ABHR2013Texto Completo GRArduini

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Uma abordagem comparativa entre quatro autores cariocas da década de 1920: Jackson de Figueiredo, Jônathas Serrano, Hamilton Nogueira e Leonel Franca Guilherme Ramalho Arduini 1 Resumo O objetivo do artigo é comparar as trajetórias de quatro autores cariocas da década de 1920, selecionados por apresentarem algumas características em comum. Talvez a mais importante fosse a participação na empreitada aberta pelo Cardeal Sebastião Leme, de conferir a um grupo restrito de leigos bem formados a missão de atuarem na defesa dos interesses da Arquidiocese do Rio de Janeiro (e de uma forma indireta, de toda a Igreja Católica no Brasil) no efervescente meio político e cultural da então capital do país. Além disso, estes personagens estavam nos anos iniciais de sua vida profissional, eram migrantes na capital federal e conciliavam uma carreira de profissionais liberais com a ocupação de cargos públicos em escolas, universidades e órgãos de administração escolar. Seus escritos partilhavam de uma necessidade sentida por todos eles de traduzir suas convicções católicas nas suas produções a respeito da estética, política ou ciência. Diante dos critérios utilizados, destacam-se os nomes de Jackson de Figueiredo, Jônathas Serrano, Hamilton Nogueira e Leonel Franca. O artigo pretende examinar como foram as trajetórias familiares destes autores, suas escolhas de curso universitário e a carreira profissional que tiveram. Por fim, desenvolve em linhas gerais a reação aos escritos destes personagens na imprensa carioca do período. Isso permitirá constituir com maior nitidez o conjunto de fatores que ajudam a explicar suas obras, isto é, saber em que medida faz sentido escrever sobre a figura do “intelectual católico” no Brasil dos anos 1920 e 1 Mestre em História pela Unicamp. Doutorando em Sociologia pela USP. 1

Transcript of ABHR2013Texto Completo GRArduini

Uma abordagem comparativa entre quatro autorescariocas da década de 1920: Jackson de Figueiredo,Jônathas Serrano, Hamilton Nogueira e Leonel Franca

Guilherme Ramalho Arduini1

Resumo

O objetivo do artigo é comparar as trajetórias de quatroautores cariocas da década de 1920, selecionados porapresentarem algumas características em comum. Talvez a maisimportante fosse a participação na empreitada aberta peloCardeal Sebastião Leme, de conferir a um grupo restrito deleigos bem formados a missão de atuarem na defesa dosinteresses da Arquidiocese do Rio de Janeiro (e de uma formaindireta, de toda a Igreja Católica no Brasil) noefervescente meio político e cultural da então capital dopaís. Além disso, estes personagens estavam nos anos iniciaisde sua vida profissional, eram migrantes na capital federal econciliavam uma carreira de profissionais liberais com aocupação de cargos públicos em escolas, universidades eórgãos de administração escolar. Seus escritos partilhavam deuma necessidade sentida por todos eles de traduzir suasconvicções católicas nas suas produções a respeito daestética, política ou ciência. Diante dos critériosutilizados, destacam-se os nomes de Jackson de Figueiredo,Jônathas Serrano, Hamilton Nogueira e Leonel Franca. O artigopretende examinar como foram as trajetórias familiares destesautores, suas escolhas de curso universitário e a carreiraprofissional que tiveram. Por fim, desenvolve em linhasgerais a reação aos escritos destes personagens na imprensacarioca do período. Isso permitirá constituir com maiornitidez o conjunto de fatores que ajudam a explicar suasobras, isto é, saber em que medida faz sentido escrever sobrea figura do “intelectual católico” no Brasil dos anos 1920 e

1

Mestre em História pela Unicamp. Doutorando em Sociologia pela USP.1

quais seriam as suas características.

Introdução

A década de 1920 vê se consolidar um grupo de

intelectuais cuja identidade nasce da confluência de

interesses em atender ao chamado do Cardeal Sebastião Leme

por um novo papel do laicato, especialmente do grupo de

letrados, que deveriam assumir para si a tarefa de atuar

sobre o meio artístico e literário do país, então

majoritariamente contrário aos católicos.2 A bibliografia a

respeito tem claramente apontado o Cardeal como o catalisador

que permitiu aos jovens interessados em defender a fé

encontrar seu espaço de atuação. Resta, no entanto, a

compreender quem respondeu positivamente a esse chamado e

porque o fez. Quais as condições para a emergência de um tipo

de intelectual para o qual o fato de ser católico pudesse

representar algo de importante? Como isso se manifestou nos

temas e nas ideias desenvolvidas em seus escritos? Para esse

artigo, foram escolhidos quatro representantes deste grupo

cujos textos dialogam entre si, fato que permite perceber

como os contemporâneos ao autor leram seu texto. Além disso,

estes são os autores do grupo cujas trajetórias sociais são

mais bem conhecidas, fato que permite comparações entre eles

2 Cabe aqui apenas a menção à Carta Pastoral de Dom Leme ao assumir aDiocese de Olinda e Recife em 1916, arquiconhecida como uma espécie demomento fundante dessa estratégia, que viria ser posta em prática duranteseu período como bispo e depois Cardeal do Rio de Janeiro.

2

a fim de estabelecer pontos comuns e singularidades que

reverberem em suas trajetórias.

O principal espaço de convivência entre estes autores

foi a revista A Ordem, publicada mensalmente. Seu nome dá o tom

de suas doutrinas, sobre as quais há estudos consolidados

(RODRIGUES, 2006). Foi para prover a revista de artigos e de

ajuda financeira que se criou o Centro Dom Vital, o projeto

mais forte de união entre estes personagens. Embora Leonel

Franca tenha assumido o papel de diretor espiritual da

instituição apenas após a morte de Jackson, ele acompanhou de

perto a iniciativa pioneira dos outros três, na qualidade de

confessor e amigo íntimo de Figueiredo. Dado que a instalação

do Centro e seu funcionamento interno já foram um texto deste

mesmo autor (ARDUINI, 2012), o enfoque aqui será mais

compreender o modo como as trajetórias pessoais se cruzam

dentro da instituição e menos as maneiras pelas quais a

instituição molda os indivíduos que passam por ela.

