À tona de água

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à tona de água1

Necessidades em Portugal,Tradição e Tendências

Emergentes

CoordenaçãoTeresa Costa Pinto, Isabel Guerra,

Marta Martins, Sara Almeida

A informação de base utilizada para a concepção e redacção deste livro foi obtida no âmbito de um projecto de investigação designado Necessidades em Portugal.

Tradição e Tendências Emergentes, financiado pelo POAT / FSE - QRENe promovido pela TESE – Associação para o Desenvolvimento,

entre Janeiro de 2008 e Março de 2010.

© 2010, TESE, Fundação Calouste Gulbenkiane Edições tinta -da -china, Lda.

Rua João de Freitas Branco, 35A,1500 -627 Lisboa

Tels: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30E -mail: [email protected]

www.tintadachina.pt

Título: À Tona de Água 1.Necessidades em Portugal, Tradição e Tendências Emergentes

Coordenação: Teresa Costa Pinto, Isabel Guerra, Marta Martins e Sara almeida

Autores: Alda Gonçalves (ISS, IP), Isabel Guerra (DINÂMIA-CET/ESCTE-IUL),

Lia Pappámikail (ICS-UL), Marta Luís Pereira (DINÂMIA-CET/ISCTE-IUL),

Marta Martins (TESE), Sara Almeida (TESE), Tatiana Marques (Instituto do Envelhecimento),

Teresa Costa Pinto (DINÂMIA-CET/ISCTE-IUL)

Revisão: Tinta -da -chinaComposição: Tinta -da -china

Capa: Vera Tavares

1.ª edição: Junho de 2010isbn 978 -989 -671 -042-2

Depósito Legal n.º 311977/10

Índice

11 Prefácio

15 Introdução

23 I. Enquadramento Temático ‑Conceptual27 Necessidades: um tema que interroga a lógica do desenvolvimento33 Uma incursão pelas perspectivas teóricas sobre as necessidades47 Noções fundamentais e delimitações analíticas67 Noções operatórias73 Uma tipologia de partida

77 II. Portugal: na Encruzilhada entre Mudança e Continuidade Lia Pappámikail, Marta Luís Pereira, Tatiana Marques84 Os desafios da mudança: rumo a novas necessidades 131 Notas finais136 Anexo metodológico

137 III. Necessidades em Portugal no Caleidoscópio da Mudança. Os Resultados do Inquérito às Necessidades em Portugal Isabel Guerra, Teresa Costa Pinto, Marta Martins, Sara Almeida139 Introdução141 Pobreza, privação e precariedade três marcas incontornáveis em Portugal

157 A melhoria das condições de habitabilidade e a qualidade da área de residência162 A importância das limitações associadas à saúde e a predominância do Serviço Nacional de Saúde165 Felicidade e satisfação com a vida179 Expressões de uma sociedade de risco189 A activação para a mudança200 Conclusões204 Anexo

209 IV. Quotidianos Invisíveis: Retratos de Um Portugal em Mudança Teresa Costa Pinto, Isabel Guerra, Marta Martins, Sara Almeida, Alda Gonçalves215 Os casos investigados 220 Da sociedade de risco ao sentir da vulnerabilidade: a percepção do risco por parte dos entrevistados223 A diversidade de estratégias como um jogo entre capacidades e oportunidades239 Factores de protecção e factores potenciadores do risco: o papel central das aspirações e dos projectos 244 Percepção do papel das políticas públicas na satisfação de necessidades259 Principais recomendações 264 Anexo Estudo de casos -síntese — necessidades, estratégias e oportunidades

271 Conclusões273 Conclusões gerais296 Questões para pensar o futuro300 Recomendações

Prefácio

Em 2007, num congresso sobre empreendedorismo social, em Oxford, tive a oportunidade e o prazer de conhecer Geoff Mulgan, Presidente da Young Foundation. Intervindo na abertura do evento, a sua comunicação debruçava -se sobre o tema da inovação social como desígnio de mudança, num mundo confrontado com um qua-dro de desafios particularmente interpelantes e urgentes.

A Young Foundation, contava Geoff Mulgan, assumia precisa-mente o compromisso para com a inovação social, e um dos passos considerados estratégicos na detecção de oportunidades para ino-var passava pela investigação e estudo sobre o que seriam, na Grã--Bretanha, as designadas unmet needs.

