A dupla carreira da mulher prostituta

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it lfrteddeA Pleklueata) iog CLAUDIA FONSECA ' Gostaria de agradecer a Alinne Boneth que enquanto bolsista de iniciação cientifica CNPq colaborou em todas as etapas desta pesquisa , LAGENEST H D Barruel de (org ) Lenocínio e Prostitui ção no Brasil (estudo sociologico) Rio de Janeiro Agir Editora 1960 p 12 As meretrizes como são chamadas atiram-se facilmente a todas as especies de vicias aos tomos alcool e a mercadejar seu corpo de qualquer maneira ( ) Quando os exploradores que se dizem seus amantes cansam ( as prostitutas) são atiradas a rua sem nada sem dinheiro sem roupa e muitas vezes doentes ainda encontram quem lhes dê mais bebidas ate corem na calçada Assim achando-se perdidas vão ao suicido ou procuram vingar se em alguem Muitas começam a roubar terminando na cadeia onde choram e arrependem-se amargamente lembrando-se de seus lares e de suas familias2 Este trecho de um capitulo intitulado A vida real das prostitutas e tipico de 90% da literatura que existe sobre esta categoria O livro de Lagenest que se pauta como um estudo sociologico esta repleto de anedotas sobre as chagas - miseria fendas tuberculose debilidade mental - que esperam a infeliz que escolha este caminho Abre com depoimentos de Terezas e Manas arrependidas por terem se atirado na lama na mais hornvel lama termina com descrições sobre a moribunda que com uma ferida em certo lugar gritava de dores por falta de remedo ou assistência e acabou morrendo na calçada Sem duvida o leitor de 1996 se sentira superior a este estilo melodramatico reminiscente da era vitoriana Podera identificar nestas imagens fantasmas masculinos projetados sobre o objeto que os homens mais temiam - a sexualidade feminina Ao pintar o destino infernal das prostitutas castigavam o objeto por ter suscitado tanto desejo Historiadores ja discorreram longamente sobre o \nes masculino da historia oficial e sua tendência para ESTUDOS FEMINISTAS 7 N 1/96

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lfrteddeA Pleklueata)iog

CLAUDIA FONSECA

' Gostaria de agradecer aAlinne Boneth queenquanto bolsista deiniciação cientifica CNPqcolaborou em todas asetapas desta pesquisa

, LAGENEST H D Barruel de(org ) Lenocínio e Prostitui

ção no Brasil (estudosociologico) Rio de JaneiroAgir Editora 1960 p 12

As meretrizes como são chamadas atiram-sefacilmente a todas as especies de vicias aos tomos

alcool e a mercadejar seu corpo de qualquermaneira ( ) Quando os exploradores que se

dizem seus amantes cansam ( as prostitutas)são atiradas a rua sem nada sem dinheiro

sem roupa e muitas vezes doentesainda encontram quem lhes dê mais bebidas

ate corem na calçadaAssim achando-se perdidas vão ao suicido

ou procuram vingar se em alguemMuitas começam a roubar terminando

na cadeia onde choram e arrependem-seamargamente lembrando-se de

seus lares e de suas familias2

Este trecho de um capitulo intitulado A vida realdas prostitutas e tipico de 90% da literatura que existesobre esta categoria O livro de Lagenest que se pautacomo um estudo sociologico esta repleto de anedotassobre as chagas - miseria fendas tuberculose debilidademental - que esperam a infeliz que escolha este caminhoAbre com depoimentos de Terezas e Manas arrependidaspor terem se atirado na lama na mais hornvel lamatermina com descrições sobre a moribunda que comuma ferida em certo lugar gritava de dores por falta deremedo ou assistência e acabou morrendo na calçada

Sem duvida o leitor de 1996 se sentira superior aeste estilo melodramatico reminiscente da era vitorianaPodera identificar nestas imagens fantasmas masculinosprojetados sobre o objeto que os homens mais temiam - asexualidade feminina Ao pintar o destino infernal dasprostitutas castigavam o objeto por ter suscitado tantodesejo Historiadores ja discorreram longamente sobre o\nes masculino da historia oficial e sua tendência para

