –primer período- y 1607-1611 –segundo período-), plantó para recreación de la ciudad la primera vez que gobernó a esta Nueva España; en medio de la cual está una muy linda y graciosa pila y otras que por los cuadros de la dicha alameda la rodean y cercan.” Para agregar: “Si las cosas dichas hacen

6 .- Rubial García, Antonio, (2002) “De teatro de maravillas a Universidad de pícaros. La Plaza Mayor en las crónicas virreinales.” En : Lafaye, Jacques, Rubial, Antonio, Tovar de Teresa, Guillermo, et. al., Plazas mayores de México. Arte y luz,(Grupo Financiero BBVA Bancomer, Editorial Clío, México, p251 y 254). 7 .- Sigüenza y Góngora, Carlos de, citado por Rubial, Antonio, (2005), Monjas, cortesanos y plebeyos. Lavida cotidiana en la época de Sor Juana. (Taurus, colección Taurus Historia, México, p. 35).

hermosa y linda esta ciudad, no es de menor hermosura sino lo que más hermosea y alinda decir lo mucho que la ilustra la gente noble, la cual es tanta en número que se aventaja a otras mayores que ella de las que hay en el mundo; porque apenas se hallará calle donde no hay casas de caballeros y gente principal y no una ni dos ni cuatro solas, pero muchas... Una excelencia tiene esta grandiosísima ciudad sobre todas las del mundo y es, que entre semana, ya que se parezca a las otras en diferencia de los hombres, el domingo y día de fiesta, no se halla entre ellos distinción; porque tan ilustre parece el oficial como el que no lo es por nobleza y sangre y tan bien vestido sale de su casa el uno como el otro, y no me alargaré en decir que algunos mejor que otros por razón de que el oficial gana su oficio el vestido que se pone, con que se honra, y el noble muchas veces no puede más que sustentar con pobreza la nobleza de sus padres, y aunque en alguna manera se podía llamar esto desorden, en una tan honrada república bien concertada, parece que no lo es, pues se permite y yo no lo refiero sino para decir la generalidad de la abundancia de esta ciudad sobre todas las demás...”8 Reflejo del sentimiento de cohesión criollo, maduración del mismo que culminará con la Revolución de Independencia en 1810, no dejará -a pesar de los múltiples cambios políticos en los siglos sucesivos en la historia del país- de ser la Plaza Central de la ciudad de México un escenario que recuperará símbolos o añadirá nuevos. Será el escenario más a propósito para recibir en la ciudad al triunfo de la Independencia en manos del criollo Iturbide en 1821, la derrota militar y posterior pérdida de Texas perpetrada por los norteamericanos en 1847, la llegada del emperador Maximiliano en 1864 durante la intervención francesa, el arribo de Juárez en 1867 en el inicio de la República Restaurada, o la victoria del general Porfirio Díaz, con el consecuente inicio del porfiriato. Será testigo de todo su desarrollo hasta su conclusión con la Revolución de 1910, y la entrada de Francisco I Madero. Sitio de arribos fantásticos, como el de Emiliano Zapata, de salidas presurosas como la de Venustiano Carranza, o de anuncios formidables como el de la Nacionalización de la Industria petrolera en 1938, la plaza central de la ciudad de México ha seguido siendo el lugar más principal de la geografía simbólica del país. No sin razón y en sus anuncios, tres siglos antes, fue marco para la fiesta de nacimiento de la hija del virrey marqués de Guadalcázar. Simbólica para la familia, simbólica para la ciudad: en la fiesta de su nacimiento pretendió, sin saberlo siquiera, hacerse partidaria de un lugar por demás significativo, y, ella en su condición de criolla, adquirió también, por el simple lugar de nacimiento, un particular significado, la de ser parte de una estructura territorial y cultural distinta a la de España. Con el triunfo de la Revolución de 1910 y su peculiar proceso de institucionalización, mismo que dio origen al casi mítico Partido Revolucionario Institucional, el ya llamado desde el siglo XIX Zócalo adquirió las funciones que la nueva corte del palacio le asignó. Quizá resulte un dato por demás inadvertido, pero no por ello menos trascendente: durante los siglos XIX y XX, ninguna de las múltiples fuerzas políticas que han gobernado al país, salvo en condiciones de verdadera emergencia como ocurrió con el gobierno de Juárez durante la guerra con Francia, han pretendido cambiar de residencia la casa de gobierno, el Palacio Nacional, la vecindad con la Plaza Mayor. Esta casa ha sido sede del poder ejecutivo, anteriormente de los virreyes y de gobernantes extranjeros, prácticamente desde que Antonio de Mendoza llegó a la Nueva España en 1535, o, desde que años antes Hernán Cortés escogiese ese punto como lugar de residencia. Desde la creación del Partido oficial por el general Calles luego de la Revolución, la antigua Plaza Mayor ha sido el lugar de reunión de las distintas corporaciones en las fechas más trascendentes del ritual cívico nacional: el primero de mayo, el veinte de noviembre, la noche del quince de septiembre, el primero del mismo mes. Lugar fue también de congregación, 8 .- Torquemada, Juan de, fray, Monarquía indiana, citado por: Revueltas Valle, José, (2001) La ciudad de México en el siglo de sor Juana: variaciones sobre el discurso del diseño criollo, (Tesis doctoral, Universidad Autónoma Metropolitana, pp. 126 y 127).

pretendidamente “popular”, para dar la bienvenida al mandatario en turno luego de alguna gira por el extranjero, de recepción ante la visita de otro semejante y honorable ínclito, o de festejo político, otrora luego de la designación del candidato –por supuesto del PRI- para ocupar la presidencia en un nuevo ciclo de seis años, o para celebrar los triunfos del PRD. Es importante señalar que todo el ambiente de convivencia social, de armonía y festividad generado a través del mercado o las fiestas religiosas a lo largo de los siglos, fiestas a las que se agregaron las celebraciones de triunfo que los distintos grupos políticos a lo largo del siglo XIX tuvieron, se perdieron durante la vida institucionalizada que el PRI y sus quehaceres demandaron. Magnífica recuperación, y es otra de nuestras más inmediatas conquistas, fue la vuelta de la manifestación popular, y de su sólida razón de ser materializada en la Plaza Central, que devolvió este espacio a la población en su conjunto, ya librada del cemento que la unía con sus gobernantes o sus partidos, y que es producto agradecido del movimiento estudiantil de 1968.

Oscar Menéndez, Memorial del 68.

Un famoso escritor, participante en el mismo, nos ofrece su particular testimonio, enlazado, por supuesto y directamente con la ciudad de México: “La calle crecía y se ensanchaba. Lentamente nos iba creciendo en la cabeza la sensación de que el movimiento era algo más grande que sí mismo. Una sensación que ahora, 20 años después, tras las pasadas elecciones, reconozco recuperada: la vaga idea de que el país podía cambiar, que podíamos partir de aquello para reconstruir un país diferente; obviamente una sensación que surgía de nuestro poder. El 13 de agosto se inicio la reconquista del Zócalo. La manifestación partió del casco de Santo Tomás, los contingentes del Poli y la UNAM marchaban alternados... Llegábamos al Zócalo más de 200 mil estudiantes. La ciudad era grande, las calles anchas. El Zócalo, la plaza más grande del mundo...”9 Días después, poco antes del inicio de los décimo novenos juegos Olímpicos, en otra plaza, en la que fuera la isla de Tlatelolco, unas cuatrocientas personas entre estudiantes, vecinos de la unidad habitacional, o simples transeúntes, fueron asesinados por miembros, en su mayoría, de la policía de la ciudad y del ejército mexicano. No obstante lo cruel e innecesario de este episodio, lo absurdo de su desenlace, se ve honrada la gran victoria que fue el 68 nuestro en la formación importante de generaciones de mexicanos –fuimos educados por ellos- que nos planteamos la posibilidad de querer ver al país bajo otro tipo de lógica y con un proyecto más justo y mejor. 9 .- Taibo II, Paco Ignacio, (1992), 68, (Editorial Joaquín Mortiz, serie el volador, México, pp. 53 y 54.)

Entre las cosas inmediatas, se obtuvo la recuperación de espacios anteriormente sólo accesibles al monopolio priísta y esto ya fue en sí un sonado avance para la ciudad, para el país, para nosotros mismos. No fue ya de extrañar posteriormente la continua llegada de manifestaciones para protestar abiertamente contra las miles de injusticias y arbitrariedades que han caracterizado y caracterizan con creces hoy día a nuestro país. Pero al igual que en la época colonial o en el México Prehispánico, en que nuestra plaza central estuvo constituida por una multitud de símbolos, el Zócalo fue recuperado –simbólicamente- para la sociedad toda en una fecha sumamente especial en la historia de la ciudad: el 13 de agosto. En el año de 1521 la metrópoli mexica es ocupada definitivamente por Cortés al rendir al joven Cuauhtémoc de tan solo 18 años de edad; el 13 de agosto de 1968 se hace presente en ella por primera vez en la vida moderna del país, una manifestación ya no controlada por las múltiples confederaciones aglutinadas en torno al PRI, y que ofrecían comida y dinero a quienes asistían; el 13 de agosto de 1968 una velada pero cada vez más abierta y fuerte oposición ante las políticas y acciones del gobierno, se había inaugurado. Esta oposición se dirigió hacia el conocido ogro filantrópico, definición genial de Octavio Paz del estado mexicano, pero también –a diferencia de la sociedad cortesana del siglo XVII- en contra de su nueva y peculiar dirigencia. Podemos adelantar, a manera de conclusión, que en lo futuro nuestros espacios centrales serán testigos de nuevas revueltas, de nuevas luchas de las que, anhelamos, surgirá más en lo real que en lo simbólico, un mejor país. Bosques de Echegaray, Emiliano Zapata y Colinas del Sur, primavera del año 2007. Bibliografía. Actas de Cabildo de la Ciudad de México. Bajtin, Mijail, (1993), La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento. El contexto de Francois Rabelais, (Alianza Editorial, colección Alianza Universidad, México). Davies, Nigel, (1988), Los antiguos reinos de México. (Fondo de Cultura Económica, Sección de obras de Antropología, México). Paz, Octavio, (2003), Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fe, (Fondo de Cultura Económica, Sección de Obras de Lengua y Estudios Litrerarios, México). Revueltas Valle, José, (2001), La ciudad de México en el siglo de Sor Juana: variaciones sobre el discurso del diseño criollo, (Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Azcapotzalco, tesis doctoral, México). Rubial, Antonio, Lafaye, Jacques, Tovar de Teresa, Guillermo, et. al. (2002), Plazas mayores de México. Arte y luz. (Grupo financiero BBVA Bancomer SA, Clío, colección Espejo de obsidiana, México). Rubial, Antonio, (2005), Monjas, cortesanos y plebeyos. Lavida cotidiana en la época de Sor Juana. (Taurus, colección Taurus Historia, México). Taibo II, Paco Ignacio, (1992), 68. (Joaquín Mortiz, serie del volador, México).

O ESPAÇO SOCIAL DA CIDADE INFORMAL: POR UMA NOVA LÓGICA NA APROPRIAÇÃO DOS VAZIOS URBANOS

Karine Koch da Silva e-mail: [email protected] F. Mariano da Silva e-mail: [email protected]

Márcia Mello e-mail: [email protected] Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Salvador - UNIFACS.Rua Visconde de Itaborahy, nº 97 B.Amaralina. Salvador, BA – Brasil

RESUMOA cidade moderna traz como traço marcante os logradouros públicos utilizados como palco para circulação de veículos, levando pessoas e mercadorias para os mais diversos locais da cidade. Eles formam eixos monumentais, definidos por uma hierarquia funcional baseada na capacidade de gerar fluxos materiais, e arquitetam a estrutura física do tecido urbano “conduzindo” o modo de vida dos seus habitantes. O logradouro público, elemento responsável pela articulação das edificações e formação do tecido urbano, nasceu com a cidade, como espaço de sociabilidade, de permanência, de vida, de trocas, de criação. Entretanto, os espaços públicos das cidades projetadas segundo os ditames do urbanismo moderno passaram a perder o valor, a importância, sendo delegados às simples funções de circular e/ou contemplar. A cidade passou a ser formada por espaços segregados onde as edificações e as pessoas se voltam para elas mesmas. Este fenômeno, apesar de presente nos países emergentes como o Brasil, veio acompanhado de fatores como o acelerado crescimento demográfico e a incapacidade financeira e de gestão dos seus governantes, originando outras realidades urbanísticas, além da cidade formal, funcional. As cidades brasileiras, na sua grande maioria, caracterizam-se pela concentração de ocupações espontâneas em áreas periféricas, habitadas por uma população carente onde as edificações são de baixo padrão arquitetônico, desassistidas de infra-estrutura e serviços básicos. Entretanto, apesar da carência material, essas populações desenvolveram padrões arquitetônicos urbanísticos de uso e ocupação que proporcionam ricas e intensas relações de sociabilidade, além da formação de redes sociais, em atividades desenvolvidas “nos” e “através” dos espaços públicos, que se decodificados, representam a identidade socioeconômica e cultural de suas comunidades. A área de estudo, o Bairro da Mata Escura, encontra-se na região do “Miolo” de Salvador, implantada em terreno acidentado e no entorno de resquícios de Mata Atlântica que serviu no passado de palco de resistência dos escravos africanos e de formação de Quilombos, deixando de herança um Terreiro de Candomblé fundado em 1918 e tombado como patrimônio cultural da cidade. Forma um grande aglomerado residencial (2% da população de Salvador-BA), ocupado por uma população de baixa renda (73% com 0 a 3 Salários Mínimos) que vive na informalidade, em condições precárias e sem infra-estrutura. O presente estudo tem como objetivo analisar os subespaços do Bairro da Mata Escura e as diferentes formas de como a população local se apropria e desenvolve atividades nos vazios urbanos, contrariando os modelos tradicionais instituídos pelo poder público municipal e/ou federal.

Palavras-chave: Ocupação Planejada, Ocupação Espontânea, Desenho Urbano,Vazio Urbano, Sociabilidade

ABSTRACT

The trade-mark of a modern city is the public spaces utilized as a stage for the circulation of vehicles, bringing people and goods to the most divers areas of the city. These public spaces form monumental axles, defined by a functional hierarchy based in the capacity to developed material flow and orchestrate the physical structure of the urban fabric began with the city witch served as a social space, of permanence, of life, of creation and of trade. However, the public areas of the planned cities according to the guidelines of modern urbanism began to

loose value and importance, and soon were delegated to the simple to the simple functions of circulating and/or for observation. Overtime the city began to be composed of segregated spaces where buildings and people became solitary. This phenomenon, besides being present in emergents countries such as Brazil, came followed of factors such as the accelerated growth of the population and financial and managerial incapacity of its governments, resulting in other urban realities besides the functional and formal city. The great majority of Brazilian cities are characterized by the spontaneous occupations of peripheral areas. These areas are inhabited by a needy population which constructs buildings of a low architectural standard, lacking both basic infrastructure and services. Nevertheless, besides the lack of proper materials these populations develop urbanistic architectural standards of use and occupation that offer rich and intense social relationship. In addition to the formation of social networks, exist activities developed “within” and “through” public spaces that if decoded represents the socioeconomic and cultural identity of the community. The area of study is the Bairro da Mata Escura (the district of Park Jungle) located in the “heart” of Salvador, implanted on unlevel ground and nearby to the remains of the Atlantic Jungle. This area served in the past as a stage of resistance for African slaves and for the formation of Quilombos. It later became home to the tradition of Candomblé established in 1918 and put under government trust as cultural patrimony of the city. This area forms a large residential conglomeration (2% of the population of Salvador-BA), occupied by a low income population (73% with a 0 and 3 minimum wage) that lives informally in precarious conditions and without infra-structure. The present study aims to analyze the subspaces of the Bairro da Mata Escura and the different ways in which the local population appropriates and develops activities in vacant urban spaces. These methods typically contradictive the traditional models established by the federal and/or municipal public authority.

Key words: Planed Occupation, Spontaneous Occupation, Urban Design, Uninhabited Urban Spaces and Sociability.

1. REFLEXÕES SOBRE O DESENHO URBANO

A cidade moderna traz como traço marcante os logradouros públicos utilizados como palco para circulação de veículos, levando pessoas e mercadorias para os mais diversos locais da cidade; formando eixos monumentais, definidos por uma hierarquia funcional baseada na capacidade de gerar fluxo materiais, arquitetam a estrutura física do tecido urbano, “conduzindo” o modo de vida dos seus habitantes. O homem era visto como um ser de pouca complexidade sócio-cultural e a cidade deveria ser projetada para tal. Para Le Corbusieur, segundo retrata Choay (1998, p.185),

Procurar a escala humana, a função humana, é edificar as necessidades humanas. Elas são pouco numerosas; são bastantes idênticas entre todos os homens, pois os homens foram feitos com o mesmo molde desde as épocas mais longínquas que conhecemos. .........................................................................................................................................Ora, uma cidade moderna vive praticamente de linhas retas; construções dos imóveis, dos esgotos, das canalizações, das ruas, das calçadas, etc. A circulação exige a linha reta. A reta é a saída também para a alma das cidades. A curva é prejudicial, difícil e perigosa; ela paralisa. ........................................................................................................................................É preciso ter a coragem de contemplar com admiração as cidades retilíneas da América. Embora o esteta se abstenha, o moralista pelo contrário, pode ficar ali mais tempo que se poderia imaginar em princípio.

E continua na página 188,

A curva é o caminho dos asnos; a rua reta, o caminho dos homens.

Se do alto contemplamos a terra tulmutuosa e enredada, veremos que o esforço humano é idêntico através de todos os séculos e em todos os lugares. Os templos, as cidades, as casas são células de aspectos idênticos e de dimensões na escala humana. Pode-se dizer que o animal humano é, como a abelha, um construtor de células geométricas.

O logradouro público, - elemento responsável pela articulação das edificações, pela formação do tecido urbano - nasceu com a cidade, como espaço de sociabilidade, de permanência, de vida, de trocas, de criação. Entretanto, os espaços públicos das cidades projetadas segundo os ditames do urbanismo moderno passaram gradativamente a perder o valor, a importância, sendo delegados às simples funções de circular e/ou contemplar. A cidade passou a ser formada por espaços segregados, onde as edificações e as pessoas se voltam para elas mesmas.

Este fenômeno, apesar de presente nos países emergentes como o Brasil, veio acompanhado de fatores como o acelerado crescimento demográfico, crise econômica e a incapacidade financeira e de gestão dos seus governantes, originando outras realidades urbanísticas, além da cidade formal, funcional. As cidades brasileiras, na sua grande maioria, caracterizam-se pela concentração de ocupações espontâneas em áreas periféricas, habitadas por uma população carente onde as edificações são de baixo padrão arquitetônico, desassistidas de infra-estrutura e serviços básicos. A população vive um processo de privatização social, pois não possui condições dignas de habitação.

A ocupação espontânea ocorre, na maioria das vezes, em um processo de gradativa apropriação do solo de forma individual e/ou coletiva, formando bairros densos e populosos. Seguindo os contornos dos terrenos, nos seus altos e baixos, a estrutura viária, descompromissada com o desenho formal, institucional, é gerada a partir de relações sociais com significados diversos. Vias estreitas, confundem-se com as calçadas, os espaços vazios são aproveitados para diversos usos, não existindo uma clara definição da sua função específica, apresentando-se como um espaço flexível, usos individuais e coletivos.

Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e a liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos. Essa ordem compõe-se de movimento e mudança, e, embora se trate de vida, não de arte, podemos chamá-la à dança – não a uma dança mecânica, com os figurantes erguendo a perna ao mesmo tempo, rodopiando em sincronia, curvando-se juntos, mas a um balé complexo, em que cada indivíduo e grupos sociais têm todos os papeis distintos, que por milagre se reforçam mutuamente e compõem um todo ordenado. O balé da boa calçada urbana não se repete em outro lugar, e em qualquer lugar esta sempre repleto de novas improvisações (JACOBS, 2000. p.52).

Estes espaços vazios contornados de edificações ocupadas com residências, comércios, serviços e/ou pequenas unidades de produção, não constituem limites de uso e ocupação específicos às edificações. Por outro lado, a ausência do automóvel motorizado, seja pela sua incapacidade formal do espaço e/ou financeira dos seus habitantes, transforma o espaço em uma “rede de calçadas”.

2. URBANIZAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E O TECIDO URBANO

Uma rápida análise do processo de urbanização brasileira é de fundamental importância para o entendimento das relações que se engendraram no seu território, e, portanto na caracterização e organização do espaço urbano. Para tanto, se faz necessário entender um

pouco o seu passado para que se entenda a forma pela qual as cidades brasileiras se apresentam.

O Brasil foi, durante muitos séculos, um grande arquipélago, formado por subespaços que evoluíam segundo lógicas próprias, ditadas em grande parte por suas relações com o mundo exterior. Havia, sem dúvida, para cada um desses subespaços, pólos dinâmicos internos. Estes, porém, tinham entre si escassa relação, não sendo interdependentes (SANTOS,1996, p. 26).

Esse quadro é relativamente quebrado a partir da segunda metade do séc. XIX, quando, a partir da produção do café, o Estado de São Paulo se torna o pólo dinâmico de vasta área que abrange os Estados mais ao sul.

A partir de 1940, novas condições políticas e organizacionais permitem que a industrialização conheça uma nova impulsão vinda do poder público, passando a investir decisivamente em infra-estrutura para o desenvolvimento industrial, principalmente nas áreas próximas aos grandes centros urbanos, visando a substituição de importações e, por outro lado, permite que o mercado interno assuma um papel crescente na elaboração para o País de uma nova lógica econômica e territorial.

Consequentemente, podemos observar, segundo os dados do IBGE, que a partir de 1940 o processo de urbanização brasileira se acelera, dá-se uma inversão no local de residência, a taxa de urbanização pula em 1940 de 26,35% para em 2000 chegar a 81,25% de um total de 169.799.170 habitantes. Portanto, a população brasileira quadruplicou e se concentrou nas grandes cidades aumentando a demanda de serviços, bens e mercadorias, destacando-se aqui o do solo urbano, atingindo em 2000 uma taxa de urbanização de 81,25 %.

O desenvolvimento urbano-industrial provocou uma aceleração das migrações regionais durante os anos 1950, 1960, 1970, no Brasil, em direção aos centros urbanos e entre regiões, tendo como principal eixo de deslocamento as regiões Nordestes em direção ao Sudeste ( MARIANO DA SILVA, 1985).

Na década de 80, segundo os dados do IBGE, ocorre uma diminuição no ritmo de crescimento populacional em todas as regiões devido à queda de crescimento populacional e à queda de fecundidade, quando a população urbana cresceu a uma taxa de 2,97 a.a., enquanto que nas décadas anteriores essa taxa era de 4,48%. A região nordeste, onde está situada a cidade do Salvador, nesse período passa a ser a quarta região mais urbanizada do país, sendo que até a década de 80 era a que possuía o mais baixo grau de urbanização. Apesar de em 1940 a região Nordeste ter quase 75% de sua população vivendo nas áreas rurais, já contava nessa época com uma cidade de mais de 500 mil habitantes, Recife. Nota-se que as mudanças ocorridas entre 1949 e 1970 apontam para uma maior concentração da população nordestina em grupos de cidades maiores.

Por outro lado, a urbanização acelerada, - conseqüência de um modelo sócio-econômico e político que privilegiou os investimentos que adotam tecnologia de ponta, ligados ao grande capital, apoiados pela infra-estrutura e oferta de serviços das metrópoles brasileiras, - veio acompanhada de problemas como a intensificação das desigualdades sociais, desemprego, violência urbana, ocupações carentes, enfim implantou um quadro de miséria que permanece presente até os dias atuais.

A população, principalmente a migrante, com baixa qualificação, não é absorvida pelos empregos industriais e/setores modernos, integram-se parcialmente no sistema social urbano, com moradia precária e insalubre, sem abastecimento de água e esgoto, alimentação

deficiente e falta de acesso à saúde e à educação – existindo ainda grande número de analfabetos.

Sem qualificação e desempregada, essa população se insere no mercado de trabalho na categoria de “faz-tudo”, sem uma renda fixa e suscetível a períodos sem trabalho. Isso se reflete no aumento das desigualdades de renda e incapacidade de acesso ao mercado habitacional formal.

198150% mais pobre .................................................................................14, 5 % renda10% mais ricos ...................................................................................44,9% renda1 % mais ricos ....................................................................................13,4% renda199550% mais pobre .................................................................................13, 3 % renda10% mais ricos ...................................................................................47,1% renda1 % mais ricos ....................................................................................14,4% renda

QUADRO 1 – Distribuição de renda – Brasil 1981 e 1995Fonte: MARICATO (2001) com base no Dieese

Criam-se sítios sociais uma vez que o funcionamento da sociedade urbana transforma seletivamente os lugares, aperfeiçoando as suas exigências funcionais. Assim, as parcelas da cidade ganham ou perdem valor ao longo do tempo. A proximidade do centro, infra-estruturado e dotado de serviços, encarece os terrenos e à medida que se distância deste, em direção à periferia, o preço diminui, refletindo os espaços desiguais que formam as cidades.

2. 1 O BNH E A MODERNIZAÇÃO DAS CIDADES

A política habitacional a partir de 1964 priorizou investimentos na construção intensiva de casas para venda como forma de estimular o setor da construção civil e também recurso com a finalidade de diminuir o desemprego, por ser atividade capaz de absorver mão-de-obra não qualificada nos grandes centros urbanos.

A diretriz principal não era assegurar condições mínimas de habitação, ficando claro que a questão social estaria em segundo plano. Programar o setor produtivo e combater o desemprego era a preocupação básica, tendo como subproduto a construção de moradias ao menor custo possível. Essa condicionante gerou conjuntos habitacionais com padrões de baixa qualidade (OLIVEIRA, 2004, p.100).

Esses conjuntos, localizados em áreas recém incorporadas ao tecido urbano pela expansão de um sistema viário, ampliaram assim não só as áreas periféricas, mas também o espaço do mercado imobiliário.

O modelo desenvolvimentista, principalmente nos primeiros anos pretendia implantar as diretrizes de uma política de planejamento do desenvolvimento nacional, e, nessa etapa, a questão urbana é vista como carência de habitações nas cidades. Com a criação do Banco Nacional de Habitação – BNH, a solução proposta foi eminentemente financeira, isto é, concessão de financiamentos de prazo longo e juros baixos aos adquirentes da casa própria, o que, de qualquer forma, supunha que os mesmos não fossem marginais ao mercado e possuíam um mínimo de renda. Não sendo esse pressuposto totalmente verdadeiro, a expressão mais óbvia da marginalidade urbana – a ‘favela’, forma de moradia estranha aos parâmetros arquitetônicos e urbanísticos tradicionais – continuou e continua a ampliar-se.Desde o início do século XX as idéias que vigoravam no Brasil eram a da nacionalidade e da modernização impondo-se sobre a questão social, os planos produziam normas destinadas a não serem cumpridas, criando assim um abismo entre a “cidade real” e a “cidade legal”, enfim, os planos produziam espaços normatizados,

mas que aceitavam e aceitam tacitamente uma convivência com espaços exteriores ao seu âmbito de regulação (OLIVEIRA, 2004,p.100).

Tal urbanização dinâmica durante todo século XX, é de uma gigantesca construção de cidades, parte dela feita de forma ilegal, sem a participação dos governos, sem recursos técnicos e financiamentos significativos. Ou seja, trata-se de um imenso empreendimento, bastante descapitalizado e construído com técnicas arcaicas, fora do mercado formal, desenvolvendo formas alternativas de organização do espaço, até pouco tempo, aparentemente caóticas. As propostas para a realidade brasileira coincidem com a planificação urbana herdada da Europa, abrindo-se uma nova etapa onde é a cidade inteira que tem de ser reformada, esse novo pensamento busca um ordenamento do uso do solo urbano, onde a princípio as coisas estão fora de seu lugar natural. É necessário ‘corrigir essa confusão’ para que as atividades se realizem em lugares apropriados. A divisão do solo em áreas específicas será instrumento privilegiado deste esforço por separar as finanças da indústria, os locais de trabalho do das moradias dos trabalhadores, dessa maneira, entra em ação juntamente com o BNH o urbanismo funcionalista, que irá caracterizar e traçar o perfil das cidades brasileiras ao longo das décadas (TOPALOV, 1999 apub OLIVEIRA, 2004).

Parte-se do pressuposto de que a nova ordem social será acimentada por essa nova ordem urbana pensada, ao mesmo tempo, como organismo no qual cada elemento contribui para a vida de todo o conjunto, é como fábrica racionalizada na qual cada função se realiza no lugar adequado e da melhor maneira possível. O Racionalismo foi proposto como movimento normatizados que traria ordem não apenas aos critérios de projetar, mas ao conjunto da sociedade, em especial àquele aspecto que mais sofrera com a industrialização – a cidade. Dessa maneira, o Racionalismo, mais especificamente o ideário de Le Corbusieur veio preencher a necessidade de uma teia arquitetônica que se adaptasse às condições limitadas da realidade urbana brasileira (OLIVEIRA, 2004, p.104).

Constata-se assim um urbanismo que iria se consolidar durante todo século XX no Brasil: a modernização excludente, ou seja, o investimento nas áreas que constituem o cenário da cidade hegemônica ou oficial, com a conseqüente segregação e diferenciação acentuada na ocupação do solo e na distribuição dos equipamentos urbanos. Na base de toda a transformação estava o processo que torna as edificações uma mercadoria capitalista, apropriada de forma distinta pelas classes e grupos sociais (MARICATO, 1998).

Essa modernidade espelhada em modelos externos caracteriza-se por produzir um espaço público, cujo “público” privilegiado são as elites com os seus respectivos valores e padrões. Deixa de lado um enorme espaço – aquele das camadas populares – que se caracterizou como território da exclusão, da informalidade, da não-vigência das normas. Consequentemente, o produto concreto dessa prática de urbanismo, resultou em dezenas de agrupamentos de construções segregados, seja pelo alto padrão,em altura, ou com desenvolvimento horizontal, isolados dos contextos urbanos aos quais se deveriam relacionar. Praticava-se assim, a periferização oficial e compulsória de largos segmentos da população com custos baixos; em longo prazo, a consolidação dessas periferias demandou investimentos altíssimos na instalação de infra-estrutura negada no primeiro momento.

O urbanismo modernista revelou-se como ‘idéias fora do lugar’ em relação ao rumo não planejado que o crescimento das cidades brasileiras tomou. Os planos funcionalistas, vigentes durante quase todo século XX, eram holísticos e previam uma aplicação universal, que, entretanto não acontecia. Apenas uma parte da cidade seguiu os parâmetros modernistas (MARICATO, 2000) sustentada pelos investimentos públicos através do SFH/BNH, sem levar em consideração as questões relativas ao desenvolvimento urbano como um todo. Muitos dos conjuntos habitacionais construídos em todo o país trouxeram mais problemas

para o desenvolvimento urbano do que soluções. A má localização na periferia, distante das áreas já urbanizadas, isolando e exilando seus moradores, foi mais regra do que exceção.

Com o fim do BNH, por decreto presidencial em 1986, dois anos antes de ser promulgada a Constituição Federal de 1988, a Caixa Econômica Federal – um banco de primeira linha – tornou-se o agente financeiro do Sistema Financeiro de Habitação, absorvendo precariamente algumas atribuições, pessoal e acervo do agora antigo BNH.

Para fazer frente à situação, um número crescente de municípios e estados deram início a programas ou projetos habitacionais realizados com fontes alternativas, em particular recursos orçamentários, e com princípios e pressupostos diversos dos adotados durante o regime militar. Abriu-se uma nova fase na política habitacional no Brasil, que passamos a denominar de pós-BNH. ( BONDUKI, s/d. p. 189).

Com o crescimento da mobilização popular nos movimentos de moradia, e o fortalecimento do município com a Constituição de 1988, o poder local tornou-se o principal interlocutor no equacionamento das demandas sociais, estando mais sensível para os problemas e soluções particularizadas. Mais adiante com a promulgação da Lei 10.257, Estatuto da Cidade, foi ratificada a necessidade de se associar a Política Habitacional ao Plano Urbano, contando com a participação popular.

Nesta produção, alguns princípios e pressupostos inovadores em relação ao que se fazia até então se destacam, tais como: desenvolvimento sustentável; diversidade de soluções; estímulo a processos participativo e autogestionário; parecia com a sociedade organizada; reconhecimento à cidade real e a articulação entre empreendimentos habitacionais e a política urbana (BONDUKI, s/d, p. 190).

Entretanto, nem todos os municípios adotaram essa postura de vanguarda, na verdade foram poucos dentro da realidade nacional. Foi nesse contexto que ocorreu e vem correndo o processo de urbanização no Brasil, onde as cidades brasileiras, especialmente as grandes e médias, tiveram seus territórios expandidos com fortes desequilíbrios em relação à oferta de infra-estrutura e serviços nos seu tecido urbano, formando ilhas diferenciadas.

3. A CIDADE DE SALVADOR E O BAIRRO DA MATA ESCURA

Fundada em 1549 sobre a colina da Sé o desenho da cidade do Salvador estava associado à sua topografia acidentada e a estrutura sócio–econômica da época. A cidade se desenvolveu sobre as cumeadas concentrando na área central as edificações militares, religiosas, edificações civis como as casas de comércio no térreo e as famílias mais abastadas nos andares superiores. À medida que se afastava do centro, a periferia era colonizada por famílias com menor poder aquisitivo. Nas encostas ficavam as edificações destinadas aos escravos e posteriormente aos libertos, e vales eram destinados ao cultivo de hortaliças e frutas. Com a fuga de alguns escravos, de origem africana, surgiam os quilombos e cultos afros, realizados nas matas, distantes do perímetro urbano.

No período Imperial, Salvador, segundo Vasconcelos (2002) deixa de ser a capital colonial. O período se caracterizou por muitas agitações sociais, civis e militares. Apesar da crise, os investimentos em infra-estrutura continuaram e a partir de 1950 os investimentos em transporte urbano permitiram a expansão espacial do tecido urbano. No período republicano, ocorre a dinamização da economia através das culturas do fumo e do cacau, a cidade se moderniza, a indústria tradicional se expande e com ela a necessidade de habitação para os operários com a implantação de loteamentos na periferia junto às áreas industriais. Foi implantada a rede urbana de abastecimento de água com a construção das represas da bacia do

Prata e da Mata Escura. Observa-se assim uma ocupação diferenciada do solo, segundo a localização e classes sociais.

Até a primeira metade do século XX, a cidade era voltada para a Bahia de Todos os Santos, e mantinha o diálogo com o recôncavo, celeiro agrícola, e as terras cacaueiras, mais distantes, através do seu porto situado na área central, no comércio, da cidade baixa. A crise na economia rural, nos anos 40 leva a cidade a receber importantes fluxos migratórios e sua população cresce , seu perímetro é ampliado, e novas ocupações ocorrem em áreas periféricas. A partir dos anos 50, de acordo com Mariano da Silva (1985) os investimentos no setor industrial foram intensos levando o governo a investir em infra-estrutura viária e portuária, redirecionando o crescimento de Salvador para o norte, onde foram implantados, nos municípios vizinhos, a Refinaria de Petróleo Landulpho Alves, o Centro Industrial de Aratu – CIA e o Complexo Petroquímico de Camaçari – COPEC nas proximidades de Salvador. A cidade de Salvador sofreu ao longo do tempo uma ampliação da segregação sócio-espacial resultando na formação de quatro subespaços distintos ( VASCONCELOS, 2002):

- o primeiro, caracterizado pelo núcleo histórico, segundo padrões urbanísticos da arquitetura colonial portuguesa, adaptado às condições climáticas e sociais;

- o segundo, pelo setor sul da ‘península’ com loteamento e construções dotadas de infra-estrutura e equipamentos urbanos de alto luxo3, segundo padrões urbanísticos Modernos, e ocupados pela população de alta renda;

- o terceiro formado pela parte norte do centro histórico, prolongada pelos Subúrbios Ferroviários na orla da Baía de Todos os Santos, onde vive a maior parte da população da cidade, habitando em alojamentos precários, mal servidos de infra-estrutura e equipamentos urbanos. Esses alojamentos, em sua maior parte, foram realizados no sistema de autoconstrução e loteamentos irregulares;

- e finalmente, o quarto, aparece a partir da iniciativa do Estado, durante os anos 70 e 80, quando foram investidos maciçamente recursos em infra-estrutura viária e na construção de conjuntos habitacionais, com edificações de três andares, na região do ‘MIOLO’ no sentido de apoiar o desenvolvimento dos setores modernos da economia que tinha como carro chefe a indústria petroquímica. Esses ‘Conjuntos’ implantados na maioria das vezes nas cumeadas e distantes um dos outros, criaram vazios urbanos que posteriormente foram ocupados e densificados de forma espontânea, como o Bairro da Mata Escura.

3.1 O BAIRRO DA MATA ESCURA

O bairro da Mata Escura é formando por um grande aglomerado residencial (densidades populacionais e domiciliar médias de 162,8hab/ha. e 43,5dom/ha., com 3,75 hab/dom. -IBGE, (Censo de 2000), 73% percebem até três salários mínimos. A parca estrutura existente situa-se principalmente nas encostas de algumas localidades do bairro.

A ocupação do bairro por habitações irregulares e precárias, sob a forma de autoconstruções, iniciou-se em meados do século passado, num primeiro momento, associada a industrialização de Salvador e conseqüentemente à necessidade de moradia para a classe operária (formada na maior parte por pessoas vindas do interior em busca de melhores condições de renda). Já num segundo momento, sua ocupação esteve associada à construção

3 Embora conte também com bolsões de pobreza como o Nordeste de Amaralina, Boca do Rio, Calabar, etc.

da Penitenciária Lemos de Brito, trazendo parentes dos detentos para o local, e com a duplicação da BR-324 que liga Salvador a Feira de Santana, facilitando o acesso ao bairro (SILVA, 2005).

Figura 1 – Mapa da aérea do bairro da Mata Escura em Salvador. Sem escala.Fonte: CONDER, 1998.

Em meio a essa riqueza natural, o bairro apresenta vários problemas ambientais: são freqüentes os desmatamentos para dar lugar a novas autoconstruções; a poluição dos recursos hídricos devido a ocupações irregulares em áreas de proteção, e as ocupações indevidas em áreas de risco de deslizamentos e em áreas próximas à rede de alta tensão. A topografia acidentada, atrelada às características do processo de ocupação determinaram a formação de um traçado estruturado a partir das cotas mais altas, com vias que chegam a cerca de 7 metros. As cotas mais altas, onde se localizam as vias principais, se destacam por representarem os pontos de centralidade do bairro e se caracterizam quanto ao uso pela presença de edificações de uso misto, ou seja, residências associadas a atividades de comércio e serviço, que na sua maioria se estendem em direção ao logradouro público. Partindo dessas vias observa-se a formação de caminhos estreitos de 2 a 5 metros de largura, vias locais, em um sentido seguindo a topografia e em outro na direção do escoamento natural das águas em direção às represas do Prata e da Mata Escura. A maior parte dessas vias não possui dimensão suficiente para a circulação de automóvel motorizado, nem possui passeios, faixa para travessia de pedestres, arborização adequada, comunicação visual ou outros elementos do

mobiliário e sinalização urbanística usual. São íngremes e ocupadas por ambos os lados por edificações de pequeno porte, predominantemente residencial, sem recuo frontal e/ou lateral. (SILVA, 2005)

A baixa qualidade arquitetônica e as reduzidas dimensões dos espaços edificados fazem com que os moradores utilizem os espaços externos como uma continuidade de suas vidas, a “rua vira casa”, e nelas são desenvolvidas as mais diversas atividades proporcionando a criação de relações sociais. Associações de moradores são criadas, na defesa dos interesses dos diversos grupos sociais. A pesquisa feita pelas alunas do curso de urbanismo da UNEB e pesquisadoras do Laboratório de Tecnologias Sócio-ambientais (LTECS) da UNIFACS, alunas da UNEB, Márcia Baggi e Karina Albuquerque, em 2006 demonstra que no bairro existem 26 associações de moradores, identificadas espacialmente por localidades. Essas associações desenvolvem atividades de interesse comum dos associados promovendo ações no campo social, econômico e cultural.

Esse conjunto, malha viária e edificações, adquiriu características ‘impares’ a medida que foi formado gradativamente por um processo de ocupação espontânea, seguindo a topografia e/ou outros elementos que se apresentassem, como uma árvore, um campo de futebol, uma declividade mais acentuada, um imóvel edificado anteriormente,a necessidade de se passar um tubo, rede elétrica, postes,e assim por diante. As edificações vão sendo implantadas de forma extremamente precária e com o passar do tempo vem ocorrendo a consolidação do bairro com pequenas melhorias. Identifica-se um ‘ritmo’ na paisagem com espaços diferenciados.

A pesquisa desenvolvida por Celles (2005) procurou identificar três subespaços diferenciados pela composição sócio-econômica e também pela qualidade arquitetônica e urbanística. Ocupados em diferentes momentos, constituem espaços com diferentes perfis sócio-econômico e urbanístico e consequentemente diferentes graus de condições de vida e inserção social. São eles Loteamento Jardim Pampulha, Nova Mata Escura e Vila Via Metrô. O primeiro originou-se de um loteamento clandestino, irregular, implantado por volta de 1985, o segundo de um processo de ocupação espontânea data de meados de 1995 e o último constitui-se em ocupação mais recente, de 2002, do popular Movimento dos Sem Teto (MST).

Segundo dados do IBGE (2000) e o questionário aplicado pela urbanista supracitada, observam-se os diferentes níveis de carência dos espaços e, consequentemente, como se relacionam com o espaço público:

- Quanto ao esgotamento sanitário, do total de 1.416 domicílios identificados na área, apenas 23% possui banheiros ligados à rede geral de esgotos, sendo que neste total o Jardim Pampulha tem 64, 20%, Nova Mata Escura 5,41%, e Vila Via Metrô apenas 1,71%, ficando evidente a hierarquia existente nessas áreas;

- Segundo o IBGE, em 2000, o lixo era coletado em 84,82% do universo pesquisado, no primeiro, segundo e terceiro espaço, em respectivamente, 94,75%, 92,08% e 17,86%. Entretanto nos dados oriundos do questionário aplicado, 90,91% dos entrevistados na Vila Via Metrô afirmam que nunca existiu coleta;

Quanto ao número de moradores por domicílio, a predominância é de até quatro moradores, variando por subespaço analisado. No Loteamento Pampulha as edificações variam de 1 a 3 pavimentos, são rebocados, com padrão construtivo médio-baixo.

Renda subespaço

ATÉ ½ SM > ½ A 3 SM > 3 A 10 SM > 10 SM S/RENDIMENTO

1º 0,00 60,71 25,00 0,00 14,29

2º 16,06 50,34 6,22 0,00 27,373º 27,27 33,33 3,22 0,00 33,33

TABELA 1 – Rendimento Nominal Mensal em 2005 – Bairro da Mata Escura. SM=Salário Mínimo (R$ 380,00).Fonte: Elaborado por CELLES, Débora (2005), com base nas informações dos questionários.

A renda mensal, indicada na tabela abaixo, demonstra mais uma vez as diferenças sociais entre as três áreas analisadas e consequentemente os diferentes níveis de inserção social e capacidade de acesso a bens e mercadorias, entre elas a habitação. Tais diferenças refletem-se nas relações sociais e conseqüentemente na apropriação e dinâmica espacial.

4. A APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS COMO MODO DE VIDA

A apropriação do espaço público no Bairro da Mata Escura acontece cotidianamente, como um hábito criado pela população que nele vive, utilizando formas alternativas de apropriação do espaço público disponível e exercendo nele atividades variadas, redes de serviços, de produção e solidariedade que acabam por transformá-lo em espaços privados, palco de relações e redes sociais.

Essa apropriação está, por um lado, diretamente relacionada à insuficiência de equipamentos e serviços urbanos, aliado ao baixo nível de renda da população, e por outro pelas características do espaço gerado a partir da ocupação espontânea. A carência material refletida na precariedade das habitações, aliada à pouca oferta de equipamentos sociais, de desemprego e busca de geração de renda, causa o “movimento” das pessoas em direção à rua, ocorrendo diferentes formas de apropriação das vias públicas. Por outro, observa-se a fartura de relações sociais que se traduzem na identidade socioeconômica e cultural dessas comunidades, com fortes relações com a cultura africana negra que pratica os seus cultos religiosos ao ar livre.

Entretanto, apesar de traços comuns entre as três áreas, as tênues diferenças existentes se comparadas ao universo da grande cidade, geram particularidades observadas a seguir.

Loteamento Jardim Pampulha

Figura 2 – Rua Direta da Mata Escura. Loteamento Jardim Pampulha.

Fonte: Acervo próprio.

Esta localidade, conforme observado in loco, por ter um traçado “planejado”, ainda que em desacordo com as leis municipais, permite a circulação de veículos de pequeno e grande

porte. As habitações caracterizam-se por um padrão construtivo superior, quando comparado aos outros dois espaços analisados, são de até três pavimentos e de alvenaria com reboco. Por de tratar de uma área de circulação mais intensa de veículos, em função da conexão com o restante da cidade, principalmente através do transporte coletivo, esta possui uma maior definição do ponto de vista formal quanto à utilização, o uso do sistema viário em relação às demais analisadas. Os passeios estreitos são utilizados por pedestre, quando da presença do automóvel motorizado, e pelos comerciantes locais com balcões de venda de mercadorias. As parcas praças existentes, onde estão os pontos de ônibus, são ocupadas indevidamente por barracas onde funcionam pontos comerciais, geralmente comércio de alimentação, bem como estacionamento de automóveis. Nestas áreas, durante o dia quando ocorre o maior número de veículos circulando, os transeuntes utilizam o espaço como passagem, entretanto ao entardecer e a noite, particularmente onde se encontram os pequenos ‘estabelecimentos’ de comércio tipo ‘barraca de lanche’, as pessoas se encontram ao ar livre para beber a ‘costumeira cervejinha’, comer o ‘sarapatel’, ‘churrasquinho de gato’,entre outras iguarias populares, bem como para jogar cartas, ‘bater papo’ sobre o dia-a-dia. Alguns desses comércios que estão situados em edificações e fazem parte dos quarteirões, abrem as suas portas e levam as mesas ao longo dos passeios e ruas como uma extensão de suas casas. Nos finais de semana, na praça do ‘fim de linha’ ocorrem, em vários momentos, apresentações de bandas de reggae com a presença de jovens da comunidade local. Nas vias menos movimentadas a presença do comércio ambulante, durante o dia, é constante.

Para suprir suas necessidades econômicas, essa população estabelece uma estrita relação de “aproveitamento do espaço público” a fim de garantir algum rendimento. Com isso, passeios, por exemplo, são apropriados para “montar um negócio” evidenciando a falta de oportunidades de emprego para a população e a utilização do espaço para fins econômicos privados (CELLES, 2005, p.80).

Em relação ao lazer das crianças e dos idosos, observamos que ocorre na maioria das vezes no interior das moradias por falta de espaços definidos. Deduzimos que, principalmente, a presença do automóvel associada aos níveis elevados de violência existentes nas cidades brasileiras traz insegurança e medo para estas faixas de idade.

Nova Mata Escura

Figura 3 – Rua Direta do Campo. Nova Mata EscuraFonte: Acervo próprio.

Na Nova Mata Escura, ocupação consolidada, as edificações possuem um padrão construtivo inferior ao Loteamento Jardim Pampulha podendo chegar até dois pavimentos. Essas habitações, na sua grande maioria, são de alvenaria sem reboco, com passeios quase inexistentes de maneira que o fluxo de pedestre se dá nas vias, majoritariamente sem pavimentação. Diferentemente da área anterior, o nível de utilização do espaço vazio para atividades públicas, principalmente para o comércio e para a prestação de serviço é maior.

Com pouca circulação de automóveis, acontece ao longo das vias atividades como oficinas de automóveis, oficinas e ponto de venda de bicicletas, serralheria, etc. As atividades comerciais constroem verdadeiros balcões de alvenaria onde deveriam ser os passeios, apropriando-se de forma ‘definitiva’ desses espaços. Quanto ao lazer, sem que haja espaços definidos, a população se reúne no final da tarde, à noite e nos finais de semana, sob as árvores e/ou algum recanto remanescentes das ocupações, geralmente acompanhadas de uma pequena barraca que comercializa, como nas demais localidades, a tradicional “cervejinha” e iguarias populares, muitas delas de origem africana.

Situado ao final da Rua Direita do Campo, próximo à escola Estadual São Miguel, um espaço que deveria ser público, mais conhecido como “laguinho”, encontra-se comprometido, parcialmente, pela ocupação por parte de um bar (CELLES, 2005, p. 83) .

Nas demais áreas livres, sem delimitações definidas por passeios e pavimentos, as crianças brincam de futebol entre outros jogos durante o dia enquanto os demais moradores no final da tarde colocam suas cadeiras na porta das residências para ‘bater papo’, jogar dama, gabão e “fofocar da vida dos vizinhos”, como outrora nas grandes cidades e ainda hoje nas cidades de pequeno porte. Nas datas festivas como o São João em junho, as ruas são decoradas com bandeirolas.

Vila Via Metrô

Figura 4 – Ocupação precária da Vila Via Metrô.Fonte: Acervo próprio.

Esta área foi denominada Vila Via Metrô devido à proximidade das obras de implantação de uma Estação do Metrô, Estação Juá. A maioria das edificações são térrea, de papelão, madeira, compensado, e outros materiais efêmeros. O sistema viário aberto pela população no momento da ocupação, em um ato comunitário, ocupa os espaços vazios criando estreitos caminhos para a circulação. A infra-estrutura em rede é puxada da rede principal pelos próprios moradores em forma de ‘gato’, ou seja, sem a autorização e cobrança do setor público. “Por se tratar de uma encosta, com aclives e declives, as escadarias nos seus recortes são sustentadas por materiais (manilha) da construção civil” (CELLES, 2005, p.85).

Nesta localidade, a utilização dos espaços públicos guarda as suas especificidades devido à precariedade das edificações e características da geomorfologia, além de se constatar que a violência é relativamente maior do que nas demais áreas analisadas. Não é comum atividades de lazer, comércio e serviço, porém, observa-se o desempenho de atividades domésticas na parte externa da área edificada, como cozinhar, lavar roupa (CELLES, 2005).

O pequeno espaço existente no interior das casa gera também nos moradores a necessidade de utilizar-se do espaço externos onde são colocadas cadeiras e desenvolvidas relações de convivência com a vizinhança.Na Vila Via Metrô não existem pracinhas nem espaços de sociabilidade para a população. As crianças brincam na porta de casa, os jovens e adultos contam apenas com uma quadra para jogos (CELLES, 2005, P. 86-87).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos assim, que como se pode observar existem algumas características que se repetem por todo o bairro, independentemente da diferenciação existente entre os subespaços existentes. São elas:

- A estrutura de emprego e renda da população e os interesses de maximizar o uso do solo são determinantes na definição dos padrões e forma de ocupação do solo urbano conduzindo à redução dos espaços coletivos;

- as unidades habitacionais são implantadas diante da estreita concepção de moradia, isto é, desprezando o conceito mais amplo de habitação como ambiente também de convivência social e provisão de todos os serviços de infra-estrutura;

- a tipologia de fracionamento, ocupação e uso do solo induz à utilização dos espaços públicos para parte de outras finalidades;

- o sistema viário é composto por caminhos abertos pela própria população que vão ocupando os espaços e criando estreitas vias para circulação. Os becos aumentam a permeabilidade do espaço para seus moradores articulando as moradias aos serviços e equipamentos e transformando o espaço público.

- a rua é utilizada para o desenvolvimento do comércio informal - utilização do espaço público para fins econômicos - ou para o lazer das crianças, evidenciando a falta de oportunidades de emprego ou de lazer para a população local (fig. 5 e 6);

Figura 5 – Crianças jogando futebol na Rua Direta do Campo, Nova Mata Escura.Fonte: Acervo próprio.

Figura 6 – Rua do Haiti. Beco no Jardim Pampulha.Fonte: Acervo próprio.

- os passeios, assim como as ruas, são também utilizados para exercício de atividade econômica informal ou mesmo como extensão de estabelecimentos comerciais particulares (fig. 7);

Figura 7 – Comércio informal sobre o passeio da Rua São Jorge. Bate Folha.Fonte: Acervo próprio.

- as praças (“fim de linha”, “campinho” e “larguinho”) são apropriadas por donos de bares para montar seu negócio, as pessoas a utilizam como estacionamento além do descuido evidente quanto à preservação do local (fig.8) ;

Figura 8 – bar e estacionamento no “Larguinho”. Nova Mata Escura.Fonte: Acervo próprio.

- o espaço existente no interior das casas é em geral muito pequeno, provoca nos moradores a necessidade de “sair” transformando os espaços “além das portas e janelas” como palco das relações de convivência com a vizinhança e como extensão das atividades domésticas.

A região necessita, portanto de uma política habitacional capaz de atender efetivamente essa população de baixa renda, procurando compreender os seus atuais padrões de apropriação do espaço, as redes de serviços, bem como os novos paradigmas do que pode vir a ser o público e o privado nas configurações que surgem do tecido urbano.

Além disso, o povoamento na forma em que ocorre na Mata Escura traz conseqüências graves do ponto de vista ambiental. A degradação do meio ambiente seja através de lançamento de esgoto e outros resíduos em mananciais, ou através de desmatamentos, oferece riscos à saúde pública ou transformam os espaços em áreas potenciais de risco, sujeitas a desmoronamentos.

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MALDITA RUA Eliana Kuster ([email protected]) e Robert Pechman ([email protected]) Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional / Universidade Federal do Rio de

Janeiro - Brasil

A cidade é uma paisagem que vale apreciar - malditamente necessária se você vive nela.Claes Oldenburg

STR. A raiz.Sternere, Street, Strada, Strasse. Ride, Rode, Rue, Rua.

“O século XIX criou a rua”, assinala a curadora do Museé D’Orsay de Paris, ChantalGeorgel, no seu livro “La rue” (GEORGEL, 1986, p.5). Embora existisse desde sempre,desde que a primeira cidade foi criada, a rua jamais terá o papel que alcança no século XIX delugar da multidão, ou seja, o de palco do espetáculo urbano. Na Idade Média, por exemplo,segundo Lewis Mumford (MUMFORD, 1961, p.66), a rua ocupava no planejamento dacidade um lugar bem diferente do que teve posteriormente como espaço da cena urbana. Era apraça do mercado, situada junto à igreja, que atraía e acolhia o ir e vir das pessoas. Naprimitiva cidade medieval as ruas eram antes linhas de comunicação que vias de transportes,pois que estreitas e cheias de volteios, muitas vezes terminavam em muros ou becos semsaída1. No entanto elas só irão perder sua insignificância séculos adiante, diante do fenômenomoderno da circulação: de mercadorias, de trafégo, de pessoas.

Se toda cultura tem seu drama característico, como sugere Mumford (MUMFORD,1961, p. 70), onde certos ritos e cerimônias são encenados, o da cidade medieval remete paraa cena religiosa, onde a igreja é ao mesmo tempo o palco e o cenário de toda dramatização.Podia ser que esse palco se derramasse pelas ruas da cidade - as procissões - mas a igreja erasempre a estação final, seja da travessia dos homens pecadores pela cidade, seja da passagemde Cristo pela Terra.

Chegamos ao Renascimento, e, com ele, toda a renovação do panorama cultural eartístico, bem como do conceito sobre as cidades. A Igreja Católica continua a ser a forçamotriz da cena urbana, mas já divide o seu mundo de misticismo com um racionalismo queprincipia a se fazer presente, através das obras de Brunelleschi, da ampliação do mundoconhecido com as descobertas dos navegadores espanhóis e portugueses, das invenções deLeonardo da Vinci. A perspectiva é desenvolvida como um ramo do conhecimento, e aaplicação de leis de proporção geométrica torna-se presente em várias áreas: na pintura, naescultura, na arquitetura e no desenho das cidades. De acordo com Benévolo, “o novo métodode projeção estabelecido no início do século XV se aplica teoricamente a todo gênero deobjetos, desde os artefatos menores à cidade ou ao território” (BENÉVOLO, 2005, p.425).Deste período, o que fica como forte imagem do espaço urbano são as tentativas derepresentação da “cidade ideal”, com desenho fortemente geometrizado e perspectivado. Oracionalismo do traçado e a estética da volumetria urbana passaram a ser valores buscadospara o ordenamento da cidade. Em uma manifestação disso, o pintor Rafael Sanzio foiincumbido pelo Papa Leão X de definir a fisionomia urbana de Roma, tornando-se osuperintendente de suas ruas. Tratava-se, não de ordenar fluxos ou usos, mas de buscar umacidade que se ressaltasse através de sua estética, atingindo assim o papel pretendido pelaIgreja para Roma, de ser a mais bela cidade do mundo cristão. Ou seja, a intenção era utilizar-se do espaço urbano como espelho para a grandiosidade do mundo do catolicismo, em ummomento crucial para isto, a Reforma Protestante iniciada por Martim Lutero. A falta de

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necessidade da criação de novas cidades, porém, fez com que esse espaço urbanoproporcional e ordenado existisse mais na teoria que na prática, e a cidade e suas ruaspermaneceram com sua forma ainda ligadas ao universo medieval.

Antes que essa via de comunicação medieval se tornasse uma rua moderna ela fêz-seavenida nas mãos dos arquitetos barrocos que fizeram da cidade o lugar do poder monárquico.A avenida, analisa Mumford (MUMFORD, 1961, p. 105), foi o símbolo mais importante e ofato capital na cidade barroca. Ali pela primeira vez toda a “desordem” do mundo produzidapor misticismos, mitologias, bruxarias e pelo pensamento tido como mágico, ou seja, vistocomo não-racional, se eclipsou diante da visão cartesiana que - agora na prática - procuravaeliminar o mágico e o sagrado e criar um universo racional, “sem qualidades”, que escapasseaos erros dos sentidos. Ora é a partir do sujeito cartesiano, que se opõe à desordem doconhecimento, que a visão cartesiana de ordenação do espaço se impõe e é efetivamenteimplementada, levando à gênese do espaço abstrato e à geometrização das cidades(PECHMAN, 1994, p. 74).

Mas se a avenida acolhia o novo movimento do tráfego em rodas ela tambémfacilitava o movimento e a evolução das tropas: “a linha de marcha ininterrupta contribuimuito para a demonstração de força e um regimento que assim se movimenta dá a impressãoque irromperá através da muralha sem perder o passo” (MUMFORD, 1961, p. 107). Aavenida não deixava de ser, fundamentalmente, um jogo de cena, uma estética cortesã.

Com o desenvolvimento dessa larga avenida,

...a dissociação entre as classes superiores e inferiores toma forma na própria cidade. Os ricosconduzem (suas carruagens ou montarias), os pobres caminham... os ricos olham, os pobresadmiram. A parada cotidiana dos poderosos torna-se um dos dramas capitais da cidade barroca.(MUMFORD, 1961, p. 108)

No entanto a avenida barroca não exprime ainda a cidade, que se ofusca diante dobrilho dos salões da corte. A rua existe, mas ainda não tem densidade urbana suficiente paraser uma metonímia da cidade. Por isso mesmo ela é deixada àqueles que nada possuem, nemnada dominam (FARGE, 1992, p. 20). Ainda que ela “junte os lamentos e gritos de todos quevão por ela vendendo ervas, leite, frutas, alho, farinha, peixe, água e miles de outras coisasnecessárias...” (FARGE, 1992, p. 17), ainda que ela seja barulhenta e mesmo infernal, aindaassim, só em finais do século XVIII e, fundamentalmente, no século XIX, a rua se torna umdos quadros essenciais da vida urbana.

É com o excepcional crescimento urbano, devido ao aumento das populações tangidasdo campo pelo avanço do capitalismo na Europa, que as cidades experimentarão toda aradicalidade do que seja a vida urbana. Em outros termos, trata-se da reconfiguração dacidade, ou seja, sua ruptura com o que ela fôra no passado e sua atualização, no sentido deabrigar as novas forças dominantes. Mas não se trata só da cidade ser o lugar dessa novapotência – econômica, científica, tecnológica, cultural, social, política - mas de suacapacidade de compor com ela, a cidade fazendo par com essa dinâmica, potencializando aprópria dinâmica capitalista.

Tal cidade, qual rua! É dessa cidade que deixa de ser o lugar de consumo da corte, édessa rua que deixa de ser um simples caminho de comunicação ou uma portentosa avenidapara o desfile de tropas e carruagens, que iremos tratar.

Não nos debruçaremos, entretanto, sobre a rua em sua materialidade ou função, não setrata de esquadrinhar a rua no plano das técnicas urbanísticas, na questão dos fluxos ou quantoao seu papel na dinâmica econômica da cidade. Não, da rua queremos o seu vivido, sua febre,seu delírio, sua alegrias, sua dor, sua ternura, sua violência, a moral e a imoralidade. Da rua

queremos a alma, aquilo que dá identidade à cidade, aquilo que a faz o microcosmo da cidade,o cerne de seu ser: a sua dimensão pública. Então a rua para além de sua mineralidade, paraalém de sua funcionalidade, se nos revela na sua publicidade. Desse ponto de vista, a rua,portanto, é a possibilidade da cidade, é a reafirmação da cidade no seu sentido mais amplo:lugar do acontecimento, arena do inesperado, possibilidade do encontro, reconhecimento dooutro, acolhimento da diferença.

A rua das multidões

Uma das mais agudas visões da rua é aquela da rua das multidões do século XIX quenos é dada por Stella Bresciani no seu livro “Londres e Paris no século XIX: o espetáculo dapobreza”. Segundo ela:

A multidão, sua presença nas ruas de Londres e Paris no século XIX, foi considerada peloscontemporâneos como um acontecimento inquietante. Milhares de pessoas deslocando-se para odesempenho do ato cotidiano da vida nas grandes cidades compõem um espetáculo que, na época,incitou ao fascínio e ao terror. (BRESCIANI, 1982, p. 11)

Um jornal popular intitulado Le flanêur lavalois de 1848 confirma a apreciação da ruadas multidões formulada por Bresciani:

Quando o sol é pleno e plena a liberdade, eu amo deixar minha modesta pocilga e baixar à rua e memisturar de longe aos grupos, que como eu, tem muito tempo a perder e nada ganhar... Eu mepermito o prazer inocente e barato de percorrer flanando os diversos bairros da cidade. Observadorcurioso eu deslizo desapercebido por todos os lugares onde a multidão se concentra, onde aspaixões se agitam, onde os sentimentos se exaltam. (GEORGEL, 1986, p. 11)

A casa, a rua, as multidões, as paixões! Esses são, talvez, os grandes temas do século,pois que nos trazem a oposição entre o privado e o público, a massa em seu fluir e fruir pelacidade, suas paixões que inundam as ruas insuflando-lhes uma alma: a alma do povo, oespectro da política.

A rua é do povo, a rua é da massa, a rua é da multidão. É a rua do trabalho, a rua daviração da sobrevivência, a rua dos encontros, a rua do protesto, da manifestação, dainsurreição. É a rua da política, a rua da vida pública. A rua espaço público se transformandoem esfera pública.

Se na Inglaterra, sugere Stella Bresciani (BRESCIANI, 1982), a rua suscita a “questãosocial”, na França é a “questão da política” que desponta. Tratava-se, portanto, deexperimentar a rua em toda a sua potencialidade. E a literatura soube bem fazê-lo. Veja-se oexcerto desse poema se referindo a Londres em meados do século XIX:

A cidade fervilha. A via pública,Onde pululam temas e discursos,Zumbe indistinta. Os filhos da discórdiaDescem o riacho dos prazeres falsos,Rumo à destruição. (RAYMOND, 1990, p. 200)

A via pública é tomada pela discussão, a política ganha foro no espaço público, adiscórdia ameaça a ordem pública. O medo de politização da cidade vem da rua propiciadorada “arruaça”:

Após sacolejar sobre as ruas de uma cidade industrial, cenário de arruaças e reuniões de sindicatos,a diligência o levaria, em dez minutos, a uma região rural, onde a proximidade só se percebia nasvantagens de ter à mão um mercado para trigo, queijo e feno, e onde os homens com polpudascontas bancárias costumavam dizer que “nunca se metiam em política” (RAYMOND, 1990, p.226)

Ninguém melhor do que Engels, que mesmo não se propondo a fazer literatura, em seu“A situação da classe operária na Inglaterra em 1844”, deixou compungida impressão sobre arua:

O próprio burburinho das ruas tem algo de repulsivo, algo contra o qual a natureza humana serebela. As centenas de milhares de pessoas de todas as classes e condições que passam umas pelasoutras na multidão, não serão todas elas seres humanos com as mesmas qualidades potenciais, ecom o mesmo interesse em ser felizes? (RAYMOND, 1990, p. 292)

A catástrofe social das grandes cidades do século XIX aponta para as ruas miseráveisladeadas de baiúcas e cortiços:

As leis sociais parecem feitas para manter Uns no luxo outros sem ter o que comer;Tuas orgulhosas mansões e templos veneráveisEstão sitiadas por cortiços miseráveis[...]As ruas à noite afrontam os céus tolerantesCom blasfêmias, pecados, crimes revoltantes. (RAYMOND, 1990, p. 320)

A rua apresenta-se sob o signo do vício e do perigo. É preciso conter a ameaça quevem daí: a peste, as epidemias, as doenças, as contaminações, a prostituição, a sexualidade, amendicância, a desordem, a incivilidade, a violência, a revolta, a insurreição e... a revolução.Representada como herdeira da rua medieval (suja, estreita, curva, escura, mal pavimentada,escura e úmida), a rua passa a ser tematizada pelas autoridades como sendo o maiorempecilho à modernização das cidades, como expressão máxima da anti-cidade:

As gerações anteriores legaram às nossas uma missão difícil: a transformação completa das cidadesque eles construíram na ignorância ou na incúria de todos os princípios da salubridade pública.Ruas mal traçadas, construções irregulares, estabelecimentos mal direcionados... pavimentaçãoincompleta, sistemas de distribuição e escoamento de águas defeituosos: estes são os vícios damaior parte das cidades antigas. (ALLIEZ, 1988, p. 21)

Era preciso romper com a “mentalidade excremencial” fruto de uma “economiapútrida” (ALLIEZ, 1988) que fazia a riqueza das cidades medievais, peroravam médicos,higienistas, engenheiros, autoridades públicas, a imprensa e os bem-pensantes de todas ascores. Mas essa ruptura só seria possível com a destruição de certas práticas da vida pública ea imposição de uma nova lógica de se viver na cidade, pautada pela linha reta e seu caudal deconseqüências.

Duas experiências radicais - Paris e Viena – ensaiariam o controle da rua e suatransformação em Boulevard. Viena com a Ringstrasse que constituiu um anel em torno daárea nobre da cidade, dificultando o acesso do fluxo de pedestres oriundos dos bairrosoperários em torno da área central. E Paris, com as reformas urbanas conduzidas, a partir de1853, pelo prefeito Haussmann que se dedicou a embelezar e reurbanizar a cidade. Segundo opróprio prefeito, “tratava-se do eventrement da velha Paris, do bairro dos motins (arruaças),das barricadas [que seria cruzado] por uma larga avenida central, atravessando de ponta aponta esse labirinto de ruas quase impraticável...” (GEORGEL, 1986, p. 20) Era “Pariscortada a golpes de sabre, as veias abertas... atravessada por admiráveis vias estratégicas,que colocam os fortes (militares) no coração dos velhos quarteirões” constatava Emile Zolano seu romance “La Curée”. (GEORGEL, 1986, p. 24)

Destruída a Paris medieval, estendido o boulevard onde antes a “canalha” das ruasapascentava seus vícios, Paris se torna uma espécie de capital do mundo urbano com areinvenção e resignificação da rua na forma do boulevard. Os artistas não ficaram alheios àrenovação imposta à cidade. Victor Hugo experimentou a destruição das ruas medievais e aimposição do boulevard com um lamento: “A velha hidra Lutécia (antigo nome de Paris) estámorta, não mais ruas anárquicas correndo em liberdade, teimosas... Alinhamento é a palavra

de ordem atual...” (GEORGEL, 1986, p. 28). Balzac, o pródigo autor da “Comédia Humana”não ficou alheio às transformações da cidade e escreveu “Histoire et physiologie desboulevards de Paris” onde se desfaz em amores pelo novo espaço onde desfilarão seuspersonagens:

Toda capital tem seu poema onde ela se exprime,onde ela se resume, onde ela é maisparticularmente ela mesma. Os boulevards são hoje em dia para Paris aquilo que foi o grande canalpara Veneza, aquilo que é a Conscia del Servi em Milão, o Corso em Roma, a Perspectiva emPetersburgo... Lá está a liberdade da inteligência, lá está a vida! Uma vida extravagante e fecunda,uma vida comunicativa, uma vida quente..., uma vida alegre, uma vida de contrastes. (GEORGEL,1986, p. 74)

O boulevard exprime Paris, e Paris exprime a modernidade urbana no plano mundial.No 2º Império o boulevard ganha cada vez mais importância, é o “lugar do dinheiro, dafrivolidade, do jogo, do acaso, o lugar da perversidade, do vício e do luxo em exagero. Nessesentido se opõe à rua, à qual a imaginação coletiva associa, logo, de maneira mítica, povo,pobreza e revolta”. (GEORGEL, 1986, p. 11)

A criação do boulevard desata uma verdadeira disputa pela cidade. A disputa entre oboulevard e a rua funciona como uma metáfora da luta de classes. A rua não freqüenta oboulevard, o boulevard não se atreve a passar pelas ruas. Não é por menos, assinala ChantalGeorge, “que o revolucionário Jules Vallès, que consagra à rua um autêntico culto, tenhaquerido, em 1867, chamar seu jornal La Rue, para melhor se opor, ao Boulevard, jornalcriado por Carjat, fotógrafo de celebridades”. (GEORGEL, 1986, p. 11) O boulevard traduzo poder da elite, a rua exprime a força popular. A rua passa a ser vista como um resquício domau passado da cidade e o boulevard representado como um “espelho da modernidade, umaespécie de alegoria triunfante da civilização urbana do século XIX”. (GEORGEL, 1986, pp.74, 75)

Essa dualidade pode ser claramente reconhecida através de uma breve comparaçãoentre algumas cenas urbanas registradas por artistas desse período. Alguns panoramas, comoos do gravurista Charles Meryon (figura 1), claramente estão buscando representar a antiga rua:estreita, suja, com toda a sua multiplicidade e mistura de classes de uma Paris ainda anterioràs obras de modernização, percebemos em Meryon quase uma nostalgia antecipada, com suasgravuras tentando fixar as cenas que brevemente iriam desaparecer sob a avalanche detransformações que aconteceriam na cidade.

Os pintores impressionistas buscam o extremo oposto: ressaltar a modernidade.Fascinados com esta nova cidade, de amplos espaços e novos boulevards, encontramosartistas como Gustave Caillebotte, que, na tela Jovem na janela (figura 2), de 1876, parte de uminterior doméstico e o contrapõe ao espaço urbano, claramente mostrando que - embora aindaesteja resguardado em sua sala - o protagonista da tela logo ganhará as grandes avenidas.Temos aqui o retrato da transição que Benjamin define como sendo a essência do ‘sercoletivo’. Esse seria simbolizado pelo ‘flanêur’, personagem criado pelo poeta CharlesBaudelaire: um homem que substitui todos os símbolos de sua vida burguesa privada porícones da vida pública das ruas. Diz Benjamin, que esse ser coletivo:

... entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto quanto os indivíduosao abrigo de suas quatro paredes. Para esse ser coletivo, as tabuletas das firmas, brilhantes eesmaltadas, constituem decoração mural tão boa ou melhor que o quadro á óleo no salão doburguês ; os muros com ‘défense d’afficher’ são sua escrivaninha, as bancas de jornal, suasbibliotecas, as caixas de correspondência, seus bronzes, os bancos, seus móveis do quarto dedormir, e o terraço do café, a sacada de onde observa o ambiente. (BENJAMIN, 1989, p. 194)

Se Caillebotte nos mostra um jovem ainda receoso / desejoso dessa nova rua, na telade Camile Pissarro, Praça do teatro francês, de 1898, já o vemos entremeado à multidão. Ele

vai ao teatro, anda de charrete, caminha na praça. E o pintor está lá, para retratar essa rua, suacotidianidade na cidade, transformando-a em um de seus principais temas, buscando novosângulos que dêem conta de retratá-la em suas grandiosas perspectivas e mostrem o espetáculode sua numerosa multidão ganhando os amplos espaços da Paris remodelada. Esta novacidade orgulha-se de suas novas praças, de seus largos boulevares, de sua crescente multidãoe quer transformá-los em símbolos de uma modernidade que esteja indissoluvelmente ligada àsua imagem.

Mais o boulevard foi se transformando numa metonímia da cidade, da modernidade,da civilização, da urbanidade e do progresso, mais a rua se tornou assunto de polícia. Conter arua! Enquadrar a rua! Controlar seus excessos, limitar sua sociabilidade são questões queatravessaram o século XIX e se derramaram pelo século XX.

Morte da rua

“A cidade se esmigalha, a cidade já não pode subsistir, a cidade já não mais convém.A cidade está velha demais”. (CORBUSIER, 1976, p. 9) Com esta declaração, feita em 1929,Le Corbusier exprime, no início do livro “Urbanismo”, o pensamento racionalista a respeitoda cidade, e, conseqüentemente, da rua.

As ruas tomadas pela multidão do século XIX não têm espaço no perfil que omodernismo planeja para a nova cidade, cuja prioridade é a circulação dos automóveis.Dentro dos objetivos traçados por este novo ordenamento, a setorização que dividia o espaçourbano entre residências, trabalho, lazer e circulação visava eliminar a mistura de atividadesque o caracterizava até então, eliminando também a grande quantidade de pessoas quetransitavam a pé nas ruas. Qual a maneira mais eficiente de atingir esse objetivo senãoeliminando a própria rua? Segundo Lamas, “é contra a morfologia da cidade tradicional quea urbanística moderna assenta as suas baterias e trava um combate sistemático. Nessabatalha, o quarteirão e a rua serão alvos principais, na medida em que constituem a suaexpressão essencial”(LAMAS, 2004, p. 346). Não só Le Corbusier já havia dado o bradoinicial, ao pregar: “Precisamos matar a rua!” (BERMAN, 1986, p. 162); como outros autoresque vieram depois dele, e nele se inspiraram, confirmaram esse ponto de vista. SigfriedGiedeon explicita com ênfase esta postura na conclusão de “Tempo, espaço e arquitetura”,que se tornou um dos principais livros a ditar os rumos da arquitetura funcionalista: “Não hámais lugar para a rua urbana, com tráfego pesado correndo entre fileiras de casas; não sepode permitir que isto persista”.(GIDEON, 1978, p. 823)

A rua é, então, substituída pela rodovia, que se oferece à passagem do trânsito, não daspessoas. Esta mudança tornou-se uma das principais características da cidade modernista -pensada para otimização de espaços e fluxos, e não para abrigar a diversidade de seususuários. Segundo a crítica de Lamas, “a aplicação exaustiva destes postulados conduziria à‘cidade funcionalista’, com as funções bem arrumadas em lugares próprios, semsobreposições - o contrário da cidade tradicional, com a mistura e promiscuidadefuncional.” (LAMAS, 2004, p. 345)

Mas quem melhor soube traduzir para a realidade do espaço urbano esse extermínio darua não foi um teórico. Foi o homem responsável por profundas mudanças em uma dasprincipais cidades norte-americanas: Robert Moses. Entre as décadas de 30 e 60, a paisagemde Nova York foi remodelada pelas mãos de Moses, que atravessou bairros inteiros com suashighways e pontes, destruiu vizinhanças e, efetivamente, contribuiu para a ‘morte da rua’ maisdo que qualquer outro planejador conhecido, tornando-se o símbolo máximo de modernizaçãopara a cidade. Não compartilhar de sua visão transformadora assemelhava-se a andar nacontramão da evolução. Segundo Marshall Berman :

Opor-se às suas pontes, seus túneis, vias expressas, projetos habitacionais, barragens hidrelétricas,estádios, centros culturais era (ou assim parecia) opor-se ao progresso, à história, à própriamodernidade. [...] No Bronx, graças a Rober Moses, a modernidade do boulevard urbano eracondenada como obsoleta e feita em pedaços pela modernidade da rodovia interestadual.(BERMAN, 1986, pp. 297,298)

De forma semelhante aos argumentos utilizados por Haussmann para sustentar asreformas na Paris do Segundo Império, Moses defendia suas intervenções radicais através deviolentas metáforas. Bradava: “Quando você atua em uma metrópole super edificada, vocêtem que abrir caminho a golpes de cutelo”(BERMAN, 1986, p. 278). Amparado por umaforte campanha da indústria automobilística norte-americana, este homem que -paradoxalmente - nunca dirigiu um automóvel, mobilizou uma quantidade enorme de recursospúblicos que lhe permitiram brandir decididamente o seu cutelo e rasgar o tecido urbano.Como se esse não tivesse historia, não tivesse vida e, portanto, fosse insensível, abrindogigantescas vias expressas, dividindo bairros e modificando radicalmente setores inteiros damalha urbana. Suas intervenções sangraram a cidade justamente onde ela tradicionalmentesempre foi mais castigada: nos bairros das classes mais baixas, compostos por negros eimigrantes judeus e latinos. A esta parcela da população não foi permitido ter voz ativa nosrumos que o seu próprio espaço tomaria.

Ironicamente, a rua, aquela que foi a grande geradora da modernidade do séculoanterior, através de seu caráter democrático que abrigava as diferenças e gestava o progresso,é esvaziada desse papel, ‘despolitizada’, passando a representar o extremo oposto : adesordem, a sujeira, o perigo e, principalmente, um passado que se deseja deixar o máximopossível para trás. Ora, a cidade é formada pelo conjunto traçado por suas ruas, uma vez queestas tornam-se ultrapassadas e são descartadas nesse processo que se pressupõe ‘indolor’, oconjunto inteiro torna-se obsoleto. À medida em que a nova realidade superurbana formadapelo conjunto de vias de tráfego rápido tomava corpo na paisagem, foi se tornando claro que acidade - a partir dessa nova imagem - forçosamente teria que passar por readequações ou sertotalmente descartada no formato que possuía até então.

As representações da rua que encontramos nesse momento retratam claramente essaperda de poder e de identidade do espaço urbano. Seja através de cenas nas quais todos ostranseuntes nos parecem semelhantes, igualados através de suas faces angulosas e impessoais,como na tela A rua (1913) do expressionista alemão Ernst Ludwig Kirchner, ou em paisagensurbanas como as do pintor italiano Giorgio de Chirico em Mistério e melancolia de uma rua,(figura 3) do mesmo ano. Nesta última, desde o título, a sensação de desesperança toma contado espectador da tela, que se depara com uma cidade construída em uma perspectivaconflituosa e onde as poucas figuras humanas que ocupam a rua são apenas sombrasalongadas, também igualadas em sua pouca substância. A criança brinca, alheia ao que podehaver de ameaçador na próxima esquina. As duas cenas não se assemelham. A de Kirchnerprocura forçar a colocação de várias pessoas na tela, manipulando a proporção entre ospersonagens, o que nos dá a desconfortável sensação de que todos estão se ‘espremendo’ - osbraços e pernas muitos juntos, os rostos de perfil, as silhuetas alongadas - para conseguirem oseu lugar na rua. Já a de Giorgio de Chirico mostra o oposto : a rua esvaziada, mas nem porisso mais amigável. Ao contrário, esse espaço que ‘sobra’ na cena nos parece ainda maisameaçador que a multidão impessoal.

Se avançarmos um pouco mais no tempo, podemos encontrar em outras cenas asconseqüências da aplicação dos preceitos modernistas na cidade. Charles Sheeler (figura 4) nosmostra, através de sua irônica Paisagem clássica (1931), o contraponto que a cidaderacionalista apresenta à pintura romântica de paisagens. Quase como um John Constable doséculo XX, o pintor constrói uma paisagem que alça ao status de ‘clássica’, ao representaruma cena composta prioritariamente por linhas retas que se traduzem em trilhos, fábricas,chaminés e... fumaça, muita fumaça. Já o alemão George Grosz nos mostra o outro lado do

funcionalismo na cidade: o seu subproduto. Ao contrapor, em 1930, na sua Cena de rua emBerlim (figura 5), o velho pedinte em primeiro plano e o casal bem vestido logo atrás, o pintorestá, na verdade, lançando um questionamento: o que fazer com essas pessoas a quem acidade se recusa a acolher? O que fazer com esses citadinos que, não obstante o apelo dapublicidade - exposta exaustivamente na tela - não podem consumir? Essas pessoas nãomoram, não trabalham, não se divertem. O único espaço que lhes resta, dentro das categoriasdefinidas pelos funcionalistas é o espaço de circulação, ou seja, a rua! É isso que Grosz nosdiz com sua tela que - apesar dos mais de setenta anos em que foi concebida - continuaestranhamente atual.

Todas essas obras, de uma forma ou outra, estão representando uma transição. Namedida em que nos mostram o espaço da rua sendo colocado em xeque, também nos mostrama cidade em um processo de trasnformação. Junto com a morte da rua, portanto, assiste-setambém a morte da cidade e de seu ethos, e sua modificação rumo a outra dinâmica: “porobra de uma dialética fatídica, como a cidade e a rodovia não se coadunam, a cidade devesair.” (BERMAN, 1986, p. 291)

Urbano, demasiado urbano

À medida em que avançava o processo de enfraquecimento da rua na cena damodernidade, uma dinâmica curiosamente inversa começava a ser colocada em curso: algunsarquitetos, artistas, músicos, escritores e urbanistas começaram a se ressentir desseesgarçamento, percebendo que, se a rua está esvaziada de seu papel como aglutinadora deculturas e realidades diversas, o ambiente propício à gestação de novas idéias, novas correntesartísticas e inovações culturais encontra-se comprometido. Ou seja, a urbanística que se opôsà forma tradicional da cidade, substituindo-a pelo ‘urbano’ - aquele espaço em que tudo estáfortemente setorizado e ordenado - entra em crise, exatamente pela exacerbação desse aspectofuncional. E, sugere Lamas, “crise a todos os níveis - programática, funcional e morfológica,gerando a perda da fé dos arquitetos e do público no urbanismo e numa cidade sem espaçosidentificáveis e significantes, com tudo funcionalmente resolvido, masinsatisfatório”(LAMAS, 2004, p. 382).

Alguns segmentos principiam então, um movimento de resgate dos valores ligados aoambiente urbano formado pela sua diversidade. Marshall Berman nos traduz esse momento aoafirmar : “Uma das tarefas cruciais para os modernistas dos anos 60 era enfrentar o mundoda via expressa; outra era mostrar que este não constituía o único mundo possível, que haviaoutras e melhores direções para as quais o espírito moderno podia se voltar.” (BERMAN,1986, p. 297)

Não por acaso, a partir dos anos sessenta, época em que essas vozes dissonantes àvisão funcionalista sobre o urbano principiam a se fazer ouvir, também há uma retomada demanifestações culturais que têm as ruas como tema, de forma semelhante ao que foi feito pelapintura impressionista no século anterior. A novidade agora, é que começam a existirexpressões de arte que utilizam-se das ruas como o local que acolherá o seu desempenho. Ouseja, o espaço urbano, além de ser tematizado por algumas manifestações artísticas, tambémpassa a ser utilizado como seu palco, muitas vezes abrigando obras que são criadasobjetivando apresentar a cidade em seus múltiplos aspectos e que buscam um diálogo e umainteração com ela, estando abertas até mesmo para incluir em sua execução a intervenção dosagentes atuantes nesse espaço. A cidade, nesse caso, desempenha dois papéis: é o objeto daarte - aquele que é o tema da obra, em quem, ou para quem, a ação é executada -, mas tambémé o sujeito - aquele que participa ativamente do desenrolar da ação artística.

São vários os exemplos dessas novas expressões de arte: o grafitti, a street dance, asperformances urbanas, as intervenções comportamentais realizadas nas ruas, a land art. Os

artistas buscam libertar-se do confinamento das galerias e da planificação da pintura, rumo aoutras formas de criação. Mas buscam mais que isso: querem dialogar com um públicomaior, não acostumado a freqüentar os ambientes tradicionalmente seletos por onde a artetransita. Procuram assim, propiciar o desempenho de um dos mais tradicionais papéis damanifestação artística: a interpretação da realidade circundante e a tradução das suascristalizações e modificações, facilitando a assimilação dessa realidade pela maioria daspessoas.

Uma das características deste período, destacada por Otília Arantes (ARANTES,2001), é a ampliação das classes profissionais que tem algo a dizer sobre a cidade e a vida dasruas. Se no Movimento Moderno os discursos urbanos partiam quase que exclusivamente dearquitetos, a partir da segunda metade do século XX, temos uma diversificação de profissõesque estão pensando sobre quais os valores devem ser priorizados em uma cidade. Não poracaso, um dos livros mais influentes deste período sobre o assunto não foi escrito por umarquiteto, mas por uma jornalista: a norte-americana Jane Jacobs. Com Morte e vida dasgrandes cidades norte-americanas, Jacobs inaugura uma nova percepção sobre o urbano,apoiando-se, principalmente, em sua análise do espaço e da dinâmica de uma rua. Em umavisão absolutamente singular, o texto de Jacobs mostra a rotina diária que se desenrola na ruaem que mora, e que engloba as diversas categorias que compõe o ambiente de um bairroresidencial: os estudantes indo para a escola, os comerciantes abrindo seus estabelecimentos,os moradores saindo para o trabalho. Através desses personagens, que apropriam-se da rua emhorários diferentes e com finalidades várias, Jacobs mostra que a diversidade da rua é suacaracterística primordial, aquela que lhe confere vida e que não pode ser descartada sem quese incorra em uma perda crucial para toda a dinâmica da cidade.

Esta revalorização da rua e de suas características múltiplas encontrou uma forterepresentação na Bienal de Veneza, em 1980, onde uma das principais obras apresentadasera... uma rua! A Strada Novissima mostrava uma via cenográfica composta por uma sucessãode fachadas que reproduziam edifícios com características históricas, misturando materiais eestilos de diversas épocas. Era uma total mudança de rumos se contraposta àquela arquiteturanão historicista do modernismo, e despertou muitas críticas, especialmente por ter sidoconsiderada um forte manifesto favorável ao pós-modernismo. Mas a Strada Novissimarepresentava, acima de tudo, uma defesa da volta daquelas características diversificadas vitaispara a riqueza cultural da cidade e da rua.

Podemos, como já dissemos, de forma bastante simplificada, dividir as manifestaçõesde arte que buscam uma ligação com o espaço urbano nesse momento em duas vertentesprincipais: aquelas que acontecem apresentando a rua como tema e as que se desenvolvemtendo a rua como palco. Nas duas categorias, porém, um ponto em comum: o espaço urbanotornou-se demasiado complexo para ser simbolizado em sua totalidade por uma obra de arte.A cidade, então, não é mais pensada como um todo, mas sim como uma colagem defragmentos em constante mutação. Tal como em um caleidoscópio, onde cada um que omanipula verá um determinado desenho, a cidade apresenta-se de forma diferenciada paracada artista que encara sua face. As expressões artísticas concentram-se em um aspecto daurbe, seja para criticá-lo, questioná-lo, ou tão somente apresentá-lo.

Na primeira categoria, a das obras que buscam tecer um comentário sobre a cidade,encontramos nomes como o da portuguesa Maria Helena Vieira da Silva. Em uma tela de1950, intitulada Xeque-mate (figura 6), a pintora nos mostra a cidade como um jogo, com suasruas que derramaram-se para fora dos limites previamente delimitados pelo tabuleiro. Não épor acaso que as peças do xadrez assemelham-se à prédios e as divisões do tabuleiro, à lotesou quarteirões urbanos divididos pelas suas ruas. De forma semelhante às cidades quebuscaram organizar o seu crescimento através da construção de um anel viário circundante,como o Ringstrasse de Viena, o tabuleiro de Vieira da Silva só consegue conter a porçãocentral de sua ‘cidade’. O resto escapa-lhe ao controle, perdendo seu traçado retilíneo,

deixando de ser um ‘tabuleiro de xadrez’ ordenado para tomar outras formas, dimensões eproporções. A tela acaba, mas a pintura continua indefinidamente para além dela...exatamente como a cidade, que é, então, colocada em ‘xeque-mate’.

Abordando outro aspecto do espaço urbano, o da rua esgarçada em seus significados,encontramos Richard Estes (figura 7), com Gordon’s gim (1968). Aqui vemos a rua esvaziadade pessoas e transformada em um enorme out-door, vivaz e multicolorido, porém semperspectiva ou profundidade, cuja função seria a de abrigar o consumo e os estímulos a maisconsumo. A pintura, de um realismo fotográfico, não nos deixa supor nada, tudo estáclaramente colocado, exposto, com uma clareza que beira à falta de significado. Esta clareza,paradoxalmente, é a verdadeira profundidade da tela, ao traduzir uma cidade onde faltamsubterfúgios, subentendidos, becos, sombras. A cidade se embriaga de gim, mostrando quaissão as suas prioridades, e diz: ‘care about you and your car...’

A rua que já foi plena de significado e foi ‘cortada a cutelo’ pelas intervençõesracionalistas é apresentada por Alexander Petrov em Casa junto aos trilhos (figura 8), de 1981.Petrov nos mostra o que resta depois que o urbanismo funcionalista passou e a poeiralevantada por ele assentou. A velha senhora à janela contempla o que deveria ser umapaisagem antes que os trilhos a atropelassem. Apenas pressentimos a grande estrutura deconcreto à sua frente, através do reflexo no vidro, mas podemos ver pela sua expressão toda adesilusão contida, seja na cena... seja na rua.

Em outro aspecto, o das obras que tomam as ruas como seu palco, podemos encontrarmanifestações artísticas absolutamente diversas. Um exemplo são os painéis luminosos daartista norte-americana Jenny Holzer (figura 9). Estes instigam os passantes com afirmaçõesperemptórias que buscam alçá-los de sua indiferença cotidiana, convidando-os a experimentarum posicionamento em relação às colocações expostas. Temos ainda as gigantescas esculturasde Richard Serra. Os enormes monolitos ou anteparos metálicos apresentam-se na paisagemurbana com a solidez de seu material que aos poucos oxida-se, constituindo-se numa forterepresentação da passagem do tempo e do processo de envelhecimento de tudo e todos nacidade. Serra também nos fala do paradoxo desse elemento tão sólido e imutável apresentar-secom formas e dimensões diferentes a cada momento, através de sua sombra, que transmuta-seem outros desenhos no piso, dependendo da hora do dia. As esculturas de Serra quebram a‘aura’ que envolve uma obra artística e prestam-se à intervenções dos agentes atuantes nesseespaço, através de mensagens grafitadas ou colagem de cartazes. É precisamente nessemomento que passam a fazer parte da vida da rua. Podemos citar, finalmente, os ‘embrulhos’que o artista búlgaro Javacheff Christo e sua mulher, Jeanne-Claude, fazem de íconesurbanos, mudando-lhes a configuração, intervindo na paisagem da cidade e forçando ostranseuntes a lhes conferirem uma atenção que já se esgarçara pela vivência cotidiana (figura10). Seus ‘empacotamentos’ de prédios, pontes, monumentos, são como alertas na paisagem :seguram o braço dos passantes e lhes pedem que andem mais devagar, que olhem em volta,que prestem atenção na rua. Afinal, ela pode não permanecer ali por muito tempo...

A rua maldita

Se a rua moderna é tematizada a partir do horror ao desperdício e temor aoacontecimento inesperado que pode fazer eclipsar o sistema de redes tão fundamental aodesempenho do sistema urbano, como tematizar a rua atual, do que chamam cidade global? Sefor verdade o que afirma Françoise Choay (MONGIN, 2003, p. 48) que estamos no reino dopuramente urbano, então a cidade global não é mais uma cidade como as outras, comohistoricamente foram as cidades. Ao contrário da cidade com suas múltiplas dimensões, ourbano é talhado para ser um espaço cuja singularidade é de potencializador do sucessoeconômico. Aqui a experiência urbana deve desaparecer para dar lugar, não mais ao encontro,mas à conexão. Nessa cidade conectada, já não estamos mais na dicção do espaço público,

muito menos da esfera pública. Nem a política, ou seja, a escolha dos destinos da cidade e docidadão é mais um problema, muito menos uma questão. Em nome da eficiência econômica apolítica é considerada um entrave, o social é visto como perdulário e arcaico (JANINE, 2000,p. 21) e o espaço público tende a se reduzir às áreas de lazer e aos espaços comerciais(MONGIN, 2003, p. 50). A cidade, que sempre acolheu a negociação e o conflito, que sempreexperimentou o afrontamento, agora vive uma cultura do evitamento. (GAUCHET, 2002, p.230) Nesse sentido a identidade do indivíduo não se constitui mais a partir da cidadania. Ovínculo social passa a aparecer aos indivíduos, liberado de toda sua carga de responsabilidade.A inscrição social do sujeito cede lugar a um narcisismo, que passa a ser o novo modo de serda cidade e na cidade. A cidade deixa de ser referência e fazer sentido diante das novasformas de subjetivação. Nesse mundo de fluxos e redes, nesse mundo de apagamento dacidade (ou seria de abandono da cidade pela elite, - deixada com todos os seus problemas aosmais pobres?) o que parece estar surgindo é algo que Olivier Mongin chamou de “après-ville”, ou seja, um mundo onde a vida pública não é mais o componente que dá sustento àexperiência urbana. (MONGIN, 2003, p. 36) Para nós que viemos da tradição da pólis, que sedesdobrou na política e na politesse, fundamentos da civilização ocidental, que sabor teriaessa pós-cidade? Que qualidades ela apresentaria? E suas ruas, de que relações seriam feitas,que encontros poderiam proporcionar, que experiências poderiam evocar? Ainda que fossemmalditas, poderíamos, todavia, chamá-las de ruas?

Ilustrações

figura 1 - Charles Meryon - Rue des toiles a bourges - 1853

figura 2 - Gustave Caillebotte - Jovem na janela - 1876

figura 3 - Giorgio De Chirico - Mistério e melancolia de uma rua - 1913

figura 4 - Charles Sheeler - Paisagem Clássica - 1931

figura 5 - George Grosz - Cena de rua em Berlim - 1930

figura 6 - Vieira da Silva - Xeque mate - 1950

figura 7 - Richard Estes - Gordon's gin - 1968

figura 9 - Jenny Holzer - Truisms (série)

Referências

ALLIEZ, Eric et alii (1988) ‘Contratempo. Algumas metamorfoses do capital’ (ForenseUniversitária, Rio de Janeiro) ARANTES, Otília (2001) ‘Urbanismo em fim de linha’ (EDUSP, São Paulo) BENÉVOLO, Leonardo (2005) ‘História da cidade’ (Perspectiva, São Paulo) BENJAMIM, Walter (1989) ‘Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo’ (EditoraBrasiliense, São Paulo) BERMAN, Marshall (1986) ‘Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura damodernidade’ (Ed. Companhia das Letras, São Paulo) BRESCIANI, Stella (1982) ‘Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza’ (Ed.Brasiliense, São Paulo) FARGE,Arlette (1992) ‘Vivre dans la rue à Paris au XVIII siècle’ (Ed. Galimard, Paris) GAUCHET, Marcel (2002) ‘La démocratie contre elle-même’ (Ed. Galimard, Paris) GEORGEL, Chantal (1986) ‘La rue’ (Editions Hazan, Paris) GIDEON, Sigfried (1978) ‘Espaço, tiempo y arquitectura’ (Dossat, Madrid) JANINE, Renato (2000) ‘A sociedade contra o social’ (Cia. das Letras, São Paulo) LAMAS, José M. Ressano Garcia (2004) ‘Morfologia urbana e desenho da cidade’ (FundaçãoCalouste Gulbenkian, Lisboa) LE CORBUSIER (1976) ‘Urbanismo’ (Editora Perspectiva, São Paulo) MUMFORD, Lewis (1961) ‘A cidade na história’ (Ed.Itatiaia, Belo Horizonte) PAQUOT, Thierry et alli (2003) ‘De la ville et du citadin’ (Ed. Parenthéses, Lille) PECHMAN, Robert (1994) ‘Olhares sobre a cidade’ (Ed. UFRJ, Rio de Janeiro) RAYMOND, Williams (1990) ‘O campo e a cidade na historia e na literatura’ (Cia. dasLetras, São Paulo)

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DESENHAR NO VAZIO: O CASO DE ESTUDO DA FEIRA POPULAR Mafalda Teixeira de Sampayo E-mail:[email protected]

ISCTE – Departamento de Arquictectura

Apresento aqui um projecto realizado para um Concurso Público de Ideias intitulado “VAZIOS URBANOS”. Promovido pela Secção Regional do Sul da Ordem dos Arquitectos, no âmbito da Trienal Internacional de Arquitectura de Lisboa 2007. A escolha do local da Feira Popular para o Concurso Público de ideias - Intervenções na Cidade, foi sustentada pelo facto de se tratar de uma área com enormes potencialidades, constituindo um desafio a vários níveis. A sua condição de excepção é justificada pela presença de uma porção plana de terreno com uma dimensão considerável (cerca de 4,5 hectares), para além de assumir uma localização privilegiada, numa área urbana central. 1. BREVE ENQUADRAMENTO À GÉNESE DO VAZIO URBANO O encerramento em Outubro de 2003 deste amplo espaço na cidade de Lisboa foi desde o início alvo de polémicas, tornando-o num terreno apetecível para a especulação imobiliária. As questões associadas à permuta de terrenos entre a Câmara Municipal e a Bragaparques continuam na ordem do dia, motivando uma reflexão à cerca do que fazer com o local. Os aspectos que conduziram ao seu encerramento estiveram fundamentalmente associados com a degradação sucessiva das estruturas, já de si precárias. A desadequação dos equipamentos às exigências dos nossos tempos fazia adivinhar uma intervenção de reabilitação difícil. A manutenção do local enquanto Parque de Diversões era então uma hipótese cada vez mais distante nas mentes dos políticos, aliciados pela hipótese de reverter estes usos em prol de outros mais lucrativos. O encerramento acabou por ser inevitável, remetendo o local para uma condição de vazio no centro da cidade. A proposta que a seguir se apresenta procura desenvolver estratégias de intervenção para a área, assumindo uma postura de abstracção face aos interesses económicos e imobiliários. Os conceitos apresentados traduzem uma visão ideal para o local, mais do que uma previsão para o que poderá vir de facto a acontecer. 2. INTERPRETAÇÃO DO CONCEITO DE VAZIO URBANO O caso da Feira Popular constitui uma situação particular no que diz respeito aos vazios. Ao passo que muitas destas áreas se assumem aparentemente desprovidas de funcionalidades, esquecidas ou remetidas para as periferias urbanas; o espaço em causa encontra-se claramente sedimentado na memória dos lisboetas. É algo a que ninguém é indiferente, passível de suscitar reacções polémicas e diversas, quaisquer que sejam os futuros desenvolvimentos atribuídos ao local. Se por um lado a tarefa dos projectistas em muitos dos terrenos vagos consiste na identificação dos usos potenciais (incutindo-lhes elementos passíveis de gerarem sentimentos de apropriação por parte da comunidade); assiste-se aqui a um desafio completamente diferente. O passado de intensa utilização pública assim o determina; fazendo adivinhar as expectativas da população face à atribuição de um uso público.

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A proposta procurou conciliar este incentivo à utilização da comunidade à evocação da memória e significado que o espaço representa. Optou-se por não restringir esta exploração simbólica às memórias da Feira Popular, embora estas também sejam evocadas; tendo-se procurado aproveitar este pretexto para a representação de algo mais amplo na sociedade portuguesa das últimas décadas. Tratando-se porventura de um dos períodos mais marcantes da história recente, a criação de um Memorial à Guerra Colonial deverá constituir uma oportunidade para a criação de um espaço a que ninguém ficará indiferente. Questionado pela revista Arquitecturas em Julho de 2005 sobre futuro da Feira Popular, o sociólogo Vítor Matias Ferreira realçou o facto das pessoas se encontrarem altamente “expectantes sobre o que lá vier a acontecer. Se o que acontecer for público, inovador e espectacular a adesão será com certeza imediata”, afirmou. A opção por um tema polémico deverá jogar a favor desta tese, conciliada à intenção de conferir uma identidade forte ao local. O Memorial poderá assumir para alguns um carácter de questionamento sobre os dramas da guerra, para outros poderá traduzir-se numa valorização dos que nela combateram e arriscaram a vida. Longe de corresponder à apologia do conflito armado e dos seus propósitos, o lugar que aqui se pretende formalizar procurará fazer justiça aos seus combatentes, muitos deles ainda vivos. A homenagem em vida torna-se pertinente para aqueles que esperam por um reconhecimento desde então 1. Outro dos aspectos que sustentou a escolha do tema do Memorial teve por base a interpretação do conceito de vazio urbano enunciada no Regulamento do Concurso que nos foi disponibilizado. Nele podia ler-se a sua definição enquanto “espaços que potenciem a memória, a identidade colectiva ou o uso quotidiano na expressão da troca e do comércio, da informação e da comunicação, do debate e da manifestação”. 3. FORMALIZAÇÃO DE UM “VAZIO UTIL” .…………..….. INCENTIVO AO USO PÚBLICO: A vivência que se propõe para o espaço estará fortemente associada ao tipo de apropriação que as pessoas fizerem dele. Além de se criar um lugar que por si só evoca um tema polémico, a participação pública deverá ser potenciada pela concepção espacial adoptada e pelo tipo de relação estabelecida com a envolvente. A adopção de um espaço de características labirínticas e a dissolução dos limites actuais deverão convidar à presença humana. > CONCEPÇÃO INTERNA Espaço de características labirínticas: Potenciação do espaço percorrido e convite à descoberta do local 1 Inaugurado em 2000, o único espaço da capital vocacionado para o efeito localiza-se junto do Forte do Bom

Sucesso, assumindo uma posição periférica ao Jardim da Torre de Belém. Correspondendo a uma área relativamente

reduzida, o espaço em causa não compreende os requisitos necessários para a projecção de uma identidade

efectiva. Não traduz plenamente o universo dos combatentes do Ultramar, homenageando apenas os indivíduos

mortos na Guerra Colonial – dispõe de 180 lápides contendo o nome de cerca de 9.000 portugueses mortos em

combate.

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> RELAÇÃO ESTABELECIDA COM O EXTERIOR Dissolução dos limites (concentração do edificado no limite Nascente) _ Relação de permeabilidade com a envolvente 3.1. DISSOLUÇÃO DOS LIMITES O espaço da Feira Popular assumiu até agora uma condição de “ilha” na malha urbana, perfeitamente murado e separado por vias de trânsito de intensa circulação automóvel. A intenção de oferecer o espaço à comunidade deverá ser acompanhada pela criação de acessos mais confortáreis a partir do exterior. Em primeira medida, seria ideal proceder às alterações das condições de trânsito nas vias envolventes, tornando-as menos agressivas do ponto de vista da circulação automóvel. No que diz respeito à proposta propriamente dita, a permeabilidade com o exterior será conseguida pela eliminação dos limites murados, concentrando os elementos edificados a Nascente e libertando o restante espaço para o uso público.