Após visitar a Young Foundation, e depois de conhecer melhor esse projecto de investigação, regressei a Portugal com várias pergun-tas e uma ideia. Questionava -me, quais seriam as necessidades não satisfeitas em Portugal? Como podemos, pela investigação sobre as necessidades consideradas não satisfeitas em Portugal, contribuir para a descoberta de novas e melhores respostas para os anseios e pro-blemas que bloqueiam a qualidade de vida em Portugal?

Assim, na convicção do interesse em responder a estas questões, decidi propor à TESE — Associação para o Desenvolvimento, uma ONGD portuguesa cuja filosofia de actuação se baseia nos princípios da inovação social, do trabalho em parceria e da investigação -acção, um Estudo exploratório sobre as necessidades consideradas não satis-feitas em Portugal. A TESE aceitou o desafio, crente que tal projecto poderia ajudar a descobrir oportunidades e orientações importantes para a intervenção social de todos quantos pretendem melhorar o mundo em que vivemos.

A maior certeza de que este seria um empreendimento efecti-vamente útil, tivemo -la também consecutivamente, na resposta à

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pergunta que íamos fazendo a pessoas ligadas à área social, em orga-nismos públicos, fundações, centros de estudos e organizações do terceiro sector: que necessidades são percebidas como não satisfei-tas, em Portugal?

Foi então que, com o apoio de Sara Almeida, colaboradora da TESE, desafiámos um conjunto de instituições que viriam a aderir a um empreendimento complexo mas apaixonante: como parceiros, a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), na pessoa da Dra. Isabel Mota; e o Instituto da Segurança Social (ISS, IP), na pessoa do Dr. Edmundo Martinho; o Centro de Estudos Territoriais do ISCTE--IUL, que assumiu a coordenação científica do projecto, represen-tado pela Professora Isabel Guerra e pela Professora Teresa Costa Pinto; e, como consultor científico, a Young Foundation.

Iniciado em 2008, este foi um caminho percorrido em várias fren-tes e etapas. Do inicial equacionar das necessidades como conceito eminentemente social à história recente do bem -estar em Portugal; da análise de uma robusta bateria de indicadores estatísticos secun-dários sobre as transformações contemporaneamente observadas na realidade portuguesa à aplicação de um inquérito por questionário às necessidades dos residentes no território continental — até uma fase de realização de pesquisas aprofundadas sobre casos que ilustram como se vive, hoje, em Portugal. A riqueza dos resultados desta últi-ma fase da pesquisa justificou a publicação de um volume autónomo, lançado com o apoio da FCG e também editado pela Tinta -da -china: À Tona de Água. Retratos de Um Portugal em Mudança.

Importa destacar e agradecer a preciosa disponibilidade de todos os entrevistados, que generosamente aceitaram partilhar as suas his-tórias e perspectivas de vida, abrindo -nos a porta a realidades que procurávamos conhecer melhor.

Cabe igualmente agradecer a colaboração dos investigadores que, na qualidade de peritos, com a sua opinião e crítica, em momen-tos distintos da pesquisa, ajudaram a ir debatendo e reflectindo sobre os caminhos da pesquisa: Alcides Monteiro (CES -UBI), Ana Cardo-so (CESIS — Centro de Estudos para a Intervenção Social), Carlos Farinha Rodrigues (ISEG -UTL), Dan Vale (Young Foundation), Beth Watts (Young Foundation), Teresa Bomba (ISS, IP), Sónia Fertuzi-nhos (Consultora da TESE e deputada), Alda Gonçalves (ISS, IP), Nelson Dias (Associação In Loco), Vanessa Sousa (Associação In Loco), Jussara Rowland (ISCTE -IUL), Pedro Magalhães (CESOP-

-UCP; ICS -UL), Verónica Policarpo (CESOP -UCP), Lia Pappámi-kail (ICS -IUL).

O nosso reconhecimento dirige -se também às várias equipas de investigação que tão intensamente se dedicaram ao Estudo, num esforço de real concretização do que é trabalhar em parceria, numa postura permanente de abertura ao debate científico.

Ao Programa Operacional de Assistência Técnica / Fundo Social Europeu, entidade financiadora da investigação que está na origem destes livros, e aos nossos parceiros — FCG e ISS, IP — agradecemos a postura de acompanhamento constante e diálogo frutuoso.