Outro ponto de contato das trajetórias diz respeito aos

temas que os motivaram a pegar na pena durante a década de

1920. Entre os autores escolhidos, Figueiredo foi aquele que

publicou mais obras: Afirmações e Do nacionalismo na hora presente

(ambos de 1921); Pascal e a inquietação moderna e Reação do Bom Senso

(ambos de 1922) e Literatura reacionária (1924). Dois dos livros

são voltados ao comentário sobre a situação política do país

no período. Os outros três versam sobre filosofia e

literatura. Existe, porém, uma linha contínua que percorre

3

todas as obras: a percepção de que tudo está em crise – o

país, o mundo, as artes e a filosofia. E que a solução para

esse estágio de crise estaria na volta a certos valores

tradicionais, esquecidos pela modernidade, dos quais o mais

importante seria a religião católica.

Leonel Franca redige nesse período suas diferentes

edições das Noções de História da Filosofia, a última das quais data

de 1928 e aponta para o retorno da metafísica e da

preocupação com a transcendência como as tendências da

filosofia contemporânea. É também desse período outro livro

seu bastante comentado pelos críticos, mas do qual o artigo

se ressente da falta de acesso para conhece-lo: A Igreja, a

Reforma e a Civilização. Os outros dois autores compartilham o

costume de escrever biografias de nomes famosos dentro da

cena católica brasileira, uma estratégia que serviria tanto

para confirmar a importância de seu objeto de estudo quanto

para se afirmar como escritores. Serrano publica Júlio Maria em

19243, enquanto Nogueira faz aparecer seu Jackson de Figueiredo em

1928. Embora não tivesse sido concebido por este motivo, o

livro acabou coincidindo com a morte do biografado. Poucos

meses depois, já pensado desde o início como uma homenagem

póstuma, A Ordem publica um número especial a seu respeito,

que também fará parte de nossas fontes pesquisadas.

3 Júlio Maria foi um promotor público que decidiu tornar-se padre ao finaldo Império, sendo ordenado em 1891. Tornou-se um pregador itinerante deconsiderável sucesso na defesa dos valores do catolicismo em umasociedade que vivia a separação oficial entre Igreja e Estado.

4

Algumas biografias sobre os personagens nos ajudarão a

selecionar elementos importantes dessas trajetórias, mas elas

serão utilizadas por motivos distintos entre si. A obra de

Hamilton Nogueira e o volume especial d’A Ordem podem ser

compreendidos em suas diversas camadas, isto é, tanto como

fonte de informação sobre o biografado quanto sobre o próprio

autor e o momento em que ela foi escrita, ainda dentro de

período de interesse desse artigo. As outras biografias foram

redigidas em contextos bastante distintos desse, por pessoas

que não necessariamente conviveram com os biografados, mas

que desejavam homenageá-lo. Apesar destas limitações, aportam

informações relevantes para a pesquisa.

Para cumprir seus objetivos, este texto se dividirá em

duas partes, logo após essa introdução. Na primeira delas,

estarão em pauta as trajetórias sociais destes personagens:

sua origem social e familiar, seus estudos (até a

universidade) e a ocupação profissional anterior e

concomitante à atuação na imprensa e nos livros. Na segunda

parte, será a vez dos livros produzidos pelos próprios

personagens citados, que nos permitem enxergar a posição

destes autores em alguns dos debates mais importantes do

período. Para fechar o texto, as considerações finais

apresentam algumas interpretações mais gerais.

Parte I: Perfil comparativo dos personagens

5

Todos os quatro nomes citados nasceram entre 1885 e

1897, 4 o que implica em dizer que na década de 1920 eram

jovens em busca de afirmação social e profissional. Apenas

Jônathas Serrano é natural do Rio de Janeiro, embora todos

tenham exercido sua carreira nessa cidade. Hamilton Nogueira

nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro e criou-se em

Niterói. Jackson de Figueiredo nasceu e cresceu no Sergipe e,

por fim, Leonel Franca nasceu no extremo sul do país, mas

viveu boa parte de sua infância na Bahia até perder a mãe e

ser acolhido, graças ao auxílio de um tio religioso, no

colégio dos jesuítas em Nova Friburgo. Ele não foi o único

com histórias de crise familiar: Serrano foi criado pela mãe

e pela avó materna e Figueiredo vinha de duas famílias em

franco processo de decadência financeira. Seu avô materno

perdeu toda a fortuna da família e seu pai teve de trocar a

faculdade de Medicina pela de Farmácia, pois não tinha

condições de arcar com as despesas do curso. Durante a

infância de Jackson, Luiz Figueiredo teve de deixar este

emprego por conta de uma doença grave e atuou como professor.

Este aspecto é importante para compreender a dificuldade

deste autor se instalar no Rio de Janeiro, de onde escrevia

cartas a seus amigos nas quais frequentemente reclamava da

falta de perspectivas de melhorias por não ter contatos que

pudessem ajudá-lo nem uma fortuna capaz de lhe oferecer a

4 Por ordem cronológica, as datas de nascimento são: 1885 -- JônathasSerrano; 1891 -- Jackson de Figueiredo; 1893 – Leonel Franca e 1897 –Hamilton Nogueira.

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tranqüilidade necessária para trabalhar seus próprios textos.

(FERNANDES, 1989) (Outra influência possível, mas muito mais

difícil de comprovar taxativamente, é de que a instabilidade

do pai tivesse ajudado a fazer crescer em Jackson uma

personalidade igualmente instável, dada a exageros de um lado

e a crises de saúde física e mental, de outro.) Além desses

traços em comum, Serrano e Figueiredo possuem o fato de que

ambos são formados em Direito, mas nunca exerceram profissão

que fosse ligada ao título que obtiveram.