3.2. ESTRUTURA ESPACIAL DE MATRIZ LABIRÍNTICA Ao mesmo tempo que se procurou potenciar os percursos e diversificar as vivências de lazer e estadia, a concepção de um espaço de matriz labiríntica teve em conta a garantia de um sentido de orientação espacial; característica essencial à concepção de um memorial. A opção de dividir o local numa série de porções quadradas com a mesma dimensão (36 x 36m), deverá facilitar a identificação espacial dos seus componentes; sem abdicar da constituição de um todo coerente. Procurou-se potenciar o sentido de descoberta e surpresa inerente aos espaços labirínticos, abdicando contudo do estabelecimento de um único objectivo, de uma única “saída”. Ao passo que esta costuma ser a opção da grande parte dos labirintos tradicionais, assiste-se aqui a uma lógica de sucessão de etapas. Cada uma das regiões quadrangulares constitui uma unidade num todo global; um objectivo integrado numa progressão de objectivos sequenciais no sentido Sul-Norte. 3.2.1. “REGIÕES LABIRINTICAS” FORMAM UM CONJUNTO COERENTE Tratando-se de um memorial, cada uma das ditas áreas deverá estar vinculada a cada uma das realidades a evocar. Com o intuito de facilitar a identificação destes elementos, considerou-se pertinente associar a cada uma delas um agrupamento de designações: organizadas pelas iniciais/apelidos dos combatentes ou pelos nomes dos Batalhões e Províncias Ultramarinas onde combateram. 3.2.2. SUPERFÍCIES VERDES PAPEL DESEMPENHADO NA CRIAÇÃO DE REFERÊNCIAS VERTICAIS

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Cada uma das “regiões labirínticas” poderá estar associada à existência de superfícies verdes com uma conformação geométrica, pressupondo por sua vez a presença de elementos arbóreos com uma forte componente vertical. O carácter escultórico dos ciprestes deverá possibilitar este facto, optando-se pela sua disposição em maciços ou alinhamentos. A escolha desta espécie deverá adequar-se ao carácter de memorial, apoiando-se nas associações ao universo funerário e aos espaços evocadores da memória. As áreas em causa poderão ainda compreender a existência de exemplares com um porte mais significativo, possibilitando uma visibilidade a maiores distâncias. A opção pelo pinheiro traduz-se na marcação de elementos pontuais com uma forte presença volumétrica, funcionado simultaneamente como referências verticais para cada uma das porções quadrangulares onde se inserem. Os elementos arbóreos anteriormente referidos estão incluídos em porções relvadas, que constituem por sua vez sub-regiões das porções labirínticas mais amplas. No que diz respeito ao material vegetal, estas últimas poderão contemplar ainda a existência de muros com trepadeiras e sebes de arbustos, ambos com uma composição claramente geométrica. A utilização de arbustos talhados em topiária cumprirá este objectivo, aludindo à imagem dos labiríntos tradicionais concebidos com recurso a sebes de buxo e murta. Os muros associados à vegetação constituem elementos com uma presença vertical mais forte, aplicados sobretudo nas situações onde se pretendem espaços com uma componente altimetrica marcada. 3.2.3. ELEMENTOS CONSTRUÍDOS (BETÃO / AÇO CORTEN)

… PAPEL DESEMPENHADO NAS DESIGNAÇÕES A INCLUIR NO MEMORIAL Os elementos inertes que compõe cada uma das “regiões labirínticas” recorrem a estruturas construídas em betão e aço córten, aplicadas numa matriz de calçada. Descrevendo um esquema ortogonal de linhas quebradas, atribuem-se aos ditos elementos as funções de identificação dos componentes do memorial: designações que deverão ser gravadas nas suas superfícies verticais. Sem se sobreporem excessivamente ao espaço, as estruturas em causa constituirão uma unidade coerente, afirmando-se pela sobriedade do conjunto. A estratégia adoptada possibilitará a criação de uma atmosfera solene de respeito pelo tema, evitando simultaneamente a criação de um ambiente excessivamente pesado. 4. ELEMENTOS LINEARES (REFLEXOS NA ESTRUTURA E HIERARQUIZAÇÃO ESPACIAL) PERMEABILIDADE FACE À ENVOLVENTE E PAPEL DESEMPENHADO NA FLUIDEZ DOS PERCURSOS As regiões geométicas que compõem labirinto resultam da sua intersecção por uma série de eixos: uma sequência de alinhamentos transversais com espaçamentos constantes e um grande eixo central. Além de constituem acessos privilegiados a partir da envolvente, estes elementos deverão possibilitar percursos alternativos: para quem queira viver o espaço sem entrar nos recintos labirínticos ou para quem queira sair deles. Para além disto, a sua existência deverá ser complementada pela existência de faixas de pavimento escuro, assumindo uma condição de contraste com a envolvente.

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4.1. EIXOS TRANSVERSAIS A existência de uma série de atravessamentos perpendiculares à direcção privilegiada dos percursos, possibilita um desenvolvimento altimétrico sucessivo ao nível de cada uma das “regiões labirínticas”. Esta progressão nas alturas dos elementos construídos potencia uma hierarquização espacial ao nível das diferentes porções de território: as áreas a Sul pressupõem uma estrutura espacial “agarrada” ao terreno; e à medida que se caminha para Norte assiste-se a uma maior presença de estruturas verticais. Constituindo interrupções na estrutura labiríntica, estes atravessamentos pressupõem a existências de espaços mais desafogados, onde é o possível “respirar”. A criação de uma área relvada mais ampla deverá possibilitar este facto, constituindo simultaneamente uma área de interface privilegiada com a envolvente. 4.2. EIXO LONGITUDINAL EIXO CENTRAL de (ENTRE)CAMPOS … … espaço de ligação entre o Campo Grande e o Campo Pequeno O maior destaque atribuído às suas características formais justifica o entendimento deste eixo enquanto ligação privilegiada à envolvente, contribuído simultaneamente para a formalização de um “contínuo verde” entre o Campo Grande e o Campo Pequeno. Para além de ter sido sustentada na apropriação do vocábulo Entrecampos (designação desta zona da cidade), o dito eixo deverá traduzir-se numa maior qualidade ambiental para o espaço urbano. A manutenção do local enquanto um vazio; a incorporação de elementos vegetais e a criação de uma continuidade física ao nível das áreas verdes adjacentes deverá possibilitar este facto. Além da componente pedonal, o dito eixo poderá suportar ainda outras funções: a criação de uma faixa central com alguns elementos de estadia é complementada pela existência de duas faixas adjacentes, preparadas para a instalação de uma ciclovia. A ligação à ciclovia do Campo Grande deverá adaptar-se dentro do possível às passadeiras existentes, estratégia equivalente à que se prevê adoptar para a ligação ao Campo Pequeno. 4.3. ELEMENTOS AXIAIS [RELAÇÃO ESTABELECIDA COM A MATRIZ DE CALÇADA] ESTRATÉGIA DE DEMARCAÇÃO ESPACIAL E SOLUÇÕES DE ILUMINAÇÃO Os alinhamentos transversais poderão pressupor a existência de porções revestidas a calçada de calcário preto, em oposição à calçada branca envolvente. Adoptando a mesma lógica, o eixo central poderá contemplar a existência de continuidades lineares revestidas com lajes de basalto polido; opção justificada pelo facto de se tratar de um acesso privilegiado. A utilização de materiais nobres sustenta também o recurso a elementos de iluminação com uma maior potência face às demais zonas. Optou-se pela disposição de focos de luz embutidos nas lajes de pedra, contribuindo para a marcação de um eixo forte, tanto de dia como de noite. Este não deverá ser contudo o único elemento associado à presença de focos de iluminação à superfície. Por questões de segurança e pela intenção de explorar as qualidades formais dos elementos construídos, propõe-se a existência de elementos de iluminação em toda a área. Assumindo uma disposição pontual, estes elementos deverão induzir efeitos esteticamente interessantes, explorando a particularidades materiais das superfícies (aço corten, muros de betão e sebes

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arbustivas). A sua existência enquanto elementos de carácter linear é estendida aos eixos transversais, pela disposição de focos de luz demarcando claramente os acessos a partir da rua. Para além dos elementos de iluminação de maior potência, o eixo central deverá demarcar-se pela disposição particular que se propõe para os alinhamentos arbóreos. A implantação alternada de uma série de Jacarandás deverá ser suficientemente forte para o estabelecimento do dito eixo; sustentando ainda uma lógica de integração na envolvente. 4.4. OUTROS COMPONENTES LINEARES DA ESTRUTURA ESPACIAL: ALINHAMENTOS ARBÓREOS e VOLUMES EDIFICADOS Para além do eixo principal, os volumes edificados que se propõem para o limite Nascente constituem uma das componentes lineares com maior presença no local. Para além destas, propõem-se uma série de alinhamentos arbóreos, sustentados numa lógica e integração na envolvente. Para além dos elementos que acompanham o eixo central, propõem-se outros dois grandes conjuntos lineares de Jacarandás. O alinhamento da Av. 5 de Outubro dá o mote para a criação de um outro adjacente, bem como para a definição de um eixo paralelo à Av. da República, no lado oposto ao volume edificado. 5. POSTURA FACE ÀS PREEXISTÊNCIAS Com o intuito de conferir maior liberdade e flexibilidade à proposta, considerou-se pertinente abdicar da maior parte das preexistências do local; tendo em conta o facto do mesmo se encontrar actualmente em processo de desmantelamento. A presença do que outrora foi a Feira Popular deverá reflectir-se sobretudo no uso público pretendido para o local, bem como na sua manutenção do enquanto espaço não edificado. A existência de equipamentos culturais de cariz museológico poderão incorporar aspectos da história recente, não só da Feira Popular como também dos espaços que lhe antecederam. Além das estruturas de recreio que vão sendo progressivamente desmanteladas, os aspectos que estiveram na base da anulação das referências edificadas fundamentaram-se sobretudo pelo estado de degradação que as mesmas apresentavam. São de referir neste âmbito o caso do Mercado Geral dos Gados e do Teatro Vasco Santana, desactivados desde há bastante tempo. O único caso que não padece desta condição de abandono diz respeito ao edifício do limite Nordeste, embora se tenha considerado projectualmente mais aliciante pressupor a sua anulação. O conjunto destas escolhas permiti-nos encarar o local como um verdadeiro vazio, em todas as acepções da palavra. As “préexistências físicas” a considerar estão limitadas à envolvente, com a qual se procuram fomentar relações espaciais. As “preexistências de significados” estão fortemente vincadas à memória que se pretende evocar.

6. VOLUME EDIFICADO _ DISPOSIÇÃO ESPACIAL E FUNÇÕES A ATRIBUIR Os volumes propostos desenvolvem-se longitudinalmente à Av. da República, constituindo um elemento de equilíbrio aos elementos edificados do outro lado da Avenida. A sua existência poderá compreender diversas funções (comércio e serviços, escritórios, habitação e equipamentos culturais); considerando-se interessante atribuir uma predominância a estes últimos. A existência de espaços museológicos poderão conferir um carácter próprio e identificativo ao conjunto edificado, apelando a um universo de memória. Será interessante evocar as memórias da Feira Popular, para além de se tornar pertinente a existência de um Centro Interpretativo associado à Guerra Colonial; auxiliando a uma melhor compreensão do

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que se pretende evocar no memorial. Ainda no que concerne à evocação da memória do local, poderá ser interessante considerar a existência de um Teatro, retomando a localização do Teatro Vasco Santana (Luzia Maria Martins), no topo de limite Nordeste. Seguem-se imagens da proposta:

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OPORTUNIDADES DE INTERVENÇÃO NA CIDADE EXTENSIVA Francisca Magalhães, Patrícia Strecht, Teresa Corujo

Email: [email protected] ; [email protected]; [email protected]

1. IntroduçãoA comunicação começa por questionar a existência de vazios, enquanto vácuos, no tecidourbano. Considera-se que qualquer componente deste tecido tem, ou já teve, algum sentido: éo resultado de um processo, tem uma génese, uma raiz. A ocupação do território traduz-sefundamentalmente na utilização de um recurso, realizada da forma que melhor serve, numdeterminado momento, as necessidades de quem tem a capacidade de o explorar. Também osespaços “vazios”, seja por desocupação ou abandono, têm uma história, um significado.Sobretudo, têm dimensões e qualidades muito distintas entre si, resultado tanto do processoque lhes deu origem como da sua própria configuração, das suas características físicas emorfológicas. Propõe-se apresentar uma metodologia de abordagem a estes espaços “vazios” a partir docaso de estudo de Canidelo, Vila Nova de Gaia1; uma proposta de intervenção na cidadeextensiva, entendida como território urbano sem as características do modelo de cidadetradicional: um espaço heterogéneo, que apresenta características distintas em termos detipologias, dinâmicas, vivências, ocupações, áreas… Negativamente conotados, estesterritórios são fruto de transformações incompletas, de ocupações e abandonos sucessivos,mas também palco de oportunidades para novos projectos de transformação urbana, e nosquais é não só urgente, mas também ainda possível intervir. É neste processo que os “vazios”urbanos podem configurar oportunidades de nível local ou de abrangência territorial alargada,adequadas às suas características intrínsecas e correspondentes vocações: espaços naturais eculturais, áreas expectantes (“vazios” funcionais), emergentes (espaços em transformação) enovas frentes de urbanização. As diversas tipologias de “vazios” são identificadas a partir dasíntese de diversos temas: sistema de mobilidade e acessibilidade, sistema ambiental,caracterização tipo-morfológica e funcional, resultando na identificação de áreas de potencialtransformação. O que se propõe para estas áreas é a sua integração no sistema urbano a partirdas redes estruturantes do território, num processo mútuo de suporte. Mais do que fazer umaprogramação das actividades a instalar nestas áreas, trata-se de identificar as oportunidadeslatentes para a concretização de projectos-âncora que reforcem a sua visibilidade, tirandopartido das potencialidades de espaços degradados ou devolutos. Esta metodologia de abordagem ao território com carácter estratégico, mesmo à escala local,permite fazer uso de diversas escalas de interpretação, definindo com maior grau de precisãoos seus elementos relevantes, e deixando maior abertura para a interpretação do desenho desoluções para o restante território, sem prejuízo do sentido de conjunto.

2. Os vazios na cidade extensivaEstudos recentes sobre a realidade urbana do território português dão conta de uma cada vezmaior diversidade das suas formas e tipologias, apontando no sentido de um território urbanoextensivo em oposição ao modelo da cidade tradicional e confirmando o aumento dapercentagem da população que vive neste «território extensivamente edificado, num espaçoque não é propriamente cidade, nem tão-pouco campo» (Secchi, 1991, pp. 20-22). Apesar deem paralelo nestes dois territórios urbanos se encontrarem os “espaços esvaziados”,entendidos como “vazios de uso ou de sentido” (espaços abandonados ou que simplesmentenunca chegaram a ter uso definido), também na questão da abordagem ao “vazio” se faz sentira diferença entre estes dois territórios: enquanto que na cidade tradicional esta é feita a partir1 O trabalho que serviu de base a esta comunicação foi realizado no âmbito da disciplina de Seminário II doMestrado em Planeamento e Projecto do Ambiente Urbano, das Faculdades de Arquitectura e Engenharia daUniversidade do Porto, no ano lectivo de 2003/2004, sob orientação dos professores Nuno Portas e ÁlvaroDomingues e publicado no nº39 da revista Sociedade e Território, em Dezembro de 2005.

do “negativo” do espaço construído, tido quase sempre como o espaço público formalmentedefinido – praças, passeios, jardins – na cidade extensiva a enorme porção de território nãoconstruído corresponde a uma grande diversidade de tipologias de “vazios” de acordo com assuas utilizações e vivências: desde as áreas intersticiais, que perderam coerência no sistemaem que se inseriam devido à pressão dos espaços urbanos ou da criação de infra-estruturas,aos corredores verdes remanescentes com qualidades paisagísticas e ecológicas, e ainda aosseus segmentos, resultando num mosaico que caracteriza a complexidade da paisagem. É porisso essencial iniciar a abordagem à cidade extensiva pela análise dos “vazios”, tendo emconta a sua preponderância nestes territórios, a importância que detêm na sua caracterização eidentidade e na sua inevitável permanência. Nesta perspectiva, «falta “dar sentido” a essesespaços não construídos e compatibilizá-los, quer com a defesa de valores patrimoniais,paisagísticos e ambientais pré-existentes e classificados, quer com a classificação de espaçosbanalizados (margens de nós e de vias, terrenos com usos informais, áreas expectantes,retalhos deixados pela má qualidade das urbanizações, baldios, etc.), que no seu conjunto ediversidade possuem um potencial tão elevado quanto os problemas e disfunções queencerram. Por aqui passará, seguramente, o futuro da qualificação da urbanização difusa.»(Domingues, 2006, p.41).

3. EnquadramentoBalizada a Norte pelo Rio Douro, a Oeste pelo Oceano Atlântico e a Este pelo IC23, éconstituída por uma malha viária em clara desarticulação com a rede metropolitana. À altavelocidade do IC23 e sua centralidade metropolitana, contrapõe-se a velocidade mais lentadas actividades de lazer. No entanto, as intervenções de carácter extensivo nas orlas costeirase fluviais realizadas recentemente por programas de âmbito nacional possibilitam a integraçãoda área na rede de lazer que se tem vindo a constituir à escala metropolitana. Em termos gerais, a área do Canidelo apresenta características resultantes de um conjunto detransformações mais ou menos incompletas, sendo marcada por uma estrutura de povoamentode matriz rural que tem suportado o desenvolvimento mais acentuado dos últimos anos. Esteprocesso de ocupação e transformação tem resultado numa mancha de urbanização decaracterísticas heterogéneas, descontínua embora relativamente densa, com problemas deestruturação e legibilidade urbana. O desenvolvimento da área tem sido também ele bastanteheterogéneo, assistindo-se a grandes disparidades entre o tratamento da orla marítima,potenciado com a implementação no terreno do Programa Polis, e a área mais interior, quemantém um processo de desenvolvimento muito espontâneo.

Figura 1 – Área de intervençãoFonte: Ortofotomapas cedidos pela GAIURBE, E.M. (Julho 2004)

4. Processo de intervençãoSendo este território uma área em transformação acelerada, mais do que definir um modelooperativo de acção importa identificar os seus elementos estruturantes, dando-lhes forma ealgum desenho, no sentido estrito e no sentido lato; importa igualmente identificar asoportunidades que se apresentam. As ideias subjacentes a este processo de intervenção são:preencher tecidos e vazios, sendo que este preenchimento não significa estritamente construire ocupar, mas também dar um uso; completar malhas, redes e ligações; e configurar osespaços urbanos a partir das estruturas existentes, dando-lhes maior legibilidade.

Figura 2 – Processo de Intervenção

Importa assim fazer o diagnóstico das dinâmicas em curso, e das que poderão ser potenciadasou despoletadas pela concretização das acções previstas, combinando processos de carácterintensivo e extensivo. As oportunidades identificadas deverão ser aproveitadas em doistempos: um tempo curto, relativo ao desenho e construção do sistema de espaços colectivos eà sua importância para a reestruturação da área; e um tempo longo, com a definição decritérios para a transformação e desenvolvimento da área mais alargada onde se inserem.São propostas duas dimensões para esta estratégia: uma de nível local, com o objectivo demelhorar as condições de vivência urbana, e outra de nível metropolitano, visando aumentar a

visibilidade e atractividade desta área. O desenvolvimento de sinergias entre estas dimensõese a sua integração no território serão assegurados através da constituição de redesestruturantes de suporte.

Figura 3 – Modelo de intervenção

Assim, a estratégia desenvolvida estrutura-se em três eixos fundamentais:– introdução de programas de âmbito metropolitano de carácter intensivo;– reforço das polaridades locais;– integração das duas dimensões (entre si e no território) através de redes estruturantes.

5. Análise5.1 Caracterização tipo-morfológica e funcional

Figura 4 – Áreas de potencial transformação (Julho 2004)

Trata-se de um território heterogéneo, resultante de um processo espontâneo de urbanizaçãodifusa de matriz rural, marcada por uma forte parcelarização da propriedade. O padrão decrescimento caracteriza-se pela densificação do povoamento disperso, que ocorreu comespecial incidência ao longo das estradas e caminhos principais, e onde predomina a ocupação

urbana de baixa densidade. Assiste-se ainda a algumas carências infraestruturais,nomeadamente nas áreas de ocupação urbana de génese ilegal. As áreas de maior densidadeconstrutiva localizam-se junto aos nós da rede arterial, na Arrábida e nas Devesas, ondepredomina o comércio em grandes superfícies e serviços especializados de nívelmetropolitano, e uma maior concentração de edifícios multifamiliares. Este fenómenotambém se está a acentuar em toda a frente marítima.A multifuncionalidade está normalmente associada aos tecidos sedimentares sujeitos a umadensificação urbana, com tipologias e funções diversificadas apoiadas em eixos de ligaçãotradicionais. É também nestes tecidos que normalmente se apoiam, de uma formadesarticulada em relação à malha existente, as ocupações monofuncionais (loteamentos demoradias ou blocos multifamiliares), ou de actividades em parcelas de grande dimensão.Este território caracteriza-se também pela reminiscência de grandes parcelas, normalmentedecadentes. Numas, ditas emergentes, encontram-se a decorrer operações urbanísticasrelevantes; as outras permanecem expectantes quanto ao seu futuro. Existem ainda diversasestruturas construídas, cujo abandono levou a um adiantado estado de degradação mas quemantêm algum interesse do ponto de vista da identidade cultural da área. Tanto estasestruturas como as parcelas referidas anteriormente poderão ser fundamentais para oacolhimento de operações urbanísticas e actividades de referência, contribuindo para a criaçãode condições de suporte à vivência qualificada deste território.

Figura 5 – Caracterização tipo-morfológica e funcional (Julho 2004)

Ao mesmo tempo importa identificar as polaridades locais existentes, caracterizadas pelaconcentração de actividades e outros elementos relevantes em termos de referências do local(espaços urbanos tratados, equipamentos colectivos, imóveis de interesse histórico/cultural,etc.) no sentido de identificar zonas de intervenção que possibilitem o reforço da identidadelocal.

5.2 Sistema de mobilidade e acessibilidade

Figura 6 – Sistema de mobilidade e acessibilidade (Julho 2004)

Ao nível da rede viária arterial, as vias que atravessam o concelho de Vila Nova de Gaiafazem-no no alinhamento norte-sul (IP1, IC1 e IC2). Foi já finalizada a construção do IC23,ligando a Ponte do Freixo ao IC 1 e completando a VCI (CRIP). A rede secundária éconstituída por uma malha correspondente às antigas estradas nacionais (que têm estruturadoo crescimento do concelho) complementadas por novos eixos. Estas Vias de Ligação (VL’s)suportarão o tráfego intra-concelhio e a distribuição do tráfego metropolitano, pelo que serãoestruturantes para a rede viária concelhia e para a sua articulação com a rede arterial. Noentanto, o seu traçado põe em causa a manutenção de alguns valores ambientais que poderãoser importantes para estruturação deste território.Fazendo uma aproximação à área em estudo, verifica-se que na malha viária existente asfunções mobilidade e acessibilidade muitas vezes se confundem. A malha é quase semprecapilar e pouco permeável, com debilidades patentes na ocorrência generalizada de situaçõesde impasse, e na existência de zonas de conflito por inadequação do perfil das viasestruturantes às funções que desempenham. Existem ainda conflitos na utilização da malhadevido à falta de hierarquização viária que permita uma distribuição do tráfego maisadequada. Estes conflitos têm vindo a agravar-se face ao aumento da procura da faixamarginal atlântica, associada sobretudo à função de lazer, mas sem articulação com a restantemalha. A mobilidade nesta área é assegurada fundamentalmente através do transporte individual. Noentanto, a introdução futura da linha de Metro, associada à construção de novas vias deligação, poderá consolidar um nó de intermodalidade na zona das Devesas, onde poderão serassociados vários modos de transporte. O transporte fluvial existente perto da Afurada não éactualmente uma solução de mobilidade, mas poderá ser utilizado para outros fins,nomeadamente lúdicos.

5.3 Sistema lúdico-ambiental

Figura 7 – Sistema lúdico-ambiental (Julho 2004)

A área apresenta uma grande variedade tipológica de espaços naturais: orla costeira, estuário emargens do Rio Douro, ribeiras, seus leitos de cheia e foz, e o promontório da Seca doBacalhau, rótula entre o sistema costeiro e o sistema fluvial.Na paisagem cultural evidenciam-se as quintas, as ruínas das indústrias conserveiras, o núcleopiscatório da Afurada e grandes massas verdes associadas a práticas agrícolas e ao sistemahúmido. Estas unidades apresentam-se como fragmentos no interior da malha, com um perfilvariado: do estrangulamento entre dois quintais até à extensão entre duas vias opostas domesmo quarteirão. A pedreira existente encontra-se em processo de declínio, mantendo noentanto a licença de exploração, o que poderá atrasar a sua requalificação.Porque se trata de uma área periférica e com pouca acessibilidade, o suporte natural subsistiue grande parte do sistema húmido encontra-se salvaguardado ou com boas possibilidades dereconversão. No entanto, a edificação extensiva não permite uma leitura clara deste suporte,fragmentado e escondido no interior da malha. A maioria das grandes áreas permeáveis queconstituem a massa verde, pertencentes a quintas ou a campos de cultivo, são privadas. Osespaços públicos verdes são praticamente inexistentes.É de salientar o efeito positivo de grandes projectos extensivos infra-estruturais recentes daresponsabilidade da autarquia e do Programa Polis, melhorando o estado ambiental e odesenho do espaço público: a conclusão da rede de saneamento, a despoluição das ribeiras,praias e sua requalificação, a construção do Interceptor Marginal do Rio Douro associado aoreperfilamento da marginal fluvial.

6. Elementos estruturantes da actuaçãoOs elementos estruturantes da actuação foram sistematizados em duas grandes categorias: asredes estruturantes do território e as actividades. A partir destas são feitas propostas deintervenção, concretizadas em directrizes que poderão orientar um processo de intervençãoem tempos diferenciados, permitindo a gestão das incertezas e oportunidades.Assim, algumas destas propostas terão mais um carácter de simulação ou cenário, enquantoque outras poderão estabelecer critérios para a actuação.

Figura 8 – Proposta de intervenção (Julho 2004)

6.1. Redes estruturantes: directrizes para a intervençãoA proposta vai no sentido de articular as redes estruturantes do sistema ambiental e do sistemade mobilidade e acessibilidade, contribuindo para uma melhor integração entre estas, oterritório e as actividades. Esta articulação seria estabelecida essencialmente através dotratamento do espaço público, em simultâneo com a implementação de corredores verdes decarácter urbano. Estes corredores poderiam ainda contribuir para o reforço das polaridades denível local, quer através do tratamento do espaço público, quer fazendo a articulação entre asreferências simbólicas e identitárias que pontuam o território, valorizando-as.Redes de mobilidade e acessibilidadeVL – via estruturante a construir: o carácter que se pretende imprimir à VL poderácontribuir para a melhoria da legibilidade do território de forma extensiva. É tambémfundamental que a sua inserção no território não resulte numa sobreposição a este, mas antesnuma articulação com as restantes redes. Por outro lado, a extensão da via e o atravessamentode zonas morfologicamente distintas não permite que o seu perfil seja uniforme em toda a suaextensão, o que poderá tornar-se uma potencialidade a desenvolver, estabelecendo ritmos depercepção da via de acordo com a envolvente. A proposta de alteração do traçado pretendetambém resolver conflitos que possam existir entre o traçado previsto e valores importantesdo sistema ambiental.Tratamento uniforme e destacado:– perfil tipo adaptado às características da área onde se insere (urbano, consolidado ouemergente, e rural);– arborização ao longo de todo o traçado, com ritmo e características constantes;– mobiliário urbano específico e uniforme ao longo de todo o percurso;Características relativas ao funcionamento:– cruzamentos controlados que permitam uma correcta transição para a rede de acesso local;– estacionamento preferencial em bolsas pontuais, articuladas com as outras redes eactividades;– evitar o acesso directo a frentes urbanizáveis a partir da via.

Vias de acesso local: a intervenção tem como objectivo melhorar o funcionamento da malhacapilar que apoia sobretudo a função habitar, aumentando a sua permeabilidade. O maiorproblema encontrado nesta rede é o grande número de situações de impasse, bem comoalguma inadequação do perfil a funções de carácter urbano.Fecho da malha:– resolver sempre que possível situações de impasse, aproveitando oportunidades e operaçõesde urbanização.Melhoria da legibilidade do espaço público:– definição de perfil funcional mínimo nas vias a criar;– compatibilização das vias existentes com os perfis definidos, aproveitando oportunidades eoperações de urbanização;– arborização restringida a elementos de pontuação coerentes com o carácter referencial dolugar.Vias existentes com maior relevância: a intervenção deverá ser orientada para areestruturação das vias e resolução dos conflitos existentes, adaptando-as ao seu novo papelapós a construção da VL. É importante desincentivar-se a sua utilização como viasdistribuidoras, reforçando o seu carácter mais urbano.Melhoria da legibilidade do espaço público:– reestruturação do perfil privilegiando o peão;– mobiliário urbano uniforme e adaptado às características e necessidades dos diferentestroços;– introdução de arborização sempre que possível.– resolução de conflitos:– reordenamento e adequação do trânsito a um perfil funcional mínimo;– definição de critérios de alinhamentos;– resolução de pontos de congestionamento, com recurso à substituição do edificado.sistema de transportes: o objectivo principal é articular os modos de transporte de nívelmetropolitano e local, procedendo à consolidação do nó intermodal localizado nas Devesas. Afutura implementação da linha de Metro poderá também criar novos pontos intermodais,nomeadamente no nó da Arrábida. No entanto, este reforço está dependente de estratégiasmetropolitanas, baseadas na articulação de políticas urbanísticas e de mobilidade, dependendode uma melhor coordenação institucional.Rede de mobilidade e acessibilidade:– introdução preferencial de transporte colectivo na VL, permitindo uma ligação mais directaaos nós de intermodalidade a reforçar.Rede lúdica:– reforço do transporte fluvial;– introdução de condições para a utilização de meios de transporte alternativos;– introdução de transporte colectivo de carácter sazonal ao longo da Via Panorâmica, nosentido de desincentivar o uso do transporte individual.Redes lúdicas e ambientaisVia panorâmica: a relação entre a via e os terrenos adjacentes é especialmente importante namarginal atlântica, onde existe uma faixa urbanizável considerável, pelo que é fundamental aredefinição do seu perfil. Por outro lado, a existência de percursos alternativos paralelos a estetroço da marginal poderá libertá-la em certa medida da função circulação, contribuindo para oreforço da sua vocação de lazer e fruição pública. Estas novas vias poderão ser realizadasaproveitando oportunidades como loteamentos, contribuindo preferencialmente para aresolução de situações de impasse.Relação entre marginal atlântica e faixa urbanizável:– definição de um perfil adequado com alinhamentos;– definição de critérios para o tratamento do espaço colectivo nas áreas de cedência deoperações de urbanização.Reforço da vocação de fruição pública:– criação de zonas de recepção junto à praia;– criação de percursos alternativos paralelos;

– criação de parques de estacionamento em articulação com a VL e com os percursospedonais.Sistema ambiental: pretende tirar-se partido dos elementos naturais ainda existentes e utilizaros interstícios permeáveis como base para a criação de corredores verdes estruturantes,articulados com o sistema de espaços urbanos. Esta rede de espaços verdes deverá contribuirpara a valorização de pontos de interesse e referências simbólicas e servir comoenquadramento à rede lúdica. Estes corredores poderão assumir a forma de áreasrenaturalizadas, como é o caso das envolventes das linhas de água, mas também poderão terum carácter mais urbano, como ruas com arborização.Qualificação dos espaços verdes:– despoluição, renaturalização e requalificação de linhas de água para integração emcorredores verdes e na rede lúdica;– assegurar a continuidade dos espaços verdes, através da manutenção de espaços nãoimpermeabilizados e áreas verdes nas operações de urbanização dos vazios urbanos e áreasexpectantes;– criação de parques urbanos de apoio às actividades de lazer ao longo da marginal e suaintegração com as áreas residenciais interiores;– introdução de arborização em eixos urbanos de ligação entre espaços verdes;– integração de zonas de produção agrícola e hortícola funcionando como hortas urbanas;– requalificação das áreas verdes envolventes às grandes infra-estruturas de mobilidade eacessibilidade.Percursos lúdicos: a criação destes percursos permitirá estender a vocação de lazer ao interiorda área de intervenção. Os percursos poderão fazer a articulação entre o sistema demobilidade e acessibilidade e o sistema lúdico e ambiental, ligando ainda pontos de interessee referências simbólicas do território. Esta articulação poderá também reforçar algumaspolaridades no interior da área de intervenção, contribuindo para a integração destas com osprogramas de carácter metropolitano que se poderão instalar.Reforço da vocação de fruição pública:– criação de percursos integrados em corredores verdes e acompanhando linhas de águarenaturalizadas;– definição de um perfil marginado por arborização e pontuado por mobiliário urbano e outrosapoios à paragem;– ligação entre pontos de interesse, referências simbólicas e equipamentos.PolaridadesAs polaridades configuram os nós das redes descritas. São zonas com alguma atractividade,seja pela condensação de actividades de nível local, seja pela existência de referênciassimbólicas ou identitárias. O reforço destas polaridades permitirá articular e valorizar ossistemas a desenvolver. A actuação terá uma dimensão mais física, aproveitando operaçõesurbanísticas como a que está em curso no centro da freguesia.Reforço da identidade local:– Tratamento do espaço público;– Preservação e valorização de referências simbólicas e identitárias;– Promoção da localização de actividades e equipamentos.6.2. Actividades: directrizes para a intervençãoMais do que fazer uma programação das actividades, principalmente as de âmbitometropolitano, trata-se de identificar as oportunidades latentes que se identificam na área.Estas poderão no futuro albergar intervenções de carácter mais intensivo, tirando partido daspotencialidades da área para a concretização de projectos-âncora (recuperando inclusivealgumas ideias apresentadas no âmbito do Polis) que reforcem a sua visibilidade ao nívelmetropolitano e possam simultaneamente despoletar dinâmicas locais. Este preenchimentodos vazios do tecido urbano poderá também contribuir para o reforço das polaridades de nívellocal, pelo que deverá existir uma definição de critérios para a ocupação desta áreas. Por outrolado, deverão existir também critérios de actuação para os tecidos existentes, nomeadamentepara aqueles que apresentam maiores debilidades e carências, assentando no reforço da infra-estruturação e no tratamento do espaço público.

Figura 9 – Localização das áreas de expansão e áreas de transformação (Julho 2004)

Subjacentes às propostas que seguidamente se apresentam, estão os objectivos transversaisconcretizados em três grandes temas:– habitar: melhoria das condições de vivência urbana através do reforço e qualificação depolaridades de nível local.– trabalhar: criar condições para a atracção e o desenvolvimento de actividades qualificadasde base diversificada, apesar de bastante integrada com as actividades de lazer, devido àspotencialidades da zona em termos turísticos e lúdicos.– lazer: potenciar a vocação de lazer da área, associando-a aos projectos de carácter extensivoe intensivo existentes e previstos, e contribuindo para o reforço da sua visibilidade regionalatravés da criação e reforço de pólos de lazer e turismo.Áreas de potencial transformaçãoP pedreira: espaço ambiental e paisagisticamente degradado de grande dimensão. Poderáalbergar um programa multiusos de âmbito metropolitano, vocacionado para o desporto, lazere realização de eventos. O programa a implementar deverá tirar partido das condições físicasexcepcionais da parcela, transformando um handicap numa potencialidade, e aproveitar aproximidade das zonas envolventes com interesse ambiental e cultural, articulando-se com arede lúdica. Poderá integrar a rede de equipamentos metropolitanos, aproveitando alocalização próxima à VL, em articulação com a rede arterial. Deverão ser seguidos critériosde reabilitação paisagística que permitam a flexibilidade da sua utilização.MG quinta marques gomes: detém características para albergar um programa mais fechadode âmbito metropolitano, como um pólo tecnológico ou de investigação. No entanto, poderátambém incluir uma vertente mais aberta, que permita o usufruto da casa (a recuperar) e daárea verde envolvente. Esta vertente poderá ser mais didáctica e dedicada à divulgaçãocientífica, podendo articular-se com programas escolares do tipo «Ciência Viva». Assim,poderão equacionar-se os seguintes programas:– pólo de investigação científica / tecnológica;– programa didáctico / de divulgação / núcleo museológico;– parque verde de acesso controlado;– café / restaurante / esplanada;– livraria especializada.CF casa do fojo: imóvel classificado, correspondente à antiga casa de uma quinta. A suapreservação é indissociável da manutenção do conjunto da quinta, pelo que é necessáriopromover a sua conservação. Esta poderá ser conseguida com o recurso a parcerias público /privado, permitindo simultaneamente o acesso público condicionado. Poderá assim tambémintegrar-se na rede lúdica proposta.SB seca do bacalhau: pólo lúdico / turístico de âmbito metropolitano, associando as temáticasturismo e saúde, e aproveitando a sua localização privilegiada na proximidade do mar, doestuário do Rio Douro, e do parque urbano proposto para o Vale de S. Paio. Poderá ter umadimensão de apoio às actividades de nível metropolitano existentes no nó da Arrábida, massem deixar de ser aberto à utilização colectiva. Para tal, poderão existir dentro da parcela

áreas mais reservadas para actividades específicas, e outras de acesso livre. O programapoderá ser uma combinação dos seguintes elementos:– anfiteatro ao ar livre;– café / restaurante / esplanada;– health-club;– hotel /spa– espaços para realização de encontros de negócios / centro de congressos.Áreas de potencial expansãoÁreas de expansão (VL | VP): correspondem a vazios urbanos, espaços residuais e novasfrentes de urbanização desencadeadas pela construção da VL. São áreas de dimensãoconsiderável que permitirão o preenchimento do tecido urbano através de operações deurbanização para as quais se definem princípios conducentes à sua valorização ecompatibilização com as pré-existências e com os valores ambientais.zona 1: zona densamente arborizada percorrida por uma linha de água. A ocupação urbanadeverá manter algumas das suas características naturais, reabilitando a linha de água e criandoum espaço de utilização colectiva no seu interior articulado com os verdes urbanos adjacentes.zona 2: vazio urbano arborizado, que poderá tirar partido da proximidade da Quinta MarquesGomes, pelo que deverá ser contemplada no seu interior a passagem de um dos percursospedonais que integrarão a rede lúdica.zona 3: será importante fazer o remate do miolo do quarteirão, aberto pela nova via. Seráigualmente fundamental procurar libertar o terreno agrícola do outro lado da VL, com maiorimportância para a integração na rede lúdica.zonas 4 e 6: a passagem da VL poderá constituir uma oportunidade de reabilitar a malhadegradada mais próxima. As operações a efectuar deverão, sempre que possível, integrar asáreas mais degradadas do tecido existente.zona 5: à semelhança do que acontece na zona 2, esta área poderá integrar um percurso deligação à rede lúdica. Neste caso, porém, terá mais importância como articulação entre a redede circulação (nomeadamente a VL) e a rede lúdica (percurso pedonal com ligação à ViaPanorâmica).zona 7: área paisagisticamente degradada, que integra valores com interesse patrimonial ecultural. A operação urbanística deverá contemplar a reabilitação paisagística da encosta,albergando um programa multifuncional, integrando as novas construções com as estruturasexistentes adaptadas a novos programas ligados à prestação de serviços a empresas.Faixa urbanizável marginal: área que tem vindo a atravessar um processo de densificação,com predominância de edifícios multifamiliares, pelo que importa estabelecer critérios queassegurem a sua qualificação:– promoção da multifuncionalidade, que poderá associar as actividades habitar e lazer;– assegurar a relação entre a marginal e a frente edificada, definindo alinhamentos e critériospara as áreas de cedência resultantes de operações urbanísticas;– criação de áreas de articulação entre a marginal e os outros percursos lúdicos, com áreas derecepção à praia servidas por pequenos equipamentos de apoio e criação de ritmos naocupação desta faixa.

7. Considerações finaisO processo de intervenção delineado procura fazer uma identificação dos elementosestruturantes para o processo de transformação em curso no território estudado. A suaidentificação é fundamental para a projecção do que poderá vir a ser o futuro daqueleterritório, ainda que alguns dos cenários aqui apresentados não passem de hipóteses para o seudesenvolvimento. No entanto, a intervenção nas redes estruturantes dos sistemas adesenvolver e a integrar será sempre fundamental para a qualificação extensiva deste e deoutros territórios, seja ao nível da componente ambiental e paisagística, seja ao nível dacomponente de mobilidade e acessibilidade. Estas são componentes do Sistema de EspaçosColectivos, cuja estruturação e qualificação, a escalas diferenciadas, são basilares para amelhoria da legibilidade destes espaços, conferindo-lhes características urbanas.

À concretização destes objectivos está subjacente a identificação da sua matéria-prima,constituída pelas áreas não ocupadas com potencial de integração neste Sistema, levando ànecessidade de definir uma visão estratégica sobre aquelas áreas, introduzindo na suaavaliação critérios valorativos que ajudem a definir prioridades de actuação. Uma operação pró-activa de estruturação e transformação, aproveitando oportunidades edecorrendo a diversos tempos, terá de ser forçosamente integrada num processo deplaneamento abrangente e continuado. Dependerá assim em grande medida de algumaflexibilidade institucional e da necessária adaptabilidade a uma melhor gestão dasoportunidades e das incertezas, tendo como base uma estratégia assumida, construída a partirdas especificidades locais e enquadrando referências mais alargadas. Esta contextualizaçãotem não só a ver com a dinâmica top-down (do global para o local) mas também com umadinâmica bottom-up, de geração de condições de atractividade a partir do contexto territorial(Borja e Castells, 1997, p.3). Para tal é necessário entender o território a partir das relaçõesque se estabelecem entre as suas partes, aceitando a sua complexidade (Ascher, 1998, p.16) eabandonando um certo quadro conceptual que aponta para ideia de evolução urbana segundoum modelo tradicional de cidade.

ReferênciasAscher, F. (1998) ‘Metapolis – acerca do futuro da cidade’, Oeiras, Celta Editores.Borja, J. and Castells, M. (1997) ‘Local & Global – Management of cities in the informationage’, London, Earthscan Publications.Domingues, A. (2006) ‘Cidade e Democracia, 30 anos de transformação urbana em Portugal’,Lisboa, Argumentum. Secchi, B. (1991) ‘La Periferia’, Casabella, Rivista Internazionale di Architettura, n.º 583, anoLV, 20-22.

UM NOVO DISCURSO PARA A MEGACIDADE1

RENOVAÇÃO URBANA DA PRAÇA DO PATRIARCA (1992-2002)2

Maria Isabel Villac e-mail: [email protected] Dra. Arquiteta FAU Mackenzie – SP – Brasil

Rua da Consolação 896 CEP 01302-907 São Paulo – SP / Brasil

«Há um século a Imperial Cidade de São Paulo guardava ainda sua feição colonial. Todas as principais funções se concentravam num triângulo [...]. Essa pequena colina triangular é quase plana, com altitudes variando de 750 a 760 metros, mas cercada por um forte desnível, de cerca de 30 metros em relação aos cursos d'água que a delimitam. É uma acrópole que abrigou a cidade em seus três primeiros séculos de existência». (Lima de Toledo, 1983)

Para quem sobe pelas escadas rolantes da Galeria Prestes Maia que cruza, por baixo do viaduto, o Vale do Anhangabaú, o artefato que o arquiteto projeta é um portal de acesso e uma moldura para a Praça do Patriarca no Centro Velho. Para quem, em sentido inverso, olha para o Viaduto do Chá, o artefato abre a perspectiva em direção ao Centro Novo.

1 Este texto é parte integrante da tese de doutorado “La construcción de la mirada – Naturaleza, Ciudad y

Discurso en la Arquitectura de Paulo Archias Mendes da Rocha”, ETSAB/UPC, 2002.

2 Do diagnóstico de um iminente desastre, ocasionado pela falta de planejamento e gestão da cidade, e do

anseio pela renovação urbana de São Paulo nasce um novo projeto para a Praça do Patriarca, no ano de 1992.

Parte integrante de outros projetos que compõem a iniciativa Viva o Centro, a obra foi construída pela EMURB

– Empresa Municipal de Urbanização, em 2002.

[Imagem 01: Situação]

A ARQUITETURA E O PROJETO DO ARQUITETO

«Esta estrutura se resolve com formas adequadas, leves e um tanto de aparência instável, convocando sensações imprevistas.

A cor deverá ser clara. Branca.» (Mendes da Rocha, 1992)

«Ó formas alvas, brancas. Formas claras.» (Cruz e Souza, 1893) 3

A cobertura que Mendes da Rocha projeta para a Praça do Patriarca é o primeiro projeto do arquiteto cuja materialidade "única", em aço, contraria a preeminência do concreto aparente. O desenho do artefato se compõe de um pórtico rígido — quase porta — e uma lâmina — quase arco — que no pórtico se encaixa e no qual se pendura distendida e articulada.

O conjunto metálico da Praça do Patriarca abre uma nova ordem na materialidade das obras de Paulo Mendes e busca, na precisão e alta resistência da leveza que se expressa na cor branca, a determinação e a expansão de sua virtude. Diferente do concreto aparente, que mostra sua robustez material e exibe o áspero e primitivo de sua textura para concentrar e

3 Cruz e Souza (1862-1898), ‘Antífona’, poema de abertura ao livro Broqueis - obra que inaugura, em

1893, o Simbolismo no Brasil -, cit. por Paulo Archias Mendes da Rocha (s/d) ‘Memória descritiva do Projeto

Patriarca’, revista Viva o Centro (Associação Viva o Centro, São Paulo) 11.

deter a expressão, despertar e aprofundar vazios internos, o metal é leve, resvaladiço, e não reclama um olhar tátil. Sua visibilidade, que é a propriedade física que o constitui, é da ordem do deslizamento, da reflexibilidade e da condutibilidade.

O concreto aparente possui um arcaísmo concentrado, uma determinada resistência a uma mirada distraída que, nas obras do arquiteto, até o projeto da Praça do Patriarca, é a materialidade que expõe a exigência de mudanças sociais. A nudez do concreto, quando é estrutura, muro e vedação, não permite sublimações, conduz a uma atitude introvertida, reflexiva, e sua intensidade material é, no Brasil, a metáfora do conflito entre a vontade de uma distinta ordem social e a resistência à mudança.

O metal, por sua parte, pode estruturar-se com muito pouca matéria. É uma substância na qual os esforços fluem com tal sutileza, que a tensão estrutural não se percebe como resistência, senão como tenacidade técnica e potente leveza. A cor branca, além do mais, devido à sua propriedade refletora, não densifica a presença da forma que recobre e lhe retira qualquer evocação à passagem do tempo e o conseqüente processo de desgaste da matéria.

«Não simplesmente restaurar, também criar novos desenhos que abriguem, amparem e expressem hábitos, símbolos urbanos contemporâneos, do tempo que vivemos» (Mendes da Rocha, 1992)

Tornar visível a cidade como o espaço da história e da possibilidade do prazer e da surpresa da vida urbana, é o desafio que a circunstância atual da Praça do Patriarca propõe. E é na Praça do Patriarca onde a arquitetura do arquiteto Paulo Mendes da Rocha parece ser outra: já não acentua, no domínio e na densidade da matéria, a proposição do novo que quer despertar o entorno e se propõe como um fundamento que estima configurar menos a si mesmo que à atmosfera circundante.

[Imagem 02: Implantação]

[Imagem 03: Maquete]

O artefato se mostra assim, somente estruturado: aberto à percepção do diferente no igual. Isso o torna muito estruturado, vazio, receptivo ao contexto do construído e à sociabilidade que deve povoar o espaço da cidade e servir de referencia ao Projeto de uma urbanidade sempre renovada. Como se a forma estruturada tornasse possível alcançar a cidade em seu desenho, originar-se conjuntamente com ela para voltar a fundá-la, a uni-la. Desenhá-la outra vez, para que alcance a máxima visibilidade do gesto e do texto vivo de sua fundação em seu complexo tecido. E também, porque não?, ensinar sua geomorfologia, seu potencial paisagístico, sua estrutura; mas voltando a escrever o mesmo texto do movimento e da textura de uma sociabilidade inaugural.

O ENUNCIADO DA CIDADE

«Urbe imensa

Pensa o que é e será e foi

Pensa no boi

Enigmática máscara boi

Tem piedade

Megacidade

Conta teus meninos

Canta com teus sinos

a felicidade intensa

Que se perde e encontra em ti

Luz dilui-se e adensa-se

Pensa-te» (Caetano Veloso, 1993)

A cidade e a vida urbana não são a mesma coisa. E se, efetivamente, é más fácil construir cidades que vida urbana (Gaviria, 1969), São Paulo contraria esta premissa. Cidade caótica, imensa, complexa em seus traçados, agressiva na exposição mais ou menos aparente de sua lógica e do ritmo desenhado por sua estrutura. Entretanto, uma metrópole.

São Paulo é uma cidade que «é como o mundo todo» (Caetano Veloso, 1986). Todas as cidades e nenhuma: a vida urbana que ensina a riqueza, a diversidade, o erotismo, a dispersão e o estranhamento de sua cara metropolitana; passagem para uma inteligência mais provinciana, doméstica e afetiva; e moldura para o pesadelo obsceno da violência da miséria e do abandono, que são essas marcas do sorriso cínico do progresso imediato e sem inteligência do colonialismo interno.

São Paulo é uma cidade cosmopolita e singular, cuja íntima inscrição na monumentalidade desse cosmopolitismo é uma trama recôndita, mais bem um tecido semperiano4. Um primeiro olhar revela a sombra que atua em São Paulo, sua aparente invisibilidade e essa contrariedade e simetria de ser uma moderna cidade do terceiro mundo e uma arcaica cidade do novo mundo. Mas a vitalidade paulistana, sua sociabilidade, busca uma mirada próxima. Uma mirada que, como uma membrana, penetre os interstícios de sua vocação construtiva-

4 Gottfried Semper (1851) em Os quatro elementos da arquitetura, propunha, para a arquitetura, um

constructo antropológico, compreendendo: 1. Uma lareira; 2. Um terrapleno; 3. Uma armação e um telhado; 4.

Uma membrana envoltória como ato diferenciador, de tal modo que a textura pode ser literalmente identificada

com a proto-linguística da produção têxtil que é, para Semper, a base de toda civilização. Em nossa

interpretação, esta membrana, que se constrói por capas sucessivas, é um limite, uma superfície e, como tal, um

modelo de visão que reveste e oculta a profundidade/receptividade do espaço nos extratos de seu próprio

construir.

destrutiva. Uma mirada aberta que se detenha na sua sociabilidade e perceba um quadro impressionista5 anteposto à visão da cidade cubista.

[Imagem 04: Desenho piso]

A POROSIDADE DO ARTEFATO

«Toda obra de arte, o es una actividad de formas ocupando un espacio o es el espacio desocupado». (Oteiza, 1958)

A cidade é o traçado da materialidade permanente. O vazio é o espaço público por excelência. Se a cidade é a materialidade construída e pensada como artefato, o vazio é o que define a vitalidade urbana, o espaço das relações humanas, o povoamento da cidade. O vazio é a condição para o livre acontecimento do encontro, o "a través de" necessário para os sucessos e contingências que tornam propícia a vida urbana.

5 Também para o olhar do estrangeiro, a invisibilidade de São Paulo contrasta com “o paradigma

inquieto de uma cidade que deve ser vivida de dentro e de fora. Que deve ser vista nos seus detalhes

micrológicos e nas suas abstrações noturnas.” Massimo Canevacci (1997). Cidade Polifônica – Ensaio sobre a

antropologia da comunicação urbana (Studio Nobel, São Paulo) 255.

[Imagem 05: Vista transversa]

A gravidade sem peso do artefato que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha projeta para a Praça do Patriarca, leve e ágil, se estrutura de forma sintética, possui uma solidez transigente, de aparência instável, que busca surpreender o contexto circundante. Talvez porque a cidade seja compacta, construída sobre si mesma, o artefato que o arquiteto inventa para quer mover-se. Talvez seja esta decisão, orientada pela quase imaterialidade que configurada pela forma simples e pela luminosidade solar da cor branca, a gentileza necessária para restaurar o espaço propício à vida urbana.

Esta leveza e simplicidade pode tornar visível a vocação da cidade,6 pois propõe abrir espaço e render seu tributo à relação que existe entre contemporaneidade e realidade/configuração atual arquitetônica e urbanística da praça. A forma do artefato está plasmada pela dinâmica “intra e extra arquitetura”, e o que está em questão não é somente a arquitetura como construção, senão a contemporaneidade como tal, sob os aspectos com que a arquitetura constrói e interpreta espacialmente a cidade. Isso envolve uma antropologia do espaço, ligada, diretamente, tanto ao tema funcional a que se refere o projeto, como ao que quer abarcar e simbolizar.

E como um contorno que enquadra e, ao mesmo tempo, é antagonista com a saturação do já visto, a forma que define o pórtico/arco é porosa, vazia, liminar: o objeto não se funde com o

6 «Cada cidade tem a sua própria vocação». Paulo Archias Mendes da Rocha, 13/05/1972.

espaço circundante, mas o acolhe como fundamento de seu sentido. Ao estar vazio, e assim aberto à paisagem, o pórtico/arco abre uma transparência e se mostra receptivo.

Mas o pórtico/arco é, também, expressivo. Em seu desejo de criar um espaço tangível, sua expressividade reorienta o sentido urbano e estabelece uma nova referência de escala, um eixo transverso à repetição e ao anonimato, tanto da paisagem como do transeunte: funda novamente a praça, traz um movimento distinto, atua como reflexão sensível na vertigem interminável que destrói os espaços urbanos e sua singularidade e torna evidente o valor do território e de um enunciado que deseja re-inaugurar a cidade.

Neste sentido se pode afirmar a presença de um enunciado que propõe mudar a ortodoxia cultural e a sintaxe social, no momento contemporâneo. Diante da cidade, a arquitetura do pórtico/arco espera ser compreendida como ação diante da realidade, ou seja, uma leitura da singularidade e da historicidade da obra como desdobramento da memória e do imaginário, onde o que está em jogo é a própria cidade e o sujeito; todos, como objeto do discurso.

ELEGIA À CIDADE I

«[...] E quem vem de outro sonho feliz de cidade,

aprende depressa a chamar-te realidade» (Caetano Veloso, 1978).

São Paulo é um “palimpsesto” (Lima de Toledo, 1983)7 e, como tal, foi reconstruída várias vezes sobre si mesma. Progressista, São Paulo apresenta uma modernidade sempre contemporânea, tecnológica e vanguardista. Decadente, a cidade cresceu sem visão de conjunto, sem controle, e não se articula como um organismo, o que gera um sentimento de não pertencer e sensação de abandono. Seu espaço como território único, define, portanto, na contemporaneidade, uma cidade de vocação “atópica” e caótica, uma não-cidade.

O pórtico/arco da Praça do Patriarca é uma referência a essa São Paulo de muitos movimentos, mas ao mostrar-se contrária ao alinhamento de seus extremos, se propõe como conciliação: o artefato estrutura a reta e a curva, o portal e o arco, o objeto e a cidade, o vazio e o cheio. Na fronteira entre a arte e o urbanismo, a simplicidade de uma linha e uma superfície curva acusam a fissura do tecido urbano e ordenam o caos da constante desestruturação da cidade. Seu desenho pleno e delicado se opõe à opacidade do construído e conecta a espacialidade da paisagem. Sua flexibilidade e transparência remetem tanto ao permanente como ao intermitente, tanto aos registros como aos vestígios.

7 «São Paulo é um palimpsesto — um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos,

para receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral. Uma cidade reconstruída duas vezes sobre si

mesma, no último século.», Benedito Lima de Toledo (1983), São Paulo: três cidades em um século (Duas

Cidades, São Paulo) 67.

A arquitetura que se propõe para a Praça do Patriarca estranha a atopia, mas não é indiferente a ela. A leveza instável que se propõe é a inflexão, a contemporaneidade e contexto do projeto, a diferença que se mostra como marco: uma forma delicada, luminosa, capaz de adotar o conteúdo do entorno, e que se abre à lógica mutante da cidade.

A configuração que o arquiteto desenha marca e renova o espaço. Como se o desejo fosse ser parte do patrimônio,8 o artefato reconhece a sintaxe dos paulistas,9 aceita a eloqüência da voz e do texto da metrópole. A mesma mirada afetiva, suave, como contraponto à opacidade que recobriu e enclausurou parte do coração da área central de São Paulo, ensina que a articulação do caos e da atopia é o raciocínio urbanístico e a possibilidade de renovação da poética dinâmica da vida urbana.

O pórtico/arco se coloca como uma entidade plástica e, ainda que guarde sua autonomia, se ancora na intenção de ser um elemento ativo, extensivo ao traçado urbano. Sem que se perca o dinamismo, que é a matriz renovadora da contemporaneidade, o pórtico reivindica para São Paulo o zelo e o sentimento de ser deste lugar que originaram o arquétipo metropolitano, contido na qualidade racional e construtiva de seus planos urbanísticos10 e no ambiente poético11 da modernidade esquecida da primeira metade do século XX. O Modernismo se apropriou do provincianismo e do estrangeirismo da cidade: cantou a Paulicéia desvairada, estruturou um projeto para o ser brasileiro tão fiel a esta paisagem mesclada, ainda hoje, carregada de arcaísmo, ruínas e modernidade tecnológica.

ELEGÍA À CIDADE II

«[...] no es la sociedad, a través de sus medios de información y comunicación, sino el artista el único que puede garantizar la presencia del arte en las condiciones actuales de la cultura [...]» (Argan, 1977)

8 Diferentemente do conceito de "patrimônio histórico" que exige distância no tempo e se impõe por seu

valor histórico, o conceito de "patrimônio" nasce associado ao julgamento estético da obra e tem origem na

prática de se construir monumentos, cujo propósito, de natureza essencialmente afetiva, é “tocar, pela emoção,

uma memória viva”. Françoise Choay (2001) A alegoria do patrimônio (Estação Liberdade, São Paulo) 18.

9 «Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas», Caetano Veloso, letra da canção Língua, 1984.

10 A partir de 1911, o crescimento de São Paulo é estudado como ampliação da área central, no Plano de

Avenidas, projetado em 1929 pelo engenheiro Prestes Maia.

11 Referência ao ambiente cosmopolita e provinciano do Modernismo Brasileiro, em São Paulo. Ver:

Mário de Andrade (1939) ‘O movimento modernista’, Revista Anual do Salão de Maio – RASM – São Paulo.

Uma obra arquitetônica, isolada em uma praça, tende a ser escultórica e monumental. Não obstante, sua monumentalidade adquire uma qualidade complexa quando seu atributo é a interpenetração que permite articular os edifícios do entorno. O portal e o arco do projeto da Praça do Patriarca — duas formas tradicionais — criam uma figura espacial, cuja estrutura é a solenidade do vazio dentro de um marco. Sua substância quase imaterial é vibrante, ativa. Está em movimento.

As imagens que o portal e o arco concentram em sua geometria preenchem seu interior e se prolongam para o espaço exterior mais além dos limites da moldura. Desde a ordem interna de seu próprio desenho, desde a precisão geométrica que enquadra uma paisagem e sua grandeza em ser um vazio, o pórtico/arco que se projeta para a Praça do Patriarca se expande em direção à praça, coordena e integra o espaço circundante.

A escala do artefato faz referência à escala da pequena e tradicional capela; entretanto, a força do pórtico é também sua escala monumental: é o elemento que atua com expressividade centrípeta, potenciando o espaço, antes difuso, para criar uma situação de espaço envolvente. Para conseguir esse efeito, introduz o sentido do movimento como orientação; permite tanto um descobrimento gradual como uma visão súbita.

A obra adverte um novo movimento no contexto urbano, e se justapõe, por sua escala, forma e luz à experiência particularmente recôndita dos espaços contíguos. Assim mostra que a escala recupera símbolos urbanos, que forma nasce do uso e do hábito, que a luz surge da observação do estado de decrepitude da paisagem.

É o pórtico/arco que devolve à praça seu caráter compacto e íntimo. Os edifícios, antes calados, fechados em si mesmos como construções unitárias, voltam a participar da ordem urbana, se reintegram e recuperam sua importância como patrimônio.

ELEGIA AO CIDADÃO

«[...] entenem la CREACIÓ MONUMENTAL com la limitació oberta d'un gran espai buit, receptor dins el dinàmic i torbador complex de la ciutat que intenta aïllar en la comunitat la raó vital de la seva circumstància, tot traduint-la en la raó existencial des de la intimitat de la qual es refà la nova consciència espiritual i politica de l'home és ací on entenem el CANT DE LA LLIBERTAT, com a recuperació de la consciència [...]».(Oteiza, 1959)

«A sociedade rejeita, mas a cidade não!». (Homeless, 1996)

No pórtico/arco da Praça do Patriarca, a equação estrutural, a claridade da estrutura, é uma tendência à expansão do movimento. O metal, por ser dúctil, concede à mirada um movimento transitório. O pórtico, por sua vez, define um plano que deve ser transposto; o pórtico/arco, que é a própria forma da transitoriedade do movimento, organiza espaços que da paisagem urbana circundante.

Mas este movimento, que o artefato abriga e que a forma sugere, é um jogo complexo entre a superfície e a profundidade, que não fixa a história como permanência e marca o projeto com uma relação fluida entre o sujeito e o espaço urbano. Se a sociabilidade de São Paulo se esconde na obscuridade de uma visão trágica, o desenho do pórtico nasce dos desígnios de sua

própria consistência e propõe educar o sentimento de ser deste lugar12 e recordar ao cidadão comum sua qualidade de ator principal na construção da cidade e homenageá-lo como guardião da vida urbana e dos laços que estabelecem em seu exercício.

O pórtico/arco contém urbanidade e humanidade. Não opõe resistência, é um espaço de transição, propício a multiplicar relações e apontar direções na extensão contínua de um território desumanizado. Uma forma proposta como movimento, como limite aberto e como materialidade flexível, que permite transpassar o vazio e experimentar o espaço urbano.

O pórtico/arco não tem uma escala reduzida, sua visualidade plena recusa o ingrávido como frágil e tem corpo, elasticidade, sólida capacidade de tensão; sua forma contém o gesto do abrigo. E é esta escala, corporeidade e presença protetora, a que configura a dimensão íntima do artefato e inaugura sua receptividade ao sujeito. O pórtico/arco, como uma fissura que interrompe o anonimato, constitui um monumento ao cidadão; abre a perspectiva de recebê-lo dentro da amplitude e visibilidade do espaço público. O artefato é um rito de passagem, um torii13 que define, momentaneamente, um centro, e este focaliza a humanidade do homem como uma necessidade apremiante. Habitar o pórtico transforma ao transeunte na chave de sentido da existência da urbanidade: o aproxima à perspectiva da cidade, o convida a ocupar seu mesmo campo, e o focaliza na perspectiva de sua importância humana.

A BELEZA DA CIDADE

«As cidades povoam-se com os monumentos a suas vaidades». (Malaco, s/d)

«[...] a cidade, com as conquistas a nível estético, representa uma conquista popular». (Mendes da Rocha, 1972)

Os monumentos fazem os fatos permanecer no tempo. O pórtico e o arco da Praça do Patriarca elegem também a vaidade como tributo à monumental cidade, já que São Paulo é uma cidade cuja beleza se escondeu. Quando definiu sua "voraz" vocação industrial, a partir da segunda metade do século XX, associou a noção de progresso e eficácia à imagem de uma cidade feia e a noção de restrição ao que é absoluto, sério e essencial.

O projeto para a Praça do Patriarca desfaz o preconceito contra a beleza, reclama uma São Paulo mais bonita e legível aos usuários. Com um desenho orientado para o futuro, resposta à profundidade lógica e à complexidade da técnica, o artefato propõe uma São Paulo que quer ser de novo uma bela cidade e cuja sociabilidade se deseja mais visível, mais evidente, mais luminosa.

12 «[...] l'arte è radicata nell'esperienza; ma l'esperienza, a sua volta, è construita nella memoria e

preformata nella immaginazione [...] L'esperienza artistica è perciò l'educazione del sentimento [...]», Susanne

Langer (1965) Theory of Art, 1953; trad. it. Sentimento e forma, (Feltrinelli, Milão) 436.

13 Pórtico tradicional japonês.

A SOCIABILIDADE E O DISCURSO DE UM LUGAR

O projeto, em sua elementaridade, não é neutro, anônimo ou impessoal. Esta arquitetura, integrada na paisagem urbana e receptiva à sua realidade palpável, é côncava e convexa: a individualidade máxima de seu desenho não está fechada sobre si mesma, já que é a dimensão íntima, com que reconhece e se abriga no entorno, a que define a expressividade da abertura ao espaço público. Essa igualdade de dimensão entre individualidade íntima e pública, que se apresenta no espaço da cidade, é o entendimento da vida urbana e sua sociabilidade.

O pórtico/arco não tem interior nem exterior. É a pura simultaneidade de um lugar em movimento, que, entretanto, o define. Sua escala conecta a praça à perspectiva, propriamente urbana, da cidade. A praça, que ainda mantém a escala tradicional e provinciana dos inícios do século XX, encontra, no projeto, a afirmação da escala da pequena igreja e da escultura de Ceschiatti. Entretanto, o vazio do pórtico/arco acolhe a perspectiva da metrópole. A escala do artefato cria portanto, um lugar/arco/íntimo, que é o mesmo lugar/pórtico/vazio/monumental.

Lugar como locus, o pórtico/arco se quer permanente. Portal e arco são um núcleo íntegro que evoca o grau zero da arquitetura. Sua geometria busca a clareza e a fixação na memória, para que, assim, se "reinaugurem" os edifícios públicos e o acesso a outra dimensão espacial e do fluxo do tempo.

Lugar como acesso ao futuro. A obra abre e transparenta um futuro possível ao articular um desenho que, sem esconder as contradições nem as ambigüidades, aceita o caos como uma possibilidade e se propõe a habitá-lo como conciliação.

Lugar por onde se passa. Passar de um lugar a outro, "a passagem" é também uma oração. O texto de um autor. Congrega, portanto, em seu sentido, uma estrutura ambiental, uma ação e um discurso. A passagem é um discurso atento ao momentâneo. Lugar como momento, o pórtico se propõe atento à contingência: em meio da mutação o artefato expressa a passagem do tempo e sua acessibilidade.

Transitório e efêmero, o movimento que acolhe o pórtico é a arquiteturização da passagem do tempo, definido por contornos sobre os quais se possa descansar a mirada: entre continuidade e contenção, a percepção atua como atividade, flutuando na superfície da retina e no fundamento construtivo.

Esta simultaneidade transforma a seqüência de imagens em coexistência, e cria a possibilidade de conexão de tudo com tudo, do um com o todo. Lugar fronteiriço, portanto, passagem que entrelaça distintos tempos e espaços — passado, futuro, o agora —, o portal é ordem e imprevisibilidade. Quer despertar a cidade impressionista e recordar a cidade interior em cada transeunte: imagens de outras cidades do passado, do presente, do futuro em conexão; visões interiores da vivência do ser cidadão, projetos de um «sonho feliz de cidade» (Caetano Veloso, 1978).

Referências

Argan G. C. et alt Giulio Carlo (1977) Revival. El pasado en el presente

(Gustavo Gili, Barcelona) 28.

Canevacci, M. (1997). Cidade Polifônica – Ensaio sobre a antropologia da

comunicação urbana. (Studio Nobel, São Paulo) 255.

Choay, F. (2001). A alegoria do patrimônio (Estação Liberdade, São Paulo) 18.

Gaviria, M. (1969), prólogo para Henri Lefèbvre, El derecho a la ciudad

(Península, Barcelona) 10.

Homeless paulistano (1996), mencionada por Mendes da Rocha, Ciclo de

conferências Less is more (UIA, Barcelona).

Lima de Toledo, B. (1983) São Paulo: três cidades em um século (Duas

Cidades, São Paulo) 13 e 67.

Malaco, J. T. S. (s/d). ‘Cidades — Ensaio de aproximação conceitual’,

Caramelo nº 7, (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de

São Paulo, São Paulo) 119.

Mendes da Rocha, P. M. (1972) ‘O arquiteto diante da desagregação urbana /

O artista reclama participação’ (O Estado de São Paulo, São Paulo,

13/05/1972).

______. (1992) Memória descritiva do Projeto Patriarca.

Oteiza, J. (1958) ‘Estela en Aguiña - conclusión experimental, De Quousque

Tandem...!’, Catálogo Oteiza el arquitecto (Fundación Cultural Colegio de

Arquitectos de Madrid, Madri, 1996).

_____. (1959) ‘Memòria del concurs per al monument a José Batlle y

Ordoñez’, Catálogo da exposição Oteiza Propòsit Experimental (Fundació

Caixa de Pensions, Barcelona 8 de jun. a 24 de jul. 1988) 228.

Veloso, C., (1978) letra da canção Sampa.

_____ (1984) letra da canção Língua.

_____ (1986) letra da canção Vaca Profana.

_____. (1993) letra da canção Aboio.

UM NOVO DISCURSO PARA A MEGACIDADE1

RENOVAÇÃO URBANA DA PRAÇA DO PATRIARCA (1992-2002)2

Maria Isabel Villac e-mail: [email protected] Dra. Arquiteta FAU Mackenzie – SP – Brasil

Rua da Consolação 896 CEP 01302-907 São Paulo – SP / Brasil

«Há um século a Imperial Cidade de São Paulo guardava ainda sua feição colonial. Todas as principais funções se concentravam num triângulo [...]. Essa pequena colina triangular é quase plana, com altitudes variando de 750 a 760 metros, mas cercada por um forte desnível, de cerca de 30 metros em relação aos cursos d'água que a delimitam. É uma acrópole que abrigou a cidade em seus três primeiros séculos de existência». (Lima de Toledo, 1983)

Para quem sobe pelas escadas rolantes da Galeria Prestes Maia que cruza, por baixo do viaduto, o Vale do Anhangabaú, o artefato que o arquiteto projeta é um portal de acesso e uma moldura para a Praça do Patriarca no Centro Velho. Para quem, em sentido inverso, olha para o Viaduto do Chá, o artefato abre a perspectiva em direção ao Centro Novo.

1 Este texto é parte integrante da tese de doutorado “La construcción de la mirada – Naturaleza, Ciudad y

Discurso en la Arquitectura de Paulo Archias Mendes da Rocha”, ETSAB/UPC, 2002.

2 Do diagnóstico de um iminente desastre, ocasionado pela falta de planejamento e gestão da cidade, e do

anseio pela renovação urbana de São Paulo nasce um novo projeto para a Praça do Patriarca, no ano de 1992.

Parte integrante de outros projetos que compõem a iniciativa Viva o Centro, a obra foi construída pela EMURB

– Empresa Municipal de Urbanização, em 2002.

[Imagem 01: Situação]

A ARQUITETURA E O PROJETO DO ARQUITETO

«Esta estrutura se resolve com formas adequadas, leves e um tanto de aparência instável, convocando sensações imprevistas.

A cor deverá ser clara. Branca.» (Mendes da Rocha, 1992)

«Ó formas alvas, brancas. Formas claras.» (Cruz e Souza, 1893) 3

A cobertura que Mendes da Rocha projeta para a Praça do Patriarca é o primeiro projeto do arquiteto cuja materialidade "única", em aço, contraria a preeminência do concreto aparente. O desenho do artefato se compõe de um pórtico rígido — quase porta — e uma lâmina — quase arco — que no pórtico se encaixa e no qual se pendura distendida e articulada.

O conjunto metálico da Praça do Patriarca abre uma nova ordem na materialidade das obras de Paulo Mendes e busca, na precisão e alta resistência da leveza que se expressa na cor branca, a determinação e a expansão de sua virtude. Diferente do concreto aparente, que mostra sua robustez material e exibe o áspero e primitivo de sua textura para concentrar e

3 Cruz e Souza (1862-1898), ‘Antífona’, poema de abertura ao livro Broqueis - obra que inaugura, em

1893, o Simbolismo no Brasil -, cit. por Paulo Archias Mendes da Rocha (s/d) ‘Memória descritiva do Projeto

Patriarca’, revista Viva o Centro (Associação Viva o Centro, São Paulo) 11.

deter a expressão, despertar e aprofundar vazios internos, o metal é leve, resvaladiço, e não reclama um olhar tátil. Sua visibilidade, que é a propriedade física que o constitui, é da ordem do deslizamento, da reflexibilidade e da condutibilidade.

O concreto aparente possui um arcaísmo concentrado, uma determinada resistência a uma mirada distraída que, nas obras do arquiteto, até o projeto da Praça do Patriarca, é a materialidade que expõe a exigência de mudanças sociais. A nudez do concreto, quando é estrutura, muro e vedação, não permite sublimações, conduz a uma atitude introvertida, reflexiva, e sua intensidade material é, no Brasil, a metáfora do conflito entre a vontade de uma distinta ordem social e a resistência à mudança.

O metal, por sua parte, pode estruturar-se com muito pouca matéria. É uma substância na qual os esforços fluem com tal sutileza, que a tensão estrutural não se percebe como resistência, senão como tenacidade técnica e potente leveza. A cor branca, além do mais, devido à sua propriedade refletora, não densifica a presença da forma que recobre e lhe retira qualquer evocação à passagem do tempo e o conseqüente processo de desgaste da matéria.

«Não simplesmente restaurar, também criar novos desenhos que abriguem, amparem e expressem hábitos, símbolos urbanos contemporâneos, do tempo que vivemos» (Mendes da Rocha, 1992)

Tornar visível a cidade como o espaço da história e da possibilidade do prazer e da surpresa da vida urbana, é o desafio que a circunstância atual da Praça do Patriarca propõe. E é na Praça do Patriarca onde a arquitetura do arquiteto Paulo Mendes da Rocha parece ser outra: já não acentua, no domínio e na densidade da matéria, a proposição do novo que quer despertar o entorno e se propõe como um fundamento que estima configurar menos a si mesmo que à atmosfera circundante.

[Imagem 02: Implantação]

[Imagem 03: Maquete]

O artefato se mostra assim, somente estruturado: aberto à percepção do diferente no igual. Isso o torna muito estruturado, vazio, receptivo ao contexto do construído e à sociabilidade que deve povoar o espaço da cidade e servir de referencia ao Projeto de uma urbanidade sempre renovada. Como se a forma estruturada tornasse possível alcançar a cidade em seu desenho, originar-se conjuntamente com ela para voltar a fundá-la, a uni-la. Desenhá-la outra vez, para que alcance a máxima visibilidade do gesto e do texto vivo de sua fundação em seu complexo tecido. E também, porque não?, ensinar sua geomorfologia, seu potencial paisagístico, sua estrutura; mas voltando a escrever o mesmo texto do movimento e da textura de uma sociabilidade inaugural.

O ENUNCIADO DA CIDADE

«Urbe imensa

Pensa o que é e será e foi

Pensa no boi

Enigmática máscara boi

Tem piedade

Megacidade

Conta teus meninos

Canta com teus sinos

a felicidade intensa

Que se perde e encontra em ti

Luz dilui-se e adensa-se

Pensa-te» (Caetano Veloso, 1993)

A cidade e a vida urbana não são a mesma coisa. E se, efetivamente, é más fácil construir cidades que vida urbana (Gaviria, 1969), São Paulo contraria esta premissa. Cidade caótica, imensa, complexa em seus traçados, agressiva na exposição mais ou menos aparente de sua lógica e do ritmo desenhado por sua estrutura. Entretanto, uma metrópole.

São Paulo é uma cidade que «é como o mundo todo» (Caetano Veloso, 1986). Todas as cidades e nenhuma: a vida urbana que ensina a riqueza, a diversidade, o erotismo, a dispersão e o estranhamento de sua cara metropolitana; passagem para uma inteligência mais provinciana, doméstica e afetiva; e moldura para o pesadelo obsceno da violência da miséria e do abandono, que são essas marcas do sorriso cínico do progresso imediato e sem inteligência do colonialismo interno.

São Paulo é uma cidade cosmopolita e singular, cuja íntima inscrição na monumentalidade desse cosmopolitismo é uma trama recôndita, mais bem um tecido semperiano4. Um primeiro olhar revela a sombra que atua em São Paulo, sua aparente invisibilidade e essa contrariedade e simetria de ser uma moderna cidade do terceiro mundo e uma arcaica cidade do novo mundo. Mas a vitalidade paulistana, sua sociabilidade, busca uma mirada próxima. Uma mirada que, como uma membrana, penetre os interstícios de sua vocação construtiva-

4 Gottfried Semper (1851) em Os quatro elementos da arquitetura, propunha, para a arquitetura, um

constructo antropológico, compreendendo: 1. Uma lareira; 2. Um terrapleno; 3. Uma armação e um telhado; 4.

Uma membrana envoltória como ato diferenciador, de tal modo que a textura pode ser literalmente identificada

com a proto-linguística da produção têxtil que é, para Semper, a base de toda civilização. Em nossa

interpretação, esta membrana, que se constrói por capas sucessivas, é um limite, uma superfície e, como tal, um

modelo de visão que reveste e oculta a profundidade/receptividade do espaço nos extratos de seu próprio

construir.

destrutiva. Uma mirada aberta que se detenha na sua sociabilidade e perceba um quadro impressionista5 anteposto à visão da cidade cubista.

[Imagem 04: Desenho piso]

A POROSIDADE DO ARTEFATO

«Toda obra de arte, o es una actividad de formas ocupando un espacio o es el espacio desocupado». (Oteiza, 1958)

A cidade é o traçado da materialidade permanente. O vazio é o espaço público por excelência. Se a cidade é a materialidade construída e pensada como artefato, o vazio é o que define a vitalidade urbana, o espaço das relações humanas, o povoamento da cidade. O vazio é a condição para o livre acontecimento do encontro, o "a través de" necessário para os sucessos e contingências que tornam propícia a vida urbana.

5 Também para o olhar do estrangeiro, a invisibilidade de São Paulo contrasta com “o paradigma

inquieto de uma cidade que deve ser vivida de dentro e de fora. Que deve ser vista nos seus detalhes

micrológicos e nas suas abstrações noturnas.” Massimo Canevacci (1997). Cidade Polifônica – Ensaio sobre a

antropologia da comunicação urbana (Studio Nobel, São Paulo) 255.

[Imagem 05: Vista transversa]

A gravidade sem peso do artefato que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha projeta para a Praça do Patriarca, leve e ágil, se estrutura de forma sintética, possui uma solidez transigente, de aparência instável, que busca surpreender o contexto circundante. Talvez porque a cidade seja compacta, construída sobre si mesma, o artefato que o arquiteto inventa para quer mover-se. Talvez seja esta decisão, orientada pela quase imaterialidade que configurada pela forma simples e pela luminosidade solar da cor branca, a gentileza necessária para restaurar o espaço propício à vida urbana.

Esta leveza e simplicidade pode tornar visível a vocação da cidade,6 pois propõe abrir espaço e render seu tributo à relação que existe entre contemporaneidade e realidade/configuração atual arquitetônica e urbanística da praça. A forma do artefato está plasmada pela dinâmica “intra e extra arquitetura”, e o que está em questão não é somente a arquitetura como construção, senão a contemporaneidade como tal, sob os aspectos com que a arquitetura constrói e interpreta espacialmente a cidade. Isso envolve uma antropologia do espaço, ligada, diretamente, tanto ao tema funcional a que se refere o projeto, como ao que quer abarcar e simbolizar.

E como um contorno que enquadra e, ao mesmo tempo, é antagonista com a saturação do já visto, a forma que define o pórtico/arco é porosa, vazia, liminar: o objeto não se funde com o

6 «Cada cidade tem a sua própria vocação». Paulo Archias Mendes da Rocha, 13/05/1972.

espaço circundante, mas o acolhe como fundamento de seu sentido. Ao estar vazio, e assim aberto à paisagem, o pórtico/arco abre uma transparência e se mostra receptivo.

Mas o pórtico/arco é, também, expressivo. Em seu desejo de criar um espaço tangível, sua expressividade reorienta o sentido urbano e estabelece uma nova referência de escala, um eixo transverso à repetição e ao anonimato, tanto da paisagem como do transeunte: funda novamente a praça, traz um movimento distinto, atua como reflexão sensível na vertigem interminável que destrói os espaços urbanos e sua singularidade e torna evidente o valor do território e de um enunciado que deseja re-inaugurar a cidade.

Neste sentido se pode afirmar a presença de um enunciado que propõe mudar a ortodoxia cultural e a sintaxe social, no momento contemporâneo. Diante da cidade, a arquitetura do pórtico/arco espera ser compreendida como ação diante da realidade, ou seja, uma leitura da singularidade e da historicidade da obra como desdobramento da memória e do imaginário, onde o que está em jogo é a própria cidade e o sujeito; todos, como objeto do discurso.

ELEGIA À CIDADE I

«[...] E quem vem de outro sonho feliz de cidade,

aprende depressa a chamar-te realidade» (Caetano Veloso, 1978).

São Paulo é um “palimpsesto” (Lima de Toledo, 1983)7 e, como tal, foi reconstruída várias vezes sobre si mesma. Progressista, São Paulo apresenta uma modernidade sempre contemporânea, tecnológica e vanguardista. Decadente, a cidade cresceu sem visão de conjunto, sem controle, e não se articula como um organismo, o que gera um sentimento de não pertencer e sensação de abandono. Seu espaço como território único, define, portanto, na contemporaneidade, uma cidade de vocação “atópica” e caótica, uma não-cidade.

O pórtico/arco da Praça do Patriarca é uma referência a essa São Paulo de muitos movimentos, mas ao mostrar-se contrária ao alinhamento de seus extremos, se propõe como conciliação: o artefato estrutura a reta e a curva, o portal e o arco, o objeto e a cidade, o vazio e o cheio. Na fronteira entre a arte e o urbanismo, a simplicidade de uma linha e uma superfície curva acusam a fissura do tecido urbano e ordenam o caos da constante desestruturação da cidade. Seu desenho pleno e delicado se opõe à opacidade do construído e conecta a espacialidade da paisagem. Sua flexibilidade e transparência remetem tanto ao permanente como ao intermitente, tanto aos registros como aos vestígios.

7 «São Paulo é um palimpsesto — um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos,

para receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral. Uma cidade reconstruída duas vezes sobre si

mesma, no último século.», Benedito Lima de Toledo (1983), São Paulo: três cidades em um século (Duas

Cidades, São Paulo) 67.

A arquitetura que se propõe para a Praça do Patriarca estranha a atopia, mas não é indiferente a ela. A leveza instável que se propõe é a inflexão, a contemporaneidade e contexto do projeto, a diferença que se mostra como marco: uma forma delicada, luminosa, capaz de adotar o conteúdo do entorno, e que se abre à lógica mutante da cidade.

A configuração que o arquiteto desenha marca e renova o espaço. Como se o desejo fosse ser parte do patrimônio,8 o artefato reconhece a sintaxe dos paulistas,9 aceita a eloqüência da voz e do texto da metrópole. A mesma mirada afetiva, suave, como contraponto à opacidade que recobriu e enclausurou parte do coração da área central de São Paulo, ensina que a articulação do caos e da atopia é o raciocínio urbanístico e a possibilidade de renovação da poética dinâmica da vida urbana.

O pórtico/arco se coloca como uma entidade plástica e, ainda que guarde sua autonomia, se ancora na intenção de ser um elemento ativo, extensivo ao traçado urbano. Sem que se perca o dinamismo, que é a matriz renovadora da contemporaneidade, o pórtico reivindica para São Paulo o zelo e o sentimento de ser deste lugar que originaram o arquétipo metropolitano, contido na qualidade racional e construtiva de seus planos urbanísticos10 e no ambiente poético11 da modernidade esquecida da primeira metade do século XX. O Modernismo se apropriou do provincianismo e do estrangeirismo da cidade: cantou a Paulicéia desvairada, estruturou um projeto para o ser brasileiro tão fiel a esta paisagem mesclada, ainda hoje, carregada de arcaísmo, ruínas e modernidade tecnológica.

ELEGÍA À CIDADE II

«[...] no es la sociedad, a través de sus medios de información y comunicación, sino el artista el único que puede garantizar la presencia del arte en las condiciones actuales de la cultura [...]» (Argan, 1977)

8 Diferentemente do conceito de "patrimônio histórico" que exige distância no tempo e se impõe por seu

valor histórico, o conceito de "patrimônio" nasce associado ao julgamento estético da obra e tem origem na

prática de se construir monumentos, cujo propósito, de natureza essencialmente afetiva, é “tocar, pela emoção,

uma memória viva”. Françoise Choay (2001) A alegoria do patrimônio (Estação Liberdade, São Paulo) 18.

9 «Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas», Caetano Veloso, letra da canção Língua, 1984.

10 A partir de 1911, o crescimento de São Paulo é estudado como ampliação da área central, no Plano de

Avenidas, projetado em 1929 pelo engenheiro Prestes Maia.

11 Referência ao ambiente cosmopolita e provinciano do Modernismo Brasileiro, em São Paulo. Ver:

Mário de Andrade (1939) ‘O movimento modernista’, Revista Anual do Salão de Maio – RASM – São Paulo.

Uma obra arquitetônica, isolada em uma praça, tende a ser escultórica e monumental. Não obstante, sua monumentalidade adquire uma qualidade complexa quando seu atributo é a interpenetração que permite articular os edifícios do entorno. O portal e o arco do projeto da Praça do Patriarca — duas formas tradicionais — criam uma figura espacial, cuja estrutura é a solenidade do vazio dentro de um marco. Sua substância quase imaterial é vibrante, ativa. Está em movimento.

As imagens que o portal e o arco concentram em sua geometria preenchem seu interior e se prolongam para o espaço exterior mais além dos limites da moldura. Desde a ordem interna de seu próprio desenho, desde a precisão geométrica que enquadra uma paisagem e sua grandeza em ser um vazio, o pórtico/arco que se projeta para a Praça do Patriarca se expande em direção à praça, coordena e integra o espaço circundante.

A escala do artefato faz referência à escala da pequena e tradicional capela; entretanto, a força do pórtico é também sua escala monumental: é o elemento que atua com expressividade centrípeta, potenciando o espaço, antes difuso, para criar uma situação de espaço envolvente. Para conseguir esse efeito, introduz o sentido do movimento como orientação; permite tanto um descobrimento gradual como uma visão súbita.

A obra adverte um novo movimento no contexto urbano, e se justapõe, por sua escala, forma e luz à experiência particularmente recôndita dos espaços contíguos. Assim mostra que a escala recupera símbolos urbanos, que forma nasce do uso e do hábito, que a luz surge da observação do estado de decrepitude da paisagem.

É o pórtico/arco que devolve à praça seu caráter compacto e íntimo. Os edifícios, antes calados, fechados em si mesmos como construções unitárias, voltam a participar da ordem urbana, se reintegram e recuperam sua importância como patrimônio.

ELEGIA AO CIDADÃO

«[...] entenem la CREACIÓ MONUMENTAL com la limitació oberta d'un gran espai buit, receptor dins el dinàmic i torbador complex de la ciutat que intenta aïllar en la comunitat la raó vital de la seva circumstància, tot traduint-la en la raó existencial des de la intimitat de la qual es refà la nova consciència espiritual i politica de l'home és ací on entenem el CANT DE LA LLIBERTAT, com a recuperació de la consciència [...]».(Oteiza, 1959)

«A sociedade rejeita, mas a cidade não!». (Homeless, 1996)

No pórtico/arco da Praça do Patriarca, a equação estrutural, a claridade da estrutura, é uma tendência à expansão do movimento. O metal, por ser dúctil, concede à mirada um movimento transitório. O pórtico, por sua vez, define um plano que deve ser transposto; o pórtico/arco, que é a própria forma da transitoriedade do movimento, organiza espaços que da paisagem urbana circundante.

Mas este movimento, que o artefato abriga e que a forma sugere, é um jogo complexo entre a superfície e a profundidade, que não fixa a história como permanência e marca o projeto com uma relação fluida entre o sujeito e o espaço urbano. Se a sociabilidade de São Paulo se esconde na obscuridade de uma visão trágica, o desenho do pórtico nasce dos desígnios de sua

própria consistência e propõe educar o sentimento de ser deste lugar12 e recordar ao cidadão comum sua qualidade de ator principal na construção da cidade e homenageá-lo como guardião da vida urbana e dos laços que estabelecem em seu exercício.

O pórtico/arco contém urbanidade e humanidade. Não opõe resistência, é um espaço de transição, propício a multiplicar relações e apontar direções na extensão contínua de um território desumanizado. Uma forma proposta como movimento, como limite aberto e como materialidade flexível, que permite transpassar o vazio e experimentar o espaço urbano.

O pórtico/arco não tem uma escala reduzida, sua visualidade plena recusa o ingrávido como frágil e tem corpo, elasticidade, sólida capacidade de tensão; sua forma contém o gesto do abrigo. E é esta escala, corporeidade e presença protetora, a que configura a dimensão íntima do artefato e inaugura sua receptividade ao sujeito. O pórtico/arco, como uma fissura que interrompe o anonimato, constitui um monumento ao cidadão; abre a perspectiva de recebê-lo dentro da amplitude e visibilidade do espaço público. O artefato é um rito de passagem, um torii13 que define, momentaneamente, um centro, e este focaliza a humanidade do homem como uma necessidade apremiante. Habitar o pórtico transforma ao transeunte na chave de sentido da existência da urbanidade: o aproxima à perspectiva da cidade, o convida a ocupar seu mesmo campo, e o focaliza na perspectiva de sua importância humana.

A BELEZA DA CIDADE

«As cidades povoam-se com os monumentos a suas vaidades». (Malaco, s/d)

«[...] a cidade, com as conquistas a nível estético, representa uma conquista popular». (Mendes da Rocha, 1972)

Os monumentos fazem os fatos permanecer no tempo. O pórtico e o arco da Praça do Patriarca elegem também a vaidade como tributo à monumental cidade, já que São Paulo é uma cidade cuja beleza se escondeu. Quando definiu sua "voraz" vocação industrial, a partir da segunda metade do século XX, associou a noção de progresso e eficácia à imagem de uma cidade feia e a noção de restrição ao que é absoluto, sério e essencial.

O projeto para a Praça do Patriarca desfaz o preconceito contra a beleza, reclama uma São Paulo mais bonita e legível aos usuários. Com um desenho orientado para o futuro, resposta à profundidade lógica e à complexidade da técnica, o artefato propõe uma São Paulo que quer ser de novo uma bela cidade e cuja sociabilidade se deseja mais visível, mais evidente, mais luminosa.

12 «[...] l'arte è radicata nell'esperienza; ma l'esperienza, a sua volta, è construita nella memoria e

preformata nella immaginazione [...] L'esperienza artistica è perciò l'educazione del sentimento [...]», Susanne

Langer (1965) Theory of Art, 1953; trad. it. Sentimento e forma, (Feltrinelli, Milão) 436.

13 Pórtico tradicional japonês.

A SOCIABILIDADE E O DISCURSO DE UM LUGAR

O projeto, em sua elementaridade, não é neutro, anônimo ou impessoal. Esta arquitetura, integrada na paisagem urbana e receptiva à sua realidade palpável, é côncava e convexa: a individualidade máxima de seu desenho não está fechada sobre si mesma, já que é a dimensão íntima, com que reconhece e se abriga no entorno, a que define a expressividade da abertura ao espaço público. Essa igualdade de dimensão entre individualidade íntima e pública, que se apresenta no espaço da cidade, é o entendimento da vida urbana e sua sociabilidade.

O pórtico/arco não tem interior nem exterior. É a pura simultaneidade de um lugar em movimento, que, entretanto, o define. Sua escala conecta a praça à perspectiva, propriamente urbana, da cidade. A praça, que ainda mantém a escala tradicional e provinciana dos inícios do século XX, encontra, no projeto, a afirmação da escala da pequena igreja e da escultura de Ceschiatti. Entretanto, o vazio do pórtico/arco acolhe a perspectiva da metrópole. A escala do artefato cria portanto, um lugar/arco/íntimo, que é o mesmo lugar/pórtico/vazio/monumental.

Lugar como locus, o pórtico/arco se quer permanente. Portal e arco são um núcleo íntegro que evoca o grau zero da arquitetura. Sua geometria busca a clareza e a fixação na memória, para que, assim, se "reinaugurem" os edifícios públicos e o acesso a outra dimensão espacial e do fluxo do tempo.

Lugar como acesso ao futuro. A obra abre e transparenta um futuro possível ao articular um desenho que, sem esconder as contradições nem as ambigüidades, aceita o caos como uma possibilidade e se propõe a habitá-lo como conciliação.

Lugar por onde se passa. Passar de um lugar a outro, "a passagem" é também uma oração. O texto de um autor. Congrega, portanto, em seu sentido, uma estrutura ambiental, uma ação e um discurso. A passagem é um discurso atento ao momentâneo. Lugar como momento, o pórtico se propõe atento à contingência: em meio da mutação o artefato expressa a passagem do tempo e sua acessibilidade.

Transitório e efêmero, o movimento que acolhe o pórtico é a arquiteturização da passagem do tempo, definido por contornos sobre os quais se possa descansar a mirada: entre continuidade e contenção, a percepção atua como atividade, flutuando na superfície da retina e no fundamento construtivo.

Esta simultaneidade transforma a seqüência de imagens em coexistência, e cria a possibilidade de conexão de tudo com tudo, do um com o todo. Lugar fronteiriço, portanto, passagem que entrelaça distintos tempos e espaços — passado, futuro, o agora —, o portal é ordem e imprevisibilidade. Quer despertar a cidade impressionista e recordar a cidade interior em cada transeunte: imagens de outras cidades do passado, do presente, do futuro em conexão; visões interiores da vivência do ser cidadão, projetos de um «sonho feliz de cidade» (Caetano Veloso, 1978).

Referências

Argan G. C. et alt Giulio Carlo (1977) Revival. El pasado en el presente

(Gustavo Gili, Barcelona) 28.

Canevacci, M. (1997). Cidade Polifônica – Ensaio sobre a antropologia da

comunicação urbana. (Studio Nobel, São Paulo) 255.

Choay, F. (2001). A alegoria do patrimônio (Estação Liberdade, São Paulo) 18.

Gaviria, M. (1969), prólogo para Henri Lefèbvre, El derecho a la ciudad

(Península, Barcelona) 10.

Homeless paulistano (1996), mencionada por Mendes da Rocha, Ciclo de

conferências Less is more (UIA, Barcelona).

Lima de Toledo, B. (1983) São Paulo: três cidades em um século (Duas

Cidades, São Paulo) 13 e 67.

Malaco, J. T. S. (s/d). ‘Cidades — Ensaio de aproximação conceitual’,

Caramelo nº 7, (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de

São Paulo, São Paulo) 119.

Mendes da Rocha, P. M. (1972) ‘O arquiteto diante da desagregação urbana /

O artista reclama participação’ (O Estado de São Paulo, São Paulo,

13/05/1972).

______. (1992) Memória descritiva do Projeto Patriarca.

Oteiza, J. (1958) ‘Estela en Aguiña - conclusión experimental, De Quousque

Tandem...!’, Catálogo Oteiza el arquitecto (Fundación Cultural Colegio de

Arquitectos de Madrid, Madri, 1996).

_____. (1959) ‘Memòria del concurs per al monument a José Batlle y

Ordoñez’, Catálogo da exposição Oteiza Propòsit Experimental (Fundació

Caixa de Pensions, Barcelona 8 de jun. a 24 de jul. 1988) 228.

Veloso, C., (1978) letra da canção Sampa.

_____ (1984) letra da canção Língua.

_____ (1986) letra da canção Vaca Profana.

_____. (1993) letra da canção Aboio.

UM NOVO DISCURSO PARA A MEGACIDADE1

RENOVAÇÃO URBANA DA PRAÇA DO PATRIARCA (1992-2002)2

Maria Isabel Villac e-mail: [email protected]. Arquiteta FAU Mackenzie – SP – Brasil

Rua da Consolação 896 CEP 01302-907São Paulo – SP / Brasil

«Há um século a Imperial Cidade de São Paulo guardava ainda sua feição colonial. Todasas principais funções se concentravam num triângulo [...]. Essa pequena colina triangular équase plana, com altitudes variando de 750 a 760 metros, mas cercada por um forte desnível,de cerca de 30 metros em relação aos cursos d'água que a delimitam. É uma acrópole queabrigou a cidade em seus três primeiros séculos de existência». (Lima de Toledo, 1983)Para quem sobe pelas escadas rolantes da Galeria Prestes Maia que cruza, por baixo doviaduto, o Vale do Anhangabaú, o artefato que o arquiteto projeta é um portal de acesso euma moldura para a Praça do Patriarca no Centro Velho. Para quem, em sentido inverso,olha para o Viaduto do Chá, o artefato abre a perspectiva em direção ao Centro Novo.

[Imagem 01: Situação]

1 Este texto é parte integrante da tese de doutorado “La construcción de la mirada – Naturaleza, Ciudad y

Discurso en la Arquitectura de Paulo Archias Mendes da Rocha”, ETSAB/UPC, 2002.

2 Do diagnóstico de um iminente desastre, ocasionado pela falta de planejamento e gestão da cidade, e do anseio

pela renovação urbana de São Paulo nasce um novo projeto para a Praça do Patriarca, no ano de 1992. Parte

integrante de outros projetos que compõem a iniciativa Viva o Centro, a obra foi construída pela EMURB –

Empresa Municipal de Urbanização, em 2002.

[Imagem 02: Vista desde o Centro Novo / Foto Rodrigo Lopes]

A ARQUITETURA E O PROJETO DO ARQUITETO«Esta estrutura se resolve com formas adequadas, leves e um tanto de aparência instável,convocando sensações imprevistas.A cor deverá ser clara. Branca.» (Mendes da Rocha, 1992)«Ó formas alvas, brancas. Formas claras.» (Cruz e Souza, 1893) 3

A cobertura que Mendes da Rocha projeta para a Praça do Patriarca é o primeiro projeto doarquiteto cuja materialidade "única", em aço, contraria a preeminência do concreto aparente.O desenho do artefato se compõe de um pórtico rígido — quase porta — e uma lâmina —quase arco — que no pórtico se encaixa e no qual se pendura distendida e articulada. O conjunto metálico da Praça do Patriarca abre uma nova ordem na materialidade das obrasde Paulo Mendes e busca, na precisão e alta resistência da leveza que se expressa na corbranca, a determinação e a expansão de sua virtude. Diferente do concreto aparente, quemostra sua robustez material e exibe o áspero e primitivo de sua textura para concentrar edeter a expressão, despertar e aprofundar vazios internos, o metal é leve, resvaladiço, e nãoreclama um olhar tátil. Sua visibilidade, que é a propriedade física que o constitui, é da ordemdo deslizamento, da reflexibilidade e da condutibilidade. O concreto aparente possui um arcaísmo concentrado, uma determinada resistência a umamirada distraída que, nas obras do arquiteto, até o projeto da Praça do Patriarca, é amaterialidade que expõe a exigência de mudanças sociais. A nudez do concreto, quando éestrutura, muro e vedação, não permite sublimações, conduz a uma atitude introvertida,reflexiva, e sua intensidade material é, no Brasil, a metáfora do conflito entre a vontade deuma distinta ordem social e a resistência à mudança. O metal, por sua parte, pode estruturar-se com muito pouca matéria. É uma substância na qualos esforços fluem com tal sutileza, que a tensão estrutural não se percebe como resistência,senão como tenacidade técnica e potente leveza. A cor branca, além do mais, devido à sua

3 Cruz e Souza (1862-1898), ‘Antífona’, poema de abertura ao livro Broqueis - obra que inaugura, em 1893, o

Simbolismo no Brasil -, cit. por Paulo Archias Mendes da Rocha (s/d) ‘Memória descritiva do Projeto Patriarca’,

revista Viva o Centro (Associação Viva o Centro, São Paulo) 11.

propriedade refletora, não densifica a presença da forma que recobre e lhe retira qualquerevocação à passagem do tempo e o conseqüente processo de desgaste da matéria.

«Não simplesmente restaurar, também criar novos desenhos que abriguem, amparem eexpressem hábitos, símbolos urbanos contemporâneos, do tempo que vivemos» (Mendes daRocha, 1992)Tornar visível a cidade como o espaço da história e da possibilidade do prazer e da surpresada vida urbana, é o desafio que a circunstância atual da Praça do Patriarca propõe. E é naPraça do Patriarca onde a arquitetura do arquiteto Paulo Mendes da Rocha parece ser outra:já não acentua, no domínio e na densidade da matéria, a proposição do novo que querdespertar o entorno e se propõe como um fundamento que estima configurar menos a simesmo que à atmosfera circundante.

[Imagem 03: Implantação]

[Imagem 04: Maquete]O artefato se mostra assim, somente estruturado: aberto à percepção do diferente no igual.Isso o torna muito estruturado, vazio, receptivo ao contexto do construído e à sociabilidadeque deve povoar o espaço da cidade e servir de referencia ao Projeto de uma urbanidadesempre renovada. Como se a forma estruturada tornasse possível alcançar a cidade em seudesenho, originar-se conjuntamente com ela para voltar a fundá-la, a uni-la. Desenhá-la outravez, para que alcance a máxima visibilidade do gesto e do texto vivo de sua fundação em seucomplexo tecido. E também, porque não?, ensinar sua geomorfologia, seu potencialpaisagístico, sua estrutura; mas voltando a escrever o mesmo texto do movimento e da texturade uma sociabilidade inaugural.

O ENUNCIADO DA CIDADE«Urbe imensa Pensa o que é e será e foiPensa no boiEnigmática máscara boiTem piedadeMegacidadeConta teus meninosCanta com teus sinosa felicidade intensa

Que se perde e encontra em tiLuz dilui-se e adensa-sePensa-te» (Caetano Veloso, 1993)A cidade e a vida urbana não são a mesma coisa. E se, efetivamente, é más fácil construircidades que vida urbana (Gaviria, 1969), São Paulo contraria esta premissa. Cidade caótica,imensa, complexa em seus traçados, agressiva na exposição mais ou menos aparente de sualógica e do ritmo desenhado por sua estrutura. Entretanto, uma metrópole.São Paulo é uma cidade que «é como o mundo todo» (Caetano Veloso, 1986). Todas ascidades e nenhuma: a vida urbana que ensina a riqueza, a diversidade, o erotismo, a dispersãoe o estranhamento de sua cara metropolitana; passagem para uma inteligência maisprovinciana, doméstica e afetiva; e moldura para o pesadelo obsceno da violência da miséria edo abandono, que são essas marcas do sorriso cínico do progresso imediato e sem inteligênciado colonialismo interno.São Paulo é uma cidade cosmopolita e singular, cuja íntima inscrição na monumentalidadedesse cosmopolitismo é uma trama recôndita, mais bem um tecido semperiano4. Umprimeiro olhar revela a sombra que atua em São Paulo, sua aparente invisibilidade e essacontrariedade e simetria de ser uma moderna cidade do terceiro mundo e uma arcaica cidadedo novo mundo. Mas a vitalidade paulistana, sua sociabilidade, busca uma mirada próxima.Uma mirada que, como uma membrana, penetre os interstícios de sua vocação construtiva-destrutiva. Uma mirada aberta que se detenha na sua sociabilidade e perceba um quadroimpressionista5 anteposto à visão da cidade cubista.

4 Gottfried Semper (1851) em Os quatro elementos da arquitetura, propunha, para a arquitetura, um constructo

antropológico, compreendendo: 1. Uma lareira; 2. Um terrapleno; 3. Uma armação e um telhado; 4. Uma

membrana envoltória como ato diferenciador, de tal modo que a textura pode ser literalmente identificada com a

proto-linguística da produção têxtil que é, para Semper, a base de toda civilização. Em nossa interpretação, esta

membrana, que se constrói por capas sucessivas, é um limite, uma superfície e, como tal, um modelo de visão

que reveste e oculta a profundidade/receptividade do espaço nos extratos de seu próprio construir.

5 Também para o olhar do estrangeiro, a invisibilidade de São Paulo contrasta com “o paradigma inquieto de

uma cidade que deve ser vivida de dentro e de fora. Que deve ser vista nos seus detalhes micrológicos e nas

suas abstrações noturnas.” Massimo Canevacci (1997). Cidade Polifônica – Ensaio sobre a antropologia da

comunicação urbana (Studio Nobel, São Paulo) 255.

[Imagem 05: Desenho piso]

A POROSIDADE DO ARTEFATO«Toda obra de arte, o es una actividad de formas ocupando un espacio o es el espaciodesocupado». (Oteiza, 1958)A cidade é o traçado da materialidade permanente. O vazio é o espaço público por excelência.Se a cidade é a materialidade construída e pensada como artefato, o vazio é o que define avitalidade urbana, o espaço das relações humanas, o povoamento da cidade. O vazio é acondição para o livre acontecimento do encontro, o "a través de" necessário para os sucessos econtingências que tornam propícia a vida urbana.

[Imagem 06: Vista transversa]

A gravidade sem peso do artefato que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha projeta para aPraça do Patriarca, leve e ágil, se estrutura de forma sintética, possui uma solideztransigente, de aparência instável, que busca surpreender o contexto circundante. Talvezporque a cidade seja compacta, construída sobre si mesma, o artefato que o arquiteto inventapara quer mover-se. Talvez seja esta decisão, orientada pela quase imaterialidade queconfigurada pela forma simples e pela luminosidade solar da cor branca, a gentilezanecessária para restaurar o espaço propício à vida urbana. Esta leveza e simplicidade pode tornar visível a vocação da cidade,6 pois propõe abrir espaçoe render seu tributo à relação que existe entre contemporaneidade e realidade/configuraçãoatual arquitetônica e urbanística da praça. A forma do artefato está plasmada pela dinâmica“intra e extra arquitetura”, e o que está em questão não é somente a arquitetura comoconstrução, senão a contemporaneidade como tal, sob os aspectos com que a arquiteturaconstrói e interpreta espacialmente a cidade. Isso envolve uma antropologia do espaço, ligada,diretamente, tanto ao tema funcional a que se refere o projeto, como ao que quer abarcar esimbolizar. E como um contorno que enquadra e, ao mesmo tempo, é antagonista com a saturação do jávisto, a forma que define o pórtico/arco é porosa, vazia, liminar: o objeto não se funde com oespaço circundante, mas o acolhe como fundamento de seu sentido. Ao estar vazio, e assimaberto à paisagem, o pórtico/arco abre uma transparência e se mostra receptivo. Mas o pórtico/arco é, também, expressivo. Em seu desejo de criar um espaço tangível, suaexpressividade reorienta o sentido urbano e estabelece uma nova referência de escala, um eixotransverso à repetição e ao anonimato, tanto da paisagem como do transeunte: fundanovamente a praça, traz um movimento distinto, atua como reflexão sensível na vertigeminterminável que destrói os espaços urbanos e sua singularidade e torna evidente o valor doterritório e de um enunciado que deseja re-inaugurar a cidade.

[Imagem 07: Vista na praça 4 / Foto Bebete Viegas]Neste sentido se pode afirmar a presença de um enunciado que propõe mudar a ortodoxiacultural e a sintaxe social, no momento contemporâneo. Diante da cidade, a arquitetura do

6 «Cada cidade tem a sua própria vocação». Paulo Archias Mendes da Rocha, 13/05/1972.

pórtico/arco espera ser compreendida como ação diante da realidade, ou seja, uma leitura dasingularidade e da historicidade da obra como desdobramento da memória e do imaginário,onde o que está em jogo é a própria cidade e o sujeito; todos, como objeto do discurso.