Porque este é um Estudo destinado a não ficar na gaveta — por-que na TESE acreditamos que mudar o mundo passa também por conhecê -lo melhor, não desistindo de fazer perguntas e de perseguir novas respostas — as conclusões apresentadas são acompanhadas de um conjunto de recomendações, que, esperamos, ajudarão a identifi-car janelas de oportunidade para o investimento em soluções criativas e socialmente inovadoras de resposta às necessidades não satisfeitas, que possam mobilizar o sector público, privado, o terceiro sector e restante sociedade civil. A inovação social começa agora.

João Wengorovius MenesesPresidente da TESE — Associação para o Desenvolvimento

Introdução

O que falta para se ser feliz, vivendo em Portugal? De que é que não abdicamos já e de que precisamos ainda quando falamos de qualidade de vida? Que exigências de inovação espreitam, na resolução de novas e velhas necessidades e problemas sociais?

Estas eram algumas das interrogações que, à partida, motivavam o lançamento do Estudo Necessidades em Portugal: tradição e tendências emergentes*, em 2008.

A partir de uma reflexão sobre as transformações contemporâ-neas na sociedade portuguesa, tal investigação propunha -se identifi-car as necessidades não satisfeitas em Portugal, conferindo particular atenção às tendências latentes e emergentes que, na actualidade e/ou a breve trecho, perturbam e prejudicam a optimização das oportuni-dades da vida individual e colectiva no país.

A pertinência deste empreendimento radicava no duplo reco-nhecimento, quer das melhorias e dos sucessos contemporaneamente registados no desenvolvimento humano em Portugal, quer da persis-tência e emergência de novos e de tradicionais fenómenos associados à pobreza e à exclusão social.

Acresce a esta particularidade do modelo de desenvolvimento nacional, a visibilidade crescente, sobretudo nas últimas décadas do século XX, de vários processos concorrentes para a emergência de um contexto ecológico, social, cultural e político celebremente desig-nado como sociedade de risco**. De facto, a influência da lente teórica do risco expande -se e populariza -se, influenciando a leitura de fenó-menos afectos a vários temas e esferas da realidade que vão desde

* Cf. Prefácio da presente edição.** Recorre -se, para a sedimentação deste conceito, às propostas teóricas de Ulrich Beck (1999) desenvolvidas também por Giddens quando fala da emergência de «um lado som-brio da modernidade» (Giddens, 1998).

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a dúvida sobre a sustentabilidade do Estado -Providência, à turbulên-cia económica e financeira global, passando pelo aprofundamento das desigualdades sociais e dos impactes das alterações climáticas, entre outros.

Neste contexto, parece expandir -se também a percepção da com-ponente de incerteza e de imponderabilidade que integra a própria ideia de sociedade de risco, à qual se procura acoplar, teoricamente, o reconhecimento da existência de desiguais graus de vulnerabilidade — diferentes graus de fragilidade e de resiliência à exposição a fenó-menos de risco — que traduzem desiguais capacidades de influenciar e gerir a mudança e de desencadear ou aproveitar oportunidades que beneficiem a resiliência dos actores.

Recorrentemente associado ao estabelecimento de diagnósti-cos destinados a apoiar a mudança social, o debelar das necessidades afigura -se basilar no planeamento, construção e discussão crítica das políticas de resposta aos problemas sociais (Doyal e Gough, 1991: 1).

Mas como integrar, no planeamento de respostas às necessidades, as distintas velocidades da mudança social e as consequências que as próprias transformações induzem ao nível da percepção das necessida-des, das aspirações e expectativas dos indivíduos? Como confrontar a diversidade do social na multiplicidade da expressão das necessidades, no que se refere às desigualdades de posições sociais em recursos e capa-cidades, e ainda no que concerne à permanente dinâmica individual e colectiva de mediações entre necessidades, aspirações e expectativas?

Não raras vezes, as políticas sociais tendem a assumir uma postu-ra reactiva, repetindo receitas, não antecipando tendências, reagindo às novas solicitações que, por essa via, tendem a emergir com carácter premente, urgente, e problemático. Acresce ainda a particular inci-dência em necessidades de ordem material, deixando a descoberto carências de natureza imaterial (cultural e social) e subjectivas.

Mas, também, as disparidades e diversidades de modos de vida e condições regionais encontram -se largamente por explorar na adequação e renovação das respostas políticas e do mercado. Essas diversidades estão frequentemente alicerçadas num conhecimento deficiente e estereotipado das necessidades regionais e sociocultu-rais, algo que urge ultrapassar através da visão do todo nacional, pro-movendo o desenvolvimento social de forma integrada e participada, convidando a formas inovadoras de relacionamento e cooperação entre Estado, Mercado, Terceiro Sector e Sociedade Civil.