ESTUDOS FEMINISTAS 7 N 1/96

3 PERROT Michelle (org )Une Histolre des Femmes EstPosstble9 Paris Rivages 1984

4 Todas as citações desteparagrafo são de um artigopor Alain Corbin sobre asubjetividade masculina napesquisa histonca Ver CORBINAlain Le Sexe en Deuil etL Histoire des Femmes auXIXe Siecle In PERROTMichelle op cit p 146

'Sobre este assunto ver otrabalho apresentado porAlinne Bonetti no VII Salaode Iniciação Cientifica daUFRGS Maridos e Clientes deProstitutas onde esta overdadeiro perigo de AIDS'?outubro 1995

pintar as mulheres em termos estereotipados mulher-fogo mulher-agua mulher-terra 3 Vendo os erros dosnossos precursores ficamos com uma sensação decomplacência de ter progredido alem de tudo isso Massera que aprendemos nossa lição'?

E indubitavelmente mais facil escrever sobre nosmesmos do que sobre os outros - e mais confortavel (emenos pretensioso) analisar nossos preconceitos sobre aprostituição do que tentar descrever as prostitutasPorem seria um equivoco considerar estes dois objetoscomo inteiramente separados um do outro A eficacia daautocritica pode ser medida em termos do novo olharque ela nos abre quanto a realidade alheia Pouco feraadiantado desmascarar o evidente puritanismo que aterecente epoca tem pesado sobre a pesquisa universita-na se continuarmos a repetir os mesmos erros Sera quequando abordamos um tema como prostituição nãocontinuamos a privilegiar os lugares de refugio (arquivospoliciais hospitais abrigos) povoados por pessoasvencidas e arrependidas que não têm outra alternativasenão enfatizar o fracasso a misena a infelicidade 9Sera que tal os historiadores credulos e testemunhostolos não nos despistamos com a teatralização deatitudes tomando encenações impostas pelo rigor docontrole social e pela rigidez dos rituais por realidade4'?

Durante cerca de um ano de 1994 a 1995 andeifalando com mulheres que trabalham na prostituição derua no centro de Porto Alegre Cheguei neste assuntoatraves de uma demanda feita por uma das numerasONG s que trabalham com mulheres e cidadania paradar uma assessoria tecnica quanto as possiveis maneirasde mobilizar os profissionais do sexo Em pouco tempotornou-se evidente que antes de dar qualquer conselhosena necessano conhecer melhor o universo alvo deintervenção Parecia muita pretensão querer atacarproblemas tais como legislação sindicato repressãopolicial ou a relação mando/gigolõ/AIDS3 antes deentender algo da vivência cotidiana dessas mulheres

Este artigo na qualidade de uma primeira reflexãoconcentra-se portanto numa dimensão cotidianaquase banal da batalha a dupla carreira - família eprofissão - da mulher prostituta Esta perspectiva podelançar luz sobre uma realidade ignorada pelo sensocomum ajudando não somente a desgrudar o tema daprostituição do jogo pendular policia/medico como tambema mostrar essas mulheres como membros de redes sociaise universos simbolicos que vão bem alem do metiê Trata-se de uma otica que coloca entre parênteses o proble-ma da contenção de doenças venereas assim como oda preservação da ordem publica para considerar algodiretamente ligado a qualidade de vida das mulheres

ANO 4 8 I . SEMESTRE 96

6 Fomos amparadas nestapesquisa por integrantes doGAPA THEMIS (ConsultoriaJundica e Estudos deGénero) a Politica Municipalde Controle de DoençasSexualmente Transmissiveis eAIDS (Secretana Municipalde Saude) e NEP (Nucleo deEstudos da Prostituição) quedesenvolvem cada umprogramas para promoveros direitos dos profissionaisde sexo em Porto AlegreQueremos agradecertambem a Adnane Boff queenquanto bolsista da FAPERGScolaborou nesta pesquisade abril a julho de 1995