ELEGIA À CIDADE I«[...] E quem vem de outro sonho feliz de cidade, aprende depressa a chamar-te realidade» (Caetano Veloso, 1978).São Paulo é um “palimpsesto” (Lima de Toledo, 1983)7 e, como tal, foi reconstruída váriasvezes sobre si mesma. Progressista, São Paulo apresenta uma modernidade semprecontemporânea, tecnológica e vanguardista. Decadente, a cidade cresceu sem visão deconjunto, sem controle, e não se articula como um organismo, o que gera um sentimento denão pertencer e sensação de abandono. Seu espaço como território único, define, portanto, nacontemporaneidade, uma cidade de vocação “atópica” e caótica, uma não-cidade. O pórtico/arco da Praça do Patriarca é uma referência a essa São Paulo de muitosmovimentos, mas ao mostrar-se contrária ao alinhamento de seus extremos, se propõe comoconciliação: o artefato estrutura a reta e a curva, o portal e o arco, o objeto e a cidade, o vazioe o cheio. Na fronteira entre a arte e o urbanismo, a simplicidade de uma linha e umasuperfície curva acusam a fissura do tecido urbano e ordenam o caos da constantedesestruturação da cidade. Seu desenho pleno e delicado se opõe à opacidade do construído econecta a espacialidade da paisagem. Sua flexibilidade e transparência remetem tanto aopermanente como ao intermitente, tanto aos registros como aos vestígios. A arquitetura que se propõe para a Praça do Patriarca estranha a atopia, mas não éindiferente a ela. A leveza instável que se propõe é a inflexão, a contemporaneidade econtexto do projeto, a diferença que se mostra como marco: uma forma delicada, luminosa,capaz de adotar o conteúdo do entorno, e que se abre à lógica mutante da cidade. A configuração que o arquiteto desenha marca e renova o espaço. Como se o desejo fosse serparte do patrimônio,8 o artefato reconhece a sintaxe dos paulistas,9 aceita a eloqüência da voze do texto da metrópole. A mesma mirada afetiva, suave, como contraponto à opacidade querecobriu e enclausurou parte do coração da área central de São Paulo, ensina que a articulaçãodo caos e da atopia é o raciocínio urbanístico e a possibilidade de renovação da poéticadinâmica da vida urbana.

7«São Paulo é um palimpsesto — um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para

receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral. Uma cidade reconstruída duas vezes sobre si

mesma, no último século.», Benedito Lima de Toledo (1983), São Paulo: três cidades em um século (Duas

Cidades, São Paulo) 67.

8 Diferentemente do conceito de "patrimônio histórico" que exige distância no tempo e se impõe por seu valor

histórico, o conceito de "patrimônio" nasce associado ao julgamento estético da obra e tem origem na prática de

se construir monumentos, cujo propósito, de natureza essencialmente afetiva, é “tocar, pela emoção, uma

memória viva”. Françoise Choay (2001) A alegoria do patrimônio (Estação Liberdade, São Paulo) 18.

9«Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas», Caetano Veloso, letra da canção Língua, 1984.

O pórtico/arco se coloca como uma entidade plástica e, ainda que guarde sua autonomia, seancora na intenção de ser um elemento ativo, extensivo ao traçado urbano. Sem que se perca odinamismo, que é a matriz renovadora da contemporaneidade, o pórtico reivindica para SãoPaulo o zelo e o sentimento de ser deste lugar que originaram o arquétipo metropolitano,contido na qualidade racional e construtiva de seus planos urbanísticos10 e no ambientepoético11 da modernidade esquecida da primeira metade do século XX. O Modernismo seapropriou do provincianismo e do estrangeirismo da cidade: cantou a Paulicéia desvairada,estruturou um projeto para o ser brasileiro tão fiel a esta paisagem mesclada, ainda hoje,carregada de arcaísmo, ruínas e modernidade tecnológica.

ELEGÍA À CIDADE II«[...] no es la sociedad, a través de sus medios de información y comunicación, sino el artistael único que puede garantizar la presencia del arte en las condiciones actuales de la cultura[...]» (Argan, 1977)Uma obra arquitetônica, isolada em uma praça, tende a ser escultórica e monumental. Nãoobstante, sua monumentalidade adquire uma qualidade complexa quando seu atributo é ainterpenetração que permite articular os edifícios do entorno. O portal e o arco do projeto daPraça do Patriarca — duas formas tradicionais — criam uma figura espacial, cuja estrutura éa solenidade do vazio dentro de um marco. Sua substância quase imaterial é vibrante, ativa.Está em movimento. As imagens que o portal e o arco concentram em sua geometria preenchem seu interior e seprolongam para o espaço exterior mais além dos limites da moldura. Desde a ordem internade seu próprio desenho, desde a precisão geométrica que enquadra uma paisagem e suagrandeza em ser um vazio, o pórtico/arco que se projeta para a Praça do Patriarca se expandeem direção à praça, coordena e integra o espaço circundante. A escala do artefato faz referência à escala da pequena e tradicional capela; entretanto, aforça do pórtico é também sua escala monumental: é o elemento que atua comexpressividade centrípeta, potenciando o espaço, antes difuso, para criar uma situação deespaço envolvente. Para conseguir esse efeito, introduz o sentido do movimento comoorientação; permite tanto um descobrimento gradual como uma visão súbita.

10A partir de 1911, o crescimento de São Paulo é estudado como ampliação da área central, no Plano de

Avenidas, projetado em 1929 pelo engenheiro Prestes Maia.

11Referência ao ambiente cosmopolita e provinciano do Modernismo Brasileiro, em São Paulo. Ver: Mário de

Andrade (1939) ‘O movimento modernista’, Revista Anual do Salão de Maio – RASM – São Paulo.

[Imagem 08: Vista na praça 2 / Foto Bebete Viegas]A obra adverte um novo movimento no contexto urbano, e se justapõe, por sua escala, formae luz à experiência particularmente recôndita dos espaços contíguos. Assim mostra que aescala recupera símbolos urbanos, que forma nasce do uso e do hábito, que a luz surge daobservação do estado de decrepitude da paisagem.É o pórtico/arco que devolve à praça seu caráter compacto e íntimo. Os edifícios, antescalados, fechados em si mesmos como construções unitárias, voltam a participar da ordemurbana, se reintegram e recuperam sua importância como patrimônio.

ELEGIA AO CIDADÃO«[...] entenem la CREACIÓ MONUMENTAL com la limitació oberta d'un gran espai buit,receptor dins el dinàmic i torbador complex de la ciutat que intenta aïllar en la comunitat laraó vital de la seva circumstància, tot traduint-la en la raó existencial des de la intimitat dela qual es refà la nova consciència espiritual i politica de l'home és ací on entenem el CANTDE LA LLIBERTAT, com a recuperació de la consciència [...]».(Oteiza, 1959)«A sociedade rejeita, mas a cidade não!». (Homeless, 1996)No pórtico/arco da Praça do Patriarca, a equação estrutural, a claridade da estrutura, é umatendência à expansão do movimento. O metal, por ser dúctil, concede à mirada ummovimento transitório. O pórtico, por sua vez, define um plano que deve ser transposto; o

pórtico/arco, que é a própria forma da transitoriedade do movimento, organiza espaços que dapaisagem urbana circundante.Mas este movimento, que o artefato abriga e que a forma sugere, é um jogo complexo entre asuperfície e a profundidade, que não fixa a história como permanência e marca o projeto comuma relação fluida entre o sujeito e o espaço urbano. Se a sociabilidade de São Paulo seesconde na obscuridade de uma visão trágica, o desenho do pórtico nasce dos desígnios de suaprópria consistência e propõe educar o sentimento de ser deste lugar12 e recordar ao cidadãocomum sua qualidade de ator principal na construção da cidade e homenageá-lo comoguardião da vida urbana e dos laços que estabelecem em seu exercício. O pórtico/arco contém urbanidade e humanidade. Não opõe resistência, é um espaço detransição, propício a multiplicar relações e apontar direções na extensão contínua de umterritório desumanizado. Uma forma proposta como movimento, como limite aberto e comomaterialidade flexível, que permite transpassar o vazio e experimentar o espaço urbano. O pórtico/arco não tem uma escala reduzida, sua visualidade plena recusa o ingrávido comofrágil e tem corpo, elasticidade, sólida capacidade de tensão; sua forma contém o gesto doabrigo. E é esta escala, corporeidade e presença protetora, a que configura a dimensão íntimado artefato e inaugura sua receptividade ao sujeito. O pórtico/arco, como uma fissura queinterrompe o anonimato, constitui um monumento ao cidadão; abre a perspectiva de recebê-lodentro da amplitude e visibilidade do espaço público. O artefato é um rito de passagem, umtorii13 que define, momentaneamente, um centro, e este focaliza a humanidade do homemcomo uma necessidade apremiante. Habitar o pórtico transforma ao transeunte na chave desentido da existência da urbanidade: o aproxima à perspectiva da cidade, o convida a ocuparseu mesmo campo, e o focaliza na perspectiva de sua importância humana.

A BELEZA DA CIDADE«As cidades povoam-se com os monumentos a suas vaidades». (Malaco, s/d)«[...] a cidade, com as conquistas a nível estético, representa uma conquista popular».(Mendes da Rocha, 1972)Os monumentos fazem os fatos permanecer no tempo. O pórtico e o arco da Praça doPatriarca elegem também a vaidade como tributo à monumental cidade, já que São Paulo éuma cidade cuja beleza se escondeu. Quando definiu sua "voraz" vocação industrial, a partirda segunda metade do século XX, associou a noção de progresso e eficácia à imagem de umacidade feia e a noção de restrição ao que é absoluto, sério e essencial. O projeto para a Praça do Patriarca desfaz o preconceito contra a beleza, reclama uma SãoPaulo mais bonita e legível aos usuários. Com um desenho orientado para o futuro, resposta àprofundidade lógica e à complexidade da técnica, o artefato propõe uma São Paulo que querser de novo uma bela cidade e cuja sociabilidade se deseja mais visível, mais evidente, maisluminosa.

A SOCIABILIDADE E O DISCURSO DE UM LUGAR

12«[...] l'arte è radicata nell'esperienza; ma l'esperienza, a sua volta, è construita nella memoria e preformata

nella immaginazione [...] L'esperienza artistica è perciò l'educazione del sentimento [...]», Susanne Langer

(1965) Theory of Art, 1953; trad. it. Sentimento e forma, (Feltrinelli, Milão) 436.

13 Pórtico tradicional japonês.

O projeto, em sua elementaridade, não é neutro, anônimo ou impessoal. Esta arquitetura,integrada na paisagem urbana e receptiva à sua realidade palpável, é côncava e convexa: aindividualidade máxima de seu desenho não está fechada sobre si mesma, já que é a dimensãoíntima, com que reconhece e se abriga no entorno, a que define a expressividade da aberturaao espaço público. Essa igualdade de dimensão entre individualidade íntima e pública, que seapresenta no espaço da cidade, é o entendimento da vida urbana e sua sociabilidade. O pórtico/arco não tem interior nem exterior. É a pura simultaneidade de um lugar emmovimento, que, entretanto, o define. Sua escala conecta a praça à perspectiva, propriamenteurbana, da cidade. A praça, que ainda mantém a escala tradicional e provinciana dos iníciosdo século XX, encontra, no projeto, a afirmação da escala da pequena igreja e da escultura deCeschiatti. Entretanto, o vazio do pórtico/arco acolhe a perspectiva da metrópole. A escala doartefato cria portanto, um lugar/arco/íntimo, que é o mesmo lugar/pórtico/vazio/monumental.

[Imagem 09: Vista na praça 3 / Foto Bebete Viegas]Lugar como locus, o pórtico/arco se quer permanente. Portal e arco são um núcleo íntegro queevoca o grau zero da arquitetura. Sua geometria busca a clareza e a fixação na memória, paraque, assim, se "reinaugurem" os edifícios públicos e o acesso a outra dimensão espacial e dofluxo do tempo. Lugar como acesso ao futuro. A obra abre e transparenta um futuro possível ao articular umdesenho que, sem esconder as contradições nem as ambigüidades, aceita o caos como umapossibilidade e se propõe a habitá-lo como conciliação. Lugar por onde se passa. Passar de um lugar a outro, "a passagem" é também uma oração. Otexto de um autor. Congrega, portanto, em seu sentido, uma estrutura ambiental, uma ação eum discurso. A passagem é um discurso atento ao momentâneo. Lugar como momento, opórtico se propõe atento à contingência: em meio da mutação o artefato expressa a passagemdo tempo e sua acessibilidade. Transitório e efêmero, o movimento que acolhe o pórtico é a arquiteturização da passagem dotempo, definido por contornos sobre os quais se possa descansar a mirada: entre continuidadee contenção, a percepção atua como atividade, flutuando na superfície da retina e nofundamento construtivo.

Esta simultaneidade transforma a seqüência de imagens em coexistência, e cria apossibilidade de conexão de tudo com tudo, do um com o todo. Lugar fronteiriço, portanto,passagem que entrelaça distintos tempos e espaços — passado, futuro, o agora —, o portal éordem e imprevisibilidade. Quer despertar a cidade impressionista e recordar a cidade interiorem cada transeunte: imagens de outras cidades do passado, do presente, do futuro emconexão; visões interiores da vivência do ser cidadão, projetos de um «sonho feliz de cidade»(Caetano Veloso, 1978).

[Imagem 10: Vista na praça / Foto Nelson Kon]

ReferênciasArgan G. C. et alt Giulio Carlo (1977) Revival. El pasado en el presente (Gustavo Gili,Barcelona) 28.Canevacci, M. (1997). Cidade Polifônica – Ensaio sobre a antropologia da comunicaçãourbana. (Studio Nobel, São Paulo) 255.Choay, F. (2001). A alegoria do patrimônio (Estação Liberdade, São Paulo) 18.Gaviria, M. (1969), prólogo para Henri Lefèbvre, El derecho a la ciudad (Península, Barcelona)10.Homeless paulistano (1996), mencionada por Mendes da Rocha, Ciclo de conferências Less ismore (UIA, Barcelona).Lima de Toledo, B. (1983) São Paulo: três cidades em um século (Duas Cidades, São Paulo)13 e 67.Malaco, J. T. S. (s/d). ‘Cidades — Ensaio de aproximação conceitual’, Caramelo nº 7,(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo) 119.Mendes da Rocha, P. M. (1972) ‘O arquiteto diante da desagregação urbana / O artistareclama participação’ (O Estado de São Paulo, São Paulo, 13/05/1972).______. (1992) Memória descritiva do Projeto Patriarca.Oteiza, J. (1958) ‘Estela en Aguiña - conclusión experimental, De Quousque Tandem...!’,Catálogo Oteiza el arquitecto (Fundación Cultural Colegio de Arquitectos de Madrid, Madri,1996).

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VAZIOS OPERATIVOS DA CIDADE

Martha Machado Campos email: [email protected] e [email protected]

Universidade Federal do Espírito Santo

Avenida Fernando Ferrari 514, Campus Universitário de Goiabeiras, Centro de Artes,

Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Núcleo de Estudos de Arquitetura e Urbanismo,

Vitória (ES), Brasil, CEP 29075910.

RESUMO

O espaço urbano intersticial – vazio – e sua relação com o projeto urbano

contemporâneo constituem o escopo central deste estudo1, investigado em exercícios

interativos entre ação prática laboratorial e teórica conceitual. A complexidade da cidade

contemporânea gera múltiplos processos territoriais inter-relacionados a sistemas

informativos e de comunicação extensivos em transformação constante. Deste modo, busca-se

investigar os potenciais e limites dos agenciamentos dos fluxos e redes de informação,

comunicação e transportes no território, frente às modificações das dinâmicas urbanas

metropolitanas e globais. Dentre essas modificações, destacam-se as novas periferias

interiores, que configuram vazios intersticiais dentro da mesma cidade ou no seu

transbordamento imediato, onde cada vez mais a dicotomia centro-denso versus periferia-

dispersa se desfaz. Aborda-se no capítulo I a problemática dos vazios intersticiais dentro de

um amplo marco conceitual sobre as transformações das estruturas urbanas contemporâneas.

O capítulo II formula diretrizes de exploração de campo, estabelecidas por temas e conceitos

instrumentais em campos territoriais multiescalares: interurbano, ampliado, e situacional. O

setor portuário de Vila Velha e áreas adjacentes de uso ferroviário e retroportuário em Vila

Velha e Cariacica, e áreas de aterros em orla contígua ao Centro de Vitória - situados na

região metropolitana da Grande Vitória (ES) - demarcam campo empírico local. No capítulo

III são propostos experimentos urbanos como diagramas operativos de reprocessamento de

cidades, em contraposição à prática dos projetos de refuncionalização urbana, quase sempre

acionada por propostas de reestruturação urbanística e econômica nos moldes do

planejamento urbano estratégico institucional. São exercícios que fazem do projeto um

processo diagramático, por isso aberto e pós-cartográfico, cuja lógica de implantação somente

poderá emergir pela interação de estratégias e táticas entre diversos protagonistas da cidade

contemporânea. Diagramas operativos sobre a área de estudo buscam elucidar a lógica

instrumental dos exercícios, onde os vazios intersticiais podem, pelo positivo, configurar

elementos estruturantes e conectores de cidades cada vez mais descontínuas, erráticas,

permeadas de obstáculos e ausência de mobilidade. Isso sob a ótica do contexto metropolitano

em seus lugares de moradia/ócio/trabalho/deslocamento, principais referentes para construção

do espaço coletivo. Ao fim, são propostos dois programas de infra-estrutura

social/econômica/cultural para área de estudo, como mecanismos capazes de evocar a

potência do vazio não somente como paradigma de constatação de fenômenos urbanos

contemporâneos, mas, sobretudo, como paradigma de transformação dos mesmos

fenômenos.

Investigar os agenciamentos dos fluxos e redes (de informação, comunicação e transportes) no

território urbano frente às modificações das dinâmicas metropolitanas e globais, apresenta-se

nos tempos atuais como tarefa árdua e estimulante, sobretudo pela inteligibilidade da cidade

contemporânea e de mutação constante de sua configuração territorial1. Neste contexto, a

criação das novas periferias interiores, em oposição às típicas periferias externas formadas

1 Estudo derivado da tese de doutorado da autora, intitulada “Vazios Operativos da Cidade: territórios

interurbanos na Grande Vitória (ES)”, apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP),

em São Paulo (SP/ Brasil), no ano de 2004.

majoritariamente por bairros populares, indica a configuração de outras áreas urbanas - zonas

de reservas - dentro da mesma cidade ou no seu transbordamento imediato. Observa-se que

dicotomia centro-denso versus periferia-dispersa se desfaz mediante o processo de

periferização interna das cidades atuais, onde as imediações dos centros metropolitanos são

formadas por enormes vazios intersticiais, em parte, como conseqüência do abandono das

infra-estruturas de fundação das cidades, frente à dinâmica de metropolização intensiva e aos

processos globais a que foram submetidas mais recentemente (Varas e equipe Buenos Aires

2000, 1997).

O setor portuário de Vila Velha e suas áreas adjacentes de uso ferroviário e retroportuário,

situados em faixa linear em territórios limítrofes à Baía de Vitória e densas áreas de uso

residencial; e as áreas em orla contígua ao Centro da capital de Vitória, demarcam o campo

empírico do trabalho e remete ao estudo de áreas tomadas como periferias interiores da

Região Metropolitana da Grande Vitória (ES), Brasil (BR). São parcelas de territórios

marcados por espaços de acessibilidade quase nula, ausência de urbanidade, intensa

movimentação de tráfego de cargas, mesclados por atividades de baixa e alta produtividade e

por processos pontuais de reurbanização de áreas de expansão.

A demarcação de fronteiras territoriais por intermédio das águas da Baía de Vitória é

simultaneamente a demarcação dos proprietários lindeiros e um dos limites institucionais

político-administrativos entre as cidades. Constitucionalmente, os corpos d’água são

propriedade do Estado, suas margens são de proprietários diversos, caracterizadas como área

não edificandi e reconhecidas como áreas ambientalmente frágeis, protegidas por lei. Em

geral ou são áreas de ocupação informal à margem da lei, ou são zonas de reserva para

localização de atividades economicamente produtivas. O campo territorial em foco não foge a

essas regras. Ao diagnosticá-lo, utiliza-se de pressupostos não convencionais ao urbanismo,

não circunscritos por normativas urbanísticas e delimitações territoriais institucionais.

Agenciados por dispositivos experimentais de gênese conceitual, os diagnósticos tomam a

cidade como campo de forças (Gausa, 2001; Allen, 1999) em processo de territorialização

constante, onde se operacionaliza uma materialidade não fixada nos objetos inseridos nos

territórios localmente, porém evocada nos processos globais da contemporaneidade.

Os vazios intersticiais configuradores das terras vagas aparentemente abandonadas – neste

caso, as imediações de antigas infra-estruturas urbanas em parte subutilizadas - indicam que

os processos de periferização interna não são fenômenos estáticos. Ao contrário, penetram os

espaços de centralidades das cidades, criam barreiras urbanísticas, descontinuidades

territoriais, geram vazios monumentais nas imediações de áreas de alta densidade, e terminam

por demandar um novo tipo de reinserção urbana de seu território, que seja articulado ao

mesmo processo que o gerou: o de metropolização intensivo das cidades atuais. Entretanto,

estudar o fenômeno das terras vagas significa ultrapassar sua dimensão metropolitana,

alcançar processos de escala global em conexão com a esfera local que o remete.

Oficina teórica transdisciplinar

O vazio urbano como terrain vague na arquitetura e no urbanismo (Solà-Morales, 1996), suas

variáveis conceituais em áreas de conhecimentos distintos, seu processo de produção,

manutenção e apropriação como vazio intersticial, resultam de questões recorrentes situadas

dentro de um marco conceitual mais amplo sobre as transformações das estruturas urbanas

contemporâneas. Apresenta-se uma série de questões em tópicos inter-relacionados: 1) Os

processos globais nas cidades contemporâneas vide a formação das cidades globais (Sassen,

1998), cidades-regiões globais (Scott et al, 2001), cidade genérica (Koolhaas,1998), cidade

difusa (Indovina,1990), citando alguns dos termos de revisão dos fenômenos urbanos recentes

diante da era da globalização; 2) Os efeitos de metropolização intensiva que atingem o

cotidiano das cidades, variando em grau de intensidade e impacto, produzido pela mudança de

escala – da local para a global - na economia, política, cultura, arquitetura e urbanismo

contemporâneos; 3) As propostas de reestruturação urbanística do planejamento urbano

institucional - Planejamento Estratégico - e suas limitações (Arantes et al, 2000). Os

processos de [des/re] territorialização urbana pela apropriação social do espaço urbano,

acionada por táticas de sobrevivência da população e suas potencialidades (Deleuze e

Guatarri, 1997); 4) A mudança dos modelos de percepção espacial frente a grande escala

metropolitana e global; a percepção de mediação tecnológica (Lévy, 1999); a experiência do

lugar e do acontecimento (Solà- Morales, 1995); os espaços dos lugares e dos fluxos

(Castells, 2000); e 5) A instrumentalização do projeto urbano por meio de pesquisa

experimental diagramática como fator de mudança do estatuto conceitual e metodológico do

projeto urbano restrito ao saber disciplinar referendado por modelos e tipologias urbanísticas

pré-existentes (Soriano, 2001; Gausa, 2001; Allen, 1999; Berkel e Bos, 1998). Pressupõe-se

que a teoria não venha como racionalização a posteriori do projeto urbano, legitimando

ideologicamente os argumentos da prática urbanística. Postula-se que a teoria funcione como

conexão de um sistema complexo de idéias a outro, por meio de pesquisa transdisciplinar.

Exploração de campo territorial

A exploração de campo adota três escalas de reconhecimento do território: 1. campo

interurbano: território metropolitano como campo de sobreposição de redes de infra-estruturas

globalizadas. A esfera metropolitana aponta relações de reciprocidade dos vazios intersticiais

por meio do que se verifica entre/inter cidades; 2. campo ampliado: território urbano como

campo expandido que conecta e articula situações urbanas particulares das cidades de Vitória,

Vila Velha e Cariacica. Delineado pelo estudo da infra-estrutura urbano-portuária e de

transportes da área, tomados como vetores de ocupação desse campo; e 3. campo situacional:

abordagem das dinâmicas territoriais próprias de cada município, exemplificadas por

situações críticas. A despeito do grau de complexidade de cada nível de escala, as dinâmicas

que inferem no território, reverberam global e localmente, e são, portanto, estruturantes do

processo de transformação do território. Investiga-se o território em escalas de base

conceitual, e não apenas de base métrica, indo além do reconhecimento dado pela história e

pela forma física, e insere-se a pesquisa diagramática. Como instrumento de propriedade

econômica, o diagrama é capaz de produzir ao mesmo tempo reconhecimento/ diagnóstico e

ação /resposta, remetendo a um duplo papel operativo: analisar e impulsionar processos/ ações

por meio da síntese (Gausa, 2001). De natureza conceitual, o diagrama opera por figuras que

processam informações de modo mais sintético possível, e atuam de modo objetivo/ sistêmico

e intuitivo/ aleatório como dispositivos capazes de elucidar a articulação do campo de forças

que configura o sistema territorial urbano atual. Complexo, variável, instável e

constantemente alterado pelo jogo de forças sociais e econômicas flutuantes entre as escalas

global e local, trabalha-se com as condições de campo que se alteram segundo variáveis

externas e lógicas internas do lugar, articulando o reconhecimento da área em três níveis de

abordagem territorial já indicado. Diferente do desenho fechado/ exato, o diagrama é aberto/

evolutivo, funciona como uma ferramenta visual abstrata potente em dar visibilidade àquilo

que não é dito e não é perceptível de imediato no território (Berkel e Bos, 1998).

Campo territorial interurbano

Considerando que a causa de conversão de determinadas áreas em vazios urbanos vincula-se,

em parte, a sua história, o campo interurbano aponta relações de reciprocidade dos vazios

intersticiais na esfera metropolitana, por meio do que se verifica entre cidades da Grande

Vitória2. Há no espaço metropolitano territórios onde se sobrepõem redes de infra-estruturas

de inserção global e sistemas de vazios, configurando novas relações sócio-espaciais entre as

cidades, quando apontadas, sobretudo pelos níveis de impacto provocado no território.

Atualmente, segundo Cohen, as infra-estruturas afirmam-se como indissociáveis da estruturas

urbanas contemporâneas, sendo cada vez mais o esqueleto dessas estruturas, afirmando a

chegada das cidades das infra-estruturas. São cidades, segundo o autor, que resultam de

interconexões de diversas naturezas infraestruturais. As estruturas urbanas estão, sob essa

ótica, dependentes das interações de suas redes de infra-estruturas, tomadas como uma liga -

na expressão do autor - de integração da sociedade contemporânea, alterando, sobretudo, os

modos de vida cotidianos dos habitantes das cidades (Branco-Teixeira, 2004).

As dinâmicas das cidades misturam-se com as das infra-estruturas, na medida em que a rede

infra-estrutural vem sendo privatizada, gerando a emergência de espaços diferenciados nas

cidades, argumenta Branco-Teixeira. Nos termos do autor, acentua-se o desinvestimento em

zonas urbanas de declínio, em detrimento de outras, as privando de infra-estruturas agregadas

de alto valor. Em síntese, Branco-Teixeira salienta que as redes de infra-estruturas são um dos

veículos que materializam a seleção e exclusão espacial urbana. O autor observa ainda, que

essa desigualdade espacial acompanha a tendência do aumento da participação privada na

gestão tanto da cidade quanto das infra-estruturas. Deste modo, afirma que gradualmente a

lógica do mercado se consolida em fator condicionante da complexa lógica de operatividade

das redes infra-estruturais, tornando indispensável repensar o papel dessas redes como

instrumento estratégico de políticas territoriais. Fundamentalmente, como assegura o mesmo

autor, se forem considerados os impactos morfológicos, sociais e econômicos das redes infra-

estruturais no território (Branco-Teixeira, 2004).

A expansão das infra-estruturas e dos vazios determina em simultâneo a interligação e a

descontinuidade entre cidades, que neste caso, pertencem a um mesmo campo territorial. O

nível de integração territorial condicionado por essa lógica, se afasta dos modelos usuais de

planificação urbana, e torna-se cada vez mais determinante da morfologia fragmentada do

tecido metropolitano. Esse processo é evidente na escala metropolitana da região, bem como o

papel das infra-estruturas e dos vazios em gerar barreiras entre as cidades que a compõem.

Neste sentido, o diagrama Rede O é formado por esquemas gráficos, cujo objetivo consiste

em detectar múltiplas questões que envolvem um conjunto de cidades da Grande Vitória, em

sua articulação com as instalações portuárias da região (figura 01).

A rede de cidades e nós distributivos dos fluxos relacionados à implantação das infra-

estruturas - portos secos e de litoral, conexões rodoviárias e ferroviárias - que incidem nesse

campo evidenciam a presença de grandes vazios intersticiais. Algumas perguntas se impõem:

como transformar essa rede de cidades desarticuladas, territorialmente e em gestão político-

administrativa, em cidades em rede estruturadas pela intermodalidade dos transportes e infra-

estruturas já existentes? Como potencializar o caráter atrator de projetos para as cidades

tornando-os catalisadores sociais de novas territorialidades a partir de potencialidades locais

pré-existentes e latentes?

Entre portos: arco metropolitano

As instalações portuárias do Estado do Espírito Santo, de início, integradas à cidade (Porto de

Vitória), são progressivamente transferidas para fora da mancha urbana metropolitana (Porto

de Tubarão e Praia Mole), e posteriormente totalmente afastadas da conurbação urbana

(Portocel e Porto de Ubu). Atualmente acompanham o fenômeno de autonomização da

estrutura física dos portos marítimos do contexto contemporâneo. A implantação de logística

multimodal regida por estratégias de escala mundial, articula de as diferentes redes de infra-

estrutura de alcance global no território da Grande Vitória, instaurando novas territorialidades

portuárias e industriais, que emergem nas cidades independentemente de suas características

locais. Em breve resumo, a privatização dos portos brasileiros na década de 1990, a tendência

de conteinerização das cargas e a ampliação do porte dos navios aumentam a velocidade dos

embarques, geram a aceleração da infra-estrutura aduaneira, demandando mais modernização

de equipamento e organização. A implantação dos Portos Secos, dos Terminais

Retroportuários Alfandegados, e dos condomínios de logística integrada, concentra a maior

parte do território econômico dos portos marítimos no interior da malha urbana da Grande

Vitória. São áreas operacionais de agenciamento de pólos de comércio e serviços

retroportuários, regidos por gestões empresariais de otimização da logística e armazenagem

de apoio ao comércio exterior, e da não catalisação econômico-social local. Identifica-se,

assim, uma nova territorialidade interurbana, denominada de arco metropolitano3. Situado

entre os portos marítimos e secos da Grande Vitória, o arco metropolitano é caso exemplar de

configuração territorial decorrente das transformações dos dispositivos industriais e logísticos,

vinculados à lógica econômica das exportações e articulações das grandes empresas

multinacionais. Apresenta ocupação urbana descontínua e fragmentada no território local,

atravessa as cidades de Vila Velha, Cariacica, Serra e Vitória, delimita um circuito/corredor

de ligação rodo-ferroviária entre os portos secos e marítimos da região metropolitana da

Grande Vitória. Caracteriza-se, sobretudo, como territorialidade local a serviço da escala

econômica global do comércio internacional. Não institui redes de catalisação social local e

sim territorialidades intermitentes de exclusão e enclave econômico. Sob ótica global, trata-se

de um arco de desenvolvimento estruturado pela intermodalidade da infra-estrutura de

transportes, integrada à logística e tecnologia de informação avançada. Funciona em ilhas de

consenso caracterizadas como territorialidades locais de alcance global, tal como as áreas de

produção e serviços industriais e das plataformas logísticas. O diagrama Entre portos indica o

circuito dos fluxos de cargas e localiza as infra-estruturas que engendram a produção do arco

(figura 02).

Quadro crítico: cartografia prospectiva

A reconfiguração da paisagem rural original em vazios urbanos, agenciados como zona

retroportuária rentabilizada pelos setores de logística e de transportes, tem gerado ao longo do

tempo, situações críticas na Grande Vitória. Identifica-se em quadro crítico relevante, o

território do supramencionado arco de desenvolvimento dessa região. Isso em função das

operações portuárias de comércio exterior e dos transportes de cargas rodo-ferroviário e

aéreo; do incentivo à implantação dos condomínios industriais e residenciais de grande porte;

e da intensificação das relações de conflito entre os espaços das cidades e dos portos. Adota-

se lógica cartográfica prospectiva para se pensar o quadro crítico mencionado, em proposição

correlata de diretrizes de intervenção. Os diagramas mostrados na figura 034 registram os

procedimentos esquemáticos territorializados em situações concretas.

Campo territorial ampliado

O campo ampliado abrange extensa área urbana situada entre Vitória, Vila Velha e Cariacica,

onde predomina a sobreposição de equipamentos e instalações de infra-estrutura portuária e

de transportes ferroviário e rodoviário de épocas diversas. Configurado de ilhas de vazios,

antigos espaços são rearticulados pela logística e infra-estrutura de transportes de cargas, por

intermédio de operações interconectadas entre os sistemas dos portos, ferrovias e rodovias da

Grande Vitória. A constante modificação desses sistemas gerou situações de desconexão entre

tais cidades, resultantes de uma série de intervenções infraestruturais. De efeito perverso - sob

a ótica ambiental e urbana -, essas intervenções decorrem de decisões políticas nem sempre

acertadas. A maior parte dos bairros cresceu mediante ausência de políticas públicas de

urbanização, através da ocupação dos morros e de loteamentos em terrenos alagáveis e

aterrados. Eixos viários e ferroviários atravessam sua área, de modo interligado ao complexo

portuário da Grande Vitória, rearticulando o interior da malha urbana. O que vem sendo

previsto para reestruturação urbana do território no âmbito de sua reconversão integrada aos

planos institucionais de revitalização urbana? As pistas podem ser intermediadas pelos

indicadores do Plano de Desenvolvimento e Zoneamento dos Portos de Vitória e Barra do

Riacho (PDZP, 2001), tanto na previsão de ampliação de áreas portuárias por grandes aterros,

anexados ao setor portuário continental do Porto de Vitória, como na aposta de uma situação

futura de limitação física desse território, restringindo seu uso ao atendimento de atividades

petrolíferas, com previsão de deslocamento das atividades de movimentação de cargas

conteinerizadas para o norte do Estado. Porém, a dinâmica das atividades portuárias sempre

foi internacionalizada e de locação territorial estratégica, promotora das alterações de

posicionamento de suas instalações e serviços, no interior do território nacional, regional e

local. O novo nesta dinâmica é o recente processo de privatização das instalações portuárias

no Brasil, e diante disso, a movimentação de cargas do transporte marítimo internacional

passou a resultar da capacidade de competição e negociação entre os agentes operadores das

instalações privatizadas.

A seguir, expõe-se narrativa sobre o campo expandido, considerando que o Porto de Vitória e

suas infra-estruturas associadas (aterros, ferrovias, rodovias) constituem um dos principais

vetores estratégicos de ocupação da faixa territorial indicada, e um dos agentes geradores de

seus vazios urbanos. Adota-se a variável econômica de cada época em períodos denominados

de gênese, desdobramento e evolução da ocupação urbana da área.

Gênese: a era do café [1910 aos (40) 1960]

A instauração das atividades e infra-estruturas portuárias, ferroviárias e rodoviárias de

atendimento à economia agrário-exportadora do Estado - era do café - indica a importância do

sistema de infra-estruturas no seu desenvolvimento urbano e econômico. As primeiras três

décadas do século XX marcam o início da expansão urbano-portuária do Espírito Santo. Com

o fim da dependência de escoamento da produção do Estado pelo Rio de Janeiro (Siqueira,

1994), a cidade de Vitória inicia a passagem da condição de cidade-cais do Império, para a de

cidade-porto da República. As obras de construção do Porto de Vitória foram graduais,

marcadas por constantes interrupções. Teve início em 1911 e paralisação em 1914, em função

do conflito mundial de 1914-1918. O reinício das obras ocorreu em 1925, década de

construção do primeiro e mais antigo cais do porto, o atual Cais Comercial, situado na ilha de

Vitória. No período entre as décadas de 20 a 40, já se contava com o escoamento da Estrada

de Ferro Vitória-Minas, inaugurada em 1904, e com a elevação na exportação do café mineiro

pelo Porto de Vitória. Entre as obras de engenharia do porto dos anos 20, destacam-se

trabalhos do porto propriamente e de montagem da ponte Florentino Avidos, primeira ligação

de Vitória com o continente. O cais de Vitória desenvolve-se até a década de 40 vinculado à

exportação cafeeira, alterando, em 1942, sua estrutura física para atendimento da dinâmica de

exportação do minério de ferro (Siqueira,1995). O incremento do sistema de transporte e das

telecomunicações no âmbito nacional visa a reverter o isolamento de muitas regiões do Brasil,

no contexto da Segunda Guerra Mundial. Esse sistema, entre outras ações, como os planos e

políticas de desenvolvimento, constituiu a condição material para tentativa de unificação do

território nacional. A política de industrialização, instrumento da economia nacional menos

dependente do mercado externo, configura a transição da economia agrário-exportadora para

a urbano-industrial (Siqueira,1995). Dentre as estratégias de industrialização nacional, no

contexto da expansão da economia do estado do Espírito Santo, destaca-se a implantação da

Companhia Vale do Rio Doce, que inicia a exploração do minério de ferro extraído em Minas

Gerais, escoando pelo Porto de Vitória. A criação do terminal especializado para exportação

do minério de ferro em fins dos anos 40, já iniciava mudança da feição urbano-portuária da

ilha de Vitória e de Vila Velha. O novo cais do Porto de Vitória ocupa o lado continental da

Baía de Vitória, em Vila Velha. Instalam-se ainda no lado portuário continental, na década de

50, três terminais para armazenamento e descarregamento de derivados de petróleo a granel.

A CVRD constrói o cais de Paul, em área já provida de ligação rodoferroviária para a

comercialização especializada em minério fino. O novo cais executou tal atividade até 1975,

quando ela foi totalmente transferida para o terminal do Porto de Tubarão, inaugurado em

1966 como o maior porto de minério do litoral do Brasil (Siqueira,1995).

Desdobramento: a era da indústria do aço [1960 aos (70) 1990]

O programa de erradicação dos cafezais realizado a partir de 1962 foi motivador da alteração

da dinâmica populacional do Estado, caracterizada pela intensa migração rural e saturação

urbana. O primeiro ciclo migratório provocou o incremento populacional de 96% na Grande

Vitória. Um novo ciclo migratório ocorre nos anos 70 e 80, motivado pela implantação de

grandes empreendimentos industriais. Entre as décadas de 50 e 70 opera-se expansão das

instalações do Porto de Vitória e se aposta nas transações comerciais de exportação e

importação de mercadorias que não se destinam ao Espírito Santo, nem são produzidas em

seu território. A lógica de intercâmbio de mercadorias em trânsito viabiliza o programa do

Corredor de Transportes para Exportação cujo terminal é o Porto de Vitória, detidamente o

Terminal de Capuaba, com obra iniciada em 1973 e operações em 1984. O Corredor de

Exportação partiu da perspectiva direta de escoamento da produção de cereais do Cerrado e

da produção siderúrgica e industrial dos Estados do Espírito Santo e de Minas Gerais.

A transferência do pólo de exportação dos terminais portuários de Vila Velha, para área norte

da Grande Vitória, com o Superporto de Tubarão (1966), marca a era da indústria do aço e

dos grandes projetos industriais articulados ao complexo portuário do Estado. Isso assegurou

o crescimento da indústria em definitivo, o fim da hegemonia do setor primário e a ampliação

da hinterlândia do complexo portuário do Espírito Santo. Em período subseqüente, a política

econômica nacional valoriza as relações externas de exportação, domínio das empresas

globais. A inserção dos países no mercado global equivale à crescente abdicação do Estado de

efetuar políticas públicas, em nome de uma dinâmica que alia a lógica do mercado global com

a das empresas candidatas a permanecer ou a se instalar em determinado país. Sendo assim, a

década de 80 consolida estratégias corporativas, nas quais as regras de competitividade entre

empresas resultam de lógica internacional, e é a partir dessa lógica que as empresas buscam

em cada território nacional a melhor localização para suas instalações. Caso exemplar, o

circuito mínero-siderúrgico, situado entre os estados do Espírito Santo e Minas Gerais, tem

sua localização e infra-estrutura quase consolidada, antes da efetivação de sua cadeia

produtiva internacionalizada atual, operada majoritariamente pela CVRD. As condições infra-

estruturais e locacionais de atendimento da demanda de importação e exportação do minério

de ferro antecipam a visão estratégica de logística de integração intermodal, que se desdobra

atualmente via modernização da logística do segmento de cargas gerais.

Evolução: a era da logística e transporte de cargas [anos de 1990 a 2003]

A mudança operacional e política do setor portuário com a Companhia Docas do Espírito

Santo, instaurada na década de 80; o processo de privatização das grandes empresas e

estruturas portuárias; a política de abertura econômica de incentivo as importações; e a nova

legislação brasileira de modernização portuária,constitui os principais elementos de alteração

do destino de parte dos investimentos no Estado, nos anos 80 até fins dos 90 do século XX. A

alteração do conceito de porto, de simples interface física de deslocamento (embargue e

desembargue de cargas e pessoas) para pólo de atração de atividades econômicas por

excelência multimodais, caracteriza o porto moderno atual como agente econômico, elo de

cadeia logística e interface física. Representa ainda elevada tecnologia no setor portuário e de

navegação transoceânica, aliada ao avanço dos portos especializados de alta produtividade, do

aumento do porte dos navios e modernização dos procedimentos de conteinerização de cargas.

Considera-se que a implantação de novo terminal portuário no continente, Cia. Portuária de

Vila Velha (2000); os arrendamentos de terminais em Vila Velha (1998 e 1999) e de áreas

para uso retroportuário; mudam o perfil produtivo da área. A era da privatização das grandes

empresas - CST (1992) e CVRD (1997) - e dos portos brasileiros impulsiona a reestruturação

das instalações portuárias de Vila Velha, expande o setor de armazenagem de cargas, em

áreas operacionais de serviço e apoio portuário da CVRD. Atualmente, o crescimento do setor

de logística e transporte é indicado em estratégias pública e privada, a saber: expansão das

operações logísticas; otimização da intermodalidade portuária integrada ao transporte

transoceânico e cabotagem; ampliação da malha ferroviária; expansão da área portuária com

projeto de aterros; incremento de rede rodoviária; implantação em áreas vazias de infra-

estrutura de apoio ao comércio exterior; e criação de pólos industriais articulados ao comércio

exterior e aos arranjos produtivos regionais e locais. Até a década de 80, o complexo portuário

de Capuaba funcionou por meio de terminais especializados por tipo de operação. Somente a

partir dos anos 90, instauram-se procedimentos de modernização técnica operacional.

Capuaba tem o perfil de porto-laboratório, sendo expandido ao longo do tempo, em função

da exigência econômica de cada época, configurando opção para operações portuárias

conjunturais, cujo caso exemplar foi o de exportação de veículos automotores, iniciado no

final dos anos de 1980. No início da década de 1990, o Porto de Vitória, é marcado pelo

padrão de eficiência na importação e exportação de veículos, alterando a dinâmica das áreas

limítrofes aos seus terminais portuários de Vila Velha e adjacências, sobretudo pela

intensificação dos fluxos rodoviários. No ano de 1993 é formado o Consórcio Operacional do

Corredor Centro-Leste, cujo eixo é estruturado por empresas ferroviárias, que operam em

sistema integrado aos portos do estado do Espírito Santo, agilizando o transporte de cargas

dos portos para o interior e o reverso. Dez anos depois, em 2003, a CVRD concentra

investimentos na rota ferroviária que abrange o Corredor Centro Leste e algumas regiões

agregadas. A compra de participação no capital da Ferrovia Centro-Atlântica, que atravessa o

roteiro desse Corredor, em operação conjugada de cargas com a Ferrovia Vitória-Minas, que

converge para os portos de Vitória, é indicativa de que existe grande sinergia no foco logístico

da CVRD na Grande Vitória, onde a empresa instalou sua melhor infra-estrutura para esse

objetivo.

Campo territorial situacional

Por um lado, as três cidades remetem neste ponto de interconexão, no mínimo, a três sítios

urbanos distintos, quando observadas sob a ótica da fragmentação espacial da área. Por outro

lado, as situações em cada cidade são materializadas por processos dinâmicos estruturados em

relações fixas/ autônomas e móveis/ interconectadas, que vão além da noção física e estática

de sítio urbano, mediante a complexidade da condição urbana contemporânea globalizada de

embate extraterritorial. As situações são, no limite, conjunturais, provisórias e, sobretudo

espaciais. Precisam ser construídas pelo rastreamento do campo de forças que as constituem

como territórios complexos e não como interpretação específica do sítio. Em todo caso, ainda

que arcaico, o termo sítio elucida parte do campo situacional de cada cidade ao remeter a uma

das dimensões de implantação das infra-estruturas de transportes da área. Não se trata de reter

o sítio como elemento urbano determinante de reconhecimento da área, e sim, de tomá-lo

como inevitável condicionante de sua ocupação. Onipresente, o sítio é parte do quadro físico

da área, que se modifica por mutação ou alteração gradual do território. Essas instabilidades

físicas são visíveis nas ações dos aterros, e estão simultaneamente inseridas na invisibilidade

das relações estruturais que as articulam, redefinindo conceitos de sítio e paisagem. Não é à

toa o interesse cada vez mais crescente em torno da paisagem nos debates e projetos urbanos

contemporâneos. A noção de paisagem como categoria do entorno construído (sítio estável

passivo) é substituída pela idéia de paisagem como categoria do sistema operativo

topográfico (plataforma instável ativa). Esse aspecto operativo da paisagem versa sobre os

territórios como plataformas e não sítios (Moussavi e Zaera-Polo, 1998). Sob essa ótica,

delimita-se três plataformas urbanas inscritas em campos situacionais distintos, relacionando-

as ao sentido contemporâneo de paisagem como sistema operativo. Regidos

administrativamente por municípios distintos, são territórios que vem mantendo relação de

interdependência mútua, referente, sobretudo às questões emergenciais de uso e ocupação do

solo, demandada pela infra-estrutura do complexo portuário de Vitória (figura 04).

Destaca-se a singularidade das paisagens circunscritas por territórios que margeiam grandes

corpos d’água Neste caso, trata-se de paisagem homogênea e de beleza natural ainda não

institucionalizada como valor de mercado. Caracteriza-se pela fusão entre elementos naturais

e as cidades situadas às margens do canal da Baía de Vitória (figura 05). Por fim, é uma

paisagem recortada pela força contemplativa da figura de território de orla, e da água

propriamente da baía e dos manguezais, sobretudo quando transportada para a condição

genérica que ocupa, de delimitação de zona de margem. Afirma ainda, sua dimensão não

contemplativa, o seu lugar de confronto, típico das fronteiras territoriais de zonas urbanas. A

relação entre água e território urbano pode gerar conflitos, delimitar cidades de formas

variadas – rios ou canais, mar ou lagos - e impulsionar questões de projeto urbano instigantes.

Por um lado, pela condição histórica de delimitação de fronteiras que conectam (ou não)

territórios, por outro lado, pela condição funcional de infra-estrutura de comunicação e

transporte. Nos termos Y. Simeoforidis, as áreas de fronteiriças entre água e território

estabelecem “uma interação centenária”, na qual o papel funcional é o mais relevante

(Simeoforidis, 1996). Nesta perspectiva, a paisagem assume referência de situação periférica

de áreas vazias abertas, que pela proximidade entre a água e a cidade, imprime uma direção

operativa e conceitual que não pode ser ignorada. Operativa, no sentido da água funcionar

como uma plataforma de transações comerciais transoceânicas, derivada do perfil produtivo

do território de agenciamento portuário e retroportuário das cidades de Vila Velha, Cariacica

e Vitória. Conceitual, quando tomada sob a ótica investigativa dos processos de reestruturação

urbanística, de redefinição de novos espaços urbanos pelo reprocessamento do território -

hipótese projetiva de transformação – situado nas margens de orla das cidades, e de criação de

novo solo marítimo para ocupação. Aciona-se como ponto de partida de projeto, compreender

as situações urbanas concretas em plataformas territoriais autônomas.

Plataforma Vitória: Área de expansão e reurbanização

Em Vitória, a região em estudo compreende área aparentemente unificada sob as

denominações de Grande Santo Antônio e Ilha do Príncipe. Essa generalização funciona

apenas como referência, há distinções e particularidades entre os bairros quando se observam

as fronteiras, sobretudo do ponto de vista dos moradores. Não cabe aos objetivos do trabalho

historicizar minuciosamente o processo de evolução da ocupação urbana deste campo,

importa indicar o caráter de lugar remoto, ocupado antes do século XX, cuja origem remete à

fazenda rural do Governo do Estado. A região de Santo Antônio, em 1911 era ocupada por

casas pobres de palha, com imagem de lugar distante do centro de Vitória, onde se

localizavam cemitério, matadouros e lavanderia. Somente nos anos 30, com implantação do

Cais do Hidroavião se iniciam as alterações na dinâmica e feição urbana do local. A partir dos

anos 40, o conjunto da área é densificado com aumento gradual da população. O crescimento

populacional posterior se deve aos loteamentos regulares e as invasões dos loteamentos, das

áreas de manguezais e morros. A alteração do perfil urbano do conjunto da área era, e em

certa medida continua sendo marcada pelas intervenções dos aterros em áreas marítimas.

A capital de Vitória, na fração territorial em estudo, resulta da lógica das políticas de

expansão territorial por aterros, que ainda não foi encerrada nas imediações deste local. Hoje

são áreas que se encontram parcialmente vazias ou subutilizadas, remetem aos aterros dos

anos 70, concluídos na década subseqüente. A criação desse novo solo urbano visava receber

investimentos destinados a grandes equipamentos públicos, na tentativa de renovação e

modernização da região como futura área de expansão da cidade de Vitória. No entanto, esses

investimentos resultam em iniciativas pontuais, que não reverteram a situação de abandono da

região. Destaca-se nesta época, a construção do parque estadual Tancredo Neves; a renovação

dos galpões do Instituto Brasileiro do Café para uso centro cultural; as construções do

sambódromo, da Ponte do Príncipe e do terminal rodoviário. Atualmente ocorre processo de

comercialização das grandes áreas vazias retidas para especulação, impulsionado para atender

projetos de grande porte, nas imediações da Ponte Florentino Ávidos, detidamente do sexto

vão metálico denominado de Ponte Seca após os aterros. Ainda suspensa, a ponte é um

autêntico monumento de infra-estrutura pública antiga, localizada ao lado de extensa área

vazia sem qualquer investimento. A Ponte Seca é parte dos acontecimentos de ocupação

coletiva esporádica que ocorrem na ocasião da Semana Santa, época em que o lugar se

converte em mercado de comercialização de palmito (figura 06). Por intermédio da

apropriação social do espaço, ocorre a conversão de extensa área privada em espaço público

de valor essencialmente coletivo (Campos, 2002). A previsão de novos aterros na Ilha do

Príncipe para fins de ampliação portuária e industrial; de nova ponte de ligação entre Vitória e

Cariacica, via expressa e túnel; e investimento municipal em política de habitação, meio

ambiente e turismo recreativo cultural, são indicativos dos planos estratégicos para área, sob a

ótica dos planos municipal, portuário e de transporte metropolitano. A imagem síntese da área

resulta do esvaziamento econômico brutal, socialmente visível no espaço, configurando um

território de lugares fragmentados, com enormes áreas vazias e edificações isoladas, em

quadras cortadas por infra-estruturas de transporte caracterizadas por vias de fluxo intenso.

Plataforma Cariacica: Área retroportuária e ferroviária

A passagem de território industrial para território logístico, indica a especificidade funcional

do município Cariacica de pólo de atividades de comércio e serviços retroportuários e o

vínculo de seu perfil produtivo com o sistema de transportes de cargas, articulado pelos

terminais de carga e unidades de armazenagem, integrado à movimentação do complexo

portuário da Grande Vitória. Recentemente implantadas, nos anos de 1990, as Estações

Aduaneira de Interior ampliaram as infra-estruturas das áreas de apoio às atividades

portuárias situadas em Cariacica, que junto as grandes áreas retroportuárias, utilizadas para

armazenagem e movimentação de cargas, modificam cada vez mais a dinâmica de seu

território. As instalações retroportuárias podem estar localizadas em áreas contíguas ou não ao

porto, podendo funcionar como simples depósito de cargas ou terminal alfandegado.

Denominadas de Portos Secos, além de funcionarem como entrepostos alfandegados de

movimentação e armazenagem de contêineres, veículos e cargas gerais, as EADI se

transformaram em operadores logísticos potentes em agregar serviços e valor às operações,

sobretudo de inovação tecnológica. Observa-se que a tendência do município de Cariacica de

espaço retroportuário estratégico, vem sendo construída por diversos agentes políticos e

econômicos capazes de viabilizar a implantação de novas plantas industriais, a reboque da

dinamização da logística de transportes e do sistema infra-estrutural, vide propostas de

levantamento e definição de áreas disponíveis para a implantação de condomínios industriais.

A dinâmica econômica gerada pela movimentação desse complexo portuário impulsiona

distorções sociais na configuração territorial de Cariacica, resultando no agravamento da

pobreza urbana e aumento da violência. A formação de sua malha – em sua maioria

constituída de loteamentos populares - não se definiu como expansão de sua sede histórica. O

núcleo de sua ocupação original se manteve isolado até a década de 1980, com uma dinâmica

produtiva essencialmente rural. Somente quando a cidade vinha sendo definida em função de

intensa expansão populacional, decorrente do processo de metropolização expansivo da

Grande Vitória, a antiga sede passa a ser incorporada à malha urbana de escala metropolitana.

A década 50 marca-se pela implantação da BR 262, que junto à pavimentação da rodovia ES

080, e abertura da BR 101 nos anos 70, configuram os eixos de estruturação de Cariacica,

formado pelas ocupações rarefeitas dos loteamentos populares. Nos anos 80, novos

loteamentos populares foram preenchendo os buracos produzidos nas décadas anteriores. Com

traços comuns das áreas de expansão urbana periférica das cidades brasileiras, os loteamentos

se caracterizam pela descontinuidade entre os traçados; pela produção de vazios preenchidos

sem critério do parcelamento do solo; pela ausência de equipamentos públicos; pela

precariedade da infra-estrutura de saneamento básico; entre outras características. Registram a

condição de pobreza em que se encontra a maioria dos bairros de Cariacica, resultantes de um

longo processo de abandono social e de ausência de políticas públicas de urbanização.

Existem grandes vazios a serem rentabilizados pela expansão da logística de transportes em

Cariacica, visando otimização das operações portuárias de comércio exterior e do transporte

de cargas rodo-ferroviário, em parte já utilizados como zona retroportuária (figura 07). Isso

tende a permanecer como locus de manutenção de áreas de reserva das empresas até o

momento de deslocamento e conseqüente esgotamento das vantagens até então obtidas,

garantindo a instabilidade produtora desta dinâmica, por sua vez, condicionada aos territórios

infraestruturados disponíveis, bloqueando ou suscitando o desenvolvimento urbano local. Não

por acaso, frente ao impasse da CVRD com a Prefeitura Municipal de Cariacica (PMC) e

comunidade local, no destino para área da antiga sede administrativa da empresa, em parte já

ocupada com uso dos terminais de carga e como área de apropriação lazer da população, a

PMC desenvolveu o Plano Estratégico de Cariacica 2003-2022 em convênio entre Fundação

Vale do Rio Doce. O referido plano apresenta diretrizes indutoras de nova fase de ocupação

urbana do município5 e pressupõe ainda, o fim do impasse no destino de uso para área da

antiga sede administrativa da empresa. A permanência de outras ações táticas de

sobrevivência, tais como os catadores de ferro gusa e os cais de pescadores, constituem ações

remotas do setor informal deste território e áreas adjacentes.

Plataforma Vila Velha: Área portuária, retroportuária e ferroviária

Em Vila Velha ocorre uma série de situações urbanas similares às de Cariacica, quando

observadas sob a ótica do complexo portuário da Grande Vitória. O que se evidencia, na faixa

de área destinada a implantação das instalações portuária, ferroviária e retroportuária da

cidade. São áreas de alta produtividade e movimentação portuária, onde o espaço urbano é

atravessado por ferrovias e rodovias em conflito permanente com o espaço residencial, além

de configurar o suporte físico de intensos processos de impacto ambiental. A problemática

urbana de Vila Velha na faixa territorial de seu setor portuário reside, por um lado, na

operatividade dos fluxos de cargas do sistema rodo-ferroviário inserido na malha urbana, por

outro lado, na degradação ambiental de extensa área de seu meio urbano-natural. O sistema

rodo-ferroviário funciona articulado ao complexo portuário do Terminal de Capuaba, gerando

fluxos de transportes de cargas de movimentação ininterrupta. Importa reafirmar que a

dinâmica econômica globalizada que incrementa as operações portuárias desse complexo tem

gerado impacto em seu território adjacente, com ocupação urbana de moradia e comércio da

população de média e baixa renda, e atividades de serviços de apoio rodoviário, ferroviário e

portuário. A situação ambiental não é menos crítica. O embate travado na ocupação de áreas

de proteção ambiental para uso portuário e retroportuário das grandes empresas e para fins de

uso de habitação informal, produz tanto um quadro de pobreza urbana típica das ocupações

irregulares em áreas ambientais frágeis, como um quadro de impacto urbano e ambiental.

Delimitada em trecho linear localizado entre a foz do Rio Aribiri e o Rio Marinho, contida

entre morros e a baía de Vitória, essa faixa de área configura um dos sítios inaugurais de

ocupação urbana da cidade de Vila Velha6. A crescente dinâmica do setor de terminais

retroportuários de cargas e perspectiva de expansão das atividades portuárias em Vila Velha,

figura, na atualidade, como elemento chave para o entendimento da questão nuclear deste

trabalho: os terrenos vagos como espacialidades estruturantes, e simultaneamente, erráticas no

processo de reestruturação urbana. Tomam-se como exemplificação, três aspectos estratégicos

de marcação dessa dinâmica no território: 1. construção de nova ponte de ligação entre Vitória

e Vila Velha, conhecida como Terceira Ponte7; 2. remodelação e expansão do Porto de Vitória

no lado continental; e 3. aumento das áreas industriais e de infra-estrutura de uso

retroportuário. Até o início dos anos 1990 a principal rota de ligação de Vila Velha e Vitória

ocorria pela Avenida Carlos Lindenberg e se estendia pelas pontes ao sul de Vitória. A

transferência dessa rota para a Terceira Ponte, acarreta não somente a consolidação do setor

de serviços e comércio ao longo do eixo da Avenida Carlos Lindenberg, mas, sobretudo,

aumenta os fluxos de transporte de cargas, intensificado pela ampliação das instalações

portuárias ligadas ao escoamento do complexo portuário de Capuaba.

O Terminal de Vila Velha deve manter sua movimentação de cargas conteineirizadas até o

momento de deslocamento dessa atividade, podendo, tal como especulação atual, ser

readequado em função da intensificação do setor de apoio às atividades petrolíferas em

ascensão na economia estadual. A configuração urbana de ponto nodal de extensa rede de

infra-estrutura urbano-portuária, de transportes e de lugar de acesso aos principais corredores

de transportes da Grande Vitória é dominante nesta área. Talvez seja esse o motivo gerador,

produtor e mantenedor dos espaços vagos e subutilizados, que mesclados aos espaços em uso,

indicam que coexistem na região, áreas abandonadas desocupadas - em estado de

obsolescência propriamente - e áreas funcionais de intensa produtividade (figura 08). O

aumento das áreas de infra-estrutura de uso retroportuário constitui estratégia de política de

desenvolvimento de Vila Velha, detidamente na indicação de incremento do setor industrial e

de retroáreas de apoio e serviços aos portos.

Dois tipos de serviços de pequeno porte coexistem em paralelo em áreas limítrofes ao setor

portuário de Vila Velha, os de catação de ferro gusa e de transporte de passageiros na baía de

Vitória (catraieiros). A CVRD deposita os resíduos do peneiramento do ferro gusa (destinado

à exportação) em áreas do município de Cariacica e Vila Velha, porém nessa região as

atividades dos catadores tiveram inicio espontâneo. Em 1985, a CVRD e Prefeitura Municipal

de Vila Velha firmam convênio para liberação oficial dos resíduos de ferro gusa por parte da

CVRD e o transporte deste material por parte da PMVV. Frentes de trabalho foram

organizadas para promover emprego aos trabalhadores, e em 1987 forma-se o Movimento de

Amparo aos Desempregados do Estado do Espírito Santo, entidade associativa formada por

catadores. A atividade de transporte de passageiros através de barcos a remo em operação na

Baía de Vitória, já existe aproximadamente sete décadas. A Associação dos Catraieiros da

Baía de Vitória é constituída em 1998, e em 2002, se encontrava em formação entidade mais

ampla, denominada Associação dos Trabalhadores e Amigos da Baía de Vitória.

Pós-cartografias: projeto urbano e espaço público

O projeto urbano como processo diagramático, portanto aberto e pós-cartográfico, ainda

espera ser implantado e acionado na potência que de fato o faça instrumento de interação dos

diversos agentes da arena urbana contemporânea. Cada vez mais instável, as cidades atuais se

caracterizam como configurações complexas produzidas por múltiplos agentes com atuação

diversas e em confronto. As alternativas ao projeto urbano contemporâneo, que não seja a

pura submissão à força de reestruturação espacial globalizada, são cada vez mais reduzidas.

Neste sentido, o prefixo pós atribuído a cartografia indica o devir. Algo em transformação que

evidencia os dilemas do projeto urbano como instância teórica e prática de um urbanismo

anacrônico, em crise, portanto, susceptível a balanços e perspectivas de mudanças. No limite,

pode-se afirmar que o urbanismo sempre foi anacrônico em sua condição de refém dos

acontecimentos, que por suposição deveria controlar, ou ao menos avaliar os impactos desses

acontecimentos a priori. Silva adverte que o urbanismo contemporâneo ainda se encontra

defasado temporalmente frente ao que deveria controlar (supostamente) e mantém sua

instrumentalização no caráter curativo (também suposto) ao invés do caráter preventivo

(talvez mais adequado). O mesmo autor aponta o anacronismo presente no urbanismo como

algo que sempre impulsionou a disciplina a manter-se como campo experimental permanente

(Silva, 2004). Os estudos a seguir configuram-se sob esse prisma, um conjunto de

experimentos de pós-cartografias possíveis, que valorizam a dinâmica dos sistemas urbanos

em curso, e o projeto urbano como processo.

Espaço público metropolitano: espaço coletivo

O espaço público de outrora remete ao espaço coletivo de hoje, que remete tanto ao espaço

público como ao privado, diante de uma nova modalidade de uso do espaço, atribuindo valor

coletivo aos espaços públicos/ privados. Portanto, nem público, nem privado, o espaço

coletivo repensa o espaço público convencional. Atualmente usa-se o espaço privado de

maneira pública, portanto coletivamente, e vice-versa, determinados espaços públicos mantêm

controle de seu uso à maneira do espaço privado, porém, em geral, serão sempre coletivos.

Ocorre em última instância, uma indistinção na relação entre propriedade e uso, tal como

formula F. Soriano. Para o autor, a nova modalidade que surge é a do coletivo, a do uso de um

enorme agrupamento de pessoas, eis a característica única e constante do espaço coletivo. O

autor propõe uma série de pares opositivos que valem ser citados: “O espaço público é móvel.

O espaço privado é estático. O espaço público é disperso. O espaço privado é concentrado. O

espaço público está vazio, é a imaginação. O espaço privado está cheio, são objetos e

memórias. O espaço público está indeterminado. O espaço privado é funcional. O espaço

público é informação. O espaço privado é opinião. O espaço público é o suporte. O espaço

privado é mensagem. O espaço público está, enfim em equilíbrio instável. O espaço privado é

por necessidade estável” (Gausa, 2001).

Ao associar escala metropolitana aos valores coletivos urbanos, a questão teórica do espaço

público contemporâneo pode ser enquadrada numa perspectiva crítica, em que o espaço

público deixa se restringir ao seu caráter monumental e passa a caracterizar o espaço coletivo

relacional. Pode-se afirmar que o espaço público monumental, em alguns casos, é produzido

como um remanescente do espaço público tradicional, de um referente antigo tanto em espaço

como em experiência. Nestes termos, o espaço público monumental passa ser o simulacro de

um referente em processo de mutação, atualmente com existência tênue. No limite, a maior

parte dos projetos e espaços públicos contemporâneos instaura a dissolução absoluta da

experiência do espaço público em simulacros de imagens, que intensificam valores e formas

do espaço público de outrora. Uma das maiores inquietações ao se pensar o projeto do espaço

público hoje, reside na seguinte indagação: o que acontece com os lugares quando as formas

de sua configuração espacial expressam a imitação do espaço público global e passam a ser

reais para um determinado grupo social? E, o que é pior, quando no espaço público o real

assume as qualidades de uma simulação do valor coletivo via monumentalização do espaço?

Diagramas operativos

Por fim, são propostos experimentos urbanos como diagramas operativos de reprocessamento

de cidades, em contraposição à prática dos projetos de refuncionalização urbana, quase

sempre acionada por propostas de reestruturação urbanística e econômica nos moldes do

planejamento urbano estratégico institucional. São exercícios que fazem do projeto um

processo diagramático, por isso aberto e pós-cartográfico, cuja lógica de implantação somente

poderá emergir pela interação entre diversos protagonistas da cidade contemporânea.

Diagramas operativos buscam elucidar a lógica instrumental dos exercícios, onde os vazios

intersticiais podem, pelo positivo, configurar elementos estruturantes e conectores de cidades

cada vez mais descontínuas, erráticas, permeadas de obstáculos e ausência de mobilidade. Isso

sob a ótica do contexto metropolitano em seus lugares de moradia, ócio, trabalho e

deslocamento, principais referentes para construção do espaço coletivo. Dois programas de

infra-estrutura social/econômica/cultural são propostos como mecanismos capazes de evocar a

potência do vazio como paradigma de transformação dos fenômenos urbanos recentes.

Instrumental do projeto urbano

O diagrama operativo como um hipertexto em processo, subverte a noção do projeto urbano

restrito ao texto programático determinado a priori. Mais próximo da noção de ensaio, o

arquiteto urbanista pode se deparar com variados textos - da geografia, história, economia,

arte, citando alguns - que combinados por fusão no projeto urbano, fazem da arquitetura mais

um hipertexto entre outros possíveis. Operacionalizado pela arquitetura por contaminação

entre textos de campos distintos, o projeto urbano como hipertexto diagramático é mais

indagativo, com proposição de programas abertos. Seguindo a lógica que norteia este

trabalho, a indagação está na ordem do processo e a proposição fechada na ordem da função.

Assim a função indica configurações estáticas de atividades circunscritas em formas e o

processo virtualidades dinâmicas de acontecimentos. Sob essa ótica a reinserção dos vazios

urbanos pode remeter ação projetual de reprocessamento dos espaços e o diagrama como

instrumento do projeto urbano permite evidenciar processos urbanos e não apenas funções.

Isso visando incentivar mais as ações táticas de transprogramação de atividades e usos, e

menos as estratégias dos planos institucionais impositivos. Pode-se tomar o diagrama como

uma ferramenta teórica do projeto, mais abstrato conceitual e menos formal, que opera por

antecipação e simultaneidade ao ato projetivo por meio de esquemas. Por ora, cabem certas

perguntas: como a cidade pode reconstruir-se a partir do reprocessamento de seus espaços

vazios abandonados? Que tipo de projeto é adequado para áreas que resistiram à ocupação

convencional, mantendo o caráter persuasivo e intrigante do vazio, sem o domínio total da

arquitetura, uso e produção? Que tipo de projeto mantêm a identificação dos espaços

intersticiais, a singularidade e exclusividade que remetem sob ótica local? Como definir o

projeto urbano sem uma pré-concepção formal?

A prática laboratorial deste trabalho frente à problemática delimitada, parte da formulação de

hipóteses, proposições, instrumental (trans)programático e categorias. São procedimentos

interconectados em conteúdo, indicados separadamente em função desta apresentação.

1. Problemática

O setor portuário, retroportuário e ferroviário da Grande Vitória, situados em Vitória,

Cariacica e Vila Velha, configura o território e a problemática da pesquisa empírica, que

resulta das equações: (A) Interseções de fronteiras + limites político-administrativos +

intervenções políticas = impactos sócio-ambientais; (B) Desindustrialização = desertos

urbanos como periferias interiores; (C) Setor residencial, comércio, serviços + fluxos

ininterruptos de cargas rodo-ferroviário = zonas de tensão; (D) Sobreposição de infra-

estruturas urbano-portuária, retroportuária e de transporte para uso das grandes empresas e

para fins de uso de habitação = conflitos nas áreas de proteção ambiental; (E) Destinação de

uso portuário e retroportuário + processos globais de territorialização econômica = espaços

fragmentados e sem autonomia de gestão político-administrativa local; (F) Privatização dos

portos + conteinerização de carga e ampliação do porte de navios + Portos Secos = anos 90;

(G) Estratégias institucionais dos portos e empresariais de logística e transportes + políticas

públicas de desenvolvimento econômico = diagnóstico institucional e empresarial.

2. Hipóteses

As hipóteses da pesquisa empírica articulam níveis distintos de escalas: (A) Remodelação e

criação de novos ramais ferroviários da EFVM e FCA, com relocação no interior da malha

urbana e/ou deslocamento para fora do tecido urbano; (B) Remanejamento no interior das

cidades das áreas operacionais de apoio as atividades portuárias, com liberação de áreas para

novos usos coletivos sob a tríade moradia/ócio/trabalho; (C) Reestruturação dos dispositivos

logísticos e do transporte intermodal globalizado (rodovia, ferrovia, aeroporto e porto), com

garantia de funcionamento sistêmico entre esses e os modais de transporte metropolitano de

pessoas (veículo motorizado individual e coletivo, transporte marítimo de pequeno porte,

bicicleta, motocicleta, entre outros), por meio de estratégias de desenvolvimento sustentável;

(D) Criação de pólos concentradores e distribuidores de fluxos e produtos, com instalações de

atendimento às atividades retroportuárias e industriais em rede de transporte intermodal.

3. Proposições

As proposições remetem a estratégias e táticas locais, destacam: (A) Interação entre espaços

de moradia, ócio espontâneo e trabalho, de modo simultâneo ao deslocamento das pessoas em

escala metropolitana; (B) Prioridade aos habitantes das ocupações existentes nas situações

focadas dos municípios com indicadores de baixo Índice de Desenvolvimento Econômico

(IDE-IPES), tais como Cariacica e Vila Velha; (C) Impedimento do surgimento de novas

centralidades, por meio de equipamentos e ações anti-novas centralidades, a favor da

sustentabilidade ambiental, econômica e social do território; (D) Garantia da presença do

porto, elemento fundacional do território. Proposta de alteração de sua dinâmica funcional;

(E) Valorização das pontes, elementos de conectividade do território. Proposta de

multifuncionalidade de seus espaços; (F) Agenciamento dos vazios, elementos de

descontinuidade do território. Proposta do vazio como conector entre espaços de moradia,

ócio, e trabalho; (G) Rompimento das barreiras físicas do território (águas, linhas ferroviárias,

rede viária, muros e vazios). Proposta de incremento da mobilidade das pessoas, desobstrução

dos limites territoriais físicos, transformando-os em lugares de conexão.

4. Instrumental (trans) programático

A base instrumental do projeto urbano de caráter intervencionista reside na interceptação

entre programas, supõe dimensão transprogramática e categorias metodológicas na ação

projetual. A operacionalização entre os programas (A) e (B) de modo intercambiável, com

influência e contaminação mútua entre as atividades, indica o alcance de escala, tipo de ações

e equipamentos. O padrão adotado postula escalas de alcance urbano e metropolitano, ações

transitórias e permanentes, e equipamentos públicos fixos e móveis.

5. Categorias

As categorias formam a base intervencionista do método de ação projetual, articulado por três

níveis: operacional, territorial e funcional8. A categoria operacional objetiva a composição

entre (n)programas relacionados e articulados à moradia, por meio de procedimentos em que

não há forma prévia. Os programas (A) e (B) são interelacionados, nos quais moradia e

mobilidade formam matriz geradora do projeto, considerando: 1. moradia/ mobilidade / ócio

(múltiplas atividades); 2. moradia/ mobilidade/ trabalho (cooperativa de trabalho via prestação

de serviços pesqueiros, de transporte de passageiros e de catadores de ferro-gusa, entre

outros). A categoria territorial pauta-se na subdivisão do território via dedução de formas de

situações concretas, abstratas e/ou históricas. Aciona um instrumental de intervenção espacial

(forma sem funcionalidade) passível de catalogação, tais como faixas, tramas, círculos, entre

outras. Por fim, a categoria funcional articula as categorias anteriores, intensificando neste

caso, a complexidade das proposições na relação estabelecida entre escalas de intervenções

territoriais distintas. Vide esquema do programa (A) e sua interligação com o (B) (figura 08).

Programa (A): mobilidade

1. Escala metropolitana: equalizar mobilidade no contexto metropolitano através do

deslocamento pleno da população, por meio de desobstrução das barreiras físicas (muros,

ferrovias, vazios e águas) e incremento da intermodalidade do transporte metropolitano. 2.

Ações: conjugação de modal coletivo terrestre e marítimo a circuitos de bicicletas e

ciclomotores, por meio de planejamento cicloviário, incluindo política para uso de bicicletas

em circuitos integrados no território da Grande Vitória. Acionar transporte marítimo

alternativo de pequeno porte na Baía de Vitória, caracterizada como um dos obstáculos ao

deslocamento interurbano. 3. Equipamentos: construção de pontes e passarelas (fixas/móveis)

de pedestre e biciclos leves, com caráter multifuncional e atividades de usos (temporários e

permanentes) relacionados a plataformas (fixas/móveis) de espaços interelacionados de

moradia/ ócio/ trabalho. Modernização de equipamentos náuticos (barcos pesqueiros e de

catraeiros), visando intensificação dos transportes de pequeno porte e expansão do

deslocamento marítimo. Os equipamentos devem ser inevitavelmente articulados em rede

intermodal de transporte coletivo metropolitano, e funcionamento autogerado pelos fluxos e

deslocamentos (atuais e prospectivos).

A proposta de subdivisão de parcelas do território em círculos e faixas via dedução de formas

abstratas que transformam as espacialidades concretas (áreas vazias, água e ilhas) é um

procedimento projetual impulsionado para além do âmbito dedutivo funcional. Isso por meio

do risco intuitivo ordenado como escolha artística de subdivisão do território em círculos

(equipamentos fixos e móveis de moradia/ ócio/ trabalho) e faixas (linhas de deslocamento de

intermodalidade metropolitana) no interior da malha urbana, nas margens e sobre a Baía de

Vitória. Trata-se de reprocessar áreas marítimas em novo solo de múltiplas atividades, cuja

conectividade reside no papel de operatividade dos vazios.

Programa (B): vazios conectores de moradia/ócio/trabalho

1. Escala urbana: aumento de área de moradia, ócio espontâneo e trabalho por meio dos

espaços vazios desativados de usos e subutilizados. Rearticulação dos vazios como conectores

de reprocessamento das redes de infra-estrutura sociais, econômicas e culturais dos territórios

em situação crítica. 2. Ações: Reciclar [R]: áreas e construções existentes; construir [C]:

novas construções; preservar [P]: áreas e construções existentes; subtrair [S]: construções e

atividades existentes; adicionar [A]: novas atividades; ativar [At]: áreas, construções e

atividades existentes; e concentrar [Cc]: atividades existentes e novas. 3. Equipamentos: infra-

estruturas sociais, econômicas e culturais, por meio de projeto de superfícies de plataformas

para moradias, passagens e parques (na orla, em solo marítimo e no interior da malha urbana)

e políticas de geração de renda através de incentivo às micro-economias urbanas existentes e

autogeradas em escala local.

Conclui-se que a infra-estrutura, tal como seu termo indica é um “(...) suporte oculto que

nunca se revela completamente, deixa a ver unicamente aquilo que é estritamente necessário

para cumprir sua função e para se estender sobre a maior quantidade de território possível”

(Failla, 2002). Eis o indicativo de que as dimensões sociais, econômicas e culturais possuem

atributos infra-estruturais que potencializam o universo programático dos projetos urbanos

para os vazios urbanos contemporâneos.

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1 Estudo derivado da tese de doutorado da autora, intitulada Vazios Operativos da Cidade: territórios interurbanos na

Grande Vitória (ES), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004. 2 A industrialização na Grande Vitória teve nos chamados Grandes Projetos a partir da década de 1970, o motor do seu

processo de metropolização. A Companhia Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica do Tubarão , Aracruz Celulose e

Samarco Mineradora constituem os projetos industriais, que junto com o Porto de Tubarão ocupam extensa área na

Grande Vitória e municípios próximos. 3 O aprimoramento deste conceito deve-se a pesquisa MG-ES Um Sistema Infraestrutural, no Workshop realizado na

UFMG (Belo Horizonte/MG) e UFES (Vitória/ES), em abril de 2004. Intercâmbio Interinstitucional entre as Faculdades

de Arquitetura da UFES e UFMG, Projeto Arte/Cidade e Instituto de Arquitetura Avançada da Catalunha/ Espanha

(IaaC). Participamos da equipe da UFES, entre 2003 e 2005. Informações adicionais no site www.artecidade.org.br.4 Material apresentado no Workshop Brasil an Infraestructural Territory Toward Transamericana, realizado em

Barcelona (Espanha) no Instituto de Arquitetura Avançada da Catalunha (IaaC) em junho de 2004. 5 A primeira fase de densificação de Cariacica ocorre nos anos 40, em função da implantação da CVRD e COFAVI; a

segunda corresponde ao intenso processo migratório dos anos 60, com a erradicação dos cafezais no Estado; a terceira

fase intensifica-se pela construção do Porto de Tubarão, em fins de 60 e anos 70; e o novo fluxo migratório, a

concentração de pobreza, o esvaziamento industrial e áreas de infra-estrutura de apoio logístico as atividades

retroportuárias marcam a quarta fase de ocupação, entre os anos 80 e 90. 6A primeira etapa do processo de ocupação de Vila Velha corresponde a abertura da estrada Jerônimo Monteiro, num

trajeto entre o setor portuário, em direção ao Centro e Prainha, nas imediações do morro do Convento Nossa Senhora da

Penha, primeiro núcleo de ocupação da cidade. A estrada Jerônimo Monteiro intensifica, no início dos anos XX, a

ocupação deste trecho, com exceção dos bairros da Glória e Ilha das Flores, que são ocupados posteriormente, na época

das obras de expansão das instalações portuárias de Vila Velha. Ver André Abe in Grande Vitória, ES – Crescimento e

Metropolização (Tese de Doutorado, FAU-USP/SP, 1999).7 Inaugurada em 1989, a Ponte Deputado Castelo Mendonça (Terceira Ponte) acelera o processo de densificação e

verticalização ao longo do litoral, dirigido para população de alta renda. A Rodovia do Sol, na direção do litoral sul do

Estado, configura hoje o principal eixo de expansão de Vila Velha. Outro indicativo de expansão é a rodovia Darly

Santos, aonde vem ocorrendo implantação de equipamentos metropolitanos, configurando novo eixo com perspectiva

de instalação de indústrias e áreas de apoio ao transporte de cargas e ao setor portuário.8 Remetendo ao OMA (Office of Metropolitan Architecture, R. Koolhaas), segundo tese de Marco Tabet L’idée

d’Abstraction en Architecture: Rem Koolhaas et Jean Nouvel (Escola Politénica Federal, Lausanne, 1994).

Figura 01-Fonte: CAMPOS, Martha Machado. Vazios operativos da cidade: territórios interurbanos na Grande Vitória (ES). Tese de Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004.

Figura 2. Fonte: CAMPOS, Martha Machado. Vazios operativos da cidade: territórios interurbanos na Grande Vitória (ES). Tese de

Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004.

FIGURA 03: Diagramas seqüenciais 1. arco crítico fechado:

dois pontos principais de entrada/saída e expansão urbana

restrita pelo condicionante geográfico da área; 2. abertura do

arco: sobreposição ao 1, multiplicação de linhas extensíveis

de novas entradas/saídas; 3 e 4. linhas e pontos/ aberto:

territorialização de linhas extensíveis e pontos atratores; 5.

campo potencial territorializado: redes de cidades e diretrizes

de intervenção: (a) dinamização do caráter de atrator por

meio de projetos transitórios e permanentes como catalizadores sociais; (b) potencialização de entradas/saídas,

viabilidade de conexões em redes (materiais e de

informação) e porosidade do território; (c) desobstrução dos

nós e fluxos viários por meio de capilaridade do território;

(d) rompimento e permeabilidade da estrutura física dos

espaços de reservas (industriais, portuários, retroportuários,

serviços, habitacionais, etc) em relação ao entorno de

ocupação urbana e; (e) agenciamento de espaços

multifuncionais abertos vinculados aos processos de

ocupação urbana existentes. Fonte: CAMPOS, Martha

Machado. Vazios operativos da cidade: territórios

interurbanos na Grande Vitória (ES). Tese de Doutorado,

PUC/SP, São Paulo, 2004.

FIGURA 04: Indicação de localização sobre imagem de satélite (INPE/1999) dos campos situacionais: P1 Plataforma Cariacica, P2

Plataforma Vila Velha e P3 Plataforma Vitória. Fonte: CAMPOS, Martha Machado. Vazios operativos da cidade: territórios interurbanos

na Grande Vitória (ES). Tese de Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004.

FIGURA O5. Panorâmicas indicam em seqüência a relação da água (Baía de Vitória) com o território das cidades limítrofes de Vila Velha,

Vitória e Cariacica. Fonte: CAMPOS, Martha Machado. Vazios operativos da cidade: territórios interurbanos na Grande Vitória (ES). Tese de

Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004. Fotos da autora.

FIGURA 06. Vazio urbano nas imediações da Ponte Seca em Vitória. Fonte: CAMPOS, Martha Machado. Vazios operativos da cidade:

territórios interurbanos na Grande Vitória (ES). Tese de Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004. Fotos da autora.

Legendas

FIGURA O7: Seqüência de fotos de Cariacica. Fonte: CAMPOS, Martha Machado. Vazios operativos da cidade: territórios

interurbanos na Grande Vitória (ES). Tese de Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004. Fotos da autora.

FIGURA 08. Seqüência de fotos de Vila Velha. Fonte: CAMPOS, Martha Machado. Vazios operativos da cidade: territórios

interurbanos na Grande Vitória (ES). Tese de Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004. Fotos da autora.

FIGURA O9. Programa A: Mobilidade (ao lado) e Programa B: Vazios conectores de

moradia/ócio/trabalho (abaixo). Fonte: CAMPOS,

Martha Machado. Vazios operativos da cidade:

territórios interurbanos na Grande Vitória (ES).

Tese de Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004.

AZC

Mauro Moro Email: [email protected]

Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa

Será o Vazio um conceito utilizado só como pretexto para a especulações filosóficas e

teóricas em arquitectura? Esta comunicação é um contributo para demonstrar que não é

sempre assim e que, alias, é possível aplicar o conceito de Vazio em Arquitectura e que, ainda

mais, é uma das manifestações contemporâneas mais interessantes. AZC é uma “formula”

cunhada por o prof. Aldo Aymonino para descrever este fenómeno, este novo ponto de vista,

que foi o meu ponto de partida para os meus estudos sobre o Vazio em arquitectura e

urbanismo.

Gostaria começar por esta frase de L. Khan:

"A arquitectura é a ponderada construção de espaço"

Fazer Arquitectura desde sempre tratou da manipulação dos ambientes a fim de torná-los

espaços ao serviço do homem. Este processo desenvolveu-se paralelamente à cognição e à

percepção espacial. A construção de objectos arquitectónicos, portanto, não só desenvolvia

deveres de representação dos poderes, ou pela resolução das funções básicas, mas também

criava uma estrutura capaz de medir e interpretar o espaço.

Neste caso, tais arquitecturas elaboradas em monumentos e cenografias de forte impressão

visual, não continham funções específicas, nem fechavam volumes, mas eram elas inseridas

num volume maior, vazio e uniforme contentor universal.

Azc não é só uma realidade de hoje: pense-se por exemplo nos grandes templos egípcios

inseridos na vastidão dos desertos. Geralmente os edifícios construídos no deserto têm o

problema de parecer pequenos em relação à vacuidade que os circunda. Uma solução no

templo de Karnak consiste no projectar linhas através da imensidão, criar pontos de vista

definidos por elementos (de várias entidades) colocados no deserto. Assim se gradua a

aproximação ao templo e simultaneamente se dirige o olhar num espaço que vem modulado

pelas perspectivas. Os propileus, por exemplo, são um portal monumental para a entrada na

Acropole em Atenas, mas não fecham volume! Outro exemplo são os portais da tradição

shintoista em japão, obras que marcam a passagem dos deuses.

É possível portanto construir espaços sem ter que construir edifícios. A identidade destes

projectos não depende das suas formas, mas da relação que o autor entende estabelecer com a

natureza deles e com o universo das possíveis relações do visitante e do tansuente.

O fenómeno da arquitectura a zero cubicagem entra em pleno direito nas considerações sobre

o Vazio enquanto representa, provavelmente, a aplicação de conhecimentos arquitectónicos à

directa experiência humana com os espaços públicos. A azc é uma realidade relativamente

recente no panorama arquitectónico contemporâneo, que se encontra em desenvolvimento

desde os anos ’60. Os estudos urbanos começaram a interessar-se pelos conceitos de

territórios e de objectivos sociais, sendo que o crescimento das cidades começava a modificar

as relações da urbe com o território, passando da cidade-território, onde a cidade permanece o

elemento catalisador do território dos arredores, ao território-cidade, ou seja, uma malha

isótropa distribuidora das funções dominantes da paisagem.

Em 1972, o livro Learning from Las Vegas (R. Venturi, D. Scott Brown, S. Izenour) tenta

definir novos modos de leitura e de uso da cidade contemporânea, antecipando uma forma

urbana na qual as sinaléticas e as figuras teriam um papel mais importante do que os traçados

e os volumes. A forma e a função vêem dissociadas. Eis uma primeira tentativa de

reconsiderar todas aquelas obras, privada de interiores, que têm como função proporcionar

uma maior interligação do indivíduo com a paisagem (natural ou não), tornando-se um land

mark seja em termos territoriais, seja em termos técnico-arquitectónicos. As azc enquadram-

se nestas realidades que podemos definir como “os novos espaços” da subre-modernidade (ou

pós-modernidade), que, mesmo não contendo um volume interior, em pleno contraste com a

teoria “zeviana”, conseguem por meio desta ausência configurar o espaço aberto.

A atenção disciplinar perde assim o interesse pelas volumetrias que determinam a forma da

paisagem contemporânea, e concentra-se nos elementos arquitectónicos dos percursos e das

relações entre eles, transformando conceptualmente o espaço estático/processional em espaço

dinâmico da narração, no qual o Vazio tem um papel primário na relação com o cheio. A rede

de estradas torna-se elemento fundativo e fundamental do espaço público, ao lado dos

tradicionais vazios urbanos das praças e das ruas. (note-se a homogeneidade destes espaços

existem outros lugares “vazios” (percebidos e considerados tão simplesmente por

preconceito) capazes de exprimir novas centralidades e novos valores de sentido: desde o

espaço público se passa ao espaço aberto. Denota-se a possibilidade de ocupação inconsciente

e inédita de espaços não pensados como “tradicionais” lugares colectivos. A estes espaços,

cheios de necessidades e interesses que os tornam cada vez mais privados de valor colectivo,

vai-se substituir os lugares das infra-estructuras, das redes, das margens, capazes de expressar

novas centralidades e novos valores de sentido.

Sendo estes espaços privados tecnicamente dum interior próprio, conseguem delinear uma

negação entre o ambiente e a paisagem e configurar o espaço aberto, tornando-o um campo de

aplicação com qualidades e características próprias. Essas obras têm como função a de

proporcionar uma maior interligação do indivíduo com a paisagem (natural ou não). Note-se a

importância desta categoria de obras arquitectónicas, enquanto com elas entram em jogo

conceitos perceptivos e de relações (individuais ou colectivas) interligadas entre elas. Com

esta passagem, também a nossa percepção está a mudar, fazendo-nos ver a paisagem de forma

diferente e, em particular, considerando-a uma sequência de “espaços em espera” com

modalidades de desenvolvimentos e tempos diferentes.

Outra face duma experiência de Vazio “imposto” é o da expectativa, dos espaços em

expectativa. Estes Espaços, como as personagem da ópera “Esperando Godot” de S. Beckett,

vivem na expectativa de algo eminente que nunca acontece, mas que tudo influencia e tudo

suspende, impedindo um significado e portanto um sentido. Este limite imposto, esta

suspensão, cria uma forma de vazio que vem experimentada como impessoal e absoluta.

Nessa situação, torna-se mais claro o facto de que o tratar estes espaços Vazios contribui para

melhorar a investigação da arquitectura, que se torna capaz de negar a si mesma na sua

natureza mais profunda, e que se torna por isso mais próxima da sua ética profunda, ou seja,

fornecer um serviço social.

O binómio interior/espaço-privativo, exterior/espaço-público não funciona no contemporâneo:

aos grandes contentores polifuncionais contrapõem-se agora os habitáculos para solidão ao

aberto. A condição do anonimato e do Flanner ajudam nesse mecanismo que produz uma

experiência isolada do cidadão contemporâneo eliminando cada vez mais a comparticipação

colectiva. Por isso a experiência no exterior, nos espaço públicos torna-se ainda mais

focalizada numa experiência de vacuidade onde o sentido de exposição e de não protecção se

acrescenta pela situação de insegurança, de isolamento e de não identificação pessoal.

Há diferentes exemplos de aplicação de tais elaborações que tentam dar uma qualidade

melhor a essas áreas e à transição que quotidianamente passa por elas. Pense-se nas grandes

áreas de exposições, feiras, nos parques temáticos, nas suas aplicações, como por exemplo as

paragens dos autocarros ou nós intermodais, as paragens nas auto-estradas, as sinaléticas

viárias, as novas tecnologias de aproveitamento de energias alternativas que, com a sua

grande presença física, produzem uma nova geração de paisagens.

Já como vimos, uma prerrogativa da azc é a de não conter, ou de não fechar, um espaço vazio

dentro da construção, portanto pode-se afirmar que tais obras não contêm, mas sim são

contidas dentro do “fora” geral, o espaço aberto que nos contem a todos. É fácil relacionar a

prática da azc com esta mudança do ponto de vista da consideração arquitectónica: as peças

realizadas não estão viradas para os próprios interiores, mas sim estão “abertas” às

manipulações espaciais. Não é por estarem “esvaziadas” que tais arquitecturas sejam

supostamente pobres, ou mínimas. Pelo contrário, a exigência da organização para além dos

âmbitos tradicionais, estimula a criatividade arquitectónica e a experimentação espacial com

uma nova força. É aqui que a frase de Luis Kahn encontra um novo e mais contemporâneo

sentido.

È por isso que a qualidade que as arquitecturas da azc propõem, tem de ser lida com uma

atenção superior que não se limite só à superfície e às primeiras aparências. É oportuno

aprender a ler e prestar atenção aos espaços em que estamos, ou passamos. É preciso ter uma

atenção superior e mais sofisticada, que seja capaz de intuir o potencial espacial e espiritual

do Vazio no qual se opera uma escolha de projecto. Nesse caso a prática da atenção a uma

coisa simples ou a um movimento elementar habitua o corpo e a mente a uma atitude

particular que se aproxima de uma “estética” do Vazio, que é possível adquirir só com a ética

da atenção.

Esta utilização do Vazio está inevitavelmente ligada à vontade de dialogar com os

utilizadores, de criar uma relação virada para a educação e inovação da sociedade, por meio

da qualidade, da expressão e da aplicação de materiais e tecnologias que interagem com o

meio ambiente e com os tempos de utilização. No nosso tempo a sociedade acabou de

desconstruir os edifícios pelo esvaziamento de significado: será que como para a arquitectura,

estes vazios arquitectónicos e urbanísticos contemporâneos serão capazes de reconstruir a

sociedade?

O exemplo da azc é precisamente a demonstração, numa visão estritamente arquitectónica,

que o Vazio (físico ou conceptual) não é um obstáculo à concepção, nem é algo de não

relacionável à nossa experiência quotidiana, mas sim está presente de forma inconsciente.

Não só a azc pode ser a base para uma escolha operativa de trabalho, mas também é uma das

poucas opções hoje para tentar dar qualidade à sociedade, às cidades e a todas aquelas áreas

que têm características públicas. Desta forma entende-se, outra vez, tentar educar as pessoas a

desviarem-se da tendência actual do individualismo pós-moderno, para promover

experiências de convívio público, de interacção colectiva, de respeito pelos espaços que

pertencem a todos. Deste modo superar-se-ia esta situação de espaços públicos degradados,

onde a condição de liberdade absoluta se torna uma triste indiferença e uma usurpação

imprópria.

A azc é provavelmente a aplicação directa e mais próxima do uso do Vazio como instrumento

conceptual, e não só, em arquitectura. Paralelamente ela proporciona outro serviço: empurra a

arquitectura a procurar a sua aplicação em outros âmbitos que até este momento estavam fora

de questão, inexplorados.

COMPLEXO CULTURAL FERROVIÁRIO DE ARAÇATUBAO vazio deixado pela retirada da linha férrea e as propostas de requalificação do lugar

Carlos Alexandre de Oliveira e-mail: e-mail: [email protected]. Amazonas 2209, Votuporanga – SP Brasil

Evandro Fiorine e-mail: [email protected] Rua Abdo Muanis, 1101 apto 23-I, Nova redentora São José do Rio Preto - SP Brasil

Unifev - Centro Universitário de Votuporanga

Introdução

A cidade de Araçatuba está localizada no Estado de São Paulo e conta hoje com umapopulação de 177.4 mil habitantes, de acordo com o último senso realizado em 2004.

Ilustração do Mapa do Brasil e Estado de São Paulo, Araçatuba – Fonte: Autores

O município tem como base econômica a agropecuária e a produção de açúcar, álcoolcombustível e biodiesel. Teve seu desenvolvimento a partir da chegada da estrada de ferroNOB (Noroeste do Brasil), e a expansão das lavouras de café, características estas, comuns naorigem dos municípios do Estado de São Paulo. Com a decadência do café, a criação da indústria automobilística e o incentivo das rodoviaspor parte do Governo Federal, a estrada de ferro entrou em obsolescência. A falta deinvestimentos no setor, bem como, o total abandono da malha ferroviária do Estado de SãoPaulo acarretou a desativação do pátio ferroviário de Araçatuba. O vazio deixado pela extintaferrovia transformou uma parte do centro urbano em um cenário desolador, um localmarginalizado.A partir da década de 1970, o destino dos resquícios da ferrovia foi alvo de inúmerasdiscussões. Como transformar o espaço deixado pela malha ferroviária em um vazio útil?Depois da retirada da linha férrea do centro da cidade, boa parte dos prédios existentes foipreservada. No entanto, este complexo se configura hoje como um vazio, não pela suaausência de ocupação, mas pela falta de interesse do poder público para com o lugar que deuorigem à cidade. A população também pouco utiliza o espaço, que deveria ter grandeimportância para vida urbana, já que é prenhe de sentido público. Desta maneira, nossa intenção é a abordagem de algumas estratégias de requalificaçãoarquitetônica para o local. Assim, em nossa explanação discutiremos alguns projetosarquitetônicos e urbanísticos de remodelação deste espaço vazio, que foram realizados aolongo dos últimos anos, mas que não deram certo. Além disso, apresentaremos estudospreliminares de uma intervenção projetual que vem sendo pensada em nosso Trabalho Finalde Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Visto que, o conceito chave desta nova

intervenção é a demonstração das qualidades implícitas e as potencialidades destevazio urbano como um importante espaço público para a cidade.

Pátio da NOB (1960) – Fonte: Câmara Municipal de Araçatuba, Projeto Memória.

A área e o vazio deixado pela retirada da ferrovia

A partir da década de 1970 várias discussões em torno da área começam a ganhar força. De1978 a 1994 projetos para a retirada da linha férrea e a construção de um novo traçado urbanono local foram idealizados. No entanto, somente em 1995, o então prefeito da cidadeDomingos Andorfato anunciou a retirada dos trilhos do trem. Da antiga ferrovia restaram ascasas da vila ferroviária, os galpões das locomotivas e o prédio estação ferroviária dentreoutros edifícios. Um grande conjunto completamente desativado, na região central da cidade.Na tentativa de recuperar esta importante área foram realizadas melhorias que vieram reforçaro traçado viário e o patrimônio histórico do lugar. Dentre estas podemos exemplificar aconstrução de uma grande avenida em substituição aos trilhos que antes dividiam a cidade,em zona norte e zona sul. Além disso, foi efetivada a recuperação dos prédios do antigoconjunto da NOB transformando-os no Centro Cultural Ferroviário.

Foto aérea do conjunto ferroviário e localização dos prédios – Fonte: Prefeitura Municipal de Araçatuba

Apresentação das propostas de intervenção para a área

Durante o período de discussões sobre a retirada da linha férrea do centro da cidade, váriaspropostas para um novo uso do local foram idealizadas. Onde podemos destacar:

1. Proposta de Reurbanização do Centro Urbano de Araçatuba do arquiteto paulistaSiegbert Zanettini;

2. Proposta do Centro Cultural Ferroviário da Prefeitura Municipal de Araçatuba deautoria do arquiteto Arnot Crespo;

3. Proposta de Revitalização da Vila Ferroviária da AEAN – Associação de Engenheirose Arquitetos da Alta Noroeste;

Dentre estas, o projeto escolhido e executado foi o da Prefeitura Municipal, pois atendia, porsua simplicidade, o baixo orçamento público, como definiu Arnot, o autor do projeto.

Propostas

Reurbanização do Centro Urbano de Araçatuba, 1992

O projeto do Arquiteto Siegbert Zanettini realizado em 1992 tem um conceito de união dasduas áreas da cidade – norte e sul, até então separadas pela ferrovia. Além disso, contemplauma ligação com a Praça Rui Barbosa, conhecida como a Praça do Boi Gordo. Areestruturação urbana consiste na substituição da linha férrea por uma avenida, além daexecução de novos prédios, tanto comerciais como culturais. Esta proposta expressiva visa aconstrução de um centro comercial e de convivência, bem como um terminal urbano que ligaum lado a outro da avenida, uma espécie de edifício ponte.Embora a proposta traga uma resposta contemporânea ao projeto, o arquiteto procuroupreservar edifícios que achava importante para a memória histórica da cidade, tal como, osgalpões da oficina de máquinas. Outro ponto interessante do seu projeto, como atesta opróprio autor (Zanettini, 2002) é a preservação da vegetação local, com a manutenção de

árvores de grande porte já existentes. Entretanto, a resposta projetual desta propostabusca a conformação de uma cidade modernizada, inspirada em uma matriz corbusiana. Oque nada tinha haver com a realidade da cidade. Esta espécie de centro financeiro – quepoderia acontecer em São Paulo, em Paris ou Nova Iorque –, pouco se reportava à culturalocal e às tradições do sítio em que se esboçaria. Acreditamos que, se implantada trariafeições de uma cidade global a uma pacata cidade de origem rural. Talvez, nem pudesseexpressar o sentido público do lugar, já que daria terreno para a construção de vários arranha-céus locados pela iniciativa privada.

Reurbanização do Centro Urbano de Araçatuba – Fonte: Zanettini, 2002.

Centro Cultural Ferroviário, 1994

A proposta da Prefeitura Municipal de Araçatuba teve como objetivo a reurbanização de todaa faixa ferroviária inserida dentro do município. Onde todo o traçado foi substituído por umaavenida, que segundo o Arquiteto Arnot Crespo, unificou as zonas norte e sul da cidade.Nas primeiras discussões sobre a retirada dos trilhos, nas décadas de 70 e 80, projetos comoviadutos e túneis foram propostos como uma solução à transposição da malha ferroviária dacidade. Estas propostas foram descartadas devido ao seu alto custo na época.

Arnot conta que sempre defendeu a idéia da retirada dos trilhos e a reurbanização da faixacentral, e mesmo sendo uma obra cara, sua execução seria mais rápida e de menor custo,relacionada às outras propostas, como a do arquiteto paulista Zanettini. Alguns políticos foram contra a preservação do conjunto histórico e defendiam sua demoliçãototal e a construção de novos prédios.Os prédios preservados foram reformados e adaptados recebendo usos de cunho cultural esocial, como os galpões da antiga oficina de máquinas, que foram transformados no centrocultural e passaram a receber exposições itinerantes, oficinas, atividades teatrais, um local deuso múltiplo, como reitera o próprio autor.

O prédio do antigo depósito foi adaptado para receber a UNA – Universidade daTerceira Idade, junto com algumas casas da vila ferroviária. Outras casas foram adaptadas ereceberam funções diversas, como:

• MUSEU HISTÓRICO• ACADEMIA ARAÇATUBENSE DE LETRAS• CLUBE DE DAMAS E XADREZ• CONSELHO TUTELAR• MUSEU DE ARTE INFANTIL• ASSOCIAÇÃO DOS ARTISTAS PLÁSTICOS• SECRETARIA DE AÇÃO SOCIAL• MUSEU DA IMAGEM E SOM

Algumas construções do conjunto ainda são ocupadas como residências. A estação ferroviáriaseria aproveitada como um local de atendimento ao turista, mas transformou-se em um localde eventos, pois serve como palco e platéia para desfiles cívicos e carnaval de rua. Outros prédios, como o antigo Hospital Santana é administrado pela iniciativa privada e foicompletamente reformado, bem como o antigo alojamento dos ferroviários, onde funcionahoje um restaurante popular em convênio com a Prefeitura Municipal. Finalizando, o arquiteto ressalta que, apesar de nem todas as propostas para o projeto teremsido realizadas pela Prefeitura Municipal, como a falta de um paisagismo condizente com olocal, e a preservação adequada aos prédios históricos, o projeto atende, pela sua simplicidadee viabilidade, o orçamento público. Entendemos que, realmente, a simplicidade do projetoimplantado tem sua eficácia no que diz respeito à solução urbana, ou seja, a retirada da linhado trem e sua substituição por uma avenida. Mas não destaca as potencialidades e qualidadesdo vazio.

Vista da Avenida dos Araçás – Fonte: Câmara Municipal de Araçatuba, Projeto Memória, 1994.

Revitalização da Vila Ferroviária, 1998

A proposta realizada pela associação é principalmente voltada para o restauro e a conservaçãoda vila ferroviária, o resgate da memória histórica da cidade e a revalorização do local.Durante décadas esta região e as vias circundantes, como a rua 15 de novembro forammarginalizadas. Isto por que, no passado, inúmeros bares e casas de prostituição faziam partedeste contexto. Nesse sentido os cidadãos, ainda hoje, têm preconceito pelo local.Partindo de soluções simples a Associação de Engenheiros e Arquitetos de Araçatuba propôsuma unificação para a área transformando todo o complexo em uma grande praça. Nela,haveria portais de altura significativa, que seriam um convite para que a população adentrasseao complexo. O local contaria também com a construção de uma concha acústica, biblioteca-vagão, bares, praça de alimentação, oficinas, teatro para 300 pessoas, área de apoio ao turista,piscina pública na UNA – Universidade da Terceira Idade, além de eventos culturais e umaárea destinada ao artesanato local.Todo o complexo seria livre de barreiras físicas, ou seja, todos os muros que circundam ascasas da vila seriam retirados, inclusive o do museu. Nessa área, os cidadãos poderiamcaminhar livremente por todo o lugar e as casas de relevância para o patrimônio históricomanteriam algumas das funções que já adotadas pelo projeto de Arnot, como:

• SECRETARIA DE AÇÃO SOCIAL• MUSEU HISTÓRICO PEDAGÓGICO• ANTIGA ESTAÇÃO FERROVIARIA• ACADEMIA ARAÇATUBENSE DE LETRAS• ACADEMIA ARAÇATUBENSE DE DAMAS E XADREZ• MUSEU DE ARTE INFANTIL• ASSOCIAÇÃO DOS ARTISTAS PLASTICOS

• PRAÇA DOS ANTEPASSADOS DA COLONIA NIPÔNICA• SEDE DA SOCIEDADE DE PROMOÇÃO DA TERCEIRA IDADE• MUSEU DO SOM IMAGEM E COMUNICAÇÃO• SEDE DO CIRCOLO ITALIANO• VAGÃO

• PRAÇA DO VAGÃO• PRAÇA DE EVENTOS DA UNA• CENTRO CULTURAL DA UNIVERSIDADE ABERTA

Além da preservação da praça da estação e do seu relógio, a proposta previa também aconstrução de uma réplica de um antigo prédio neoclássico demolido da ACIA (AssociaçãoComercial e Industrial de Araçatuba), que funcionaria como Museu da história política dacidade. A vila contaria também com Museu dos Ferroviários, uma rádio e jornal informativodo complexo. Uma proposta ingênua baseada na incongruente pretensão de reconstruir umprédio já demolido há anos. Não acreditamos também que a criação de portais pudesse atrairos cidadãos. No entanto, a demolição dos muros que cercam os prédios seria muito oportuna.