O que está em causa, quando falamos de conhecimento das necessidades, é também a capacidade de definir intervenções que atinjam as causas dos fenómenos e não as suas manifestações aparen-tes, que permitam actuar «como instrumentos para identificar o que falta a determinado grupo de forma a alcançar vidas mais satisfató-rias» (Reviere et al., 1996:1).

Desta forma, o estudo, que agora se publica, assumiu os seguintes objectivos:a) identificar, a partir de uma reflexão sobre as transformações con-

temporâneas da sociedade portuguesa, as eventuais alterações nos padrões de necessidades que — latentes e/ou emergentes — se manifestam na diversidade dos grupos e territórios, face a cons-trangimentos objectivos, aspirações e expectativas sobre bem--estar e qualidade de vida;

b) clarificar os factores que modelam a complexa relação (e as even-tuais disfunções) entre o planeamento e a disponibilização de res-posta às necessidades e a efectiva satisfação das necessidades e expectativas dos indivíduos e grupos destinatários das políticas*;

c) apoiar a prática de uma postura prospectiva no que às necessida-des concerne, actuando antecipadamente ao nível das suas causas, promovendo a flexibilidade de respostas às consequências da sua eventual (in)satisfação;

d) contribuir para identificar espaços de oportunidade para o inves-timento em soluções criativas e socialmente inovadoras que, indo ao encontro do desejo de resolução dos défices (quantitativos e qualitativos) identificados como geradores da insatisfação de necessidades, possam mobilizar actores afectos aos sectores públi-co e privado e ao Terceiro Sector.

Âncoras teóricas e desenho metodológico da pesquisa

Entende -se que a análise das necessidades, patamar base de qual-quer processo de intervenção ou de elaboração de políticas sociais, deve assentar num processo participado de pesquisa para a acção, cujo enquadramento exige um modelo aberto, mas cientificamente

* Pretendia -se aqui distinguir entre diversos factores de (in)satisfação das necessidades, destrinçando entre possíveis défices qualitativos e défices quantitativos das respostas, os quais interpelam diferentes naturezas de fragilidade: nomeadamente, a ausência ou escas-sez de respostas e a qualidade e/ou adequação das mesmas.

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sedimentado, de referenciais teóricos e metodológicos decorrentes de distintos paradigmas no entendimento das dinâmicas sociais.

O termo necessidade, comummente mobilizado no discurso públi-co e político, bem como num vasto conjunto de perspectivas teóricas de acção e de pensamento, apresenta -se, contudo, como um concei-to pouco preciso e pouco consensual. A reconhecida complexidade inerente à reflexão sobre a problemática das necessidades humanas advém, desde logo, da natureza histórica dos processos contextuais de desenvolvimento da própria noção. Em articulação com a emer-gência de outros temas, os conteúdos do que se considera constituir uma necessidade vêm progressivamente orientando -se, quer para a consideração de elementos de natureza não material nas componen-tes da dignidade, felicidade e qualidade da vida humana, quer para a emergência de novos riscos e problemas sociais.

Partiu -se de uma noção alargada de necessidade — um conjun-to multidimensional de percepções de carência e/ou um conjunto de danos físicos, psíquicos ou sociais cuja deficiente e/ou insatisfatória resposta e provisão obsta à plena inserção social dos indivíduos, even-tualmente prejudicando a optimização das oportunidades de desenvol-vimento da vida pessoal e colectiva. Assim, a pesquisa confrontou -se com o desafio de analisar os processos de construção da sociedade por via da acção humana, a partir das relações intrínsecas entre o Actor e o Sistema. Seguindo este fundamento teórico, as necessidades são con-cebidas, não como estádios fixos, mas enquanto processos dinâmicos, objectiva e subjectivamente gerados, ao longo do devir biográfico e histórico, no jogo de encontros e discrepâncias entre Capacidades dos indivíduos e Oportunidades geradas pelos colectivos sociais.

As opções metodológicas são consonantes com este desafio de simultaneamente interpretar e explicar as dinâmicas sociais e os processos de formulação e satisfação das necessidades, a partir da diversidade de contextos e de actores sociais neles envolvidos. Nessa conformidade, o desenho da pesquisa estruturou -se a partir de três pilares metodologicamente distintos, mas complementares, os quais definiram diferentes etapas da pesquisa:1) Recolha, sistematização e análise de informação estatística secun-

dária, através da construção de uma base de dados, para definição e enquadramento dos contornos contemporâneos da sociedade portuguesa.