A ausência do apoio da figura paterna marcou, portanto,

as carreiras destes personagens, limitando em certa medida o

leque de opções disponíveis de empregabilidade, ao mesmo

tempo em que os forçou a migrar com destino à capital federal

em busca de mais oportunidades. Franca constitui um caso à

parte porque se tornou clérigo e cursou as faculdades de

Filosofia e de Teologia em Roma, o que equivale a dizer que

foi escolhido para desfrutar da melhor formação possível. Seu

exemplo confirma a lógica descrita por Sergio Miceli (2001)

para os seminários católicos, que sempre contaram entre seus

numerosos alunos do período com alguns que receberam o apoio

de alguma autoridade eclesiástica para formarem a elite

clerical.5 A oportunidade foi bem aproveitada, a ponto de

5 No caso de Dom Leme, foi essencial a figura de Dom Duarte Leopoldo eSilva, então bispo de São Paulo. Este grupo estava em oposição a outrosseminaristas, que na sua tentativa de ascender ao episcopado e outroscargos cobiçados contavam com o auxílio das suas poderosas famílias deorigem, geralmente ligadas ao controle político e econômico de algumestado da federação.

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Franca ter sido convidado a permanecer em Roma como professor

do mesmo instituto onde estudara. Entretanto, obteve a

permissão de voltar ao Brasil como desejava, em grande medida

por conta de sua saúde frágil. (D’Elboux, 1956) Sobre o

período de estudos de Hamilton Nogueira, pouco se sabe,

exceto que cursou Medicina na capital federal e logo depois

de formado foi trabalhar em Muzambinho, onde conheceu

Figueiredo.

Em termos de reconhecimento social e profissional, os

quatro encontravam-se em níveis bastante desiguais no começo

da década de 1920. Leonel Franca já havia escrito no final da

década de 1910, durante seu primeiro período de estudos em

Roma, seu compêndio Noções de Filosofia, que seria reeditado com

acréscimos duas vezes durante a década seguinte. Por este

motivo, era nome já reconhecido nos meios católicos

brasileiros. Figueiredo também havia obtido algum destaque

por suas obras e por sua participação na imprensa, mas estava

longe de ser consensual. Optou por um caminho distinto de

Franca ao dedicar-se aos artigos de jornal e pequenas obras,

em geral publicadas por editoras sem grande renome. Seu

estilo agressivo de escrita e sua necessidade confessada de

publicar às pressas para cobrir necessidades financeiras

contribuíam para diminuir o apego a seu nome, mas estes dados

não lhe impediram de ser a principal liderança do laicato

católico até sua morte, em 1928.

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Serrano havia se formado em Direito, em 1909, e desde

então exercera o magistério. Publicara um livro sobre o

notariado em 1917 e um manual de Filosofia do Direito em

1920, mas nenhum deles conheceria o mesmo sucesso de seus

manuais de História da década de 1930, cujas vendas

desdobraram-se em diversas edições. Assim que Hamilton

Nogueira regressou ao Rio de Janeiro, em 1921, obteve um

cargo no Hospital D. Pedro II e se tornou professor

universitário de Medicina, dando início a uma longa carreira.

Mas seu primeiro livro seria a biografia publicada em 1928.

Nos quatro casos, suas carreiras estiveram parcial ou

totalmente ligadas ao ramo da educação. Serrano foi professor

de História e participou da reforma educacional empreendida

por Fernando Azevedo na capital federal em 1928. Figueiredo

atuou como professor de ensino secundário e superintendente

das instituições escolares do Ministério da Agricultura;

Nogueira fez brilhante carreira no ensino de Biologia e

Medicina em diversas instituições. A partir de 1929, foi

livre-docente na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Leonel Franca esteve sempre ligado ao ensino no colégio de

sua ordem no Rio de Janeiro. O resultado desse envolvimento é

que nas décadas seguintes eles participariam de projetos de

faculdades e universidades confessionais, especialmente

Leonel Franca, a quem se deve em grande medida a fundação da

PUC-RJ, a primeira de seu gênero no país. Não há como dizer,

portanto, que eles estivessem alheios aos interesses da

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Igreja no ramo educacional, embora nesse momento não

estivessem necessariamente ligados a tais projetos

diretamente.

O início da vida profissional destes quatro personagens

se deu, portanto, em um período marcado pela abertura de uma

nova frente de atuação para a Igreja Católica e, em especial,

a Arquidiocese do Rio de Janeiro. Este projeto incluía tanto

a inauguração de uma rotina de produção intelectual quanto à

fundação de mais escolas e, a partir da década de 1930,

universidades católicas. Com a exceção de Figueiredo, cujo

acidente fatal em 1928 interrompeu subitamente a carreira,

todos os outros estiveram diretamente envolvidos neste

processo. É relevante levar isso em conta no momento de

analisar sua produção escrita, visto que os textos e as ações

são duas faces da mesma trajetória.

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Parte II: Os livros

Em Afirmações, Figueiredo analisa a história da literatura

brasileira e termina por avaliar certos autores de seu tempo,

como Xavier Marques6. Dedica seu livro a Alceu Amoroso Lima e

se diz consciente de que o único critério adotado para

avaliar as obras foi a certeza de que tudo que existe de

positivo na civilização ocidental é criação da Igreja

Católica. Desse modo, Machado de Assis é classificado como

estéril por sua ironia cética e materialista, em oposição a

Xavier Marques, tido como exemplar. Mas o livro não trata

exclusivamente de literatura; a política aparece através da

discussão sobre o papel das revoluções na história dos

países. A palavra “revolução” é compreendida nesse contexto

como os movimentos de independência das colônias americanas

frente às metrópoles européias. Figueiredo apresenta uma

avaliação ambígua a esse respeito, baseado em Charles

Maurras:

Desde já o que é preciso determinar é a nossatradição, a tradição realmente brasileira, paraque nos guie o verdadeiro espírito histórico danossa nacionalidade. Não tem pouca razão CharlesMaurras quando observa que a verdadeira tradiçãode um povo não pode ser a das suas revoluções,por mais felizes que se nos apresentem. Dadas,

6 Xavier Marques nasceu na Bahia, em 1861, e destacou-se como jornalista eescritor. Foi deputado estadual na Bahia de 1915 a 1921 e federal de 1921a 1924. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1919. Faleceuem 1942.