Revitalização da Vila Ferroviária da AEAN – Fonte: AEAN (Associação de Engenheiros e Arquitetos da AltaNoroeste), 1998.

O Complexo Cultural Ferroviário de Araçatuba, 2007.

O vazio urbano nos traz inúmeras oportunidades de renovação, de reconstrução e de mudança.Mostra-se na possibilidade de recriar o lugar numa expectativa de moldar um novo espaço.É importante entender que nossa proposta de requalificação do espaço cultural ferroviário deAraçatuba não compartilha destas características. Buscamos compreender o vazio, através deintervenções que mantenham o cotidiano do lugar. Queremos entender as potencialidades doespaço público traduzindo as características implícitas à área.Através de uma análise do local entendemos que existe uma necessidade de unir os dois ladosdo complexo que, até hoje, ainda é dividido pela avenida. No passado este espaço funcionavacomo um grande pátio de manobras. Em nosso projeto a reunificação dos dois ladoscontempla o re-surgimento deste pátio (agora vazio), como um grande espaço cívico. Em solução à avenida propomos a construção de um túnel, sendo que este dispositivo nadaalterará o fluxo urbano das vias circundantes à área.A antiga estação ferroviária, atualmente, abandonada passará a funcionar como um terminalurbano. Agora requalificada atenderá sua antiga função de transporte.Os galpões, que hoje abrigam o centro cultural ferroviário continuarão recebendo atraçõesculturais. Todavia, para isso, o seu espaço interno será remodelado para a realização deoficinas de teatro, dança, artesanato, desenho e pintura, entre outras. O vazio será preservadoatravés da criação de um espaço de apresentações e feiras, que será constituído em um novo“edifício” semi-enterrado. A preservação do espaço vazio é a única memória que pode trazer atona o sentido público do lugar. Seu reforço se dará por uma grande esplanada agora utilizadapelos moradores como um respiro para a cidade.

Novo Complexo Cultural Ferroviário de Araçatuba – Fonte: Autores, 2007.

Croquis do Novo Complexo Cultural Ferroviário de Araçatuba – Fonte: Autores, 2007.

Referências

Arnot, C. (2007) Entrevista a Carlos Alexandre de Oliveira (dados não publicados,

Araçatuba).

Associação dos Engenheiros e Arquitetos da Alta Noroeste (1998) Revitalização da Vila

Ferroviária (AEAN, Araçatuba).

Pinheiro, C. and Bodstein, O. (1997) História de Araçatuba (Academia

Araçatubense de Letras, Araçatuba).

Matos, O. (1990) Café e Ferrovias: a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento

da cultura cafeeira (Editora Pontes, Campinas).

Zanettini, S. (2002) Arquitetura, Razão e Sensibilidade (Edusp, São Paulo).

CIDADE UNIVERSITÁRIA DE LISBOA. VAZIOS CHEIOS URBANOS OU ASGÉNESES ALIMENTADORAS DE EQUÍVOCOS

Patrícia Santos Pedrosa e-mail: [email protected] Politécnica da Catalunha

1. Ponto de partidaO território é tricotado e constrói-se através de uma miríade de actores e acções,necessariamente num exercício complexo e nem sempre compreensível na suaglobalidade. Se os vazios urbanos são – de certo ponto de vista – elementospotencialmente transformáveis em acontecimentos e reelaboração no interior dascidades, o que fazer com tecido que se constituiu cidade consolidada – cheia – mas que,em termos de leitura e vivências, permanece como parco de coerência e mínimasensação de acontecimento urbana com sentindo de unidade, como se de um vazio cheiourbano se tratasse?A proposta de leitura desta questão acontece através do olhar lançado ao surgimento eprimeiro desenvolvimento da Cidade Universitária de Lisboa. Isto, por pensarmos queserá neste caso, possivelmente, a âncora movediça que desorienta o caminho. O modocomo a génese deste território – programaticamente uno – é traçada marcará, a longoprazo, o seu carácter não coeso e de difícil apropriação urbano-simbólica. É aexperiência actual deste pedaço de cidade quem assim o caracteriza. As fragmentações e hesitações das ideias suportam e orientam o crescimento desteterritório. No cruzar deste objecto – a Cidade Universitária de Lisboa – com as suasreferências históricas e com o enquadramento escolhido, esperamos lançar pistas para aleitura do carácter de incompletude de que alguns territórios, ainda que materialmentepreenchidos, se constituam como talvez-vazios. Difíceis territórios estes, com a escassezvivêncial de tantos vazios urbanos mas sem o potencial reelaborante que quase todos ostais vazios apresentam.

2. Os últimos anos da 1.ª RepúblicaA institucionalização da Universidade de Lisboa acontece somente em 19111. Apesardisso, e devido à carência de instalações, as exigências de melhores condições físicas jávem de trás. Quando em Julho de 1918, se instaura uma comissão para a escolha dosterrenos para receberem os “edifícios das Faculdades de Letras e de Direito daUniversidade de Lisboa e para construir o corpo central administrativo da mesmaUniversidade”2 uma coisa é deixada clara: não se encontra em discussão a necessidadede optar entre a adaptação e ampliação de edifícios existentes ou a construção de raiz.O dia 10 de Maio de 1919 pode ser considerado como a inflexão do caminho daresolução do problema universitário lisboeta partindo do geral para o específico. AEscola de Farmácia e a Faculdade de Medicina vêem salvaguardados, em dois decretosdistintos, os empréstimos necessários para que se possam resolver os problemasrespectivos de carência de instalações. O Decreto n.º 5:558 concede um empréstimo de500.000$00 para a aquisição e construção do edifício para a instalação da Faculdade deFarmácia. Também se deveria adquirir, com este valor, o material e o mobiliário escolarnecessários3. A Faculdade de Medicina, por seu lado, vê o valor do empréstimo de quebeneficiará estabelecido em 2.000.000$, “destinado à construção de edifícios para ainstalação dos Institutos clínicos e outros estabelecimentos necessários ao ensinomédico”. Para este efeito deveria ser constituída, por nomeação governamental, uma1 Cf. Decreto com força de lei de 22 de Março de 1911. Diário do Governo, n.º 68, II.ª série, 24 Março1911, pp.126-2.2 Portaria da Secretaria de Estado da Instrução Pública de 4 Julho 1918. Diário do Governo, n.º 158, II.ªsérie, 8 Julho 1918, pp. 2182-83.3 Cf. Decreto n.º 5:558. Diário do Governo n.º 98, I.ª série, 10 Maio 1919, pp.808-809.

comissão especial a quem seria entregue o empréstimo e que seria responsável pela“direcção das obras de construção dos referidos edifícios”4.Quando a 20 de Fevereiro de 1920 é assinada a escritura que concretiza a compra deaproximadamente 149.000 m² no sítio da Palma de Cima (Universidade de Lisboa,1928:71) fica marcado territorialmente o que virá a ser, com contornos ainda genéricose não muito claros, a Cidade Universitária de Lisboa. A Comissão dos EdifíciosEscolares (de Medicina) da Universidade de Lisboa apresenta ao Conselho Escolar, emMarço, um relatório onde se pode ler:

Este terreno tem a área de que necessitamos; é plano, mas com um ligeirodeclive; está situado a uma cota média de 90 metros, superior em altitudeà do Campo Grande, constituindo com os terrenos vizinhos um extensoplanalto. Perto dele existem terrenos em idênticas circunstâncias,convenientes para outras instalações universitárias, principalmente os queo prolongam para leste e chegam ao Campo Grande, na altura da suaextremidade meridional, perto do Mercado Geral de Gados. Uma vezconjugadas as novas construções com o plano de arruamentos previstopela Câmara Municipal e já em principio de realização, os terrenos terãofácil acesso por duas avenidas perpendiculares ao Campo Grande e poroutras que vão ao sítio do Rego, que lhe fica perto. Todas estasconsiderações, juntas às qualidades do terreno e ao valor das edificaçõesque lá existem e que podem, em parte, ter aplicação futura, determinarama comissão a fazer a compra dos terrenos (…). (Universidade de Lisboa,1928:71)

O gesto fundacional referido acaba por acontecer sem que arquitecto ou urbanista algumtenham nele qualquer tipo de participação. Apesar de não se saber os detalhes quelevam à compra destes terrenos, a realidade é que um conjunto de três professores daFaculdade de Medicina iniciam, com a grande responsabilidade que isso representa, ademarcação do território da futura Cidade Universitária de Lisboa. Não deixa tambémde ser interessante identificar, nas justificações apresentadas, a existência de umavontade de agregação das instituições universitárias, ainda que sem efectivoplaneamento desse caminho. A área disponível para o crescimento do tecido urbanouniversitário e o carácter acolhedor do terreno, esse “extenso planalto” de que faziamparte os terrenos adquiridos, predispõem o território para uma ocupação universitária, eos professores de medicina presentes na comissão estão disso conscientes. Não estarão,de qualquer modo, suficientemente conscientes a ponto de abandonar uma acçãoindividual e propor a acção da Universidade como um todo. No interior da Universidadenão deixam de ser apontadas críticas à prioridade dada, por parte do Governo, àsciências médicas, como verificamos no relato seguinte:

O outro facto, agradável de registar, consiste na satisfação parcial dada aantiga e justificada pretensão da Universidade, no que respeita àsdotações de que necessita, para poder realizar a construção dos seusedifícios próprios. Mas esta satisfação, que classifiquei de parcial, foi narealidade não só incompleta como também incongruente. Pois, ao passoque se concede à Faculdade de Medicina uma verba razoável para poderconstruir edifícios, que lhe faltam, obedecendo a todos os requisitosmodernos, e à Escola Superior de Farmácia uma cifra mais que suficientepara a instalação quási luxuosa dos seus serviços, nem um centavo sedispensou para as construções destinadas aos serviços centrais daUniversidade e às Faculdades de Letras e Direito, não obstante as nossasreiteradas instâncias e as condições precárias e deprimentes das suasactuais instalações. (Universidade de Lisboa, 1928: 4)

4 Decreto n.º 5:787 – 4J. Diário do Governo, n.º 98, I.ª série, 10 Maio 1919, pp.1178-1179.

Esta falta de equilíbrio distributivo dos fundos estatais surge, realmente, como facto dedifícil compreensão, tendo em conta que, e segundo as informações diversas que noschegam, as condições de instalação das referidas e carenciadas faculdades eramgenericamente reconhecidas como insustentáveis para o digno ensino universitário aque estas instituições se proponham. A decisão tomada, em 1919, vai marcar o sentidodo investimento que continua a privilegiar Medicina e Farmácia e que mais tarde, jáalterada a situação política nacional, vai ser mantida, principalmente no que à Faculdadede Medicina diz respeito.A 1.ª Republica vai, em Maio de 1926, menos de um ano depois destas discussões,sofrer um forte, ainda que esperado ou natural, revés. O golpe militar de 28 de Maio vaiiniciar um redireccionamento profundo do país, durante quase cinquenta anos, o regimeque António de Oliveira Salazar virá a encabeçar tentará, por todos os meios,transformar a realidade nacional numa quotidianidade tranquila, sem a instabilidade quea 1.ª República, na sua aprendizagem complexa, transformará em persistente edesconfortável característica dos seus anos de existência. O cansaço em que o paísestava mergulhado fez com que, naturalmente, o golpe militar fosse recebido comrazoável esperança numa nova ordem que se cumpriria debaixo de uma pesada mão, quedepois se soube mostrar ordeira e cinzenta.Aqui se encerra um episódio da Cidade Universitária de Lisboa que, e apesar dasresistências existentes e da falta de ideia global que visasse a sua concretização,apresentava teoricamente tudo para ser concretizada e colocar Portugal no conjunto dasdiversas nações que procuravam realizar, nestas primeiras décadas do século XX, assuas aspirações universitárias, ou seja, que assistiam ao desenvolvimento econcretização dos seus projectos pedagógicos, urbanos e de edificações universitários.A estabilidade politica com a qual estas décadas não contaram e que, a partir de finaisdos anos 1920 se instala no país não foi garante automático da concretização a ritmojusto das aspirações territoriais da Universidade de Lisboa. Esta instituição a muito teriade assistir até à concretização do forte e natural desejo, até ao direito a uma existênciaefectiva no território da cidade.

3. Portugal, a arquitectura e os arquitectosDesde a Antiguidade que a actividade arquitectónica tem no pensamentopreestabelecido, fixado nessa altura através dos textos considerados sagrados, o seuinterlocutor primordial (Kostof, 2000:6-8). A existência de um corpo de ideias suporta oagir arquitectónico, este reinterpreta e dá materialidade aos próprios conteúdos fixados,numa atitude de síntese que se supõe complexa e para a qual é necessária a estruturacultural e intelectual que a torne possível. Ao longo da experiência humana osarquitectos são chamados a ler e a possibilitar a construção segundo as regras quesuperiormente se encontram estabelecidas, sendo, apesar de tudo, responsáveis porpequeníssima parte do território construído ao longo dos séculos. Os programasespeciais aos quais são chamados a dar resposta, aliado muitas vezes às dimensõestambém elas especiais, levam-nos a estarem ao serviço do dinheiro e do poder: sejamestes a Igreja ou o Estado, os grandes proprietários ou as administrações (Kostof,2000:3). Por outro lado, a cidade genérica constrói-se fruto das vontades e necessidadesanónimas.Em diversos momentos encontramos os arquitectos de maior importância e visibilidadepossuidores de elevado grau de erudição e de alargado conhecimento de outros misteres.Esta proximidade entre o arquitecto e o que é o conhecimento erudito é um naturalresultado da necessidade de o Homem recorrer à ajuda da vontade e conhecimentossuperiores, no sentido de encontrar respostas para os problemas que lhe são levantadospela necessidades de produzir habitares diversos (Kostof, 2000:4-5). O empirismo nãoé, e quase nunca foi, julgado suficiente para as respostas especiais aos programas commaior peso simbólico.

Esta vertente de solucionador de problemas do universo urbano, como algo complexo,tende, pelo menos no território nacional, a desvanecer-se. De tal modo que se assiste, aolongo do século XIX português, a uma perda da noção do papel difícil do arquitecto,que se estabeleceu considerar como acção no domínio “dum sentimento principalmenteestético”(Pardal Monteiro em Ribeiro, 1996:110) e onde – no final dos anos 20 e 30 doséculo XX – só através da aproximação aos modus operandi do engenheiro se pensavapoder vir a recuperar. Apesar do carácter dual da arquitectura, a vertente de reflexão ecrítica é, sucessivamente, esquecida ou secundarizada. A arquitectura é compreendidacomo coisa das acções estética e técnica, demorando mais um par de décadas até asituação começar a sofrer alterações. Será, também, a conservação de uma situação quemantinha a imagem do arquitecto como elemento cultural e socialmente poucorelevante. A envolvente alargada, que incluía a deficitária formação académica dosarquitectos, transformaria estes profissionais em parte conformista e cinzenta de umsistema, também ele estagnado e perpetuador, sem que estes tenham, na maior parte dasvezes, nada a dizer ou acrescentar. Como afirma Nuno Portas “a produção dearquitectura torna-se [depois da renovação urbana pombalina] uma actividade menor, demodas estilísticas superficiais ou subsidiária da «construção»” (1978: 697).O século XIX significa uma profunda alteração no tecido socio-económico dos espaçosurbanos, com o crescente poder da burguesia liberal mas a cidade não se desenvolve àmedida destas alterações. Este conjunto de poderosos proprietários urbanos procura arentabilização do território através da sistematização de um modelo de ocupação emfranca ascensão: o prédio de rendimento. Este surge assim como natural resposta àvontade de satisfazer a rentabilidade do cada vez mais importante negócio: a cidade. Aoarquitecto caberá, pontualmente, atravessar-se neste processo, sem rasgos de artista, esem representar o seu secular papel de chefe de orquestra. Assim surge lentamente umacidade que, na maior parte das vezes, “já não se projecta, resulta” (Portas, 1978: 694). A fragilidade formativa e reflexiva tem como resultado, como refere Nuno Portas, queos reflexos da vanguarda internacional, de meados de 1920 até à década seguinte, sósurgem nalgumas poucas obras construídas, que não chegam a ter força ou visibilidadepara se “desenvolver[em] na teoria nem muito menos se propagar[em] no ensinooficial” (1978: 709). Deste modo, compreende-se a normalidade com que é olhada atransição e coexistência de um imaginário moderno ou racionalista, com outros de carizmais localista ou, ainda, de um classicismo seco e vagamente monumental. Os desejos eas vontades, muitas vezes contraditórios e não sintetizados, levam a esta esquizofreniaformal, aceite com a mais desarmante das naturalidades. Mais uma vez, à falta dereflexão efectiva, o conceito de uma modernidade arquitectónica portuguesaencontrava-se nas mãos da possibilidade prática, ainda que, com mais ou menosintensidade, estivesse sempre presente a sebastianica busca do actual-tempo-português-vestindo-a-glória-e-as-formas-do-passado. As propostas caminham, tanto por parte dosarquitectos como por parte do Poder, no sentido de encontrar uma expressão decontemporaneidade na arquitectura do tempo, carregada do ser português, onde ocarácter nacional da arquitectura deveria ser descoberto, sintetizado e sujeito a um usosistemático. Este carácter da arquitectura que, como define Josep Maria Montaner,deverá satisfazer a identificação não abstracta dos elementos que constituem a mesma.Se o carácter da arquitectura moderna era naturalmente obtida através da relação directada função com o rosto que tomava o edifício, mantendo a linear relaçãofunção/resultado formal obtido temos, por outro lado, a arquitectura académica àprocura no imaginário comum, social e culturalmente consagrado, da criação de diálogocom os utilizadores através das linguagem reconhecível e a todos pertencentes(1997:96-97). É no seio desta última atitude que se procura encontrar a arquitecturanacional, e como se imagina, estes dois modos de agir arquitectónico são de difícil, oumesmo impossível, compatibilização. Como consequência, encontramos a alternânciacomo modo natural de responder a problemas específicos, resultando a orientação da

resposta das necessidades programáticas e às que corresponde, de um modo empírico,um suposto carácter específico. Moderno, nacional ou clássico? O programa e oencomendador decidem.

4. Os primeiro anos da 2.ª República – O Estado NovoA década de 1920 trás a Portugal o desenlace para os republicanos tempos deinstabilidade. Como resposta a uma crise que o regime liberal havia incorporado,instala-se, a 28 de Maio de 1926, a Ditadura Militar que evoluirá nos anos seguintespara o Estado Novo. Para suportar o Estado, e por oposição às “alegadas falácias dasoberania popular”, as ideias, defendidas por uma elite que fazia parte das classesdirigentes, queriam transformá-lo num “Estado forte politicamente e interventoreconomicamente” (Rosas, 1992:9-10).A compreensão de algumas das relações orientadoras e do modo como estas seestruturam permitirá que se possa entrar numa tentativa de estudo de significados dessasmesmas relações (Waisman, 1977:39-40). Pela amplitude de factores a que estãosujeitos, a arquitectura e o urbanismo relacionam-se com os diversos regimespolítico-económicos de modo suficientemente complexo e intrincado para que não sepretenda conseguir, no espaço deste texto, mais do que esboçar uma geral leitura destetema. Genericamente é lugar comum reconhecer as múltiplas promiscuidadesprocuradas pelo poder junto destas produções, e as respostas encontradas, ou não, àaltura deste desejo, por parte dos arquitectos e urbanistas, que junto com osengenheiros, constituem o conjunto de técnicos capazes de imprimir progresso àrealidade física do país.Também à arquitectura, aos arquitectos, António Salazar enviará uma inequívocamensagem de convite à aproximação e à concretização de uma ideia de arquitecturaportuguesa. Conversam António Ferro e Salazar, na extensa entrevista de 1932:

É pena que os novos arquitectos portugueses, onde se encontram rapazesde tanto valor, não se empenhem em criar um tipo de construções, paraedifícios públicos, que esteja dentro da nossa época, mas,simultaneamente, dentro da nossa raça e do nosso clima. Suponho queeles seguem, com demasiada subserviência, os figurinos lá de fora, sem sepreocuparem com a sua adaptação ao nosso meio. O resultado, daqui apoucos anos, é que não poderemos olhar para eles com prazer. Chego asupor que esses artistas tomam por motivos decorativos e modernos o quenão passa duma defesa necessária em certos climas. (...) Este problema daarquitectura preocupa-me bastante, quando me lembro das verbasinscritas no orçamento destes anos para as obras públicas: muitas dezenas,ao fim centenas de milhares de contos! Não seria uma ocasião excelentepara dar uma certa unidade à arquitectura oficial? [Responde Ferro:]Concordo e vou mais longe: Seria mesmo a oportunidade rara paraoferecer aos vindouros a imagem definitiva, própria, do momento darenascença que estamos vivendo5. A Itália assim o está fazendo. Há hojeuma arte monumental fascista, discutível, mas inconfundível... E Salazar,modestamente: Não peço tanto... Longe de mim a pretensão ridícula decriar um estilo ou de inspirar um estilo. Contente ficarei se as obras arealizar forem portuguesas e simplesmente belas... (Ferro, 1935: 200-201)

Existia, de facto, como afirma claramente Salazar, uma natural vontade de ter, no seiodo Estado Novo, uma arquitectura facilmente identificável. Marcada, mais que nada,pela descoberta e resposta efectiva à desejada formalização, capaz de representar arealidade nacional, uma arquitectura feita da mesma matéria que as ideias do ditador,uma dignidade pequenina, a escala ampliada da humildade de um país que era ainda,

5 O sublinhado é nosso.

principalmente, avesso a um tipo de desenvolvimento moderno, inevitavelmentecontrário à ruralidade existente e, esta sim, espelho da alma e desejos de Salazar.

5. As contaminações e o estrangeiroNa Primavera de 1955 o arquitecto M. Norberto Corrêa acompanha o ComissárioNacional da Mocidade Portuguesa, Prof. Gonçalves Rodrigues, numa“missão de estudopela Europa, que demorará quarenta e cinco dias. O objectivo é estudar as instalações deestudantes e a lista de países visitados é ampla: França, Itália, Alemanha Ocidental,Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda e Bélgica. Desta investigação in loco resulta“Instalações Estudantes Universitários. Relatório” de M. Norberto Corrêa, terminado jáem 1956. Este relatório é constituído por um volume de texto e dois de imagens,contendo o primeiro análises detalhadas de treze instituições visitadas. Esta seria aquinta e última viagem de estudo realizada por arquitectos e outros responsáveis paraalimentar directamente o projecto para a área da Cidade Universitária de Lisboa, noperíodo em análise.Três anos antes, em 1952, Porfírio Pardal Monteiro visitara diversas bibliotecaseuropeias com o objectivo de estudar situações programaticamente idênticas ao queviria a ser o novo edifício da Biblioteca Nacional, nos terrenos próximos ao CampoGrande. Também para este edifício, em 1954, Manuel Santos Estevens, director daBiblioteca Nacional de 1951 a 1974, visita a América do Norte (Pacheco, 1998:192-193). Entre o final de 1948 e 1949, o mesmo Santos Estevens conhecera, durante setemeses, cerca de noventa instituições europeias distribuídas por cinco países: ReinoUnido, Irlanda, Bélgica, Holanda e França (Estevens, 1953:5).Década e meia mais cedo, em 1937, Porfírio Pardal Monteiro na companhia do ministroDuarte Pacheco visitara as cidades de Paris e Roma com a finalidade de estudar asrespectivas cidades universitárias (Pacheco, 1998:97).Esta incidência de viagens de estudo para a investigação dos programas a implantar noterritório da Cidade Universitária de Lisboa pode fazer supor uma situação de excepçãoe enorme envolvimento por parte do encomendador. A verdade é que, desde asprimeiras décadas do século XX, a elaboração de um projecto para um programaimportante estava normalmente associado a uma visita de estudo levada a cabo pelosarquitectos e/ou outros técnicos ou responsáveis pelo projecto. Muitas outras situaçõesidênticas apontam para o que se assemelha a uma tradição metodológica face àimportância e complexidade de alguns programas.Porfírio Pardal Monteiro já tinha realizado, por duas vezes, viagens de estudorelacionadas com encomendas oficiais e outras tantas seriam mais tarde realizadas: em1928, para o projecto do Instituto Superior Técnico viajara pela Europa e, em 1935, porcausa das Gares que se encontrava a projectar para a capital, conhecera as de Génova,Nápoles, Trieste e Rochelle Pallicem. No final dos anos 40, em 1947, Pardal Monteirovisitará algumas congéneres europeias do que virá a ser o Laboratório Nacional deEngenharia Civil e, cinco anos mais tarde, o ciclo fecha-se com a já referida visita abibliotecas europeias (Pacheco, 1998:65, 95, 172 e 176).Cottinelli Telmo fará o mesmo em pelo menos duas situações. Em 1927, e ao serviço daCP, visita o sanatório espanhol de Fuenfria e para o estudo da Cidade Universitária deCoimbra realiza, em 1946, uma viagem que inclui Paris, Itália e Suiça. A segundaviagem origina um relatório oficial onde são analisadas as diversas instituições visitadase referido como paradigma para o hospital escolar de Coimbra, o Hospital de Basileia(Martins, 1995:120-121 e 410-411).Durante o ano de 1929, relacionado com o seu trabalho para o Instituto de Oncologia,Carlos Ramos desloca-se a onze cidades europeias a fim de estudar as construçõeshospitalares dessas mesmas cidades. Quase vinte anos mais tarde, em 1947, visitahospitais em Espanha, França, Bélgica, Suiça, Alemanha, Dinamarca, Holanda eInglaterra (Coutinho, 2001 e Martins, 2004:158).

Sem intenção de que esta identificação seja exaustiva ou completa, interessa apontarestas mais de uma dúzia de situações de viagens de estudo. Estas surgem como parte dapesquisa que suporta os projectos para encomendas públicas de importância, duranteestas quatro décadas. Sublinham – até pela representatividade das obras públicasabrangidas por esta medida – a importância dada à observação de situações estrangeirasprogramaticamente idênticas. O leque amplo dos países visitados (maioritariamenteeuropeus) também ajuda a compreender a importância, qualitativa, deste tipo de acções.O tempo e o dinheiro gastos com estas viagens de estudo eram efectivamente levadas asério e a elaboração de relatórios sobre estas viagens é disto prova. Investimento podeser encontrado dos dois lados interessados. Se o poder público, através das diversasinstituições responsáveis pelos projectos, aceitava e apoiava economicamente estasviagens, também os técnicos as preparavam e sobre elas elaboravam, muitas das vezescomo se disse, relatórios que procuravam identificar caminhos a seguir no projecto emcausa.O isolamento face a todo e qualquer exterior não é, como se pensa ter sido demonstrado,completo e absoluto. Outras justificações se poderão encontrar para a dificuldade nadigestão da produção estrangeira e mais ousada. Uma possibilidade de leitura pode serapontada. Como já se referiu, por fragilidade de formação dos próprios arquitectos e domeio cultural mais alargado, a teorização e a crítica são insípidas, pouco continuadas ounada consequentes. Surge assim uma relação com o que é novo que nunca alcançaprofundidade e efectivo contributo para o que poderia ser um crescimento sólido dosarquitectos. Porque a crítica, por ter o papel de “lutar conta o esquecimento” (Montaner,1991:207), permite a construção de um olhar contemporâneo suportado pelo que é arealidade histórica, mais ou menos próxima, e geográfica na tomada de decisão face aoque de novo é proposto.Esta falta de efectivos passado e futuro na reflexão sobre a arquitectura não passaindiferente ao mundo do urbanismo e da construção de cidade. Os modelos existem paraambas as realidades e o uso que se faz deles é identicamente superficial e de curtamemória, não deixando sulco que vá mais além da inevitabilidade do concretizado.

6. Bairro Universitário vs. Cidade UniversitáriaA década de 1920 entra na sua segunda metade sem que a situação pouco adequada dasinstalações da Universidade da capital sofra, em termos práticos, qualquer alteração. Naúltima sessão de 1926 do Senado da Universidade de Lisboa, o professor da Faculdadede Letras, João António de Matos Romão, aproveitando ter a palavra recorda a“necessidade imperiosa que há em se instar com o actual governo para se conseguir umainstalação condigna para a Universidade, visto a deficiência das actuais instalações,tanto da Reitoria e Secretaria Geral, como das Faculdades, muito dispersas e uma delasaté instalada numa casa arrendada”.6Voltando o tema dos edifícios à discussão por parte desta assembleia, é decidido, emFevereiro de 1927, ser solicitada “uma audiência de Sua Ex.ª o Ministro da Instrução àqual compareceriam todos os membros do Senado”7. A troca de impressões queantecedera esta decisão e a vontade desta presença massiva por parte dos elementos quecompõem o Senado pode ser lido como gesto tanto de envolvimento generalizado noseio da universidade, como de possibilidade de, assim, terem mais capacidade depressão sobre o ministério da pasta ministerial responsável.No interior do já vasto território da cidade é de sublinhar a importância do desejo deproximidade entre as diferentes instituições que constituem a instituição. Será umatomada de posição que não mais se perderá de vista no decorrer de toda a trajectória damaterialização da Universidade de Lisboa.

6 Sessão do Senado Universitário [Universidade de Lisboa] de 3 de Dezembro de 1926, p.153.7 Sessão do Senado Universitário [Universidade de Lisboa] de 16 de Fevereiro de 1927, p.161.

A solução apontada como mais plausível – e seguramente a mais económica – era a daimplantação dentro da cidade existente, ocupando a zona do Campo dos Mártires daPátria. Contava a favor desta localização o facto de alguns edifícios serem já ocupadospor “diversos estabelecimentos de ensino”8. De facto, a Escola Médica encontrava-se aíinstalada desde 1906, tal como a Faculdade de Direito, num edifício “decente na suafachada”, ainda que “impróprio” no seu interior para o fim a que se destinava (Araújo eBarata, 1938). Finalmente, na esquina com a travessa do Torel, o edifício que oMinistério da Instrução adquirira no final de 19289, ajudava a criar a predisposição destelocal da cidade para se transformar num necessário e desejado bairro universitário.Neste sentido encontramos a notícia publicada, em Dezembro de 1929, sobre a possívelaquisição de um palacete que permitisse a ampliação das instalações da Faculdade deDireito. Promovendo uma visita de responsáveis do Ministério da Instrução, tanto aoedifício existente como ao que poderia vir a ser ocupado, “alguns dos seus mais ilustresprofessores” faziam mais um esforço no sentido de resolverem a escassez dasinstalações10.Segundo o mesmo artigo, também se falara na situação das outras faculdades e órgãosda Universidade de Lisboa. Sobre a proposta de se ocupar o edifício destinado aoMinistério da Instrução com a Reitoria e com a Faculdade de Letras, o ministro IvensFerraz “achou interessante a ideia”. Assim, noticiava o jornal, se tudo se encaminhassecomo se esperava seria “natural que a Faculdade de Letras e a Reitoria da Universidade”ficassem “instaladas no Campo dos Mártires da Pátria, futuro «Bairro Universitário»”11.O ano de 1929 encerra com um novo reitor à frente da Universidade de Lisboa, JoséCaeiro da Mata, e uma tendência para que se concretize a criação do bairro dauniversidade no centro da cidade, no Campo dos Mártires da Pátria ou de Santana. Vaiganhando, assim, a vontade de agregar as faculdades e outros órgãos universitários semnecessidade de construção nova. Esta versão era também a que a mais curto prazopoderia oferecer todas as instalações necessárias por menor custo: como ao EstadoNovo agradava, digno q.b. mas sem luxos ou extravagâncias. Esta solução seria, poroutro lado, traçar – talvez irremediavelmente – o caminho da adaptação e da nãoconstrução de raiz.Do ponto de vista político, para as duas vertentes da discussão – Bairro Universitário ouCidade Universitária – podemos encontrar justificações pró e contra. Cada uma delasassentava em ideias distintas do que se queria que fosse o meio académico e de comoeste se deveria relacionar com a cidade(-sociedade). Se, no primeiro caso, adomesticação e o controle da massa estudantil surgia pela integração no miolo doconstruído – com o risco de poder ser um paiol de pólvora perigosamente contagiante –,no segundo, este mesmo domínio era procurado através do isolamento e da criação deuma ilha – que poderia funcionar também como fortificação protegendo o que seencontrava no interior do exterior.O ano de 1930 começa com sinais divergentes dos anteriormente apresentados e comuma alteração irreversível na história da futura Cidade Universitária de Lisboa. A 6 deFevereiro de 1930, o Diário de Notícias publica uma primeira página dedicada àquestão da Cidade Universitária de Lisboa. O entrevistado é o arquitecto Carlos Ramose é publicada uma proposta deste arquitecto para a nova Cidade Universitária de Lisboa“nos terrenos vizinhos do Campo Grande” (Ramos, 1930:1).Ao longo da entrevista, Carlos Ramos vai explicando porque descarta a possibilidade deSantana e de Campolide, com as suas faltas de espaço para concentrar todos os serviços– principalmente os da Faculdade de Medicina – e o erro de colocar instalações

8 ’Universidade de Lisboa. A instalação das suas Faculdades’ (1929), Diário de Notícias, 5 de Jul., 1.9 Decreto n.º 16:251 de 29 de Setembro de 1928 in Diário do Governo, n.º 291, I.ª Série, 18 de Dezembrode 1928.10 ‘O Bairro Universitário’ (1929), Diário de Notícias, 6 de Dez., 1.11 Ibidem.

hospitalares perto de zonas de habitação. Qual a solução apresentada? A de construir o“Bairro Universitário de Lisboa em terrenos vizinhos ao Campo Grande” (Ramos,1930:1). Localização que permitiria a construção de uma Faculdade de Medicinamoderna como também comportaria, pela sua imensa área, receber as Faculdades deLetras, de Direito, de Ciências e de Farmácia. A partir desta entrevista, o Diário de Notícias abre o assunto à discussão e durantealgumas semanas, de Fevereiro a Março deste ano, vai entrevistando diversaspersonalidades relacionadas directamente com o tema. O primeiro a ser ouvido é oVice-reitor da Universidade de Lisboa, Queirós Veloso (1930:1). Segue-se, dois diasdepois, a publicação da entrevista com Egas Moniz, director da Faculdade de Medicina(1930:1). É apresentada também a entrevista realizada, quatro dias mais tarde, a SantosLucas, director da Faculdade de Ciência (1930:1). As opiniões são em geral deconcordância, pugnando pela concretização das instalações universitárias que tanta faltafaziam ao correcto funcionamento dos diferentes órgãos da Universidade de Lisboa.Segundo é afirmado “dada a importância do problema”, esta ideia de abrir a discussão e“ouvir sobre ele a opinião de entendidos e interessados” era já um desejo deste diáriodesde “há meses”12.A assunção pública, a partir do início de 1930, da intenção da localização da CidadeUniversitária de Lisboa no Campo Grande pode ser lida como um acontecimentosurpresa, principalmente se consideramos o que no final de 1929 se fazia prever:eventual criação do Bairro Universitário no Campo dos Mártires da Pátria.Paralelamente a esta vertente mediática de discussão do assunto, vai-se desenrolando otrabalho da comissão encarregue de elaborar um relatório sobre a situação dasinstalações da Universidade de Lisboa, que o Diário de Notícias anunciara haver sidoinstalada no início de Março de 193013. Nesta notícia informa-nos o jornal que estavampresentes o Reitor, os Directores das Faculdades de Letras, de Ciências, de Medicina ede Farmácia assim como os vogais do Conselho Superior de Instrução Pública e doSenado Universitário de Lisboa. O que nos parece interessante sublinhar é que areferida comissão é convocada para a sua instalação no novo edifício do ministério daInstrução mas quem recebe tão grandes figuras da academia lisboeta não é o próprioministro da Instrução mas o seu secretário geral, Monteiro de Barros. A fechar a notíciarefere que no discurso do secretário geral foi sublinhado a competência dos professoresdesta comissão que contribuiria para que se cumprisse a necessidade de ser apresentado“um plano de instalações em tudo digno da Universidade de Lisboa, mas de fácilrealização e dentro das possibilidades do Tesouro”.Se junto das elites lisboetas – académicas mas não só – a ideia da Universidade deLisboa implantada de novo no Campo Grande começava a ganhar mais e mais adeptos,em termos práticos não se assiste, por parte do Governo, a uma defesa pública desta viapara o desenvolvimento da universidade da capital. Gustavo Cordeiro Ramos, ministroda Instrução, numa entrevista dada ao Diário de Notícias a 19 de Abril de 1930, falasobre a instrução nacional. Os temas são abrangentes: do analfabetismo e da instruçãoprimária, ao ensino secundário, passando também pelo ensino superior. Relativamente aeste último, não é feita qualquer referência à dramática situação de algumas faculdadeslisboetas ou à discussão que se vai assistindo à volta da criação de uma CidadeUniversitária nesta cidade (Ramos, 1930a:1). O aparente alheamento governamentalecoa e o problema não surge sequer referido.

7. ‘Projecto’ integral Caeiro da MataApesar do frugal apoio governamental, a comissão instalada em Março não fica parada.Do seu trabalho resulta um “projecto integral de instalação universitária”. Este estudo é

12 ‘A Cidade Universitária de Lisboa…’ (1930), Diário de Notícias, 6 de Fev., 1.13 ‘Novos edifícios universitários’ (1930), Diário de Notícias, 2 Mar., 1.

apresentado durante este mesmo ano de 1930 ao Senado Universitário que, segundoCarneiro Pacheco, deu a sua aprovação completa ao relatório e projecto implícito(Pacheco, 1934:9).Excertos deste documento são publicados pelo Diário de Notícias a 16 de Junho de1930. Quatro dias antes, a 12 do mesmo mês, já uma pequena notícia na primeira páginado jornal deixava antever o encaminhamento do processo14. Referia que já tinha sidoentregue no ministério da Instrução o “ante-projecto”, esclarecendo sobre o conteúdoprogramático do mesmo – faculdades, Reitoria, residências de estudantes e parques deeducação física – e sobre as estimativas de área, 800.000 metros quadrados, e de custoda obra: 150.000 contos.Estes dados correspondem efectivamente aos que constam do relatório e que serãoposteriormente publicados por extenso15. O “projecto integral de instalaçãouniversitária”, que designaremos por “projecto” integral Caeiro da Mata, era umdocumento cuidado em termos programáticos gerais. Como indicações de base diziaobedecer a seis princípios: reunião de todas as faculdades e anexos, considerar “terrenosuficiente” para futuras residências de estudantes e campos de jogos, “construir,segundo modernos princípios arquitectónicos, edifícios apropriados aos seus fins”,localização com fácil acessibilidade e comunicação com “vários pontos da cidade”,preservar das instalações universitárias existentes tudo o que seja possível e “executar oplano dentro de curto espaço de tempo” (Pacheco, 1934:5-6).A comissão apresentara como solução para a localização dos edifícios universitários,como já se disse, os terrenos adjacentes ao Campo Grande. Segundo a comissão estasatisfazia as necessidades de área, assim como as de acessibilidade. Um factor queajudava a esta escolha era o facto de, dos 800.000 metros quadrados consideradosnecessários, 150.000 já pertencerem à Faculdade de Medicina e 38.000 à Faculdade deFarmácia. O facto de pouco mais de vinte por cento já pertencer à Universidade ajudavaa convencer da acessibilidade do preço que poderia custar tal investimento. Por outrolado, o carácter de não-urbanizável que pendia, por herança do plano de 1903 sobre osterrenos a poente do Campo Grande, faria baixar o preço pago aos proprietáriosaquando das expropriações necessárias.O relatório identificava ainda sete grupos de edifícios a construir: Reitoria (comsecretaria geral, salas de festas, de conferências, biblioteca universitária e outras),Faculdades de Letras, de Direito, de Ciências, de Farmácia e de Medicina (com osrespectivos anexos) e, finalmente, o Hospital Escolar para mil cama (Pacheco, 1934:7).No final, ainda era proposto pelo relatório possibilidades de aproveitamento para asinstalações existente na época, numa tentativa de mantê-los sob controlo dauniversidade e de não perder a mais valia que representavam.O relatório é acompanhado por um esboço de implantação e de conformaçãoesquemática dos edifícios referidos, nos terrenos vizinhos ao Jardim do Campo Grande,para uma ocupação que, segundo os autores, previa a duplicação do número de alunos.Esta proposta toma como base o desenho de vias circulares do parque proposto, em1903, por Frederico Ressano Garcia para a zona do Campo Grande e, sobre estaestrutura, são colocadas as intenções programáticas transformadas em manchas deeventual construção no território.Coroando o território surgem as instalações da Reitoria, colocada entre as Faculdades deLetras e de Direito. A separar este núcleo do seguinte encontramos uma via deconsiderável dimensão, vinda da actual Praça de Espanha. Neste segundo núcleo deconstruções, encontramos as Faculdades de Medicina e Farmácia, assim como oObservatório.

14 ‘O Bairro Universitário a construir no Campo Grande’ (1930), Diário de Notícias, 12 Jun., 1.15 Ver ’A Cidade Universitária’ (1930) Diário de Notícias, 16 Jun., 9 e Pacheco, 1934:5-7.

A área residencial e a zona dedicada à educação física encostam ao eixo Avenida daRepublica/Campo Grande. Entre esta fatia e a Faculdades de Medicina e Farmáciaencontramos, de modo fragmentado, os muitos edifício que constituem o HospitalEscolar.

8. Pós-anos 1930, as primeiras acções e âncoras efectivasAté meados de 1930 nada de concreto acontece. Em 1934, o vice-reitor CarneiroPacheco publica um relatório onde a história, o presente e futuro das necessidades e dasrespostas são traçados (Pacheco, 1934). Das referências estrangeiras uma é de ressaltar.Carneiro Pacheco explica a colocação relativa próxima dos edifícios principais quevamos encontrar na proposta de Caeiro da Mata e que o primeiro projecto de PorfírioPardal Monteiro também considerará. Os edifícios da Reitoria, Letras e Direito surgemcomo três corpos distintos mas vizinhos e ligados, em diferentes pisos, por galerias. Agénese de referência mais próxima a esta opção – e cuja planta é apresentada no final dolivro – é a Universidade Livre de Bruxelas, onde ao centro se encontra o EdifícioCentral e lateralmente encontramos a Faculdade de Direito e a Faculdade de Filosofia(Pacheco, 1934: doc. 4). No conjunto desta Universidade, tal como nas propostas dePardal Monteiro, cada um dos corpos organiza-se ao redor de um ou mais pátios.O ano de 1935 será um ano de decisões e de acções, um ano com avanços suficientespara alimentar finalmente todos os optimismos. Será também o ano em que osarquitectos entram em acção nos projectos das instalações da Universidade de Lisboa. Aencomenda é efectuada a Porfírio Pardal Monteiro em Outubro. Os edifícios que lhe sãoencomendados são a Reitoria, as Faculdades de letras e de Direito e as instalações deestudantes16. Num segundo momento esta última deixa de ser da responsabilidade daproposta de Pardal Monteiro. Será mais tarde, já em meados da década de 1950,entregue ao jovem arquitecto M. Norberto Corrêa e será inaugurada, parcialmenteconcretizada, em 1962.O hospital era um programa de enormíssima complexidade, de tal modo que osresponsáveis consideraram aconselhável chamar-se um técnico com provas dadas. Nofinal de 1937, o alemão Hermann Distel é considerado o arquitecto mais adequado paraa tarefa. A presença de uma comissão de representantes portugueses no Congresso daAssociação Internacional dos Hospitais, realizado em Itália em 1935, faz com que ocontacto com o, à altura, presidente da associação, estabelecesse a colaboração futura.Distel virá a ser, como afirma Gentil, o responsável pela “parte arquitectónica” (Gentil,1938).Num sentido completamente oposto à referência de campus inglês existente,encontramos a proposta de Hermann Distel para a implantação e enquadramento urbanodo edifício do Hospital Escolar. Datada de Janeiro de 1939, a proposta do arquitectoalemão designada por Arranjo da zona dos edifícios universitários trabalha aimplantação com um elevado grau de abstracção, que a ausência de referências urbanase preexistências em geral parece indicar17. Os dois eixos de circulação limítrofes, apoente e a nascente, respectivamente a futura Avenida dos Combatentes e o Campo 28de Maio, são os únicos sinais de realidade do lugar contidos na proposta. Para lá desteautismo com o lugar efectivo de projecto, este arranjo demonstra um totaldesconhecimento, ou vontade de não ter em consideração, os planos que a ComissãoAdministrativa para os Novos Edifício Universitários vinha desenvolvendo, nãoapresentando qualquer indício que o relacione com as propostas já existentes. As obras

16 Cf. Carta da Comissão Técnica à CANEU, de 15 de Agosto de 1935, Caneu/Caniu, Processo 100,“Porfírio Pardal Monteiro”, Pasta 1, Ministério da Educação, Divisão de Documentação e do PatrimónioCultural, Arquivo “24 Julho”.17 “Arranjo da Zona dos Edifícios Universitários”, Janeiro de 1939, assinado por Hermann Distel,Arquivo do Gabinete Técnico da Universidade de Lisboa.

do Hospital Escolar serão iniciadas em 1944 e é oficialmente inaugurado a 27 de Abrilde 1953, ainda que a sua abertura ao público só aconteça no ano seguinte.

9. Notas FinaisA análise histórica que propusemos de um quarto de século da vida da Universidade deLisboa e consequente territorialização, resulta de um problema de estudo marcado, numprimeiro momento, pela ausência e protelação sucessiva. Posteriormente, identificámosum somatório de acções dispersas, próprias da instituição ou herdadas, que vãomoldando o caminho da qual a Cidade Universitária de Lisboa resulta.As primeiras heranças indicadoras que se misturam são, por um lado, a propostaressaniana para os terrenos possíveis e, por outro, uma precoce fixação territorialparcial (das Faculdades de Medicina e Farmácia). A proposta de Ressano Garcia surgecom duplo carácter de influência, quer pelo traçado orgânico que o parque propostocontinha e que se adequava a receber implantações de construções, aproximando-a auma eventual cidade universitária do modelo de campus inglês, quer pelo carácter denão-urbanizável que tais terrenos tinham, embaratecendo as futuras expropriações.Neste sentido, igualmente numa procura de baixar o investimento, a propriedade dequase 200.000 m2 ser já de Medicina e Farmácia – próximo de um quarto da áreaconsiderada necessária – indicava que, a fazer-se construção nova, esta deveria ser noterritório a Poente do Campo Grande.O único traço de projecto que alimenta este início é, como já vimos, o desenhoromântico e verde de Ressano Garcia. Tardará até que os técnicos da arquitectura e dourbanismo sejam chamados a agir. Quando isso acontece já a maior parte das decisõesfundacionais foram tomadas. A sua eventual frágil imagem junto, quer das elitesacadémicas, quer da sociedade em geral, protelaram este encontro até ao limite dopossível.Percebe-se neste processo que nem sempre o que acaba por se realizar como construçãoé o factor de modelação mais importante. Muito do que uma vez, parte de uma propostacom sentido variável, acabou por organizar os passos seguintes sem que se efectuasse adigestão do que se ia realizando, cumprindo uma aparente sucessão de fantasmas e deheranças não digeridas. As sucessivas intervenções são enquadradas por ideias que sedissolvem no tempo mas que deixam, sobre o território, marcas de água de invisívelpresença.Destas podemos sublinhar, por um lado, a vontade agregadora de construir de novo emterritório à margem da cidade e, por outro, a proximidade, primeiro num quase-edifícioúnico, depois com uma rua de distância e a mesma assunção formal, dos edifícios daReitoria e Faculdades de Letras e Direito. Esta fixação inicial nestes três edifícios comose de um se tratasse, paralelamente à concretização autista do Hospital, marcaram umabipolarização que o desenho deste território nunca digeriu. A alameda que serviriasimbólica e funcionalmente o coração do território permanece esvaziada de sentido e oconjunto de vias que atravessam a Cidade Universitária de Lisboa massacram-na comvelocidade e funções estrangeiras ao território, fragmentando até ao limite.Os territórios, complexos como já se referiu, vão sofrendo alterações e ocupações quelhes deixam a memória tornada materialidade. Esta materialidade, a que Manuel deLanda chama de exosqueleto da humanidade (2000), define permanência e mudança e,por isso, é necessariamente suporte à fixação da referência e caminho do acontecimentopor acontecer, conformando e organizando acções futuras. Neste jogar permanente como existente, construído ou intuído, instala-se um exercício de justa memória. O passadoterritorial sofre o luto necessário e liberta o presente, libertando o futuro (Ricoeur,2003). Este difícil e, neste caso, incompleto jogo entre as ideias, urbanas e políticas,assim como a compreensão da dimensão da construção de tecido urbano em largaescala, terá hipotecado a possibilidade de realização de um território que, tanto a nível

universitário estrito como a nível mais amplamente simbólico, fosse marca consistente ede referência num território mais alargado de uma cidade capital.

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A Construção da Memória dos Vazios Úteis da Cidade. Conhecer para Divulgar e Divulgar para Revelar.

Paula André - [email protected]

Departamento de Arquitectura e Urbanismo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – ISCTE

Lisboa - Portugal

“A História não é a comemoração do passado, mas antes uma forma de interpretar o presente.”

José Mattoso

“A cidade é feita das relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado”.

Italo Calvino

“O que mais caracteriza a cidade são os seus «vazios», que são aquilo que mais perdura na história da humanidade”. Esses espaços, são apenas “aparentemente vazios”.

Nuno Portas Os espaços das praças são espaços de atracção. Olhar através do espaço de uma praça é caminhar nela, percorrê-la, olhar através do tempo, porque a praça dá conteúdo ao tempo. Segundo Robert Irwin, “ver é o acto inicial de valorizar, e o potencial infinito dos seres humanos para ver e ordenar esteticamente o mundo constitui o único assunto puro da arte”. A praça desenha-se também através do percurso do nosso olhar, que a sublinha e sublima. Por isso, percorrer o espaço com o nosso olhar é um instrumento e um processo estético de conhecimento que se converte em apropriação urbana e esta, por sua vez, num factor de reabilitação do ambiente urbano. Assim, é porque percepcionar visualmente o construído é afrontar antigo e contemporaneidade, confronto que acontece actualmente a nível mundial. Tanto que a questão do património tornou-se mesmo uma nova religiosidade. Não deixa, no entanto, de ser necessário confrontar os modelos teóricos com as necessidades práticas e criar novas formas de entender e de revelar os vazios da cidade – as Praças. A Praça tomada como monumento e documento pode ser um espaço pedagógico e um palco do exercício cívico da memória. Porque a cidade é o nosso presente e é nela que nos movemos, devemos estimular a valorização do espaço público, revelando-o como vazio útil, visto que a sua valorização histórica e artística contribuirá para uma consciência patrimonial com a clara intenção de promover a sua conservação e divulgação.

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O conhecimento histórico é uma forma de apropriação do espaço urbano e a regeneração deste espaço deverá ser um procedimento colectivo e participado, que promova a compreensão das relações entre espaço natural, projectos urbanos e projectos arquitectónicos, assumindo a história como experiência do processo de modificação e confirmando que a arquitectura põe história na natureza e revela o lugar. Propomos assim a realização de exposições que tornem efectivamente público o espaço público, realizadas no próprio espaço público. Exposições que revelem a natureza do lugar. Escolhemos dois vazios urbanos e a sua história como palcos privilegiados de uma nova utilidade: a Praça XV de Novembro no Rio de Janeiro e a Praça do Comércio em Lisboa. Será também nosso objectivo salientar os fundamentos da matriz da linha recta que se revelará numa estética arquitectónica e urbana em ambos os contextos. A Praça XV de Novembro no Rio de Janeiro e a Praça do Comércio em Lisboa revelam-se um marco do tempo, noutro tempo, garantindo-lhes a ligação entre um tempo quotidiano e um tempo histórico, sendo essa a sua modernidade. A análise e a percepção dos contextos que determinaram as sucessivas metamorfoses espaciais e arquitectónicas destes dois vazios revelam o espaço como lugar, isto é, como mundo construído. A revelação pública do longo processo de formação dos espaços das praças promoverá um maior enraizamento territorial entre os habitantes/espectadores e os elementos do lugar, e uma consciencialização do seu papel no crescimento da cidade, que garantirá a sua preservação e perpetuação, porque o conhecimento estabelece laços de identidade com o próprio espaço. As exposições devem usar como suporte e forma de percepção física e artística do espaço, a própria cidade. Por isso, concordamos com Henri Lefebvre, quando assinalou que os monumentos são experiências que se vivem fisicamente e também com Aldo Rossi, quando sugeriu que a arquitectura é simultaneamente um lugar, um acontecimento e um símbolo. Estas exposições devem forjar novas formas de apresentar, desvendar, revelar e dar a ver o projecto e a construção do espaço público, indo para além da relação e do uso funcional quotidianos, através da percepção de novas dimensões, recuperando o sentido de descoberta da cidade. Devem também recuperar o valor simbólico da praça, usando como palco esse espaço cenográfico, tornado teatro do tempo, dentro da linha de pensamento de Jean Baudrillard e de Robert Venturi, quando assinalam que a contemporaneidade prefere a simulação à realidade. A representação do espaço no próprio espaço como forma de ver/ler o que já lá está. Torna-se por isso necessário conhecer um pouco da história e da evolução destas duas praças, uma vez que esse conhecimento produzirá conteúdos para as propostas que aqui apresentaremos. A Praça XV de Novembro nasce na várzea de Nossa Senhora do Ó, no século XVI, então totalmente aberta à baía, e configurando-se hoje “fechada” ao rio, com a construção na segunda metade do séc. XX, de uma avenida perímetral elevada. Este grande vazio da cidade do Rio de Janeiro foi palco de construções que o foram (en)formando, construções essas que ao longo do tempo, sofreram metamorfoses quer formais quer funcionais - igreja, convento, casa da moeda, armazéns do rei, paço real, casas da família Teles de Meneses, chafarizes, cais, mercado, estátua, jardim, entre outras.

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A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro fundada entre o Morro “Cara de Cão” e o Pão de Açúcar, transfere-se, após a derrota dos Franceses em 1567, para o alto de uma colina, o morro do Castelo. Contudo, ainda no séc. XVI, inicia-se a ocupação da praia que antecipa a ocupação da várzea1, onde se encontrava a ermida de Nossa Senhora do Ó, equipamento religioso que se revelaria um forte motor do desenvolvimento urbano. Para esse desenvolvimento contribuiu igualmente a descida para a várzea o cabido da Sé, do hospital da Irmandade da Misericórdia, para além da instalação de outros edifícios religiosos, como a ermida de Nossa Senhora da Ajuda e das Igrejas de S. José e da Cruz, e a instalação do porto dos padres da Companhia de Jesus na Praia de D. Manuel. Este equipamento foi de extrema importância para os Jesuítas, uma vez que a Companhia de Jesus possuía inúmeros engenhos de cana-de-açúcar na região, ao norte deste novo núcleo urbano. A ligação entre o porto e os engenhos funcionou como foco direccional de desenvolvimento para o interior, à semelhança da definição de caminhos da cidade grega. A cidade do Rio Janeiro viu o seu desenvolvimento urbano ser feito como síntese do modelo grego e romano. Perceptível, por um lado, na relação entre o nível do morro (acrópole) e o nível da várzea (ástu) e a ligação desta com os engenhos (chôra), formando caminhos. Por outro lado, com a ordenação regular da várzea, a Praça XV torna-se num espaço entre a ágora e o forum. Seria aliás essa diferença física entre o pequeno plateau do morro e a vasta área da várzea que iria permitir, após secagem dos terrenos uma vez que esta zona era alagadiça e pantanosa, praticar o matricial traçado regular português, passando-se da paisagem ao objecto cultural. Se na história do saber, como adverte Michel Foucault, o monumento antecipa-se ao documento, no urbanismo português a prática antecipa-se à escrita. Entre o morro do Castelo e o morro de Manuel de Brito, ao longo da praia2, foram desenhadas as linhas estruturantes do desenvolvimento urbano, traduzidas no caminho Manuel de Brito, futura Rua Direita (actual Rua Primeiro de Março), e Rua da Misericórdia, uma na continuidade da outra, as quais se encontravam no terreiro da Ermida de Nossa Senhora do Ó, hoje Praça XV de Novembro. Segundo Maurício Abreu era “desse eixo inicial, que por algum tempo foi também conhecido como Rua do Conselho defronte do mar, que partiram, no último quartel do séc. XVI, os primeiros tentáculos em direcção a retroterra embrejada. Como eram ortogonais a um litoral curvilíneo, que alguns documentos denominam, por isso mesmo, de praia arqueada, essas travessas acabaram formando eixos não perfeitamente paralelos, que se abriam levemente em direcção ao interior. A mais antiga delas, então chamado caminho de Capueruçu, ocupou, ao que tudo indica, uma antiga trilha indígena

1 ÁLVAREZ, José Maurício Saldanha – “Muita gente junta na Praça”. Traçados urbanos e arquitecturas no Rio de Janeiro Colonial. 1565-1713. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2000. Tese de Doutoramento. p. 128. 2 “Inicialmente chamada apenas de «praia desta cidade» ou de «praia de Nossa Senhora», a linha de costa seria arruada pela Câmara em 1587, o que fez com que passasse a ser chamada de «rua pública que vai ao longo da praia», denominação que se transformaria, em 1593, em «rua direita que vai da Misericórdia ao longo da praia para a Senhora do Ó», e evoluiria depois para «rua direita da praia» ou, simplesmente, «rua Direita», e desde 1870 Rua Primeiro de Março”, in, ABREU, Mauricio de Almeida – Reencontrando a Antiga Cidade de São Sebastião: Mapas conjecturais do Rio de Janeiro do Século XVI. Cidades: Revista Científica / Grupo de Estudos Urbanos. São Paulo: Grupo de Estudos Urbanos, 2005. vol.2, nº4, p. 210.

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que percorria os terrenos secos da várzea; é a actual Rua da Alfândega”3, e que ligava a cidade aos engenhos de cana-de-açúcar que os jesuítas possuíam ao norte da cidade4. As primeiras construções “faziam-se ao longo deste caminho ou ao longo de pequenos troços de ruas que se iam abrindo perpendicularmente a ele”5. Quando se alinhavam as ruas já existiam construções, uma vez que as indicações para a sua delimitação são dadas através da menção dos proprietários dessas construções e, por outro lado, há uma constante preocupação com o respectivo alinhamento, na medida em que o desalinhamento era motivo suficiente para derrubar construções que obstruíssem a regularidade que se desejava imprimir ao conjunto, o que evidencia um entendimento cenográfico do espaço. Desde o início que a ocupação da várzea se faz de acordo com um conceito de regularidade fazendo nascer uma malha ortogonal que levaria José de Figueiredo Seixas a mencionar o Rio de Janeiro como a única cidade edificada de modo regular no seu Tratado da ruação para emenda das ruas das cidades, vilas e lugares, deste Reino (segunda metade do séc. XVIII). Afirma: “quanto a mim só me ocorre que se edificasse a cidade do Rio de Janeyro, e por isso se acha com os seus arruamentos, edeficios, e praças sufficientemente regulares”6. Rafael Moreira, a propósito do título do tratado de Figueiredo Seixas refere que encontra o termo ruação pela primeira vez num documento de 1616 relacionando-o, com o traçado dos arruamentos da cidade de São Luís do Maranhão. Menciona ainda o Diccionario da Língua Portugueza de Bernardo de Lima e Melo Bacellar, publicado em 1783, onde arruar significa fazer rua direita. Mas Rafael Moreira diz ainda que Seixas, ao escolher esse termo para título do seu tratado, “arvorara em programa uma velhisssima tradição, enunciando as origens e influências culturais da sua arte”7. Em Portugal encontramos essa tradição de regularidade já no reinado de D. Dinis, como chamou a atenção Hélder Carita na sua obra Lisboa manuelina e formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495-1521), com a regularização e aumento da Rua Nova em 1294, derrubando-se casas “para que a rua fique de 8 braças”, e, em 1295, com a abertura da Rua dos Ferreiros e aumento do Largo dos Açouges, derrubando-se também casas, “para a honra da villa e para aproveitamento da terra”. Procedimentos por razões de uniformidade, de estética e por questões funcionais, “medindo-se por cordas a largura e cumprimento”8, ou seja, usando-se a prática de cordear.

3 ABREU, Mauricio de Almeida – Reencontrando a Antiga Cidade de São Sebastião: Mapas conjecturais do Rio de Janeiro do Século XVI. Cidades: Revista Científica / Grupo de Estudos Urbanos. São Paulo: Grupo de Estudos Urbanos, 2005. vol.2, nº4, p. 210. 4 PINHEIRO, Augusto Ivan de Freitas – Praça XV: quatro séculos de transformações. In CAVALCANTI, Lauro ed. lit. – Paço Imperial. Rio de Janeiro: Paço Imperial / MinC IPHAN, 2005. p. 52. 5 TEIXEIRA, Manuel; VALLA, Margarida – O urbanismo português, Séculos XIII-XVIII Portugal-Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999. p. 228. 6 SEIXAS, José de Figueiredo – Tratado da ruação para emenda das ruas das cidades, vilas e lugares, deste Reino. Manuscrito. BNL. f.7. 7 MOREIRA, Rafael – Uma utopia urbanística pombalina: o «Tratado da Ruação» de José de Figueiredo Seixas. In SANTOS, Maria Helena Carvalho dos ed. lit. – Pombal Revisitado. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. vol.II, p.141. 8 VIEIRA da SILVA, Augusto – As muralhas da Ribeira de Lisboa. Lisboa: CML, 1987. vol. 1. p. 115,116.

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A Praça XV de Novembro, de início com limites indefinidos, mas que poderíamos balizar entre a ermida de São José e a Casa da Câmara e Cadeia (a sul) e a igreja da Cruz (a norte), deve a sua conformação espacial a sucessivos aterros que permitiram a construção de edifícios, possibilitando diferentes utilizações e das quais advêm as respectivas designações: Várzea de Nossa Senhora do Ó, Praia do Carmo (1619), Terreiro da Polé (1630), Praça do Carmo (1745), Terreiro do Paço (1808), Praça Dom Pedro II (1870), Praça XV de Novembro (1889). Esta Praça caracterizou-se pela sua abertura e ligação à baía, abertura essa mantida, pela presença de uma ordem mendicante nesse centro ribeirinho. Em 1580-90, os Carmelitas ocuparam a ermida de Nossa Senhora do Ó, anteriormente ocupada pelos Beneditinos, e em 1607, lançaram os alicerces do seu convento, ao lado da antiga ermida, estando acabada a capela-mor em 1616. Os Carmelitas, na medida em que se apropriaram desse vazio da cidade, configuraram-no9, o que significa que a ermida (beneditinos /carmelitas) e o convento (carmelitas) foram motores de desenvolvimento urbano e definidores da forma urbana. A transposição de elementos da simbologia do sagrado para os espaços seleccionados criteriosamente auxilia no entendimento e análise da participação das ordens religiosas na apropriação e configuração do espaço urbano e particularmente do vazio urbano, nomeadamente através da imagem e da persuasão, de acordo com a “Congregatio de

Propaganda Fide”, criada pelo Papa Gregório XV, em 1622. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1719) recomendavam que nas vilas já ocupadas as igrejas se instalassem onde fosse possível passar uma procissão e permitiam que o adro fosse refúgio de foragidos, o que significava um espaço com jurisdição autónoma, uma pequena praça dentro da praça pública. Por outro lado, o facto do convento carmelita não possuir claustro volta-o claramente para o exterior, sublinhando, eventualmente, essa urbanidade, acentuando a sua relação com a praça, e afirmando a sua presença. Na sequência da bula Quae Honorem Conditoris de 1247 o Papa Inocêncio IV promulga o novo texto da ordem “libertando-a da stabilitas loci, isto é, da obrigatoriedade de residir em comunidade em lugares isolados ou distantes do centro povoado”10. Essa bula de certa forma reconhece a “nova espiritualidade” que as ordens mendicantes vinham desenvolvendo. O desejo de se inserirem nos centros urbanos estava relacionado com as funções de predicação, mas também com o número de potenciais fiéis, que se traduziria na recolha de esmolas de modo a permitir aos frades a manutenção da sua fábrica. Os carmelitas tiveram que lutar para manter o seu poder, que se traduzia na permanência do vazio na frente da sua capela e convento. Este espaço fronteiro ao convento do Carmo correu o risco de desaparecer em 1683, uma vez que foi repartido e aforado entre os parentes dos oficiais da Câmara. Segundo José Maurício Álvarez, citando o Livro de Tombo do Convento do Carmo, os carmelitas apresentaram razões

9 A implantação e o domínio das ordens religiosas são traduzidos em conformações espaciais urbanas, chegando mesmo a “abrir ruas em troca de terras”, in, FRIDMAN, Fania; MACEDO, Valter L. – A ordem urbana religiosa no Rio de Janeiro colonial. [em linha] <www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie2.pdf>, p.5. 10 VASCONCELOS e SOUSA, Bernardo ed. lit. – Ordens Religiosas em Portugal. Das Origens a Trento – Guia Histórico. Lisboa: Livros Horizonte, 2005. p. 405.

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bastante fortes para não deixar construir em frente ao convento: “mandara a Câmara que comprasse uns chãos que estão junto ao Rossio que serve de praça a dita cidade e fica defronte ao convento dos ditos religiosos, para que se não pudesse ali fazer casas assim por ser a única praça daquela cidade, como por se desembarcar ali ordinariamente com mais cômodo, e também por ser de prejuízo ao dito convento porque fazendo-se casas se tira a vista aos religiosos e os devassam em sua clausura”11. Contudo, foram construídos os armazéns a Fazenda Real e a Casa da Moeda, ocupando uma parcela do rocio e encobrindo parcialmente a fachada do convento do Carmo12. Seria sobre parte dos Armazéns da Fazenda Real e da Casa da Moeda, que formavam o lado sul da praça, que o provedor da Fazenda Real Bartolomeu Cordovil e Mello receberia, em 173013, permissão do rei para construir “acomodações para sua residência”14. No mesmo conjunto o governador Gomes Freire de Andrade em 1743 mandaria construir a nova residência dos Governadores, com projecto executado pelo engenheiro militar José Fernandes Pinto Alpoim, que lhe acrescentou um andar. A fachada principal ficava voltada para a baía e a lateral para a praça15. A partir de 1763, torna-se residência dos vice-reis, fruto da transferência da sede do governo-geral da Bahia para o Rio de Janeiro. Segundo palavras de Lord J. Byron, aquando da sua visita ao Rio de Janeiro em 1764, seria o único edifício da cidade com janelas de vidro, contando as demais casas com pequenas gelosias. Do outro lado da praça, do lado norte, foram construídas casas (c. de 1743) pelo Dr. Francisco Barreto Teles de Meneses, com projecto atribuído igualmente ao engenheiro militar José Fernandes Pinto Alpoim, de modo a “regular a simetria da praça militar forense da cidade”16. Essa construção era formada por um conjunto de três edifícios iguais e contínuos, que regularizavam a praça, passando o seu espaço a ficar mais definido, só se estendendo para a baía, fruto da construção de aterros que iam ganhando espaço sobre a baía. A partir de 1761-63, a capela dos frades carmelitas foi reconstruída e, ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, foi erigida a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, com projecto do irmão Francisco Xavier Vaz de

11 ÁLVAREZ, José Maurício Saldanha – “Muita gente junta na Praça”. Traçados urbanos e arquitecturas no Rio de Janeiro Colonial. 1565-1713. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2000. Tese de Doutoramento. p. 284. 12 Nireu Cavalcanti considera que teria sido a Fazenda Real a construir os seus Armazéns, in, CAVALCANTI, Nireu – Campo, Rocio, Largo, Praça, Passeio: espaços públicos na cidade do rio de Janeiro colonial. In – Colóquio Internacional – Praças Reais, Passado, Presente e Futuro. Lisboa: UAL, 2006, [p.15]; no entanto, de acordo com Gilberto Ferrez teriam sido os próprios carmelitas a construír “uma casa em frente ao seu convento onde se instalaria a Casa da Moeda, transferida da Bahia em 1699 e por detrás destas e olhando para a praia ficavam os Armazéns do Rei”, in, FERREZ, Gilberto – O que ensinam os antigos mapas e estampas do Rio de Janeiro. Separata da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 268, Julho-Setembro, 1965. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1966. p. 27-42. 13 A ordem régia de 27 de Novembro de 1730 que autorizava a construção proibia o uso da denominação de Palácio. 14 Deferido o pedido, o provedor realizou uma obra “com tanta grandeza e exorbitância de despesas que o procurador da Coroa e Fazenda Sebastião Dias da Silva e Caldas, em 1739, denunciou-a ao rei”, in, CAVALCANTI, Nireu – O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até à chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004. p. 357. 15 Usaram-se pela primeira vez no Rio de Janeiro vergas curvas nos vãos das janelas, adquirindo traços de uma residência senhorial portuguesa. 16 CORACY, Vivaldo – Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: José Olympo, 1965.

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Carvalho, sendo a única igreja colonial do Rio de Janeiro cuja frontaria era “totalmente revestida em pedra”17. A presença desta nova igreja iria acentuar a imagem do estatuto sacro no lado ocidental da praça. Em 1750 para pontuar esse espaço, e também para responder aos pedidos dos vereadores do Senado da Câmara, o governador Gomes Freire de Andrade manda erguer no centro da praça, um chafariz, de pedra de liós, “em forma de taça e pirâmide”18, construído em Lisboa, projecto do engenheiro Carlos Mardel. O chafariz era abastecido por um cano que vinha do chafariz do Largo do Carioca19, passando pela actual Rua 7 de Setembro, esclarecendo a origem da antiga denominação de Rua do Cano. O espaço da praça, ficaria conformado a ocidente com o convento e as igrejas, a sul com a residência dos vice-reis, a norte com as casas Teles de Meneses, a oriente com o cais de desembarque na baía e, a pontuá-la, o chafariz de Mardel. Em 1789 o vice-rei, capitão-general Luis de Vasconcelos e Souza, substituiria o primitivo chafariz circular, por este se encontrar em mau estado e porque a sua colocação no centro da praça impedia as paradas militares. Seria então construído outro, o actual, da autoria de Valentim da Fonseca e Silva. Tinha a base quadrada e estava colocado à beira de um novo cais, obra do engenheiro Jean Jacques Funck. Este novo cais era todo em pedra lavrada e com peitoris, três escadas para o mar e uma rampa de embarque, além de torneiras para a aguada das embarcações. O cais seria remodelado sob D. João VI (com a chegada da corte portuguesa), em novos aterros – até o de 1902, obra da prefeitura na administração de Xavier da Silveira, sendo sobre ele que se construiu a Estação das Barcas cujas embarcações ligam Rio, Niterói e Paquetá. Estes sucessivos aterros mostram o espaço que foi sendo conquistado à baía, e que serviria de plataforma para futuras construções e conformações do espaço. Luis de Vasconcelos e Souza, depois de mandar calcetar a Praça do Carmo, igualmente para facilitar as paradas militares, deu ordem, em 1789, para que as barracas de peixe fossem reedificadas com regularidade e simetria20. Essa preocupação com a regularidade esteve sempre presente no traçado da cidade quer no alto da colina (embora obviamente com as limitações que a própria natureza do terreno impunha) quer na parte baixa. As ruas e as construções em redor da Praça do Carmo mereciam uma atenção maior, determinando as correcções que os moradores “que tiverem (casas) na Rua Direita da Praça mandem fazer as ditas calçadas debaixo da mesma pena os três meses, e nos remates de cada uma será com pedra grossa, que se não desmanche”21.

17 GUIA da arquitectura colonial neoclássica e romântica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000. p. 15. 18 SANTOS, Afonso Carlos Marques dos – O Paço da cidade: biografia de um monumento. In CAVALCANTI, Lauro ed. lit. – Paço Imperial. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999. p. 52-117. 19 O primeiro da cidade, também traça de Carlos Mardel, cuja localização era na época considerada quase nos arrabaldes. 20 Em 1636 decidiu a Câmara que os pescadores venderiam suas mercadorias no trecho compreendido entre a Paria de Nossa Senhora do Carmo e a Rua da Alfândega, ficando este lugar conhecido como Praia do Peixe. Foram instaladas barracas de madeira, cobertas de telha, onde se vendia o pescado, mas construídas sem ordem nem simetria. 21 ÁLVAREZ, José Maurício Saldanha – “Muita gente junta na Praça”. Traçados urbanos e arquitecturas no Rio de Janeiro Colonial. 1565-1713. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2000. Tese de Doutoramento. p. 120.

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A estética da linha recta revela-se uma matriz fruto não só do desejo, mas também da regra e, mais interessante, da prática. E é exactamente porque existe essa matriz fundamentada numa prática que o fazer urbano é competência dos engenheiros militares, uma competência erudita e pragmática e que se revelaria programática. Com a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808, esta cidade ganharia o estatuto de capital portuguesa e a Praça do Carmo sofreria uma série de transformações que a tornariam em Terreiro do Paço. A antiga residência dos vice-reis será remodelada de modo a poder cumprir as funções de Paço Real, servindo de aposento para o rei e depois para o imperador, nomeadamente com a construção de um torreão na fachada principal em 1817, que lhe dará um aspecto palaciano. Seria igualmente reformado o convento dos frades Carmelitas22. No convento inicialmente de dois pisos, mas ao qual já antes de 1808 tinha sido adicionado um terceiro piso, foi construído um passadiço sobre a Rua Direita, de modo a permitir a ligação directa ao Paço23. D. João VI usou este espaço conventual para alojar a sua mãe, a Raínha D. Maria I, e aí instalar o Real Gabinete de Física, a Real Ucharia, e a Real Biblioteca, embrião da Biblioteca Nacional. A chegada da família real incentiva a construção e provoca um crescimento da cidade que via o seu espaço expandir-se, mantendo-se a preocupação com a regularidade e o estabelecimento de praças. Em 1810, ordenava-se ao Senado da Câmara que “as novas ruas abertas na cidade fossem mais largas, (…) para nelas se edificarem edifícios regulares, e de uma só e igual simetria para cada uma das ruas novas, deixando-se no arruamento, que se projectar, algumas praças, o que não só embeleza a Cidade, mas contribui muito para a saúde da população”24. Se em 1816 o Senado da Câmara denunciava erros no projecto de alinhamento das ruas e regularidade dos edifícios, António Alves de Araújo na sua obra Reflexões sobre a edificação de novas casas na cidade do Rio de Janeiro (1817), para solucionar a questão da não uniformidade, sugere “o estabelecimento de um padrão para as construções, apresentando um plano de edificação: este plano deverá estabelecer o prospecto exterior dos edifícios, a sua altura, a sua fortaleza (...) deverá determinar a largura das novas ruas que se abrirem, e marcar a sua direcção”, sendo a justificativa desse plano a “comparação a Lisboa e aos demais reinos europeus: Lisboa, é testemunha do quanto podem adequadas providências”25.

22 “Os frades Carmelitas são transferidos para o Hospício dos Barbadinhos e estes para as casas anexas à Igreja de Nossa Senhora da Glória”, in, CAVALCANTI, Nireu - O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até à chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004. p. 332. 23 Alguns fidalgos membros da comitiva usaram a “lei das aposentadorias”, só abolida em 1818, que lhes dava direito a requisitar casa, sendo o proprietário obrigado a sair da residência escolhida. Outros alojaram-se no mosteiro de São Bento e no consistório da igreja do Rosário. 24 CARVALHO, Marieta Pinheiro de – Uma Idéia de Cidade Ilustrada. As Transformações Urbanas da Nova Corte Portuguesa (1808-1821). Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2003. Tese de Mestrado. p. 113. 25 CARVALHO, Marieta Pinheiro de – Uma Idéia de Cidade Ilustrada. As Transformações Urbanas da Nova Corte Portuguesa (1808-1821). Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2003. Tese de Mestrado. p. 68-70.

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A crescente regularidade que a Praça XV de Novembro foi ganhando, começa em finais do século XIX a ser perturbada com uma série de modificações e ampliações. O “porto antigo, em frente ao Paço, devido à presença desagradável aos olhos da realeza do embarque e desembarque de mercadorias e escravos, foi transferindo gradativa, mas definitivamente, suas funções para as imediações dos morros de São Bento, da Saúde e de Gamboa”26. Paralelamente, no lado norte, para substituir as barracas de peixe que se encontravam próximas do Paço Imperial, e incomodando pela algazarra que provocavam, ergue-se em 1835 o Mercado da Candelária, com projecto do arquitecto Auguste-Henry Victor Grandjean Montigny, sendo que o segundo piso, só foi edificado em 1869. Em 1870-71 são construídos dois pavilhões entre a Praça do Mercado e o mar e entre a área do antigo Trapiche Maxwell e a face norte da Doca. Depois de uma série de incêndios a Prefeitura decide construir em 1907 o novo Mercado Municipal na Praia D. Manuel, que acabaria demolido depois da construção da Avenida Perímetral elevada, dele restando apenas um torreão. No local do mercado velho viria a ser edificada, nos anos 60 do século XX, o edifício da Bolsa de Valores. A partir de 1890, o Paço foi ocupado pela Repartição dos Correios e Telégrafos. Cerca de trinta anos depois, o edifício sofrerá uma profunda reforma e ao “tentar recuperar a sua feição colonial, foi descaracterizado, produzindo um pastiche daquilo que nunca fora. Introduziram equívocos como o que foi notado por José Wasth Rodrigues ao comentar que foram pintados os cunhais e as ombreiras das janelas numa imitação de granito, apesar de serem eles em (...) granito e foi então levantado um frontão de igreja no corpo central, pregando-se na fachada uma chapa de bronze onde se lê entre outras coisas: fez-se a reforma deste edifício restituindo-se o primitivo estilo, MCMXXIX”27. A grande transformação do convento dos Carmelitas, senão mesmo devastação, dá-se em 1905, quando as antigas celas, a antiga escada do convento e o telhado são demolidos e a fachada do período colonial é substituída por outra de gosto eclético, de modo a permitir a libertação do espaço para a biblioteca, o arquivo e o museu do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Em 1960 o edifício foi tombado e restaurado, recuperando então o aspecto colonial. Finalmente a descaracterização definitiva do antigo espaço conventual é dada quando se instala no pátio do antigo convento, o arranha-céus envidraçado da Faculdade Cândido Mendes. E é precisamente por acontecer essa descaracterização que se torna necessário fazer uma regeneração do espaço da Praça XV de Novembro, que entendemos dever começar pela procura dos fundamentos que deram origem, como vimos, às diferentes geografias do sagrado e do profano e às estéticas da linha recta. Mas também pela premissa da comparação com a Praça do Comércio de Lisboa, em sintonia com a relação estabelecida pelo historiador Robert Smith, no artigo Urbanismo colonial no Brasil, ao referir que a configuração espacial do Largo (Praça XV de Novembro) tinha sido feita à semelhança do “grandioso Terreiro do Paço de Lisboa, expressão simbólica suprema no urbanismo tradicional europeu do domínio marítimo de uma grande nação”28.

26 PINHEIRO, Augusto Ivan de Freitas – Praça XV: quatro séculos de transformações. In CAVALCANTI, Lauro ed. lit. – Paço Imperial. Rio de Janeiro: Paço Imperial / MinC IPHAN, 2005. p. 61. 27 SANTOS, Afonso Carlos Marques dos – O Paço da cidade: biografia de um monumento. In CAVALCANTI, Lauro ed. lit. - Paço Imperial. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999. p. 52-117. 28 SMITH, Robert C. – Urbanismo colonial no Brasil. Arquitectura. Rio de Janeiro: Instituto de Arquitectos do Brasil, 1967, nº55, p. 19.

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Na realidade, a evolução espácio-temporal de ambas as praças comprova que se enquadram no conceito de praça como pólo estruturador do espaço, e de praça como palco do exercício de síntese de um modo de pensar e construir, que se converte em tradição portuguesa de desenho urbano. Construção de excepção pela sua origem, dimensão e traço, também a Praça do Comércio de Lisboa mostrou, ao longo dos tempos, ser exemplar na encenação da imagem do poder num espaço público. Espaço de referência que se manteve irrepetível. O seu carácter único garantiu-lhe a natureza, a qualidade e a permanência do objecto de arte. A Praça do Comércio tem uma espacialidade permanente que promove a descodificação da representação perspéctica, procurando entender a maneira de representar, de expressar e de apresentar o espaço. Os arquitectos/engenheiros militares do Reino desenharam-na à maneira dos arquitectos cenógrafos, podendo ser olhada como um desenho arquitectónico para uma perspectiva de cena. Quando percorremos a praça, vemos esse espaço como a scaenae froms dos teatros romanos e quando estamos no seu centro, lugar da skene e da orkestra, somos simultaneamente actores e espectadores. O modo particular de articular espaço fechado e espaço aberto, abrindo um dos lados da praça ao rio, sugere, simultaneamente, que se olhe a praça como espectador e que se use a praça como actor. A Praça recupera, mimetisa e amplia29 a forma que esse espaço foi cenograficamente assumindo desde que D. Manuel I decidiu descer da Alcáçova, iniciar novos aterros na ribeira e construir o Paço sobre a casa da Índia, Mina e Guiné30. O terreiro antes esteiro, praia e ribeira tomou então a designação de Terreiro do Paço, gerando um palco privilegiado da cidade e da sua imagem. A Lisboa conquistada por D. Afonso Henriques era constituída pelo conjunto amuralhado (Cerca Moura) e pelos bairros extramuros. Ao conceder-lhe foral em 1179, o monarca classificou-a, como refere Marcelo Caetano, “uma povoação acastelada no centro de uma região agrícola”. No reinado de D. Dinis, na sequência da expansão da cidade, executam-se os primeiros aterros na zona do esteiro, de modo a permitir a

29 “O aterro construído por D. Manuel, (...) pouco passava além da parte central da moderna praça do Comércio, onde está o monumento (...); um autor de meados do séc. XVI descreve assim a praça: «... hum grande recio, que tem de comprido seiscentos e vinte passos, e de largo duzentos e dez, que da parte contra o Oriente bate o mar nelle, e do Occidente, e Norte he cercado de grandes e altos edeficios, todos numa mesma ordem, que são a caza de Cepta, a caza da India, os Paços onde os Reys vivem”, in, SILVA, A. Vieira da – As Muralhas da Ribeira de Lisboa. Lisboa: CML, 1987. vol. 2. p. 133. “Os limites do Terreiro do Paço manuelino notam-se ainda hoje, no ponto de inflexão que se regista na Praça do Comércio pombalina, que prolongou o velho terreiro em cerca de um terço na direcção do rio, mediante um novo aterro”, in, CAETANO, Carlos – A Ribeira de Lisboa. Na época da Expansão Portuguesa (Séculos XV a XVIII). Lisboa: Pandora, 2004. p. 134. 30 “E porque o aposento d’ElRey era nos paços do castello de Lisboa, e folgaua de ser presente, e hia, e vinha cada dia estar nas casas dos almazens, entendeo em mandar fazer casas pera seu aposento nos mesmos almazens, em que se fizerão nobres paços, e debaixo delles grandes casas pera recolhimento e feitoria das mercadorias da India e Mina; e que depois polo tempo se fez em muyta perfeição, como oje em dia parece”, in, CORREIA, Gaspar – Lendas da Índia. Porto: Lello & Irmão – editores, 1975. Vol. I, p. 529. Damião de Góis refere igualmente que D. Manuel I “fez de nouo has casas da contractaçam de Guiné, & India, debaixo do apposento destes paços da ribeira”, in, GÓIS, Damião – Crónica de D. Manuel. Coimbra, 1926. Parte IV, p. 205.

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construção das Tercenas Reais. D. Dinis constrói ainda a segunda muralha da cidade, a primeira da ribeira, com o intuito de proteger os novos núcleos que entretanto se expandiram, como o da Baixa31 (a ocidente) e o de Alfama (a oriente). No reinado de D. Fernando, em 1373, é construída uma nova muralha, mais próxima do rio32. No século XV, será nesta nova ribeira que se irá desenvolver todo um conjunto de equipamentos relacionados com expansão ultramarina: a Casa de Ceuta33 a partir de 1434, e a Casa dos Escravos em 1486. A norte, existia um outro grande vazio, onde se realizavam feiras, o Rossio de Lisboa34 - Rossio ou Ressio que segundo Luis de Vasconcelos, na sua obra Etnografia Portuguesa, tem origem no adjectivo latino resíduus, que significa «remanescente». Rossio que passaria a ficar ligado à zona da Ribeira quando D. Manuel I prolonga a Rua Nova d’El Rei, para o que foi necessário demolir construções para que ficasse alinhada. A gravura de Lisboa Olissipo quae nunc..., que G. Braunio publicou no Urbium Praeciparum Mundi Theatrum Quintum, em 1598, exibe esses dois grandes vazios da cidade de Lisboa, a Ribeira e o Rossio, que foram sempre pólos estruturadores do desenvolvimento urbano, palcos preferenciais dos diferentes tempos, mantendo essa identidade no plano pombalino. Elemento definidor do vazio da ribeira foi o Paço de D. Manuel I, a cuja construção faz referência o relatório do veneziano Lunardo da Cà Masser, datado de 1504, ao mencionar: “o palácio recentemente fabricado, ainda não está concluído; não é obra de grande despesa, é uma fábrica com pouco desenho e pobre”35. Em 1508, D. Manuel I encarrega o arquitecto/engenheiro Diogo de Arruda de desenhar e dirigir a construção de um baluarte, que avança sobre o rio36. Já sob empreitada de João Dias, em 1510-11, seria construída uma ponte de dois andares a ligar o baluarte ao Paço/Casa da Mina, que

31 A zona da Baixa resultou de sucessivos assoreamentos do vale formado pela foz de duas ribeiras: Vale do Pereiro (actual Avenida da Liberdade) e Arroios (actual Avenida Almirante Reis), que ali se juntavam ao esteiro do Tejo. 32 “Quando D. Diniz construiu a sua muralha na Ribeira, era a rua Nova uma praia ou um aterro de formação recente, que tiveram de alargar contra o rio para a fundação do muro. Mais tarde, já no aterro que pouco a pouco se havia conquistado ao Tejo, poude D. Fernando fundar a sua muralha, à frente da de D. Diniz, contra o mar.”, in, SILVA, A. Vieira da – As Muralhas da Ribeira de Lisboa. Lisboa: CML, 1987. vol. 2, p. 129. 33 Depois Casa da Guiné e, a partir de 1482, Casa da Mina. 34 “Com origem provável na «mussara» muçulmana, o Rossio de Lisboa terá sido sempre um espaço amplo e aberto, mas não necessáriamente urbano, ou seja, era antes um espaço de intercâmbio entre o urbano e o rural. A cerca fernandina absorveu-o todo para dentro da cidade e esta encarregou-se de mantê-lo amplo, fazendo-o espaço de feira, no que também mantinha um certo vínculo rural”, in, ARAÚJO, Renata de – Lisboa a cidade e o espectáculo na época dos descobrimentos. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p. 62. “Nesta praça, há que notar um espaço coberto, junto ao Hospital, no qual se faz grande comércio de vender tecidos, calças, chapins, sapatos e coisas deste tipo em grande quantidade”, in, BOUZA ÁLVAREZ, Fernando ed. lit. – Cartas para Duas infantas Meninas – Portugal na Correspondência de D. Filipe I para as suas filhas (1581-1583). Lisboa: Publicações D. Quixote, 1998. p. 82. 35 GODINHO, Vitorino Magalhães – Portugal no começo do século XVI: instituições e economia. O relatório do veneziano Lunardo da Cà Masser. Revista de História Económica e Social. Lisboa: Sá da Costa editora, nº 4, Julho-Dezembro, 1979. p. 77. 36 Segundo Rafael Moreira o baluarte terá desaparecido em meados do séc. XVI, referindo que não “aparece na segunda vista de Lisboa gravada por Bráunio, nem na de 1575 desenhada por Simão de Miranda. Em 1571 Francisco de Holanda já defendia a sua reconstrução, na Lembrãça de hu Bastião forte

õde foy o baluarte sobre o Mar”, in, MOREIRA, Rafael – O Torreão do Paço da Ribeira. O Mundo da Arte. Separata do nº 14, Junho 1983, p. 48, n. 3.

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aparece representada na tábua Chegada dos Santos Mártires a Lisboa37. Nuno Senos refere que “o piso térreo desta ponte era ocupado por logeas, termo que designa um espaço aberto à rua através de arcos e que serve para armazenar e vender mercadorias, o piso superior será quase sempre referido como varandas, isto é, uma estrutura aberta com vista sobre o Terreiro do Paço”. Obras que se inscrevem no espírito do reinado de D. Manuel I que, segundo Ana Maria Alves, corresponde a um momento em que se passa de um modo de convívio ao modo de espectáculo

38. A ideia de espectáculo torna-se crucial no entendimento das varandas que ligam o baluarte ao paço, tornando-se num “dispositivo cénico, ora palco, ora plateia, quase sempre os dois simultaneamente, lugar que o rei usa para ser visto”39. Em relação a todo este conjunto que avança em direcção ao rio, entrando nele, como vimos, com o baluarte, e que forma a “ala” ocidental do Terreiro do Paço, devemos ainda referir que D. Manuel I instituiu aqui a Capela Real, dedicando-a ao apóstolo S. Tomé, padroeiro da Índia, localizada para o interior do conjunto. Mandou também “levantar o extenso alçado da Praça virada ao Tejo com mais dois andares, mais monumental”. O projecto definia uma sequência uniforme de janelas geminadas que tomam o modelo das janelas do Hospital de Todos os Santos do Rossio, cujo alçado e planta são definidos no regimento da Ribeira de 149840, denunciando uma clara intenção de uniformidade e uma preocupação programática41. Numa segunda campanha de obras, D. Manuel I constrói o novo edifico da Alfândega, de Nicolau de Oliveira42, e o “caes da embarcaçam das bestas”43, que surge na gravura de Braunio como o “Moles Lapidum vulgo Cais de Pedra”, delimitando e equipando o Terreiro do Paço a norte, a poente, a nascente e a sul. Ficaram assim criadas, nesta zona da ribeira, duas Praças – dois vazios: a nascente, o Terreiro do Paço e, a poente, a Ribeira Velha. A progressiva conquista da cidade ao rio Tejo, muito mais largo que hoje, é clara no texto de Damião de Góis, quando este dá resenha dos empreendimentos de D. Manuel: “mandou fazer de novo o cais de pedra de Lisboa, & tabuleiros de longo da praia, mandou fazer o Terreiro que está diante dos paços da ribeira de Lisboa que era tudo praia, o que se fez com grande trabalho, & despesa até se ganhar o mar como está agora”.

37 Chegada dos Santos Mártires a Lisboa, óleo sobre madeira, Museu Carlos Machado, Ponta Delgada. 38 ALVES, Ana Maria – Iconologia do poder real no período manuelino – à procura de uma linguagem perdida. Lisboa: INCM, 1985. p. 55. 39 SENOS, Nuno – O Paço da Ribeira: 1501-1581. Lisboa: Notícias Editorial, 2002. p. 214. 40 CARITA, Helder – Lisboa manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495-1521). Lisboa: Livros Horizonte, 1999. p. 64, 65, 78. 41 Esta preocupação está presente nas várias cartas para o Senado de Lisboa, com indicações para o reordenamento do centro da cidade, quando o secretário António Carneiro refere sistematicamente: “«...como os (esteios) da rua nova dereitos e muy bem obrados e ainda nalguns lugares em que convem lhe seja dado tanto chão como convinha para todas as casas ficarem yguais e por cordel e que hua não saya mais que outra...»”, in, CARITA, Helder – Reforma Urbanística da Lisboa Manuelina. Início da escola moderna de arquitectura. História. Lisboa, nº 26, Junho, 2000. p. 40, 41. 42 Nas costas desta nova Alfândega, D. João III constrói o Terreiro do Trigo, e a poente foi mais tarde construída a Alfândega do Tabaco. 43 Cuja verba para as obras aparece já mencionada no alvará de 1498.

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Com D. Sebastião, que preferia os paços da Alcáçova, é colocada em perigo a abertura e a ligação do Terreiro do Paço ao rio44, uma vez que este monarca inicia em 1571, sobre o limite sul do Terreiro, a construção da “Igreja de S. Sebastião”, que não passaria do nível do embasamento. Esta aparece representada no desenho aguarelado Ulisiponae Pars de Simão de Miranda, com a legenda: “Lisboa 14 de Maio de 1575”. Depois de 1581, Filipe I, coroado rei de Portugal, decide não levar por diante a sua construção e, a par de uma profunda reformulação do Paço, feita pelos arquitectos Juan de Herrera e Filipe Terzi45, constrói o torreão, de autoria imprecisa46, que viria a ser o símbolo de todo esse espaço e da cidade. Os monarcas que lhe sucedem continuam a investir nesta ala ocidental do Terreiro do Paço. Com D. João V, a Capela Real é convertida numa magnífica Igreja Patriarcal, com traça de João Frederico Ludovice, e que comportava uma nova torre. Com D. José I ergue-se a Real Ópera do Tejo em 1755, riscada pelo arquitecto cenógrafo italiano Giovanni Carlo Sicino Bibiena e localizada em frente ao rio, na zona onde hoje se encontra o edifício do Arsenal da Marinha. Com o terramoto, maremoto e incêndio as construções do Terreiro do Paço ficaram destruídas. Consequentemente, Sebastião José de Carvalho e Melo, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, encarrega Manuel da Maia, o mestre de campo-general e engenheiro-mor do Reino, de estudar propostas para a reconstrução da cidade de Lisboa. Entre 4 de Dezembro de 1755 e 19 de Abril de 1756, este engenheiro redige a sua Dissertação sobre a renovação da Cidade de Lisboa, na qual apresenta cinco modos alternativos, devidamente justificados, para a reconstrução. O futuro Marquês de Pombal opta pelo quarto modo, ou seja, a reconstrução in loco com um novo plano. São então propostos seis novos planos, dos quais é eleito o do capitão Eugénio dos Santos,

44 “O novo cais da ribeira estava em construção em 1601. Apesar da envergadura destas obras, nos séculos XVII e XVIII continuaram a fazer-se pontes e cais de madeira, meramente utilitários ou de aparato, como o «cais que para desembarcação de sua magestade (Filipe II de Portugal) se fez na praça do Paço sobre muito grossas vigas”, in, CAETANO, Carlos – A Ribeira de Lisboa. Na época da Expansão Portuguesa (Séculos XV a XVIII). Lisboa: Pandora, 2004. p. 150. 45 A correspondência trocada entre Filipe I e o duque de Alba dá testemunho da actividade desses dois arquitectos na Ribeira, e informa-nos também acerca da localização precisa do Paço: “He holgado mucho que Felipe Tercio haya llegado, y que hibiese hecho tan buena relacion á V. M. de las cosas desta cibdad, á la cual, si V. M. ha de venir, no creo le contentará mucho la casa de la ribera, porque es triste como una prision, que apenas se vée la mar desde ella, y yo tengo por cierto que no podrá estar V. M. en ella ocho dias sin congojarse”, Copia da carta original del duque de Alba al rey, fecha en Lisboa á 30 de noviembre de 1580, in, Coleccion de Documentos Inéditos para la Historia de España, por Los Señores Marqueses de Pidal y de Miraflores y de D. Miguel Salvá, individuos de la Academia de la Historia. Madrid: Imprenta de la Viuda de Calero, 1842-85. tomo XXXIII. p. 377. “Duque primo: Aunque como se os ha escripto por las plantas que trujo Felipe Tercio, y por su relacion tengo entendido razonablemente el aposento de las casas reales desa ciudad, todavia he acordado que lo vaya á reconoscer Juna de Herrera, mi aposentador de palacio, y hacer lo que cerca desto paresciere convenir, como dél lo entenderéis mas en particular, pues lleva órden de comunicároslo todo, como es razon, y á Felipe Tercio en su compañia, y así os encargo que le hagais dar el favor que para el cumplimiento dello hubiere menester, que yo seré dello muy servido. De Elvas á 13 de diciembre de 1580.”, Carpeta Al duque de Alba. De Elvas á 13 de diciembre de 1580, in, Coleccion de Documentos Inéditos para la Historia de España, por Los Señores Marqueses de Pidal y de Miraflores y de D. Miguel Salvá, individuos de la Academia de la Historia. Madrid: Imprenta de la Viuda de Calero, 1842-85. tomo XXXIII. p. 332. 46 Ceán Barmúdez, Ayres de Carvalho, Chueca Goitia e Catherine Wilkinson Zerner atribuem esta obra a Juan de Herrera; Julio de Castilho, George Kubler e Rafael Moreira defendem a autoria de Filipe Terzi, in, LOURENÇO, Ana Cristina; SOROMENHO, Miguel; MENDES, Fernando, Sequeira – Felipe II en Lisboa: Moldear la Ciudad e la imagen del Rey. – Juan de Herrera, Arquitecto Real. Madrid: Lunwerg editores, 1997. p. 147.

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arquitecto do Senado. Este era o mais “abstracto e geométrico”, em que as praças do Rossio e do Terreiro do Paço eram “regularizadas e redefinidas na sua forma e orientação”47. Na proposta de Eugénio dos Santos, os dois grandes vazios pré-existentes parecem adquirir a dimensão sagrada atribuída normalmente aos espaços das igrejas que, por sua vez, não são repostas nos locais pré-existentes48 e são assimiladas na ordem imposta pela malha urbana. É por esta quase sacralização do secular que a lógica iluminista começa por estar presente no projecto pombalino da Baixa de Lisboa, na qual se enquadra também o pensamento esclarecido e higienista de Ribeiro Sanches, presente na sua obra Tratado de conservaçam da saude dos povos (1756). Ribeiro Sanches, chamando a atenção para a conveniência em consultar os médicos para a fundação de qualquer povoação, refere que se deve ordenar, “fabricar ruas largas e diretas que se terminem nas grandes praças”49. Tendo por base uma raiz clássica fundamentada em Vitrúvio e Alberti, relembra que “os Romanos fazião as ruas das cidades ma mesma largura, que tinhão as vias militares, ou estradas reaes; terminavão-se nas portas dellas, ou nas praças: a segunda sorte de ruas era mais estreita, e conrespondia a sua largura à dos caminhos de travessa, que sahião das vias militares.”50, hierarquia viária que se aproxima claramente da lógica que encontramos no plano da Baixa. É já sob a direcção de Eugénio dos Santos que, a 12 de Junho, em substituição da Aula do Paço da Ribeira, se constitui a Casa do Risco das Obras Públicas. É na Casa do Risco que Eugénio dos Santos51 elabora o projecto da futura Praça do Comércio, redesenhando o espaço pré-existente com a construção de aterros, mantendo a abertura a sul, em relação ao rio Tejo e pontuando-a com a estátua equestre de D. José I. Esta é inaugurada em 1775, estando a Praça ainda só parcialmente construída, mas acolhendo já a Alfândega, a Bolsa, a mesa do Desembargo do Paço, a Real Biblioteca Pública, o Senado da Câmara, a Real Junta do Comércio, as Secretarias do Reino e a Casa da Suplicação. Havia sido também iniciada a construção do Arco que daria entrada para a Rua Augusta52, o qual acabou demolido no reinado de D. Maria I. Em 1797, foi concluído o “cais da Praça”, que passaria a designar-se Cais das Colunas. Pedro Vieira de Almeida refere que o “Pombalino surge como uma estrutura imagética articulada não em edifícios ou objectos urbanos particularmente significativos, nem em

47 TEIXEIRA, Manuel; VALLA, Margarida – O Urbanismo Português, séculos XIII-XVIII. Portugal-Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999. p. 290, 291. 48 Embora José Augusto França refira que Eugénio dos Santos tenha tido remorsos “de ter lesado as igrejas da Baixa com os seus planos, mais atentos aos interesses novos do urbanismo que a outros, tradicionais da religião”, in, FRANÇA, José Augusto – Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Bertrand Editora, 1987. p. 107. 49 SANCHES, António Nunes Ribeiro – Tratado de conservaçam da saude dos povos: obra util, e igualmente neseffaria aos Magiftrados, Capitaens Generaes, Capitaes de Mar, e Guerra, Prelados, Abbadeffas, Medicos, e Pays de familias.. Paris, 1756. p. 48. 50 SANCHES, António Nunes Ribeiro – Tratado de conservaçam da saude dos povos: obra util, e igualmente neseffaria aos Magiftrados, Capitaens Generaes, Capitaes de Mar, e Guerra, Prelados, Abbadeffas, Medicos, e Paysdefamilias. Paris, 1756. p. 95. 51 Coadjuvado pelo tenente-coronel húngaro Carlos Mardel, arquitecto dos Paços Reais e das Ordens Militares 52 É igualmente demolido o quarteirão que lhe estava anexo; em 1815 são colocadas as colunas do arco da Rua Augusta; em 1843 é aberto um concurso para o projecto do arco e é escolhido o projecto do arquitecto Veríssimo José da Costa, ao qual seriam incorporadas as esculturas de A. Calmels e Vitor Bastos, estando terminado em 1875.

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frentes-fachada particularmente ricas, mas em espaços urbanos, espaços-rua e espaços-praça”53. É a percepção do vazio na sua relação entre espaço aberto e espaço construído, como se o espaço da cidade se visse completado pelo olhar do espectador, que nos relaciona de modo particular, com as praças. Esta é também uma característica dos espaços das missões da Companhia de Jesus, diríamos como forma de persuasão. Como referem Magno Mello e Henrique Leitão, “na espiritualidade inaciana, é dada uma importância especial à “composição do lugar” e ao ver o lugar como uma espécie de cenário ou representação teatral, pois o «desenvolvimento do teatro jesuíta coincide com o interesse dos tratadistas da Companhia de Jesus pela teoria do drama, pela arquitectura teatral e pelas invenções da scenografia e da scenotecnia»”54. Cremos por isso que os arquitectos pombalinos elaboraram uma composição do lugar com consciência dos seus efeitos persuasivos. Consideramos que a composição arquitectónica e urbana na cidade com efeitos persuasivos deve ter em conta o papel dos jesuítas não só enquanto escritores, encenadores e cenógrafos teatrais, mas fundamentalmente enquanto professores das áreas da cosmografia, da matemática e da geometria, com a instituição, em finais do séc. XVI, da “Aula da Esfera”, que funcionou no Colégio de Santo Antão em Lisboa. No pátio deste colégio seria apresentada nos dias 21 e 22 de Agosto de 1619, diante de Filipe II de Portugal e da família real a Tragicomédia del Descubrimiento y conquista del Oriente por el felicissimo rei décimo quarto de Portugal, D. Manuel de gloriosa memoria, do padre Antonio de Sousa. Espectáculo com 300 personagens e 350 animais fabulosos, com um “dispositivo cénico que se servia de máquinas transformadoras para deslocar a acção da terra para o mar e vice-versa. Aparecia a nau de Vasco da Gama vogando entre sereias e tritões, como nas festas cortesãs de um século atrás. Surgiam o Rio Tejo e a Serra de Sintra, que apresentavam os seus bailes em honra de Vasco da Gama, bem como as Quinze Províncias do Oriente, cobertas de pedrarias e simbolicamente caracterizadas. O episódio da descoberta do Brasil era uma imensa mascarada em que apareciam um crocodilo de quinze metros, aves bailadoras e momos de índios”55. A descrição detalhada deste espectáculo seria feita por João Baptista Lavanha56 professor de geometria na Aula do Risco do Paço da Ribeira. Por outro lado, os arquitectos/engenheiros de Pombal também não terão certamente esquecido “as plantas de tudo o que ha celebre no Mundo, e modellos de todas as Igrejas, e mais famosos Palacios de Roma”57 que D. João V mandava vir da cidade pontifícia e reunia no salões do Paço da Ribeira. Se no Plano Regulador para Roma de Sixto V, elaborado por Domenico Fontana, as vias traçadas unem edifícios notáveis, no Plano de Pombal, elaborado pelos engenheiros/urbanistas, onde contracenam ruas principais e ruas secundárias, as vias

53 ALMEIDA, Pedro Vieira de Almeida – A Arquitectura do século XVIII em Portugal. Pretexto e argumento para uma aproximação semiológica. Bracara Augusta. Revista Cultural de Regionalismo e História da Câmara Municipal de Braga. Braga, Vol. XXVII (2), 1973, p. 457. 54 MELLO, Magno; LEITÃO, Henrique – A pintura barroca e a cultura matemática dos jesuítas: o Tractado de Prospectiva de Inácio Vieira, S. J. (1715). Revista de História da Arte. Lisboa: FCSH – UNL, 2005, nº1, p. 104. 55 SASPORTES, José; RIBEIRO, António Pinto – História da Dança. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991.p.22. 56 LAVANHA, João Baptista – Viagem da Catholica Real Magestade del rey D. Filipe II N. S. ao reyno de Portugal e rellação do solene recebimento que nelle se lhe fez. Madrid: Thomas Lunti, 1622. 57 SILVA, Francisco Xavier da – Elogio funebre e historico do muito alto, poderoso, augusto, pio e fidelissimo Rey de Portugal, e Senhor D. João V. Lisboa: na Regia Off. Sylviana, 1750. p. 267.