2) Construção e lançamento de um inquérito por questionário dedi-cado à exploração extensiva das percepções de carências e danos, expressos pela população residente em Portugal continental.

3) Aprofundamento intensivo (seis estudos qualitativos de casos) do modo como se geram as dinâmicas de (in)satisfação das necessida-des em grupos específicos, a partir da experiência de determinadas condições e desafios de vida.

Estrutura do livro

O presente volume pretende dar conta, de forma articulada (e neces-sariamente resumida), dos principais resultados e conclusões produ-zidos a partir das várias etapas percorridas.

No primeiro capítulo, procura -se dar conta, em primeiro lugar, dos contextos históricos de desenvolvimento da noção de necessida-des, em articulação com a emergência de outros conceitos associados (desenvolvimento, qualidade de vida, saúde), chamando à discussão, simultaneamente, algumas das principais perspectivas teóricas que se debruçam sobre a problemática das necessidades humanas. Em segun-do lugar, reconhecendo a complexidade das necessidades humanas, estabelecem -se demarcações teóricas que, informando o enquadra-mento conceptual e precisando o objecto da pesquisa, apoiam o dese-nho de um modelo de análise e de um plano de investigação capaz de dar resposta às perplexidades e inquietações que orientaram o estudo.

No segundo capítulo, a partir da análise sintética de indicadores sobre tendências em algumas áreas -chave da sociedade portuguesa, ensaia -se um percurso reflexivo sobre as mudanças e as continuida-des, as evoluções e as estagnações, o desafios e os bloqueios que con-textualizam o processo de desenvolvimento português e, necessaria-mente, o de formulação e (in)satisfação de necessidades. Aí se sinaliza um país a duas velocidades, cujo percurso se faz sulcando inegáveis dimensões de progresso ao mesmo tempo que se mostra incapaz de ultrapassar velhas e novas vulnerabilidades, num jogo, por vezes para-doxal, de aproximação e distanciamento do seu espaço político de referência preferencial: a UE.

Reconhecendo -se a especificidade de um percurso nacional onde coexistem debilidades estruturais com mudanças velozes, a análi-se extensiva das percepções de carência e dos danos, expressas pela população residente em Portugal continental, realiza -se através de um

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inquérito por questionário. Este instrumento de pesquisa apresenta--se como uma oportunidade privilegiada para reflectir sobre os apa-rentes paradoxos de uma realidade una, mas que é experimentada em desiguais condições materiais e subjectivas de vida. Tal é o objectivo do terceiro capítulo. A provar a justeza das análises do capítulo prece-dente, nele se conclui pelo (ainda) peso das necessidades físicas e de recursos, que revelam ter um poder contaminante sobre as restantes. Ter mais dinheiro, mais saúde (ou melhor acesso a cuidados de saúde) e arranjar trabalho ou mudar de emprego constituem os ingredientes que, no contexto actual da sociedade portuguesa, mais potenciariam um aumento da qualidade de vida. A par do reconhecimento da clara presença de necessidades do domínio do Ter, intimamente relacio-nadas com necessidades físicas e de recursos, não pode deixar de se interrogar os níveis (razoáveis) de satisfação com a vida e felicidade, expressos na inquirição.

No quarto capítulo sintetiza -se as conclusões da etapa dedicada ao aprofundamento intensivo (qualitativo) do modo como se geram as dinâmicas de (in)satisfação das necessidades, face a constrangi-mentos, mas também a aspirações e expectativas que os indivíduos incorporam sobre o que é o bem -estar e a qualidade de vida*. Esta etapa concretizou -se através do estudo de seis casos, a partir dos quais se explora a relação entre a (in)satisfação de necessidades e o quadro quotidiano de vida de grupos e indivíduos que ilustram a coexistência entre perfis mais e menos tradicionais de vulnerabilidade na socieda-de portuguesa: 1) Famílias sanduíche, caracterizadas por experimentarem patamares

de rendimentos situados ligeiramente acima do limiar oficial de pobreza, mas experimentando particulares dificuldades na res-posta às suas necessidades.

2) Protagonistas de actividades económicas de pequena escala, arte-sanais ou em risco de extinção, que associam trabalho e vida fami-liar, num esforço de construção de uma sobrevivência experimen-tada sem certezas.