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porém, as condições especiais em que se formaramos povos americanos, é força confessar que arevolução nem sempre pode ter para nós o caráternegativo com que aparece na história das naçõeseuropeias. (FIGUEIREDO, 1921a, p. 160)

Charles Maurras, citado no trecho acima, foi um pensador

francês da última década do século XIX e primeira metade do

século XX, com quem Figueiredo mantém uma relação de

admiração e afastamento, ao mesmo tempo. A admiração ocorre

por conta do elogio que este autor faz do papel da autoridade

como mantenedora da ordem. E o afastamento se dá a partir da

polêmica condenação do politique d’abord -- lema central no

pensamento maurrasiano, que exprime sua crença de que todos

os aspectos da vida social (inclusive o religioso) nascem da

política. A ideia apresentada no trecho acima exprime outra

tônica comum a diversos escritos de Figueiredo: no caso dos

países latino-americanos, o nacionalismo se define em relação

à luta contra as consequências da colonização europeia.

Para Figueiredo, esta não seria uma luta inconclusa no

caso do Brasil, e por isso se tornaria o tema de seu livro

seguinte: Do nacionalismo na hora presente (1921). Nele procura

explicar as razões de seu sentimento antilusitano. Não se

trata de condenar a colônia portuguesa, mas de exigir dos

brasileiros uma postura mais firme contra os privilégios que

esta colônia possuía em nosso meio. Segundo Figueiredo, os

portugueses dominavam o comércio e a imprensa no Brasil e

sufocavam as possibilidades de os brasileiros se12

desenvolverem de forma autônoma. Ainda, o patriotismo seria

algo natural e perfeitamente católico, e se trabalhado por

uma elite bem preparada poderia se transformar em um

movimento de ideais superiores, o nacionalismo.

O livro deixa claro que nem toda influência dos

portugueses foi ruim. Os brasileiros deveriam respeito aos

portugueses por sua herança em nosso meio, e não menos

importante pela religião católica deles herdada. Mas

Figueiredo considera os portugueses residentes no Brasil tão

estrangeiros como quaisquer outros povos, ou como são os

brasileiros em outras terras. Caberia às autoridades

brasileiras prezar pelo que é do país. Portanto a crítica se

dedicaria mais aos próprios brasileiros que não sabem cuidar

do que é seu do que aos portugueses.

A obra seguinte de Figueiredo foi Pascal e a inquietação

moderna, ensaio de filosofia no qual seu autor desejava se

estabelecer na cena intelectual ao promover a imagem de

Pascal. O objetivo do livro é definido nos seguintes termos:

Busquei mostrar somente o que, no individualismomoderno – note-se bem a repetição, porque não merefiro só ao contemporâneo – em suas diversasmanifestações, religiosidade, filosofia, poesia,mais se ressente da influência do grande pensadorfrancês. A meu ver, nada também nos interessamais a nós, brasileiros, de cultura tãoacentuadamente francesa, que a lição do martírioespiritual daquela raça, de ideias e sentimentosmodelados pela força benéfica da Igreja, domomento em que rompeu violentamente o quadro de

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tradições da sua atividade intelectual.(FIGUEIREDO, 1922a, 10-1)

A aposta (para usar um termo pascaliano) de Figueiredo é

de que a preocupação religiosa do autor francês poderia

interessar à cena intelectual brasileira de seu período e,

dessa forma, trazer o centro do debate para um terreno que

lhe fosse favorável. Em certa medida, descreve a si próprio

ao definir a imagem de Pascal como um filósofo que pecou por

alguns excessos, como o jansenismo, mas que nunca deixou de

acreditar na Igreja Católica como a realidade última do

homem. Figueiredo quer convencer seu leitor de que Pascal não

foi um filósofo individualista nem acreditou que a realidade

última do mundo fosse trazida pela razão. Portanto, ele se

encontraria do lado oposto a Descartes, base da filosofia

moderna.

Outra forma de compreender este ensaio é compará-lo ao

título Noções de filosofia moderna7, de Leonel Franca, na medida em

que ambos são tentativas de fundar os cânones a partir dos

quais os filósofos ditos “católicos” deveriam produzir. Mais

precisamente, eles cumprem tarefas complementares: Franca

fornece as linhas gerais, isto é, de uma visão global da

história da filosofia. Isso inclui indicar quais são os

7 A versão que analisaremos algumas páginas abaixo será a de 1928, mas aprimeira e a segunda publicações datam respectivamente de 1918 e 1921,portanto anteriores ao livro de Figueiredo.

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“bons” autores, de quem se pode extrair alguma lição ou ao

contrário quais devem combatidos.

Depois de Franca apontar a trilha a seguir, restava a

Figueiredo ocupar seu espaço através de um trabalho mais

intensivo sobre uma filosofia específica. Sua escolha se deu

por um filósofo posterior a Descartes, portanto em diálogo

com a filosofia moderna. Outros nomes fundamentais da

doutrina católica, como Santo Agostinho ou Santo Tomás, não

atenderiam a este critério, o que poderia ajudar a

compreender a escolha por Pascal. Com isso ele permanece

inscrito nos cânones filosóficos já estabelecidos, mas aberto

a uma interpretação favorável ao projeto de tornar a Igreja

Católica a legitimadora de todas as esferas sociais no Brasil

dos anos 1920. Também trabalha a favor dessa escolha o fato

de se tratar de um autor francês, país tido como modelo do

pensamento filosófico no Brasil. Pela soma de todos esses

fatores, o resultado é que Pascal é considerado como o

filósofo que respondia à angústia do homem moderno:

Pascal e a angústia são o elemento que maisvivamente agita a consciência contemporânea,sendo causa de primeira ordem, não só da reaçãoespiritualista que vai estrangulando omaterialismo moderno, mas também da já tão notadarenascença, senão católica de um a outro extremo,pelo menos, cristã, entre as camadas intelectuaissuperiores, em todo o Ocidente. (FIGUEIREDO,1922a, 159)