7 Autoblografias deprostitutas apesar defornecerem materialextremamente rico naoforam incluidas nestaprimeira analise Algumasobras que devem serexaminadas num proximoartigo sao LEITE GabrielSilva Eu Mulher da Vida Riode Janeiro Rosa dosTempos 1992 MELO SallyGogu de A Historia de SallyGogu memonas de umamulher da vida LagesPastoral da mulhermarginalizada 1994AMARA Lucia A Difícil VidaFacit a prostituta e suacondição 1984

RAGO Margareth OsPrazeres da Noite prostituição e codigos da sexualidade feminina em Sao Paulo(1890-1930) Rio de JaneiroPaz e Terra 1991 p22

Ver por exemplo GASPARMaria Dulce Garotas dePrograma prostituição emCopacabana e Identidadesocial Rio de Janeiro JorgeZahar Editor 1985

'0 Faço minhas as palavrasde Rago em sua critica aesta escola de pensamento(op cit p22)

Quero agradecer aoNucleo de Estudos daProstituição (NEP) e emparticular a Coordenadora

Nosso objeto de analise foi se construindo ao longoda pesquisa atraves de contatos com ONGS s6 aliteratura cientifica' e as mulheres da batalha

A eterna prostituta

Foi inevitavel ( ) buscar abordagens teorico-metodologicas que permitissem dar conta da complexida-de do fenômeno da prostituição evidenciando a singula-ridade do objeto ao mesmo tempo que sua positividade

São todas iguais e uma expressão que segundocertos pesquisadores' os clientes usam para descrever(ou dispensar a necessidade de descrever) as prostitutasE uma atitude que não difere muito de pesquisadoresque tomando a prostituição como objeto naturalinvariante trans-histonco imaginam que o mesmofenômeno poderia ser observado em todas as epocas esociedades como sugere a expressão a profissão maisantiga do mundo 10 Não e por acaso contudo queesta atitude e associada em particular aos pesquisadoresde gabinete do seculo XIX pois a impressão de mesmicecai por terra tão logo o pesquisador entra no campo

Minhas primeiras experiências com o NEP (Nucleode Estudos da Prostituição) logo me convenceram daheteroge-neidade deste universo Cada semana do mêstrazia mulheres de uma zona diferente Na primeirasemana orientada para meninas da Zona 2 " foipraticamente impossivel distinguir as profissionais dequalquer estudante universitarta Chegaram em tênis emacacão abrigos e uma ou outra mini-saia com saltoalto - jovens esguias chiques e sociaveis com poucamaquiagem Uma veio com seu telefone celular empunho outra desculpou um leve atraso explicando queseu carro estava no conserto Num ambiente descontraidoe com muitos risos intercalaram fofocas sobre roupasnamorados e preços no supermercado com assuntosprofissionais a qualidade de diferentes marcas de

camisinha reco-mendações sobre pomada para assa-dura de xexeca etc

Na semana seguinte era a vez das mulheres dapraça central Tudo era diferente camisetas desbotadascom calça justa ou saia curta sotaques do interiordentes descoloridos corpos mais opulentos Com umaidade media de quase 40 anos lembravam as donas-de-casa que eu tinha conhecido durante minhas pesquisasnos bairros populares da cidade Pareciam intimidadaspelo local (uma sala de reuniões dentro de uma reparti-ção publica) Com a exceção de algumas veteranasmais velhas e voluveis a maioria participava com reticên-cia da discussão opinando so quando solicitada direta-mente (Em outra ocasião cheguei a presenciar uma

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Tina Taborda Rovira que nosintegrou nas atividadesdesta associação Jatinhamos feito contato comas mulheres da praçacentral mas Tina abriunossos horizontes noslevando para as diferenteszonas incluidas no trabalhodessa ONG