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unem os dois grandes vazios notáveis: Rossio e Terreiro do Paço. Parece-nos ser esclarecedora a legenda do alçado norte da Praça do Comércio de Eugénio dos Santos: “Aspecto da frontaria da praça do Comercio que faz frente ao Rio e compreende 3 ruas

que da parte do Rocio vem todas desembocar na refferida praça do Comercio”. O que mostra que o fazer da cidade passou pelo fazer/desenhar os vazios, não esquecendo nunca os dois eixos estruturantes, a Rua Nova d’El Rei - cardo - e a Rua Nova dos Mercadores58 - decumano - denunciando uma ancestralidade clássica. O plano pombalino é também caracterizado pelos espaços intermédios, pelas conexões e pelo modo como se justapõem os seus elementos, ou seja, o modo como a moderna plataforma se liga com a antiga malha urbana da cidade59. É a regularidade de todo o plano da Baixa de Lisboa, que se torna num excelente meio de comunicação da imagem da cidade. É a tradição da estética da linha recta no projecto arquitectónico e no projecto urbano que vemos elevada à categoria de monumento. No reinado de D. Luís I, é construído o aterro que iria permitir a ligação da Praça do Comércio à Praça dos Remolares e já depois da classificação da Praça do Comércio

58 A Rua Nova d’El-Rei no século XIV é referida como o rego, passando depois a ser mencionada como rua do Cano Nova; em finais do século XV teria o nome de Rua Nova del Rei e desde meados do séc. XVI o de Rua da Ourivesaria do Ouro ou dos Ourives do Ouro, sendo essa a designação em 1755. A Rua Nova eixo paralelo ao Tejo, já existia antes do reinado de D. Dinis e no séc. XV passa a ter a designação de Rua Nova dos Mercadores, mas também referida ainda nesse século como Praça dos Homens de Negócios; em meados do séc. XVI a rua divide-se em duas partes: a ocidente passa a ter o nome de Rua Nova dos Mercadores e a oriente de Rua Nova dos Ferros, com grades de ferro dispostas longitudinalmente; mais tarde a designação de Rua dos Ferros estende-se a toda a rua, sendo esta a designação em 1755, no entanto, esta rua era conhecida simplesmente como Rua Nova. A importância destas duas ruas fica patente nas referências que lhes são feitas nas mais diversas fontes: “Do Rossio, querendo ir para o mar, entram na rua Nova d’El-Rei, comprida e direita rua, que vai dar na grande rua Nova dos Mercadores, que por ser na principal parte da cidade e junto do mar ao longo dele, é lugar onde concorrem todos os mercadores e toda a mais gente de trato, que tem de comprido duzentos passos e de largo vinte; e sabe-se que rende em alugueres de casas oitente mil cruzados”, in, OLIVEIRA, Cristovão Rodrigues de – Lisboa em 1511. Sumário em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa (1551). Lisboa: Livros Horizonte, 1987. p. 103. “Approvando a despeza orçada para o calcetamento da Rua Nova Grande dos Mercadores, devendo empregar-se n’essa obra pedra do Porto, «por que a outra dapnase na maneira que vêdes», in, OLIVEIRA, Eduardo Freire de – Elementos para a História do Municipio de Lisboa. Lisboa: Typografia Universal, 1885. Tomo I, p. 384. “D. Manuel preocupou-se que, no seu reinado, a Rua Nova dos Mercadores ainda tivesse casas construídas com materiais menos nobres, como a madeira, e por isso deu um prazo de um ano para que fossem substituídas por outras de pedra”, in, GONÇALVES, Iria – Posturas Municipais e Vida Urbana na Baixa Idade Média. O Exemplo de Lisboa. Separata de Estudos Medievais. Lisboa, nº 7, 1986, p. 170. “Filipe II assistiu a várias representações teatrais alegóricas do dia da entrada oficial do monarca, realizadas na Rua Nova”, in, PIZARRO GÓMEZ, Francisco Javier – La jornada de Felipe III a Portugal en 1619 y la arquitectura efímera. In – II Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte. As Relações Art´siticas entre Portugal e Espanha na Época dos Descobrimentos. Coimbra: Minerva, 1987. p. 127. Do Rossio “passando a Praça Nova do Rei, que transborda de entalhadores, joalheiros, ourives, cinzeladores, fabricantes de vasos, artistas da prata, de bronze e de ouro, bem como de banqueiros, cortando á esquerda, chegaremos a uma outra artéria que tem o nome de Rua Nova dos Mercadores, muito mais vasta que todas as outras ruas da cidade, ornada, de um lado e de outro, com belíssimos edificios”, in, GÓIS, Damião de – Elogio da Cidade de Lisboa. Lisboa: Guimarães editores, 2002. p. 16. 59 “Não posso deixar de acrescentar aqui ser muito preciza huma especial attenção na elleição das pessoas que hajão de ter por sua conta a execução desta difficultosa obra da renovação de Lisboa baixa, para a guiarem livre dos embaraços que se poderão encontrar, ou incluir entre a correspondencia do antigo com o moderno, no cazo de haver alguma commutação do velho, como o novo que he aonde consiste a mayor difficuldade” (Dissertação de Manuel da Maia, III parte), in, FRANÇA, José Augusto – Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Bertrand Editora, 1987. p. 323.

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como Monumento Nacional em 1910, na década de 40, é construída a Av. Marginal que faz a ligação da Praça do Comércio ao Cais do Sodré. Em 2006, é aberto um processo para eventual classificação do conjunto «Lisboa Pombalina» como monumento nacional. De modo a concretizar as intenções de tornar público o espaço público, apresentamos propostas para formas e conteúdos expositivos que pretendem pôr a biografia das praças em causa ao serviço de intervenções no seu espaço, realizadas com o intuito de o regenerar. Estas exposições e intervenções devem provocar um efeito impressionista e exercer, simultaneamente, um papel pedagógico. Partindo objectivamente da contemporaneidade, essas exposições, respondendo à curiosidade do princípio da origem das coisas, devem começar pela história do chão, pelo seu ordenamento e futuro desenvolvimento, exibindo imagens da pré-existência, do nascimento e crescimento do espaço da Praça, para tornar essa apreensão mais efectiva e também mais afectiva. Propomos assim a formação de grupos pedagógicos que promovam vínculos com o espaço da praça e com o rio, criando espaços lúdicos e formas de participação colectiva no território urbano. Através, por exemplo, da produção de jogos lúdicos urbanos realizados no vazio público, onde crianças e adultos apreendem como nasceu uma parte da cidade, desenvolvendo o gosto por esse espaço, prática que deve ser realizada em articulação com as escolas e idealmente integrada nos seus programas curriculares, de modo a formar uma necessária consciência patrimonial. Deve ser estabelecida uma ligação directa entre as instituições vinculadas ao espaço, Câmara, escola, habitantes, em estreita colaboração com as universidades através de estudos académicos e de investigação. Elaboração de uma planta pedagógica do espaço, convidando pintores, escultores, arquitectos, arquitectos paisagistas e urbanistas a elaborarem um plano de reconfiguração, a redesenhar o espaço da Praça, que deve funcionar em articulação com a planta da pré-existência. Numa alusão ao baile de arquitectos de Nova Iorque, realizado em 1931 no Hotel Astoria daquela cidade, em que os autores de arranha-céus apareceram disfarçados dos seus edifícios, propomos a confecção de vestidos representando as construções da Praça, desenhados por artistas convidados e confeccionados em poliuretano colorido, para serem vestidos pelos participantes. Estes colocar-se-ão nos respectivos enquadramentos da planta, conhecendo assim a composição do lugar ou, usando uma expressão camoniana, dando-se o espaço a ver, claramente visto. Citando o Musée Urbain de Tony Garnier em Lyon, em que as empenas dos edifícios são suporte para a exposição dos projectos arquitectónicos do Bairro e relembrando a inauguração da Estátua Equestre de El-Rei D. José I, em que apenas estava realmente edificada uma pequena parte da Praça do Comércio, e que a “planta do seu todo não passava dos poucos a quem por política ou necessidade se deixava ver”, tendo o marquês de Pombal determinado “que no dia 6 de Junho [1775] havia de aparecer a sua quadratura formada de madeira, como se na realidade estivesse completo o Edifício (compreendido o seu cais) na forma delineada, e principiada, e com tal perfeição de semelhança, que os olhos não pudessem distinguir o verdadeiro do fingido”60, as

60 “Trabalhavam neste artificio três mil e duzentos Operários entre oficiais de todos os oficios respectivos, a Trabalhadores. (...) Viu-se enfim (apesar de tanto custo) aquela Praça não só completa na figura, que se espera venha a ter; mas como nunca chegará a acabar-se; (...) A cantaria verdadeira foi toda raspada, para

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fachadas seriam suporte para dar a conhecer os projectos, de modo a estabelecer uma relação de proximidade entre o desenho urbano e o espaço urbano, entre o desenho arquitectónico e o edificado, desenhos tradicionalmente guardados em espólios e arquivos. Exposições de fotografias de grande formato de imagens históricas da Praça, colocadas no chão, sobrepostas ao traçado orgânico feito pelos habitantes no seu percurso quotidiano, diagonal, apressado e meramente funcional, de ligação entre o local de trabalho e o meio de transporte. Conjunto de imagens que vão desde as arquitecturas efémeras realizadas para festejos reais, passando pelas construções desaparecidas e pelas vistas panorâmicas, até projectos não construídos. Exposições de Plantas da Praça com a dimensão da própria Praça, à maneira de Jorge Luis Borges, onde se pudesse observar, em tamanho natural, os traçados pré-existentes e os sucessivos avanços e alterações. Ou simplesmente a Planta da Cidade cobrindo todo o espaço da Praça, revelando o lugar, isto é, tornando-o presente. Construção de uma maquete de grandes dimensões colocada no centro da Praça que pudesse ser manuseada pelo público, como se fora a maquete de Berg-op-Zoom representada por Vigneux no Corpo dos Engenheiros, em 1752. Essa maquete traduziria, por um lado, a evolução do espaço do “chão”, do espaço roubado ao rio, isto é, dos diversos aterros, que ampliaram a sua plateia/palco e que permitiram o erguer de uma série de construções e até mesmo o seu desaparecimento. Traduziria enfim esse espaço mutante. Esse manuseamento (pesquisa) deveria poder ser feito recuando ou avançando no tempo. Por exemplo, ser possível escolher a versão da Praça no Século XVIII e depois recuar no tempo e ver as versões dos séculos XVI e XVII, ou avançar e ver as versões dos séculos XIX, XX e XXI. Acreditamos que a realização destas exposições permitiria olhar radiograficamente o espaço e as construções, assim como a vivência do vazio histórico e dos vazios contemporâneos. não desmentir da fingida gessada, e a parede de alvenaria pintada de Jalde, como a de madeira.”, in – A INAUGURAÇÃO da Estátua Equestre de El-Rei D. José I. Narração verídica feita por um jesuíta, testemunha ocular do acontecimento. Lisboa: Editorial Labor, MCMXXXVIII. p.17-19.

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Índice e crédito das imagens 1 - Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro com suas Fortificações, João Massé, 1713, in, TEIXEIRA, Manuel; VALLA, Margarida – O Urbanismo Português, séculos XIII-XVIII. Portugal-Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.p.249. 2 - Vista da Praça do Palácio no Rio de Janeiro, Jean Baptiste Debret, 1834-39, in, CAVALCANTI, Lauro ed. lit. – Paço Imperial. Rio de Janeiro: Paço Imperial / MinCIPHAN, 2005.p.81. 3 - Vista da Praça XV de Novembro, com estátua do general Osório, à direita parte do Paço Imperial e à esquerda o Mercado da Candelária, in, GORBERG, Samuel; FRIDMAN, Sérgio A. – Mercados no Rio de Janeiro 1834-1962. Rio de Janeiro: S. Gorberg, 2003.p.34. 4 - Vista aérea do Paço, Avenida Perimetral elevada e Estação das Barcas, in, CAVALCANTI, Lauro ed. lit. - Paço Imperial. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999.p.123. 5 - “Olissipo quae nunc...”, gravura em cobre, Georgius Braunius, Urbium Proecipuarum Mundi Theatrum Quintum, 1598. in, SENOS, Nuno – O Paço da Ribeira: 1501-1581. Lisboa: Notícias editorial, 2002. p.IV. 6 - Chegada dos Santos Mártires a Lisboa, óleo sobre madeira, Museu Carlos Machado, Ponta Delgada, in, SENOS, Nuno – O Paço da Ribeira: 1501-1581. Lisboa: Notícias editorial, 2002. p.VIII. 7 - Simon de Miranda, “Ulisiponae Pars”, desenho aguarelado, 1575, Arquivo do Estado de Turim, in, SENOS, Nuno – O Paço da Ribeira: 1501-1581. Lisboa: Notícias editorial, 2002. p.X. 8 - Planta topográfica da cidade de Lisboa arruinada também segundo o novo alinhamento dos architectos Eugénio dos Santos Carvalho e Carlos Mardel, in, Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Lisboa, Janeiro-Junho, 2003, nºs 15, 16, p.118. 9 - Baile dos Arquitectos, Hotel Astoria, Nova Iorque, 23 Janeiro 1931, in, <www.vitruvius.com.br/.../biraghi/biraghi14.jpg> 10 - Musée Urbain Tony Garnier, Bairro Estados Unidos, construído em Lyon, nos anos 30 do séc. XX, com projecto de Tony Garnier;Muros pintados com os croquis da Cité Industrielle Idéale, in, <www.regionurbainedelyon.fr/images/447-1-lyon-...> 11 - Fragmento da Planta de Lisboa: traçado e dizeres a preto correspondem ao plano pombalino; o traçado e dizeres a vermelho correspondem à Lisboa anterior o terramoto de 1755, in, VIEIRA da SILVA, Augusto – As muralhas da Ribeira de Lisboa. Lisboa: CML, 1987. vol. 1, estampa I. 12 - Plano da Praça do Comércio, Eugénio dos Santos, c. 1756, in, FRANÇA, José Augusto – Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Bertrand Editora, 1987.p.123. 13 - Vista aérea de Lisboa, em primeiro plano a Praça do Comércio, Bilhete Postal, ed. Cómer, s.d. 14 - O Corpo dos Engenheiros, 1752, [Maquete de Berg-op-Zoom], frontispicio por Vigneux, 17x22cm, Bibliothèque Nationale de France, Bibliothèque de l’Arsenal, Ms 4429 in, VAUBAN, bâtisseur du Roi-Soleil. Paris: Somogy éditions d’Art; Cité de l’Architecture & du Patrimoine; Musée des Plans-reliefs, 2007.p.184.

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1 - Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro com suas Fortificações, João Massé, 1713, in, TEIXEIRA, Manuel; VALLA, Margarida – O Urbanismo Português, séculos XIII-XVIII. Portugal-Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.p.249.

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2 - Vista da Praça do Palácio no Rio de Janeiro, Jean Baptiste Debret, 1834-39, in, CAVALCANTI, Lauro ed. lit. – Paço Imperial. Rio de Janeiro: Paço Imperial / MinCIPHAN, 2005.p.81.

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3 - Vista da Praça XV de Novembro, com estátua do general Osório, à direita parte do Paço Imperial e à esquerda o Mercado da Candelária, in, GORBERG, Samuel; FRIDMAN, Sérgio A. – Mercados no Rio de Janeiro 1834-1962. Rio de Janeiro: S. Gorberg, 2003.p.34.

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4 - Vista aérea do Paço, Avenida Perimetral elevada e Estação das Barcas, in, CAVALCANTI, Lauro ed. lit. - Paço Imperial. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999.p.123.

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5 -“Olissipo quae nunc...”, gravura em cobre, Georgius Braunius, Urbium Proecipuarum Mundi Theatrum Quintum, 1598. in, SENOS, Nuno – O Paço da Ribeira: 1501-1581. Lisboa: Notícias editorial, 2002. p.IV.

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6 - Chegada dos Santos Mártires a Lisboa, óleo sobre madeira, Museu Carlos Machado, Ponta Delgada, in, SENOS, Nuno – O Paço da Ribeira: 1501-1581. Lisboa: Notícias editorial, 2002. p.VIII.

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7 - Simon de Miranda, “Ulisiponae Pars”, desenho aguarelado, 1575, Arquivo do Estado de Turim, in, SENOS, Nuno – O Paço da Ribeira: 1501-1581. Lisboa: Notícias editorial, 2002. p.X.

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8 - Planta topográfica da cidade de Lisboa arruinada também segundo o novo alinhamento dos architectos Eugénio dos Santos Carvalho e Carlos Mardel, in, Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Lisboa, Janeiro-Junho, 2003, nºs 15, 16, p.118.

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9 - Baile dos Arquitectos, Hotel Astoria, Nova Iorque, 23 Janeiro 1931, in, <www.vitruvius.com.br/.../biraghi/biraghi14.jpg>

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10 - Musée Urbain Tony Garnier, Bairro Estados Unidos, construído em Lyon, nos anos 30 do séc. XX, com projecto de Tony Garnier;Muros pintados com os croquis da Cité Industrielle Idéale, in, <www.regionurbainedelyon.fr/images/447-1-lyon-...>

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11 - Fragmento da Planta de Lisboa: traçado e dizeres a preto correspondem ao plano pombalino; o traçado e dizeres a vermelho correspondem à Lisboa anterior o terramoto de 1755, in, VIEIRA da SILVA, Augusto – As muralhas da Ribeira de Lisboa. Lisboa: CML, 1987. vol. 1, estampa I.

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12 - Plano da Praça do Comércio, Eugénio dos Santos, c. 1756, in, FRANÇA, José Augusto – Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Bertrand Editora, 1987.p.123.

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13 - Vista aérea de Lisboa, em primeiro plano a Praça do Comércio, Bilhete Postal, ed. Cómer, s.d.

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14 - O Corpo dos Engenheiros, 1752, [Maquete de Berg-op-Zoom], frontispicio por Vigneux, 17x22cm, Bibliothèque Nationale de France, Bibliothèque de l’Arsenal, Ms 4429 in, VAUBAN, bâtisseur du Roi-Soleil. Paris: Somogy éditions d’Art; Cité de l’Architecture & du Patrimoine; Musée des Plans-reliefs, 2007.p.184.

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{CHEIOS INÚTEIS}

Pedro Janeiro e-mail: [email protected]

Faculdade de Arquitectura, U.T.L.

Rua Sá Nogueira, Pólo Universitário, Alto da Ajuda, 1349-055 Lisboa

RESUMO:São tão fundamentais à cidade os seus vazios como à música os seus silêncios. Uns e outros sãointervalos contidos por, aparentemente, nada. Mas, se no nada, por definição, não existe nem oespaço, já os vazios na cidade – como os silêncios na música – existem enquanto esperança,enquanto possibilidades de algo ou de alguma coisa. O nada, portanto, não é um lugar; é algo quenão é lugar, é algo que não é sítio, ou parte alguma. Mas, bem sabemos, o vazio não é o nada; é,isso sim, uma aparente, uma só aparente ausência. Mas uma ausência de quê?Eventualmente, uma ausência de sentido. Essa ausência, quando falamos em vazios urbanos, podeter várias origens, é certo; porém, todos estes vazios têm uma característica em comum: todos elessão uma espécie de negação de cidade.Uma análise aos vazios, em Arquitectura, implica uma reflexão prévia acerca do como “o vazio”,lato senso, pode ser (ou vir a ser) um lugar – um lugar cheio ou um lugar potencial a partir do qualse possa pensar e fazer Arquitectura e Cidade; a partir do qual se possa requalificar a paisagem e oambiente urbanos. Portanto, uma análise que se dirija à Arquitectura não só enquanto a arte deedificar ou a arte de traçar planos para a construção de edifícios e de espaços entre eles (caindo naincompletude do discurso do esteta), mas uma análise à Arquitectura entendendo-a como umaespécie de moldura da vida do homem em sociedade. É neste sentido, no sentido em que se admiteque a Arquitectura funciona como o que está entre o homem e os cenários onde o homem pode ounão-pode interpretar os seus gestos, que podemos olhá-la, por exemplo, como representação. Oartigo que apresentamos surge destas convicções e desse olhar. Falar de Arquitectura, portanto, não é (só), desde o ponto donde a olhamos, falar de um programade necessidades humanas posto-em-forma-visível e/ou tangível. É, sobretudo, falar de habitar e dasua, por vezes, intangibilidade. É, sobretudo, admitir que a Arquitectura, mais do que o pensar e ofazer o objecto arquitectónico, é a relação entre o homem e esse objecto, é a possibilidade dessehomem ser-nele: humanizando-o humanizando-se.É que: o objecto arquitectónico, como nenhum outro objecto, envolve o corpo daquele que o usa. E éao ser usado que ele, naquilo que oferece ao seu usuário, se cumpre – provavelmente já nãoenquanto objecto mas como um outro corpo que envolve o meu. Digamos, por hipótese: o objectoarquitectónico só é objecto até ao instante em que somos envolvidos por ele; a partir dessemomento, a partir do momento em que alguém se sinta envolvido por ele, ele passa a existirenquanto um outro corpo para além dos limites do corpo desse alguém-envolvido e, por maisparadoxal que isto nos possa parecer, esse outro corpo é uma espécie de dilatação do corpo-daquele-que-(a partir desse momento)-o-habita. Digamos, talvez abusivamente e partindo desta hipótese: nomomento em que alguém se sente envolvido pelo objecto arquitectónico, há uma conversão doobjecto em lugar, quer dizer, há uma conversão do objecto em intervalo corporal. Há, portanto – apartir desse instante –, Arquitectura. Posto isto, resta apurar como é que nos vazios urbanos pode haver esse envolvimento e essaconversão em lugares; não resvalando, com o intuito de definir vazios úteis, para a conceptualizaçãoe a construção de cheios inúteis.

Palavras-Chave:Arquitectura, representação, habitar.

{CHEIOS INÚTEIS}

-3.Estamos convictos de que: só a Arquitectura torna presente a possibilidade de existência do Homemno espaço que ela, através dos seus produtos, retoricamente produz e impõe. Esclareçamos estanossa convicção. É quando reconhecemos que o produto da Arquitectura – o objecto arquitectónico– não se esgota na leitura que através da visão podemos dele elaborar e que, portanto, ele não seoferece ao Homem só como matéria-prima para a contemplação dos olhos1, que, partindo destereconhecimento2, podemos ultrapassar uma investigação ao objecto arquitectónico espartilhada poruma, digamos, estética do visível e inaugurar um novo-olhar sobre a Arquitectura e sobre os seusprodutos – um olhar, assim, diverso dos olhares que podem recair sobre as artes visuais de umamaneira geral, e muito nomeadamente os que olham a Pintura, já que sobre a Escultura3, porexemplo, o tacto não deve estar alheio. É quando reconhecemos, ultrapassando o visível, “aArquitectura como facto de comunicação [que, e] mesmo sem dela excluirmos a funcionalidade4”(ECO, 1997, p. 188), chegamos a um ponto em que podemos admitir uma evidência: os objectosarquitectónicos não só comunicam a sua função, como podem comunicar outros significados comosentimentos ou atmosferas, como faz a Música ou como faz a Pintura.5 Ainda assim, é necessárioque esta, para nós, evidência seja argumentada.Se, de facto, a única função do objecto arquitectónico fosse a de abrigo, então, muitoprovavelmente, todas as argumentações dirigidas à Arquitectura, enquanto facto de comunicação,seriam mais simples e mais fáceis de alcançar. Todos concordamos que não sendo o abrigar a únicafunção do objecto arquitectónico – ainda que tenha sido, hipoteticamente, “[...] um buraco aberto navertente da montanha, [‘]uma caverna” (ECO, 1997, p. 189), que inaugurou o habitar e que é oprimeiro exemplo (um modelo hipotético) que a História da Arquitectura6 nos apresenta deArquitectura quando a biografa –, o abrigar está implicitamente contido nesse dispositivo de habitarenquanto possibilidade. Por outras palavras, podemos, com certeza, reconhecer que a funçãoabrigar é constante em qualquer construção que implique o acto de habitar – essa função écaracterística do objecto arquitectónico, mas não é a única. Não reduzamos, portanto, a função doobjecto arquitectónico ao gesto de quem procura abrigo, ou, só como uma acção de defesa (ou dereacção) do (ou, ao) meio ambiente; como, não caiamos também no erro de reduzir meio ambiente a

1 O que não o reduz a um produto tecnológico – ainda que o seja, também; nem, por outro lado, o desinscreve dosauspícios da Arte – aliás, talvez a maior (pomos enquanto hipótese).2 Reconhecimento que, provavelmente e segundo M.-J. Baudinet, devemos à Gestalt: “[...] sem a Gestalt, a meditaçãosobre a arte ainda hoje seria ou metafísica do Belo, ou filosofia do juízo, ou ainda psicologia da contemplação”BAUDINET, Marie-José. Psicologia da Visão. In: DUFRENNE, Mikel. A Estética e as Ciências da Arte. Vol. 1.Amadora: Livraria Bertrand. 1982. p. 218.3 Cf. HALL, Edward. A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d’Água. s.d. pp. 99 e 100.4 “[...] el objeto arquitectónico – contrariamente a los objetos visuales estudiados por el autor [refere-se a ECO, 1997,pp. 187-227] en la sección precedente – es esencialmente funcional: según Eco, se supone arquitectónico ‘todo proyetode modificación de la realidad, en el nivel tridimensional, que tenga por objetivo permitir el cumplimiento de funcionesrelacionadas con la vida colectiva’ (1969: 261) [na ed. usada neste texto, p. 187], definición que se podría discutir.Primero, ‘función’ es una palabra que desde hace un siglo, y en los escritos sobre Arquitectura, ha hecho multitud deestragos; […] Luego, acaso es necessario recordar que existen multitud de mensajes visuales en dos dimensiones que‘modifican la realiad’ y ‘cumplen funciones colectivas’? Incluso sin contar con los anuncios, que son casos demasiadofáciles, muchos iconos cumplen o han cumplido funciones sociales: hacer rezar los fieles, celebrar a un Todopoderoso,príncipe o presidente, aconsejar una buena inversión, etc. Al parecer. Eco no echaba a andar con el buen pie tratandode enfrentar a la arquitetura y sus anexos con formas de expresión cuyo fin es la contemplación ‘como, por ejemplo, lasobras de arte o la realización de espectáculos’ [na ed. usada neste texto, p. 188]. Nuestro autor es demasiado inteligentecomo para no haberse dado cuenta rápidamente que podemos, al menos, ‘gozar de la Arquitectura como un hecho decomunicación’ [na ed. usada neste texto, p. 188].” EDELINE, Francis, KLINKENBERG, Jean-Marie, MINGUET,Philippe, Groupe µ. Tratado del signo visual, Para una retórica de la imagen, trad. por Manuel Talens Carmona.Madrid: Ediciones Cátedra, 1993. pp. 365 e 366.5 “[…] los objetos arquitectónicos – al igual que los objetos comunes y el medio ambiente construido – comunican nosolamente sus funciones constructivas de abrigo, […], sino también significados como sentimientos o ‘atmósferas’, aligual que la música y la pintura abstracta.” Francis EDELINE, Jean-Marie KLINKENBERG, Philippe MINGUET,op. cit., p. 366.6 Cf. ECO, Umberto. A estrutura ausente, 7ª ed. São Paulo: Editorial Perspectiva. 1997, pp. 188 e 189.

condições climatéricas. É grande a extensão da noção de função quando a propósito de Arquitecturaa mencionamos, como é também, nesse caso, abrangente a noção de meio7.Vimos como podemos observar a Arquitectura como facto de comunicação; e, vimos também, comoa Arquitectura “se caracteriza tão bem, e sem problemas, como possibilidade de função” (ECO,1997, p.188). Estas duas possibilidades de perspectivar a Arquitectura – sob um ponto de vistasemiótico e fenomenológico – instauram os termos para uma análise mais aprofundada.

-2.Um exemplo: “[N]inguém duvida que um tecto sirva fundamentalmente para cobrir” (ECO, 1997,p.188), mas, dizer-se que o tecto serve só para cobrir seria precipitado e redutor. A ideia de que afunção do objecto arquitectónico é abrigar deve, pois, apesar de ser levada em conta – porqueverdadeira –, correr paralelamente a tudo aquilo que possa ser dito sejam quais forem os termos daanálise que se leve a cabo a propósito de Arquitectura; mas, sobretudo, deve ser posta entreparêntesis quando a investigação for, como desejamos a nossa, posta nos termos em que a temosposto – semiológia e/ou fenomenológica. Até porque, como enunciámos mais atrás, a Arquitectura éa moldura da vida do Homem em sociedade, um dispositivo que é permisso ao habitar; e, aArquitectura torna presente a possibilidade de existência do Homem no espaço que ela, através dosseus produtos, retoricamente produz e impõe. Entendamos, pois, a Arquitectura nessas duaspossibilidades: facto de comunicação e possibilidade de função.Voltemos à imagem do tecto. Que o tecto sirva para cobrir ninguém duvida – ele, afinal, funcionacomo cobertura. Mas, apesar de o tecto funcionar como cobertura e conotar8 essa função, diferentestectos denunciam9 modos diversos de conceber a função cobrir. O tecto começa, então, a assumiruma função simbólica. Por outro lado, se o tecto está em vez de cobrir, então, o tecto pode serentendido como um signo de cobrir. Por outro lado ainda, ou coincidentemente com aquilo queacabámos de dizer: a forma do tecto, o seu desenho (se em abóbada, plano, em quadrado ouoctogonal, etc.) não conota apenas uma função, mas remete para uma certa concepção do habitar sobesse tecto e, portanto, de o usar ou ver nele a possibilidade de ser usado.10 Ainda: habitar sob umtecto é usá-lo sob ele, na (minha-)relação-com-ele, enquanto tecto-vivido ou enquanto tecto-que-se-pôde-viver, tecto-que-se-pode-viver ou tecto-que-pode-vir-a-ser-vivido. Como, de igual modo, ficaclaro que – no caso – o tecto implica sempre um certo modo de ser usado, ou seja, ele institui aquem o usa um certo gesto de usabilidade e é nesse acto, nessa acção, nesse gesto, no fundo narelação que se estabelece entre mim e ele que ele adquire através-de-mim outras funções que oultrapassam enquanto cobertura – sua, usando uma expressão de Koenig11, “utilitas” (KOENIG,1964, p. 97).7 Eis como Gorjão Jorge apresenta meio: “continente vital humano, isto é, enquanto esfera activa e operativa dohomem” GORJÃO JORGE, José Duarte. A noção de sincronismo na leitura e representação do espaço. Lisboa: 1993,p. 20. Tese (Doutorado em Arquitectura) Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa.8 “O objecto de uso é, sob o aspecto comunicacional, o significante daquele significado exacta e convencionalmentedenotado que é a sua função.” ECO, Umberto. op. cit. p. 198.9 “Dissemos que o objecto arquitectónico pode denotar a função ou conotar certa ideologia da função. Mas pode,indubitavelmente, conotar outras coisas. A gruta de nosso modelo hipotético [refere-se à primeira caverna habitada pelohomem, ECO, Umberto. op. cit. p. 188-190] chegava a denotar uma função abrigo, mas não há duvida que com opassar do tempo terá conotado também ‘família, núcleo comunitário, segurança’, etc. E é dificil dizer se essa naturezaconotativa, essa sua ‘função’ simbólica seria menos ‘funcional’ do que a primeira. Em outras palavras: se a grutadenota (para usar um termo eficaz usado por Koenig) uma utilitas, cabe perguntar se, para os fins da vida associada,não será igualmente útil a conotação de intimidade e familiaridade conexa aos seus valores simbólicos. A conotação‘segurança’ e ‘abrigo’ fundamenta-se na denotação da utilitas primeira, mas nem por isso parece menos importante doque ela.” ECO, Umberto. op. cit., p. 202.10 “Quando olho uma janela na fachada de uma casa, não penso o mais das vezes, na sua função; penso numsignificado-janela, que se baseia na função, mas que a absorveu a um ponto de eu poder esquecê-la e ver a janela emrelação a outras janelas como elementos de um ritmo arquitectónico; [...]

Mas a forma dessas janelas, seu número, sua disposição na fachada (óculo, seteira, curtain walls, etc.) nãodenotam apenas uma função; remetem a certa concepção do habitar e do usar; conotam uma ideologia global quepresidiu à operação do arquitecto: arco de volta inteira, ogiva, arco duplo funcionam como suportes e denotam essafunção, mas conotam modos diferentes de conceber a função. Começam a assumir função simbólica.” ECO, Umberto,op. cit. pp. 198 e 199.11 Ver a este propósito KOENIG, Giovanni Klaus. Analisi del linguaggio architettonico. Florença: Libreria Ed.Florentina, 1964.

-1.Partindo do exemplo, generalizando: é por o objecto arquitectónico, enquanto dispositivo que seoferece ao habitar, conotar, para além da sua utilitas – abrigar –, uma certa ideologia de habitar que,uma certa forma de se estar-aí12(-nesse-mundo-arquitectado) é implicada ao habitante, o qual, emfunção dessa visão de um mundo proposto, dessa “imagem cósmica” (NORBERG-SCHULZ, 1975,p. 44), tenta agir em conformidade com esse mundo, com essa visão, com essa imagem.É por que: “Em termos comunicacionais, o princípio de que a forma segue a função significa que aforma do objecto não só deve possibilitar a função, mas denotá-la [ou, conotá-la?] tão claramenteque a torne, além do manejável, desejável, orientando para os movimentos mais adequados à suaexecução” (ECO, 1997, p. 200) que, por isso – por o objecto (arquitectónico) orientar, implicar ouimpor os movimentos, ou, nos nossos termos, orientar, implicar ou impor os gestos, maisadequados ao seu uso (à sua habitabilidade) –, pudemos dizer: a Arquitectura torna presente apossibilidade de existência do Homem no espaço que ela, através dos seus produtos, retoricamenteproduz e impõe. Por outras palavras, metaforicamente: o objecto arquitectónico é um cenário quelimita – no sentido em que constrói os limites – a interpretação de uma determinada narrativa; eleinstitui os termos em que a cena pode ou não pode acontecer; de certa maneira, como o cenário daópera, é ele – o objecto arquitectónico – quem prevê, quem possibilita, quem engendra e quemarticula os gestos, os rituais, dos seus usuários; é em função dele que a narrativa pode aparecer.Esse cenário13 é o produto da Arquitectura se entendermos por Arquitectura projecto; essa narrativa– essa “representação dum acontecimento” (EVERAERT-DESMEDT, 1984, p. 3.) – é a vida; esseusuário é o Homem; essa relação entre o Homem e o seu cenário é a Arquitectura.E, de facto, se, como vimos, “a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca podeser efectivamente em si, porque [as] suas articulações são as mesmas de nossa experiência, e porqueela se põe na extremidade de um olhar ou ao termo de uma investigação sensorial que a investe dehumanidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 429), então, quando a coisa de que se fala é o objectoarquitectónico, estamos diante de um caso exemplar de relação sujeito/objecto quer dizer:homem/espaço. Porquê?Porque, se, de um modo geral, podemos considerar que é ao corpo que devemos o aparecimento dascoisas, dos objectos, é, também, no corpo que se assiste a uma assemblagem com o seu objecto, ou,por outras palavras, uma compaginação da coisa que sente ao seu objecto. É porque o objectoarquitectónico não tem uma existência autónoma do sujeito que o sente, queremos dizer: não temuma existência autónoma daquele-que-o-habita, que, do nosso ponto de vista, só o podemosconsiderar enquanto compaginação d’aquele-que-habita com aquilo-que-se-dispõe-a-ser-habitado,admitindo, assim, que ambos existem presos “no mesmo tecido intencional” (MERLEAU-PONTY,1991, p. 184). Eles, aquele-que-habita e aquilo-que-se-dispõe-a-ser-habitado, existem nessacontextura de intencionalidade14: que ao mesmo tempo que localiza os pólos correlacionadossugerindo uma aparente separação do corpo ao objecto arquitectónico, os, afinal, unifica um nooutro: um, o corpo preso a si próprio; ao outro, o objecto arquitectónico, preso ao corpo pelapercepção.

12 Cf. HUSSERL, Edmund. Conferências de Paris, Lisboa: Edições 70, 1992, p. 31.Cf. HEIDEGGER, Martin. A essência do fundamento, Lisboa: Edições 70, 1988, p. 35.“Se o ente, que nós próprios sempre fomos e que compreendemos como ‘estar-aí’, escolhermos o termo

‘sujeito’ então trancendência designa a essência do sujeito, é a estrutura fundamental da subjectividade. O sujeito nuncaexiste antes como ‘ sujeito’ para, em seguida, no caso de haver objectos presentes à mão, também trancender, massignifica ser-sujeito: ser ente na e como trancendência.” HEIDEGGER, Martin. A essência do fundamento, op. cit., p.35.13 Esse “meio que define uma situação, recorda aos ocupantes os comportamentos apropriados à situação definida pelocenário, deste modo tornando possível a co-acção” RAPOPORT, Amos. Systems of activities and systems of settings.In: KENT, Susan (ed.). Domestic architecture and use of space. London: 1993, p. 12.14 “A intencionalidade que liga os momentos da minha exploração, os aspetos da coisa, e as duas séries uma em relaçãoà outra, não é a actividade de ligação do sujeito espiritual, nem as puras conexões do ob-jeto, é a transição que comosujeito carnal efetuo de uma fase do movimento para outra, por princípio sempre possível para mim porque sou esseanimal de percepções e de movimentos que se chama corpo.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos, 1ª ed. São Paulo:Martins Fontes, 1991, pp. 184 e 185.

Ainda assim, aquilo que acabámos de dizer não argumenta com eficácia aquilo que dissemos.Dissemos que esta relação sujeito/objecto arquitectónico era, em certa medida, um caso exemplar derelação sujeito/objecto quer dizer: homem/espaço. Porquê?Porque, se é verdade que “a consciência é sempre consciência de15 [alguma coisa], e não há objectoque não seja objecto para [alguém]” (LYOTARD, 1999, p. 43), então, quando essa alguma coisa ouesse objecto é a coisa arquitectónica ou o objecto arquitectónico, quer dizer, então, quando essaalguma coisa é coisa-que-está-sendo-habitada (ou que, em certa medida, se detecte nela apossibilidade-de-ser-(ou, de-ter-sido; ou, vir-a-ser)-habitada), e ao contrário de todos os outrosobjectos do mundo que podem ser ignorados, o objecto arquitectónico, ou melhor, da minha-relação-com-ele surge a minha noção de aqui16, de lugar.17 O objecto arquitectónico, como nenhum outro objecto, envolve o corpo daquele que o usa.18 E é aoser usado que ele, naquilo que oferece ao seu usuário, se cumpre – provavelmente já não enquantoobjecto mas como um outro corpo que envolve o meu. Digamos, por hipótese: o objectoarquitectónico só é objecto até ao instante em que somos envolvidos por ele; a partir dessemomento, a partir do momento em que alguém se sinta envolvido por ele, ele passa a existirenquanto um outro corpo para além dos limites do corpo desse alguém-envolvido e, por maisparadoxal que isto nos possa parecer, esse outro corpo é uma espécie de dilatação do corpo-daquele-que-(a partir desse momento)-o-habita. Digamos, talvez abusivamente e partindo desta hipótese: nomomento em que alguém se sente envolvido pelo objecto arquitectónico, há uma conversão doobjecto em lugar, quer dizer, há uma conversão do objecto em “’intervalo corporal’”(MUNTAÑOLA, 1974, p. 20), como tão bem lhe chama Muntañola. Há, portanto – a partir desseinstante –, Arquitectura.É a partir desse momento, é a partir desse instante em que o corpo reconhece a distância física queaparentemente o separa daquilo que o envolve que, afinal, corpo e aquilo-que-o-envolve são unidossem divisão19, são articulados20 um no outro – num acasalamento21 –, onde “a carne do sensível, essegrão concentrado que detém a exploração, esse óptimo que a termina reflectem a minha própriaencarnação e são a contrapartida dela” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 184) – em suma, um actoinaugural que permite o conhecimento22 do objecto arquitectónico no próprio acto de o habitar.Esclareçamo-nos: é, assim, ao considerarmos essa contextura, através da qual o objectoarquitectónico se evidencia ao corpo e onde tem uma “existência singular” (MERLEAU-PONTY,1991, p. 184) no sujeito, que somos obrigados a admitir que é sempre e só sobre esse modo deexistência desse objecto e sobre as condições em que se dá esse modo de existência, que nos

15 “’Toda a consciência é consciência de algo’, isso não é novo.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia daPercepção, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 15.16 “El lugar es, en Hegel: ‘Una unión del espacio y el tiempo, en la que el espacio se concreta en un ahora al mismotiempo se concreta en un aqui.” MUNTAÑOLA THORNBERG, Joseph. La arquitectura como lugar, aspectospreliminares de una epistemología de la arquitectura. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S. A., 1974, pp. 23 e 24.17 Cf. MUNTAÑOLA THORNBERG, Joseph. op. cit., p. 20.18 “[Deduz dos postulados de Aristóteles no Tomo IV de Física]Uno cuerpo está en un lugar si tiene otro cuerpo que loenvuelve, sino no.” MUNTAÑOLA THORNBERG, Joseph. op. cit., p. 20.19 “O mundo é aquilo mesmo que nós representamos, não como homens ou como sujeitos empíricos, mas enquantosomos todos uma única luz e enquanto participamos do Uno sem dividi-lo.” MERLEAU-PONTY, Maurice.Fenomenologia da percepção. op. cit., pp. 7 e 8.20 “Quando se diz que a coisa percebida é apreendida ‘em pessoa’ ou ‘na sua carne’ [...].” MERLEAU-PONTY,Maurice. Signos, op. cit., p. 184.

“A evidência é o modo originário da intencionalidade, isto é, o momento da consciência em que a própriacoisa de que se fala se dá em carne e osso, em pessoa, à consciência, em que a intuição é preenchida.” LYOTARD,Jean-François. A fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 40.

“Nós estamos na verdade, e a evidência é ‘a experiência da verdade’.” MERLEAU-PONTY, Maurice.Fenomenologia da percepção. op. cit., p. 14.21 “Nessa medida [na medida em que a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba], toda percepção é umacomunicação ou comunhão, a retomada ou o acabamento, por nós, de uma intenção alheia ou, inversamente, arealização, no exterior, de nossas potências perceptivas e como um acasalemanto de nosso corpo com as coisas.”Maurice MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção. op. cit., p. 429.22 Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos, op. cit., p. 184.

Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, op. cit., pp. 429 e 430.

podemos acercar dele. Ele existe, portanto, como representação23, já que autonomamente, comovimos, não existe.24

Ele aparece ao sujeito enquanto contextura, profundamente enraizadas nele25, e é nesse sentido queele é constituído – é, digamos, investido de uma humanidade26. É neste sentido que podemos, aqui,falar em representação. Digamos que, se quisermos uma definição, o objecto arquitectónico é, pelomenos, uma representação investida de humanidade. Porquê? Porque por detrás dele há sempre umanatureza subjectiva constituinte “na unidade duma percepção” (HUSSERL cit. por LYOTARD,1999, p. 65) que o converte em lugar, e há sempre, como consequência, um sentido27. E é porque oobjecto arquitectónico só encontra uma tradução através de uma representação investida dehumanidade que podemos dizer que, de certa maneira, ele seduz o Homem. Ele sedu-lo na medidaem que se oferece à possibilidade de ser investido por um sentido. E qual é esse sentido? É o da própria existência – “é o modo como os Mortais são sobre a Terra” (HEIDEGGER, 1952, p.145), uma possibilidade de existência sob uma promessa: ele sedu-lo quando o convida a serHomem-nele, quando o convida a existir através dele em-acto – em-acto, quer dizer, desempenhandoo modo em que o seu corpo-vivo pode ser vivo-mortal sobre a Terra; em-acto, quer dizer, ser-sendo,habitar; ele sedu-lo quando o convida, por conseguinte, a interpretar com ele (ou, nele; ou, na-relação-com-ele) uma determinada cena que ele, enquanto cenário, pode corroborar, podeargumentar dando-sentido à própria cena. E, de facto, o que é, por exemplo, um rei sem o seu reino ou do príncipe sem o seu palácio? Que éde Narciso sem um espelho feito de água? O reino é o espaço de representação do rei; é a existência do reino que corrobora o poder do rei;como é, também, no-palácio onde o príncipe pode ver a sua imagem projectada – o paláciorepresenta, assim, o príncipe como o reflexo devolve a Narciso aquilo que ele foi procurar namargem do lago. A saber: uma imagem de si.28

0.Esta, acreditamos, é a metáfora que mais fielmente ilustra a relação que se estabelece entre homem eespaço: uma relação que se consubstancia na fenomenologia, e que se suporta na imagem e narepresentação. Mas nós não somos nem reis nem princípes e, também, não viemos aqui para falarnem de reinos nem de palácios.Também não temos a pretensão de dar lições de arquitectura a ninguém, apenas, e apenas só,apresentar um certo ponto de vista e confrontá-lo com outros.Viemos, isso sim, falar de vazios urbanos, falar de espaços vazios na cidade. Mas, para que alguém possa falar de alguma coisa é necessário que, primeiramente, se percebadesde onde se fala, quais são as convicções que antecedem o discurso, e onde o discurso pode

23 “O mundo é aquilo mesmo que nós representamos, não como homens ou como sujeitos empíricos, mas enquantosomos todos uma única luz e enquanto participamos do Uno sem dividi-lo.” MERLEAU-PONTY, Maurice.Fenomenologia da percepção, op. cit., pp. 7 e 8.24 “Assim, minha sensação do vermelho é percebida como manifestação de um certo vermelho sentido[...].”MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 7.25 Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. op cit., pp. 279 e 280.26 “[...] a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efectivamente em si, porque [as] suasarticulações são as mesmas de nossa experiência, e porque ela se põe na extremidade de um olhar ou ao termo de umainvestigação sensorial que a investe de humanidade.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção,op. cit., p. 429.27 “[...] o que faz a diferença entre a Gestalt do círculo e a significação do círculo é que a segunda é reconhecida por umentendimento que a engendra como lugar dos pontos equidistantes de um centro, a primeira por um sujeito familiar aoseu mundo e capaz de apreendê-la como uma modelação deste mundo, como fisionomia circular.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 575. Portanto, a própria noção de significação ésecundária e exige ser fundamentada num contacto mais originário com o mundo. Lyotard, depois de se dubruçarjustamente sobre esta passagem da Fenomenlogia da Percepção deduz: “Por conseguinte, a significação não constituia referência psicológica última, é ela própria constituida.” LYOTARD, Jean-François, op. cit., p. 65.28 “O que seduz é não este ou aquele gesto feminino mas o que é para vós. Ele é sedutor por ser seduzido, porconseguinte o ser-seduzido é que é sedutor. Em outros termos, a pessoa sedutora é aquela na qual o ser seduzidoreencontra-se. A pessoa seduzida encontra no outro o que a seduz, o único objecto de sua fascinação, a saber, seupróprio ser feito de encanto e sedução, a imagem amável de si mesmo...” DESCOMBES, Vincent. In: O inconscienteapesar de si, cit. por BAUDRILLARD, Jean. Da sedução, 2ª ed., Campinas, S.P.: Papirus, 1992, p. 78.

ganhar algum sentido. Talvez por isso nos alongamos em vagas considerações acerca da arquitecturae do habitar, acerca do objecto e do lugar, etc. – aparentes divagações; mas que, estamos certos,podem contribuir para uma mais efectiva abordagem ao tema deste Seminário. Afinal, como falar devazios urbanos sem falar, prévia ou simultaneamente, de arquitectura?

1.Os vazios urbanos são bolsas vazias na cidade, áreas destituidas, ausentes, silenciosas, onde aquiloque lá acontecia já não acontece, ou onde nunca lá nada aconteceu. Mas, se podemos falar em vaziosurbanos é porque, em contraponto, também podemos falar em cheios urbanos, espaços ondeacontecem coisas, áreas que servem de cenário aos mais diversos acontecimentos e rituais. Parece-nos óbvio que só podemos falar em silêncio se, por outro lado, pudermos falar em som.Os vazios urbanos em Lisboa – os silêncios lisboetas, chamemos-lhes assim – serão, por exemplo: ede um modo mais evidente, a Feira Popular, o Parque Mayer, o Braço de Prata, o Vale de Chelas, aMatinha, o Vale de Alcãntara, etc.; e, de certa maneira e de um modo menos gritante, a extensão deterritório compreendida entre a margem do Tejo e a linha-férrea desde o Cais do Sodré até à CruzQuebrada (a linha-férrea assume-se como uma espécie de cicatriz que impossibilita a relação dacidade com o rio), o Jardim do Tabaco, a 24 de Julho em quase toda a sua extensão, a av. InfanteSanto, o Cais da Ribeira das Naus; e mesmo mesmo no coração da cidade: o Terreiro do Paço. Os vazios urbanos são, portanto, espaços inactivos, espaços de nada, por vezes receptáculos dumpassado que, mais próximo ou mais longínquo, acaba por se sobrepor ao agora.Os vazios urbanos são espaços dormentes – como o pé que está lá mas que não se sente, apesar de overmos. São, de certa forma, como os cenários abandonados da Universal Studios, em Orlando: abandonadose onde o remake do filme já não é possível; aliás, não só já não é possível como seria ridículo sequerpensar em repeti-lo, ainda que com outras personagens e/ou actores. Penso que toda a gente já se deu conta que, por exemplo, a “revista à portuguesa” já não faz sentidoabsolutamente nenhum. E, provavelmente, com ela também já não o Parque Mayer – Vazio,povoado por uma crescente população de gatos de todas as cores e padrões, o Parque Mayer ésilencioso.São tão fundamentais à cidade os seus vazios como à música os seus silêncios. Os vazios sãosilêncios. Uns e outros são intervalos contidos por, aparentemente, nada. Mas, se no nada, pordefinição, não existe nem o espaço, já os vazios na cidade – como os silêncios na música – existemenquanto esperança, enquanto possibilidades de algo ou de alguma coisa. O nada, portanto, não éum lugar; é algo que não é lugar, é algo que não é sítio, ou parte alguma. Mas, bem sabemos, ovazio não é o nada; é, isso sim, uma aparente, uma só aparente ausência. Mas uma ausência de quê?Eventualmente, uma ausência de sentido. Essa ausência, quando falamos em vazios urbanos, podeter várias origens, é certo; porém, todos estes vazios têm uma característica em comum: todos elessão uma espécie de negação de cidade.Uma análise aos vazios, em Arquitectura, implica uma reflexão prévia acerca do como “o vazio”,lato senso, pode ser (ou vir a ser) um lugar – um lugar cheio ou um lugar potencial a partir do qualse possa pensar e fazer Arquitectura e Cidade; a partir do qual se possa requalificar a paisagem e oambiente urbanos. Portanto, uma análise que se dirija à Arquitectura não só enquanto a arte deedificar ou a arte de traçar planos para a construção de edifícios e de espaços entre eles (caindo naincompletude do discurso do esteta), mas uma análise à Arquitectura entendendo-a como umaespécie de moldura da vida do homem em sociedade.Os vazios são uma espécie de negação da cidade. Mas é preciso ver, também, que cidade é esta.A cidade, de qualquer forma, já não é um todo, já não é um cheio. Um todo cheio de sentido, comuma dinâmica própria. A cidade é, cada vez mais, ela própria, vazia; porque, de alguma maneira, destituida do seu sentidooriginal (de Polis, de pólo de alguma coisa, de cabeça de algo ou de alguém,...). E, mesmo quandofalamos da cidade em termos paisagísticos – utilizando noções tão gastas como as de paisagemurbana – é porque vamos pedir emprestada essa noção (de “paisagem”) à Pintura (da do século XVIà do século XIX) e, portanto, falar em paisagem urbana é ver a urbe de fora, de um ponto de vista

qualquer que lhe seja exterior, é, em suma, uma observação pictoresca da cidade, uma observaçãoque a nega à partida. E por que é que a nega?Por que a cidade não pode ser só vista pelo olho do esteta, como em uma pintura, como em umaconstrução plástica e/ou gráfica, em suma, a cidade não pode ser só vista como quem vê umaimagem: onde as noções de enquadramento, ritmo, peso visual, tempo, escala, contraste,equivalência expressiva e sinestesia não se encontram alheias à própria composição, mas, sobretudo,colaboram na construção de uma mensagem visual, uma mensagem-só-visual construida de fora dacidade, desde lá longe.A paisagem urbana através de uma imagem – como na Pintura –, inventa a cidade, como aFotografia inventou um dia um Planeta Azul chamado Terra a partir da Lua. Mas, queremos inventarou re-inventar, pensar ou re-pensar, uma cidade nestes termos?Pensar a cidade a partir duma paisagem é pensá-la de fora para dentro. A Pintura inventou quase tudo, é facto. Inventou, também a perspectiva e, co-extensivamente, asnoções de profundidade e de virtualidade; inventou, assim, uma nova forma de olhar para o perto epara o longe.Não era uma vez um náufrago chamado Lemuel Gulliver?...Pensar a cidade a partir duma paisagem, em que ao longe tudo é pequeno, é esquecermo-nos que “opequeno” lá longe é onde as pessoas vivem, onde podem ou não podem ser felizes, onde nascem eonde morrem. Abandonemos, por agora, a paisagem.Dissemos que os vazios eram uma espécie de negação da cidade. Mas, dissemos, também, queesses vazios eram tão fundamentais à cidade como os silêncios à música. Esclareçamos este pontode vista. A Música é a arte cuja matéria prima é o som. E, talvez por isso, os silêncios lhe sejam tãoessenciais: é que, o silêncio na Música não só permite a audição de uma obra, como, a sua gestão naprópria obra, possibilita a audição do som que o antecede e daquele que vem depois. O silêncio éuma pausa, é uma interrupção, é um tempo, na Música, deliberadamente construido. Mas, também,e caiamos no paradoxo, o silêncio é uma espécie de som: se a música é cortada, de súbito, por umsilêncio, esse silêncio é escutado com toda a claridade. O silêncio otorga possibilidade ao som, é ofundo sobre o qual o som se destaca. Assim acontece com os vazios na cidade – são zonassilênciosas em confronto com as quais a cidade pode ser ouvida. Fazemos a apologia dos vaziosurbanos?De certa maneira, sim, é isso que fazemos. Mas, na cidade há algo que se passa de modo diverso daMúsica. É que, os silêncios na cidade nem sempre são deliberados como o são na Música. Se naMúsica são pensados, na cidade, acontecem simplesmente, desarticuladamente, aliás, como acidade que os contém – essa desarticulação pode acontecer pelos mais diversos motivos. A cidade,afinal, não é uma peça musical.Na cidade, os silêncios não são construídos, são esquecidos. Esquecidos, sim, esquecidos, mas nãopor todos: se para uns são depósitos de memórias, são pretextos, por exemplo, para se poder contara história da cidade onde os homens habitam ou a de outros homens que já a habitaram; para outrossão oportunidades... imobiliárias, digamo-lo assim.Os vazios urbanos só aparentemente são inúteis. Aliás, podemos até mesmo dizer que é o nossodiscurso sobre eles que os torna inúteis, como é também o nosso discurso que, por vezes e à força,os quer tornar úteis.Diz Pardal Monteiro, por exemplo: “Interessa antes conhecer que fins a Arquitectura se propõeatingir.Um é, evidentemente de ordem útil e prática; outro é de ordem artística, e enquanto que o primeirocoloca a Arquitectura nos domínios da técnica, o segundo confere-lhe, no campo do Espírito, umlugar especial. No entanto, por mais que para muitos ela constitua uma das mais elevadasexpressões da Arte, não podemos emparceirá-la rigorosamente com a Pintura, a Escultura, a Músicaou a Poesia, artes que no absoluto não visam qualquer interesse.” (PARDAL MONTEIRO, 1950, p.34)Um dos fins da arquitectura, portanto, é de ordem útil... Mas, com exactidão, o que é que isto podequerer significar?

Continua ele: “A obra de Arquitectura, pelo contrário, distingue-se das outras artes precisamentepor não se compreender sem uma finalidade útil, que tanto pode ser a habitação, como o templo, aescola, o teatro ou o cinema, a fábrica, o escritório, o abrigo, em suma, seja qual for o destino quetiver. […] Parece, portanto, que não cometerá grande erro quem concluir que a Arquitectura,porque visa a um tempo fins úteis e simultaneamente desinteressados ou de ordem espiritual, vivepor um lado dos recursos da técnica e aproxima-se por outro das finalidades da Pintura, daEscultura, da Música e da Poesia.É desta dupla qualidade que caracteriza a Arquitectura de todos os tempos que, por mais que algunssuponham o contrário, não poderá deixar de se reflectir naquela que se fizer na actualidade, o queexprime precisamente a extensão das responsabilidades dos seus realizadores.” (PARDALMONTEIRO, 1950, p. 34)29 Útil, quer dizer, com um destino. Mas, não diz o destino respeito à ordem natural estabelecida nouniverso? E que ordem natural é essa? Qual universo? A plataforma estética – trabalhada na imagem pela arte –, quando alargada ao mundo quotidiano,estetizou-o: “Todo lo que existe es imagen. Todo se traslada a um terreno estético y se valora porsu aparencia. El mundo se ha estetizado. Todo ha sido transformado en arte.” (LEACH, 2001, p.20)30

Todo se transformou em arte. A cidade também.A leitura que fazemos das coisas é uma leitura profundamente alicerçada por critérios estéticos e,talvez por isso, não consigamos lidar com espaços abandonados, inertes ou silenciosos, vazios oumarginais. Há quem diga que a burguesia lida mal com os espaços vazios. Mas quem é a burguesia?Não o somos todos, indistintamente?Lidamos mal, muito mal, com espaços onde não acontece nada, onde não nos conseguimos projectarnum mundo que se quer pronto. Preferimos viver com a certeza, com a possibilidade controlada.Preferimos o útil ao inútil. Mas um vazio útil já não é um vazio, é um cheio de qualquer coisa, é umanarrativa, é um espaço de representação. É – melhor dito – um espaço onde eu me posso representar,onde eu posso ser alguma coisa. O que interessava saber era o que é que eu quero ser? Ou, o que éque eu quero que os outros pensei que eu sou.Preferimos, provavelmente por isso, tornar os vazios em cheios. Preferimos, provavelmente por isso,uma cidade sem interrupções, uma música sem silêncios; porém, verdadeiramente estética quando,por mais paradoxal que que isto nos possa parecer, a cidade já não é mais do que um conjunto deinterrupções, de intermitências. Preferimos um mundo bonito, os extases do rasgo do arquitecto quereabilita o vazio, que enche o vazio com os paradigmas da sua época quando os há. E, quando não oshá, enche-o na mesma, por vezes inutilmente. E, porquê inutilmente?Porque o usuário desses espaços não encasa com eles; porque o usuário desses espaços não se id-entifica com eles (id, quer dizer: o mesmo).Diz Choay: “o arquitecto torn[ou]-se num produtor de imagens, num agente de marketing, ou decomunicação, que só trabalha a três dimensões fictícias. No melhor dos casos, está reduzido a umjogo gráfico ou mesmo plástico, que rompe com a finalidade prática e utilitária da arquitectura e quea inscreve na estética intelectualista da ridicularização e da provocação, característica das artesplásticas contemporâneas.” (F. CHOAY, 2000, p.108)31 Será verdade?Mas, nisto tudo parece que há uma espécie de má consciência. Reparamos que nisto tudo queacabámos de dizer parece que, de alguma forma, ficou intuído que nem tudo aquilo a quevulgarmente chamamos arquitectura verdadeiramente o é. Não nos referimos somente aos vaziosurbanos ou ao seu eventual enchimento, referimos-nos à arquitectura de um modo geral. E, por que éque, do nosso ponto de vista pelo menos, não o é? Fixemo-nos, atentamente, neste ponto: porque a arquitectura é uma relação que se estabelece entrehomem e espaço; a arquitectura é, assim, muito mais do que o objecto arquitectónico. Sendo mais,29 PARDAL MONTEIRO, Arquitectos e Engenheiros perante o problema da Arquitectura (artigo), in Arquitectura, Lisboa: Maio 1950, 33-34, p. 34.30 “Todo lo que existe es imagen. Todo se traslada a um terreno estético y se valora por su aparencia. El mundo se haestetizado. Todo ha sido transformado en arte. Como el proprio Baudrillard escribe: ‘El arte, hoy en día, ha penetradototalmente en la realidad…La estetización del mundo es completa’” LEACH, Neil, op. cit., p. 20 [Sublinhados nossos].31 CHOAY Françoise, A Alegoria do Património, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 215.

como julgamos que é, a sua experiência não se esgota nem no desenho que a provocou nem,tampouco, no esgota no simples facto de existir enquanto objecto diante dos nossos olhos. E, assimsendo, se a arquitectura nasce de uma relação e se, como é sabido, homens diferentes se relacionamcom o espaço e, deste modo, o habitam de modos diferentes, como, então, é possível projectar econstruir para homens diferentes e, portanto, prevendo relações tão, obrigatoriamente, dispares?A resposta não será pacífica, será, até mesmo, incómoda: será possível projectar e construir parahomens diferentes? Sim, é possível – convivemos com essa realidade quotidianamente, vemossurgir, por exemplo, edifícios baseados em modelos habitacionais padronizados que funcionamcomo uma espécie de dispositivos alvéolados: como colmeias, como, de certa forma, máquinas dehabitar que partem do princípio de que o homem necessita de uma determinada equantificavelmente matemática área para nela viver. Mas esta é uma noção amputada de homem,porque ela dirige-se, apenas, ao homem como o define a Biologia ou como o definem certasideologias políticas, como um corpo-só-físico, um homem também ele padronizado, pensado, desdeeste ponto de vista, como um animal numa jaula. Em Política, o conceito de igualdade descreve aausência de diferenças de direitos e deveres entre os membros de uma determinada sociedade.Talvez tenha sido esta concepção iluminista a responsável pelos mais diversos equívocos a que apost-modernidade tem, a custo, tentado abandonar e substituir por diversidade. Os homens não sãotodos iguais, se fossem nem estaríamos aqui a debater a problemática, cada vez mais actual, dos“vazios urbanos” – que até dá o nome a uma Trienal de Arquitectura. Os homens são todosdiferentes; mas o problema não está na diferença está, isso sim, na indiferença.Claro está que esta análise pode ser considerada impertinente ou, até mesmo, ociosa. Na verdade, jános foram habituando a viver num mundo global, num mundo profundamente estetizado pelos massmedia, num mundo hipocritamente colorido pelo poder político e pelos governos das nações quetraduzem uma vida humana num contrubuinte e/ou num votante. Mas, se, como estamos convictos,for verdade que a Arquitectura pode olhar o Homem, não como mais um que vota ou como mais umnúmero num processo onde se pede um tecto para morar; se for verdade que a Arquitectura podeolhar o homem como, de facto, HOMEM: aquele que transporta a vida, aquele que existe comomortal sobre a Terra, então, talvez a nossa análise encontre eco e possa contribuir, ao lado deoutras, para o reencontro da dignidade humana numa sociedade em estilhaços.Afinal, “A ética e a estética são uma.” (WITTGENSTEIN, 1995, p. 138)

BIBLIOGRAFIA:BAUDINET, Marie-José, Psicologia da visão. In: DUFRENNE, Mikel. A estética e as ciências da

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HEIDEGGER, Martin, Vortrage und aufsatze, gunther neske pfullingen, 1954, pp. 145-162, trad.do alemão por Carlos Botelho. Conferência dada a 5 de Agosto de 1951 no âmbito do Colóquio deDarmstadt II sobre Homem e Espaço; impresso na publicação deste Colóquio, Neue DarmstadterVerlagsanstalt, 1952, p. 72ff.

HEIDEGGER, Martin. A essência do fundamento, Lisboa: Edições 70, 1988.HUSSERL, Edmund. Conferências de Paris, Lisboa: Edições 70, 1992.

KOENIG, Giovanni Klaus. Analisi del Linguaggio Architettonico. Florença: Libreria Ed.Florentina, 1964.

LEACH, Neil, La an-estética de la arquitectura. Barcelona: Editorial, 2001.LYOTARD, Jean-François. A fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1999.MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,

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Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

“Warped spaces”, escultura em gesso, 2007Sérgio Vicente

VAZIOS ÚTEIS - CERZIR A CIDADE

Arquitecto Pedro António Fonseca Jorge email:[email protected]

Av. da Igreja, n.º32, 1º andar, 2475-100 Benedita

Ampliar a noção de “Vazio”

Regra/excepçãoVazio/cheioÚtil/inútil

Passado/presente

Contínuo/descontínuoContiguidade/obliteraçãoGeral/particular

Utopia/realidade

Tipologia e contextoForma/conteúdoFigurativo/abstracto

Virtudes públicas/vícios privados

AMPLIAR A NOÇÃO DE “VAZIO”

Debater o “vazio urbano” implica, antes de mais, debater o significado da expressão, não só anível do que consideramos como “ausência”, mas também no modo como tal se manifesta nocontexto da cidade.Sendo no seu âmago uma falta, o “vazio” não deve ser encarada como meramente ainexistência do objecto, porque aquilo que consideramos como “cidade” não se fazunicamente de matéria palpável, ultrapassa a noção de físico e implica valores que não sãocontabilizados em termos de “matéria”: signos, significados e significantes que, emboraapoiados num um suporte físico, não existem pela mera sobreposição de tijolo.O significado de “vazio” extrapola a matéria e a forma e abarca um contexto que é tambémideológico e morfológico, em que manifesta a sua utilidade no sentido em que contribui para acriação ou afirmação da ideia que temos da “cidade”. “Útil” se afirma os valores desta,“inútil” se contradiz uma lógica enunciada pelo conjunto apreciado como “urbano”, mais umavez, algo muito para além do mero uso físico do espaço.

Regra/excepção

Ao identificarmos os elementos constituintes da “cidade”, não o faremos de acordo com umasérie de designações que pretendem assimilar algo de único e parcelar. A “cidade” não sedefine pela Igreja, pela Casa do Povo, pelo Quartel dos Bombeiros, mas antes por umconjunto de valores mais latos que permitem sistematizar os constituintes em dois valoresoposto: a “regra” e a “excepção”.A identificação de um “todo” é feito pela sucessão de um “regra” que permite agregar sob amesma designação um conjunto de elementos. A “cidade” consiste assim num conjunto emque algo se repete com frequência, mas que não exclui a presença da “excepção”, realçadapelo seu carácter diferenciado, mas que não o seria se por trás não houvessem uma “regra”. A nível de uso, a função habitacional, manifestada nas tipologias construídas maispredominantes, pode assumir-se como a “regra” que se repete, enquanto que os espaçospúblicos, utilitários ou de lazer, constituem os elementos de “excepção”. Como tal, a adopçãode linguagens arquitectónicas diferenciadas acompanha a distinção funcional exercida entreos diversos programas.

Vazio/cheio

Mais além das tipologias funcionais, podemos identificar a “cidade” como uma sucessão demassa construída (a “regra”) a qual é interrompida pela ausência da mesma (a “excepção). O“vazio” assume o papel de “desvio à regra”, sem que, por este facto, possa ser consideradocomo algo destituído de valor no conjunto urbano.Contextualizando historicamente o facto, a “cidade europeia” implica esta percepção, uma vezque o crescimento condicionado da mesma, enquanto reduto delimitado por um sistemadefensivo, levou a que a construção se afirmasse, certificando como excepcional os locaisonde essa mesma construção não existe, não só pela sua singularidade, mas também pelovalor utilitário e significante desses espaços, obtidos muito a custo.Como tal, na cidade onde o processo de implantação e de crescimento foi diferente (e, porvezes, provocado), o assumir do “construído” como “regra” e do “vazio” como “excepção”pode constituir como um princípio dúbio, como por exemplo nas experiências Modernistas,em que a reflexão urbana se manifesta como reacção à cidade tradicional, ou pelo menos, àsua adaptabilidade a exigências contemporâneas de uso e usufruto. Nestes casos, o peso do“vazio” é excepcionalmente maior, por contraste com os exemplos de que comummentetemos acesso, e os quais são alvo de crítica pelos pensadores do “movimento” acima citado.Muito embora fruto de objectividade, estes conceitos de “cheio” e “vazio” não devem serconsiderados como noções estanques, muito pelo contrário. A sua presença enquantoelementos de constituição da cidade não implica que a sua presença (ou ausência) deva seraceite acriticamente, uma vez que os elementos construídos, tal como os espaços públicosterão de “fazer” pela cidade que os suporta. O mero volume não implica uma correlaçãoimediata para com “aquela” cidade em que se encontra, tal como o “vazio” necessita de umaadequação ao espaço que o envolve. As lógicas têm de ser concomitantes, e caso se entre emcontradição pela adulteração da imagem, da escala ou da implantação que define a “regra” dacidade, podemos então afirmar que a “utilidade” daquele edifício ou daquele espaço é postaem causa pois encontram-se num “sistema” que lhes é adverso (e vice-versa).

Útil/inútil

Fica portanto subentendido que se a “regra” e a “excepção” nas “nossas” cidades se revelamcomo “cheio” e “vazio”, nem sempre estes possuem um valor único e estanque. Ou seja, o“cheio, tal como o “vazio” dividem-se em duas categorias, consoante o papel quedesempenham no estabelecimento de uma imagem identificável na “cidade”: se são “úteis” ou“inúteis”, ou promoverem a continuidade ou a estabelecerem-se como interrupções.Como tal, há uma nova associação, em que esse “cheio”, longe de ser a regra, passa a ser aexcepção, pela sua inutilidade morfológica: usando pela primeira vez um exemplo concreto,num local em que a regra se assume pela construção sedimentada de edifícios em banda face àrua, com um número reduzido de pisos, um edifício situado a meio dessa banda, recuado e

Regra/excepção, cheio/vazio – 2007Pedro Fonseca Jorge

com um número de pisos mais elevado (que a “lei dos 45º” promove…) não será mais queuma “excepção”, “inútil” no desenhar da “cidade”, apesar de constituir matéria construída: odesignado “cheio”.Na cidade consolidada o “vazio” assume um carácter de utilidade, uma vez que nasce decircunstâncias precisas que indiciam a necessidade de estabelecer actividades públicas (na suamaioria), sejam mercados, praças ou campos de jogos. Estas actividades manifestam o seucarácter prático, e ao mesmo tempo lúdico, factor necessário à salubridade mental dohabitante.No entanto o significado daquilo que é “útil” extravasa aquilo que pressupõem umaactividade física. Determinado “vazios” na cidade consolidada encontram-se destinados a ser“inúteis” enquanto espaços de ocupação física, assumindo um carácter de representação deum poder instituído. A vista abarca o espaço que assume a sua utilidade pelo significadoideológico que lhe é atribuído, sem que se possa dizer que aquele local foi concebido paradesempenhar uma actividade específica… para além de ser visto.Assim sendo, a verdadeira ausência não existe quando há falta de volume construído, mas simquando a uma lógica consequente se sucede um lapso, uma falha ou uma ausência de remate.Mais uma vez recorrendo à banda edificada do exemplo precedente, uma interrupção namesma, em que o espaço vazio resultante é apenas uma falha inserida entre duas empenas,sem dignidade nem função, não constitui algo de útil na conformação do carácter do espaço,pois não consiste numa praça (ou algo similar) em que a nobreza desta não se revela apenasna utilidade física e funcional desta, mas também num conjunto de característicasmorfológicas, como a criação de um alçado geral em estreita relação com o espaço público,dirigido a este de forma dignificante.Como mera interrupção, sem o cuidado morfológico que se exige, o “vazio” pela sua falta de“utilidade” permanecerá uma “excepção”.

Passado/presente

Ideologicamente, a solução para o desenlace daquilo que, na forma, contraria a “regra” e a“excepção” “úteis” passa por um conjunto de atitudes que, no geral, já se encontram em uso.No que diz respeito ao “cheio”, a legislação, correctamente concebida e correctamenteaplicada, passa pelo exemplo maior de controlo da edificação no espaço urbano,especialmente naquele que possui características morfológicas que indiciam uma “regra”clara, plenamente reconhecida e que por isso mesmo importa manter. E, tal como a escaladeste “problema”, se a legislação geral se revela insuficiente ou mal concebida (novareferência aos aspectos generalizantes de uma regra que se baseia em ângulos e não emlocais), há que produzir uma aproximação à especificidade do espaço em questão, de modo aque “naquele” local “com “aquelas características” se produza continuidade e não ruptura (talcomo se produz num Plano de Pormenor e seus derivados).Ao “vazio” inútil, pelo menos no exemplo concreto citado, a passagem do tempo é quem dita,na maior parte dos casos, a solução necessária, que é, muito simplificadamente (tal como oexemplo), a construção ou a reconstrução de algo em falta, recorrendo às “regras” legisladascomo acima foi descrito.No entanto, é curioso como algo que se faz de “regra” é passível de apresentar tantas“excepções” e cada uma mais excepcional do que outra. Á incúria dos proprietários e doslegisladores sucede-se outra causa, menos controlável, mas inexorável no modo se imiscui noespaço urbano: trata-se do Tempo, de diferentes épocas que são marcadas por diferentestipologias, que se sucedem e substituem, nem sempre de forma harmoniosa.

Contínuo/descontínuo

Idealmente, a “cidade” cresce de forma anelar, em que as diferentes épocas se sucedem deforma sucessiva, nascendo num coração medieval, denso e intrincado, que expande os seustentáculos para fora das “muralhas”, menos densificada e com maior área de respiro,diferentes características no geral, que correspondem, “grosso modo”, a diferentespossibilidades e a diferentes ideias relacionadas com o urbanismo.Idealmente, é assim, mas na prática as transformações que se executam sobre o espaço nãotêm necessariamente de ser realizadas sobre “folhas em branco”, tanto que, de facto, não osão. Se de facto a cidade cresce para onde é possível que o faça, na direcção do “vazio” queainda não é urbano, inúmeras experiências há que são realizadas sobre tecidos“desadequados” a regras modernas de salubridade, de funcionalidade, de representabilidadeformal ou de vivência urbana.Neste campo há que fazer a distinção entre as diferentes posturas que regem a actuação nestesentido, dado que se pode tentar a adequação das infra-estruturas existentes aos pressupostosmodernos, ou, pelo contrário, tentar anular estas pura e simplesmente, promovendo umasubstituição “de raiz” em que do antigo apenas restará o local de assentamento. Não se nega aexistência de posições intermédias, de posições nascidas de, ou adaptadas a situaçõesconcretas (e não de idealismos generalizantes), mas, à semelhança do que vem sendoapresentado, o extremismo é necessário para ilustrar o que se pretende comunicar. O “tempo”,por exemplo, cura muita coisa, nomeadamente idealismos extremados, em que os exemplosmais óbvios serão determinados princípios caros ao Modernismo que não admitiam aexistência de vestígios do passado que ditaram a pretensão de demolição da Ribeira Portuense(realizada parcialmente, mas hoje reconstruída em prol de uma classificação como“Património Mundial).Rasga-se tecido antigo para criar novos atravessamentos, abrem-se espaços “vazios” de modoa criar áreas de respiro e de lazer, com base nas formas urbanas preexistentes, mas o resultadoobtido destas acções será determinado pela opção por uma das posturas acima descritas, emque se promoverá a continuação/transição entre o existente e o proposto, ou, pelo contrário, sepretenderá uma ruptura óbvia, formal e ideológica, como meio de afirmação de umaconcepção em particular (de assinalar que com “continuidade” não se pretende fazerreferência ao “pastiche” formal e tipológico).

Da regra à excepção à regra, 2007 Pedro Fonseca Jorge

Contiguidade/obliteração

Neste dois termos resume-se o acima adiantado, assumindo-se sempre que, em qualquer caso,uma intervenção é essencial, na já referida necessidade de adaptar tipologias antigas apropósitos modernos.Aqui convém fazer um parêntesis para justificar o que se entendo por Tipologia, o que, nopresente contexto consiste numa definição de conteúdos que agrupam modelos semelhantesentre si. A Tipologia não é uma forma, uma imagem ou algo de muito específico, antesnascendo da necessidade de seleccionar e classificar modelos para determinado estudo. Assimsendo, o facto de tipologicamente determinados edifícios ainda possuírem alguma validade noque diz respeito à sua implantação, volumetria e solução estética (aqui sim, uma Tipologiabaseada em preceitos formais), tal não implica que as soluções encontradas na definição dacélula habitável interna ainda se adeqúem do mesmo modo a preceitos contemporâneos. Estáem causa a área do fogo, a sua distribuição funcional, a salubridade dos espaços pelo acessoao exterior, etc., etc. (uma apreciação tipológica baseada em aspectos funcionais).Pelo oposto, se o desenvolvimento dos espaços internos da casa há muito concebida podevoltar a ter pertinência (porque embora criados para outros fins, se adequam a novospropósitos), a relação do edifício que os alberga para com a rua e a cidade no geral pode serposta em causa, pelos mais diversos motivo.Relativamente à noção de “cheio/vazio”, o que nos interessa são precisamente as relações quese estabelecem entre o observador/usuário, na medida em que o “espaço público” urbanoconsiste naquilo a que a sua vista tem acesso. Assim sendo, tal como já foi dito, a Rua fazparte do seu percurso citadino, do seu campo de visão, e como tal, o usuário apreende eassimila as Tipologias formais baseadas em princípios de implantação, volumetria,configuração e estética. Doravante o uso do termo “Tipologia” irá restringir-se a estesignificado.Diferentes épocas implicam o uso de diferentes Tipologias que, idealmente, se estabeleceriamde forma contínua, progressiva, anelarmente, e por aí adiante. Mas a substituição acontece e é

Empenas cegas/vazios inúteis, Porto – 2005Pedro Fonseca Jorge

necessária, pelo que o “problema” existe quando contiguamente coexistem duas tipologiasadversas nos valores que as definem: desalinhamento, diferentes alturas, soluções formaisdistintas. Ora, se uma Tipologia vem substituindo outra ao longo do tempo, pode-se afirmarque esse mesmo “tempo” será a “cura” para este mal, em que regularmente uma Tipologiaobliterará a outra. Mas tal não implica que a Tipologia em extinção seja completamentedesadequada ou, igualmente importante, que não tenha sido importante no desenhar de umacidade “antiga”, cuja memória importa preservar. A sua hipotética desadequação funcionalanula-se pela adequação a uma contexto mais lato em que a memória é importante (sem quetal implique saudosismo), e o edifício em extinção, pelo seu novo carácter “excepcional”,quando antes havia sido “regra”, pode albergar novos usos, novos programas, novasutilidades.

Geral/particular

Assim sendo, e porque todo este raciocínio implica um desenvolvimento de escala que evoluide algo amplo e generalizante para uma situação em particular, encontramo-nos já numcampo em que vemos desenhar perante nós situações concretas de sobrevivência da “espécie”na cidade tradicional.Peguemos nas construções apalaçadas de classes privilegiadas que em tempos se encontravamgeneralizadas pela cidade, em espaço que no passado eram praticamente suburbanos e que nostempos actuais consistem no coração dessa mesma cidade, pelo crescimento da mesma, peloaumento da sua escala a nível de “área de planta do edificado”, pelo aumento da densidade efinalmente pela apropriação dos espaços por classes não tão privilegiadas.A semelhante processo, corresponde, como é óbvio, uma substituição Tipológica a todos osníveis. Novas relações com a rua são experimentadas, diferentes formas são aplicadas,soluções funcionais mais coerentes com os novos “inquilinos” são usadas, em detrimento daTipologia precedente.

A uma casa unifamiliar isolada das restantes (semelhantes entre si, tipologicamente), comquatro faces, afastada da rua e expondo uma imagem trabalhada de acordo com a exposiçãosocial do seu proprietário sucede uma casa plurifamiliar, desenvolvida em altura, dispostaface à rua que dispõe de uma imagem obrigatoriamente diversa, pelos menores recursosfinanceiro disponíveis, por exemplo, e pela diferente expressão social dos seus inquilinos.Se progressivamente se assiste a uma substituição, mais rentável a nível de exploração da áreadisponível, tal não significa que a “obliteração” da Tipologia “original” seja total:determinados modelos podem sobreviver, em que, tal como havia sido dito, a precedente“regra” se transforma em “excepção”. Contudo, no contacto entre estas diferentes tipologias, averdadeira crise não se instala pela suposta desadequação tipológica, mas sim porque a“contiguidade” das espécies se assume sem um “remate” que produza uma transição entreduas formas tão díspares.Analisemos a seguinte situação: uma rua, de dimensão razoável e com uma certa nobreza,interpõem-se entre estas duas Tipologias. Pode-se até afirmar que em ambas as faces desta ruaexistem duas “regras” distintas: do lado esquerdo o edificado plurifamiliar, multifuncional,disposto face à rua e desenvolvido em altura. Do outro lado, a vivenda unifamiliar,monofuncional, de altura contida e afastada da rua através de um muro e de uma áreaajardinada. Nesta situação a “contiguidade” é resolvida porque existe um remate, uma soluçãoentre as diferentes tipologias que se pode encontrar frequentemente em diversos contextos

Empenas cegas/vazios inúteis, Porto – 2005Pedro Fonseca Jorge

urbanos. Essa solução não consiste na “distância”, personificada aqui pela existência de uma“rua” (que já foi aqui classificada como “vazio útil”, quando personifica a imagem da cidadeno geral), em que uma ausência se traduz em “transição”.O verdadeiro remate produz-se na presença de “alçados” nas faces comunicantes dasdiferentes tipologias, cujo confronto é resolvido através do uso do vocabulário da cidadetradicional. Esse vocabulário não se resume à presença de “aberturas”, “per se”, mas porquetanto o “cheio” como o “vazio” encontram a sua justificação no meio urbano enquantosituações comunicantes entre si.

Essa “comunicação” entende-se como um conjunto de elementos físicos, sensoriais e deusufruto que não se esgotam na “fachada” enquanto elemento formal. Enquanto espelho de“vida urbana”, a fachada oferece a vivência interior da casa e o comércio traduz a relaçãoentre a “rua” enquanto “percurso” e “vazio útil”. O alçado, com tudo o que isso implica,envolve todos os espaços da cidade, como uma película que justifica a presença da forma e asua ausência.

No confronto (contiguidade) entre duas tipologias contraditórias, esta é a verdadeira ausência:uma empena cega, uma ausência de alçado que se manifesta na “ausência de cidade”. Por seruma ausência, é um “vazio”, e por nada fazer pela imagem da cidade, é “inútil”. E pelo seuregime de “inutilidade”, exige solução.

Utopia/realidade

A empena, cega e feia, a que apenas o tempo consegue adicionar alguma qualidade(observando os escudetes de ardósia das empenas portuenses, tão bem empregues no edifícioda Rua do Teatro por Eduardo Souto de Moura) tem uma solução aparentemente óbvia:construir contiguamente, ocupando o espaço vazio com nova banda construída que una osdois topos (empenas) destinados a estar ocultos. O processo inverso, proceder à substituiçãoda Tipologia mais actual pela mais antiga, agora excepcional, é mais difícil e menoscoerente…Não se pode contudo negar que a “nova excepção” se encontre no presente destituída deinteresse: já foi “regra”, já constituiu cidade, já foi uma presença marcante. É uma memória, ecom importância, para aqueles que a isso atribuem importância. E que deveriam ser muitos. Oseu interesse dilui-se no contexto, numa observação mais abrangente do esquema em que seinsere: lote, rua, cidade; e a sua obliteração assumir-se-á coerente, se a solução para o rematedo edificado não existir (da mesma maneira que se estanca uma ferida).

Tipologia e contexto

Porque o arquitecto, por muito que verbalize, necessita de se exprimir em formas, a “solução”adquire matéria, conforma-se e compõem-se em objecto. Aqui se exclui de imediato acolagem de uma “fachada falsa”, que imita mas não substitui, não obstante ter sido práticacorrente ao longo da História da Arquitectura na composição de diversos espaços urbanos(Miguel Ângelo fá-lo na Praça do Capitólio, em busca de uma simetria que não nega contudovalores urbanos).Este objecto irá assumir-se como um “topo” de uma banda construída, no que consiste numatipologia urbana conhecida, mas que não pertencerá talvez ao contexto da “cidade

tradicional”. Nesta, a permanência da “rua” como contraponto ao “edifício” induz aformalização do quarteirão como uma forma encerrada em si, que envolve anelarmente omiolo privado das habitações urbanas. Como tal, a tipologia de ocupação do lote maisrecorrente é realizada em profundidade, com duas frentes orientadas respectivamente para arua e para o interior do quarteirão. As excepções assumem-se nos gavetos, dotados de duasfrentes de rua, e uma solução interior que varia consoante as dimensões do lote: a fachadapode ser inexistente, ou pode ser multiplicada em vários planos (em soluções que procuramcontornar a profundidade da construção). Mesmo quando, por caprichos do crescimento eevolução da cidade tradicional, um edifício nos oferece a sua “empena” que quer ser “topo”,fá-lo de modo ligeiro, uma vez que, segundo uns, nunca havia sido criada uma solução paraesta situação (pela sua raridade), ou, segundo outros, porque o tradicional sistema construtivode paredes portantes tornava necessária uma intervenção mínima num plano que agora eraalçado.Não se negam outras situações de excepção, mas, verdade seja dita, o “topo” aparece-nos commais clareza, e plenamente assumido quando a cidade inicia um processo de mudançabaseado na aplicação de determinados princípios Modernistas. A banda edificada, e isolada(de outros edifícios, da rua, de gavetos, etc.) “cria” quatro alçados em edifícios que,tipologicamente, não as possuíam. A casa isolada tem-nos, mas esta alberga uma família,enquanto que o edifício de habitação colectiva tradicionalmente encosta os seus ombros aosdo parceiro do lado. Formalismos aparte, em que o volume paralelepipédico se encontradestituído de grandes reflexões sobre a sua relação com a envolvente, a banda exige serrematada, pois as suas faces menores são igualmente alçados, porque se orientam para oespaço público, ainda que a “rua” já não esteja logo ali.Assim sendo, dotar o tecido de uma “cidade tradicional” com uma solução trazida da “cidademoderna” parece um contra-senso, a nível da necessidade, já apontada, de produzir umarelação entre o “objecto” e o “contexto”.No entanto, o “problema”, tal como o aponto, nasce na cidade tradicional, mas é inegável quepossui uma temporalidade mais recente que esta: nasce do confronto de dois “tempos”, semque se possa indiciar qual o “tempo” mais correcto. Certos estudiosos defendem o recurso à“memória curta”, ou seja, ás formas que ainda se nos apresentam edificadas, ainda quedistantes no tempo. Outros recorrem à “memória longa”, em que a investigação se centra emmemórias ocultas pelo desaparecimento dos modelos arquitectónicos.O recurso ao “Estudo Tipológico” não deve ser entendido como uma cedência a umhistoricismo acrítico. Neste, essencialmente, buscam-se soluções, investigam-se situações quecorrespondem a um problema por nós formulado, neste caso, a solução de uma ferida notecido urbano, sendo que, a pesquisa de “Modelos” se faz através de contextos similares: acidade, sempre a cidade. Uma vez efectuado o estudo, encontramo-nos na posse de diversassoluções, intemporais, e nas quais buscaremos algo que se adapte ao problema presente. Porexemplo, na actual produção da arquitectura doméstica, determinados autores investigam aversatilidade do espaço, passível de ser ocupado de diversas formas, por oposição à herançamoderna do utilitarismo funcional. Essa “nova” solução espacial passa, em alguns casos, pelacasa pré-Modernista, cujas divisões, similares, se encontravam destituídas de uma funçãoespecífica, pública ou privada, diurna ou nocturna. Uma solução “tradicional” resolve umproblema “contemporâneo”.Um “topo” é por isso uma solução “moderna”, mas que resolve um problema “tradicional”,ou na cidade tradicional. Como tal, o “Estudo Tipológico” ou mais simplificadamente, oconhecimento da História e do Presente apresentam-se-nos como importantes na composiçãodo objecto arquitectónico, porque pura e simplesmente esse processo assume-se comoenciclopédico.

Forma/conteúdo

Esse objecto tem de ser pleno de “cidade”, ou seja, manifestando-se na forma habitada. “Módulo de Topo” – módulos funcionais, 2007Pedro Fonseca Jorge

E porque a forma me exige conteúdo, a “forma” que remata a empena é um edifício, algoparaalém da mera escultura, pela necessidade de vivência que a Arquitectura exige. O edifícioexige “programa”, e a cidade exige funções que estão em estrita ligação com o tipo devivência que, por exemplo, qualifica a “rua” como um “vazio útil”: o comércio e a habitação.Mas esse programa, corrente na construção que se pretende “rematar” vai ser deste modoaplicado a algo que é morfologicamente diverso: não é uma fachada, não é uma banda. É umedifício em altura, o mais estreito possível, que colmata a “falha” sem ocupar o espaço derespiro que a “excepção” contígua exige.

Com base nestas premissas (e nos regulamentos na altura em vigor), foi criado este “Módulode Topo”, um edifício com 3,90 metros de frente de rua, mas com cerca de 17 metros deprofundidade, em que o seu alçado mais extenso é também o mais importante. Precisamenteaquele que se abre para o interior do lote, e precisamente aquele que substitui a empena, e quecria o espaço vivenciado pelos movimentos que se geram no seu interior e transpiram para oexterior pelas aberturas: luz/sombra, aberta/fechado, presença/ausência.Estes são os princípios rígidos: que se ocupe uma “fatia” fina do espaço livre, e que seofereçcidade onde ela não existia. Tudo o resto tem de ser mutável, adaptável a circunstânciasdiversas porque as diversas situações de empena correspondem a volumetrias diversas.O edifício, muito embora seja aqui apresentado como um projecto acabado, é na verdade umaconcepção abstracta baseada numa sobreposição de módulos diferentemente concebidos deacordo com um programa específico. Neste caso concreto, o piso térreo corresponde a umespaço comercial que se orienta para a rua e para o interior do lote, em que a entrada para osvolumes habitacionais se faz posteriormente. Mantendo este esquema de entrada, podeobliterar-se o módulo comercial, se o carácter da rua assim o exigir, estando o módulohabitacional em contacto com o térreo, fazendo-se a entrada comum no mesmo local do queno exemplo com comércio.A nível de propostas de habitação, que estão condicionadas à área permitida pelas dimensõescompactas do módulo, as tipologias acompanham as possibilidades permitidas por estas.Assim, propõe-se um T0 com 36m2, com a entrada efectuada por intermédio da sala, da qualse acede a uma zona de distribuição/arrumo da qual se acede à casa de banho e à cozinha,orientada simultaneamente para o interior do lote e para a rua: o contacto de funções“habitáveis” com esta deve ser um factor preferencial.Podendo ter-se optado por um “open space”, provavelmente mais rentável a nível deaproveitamento do espaço, a presente solução teve também uma raiz ideológica, uma vez quese procurou usar um esquema modular também na organização interna, ao mesmo tempo quese garante alguma privacidade no uso simultâneo da casa. Deste modo, o segundo módulohabitável consiste num T2, desenvolvido em dois pisos, em que no inferior se encontram aszonas comuns – sala e cozinha, esta de dimensões similares ao exemplo precedente – e umacasa de banho de serviço, um luxo relativamente dispensável, justificado apenas pelaexistência de dois pisos. No superior encontram-se os quartos, acessíveis por uma escada quenasce na sala comum, e intercalados pela casa de banho completa que os serve. Com é óbvio,um dos quartos complementa a “rua”, o outro faz “rua” no interior do lote.As dimensões permanecem contidas, são ao todo 72m2, obtidos pela soma de dois módulosde 36m2, mas que encontram reflexo num tipo de clientela que procura acessibilidadefinanceira e se encontra disposta a habitar no centro das cidades, onde maioritariamente seencontram as situações a que nos reportamos. De facto, os usuários previstos para este tipo deproposta são igualmente importantes, pois têm de ser coerentes com o espaço que se pretendepropor, e com as limitações a que o mesmo se encontra sujeito. Deste modo, dado queactualmente tem sido feito um esforço para que se atraiam as camadas mais jovens para oscentros históricos das cidades (sem que se classifique como tal o espaço em que estamos a“intervir”), de modo a combater a desertificação habitacional e o envelhecimento dapopulação residente, é de supor que a mesma lógica possa ser aqui aplicada, e que aqueles emprincípio de vida que se encontram limitados na sua capacidade financeira estejam dispostos a

“Módulo de Topo”, secçãoconstrutiva – 2005Pedro Fonseca Jorge

fazer as cedências necessárias em termos de área do fogo para habitarem num local da cidadeonde a vida urbana é reflexo do seu modo de vida.A terceira tipologia consiste num T3, obtido pela justaposição de três módulos, num total de108m2, em que mais uma vez a repetição se faz a nível dos espaços interiores. O piso 1, comdois quartos, é semelhante ao do T2, enquanto que o piso 0 substitui a casa de banho deserviço por uma lavandaria. O piso -1 (pois entra-se pelo piso intermédio) é novo, apresentauma sala de estar e o terceiro quarto que justifica a tipologia.Há sem dúvida a hipótese de criar novas tipologias, recorrendo à intersecção de módulos(como o T1 em módulo “e meio”), mas a ideia base permanece: criar um conjunto decircunstâncias que permitam sobreposições variadas. Por um lado, para adaptar o edifício áscondições programáticas, por outro para corresponder a situações concretas a nível de volumedo edifício contíguo. Para tal assumir-se-á o edifício como uma sequência de tipologiassemelhantes ou variadas, de acordo com a necessidade de ter 3, 4 ou 5 pisos, por exemplo (àsemelhança da “moda” da rua).

A tentativa de torna a proposta realista, levou a que desde oprincípio fosse considerada uma solução construtiva coerente,conforme se apresenta no pormenor anexo. Muito emboraestruturalmente possam existir variantes não contempladas,ligadas à maior exigência física de um edifício mais elevado, ouás características geológicas do terreno, as exigências a nível deisolamentos, placagens ou caixilharia, foram pensados tendo emvista a possibilidade deste edifício ser construído. A nível decomposição dos paramentos, teve-se em conta a espessura comumde uma estrutura em betão, de uma parede simples de tijolorevestida a isolamento térmico e reboco sintético (maiseconómica em termos de área, e consequentemente, de largura doedifício. Interiormente, as carpintarias aplicadas, ainda quesimples na forma e na execução (extremamente importante paramanter a proposta dentro de valores de aquisição comedidos),foram igualmente alvo de atenção, e de desenho…Este cuidado não implicou descuido a nível da soluçãoarquitectónica, uma vez que estes dois factores têm de andar emestreita relação. Se a profundidade do edifício foi idealizada tendoem vista um espaço interior correcto (mais o sistema construtivo),tal nunca foi impeditivo de se realizar uma busca paralela a nívelde agradabilidade formal. Se a escada comum cumpre osregulamentos existentes a nível de dimensões, número de degrausem cada lanço e na existência do espaço vazio no meio (porexigência dos bombeiros), foi ainda possível conceber umdesenho em que a escada é igual vista de cima ou vista de baixo,pois também tem “degraus” na superfície superior do lanço. Ouseja, e referindo-nos a algo que abrange toda a composiçãoarquitectónica, o detalhe um factor qualitativo do ProjectoArquitectónico e aplicável à “forma” no geral, e não apenas nosespaços mais “nobres” (com toda a subtileza que o uso destetermo implica.

Figurativo/abstracto

Assim sendo, a solução formal com que o edifício se apresenta consiste numa mera hipótese,no meio de outras possíveis, tantas quanto a associação de módulos (a multiplicar pelonúmero de pisos) permitirem.A estética dos alçados apresentados obedece ao mesmo critério, no sentido em que não é umasolução rígida, podendo ser trabalhada (na medida das possibilidades da distribuição interna)

“Módulo de Topo”, conforme apresentado no concurso “Unbuilt Architecture”, promovido pela Bóston Societyof Architects, 2005Pedro Fonseca Jorge

de acordo com a envolvente. O exemplo a que se recorreu, a nível de “ferida urbana” (daempena) baseou-se sempre na hipotética relação entre duas tipologias diferentes e com igualpeso histórico. Assume-se que a referência estética para esta proposta seja, como é óbvio, oedifício em banda, mas o facto é que outras situações existirão em que o mesmo problema seporá, mas em que a História terá um peso mais relativo a nível do aspecto estético:permanecerá a malha da rua/lote, que importa respeitar, mas o registo formal dos edifícios-empena será mais contemporâneo (sem que isto consista num juízo de valor).A nível de intervenção no “património” desde há muito vêm sendo defendidas posiçõesdiversas, simultaneamente, ou separadas por um período temporal consequente da diversidadede teorias de arquitectura dominantes. No entanto, o consenso contemporâneo identifica anecessidade de se proceder à diferenciação das intervenções distantes no tempo, no sentidoem que cada uma será fruto da sua época, mas sempre no sentido de se integrar o novo noantigo. Nega-se portanto a reprodução do edifício original, porque tal consistiria não só numainverdade histórica, como a mesma reprodução sofreria a nível do pormenor, dadas asdiferentes técnicas e processo construtivos da actualidade.

No entanto, esta postura abre campo a muitas opiniões, tantas quanto os autores passíveis deintervir no património. Podemos identificar duas opiniões extremadas, de modo a facilitar oraciocínio: casos há em que essa diferenciação é menor, embora existente, dado que telha,pedra ou reboco ainda são recursos usados na actualidade, ou, pelo contrário, faz-se uso deuma maior distinção, em que a “paternidade” é assegurada por elementos menores, como aimplantação ou a volumetria.No que nos diz respeito, tal refere-se ao modo como se assume a postura do “nosso” edifício:se integrado no que diz respeito à forma e à imagem, se assumindo um aspectodiametralmente oposto, reforçando o seu carácter de elemento contemporâneo que resolve oproblema expresso, independentemente do local a que se encontra destinado. Esta questão, longe de ser óbvia, quanto a mim, tem raízes mais profundas, pois baseia-se emalgo, por mim defendido, relativo àquilo que podemos denominar como os elementos“definidores da arte”, ou seja, em que é que, de facto, podemos confiar para dizer quedeterminado objecto ou intervenção é ou não arte: virtuosismo, signo e significado.Um dos primeiros elementos a “cair” foi precisamente o virtuosismo técnico e expressivo, nosentido em que se procurava rigor e realidade no objecto representado. O abstraccionismo,nascido talvez da possibilidade de recurso a outras técnicas de apreensão do real (como a

fotografia) vem introduzir outra dinâmica à arte que continua a enfatizar o signo, ou seja,aquilo a que se reporta.Nos movimentos artísticos contemporâneos faz-se uso de outros recursos que não o “objecto”,através de alusões mais ou menos óbvias para “significar o signo”, sendo que, ao que aoobservador diz respeito, apenas o Significado permanece como algo em que se possaidentificar os aspectos qualitativos daquela obra de arte.E talvez aqui se demonstre o verdadeiro virtuosismo do Artista, mas o facto é que tambémabre caminho a que uma arte pictórica se veja substituída pela vertente oral ou escrita: a obraem si encontra-se apoiada apenas no discurso, e não no seu valor intrínseco. E o discurso,contrariando o processo de “idealização/composição”, pode na verdade, constituir em algoelaborado à posteriori, na tentativa de justificar uma forma que nasce duma apreciaçãomeramente estética e estática (não recorrendo ás dinâmicas da envolvente na sua elaboração),até porque não possuímos outros elementos que nos permitam identificar e classificar a “arte”.Sendo este um raciocínio simplista, porque a sua exploração exigiria outra apresentaçãodiferente, defende-se que deste modo a Arte deverá voltar a ser mais figurativa, por oposiçãoao abstraccionismo “total”, estanque para a maior parte dos observadores.Assim sendo, e porque a Arquitectura permanece uma Arte, e por que os seus observadoressão generalizados, defende-se que este edifício, longe de constituir um marco único efacilmente identificável, independentemente da sua localização (se em Lisboa ou no Porto, seem Portugal ou em França), deve por conseguinte “adaptar-se” à realidade circundante, atéporque o seu propósito é cerzir a malha urbana e não acrescentar outro elemento dissonante.A identificação imagética para com os outros edifícios que o circundam é portanto necessária,assim se reforçando a ideia de que o edifício “acabado”, tal como se apresenta na propostaanexa, é apenas uma possibilidade entre tantas outras. Pode questionar-se a pertinência de seproduzir diversidade com base numa questão “epidérmica”, que muitos podem alcunhar de“fachadismo”. Mas uma pesquisa Tipológica não significa obrigatoriamente que se procureapenas “Espaço” ou “Forma”, dado que a Estética é também um tema arquitectónico. Nomomento em que certas tipologias de fogos se tornam obsoletas, relativamente ao habitaractual, não se pode negar a possibilidade que, uma vez inseridos numa malha bem definida, osnovos edifícios se integrem na forma e na imagem, apenas porque não o podem fazer a nívelde espaço interno.

Virtudes públicas/vícios privados

Embora abstracto, este edifício foi concebido com base em regulamentos, pormenoresconstrutivos e factores de conforto reais. Ou seja, é algo que é possível erigir sem grandesdramas na transposição do papel para a cidade.O principal óbice à sua aplicação não se encontra por isso no objecto, mas sim a nível deregulamentação urbana que obrigasse a fazer uso desta solução e da vontade do proprietárioem recorrer à mesma.A nível do domínio privado, não se ignora que existam hipóteses mais rentáveis de fazer usode um terreno, nomeadamente optando por toda uma frente construída, ao invés de proporapenas a colmatação das empenas cegas dos edifícios circundantes. Parte da solução passapela identificação dos edifícios de interesse patrimonial, coisa que já é feita a nível de Planode Pormenor e seus semelhantes, o que, numa primeira aproximação, obrigaria à“reutilização” das preexistências. A construção dos topos oferece-se deste modo como algomais pertinente, condicionada que está a construção de toda a frente, mas a escolha destasolução esbarra igualmente nas possibilidades de lucro que a mesma oferece. Racionalmentefalando, um edifício com um único apartamento por piso servido por uma caixa de escada eum elevador não é a tipologia mais rentável. Principalmente se para o construir se teve deabdicar de anexar um corpo a outro volume proposto, por uma questão de respeito pelosíndices de construção.

Painel concebido para o concurso “Unbuilt Achitecture”, promovido pela BóstonSociety of Architects, 2005Pedro Fonseca Jorge

A vontade em “cerzir”a cidade não semanifesta apenas navontade pública, sendoque o privado acabapor ter uma palavra adizer, na medida que ésobre o seu domínioque se intervém, namaior parte dos casos.A nível deregulamentação,importaria identificaros locais, tal como seidentifica opatrimónio, em quesemelhante tipologiapoderia ser aplicada, oque se manifesta numprocesso complexo edifícil, dada aparticularidade de cada“excepção”, a nível delocalização e mesmode dimensionamentos.Aqui reside averdadeira utopia…

ARTE PÚBLICO EN LA RECONVERSIÓN DE LOS VACÍOS URBANOS:BARCELONA

C. Grandas (Ayuntamiento de Barcelona) -A. Remesar (Universitat de Barcelona)GRC 2005SGR00150 Art, Ciutat, Societat

Proyecto BCN ART PUBLIC financiado parcialmente por los proyectos del MEC HUM2006-12803-C02-01; HUM2004-22086-E, HUM2005-00420; BHA2002-00520

La desactivación de determinadas áreas industriales y de transporte en la zona oriental deBarcelona produjo un importante número de hectáreas que esperaban un cambio de uso para sureconversión.El desarrollo del proyecto de los JJ.OO. de 1992 permitió la recuperación de una parte de ellascon el proyecto de la Villa Olímpica, el cinturón litoral y la recuperación paisajista de la zona queincluía las playas.Con posterioridad los proyectos de Diagonal Mar y del Forum 2004 consiguieron colmatar elfrente marítimo de la ciudad hasta el límite del río Besòs.En este paper se estudia el papel del arte público en los procesos de construcción del territorio.Analiza lo que parece ser un cambio de paradigma en la política de arte público de la ciudad deBarcelona, especialmente al considerar estos nuevos territorios desde su escala metropolitana.Los espacios públicos que estas operaciones han generado han recibido un tratamiento diferencialrespecto a los restantes de la ciudad para los que se definió un cierto modelo de actuaciónreconocido a nivel mundial.Por su escala y función metropolitana estos nuevos espacios han permitido el uso artístico demateriales hasta el momento utilizados de modo puramente funcional y su aplicación directa eninfraestructuras, como es el caso del asfaltado con finalidades de ornato y/o de señalización.Al mismo tiempo, especialmente en aquellos vinculados con el Forum, la interrelación entreesfera pública y espacio público se hace patente en las características del arte público, tanto ensus contenidos como en los soportes utilizados, lo que lleva a la pregunta de la pertinencia deestas propuestas para el espacio público.

Img01 Imagen reciente del área del Forum 2004

El área del Besòs en el imaginario urbanístico de Barcelona

En 1859, Ildefons Cerdà vio como su proyecto de reforma y ensanche de la ciudad era al mismotiempo aprobado por el gobierno de Isabel II en Madrid y rechazado por las autoridadesmunicipales de Barcelona, dirigidas por los agentes promotores de la construcción y apoyadas enuna ideología de corte nacionalista.Pese a ello, uno de los aspectos destacados de este plan urbanístico era la construcción de unagran zona urbana en el sector oriental de la ciudad en la ribera del río Besòs. Esta fuerte imagenha sido recurrente en todos los grandes planes de desarrollo de la ciudad hasta llegar a suformalización actual.

Img02Plano del proyecto de Reforma y Ensanche de Ildefons Cerdà (1859)

Tanto León Jaussely, al presentar su plan de enlaces en 1905, como el equipo del GATCPACdirigido por Le Corbusier en el Plan Macià de 1934, como el Plan Comarcal aprobado en 1953-ciertamente el primer instrumento contemporáneo de planificación del Área Metropolitana deBarcelona- recogían la idea formulada por Cerdá. Finalmente, el Plan General Metropolitano de1976, todavía vigente, así como el Plan de Costas de 1983 reincidían sobre esta idea.