3) A sobreocupação de adultos empregados divididos entre trabalho e família.

* Os casos investigados encontram -se publicados, de forma mais desenvolvida, num volume autónomo intitulado À Tona de Água. Retratos de Um Portugal em Mudança, editado também pela tinta -da -china em 2010.

4) O impacte do aumento de qualificações em adultos que se encon-tram, actualmente, em trânsito de formação.

5) Indivíduos em processo de passagem recente à situação de reforma.

6) Pessoas idosas (com 75 ou mais anos) que vivem sós.

Protagonistas de quotidianos invisíveis, os vários casos permitem explorar as condições em que se opera a gestão de uma mudança veloz, num contexto de particular adensamento de incertezas que geram e potenciam novas necessidades e vulnerabilidades. Nestes quotidia-nos dá -se conta das diferentes estratégias de contorno dos constran-gimentos vividos, à luz da leitura e interpretação que os entrevis-tados têm sobre as suas capacidades e as oportunidades oferecidas pelo contexto societal. Sublinha -se a racionalidade (e a resiliência) na forma como se gerem contextos de vulnerabilidade, permitindo subsistir à tona de água, mas não deixa de se apontar, em muitos casos, a incapacidade de formular expectativas e projectos futuros, compo-nente fundamental na capacidade de activação para a mudança.

Após uma sistematização das principais conclusões da inves-tigação — e no sentido de alimentar o debate sobre as orientações e prioridades subjacentes a novas estratégias de resposta às necessi-dades não satisfeitas — segue -se a apresentação de um conjunto de recomendações dirigidas ao Estado, ao Mercado e ao Terceiro Sector, as quais encerram o presente volume.

Os resultados do presente Estudo poderão revelar -se um apoio técnico útil ao planeamento de respostas que visem responder de forma inovadora às necessidades emergentes, às novas fragilidades afectas a âmbitos de desenvolvimento aparentemente resolvidos e aos renovados contornos que enformam os fenómenos da exclusão social e da pobreza.

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Boas práticas — Eixo IV

Âmbito NacionalCasa da Cidadania: O programa funciona numa caravana itinerante e inclui dife-rentes metodologias de educação não formal para experimentação de novas formas de governação local e de participação activa dos cidadãos. (Associação In Loco)

Âmbito internacionalAssegurar decisões imparciais em processos de tomada de decisão é a chave de manutenção da confiança nos Governos: «Em reunião de ministros dos Países da OCDE, foi considerado fundamental que os Gover-nos preparados para o século XXI, encontrem mecanismos que assegurem a confiança por parte dos cidadãos nos processos de decisão: • Transparência — através da abertura quer aos actores que influenciam as políticas, quer aos cidadãos que têm o direito de saber se as decisões foram influenciadas por stakeholders ou outro tipo de interesses.• Acessibilidade — fomentando regras do jogo justas para todos os stakeholders interes-sados em participar no desenvolvimento das políticas publicas e garantindo que os cidadãos possam ter voz.». (OECD Guidelines for managing conflict of interest in the public service report on implementation, OECD, 2007, p. 16)

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Notas

1 Trata -se somente do serviço de televisão por cabo ou satélite, pois no ano de 2005 98,9% dos agregados declararam possuir televisão — equipamento.

2 Um valor que ascendia aos 56% em 2009 segundo o Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação nas Famílias.

3 Os agregados não foram previamente informados quanto à sua selecção. No caso de o potencial inquirido não estar disponível para responder ao inquérito, no momento do contacto presencial, procedia -se imediatamente à substituição do agregado familiar, de acordo com o passo estabelecido. A duração média das entrevistas situou -se entre os 30 e os 45 minutos.

4 A minimização do efeito de sobre -representação de alguns grupos justificou a aplicação de um ponderador. Todos os resultados apre-sentados são projectados com o ponderador activo.

5 A «flexisegurança» é entendida como um processo complexo que implica quatro dimensões integradas: i) procedimentos contratuais flexíveis e interligados; ii) estratégias compreensivas de aprendizagem ao longo da vida; iii) efectivas políticas activas de mercado de trabalho e iv) sistemas de protecção social modernos. (EMCO, 2009)

À Tona de Água 1foi composto em caracteres Hoefler Text e impresso

na Guide, Artes Gráficas, em papel Coral Bookde 90 gramas, numa tiragem de

1000 exemplares, nomês de Junho de

2010.