' , Na outra semana era avez de profissionaistrabalhando em casa deprostituição boate oubordei mas estas menosativas na associaçãoassistiam so episodicamenteas reuniões tornando dificilqualquer caracterização deseu grupo

Essa discussao blbllografico nao e de forma algumaexaustiva Existem excelentes teses de mestrado sobreprostituição as quais não tiveacesso a tempo para incluirneste rol Vide por exemploGUEDES Luciana C C Sexocom Preço Tese deMestrado AntropologiaUFPe Recife 1986

reunião mista em que havia elementos das duas zonasmas a justaposição de grupos apenas tornou as diferen-ças mais evidentes o circulo de escrivaninhas escolaresparecia com uma aldeia bororo organizada em meta-des cada mulher que chegava parava na portaobservava a cena e colocava-se deliberadamente dolado das suas - sem comentanos Era um espelho davida la fora da sociedade de classe brasileira12)

Frente a um campo tão complexo muitos pesqui-sadores querendo aquietar sua perplexidade se engajamem exercicios de classificação lineana separando aprostituição em tipos 'alto e baixo meretncio masonsdoses e rua prostituição localizada e flutuanteorganizada e artesanal Minha primeira reação não

foi muito diferente Tentando construir meu objetotinha percorrido uma serie de situações uma casa diurnaonde uma duzia de moças algumas em trajes intimosestouravam pipocas e faziam tricô enquanto esperavamos clientes da tarde hoteis baratos onde o cheiro delinoleo molhado invade os longos corredores que dãopara quartos minusculos a espera das meninas que apartir de meia-noite sobem a escada com seus clientese a rua que parecia mudar de aspecto a cada hora danoite a cada noite da semana Querendo botar ordemnas minhas impressões procurei mapear os diferentestipos de prostituição Recorri para tanto as pesquisasetnograficas disponiveis e organizei-as numa escalaimaginaria entre call-girls de luxo e mulheres quaseindigentes Considerando que este exercia° pode ser utilcomo introdução ao assunto resumo seus resultados aquP3

A um extremo do espectro socio-econômicoexistem as garotas de programa cariocas observadaspor Gaspar entre 1979 e 1984 Segundo a autora suaescolha de tema foi inspirada no caso de uma amigaque debutava na profissão Assim ja mostra nativascujas origens sociais não são tão distantes das dela Aoseguir os shows os momentos de descanso as noitadas eas amizades de suas informantes a pesquisadora nosleva para um mundo onde o que não falta e dinheiroRejeitando a figura da prostituta sofrida que so entrou naprofissão por coerção ou misena pinta a imagem demeninas independentes que levam uma vida intensaparticipando de festas e frequentando lugares quenormalmente estariam fora de seu alcance Com umnumero relativamente restrito de programas (algumasdelas não chegam a ter mais de nove ou dez programasem toda a vida) organizam carreiras que lembram aprostituição clandestina descrita por Mattos para

cariocas da decada de 50O nivel dessas moças e variado Economicamen-

te falando são moças que trabalham em atividades

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14 MATTOS Luiza Alves deSituaçao da Prostituição noRio de Janeiro In LAGENESTH D Barruel de (org )Lenocínio e Prostituiçao noBrasil (estudo sociologíco)Rio de Janeiro Agir Editora1960 p42

'5 BACELAR Jefferson AFamília da Prostituta SaoPaulo Afica 1982

I, MAZZARIOL R M MalNecessano ensaio sobre oconfinamento da prostituição na cidade de Campinas Dissertação deMestrado CampinasUniversidade Estadual deCampinas mimeo 1976

I7 Apesar de existirem desdeo ultimo seculo debatesacirrados entre abolicionistase regulamentistas houvepoucas experiências decontrole a esta profissão Asraras tentativas deregulamentaçao incluem ocaso de São Paulo e Rio deJaneiro (entre 1940 1954) eeste retratado por MazzanolVer tombem SOAREZ CarlosDa Necessidade do BordeiHigienizado tentativas decontrole da prostituiçãocarioca no seculo XIX InVAINFAS Ronaldo(org )Histona e Sexualidade no BrasilRio de Janeiro Graal 1986