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Nessa perspectiva, o último capítulo é carregado de

citações a autores estrangeiros influenciados por Pascal --

como Renouver, Sully Prod’homme, Goethe, Lamartine e Bergson

– aos quais se acrescenta o nome de Auguste Comte, sobre o

qual afirma: “(...) foi, na verdade, um descendente de

Pascal, a quem faltou simplesmente um pouquinho mais da

verdadeira humildade cristã. Cético na ordem intelectual,

ninguém mais do que ele se revelou crente do sentimento, da

ordem afetiva.” (FIGUEIREDO, 1922a, 196)

A citação é ainda mais importante se levarmos em conta

que os positivistas consistiam, para Figueiredo, no principal

inimigo dos católicos e que voltariam a ser o tema de outros

livros, como a Reação do Bom Senso (1922), coletânea de artigos

publicados em O Jornal. A maioria dos artigos tem temas

relacionados à eleição presidencial de 1922, durante a qual

surgiu a malfadada campanha contra Arthur Bernardes. Ele foi

alvo de uma série de cartas supostamente falsas atribuídas a

ele e que desprezariam a importância do Exército. O quadro

traçado nos artigos escritos durante a campanha é de um país

à beira do abismo do caos por ação de alguns desordeiros no

Exército, inspirados por teses “positivóides”.

Por este termo, Figueiredo pretende diferenciar os

verdadeiros positivistas, para os quais reservava o respeito,

dos que interpretam de forma equivocada os preceitos de uma

crença que teria tudo para ser conservadora. Outros alvos da

crítica são: Nilo Peçanha (opositor de Artur Bernardes na

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eleição de 1922), Edmundo Bittencourt (dono do Correio da

Manhã) e Oldemar Lacerda, que foi um dos inventores das

cartas atribuídas a Artur Bernardes, nas quais o presidente

em exercício teria demonstrado falta de consideração pelas

forças armadas. Parte dos militares apoiou a campanha de Nilo

Peçanha, que contou também com o suporte de oligarquias

descontentes com o status quo – como era o caso da Bahia, Rio

Grande do Sul e Rio de Janeiro – e a realização de comícios

populares.

Todas as práticas da Reação Republicana foram duramente

criticadas por Figueiredo, inclusive o envolvimento dos

militares na subversão. Um tema recorrente no livro é de que

os militares deveriam manter-se em suas casernas e deixar de

fazer política. Para Figueiredo, existe uma continuidade

entre o liberalismo da Reação Republicana, o apego à

maçonaria que ele identifica em Nilo Peçanha e o

“positivoidismo” dos militares. Tudo concorreria para a

destruição da ordem pública e da Autoridade legalmente

constituída, em benefício de uma democracia popular que

levaria ao caos.

É relevante destacar que Jackson não mistura a

democracia popular com o regime republicano. Este não é

condenado; seus erros são os mesmos do Império, tais como a

Igreja subjugada ao poder civil e a maçonaria/liberalismo

contaminando a cultura nacional. Críticas também sobravam

para os principais apoiadores da Reação Republicana, como é o

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caso de José Joaquim Seabra (presidente da Bahia e vice na

chapa de Nilo Peçanha) e de Borges de Medeiros (presidente do

Rio Grande do Sul, apoiou Nilo Peçanha). A coletânea é

resultado da reunião de textos publicados em O Jornal,

interrompida de forma abrupta, com uma “Nota Final”

reproduzida no livro que não explica muito bem o porquê do

final da colaboração no jornal. Ela apenas afirma que a

revolução estava derrotada depois do levante de julho de

1922, rapidamente sufocado por Epitácio Pessoa.

O livro permite enxergar um Figueiredo totalmente imerso

nas disputas políticas nacionais, o que confere outra cor às

suas ideias. Os nomes de Joseph de Maistre e De Bonald são

constantemente citados, além de Santo Tomás de Aquino,

principal referência para argumentar que a obrigação de todos

os descontentes era resistir aos desmandos dentro da

legalidade, sem contestar a ordem estabelecida. Mas a maior

parte do livro são comentários diretos sobre a vida política

partidária brasileira, produzidas sob o impacto dos

acontecimentos.

Em Literatura Reacionária, reunião de diversos artigos

publicados na imprensa carioca ao longo do ano de 1924,

Figueiredo volta suas atenções para os nomes que povoam seu

universo de referências e de modelos de pensamento. Com

Ronald de Carvalho e Tristão de Athayde, o debate é sobre a

função da arte e a necessidade de que ela esteja relacionada

à moral e à defesa da ordem. Figueiredo também mira na

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literatura portuguesa, comentando os trabalhos de Antonio

Sardinha e Fialho de Almeida, e na literatura francesa,

comentando autores católicos como Paul Bureau e Henri Massis.

Seus colegas de Centro Dom Vital também não deixam de ser

citados, a começar por Leonel Franca, cujo elogio ao à

segunda edição de Noções de História da Filosofia o eleva ao estatuto

de obra criadora de uma tradição da filosofia católica no

Brasil:

O padre Leonel Franca é, como disse, autor de uma“História da Filosofia”, de que a segunda ediçãoconstituía, por assim dizer, a sua revelação aomundo das letras brasileiras. (...) talvez só pormodéstia não deu em volume à parte as últimas cempáginas que são, realmente, a primeira tentativaséria de uma história das ideias no Brasil, deuma história e de uma crítica dessas mesmasideias, do ponto de vista de um sistema comdireito de cidade no mundo da filosofia, no caso,graças a Deus, o da filosofia tradicional,católica. (FIGUEIREDO, 1922a, 29)

Jonathas Serrano também merece comentários pela sua obra

a respeito de Júlio Maria. Ela é considerada como uma

conquista para o mundo das letras católicas brasileiras,

tendo em vista a capacidade de seu autor de saber aliar seu

apego ao tema com uma capacidade de análise objetiva do

pensador. Nestes e nos demais artigos, a sustentação da

definição do que consiste uma obra católica – de literatura,

filosofia ou história -- se dá por meio da ideia de que toda

obra possui em si um conceito de moral e de ordem. E que,

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portanto, nem a arte é indiferente aos problemas concernentes

a estas duas ordens de valores. Para Figueiredo, é impossível

que uma ação humana seja moralmente neutra – ou ela é boa ou

é ruim – e isso vale também para a obra de arte. E para saber

se a obra é moralmente boa, o único guia confiável é a

própria Igreja Católica, cuja doutrina moral se mostra

igualmente válida, hoje e sempre. A conclusão é de que toda

obra de arte precisa satisfazer igualmente os requisitos

impostos por uma estética – que Figueiredo não define qual –

e pela doutrina católica.