Img03 Diaporama del Plan Macià de 1934

Img04 Planta básica de zonificación del Plan Comarcal de 1953

Img05 – img06 La operación del Plan de Ribera (1965- 1970) supuso la primera gran reacción de los movimientos vecinales de la ciudad a los planteamientosespeculativos de creación de una ciudad post-industrial.Incluso en este plan se recogía la idea del área del Besos como gran parque de la ciudad

Sin embargo, la evolución del urbanismo barcelonés no ha sido excesivamente respetuosa con laidea de finalizar la ciudad con un gran parque marítimo-fluvial, en gran parte debido a lainfluencia de las actividades portuarias, de gran impacto en la economía de la ciudad. De acuerdocon el plan de 1953 y concretado en el planeamiento de 1956 para el sector de levante, norte ysur, se produjo la inmediata apertura de la Gran Vía hacia el norte y se generó una gran zona detransformación de usos, con edificabilidad directa y una volumetría especial, con lo que el áreanororiental de la ciudad se convierte en una de las zonas preferidas para desarrollar “polígonos deviviendas” que tratan de paliar la escasez de viviendas provocada entre otros factores por elaluvión migratorio de los años 50 y 60. Huyendo de la miseria de la España agraria, una legión deinmigrantes llega a la ciudad en busca de un futuro mejor y de trabajo en el parque industrial delárea metropolitana de Barcelona.Si el hacer ciudad se define según el LUB (Laboratorio de Urbanismo de la UniversitatPolitècnica de Catalunya) gracias a la presencia de tres procesos: parcelación, urbanización yedificación, es sobradamente conocido que el “hacer de la ciudad” durante el franquismo sebasaba exclusivamente en dos de estos procesos: la parcelación y la edificación. Enormes áreasde la ciudad quedaron abandonadas a su suerte al carecer de los elementos más importantes queconfiguran la calle. La calidad de estos espacios públicos se podría definir por su condición de“no-lugares” que, a partir de 1979, requirieron de un enorme esfuerzo por parte de laadministración local democrática para recuperar su condición de calidad mínima, dentro delproceso que Antonio Font ha llamado “urbanismo remedial”.

Img07 Si en 1929 con motivo de la Exposición Universal de Barcelona ya se produjo un primer aluvión migratorio, especialmente de la regiónMurciana, en la década de los 40,50,60 será desde todas las partes de España.Img08 Las áreas del Llobregat (Cornellá, Sant Feliu, Hospitales, El Prat, etc) así como la del Besos ofrecían una gran cantidad de espacio ruralque podía ser reconvertido en urbano gracias a los Planes y a la imperiosa necesidad de construir vivienda que acabara con la lacra de losbarrios de barracas Del urbanismo remedial a la monumentalización de la periferia

1.- Antecedentes

Una parte importante de las operaciones urbanas en la zona del Besòs se desarrolló en base apromociones del propio municipio, del Instituto Nacional de la Vivienda o como promoción decooperativas de vivienda, generalmente vinculadas con el arzobispado.El panorama de la urbanización de estas zonas, como hemos señalado, era desolador aunque enalgunos casos – como podemos ver en el cuadro adjunto – el perímetro de las viviendas estabasuficientemente cuidado como para introducir elementos simbólicos de arte público.Algunos de ellos, por entonces entendidos como emblemas de la estrecha sintonía del poderpolítico con el eclesiástico, eran recuperaciones de elementos de memoria de la ciudad,fragmentos explícitos del poder civil compartido con el religioso. Las cruces cristianasindicadoras del los límites de término municipal permitían, de modo sencillo, reconstruir algunode los espacios de memoria del territorio.

IMG09 Cruz de término de Sant Martí 1344, reconstruida en 1589, desaparecida y reconstruida de nuevo después de1940

IMG10 Cruz de término de Sant Adrià de Besòs 1944. Josep M. Pericas

En la década de 1960, la llegada de los planes de desarrollo y del primer turismo coincide con lapresencia de otros pocos ejemplos de arte público que formaban parte de una explícita voluntadde conferir una cierta calidad al entorno construido, caracterizando un ejemplo de intervencionesque, dentro de una temática entre la memoria y la tradición, en su ejecución más vanguardistapretendían aunar arte y arquitectura.

IMG11 Josep Ricart i Maymir Quatre falques. 1967

IMG12 Josep Ricart i Maymir Matrimoni. 1967

IMG 13 Josep Ricart i Maymir Cooperació. 1967

IMG14 Josep Ricart i Maymir Cooperativa de Tramvies. 1968

IMG 15 Joan Fontanillas Theolongo Bacchio. 1973

2.- De la monumentalización de la periferia al día después de los JJ.OO. de 1992

La política de reconstrucción de la ciudad impulsada por Oriol Bohigas se fundamentaba en unaclara opción de dotar la periferia con contenidos simbólicos. Estos contenidos se desarrollabanbien en el proceso mismo del proyecto urbano de cualificación del espacio público, o bien en eldesarrollo del programa de arte público que ha dado fama a Barcelona. Este programa formabaparte tanto de las iniciativas del gobierno central de la ciudad como de las de los propios distritosen que se divide.La zona lindante con el Besòs, aunque en menor cantidad que otras, vio una serie deintervenciones importantes, siendo alguna de ellas de primer nivel internacional como la deRichard Serra en la plaza de la Palmera de Sant Martí.

IMG16 Richard Serra El Mur. 1982, 1984

IMG17 Mercedes Ortega Les Cultures. 1984, 1998

A partir de este momento, la remodelación de alguna de las arterias de la zona, especialmente eldiseño de la Rambla Prim, permitió introducir un eje, al estilo del desarrollado en Nou Barris, conuna clara vocación monumentalizadora.

El eje de la Rambla Prim

IMG18 Francesc Torres Monsó El Llarg Viatge, 1992

IMG19 Miquel Navarro Fraternitat, 1992, 2004

IMG20 Pedro Barragán Font de Coure, 1992, desmontada en 2002

IMG21 Joan Oliver Megajoguina, 1997

El trabajo sobre los ejes y las arterias tuvo una de sus mayores manifestaciones en el nudo viariode la Trinidad. Un anillo de circulación rodada y ferroviaria se cerraba sobre un parque diseñadopor Joan Roig y Enric Batlle que, a su vez, contenía piezas de arte público.

IMG22 Rafael Bartolozzi Dona que es banya, 1993

IMG23 Joaquim Ros i Sabaté El Llarg Viatge, 1992

Sin embargo, es curioso constatar como a pesar del esfuerzo monumentalizador, los vecinos deesta área se sentían abandonados de las regalías que el proyecto de los JJ.OO. del 92 estabaesparciendo por las diversas zonas de la ciudad, especialmente las denominadas “zonasolímpicas”. No es de extrañar, por ello, que surgieran algunas iniciativas vecinales implicadascon la cualificación del espacio público, como curioso es el constatar que frente a la figuraciónde las obras del Nudo de la Trinidad, estas iniciativas vecinales se concretasen en visionesabstractas o estilizadas de elementos de arquitectura o de mobiliario urbano.

IMG24 Ferran Soriano Contrapunt - A Maria Aurèlia Capmany, 1992

IMG25 Alberto Fraile Escobar - Antonio Moreno sobre una fuente de MBM L'Obelisc del Bon Pastor, 1992

La política de reorganización de los ejes viarios de la ciudad continúa tras los Juegos Olímpicos.En esta zona asistimos a dos operaciones de conectividad importante. La primera con laconstrucción del puente del Potosí sobre el río Besòs para mejorar la conexión con Santa Colomade Gramenet. La segunda, una vez en marcha las Rondas de la ciudad, con la transformación deuna de las vías de salida hacia el norte en un importante eje cívico: la Rambla Guipúzcoa.

IMG25 Alberto Cavazos Yo, América, obra de 1977, copia en este emplazamiento de de 1995

IMG26 Francesc Torres Línia de la Verneda, 1999

El interior del territorio se remodela de forma constante, abriéndose plazas y mejorandoostensiblemente la calidad del espacio público, en parte con la instalación de obras de artepúblico, algunas clara permanencia de retazos de arqueología industrial símbolo de un pasadocercano, otras elementos de provocación, pero siempre reflejando un comportamiento cívico degran impacto social y urbano.

IMG28 L35 Arquitectes Museu Macosa MTM, 2000

IMG29 Colectivo Almorrana Arte, 2001

IMG30 Jaume Cases A Ramon Calsina, 2001

3.- Las infraestructuras de transporte

Contrariamente a otras ciudades, el transporte público de Barcelona no se caracteriza por unapresencia masiva de arte público. Sin embargo, la ampliación de la línea 3 con tres nuevasestaciones, supuso un cambio en esta tendencia y en el año 2003 las nuevas estaciones de la línea11, que bordea el Besòs, fueron ornadas con obras de arte de artistas emergentes.Seguramente lo más interesante de estas propuestas sea el cambio de lenguaje y de soportes.Fotografía, hologramas, y proyecciones suponen una gran novedad en el espacio público deBarcelona.También alguno de los procedimientos de trabajo utilizados que implicaban, de modo directo oindirecto, la participación de los vecinos.El intento de vincular la obra con el lugar de su exposición es una constante en estos trabajos,tanto a nivel temático como de los motivos utilizados.

IMG31 Gemma Nogueroles Casa de l’Aigua

IMG32 Ramon Parramon e Núria Pares Torré Baró- Vallbona

IMG33 Eugènia Balcells Jardín de luz Ciutat Meridiana

IMG34 Turismo táctico Vd. Está aquí Can Cuiàs

4.- ¿Cambio de paradigma? De Diagonal mar al Forum 2004

En el año 2002 se inaugura el parque de Diagonal Mar. Como señalan Josep M. Huertas y JaimeFabre, “Pocas veces un parque se ha inaugurado con tanta presencia humana. Dicen que unas85.000 personas visitaron Diagonal Mar los días de la fiesta de la Mercè de 2002, que se hizocoincidir con la inauguración de Diagonal Mar, el parque ideado por los arquitectos EnricMiralles y Benedetta Tagliabue. El primer día que estos dos arquitectos fueron a los terrenosque tenían que acoger el nuevo parque se encontraron que había llovido, y pensaron en laimportancia del agua para darle un gran protagonismo. En un principio, el parque era unaextensión libre de edificios y se llamaba Maresme. No obstante, las presiones del promotor,Gerald Hines, determinaron que los edificios estuvieran incrustados dentro del parque, a pesarde las protestas de algunos arquitectos municipales del momento, y tanto la promoción privadacomo el parque se estrenaron con el nombre de Diagonal Mar.”

MTBParc de Diagonal Mar. 2002SANT MARTÍ

IMG35, IMG36, IMG37

En este período ya se habían iniciado las obras del Forum 2004, este enorme espacio de más de14 ha que inicialmente se dedicaron a la efemérides del Forum Mundial de las Culturas y que hoyen día está a la espera de una definición urbana y metropolitana.Mientras que el arte público de Diagonal Mar consiste en el conjunto de estructuras metálicas quehacen la vez de fuentes y glorietas, junto a las grandes floreras tapizadas de cerámica a lo“trencadís” y todas ellas obra de sus arquitectos; el programa de arte público del Fórum esesencialmente un programa de interiores para “ennoblecer” los edificios construidos para laocasión.Además una parte de las obras artísticas no se inaugura hasta muy recientemente, marzo de 2007,introduciéndose en unos casos la técnica de la proyección y en otros la obra como soporte de lainformación.

IMG36 Eugènia Balcells Barcelona, postal de postales 1991, 2004

IMG37 Antoni Tàpies Complemento miraculós Colocada en 2005, 2007

IMG38 Eulàlia Valldosera Aquí hay tomate 2004, 2007

IMG39 Carme Solé Vendrell Ibithal, 2004

IMG40 Cristina Iglesias Sin título. Pasaje cobrizo, 2004

IMG41 Tony Oursler Sexta Pared, 2007

IMG42 José Antonio Antonio Martínez Lapeña, Elías Torres Chimenea solitaria, 2007

A estos elementos debemos añadir una nueva intervención en el metro, concretamente en lanueva parada Maresme-Forum de la Línea 4.

IMG43 Enric Mauri Bon Viatge, 2004

El proyecto del Forum supone, asimismo, un tratamiento nuevo en el pavimento con laintroducción del color, sea tanto en los diseños de los arquitectos del recinto, utilizando asfalto,como en la plaça de Llevant, obra del grupo Foreing Office y que utiliza losetas de color de

pavimento hidráulico. Su categoría plástica es algo que la arquitectura ya recogía en eltratamiento de los suelos en interiores con mosaicos decorados, al tiempo que proviene no sólo dela voluntad de diseñar con vocación artística, sino también de una visión contemporánea de trataresta bidimensionalidad como un lienzo y sus coloraciones al óleo.

IMG 44 y 44a José Antonio Martínez Lapeña, Elías Torres Asfalto 2004

IMG45 Foreign Office Arch. Plaça de Llevant LOSETAS 2004

IMG46 Albert Oehlen Parque de la Pau TESELAS, 2004

IMG47 Abalos y Herreros Parque de la Paz, Dibujo- diseño de paisaje, 2004

Esta zona, además se ve cualificada por los nuevos trabajos infraestructurales en la Gran Vía deBarcelona, en su cobertura y urbanización superior, proyecto de Andreu Arriola y Carme Fiol,con intervenciones puntuales de EMBT y de Josep Viaplana

IMG48 Andreu Arriola – Carme Fiol Semicobertura de la Gran Vía, 2007

IMG49 Josep Viaplana Puentes sobre la Gran Vía, 2007

IMG50 EMBT Pantallas acústicas en la Gran Vía, 2007

CONCLUSIONES

La zona de Barcelona limítrofe con el río Besòs se encuentra en un proceso de fuertetransformación urbana y social. En este artículo hemos analizado la presencia del arte público enla zona que podemos resumir del modo siguiente,

1.- En los años cuarenta se produce una cierta reinvención de antiguos lugares de memoriamediante la introducción de las cruces de término destruidas durante la guerra.

2.- No será hasta el final de la década de los sesenta que volveremos a hallar una cierta actividadvinculada con el arte público. Las realizaciones se encuadran en lo que podemos llamar “Arte enla arquitectura”. El desarrollo de nuevas operaciones inmobiliarias protagonizados por elAyuntamiento o por cooperativas permite la emergencia de unas pocas obras, de carácteralegórico, de escaso tamaño y concretadas materialmente en piedra.

3.- Con el final de la dictadura y dentro de los procesos de “urbanismo remedial” vemos que secumplen los lemas políticos del ayuntamiento. Monumentalizar la periferia en este territorio

supone primero la introducción de obra de autores de primera línea, como es el caso de RichardSerra, y posteriormente, con la articulación de algunos ejes urbanos en la zona en el ámbito de losproyectos para los JJ.OO. del 92, la introducción de una serie de obras organizadoras de estosnuevos espacios (el eje de la Rambla Prim y sobre todo la magnífica obra de Francesc Torres “LaLínea de la Verneda”). También apreciamos una constante del arte público en Barcelona: suimplicación con las grandes infraestructuras viarias (nudos, puentes, etc). En este caso lafiguración cede su terreno a la abstracción y a las propuestas de tipo conceptual, aunque con unsoporte matérico (piedra, hormigón, acero) considerable.

4.- En este mismo período asistimos a la “toma de la calle” por parte de grupos de vecinos queconsideran que algunas áreas del territorio no poseen un carga simbólica suficiente y, por ello,producen obras nuevas o reintepretan algunos materiales pre-existentes

5.- La mejora del sistema de transporte, con la introducción de nuevas líneas de metro, supone unprimer cambio de paradigma, puesto que tanto los temas, cuanto los artistas y los lenguajesutilizados suponen un cambio radical respecto a las propuestas de arte público habituales en laciudad. La introducción de nuevos soportes – posibles por hallarse en zonas resguardadas de laintemperie- corre en paralelo a nuevos posicionamientos de los artistas que pretenden que susobras puedan ser catalizadores de espacios de memoria hasta el momento poco apreciados.

6.-Por último, las operaciones vinculadas con el área del Fórum marcan un nuevo cambioparadigmático. Por una parte, como es el caso de Diagonal mar o la cobertura de la Gran Vía, elarte público forma parte integrada del proyecto paisajístico y arquitectónico. La interacción de lasartes se produce gracias al “arquitecto” capaz de diseñar y hacer arte con su propio lenguaje.

Por otra parte, la escultura se repliega en el interior de los edificios, desmaterializada ydesdensificada, con una emergencia importante de la pintura, al tiempo que la superficie del suelodeviene un espacio de intervención estético al mismo tiempo que funcional.

Como decíamos la zona está sufriendo grandes cambios. Metodológicamente la hemos aislado deun conjunto de operaciones que, sin lugar a dudas, influirán en su definición y aspecto.Concretamente no hemos valorado el papel de la operación 22@, ni el de la transformación de lazona de la Sagrera con el complejo de la estación del tren de alta velocidad. Tampoco hemosanalizado el impacto recíproco de proyectos como el Forum con la renovación del barrio de LaMina

IMG51 Vista aérea de La Mina con la construcción de su Rambla

IMG52 Proyecto del CR POLIS de la UB (A. Remesar, V. Valcarce, X. Salas, N. Ricart, C. Sist., C. Valente, S. Vicente, T. Lopes) para laRambla de Mina que se ejecutará a partir de septiembre de 2007

En este análisis hemos recorrido un territorio que representa casi una cuarta parte de la superficiede la ciudad de Barcelona. Seguramente es un territorio que, al igual que sucede en laarquitectura, está definiendo nuevos parámetros que nos obligarán a cuestionar y replantear elmodelo "Barcelona de Espacio y Arte Público" que iniciara su andadura a principios de los añosochenta y que conllevó, parejo al esponjamiento de los tejidos urbanos densificados, una nuevaidentificación del espacio urbano y su posterior consolidación. Las nuevas demandas sociales yuna transformación de ámbito superior al metropolitano posiblemente se erijan como losindicadores de que este modelo está agotado tal y como lo conocíamos.

ESPAÇO PÚBLICO E FRENTE DE ÁGUA [REPENSAR O LIMITE]Rita Ochoa e-mail: [email protected]

Universidade de Barcelona/Universidade da Beira Interior

O limite é o verdadeiro protagonista do espaço; como o presente, outro limite, é o verdadeiro protagonista dotempo.(Eduardo Chillida em Barañano, 1999: 31)

No mapa físico – e também mental – das cidades de água, o seu limite é associado à linha dedemarcação entre a cidade e a água. Pretende-se, no âmbito desta reflexão, questionar estelimite.

Partindo do pressuposto que o espaço público urbano possui um papel estruturante e definidorna cidade (invertendo assim a sua definição como vazio urbano, sugerindo antes considerá-locomo cheio urbano) e considerando que a própria água pode ser espaço público (como espaçopercorrível, como via de transporte ou mesmo como espaço acessível fisicamente), podendoconstituir-se ela própria como um prolongamento da cidade, propõe-se subverter todo umimaginário, segundo o qual a cidade termina, literalmente, onde começa a água. Do ponto devista da cidade acessível – usufruível – por todos os seus cidadãos, onde termina o domíniourbano?Constatando as várias operações de regeneração urbana que se têm vindo a realizar nas frentesde água, utilizando como expressão chave a “aproximação das cidades à água”, pretende-seobservar como é que a cidade se relaciona, de facto, com a água. Qual o grau de interacçãoentre estes dois meios?

Na procura deste novo limite – assente na construção de cidade a partir do espaço público –propõem-se duas abordagens:

Uma leitura horizontal, baseada na observação dos diferentes acontecimentos que se sucedemao longo da frente de água – públicos ou de acesso restrito –, que configuram umagradação/escala de valores de acessibilidade. Elaborando como que uma dissecação da frentede água – e considerando como exemplo a cidade de Lisboa, no seu âmbito metropolitano –,num extremo dessa escala de valores estarão provavelmente as frentes portuárias (acessointerdito à água), noutro extremo a praia (acesso físico à água) …

Por outro lado, uma leitura vertical, assente na análise dos principais espaços públicos deligação – física e simbólica – da cidade com a água, muitos deles com origem histórica, masque, apesar da sua transformação, permanecem na cidade actual.

A Arte Pública urbana constitui-se nesta abordagem como um indicador fundamental,elemento unificador das duas leituras e que irá tornar significativos os espaços charneira dacidade (rótulas).Por um lado, a sua localização/relação com o espaço envolvente traduz o grau deacessibilidade à água (leitura horizontal); se por vezes a sua implantação vai até à própriaágua (El Peine del Viento [Eduardo Chillida] nas rochas da praia de Ondarreta, em SanSebastián), em Lisboa, onde as infraestruturas portuárias ocupam a quase totalidade da frentede água, a localização das obras de Arte Pública irá revelar os espaços de acesso onde o portoé interrompido – as brechas (Chaline, 1994).

Simultaneamente, a Arte Pública constitui-se também como reveladora dos eixos de ligaçãoda cidade com a água (leitura vertical), acentuando esta ligação através do carácter simbólicoque introduz nos espaços; paradigmático é em Barcelona o eixo da Rambla, que culmina, naPlaça Portal de la Pau, com o Monumento a Colón, cujos desenhos patentes na MemóriaDescritiva do Projecto revelam um interessante paralelismo (tanto na relação espacial do

monumento com a envolvente, como no desenho da própria praça) com o Terreiro do Paçolisboeta…

LIMITE

Para Kevin Lynch, o limite é um dos elementos que compõem a imagem da cidade. Em Aimagem da cidade, define: os limites são os elementos lineares não considerados como ruas:são normalmente as fronteiras entre duas áreas de espécies diferentes (1960/1989: 73).No âmbito das frentes de água urbanas constata: o rio Charles [Boston], como limite que é,faz a distinção clara de água e cidade, lado a lado (…). Esta é contudo uma característicarara nos limites. Assim, na frente de porto do mesmo rio, a noção de água não era tão clara,pois era apagada por muitas estruturas e pelo afastamento das actividades diárias da vida doporto (1960/1989: 74).Ao longo da frente de água existem uma série de acontecimentos espaciais e actividades (queLynch denomina de acidentes) que impedem a definição de limite como uma linha contínua eevidente; não existindo, do ponto de vista das vivências urbanas (do espaço público),acessibilidade à agua, nem continuidade ao longo dessa frente, trata-se de um limitefragmentário: em sentido abstracto é contínuo mas apenas visível em alguns pontos(1960/1989: 74).

Nesta reflexão acerca do limite da cidade de água (ou da desconstrução da ideia do mesmo), aanálise das obras urbanas do escultor Eduardo Chillida, mais especificamente aquelascolocadas em espaços que se relacionam com a água, torna-se aqui relevante.Chillida questiona o conceito de lugar e de limite; criar um lugar significa colocar limites,delimitar introduzindo um espaço ou esvaziando-o. Este questionamento do conceito de limite(e de espaço) e de vazio (e de silêncio) aparece frequentemente nas suas arquitecturasdelimitadoras focando a exactidão das lonjuras, o horizonte que determina e fecha, na suatradução etimológica1 (Barañano, 1999). Para Chillida, o material do escultor é o espaço mas é também o vazio, só com ambos seconstroem lugares carregados. Da mesma forma que a matéria da música é o som mastambém o silêncio. Todo o silêncio está feito de palavras que não se disseram (MargueriteYourcenar em Barañano, 1999: 31).

A colocação da obra tem uma importância fundamental; esta é erigida em diálogo com aenvolvente, ganhando sentido em função da paisagem. Um claro exemplo é a obra, El Peinedel Viento, em San Sebastián2, três peças para a contemplação que se relacionam directamentecom o mar, as rochas e o horizonte desconhecido. Chillida afirma Lo que es de uno es casi de nadie, no sentido em que todos somosproprietários da obra de arte desde o momento em que estamos diante dela. A Arte Pública épública porque usufruível. Ao introduzir esta obra nas rochas da Praia da Ondarreta, Chillidaestá a prolongar o usufruível – a própria cidade –, criando um lugar e carregando-osimbolicamente.

Com Elogio del Horizonte, em Gijón3 o escultor abre um novo panorama aos habitantes dacidade. Esta obra criou um campo mental de contemplação que estendeu a cidade de Gijónaté ao mar, aproximando a sua visão e dos seus limites. Chilida (…) deu à cidade: uma portaque se abre ao infinito; um limite para ver o que não tem limites; um lugar sem tecto ondenos centramos entre o céu e a terra para, ouvindo o rumor das águas, poder também vê-las;um marco que nos envolve o horizonte e a cidade e que nos devolve a medida do escultor,que não deixa de ser a sua escala humana (Matilla, 1991: 23).

1 Do grego horízon – o que limita (Dicionário Universal Texto Editores).2 Obra de 1976.3 Obra de 1990.

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Tanto em El Peine del Viento como em Elogio del Horizonte, Chillida amplia o domíniourbano (o limite) criando um lugar, através da coordenação de dois planos opostos: o céu e omar, que se unem no horizonte.

TERRA MARÍTIMA/ÁGUA URBANA

A definição de limite como algo que estabelece uma separação entre duas realidades, poderáconduzir à contraposição entre terra e água, entre cidade e mar, entre cheio e vazio. Oestuário do Tejo, na sua escala imponente, configura-se como o Grande Vazio, onde, pelasua própria natureza, estão ausentes as pessoas e a vida urbana, ou então ausentou-se, ele,da vida da cidade. E, ao mesmo tempo, caracteriza a cidade de Lisboa de uma forma única, asua vacuidade a tornar significativo o cheio, numa relação singular de complementaridade(Sisti, 2007).

Estas oposições não são lineares. Vítor Matias Ferreira, à expressão onde a terra acaba e omar começa (ilustrando a natureza transfronteiriça daqueles territórios), contrapõe a terramarítima e a água urbana. A identidade das cidades de água é assim construída a partir deuma dupla projecção terrestre e aquática.Para este autor, a terra e a água, na sua qualificação urbana, são elementos que aparecem nasua intima e estreita interacção, de tal modo que a formulação de um deles é condição deenunciação do outro: como não constatar, então, que esta cidade de água e este mar urbanoenunciam, conjuntamente uma metáfora fascinante? (Ferreira, 2004: 17). Cada um desteselementos encontra no outro uma complementaridade, senão mesmo uma razão de formulaçãoe de existência.

V. M. Ferreira refere-se à especificidade da frente estuarina do Tejo: o estuário supera oslimites citadinos de Lisboa, criando frentes de água num território de configuração maisampla que a cidade; existe em Lisboa uma dualidade fluvial e marítima, que vai a par com asua dupla condição urbana e metropolitana. Desta forma, contraria a designação de frente ribeirinha, no sentido em que esta confina a suafrente de água a uma dimensão exclusivamente fluvial, o que constitui uma menorização deum posicionamento que aquele estuário nunca teve, bem pelo contrário. Lisboa, enquantocidade de água, só assume plenamente uma tal projecção naquele envolvimento marítimo,seja na sua frente atlântica seja na frente estuarina do Tejo, que lhe acentua, assim, aquelacondição de “mar mediterrâneo” (Ferreira, 2004: 26). Constata assim outra das suasambiguidades: sendo uma cidade atlântica, é-o também de matriz culturalmente mediterrânea.

Do ponto de vista das vivências urbanas, as fronteiras não são definíveis. Dentro destadiluição das fronteiras torna-se pertinente referir o espaço de praia. A praia urbana constitui-se como um prolongamento da cidade; sendo a própria água espaçopúblico, fisicamente acessível, tanto as vivências urbanas (a cidade) são prolongadas até àprópria água, como esta se estende também até à cidade – uma cidade com uma frente depraia possui uma relação completamente distinta com a água –, proporcionando umacontinuidade física e visual entre dois meios distintos: o sólido e o líquido, a cidade e a água.As matérias urbanas fundem-se com as matérias naturais (areia, água…), não sendoperceptível um limite definido entre as duas.

Bruttomesso (1998) refere-se ao espaço de praia como uma categoria especial de espaçopúblico urbano, uma espécie de grande praça, que estende até à água a possibilidade deencontro e socialização, típica dos espaços colectivos.Várias cidades têm vindo a proceder à regeneração das suas praias e da sua relação com acidade, como estratégia geral de revalorização do espaço público. É o caso de Barcelona, na medida em que, para além de regenerar o espaço de praia (que setorna aqui um factor competitivo marcante), criou continuidades horizontais e verticais: tanto

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ao longo da frente de água, como dos espaços públicos que ligam a cidade à água, emdirecção à praia, como por exemplo o percurso pedonal que liga a Rambla, passando por PortVell, à Praia da Barceloneta.

BARREIRA

Também a concepção da água como barreira pode ser errónea; sendo a água consideradacomo obstáculo, como um fim urbano, ela pode, no entanto, ser um elemento ligante. É o casode cidades com 2 margens. Muitos limites são mais uma costura de união do quepropriamente uma barreira isoladora (Lynch, 1960/1989: 77)4.

Vítor Matias Ferreira define as frentes de água urbanas como fronteira territorial, a serentendida não como um eventual obstáculo mas como uma demarcação de territórios, paraalém da sua natureza material e dos respectivos processos de (re) construção social epolitica (…). Apresentando-se quase sempre como um obstáculo físico, que não propriamentede ordem espacial, é contudo na articulação daqueles distintos territórios, em estadopermanente de transição, que acaba por se reconfigurar aquela dita barreira territorial(2004: 23).

Muitas vezes a barreira física, o obstáculo propriamente dito, começa muito antes da frente deágua. As duplas barreiras rodo ferroviárias, as superfícies ocupadas por infraestruturas ligadasao sistema portuário, os vazios urbanos deixados pela desactivação dessas mesmasinfraestruturas – espaços portuários ou de actividade industrial –, funcionam comoimpeditivos de um verdadeiro usufruto da água urbana, definindo assim um limite da cidade,no sentido da sua urbanidade, muito aquém da própria água.

RELAÇÃO DA CIDADE COM A ÁGUA

A relação da cidade com a água é visível no seu espaço público; este constitui o lugar deencontro entre aquelas duas realidades e, para além de ser influenciado por factores externos(históricos, económicos, sociais), comuns a várias cidades, é-o também por condiçõesespecíficas, que Ariane Wilson (2001) designa de factores de identidade.

Em The city assembled, Spiro Kostof (1992) aborda a morfologia urbana das cidades de água,o seu crescimento e a particularidade das suas frentes de água. A especificidade do sítio, amaneira como este encontra a água (no seu espaço público), caracteriza a cidade: a sua forma,mas também a sua identidade. Kostof observa que em várias cidades o crescimento se deu aolongo da frente de água, originando em muitos casos uma rua paralela à água, e algumas ruasperpendiculares à mesma – uma espécie de Pente, que se torna também um paradigma dacidade de água.

LEITURAS HORIZONTAIS: DINÂMICAS EM CONFLITO NA FRENTE DE ÁGUA Na cidade de água existe todo um conjunto de acontecimentos que se sucedem ao longo dafrente de água – praças de água, passeios marítimos, espigões, parques litorais, praias – e cujamaior ou menor apropriação proporciona diferentes graus de contacto da própria cidade com aágua. Das frentes portuárias (acesso interdito à água) à praia (acesso físico à água), osdiferentes perfis urbanos encerram também diferentes significados.

4 Em A imagem da cidade, Kevin Lynch explora a relação entre limite e barreira, afirmando que nem sempreum limite é uma barreira; por exemplo os limites acima do nível do solo poderiam até, futuramente, ser bonspontos de orientação na cidade (1960/1989: 77).

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Este contacto nem sempre foi privilegiado. O historiador francês Alain Corbin descrevecomo, no fim do século XVIII, a ideia de oceano como fonte de perigos, vapores nocivos,monstros e espíritos diabólicos começa a modificar-se, para dar lugar a uma ideia de oceanocomo majestoso elemento natural, invulnerável à urbanização. O Grande Vazio deixa deconstituir um factor de insegurança para passar a ser um factor de admiração. Começa-se aolhar de maneira diferente para os espaços urbanos que se relacionam com a água, quer sejaesta água de rio, estuário, mar, lago, baía, … A frente de água começa a ser considerada como espaço de múltiplas possibilidades, namedida em que representa a ligação a uma imensa rede de água, lugar de encontro entre acidade e as vastas estruturas existentes na natureza (Meyer, 1999).

A frente de água, como espaço de confronto/harmonização entre a cidade e natureza começaassim a ser um leitmotif no planeamento urbano, presente nas visões de Le Corbusier para asfrentes de água de Argel, Barcelona, Buenos Aires ou Rio de Janeiro, nas promenades, nospiers e passeios marítimos (cria-se um novo vocabulário de espaços públicos nas frentes deágua5), nas renovações de determinadas zonas nas cidades de água (a Exposição do MundoPortuguês em 1940 abrindo Lisboa ao Tejo), até ao actual conceito de waterfront e suasoperações de reconversão urbanas.

Mas a dupla condição de cidades de água e de frentes urbanas portuárias origina um conflitoentre actividades. A monumentalização da frente de água é muitas vezes complicada porargumentos funcionais: two separate cultures… which have nothing to say to one another(Konvitz em Kostof, 1992: 41). Esta oposição de conceitos acentua-se no século XIX, nomeadamente a partir daindustrialização, prolongando-se até hoje, criando na frente de água um campo de tensõesentre duas valências aparentemente inconciliáveis: espaço público e infraestrutura6.

Se a água se constitui como elemento iniciático da formação da maior parte das cidades, étambém verdade que, em determinados momentos históricos, com a diminuição do papelatribuído à água, foram as próprias cidades que dela se afastaram.No início, a cidade mantinha com o seu porto uma estreita relação e uma interdependênciafuncional (os próprios portos funcionavam como espaço de passeio), no entanto, o modeloterritorial da cidade industrial rompeu com o equilíbrio físico e simbólico entre as cidades e aágua (Remesar, 2002).O processo repete-se em várias cidades: a frente de água começa a ser ocupada cominfraestruturas (porto+indústria+redes rodo ferroviárias) cada vez mais complexas,constituindo-se como um bloco de território autónomo, distanciando-se das restantesvivências urbanas, que se desenvolvem noutras direcções, originando-se assim desigualdadese assimetrias na cidade7.Com a desindustrialização, esses espaços, entretanto absorvidos pela cidade em crescimento(contando portanto com uma localização privilegiada), transformam-se em extensas áreasobsoletas na cidade, vazios hoje considerados como oportunidades de valorização da cidade,

5 Sintomática é em Espanha a criação, em 1918, da “Lei dos Passeios Marítimos”.6 Por outro lado, como afirma Hans Meyer, no início do século XX, as cidades portuárias eram vistas comocentros de abertura e modernidade. Assim, eram também criadas estruturas para mostrar o “mundo fantásticodo porto”: linhas através das áreas portuárias em Londres e Liverpool, a construção de um teleférico por cimado porto em Barcelona, terraços pedestres ao longo dos cais de desembarque em Génova e Antuérpia…7 Esta diferença entre duas áreas distintas na cidade é desenvolvida em estudos anteriores, a partir daobservação das cidades de Lisboa e Barcelona (e Málaga como contra-exemplo) e foi designada comodialéctica nascente/poente: a ocorrência de um desequilíbrio físico e social entre duas partes da cidade, umaque parece acolher o desenvolvimento urbano de forma mais “natural” e outra que parece ser constantementesubestimada ao longo da história. Verifica-se que à zona mais deprimida correspondem determinadasactividades urbanas: áreas industriais relacionadas com infraestruturas portuárias e de transporte, emestado de inutilização. Mesmo existindo (ou tendo existido no passado) ocupação industrial noutro sector dacidade, é ali que esta se encontra mais concentrada. Estas zonas têm sido actualmente objecto dereconversões urbanas, com vista ao reequilíbrio físico e social da cidade (Ochoa, 2005: 30).

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através de operações de reconversão/substituição de tecidos, mas onde a “aproximação dascidades à água” acaba por se transformar muitas vezes numa frase de marketing urbano. Osespaços criados acabam muitas vezes por ser acessíveis apenas às classes privilegiadas, nãoconstituindo lugares verdadeiramente democráticos: o usufruto da água é ilusório, o limiteafasta-se cada vez mais da água.

LEITURAS VERTICAIS: LIGAÇÕES DA CIDADE À ÁGUA

Para além da ocupação paralelamente à linha de água, onde ocorriam as actividades marítimase fluviais, verifica-se igualmente a necessidade de ligação do interior das cidades com a frentede água. Estas ligações configuram como que eixos de orientação da cidade em direcção à agua,evoluindo para significativas artérias urbanas, nas quais a presença da água é sentida, mesmosem a sua visualização. O simbolismo destes espaços torna-se mais evidente através dacolocação de esculturas no espaço urbano, em enfiamentos que salientam a relação com aágua.A relação com a água não se resume apenas à ligação cidade/água ou aos enfiamentos criados;muitas vezes estes eixos provêm de factores específicos das próprias cidades, o que é visívelem alguns exemplos urbanos.

Em Barcelona, a partir do sistema de linhas de água que drenava a água da montanha para omar (ramblas) é criada, no século XV, uma avenida de passeio no espaço linear que separavaa muralha e a zona do Raval (arrabalde), arquétipo de desenvolvimento urbano segundo osdados topográficos, autentico factor de identidade (Wilson, 2001). Com o tempo, esta avenidatornou-se um eixo central na cidade em expansão, constituindo-se como uma linha deorientação em direcção ao mar e como lugar de manifestação da vida pública8.Outro factor de identidade, este paralelo à frente de água, vem estabelecer com a Rambla umarelação estrutural de espaço público: o Passeig de Colom, criado no séc. XVII, funcionandocomo uma varanda urbana sobre o porto. Estes dois espaços, fisicamente antitéticos, masambos multifuncionais (como espaços comerciais, atractivos para várias instituições urbanas,representando também o papel de esplanadas urbanas), orientam a cidade, como um todo, emdirecção à água (Meyer, 1999).O encontro destes dois espaços, a actual Plaça Portal de la Pau, é acentuado simbolicamentecom a colocação do Monumento a Cristóvão Colombo, aquando da Exposição Universal de1888.A essência do espaço de Rambla tem sido reinterpretada em várias intervenções na Barcelonaactual, tornando-se num modelo urbano a repetir9: Rambla del Mar, Rambla do Raval, Ramblade Prim…Também na recente intervenção do Moll de la Fusta, no âmbito da reconversão do waterfrontde Barcelona, é recriado o conceito de varanda urbana já presente no Passeig de Colom,espaço público que permite gerir infraestrutura e simultaneamente usufruir da paisagemmarítima.

Também noutras cidades se verifica a presença destes eixos de ligação da cidade com a frentede água. Em Lisboa, todo o plano pombalino de reconstrução da Baixa é paradigmático destaorientação da cidade; ao contrário dos espaços urbanos existentes anteriormente aoTerramoto, as ruas principais convergiam para a Praça do Comércio, em frente o Tejo, na qualuma das fachadas é constituída pela própria água.

8 Neste sentido, Hans Meyer compara o papel desempenhado pela Rambla de Barcelona àquele desempenhadopelo Grande Canal em Veneza.9 Como modelo de espaço público, a Rambla distingue-se do Boulevard pelo lugar de passeio, ao centro; noBoulevard a circulação automóvel têm um papel central, enquanto na Rambla esta se efectua lateralmente.

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Na cidade de Málaga verificou-se, logo após a reconquista, em 1491, a abertura da CalleNueva, com a finalidade de unir, mediante um traçado regularizado, a Plaza Mayor (no centroda cidade) à zona portuária e proporcionando uma saída mais rápida do tráfego comercialgerado pelo porto.Esta cidade apresenta a particularidade de, ao contrário de Barcelona e Lisboa, onde osensanches visaram o crescimento para Norte, no sentido oposto à água, o crescimento urbanose dar – com a inauguração da Alameda em 1785 –, para Sul, com a superação da barreiramarítima (muralha) e em terrenos ganhos à praia. Esta começa assim a ser concebida como um espaço com possibilidades de ser embelezado etratado em termos urbanísticos; uma vez assumida esta potencialidade, o passo seguinte foi asua completa urbanização. Através do espaço público gerado pela Alameda, a cidade abriu-seao mar, com o qual passa a estabelecer uma forte relação; tratava-se de um espaço públicosobre a areia, constituindo a praia a transição entre a cidade e o mar.

A. Wilson (2001), no âmbito do que denomina tipos de integração (ligações entre a cidade e aágua), refere, nos Estados Unidos, Frederick Law Olmsted e a sua procura, no final do séculoXIX, de uma âncora urbana para os portos e infraestruturas com ele relacionadas. Estearquitecto paisagista cria um conceito, baseado num sistema de parques estabelecendoligações entre si, até à frente de água: os riverside parks, que vão estar na base do walk to thesea, criado nos anos 70 em Boston, sequencia de espaços públicos que liga a frente de água aocentro da cidade.

Muitas vezes estes espaços públicos são como que tapados por pelas infraestruturas dosistema portuário; a prevalência destas ligações na cidade contemporânea influi na construçãodo limite, na medida em que favorece as permeabilidades da água à cidade, permitindo ousufruto da mesma, por parte da população.

REPENSAR O LIMITE

OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA DO TERRITÓRIO

"Marcas" (marchas) era o nome tradicional que se costumava dar aos lugares situados nos confins do território,perto das suas fronteiras. Do mesmo modo, o andar (marcha) designa um limite em movimento, que na realidadenão é mais do que denominamos de fronteira. Esta vai a par com as franjas, os espaços intermédios, os contornosindefiníveis que só podemos ver quando andamos por eles. O andar coloca também em relevância as fronteirasinteriores da cidade e revela as zonas, identificando-as. Daí o belo nome de Walkscapes, que define muito bem opoder revelador desta dinâmica, pondo em movimento todo o corpo – o individual, mas também o social – com ofim de transformar o espírito de quem, a partir de agora, já sabe olhar. Um propósito como este pressupõe umautêntico posicionamento “político” – no sentido primordial da palavra –, um modo de considerar a arte, ourbanismo e o projecto social a uma distância igual e suficiente entre eles, com o fim de melhor compreender estesvazios de que tanta necessidade temos para viver bem.(Tiberghien em Careri, 2002: 10)

Para compreender o grau de relação que determinada cidade (os cidadãos) mantém com a suaágua propõe-se como fonte primária essencial o contacto com o território e sua observaçãodirecta, numa experiência de confronto do espaço urbano com as suas práticas vivenciais.Este conhecer a cidade através do chão, simultaneamente cartografando e avaliando, seráaplicado nas leituras das cidades de água (leitura horizontal e leitura vertical – o Pente) eredefinição do seu limite.

Como âmbito temporal interessa a cidade actual – o hoje; tendo em conta as transformaçõesque já se efectuaram no território (as quais, sempre que necessário se identificarãohistoricamente, com vista ao melhor entendimento determinados espaços), pretende-seconstruir uma metodologia de análise que pretenda aferir, em determinada cidade, em que“grau” da relação com a água esta se encontra.

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RELEVÂNCIA DA ARTE PÚBLICA

Ignasi de Lecea (2000) refere a necessidade de uma reinterpretação dos monumentos à luz dacontemporaneidade, ultrapassando o que é representado e assumindo o seu carácter deprodutores de identidade. Assim, no âmbito deste estudo, pretende-se olhar para a Arte Pública – na sua relação com oespaço urbano e com as suas vivências –, como um indicador, um instrumento dereinterpretação da cidade actual, elemento unificador das duas leituras e que irá tornarsignificativos os espaços charneira da cidade (rótulas).

Javier Maderuelo afirma que o cidadão, como actor e usuário da cidade é o destinatário finaldos trabalhos urbanísticos e das obras de arte que se colocam no espaço público (2001: 46).Considerando a Arte Pública como um indicador, várias questões podem ser colocadas:Quando se instala uma determinada obra de Arte Pública o que isso significa? O querepresentam os monumentos colocados ao longo da frente de água? Qual a última obra nafrente de água de Lisboa, onde foi colocada e porquê? Retomando o pensamento de Eduardo Chillida, para quem o material do escultor é o espaçomas também o vazio e que só com ambos se constroem lugares carregados (Barañano, 1999:31), verificamos que a Arte Pública representa, de certa forma, um barómetro dessa carga doslugares, constituída igualmente por todos os elementos que estão presentes num determinadoespaço.

Esta postura pressupõe a abertura do próprio conceito de Arte Pública. Quando falo de ArtePública utilizo o conceito de uma forma muito geral, entendendo-a como o conjunto de“artefactos” de características eminentemente estéticas que mobilam o espaço público. (…)Esta acepção do conceito supõe conceber a Arte Pública como um “agente de co-produção”do sentido do lugar e não exclusivamente como uma manifestação “artística” localizada noespaço público. Como co-produtor na geração de sentido do lugar, a Arte Pública seria umdos elementos chave para a colocação em marcha dos processos sociais de apropriação doespaço, através da sua capacidade simbolizadora e geradora de “identidade”. Assim quandofalo de Arte Pública refiro-me a coisas tão díspares como o desenho do espaço público, opaisagismo, a escultura, as performances, etc. (Remesar, 2000: 67).

A paisagem urbana da frente de água potencia abordagens à Arte Pública que não passamnecessariamente pela produção de obras de raiz ou de eventos artísticos. Poder-se-ão assimconsiderar presenças que, embora não tendo sido produzidas intencionalmente para ser ArtePública, constituem-se como tal, pois ganharam, num sentido mais amplo, significadospróprios, pela carga simbólica que possuem e pelos significados que conferem à frente deágua, ao próprio perfil da cidade.

Em Lisboa, objectos como os Gasómetros da Fábrica da Matinha10 (e outros, pertencentes àmemória industrial e portuária da cidade), a presença na margem sul do Tejo do Pórtico daLisnave (elemento aliás já catalogado como Arte Pública), as próprias Pontes, poderão ser,dentro deste ponto de vista, consideradas como Arte Pública, abrindo portanto tambémleituras sobre a cidade.

A cidade produz e segrega arte através da sua linguagem orgânica. Manifestações, greves,engarrafamentos, encontros programados ou improvisados, acontecimentos populares,festas, celebrações, eventos religiosos ou desportivos; a cidade, um organismo vivo produzarte ao ritmo dos seus impulsos psicossociais (Restany, 2001:120). Com esta afirmação,também Pierre Restany abre o conceito de Arte Pública; sendo a frente de água o paradigma1 0 Prevendo-se a destruição da Fábrica da Matinha, em lugar da qual deverá surgir uma nova urbanização, assiste-seà vontade de preservação dos seus quatro gasómetros, testemunhos da indústria de produção e distribuição de gás decidade.

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da cidade de água – o seu lugar mais representativo –, será também palco de diversasmanifestações artísticas. Como hipótese de trabalho, poder-se-á assim propor que, quantomais essa frente de água é pertença da cidade, mais essas expressões se irão revelar.

ARTE PÚBLICA NA FRENTE DE ÁGUA DE LISBOA

Para o registo de elementos artísticos na frente de água na frente de água de Lisboa foiutilizada como base de trabalho a actividade de inventariação no âmbito do projecto Monere –sistema integrado de informação e gestão de Arte Pública. Seguindo as mesmas coordenadasjá utilizadas para Barcelona, efectuou-se o registo dos elementos artísticos referentes a toda acidade de Lisboa11.

Foi também tida como referência a publicação Estatuária e escultura de Lisboa, na qual sãoapresentadas e descritas, por zonas (com enfoque nos principais eixos de expansão da cidade,bem como em determinados núcleos escultóricos), cerca de 100 peças, instaladas na viapública, não integradas no edificado.

A partir destes dois estudos elaborou-se uma filtragem das peças presentes em espaçosrelacionados – física ou simbolicamente – com a frente de água. Foram ainda tidos em conta, como obras auxiliares, dois trabalhos que focam especificamentealgumas manifestações artísticas presentes na frente de água de Lisboa.

Manuela Synek, em A arte escultórica voltada para o rio Tejo, elabora um levantamento dosmonumentos escultóricos existentes na frente de água de Lisboa. Percorrendo a cidade deoriente para ocidente, a autora enumera 16 peças, relacionando-as com as diferentes épocasem que foram produzidas. Synek refere o Mar, a Terra e o Céu como as três grandessuperfícies que exercem um papel cenográfico importante naquelas obras.Sendo este trabalho anterior ao evento da Expo’98, verifica-se uma predominância das obras aocidente da cidade (a peça mais a oriente é o Emigrante Português, localizada em SantaApolónia).

Verificando a grande concentração de obras na zona de Belém, o trabalho de Helena Elias, Aemergência de um espaço de representação – Arte Pública e transformações urbanas na zonaribeirinha de Belém, incide na contextualização das manifestações artísticas e urbanísticas aliexistentes. Procurando uma visão mais abrangente, o estudo incide na relação dos elementosde Arte Pública com os estudos urbanos e o compromisso que estas duas vertentesestabelecem nos seus espaços públicos mais emblemáticos: Praça do Império e envolvente,Jardins da Torre de Belém e Praça Afonso de Albuquerque.

Dado que o mais recente destes estudos data de 2005 e não abrange todas as peçasrelativamente à frente de água, foram realizados percursos de forma a registar os exemplosmais recentes e aferir a sua relação com o espaço urbano.

PARA ALGUMAS POSSÍVEIS CONCLUSÕES/CONSTATAÇÕES O levantamento e registo da Arte Pública na frente de água de Lisboa permitirá aidentificação dos possíveis pontos nevrálgicos, a estudar posteriormente. Fica assim criadauma base que permitirá analisar a relação cidade/água na sua leitura horizontal e vertical, doponto de vista dos vazios públicos. O estudo permanece em aberto. No entanto, poder-se-ão avançar desde já algumasconstatações.

11 Este estudo foi realizado em 2003 por membros da equipa do Centro de Investigação POLIS da Universidade deBarcelona e por alunos do Doutoramento em Espaço Público e Regeneração Urbana – Arte e Sociedade.

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Em Lisboa, a frente de água é ocupada quase na sua totalidade por infraestruturasportuárias. Existem no entanto alguns pontos de contacto com a água, “brechas”interrompendo a linearidade árida e permitindo uma acessibilidade dos cidadãos àfrente de água (Chaline, 1994: 112). Numa leitura horizontal – ao longo da frente deágua –, a Arte Pública vem precisamente revelar estas “brechas”, os poucos espaçosde uso público que existem. A evolução da implantação da Arte Pública (tambémindicada pelo projecto Monere) revela os espaços que foram sendo libertados. Os maisparadigmáticos são Belém, com a Exposição do Mundo Português e o Parque dasNações, com a Expo’98 (até aos anos noventa simplesmente não existem exemplos aoriente).Estes dois espaços constituem assim, juntamente com o núcleo do Terreiro do Paço, osprincipais contentores de Arte Pública na frente de água.

As colocações mais recentes vêm revelar novos focos de desenvolvimento. O principal espaçoonde se verificam intervenções, desde 2003, é em Alcântara, o que se constata ser sem dúvidasintomático das renovações urbana que se prevêem para esta zona. De atestar ainda as colocações associadas a novos espaços ligados à acessibilidade: naEstação Fluvial do Cais do Sodré e na nova Estação de Metro do Terreiro do Paço.

Uma das “brechas” que revela particular interesse, numa leitura horizontal, é o espaçorelvado na Av. Ribeira das Naus, no qual a Arte Pública – o Monumento ao Metropolitano doescultor Charters de Almeida12 –, revela a sua possível acessibilidade. Esta obra confereàquele espaço uma identidade própria, congregando actividades e situações de vivênciainformal na frente de água.

Apesar destas situações pontuais, a continuidade ao longo da frente de água afigura-se hojecomo algo difícil. Para além da ocupação portuária, a dupla barreira rodo ferroviária permanece ao longo depraticamente toda a frente de água13, contribuindo fortemente para a exclusão do peão,dificultando o seu acesso à água, nos pontos em que este é possível.

É interessante verificar que, em algumas partes (particularmente a partir de Alcântara),existem continuidades ao longo da frente de água, sendo esta utilizada e vivenciada por partedos cidadãos (a presença de Arte Pública acentua esta vivência); no entanto esse espaçoconstitui como que uma ilha contínua, isolada pela dupla barreira, sendo as continuidadesverticais completamente boicotadas.Outro aspecto a referir é o enterramento da linha férrea já fora da cidade, no sentido deCascais e a sua relação com uma frente de água mais permeável, nomeadamente na relaçãocom os espaços de praia que começam entretanto a surgir.

A obra Lisboa (homenagem aos Construtores da Cidade), de José de Guimarães14, na Praça 25de Abril, no fim da Avenida Marechal Gomes da Costa, colocada após a Expo’98, já fora dorecinto da Exposição traduz a maior relevância que passou a ter a zona oriental da cidade esublinha a importância deste eixo de ligação à frente de água. É no entanto uma importânciapredominantemente viária. A escultura situa-se numa rotunda – para ser usufruída a partir doautomóvel – e o acesso à água, apesar de permitido, não é assumido, pois tratam-se deterrenos pertencentes à Administração do Porto de Lisboa.A Arte Pública revela outros eixos de ligação da cidade à água (muitos deles não chegam àfrente de água, consequência mais uma vez do fechamento provocado pelas infraestruturasportuárias), cujo estudo se revela pertinente: de oriente para ocidente, várias são as ligações1 2 Obra de 1995.1 3 A barreira ferroviária interrompe entre Santa Apolónia e Cais do Sodré, mas a barreira rodoviária permanece.1 4 Obra de 1999.

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que configuram como que eixos de orientação da cidade em direcção à água, tendo evoluído,em muitas situações para importantes artérias, nas quais se revela a presença da água noespaço urbano.

Nesta alternância entre o aberto e o fechado, entre uma maior ou menor acessibilidade à frentede água, assentará a definição de um novo limite. Se por um lado se verificam algunsacontecimentos de espaço público ao longo da frente de água, verifica-se por outro lado umaelitização deste acesso.A tendência que se tem vindo a verificar para a construção de condomínios fechados nestazona da cidade, funciona como uma negação das potencialidades espaciais de toda a frente deágua e simultaneamente potencia a sua gentrificação.Dentro das leituras que a Arte Pública possibilita torna-se relevante o número de obras quesurgiram num instante preciso no Parque das Nações (conferindo como que um excesso decarga a uma zona onde anteriormente não existiam praticamente intervenções), coincidindocom a predominância de habitação de alto custo nesta mesma zona. Se por um lado esta é umazona bastante utilizada pela população de Lisboa, torna-se inevitável constatar que este uso serevela apenas nos espaços públicos criados, sendo a habitação apenas acessível à classe alta15.

A água funciona como elemento polarizador e estruturante da realidade social nos seus váriosníveis, adquirindo especial relevância nos processos identitários da cidade (Ferreira, 2004).Proporcionando espaços de lazer, transmitindo sentimentos de relaxamento e repouso, a suaprópria riqueza paisagística imprime uma dinâmica particular às cidades. Funciona comoespaço de descompressão (como Grande Vazio), na medida em que é um contraponto físicomas também psicológico ao cheio urbano. A frente de água, espaço paradigmático da cidade de água, simultaneamente de conquista eresistência, assume um papel emblemático na articulação entre a terra e a água; verificando-sehoje novos modos de habitar a cidade, surgem, consequentemente, novos modos deapropriação social e ambiental das frentes de água. Estas apresentam-se por sua vez comoespaços através dos quais – tendo em conta a sua história económica, a sua identidade culturale as respectivas formas de apropriação social – parece possível refazer a cidade. Mas, as tentativas de regeneração urbana das cidades são-o também de regeneraçãoeconómica (Fabre, 1992). Num contexto de cidades em competição, as frentes de águadesactivadas constituem espaços ideais para atraentes operações de reconversão urbana queanunciam espaços públicos de qualidade, mas que constituem, no fundo, uma certa remissão àinacessibilidade efectiva das populações às funções criadas, ao carácter de “ilha”, ou de“gueto de luxo” que acaba, muitas vezes, por prevalecer.

As tensões entre vários sistemas espaciais não dizem apenas respeito à obsolescência ereconversão das áreas relacionadas com os sistemas portuários – é uma característica geral dacidade moderna e relaciona-se com uma nova concepção de espaço público (Meyer, 1999).Constata-se a necessidade da existência de espaço para o domínio público, como lugar desociabilização e de expressão da cidadania. No âmbito que aqui se discute – a relação da cidade com a água – a questão passará então porcompreender, em cada cidade, o seu grau de interacção com a água: como uma “miragem” oucomo um espaço realmente usufruível, ao qual todos os cidadãos podem realmente aceder?

1 5 Torna-se interessante estabelecer aqui o paralelismo com a reabilitação efectuada em Barcelona no âmbitodos Jogos Olímpicos de 1992, nomeadamente na zona da Villa Olímpica.

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PROTAGONISMO DA AUSÊNCIA. INTERPRETAÇÃO URBANÍSTICA DA FORMAÇÃO METROPOLITANA DE LISBOA A PARTIR DO DESOCUPADO

Sofia Morgado e-mail: [email protected]

Doutora em urbanismo, Arquitecta, Professora Auxiliar de Projecto/Urbanismo

Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa

Abstract Absence is the contemporary protagonist in the metropolis. Nevertheless, no author has attempted to interpret a concrete metropolis from this point of view, examining the circumstances in which unoccupied spaces occur, even when such spaces have been latent in conventional urban planning readings based on occupied space. This then was the challenge: how to interpret a concrete metropolitan formation starting from its unoccupied space. On the one hand, it would be necessary to show that unoccupied spaces really determine the various stages of urban development that lead to an effectively metropolitan status. On the other, it would be necessary to choose a metropolis where this premise is unquestionable. Such a premise is true of Lisbon, which is formed around a large unoccupied central space: the Tagus Estuary. The progress of the research determined a simply and extraordinarily flexibly structured approach. Um desafio A ausência é o protagonista contemporâneo das metrópoles. Não obstante, ante o convite de vários autores verificou-se que ainda não se tinha interpretado una metrópole concreta, averiguando as circunstâncias de ocorrência dos espaços desocupados, ainda que sempre estivessem latentes nas leituras urbanísticas convencionais, a partir do espaço ocupado. O desafio estava feito: como interpretar uma formação metropolitana concreta a partir do espaço desocupado. Por um lado, havia que justificar que os espaços desocupados realmente determinam varios estados de evolução urbanística conducentes a uma condição efectivamente metropolitana. Por outro, havia que eleger uma metrópole onde essa premissa fosse inquestionável, o que sucede na de Lisboa, que se constitui em torno de um grande espaço central desocupado: o Estuário do Tejo. O percurso da investigação determinou uma abordagem de estrutura muito simples e extraordinariamente flexível. A reflexão sobre a formação metropolitana de Lisboa a partir do desocupado organizou-se em cinco momentos significativos nos quais a partir de três princípios – a água, a terra, a criação artificial – se identificaram morfologias de espaços desocupados, utilizando os mesmos critérios conceptuais, expressos segundo critérios cartográficos idênticos. Considerando os motivos e as formas de ocupação, bem como o modo como se inter-relacionam, caracteriza-se não apenas a metrópole de Lisboa mas também tendências imediatas de desenvolvimento. Esta matriz de leitura permitiu estabelecer um critério de análise coerente em todos os estados de formação metropolitana apresentados. Além disso, pôde verificar-se como os três elementos se relacionaram entre si caracterizando o estado territorial assim como cada um, ao longo do tempo, foi adaptando-se às circunstâncias da própria formação metropolitana: 1860 - o fundamento da metrópole; 1940 - a base infraestructural da metrópole; 1965 - o espaço máquina; 1992 - uma metrópole de oportunidades; 2001 - uma transformação supra-metropolitana. A análise de cada período mostrou uma estrutura territorial em progresso, desde o seu fundamento até à sua condição actual de integração numa formação supra-metropolitana. A cada estado correspondeu uma leitura perfeitamente autónoma mas cuja sequência temporal explica a actual configuração da metrópole de Lisboa a partir dos espaços desocupados, permitindo enunciar algumas tendências de evolução. O conhecimento progressivo da

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formação metropolitana permitiu, justificadamente, qualificá-la em cada momento, mostrando que o espaço desocupado é o seu determinante essencial no território de Lisboa. Este contributo propõe uma interpretação de um território concreto a partir da caracterização do espaço que não se ocupa, fundamentando-se numa metodologia própria. A utilização de algumas técnicas SIG aplicadas a um território específico, sobre o qual se avalia de forma sistemática a importância e o papel das várias formas de desocupado em cada um dos cinco momentos da formação metropolitana, permitiu constituir uma cartografia inédita sobre o tema, com potencialidades de uso futuro, assim como um arquivo cartográfico detalhado, também ainda inexistente, sobre o território em estudo. Mar Interior Em meados do Século XIX o território em estudo é, do ponto de vista da urbanização, bastante incipiente já que apenas no final do mesmo século, por contingências políticas e económicas se verificará propriamente o início da industrialização. Esta conjuntura é extraordinariamente interessante para esta reflexão uma vez que mostra os fundamentos reais da futura metrópole de Lisboa. As formas da água e da terra são, neste período, as que mais determinam a formação urbanística, delas resultando directamente a criação artificial que definitivamente marcará a evolução das formas de ocupação do território. Em termos territoriais, a existência de estuários é sempre um factor singular. Neste território, o que é realmente extraordinário é o facto de haver dois estuários e que além do mais as relações que entre si se estabelecem sejam de grande oportunidade urbanística, já que se criam dinâmicas próprias entre as duas principais cidades. Lisboa e Setúbal estão ambas localizadas nas margens norte, orientadas a sul, respectivamente dos Estuários do Tejo e do Sado. Também a terra se expressa nos seus principais determinantes, identificando-se as duas Penínsulas de Lisboa e Setúbal, a norte e sul respectivamente. Cada península tem as suas próprias características, além disso as relações que entre elas se estabelecem através do Estuário do Tejo contribuem também para os tipos de ocupação que formarão a futura metrópole de Lisboa. Neste período, trata-se de um território incipientemente urbanizado no qual, consistindo na formação das estruturas adaptadas à água e a terra que, por um lado, permitem distinguir a formação do solo rústico e, por outro, identificar elementos da criação artificial como interpretativa do território e que apontam para um conceito embrionário de identidade territorial. O que se verifica, concretamente, é que o espaço, nas suas diferentes características e singularidades, foi antropizado por estruturas rústicas e, complementarmente, estratégicas quanto à defesa e à localização das primeiras cidades. A criação artificial do solo rústico, pontuado por núcleos urbanos incipientes localizados e modelados a partir das formas da água e da terra, assim como a existência de cidades portuárias cuja importância se antecede pelas potencialidades da morfologia dos estuários, funda as principais linhas de crescimento da futura metrópole de Lisboa. Antes dos avanços tecnológicos que permitiram a imposição clara da criação artificial ao território, o desocupado predominava de forma não hierarquizada, consistindo realmente nos grandes espaços geográficos cujas características só permitiam a criação do solo rústico e pequenas estruturas defensivas definitivamente integrados nos caracteres naturais. Perante estas circunstâncias, a água como único meio de comunicação de longo alcance, e, consequentemente, de maior oportunidade económica, tem o papel fundamental na formação urbanística. Evidentemente as formas da água conformam as formas da cidade. Por isso, em casos muito particulares como os dos estuários - mares interiores protegidos dos oceanos - aí se localizam as cidades principais que polarizam territórios rústicos mais alargados. A organização urbana faz-se a partir da morfologia da água: calas mais profundas e adequadas

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ao transito marítimo, calas adequadas ao transito fluvial que contribuem para ligações entre margens, estruturas defensivas nas margens e desembocadura, margens firmes para edificação e infraestruturação de uma grande cidade portuária e pequenos assentamentos bordejando o estuário. Na realidade, no território anterior à industrialização, a urbanização da actual Lisboa metropolitana organiza-se a partir de um coração central de água, aberto, para onde convergem as linhas infraestruturadas que determinarão as formas posteriores da metrópole. Uma nova hierarquia Entre meados do Século XIX e os anos 40 do Século XX, verifica-se uma transformação significativa, começando a sentir-se as modificações tecnológicas próprias da industrialização. Contribuem também a conjuntura política e o desenvolvimento efectivo do país apostando na infraestruturação assim como em vários planos urbanísticos. A forma como actuaram no território marcou definitivamente o crescimento que originou a actual metrópole de Lisboa. Ao esforço de transformar Lisboa numa capital nacional como as europeias, corresponde uma implantação de infraestruturas de comunicação centrípeta relativamente ao Estuário do Tejo. Assim, esta primeira rede de caminho de ferro e de estradas nacionais adaptadas à morfologia do território, implicará um tipo de transformações, determinado por uma progressiva infraestruturação dos vários espaços a partir dos grandes eixos de oportunidade criados. Estas alterações terão efeitos específicos nas formas e estruturas dos espaço desocupado, começando a emergir formas distintas pela sua inclusão ou exclusão na rede embrionariamente metropolitana que se estava a definir. Especificamente, no que se refere ao papel das formas da água, a organização de linhas infraestruturadas do caminho de ferro, abastecimentos de água e electricidade convergentes em Lisboa, não só devido à sua própria centralidade como igualmente à extraordinária oportunidade do seu porto, determinam que se constitua um anel envolvendo as áreas adjacentes às calas mais profundas do estuário. Este anel resulta como um artefacto de articulação entre o sistema urbano que então se cria entre Lisboa e as margens a sul do Tejo. Simultaneamente, as oportunidades criadas pela comunicação nacional e internacional e as barragens a montante do Tejo para norte, determinarão a localização das grandes indústrias e ocupações portuárias para as que houve, necessariamente, que preparar áreas de especialização próprias. De aí que, sob os planos de ampliação do Porto de Lisboa, se tenham construído docas e aterros, criando solo artificial entre o espaço urbanizado da cidade e a cala mais profunda do Canal do Tejo, modelando o Estuário e suprimindo o carácter de praia que em meados do Século XIX ainda caracterizavam a frente ribeirinha de Lisboa. Também a paisagem agrária se infraestrutura. Assim, na Península de Lisboa, a média e pequena propriedade fechada em terrenos muito declivosos não se adequa a um reparcelamento para produção especializada e mecanizada, mantendo-se, portanto, os usos agrários tradicionais. Na Península de Setúbal, na área de planície identificada como Nascente Agrário, assistir-se-á a um extraordinário desenvolvimento na exploração agrícola, começando a aparecer espaços parcelados ortogonalmente com cultivos intensivos. O facto de que a criação artificial principalmente através de linhas infraestruturadas, mercê de grandes inovações tecnológicas, assuma o protagonismo na organização territorial, conduzindo a alterações significativas na própria natureza geográfica dos lugares, na água e na terra, origina alterações determinantes e introduz uma nova hierarquia territorial. A formação urbanística e mais ainda a interligação de vários centros impulsionada por estas linhas infraestruturadas originará um incremento urbano, mas principalmente introduzirá uma nova forma de espaço desocupado de índole artificial: os espaços de oportunidade. São grandes áreas de especialização que determinarão a expansão radial ao longo das linhas de comunicação, estradas nacionais e eixos ferroviários. Trata-se de espaços altamente

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especializados e artificiais, como as áreas portuárias modeladas a partir das condições naturais da água, extensões agrícolas onde a ligação directa ao caminho de ferro e portos determina o investimento no reparcelamento, mecanização e colonização. A áreas produtivas sobrepõem-se espaços axiais de grande intensidade infraestructural que começam a formar o esqueleto da metrópole. Trata-se do limiar de uma nova forma de domínio e organização territorial, o da criação artificial, que definitivamente se sobreporá aos espaços naturais, começando a reestruturá-los profundamente, criando a base infraestrutural do território, no sentido de uma especialização e de um aproveitamento produtivo intenso do espaço desocupado. Exploração selectiva As pautas criadas pela infraestruturação do território originaram uma série de dinâmicas que resultam em modificações importantes nas formas e estruturas do solo incipientemente metropolitano de Lisboa, em meados do Século XX. A partir da eficiência das linhas infraestruturadas assim como das oportunidades por elas criadas começa a formar-se uma conurbação pré-metropolitana, além de uma exploração intensiva do território que implicará uma funcionalização do espaço expressa em formas de máxima produção O Tejo continua a ter uma função axial nas formas de ocupação concentrando então, além da produção de espaços especializados no seu porto, a melhoria das comunicações entre as margens e a construção de canais artificiais. Toda a sua bacia participa do ensaio de desenvolvimento para uma máxima produtividade. Justamente, entre os anos 30 e 60, são levadas a cabo as principais obras de hidráulica que reservam grandes áreas do crescimento urbano, porque consideradas fundamentais na organização territorial da grande produção. Observa-se que a infraestruturação crescente e a generalização de modelos productivistas originam uma grande especialização do solo, urbano e não urbano. Ou seja, cada área, agora perfeitamente distinta e isolada pelos eixos principais de oportunidade acentua mais ainda o seu carácter particular pondo em evidencia um uso específico. Esta situação origina um território que se organiza a partir da eficácia das infraestruturas, de uma caracterização do solo a partir de iniciativas de âmbitos zonais, particularmente no que se refere a criação artificial de ocupações urbanas. Os eixos de oportunidade principais impulsionam o crescimento urbano, essencialmente, através de ocupações de usos específicos, industriais e residenciais, e por contiguidade infraestrutural, o seja, directamente dependentes das vias e, fundamentalmente, em torno das estações ferroviárias. São territórios que respondem a uma máxima exploração, como se de um espaço máquina se tratasse, adquirindo particularidades de especialização que ainda acentuam mais o caracter de eficiência das linhas infraestruturadas e do solo produtivo. O que esta metrópole ainda embrionária mostra, além do efeito das oportunidades criadas registado pela transformação das várias formas de solo, é a absoluta necessidade de se estabelecerem ligações à emergente rede de mobilidade que incipientemente se forma. Os crescimentos urbanos verificados são ainda impulsionados por contiguidades infraestruturais mas fenómenos de evolução a partir das infraestruturas rústicas permitem já ler situações completamente diversas das anteriores quando ainda se verificava uma clara oposição entre urbano e não urbano. O espaço desocupado, nos seus vários matizes, fragmenta-se devido a várias formas de oportunidade ante a sua integração ou exclusão das redes de novas formas de locomoção: o automóvel e, mais propriamente na cidade de Lisboa, o metropolitano. Em relação ao espaço desocupado pode sintetizar-se que a criação artificial determina a sua circunscrição e especialização quando directamente acessível a partir das redes de mobilidade, tanto na sua forma de agrícola (grande propriedade) quanto na de espaço de oportunidade,

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segregando definitivamente o espaço que pelas suas características periféricas e de fragmentação inerente à sua morfologia (pequena propriedade em acentuados e frequentes declives) não possa competir com uma intensiva produção – urbana ou agrícola. Neste estado da formação metropolitana, os espaços de oportunidade desocupados como impulsionadores da especialização, em áreas autónomas limitadas, nas quais a produção tem um papel central, e a sua circunscrição por eixos de conexão, estabelecem a matriz de desenvolvimento futuro preconizando as áreas centrais que polarizarão a metrópole de oportunidades. Topologia da conectividade Em 1992 Lisboa atinge um primeiro estado realmente metropolitano, assistindo-se a uma renovação das oportunidades do solo comparativamente ao período anterior. A democracia em 1975 e a adesão à União Europeia em 1986 estabelecem novas conjunturas política e económica que acompanham transformações nos sistemas produtivos que se dirigem agora ao sector terciário determinando a obsolescência das áreas industriais e portuárias. Os espaços desocupados, sob o impulso das redes urbanas, dividem-se mais ainda. O espaço metropolitano sob a acção de redes de mobilidade cada vez mais densas e eficazes, começa a convergir em vários centros urbanos alternativos a Lisboa. Também como consequência dos anteriores modelos produtivistas, todo o espaço, além de metropolitano, tenta tornar-se urbano assim que as ocupações, por diversos motivos, disseminam-se criando particulares situações de constrangimento no que se refere à água e à terra. Se os principais rios foram, anteriormente, o motivo de localização dos primeiras assentamentos urbanos o facto é que, com o crescimento urbano, os seus leitos e áreas aluviais adjacentes imediatamente se tornam limites muito claros das ocupações urbanas menos programadas, obrigando e justificando a existência de espaços abertos ou originando conflitos relevantes. Também a terra sofre, cada vez mais, uma ocupação estilhaçada mas por evolução das áreas que anteriormente se haviam identificado, o que determina ocupações particulares, diferentemente ligadas à rede metropolitana. As áreas características que constituíram a base do território em estudo, por parcelamento, infraestruturação e edificação individuais, definem perímetros urbanos incipientes, ou seja, o fundamento do espaço desocupado em baixa densidade que imediatamente se generalizará. Nas áreas já urbanizadas e em compactação, também os maiores declives definem limites à urbanização permanecendo desocupados em paisagens urbanas de grande densidade. A modelação da terra neste quadro, tem duas leituras complementares: a terra que cinge o crescimento urbano, nas áreas de criação artificial mais densa, e a transfiguração dos grandes determinantes para exploração dos seus recursos ou a sua destruição para urbanizar. Em qualquer dos casos, o que pode verificar-se é que a criação artificial se expande a todo o território determinando centralidades a partir da sua conectividade, definindo um metrópole de ordem topológica, na qual as singularidades das formas da água e da terra nem sempre são oportunas. A evolução de eixos de oportunidade radiais para uma rede eficaz de mobilidade define múltiplos pontos centrais, porque de extraordinária conectividade. Estes pontos centrais destacam-se no território como emergentes centros metropolitanos num tecido de espaços desocupados, uns com função passiva, de receptores de ocupação, outros com papel de tensores e organizadores do espaço metropolitano. Não importa que as suas anteriores estruturas sejam rústicas, mas, sobretudo, que o espaço esteja desocupado e que seja extraordinariamente acessível desde qualquer ponto da metrópole e inclusivamente de fora da metrópole, ou que seja previsível que assim se torne, integrando-se nas redes globais.

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Assim, os espaços já comprometidos com a ocupação urbana, espaços desocupados intermédios que, por inércia, se vão ocupando, são realmente muito mais passivos relativamente à dinâmica e tendências de desenvolvimento da metrópole de oportunidades na qual Lisboa se transforma progressivamente. Nos espaços desocupados de grande conectividade as expectativas são muitas, a produção é muito mais flexível e assenta sobretudo na informação ou montagem e armazenagem de produtos em trânsito, o que apenas exige espaço disponível, mono-especializado e comunicável. Os verdadeiros centros são, inesperadamente, os espaços inóspitos e desocupados das saídas das auto-estradas. Paisagens indiferentes? A integração da Lisboa metropolitana em redes de escalas superiores determinou uma redução aparentemente homogénea do espaço desocupado, o que contribuiu para uma paisagem indiferente e de poucos referentes urbanos. Mas a esta aparente indiferença correspondem formas que se identificam reconstituído a formação metropolitana de Lisboa a partir dos espaços desocupados, previamente apresentada. O Estuário do Tejo continua definitivamente a ser o centro da metrópole. Por um lado, a necessidade de reconversão urbanística das margens portuárias e industriais, por outro, a classificação das áreas húmidas como paisagem protegida, determinam que o Estuário do Tejo se transforme no ponto focal da metrópole, além de funcional, objectivamente paisagístico. Sob os mesmos efeitos, a terra continua a condicionar os espaços da metrópole não directamente. De um lado, as preocupações conservacionistas que se reflectem nos espaços singulares como as grandes Serras de Sintra e Arrábida, de outro, os efeitos das redes de oportunidade que determinam, também, uma obsolescência da agricultura produzida propriamente na terra obrigando à introdução da novos usos localizados nas estruturas agrarias mas realmente apenas necessitam de grandes espaços livres de grande conectividade com redes internacionais. Em 2001-05 está conformada a metrópole de Lisboa, e ainda mais começa a aclarar-se o seu papel numa conurbação ibérica entre Lisboa e Galiza que, em termos nacionais, ocupa a metade norte da fachada atlântica. Assim, a metrópole de Lisboa aponta para uma transformação ainda mais complexa que integra várias formações metropolitanas como o Porto, Coimbra e Aveiro. Efectivamente, a metrópole de Lisboa está ante uma transformação supra-metropolitana que a inclui numa categoria sub-global, integrada em redes de dinâmicas internacionais e particularmente europeias no que se refere à mobilidade de pessoas e produtos e sobretudo, à transformação produtiva cada vez mais dirigida, não apenas aos serviços, senão a um extenso leque de actividades associadas a uma economia baseada no conhecimento. A metrópole de Lisboa aparece como um organismo aparentemente mais homogéneo nas suas formas de ocupação, que sob o poder da criação artificial se convertem em grandes áreas pouco hierarquizadas, no que se refere a densidade, e pouco ricas em diversidade, do ponto de vista da formação do solo metropolitano. Perante o incremento das preocupações ambientais que obrigam à definição de espaços protegidos e o aparecimento insólito de centros polarizadores em áreas desertas ou rurais de grande conectividade, assiste-se frequentemente à recriação artificial e hiper-real da metrópole. O espaço desocupado continuará a ter novos significados ante transformações futuras, recreando-se artificialmente em novas formas associadas ao lazer e à produção bem como definindo novos modos de formação urbanística.

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COMPREENDER O ESPAÇO PÚBLICO PARA REQUALIFICAR A CIDADE -LUANDA

Mestre Arquitecta Susana Ferraz Email: [email protected] Henrique Bravo nº 315, 4465-169 S. Mamede de Infesta

1. IntroduçãoPorquê Compreender o Espaço Público para Requalificar a Cidade? Na proposta de abordagem ao espaço público visando o seu papel na requalificação da cidadeestão subjacentes duas questões: Porquê o espaço público? Em que medida compreender oespaço público contribui para a requalificação da cidade? A segunda questão desdobrar-se-á,entre outros, em Porquê compreender e Como compreender?Na primeira extrapolar-se-á acerca do carácter e do papel do espaço público enquadrado nacidade, na comunidade e na envolvente natural. Entretanto, analisar-se-ão os modelos urbanos e do espaço público bem como os desafios comque uns e o outro se debatem, através dos binómios cidade desenvolvida/cidadesubdesenvolvida e debilidades/perspectivas, visando perceber como a comunidade urbana seapropria da cidade e do espaço público que lhe é oferecido.Na segunda questão debater-se-ão metodologias e aproximações ao espaço público -humanização e sustentabilidade. O porquê compreender, pressupõe que decidir, gerir eintervir na cidade contemporânea seja uma opção fundamentada e que se não a ajudar amelhorar, pelo menos que não a prejudique (!). O como compreender incidirá sobre duasvertentes – a metodológica e a sociológica -, apresentadas por uma análise que articulacontemporaneidade e ‘estruturalismo renovado’ no espaço público, espaço este entendidocomo um negativo útil na cidade, na sociedade e no meio. Dir-se-ia, mesmo, imprescindível.O aspecto sociológico terá um acentuado relevo nesta abordagem devido à ideia de que oHomem confere singularidade e alma ao espaço público valorizando-o com o que neleexperimenta, com os significados que lhe atribui e o vive e com o reconhecimento patrimonialque lhe concede quando o integra nas suas memória e com ele se identifica. Mas, também oaspecto ambiental terá relevância pois numa relação entre espaço público e envolventepaisagística de mútua integração, caracterização e enquadramento resultará um benefícioambiental alargado – a sustentabilidade. Na verdade, a ‘visão sociológica’ da cidade quequeremos abarca os dois aspectos referidos e ainda o aspecto económico, globalizante. Em paralelo, é imperativo proceder à reformulação de alguns conceitos que têm estado ‘decostas voltadas’ e que se abarcam mutuamente à luz dos preceitos da contemporaneidadecomo, por exemplo, globalização e sustentabilidade, tradição e modernidade. Mesmo sobre anoção de estrutura é necessário ter uma visão mais alargada para o ‘estruturalismo renovado’.Por fim, porquê Luanda?Porque Luanda é heterogénea em todos os aspectos, é sublinhada por dicotomias, rupturas econtinuidades; Luanda, pelas suas características e pelo espírito dos luandenses (do caluanda edo imigrante integrado), permite-nos incidir sobre si todos os tipos de visão. Esta conjunturatraduz-se num interessante desafio na leitura da cidade como um ecossistema e numaoportunidade de aprendizagem; e, Luanda, como capital do país, tem um papel determinante euma responsabilidade acrescida na definição dos modelos urbanísticos e governativos queadopta e promove. E, ainda, porque Luanda é actualmente uma cidade que abraça a esperançada oportunidade de se afirmar global, sustentável e socialmente contemporânea.

Figura 1 – Parque da Liberdade, arquivo pessoal 2005.

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2. O ‘espaço’ que o espaço público ocupa na cidade e na sociedade contemporâneas Na sua génese, o espaço público é um vazio necessariamente útil, conforme certificam, etestemunham, o seu carácter e o seu papel na cidade, na comunidade e no meio ambiente,consistindo na condição intrínseca de dever responder aos seus interesses contemporâneos efuturos. Cidade, comunidade e ambiente são ‘agentes’ activos que se desencadeiam e relacionamobedecendo a um processo constante caracteristicamente metamorfoseável e progressivo queimprime um carácter dinâmico ao espaço público.O espaço público é um palco de experiências cívicas; de consagração de acontecimentos demarcante historicidade que imortaliza ambos; a sua imagem e o seu usufruto convertem-se emtradição; e, a solidariedade entre todos estes aspectos contribui para a sua perenidade. A natureza sociológica do espaço público projecta-o além da mera condição funcional eurbanística. Pode proporcionar qualidade de vida à comunidade em todas as suas rotinas epermite a fruição partilhada do património colectivo. O espaço público e a envolventepaisagista ou os elementos naturais que participam do espaço, encontram-se num diálogoambivalente de integração e contextualização em que mutuamente se definem, singularizam evalorizam; um como cenário ou quadro e o outro como observatório ou palco em que a‘paisagem’ é desfrutada civicamente por um maior número de indivíduos. Ambiente também éenergia e um espaço sustentável é também aquele que recorre às energias limpas, renováveis,para a sua infraestuturação. Desperta, por si só, reacções e emoções sugeridas pela forma,estilo e escala, cor e luminosidade, texturas e revestimentos, e é também o cosmos do imaterialodorífero e sonoro, sentidos que interferem igualmente na memória dos sentidos que não é sóvisual. A conjugação destes aspectos personifica a leitura que fazemos do espaço.O espírito e as actividades do tecido social animam e contextualizam o carácter do espaçopúblico que simultaneamente os retrata, permitindo ainda a coabitação de populaçõesheterogéneas. Esta interacção confere ao espaço público um carácter patrimonial, testemunhal,de cujo valor é preciso ter consciência. A assimilação colectiva da consciência do seupatrimónio urbano é favorecida pela identidade reconhecida, uma condição sine qua non para asua salvaguarda. Por sua vez, o espaço público ao constituir-se como a rede física e mental davivência e da leitura da cidade e, ainda persistindo, como um lugar de encontro e de exercícioda cidadania, ganha uma dimensão cívica e afirma-se como espelho do grau de urbanidade dacidade e da condição geral da sociedade, comunica significados que reforçam o sentimento depertencer a uma comunidade política, contribuindo para a sua coesão, participa da sua memóriacolectiva e alcança valor, representação simbólica e cultural, aufere e projecta identidade. Também o valor arquitectónico do espaço público o projecta além da sua condição estrutural.As faculdades que incorpora enquanto obra arquitectural são as mesmas que o permitemenquadrar no conceito de monumento ou sítio e ser entendido como objecto patrimonialautónomo.O papel do espaço público consiste, por excelência, na sua capacidade multifuncional,dinâmica, adaptável e renovável, de dar corpo, um corpo diversificado e legível, facilmenteapreensível pelo cidadão e, portanto, ser vivido a tão variados, interdependentes e complexossistemas e fenómenos ocorridos na cidade. Neste sentido, o espaço público assume um papelestruturador, unificador. É um sistema da cidade, o coração, estrutura e infraestrutura quesuporta outras redes infraestruturais de serviços e equipamentos, informação e comunicação,mobilidade, etc. A sua escala é mais percepcionada pelo cidadão, sendo a cidade um ‘sítio’com o qual nos identificamos mas mais abstracto, um ‘lugar’ mais facilmente adquirido einteriorizado através do seu espaço público.Um espaço público lido à escala do sítio ou lugar é absorvido pela cidade mas as suasqualidades podem favorecer a criação ou a afirmação de centralidades e a sua transformaçãoem centro (catalisador e dinamizador). Assim, adquire nova dimensão e função, a quecompreende uma área de influência, por exemplo, a da centralidade.Enquanto sistema composto, entre outros elementos, por diferenciados tipos de vias decirculação, por largos e praças, jardins e parques, desempenha o papel de: potenciador econdutor da acessibilidade e mobilidade de pessoas e bens; de palco de actividades de lazer,

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lúdicas, de convívio, de manifestação diversa, etc.; mas também, de desafogo e salubrizaçãoda cidade.Apesar do espaço público, ao nível do conceito, estar dotado de todas as propriedadesreferidas, nem todo o espaço público responde aos seus desafios. Por vezes segregado e comcarácter desvirtuado, resume-se a uma enfermidade.Estes são certamente degradados, obsoletos e/ou despidos de conteúdo, significado oufuncionalidade. Não têm um papel urbano, social e ambiental ajustado mas, ainda assim, nãome parece correcto tê-los como inúteis. Estes espaços desnudam as fragilidades dos sistemasurbanos, sociais e ambientais, que muitas vezes por ofuscação não vemos ou por (des)interessenão queremos ver, acabando por ter um papel de sintomatologia preventiva de contaminações.Portanto, o espaço público reabilitado, ou mesmo novo, é potencialmente promotor darequalificação e da valorização da cidade e, consequentemente, da qualidade de vida docidadão e do meio ambiente. Este é mais um dos seus papéis. Ao mesmo tempo fomentará aqualidade arquitectónica, favorecerá a reabilitação do edificado e consagrará uma dimensãocívica como um espaço de aprendizagem e civilização, de incremento ao respeito ambiental eum convite à convivência colectiva.

3. Paradigmas ‘recentes’ na definição e caracterização do espaço público - diálogo entre acidade e o seu espaço público Cidade e espaço público nela contido articulam-se mediante uma interacção íntima ereciprocamente causal1. A consciência empírica da cidade facilita a sua leitura espontâneacomo um organismo que cresce, mais ou menos naturalmente, e com ele arrasta amultiplicação, a difusão, a variedade tipológica e estilística do espaço público. A ‘cidade desenvolvida’ e a ‘cidade subdesenvolvida’: compactação e dispersãoAs cidades contemporâneas herdaram, essencialmente desde meados do século XX, umascondições e características de desenvolvimento e outras de subdesenvolvimento. Outras,porém, até hoje, souberam ultrapassar o seu subdesenvolvimento. Mas, podemos dizer quetemos duas grandes categorias de cidade – cidades desenvolvidas e cidades subdesenvolvidas.Estas categorias estáticas, quando aplicadas a cidades concretas, expressam apenas umadiferença de condição localizada num tempo próprio porque, em boa verdade, ambas sãocidades em permanente desenvolvimento. Ambas cresceram segundo fenómenos e processos de conurbação e urbanação2, por isso, asduas apresentam zonas de compactação e dispersão, embora com características diferentes enão directamente proporcionais a índices de ocupação, isto é, à densidade populacional. Alémde uma ter seguido sobretudo uma conurbação polinuclear e outra essencialmente umaconurbção uninuclear, a maior diferença entre ambas é a proporção existente entre as áreas decidade planeada, infraestruturada e equipada e as de pretensa (urbanizável) cidade desordenadae carente de infraetruturação e equipamento. O espaço público, independentemente da vivênciaque tiver, é o melhor espelho destas realidades. O espaço público “La transformación de los espacios públicos há sido un componente importante de losprocessos de revitalización de muchas ciudades compactas europeas desde los años setenta3.Junto com otras políticas como la creación de nuevas centralidades a partir de la reconversiónde tejidos existentes, la revalorización del patrimonio histórico o la mejora de los transportespúblicos, el esfuerzo por renovar el espacio público ha contribuido en muchos casos a larecuperación de unas ciudades compactas que se habían ido degradando desde la SegundaGuerra Mundial bajo la cresciente invasión del automóvil, unas visiones urbanísticasreductivas promotoras de distintas formas de segregación y las dinâmicas especulativasvinculadas al crescimiento urbano. A través de estas experiencias, el proyecto del espacio

1 FERRAZ, Susana A. Silva (2005) ‘Espaço público de Luanda – património arquitectónico colonial angolano eportuguês’, Dissertação de mestrado, Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.2 COSTA, Célio E. A. Melo da (2007, Porto, comunicação pessoal) Urbanação consiste na atracção pela cidadeque origina a ocupação imobiliária da sua envolvente próxima, sem, ainda, obedecer a quaisquer regrasintrínsecas do quadro legal urbano.3 Anos de crise internacional, de motivações várias, marcados pelos reflexos restritivos do retrocesso económico.

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público aparece como un factor importante para mejorar la calidad de vida y la imagen de estasciudades.”4

A ‘reconversão dos tecidos’ passou pela requalificação e renovação do espaço público.Começou de modo muito embrionário, fruto de um tímido experimentalismo, por exemplo,com a concessão de ruas exclusivamente à utilização pedonal mas cujo desenho urbano eraainda discreto e assente em ‘modelos tradicionais’ (pavimentos característicos, bastantebancos, etc.). Nos anos 80 (e 90, em Portugal), acordámos para a monumentalização autónomados espaços públicos, num processo que visava igualmente monumentalizar a cidade. Sãocaracterizados pelo excesso de ‘formalismos’ singulares e por comportarem demasiados usos.Depois destas experiências, e delas tendo retirado algumas lições, embora continuemos muitoconcentrados nos centros das cidades, apostamos em espaços públicos potencialmente ricos emsignificados e desobstruídos (uma sensibilização crescente para com as dificuldades dasminorias) e sustentáveis, prevendo a utilização de energia renovável para a sua iluminação,para painéis publicitários e informativos e para accionar mecanismos diversos; o reforço daarborização; e, a utilização de materiais reutilizáveis e técnicas construtivas tradicionais. Assim, as premissas conceptuais contemporâneas contempladas pelo desenho do espaçopúblico, experimentadas por exemplo em Barcelona5, discriminadas e analisadas por MiquelMartí6, resultam numa interessante formalização - espaços sem obstáculos, com transparência,fácil legibilidade, comunicação e unidade espacial7 (conseguida pela consideração alargadados limites do espaço extensíveis até aos limites edificados ou naturais, irregulares, articulandoo plano horizontal, o vertical e o enquadramento paisagistico, integrando-os e simultaneamentecontextualizando-se arquitectónica e urbanisticamente); espaços com identidade própria e/ouurbana (da rua ou praça, bairro, freguesia, cidade) devido à opção de incorporar elementosstandardizados que, mais do que minorar os custos e os gastos energéticos de acordo comprincípios contemporâneos, possibilita a sua aplicação em áreas mais vastas, se tal sepretender. A standardização, através da criação de imagens urbanas, reforça a identidadeurbana dos cidadãos, podendo até consistir, por exemplo, no tipo de pavimento utilizado oupelas espécies de árvores escolhidas. Estes aspectos tanto podem ser igualadores comodiferenciados dos espaços e da dita ‘unidade espacial’ e contribuirão igualmente para evitar omonofuncionalismo. Assim, estes espaços, são simultaneamente muito legíveis e complexos.“El equilíbrio entre legibilidad y complejidad es un factor fundamental de la experiênciaperceptiva del espacio público, y por lo tanto, de la experiencia cívica. La legibilidade es unacondición sine qua non para incorporar el espacio y sus significados en el imaginario. Lacomplejidad resulta necesaria para contrarrestar la pasividad corporal que Sennet identificacomo un obstáculo para la experiencia efectiva de la diversidade social.”8

Mas, existe uma outra categoria de espaços, os espaços construídos novos, fruto de recentesalargamentos da cidade ou da definição de espaços vazios ou residuais.No modelo de crescimento conurbativo corrente da cidade contemporânea, vastas áreas sãomuitas vezes caracterizadas pelo acentuado predomínio duma funcionalidade em relação ásrestantes. Os espaços públicos criados vão-se proliferando pela cidade com pouco mais do queuma condição estrutural e residual. Como espaços de lazer são ambíguos, incaracterísticos epouco apelativos, que servem quase exclusivamente para passear o cãozinho! Sobrevivem aeste ‘marasmo’ urbano os parques, talvez favorecidos pela escala e pela oferta diversificada deexperiências que proporcionam.Mas se a cidade, tal como é concebida, não tem mostrado pré-disponibilidade para ser pensadaatravés de um espaço público de qualidade cívica, também a solução proposta, por exemplo,4 MARTÍ, Miquel (2004) ‘La renovación del espacio público en Barcelona (1979-2003)’ in Urbanismo N.º17,Coimbra, Associação dos Urbanistas Portugueses, 10.5 Cidade cuja história mostra o como e o quanto tem abraçado conscientemente a experimentação.6 MARTÍ, Miquel (2004) ‘La renovación del espacio público en Barcelona (1979-2003)’ in Urbanismo N.º17,Coimbra, Associação dos Urbanistas Portugueses, 10-27.7 Através da criação de ruas e espaços apenas pedonais; da dissolução dos limites e garantia da continuidade dopavimento; do redesenho e alargamento dos passeios; da localização estratégica de elementos urbanos; devariações dentro de linguagens formais identificáveis. 8 MARTÍ, Miquel (2004) ‘La renovación del espacio público en Barcelona (1979-2003)’ in Urbanismo N.º17,Coimbra, Associação dos Urbanistas Portugueses, 25-26.

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para a rede viária, para a resolução de encontros à mesma cota, é operativa mas aplicadaindiscriminadamente expressando ser já um ‘movimento estilístico’ – a rotunda. Começou porresolver problemas funcionais de cruzamentos de vias mas, actualmente, vem sendo utilizadaaté mesmo em vias contínuas, julgo que como elemento decorativo, para o qual se reservafrequentemente bons recursos monetários enquanto outros espaços públicos funcionalmenteúteis carecem de cuidado e intervenção. Pelos menos que se conduzisse essas verbas paraconstruir novos espaços úteis na cidade.Os espaços criados sob tais premissas nascem reclamando, desde logo, requalificação eintegração sobretudo no tecido social, bem como acontece com uma cidade construída sob osmesmos axiomas, sem substância. Espaços públicos sem alma apenas favorecem a creditação do ‘centro comercial’ ou do‘ciberespaço’, pois, sem dúvida, promovem o individualismo, o isolamento e o desejo deprotecção e segurança.

4. Desafios ao espaço público e à cidade - debilidades, obstáculos, perspectivas e incentivos“A história da cidadezinha francesa de Aigues-Mortes é um curioso exemplo...Em 1248, S. Luiz embarcou para a sétima cruzada em determinado local do sul de França,sobre o Mediterrâneo, e decidiu em seguida transformá-lo num grande porto e numa grandecidade. (…) A realização desse projecto foi prosseguida, após a morte do rei, pelos seussucessores.Cedo, porém, se revelou quanto eram mais fortes as realidades que o capricho régio: os canaisencheram-se de areia, o comércio morreu, as ruas projectadas não se ladearam de casas, adecadência, em suma, nasceu com a própria cidade.”9

Debilidades e obstáculosJá observamos anteriormente que os espaços públicos contemporâneos, que compreendem umacondição cívica, são espaços capazes de comunicar significados que reforçam o sentimento e acoesão social e política. Mas, nem todos os espaços públicos de encontro, de lazer e lúdicostêm a capacidade de gerar experiências cívicas importantes. Além destes, conforme veremosadiante, nem os ‘centros comerciais’, enquanto espaços colectivos com ambições idênticas,conseguem alcançar essa condição cívica e nem mesmo e vasto ciberespaço alternativoproporciona uma aproximação a essa experiência.Apesar de cada realidade urbana ser única, o espaço público apresenta debilidades eperspectivas comuns embora diferentes em grau.Algumas debilidades encontradas no espaço público são constantes e recorrentes, quer pordefeito ou por excesso, destacando-se algumas: - Subjugação dos espaços a critérios abstractos e descontextualizados aquando da concepçãoprojectual, alheios ás características e necessidades do lugar, da comunidade e mesmo adiandoa integração ambiental, o que se deve ao afastamento e desajustamento entre muitos planosgerais ou particulares e as realidades que, por sua vez, é consequência duma análise deficienteou inexistente, duma formação ou competência técnica insuficiente, estando implícito o factorque Wilheim designa de ‘vício determinista’10, mecanizado e automatizado depois de aplicadodurante séculos, bem como, um outro factor, o ‘vício facilitista’, que tipifica modelosdescorando a arquitectura vernácula e a ‘arquitectura evolutiva’11, optando pelas soluções maisimediatas; - desintegração social; - falta de uma política de protecção e salvaguarda patrimonial;- deficiente ou insuficiente infraestruturação, equipamento e rede de transportes colectivos, porsobrecarga ou escassez; - falta de manutenção e conservação;- acumulação de sujidade; -existência de obstáculos e barreiras arquitectónicas; - ilegibilidade e conflituosidade entreelementos de composição, ‘mobiliário’ urbano, arborização e eventuais construções; - escassez

9 AMARAL, Francisco Keil (1942) ‘A arquitectura e a vida’, colecção Biblioteca Cosmos 15, Lisboa, EdiçõesCosmos, 8.10 WILHEIM, Jorge (1969) ‘Urbanismo no Subdesenvolvimento’, Rio de Janeiro, Editora Saga, 96. Um ‘vício’ segundo o qual esquematizamos relações complexas e justapostas através do estabelecimento delógicas, cuja natureza é abstracta, e segundo o qual cogitamos recorrendo a ‘categorias hierarquizadas, estáticas ede mútua exclusão’ partindo sempre do geral para o particular num gráfico de ramificações. 11 Que evolui a partir de um núcleo básico, de uma construção primitiva.

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de espaço exclusivamente pedonal e com dimensões adequadas à sua função; - falta ou excessode usos para a capacidade e condição de alguns espaços (abandono e vandalismo ou sobrecargae esgotamento das estruturas e infraestruturas); - incompatibilidade de usos; - invasão doautomóvel nas escassas áreas pedonais (em passeios, em praças, etc.) inviabilizando aconcretização da dimensão cívica do espaço público.Outras debilidades resultam da mudança das actividades económicas dominantes nas ‘grandescidades’, do impacto das novas tecnologias da comunicação e da informação na esfera públicae no espaço público, numa relação de competição, desigual e desnivelada: - Encerramento ou reestruturação dos serviços, comércio, transportes e indústria podemfavorecer a degradação urbana, cujos principais efeitos, desenvolvidos em cadeia numa relaçãode mútua causalidade, são a perda de empregos locais, a redução da riqueza local e oenvelhecimento e deterioração do ambiente, o envelhecimento das infra-estruturas e oabandono da conservação dos edifícios; as populações locais ressentem-se e frustram-se,manifestando uma certa paralisia e resignação perante o envelhecimento acelerado, oempobrecimento, o vandalismo e a criminalidade; - ausência de ocupação material e/oufuncional ou monofuncionalidade, por exemplo, em amplas áreas residenciais ou produtivas; -ausência de interesses (gerados pelas actividades económicas, serviços, educação, cultura elazer, acessibilidades, etc.); - dispersão alimentada pela mobilidade12 e vice-versa; - ociberespaço como local de informação, encontro e comunicação, de comercio, etc., e o centrocomercial como pretenso espaço público, de comércio, lazer e trabalho, que oferececomodidade medida pela diversidade de produtos, pela segurança climática e civil; - a‘sociedade de consumo’ com pouco sentido crítico e pouca consciência social da paulatinaperda de liberdade, subjacente ao consumo dos produtos e serviços que nos são oferecidos, nomomento da sua inquestionada aceitação. Refiro-me aos dois espaços que, contrariamente aoque parecem e preconizam, são espaço de grande exclusão social. Perniciosamente moldamculturas, vendem e promovem imagens e classes inacessíveis a muitos. Os centros comerciaisrivalizam com o espaço público e apresentam-se como pseudo-fóruns ou praça pública, comsubstrato filtrado, limpo, por exemplo, de miséria e degradação social incomodativas de ver. AInternet é igualmente uma plataforma homogénea, universalista, e ainda inacessível a muitos. Além destes aspectos de âmbito sociológico, estes dois espaços determinaram muito amudança nos aspectos económicos e financeiros, informativos e comunicativos, promovendo eelegendo locais específicos de implantação, contrariando a dispersão e continuidade pelostecidos urbanos, e actividades novas em detrimento de algumas mais tradicionais. Por exemplo,de acordo com o que já dizia Wilheim, no final dos anos 60 do século anterior, as ‘cidadesnucleares’ já não concentram o emprego de produção massiva, sendo de outra natureza a suaatracão – “nas grandes cidades de países desenvolvidos concentram-se os empregosintelectuais, as administrações responsáveis por importantes decisões etc. Existe, portanto, umprocesso de «depuração» da estrutura de emprêgo e uma elevação do grau de informação. oalto teor informativo caracteriza a cultura urbana já em estruturação nas metrópoles maisdesenvolvidas.”13

Perspectivas e incentivosAdriana Dal Cin, melhor do que eu jamais conseguiria, traduz e enuncia sucinta masobjectivamente quais são as perspectivas e os incentivos contemporâneos essenciais: “Se acidade-referência, a cidade-amável, a cidade-qualidade que cumpria com as necessidades dacomunidade se perdeu, é necessário enfrentar o desafio de voltar a encontrá-la entre asvirtualidades que ainda perduram ou recreá-la desde as oportunidades que guarda em simesma, assim como eleger os factores e elementos necessários para definir novas realidadesque transformem a situação existente.Deve-se encontrar novamente a qualidade de vida que se alcançaria através da procura de umaqualidade estrutural e infra-estrutural, social, cultural, ambiental e económica. Deve-serecuperar a unidade e a identidade urbanas como expressão da essência da cidade. 12 PORTAS, Nuno ‘Como de decide a cidade. 3.Estratégias de desenvolvimento urbano’ in Urbanismo N.º17,Coimbra, Associação dos Urbanistas Portugueses, 46. (referência ao fórum: A cidade que temos, a cidade quequeremos)13 WILHEIM, Jorge (1969) ‘Urbanismo no Subdesenvolvimento’, Rio de Janeiro, Editora Saga, 31.

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Mesmo assim a procura dessa cidade passa pela integração activa no processo desustentabilidade. Precisamente a melhoria ambiental, social e económica é o objectivo quepersegue este processo. Ao conseguir melhorar estes aspectos, ter-se-á contribuído para aqualidade.Por outro lado, a mudança requer a procura de acções e mecanismos que tornem possível o pôrem marcha, tanto da qualidade, como da sustentabilidade das cidades. Quer dizer uma novagovernação. Esta mudança só pode ser abordada desde a óptica de uma acção conjunta detodos os membros da comunidade e ao falar da comunidade faz-se referência a todo o espectrode indivíduos e instituições que formam o tecido humano da cidade.Os três temas mencionados: qualidade, sustentabilidade e governação constituem os trêsconceitos integrais que tratam a cidade e o seu território como um todo. Ao mesmo tempo,estes três conceitos abarcam-se e integram-se mutuamente através de múltiplas relações.”14

Na perspectiva da busca de qualidade inclui-se a protecção dos testemunhos, das memórias,enfim, do património colectivo. Relativamente à sustentabilidade diria que, além das medidaspolíticas, económicas e técnicas necessárias para a ultimação desse objectivo, é premente aconsciencialização da sociedade/comunidade, uma mudança de atitude dos cidadãos face aoambiente, constituindo-se, em si, num desafio de melhorar a cidadania e o civismo.Enquadrados na perspectiva de uma nova gorvernação, além dos explicitados, estão, porexemplo, o controlo equilibrado, consciente e fundamentado de interesses privados e aexigência de qualidade técnica. Encontrar a cidade é, na verdade, uma humanização da cidade através da reapropriação porparte do indivíduo e da comunidade. Este é, sem dúvida, um objectivo central, um objectivoque salienta a importância dos aspectos sociológicos no processo de aproximação á cidade eseus espaços públicos. Esta é a visão que anseio ver contemplada para Luanda, uma ‘visãosociológica’, assente numa forte componente cultural e necessariamente económica, móbil etecnológica. Diria mesmo que nem teria sido necessário destacar os referidos componentes,pois uma solução verdadeiramente sustentável os abarcará assim como abarcará o conceitorenovado de globalização e vice-versa. Esta renovada noção de globalização, contemporânea,consiste em deixar de perseguir apenas a universalidade, o capitalismo e o espectáculo, paravalorizar a diversidade cultural (protegendo identidades, património, etc.) e ambiental. Além disso, pensar a cidade é cada vez mais pensar a cidade como um todo, embora sejaconstituída por partes, um ecossistema formado por sistemas e subsistemas. Esta integraçãoaplica-se ao espaço público quando a sua importância principal deixa de ser a estrutural e sepassa a valorizar e a concentrar atenções no ‘vazio’ como espaço construído. A mesmaintegração projecta-se, do mesmo modo, na relação cidade/meio, segundo Salvador Rueda,através da ‘ecologia urbana’ que se baseia “na adopção de pautas, normas e regras jurídicas,económicas, organizativas e técnicas centradas nesta «unidade». A mudança de paradigmaconsiste no reconhecimento da natureza dotando-a de valores próprios. Deixa, assim, de ser ooutro, o exterior, para se situar no centro do pensamento… O novo paradigma não deixa departe, sem dúvida, os conflitos que na ordem social, económica e política tenham já tidoresultados ou estejam ainda por resolver. Em todo o caso, questões como a dos direitoshumanos devem ser reposicionadas no novo marco de referência.”15.Estes objectivos perspectivados, além de serem formalmente caracterizáveis, só poderão serconcretizados se tomadas algumas mediadas, como por exemplo, as tomadas em Curitiba –uma ‘capital ecológica’16 -, no Brasil, um excelente exemplo de evolução, transformaçãourbana e cívica, e respeito ambiental, um excelente caso de estudo para se estabelecerparalelismos e concordâncias com Luanda (onde trabalhei para a minha dissertação de

14 DAL CIN, Adriana (2004) ‘O desafio do século XXI: a reconquista da cidade’ in Urbanismo N.º17, Coimbra,Associação dos Urbanistas Portugueses, 2. (excerto do Relatório Final do IX Congresso Ibero-Americano deUrbanismo)15 RUEDA, Salvador (2000) ‘Modelos de cidade: indicadores básicos’ in Las escalas de la sostenibilidad, RevistaQuaderns – d’arquitectura i urbanisme, Nº 225, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, S.A., 26.16 GEHL, Jan; GEMZOE, Lars (2002) ‘Novos espaços urbanos’, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, SA., 66-71. &VÁZQUEZ, Carlos Garcia (2004) ‘Ciudad hojaldre. Visiones urbanas del siglo XXI’, Barcelona, EditorialGustavo Gili, SA, 96.