18 No Brasil a prostituiçãonao e ilegal Segundo oCodigo Penal a proibiçaolegal pesa sobre lenociniorufianismo e trafico demulheres induzir alguem asatisfazer a lascivia deoutrem (art 227) induzir ouatrair alguem a prostituiçaofacilita ia ou impedir quealguem a abandone(art 228) manter uma casadestinada a encontros parafins libidinosos (art 229) fazerse sustentar no todo ou emparte por quem exerce aprostituição (229) epromover o trânsito deprostitutas atraves defronteiras (art 230) Nao halei que proíba uma mulher

honestas para o seu sustento (grande numero de funcio-nanas publicas privadas comerciarias etc ) Intelectual-mente apresentam um certo preparo Não fazem domeretricio meio de vida de sustento e sim o caminhopara o luxo o conforto e a fama Visam vestir-se bempossuir joias de valor automoveis apartamentos14

No extremo oposto da nossa tipologia feriamos asmulheres destituidas retratadas por Bacelar 15 no centroantigo de Salvador o bairro do Maciel Como pano defundo Bacelar discorre sobre o contexto econômicodesta população majoritariamente negra com poucaqualificação profissional na epoca fim-de-milagre (1976-8) A prostituição nestas circunstâncias seria umaestrategia de sobrevivência que apesar de reduzir odesemprego de donas-de-casa mal cobre as despesasbasicas de comida e casa (Para poupar despesas comhotel as mulheres recebem clientes na peça ondemoram tendo cuidado para afastar filhos e outrosparentes durante a hora do pique ) A decadência deMaciel com seus predios arruinados serviria comometafora da misena desses mais explorados entre osexplorados as famílias das prostitutas

Mazzanol ló na sua pesquisa histonco-etnograficasobre a tentativa de regulamentar a prostituição" deCampinas tombem fala de um bairro dedicado aprostituição mas bem menos pobre do que no casobaiano Com o intuito de retirar os prostíbulos das proximi-dades de residências familiares e abolir o trottar a policia- apoiada pela imprensa e outros setores da cidade - fezuma campanha (ilegal) entre o fim dos anos 60 e o iniciodos anos 70 para deslocar a população de prostitutaspara um bairro longe do centro Taquaral"' La Eramfichadas pela policia e obrigadas a apresentar de 15 em15 dias exames medicos embora essa exigência fosseoficialmente negada pelas autoridades 19 Na suadissertação Mazzanol não somente documenta ainteração entre jornalistas policiais e mulheres comotombem nos fornece uma descrição detalhada dacomposição fases de desenvolvimento e relaçõesinternas (dona prostituta cozinheira guarda freguês) emdiferentes tipos de casas de prostituição Trata-se de umcaso intermediano (entre o carioca e o baiano) onde amulher prostituta não se considera vitima e sim que temuma profissão diferente 20

Finalmente Freitas a partir de uma pesquisa decampo realizada entre 1980 e 1982 em que conversacom prostitutas madames amigos (frequentadores debordeis) e policiais realiza um tipo de mapeamento daprostituição em Belo Honzonte 21 Seu estudo inclui casasde massagem serviços de acompanhante bordeiszonas 22 e a rua Considera elementos de barganha

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de trocar seus favores pordinheiro Para prenderprostitutas a policia fazapelo a legislação contramendicância vagabundagem e solicitação

19 MAZZARIOL op at p 26

29 lad p 4

21 FREITAS R Bordei Bordeisnegociando identidadesPetropolis Rio de Janeiro1985

92 Grandes hoteis de ate 60quartos alugados por turnode oito horas pelasprostitutas

(quanto tempo quais praticas) em cada um dos contex-tos (na media quatro programas por mulher por dia narua contra 20 nas zonas com preços correndo de três aoito dolares) para então pensar dentro de uma orienta-ção interacionista a negociação de identidades