Essa ideia se torna mais evidente ao longo da crítica ao

francês Henri Massis, que vem em auxílio à sua definição de

arte. Se toda atividade humana é moral, logo ela expressa a

ordem moral presente na consciência de seus autores. Mas

também é necessário que tenha senso estético, que persiga o

belo. Ora, o belo, o bom e a verdade se identificam; se a

realidade mais profunda das coisas é aquela proferida pela fé

católica, logo, ela deveria estar presente nessa realidade

mais profunda. Portanto, para o crítico católico não basta

que uma obra seja esteticamente bela; é preciso que ela

expresse, de algum modo, a verdade da única fé verdadeira.

Figueiredo aplica um raciocínio semelhante à sociologia, a

partir das considerações de Bureau, parâmetro para medir como

deveria ser um bom sociólogo cristão, em consonância com a

ideia de que a sociologia – assim como a arte – tem seu

aspecto moral que precisa ser valorizado:

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Bureau, para quem a ciência era sempre amoral,julgava que a sociologia poderia ser organizadacomo outra qualquer ciência, mas “completada”pela “arte social”, “a arte de conduzir asinstituições sociais”, de “dirigir a açãohumana”, porque o espírito humano – dizia ele –“jamais fica inteiramente separado das aplicaçõespráticas”. 8

O acerto de Bureau estaria no equilíbrio deste novo

conceito de sociologia, capaz de evitar dois extremos. Entre

as teses que conferiam um peso exagerado a forças impessoais

e outras a proclamar a força das grandes individualidades

como formadoras de uma sociedade, Bureau teria permanecido

“no meio termo aconselhado há séculos pela Igreja Católica

(...) afirmando ainda a existência de uma lei moral

transcendente.”9

Em seu compêndio de Filosofia, Leonel Franca estabelece

uma hierarquia entre os filósofos. No Brasil, por exemplo,

tudo que teria sido escrito antes deste período era digno de

reprovação, como é o caso de Sylvio Romero. Para Tobias

Barreto, existe até uma cerca condescendência tendo em vista

que ele aceita a presença de um padre em seu leito de morte.

Essa ato é entendido como uma aceitação de Barreto da

validade da religião. Ao contrário destes autores, Farias

Brito é visto como o modelo de intelectual a ser reproduzido,

pois seu sistema filosófico permite conceber ligações com a

8 Pp. 162-3.9 Pp. 162-3.

21

metafísica religiosa e transformar a filosofia em antesala da

teologia.

A estrutura de Júlio Maria é feita de duas partes: a

primeira se dedica ao promotor e a segunda ao padre. Em sua

curta vida política, ocorrida no final do Império, o promotor

não se envolveu com o abolicionismo e nem com o

republicanismo. Jonathas Serrano descreve-o como alguém que

encontrou o princípio do liberalismo na ação do partido

coservador, mas que em nenhum dos partidos conquistou o apoio

necessário para tornar-se deputado. A justificativa de

Serrano para o fato de Júlio Maria não fazer parte dos

abolicionistas era a de que ele era favorável a uma abolição

lenta e gradual, que ficasse para as gerações seguintes.

(Vale dizer que era essa a opinião mais conservadora no

cenário político). Sobre sua vida de padre, o clímax do livro

são suas palestras realizadas em Belém do Pará no ano de

1902. A imprensa local confere grande espaço aos artigos de

opinião de militares positivistas, mas também abre espaço

para defensores de Júlio Maria, como é o caso de Farias

Brito. Neste e em todos os outros fatos narrados pelo livro,

a tentativa de Serrano é chamar a atenção para a capacidade

de Júlio Maria em converter sua erudição e sua habilidade

retórica em benefício das pregações que realiza. Ele

simbolizaria, portanto, a união perfeita entre fé e

inteligência, servindo como modelo a todos os católicos

daquele momento. A primeira semente estaria lançada pelo

22

exemplo, mas a plantação deveria continuar com a ação de

novos filósofos e teólogos, pois Serrano faz questão de

enfatizar que nem Júlio Maria nem Farias Brito poderiam ser

considerados verdadeiramente filósofos. Antes do que isso,

eles teriam iniciado incursões no mundo intelectual que

deveriam ser sucedidas pelos esforços de outros, como deixa

perceber a seguinte passagem:

Cabe aos intelectuais a reação que Júlio Mariachamou a “revolução do pudor”, usando daexpressão de Lamartine para o movimento políticofrancês de 1848. É oportuno reler o que, em 1909pregava o eloquente orador da Catedral:“Eia, homens de letras! Eia, também, artistas!Iniciai no Brasil a revolução do pudor; queninguém vos saia ao encontro com fórmulas vãs,romantismo ou realismo, na prosa, parnasianismoou simbolismo; no verso; fórmulas vãs, repito. Sóhá duas literaturas: a literatura honesta e aliteratura imoral. Contra esta, quanto antes, avossa campanha, a qual será mais do que um troféupara vossos talentos; será um impulso àreconstrução cristão do Brasil. 10

Essa passagem possui uma afinidade com a discussão sobre

a fé e as artes propiciada por Jackson de Figueiredo em

passagem já citada acima e mostra o grau de entrosamento

entre estes autores.