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mestrado), embora Luanda tenha cerca de três vezes mais habitantes. Todo o processocomeçou em 1965 com o plano de urbanização desenvolvido por Jorge Wilheim.Este exemplo é, sem dúvida, paradigmático dos desafios explanados por Adriana Dal Cin e da‘cidade sustentável’ enquadrada na ‘visão sociológica’ de Vázquez. Outro desafio, também aplicável directamente em Luanda, consiste em urbanizar, emdeterminar regras básicas e proceder ao enquadramento legal de tecidos urbanos orgânicos,desordenados e desinfraestruturados, mas urbanizáveis, mantendo-se a estrutura, definindo-amais claramente onde for necessário, e estabelecendo eixos infraestruturais fixos nos ‘talhões’existentes onde, ligada a si, a construção se desenvolverá livremente. Ainda, em algumassituações, o espaço público pode ser construído segundo as técnicas construtivas tradicionais,expressando estilos vernáculos ou criações contemporâneas e contemplando sempreinfraestruturas e equipamentos, e, assim, representam o desafio da recuperação de saberes, doaperfeiçoamento destes e da sua (re)criação.Trabalhando ainda muito com a utopia, entendo ser imperativo transformar aquilo que vemsendo, de algum modo, prejudicial para o espaço público num instrumento de favorecimento,num meio de libertação da cidade e do seu espaço público para um ‘funcionalismo renovado’ eum funcionamento pleno, seguro e atractivo, reduzindo o ‘centro comercial’ a ‘uma opção’ enão ‘à opção’ que melhor serve os novos estilos de vida. Também poderá ser conseguido se,por exemplo, no ciberespaço, optimizarmos serviços e fluxos válidos, confidenciais e livresque ainda nos conduzem à ‘cidade material’ por mera falta de alternativa. Não é obrigados quequeremos ir à cidade, queremos viver a cidade que também faz parte das nossas memórias e,com as medidas referidas, a cidade ficaria livre para nelas se desenrolarem, não só experiênciascívicas, mas também experiências sensitivas e emotivas. Talvez esta seja uma medida tãoeficaz, ou mais, como a supressão inibitiva dos carros no centro das cidades, que se não forsuperada por uma rede eficiente de transportes públicos simplesmente torna-se inútil eprejudicial, promove o abandono da cidade e a dispersão.

5. A requalificação do espaço público e o processo de requalificação da cidadeJá é ‘lugar comum’, mera retórica, afirmar que a cidade contemporânea é uma cidadecomplexa, como se assim tudo ficasse explicado. Mas, essa complexidade, que é real, nãoadvém das suas características urbanas e arquitectónicas, não se deve à sua morfologia outipologia. A complexidade da cidade contemporânea está latente no seu conceito, reside naarticulação entre o vasto acervo de factores e fenómenos variantes, cada vez mais, que tem deconsiderar, equacionar e a que deve dar resposta.Assim, a requalificação do espaço público é essencialmente um processo basilar derequalificação da cidade que, por sua vez, fundindo-se harmoniosamente com o meioambiente, proporcionará sustentabilidade e plena qualidade de vida à comunidade, doisobjectivos comuns ao desafio de voltar a encontrar a cidade, enunciado por Adriana Dal Cin17. A capacidade de influência do espaço público na paisagem urbana, e vice-versa, deve-se ao seucarácter e papel; deve-se ao facto de a sua escala proporcionar ao indivíduo e à comunidadeuma relação consigo mais imediata e directa.A requalificação, integrada e expandida, é o objectivo final do estabelecimento de estratégiasrevitalizantes e da intervenção efectiva. Porquê compreender?Mas, se a requalificação é um fim em si mesmo, alcançamo-la segundo um percurso iniciadopela compreensão prévia18. Esta compreensão prévia, contemporânea embora não original,prevê a observação, a inventariação, a interpretação e o enquadramento de fenómenos mas,essencialmente, prevê a analise da relação estabelecida entre eles e a colaboração multi einterdisciplinar, uma discussão que parte do conhecimento crítico e criterioso dos panoramas eexperiências do passado para compreender e analisar o presente visando projectar e conjecturar

17 DAL CIN, Adriana (2004) ‘O desafio do século XXI: a reconquista da cidade’ in Urbanismo N.º17, Coimbra,Associação dos Urbanistas Portugueses, 2. (excerto do Relatório Final do IX Congresso Ibero-Americano deUrbanismo)18 WILHEIM, Jorge (1969) ‘Urbanismo no Subdesenvolvimento’, Rio de Janeiro, Editora Saga, 95.

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o futuro, cuja vantagem imediata se traduz na redução das probabilidades de se cometeremerros já atestados, inclusive os de desarticulação disciplinar. Deste modo ficamos aptos para estabelecer premissas e objectivos, para determinar umaestrutura de e entre ecossistemas, sistemas e subsistemas que compõem a cidade. Como compreender?Contudo, é importante que a compreensão prévia não se estanque, pelo contrário, que sejaaberta a eventuais revisões e reajustes que se mostrem necessárias durante o processo deformulação das acções.Por isso, a compreensão do ‘objecto’ deve ser caracterizada por duas vertentes: metodológica esociológica. Uma mais científica e técnica e outra que parte da leitura mais empírica feita pelocidadão e sociedade, buscando a sua participação no processo urbano, para evitar oafastamento do contexto real.Qualquer uma delas deve ser orientada segundo os pressupostos de contemporaneidade e do‘estruturalismo renovado’, conceitos que se abarcam mutuamente. O primeiro reúne aflexibilidade, a reversibilidade, a qualidade, a efemeridade e, o segundo, acrescenta a ‘estruturacomo metodologia’, condutora e unificadora de princípios, objectivos, etc., e a ‘estrutura físicaflexível’ (que trabalha à semelhança de um corpo informe).Na verdade, esta compreensão prévia, nos moldes referidos, não é mais do que um métodocientífico geral que no urbanismo apresenta preponderante valor, sobretudo agora, quando noplaneamento queremos dar lugar ao estabelecimento de estratégias (‘planeamento estratégico’),condição que o torna exponencialmente dinâmico e extensível, ficando, também,definitivamente subjugados os planos gerais normativos, passivos e estanques bem como osprincípios da ‘regra e excepção’, propostos por Secchi que acreditava assim abarcar toda acomplexidade, todas as dicotomias e paradoxos da cidade contemporânea. A tradução da compreensão nos instrumentos de requalificação e revitalização‘Planeamento estratégico’ é um planeamento assente numa gestão integrada de um sistemaaberto e mutável – a cidade, a sociedade e o meio – no ‘universo’ nacional e internacional.Talvez, mais correcto do que falar em planeamento urbano será falar em gestão urbana, poistrata-se de articular ‘programação’ e parceiros (inclusive participação pública), perspectivandoo equilíbrio entre custos e benefícios. Mas, por exemplo, João Rosado Correia, alude à figura dos planos integrados para “melhorar aqualidade de vida dos cidadãos, provocar o desenvolvimento, caminhar para a melhoria doambiente, fazer baixar as taxas de poluição. Os planos integrados impõem acções de renovaçãourbana, que integram a vertente ambiental, e é acompanhada de reabilitação social”19. Porém,na verdade, os interesses e os objectivos são os mesmos.Nuno Portas, no debate das estratégias de desenvolvimento urbano, é ainda mais objectivo e“pede a discussão para se consensualizar sobre, por exemplo, a densidade, a diversidade, adispersão, o espaço público, e até a «construção em altura».”20 Em qualquer dos casos, além dos meios e instrumentos, impõe-se uma mudança de atitude edas acções governativas, portanto, uma nova governação21 (local e central) que deverá serinclusiva, envolvendo a comunidade (cidadãos de todo o tecido social) numa participaçãoactiva, cujo modelo de participação pública, sem anular democracia representativa (corrupta ecorporativista) nem a participativa (demagógica e populista), deve recorrer à “utilização demodos informais mas estruturais de tomada de decisão colectiva.”22.

19 CORREIA, João Rosado (1996) ‘O património construído: reabilitação/revitalização arquitectónicas’ in Espaçoe Memória. Revista de Património, Porto, Universidade Portucalense, 306.20 PORTAS, Nuno ‘Como de decide a cidade. 3.Estratégias de desenvolvimento urbano’ in Urbanismo N.º17,Coimbra, Associação dos Urbanistas Portugueses, 46. (referência ao fórum: A cidade que temos, a cidade quequeremos)21 DAL CIN, Adriana (2004) ‘O desafio do século XXI: a reconquista da cidade’ in Urbanismo N.º17, Coimbra,Associação dos Urbanistas Portugueses, 2. (excerto do Relatório Final do IX Congresso Ibero-Americano deUrbanismo)22 FERRÃO, João (2004) ‘Como de decide a cidade. 1.Planos, políticos e promotores – que ideias de cidade?’ inUrbanismo N.º17, Coimbra, Associação dos Urbanistas Portugueses, 46. (referencia ao fórum: A cidade quetemos, a cidade que queremos)

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Correia acrescenta que as acções governativas poderiam passar pela implementação de“incentivos fiscais e financeiros nas áreas de responsabilidade governativa em todos os camposda paisagem cultural, económica e social e, sobretudo, levar a iniciativa e apoio aos pequenos enovos promotores”23.Mas, estas questões não são pacíficas. Por exemplo, enquanto existe consenso relativamenteaos princípios ou aos objectivos patentes nas novas metodologias e ideologias urbanísticas, asimplicações inerentes à mudança de atitude governativa e do cidadão e às iniciativas eincentivos necessários realizar para viabilizar as acções formuladas, geram grande debatepolémico.Todavia, podemos concluir que tudo o que se disse, e disser adiante, conduz à requalificaçãoda cidade, naturalmente através da requalificação de um dos seus mais significativos sistemas(o espaço público), em detrimento da expansão da cidade. Não se entenda, contudo, que áescala metropolitana não haja expansão, nem que esteja condicionada a criação de novosespaços públicos. A relação das estratégias de requalificação e revitalização com o património urbanoA contemporaneidade, além de sublinhar as metodologias de abordagem e oplaneamento/gestão da cidade, está também presente na relação com o património,expressando-se, por exemplo, na cidade e no espaço público através da articulação inclusiva,exequível, coerente e flexível entre tradição e modernidade. Tradição e modernidade acabam por ser fenómenos sujeitos a evolução24. Assim, por exemplo,hábitos e saberes, instituídos ou adquiridos, que consideramos peremptório transmitir àsgerações seguintes e futuras, e a aceleração dos ritmos de desenvolvimento actuais, geram ofenómeno de tradicionalidade em que os novos modus vivendi e faciendi rapidamente tomamfeições tradicionais e se renovam sucessivamente. Tradição é aquilo que existe comopermanência de um passado no presente, remoto ou recente, que resulta não só da vontade detransmissão desse legado mas também da vontade de aceitação; e, tem coerência ao nível docolectivo, contribuindo simultaneamente para a construção de uma identidade colectiva e paraa perpetuação e vitalidade da comunidade. Por sua vez, o fenómeno de modernidade éaccionado por factores de desenvolvimento, pelo conhecimento, ciência, tecnologia ecomunicação, cada vez mais ‘globalizantes’, que simultaneamente subjugam as identidadesculturais a leis de mercado e a linguagens universalistas ao mesmo tempo que as valorizaprogressivamente, apostando na diferença como valor qualitativo. De facto, a ‘era doconhecimento’, de que fazemos parte, avança invertendo caminho no sentido da recuperaçãodas características culturais, transformando a diversidade de identidades culturais em riquezamundial. E, por tudo isto, diria que se a tradição se pode revestir de modernidade, amodernidade também se pode revestir de tradicionalidade, podendo-se constituir uma como aface visível e a outra como o suporte ideológico, exprimindo-se em níveis diferentes.Aliás, o objectivo de salvaguardar e valorizar o tecido urbano e, mais recentemente, desalvaguardar e integrar a comunidade e respectivas actividades no ‘organismo’ urbano esocial em contínuo desenvolvimento não corresponde a uma ambição ou desafio original, já sepode considerar uma tradição que a história testemunha.Visando atingir o referido objectivo, a conservação do património urbano, arquitectónico esocial realiza-se em duas vertentes complementares: por condicionantes normativas e pelarelação estabelecida entre agentes, meios e acções. Esta conservação, na verdade, além dos instrumentos já mencionados, é mais um passo fulcralno processo de requalificação da cidade e do seu espaço público. E, perseguindo esse propósitotanto a renovação e expansão das cidades como a conservação urbana e arquitectónica sedevem abarcar, não se excluindo ou sobrepondo. Este é, na verdade, um fenómeno natural doprogresso da civilização.

23 CORREIA, João Rosado (1996) ‘O património construído: reabilitação/revitalização arquitectónicas’ in Espaçoe Memória. Revista de Património, Porto, Universidade Portucalense, 306.24 FERRAZ, Susana A. Silva (2005) ‘Espaço público de Luanda – património arquitectónico colonial angolano eportuguês’, Dissertação de mestrado, Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 85, 233-234.

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Se estas preocupações e intenções são veras para a cidade são, também e necessariamente,verdade para o espaço público. A requalificação e a renovação urbana têm sido conseguidas essencialmente pelo reuso, umarenovação baseada na prestação de serviços (que incluem algumas das consideradas ‘industriaslimpas’), incidente quer nos centros históricos quer em áreas abandonadas na cidade (porexemplo, ex-zonas industriais), respectivamente protegendo e consolidando a memóriahistórica colectiva das gentes locais, preferencialmente ‘autentica’ mas muitas vezes deturpada,e prevenindo face à ocupação indevida, á proliferação da construção débil e ao vandalismo.Também, conforme já vimos anteriormente, a requalificação e a renovação urbana temprivilegiado, ao nível do planeamento, gestão e desenho urbano, a reapropriação da cidade pelocidadão e a protecção ambiental traduzidos, por exemplo, na experiência de Curitiva e nos dosprincípios conceptuais subjacentes aos projectos de espaços públicos, potencialmente cívicos,em Barcelona.Sublinhe-se novamente que, segundo os preceitos contemporâneos, se deverá evitar aperniciosa especialização funcional do espaço (o monofuncionalismo) e se deverá garantir queas acções realizadas sejam pautadas pela reversibilidade.A relação das estratégias de requalificação e revitalização com o ‘património ambiental’As estratégias de requalificação e revitalização promovem, entre outros, a utilização dasenergias renováveis para iluminação, publicidade luminosa e painéis informativos, paraaccionar mecanismos diversos e como combustível para os transportes; a reutilização das águasdas chuvas, por exemplo, recolhidas e (re)integradas em sistemas de rega; a expansão de zonaspedonais e a redução da utilização do automóvel; e, ainda, a arborização que, simultaneamente,estabiliza os solos, purifica o ar, confere sombra e embeleza a cidade. Apesar das intençõesmanifestadas, a implementação das medidas é difícil, complexa e precisa de tempo para sefazer notar, após árdua e continuada sensibilização cívica social, técnica, administrativa einstitucional.Numa outra escala, à semelhança do que se verifica com o edificado, também a recuperaçãodas técnicas construtivas tradicionais do espaço público que, simultaneamente, são económicase não poluentes, porque usam recursos naturais locais, podem ser autoconstruídas em poucotempo e a sua construção não implica grandes dispêndios energéticos, é um meio viável deharmonia, equilíbrio e sustentabilidade ambiental.

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6. O espaço público de Luanda - contextualização actual“A baía de Luanda, eternamente luminosa e elegante.O cartão-de-visita da capital angolana pouco mudou nos últimos trinta anos, mas, por detrás dopostal, cresceu uma miséria colossal, deixando o poder político e económico literalmentecercado por musseques25 numa metrópole de mais de 4 milhões de habitantes.”26 Aspectos sociológicos de LuandaSobre Luanda já incidiram variadas visões: no fim do século XVI, tempo da fundação, Luandafoi retratada como ‘cidade acampamento’ e ‘cidade feitoria’; no fim do século XVII paraOliveira Cadornega*27 era a ‘cidade civil’ e para Cavazzi de Montecúccolo* a ‘cidadereligiosa’; passado um século, no fim do século XVIII, para Elias Alexandre da Silva Corrêa*continuava a ser ‘cidade feitoria’; para Heitor Gomes Teixeira28 era a ‘cidade dos soldados’.Actualmente diria que ‘cidade dual’ é a que melhor a caracterizou e ainda a caracteriza emtodos os aspectos urbanos e geográficos, sociológicos e culturais, económicos e políticos, …Apesar disso, Luanda também se vai revendo, por inclusão ou exclusão, nas visões‘organicista’, ‘culturalista’, ‘sociológica’ ou ‘tecnológica’, explanadas criteriosamente porVázquez29.É uma cidade marcadamente dual, capital catalisadora, centralizadora e cosmopolita, com umacerta ingenuidade globalizadora e modernista, em nada contemporânea, turvada por umaevidente indefinição cultural e ideológica, desorientação técnica e institucional. Subtil einconsciente fragilidade que, por um lado, quer afirmar a sua angolanidade (mostrando umorgulho nacionalista) e simultaneamente quer negar a africanidade que ainda associamessencialmente à pobreza monetária e cultural, exibindo um estandarte de progresso emodernidade. Sobre esta verdade, que teimam não ver, vão-se tecendo as orientações para acidade. A ilusão com a promoção económica, social e cultural é muito grande, desviando, porexemplo, a preocupação social, ambientalista e de qualidade projectual, delineada apenas parauma cidade de exclusão, para a dos ricos.Luanda foi e é plenamente orgânica, dentro dos parâmetros contemporâneos deste conceito,que englobam a leitura do caótico (teoria do caos). Já foi sustentável e era socialmenteinclusiva, na qual as mulheres e os anciãos, entre outros, eram muito respeitados. Actualmente,a emancipação e a valorização da mulher angolana é uma realidade que felizmente sepromove30 e é lícito dizer que a recuperação de Luanda, dos seus valores, tradição econtemporaneidade, da sua sociedade, passam inevitavelmente por este merecidoreconhecimento e pela continuação do trabalho sempre interventivo destas mulheres. O crescimento de Luanda revê-se nos fenómenos e processos de urbanação subjacentes aocrescimento da ‘cidade subdesenvolvida’, de fundação colonial, mas expressa actualmentealguns sinais e vontades de desenvolvimento e progresso, embora mais evidente no campoideológico e intencional do que no campo prático porque mais difícil do que saber o que sequer fazer é saber como o fazer e, neste aspecto, ainda é preciso fazer um grande investimento(esforço) em duas vertentes: conhecimento e governação.Esta fundação colonial, além de imprimir na cidade características arquitectónicas eurbanísticas específicas, conduz-nos para uma dualidade cultural espelhada no debate da

25 AUTORES, vários (1973) ‘Boletim Cultural 39’, Luanda, Repartição de Cultura e Turismo, 26-27. Musêke significava originalmente quinta, chácara, casa de campo, descampado. Actualmente é utilizado paradesignar as zonas onde se agregam bairros carenciados ou mesmo para designar este tipo de bairro em Angola.26 AUTORES, vários (2005) ‘África 30 anos depois’, Visão, Edimpresa Lda, 15.Mais de 4 milhões de habitantes num universo nacional de 11,2 milhões, isto é, mais de 35% da populaçãoangolana está em Luanda.27 *Contemporâneos da época referida, que estiveram em Luanda. Historiador, missionário italiano e militar luso-brasileiro. 28 MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque (1997) ‘Configurações dos Núcleos Humanos de Luanda, doSéculo XVI ao XX’ in Actas do Seminário: Encontros de Povos e Culturas em Angola, Comissão Nacional paraas Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 149.29 VÁZQUEZ, Carlos Garcia (2004) ‘Ciudad hojaldre. Visiones urbanas del siglo XXI’, Barcelona, EditorialGustavo Gili, SA.30 São feitas autênticas campanhas recorrendo a diversos meios de comunicação: grandes cartazes alusivos pelacidade, programas e publicidade dedicados na televisão...

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identidade – angolanidade e portugalidade31 – que confrontada, mais do que nunca, com osprincípios e valores da contemporaneidade deriva para outra discussão dual - tradição emodernidade. Assim, a tradição traduzirá as identidades e o património urbano e, por sua vez, amodernidade espelhará a globalização e a sustentabilidade, fenómenos coexistentes que só ospreceitos da contemporaneidade são capazes de articular. A interessante discussão destas dualidades é o contributo de Luanda como estudo de caso.Também é esta a sua riqueza – Luanda espaço de multiplicidade e heterogeneidade. Mas, aomesmo tempo, encontrar respostas para estas discussões, um discurso dialéctico entre todasestas aparentes dicotomias, é o maior desafio que enfrenta na reconstrução do seu meio físico eno reencontro de um suporte ideológico. Posteriormente passará do campo ideológico para oprático e formalizar-se-á na paisagem urbana, fomentará a evolução sociológica e a inerentemudança de estilos de vida, além da prosperidade económica. Um primeiro passo, será deixarde ler a cidade como duas, isto é, a cidade urbanizada e os musseques, pois, esta figuração, pormuito que seja ingénua, tem induzida inconscientemente uma falaciosa discriminação urbana esocial que pressupõe que o musseque é algo externo à cidade. É uma postura exclusivista queorigina imediatamente um sério desinteresse na reabilitação e na infraestruturação domusseque. Mas Luanda também inclui o musseque, aliás, Luanda sem o musseque nem seriaLuanda! Luanda conseguirá vencer os seus desafios estabelecendo parcerias, renovando agovernabilidade mas, principalmente, graças ao espírito luandense32, à sua população, à suasociedade. É ela que garantindo a estabilidade geral distinguirá Luanda de muitas outrascidades com condições e características históricas de (sub)desenvolvimento e crescimentosemelhantes. O recém-chegado à cidade trás consigo rusticidades regionais mas, à medida que se vaiintegrando na comunidade e nos estilos de vida urbanos de Luanda (por inclusão ou exclusão),paulatinamente vai acontecendo uma desvitalização das expressões regionalistas. A celeridadedeste processo é favorecida pela aproximação que o local de residência tiver do centro dacidade. Mas acontecerá sempre porque há uma grande mobilidade da população por toda acidade, independentemente de onde possam residir, pois na dita cidade consolidada eurbanizada, estão o trabalho e os serviços. Luanda foi sempre caracteristicamente permeávelrelativamente aos fluxos de indivíduos, aspecto que distingue positivamente das restantes comsemelhante percurso histórico. Mesmo assim, a africanidade que se tenta dissimular é maisevidente nos mercados, nos musseques, nos ritmos quotidianos, nalguns costumes,manifestando-se na restante cidade no modo de apropriação do espaço público. Algunsmusseques, ou algumas áreas desses musseques, têm actualmente um forte valor simbólico erepresentativo, sobretudo, porque, durante as últimas décadas coloniais, a forte dominação dacultura portuguesa praticamente segregou a cultura caluanda “para os guetos, tendo-serefugiado nos bairros populares e musseques, servindo de suporte ao nacionalismo moderno.Com a independência, ela ganhou o status de cultura dominante, embora oficialmente não

31 FERRAZ, Susana A. Silva (2005) ‘Espaço público de Luanda – património arquitectónico colonial angolano eportuguês’, Dissertação de mestrado, Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 232-233. Angolanidade é mais do que um fenómeno de aproximação às raízes culturais tradicionais angolanas. O seupercurso histórico-cultural dá provas de renovação e evolução na recriação original e autêntica de expressões deangolanidade. Umas resultaram se processos naturais de aculturação ou simbiose cultural, outras de movimentosem prol da consciência nacional. A angolanidade reveste-se também com outra feição - as identidades pluriétnicas-, na qual identidades e alteridades são, numa perspectiva dinâmica, simultaneamente processos e estratégias e nãoapenas uma génese purista e nacionalista.Portugalidade, no período colonial, foi um fenómeno imposto que acompanhou as sucessivas levas e fixação denovos colonos, porém, o progresso dos centros urbanos, nomeadamente de Luanda, potenciado pela sua condiçãode capital, constituía-se também como um factor de atractividade para o autóctone, contribuindo para o aumentodo número de indivíduos e para a intensificação de uma “resistência” de que resultava um esbatimento daportugalidade. Actualmente, o único fenómeno de portugalidade que pode e deve estender-se tempo afora consistenum regime de cooperação, pelo menos, na discussão acerca da salvaguarda e reabilitação do património colonial.32 PEPETELA (1990) ‘Luandando’, ELF Aquitaine.Espírito Caluanda: cosmopolita, ambicioso e sonhador, optimista, determinado e aberto, hospitaleiro mas tambéminseguro e negativamente crítico da sua africanidade.

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assumida. É a cultura do grupo social que tem voz activa na vida do País, que tem acessoprincipal aos meios de comunicação, e vai penetrando nas culturas tradicionais.”33

Além disso, a sociedade também está a viver um processo de evolução dos aspectosfamiliares34, que interferem necessariamente nos estilos de vida com repercussões obrigatóriasna arquitectura. De tudo isto resulta a importância dada aos aspectos sociológicos em Luanda para acompreensão da cidade e do seu espaço públicos. Mesmo não sendo estes, impreterivelmente,um entrave ao desenvolvimento, canalizam para si acções prioritárias, adiando aimplementação de soluções arquitectónicas.Luanda - a cidadeA urbanização crescente da cidade consolidada foi sendo feita, umas vezes demolindo e, outrasvezes, envolvendo bairros populares (isolando-os em ilhas) que acabaram por construir edensificar os musseques periféricos, cada vez mais empurrados para uma periferia afastada docentro da cidade urbanizada. Esta foi uma paisagem urbana construída durante séculos masexpandida sobretudo a partir de meados do século XX. Portanto, acompanhando os surtos decrescimento económico, urbano e demográfico, a paisagem urbana foi-se formalizando de duasmaneiras: uma mais contínua e compacta, sobretudo dentro da cidade consolidada, e, a outra,descontínua e dispersa, com maior ou menor grau de massificação e desorganização. Já era uma realidade inquietante no período pré independência mas, entretanto, consequênciada guerra civil, da atractividade que a cidade sempre tem para o imigrante ‘rural’, pelaestabilização do limites da área da ‘cidade urbanizada’ e pela sempre escassa oferta dehabitação, actualmente a urbanação adequiriu proporções incontroladas preocupantes. A cidade também tem crescido dispersa através da multiplicação de pequenos núcleosestruturados e do modelo de ‘condomínios fechados’, ilhas de riqueza na paisagem ao redor dacidade.

33 PEPETELA (1990) ‘Luandando’, ELF Aquitaine.34 Vem paulatinamente abdicando do modelo matrililear para adoptar o patrilinear ou bilinear, vem apostando nafamília restrita em detrimento da família extensa. No modelo matrilinear o homem junta-se à linhagem ou famíliada mulher permanecendo como estranho e vendo o seu papel paternal assumido socialmente pelo irmão maisvelho da mulher, responsável pela educação dos sobrinhos e pela resolução dos problemas familiares. Nestemodelo o direito sucessório é de tio para sobrinho primogénito e a mulher tem liberdade sexual porque nãocompromete a linhagem.

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Figura 2 - Planta parcial de Luanda com representação esquemática de áreas de musseques e Aproximação aéreaà cidade (de S. para N., na linha de transição com a extensa paisagem natural, quase exclusivamente cortada pelarede viária territorial, arquivo pessoal 2005.

Luanda apresenta uma dinâmica policêntrica e multifuncinal, embora nas centralidadespredomine uma funcionalidade que as classifica como, por exemplo, centro cívico e comercial,centro político, centro de serviços, centro inter-modal de transportes colectivos, etc. Ahierarquia e a relação entre estas centralidades não é absoluta, pelo contrário, é relativa, devidoà diferença entre intenções urbanísticas, funcionamento eficiente dos elementos geradores e

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vivência colectiva efectiva. Assim se percebe não ter sido plenamente conseguida atransferência ‘do centro cívico’ para um novo lugar, próximo, e também implantado em plenocentro histórico, motivado pela necessidade de criação de um interposto de transportes nacidade baixa, devido ao grande afluxo e mobilidade da comunidade, nos anos 50. Actualmenteafirma-se uma centralidade num arco periférico, na ‘cidade moderna’, esboçada nos anos 60.A multifuncionalidade é uma característica comum numa grande extensão da cidade, inclusivenas áreas de musseques onde predomina a habitação mas onde, também, á escala e com ascaracterísticas locais, existem bolsas e interstícios que constituem os espaços públicos locais,igrejas, alguns escassos serviços35 e o comércio, em pequenos e grandes mercados e, também,porta á porta, por lá anda como por toda a cidade, assegurado por kitandeiras36 que animam etornam as ruas coloridas. Estas mulheres, que por vezes percorrem grandes distancias, mantêmviva uma tradição de enorme interesse cultural e fundamental para o estímulo da vivênciaurbana num regime sustentável. Curiosamente, homens também comerciam pela rua masfixam-se ao longo das vias principais de um modo perturbador do ambiente urbano e dacirculação viária.É interessante verificar o modo como o fluxo de indivíduos (por toda a cidade) e o crescimento‘urbanativo’ tem impacto na paisagem urbana, que, assim, apresenta vários pontos de contactode tipologias de morfologia, estilo e escala totalmente antagónicas, sem que isso crieforçosamente uma perturbação relevante.Os musseques e os bairros populares assumem uma grande relevância em Luanda, devido àdimensão dos primeiros, ao simbolismo político e/ou devido ao forte valor documental pelascaracterísticas arquitectónicas e urbanas que compreendem, como por exemplo, o ‘bairrooperário’, cuja salvaguarda está entretanto ameaçada por algumas determinações dos projectosde requalificação que obedecem a critérios dúbios. Esse valor aliado à carência infraestrutural ede equipamento que geralmente têm, tornam tanto ou mais prioritária a intervenção nas suasáreas do que nas áreas de reconhecido valor patrimonial - a ‘cidade histórica’.O espaço público – breve caracterizaçãoEm Luanda, ao espaço público, de todo o tipo, estão subjacentes sentimentos e vivências,conceitos e valores, porém, os espaços mais representativos na cidade estão no centro histórico,estando-se, actualmente, a consolidar um arco de novos e requalificados espaços queconformam a referida centralidade na ‘cidade moderna’. O espaço público de Luanda expressa arquitectónica, urbanística, social e culturalmente aportugalidade (colonial) e a angolanidade. A ‘cidade histórica’ e a ‘cidade moderna’exprimem urbanisticamente, sobretudo, a portugalidade. Todavia, a angolanidade expressa-sepor toda a cidade no modo como socialmente é vivida, como é ‘utilizada’, no modo como são‘apropriados’ os seus espaços públicos e, urbanisticamente, na vasta área de musseques.Nestes, a angolanidade não é impressa morfológica ou construtivamente nas edificações37 a nãoser em termos de escala, pois há muito tempo que deixaram de ser o modelo suburbanotraduzido por Redinha, mas, é representado na estruturação urbana pela aparente disposiçãoaleatória e muito próxima das construções.

35 Cabeleireiros, ‘botequim’ ou café, ‘bailaricos’ e ‘discotecas’.36 Vendedoras de ‘pé posto’ ao caminho, ambulantes.37 REDINHA, José (1964) ‘A Habitação Tradicional de Angola. Aspectos da sua Evolução’, Luanda, Edição doCentro de Informação e Turismo de Angola.

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Figura 3 – Continuidades e rupturas das morfologias urbanas entre cidade urbanizada e cidade urbanizável; e, arelação do musseque com a estrutura viária primária, arquivo pessoal 2005.Os musseques de Luanda traduzem a heterogenidade social e revelam, na sua organicidade eaparente desordem, uma estrutura intrínseca e implícita, suportada como um código dereconhecimento e vivência, que nos mostra o quanto têm sido, e ainda são, redutores e poucoflexíveis os cânones da arquitectura urbana. São um paradigma exemplar para o desafio daleitura e compreensão do caos.Luanda é muito vivida pela sua comunidade através dos sentidos e da intuição subconsciente,aspecto o que não deve ser descurado na interpretação técnica e disciplinar, pois esta

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abordagem sensitiva e psicanalista38 da cidade será fundamental para a construção ereconstrução de espaços cívicos que, assim, servirão tanto a cidade como a sua comunidade. O espaço público de Luanda padece dos mesmos problemas de muitas outras cidades, porém,de forma mais acentuada. Salientam-se a sobrecarga das infraestruturas, a falta de manutenção,a falta de equipamento e de mobiliário, o domínio do automóvel invasivo e violador de muitasáreas pedonais, a escassa e incapaz rede de transportes colectivos urbanos. Aliás, a fraca redede transportes existente é complementada pelo transporte privado assegurado peloscandongueiros39 cujo papel é fundamental nesta conjuntura. Mas, por outro lado, a suaactividade descontrolada impõem-se desordeiramente á cidade e chega a perturbar a vidaurbana, ocupando todo e qualquer espaço residual, criando ruído na paisagem, e desrespeitando

Figura 4 – Da forma desenhada à residual, da praça à clareira (terreiro), da rua ao caminho e densidades dacompactação e da dispersão, arquivo pessoal 2005.

Genericamente, o musseque preenche a área compreendida entre a estrutura viária primária dacidade, entre os canais de saída/entrada da cidade. A rede viária de penetração nos mussequesparte destes canais, cruzando-os. São ruas, nem sempre pavimentadas, um pouco mais largasque os restantes acessos que se constituem como caminhos, vielas e becos. Além destesespaços, existem os terreiros, clareiras no denso e contínuo tecido construído. São o paradigmado vazio útil e de um espaço autenticamente cívico. Caracterizam-se por serem irregulares,intersticiais, despojados de tratamento, infraestruturação e equipamento, todavia, sãoplenamente fruídos. As razões que superam as carências do espaço público são de âmbitosócio-cultural, mas a prova mais flagrante de que esses espaços vazios são úteis é que, senão ofossem, seriam ocupados, uma vez inseridos numa comunidade e numa área urbana onde nãohá lugar a desperdícios.

38 VÁZQUEZ, Carlos Garcia (2004) ‘Ciudad hojaldre. Visiones urbanas del siglo XXI’, Barcelona, EditorialGustavo Gili, SA, 137-141.39 Característicos veículos azuis, ligeiros de passageiros de 9 lugares embora excedam sempre a capacidade.

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Em Luanda verifica-se que não é a morfologia ou a infraestruturação que determina a maior oua menor vivência dos espaços públicos mas, sobretudo, o espírito e os hábitos dos luandenses.De um certo modo, é flagrante em Luanda que à medida que cresce a sociabilização do espaçodiminui a importância arquitectónica. O espaço público – acervo de intenções, intervenções realizadas e previstasA vivência do espaço público de Luanda é potenciada pelos luandenses e pelas suascaracterísticas arquitectónicas, geográficas, climatéricas e envolvente ambiental, o que, por sisó, justifica a requalificação do espaço público e, consequentemente, da cidade. Esta é uma intenção declarada, todavia, a partir dos anos 70, Luanda esteve afastada dascorrentes internacionais de desenvolvimento urbano. As visões descontínuas e fragmentadasretidas da contemporaneidade traduzem-se nos modelos adoptados, cuja aplicação se reveladesajustada do tempo e descontextualizada do lugar. Cumulativamente a este aspecto técnico, asociedade em mudança, como já referi, depara-se com carências sérias e em grande escala e,além disso, debate-se fortemente as dualidades angolanidade e portugalidade e tradição emodernidade que hoje, mais do que nunca, são carregados de grande valor simbólico,representativo e identificativo, quer dos parâmetros da originalidade cultural, quer dasaculturações, quer da modernidade. São alegorias importantes sobretudo dentro da significaçãoque os angolanos atribuem a tudo isto.Com este complexo cenário, ainda que previamente compreendido, nunca será fácil sintetizar eesquematizar motes de discussão e muito menos fácil será encontrar respostas adequadas eeficientes, num tempo que corre e num contexto em permanente alteridade e flutuação devalores, em torno do qual giram as responsabilidades, os direitos e os deveres do Estado e dasociedade civil. Urge discutir qual a participação que cada qual pode ter e, ainda, relativamenteao legado colonial, definir qual a sua importância relativa e absoluta para Angola e paraPortugal e quais as parcerias que se poderiam estabelecer no processo de requalificação desseacervo patrimonial. Em Luanda, na implementação da requalificação urbana da ‘cidade histórica’, os luandensesconfrontam-se com a dificuldade de identificação com o património existente, há um eloperdido e a falta desse reconhecimento, da consciência do seu papel representativo, desvalorizaesse património que facilmente será segregado e, ainda que não seja, será difícil conservá-lorequalificado e degradar-se-á. Em Luanda, é então necessário que se proceda à efectivaapropriação do passado e dos seus legados, nos quais também participou, e que, assim, cidadee comunidade se reencontrem numa relação com novos significados e importâncias. Sob as premissas resultantes destas discussões incorreram, e incorrerão, as intervenções notecido urbano, nomeadamente no espaço público, quer na construção de novos espaços quer narequalificação dos existentes (vulgares ou de valor patrimonial). E, quando os conceitos quetemos implícitos e o contexto geral é aberto e está em permanente mutabilidade, o ‘rigor’ e oequilíbrio de uma estratégia só é conseguida com a aceitação e exploração da pluralidade eflexibilidade, isto é, com a manipulação dos mesmos requisitos dinâmicos.Para Luanda foi elaborada uma proposta para a definição do perímetro do centro histórico, parao qual estão previstos regulamentos específicos, e fora destes limites apenas existirão algunssítios pontuais e alguns edifícios a proteger. Já está em curso a requalificação e o equipamentodessas áreas. Mesmo assim, as intenções e as medidas de salvaguarda vão sendo por vezesatropeladas em nome da resposta ás actuais exigências de modernidade impostas peloprogresso e pautam-se por uma natureza pontual e autónoma.Seguramente, posso dizer que estamos perante uma fase de transição, simultaneamente deestudo, planeamento e execução, em que é evidente a existência de dúvidas ideológicas,metodológicas que derivam na duplicidade de critérios, em incoerências, etc.

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Figura 5 – Recentes intervenções realizadas, novos espaços urbanos e algumas vivências do espaço público,arquivo pessoal 2005.

O desafio consiste em encontrar uma linguagem própria, standardizada mas que prevejavariantes, capaz de formalizar as ideologias e as intenções delineadas, com força para criaruma imagem urbana que caracterize lugares, bairros, ruas, contribuindo para uma memóriacolectiva e sensação de pertença da comunidade à cidade. Uma linguagem que concilie aexpressão da identidade social40 com a arquitectura contemporânea e os seus preceitos, com asnovas tecnologias, com a sustentabilidade ambiental, com o património colectivo, e com osrequisitos da globalização. Não estando ainda encontrada esta linguagem, as intervenções vãosendo híbridas, eclécticas e monumentalizadas, sem uma firme correspondência estética,funcional e social, etc.Quanto aos musseques, têm estado no terreno equipas a realizar levantamentos e, outras, têmelaborado projectos de intervenção nos musseques. Neste recomeço, Luanda tem talvez a oportunidade única de analisar o que de melhor adistingue, as suas potencialidades, ambições e de aderir às correntes contemporâneas de visãoda cidade, dispondo das experiências já empreendidas por outros, para com mais confiança40 Uma identidade cultural, cuja noção de identidade vem substituir a de identificação cultural, deixa de ter umcarácter etnográfico e um enquadramento numa cultura dominante assente em princípios que valorizavam a noçãode civilização á de cultura. A autenticidade passa, assim, a comportar o resultado do intercâmbio cultural decivilizações vicinais ou distantes podendo auferir originalidade nas simbioses e recriações. É um fenómenointemporal fomentado pela curiosidade e construído pela versatilidade e adaptabilidade inerente ao ser humano.

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decidir e definir o seu futuro. A experiência e o trabalho desenvolvido em Curitiba é umparadigma exemplar para o mundo e perfeitamente aplicável em Luanda, com os devidosajustes ás singularidades de Luanda, entre as quais se destaca o número de habitantes - Luandatem cerca de 3 vezes mais habitantes do que Curitiba. Luanda deveria também criar um enquadramento legal para urbanizar as suas áreasurbanizáveis (musseques) atendendo às suas especificidades gerais, mantendo genericamente aseu tecido orgânico e estabelecendo os eixos infraestruturais básicos nos talhões definidos pararesponder às necessidades das construções (de arquitectura livre e evolutiva) e da população. Além disso, seria interessante apostar em Luanda na recuperação dos sistemas construtivostradicionais, quer das edificações quer do espaço público, recriando-os e melhorando-os, comocontributo para a sustentabilidade. Poder-se-ia conciliar este trabalho com a criação de escolas-oficinas, fomentando a aprendizagem e o emprego. Também se deve apostar na sensibilizaçãoda comunidade para a protecção urbana e ambiental.A imagem projectada por Luanda e seu espaço público tem uma importância eresponsabilidade exacerbada pela sua condição de metrópole, cuja área de influência é anacional e cuja imagem retrata o país no mundo. Assim, depois de alcançado um padrão médiode qualidade geral, Luanda será, além de destino de trabalho, um potencial destino turístico.

7. ConclusãoO espaço público apesar de ter vindo a ser desde sempre estudado, nunca o foi de formaexaustiva e prioritária, esse lugar foi sempre ocupado pela arquitectura dos cheios. A divisãoda disciplina mãe – arquitectura - em arquitectura e urbanismo, talvez tenha sido um pecadocapital para o espaço público que foi caindo num vazio! Com o urbanismo o desenho da cidadesobrepôs-se á escala e ao carácter do espaço público, reportando-se sobretudo ao seu papelestruturador, unificador e mobilizador, revendo-se neste a sua principal utilidade. Umaperspectiva no mínimo redutora e simplista, ultrapassada apenas pela gestão e regulamentação.Todavia, o carácter dinamizador e potenciador de centralidades do espaço público, e até de seconstituir como um centro, valoriza a sua condição de vazio útil perante a sociedade e a cidade.Também o seu valor histórico, documental, patrimonial, social e paisagístico acrescentamsingularidade, identidade e humanização ao seu carácter e ao seu papel na cidade, nacomunidade e na paisagem. Todos se abarcam e beneficiam mutuamente, constituindo-se entãocomo estratégia básica e meio para alcançar o progresso e a contemporaneidade, com tudo oque implicam, construindo assim a ‘globalização alargada’. Assim, muito do que agora é paranós um ‘investimento sacrificado, incerto, discutível e adiável’, na tentativa de responder ásexigências da contemporaneidade, mais cedo ou mais tarde, converter-se-á em benefícioeconómico, em riqueza, que nessa altura já terá novo significado e modelo.Atendendo aos desafios e às debilidades com que se debate o espaço público actualmente,talvez, mais do que introduzir mudanças conceptuais, formais ou estruturais no espaço público,deva ser a sociedade a perder os seus preconceitos e a mudar a visão sobre o que a envolve esobre si mesmo e, consequentemente, mudar posturas e hábitos.Portanto, aposte-se na compreensão do espaço público para a sua requalificação e para quese requalifique a cidade e a vida urbana.Que se promova em Luanda a contemporaneidade, o conhecimento e a discussão pública etécnica, por exemplo, através de simpósios internacionais e nacionais. A cidade beneficiariadessa condição e dessa discussão e simultaneamente projectar-se-ia no rol das ‘cidades doconhecimento’.

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1

Do Aqueduto de Lisboa aos novos Vazios

Teresa Marat-Mendes

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) Secção Autónoma de Arquitectura e Urbanismo

Av.ª das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal [email protected]

Resumo

A paisagem de Lisboa, durante o século XVIII assistiu a uma profunda transformação

do seu espaço público como consequência da construção do aqueduto das Águas Livres

de Lisboa. Aqueduto este que respondia às necessidades prementes de abastecimento da

cidade e que projectava uma infra-estrutura fundamental para o desenvolvimento da

Lisboa Ocidental por decreto de D. João V em 1731.

As transformações geradas pelo aqueduto na cidade de Lisboa e no seu Termo são

inúmeras. Com especial relevância para a presente comunicação referimo-nos aos

espaços públicos gerados por esta grande infra-estrutura, e que se podem diferenciar em

duas categorias. Uma primeira que se constitui pelos espaços públicos que chegaram até

hoje integrados na estrutura urbana da cidade de Lisboa, e uma segunda que se constitui

pelos espaços públicos que em grande parte se encontram esquecidos e desarticulados

da estrutura urbana do Termo de Lisboa. Os espaços públicos que se encontram

inseridos nesta segunda categoria, constituem hoje um grande número de Vazios, que

outrora constituíram parte intrínseca do território e de uma ordem espacial urbana bem

concreta. Ordem esta que se regia através de unidades morfológicas concretas.

É precisamente a identificação desses Vazios e da sua oportunidade enquanto espaços

de intervenção na paisagem urbana de Lisboa e do seu Termo de hoje, bem como na

delimitação das unidades morfológicas atrás mencionadas, que a presente comunicação

pretende oferecer através de uma nova aproximação metodológica ao estudo do

património e da paisagem, como expressão de um modelo sustentável de ordenamento

do território. Onde, a gestão e a obtenção de recursos, nomeadamente a água constitui

elemento essencial na estruturação desse mesmo ordenamento do território e das suas

respectivas unidades morfológicas.

2

1. Introdução

Enrique Tello, na sua análise sobre a formação histórica das paisagens agrárias

mediterrâneas, defende que a paisagem pode ser lida, de um ponto de vista histórico,

como a expressão territorial do metabolismo que qualquer sociedade mantém sobre os

sistemas naturais que a sustentam (1). Tomando como ponto de partida esta noção de

expressão territorial a presente comunicação baseia a sua leitura da paisagem do

território no resultado dos modelos de gestão de recursos das sociedades que ocuparam

esse mesmo território.

A análise da paisagem emerge assim como um elemento importantíssimo no

entendimento das fontes de recursos e dos sistemas técnicos que geraram essa mesma

paisagem. A presente comunicação através da análise da paisagem de Lisboa e do seu

Termo, promove um novo olhar sobre a paisagem de Lisboa -a forma do território –

desde a óptica da gestão dos recursos.

O exemplo em análise refere-se à paisagem de Lisboa, que em meados do sec. XVIII

assistiu a uma profunda transformação, quer do seu espaço público, quer do seu Termo,

como consequência da construção do aqueduto das Águas Livres de Lisboa.

Transformação esta que ocorreu como resultado de uma estruturação do território

mediante o reconhecimento das condições de matriz biofísica preexistente e da

aplicação de sistemas de captação e de transporte tradicionais, a uma escala que supera

a dimensão da percepção das várias unidades morfológicas analisadas, quer sejam elas

os chafarizes públicos, as praças ou as quintas reais.

De forma a responder aos objectivos propostos a presente comunicação encontra-se

estruturada em três partes. Uma primeira parte – O Aqueduto das Águas Livres de

Lisboa - que se refere à escala territorial como sendo a primeira escala necessária para

um correcto entendimento da paisagem enquanto expressão de um modelo de gestão e

de obtenção de recursos. A segunda parte – As quintas e o Termo de Lisboa - identifica

um modelo de gestão do território, cuja unidade morfológica é a quinta. Unidade

morfológica esta que representa uma unidade tipológica de estruturação do território, e

que foi responsável pela modulação e estrutura de parcelamento e loteamento à qual

3

responderam, respectivamente, o Termo e a cidade de Lisboa. E finalmente, a terceira e

última parte desta comunicação – Os Vazios - refere-se aos vazios deixados por toda

esta estrutura do território do sec. XVIII, e muitos dos quais ainda se encontram

perceptíveis e objecto de intervenção enquanto Vazios Úteis.

2. O Aqueduto das Águas Livres de Lisboa.

“E Lisboa, onde todos bebem água, não tem mais que um estreito

chafariz para tanta gente e outro para os cavalos” (2).

Quando em 1571 Francisco de Holanda questionava na obra Da Fabrica que falece ha

cidade de Lysboa porque é que Lisboa não possuía então mais do que “unicamente, dois

chafarizes, um para a população e outro para as cavalgaduras”, denunciava não só a

“carência e a deficentíssima condição higiénica do abastecimento de água a Lisboa”(2),

como também chamava a tenção para a existência prévia de um aqueduto Romano que

havia satisfeito as necessidades da população de Lisboa, denominado de “Ágoa Livre”,

e que provinha dos sítios de Belas, Carenque e redondezas.

Na realidade, a problemática do abastecimento de água à cidade de Lisboa não era uma

questão nova. Vários haviam sido os estudos realizados que, do ponto de vista técnico,

permitiam que se tivesse realizado um aqueduto para abastecer a cidade de Lisboa, e

que propunham o aproveitamento das fontes de Águas Livres. Contudo, por questões de

ordem financeira e também de ordem politica apenas a 12 de Maio de 1731, por alvará

de D. João V se manda dar início à construção do Aqueduto das Águas Livres (3).

É precisamente esta infra-estrutura, e todo o conhecimento de engenharia e arquitectura

que a suportou, que viria a marcar uma página importante não só na história urbana da

cidade de Lisboa como também na do seu Termo.

Quando através do Alvará de 12 de Maio de 1731 se permitia que a “dita obra se faça

pelas ditas terras, fazendas, moinhos, cazas, quintaes e herdades por onde houver de

vir, ainda que sejão de pessoas privilegiadas, e de qualquer condição, qualidade, e

privilégio incorporado em direito, posto que seja Desembargador, porquanto todos têm

4

obrigação de dar passagem a dita agoa e não há privilégio algû, que disto o escuse”

(4), permitia-se também, mesmo que indirectamente, a transformação de todo o

território de Lisboa e do seu Termo. Território este que, até aqui, havia sido estruturado

à escala que a técnica de obtenção dos recursos naturais havia permitido até então.

O Aqueduto das Águas Livres viria a dotar a Lisboa e ao seu Termo uma nova escala e

técnica de obtenção de recursos, que permitiu transformar a sua fisionomia e portanto a

sua paisagem. Uma nova página na história urbana de Lisboa e do seu Termo se abria

agora, através da leitura de uma nova e futura expressão territorial.

Enquanto que em Lisboa, a transformação da paisagem deveu-se sobretudo à

multiplicação de inúmeros chafarizes pela cidade, que todo o novo sistema de galerias

subterrâneas e aéreas permitam, o que implicou também a proliferação de inúmeros

espaços públicos através de novas praças especiais ou o reaproveitamento de praças pré-

existentes pelo tecido urbano da cidade; no território do Termo de Lisboa a

transformação da paisagem implicou sobretudo um crescimento urbano acentuado ao

longo dos 58,135 km que totalizam o percurso do aqueduto e de todos os seus

aquedutos subsidiários. Percurso este que permitiu o aparecimento de novas quintas, a

intensificação da exploração agrícola dessas mesmas quintas e de outras já pré-

existentes e o alargamento de núcleos urbanos pré-existentes, a uma escala sem

precedente.

Embora toda a estrutura do Aqueduto das Águas Livres, conforme registado na Planta

Geral do Aqueduto das Águas Livres (Figura 1), se situasse geograficamente entre

Lisboa e Caneças, a real escala da transformação territorial provocada por esta infra-

estrutura foi bem mais vasta. Abrangeu toda a cidade de Lisboa e o seu Termo, tendo

tido repercussões na paisagem de um território mais vasto. Este território, conforme se

constata na Carta Corográfica dos Arredores de Lisboa (Figura 2), é delimitado a sul

pelo Rio Tejo, a Norte pela cordilheira da Serra de Sintra estendendo-se até Caneças e

Sabugo, a poente, pelo Oceano Atlântico e a nascente pelo Mar da Palha.

Sobre o território atrás delimitado é possível verificarmos ainda uma distribuição

espacial de vários núcleos urbanos de uma forma muito homogénea, encontrando-se um

distanciamento quase constante entre os mesmos. Sendo que, acima do limite Norte do

5

território em análise, a distancia que separa os diferentes núcleos é já superior, embora a

sua disposição espacial seja ela também uniforme.

Também uma análise sobre a cartografia da época, nomeadamente sobre a Carta dos

Arredores de Lisboa de 1898, do Corpo do Estado Maior, à escala 1:20.000, permite-

nos verificar que ao longo de todo o percurso do Aqueduto das Águas Livres não se

registou uma intensificação de núcleos urbanos (6). O propósito da construção do

aqueduto havia sido essencialmente o abastecimento de água à cidade de Lisboa e ao

Palácio e Quinta Real de Queluz. Assim, se pode explicar porque é que a distribuição

geográfica dos núcleos urbanos preexistentes como a sua dimensão se mantiveram

inalteradas até ao final da primeira metade do sec. XX. Contudo, o abastecimento de

água a Queluz, serviria de mote a outras Quintas e Palácios para encontrarem fontes de

abastecimento próprias. Embora ainda esteja por esclarecer se estes abastecimentos

através de aquedutos ou minas de água são anteriores ou posteriores ao próprio

aqueduto, a verdade é que à época da construção do Aqueduto das Águas Livres, todo o

território do Termo de Lisboa se intensificou em termos de exploração agrícola, através

da intensificação de culturas e de quintas pré-existentes e ainda através da criação de

novas quintas.

O conhecimento e as técnicas para a gestão e a obtenção do recurso água que tornou

possível a construção do Aqueduto das Águas Livres tornou também possível a

proliferação de novos aquedutos para abastecimento de outras Quintas, Palácios e

núcleos urbanos, ao longo do Termo de Lisboa. São exemplos o Aqueduto de Carnaxide

para abastecimento da povoação de Caxias, o Aqueduto de Queijas – Caxias para

abastecimento da Quinta Real de Caxias, o complexo de aquedutos subterrâneos

situados entre os Capuchos e Colares em Sintra, o complexo de aquedutos subterrâneos

situados perto da Quinta da Penha Longa em Sintra, outros vários subterrâneos situados

na Serra de Sintra, o aqueduto da Quinta do Marquês em Oeiras, os dois aquedutos

situados perto de Paço de Arcos, o aqueduto situado em Valle de Mourão perto do

Cacém, o aqueduto situado na Talla perto da Ribeira da Jarda, bem como outros

pequenos aquedutos e minas de captação de água dispersas por este mesmo território.

6

Em 1880, quando todo o sistema do Aqueduto das Águas Livres se havia tornado

insuficiente para servir o elevado número de população da cidade de Lisboa com o seu

caudal de água, um novo sistema de abastecimento de água serviria agora a cidade de

Lisboa, através do Aqueduto do Alviela, que encontrou na Estação dos Barbadinhos o

seu ponto receptor.

No entanto, durante um século, desde 1731 até á primeira parte do sec. XIX, Lisboa e o

seu Termo assistiram a uma nítida transformação da sua estrutura rural e urbana, i.e., da

sua paisagem, fruto da construção do aqueduto das Águas Livres e de toda uma

proliferação de novas infra-estruturas (pequenos aquedutos e minas). Tal facto, não se

deveu apenas ao processo de paz que a terminada Guerra de Sucessão de Espanha

permitiu, ou da disponibilidade económica que o ouro do Brasil facilitou, ou ainda pela

afirmação artística que a arte e a arquitectura joanina testemunharam, mas sobretudo

pela possibilidade que a nova técnica de exploração do recurso água permitiu ao

possibilitar à cidade de Lisboa estabelecer com os seu Termo uma relação intrínseca, a

uma escala sem precedente.

A escala necessária para o correcto entendimento da paisagem de Lisboa enquanto

expressão de um modelo de gestão de obtenção de recursos estava agora definida.

7

Figura 1 Planta Geral do Aqueduto das Águas Livres. Fonte: Museu da Água de Lisboa

Figura 2

Localização do Aqueduto das Águas Livres sobre Carta Corográfica dos Arredores de Lisboa, Guerin de Lamotte, 1821. Fonte: Instituto Geográfico Português

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Figura 3 Aqueduto das Águas Livres, Vale de Alcântara, s.d. Fotógrafo não identificado, Arquivo Fotográfico, Cota Actual ACU002501

Figura 4 Aqueduto da Quinta do Marquês de Pombal, Oeiras, 2007 Fonte: Arquivo Teresa Marat-Mendes

Figura 5 Aqueduto do Arneiro, Oeiras, 2007 Fonte: Arquivo Teresa Marat, Mendes

Figura 6 Aqueduto das Águas Livres, Reboleira, 2007 Fonte: Arquivo Teresa Marat-Mendes

Figura 7 Aqueduto da Quinta da Boa Viagem, Caxias, 2007 Fonte: Arquivo Teresa Marat-Mendes

Figura 8 Aqueduto da Quinta Real de Caxias, Caxias, 2007 Fonte: Arquivo Teresa Marat-Mendes

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3. As Quintas do Termo de Lisboa

A par das transformações urbanas ocorridas na cidade de Lisboa, através da abertura de

novas praças e na reestruturação de espaços públicos pré-existentes, a escala de

transformação proporcionada pelo Aqueduto das Águas Livres no Termo de Lisboa foi

também ela notável.

A transformação da paisagem rural e urbana no Termo de Lisboa revela um

conhecimento notável de técnicas de gestão do recurso água, através da distribuição de

diferentes propriedades agrícolas, que embora identificadas na cartografia militar com

data posterior à da data de construção do Aqueduto das Águas Livres (6), demonstram

que estas diferentes propriedades, de origem agrícola e também de recreio, não

dependiam do abastecimento de água fornecido pelo Aqueduto das Águas Livres, uma

vez dependiam de sistemas de aquedutos próprios, portanto autónomas na seu sustento

face ao recurso água.

Alguns exemplos de aquedutos, independentes do Aqueduto das Águas Livres, que

abasteciam diferentes propriedades agrícolas e de recreio foram já atrás mencionados.

Evidenciando-se, a titulo exemplificativo, o Aqueduto da Quinta do Marques em Oeiras,

o Aqueduto do Arneiro, o Aqueduto da Real Quinta de Caxias e o Aqueduto da Quinta

da Boa Viagem em Caxias, respectivamente exibidos através das figuras 4, 5, 7 e 8.

Esta complexa rede de quintas dispersas por todo o Termo de Lisboa, subsidiava através

dos seus próprios sistemas de captação de água próprios as suas próprias culturas;

dispondo por quase todo o território do Termo de Lisboa, uma extensa rede de

parcelamento, que ordenava o território com base no recurso água.

As técnicas de obtenção do recurso água empregues nas diferentes propriedades

agrícolas eram todavia comuns às técnicas empregues na construção do Aqueduto das

Águas Livres. A disposição topográfica das diferentes propriedades agrícolas revela

portanto um conhecimento profundo das possibilidades de obtenção do recurso água.

Conhecimento este que supostamente estaria bem sedimento e consolidado na prática de

gestão territorial, à época, e que segundo Enrique Tello revela o metabolismo que a

sociedade mantinha sobre os seus sistemas naturais.

10

Este conhecimento, conforme aqui revelado para a cidade de Lisboa e do seu Termo,

não se esgotaria todavia no território aqui identificado e em análise. Vários outros

exemplos sobre aplicações deste tipo de conhecimento acerca de técnicas de gestão e

obtenção do recurso água chegaram todavia até nós. Em Portugal temos, entre outros

exemplos, o exemplo da Mitra em Évora, o Aqueduto da Água da Prata e o

abastecimento de Água a Évora, o Palácio de Tomar e o seu Aqueduto. Mas também na

Europa e fora dela, inúmeros exemplos atestam a implementação destas técnicas de

gestão de recurso que por sua vez conformaram a fisionomia e a paisagem de muitas

cidades. Uma análise mais atenta e exaustiva desses diferentes exemplos permitiria

identificar e enumerar as diferentes técnicas empregues bem como ainda as verdadeiras

escalas de leitura dos territórios em causa, e desta forma engrandecer a história urbana

de todos esses exemplos.

No caso concreto de Lisboa e do seu Termo, que aqui se encontra em análise, há

contudo uma particularidade que o destaca dos outros exemplos. Embora muitíssimo

fragmentado por toda uma proliferação da urbanização que tomou conta de toda a

periferia de Lisboa, o objecto de análise (o antigo Termo) ainda se encontra

parcialmente “vivo” e disponível para leitura, no que diz respeito à leitura das unidades

morfológicas que compõem a sua paisagem.

Estes territórios fragmentados distribuem-se por duas categorias de espaço, ou unidades

morfológicas: os Núcleos Urbanos e as Quintas. E são estes territórios fragmentados

que constituem um conjunto de Vazios, enquanto oportunidades não só de intervenção

futura, mas também de leitura da própria história urbana de Lisboa e da sua paisagem.

A primeira categoria de unidade morfológica dessa paisagem diz respeito aos antigos

núcleos urbanos. Estes núcleos urbanos, embora de origem muito mais remota que a

data da construção do Aqueduto das Águas Livres, souberam mesmo após a sua

construção co-existir com toda a dinâmica territorial, social e económica que esta infra-

estrutura impôs, ao suportarem a sua estrutura morfológica, a sua identidade e unidade.

Contudo, após o “boom” construtivo que teve inicio na periferia de Lisboa a partir dos

anos 60 do sec. XX, com os clandestinos, até aos dias de hoje com as operações de

loteamento e urbanização, a unidade morfológica que caracterizava estes núcleos

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acabou por se corromper e fragmentar, perante a agressividade das novas construções

cuja escala e massificação em nada respeitou os núcleos preexistentes. Desses núcleos

restam hoje territórios fragmentados – Vazios que urgem um maior cuidado e atenção.

A segunda categoria de espaço ou de unidade morfológica corresponde às antigas

quintas, que outrora formaram uma complexa rede de quintas dispersas por todo o

Termo de Lisboa e que subsidiavam através de sistemas de captação de água próprios,

as suas próprias culturas. Também essa complexa rede de quintas acabou por se

extinguir com o passar dos anos fruto do seu abandono e do surgimento de outros

modos de viver e de subsistência. O abandono de uma sociedade agrícola em detrimento

do surgimento de uma sociedade industrial acabou por determinar o abandono de uma

ordem de gestão do território que havia marcado a paisagem de Lisboa.

Contudo, hoje ainda são visíveis no Território de Lisboa pequenos fragmentos dessa

antiga rede, e que correspondem a quintas abandonas e outras todavia em parcial

funcionamento. Estes fragmentos constituem eles próprios também Vazios Úteis. Um

olhar atento na preservação do seu património edificado, agrícola e respectivos sistemas

de captação de água, será todavia importante. Esse olhar poderá proporcionar aquando

de futuras intervenções ou de acções de reabilitação a possibilidade de devolver ao

Território de Lisboa e à sua paisagem um equilíbrio ecológico.

Marat-Mendes e Cuchi (5) na sua análise sobre o sistema de abastecimento de água nas

Quintas Reais de Lisboa descrevem as Quintas Reais como organismos autónomos do

ponto de vista da exploração, obtenção e abastecimento de água às diferentes

necessidades das diferentes quintas, quer sejam estas de recreio ou produtivas.

Tal como se pode constatar na legenda da Planta da Real Quinta de Caxias de 1844

(figura 9), esta enumera diferentes elementos alusivos à água, tais como a Grande

Cascata, a Casa do Poço, o Telheiro da Nora, o Tanque do Hércules, o Tanque da

Várzea, o Tanque da Cartuxa, o Tanque das Claudias, o Tanque da Vinha e o Aqueduto

de Queijas. Através destes elementos facilmente se identifica onde é que água chega à

Quinta, contudo já não é tão simples a identificação da distribuição da água dentro da

Quinta, embora seja possível reconhecermos os diferentes depósitos de água que

regulam o sistema.

12

Da planta das Minas e Encanamentos dágua do Almoxarifado de Caxias (figura 10) de

1901, é possível identificarmos contudo a verdadeira escala territorial sobre a qual

dependia a Quinta Real de Caxias, através da identificação das diferentes pontos de

captações de água que abasteciam a Quinta Real de Caxias (5).

Embora a Quinta Real de Caxias apresente os seus limites delimitados através de muros

muito altos, ela dependia todavia de recursos, como a água que provinham de uma

escala territorial que não a local. A água que abastecia a Quinta Real de Caxias não

provinha apenas das duas minas de águas situadas nas imediações da Quinta,

localizadas a nascente, mas também de outras minas localizadas em Queijas, na serra de

Carnaxide, localizada a 2 km a Norte de Caxias (5).

Da análise da Quinta Real de Caxias, e da identificação da sua infra-estrutura própria de

captação de água, é possível identificarmos uma unidade morfológica que extravasa os

seus limites físicos, os muros, no que diz respeito à gestão e obtenção do recurso água.

Embora actualmente a infra-estrutura de captação de água da Quinta Real de Caxias se

encontre destruída, e portanto inoperacional, a sua reabilitação poderia devolver a

Caxias uma nova possibilidade de rega que não aquela actualmente em uso –a água de

rede da companhia, bem como a criação de um corredor verde autosuficiente. A

destruição da infoestrutura identificada teve lugar com as obras da auto-estrada A5,

nomeadamente com a construção do troço Estádio Nacional- Cascais, no final dos anos

80.

Embora a Quinta Real de Caxias e a Quinta de Recreio do Marques de Pombal em

Oeiras constituam de facto, os exemplos mais paradigmáticos de quintas e aquedutos,

pela sua imponência arquitectónica e conservação, um vasto numero de outras quintas e

aquedutos encontram-se todavia dispersos no território do antigo Termo de Lisboa, e

constituem sem duvida notáveis exemplos de Vazios Urbanos que requerem um olhar

atento e objecto de intervenção que vá ao encontro da recuperação do ordenamento do

território com base numa gestão de recursos mais sustentável do que aquela actualmente

em uso.

13

Figura 9 Planta da Real Quinta de Caxias, 1844 Planta do capitão engenheiro J. Abreu, Escala 1:1.000, Fonte: Biblioteca Nacional de Lisboa.

Figura 10 Planta das minas e encanamentos d'agua do Almoxarifado de Caxias, 1901 Escala 1:5.000

14

4 - Os Vazios - As praças e outros espaços públicos

Os Vazios que constituem a terceira e ultima parte deste artigo e referem-se constitue-se

pelas praças e outros espaços públicos formados aquando da construção do Aqueduto

das Águas Livres dentro da cidade de Lisboa, e também no seu Terno, que

proporcionaram a localização de diversas fontes e chafarizes públicos em diferentes

pontos da cidade e no seu Termo. Estamos perante uma escala de leitura diferente

daquelas que foram até aqui analisadas - a territorial e a das quintas, e corresponde à

escala da praça e do espaço publico.

A construção do Aqueduto das Águas Livres de Lisboa alterou a paisagem urbana da

cidade. Massivas galerias de pedra proporcionaram uma nova leitura da cidade baseada

no recurso água. Desde o monumental Viaduto do Aqueduto das Águas Livres no vale

de Alcântara (figura 3), passando pelo Arco das Amoreiras (figura 12), pela Arcaria do

Jardim das Amoreiras (figura 13) e pela Mãe de Água das Amoreiras (figura 16), o

Aqueduto distribuía-se pela cidade de Lisboa proporcionando alterações nas praças

existentes. Como exemplos temos, entre outros, a construção do Chafariz das Amoreiras

hoje extinto (figura 11), o Chafariz do Largo do Rato, o Chafariz da Rua do Século, o

Chafariz da Esperança (figura 14) e o Chafariz das Janelas Verdes. Também o Palácio

das Necessidades viria a ser abastecido por esta infra-estrutura, que alterou também a

imagem da sua fachada principal conforme se pode verificar na figura 15.

Também no Termo de Lisboa, os Vazios encontraram espaço de enquadramento.

Exemplos como o Chafariz de Carnaxide (figura 17) e o Chafariz da Buraca (figura 18)

testemunham o aparecimento de novos largos e espaços públicos criados nessa altura,

para o abastecimento de água das populações. No entanto, como já referido, muitos

desses espaços encontram-se localizados junto a antigos núcleos, hoje territórios

fragmentados e esquecidos, fomentando uma desarticulação destes elementos dos seus

primitivos núcleos, com por exemplo o largo das lavadouras em Queijas na Rua da

Mina (figura 20).

Uma outra categoria de vazios associada ao Aqueduto das Águas Livres de Lisboa é

possível de ser referenciada. Esta categoria refere-se aos vazios urbanos criados

15

aquando na urbanização de novos espaços urbanos na periferia da cidade de Lisboa, e

que não souberam articular os seus traçados e espaços públicos com a infra-estrutura do

aqueduto já existente. São disso exemplo, as urbanizações na Amadora (figura 21) e da

Reboleira (figura 22).

Conclusões

A presente comunicação ao identificar diferentes categorias de Vazios na cidade de

Lisboa e do seu Termo, em termos de unidades morfológicas distintas, como

consequência da construção do aqueduto das Águas Livres, pretendeu sobretudo chamar

a atenção para a necessidade de entender o património e os espaços público – os Vazios

Urbanos - a uma escala territorial e não somente a local.

A escala territorial não representa apenas a primeira escala necessária para um correcto

entendimento da paisagem tradicional enquanto expressão de um modelo de gestão e de

obtenção de recursos; mas, representa também a primeira escala necessária para uma

correcta intervenção no território, de forma a equacioná-lo de um razoável equilíbrio

ecológico, do ponto de vista dos recursos naturais, bem como na correcta intervenção

sobre o património edificado e espaço público.

16

Figura 11 Rua das Amoreiras, Chafariz das Amoreiras, 1938 Eduardo Portugal (1900-1958), Arquivo Fotográfico, Código de referência: PT/AMLIS/AF/EDP/S00327

Figura 12 Arco das Amoreiras (entre 1898 e 1908) Fotógrafo não identificado, Arquivo fotográfico,

Figura 13 Praça das Amoreiras, Ermida de Nossa Senhora de Monserrate, 1945. Eduardo Portugal (1900-1958), Arquivo Fotográfico, Código de referência: PT/AMLIS/AF/EDP/S00295

Figura 14 Chafariz da Esperança, 1907 Joshua Benoliel (1873-1932), Arquivo Fotográfico,. Cota actual JBN001231

Figura 15 Palácio das Necessidades, Litografia colorida de Celestino Brelaz, 1832. Mário de Oliveira (-) , Arquivo Fotográfico, Código de referência: PT/AMLIS/AF/MAO/S00548

Figura 16 Largo do Rato Planta nº 26 do Atlas da Carta Topolgráfica de Lisboa (1857-8). Filipe Folque

17

Figura 17 Chafariz de Carnaxide, 2007 Fonte Arquivo Teresa Marat-Mendes

Figura 18 Rua da Buraca, Chafariz da Buraca, Aqueduto das Águas Livres, 1939 Eduardo Portugal (1900-1958), Arquivo Fotográfico, cota actual EDP, Código de referência: PT/AMLIS/AF/EDP/I00303

Figura 19 Respiradouro do Aqueduto das Águas Livres, Cova da Moura, 2007 Fonte: Arquivo Teresa Marat-Mendes

Figura 20 Rua da Mina, Lavadouro, Queijas, 2007 Fonte Arquivo Teresa Marat-Mendes

Figura 21 Aqueduto das Águas Livres, Buraca-Amadora, 2007 Fonte: Arquivo Teresa Marat-Mendes

Figura 22 Aqueduto das Águas Livres, Reboleira, 2007 Fonte: Arquivo Teresa Marat-Mendes

18

Bibliografia

(1) TELLO, Enrique 1999. “La Formación histórica de los paisjes agrários

mediterráneos: una aproximación evolutiva”, in História Agraria, 19, pp.195-211.

(2) SEGURADO, Jorge, 1970. Francisco d’Ollanda. Edições Excelsior, Lisboa, p.211.

(3) MOITA, Irisalva (ed. Lit), 1994. O Livro de Lisboa, Livros Horizonte, Lisboa,

p.294.

(4) Citado por Irisalva Moita in O Aqueduto das águas Livres e o abastecimento de

água a Lisboa in Câmara Municipal de Lisboa, 1990, D. João V e o abastecimento de

água a Lisboa, CML, Lisboa. p. 30.

(5) MARAT-MENDES, Teresa e CUCHI, Albert (2007). “The role of resources

management on shaping the landscape patterns: the water in the Royal Estates of

Lisbon region” in Actas da 1ª Conferência Regional euromediterránea. Arquitectura

Tradicional mediterránea. Presente y Futuro. Barcelona, 12-15 Julho de 2007. pp36-38.

(6) CORPO DO ESTADO MAIOR (1898). Carta dos Arredores de Lisboa à escala

1:20.000.

P O S T A I S P A R A L I S B O A

Tiago Andrade Santos e-mail: [email protected]

[POSTAL 1] – vende-se cidade Tens postais de Lisboa? E de qualquer outra cidade mundial? Sem saber a resposta, parto do principio que nas tuas gavetas é mais fácil encontrar postais de Paris que de Lisboa. Os pos-tais não são feitos para os residentes. As fotografias são escolhidas a dedo, ângulos selec-cionados mostram imagens que quem passeia pela cidade não vê. Nos postais, tudo é perfeito: a cor, a luz, a envolvente funcionam em harmonia e criam uma imagem que seduz. Servem para enviar aos amigos e dizer, “estou aqui”. Mas não é bem assim. A cidade que aparece nos postais não é exactamente a que existe. As imagens que vendemos da cidade mostram a cidade à venda. Uma cidade filtrada pelos mecanismos do marketing. A cidade também se vende. Embelezamo-la para a vender aos 3.800.000 de turistas que a visitam anualmente. Quem a compra são esses visitantes temporários que percorrem as ruas por tempo limitado. Trabalhamos para que as ruas sejam “comerciais”, agradáveis ao olhar. Ruas “polidas” que projectam uma cidade que queremos que recordem, não necessariamente a que existe. Criamos uma cidade para quem a visita temporariamente, para quem caminha a pé nela, para quem a usa. Registamos essas imagens em postais que são cuidadosamente tra-balhados e saturados de côr para que levem da cidade a imagem mais bonita que podemos oferecer. Não é difícil com um rio à porta, mas essa cidade não é das pessoas. Parece-me que grande parte das “melhorias” a que se sujeita a capital são para “embelezar” os espaços, ou para os tornar mais funcionais e quase sempre estão limitadas a um tipo de uti-lização: túneis, parques de estacionamento, alterações de circulação, ou novos pavimentos numa praça. A capacidade da cidade se adaptar ao momento que vivemos não é suficiente para a tornar apelativa. Então, fica deserta. Melhoram-se as infra-estruturas, a circulação, ainda assim é com espanto que se recebe a notícia que a capital tem hoje menos habitantes que há 10 anos atrás. As intervenções que Lisboa sofre não resultam em efeito nenhum significativo, não alteram a tendência e a cidade afunda-se num universo vazio. Fazem-se túneis, centros comerciais, rees-truturam-se praças, retiram-se as viaturas dos centros históricos, constroem-se novas zonas de cidade, mas nada devolve a cidade às pessoas. A cidade não consegue adaptar-se e morre, respeitando a lei de Darwin, as que sobrevivem são "aquelas que se conseguem adaptar melhor ao ambiente”. Ambiente aqui é o espirito da época, a mentalidade dos cidadãos. A cidade está em crise. Governada e desenhada segundo normas antigas levou a um afas-tamento das pessoas que a habita(va)m. Está a morrer. Os corações que batem nas suas ruas escasseiam. Janelas cobertas de tijolos tornaram-se paisagem comum e pouca atenção merecem. Restos de um passado não muito distante assombram os bairros. No vazio citadino

que fica, nascem novas maneiras de habitar que são muitas vezes sementes de violência. As pessoas toleram tudo. Esperam por algo que lhes devolva a cidade, esperam que no lugar dos edifícios que caem nasça algo que justifique o sofrimento de viver entre eles. As pessoas habituam-se, eu não.

[POSTAL 2] – borracha no chão

Há cerca de 30 anos as cidades começaram a encher-se de viaturas. A crescente quantidade de automóveis resultou numa insuficiência de estacionamento disponível. Para solucionar um problema cada vez mais evidente, as cidades decidiram “expropriar” as áreas destinadas aos peões e “oferecê-las” às grandes massas de metal. As matrículas começaram a fazer parte da paisagem urbana. Na tentativa de encontrar lugar para tanto carro, diminuíram-se os passeios. A solução chega a ser tão ridícula que nalgumas ruas apenas encontramos o lancil, um fóssil de uma espécie rara que outrora fora local de passagem. Trocou-se a pedra da calçada por alcatrão e a borracha dos sapatos e a das rodas competiam pelo mesmo espaço. Ainda não chegava. Retiraram-se árvores das ruas e praças para possibilitar estacionamento perto de todos os destinos possíveis. Nalgumas ruas deixaram-se as árvores num passeio tão estreito que deixa as pessoas entaladas entre o troco e a parede. A cidade tornou-se um imenso parque automóvel com passeios de acesso às viaturas. Uma cidade pedra e alcatrão. De Lisboa diziam que “Deve lá fazer calor, e podias regalar-te como um lagarto. A cidade ergue-se à beira d’água; dizem que é construída de mármore, e que o povo tem tanto ódio ao vegetal que arranca todas as árvores.”1 A perda de zona de passagem junto às fachadas condenou o comércio local. Sem clientes, sobravam os condutores para dar atenção às montras, mas estes ocupavam-se com a procura de um lugar para estacionar. As praças tornaram-se parques de estacionamento onde estátuas funcionavam como marco de localização da viatura. Os rebaixos nos passeios, locais de acesso de viaturas. A Praça do comércio, em tempos palco de eventos reais encheu-se de via-turas. Hoje sem carros está abandonada, refém de obras durante anos e sem destino, con-denada a ser um espaço vazio, inútil. O habitante perdeu o seu lugar. Passaram-se décadas. Gerações inteiras foram criadas no interior dos carros. Conheceram a cidade pelo lado de dentro do vidro. Cresceram sem passeios nem praças possíveis de utilizar sem olhar para ambos os lados. A vida na cidade tornou-se uma competição para encontrar lugar, conduzia-se a grandes velocidades para chegar primeiro e estacionar. Gerou-se um ambiente de desconforto e desrespeito entre cidadãos. Vemos carros a buzinarem no instante que luz verde do semáforo acende, taxis que parecem fazer pontaria a quem atravessa a estrada. O jeep passou a fazer parte dos carros da cidade, a tracção às quatro rodas revela-se muito útil para subir grandes passeios. Em algo penso que somos pioneiros. Os lugares vazios criaram uma indústria em seu redor que hoje sustenta muita gente. Criou-se uma nova profissão na cidade. “Profissão: arrumador,

com um curso de abanar o braço e jornal enrolado na mão podes arrumar os carros. É útil ter um aspecto intimidador para assustar os condutores a darem uma moeda. Investe, podes ganhar 40 euros dia.” Reconheço que se tem feito um esforço para devolver a cidade aos peões. Os arranjos de praças, a retirada de viaturas de algumas zonas históricas e a criação de ruas de sentido único, a permitir o aumento do passeio, são apenas intervenções tímidas sem força. Parece que se tenta sempre resolver apenas um problema, “vamos com calma amigos, uma coisa de cada vez” é o lema do Português. Falta imaginação, a cidade não se adapta e os problemas con-tinuam a surgir. Esses não aparecem um a um, às vezes aparecem em molho. A possibilidade de estacionar em qualquer lugar criou uma mentalidade que ainda hoje é evi-dente. Chamo-lhe a “mentalidade do colesterol” e torna todos os espaços vazios, úteis. Com imaginação, qualquer pequeno espaço é um potencial lugar de estacionamento, os acessos de deficientes aos passeios zonas ideais para subir com o carro. Tudo para ficar mais perto do destino, ninguém estranha um carro em cima do passeio. Ainda assim ficamos surpreendidos quanto saem relatórios que classificam Portugal com o maior problema de obesidade da Europa. As pessoas perderam o prazer em andar, naturalmente porque ninguém gosta de andar entre carros. Porquê viver na cidade com o maior problema de poluição da Europa? Viajamos até Nova York ou Paris e andamos quilómetros. Em San Sebastián (Espanha) a cidade enche-se de pessoas ao fim de semana a passearem pelas ruas. Nas nossas cidades os Portugueses não andam. Anda apenas quem tem máquina fotográfica ao pescoço e um mapa no bolso.

[POSTAL 3] – quadro na parede Com o aparecimento da publicidade para as massas a cidade tornou-se num emissor de informação gigantesco. Do interior das nossas viaturas consumimos os colossais painéis publicitários. Olhamos para as televisões colocadas estrategicamente que vendem coisas no trânsito. Consumimos a publicidade que cobre os edifícios, que reveste os autocarros, que decora o interior das estações, que voa amarrada à cauda de um avião. Longe vai o tempo em que se atiravam papeis dos aviões para as praias e nos obrigavam a agir para os apanhar. Hoje somos passivos. Até os mapas da cidade são publicidade portátil. Somos bombardeados por publicidade alheios ao facto de que “a estimulação sensorial induzida por estas imagens pode ter um efeito narcótico”2. A cidade colabora com a intoxicação estética que os media insistem em injectar-nos e “conduz-nos a uma estética de intoxicação, e a consequente descida da consciência critica. O que resulta é uma cultura de consumo inconsciente onde não existe pos-sibilidade de discursos com significado.”3 A cidade é decorada por quem controla as imagens. Os arquitectos pacteiam com os sinais do capitalismo. Trocámos as antenas no topo dos edifícios por palavras e slogans coloridas e bri-

lhantes que nos seduzem o olhar. As antenas eram consideradas ruído visual mas a imensa variedade de marcas e slogans que agora ocupam o lugar das antenas são aceites. O “êxtase da comunicação”4 resulta que “na sociedade dos media, os avanços nas tecnologias de teleco-municação e métodos de reprodução visual asseguram que estamos constantemente a ser inundados por imagens”5. Cartazes colados nas paredes escamam às camadas eventos antigos. Letras grandes para uma leitura a grande velocidade. Um passeio pela cidade é um assédio gráfico para consumir. “Deixa o dinheiro connosco e ganhas mais”, “veste isto e ficas sexy”, “usa isto e elas olham para ti”, chega! “A imagem tornou-se na nova realidade ou hiper-realidade”.6 A publicidade é a nova arte urbana e está à venda numa esquina “perto de si”. “Anuncie aqui 936 712 1...”. Qualquer outra arte é rejeitada ou devorada pela publicidade. Esta “decoração” é permitida a quem quer vender. Aparecem outras imagens nas paredes mas que são catalogadas de vandalismo. Quando alguém recusa ser passivo e decora a cidade sem a intenção de vender, é vândalo. Rejeitamos um graffiti num muro, mas toleramos cartazes às camadas na parede. Insultamos quem pinta os transportes públicos mas compramos produtos de quem os reveste de verde. Estamos saturados e burros, o “mundo da imagem é inimigo da imaginação”7. A cidade não é das pessoas. A tecnologia invadiu as ruas e está em todo o lado. Câmaras de segurança nas esquinas, dentro de transportes públicos, sensores de movimento que nos abrem portas e acendem luzes, detectores de roubo, televisões nas ruas, nas montras. Milhares de cabos por baixo dos nossos pés e rede wireless no ar. Até no metro necessitamos de rede de telemóvel, ou não seriamos uma capital Europeia. Compreendo que em Paris se necessite tele-fonar numa longa viagem entre subterrânea para atravessar a cidade, mas em Lisboa? As grandes corporações usam a cidade para explorar estas tecnologias. São ferramentas de poder, utilizadas para observação, para estudo, para promoção de interesses específicos. Raramente estas ferramentas são utilizadas para devolver o poder aos habitantes e torna-los activos.8 O cidadão transforma-se num usuário passivo da cidade que apenas lê a informação que lhe é colocada à frente em grandes ecrãs estáticos que se agarram ás fachadas ou ao chão. [POSTAL 4] - conforto Os grandes centros urbanos são compostos por elementos imateriais que cada vez têm mais importância no seu desenho e funcionamento. A informação é um novo material de construção urbana. A relação entre a cidade e a informação é cada vez mais forte e evidente. Estruturas inteiras desaparecem e dão lugar a pontos de contacto mecânico que nos afastam do contacto pessoal. Telefonamos para pedir assistência e somos atendidos e orientados por máquinas programadas para todas as respostas possíveis. Os bancos murcham deixando apenas uma caixa multibanco dentro da parede; enchemos os depósitos em máquinas auto-máticas com instruções à vista; andamos nos transportes públicos onde o acesso é controlado por uma máquina que engole o bilhete para de seguida o cuspir, entramos e saímos de parques de estacionamento carregando apenas no botão da Via Verde. A nossa sobrevivência na cidade está ligada à capacidade de entendimento do funcionamento de toda a infra-estrutura tecnológica existente. A vida é cómoda. Não necessitamos andar, não necessitamos falar, não necessitamos pensar. Somos passivos. Vemos quem toca à campaínha num pequeno ecrã atrás da porta, mantemos uma distância controlada através de botões e ecrãs. Estamos à distância de um click e isso aproxima-nos. Com o afastamento das pessoas das ruas e com o afastamento dos edifícios das pessoas, foi destruída uma componente importante da interacção humana. A cidade perdeu a noção de comunidade. Estamos afastados da cidade e uns dos outros. “Bairro” é agora palavra com significado apenas no dicionário. Se nos anos 50 se observava que as idas às “compras aproximam as pessoas, fazem-nas olhar cara a cara”9, com a invasão dos carros e o crescimento do interesse corporativo na cidade esse contacto desapareceu.

Desaparecem os contactos entre as pessoas. O afastamento entre a cidade e as pessoas resulta do crescente domínio dos interesses corporativos. A cidade está doente e as noções de bairro e sociedade estão de baixa. Espera-se que os edifícios caiam para que se construir mais e mais caro. Os preços são incomportáveis. Uma cidade para os ricos, sem ricos. O mercado determina muitas vezes o destino das zonas públicas e edifícios que fazem parte da cidade. Raras são as vezes em que se faz um referendo para saber o que as pessoas querem. [POSTAL 5] – vida em tempo real

As pessoas mudaram. Estamos diferentes. Entrámos numa nova fase da evolução e um ser híbrido está a nascer da pessoa que antes fomos. Estamo-nos a fundir com a tecnologia. Habi-tamos a tecnologia e necessitamos estar sempre ligados, sempre online. Utilizamos tele-móveis, auriculares, Gps, leitores de mp3, computadores portáteis, PDA’s. Passamos a vida ligados a um espaço digital. Gerimos relações à distância em tempo real (real time). Vivemos em tempo real. A velocidade C faz parte das nossas vidas. Quando tudo se torna ins-tantâneo descobre-se um presente eterno, o passado morre. Tudo acelera e as nossas relações com o espaço e o tempo sofrem alterações. “Quando a velocidade atinge um certo ponto, tempo e espaço sofrem um colapso e a distância parece desaparecer. As condições da expe-riência espacio-temporal são radicalmente transformadas. Neste ponto, torna-se a arquitectura finalmente imaterial?”.10 Nascemos incompletos, sem capacidade de viver a esta velocidade. Necessitamos equi-pamentos que nos tornem úteis, máquinas digitais que nos permitam ligar ao espaço digital em tempo real. A “alteração” do nosso código genético com a introdução de equipamentos tecnológicos levou à alteração genética da arquitectura. Essa alteração irá reflectir-se bre-vemente na alteração genética das cidades. No espaço digital “por outras palavras, enquanto o real se torna imaginário, a imagem torna-se real. Como resultado deste processo, nada se mantém igual. (...) Ao nível mais básico, as estruturas de emoção, percepção, e concepção são alteradas de maneiras que mudam as con-dições de toda a produção cultural.”11 A cidade é um espaço virtual para quem habita o cibe-respaço. Não existe na cidade ponto de contacto entre o digital e o analógico. Existe uma competição entre o espaço físico e o espaço digital. Passamos, mais tempo de lazer em ambientes digitais que em ambientes urbanos. A cidade está a tornar-se obsoleta. O ciberespaço permite-nos a liberdade que a cidade retirou. Ali, procuramos informação, con-versamos, conhecemos gente, fazemos amigos, consumimos, aprendemos, trabalhamos, bus-camos prazer, apaixonamo-nos. O prazer substitui as necessidades quase por completo e não necessitamos sair de casa. Já não se conhecem pessoas na rua. A cidade não é necessária quando de casa aceder a todos os serviços e actividades de que ela dispõe. Elegemos a liberdade. Sentados, conseguimos proteger-nos da informação indesejada com o bloqueio de pop-ups, o autocolante na caixa de correio nada faz e na cidade o indivíduo não se consegue proteger dos estímulos exteriores. Essa incapacidade de defesa pode ter efeitos traumáticos e é comum recorrer-se à psicanálise que tenta entender a natureza dos efeitos devassos dos estí-mulos da cidade12. Vivemos no ciberespaço, “[n]uma alucinação consensual experienciada diariamente por biliões de operadores legítimos, em todas as nações”13. A cidade afastou-nos uns dos outros e encontrámos do outro lado do ecrã maneira de nos aproximar. As casas e escritórios tornaram-se portas para um espaço global que acedemos de qualquer lado e que ocupa espaço nenhum. [POSTAL 6] – colapso do analógico A sociedade industrial transformou-se em sociedade de informação.14 O planeamento em zonamentos homogéneos evoluiu para planos de zonas multifuncionais de mais fácil inte-racção com a população. Estamos a enfrentar um momento importante na história e podemos explorar novas possibilidades. Novos modos de fazer arquitectura estão a emergir, novas

ideias, novas soluções espaciais resultam da parceria com novas tecnologias. Aparecem grandes trabalhos que nos levam a repensar a cidade e ajudam a compreender as ligações complexas existentes. Trabalhos que melhoram e facilitam o dialogo entre a sociedade con-temporânea e a cidade e parecem conduzir a cidade para o sec. XXI. Somos seres híbridos, uma mistura entre carne e máquina. Funcionamos a sangue e dados. A transferência de conhecimento faz-se visualmente ou de forma hipertextural. A maneira como vemos e interpretamos as cidades está a mudar e os espaços devem evoluir para oferecer novas oportunidades, novos modos de funcionamento e novas relações estéticas15. As tecnologias sem fios estão a reconfigurar a nossa maneira de viver. Para aceder a qualquer tipo de informação apenas necessito de um pequeno ecrã que me cabe no bolso. A distinção entre a “vida quotidiana, trabalho e lazer são desfocadas com o uso da tecnologia”16. As maneiras de utilizar os espaços alteram-se, as tecnologias portáteis facilitam a interacção em tempo real e criam novos métodos de cooperação e organização. Fazemos parte de uma sociedade que habita o espaço cibernético que tem como fronteira o lado oposto de um ecrã, habitamos um espaço onde podemos agir, um espaço que é tão criado por nós quanto por outras pessoas. Lá, somos livres. [POSTAL 7] – o nascer do digital Fugimos da cidade. O centro tornou-se num vazio inútil onde edifícios antigos são ruínas que esperam que o tempo os vergue. Acabam por morrer e com eles um pouco da cidade morre também. As pessoas afastam-se das zonas moribundas, ficam aqueles que não se conseguem mover ou que já não têm coragem para fugir, os idosos, os pobres, os sem-abrigo. Decora-se a cidade com painéis gigantes e nada se faz à imagem decadente de um edifício com tijolos nas janelas. Tapam-se as entradas de edifícios para impedir que movimentos de indivíduos activos os ocupem. A cidade não é das pessoas, elas fecham-se em casa, tapam as janelas com antenas parabólicas. A janela virtual (televisão e computador) tem mais importância que o que se passa no exterior. Existem factores que nos criam uma ligação com o lugar, que nos fazem identificar e estar confortáveis num espaço. O facto da cidade ter sido retirada aos habitantes, levou a que se sentissem marginais na cidade, a habitar um espaço que não lhes pertence. Devemos com-preender que “(...) os humanos necessitam reconhecer algo deles no ambiente. Isto é o que os permite relacionar com o seu ambiente e encontrar significado nele.”17 Creio que os lisboetas encontram esse significado em alturas de Santos e de festas, momentos que os torna activos. No tempo restante, a cidade hiberna. Este comentário foi enfatizado recentemente quando o pianista Andersewski comentava num artigo da revista Visão de que adorava Lisboa porque era uma cidade diferente, uma cidade com uma “incrível humildade”, “uma espécie de acei-tação de morte”, uma falta de “ambição em ter mais ou ser melhor ou ser mais bela”18. Ao longo da história a arquitectura tem-se transformado para aderir aos níveis de conhe-cimento de cada época. O aparecimento da perspectiva no Renascimento levou a novas con-cepções espaciais, as normas industriais do paradigma mecânico levaram a arquitectura a adaptar-se à ideia funcionalista de espaço. Assim, será de esperar que com a alteração do paradigma mecânico para o tecnológico a concepção espacial evolua para a criação de ambientes contemporâneos que abracem novas formas de habitar. Se considerarmos que a arquitectura reflecte o conhecimento de uma época a avaliação que podemos fazer de algumas cidades não é muito positiva. Que se passa? Ou a arquitectura não acompanha a evolução da sociedade, ou a sociedade está atrasada em relação às evoluções de outros países. [POSTAL 8] - interactividade As cidades são hoje reconhecidas como forças de desenvolvimento e albergam a maior parte da população mundial. São constituídas por sistemas complexos de relações que nos afastam

das dimensões físicas de espacialidade e nos aproximam da integração e gestão de dados ambientais, sociais e económicos. O desenho das cidades já não se faz no papel. Estudam-se dados e criam-se diagramas que simulam evoluções espaciais para prever futuros possíveis. O urbanista aproxima-se mais de um gestor de dados que de um projectista dedicando tempo à criação de gráficos de interacções entre os dados que observa. Nasceram novos modos de ver a cidade e novas formas de a desenhar. Se concordam que uma cidade é uma força de desenvolvimento, será natural que um país se encontre em crise quando a sua capital não existe. Existe apenas um centro administrativo sem população a representar. A cidade deve criar espaço para as pessoas se tornarem activas. Não me refiro a passeios ou eventos simples, mas espaços em que as pessoas possam intervir e modificar o espaço. Os vazios da cidade podem tornar-se na porta para o caminho do ciberespaço para a cidade. Gos-taria de encontrar na cidade zonas catalisadoras de interacção e criação, provocadoras de cria-tividade, de imaginação e de ligações fortes com o espaço. No início do sec. XXI houve uma corrida de muitas cidades para tentarem repetir o “efeito Bilbao” e Lisboa não é excepção. Bilbao foi objecto de uma intervenção que alterou o seu funcionamento, a sua imagem e a relação das pessoas com a cidade. Existem casos de sucesso na criação de espaços interactivos, uns temporários, outros perma-nentes. Gostaria de começar com o exemplo de Venice em Los Angeles. O percurso junto à praia é palco para as mais variadas actividades. Ali, pinta-se, expõe-se, vende-se, passeia-se, faz-se desporto, dança-se. A qualquer dia, a qualquer hora existe uma actividade usar o espaço. Ali somos todos activos. Com graffiti pinta-se uma parede. Várias pessoas com latas na areia desenham o que lhes vai na cabeça. Levam os seus sprays e pintam. Areia rodeia as paredes que marcam o lugar de um antigo pavilhão demolido em 1999. Desde o final dos anos 70 que este ritual é repetido dia-riamente nestas paredes. Fiquei sentado a olhar para os artistas (vândalos noutros países) a pintar. Falei com um que tinha conduzido 2 horas para pintar numa parede e regressar, cons-ciente de que assim que virasse costas, outro artista tomaria o seu lugar e pintaria outra imagem. Uma ruína útil. Uma parede com uma nova imagem a cada hora, uma parede mutante, uma obra de arte inacabada, (...) há 30 anos. Outro exemplo de interacção entre a cidade e os habitantes iniciou-se a 12 de Setembro de 2001. Intitulado de blinkenlights foi um “evento” que durou 6 meses. Um grupo de hackers chamado CCC (Chaos Computer Club) apoderou-se electronicamente dos últimos andares do edifício Haus des Lehrers e conseguiu controlar a iluminação transformar parte da fachada num pequeno ecrã capaz de transmitir pequenas mensagens e animações. O grupo tomou a fachada de empréstimo e disponibilizou-a para quem a quisesse usar. Através de telefones ou computadores as pessoas enviavam mensagens que eram transmitidas na resolução possível das janelas da fachada. As pessoas enviavam mensagens para quem estivesse a olhar. A fachada tornou-se numa ferramenta de comunicação dos habitantes. Durante esse período a fachada pertenceu aos habitantes. A arquitectura tornou-se interactiva e permitiu aos cidadãos uma liberdade que raramente gozam. O sucesso foi tal que o evento foi “recarregado” em 200319. De evento semelhante foi também palco a Bibliothèque nationale de France em Paris. O terceiro exemplo aconteceu em Roterdão. Ao mesmo tempo que as luzes acendiam e apa-gavam no interior do edifício de Berlim acima descrito, outras luzes brilhavam no exterior de um edifício em Roterdão. A intervenção pensada pelo artista madrileno Rafael Lozano-Hemmer consistia em projectar imagens de pessoas numa fachada. As pessoas interagiam com essas imagens através das suas sombras que com holofotes eram projectadas nas paredes. O objectivo era sobrepor e igualar o tamanho da sombra ao tamanho da imagem projectada. Atingido o objectivo, a fotografia projectada era substituída por outra. A diferença de tamanhos das imagens obrigava a uma dança entre luzes e pessoas que resultava em sombras de 2 metros a 25 metros. Durante a intervenção a praça foi utilizada no seu plano horizontal e no vertical.

[POSTAL 9] - online As ligações wireless dão-nos a possibilidade de tornar qualquer lugar num espaço de trabalho ou lazer. Já não é necessária a reunião de trabalhadores no mesmo local nem durante o mesmo período de tempo. A “dessincronização dos horários locais possibilita a sincronização dos horários internacionais”20. Se isto é verdade, onde queres trabalhar hoje? “Quando o mundo está ligado, Local, não é apenas local”21. A crise física na cidade é evidenciada com a nossa dedicação ao digital. A instabilidade do poder local não tem a capacidade de gestão necessária para encontrar soluções. Longe estamos de forças de organização do tempo do Marquês de Pombal ou do Barão Haussman. Sem essas mãos para devolver a cidade aos habitantes a cidade é cada ver mais corporativa e gerida de acordo com interesses económicos. Para mudar uma cidade é necessário uma mão forte no poder, as cidades europeias sabem-no bem. Passamos grande parte do tempo em chatrooms, MUD’s (multi user domain) e a Internet é hoje um grande centro comercial. Seria interessante criar locais onde a cidade se funde com o espaço cibernético, permitindo o acesso a essa segunda vida a partir deles. Se assim fosse, as salas de chat podiam ser o banco de jardim e a partir da relva do parque mais próximo, pode-ríamos comprar um livro ou pagar as contas. A cidade deve aproximar-se dos seus habitantes e se eles estão agora pelos espaços digitais, em jogos ou ambientes virtuais, a cidade deve abrir uma porta de regresso a si própria. Devemos investigar como tornar o tempo online num acto social. Por enquanto a participação em actividades através de meios compturizados não é completada por nenhuma componente colectiva, consiste apenas numa acção individual. Para Weber a “interacção, e não a loca-lização, são a essência da cidade e da vida da cidade” 22, onde está a nossa? Já não interagimos com a cidade nem uns com os outros. Talvez quando o semáforo passa para verde, mas pouco mais. O espaço urbano é limitado por auto-estradas, rios e mar, montes e campo. O espaço arqui-tectónico tem como fronteiras as paredes, pavimentos, tectos. Jogamos muitas vezes com essas fronteiras alterando as relações entre o público e o privado. Fundimos o espaço arqui-tectónico com a cidade para procurar novas relações sociais. O espaço digital também existe entre fronteiras. Elas são os limites mecânicos que nos per-mitem interagir no ciberespaço e com quem por lá passeia. Ele existe entre o meu ecrã e o da pessoa com quem interajo, entre um teclado e o outro. Assim como por vezes fundimos o espaço privado com o da cidade, podemos também procurar fundir o espaço digital com o espaço físico criando novas relações com a cidade e repensar as noções de público e privado, digital e analógico e aprender como negociar entre as fronteiras físicas e virtuais. É um futuro inevitável. A cidade tornar-se-á cada vez mais interactiva. A fronteira entre o que é urbano ou rural é muitas vezes impossível de localizar. Será crescentemente difícil localizar a fronteira entre o que é urbano e o que é digital. Cidades como Singapura controlam o tra-fego rodoviário em tempo real através de câmaras observam o trânsito. No Brasil estão a usar o mesmo mecanismo para tentar controlar a delinquência comum em zonas de viaturas paradas no trânsito. A cidade estende-se para lá do ecrã. [POSTAL 10] - horizonte Proponho-te um exercício. Em hora de ponta em Lisboa ao sair do metro temos tendência a nos deixar ser levados pela corrente de pessoas que corre para as suas vidas. Correm, correm, correm para tentar ganhar tempo. O exercício que proponho é contrariar essa corrente. Em hora de ponta no metro, nas escadas, quando todos estiverem a correr para cima ou para baixo, pára. Fica quieto(a) e deixa as pessoas correrem em teu redor e sente a paz por não cor-reres. Depois, quando chegar o metro, não apanhes o primeiro, deixa um ou dois passarem sem os apanhares. Eu gosto de viver a cidade assim, saboreá-la com calma, ver as pessoas.