A respeito desse personagem, em especial, existe a

biografia publicada por Hamilton Nogueira, na qual são

constantes as digressões sobre temas como os destinos

10 Pp. 118-9. 23

políticos do Brasil, os problemas sociais, de filosofia e de

arte, nas quais Nogueira expõe sua própria opinião ou cita a

de Jackson por longos trechos. Por essa natureza do livro, é

possível levantar a hipótese de que se trata na verdade de

uma aposta de Nogueira para entrar no hall dos autores

católicos consagrados. A escolha do tema ajudaria nesse

sentido, embora a vida de Figueiredo também já tivesse

merecido um livro de Perillo Gomes. Segundo Nogueira, o livro

de Gomes teria enfoque maior em seu pensamento político.

Posteriormente, Tasso da Silveira também escreveria uma

biografia a respeito de Figueiredo. O dado de que os três

autores de biografias de Figueiredo sejam membros do Centro

Dom Vital é relevante na medida em que comprova sua

importância na formatação dos temas e gêneros de interesse

das pessoas que o freqüentaram.

A influência do Centro também ocorria no modo como estes

autores enxergaram Figueiredo, sempre com vistas a considerá-

lo um modelo de intelectual, com base em características

distintas. No livro de Hamilton Nogueira, ele é descrito

ainda como uma figura perpassada por dilemas morais e

filosóficos que comprometiam sua saúde e se coadunavam com a

incerteza de sua vida profissional no Rio de Janeiro.

Figueiredo encontra remédio para esses problemas em suas

amizades com o círculo de amigos, especialmente Farias Brito,

a quem trata com admiração e de quem esposará uma das filhas.

24

Ou seja, ele se torna um modelo de convertido para a causa

católica, exemplo que os leitores são convidados a seguir.

Depois da conversão, sua obra conhece uma grande

popularidade nesse meio, sendo inclusive comentada por

revistas católicas de outros países, como a francesa Études, a

qual publica uma resenha de seu livro sobre Pascal. Depois

que as certezas essenciais da vida foram adquiridas,

Figueiredo torna-se um pensador requisitado por um vasto

público, outra marca de incentivo das novas gerações à

conversão de seus escritos em benefício de fins apologéticos.

Essa imagem do Jackson que traz para dentro de si as dúvidas

e as processa antes de tornar-se o grande pensador que foi é

essencialmente diferente da imagem construída pelo texto

publicado em sua homenagem póstuma pela revista A Ordem. Nessa

última, não há espaços para concessões a dúvidas e medos

interiores: Figueiredo é apresentado como um bloco

monolítico, dotado de todas as características que fazem dele

o líder da corrente católica. Vários nomes são chamados a

escrever textos curtos de apresentação de algum aspecto de

sua vida, tais como “O Filósofo”, “O Apologeta”, “O

Sociólogo” e assim por diante.

COMENTAR TAMBÉM OS ARTIGOS DE NOGUEIRA, SERRANO E LEONEL

FRANCA NO JORNAL DO RIO PARA CITAR INTERTEXTUALIDADE

O volume se abre com alguns textos inéditos de

Figueiredo. Há dois capítulos de uma obra que Figueiredo

pretendia escrever sobre Joseph de Maistre. A obra pretendia

25

mostrar como o problema da revolução francesa e toda a

negação da tradição católica eram na verdade oriundos do

período do humanismo, no meio da idade moderna. Ao primeiro

raiar da ideia de que as liberdades individuais deveriam ser

superiores as de autoridade (da Igreja em primeiro lugar, e

em seguida do Rei), todo o arcabouço que permitia uma boa

sociedade estava em perigo. Este era um artigo que se

pretendia de teoria política centrado exclusivamente em

Joseph de Maistre, mas com algumas citações de Berdiaeff e

Maritain. Todos os autores são mobilizados com o objetivo de

demonstrar que toda a filosofia de Descartes em diante

constituiu uma grande decadência.

O artigo seguinte é uma resposta a um dossiê organizado

por Augusto Fredericho Schmidit sobre a situação da

literatura brasileira naquele momento. Figueiredo arrisca-se

a dizer que a geração do presente era aquela que mais sofria,

mais do que a que proclamou a independência, por exemplo. Os

problemas brasileiros resultavam da inclusão de um pensamento

social estrangeiro no país, desviando-os de seus valores

clássicos de catolicidade. A literatura poderia contribuir

justamente para a retomada destes valores católicos.

Em carta endereçada a Amoroso Lima e transcrita neste

volume, os dois discutem o problema da autoridade em um

momento de aparente desordem no país. Figueiredo afirma que

diante desse quadro julgado como caótico, a única resposta

possível seria refazer o senso de autoridade, mesmo que isso

26

representasse abrir mão de algumas características suas

cristãs, para não perder o essencial. O problema político

era, em sua visão, a manifesta preocupação do século XX e

fora da Igreja não haveria solução possível para esse

conflito.

A característica do “bloco monolítico” atribuído a Figueiredo

é perceptível desde o primeiro artigo a seu respeito, uma

biografia escrita por Olegário Silva. Este afirma que o jovem

Figueiredo era perseguido por alguns professores e por isso

tinha que mudar de colégio. No tempo de universidade, manteve

um estilo de vida de fausto e pouco regramento.

Diante dessa parte espinhosa na vida de quem se pretende

transformar em exemplo hagiográfico, Olegário Matos resolve o

problema com o seguinte argumento: Figueiredo sempre havia

sido admirado pelos colegas pela bravura e lealdade aos

companheiros. Por estes motivos, sua coragem de praticar atos

maus não seria o contrário de uma natureza boa a qual ele

teria, mas um desejo de viver intensamente que poderia

resultar em grande vantagem para a Igreja, depois que

Figueiredo se convertesse.

A ideia de um “santo moderno” é continuada pelos artigos

seguintes, como o de Perillo Gomes, que o apresenta como um

apologeta cuja força retórica era mais forte do que a força

de suas ideias. Sua conclusão é de que este seria o tipo de

apologia possível na idade contemporânea. Na apresentação de

Jackson como filósofo, Alexandre Correia destaca como Pascal

27

conseguiu abraçar o ideal de alma moderna e faz de Jackson um

defensor das ideias do filósofo de Port-Royal. Antes disso,

porém, faz uma alusão de algumas páginas ao livro de Leonel

Franca (Noções de Filosofia) em defesa da tese presente no livro

de que haveria apenas dois filósofos brasileiros: Tobias

Barreto e Farias Brito. Para Correia, Brito teria sido mais

filósofo, isto é, mais autoral e teria encontrado a fé ao

final de sua vida, assim como Jackson a encontrou depois de

um período nas trevas.

O ápice do volume é o texto de Félix Contreras

Rodrigues, que escreve sobre o lado sociológico de

Figueiredo, o mais denso entre eles. Aponta em Figueiredo um

monarquista que aceitou a imposição de Leão XIII de se

aceitar a República francesa como se valesse também para o

Brasil. (É importante lembrar que o mesmo Papa teve relações

muito mais tensas com a República italiana). Portanto, a

discussão não deveria ser qual o melhor regime político para

o país e sim como recristianizá-lo, independentemente do

regime.

Em primeiro lugar, significaria dar a devida importância

à Igreja, centro da tradição brasileira. Para Figueiredo, as

pátrias são criadas por desejo divino; no caso do Brasil, por

exemplo, a religião esteve presente desde o início de sua

formação história. A religião seria um dogma nacional, cujo

desprezo condenaria qualquer regime instalado no país à

decadência. Desse dogma nacional decorrem as conseqüências

28

que voltariam a formar a pauta de reivindicações nos anos

1930: a escola com ensino religioso, o casamento religioso

com efeito civil e o privilégio da Igreja como a religião

oficial do país. O artigo não pretende indicar em Figueiredo

um intolerante das outras religiões, mas Figueiredo pensa que

a Igreja deveria ser tratada com privilégios.

A partir dos elementos empíricos apresentados até o

momento nesse artigo, já é possível tecer algumas

considerações finais.

29

Considerações finais

Este artigo pretendeu demonstrar como é possível

compreender em seu conjunto a produção bibliográfica de

quatro autores cariocas: Jônathas Serrano, Jackson de

Figueiredo, Hamilton Nogueira e Leonel Franca. Tal comparação

permite enxergar como seus textos dialogam entre si

constantemente e por diversas formas. A primeira delas é que

todos defendem certos valores em comum, apresentados como

essenciais ao catolicismo e vistos como a salvação do país.

Todos os quatro se confirmam uns aos outros na iniciativa de

defender uma organização social muito distinta daquela

propalada por outros grupos do mesmo período como a solução

para o Brasil. Em certos momentos, escrevem diretamente uns

sobre os outros, em manifesto apoio às teses dos colegas.

Existe também uma especialização na produção entre os

autores. Leonel Franca era o responsável pela filosofia,

enquanto Figueiredo assumia o papel de porta-voz político do

grupo. Nogueira e Serrano forneciam hagiografias, alimentando

o panteão católico.

A trajetória pregressa dos quatro ajuda a compreender os

motivos de sua proximidade durante os anos 1920. Com a

exceção de Nogueira, sobre quem não há maiores informações

disponíveis, todos os outros viveram dramas familiares para

os quais o apego à estrutura da Igreja Católica proporcionou

respostas psicológicas e financeiras. Tal auxílio veio da

30

Ordem dos Jesuítas ou da Arquidiocese do Rio de Janeiro, esta

última impulsionada pelo comando revigorador do Cardeal

Sebastião Leme, condição primordial para o amadurecimento das

carreiras destes pensadores. Se o papel do Cardeal foi

significativamente reconhecido desde os anos 1940, resta

ainda o esforço por compreender as condições sociais de

emergência do intelectual católico e o que ele representou em

termos de produção intelectual. Este artigo espera ter dado

uma pequena contribuição neste sentido.

31

Bibliografia

LivrosARDUINI, Guilherme Ramalho. “O Centro d. Vital: estudo decaso de um grupo de intelectuais católicos no rio de janeiroentre os anos 1920 e 1940” EM: PAULA, Christiane Jalles &RODRIGUES, Candido Moreira. Intelectuais e Militância Católica no Brasil.Cuiabá: FAPEMAT/Editora UFMT, 2012. D’ELBOUX, Luiz Gonzaga da Silveira. O Padre Leonel Franca. Rio deJaneiro: Agir, 1953.FERNANDES, Cléa de Figueiredo. Jackson de Figueiredo: uma trajetóriaapaixonada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.FIGUEIREDO, Jackson. Affirmações. Rio de Janeiro: Centro D.Vital/Tipografia Anuário do Brasil, 1921a._____. Do nacionalismo na hora presente. Rio de Janeiro: LivrariaCatólica, 1921b._____. Pascal e a inquietação moderna. Rio de Janeiro/Lisboa. CentroD. Vital/Anuário do Brasil/Renascença Portuguesa, 1922.FIGUEIREDO, Jackson. Reação do bom senso. Contra o demagogismo ea anarquia militar: artigos publicados “n’O Jornal” do Rio deJaneiro (1921-1922). Rio de Janeiro: Annuario do Brasil.MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia dasLetras, 2001.NOGUEIRA, Hamilton. Jackson de Figueiredo. Rio de Janeiro/SãoPaulo: Hachette/Loyola, 1976 (1ª ed. 1928).RODRIGUES, Cândido Moreira. A Ordem: uma revista de intelectuaiscatólicos. Belo Horizonte/São Paulo: Autêntica/FAPESP, 2006.SERRANO, Jonathas. Júlio Maria. Rio de janeiro: Livraria BoaImprensa, 1941 [1ª Ed. 1924].ZANATTA, Regina Maria. Jonathas Serrano e a escola nova no Brasil: raízescatólicas na corrente progressista. [Tese de doutoramento] São Paulo:Faculdade de Educação/USP, 2005.

Verbetes de dicionário“Hamilton Nogueira” EM: BELOCH, Israel. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003.“Jônathas Serrano” EM: RIBEIRO FILHO, João de Souza. Dicionáriode escritores cariocas. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965.

32

“Jônathas Serrano” e “Xavier Marques” EM: MENEZES, Raimundo.Dicionário literário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1969.

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