Assim, combato alguns estímulos. É como se fizesse pause num jogo de computador para fazer um descanso. O espaço digital é de todos, “ninguém é dono, todos podem usar, e qualquer pode melhorar”23. No espaço digital vive-se num ambiente onde a colaboração criativa é uma regra comum. É com frequência que encontro blogs em que as pessoas se ajudam mutuamente ou site onde podemos tirar programas freeware. Utilizamos a tecnologia para aumentar as nossas capacidades. Aumentamos a nossa memória, a capacidade de trabalho e velocidade de desempenho. Reduzimos a distância que nos separa de amigos distantes ou de colaboradores noutro lugar. A tecnologia tem influência directa na nossa relação com o espaço e pode mesmo a aumentar o espaço que habitamos. Em casa, o meu escritório prolonga-se para lá do ecrã. Podemos utilizá-la para melhorar e facilitar o diá-logo entre a sociedade e a cidade. A cidade necessita de uma prenda. Os seus habitantes merecem-no. Gostaria de ver a cidade fornecer aos habitantes a possibilidade de “contrariar a corrente dominante corporativa da uti-lização de tecnologia para publicidade e praticas de vigilância.”24 As potencialidades da inte-ractividade devem ser ponderadas no desenho da cidade. O arquitecto ou urbanista devem estar a par das novas tecnologias para as incorporar nos projectos sempre que possível e pos-sibilitar interacção do habitante e a cidade criando espaços onde eles podem actuar e evoluir e contrariar as tendências da vida crescentemente passiva. As cidades estão numa fase de mudança e os cidadãos reclamam liberdade. É comum vermos materializações de informação em modelos tridimensionais que se asse-melham com a imagem de uma cidade mas que representam dados estatísticos ou caracte-rísticas locais. A tradução de informação em material de construção tridimensional cria as datascapes que são modelos de dados concretos. As cidades estão cheias de monumentos, de momentos representativos de um poder ou de um momento histórico. Fazem falta antimonumentos, zonas glorifiquem a performance dos habi-tantes, que alimentem a liberdade de expressão, a vontade de actuar. Espaços flexíveis que permitam a busca de prazer, de espanto ou relaxamento. Zonas que exploram “sistemas inte-ractivos de iluminação, informação, som e outros controlos [que] podem fazer estas novas partes das cidades activas, com vida, participativas, e ricas em eventos.”25 Se vivemos de facto, segundo Debord, na “sociedade do espectáculo”26, então a cidade deve tornar-se no palco para esse espectáculo. O cenário de fusão entre a arquitectura e Internet e os sistemas de informação será cada vez mais real. “A network é o site urbano perante nós. Um convite para desenhar a cibercidade (capital do sec. XXI)”27. A interacção possível no espaço digital é hoje o desafio para a arqui-tectura e para a cidade. A cidade deve dar o salto da concepção de espaço segundo o para-digma mecânico para a concepção espacial segundo o paradigma tecnológico. A cidade está vazia, pronta para intervenções e temos a oportunidade de intervir sem molestar muita gente. Se não alterarmos a tendência de Lisboa em breve poderemos encontrar numa loja turística um postal onde se leia, “Lisboa – Aberta, dias úteis das 09:00 às 18:00”. 1 - BAUDELAIRE, Charles - O spleen de Paris – pequenos poemas em prosa. Lisboa: Relógio d’àgua, 1991. p.138

2 - LEACH, Neil – The anaesthetics of architecture. Londres: The MIT Press. 1999 (prefácio)

3 - LEACH. (perfácio)

4 - BAUDRILLARD, Jean – The ecstasy of communication. Nova York: Semiotext. 1988

5 - LEACH. p.1

6 - LEACH. p.2

7 - LEACH. p.10

8 - HUANG, Jeffrey, WALDVOGEL, Muriel. Open City. in CHÂTELET, Valérie (ed. lit.) - Interactive Cities - anomalie digital_arts #6. Orleáns: Editions HYX. p.213 9 - ROUILLARD, Dominique - The Invention of Urban Interactivity. in CHÂTELET, Valérie (ed. lit.) - Interactive Cities - anomalie digital_arts #6. Orleáns: Editions HYX. p.17

10 - TAYLOR, Mark C – Electrotecture. in Any, No.3, Nov/Dec. 1993. p.9

11 - TAYLOR . p.12

12 - LEACH. p.42

13 - GIBSON, William – Neuromancer. Londres: Voyager. 1995

14 - SAGGIO, Antonino – Other Changes. in KOLAREVIC, Branko, ed. lit.- Architecture in the Digital Age: Design and Manufacturing. Nova York: Taylor & Francis. 2005 p.231 15 - SAGGIO. p.231

16 - CHÂTELET, Valérie (ed. lit.) - Interactive Cities - anomalie digital_arts #6. Orleáns: Editions HYX. p.9

17 - LEACH, Neil – Camuflage. Londres: The MIT Press. 2006. p.19

18 - Visão – 31 de Maio 2007. p18

19 - Disponível em www.blinkenlights.de (consultado a 27 Maio de 2007)

20 - TAYLOR. p.15

21 - TAYLOR. p.15

22 - ROUILLARD. p.29

23 - HUANG. p.197

24 - HUANG. p.197

25 - SAGGIO. p. 233

26 - DEBORD, Guy – The Society of the Spectacle. Detroit: Black and Red. 1993

27 - MICHEL, William - The Electronic Agora. In Any, No.3, Nov/Dec. 1993. p.33

P O S T A I S P A R A L I S B O A

Tiago Andrade Santos e-mail: [email protected]

[POSTAL 1] – vende-se cidade Tens postais de Lisboa? E de qualquer outra cidade mundial? Sem saber a resposta, parto do principio que nas tuas gavetas é mais fácil encontrar postais de Paris que de Lisboa. Os pos-tais não são feitos para os residentes. As fotografias são escolhidas a dedo, ângulos selec-cionados mostram imagens que quem passeia pela cidade não vê. Nos postais, tudo é perfeito: a cor, a luz, a envolvente funcionam em harmonia e criam uma imagem que seduz. Servem para enviar aos amigos e dizer, “estou aqui”. Mas não é bem assim. A cidade que aparece nos postais não é exactamente a que existe. As imagens que vendemos da cidade mostram a cidade à venda. Uma cidade filtrada pelos mecanismos do marketing. A cidade também se vende. Embelezamo-la para a vender aos 3.800.000 de turistas que a visitam anualmente. Quem a compra são esses visitantes temporários que percorrem as ruas por tempo limitado. Trabalhamos para que as ruas sejam “comerciais”, agradáveis ao olhar. Ruas “polidas” que projectam uma cidade que queremos que recordem, não necessariamente a que existe. Criamos uma cidade para quem a visita temporariamente, para quem caminha a pé nela, para quem a usa. Registamos essas imagens em postais que são cuidadosamente tra-balhados e saturados de côr para que levem da cidade a imagem mais bonita que podemos oferecer. Não é difícil com um rio à porta, mas essa cidade não é das pessoas. Parece-me que grande parte das “melhorias” a que se sujeita a capital são para “embelezar” os espaços, ou para os tornar mais funcionais e quase sempre estão limitadas a um tipo de uti-lização: túneis, parques de estacionamento, alterações de circulação, ou novos pavimentos numa praça. A capacidade da cidade se adaptar ao momento que vivemos não é suficiente para a tornar apelativa. Então, fica deserta. Melhoram-se as infra-estruturas, a circulação, ainda assim é com espanto que se recebe a notícia que a capital tem hoje menos habitantes que há 10 anos atrás. As intervenções que Lisboa sofre não resultam em efeito nenhum significativo, não alteram a tendência e a cidade afunda-se num universo vazio. Fazem-se túneis, centros comerciais, rees-truturam-se praças, retiram-se as viaturas dos centros históricos, constroem-se novas zonas de cidade, mas nada devolve a cidade às pessoas. A cidade não consegue adaptar-se e morre, respeitando a lei de Darwin, as que sobrevivem são "aquelas que se conseguem adaptar melhor ao ambiente”. Ambiente aqui é o espirito da época, a mentalidade dos cidadãos. A cidade está em crise. Governada e desenhada segundo normas antigas levou a um afas-tamento das pessoas que a habita(va)m. Está a morrer. Os corações que batem nas suas ruas escasseiam. Janelas cobertas de tijolos tornaram-se paisagem comum e pouca atenção merecem. Restos de um passado não muito distante assombram os bairros. No vazio citadino

que fica, nascem novas maneiras de habitar que são muitas vezes sementes de violência. As pessoas toleram tudo. Esperam por algo que lhes devolva a cidade, esperam que no lugar dos edifícios que caem nasça algo que justifique o sofrimento de viver entre eles. As pessoas habituam-se, eu não.

[POSTAL 2] – borracha no chão

Há cerca de 30 anos as cidades começaram a encher-se de viaturas. A crescente quantidade de automóveis resultou numa insuficiência de estacionamento disponível. Para solucionar um problema cada vez mais evidente, as cidades decidiram “expropriar” as áreas destinadas aos peões e “oferecê-las” às grandes massas de metal. As matrículas começaram a fazer parte da paisagem urbana. Na tentativa de encontrar lugar para tanto carro, diminuíram-se os passeios. A solução chega a ser tão ridícula que nalgumas ruas apenas encontramos o lancil, um fóssil de uma espécie rara que outrora fora local de passagem. Trocou-se a pedra da calçada por alcatrão e a borracha dos sapatos e a das rodas competiam pelo mesmo espaço. Ainda não chegava. Retiraram-se árvores das ruas e praças para possibilitar estacionamento perto de todos os destinos possíveis. Nalgumas ruas deixaram-se as árvores num passeio tão estreito que deixa as pessoas entaladas entre o troco e a parede. A cidade tornou-se um imenso parque automóvel com passeios de acesso às viaturas. Uma cidade pedra e alcatrão. De Lisboa diziam que “Deve lá fazer calor, e podias regalar-te como um lagarto. A cidade ergue-se à beira d’água; dizem que é construída de mármore, e que o povo tem tanto ódio ao vegetal que arranca todas as árvores.”1 A perda de zona de passagem junto às fachadas condenou o comércio local. Sem clientes, sobravam os condutores para dar atenção às montras, mas estes ocupavam-se com a procura de um lugar para estacionar. As praças tornaram-se parques de estacionamento onde estátuas funcionavam como marco de localização da viatura. Os rebaixos nos passeios, locais de acesso de viaturas. A Praça do comércio, em tempos palco de eventos reais encheu-se de via-turas. Hoje sem carros está abandonada, refém de obras durante anos e sem destino, con-denada a ser um espaço vazio, inútil. O habitante perdeu o seu lugar. Passaram-se décadas. Gerações inteiras foram criadas no interior dos carros. Conheceram a cidade pelo lado de dentro do vidro. Cresceram sem passeios nem praças possíveis de utilizar sem olhar para ambos os lados. A vida na cidade tornou-se uma competição para encontrar lugar, conduzia-se a grandes velocidades para chegar primeiro e estacionar. Gerou-se um ambiente de desconforto e desrespeito entre cidadãos. Vemos carros a buzinarem no instante que luz verde do semáforo acende, taxis que parecem fazer pontaria a quem atravessa a estrada. O jeep passou a fazer parte dos carros da cidade, a tracção às quatro rodas revela-se muito útil para subir grandes passeios. Em algo penso que somos pioneiros. Os lugares vazios criaram uma indústria em seu redor que hoje sustenta muita gente. Criou-se uma nova profissão na cidade. “Profissão: arrumador,

com um curso de abanar o braço e jornal enrolado na mão podes arrumar os carros. É útil ter um aspecto intimidador para assustar os condutores a darem uma moeda. Investe, podes ganhar 40 euros dia.” Reconheço que se tem feito um esforço para devolver a cidade aos peões. Os arranjos de praças, a retirada de viaturas de algumas zonas históricas e a criação de ruas de sentido único, a permitir o aumento do passeio, são apenas intervenções tímidas sem força. Parece que se tenta sempre resolver apenas um problema, “vamos com calma amigos, uma coisa de cada vez” é o lema do Português. Falta imaginação, a cidade não se adapta e os problemas con-tinuam a surgir. Esses não aparecem um a um, às vezes aparecem em molho. A possibilidade de estacionar em qualquer lugar criou uma mentalidade que ainda hoje é evi-dente. Chamo-lhe a “mentalidade do colesterol” e torna todos os espaços vazios, úteis. Com imaginação, qualquer pequeno espaço é um potencial lugar de estacionamento, os acessos de deficientes aos passeios zonas ideais para subir com o carro. Tudo para ficar mais perto do destino, ninguém estranha um carro em cima do passeio. Ainda assim ficamos surpreendidos quanto saem relatórios que classificam Portugal com o maior problema de obesidade da Europa. As pessoas perderam o prazer em andar, naturalmente porque ninguém gosta de andar entre carros. Porquê viver na cidade com o maior problema de poluição da Europa? Viajamos até Nova York ou Paris e andamos quilómetros. Em San Sebastián (Espanha) a cidade enche-se de pessoas ao fim de semana a passearem pelas ruas. Nas nossas cidades os Portugueses não andam. Anda apenas quem tem máquina fotográfica ao pescoço e um mapa no bolso.

[POSTAL 3] – quadro na parede Com o aparecimento da publicidade para as massas a cidade tornou-se num emissor de informação gigantesco. Do interior das nossas viaturas consumimos os colossais painéis publicitários. Olhamos para as televisões colocadas estrategicamente que vendem coisas no trânsito. Consumimos a publicidade que cobre os edifícios, que reveste os autocarros, que decora o interior das estações, que voa amarrada à cauda de um avião. Longe vai o tempo em que se atiravam papeis dos aviões para as praias e nos obrigavam a agir para os apanhar. Hoje somos passivos. Até os mapas da cidade são publicidade portátil. Somos bombardeados por publicidade alheios ao facto de que “a estimulação sensorial induzida por estas imagens pode ter um efeito narcótico”2. A cidade colabora com a intoxicação estética que os media insistem em injectar-nos e “conduz-nos a uma estética de intoxicação, e a consequente descida da consciência critica. O que resulta é uma cultura de consumo inconsciente onde não existe pos-sibilidade de discursos com significado.”3 A cidade é decorada por quem controla as imagens. Os arquitectos pacteiam com os sinais do capitalismo. Trocámos as antenas no topo dos edifícios por palavras e slogans coloridas e bri-

lhantes que nos seduzem o olhar. As antenas eram consideradas ruído visual mas a imensa variedade de marcas e slogans que agora ocupam o lugar das antenas são aceites. O “êxtase da comunicação”4 resulta que “na sociedade dos media, os avanços nas tecnologias de teleco-municação e métodos de reprodução visual asseguram que estamos constantemente a ser inundados por imagens”5. Cartazes colados nas paredes escamam às camadas eventos antigos. Letras grandes para uma leitura a grande velocidade. Um passeio pela cidade é um assédio gráfico para consumir. “Deixa o dinheiro connosco e ganhas mais”, “veste isto e ficas sexy”, “usa isto e elas olham para ti”, chega! “A imagem tornou-se na nova realidade ou hiper-realidade”.6 A publicidade é a nova arte urbana e está à venda numa esquina “perto de si”. “Anuncie aqui 936 712 1...”. Qualquer outra arte é rejeitada ou devorada pela publicidade. Esta “decoração” é permitida a quem quer vender. Aparecem outras imagens nas paredes mas que são catalogadas de vandalismo. Quando alguém recusa ser passivo e decora a cidade sem a intenção de vender, é vândalo. Rejeitamos um graffiti num muro, mas toleramos cartazes às camadas na parede. Insultamos quem pinta os transportes públicos mas compramos produtos de quem os reveste de verde. Estamos saturados e burros, o “mundo da imagem é inimigo da imaginação”7. A cidade não é das pessoas. A tecnologia invadiu as ruas e está em todo o lado. Câmaras de segurança nas esquinas, dentro de transportes públicos, sensores de movimento que nos abrem portas e acendem luzes, detectores de roubo, televisões nas ruas, nas montras. Milhares de cabos por baixo dos nossos pés e rede wireless no ar. Até no metro necessitamos de rede de telemóvel, ou não seriamos uma capital Europeia. Compreendo que em Paris se necessite tele-fonar numa longa viagem entre subterrânea para atravessar a cidade, mas em Lisboa? As grandes corporações usam a cidade para explorar estas tecnologias. São ferramentas de poder, utilizadas para observação, para estudo, para promoção de interesses específicos. Raramente estas ferramentas são utilizadas para devolver o poder aos habitantes e torna-los activos.8 O cidadão transforma-se num usuário passivo da cidade que apenas lê a informação que lhe é colocada à frente em grandes ecrãs estáticos que se agarram ás fachadas ou ao chão. [POSTAL 4] - conforto Os grandes centros urbanos são compostos por elementos imateriais que cada vez têm mais importância no seu desenho e funcionamento. A informação é um novo material de construção urbana. A relação entre a cidade e a informação é cada vez mais forte e evidente. Estruturas inteiras desaparecem e dão lugar a pontos de contacto mecânico que nos afastam do contacto pessoal. Telefonamos para pedir assistência e somos atendidos e orientados por máquinas programadas para todas as respostas possíveis. Os bancos murcham deixando apenas uma caixa multibanco dentro da parede; enchemos os depósitos em máquinas auto-máticas com instruções à vista; andamos nos transportes públicos onde o acesso é controlado por uma máquina que engole o bilhete para de seguida o cuspir, entramos e saímos de parques de estacionamento carregando apenas no botão da Via Verde. A nossa sobrevivência na cidade está ligada à capacidade de entendimento do funcionamento de toda a infra-estrutura tecnológica existente. A vida é cómoda. Não necessitamos andar, não necessitamos falar, não necessitamos pensar. Somos passivos. Vemos quem toca à campaínha num pequeno ecrã atrás da porta, mantemos uma distância controlada através de botões e ecrãs. Estamos à distância de um click e isso aproxima-nos. Com o afastamento das pessoas das ruas e com o afastamento dos edifícios das pessoas, foi destruída uma componente importante da interacção humana. A cidade perdeu a noção de comunidade. Estamos afastados da cidade e uns dos outros. “Bairro” é agora palavra com significado apenas no dicionário. Se nos anos 50 se observava que as idas às “compras aproximam as pessoas, fazem-nas olhar cara a cara”9, com a invasão dos carros e o crescimento do interesse corporativo na cidade esse contacto desapareceu.

Desaparecem os contactos entre as pessoas. O afastamento entre a cidade e as pessoas resulta do crescente domínio dos interesses corporativos. A cidade está doente e as noções de bairro e sociedade estão de baixa. Espera-se que os edifícios caiam para que se construir mais e mais caro. Os preços são incomportáveis. Uma cidade para os ricos, sem ricos. O mercado determina muitas vezes o destino das zonas públicas e edifícios que fazem parte da cidade. Raras são as vezes em que se faz um referendo para saber o que as pessoas querem. [POSTAL 5] – vida em tempo real

As pessoas mudaram. Estamos diferentes. Entrámos numa nova fase da evolução e um ser híbrido está a nascer da pessoa que antes fomos. Estamo-nos a fundir com a tecnologia. Habi-tamos a tecnologia e necessitamos estar sempre ligados, sempre online. Utilizamos tele-móveis, auriculares, Gps, leitores de mp3, computadores portáteis, PDA’s. Passamos a vida ligados a um espaço digital. Gerimos relações à distância em tempo real (real time). Vivemos em tempo real. A velocidade C faz parte das nossas vidas. Quando tudo se torna ins-tantâneo descobre-se um presente eterno, o passado morre. Tudo acelera e as nossas relações com o espaço e o tempo sofrem alterações. “Quando a velocidade atinge um certo ponto, tempo e espaço sofrem um colapso e a distância parece desaparecer. As condições da expe-riência espacio-temporal são radicalmente transformadas. Neste ponto, torna-se a arquitectura finalmente imaterial?”.10 Nascemos incompletos, sem capacidade de viver a esta velocidade. Necessitamos equi-pamentos que nos tornem úteis, máquinas digitais que nos permitam ligar ao espaço digital em tempo real. A “alteração” do nosso código genético com a introdução de equipamentos tecnológicos levou à alteração genética da arquitectura. Essa alteração irá reflectir-se bre-vemente na alteração genética das cidades. No espaço digital “por outras palavras, enquanto o real se torna imaginário, a imagem torna-se real. Como resultado deste processo, nada se mantém igual. (...) Ao nível mais básico, as estruturas de emoção, percepção, e concepção são alteradas de maneiras que mudam as con-dições de toda a produção cultural.”11 A cidade é um espaço virtual para quem habita o cibe-respaço. Não existe na cidade ponto de contacto entre o digital e o analógico. Existe uma competição entre o espaço físico e o espaço digital. Passamos, mais tempo de lazer em ambientes digitais que em ambientes urbanos. A cidade está a tornar-se obsoleta. O ciberespaço permite-nos a liberdade que a cidade retirou. Ali, procuramos informação, con-versamos, conhecemos gente, fazemos amigos, consumimos, aprendemos, trabalhamos, bus-camos prazer, apaixonamo-nos. O prazer substitui as necessidades quase por completo e não necessitamos sair de casa. Já não se conhecem pessoas na rua. A cidade não é necessária quando de casa aceder a todos os serviços e actividades de que ela dispõe. Elegemos a liberdade. Sentados, conseguimos proteger-nos da informação indesejada com o bloqueio de pop-ups, o autocolante na caixa de correio nada faz e na cidade o indivíduo não se consegue proteger dos estímulos exteriores. Essa incapacidade de defesa pode ter efeitos traumáticos e é comum recorrer-se à psicanálise que tenta entender a natureza dos efeitos devassos dos estí-mulos da cidade12. Vivemos no ciberespaço, “[n]uma alucinação consensual experienciada diariamente por biliões de operadores legítimos, em todas as nações”13. A cidade afastou-nos uns dos outros e encontrámos do outro lado do ecrã maneira de nos aproximar. As casas e escritórios tornaram-se portas para um espaço global que acedemos de qualquer lado e que ocupa espaço nenhum. [POSTAL 6] – colapso do analógico A sociedade industrial transformou-se em sociedade de informação.14 O planeamento em zonamentos homogéneos evoluiu para planos de zonas multifuncionais de mais fácil inte-racção com a população. Estamos a enfrentar um momento importante na história e podemos explorar novas possibilidades. Novos modos de fazer arquitectura estão a emergir, novas

ideias, novas soluções espaciais resultam da parceria com novas tecnologias. Aparecem grandes trabalhos que nos levam a repensar a cidade e ajudam a compreender as ligações complexas existentes. Trabalhos que melhoram e facilitam o dialogo entre a sociedade con-temporânea e a cidade e parecem conduzir a cidade para o sec. XXI. Somos seres híbridos, uma mistura entre carne e máquina. Funcionamos a sangue e dados. A transferência de conhecimento faz-se visualmente ou de forma hipertextural. A maneira como vemos e interpretamos as cidades está a mudar e os espaços devem evoluir para oferecer novas oportunidades, novos modos de funcionamento e novas relações estéticas15. As tecnologias sem fios estão a reconfigurar a nossa maneira de viver. Para aceder a qualquer tipo de informação apenas necessito de um pequeno ecrã que me cabe no bolso. A distinção entre a “vida quotidiana, trabalho e lazer são desfocadas com o uso da tecnologia”16. As maneiras de utilizar os espaços alteram-se, as tecnologias portáteis facilitam a interacção em tempo real e criam novos métodos de cooperação e organização. Fazemos parte de uma sociedade que habita o espaço cibernético que tem como fronteira o lado oposto de um ecrã, habitamos um espaço onde podemos agir, um espaço que é tão criado por nós quanto por outras pessoas. Lá, somos livres. [POSTAL 7] – o nascer do digital Fugimos da cidade. O centro tornou-se num vazio inútil onde edifícios antigos são ruínas que esperam que o tempo os vergue. Acabam por morrer e com eles um pouco da cidade morre também. As pessoas afastam-se das zonas moribundas, ficam aqueles que não se conseguem mover ou que já não têm coragem para fugir, os idosos, os pobres, os sem-abrigo. Decora-se a cidade com painéis gigantes e nada se faz à imagem decadente de um edifício com tijolos nas janelas. Tapam-se as entradas de edifícios para impedir que movimentos de indivíduos activos os ocupem. A cidade não é das pessoas, elas fecham-se em casa, tapam as janelas com antenas parabólicas. A janela virtual (televisão e computador) tem mais importância que o que se passa no exterior. Existem factores que nos criam uma ligação com o lugar, que nos fazem identificar e estar confortáveis num espaço. O facto da cidade ter sido retirada aos habitantes, levou a que se sentissem marginais na cidade, a habitar um espaço que não lhes pertence. Devemos com-preender que “(...) os humanos necessitam reconhecer algo deles no ambiente. Isto é o que os permite relacionar com o seu ambiente e encontrar significado nele.”17 Creio que os lisboetas encontram esse significado em alturas de Santos e de festas, momentos que os torna activos. No tempo restante, a cidade hiberna. Este comentário foi enfatizado recentemente quando o pianista Andersewski comentava num artigo da revista Visão de que adorava Lisboa porque era uma cidade diferente, uma cidade com uma “incrível humildade”, “uma espécie de acei-tação de morte”, uma falta de “ambição em ter mais ou ser melhor ou ser mais bela”18. Ao longo da história a arquitectura tem-se transformado para aderir aos níveis de conhe-cimento de cada época. O aparecimento da perspectiva no Renascimento levou a novas con-cepções espaciais, as normas industriais do paradigma mecânico levaram a arquitectura a adaptar-se à ideia funcionalista de espaço. Assim, será de esperar que com a alteração do paradigma mecânico para o tecnológico a concepção espacial evolua para a criação de ambientes contemporâneos que abracem novas formas de habitar. Se considerarmos que a arquitectura reflecte o conhecimento de uma época a avaliação que podemos fazer de algumas cidades não é muito positiva. Que se passa? Ou a arquitectura não acompanha a evolução da sociedade, ou a sociedade está atrasada em relação às evoluções de outros países. [POSTAL 8] - interactividade As cidades são hoje reconhecidas como forças de desenvolvimento e albergam a maior parte da população mundial. São constituídas por sistemas complexos de relações que nos afastam

das dimensões físicas de espacialidade e nos aproximam da integração e gestão de dados ambientais, sociais e económicos. O desenho das cidades já não se faz no papel. Estudam-se dados e criam-se diagramas que simulam evoluções espaciais para prever futuros possíveis. O urbanista aproxima-se mais de um gestor de dados que de um projectista dedicando tempo à criação de gráficos de interacções entre os dados que observa. Nasceram novos modos de ver a cidade e novas formas de a desenhar. Se concordam que uma cidade é uma força de desenvolvimento, será natural que um país se encontre em crise quando a sua capital não existe. Existe apenas um centro administrativo sem população a representar. A cidade deve criar espaço para as pessoas se tornarem activas. Não me refiro a passeios ou eventos simples, mas espaços em que as pessoas possam intervir e modificar o espaço. Os vazios da cidade podem tornar-se na porta para o caminho do ciberespaço para a cidade. Gos-taria de encontrar na cidade zonas catalisadoras de interacção e criação, provocadoras de cria-tividade, de imaginação e de ligações fortes com o espaço. No início do sec. XXI houve uma corrida de muitas cidades para tentarem repetir o “efeito Bilbao” e Lisboa não é excepção. Bilbao foi objecto de uma intervenção que alterou o seu funcionamento, a sua imagem e a relação das pessoas com a cidade. Existem casos de sucesso na criação de espaços interactivos, uns temporários, outros perma-nentes. Gostaria de começar com o exemplo de Venice em Los Angeles. O percurso junto à praia é palco para as mais variadas actividades. Ali, pinta-se, expõe-se, vende-se, passeia-se, faz-se desporto, dança-se. A qualquer dia, a qualquer hora existe uma actividade usar o espaço. Ali somos todos activos. Com graffiti pinta-se uma parede. Várias pessoas com latas na areia desenham o que lhes vai na cabeça. Levam os seus sprays e pintam. Areia rodeia as paredes que marcam o lugar de um antigo pavilhão demolido em 1999. Desde o final dos anos 70 que este ritual é repetido dia-riamente nestas paredes. Fiquei sentado a olhar para os artistas (vândalos noutros países) a pintar. Falei com um que tinha conduzido 2 horas para pintar numa parede e regressar, cons-ciente de que assim que virasse costas, outro artista tomaria o seu lugar e pintaria outra imagem. Uma ruína útil. Uma parede com uma nova imagem a cada hora, uma parede mutante, uma obra de arte inacabada, (...) há 30 anos. Outro exemplo de interacção entre a cidade e os habitantes iniciou-se a 12 de Setembro de 2001. Intitulado de blinkenlights foi um “evento” que durou 6 meses. Um grupo de hackers chamado CCC (Chaos Computer Club) apoderou-se electronicamente dos últimos andares do edifício Haus des Lehrers e conseguiu controlar a iluminação transformar parte da fachada num pequeno ecrã capaz de transmitir pequenas mensagens e animações. O grupo tomou a fachada de empréstimo e disponibilizou-a para quem a quisesse usar. Através de telefones ou computadores as pessoas enviavam mensagens que eram transmitidas na resolução possível das janelas da fachada. As pessoas enviavam mensagens para quem estivesse a olhar. A fachada tornou-se numa ferramenta de comunicação dos habitantes. Durante esse período a fachada pertenceu aos habitantes. A arquitectura tornou-se interactiva e permitiu aos cidadãos uma liberdade que raramente gozam. O sucesso foi tal que o evento foi “recarregado” em 200319. De evento semelhante foi também palco a Bibliothèque nationale de France em Paris. O terceiro exemplo aconteceu em Roterdão. Ao mesmo tempo que as luzes acendiam e apa-gavam no interior do edifício de Berlim acima descrito, outras luzes brilhavam no exterior de um edifício em Roterdão. A intervenção pensada pelo artista madrileno Rafael Lozano-Hemmer consistia em projectar imagens de pessoas numa fachada. As pessoas interagiam com essas imagens através das suas sombras que com holofotes eram projectadas nas paredes. O objectivo era sobrepor e igualar o tamanho da sombra ao tamanho da imagem projectada. Atingido o objectivo, a fotografia projectada era substituída por outra. A diferença de tamanhos das imagens obrigava a uma dança entre luzes e pessoas que resultava em sombras de 2 metros a 25 metros. Durante a intervenção a praça foi utilizada no seu plano horizontal e no vertical.

[POSTAL 9] - online As ligações wireless dão-nos a possibilidade de tornar qualquer lugar num espaço de trabalho ou lazer. Já não é necessária a reunião de trabalhadores no mesmo local nem durante o mesmo período de tempo. A “dessincronização dos horários locais possibilita a sincronização dos horários internacionais”20. Se isto é verdade, onde queres trabalhar hoje? “Quando o mundo está ligado, Local, não é apenas local”21. A crise física na cidade é evidenciada com a nossa dedicação ao digital. A instabilidade do poder local não tem a capacidade de gestão necessária para encontrar soluções. Longe estamos de forças de organização do tempo do Marquês de Pombal ou do Barão Haussman. Sem essas mãos para devolver a cidade aos habitantes a cidade é cada ver mais corporativa e gerida de acordo com interesses económicos. Para mudar uma cidade é necessário uma mão forte no poder, as cidades europeias sabem-no bem. Passamos grande parte do tempo em chatrooms, MUD’s (multi user domain) e a Internet é hoje um grande centro comercial. Seria interessante criar locais onde a cidade se funde com o espaço cibernético, permitindo o acesso a essa segunda vida a partir deles. Se assim fosse, as salas de chat podiam ser o banco de jardim e a partir da relva do parque mais próximo, pode-ríamos comprar um livro ou pagar as contas. A cidade deve aproximar-se dos seus habitantes e se eles estão agora pelos espaços digitais, em jogos ou ambientes virtuais, a cidade deve abrir uma porta de regresso a si própria. Devemos investigar como tornar o tempo online num acto social. Por enquanto a participação em actividades através de meios compturizados não é completada por nenhuma componente colectiva, consiste apenas numa acção individual. Para Weber a “interacção, e não a loca-lização, são a essência da cidade e da vida da cidade” 22, onde está a nossa? Já não interagimos com a cidade nem uns com os outros. Talvez quando o semáforo passa para verde, mas pouco mais. O espaço urbano é limitado por auto-estradas, rios e mar, montes e campo. O espaço arqui-tectónico tem como fronteiras as paredes, pavimentos, tectos. Jogamos muitas vezes com essas fronteiras alterando as relações entre o público e o privado. Fundimos o espaço arqui-tectónico com a cidade para procurar novas relações sociais. O espaço digital também existe entre fronteiras. Elas são os limites mecânicos que nos per-mitem interagir no ciberespaço e com quem por lá passeia. Ele existe entre o meu ecrã e o da pessoa com quem interajo, entre um teclado e o outro. Assim como por vezes fundimos o espaço privado com o da cidade, podemos também procurar fundir o espaço digital com o espaço físico criando novas relações com a cidade e repensar as noções de público e privado, digital e analógico e aprender como negociar entre as fronteiras físicas e virtuais. É um futuro inevitável. A cidade tornar-se-á cada vez mais interactiva. A fronteira entre o que é urbano ou rural é muitas vezes impossível de localizar. Será crescentemente difícil localizar a fronteira entre o que é urbano e o que é digital. Cidades como Singapura controlam o tra-fego rodoviário em tempo real através de câmaras observam o trânsito. No Brasil estão a usar o mesmo mecanismo para tentar controlar a delinquência comum em zonas de viaturas paradas no trânsito. A cidade estende-se para lá do ecrã. [POSTAL 10] - horizonte Proponho-te um exercício. Em hora de ponta em Lisboa ao sair do metro temos tendência a nos deixar ser levados pela corrente de pessoas que corre para as suas vidas. Correm, correm, correm para tentar ganhar tempo. O exercício que proponho é contrariar essa corrente. Em hora de ponta no metro, nas escadas, quando todos estiverem a correr para cima ou para baixo, pára. Fica quieto(a) e deixa as pessoas correrem em teu redor e sente a paz por não cor-reres. Depois, quando chegar o metro, não apanhes o primeiro, deixa um ou dois passarem sem os apanhares. Eu gosto de viver a cidade assim, saboreá-la com calma, ver as pessoas.

Assim, combato alguns estímulos. É como se fizesse pause num jogo de computador para fazer um descanso. O espaço digital é de todos, “ninguém é dono, todos podem usar, e qualquer pode melhorar”23. No espaço digital vive-se num ambiente onde a colaboração criativa é uma regra comum. É com frequência que encontro blogs em que as pessoas se ajudam mutuamente ou site onde podemos tirar programas freeware. Utilizamos a tecnologia para aumentar as nossas capacidades. Aumentamos a nossa memória, a capacidade de trabalho e velocidade de desempenho. Reduzimos a distância que nos separa de amigos distantes ou de colaboradores noutro lugar. A tecnologia tem influência directa na nossa relação com o espaço e pode mesmo a aumentar o espaço que habitamos. Em casa, o meu escritório prolonga-se para lá do ecrã. Podemos utilizá-la para melhorar e facilitar o diá-logo entre a sociedade e a cidade. A cidade necessita de uma prenda. Os seus habitantes merecem-no. Gostaria de ver a cidade fornecer aos habitantes a possibilidade de “contrariar a corrente dominante corporativa da uti-lização de tecnologia para publicidade e praticas de vigilância.”24 As potencialidades da inte-ractividade devem ser ponderadas no desenho da cidade. O arquitecto ou urbanista devem estar a par das novas tecnologias para as incorporar nos projectos sempre que possível e pos-sibilitar interacção do habitante e a cidade criando espaços onde eles podem actuar e evoluir e contrariar as tendências da vida crescentemente passiva. As cidades estão numa fase de mudança e os cidadãos reclamam liberdade. É comum vermos materializações de informação em modelos tridimensionais que se asse-melham com a imagem de uma cidade mas que representam dados estatísticos ou caracte-rísticas locais. A tradução de informação em material de construção tridimensional cria as datascapes que são modelos de dados concretos. As cidades estão cheias de monumentos, de momentos representativos de um poder ou de um momento histórico. Fazem falta antimonumentos, zonas glorifiquem a performance dos habi-tantes, que alimentem a liberdade de expressão, a vontade de actuar. Espaços flexíveis que permitam a busca de prazer, de espanto ou relaxamento. Zonas que exploram “sistemas inte-ractivos de iluminação, informação, som e outros controlos [que] podem fazer estas novas partes das cidades activas, com vida, participativas, e ricas em eventos.”25 Se vivemos de facto, segundo Debord, na “sociedade do espectáculo”26, então a cidade deve tornar-se no palco para esse espectáculo. O cenário de fusão entre a arquitectura e Internet e os sistemas de informação será cada vez mais real. “A network é o site urbano perante nós. Um convite para desenhar a cibercidade (capital do sec. XXI)”27. A interacção possível no espaço digital é hoje o desafio para a arqui-tectura e para a cidade. A cidade deve dar o salto da concepção de espaço segundo o para-digma mecânico para a concepção espacial segundo o paradigma tecnológico. A cidade está vazia, pronta para intervenções e temos a oportunidade de intervir sem molestar muita gente. Se não alterarmos a tendência de Lisboa em breve poderemos encontrar numa loja turística um postal onde se leia, “Lisboa – Aberta, dias úteis das 09:00 às 18:00”. 1 - BAUDELAIRE, Charles - O spleen de Paris – pequenos poemas em prosa. Lisboa: Relógio d’àgua, 1991. p.138

2 - LEACH, Neil – The anaesthetics of architecture. Londres: The MIT Press. 1999 (prefácio)

3 - LEACH. (perfácio)

4 - BAUDRILLARD, Jean – The ecstasy of communication. Nova York: Semiotext. 1988

5 - LEACH. p.1

6 - LEACH. p.2

7 - LEACH. p.10

8 - HUANG, Jeffrey, WALDVOGEL, Muriel. Open City. in CHÂTELET, Valérie (ed. lit.) - Interactive Cities - anomalie digital_arts #6. Orleáns: Editions HYX. p.213 9 - ROUILLARD, Dominique - The Invention of Urban Interactivity. in CHÂTELET, Valérie (ed. lit.) - Interactive Cities - anomalie digital_arts #6. Orleáns: Editions HYX. p.17

10 - TAYLOR, Mark C – Electrotecture. in Any, No.3, Nov/Dec. 1993. p.9

11 - TAYLOR . p.12

12 - LEACH. p.42

13 - GIBSON, William – Neuromancer. Londres: Voyager. 1995

14 - SAGGIO, Antonino – Other Changes. in KOLAREVIC, Branko, ed. lit.- Architecture in the Digital Age: Design and Manufacturing. Nova York: Taylor & Francis. 2005 p.231 15 - SAGGIO. p.231

16 - CHÂTELET, Valérie (ed. lit.) - Interactive Cities - anomalie digital_arts #6. Orleáns: Editions HYX. p.9

17 - LEACH, Neil – Camuflage. Londres: The MIT Press. 2006. p.19

18 - Visão – 31 de Maio 2007. p18

19 - Disponível em www.blinkenlights.de (consultado a 27 Maio de 2007)

20 - TAYLOR. p.15

21 - TAYLOR. p.15

22 - ROUILLARD. p.29

23 - HUANG. p.197

24 - HUANG. p.197

25 - SAGGIO. p. 233

26 - DEBORD, Guy – The Society of the Spectacle. Detroit: Black and Red. 1993

27 - MICHEL, William - The Electronic Agora. In Any, No.3, Nov/Dec. 1993. p.33

QUILOMBO1 DAS ARTES: INICIATIVA POPULAR, USO RESIDENCIAL E AÇÕES

CULTURAIS EM VAZIO INDUSTRIAL NO RIO DE JANEIRO

Drª. LILIAN FESSLER VAZ email: [email protected] Professora do PROURB/FAU/UFRJ e pesquisadora CNPq.

Arq. CLAUDIA SELDIN email: [email protected] – Mestranda pelo PROURB/FAU/UFRJ Programa de Pós-Graduação em Urbanismo FAU/UFRJ – Ed. Reitoria, s. 521 – Cidade

Universitária 21941-590 Rio de Janeiro, RJ – BRASIL

INTRODUÇÃO Este trabalho se propõe a apresentar e discutir um caso especial de ocupação de vazio urbano, voltado para o desenvolvimento social, através do vinculação da atividade cultural ao uso residencial. Na cidade do Rio de Janeiro, os vazios dos antigos bairros industriais vêm sendo invadidos por um grande número de pessoas desabrigadas, de baixa renda, que dividem o espaço construindo pequenas casas. Ao fixar residência em velhos galpões e pátios de fábricas, levam à conformação de um novo tipo de favela pós-industrial. Ainda no Rio de Janeiro se observa a emergência de um grande número de iniciativas, surgidas nas favelas e periferias, sem apoio de políticas públicas, que se utilizam das mais variadas práticas artístico-culturais com objetivos de transformação social – as ações culturais. Trata-se de grupos em geral de jovens, de caráter comunitário, que podem atuar na reestruturação do tecido social, por vezes definindo redes e/ou territórios de cultura e de resistência. O que se apresenta é um estudo de caso que envolve a invasão de uma antiga fábrica abandonada localizada nas franjas do Complexo da Maré, um aglomerado de favelas com uma população de mais de 130.000 habitantes2. O que a distingue das demais é o fato de não constituir apenas um caso de vazio industrial “favelizado”. Muito além disso, observa-se a implantação de um núcleo ou centro cultural no antigo edifício administrativo da fábrica – que vem sendo ocupado por diversos movimentos culturais emergentes. A abrangência de suas atividades extrapola o entorno do terreno invadido, incluindo edificações e espaços públicos, estes últimos, lugares por excelência de apresentações artísticas e de sociabilidade. O Centro de Artes e Cultura Popular da Maré se formou por iniciativa do Centro de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha: um projeto que tem como carro-chefe o ensino da capoeira aliado à história afro-brasileira. Pelo seu caráter de resistência e de ênfase em suas raízes negras veio a ser chamado de Quilombo das Artes. Através de seu estudo verificamos que, da negatividade do abandono de fábricas, da falta de moradia e da falta de equipamentos emerge, através da iniciativa popular, um conjunto heterogêneo com potencial de se tornar o foco de um emergente território cultural. Este novo fenômeno urbano agrega três elementos que refletem a atualidade pós-moderna: o vazio industrial, a carência habitacional e as ações culturais, revelando formas originais de relação entre a cidade e a cultura.

1 Termo da língua africana banto quimbundo, usada desde o Brasil colônia, e que significa “povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização interna” (Dicionário Eletrônico Houaiss). O seu uso atual procura acentuar o sentido de resistência à dominação. 2 Dados do Censo 2000 indicaram 132.176 habitantes, mas a estimativa atual é muito superior.

VAZIOS URBANOS CARIOCAS Apesar do termo “vazio urbano” ter sido alçado nas últimas décadas à condição de foco de estudos urbanos, com arquitetos, urbanistas e planejadores debatendo conceitos e análises e problematizando o fenômeno, não podemos esquecer que o par analítico ‘cheios e vazios’ é uma tradição nesta área de conhecimento, como observa Andréa Borde (2006). Espaços públicos, espaços livres, espaços intersticiais do tecido urbano, entre outros, até certo momento da história, não implicaram em revisões conceituais, como as que se observa atualmente. Para pensá-los, torna-se, portanto, necessário contextualizar estes vazios no seu tempo, seu espaço, seu meio sócio-econômico e cultural e seus significados. Sem pretender discorrer sobre sua conceituação ou sua história, apoiamo-nos na concepção desta autora (2006: viii), que se refere aos vazios urbanos do tecido consolidado das grandes cidades como “terrenos e edifícios que passaram por um processo de esvaziamento e que permaneceram em situação de vacância”. Um exemplo é o nosso objeto de estudo, o Centro de Artes e Cultura Popular da Maré, instalado em um ‘vazio esvaziado’ cercado de favelas. Em nosso estudo tratamos inicialmente de outro tipo de vazio urbano, anterior aos acima citados. No Rio de Janeiro, a presença de vazios já era detectada desde as primeiras décadas do século XX. Referimo-nos aqui aos espaços antes considerados insalubres, de tecidos urbanos consolidados, situados geralmente nas áreas centrais e nas suas proximidades, e que, após sofrerem intervenções urbanísticas não foram ocupados como previsto. A ação direta do Estado, através da ação da renovação, assim como a indireta, através de dispositivos legais, contribuíram para o arrasamento de vastas áreas habitadas que se supunha, seriam rapidamente reconstruídas e modernizadas. No entanto, as dinâmicas que conduziriam aos resultados esperados não lograram se instituir: grande parte destas áreas não foi ocupada pelas funções centrais nem recuperada para o uso residencial, surgindo grande número de vazios que ainda permanecem no anel central. Apesar de norteadas por diferentes discursos, conforme a época – saneamento, embelezamento ou modernização, as intervenções promovidas pelo Estado tiveram durante quase um século um mesmo denominador comum: o de afastar o uso residencial e as populações de menor renda das áreas privilegiadas (Vaz e Silveira, 1999). Posteriormente, nos anos 80, as grandes obras a partir de tabula rasa foram substituídas por intervenções físicas e ações localizadas, pontuais ou mais amplas. Nesta época, somando-se aos vazios existentes, surgiram também os novos vazios urbanos, aqueles resultantes dos processos de desindustrialização e de modernização urbana associados à globalização da economia: os vazios industriais, portuários e ferroviários. Embora alguns destes – portuário e ferroviário – se localizem na área central e seu entorno, e sejam focos de políticas e projetos de reabilitação e revitalização recentes, a sua grande maioria se localiza nos subúrbios e ao longo dos principais eixos viários, não tendo sido objetos destes projetos. A OCUPAÇÃO FORMAL E INFORMAL DOS VAZIOS Os processos de modernização urbana, ocorridos nas áreas centrais no correr do século XX, ao fazerem desaparecer os espaços e as condições de moradia das populações pobres, expulsaram-nas, empurrando-as, junto com grande número de migrantes, para a as zonas de expansão residenciais e industriais. À medida que novos bairros surgiam, os baixos salários e as ineficazes políticas habitacionais impediam o acesso a moradias dignas; assim, a ocupação e a autoconstrução em terrenos não utilizados, não edificados e não urbanizados se impuseram como solução possível. Espaços que, em outros contextos e por longo tempo foram considerados também como vazios. Neste sentido, os referidos processos contribuíram,

mesmo que indiretamente, para a ocupação dos espaços então chamados de vazios, resultando no surgimento e na configuração dos espaços habitacionais populares característicos da cidade do Rio de Janeiro: as favelas. Pode-se, portanto, considerar que, no constante movimento do espaço urbano carioca, a favela pode ser vista, desde os seus primórdios, como uma forma de preenchimento daqueles espaços. Um aspecto a ressaltar é que as favelas se desenvolveram condicionadas pela topografia local, junto aos locais que oferecessem maiores possibilidades de trabalho: principalmente na construção civil e no trabalho doméstico, junto aos novos bairros burgueses, e nas atividades industriais, nas fábricas que surgiam nos subúrbios. Observe-se que em meados daquele século era forte a associação entre a ocupação industrial e o surgimento de favelas, sendo que a maior parte da população favelada trabalhava neste setor e se localizava na região suburbana (Abreu, 1987:107). O contexto sócio-econômico e político, assim como o panorama dos espaços populares no final do século XX, era bastante diferente: embora o crescimento da população se houvesse reduzido, o seu empobrecimento e a falta de opções de trabalho e de moradia barata impunham a busca de novas alternativas, em particular, as habitacionais. Assim, verificou-se a ocupação por favelas de áreas de risco ambiental, o adensamento, a verticalização e a formação dos chamados complexos de favelas, com a crescente expansão das áreas faveladas até a sua fusão – as conurbações de favelas. Finalmente, nos anos 90, os espaços industriais abandonados e degradados foram sendo ocupados por novas favelas, agora não mais visíveis na paisagem carioca, pois o crescimento delas ocorria no interior dos grandes galpões ou ao abrigo dos altos muros das fábricas. A conexão entre o ambiente industrial e a população pobre se impunha outra vez, agora de maneira ainda mais forte nesta segunda fase de preenchimento de vazios cariocas por favelas. A ocupação formal dos vazios acompanha um padrão global. No rastro das transformações econômicas das últimas décadas e de seus rebatimentos espaciais, assim como da crise do planejamento e dos paradigmas que o sustentavam, as práticas urbanísticas vêm se modificando acentuadamente. Surgiram inúmeros planos, projetos e intervenções urbanas nos quais o paisagismo, a educação e principalmente a cultura se destacaram como fatores principais. Neste último caso, realizavam-se grandes investimentos em equipamentos culturais de grife arquitetônica em meio a espaços livres públicos de primoroso design, entre outros recursos para a revitalização urbana. Centros históricos, áreas centrais, vazios portuários, industriais ou outros espaços degradados passaram a ser reabilitados, tornando-se, por vezes, âncoras da recuperação da economia urbana. Através de verdadeiras reformas urbanas, potencializadas por eficiente marketing, as cidades tornaram-se casos espetaculares e midiáticos, impondo-se na competição pela atração de capitais, turistas e moradores. Os exemplos que mais se destacaram e se consagraram como paradigmas vão sendo substituídos, à medida que novos casos, mais espetaculares, se apresentam no cenário da competição urbana global. Nos anos 70, discutiam-se os modelos Nova Iorque e Paris; nos anos 80, o modelo Barcelona, nos anos 90, o modelo Bilbao. Cadeias de lojas e redes de museus buscaram oportunidades de investimentos através de grandes obras nos vazios urbanos. A valorização e a apropriação dos novos espaços – galerias, boutiques, restaurantes sofisticados, no entanto, permaneceu restrita àqueles com melhores condições financeiras, pois as populações remanescentes, de poucos recursos, eram impedidas de usufruir daquelas inovações e expulsas dos locais. Esse processo de gentrificação veio acompanhado de uma mudança simbólica: a transformação da cultura em um dos mais poderosos meios de controle urbano existentes, a transformação da cultura na resposta da máquina urbana à desindustrialização (Arantes, 2000).

Como conseqüência, evidenciamos, cada vez mais, processos de gentrificação, conflitos entre o domínio público e o privado e uma acentuação das desigualdades – econômicas, sociais, culturais e, principalmente, de acesso (à informação, aos bens, à cultura propriamente dita). Por conta disso, a cultura passa a ser vista como mercadoria, apropriada como bem de consumo em prol da política. Essa visão “distorcida” da cultura é aquela considerada eficaz e vista com bons olhos nos dias atuais. O problema é que cada vez mais percebemos que “a ação considerada eficaz permite a fragmentação do espaço urbano, através da criação de barreiras sociais visíveis e invisíveis, e da implementação de políticas públicas que geram intolerância e interrompem o diálogo interclassista espontâneo” (Ribeiro, 2006). Algumas tentativas formais de escapar a estas conseqüências têm sido observadas. Ao exemplo de Bilbao, na cidade do Rio de Janeiro, uma vasta zona portuária foi contemplada com um plano de revitalização com preenchimento de vazios em que se destacava o projeto de uma filial do Museu Guggenheim. A concretização desta iniciativa, uma clara importação de modelo que desconsidera as peculiaridades e necessidades locais, foi impedida judicialmente após longas discussões públicas. Posteriormente, nesta mesma zona portuária, o poder público implantou um imenso equipamento de entretenimento: a Cidade do Samba (imagem 01).

Imagem 01: Cidade do Samba: complexo de galpões na zona portuária do Rio de Janeiro. Fonte: Arquivo pessoal. Autoria: Claudia Seldin, 09/04/2006

Após a experiência de ocupação de depósitos portuários abandonados para guarda de grandes carros alegóricos carnavalescos, a prefeitura preferiu construir um vasto complexo de galpões voltados para as atividades de preparo das escolas de samba para o carnaval. No entanto, este verdadeiro parque temático tem-se voltado principalmente para o turismo, sem criar conexões com as atividades e as populações locais. Portanto, no Brasil, embora algumas políticas públicas urbanas valorizem a inserção da cultura nos vazios urbanos e nos espaços públicos, onde, por excelência, ocorrem as trocas e se encontram os diferentes, as políticas públicas culturais (nos três níveis político-administrativos) e os grandes empreendimentos têm voltado suas forças para um tipo de entretenimento centrado em espaços que não são acessíveis a todos. AÇÕES CULTURAIS

O período que temos observado, que se inicia no final dos anos 70, foi marcado por um boom de cultura, que se manifestou através da expansão da indústria cultural, do destaque de temas consagrados como a história, a memória e o patrimônio, e da culturalização da cidade e do planejamento (Meyer, 1999 e Vaz 2004), entre outros aspectos que indicam a crescente dimensão da cultura na atualidade. Esta época vem sendo ainda intensamente caracterizada pelo colapso das estratégias e modelos de desenvolvimento centradas no progresso material e no crescimento econômico; pelas suas conseqüências desastrosas em termos de polarização social e aumento da pobreza; e pela restrição da atuação do Estado, particularmente pela redução das políticas sociais em geral. É neste novo panorama que vem se multiplicando as ações culturais no Brasil. Por ações culturais nos referimos às manifestações artísticas e culturais surgidas há poucas décadas, a partir de movimentos de grupos, em geral comunitários, compostos por jovens das favelas e periferias pobres, que se articulam em torno de práticas como música, dança, teatro, grafite, capoeira, entre muitas outras modalidades de arte e cultura. Através destas linguagens artísticas e culturais, estes grupos buscam sair da invisibilidade, se afirmar individual e coletivamente e conquistar direitos básicos de cidadania que lhes tem sido negados. Em termos teóricos, para Teixeira Coelho (2004:32), uma ação cultural ou sócio-cultural é um “processo de criação ou organização das condições necessárias para que pessoas e grupos inventem seus próprios fins no universo da cultura”. Este autor acrescenta ainda que se trata de ação que “tende a colocar uma pessoa, um grupo ou uma comunidade em condições de exprimir-se em todos os aspectos da vida social”, tornando-os, assim, sujeitos da cultura. Esta concepção ampliada tem, certamente, expressões mais específicas, sejam conceituais, sejam empíricas, em cada contexto espacial e em cada momento histórico. Mas a ação cultural é sempre sócio-cultural, e, na sua versão mais radical e digna, “aposta na tese segundo a qual o objetivo da ação cultural não é construir um tipo determinado de sociedade, mas provocar as consciências para que se apossem de si mesmas e criem as condições para a totalização, no sentido dialético do termo, de um novo tipo de vida derivado do enfrentamento aberto das tensões e conflitos surgidos na prática social concreta” (Coelho, 2001:42). A ação cultural aposta na transformação. Ainda conforme Coelho, as ações culturais são transformadoras, pois carregam “um espírito de utopia – para revitalizar laços comunitários corroídos e interiores individuais dilacerados por um cotidiano fragmentante”, e têm na produção simbólica de um grupo sua fonte, seu campo e seus instrumentos de atuação. As ações culturais podem ser vistas como recursos aos quais as coletividades locais lançam mão para atender aos anseios e necessidades das sociedades contemporâneas. Referimo-nos aqui às respostas que a cultura pode oferecer tanto ao desejo difuso dos indivíduos, de possibilidades de conduzir melhor a própria vida (Fuchs, 2000), de alcançar auto-estima e urbanidade (Häusserman, 2000), assim como a emancipação, o alargamento dos horizontes e a afirmação da cidadania (Lucchini, 2002); quanto às necessidades das coletividades e da sociedade, de reatar laços sociais partidos. No Brasil, grupos no interior das camadas mais pobres vêm energizando os novos movimentos sócio-culturais, surgidos em resposta às circunstâncias atuais da histórica exclusão social a que são submetidos. Estes grupos, que não têm acesso aos modos culturais formais e tradicionais, praticam e produzem artes e culturas, que, no entanto, só muito recentemente vêm sendo reconhecidas pela mídia e por parcelas dominantes da sociedade, que se prendem a práticas tradicionais e/ou eruditas. É importante assinalar que as ações culturais surgem de iniciativas locais, ou seja, “de baixo para cima”, e, diante da sua invisibilidade, não tem recebido apoio de políticas

públicas urbanas ou culturais. No Brasil, os grandes impulsionadores de programas culturais são as leis de incentivo fiscal, que não são voltados para a sociedade como um todo, concentrando-se nas mãos das grandes empresas privadas, que apóiam projetos concentrados setorialmente, na maior parte das vezes, limitados ao eixo Rio – São Paulo. Apenas recentemente, foram criadas políticas específicas para estes grupos, dos quais destacamos o Programa Cultura Viva (do governo federal)3 e o Programa. Nota Dez (do governo do estado do Rio de Janeiro). As ações culturais podem promover efeitos diversos e inter-relacionados. Em termos econômicos, desenvolvendo atividades geradoras de renda (de produção e de consumo de cultura) e valorizando a produção local; em termos sociais, contribuindo para o crescimento da auto-estima individual, para o fortalecimento de uma identidade local e para a reestruturação do tecido social; em termos locais, legitimando uma ocupação espacial, definindo territórios e/ou redes culturais, transformando o espaço da comunidade e a maneira de olhar e pensar este espaço; em termos sócio-culturais, registrando ou recuperando a memória e práticas culturais locais, entre outros efeitos. Estes e outros efeitos revelam as várias dimensões da atuação das ações culturais. No entanto, restringimo-nos, neste texto, a trabalhar a relação entre a cultura e o espaço urbano. Sob esta ótica revela-se outra face da desigualdade: a desigual distribuição de equipamentos culturais na cidade e a quase total ausência dos mesmos nas favelas e periferias. Nestas áreas a população “excluída” também da cultura sente a necessidade de espaços próprios, que abriguem suas práticas. No entanto, na cidade informal são praticamente inexistentes os exemplos de equipamentos culturais convencionais, como cinemas e teatros, e raros os exemplos de equipamentos culturais “alternativos”, como as “lonas culturais”4 ou as construções de uso misto que abrigam também centros culturais. É nestas condições que a convergência das ações culturais com as grandes estruturas fabris abandonadas e degradadas fazem emergir nestes vazios novos espaços e significados. Como o Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha, uma ação cultural totalmente voltada para o desenvolvimento social, cuja iniciativa de ocupação de uma antiga área industrial, deu início a um processo de reabilitação conduzido pelos próprios grupos locais.

3 O programa Cultura Viva (2004) foi concebido com o objetivo de reconhecer e apoiar financeiramente, iniciativas culturais, já existentes e de caráter inovador, que estimulam o desenvolvimento social, a cidadania, a geração de trabalho e renda, e apresentam, ao mesmo tempo, potencial de fortalecimento do patrimônio cultural, seja nas grandes cidades, em favelas ou periferias, aldeias indígenas, assentamentos rurais, comunidades quilombolas e outras formas de organização comunitária. 4 Espaços culturais localizados em subúrbios, criados inicialmente nas tendas em forma de circo utilizados na ECO-92 realizada no Rio de Janeiro.

Imagem 02: Do terraço do Centro de Artes e Cultura Popular da Maré, tem-se a vista de grande parte da favela. Fonte: Arquivo pessoal. Autoria: Monica Botkay, 24/02/2007.

GRUPO DE CAPOEIRA ANGOLA YPIRANGA DE PASTINHA5 O Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha (GCAYP), situa-se no Complexo6 da Maré, mais precisamente no Morro do Timbau, na zona suburbana da cidade do Rio de Janeiro. A Maré, originalmente um conjunto de palafitas, constitui-se pelo conjunto de favelas que se desenvolveu parte sobre água, parte sobre pântanos e parte em terra firme, e os conjuntos residenciais de baixa renda construídos pelo poder público sobre aterros, limitados por duas vias arteriais de acesso à cidade do Rio de Janeiro (imagem 02). O conjunto de favelas apresenta-se atualmente como uma verdadeira cidade informal, que constitui a XXX Região Administrativa da cidade, sendo composta por 16 comunidades7. Essas comunidades são bastante distintas e foram criadas em épocas diversas, desde os anos 1940, quando teve início a sua ocupação. Durante as últimas décadas, o chamado Complexo da Maré tem sido palco de constantes conflitos entre facções do tráfico de drogas, o que acabou por conectar uma imagem de violência extrema ao seu nome. Além disso, é apontado pela Prefeitura como terceiro “bairro” com o pior IDH – Índice de Desenvolvimento Humano da cidade.

5 As informações referentes ao Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha foram obtidas nos sites www.ypiranga-de-pastinha.org.br e www.cypbrasil.org e em entrevista realizada em 24/02/2007 com Mestre Manoel, alunos e assistentes. 6 As recentes conurbações de favelas são chamadas de “complexos”, englobando várias comunidades. O Complexo da Maré era o maior deles, segundo o Censo de 2000. 7 As comunidades habitam as seguintes favelas: Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Conjunto Marcílio Dias, Parque Maré, Parque Roquete Pinto, Parque Rubens Vaz, Parque União, Nova Holanda, Praia de Ramos, Conjunto Esperança, Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Nova Maré e Novo Pinheiro.

Imagem 03: Foto aérea do Complexo da Maré no final dos anos 90. A área em amarelo delimita a comunidade do Morro do Timbau, onde se situa a sede do GCAYP, assinalada em vermelho. Fonte: Arquivo IPP, Secretaria de Urbanismo da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

O Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha foi criado em 27 de março de 1998 por Emanuel Lopes Lima (também conhecido como Mestre Manoel) e tem como objetivo a conscientização através da arte e a formação de agentes multiplicadores de ensino da capoeira. A capoeira é uma prática que mistura esporte, luta, jogo, música e dança, e que foi trazida ao Brasil pelos escravos bantos. Apesar do seu nome, de origem indígena, significar moita ou mato, a capoeira foi inspirada na dança das zebras, composta por movimentos de coices e cabeçadas. Através de golpes, que exigem grande flexibilidade, rapidez e esforço muscular, o capoeirista consegue atacar e se defender de seu adversário dentro de uma roda, composta por outros jogadores que cantam ao som de instrumentos musicais dos quais se destaca o berimbau (ver imagens 03 e 05). Até meados do século XX, a capoeira era vista como uma ameaça, chegando a ser considerada prática criminosa. Apesar de grande parte dos escravos permanecerem em zonas rurais, a capoeira transitava das senzalas8 e quilombos até as ruas, tendo sempre possuído um forte caráter urbano. A prática da capoeira mistura elementos artísticos (música e dança), mas também exige que seu praticante tome atitudes e iniciativas baseadas em raciocínio, intuição e improviso, em resposta aos movimentos de balanço vacilante e enganador do adversário. Esta ginga (meneio de corpo), em geral acompanhada de mandinga (feitiço, malícia), são elementos específicos da prática da capoeira que constituem o conhecido ‘jogo de cintura’ brasileiro. Esta expressão denota outra característica desta prática, que se constitui ainda como uma preparação para a vida, para o enfrentamento de situações do cotidiano do mesmo modo que as situações da luta. Por estas razões a capoeira é considerada por muitos como a mais completa prática física.

8 Alojamento dos escravos negros nas antigas fazendas brasileiras.

Hoje em dia, a capoeira é praticada livremente e difunde-se em vários países, sofrendo diversas adaptações. No Brasil há duas correntes distintas: a Capoeira Regional e a Capoeira de Angola. A primeira, mais difundida, possui caráter de competição e confronto, privilegiando golpes de ataque. É referida no exterior como “Brazilian Street Fighting” e praticada em academias e campeonatos. Já a Capoeira de Angola segue a linha da escola de Mestre Pastinha9, defensor das tradições escravas e responsável pela valorização do caráter lúdico e filosófico da capoeira original. Nela, destaca-se a importância da conexão com a dança, sendo privilegiados os movimentos de defesa e a “ginga” das pernas. O nome Grupo Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha indica, portanto, a escola e o mestre seguidos. A palavra “Ypiranga” faz referência ao time de futebol favorito do mestre, cujas cores eram amarelo e preto, adotadas no uniforme do grupo. A capoeira ensinada por Mestre Manoel procura propiciar a cada praticante sua própria expressão corporal individual, o que reverte a favor do seu desenvolvimento pessoal. Sua proposta tem um forte caráter pedagógico – que passa pelo ensino de outras tradições de origem africana, como o maculelê10, pela preocupação com a formação de agentes multiplicadores da cultura negra – e também de caráter político-social, a partir do momento em que se associa ao ensino da história afro-brasileira, de modo a despertar discussões e reflexões entre seus 250 alunos (aproximadamente). Além disso, as aulas são elaboradas de modo a propiciar a criação de relações entre seus praticantes, em sua maioria crianças e adolescentes11, induzindo-os à socialização e à sensibilização para a descoberta de uma identidade própria. O grupo atua ainda em outras favelas e realiza apresentações semanais em diversos lugares dentro e fora do Complexo da Maré, assim como participa mensalmente de uma roda de capoeira no centro da cidade. Suas grandes apresentações acontecem, na maior parte das vezes, nos espaços públicos: ao ar livre, nas ruas (imagem 04). Isso é importante para incentivar a auto-estima do jovem, que toma consciência de si ao se apresentar ao público, onde pode se mostrar, percebendo que é bom no que faz e que o que faz tem valor positivo. Ao utilizarem as ruas da cidade, os alunos conhecem lugares novos e outras realidades, ampliando e abrindo-se ao seu universo.

9 Vicente Ferreira de Pastinha, baiano, nascido em 1889 10 Dança guerreira praticada também por mulheres. 11

Para participar da aula, exige-se que o jovem esteja matriculado na escola e tenha a autorização dos responsáveis. Considera-se que o trabalho só faz efeito se a família estiver envolvida no processo e disposta a contribuir na criação de cidadãos conscientes.

Imagem 04: Apresentação de capoeira dos alunos do Grupo de Capoeira de Angola Ypiranga de Pastinha no Complexo da Maré, atraindo a atenção de quem passa na rua. Fonte: Arquivo pessoal; Autoria: Ulrike Panczack, 2001.

Desde sua criação até os dias atuais, a sede do Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha se localizou em diversos pontos do Rio de Janeiro, incluindo o centro da cidade e outros locais da Maré. Em agosto de 2006, o grupo mudou-se para o atual endereço, no Morro do Timbau (imagem 01). O terreno, que abrigava uma antiga fábrica de tintas, antes de ser abandonado há mais de quinze anos, conta com galpões e pátios internos e um edifício administrativo de quatro andares, dotado de amplos salões. Após a ocupação do edifício pelo grupo, a apropriação dos outros espaços por várias famílias desalojadas de outras favelas foi rápida. Em poucas semanas os pátios e galpões foram subdivididos em lotes mínimos e as casas construídas (imagens 05 e 06). Os salões do edifício administrativo atraíram outros grupos artísticos ao local. Assim, surgiu o Centro de Artes e Cultura Popular da Maré – um equipamento cultural alternativo, que, apesar de recente, já começa a funcionar como um núcleo de sociabilidade local, dotado de diversas atividades culturais que ultrapassam a capoeira. O Centro conta com uma orquestra de berimbaus e um estúdio de música (utilizado por cerca de quinze bandas locais). Ele oferece também oficinas de artesanato, samba de roda, aulas de hip hop e break dance, educação ambiental e apoio escolar (em parceria com quatro escolas da região). Projetos futuros incluem oficinas de reciclagem e teatro. Após uma série de invasões que depredaram as edificações ao longo dos anos, os diferentes grupos que ocupam o Centro se aliaram a associações locais e ONGs com o objetivo de obter o aval dos donos da propriedade. Atualmente encontra-se em andamento, junto à prefeitura, o processo de cessão do terreno por regime de comodato, com o apoio da empresa proprietária do espaço, que possui imensas dívidas com o município, devido ao não pagamento de impostos. Se aprovado, o local será cedido para fins culturais em troca do abatimento da dívida. A colaboração de partes distintas não se restringe apenas às questões legais. A retirada de lixo e limpeza do terreno envolveu a colaboração de voluntários da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cujo campus é vizinho do Complexo, com a ONG ambiental Verdejar. Algumas instituições também contribuem com a iniciativa através de um convênio de doação de cestas básicas para os moradores da comunidade ligados ao Centro. O apoio do Estado, no entanto, ainda é praticamente inexistente. O Centro é gerido de forma autônoma, funcionando através de uma lógica própria de organização.

Imagens 05 e 06: Do terraço do Centro de Artes e Cultura Popular da Maré, observam-se diversas formas de invasão do espaço local Fonte: Arquivo pessoal. Autoria: Monica Botkay, 24/02/2007

QUILOMBO DAS ARTES Considerar o Centro de Artes e Cultura da Maré como um quilombo das artes provém do seu caráter de resistência aos processos urbanos contemporâneos: a palavra quilombo evoca o local de convergência de negros que se opõem ao poder estabelecido. Efetivamente, essa resistência pode ser percebida também sob outras formas e dimensões. Observamos, inicialmente uma dimensão espacial da resistência, pois viver nas favelas e periferias das metrópoles do terceiro mundo já é em si, uma forma de resistência. Alguns termos historicamente e habitualmente associados às favelas e periferias, como marginalização, segregação e exclusão, trazem explicitamente a noção da separação, da negação, do impedimento a algo geralmente aceito. No entanto, as centenas de favelas estão presentes, indiscutivelmente, na paisagem carioca, sendo algumas, há mais de um século. Cabe assinalar que as primeiras se constituíram no final do século XIX, a partir da ação dos combatentes retornados da campanha de Canudos12, de afirmação de seu direito de permanecerem como membros do exército brasileiro. Nesta resistência, os combatentes permaneceram acampados nas vizinhanças dos seus quartéis de origem, acomodando-se nos espaços disponíveis, ocupando os morros próximos, dando origem às favelas da Providência e de Santo Antônio. A resistência a uma ordem militar se tornou uma afirmação de permanência no espaço da cidade, intenção que se repetiu ao longo do século XX com a formação das centenas de favelas13 e hoje, com a invasão e a ocupação da antiga fábrica. Podemos identificar também uma resistência de caráter cultural. Fala-se de resistência cultural, referindo-se a modos culturais (ou formas particulares de manifestações de uma cultura), de populações subjugadas, que cultuam suas tradições e sua identidade (Coelho

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Refere-se à guerra travada pelo exército republicano contra um grupo de seguidores de Antonio Conselheiro, que o consideravam um profeta. Em 1897, após a chacina dos maltrapilhos sectários, os soldados retornaram à capital do país, Rio de Janeiro, onde permaneceram acampados em praça pública, reivindicando sua re-incorporação ao exército. Durante a longa espera, as autoridades militares permitiram a ocupação do Morro da Providência, situado atrás do quartel geral. Situação semelhante ocorreu com outro grupo de soldados, acampados junto ao Morro de Santo Antonio, nas proximidades de outro quartel. 13 Segundo o Censo 2000, eram 513 na época.

2004: 337), portanto, sua história, suas raízes. São oposições à cultura hegemônica a partir da preservação de manifestações culturais minoritárias ou dominadas14. Neste sentido, cabe lembrar que a arte é transgressora. Seu caráter principal é transgredir. O rock e o hip hop são exemplos. A própria capoeira era originalmente, um meio de resistência, e o próprio Grupo Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha apresenta-se como um veículo de resistência, um instrumento sócio-educativo contra a opressão e a discriminação nos planos cultural, social e espiritual, propondo o resgate de valores culturais e a elaboração de uma filosofia de vida baseada na coletividade, na disciplina e no autocontrole dos indivíduos. Grande parte das ações culturais que afloram tem como agentes sociais os jovens (imagens 04 e 07), o que aponta no sentido de uma dimensão social da resistência. Isto porque os jovens costumam ter atitudes de oposição, de recusa à submissão, de desobediência, e que, por isso, vestem a causa das minorias oprimidas e buscam dar à arte um caráter transgressor, provocativo, intervindo em espaços públicos que não são por eles dominados e acabam se transformando em territórios de resistência (Silva, 2005). É o caso, por exemplo, do grafite e da cultura hip hop em geral – ambos presentes em várias favelas e também no Centro de Artes e Cultura da Maré. Neste ponto, não podemos deixar de considerar também as poucas alternativas de estudo, trabalho e lazer dos jovens pobres e o fato de que são eles os que mais sentem o significado e as dificuldades de viver em espaços liminares, entre duas ordens sociais diversas – o da ordem instituída (das instituições) – e o da criminalidade, cada qual com valores e regras próprios (Dayrell, 2004). Neste sentido, as atividades culturais podem proporcionar caminhos alternativos que antes eram pouco incentivados. Finalmente, cabe destacar o fato do Grupo de Capoeira Angola Ypiranga de Pastinha ser uma expressão da cultura afro-brasileira, e, ao se apresentar como tal, já revelar, como visto anteriormente, uma afirmação de resistência de caráter étnico às condições sociais vigentes. O novo fenômeno urbano analisado, ao agregar elementos que refletem a atualidade – o vazio industrial, a carência habitacional e as ações culturais, revela novas formas de relação entre a cidade e a cultura. Muito além disso, a sua complexidade revela-se também uma fonte de reflexões que perpassam diversos outros campos, além dos aqui apontados. As potencialidades que o estudo vem revelando, tanto em termos culturais e sociais, quanto urbanísticos, nos permite considerar a possibilidade do seu desdobramento em termos de políticas públicas, principalmente as que considerem o entrelaçamento urbano-cultural15.

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A resistência cultural pode se referir também a manifestações que emergem em circunstâncias novas, como expressões da subjetividade humana em novos contextos, como produções simbólicas que se apóiam em novos suportes e novas tecnologias. 15 Esta análise foi desenvolvida em: Silveira, C. B. (2004). O entrelaçamento urbano-cultural: centralidade e memória na cidade do Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Planejamento Urbano e Regional, IPPUR/ UFRJ.

Imagem 07: Crianças e jovens praticam capoeira em festa do Grupo de Capoeira de Angola Ypiranga de Pastinha no Complexo da Maré. Fonte: Arquivo pessoal. Autoria: Ulrike Panczack. 2001.

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AS PASSARELAS URBANAS COMO NOVOS VAZIOS ÚTEIS NA PAISAGEMCONTEMPORÂNEA.

Arquiteta Vera Magiano Hazan e-mail: [email protected]

Doutoranda PROURB/FAU/UFRJ

Introdução

Os vazios de grande escala, como as ruínas de antigas construções, espaços sobre alinha férrea ou leitos de rios, instigam a exploração de novas possibilidades de ocupação, sejaatravés da instalação de equipamentos culturais, educacionais, comerciais, habitacionais, sejacomo ampliação de espaços públicos de lazer, caso das novas passarelas urbanas, que seconstituem novos vazios úteis flexíveis1 entre duas margens, na paisagem contemporânea.

A criação de caminhos, praças e lugares, através da construção de passarelas vem

crescendo, principalmente em função do alto custo dos terrenos remanescentes nas cidades. Arequalificação dos espaços urbanos através das ligações entre margens tem como principalobjetivo integrar os bairros e recuperar áreas sem vitalidade, de forma a povoar novos espaçoscom atividades constantes, valorizando o espaço público e as áreas próximas à intervenção,bem como oferecendo acesso, segurança e lazer na travessia dos pedestres.

A ampliação do espaço público através da construção de passarelas urbanas projetadaspara o lazer2 cria, ao mesmo tempo, novas possibilidades de apropriação do espaço urbano,que se espalha para além das margens, aumentando a irradiação do projeto urbano, bem comoalternativas de ocupação de vazios a princípio não territoriais, reinventando as paisagensurbanas contemporâneas com projetos que se destacam pela forma, beleza e localização.

As transformações espaciais não se restringem mais à sua dimensão físico-territorial,mas envolvem, em grau crescente, considerações de ordem simbólica. A satisfação estéticafundamental, segundo Solà-Morales3, provém da necessária alternância entre a arquiteturanova e antiga, do contraste entre o caráter do que é novo e o caráter do que é velho. Aarquitetura, ao contrastar estruturas antigas e novas, espaços construídos e vazios, descobre ofundo e a forma em que o passado e o presente se reconhecem reciprocamente.

A passarela costura as fraturas urbanas4, criando novas espacialidades, que por um ladounem estruturas contrastantes, e por outro tornam mais sólidas as intervenções nos espaçoseleitos5, marcando a paisagem com projetos que, ao mesmo tempo se destacam e serelacionam com as margens.

1 A flexibilidade destes espaços se dá através da ampliação de sua função tradicional de ligação entre duasmargens. 2 Em alguns momentos, estas passarelas vêm sendo chamadas de “praçarelas”, justamente por adicionarem oconteúdo praça às tradicionais passarelas de pedestres, oferecendo bancos, jardins, pérgulas e belvederes,ampliando o espaço público, principalmente em áreas carentes de espaços de convivência. 3 RUBIÓ, Ignasi de Solà-Morales. “Do contraste à analogia: novos desdobramentos do conceito de intervençãoarquitetônica”.4Utilizo aqui o termo fratura urbana como menção a espaços quebrados, fraturados, mas passíveis derecomposição e colagem.5Se pensarmos que alguns espaços vêm sofrendo intervenções do poder público através de projetos dereurbanização, revitalização etc e outros continuam à margem, sem qualquer investimento, creio que podemoschamar os primeiros de espaços eleitos e os outros de espaços esquecidos.

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Os novos vazios e a criação de caminhos, praças e lugares

A criação de novas superfícies sobre leitos de rios e linhas férreas vem de encontrocom a escassez de terrenos nas grandes cidades e as necessidades de acessibilidade e ligaçãoentre as duas margens. Alguns projetos detêm-se na oferta de caminhos, mais ou menosatraentes e seguros. Outros, entretanto, proporcionam novas perspectivas para estas estruturas,tornando habitáveis estes espaços, a princípio, de transição.

Da transição à permanência, há um longo percurso, que passa pela transformação depassarelas em espaços públicos, espaços comerciais e de serviços ou mesmo de moradia. Oespaço público define a qualidade da cidade, porque indica a qualidade de vida da gente e aqualidade da cidadania e seus habitantes. (Borja, 2003)6 O espaço público supõe também ouso social coletivo e a multifuncionalidade, e se caracteriza fisicamente por suaacessibilidade, o que o converte em um fator de centralidade. Ainda segundo o autor, aqualidade do espaço público pode ser avaliada segundo a intensidade e a qualidade dasrelações sociais que facilita, por sua possibilidade de misturar grupos e comportamentos, epor sua capacidade de estimular a identificação simbólica, a expressão e a integraçãoculturais.

As novas passarelas urbanas extrapolam a função original de mobilidade eacessibilidade, proporcionando uma integração não apenas física, mas também paisagística esócio-cultural entre duas margens. Dos caminhos às praças e belvederes, são muitos osprojetos de passarelas elaborados por arquitetos, que utilizam o vazio sobre os leitos de rios,linhas férreas e estradas, como ampliação do espaço público, permitindo aos usuários além dapassagem de um lado ao outro, sua permanência e usufruto de mais uma área de lazer nacidade.

As transformações espaciais, entretanto, não se restringem mais à sua dimensão físico-territorial, mas envolvem, em grau crescente, considerações de ordem simbólica. O lugar, asua imagem e sua identidade se tornaram fundamentais. O projeto de uma nova intervençãourbana estabelece uma relação visual e espacial particular com seu entorno, ainda quereproduza tipos ou modelos encontrados em outras cidades.

O aproveitamento das passarelas para a articulação entre espaços distintos, a fusão deduas partes de um mesmo bairro, bem como o encontro e a troca entre pessoas oriundas dasduas margens atribuem o caráter de habitabilidade a estes espaços, e ainda ao seu entornoimediato. Muitos projetos desta natureza proporcionam o impulso para novos projetos dereurbanização e revitalização em espaços até então esquecidos.

A passarela enquanto espaço público.

A passarela enquanto espaço público é uma oportunidade de ocupação de um espaçoresidual entre o que está construído e o espaço viário. A requalificação de área através de umprojeto que preza pela continuidade do percurso peatonal e da oferta de espaços que priorizama vida comunitária, os encontros, as atividades cotidianas e também o turismo é uma opção deprojeto urbano que gera espaços de transição de uso coletivo que respeitam o direito decidadania e a cotidianidade cidadã. (Borja, 2003)

O espaço público é um mecanismo fundamental para a socialização da vida urbana. Énele que se expressa a diversidade e se produz o intercâmbio entre pessoas de diferentesorigens. As novas passarelas urbanas não se resumem em meras ligações entre duas margens.

6BORJA, Jordi. MUXÍ, Zaida. “Espacio Público. El espacio público: ciudad y cidadanía”. Ed. Electa, Barcelona,Espanha, 2003.

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Elas são construções que se aproximam do homem, permitindo-lhe permanecer, usufruir,admirar, habitar poeticamente.

A palavra habitar tem uma relação interessante com a palavra construir, que segundoNorberg-Schulz7 no inglês antigo e no alto alemão significava morar, o que estava ligadodiretamente ao verbo ser. Desta forma, habitar significa reunir, juntar o mundo como umaconstrução concreta, essência do habitar.

Habitar é também a possibilidade de se apropriar de uma construção, criando laçosafetivos que a tornam essenciais para um lugar. Habitar é vivenciar, estabelecer uma relaçãode proximidade e cotidiano com uma construção. Um equipamento urbano torna-se habitável,portanto, quando sua relação com o usuário se estabelece desta forma. No caso das pontes epassarelas, isso ocorre quando elas se tornam essenciais para a cidade ou ao menos paraaquela espacialidade, caso das intervenções com o perfil de espaço público.

Uma passarela pode se tornar um símbolo ou simplesmente ser uma passagem trivialpara aqueles que a utilizam diariamente. Habitar a passarela faz a diferença e torna umequipamento mais ou menos essencial para a vivência na cidade, já que a vitalidade de umespaço está diretamente ligada ao seu uso.

Segundo o arquiteto Steven Holl8, na zona intermediária entre a paisagem e a cidadereside na esperança para uma nova síntese de vida urbana e forma urbana. Portanto, aapropriação dos vazios urbanos, sejam eles terrenos, ruínas ou espaços sobre a linha férrea,rios ou vias expressas, traz perspectivas muito interessantes e intrigantes, que devem serexploradas de forma coerente com a espacialidade em questão.

A reinvenção destes equipamentos tem sido um grande desafio para arquitetos eurbanistas, que criam em muitos momentos esses links de forma criativa e produtiva para acidade, principalmente quando oferecem espaços democráticos e plenos de vitalidade,atraentes para a localidade e em alguns casos para o desenvolvimento da cidade.

“Praçarelas”, ruas e espaços de lazer

No Brasil, o termo “praçarela” refere-se a passarelas que são praças, isto é, espaçosque vão além da ligação e acessibilidade às duas margens de uma espacialidade. Direcionadasprincipalmente aos moradores de áreas carentes de espaços de lazer e consumo, as chamadas“praçarelas” têm como objetivo integrar os bairros e recuperar áreas sem vitalidade, de formaa povoar novos espaços com atividades constantes, valorizando o espaço público e as áreaspróximas à intervenção, bem como oferecendo acesso e segurança na travessia dos pedestres.Pensadas de forma sustentável economicamente, estes espaços são dimensionados parapossibilitar a instalação de quiosques e espaços comerciais e de serviços dedicados aopedestre, viabilizando sua manutenção com atividades constantes.

A alternativa das “praçarelas” aplica-se muito bem em espaços sobre a via férrea,principalmente nos acessos às estações de trem, promovendo uma maior segurança eanimação a estas áreas de grande fluxo. Na cidade do Rio de Janeiro, cinco “praçarelas” 9 comeste caráter estão sendo elaboradas pelo Instituto Pereira Passos dentro do Plano deReabilitação Integrada de São Cristóvão, na Zona Norte do Rio. Algumas serão projetosnovos, dimensionados especificamente para este novo uso, e outras serão adaptações de

7 NORBERG-Schulz, Christian. “O fenômeno do lugar”.8 Em depoimento para a revista Quaderns - Forum Internacional nº 214, Barcelona, 96.9 Em alguns momentos, estas passarelas vêm sendo chamadas de “praçarelas”, justamente por adicionarem oconteúdo praça às tradicionais passarelas de pedestres.

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antigos equipamentos, utilizados somente para a ligação entre os dois lados, com novosacessos de acordo com a mobilidade urbana sustentável e ampliação de suas dimensões paraabrigar a nova proposta, que pretende resgatar a habitabilidade da área através destesequipamentos.

Com o propósito de dar continuidade a uma grande rua de pedestres, a Passarela sobreo rio Segre na cidade de Lleida na Espanha converte a passagem de 10 metros de largura numcaminho, numa rua habitável com grandes bancos de madeira e farta iluminação, que segueaté uma praça suspensa de acesso ao parque do Segre10, integrando as duas praças de formaharmônica e majestosa.

A largura de 10 metros e a instalação de mobiliário urbano como bancos, esculturas epostes de iluminação criam um aspecto de praça convidativo para pedestres, proporcionandouma continuidade do percurso e ampliação do espaço público de lazer dedicado a essesusuários, que utilizam o espaço para namorar, pegar sol, contemplar a paisagem, andar debicicleta, fazer exercícios etc.

A continuidade do caminho sobre o rio deflagrou todo um processo de urbanizaçãonas duas margens, que se adaptaram à nova realidade de aumento de fluxo e necessidade deatividades dirigidas aos pedestres, abrindo perspectivas de comércio e serviços para atender aesse público consumidor.

Existem ainda outros exemplos de passarelas que se tornaram espaços públicos degrande importância para as cidades. Entre eles, vale destacar uma passarela em Tarragona,também na Espanha, junto ao mar, que é uma verdadeira praça suspensa sobre umestacionamento, com pérgulas para proteção do sol e jardineiras que criam um ambienteacolhedor de lazer naquele espaço de transição entre a parte alta da cidade e a beira-mar, empleno Mediterrâneo. Freqüentada por pedestres e ciclistas, esta passarela debruça-se numapaisagem de grande beleza, fazendo, ainda, o papel de um grande mirante, com condições depermanência durante o dia e também à noite, em função da iluminação.

Enquanto a passarela de Tarragona desponta na paisagem integrando a cidade e o mar,a Passarela peatonal em Petrer, Alicante11, também na Espanha, tem como proposta tornar-seum novo referencial entre uma zona rural e uma vila. Além de possibilitar a passagem entreestas duas espacialidades distintas, a passarela converteu-se em uma área de articulação entreos dois pontos, com pérgulas de proteção para o sol, bancos e um grande deck de madeira quecompõe uma praça de integração entre os dois espaços, formando um lugar especial para asduas comunidades, e principalmente para os pedestres, que passaram a ter um novo espaço delazer a caminho de suas casas.

Neste caso, a deficiência de espaços de lazer na área foi resolvida com a construçãodeste equipamento num terreno virtual, onde, a princípio, não se pensava em construir. Afunção desta passarela é, sem dúvida, de natureza social. A integração das duas espacialidadesabre, também, perspectivas econômicas e culturais para as populações dos dois lados, quelucram com as trocas e benefícios criados a partir desta construção.

Alguns projetos referem-se às localidades, atendendo principalmente aos moradores,outros são realizados em áreas com potencial turístico, ligando monumentos, revitalizandoespacialidades, deflagrando processos de desenvolvimento urbano. Grandes eventos comofeiras internacionais, jogos olímpicos etc têm motivado a construção de novos equipamentos10 Esta passarela é projeto dos arquitetos Mamen Domingo e Ernest Ferre e foi construída entre 1994 e 1998.11 Projeto da arquiteta Carme Pinos e dos arquitetos J.A.Andreu, M. Lluch, C. Pascual e J. Schneider, inauguradoem 1999.

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como as pontes e passarelas para integrar áreas e ampliar o raio de intervenção urbana.Segundo Scherer (2003) 12, o urbanismo nas exposições universais insere-se na problemáticaque trata de lugares e momentos de memória sujeitos a uma poética específica. Por seremeventos de caráter efêmero e festivo, as feiras e exposições possibilitam uma certa liberdade,autorizam inovações, experimentações, permitem um discurso de caráter subjetivo para comos espaços e as edificações que farão parte de seu conjunto.

Cidades como Barcelona, Lisboa, Sevilha e Hannover reestruturaram áreas às margensdo mar e dos rios para abrigar seus eventos internacionais, pensando no desenvolvimentoeconômico e social através do incentivo ao turismo na cidade. Dentre seus equipamentos,foram construídas pontes, como a Vasco da Gama em para a Expo´98 de Lisboa, La Barquetae Alamillo em Sevilha, e espaços de praças e passarelas como nos casos da orla de Barcelonae em Hannover.

A Rambla del Mar13 é a imagem mais emblemática do projeto do Port Vell emBarcelona. A arquitetura e o mobiliário urbano converteram esta Rambla numa promenadesingular sobre o mar. A passarela foi uma das primeiras obras realizadas com a intenção deabrir a cidade para o mar, integrando paisagem e espaço público numa área antes dedicada àsatividades portuárias. O projeto interage com o resto da cidade, sendo a continuação naturaldas famosas Ramblas de Barcelona, ampliando os caminhos e a possibilidade dos pedestres,sejam eles turistas ou moradores da cidade, cruzarem boa parte da cidade a pé, apreendendo aescala peatonal daquela cidade.

Para a Expo Sevilha 92, foram construídas duas pontes importantes sobre o RioGuadalquivir – a Ponte La Barqueta14 e a Ponte de Alamillo com o Viaduto La Cartuja15, queassim como outras pontes na cidade, serviram para viabilizar sua expansão e o funcionamentode sua estrutura. Projetada para atender tanto a veículos quanto a pedestres e ciclistas, a PonteLa Barqueta teve como objetivo principal unir o centro histórico à ilha de La Cartuja, ondeforam construídos os novos equipamentos para a Expo Sevilha. No início do projeto, a ponteseria somente para pedestres, mas em função das necessidades ocorridas com odesenvolvimento do projeto de ocupação da ilha como um todo, ela se tornou uma passagemtambém para veículos, aumentando a escala da estrutura e sua visibilidade na paisagem dacidade.

Parte do plano da região de Andaluzia para a Expo’ 92, a ponte de Alamillo doarquiteto Santiago Calatrava tem um traçado muito especial em função de integrar através doviaduto La Cartuja uma área de tráfego bastante intenso na cidade à parte nova construída nailha. Com pistas separadas para os fluxos de pedestres, ciclistas e veículos, o equipamentodeflagrou toda uma nova urbanização e sistema de transportes coletivos que ampliaram aindamais o tráfego na área. Sua estrutura leve e inclinada chama atenção na paisagem da cidade,simbolizando juntamente com a ponte La Barqueta a modernidade em Sevilha.

A passarela da Expo 2000 em Hannover na Alemanha também traz uma propostamuito interessante em termos de espaço público planejado especialmente para um grandeevento internacional, mas que depois permanece na cidade, tornando-se mais um equipamentourbano voltado ao turismo e ao lazer. Projeto do arquiteto Volkwin Marg16, ela se propõe adelimitar as entradas através de um “bosque” de postes luminosos, alinhados como “guardas

12SCHERER, Fabiano de Vargas. “Aspectos Urbanísticos da Exposição Internacional de Lisboa 1998”. SiteVitruvius, Arquitexto 038 de junho de 2003. 13 A Rambla de Mar é projeto dos arquitetos Helio Piñón e Albert Viaplana, responsáveis por grandes espaçoscomo a Praça dels Països Catalans.14 Esta ponte foi projetada pelos engenheiros Juan Arenas e Marcos Pantaleón entre 1988 e 1989.15 A ponte de Alamillo e o viaduto La Cartuja foram projetados pelo arquiteto Santiago Calatrava entre 1987 e1992.

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de honra”, que dividem os fluxos de pedestres. A instalação dos postes é de grandeimportância para o projeto, seja como objetos delimitadores, seja como um caminho luminosoe sinalizador, observado principalmente à noite.

Outra passarela interessante na Alemanha refere-se à Buga-Brücke über die Elbe emMagdeburg, projetada para celebrar a Exposição Federal dos Jardins de Magderburg em199917. Dedicada aos pedestres e aos ciclistas, esta obra em forma de “S” promove umatraente e sinuoso percurso sobre o rio Elba, de onde pode se ver, de diversos ângulos, umavista panorâmica dos arredores, assim como sua própria estrutura, nos mirantes encontradosem várias partes do percurso. Ainda na Alemanha, encontra-se outra ponte muito peculiar ecuriosa que promove o maior cruzamento hidroviário da Europa, possibilitando a navegaçãoininterrupta do oeste para o leste, bem como o trânsito de pedestres, realizando um velhosonho da população.

De aço e concreto por sobre o Rio Elba, ao norte de Magdeburg, a ponte, cuja formalembra o casco de um navio e é preenchida de água, liga os canais hidroviários de Mittellande Elba-Havel, promovendo a passagem das embarcações sem interrupção das bacias do Wesere Ruhr, no oeste, até Berlim, e vice-versa. Com seus 918 metros de comprimento, a ponte-canal é tida como obra de grande ousadia da engenharia18, que atrai um grande público emfunção de sua forma inovadora, convertendo-se em um espaço público de grande importânciae visibilidade naquela área.

A Ponte Millenium de Londres, projeto do arquiteto Norman Foster, em conjunto como escultor Sir Anthony Caro e a engenheira Ove Arup19, também tem como leitmotiv opedestre, público alvo deste projeto, símbolo da renovação das zonas sul e norte da cidade,ligando a Tate Modern e o Globe Theatre à Catedral de St. Paul. Concebida como um mirantepara a admiração da cidade, a partir da construção da Tate Modern a ponte transformou-senum dos lugares mais vitais de Londres, tornando-se essencial para a cidade. Segundo Arcila(2002)20, o eixo, produzido entre a cidade e a Tate Modern materializou-se com a construçãodesta ponte, que para Foster, é o principal símbolo da regeneração daquele lugar.

Como o objetivo principal do projeto era proporcionar uma vista espetacular dacidade, cada detalhe foi projetado para viabilizar esta intenção, como o design do guarda-corpo metálico vazado, pensado de forma a interferir o mínimo possível na vista, com alturaadequada para usuários de cadeiras de rodas e crianças, possibilitando o uso da ponte mirantepor todos os pedestres, convertendo-na num espaço público importante para a cidade.

A Passarela Campo Volantim de Santiago Calatrava em Bilbao21 na Espanha é maisuma das transformações vividas pela cidade nas últimas décadas. Junto ao MuseuGuggenheim de Frank Gehry, a passarela, inspirada num peixe, liga as duas margens do rio,com acessos por rampas e escadas, uma estrutura leve e inovadora e piso em placastranslúcidas, que à noite permitem passar a iluminação sob a estrutura toda branca.

16 Este projeto, construído entre 1996 e 2000, foi o vencedor do concurso, que tinha como propósito a reproduçãodeste modelo em 4 pontes construídas no espaço da Expo de Hannover.17 O projeto, resultado de um concurso aberto para o desenho desta passarela de pedestres e ciclistas foi realizadopela equipe dos Professores Laage e H.G.Burkhardt.18 A construção faz parte de um amplo projeto concebido após a reunificação da Alemanha e que prevê aconstrução e ampliação de hidrovias e portos entre Hannover e Berlim até 2015.19 Este projeto, assim como a maioria, foi resultado de um concurso de âmbito internacional. Construída entre1994 e 2000, a ponte tornou-se um símbolo da revitalização daquela parte da cidade.20 ARCILA, Martha Torres. “Puentes”. Ed. Atrium, Espanha, 2002.21 Este é um dos projetos de Calatrava, que tem um estilo muito próprio e reconhecido, principalmente através desuas estruturas leves e cor branca. Esta passarela também é chamada de Urbitarte e ponte Zubi-Zuri.

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Na margem próxima ao Museu, a passarela desemboca numa promenade22

recentemente revitalizada, constituindo-se o prolongamento deste caminho e ligação entre osdois lados. Assim como na maioria dos projetos, a integração entre esta passarela e apaisagem se faz através da urbanização dos acessos com criação de praças, travessias econdições de acessibilidade universal que permitem o fluxo de pedestres, principais usuáriosde todo aquele espaço dedicado ao lazer e ao turismo.

Um projeto que concilia a mobilidade urbana e espaço de lazer é a ponte Milênio,inaugurada em 2001 em Ourense, Espanha. Projetada pelo arquiteto Álvaro Varela e peloengenheiro Juan M.Calvo, com a combinação de concreto e aço, esta passarela de pedestreschega a subir 22 metros, dando lugar a extraordinários mirantes sobre o rio Minho através deescadas, utilizadas pelos moradores da cidade para exercícios físicos aeróbicos. Seuarrojamento converteu-a em símbolo de progresso da cidade, que assim como outras cidadesespanholas, vêm investindo maciçamente na construção de passarelas sobre seus rios, abrindonovas perspectivas para estas cidades, que exploram com estes novos monumentos o turismojunto às suas margens.

O investimento em novas pontes e passarelas destinadas aos pedestres e aos ciclistastambém tem sido grande na cidade de Paris, onde atualmente está sendo implantado um planocicloviário, que visa estimular o uso da bicicleta na cidade, com “zonas verdes”, em percursosintegrados em ambos os lados do Rio Sena. Três obras merecem destaque, seja pela belezados projetos, seja pela importância destes equipamentos para o lazer e a mobilidade urbanasustentável na cidade.

Uma é a Passarela Bercy-Tolbiac ou Simone de Beauvoir, projeto de DeitmarFeichtinger, inaugurada em 2006, que liga a esplanada da Biblioteca Nacional de Paris aoParque de Bercy, onde se localizam a Cinemathéque de Paris e a Escultura de OscarNiemeyer, inaugurada em janeiro de 2007. Esta passarela forma com a esplanada dabiblioteca uma grande praça em dois níveis, integrando através de elevadores panorâmicos,escadas e rampas o parque e as construções, e ainda o Quai de Bercy, onde se encontram umgrande estacionamento para veículos e navettes para o turismo ao longo do Sena.

A outra passarela é a Solferino de 106 metros de comprimento e largura variável de 11a 15 metros de largura. Projeto do arquiteto Marc Mimram23, ela se localiza entre os MuseusD´Orsay e do Louvre, onde desde 1859 existia a primeira passarela com o mesmo nome,destruída em 1961 por conta de um acidente. Como prolongamento da paisagem encontradanas margens do Rio Sena, a sua estrutura leve e transparente, assim como na PassarelaSimone de Beauvoir, permite o acesso por diferentes níveis, ligando o nível da rua e o níveldo cais, permitindo aos pedestres transitar de diversas formas pela área. Com bancos ao longode todo o trajeto, ela oferece um ambiente propício à contemplação da paisagem, servindo demirante e praça naquele lugar tão especial.

A mais recente das pontes parisienses é a ponte Charles De Gaulle24, com 208 metrosde comprimento e localização entre as Gares de Austerlitz e de Lyon. Inaugurada emsetembro de 1996, após três anos de obras, esta ponte oferece, além das faixas laterais parapedestres e pista para veículos uma faixa dupla especial para ciclistas, que se integra com asdemarcações da faixa verde nas proximidades, incentivando o uso da bicicleta naquelasimediações.

22 A promenade junto ao Museu tem diversos equipamentos públicos, entre os quais praças com bancos, estaçãode transbordo de bonde, espaço para crianças etc. A ponte é mais um elemento naquela área, onde a grandevedete é o Museu. 23 Projeto vencedor de concurso internacional em 1992, construída entre 1997 e 2000.24 Projeto dos arquitetos Louis Gerald Arretche e Roman Karansinski.

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Projetos com perfis semelhantes aos citados podem ser vistos em diversas cidades,principalmente na Europa, onde as passarelas têm tido destaque em função de projetosespetaculares que proporcionam espaços lúdicos de lazer para os cidadãos, ampliando osespaços públicos, os caminhos, os lugares. A construção desses projetos, de alguma forma,ajuda a humanizar as cidades, seja através da acessibilidade universal, seja através dapromoção de lugares que simbolizam prazer, indicando um modo de vida urbano mais viávele sustentável.

Inhabited Bridges.

A ocupação dos espaços sobre os leitos dos rios não se resume à criação e ampliaçãode espaços públicos dedicados ao lazer. Nos últimos anos, têm-se visto uma série de projetosde pontes e passarelas que revisitam tipologias de pontes habitáveis encontradas em outrostempos, através da instalação de atividades culturais e comerciais. O revival de antigosprojetos de pontes e passarelas, adaptados à realidade atual, não se resume, portanto, naprodução ou ampliação de espaços públicos. A função de habitabilidade das pontes em planosde desenvolvimento urbano como o de Londres para a integração das áreas do North e SouthBank25 vem demonstrar isso. O reduzido estoque de terrenos disponíveis para a construção emcidades como Londres e Boston estaria provocando o retorno aos projetos das inhabitedbridges26 dos séculos XII ao XVI, mas com um perfil contemporâneo seja em termosconstrutivos, seja na escolha das novas funções.

Esses projetos fazem parte de um plano de ocupação dos virtuais vazios urbanos, queredefinem o contexto de algumas áreas, com o intuito de dinamizar o espaço e a economiaatravés de novos equipamentos urbanos, com espaços dedicados à educação, ao lazer, aoconsumo, e em alguns casos à habitação.

No caso de Londres, foi realizado, inclusive, um concurso internacional, onde setegrandes escritórios de arquitetura, convidados pela organização, propuseram alternativas paraa ocupação do leito do rio Tamisa, em áreas passíveis de renovação urbana. A Thames WaterHabitable Bridge Competition, organizada pela Royal Academy, identificou dois locais norio, onde poderiam ser construídas as novas pontes. Os projetos de Zaha Hadid e AntoineGrumbach foram os escolhidos entre equipes integradas por Robert Krier, Daniel Libeskind,Future Systems, Branson Coates e Ian Ritchie.

A proposta de Zaha Hadid uniu a função tradicional de passagem de pedestres atravésda criação de uma promenade larga e iluminada à construção de volumes multifuncionais queagregavam moradias, escritórios, ateliers e lojas. A ponte estaria aberta 24 horas por dia,possibilitando, através dos diversos usos e atividades propostas, animação comercial, culturale recreacional, combinando espaço público com espaço privado, possibilitando o convívioentre públicos de diferentes perfis sociais e culturais.

A proposta de Antoine Grumbach teve um caráter um pouco diferente da proposta deZaha Hadid. O arquiteto priorizou, a princípio, a criação de um grande jardim, intitulando aponte de Garden Bridge, como ponto de ligação entre as duas margens. A estruturaconcebida, entretanto, deveria estar apta a acomodar uma série de novas funções ao longo dotempo. O projeto consiste em três elementos. No lado sul, o “World´s Culture Greenhouse”seria um grande espaço coberto para proteger plantas e árvores tropicais, com espaços pararestaurantes, lojas e espaços flexíveis para concertos e atividades públicas. O acesso ao nívelda ponte seria através de escadas, elevadores e rampas, possibilitando a ligação com os25 In: MURRAY, Peter. STEVENS, Maryanne. “Living Bridges. The Inhabited Bridge: Past, Present andFuture.” Ed. Prestel, Munich – N. York e Royal Academy of London, 1996.26 O termo “inhabited bridge” ou ponte povoada ou habitada, refere-se às pontes que acumulam as funções decirculação de pedestres e outros usos como habitação, comércio e serviços.

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diversos níveis do projeto e também com o seu entorno. O Garden Arcade ligaria aGreenhouse e as duas torres, projetadas para abrigar um hotel e apartamentos, bem comorestaurantes e espaços de convivência, tornando a construção atraente para um público de altopoder aquisitivo.

O escopo do concurso referia-se à criação de espaços flexíveis que pudessem, atravésda mistura de usos e atividades, permitir um grande fluxo de pessoas, espalhando pelasmargens as transformações propostas pelos projetos. Se, a princípio, o custo do “terreno” nãoseria problema, o investimento nas tecnologias construtivas seria um desafio técnico efinanceiro, seja por conta do extenso programa de atividades desenvolvidas ao longo dopercurso, seja pela criação de torres de edifícios sobre a água.

A localização privilegiada, com a possibilidade de vistas panorâmicas, concentraçãode equipamentos sócio-culturais e uma linguagem contemporânea extremamente atraentetornam estes projetos objetos de grande poder de sedução, principalmente para um público desolteiros de alto poder aquisitivo e bom nível cultural. O aumento deste tipo de consumidorem cidades como Londres, Nova York, Boston etc tem criado um novo impulso para projetosdesta natureza, assim como de outros baseados na revitalização de antigas zonas industriais eportuárias, fixando uma população com perfil distinto das anteriores nas áreas centrais.

A valorização da área em função de intervenções que privilegiam um perfil cultural ecomercial tende a excluir as populações locais ou não privilegiadas e, com elas, suasatividades tradicionais e modestamente cotidianas (Choay, 2001)27. Para Vaz (2000)28, atônica das novas intervenções, que recaem na reabilitação ou na recriação de ambienteshistóricos, na construção de equipamentos culturais marcantes, no cuidadoso desenho dosespaços públicos, no uso da arte pública e da animação cultural entre outros recursos,resultam, de uma forma geral, na gentrificação de áreas, estetização dos espaços,patrimonialização dos equipamentos, museificação das edificações, a espetacularização dosprojetos, entre outros.

Conclusões

O uso do espaço sobre os leitos de rios e vias férreas é uma alternativa a serconsiderada pelas cidades com reduzido estoque de terra e necessidade de ampliação de seusequipamentos. Os projetos podem ser de natureza social, como o caso das praças e ampliaçõesde espaços públicos ou de natureza cultural e comercial, como nas propostas de Londres.

A opção por um tipo de intervenção e não por outro se refere a interesses muitas vezessubjetivos da política urbana. Com o advento da mídia e das redes de comunicação atuais, apromoção dos lugares se faz de forma explosiva e glamourosa, através de projetosemblemáticos, de grande apelo estético, muitas vezes com tendência à culturalização e àexploração dos potenciais turísticos, tais quais os projetos de Calatrava e as inhabited bridgesde Londres.

A convivência de situações contraditórias é típica da cidade contemporânea dispersa efragmentada. Cada espaço constitui-se um cenário, que se nutre das transformações einovações proporcionadas pelo avanço das tecnologias, observadas através do uso deelementos de grande apelo visual, que marcam a paisagem urbana com traços distintos, quepouco se articulam, explicitando as diferenças inerentes ao crescente processo deglobalização.

27 CHOAY, Françoise. “A alegoria do patrimônio”. Estação Liberdade: Ed. Unesp, SP, 2001.28 VAZ, Fessler Lilian. JACQUES, Paola Berenstein. “Reflexões sobre o uso da cultura nos processos derevitalização urbana”, IX Encontro Nacional da ANPUR, Rio de Janeiro, 2000.

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A valorização da arquitetura das pontes e passarelas reflete-se na necessidade de sefazer de intervenções urbanas obras notáveis. A contratação de grandes escritórios29, queajudam a criar uma atmosfera de glamour e habitabilidade em espaços até então poucoconvidativos, é um indicativo da importância destes equipamentos não apenas para amobilidade urbana, mas também para a construção simbólica da cidade.

A tendência à estetização dos espaços urbanos através da arquitetura, do paisagismo,da iluminação, do design e da arte pública, por um lado transforma as áreas eleitas em espaçoshomogêneos e cenográficos, causando, muitas vezes, a gentrificação sócio-espacial30 e aexclusão cultural (Jeudy, 2003)31, mas por outro possibilita a expansão dos espaços públicosna cidade.

A construção de “praçarelas” e espaços habitáveis sobre as linhas férreas e leitos derios pode ser uma alternativa extremamente positiva se apropriada socialmente. Estes projetospodem criar novas centralidades em áreas anteriormente sem perspectivas, facilitando aacessibilidade e a mobilidade de pedestres, bem como valorizando as espacialidades em quesão instaladas, contribuindo para uma melhor distribuição da infra-estrutura urbana e para oexercício da cidadania.

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Nova Agenda para a Arquitetura. Ed. CosacNaify, SP, 2006.29 As novas pontes e passarelas urbanas têm sido projetadas por equipes gerenciadas por arquitetos de renomeinternacional, como Norman Foster, Marc Mimram, Santiago Calatrava, entre outros, que marcam com seustraços contemporâneos as paisagens de espaços passíveis de transformação.30 ARANTES, Otília Beatriz Fiori. “Uma Estratégia Fatal. A cultura nas novas gestões urbanas.” In: ARANTES,O., VAINER, C. e MARICATO, E. A Cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis,Editora Vozes, 2000.31 JEUDY, Henri-Pierre. “Espelho da Cidade”. Ed. Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2005.

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