Mostra como acusações assim como categorias demoral e imoral variam com o ponto de vista As

mulheres de rua se consideram de moralidade superior jaque trabalham num lugar frequentado por famílias (apraça publica) e se restringem normalmente a praticasbanais ( posição mamãe/papai ) Para elas as prostitu-tas de bordel seriam personagens duvidosas ja que estastrabalham num ambiente exclusivamente do submundoe aceitam praticas sexuais não-convencionais As mulhe-res de bordei por seu turno consideram que sua superio-ridade moral e atestada pela reputação da casa ondetrabalham e pela cafetina que para evitar a repressãopolicial tem interesse em garantir o bom comportamentode suas inquilinas Para estas as imorais são as mulheresde rua que sem ponto fixo seriam mais aptas a roubar efazer bagunça

RendaAprox

Local zado*Flutu nt * Clandestino*

(Moram nolugar detrabalho)

(Nãomoram)

Mais de1 s m porprograma

Garotas deprograma(Gaspar)

1/2s m porprograma

Casas deprostituiçao(Mazzariol)

Casas demassagemboate(Gaspar)

Rua (esteartigo)

1/10s mporprograma

Bordei zona(hoteis de 60quartos)(Freitas)

Rua (estearhgo)

Menos de2 s m pormês

Zona(Bacelar)

Termos retomados de L Mattos op at

E evidente que estas tentativas de dar ordem a umterreno cuja diversidade nos deixa perplexos são de grandeutilidade para analises comparativas É a partir dos estudosde Freitas Gaspar Mazzariol e Bacelar que comecei ame localizar entre as boates casas de massagem e Imitar(ver tabela anexa) Se dependesse de mim ate acrescen-

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tana novas categorias para melhor captar as sutilezas darua porto-alegrense as diferenças entre as meninas comseus 18 anos mal completos que fazem ponto nas ruelasnoturnas perto da rodoviana e as coroas que passam atarde fofocando na praça central a espera de um eventualcliente entre as quase-indigentes que dormem nosbancos da praça por medo de perder um freguês (e assimsua unica chance de comer naquele dia) e as meninasque têm casa propria carro do ano e telefone celular

Mas sera que - por esta procura de sistemasclassificatorios cada vez mais sofisticados - vamos darconta da singularidade do objeto evocada por Pagona citação acima'? A tipologia pode dar falsa segurançaNeste procedimento cientificista que lembra um natura-lista alfinetando borboletas não acabamos despedaçan-do nosso objeto inutilmente'? Com este esmiuçamentoda realidade temos a impressão de ter captado algoconcreto Mas e possivel que tal Jack Estripador corte-mos as prostitutas em pedaços so para poder preservarnossos fantasmas Depois de tudo a totalidade retalhadacontinua sendo a (eterna")) prostituta fênix que serecompõe das cinzas da tipologia pulverizante

A abordagem interacionista representa um avan-ço consideravel em relação a rotulação vitoriana quecnava para as prostitutas uma especie a parte - contamina-da e condenada No lugar de essências o interacionistacoloca categorias construídas na trama de relações econflitos entre individuos concretos No entanto estaabordagem ainda sofre restrições pois apesar desublinhar que as mulheres têm uma vida alem daprostituição acaba tratando quase exclusivamente deuma so dimensão de suas vidas os ritos e praticas quecircundam a relação profissional e sexual Raramente sãoincluidas na analise considerações sobre suas vidasfamiliares suas redes sociais de vizinhança etc Aprende-mos que algumas delas moram no lugar de trabalhooutras se dizem pelo contrario como qualquer outramulher quando não estão trabalhando No entanto nãoficamos sabendo o que significa este como qualqueroutra mulher Festas familiares aniversanos namorosfilhos - elementos basicos da vivência cotidiana - estãoausentes da mesma forma que não se fala de onde vêmessas mulheres ou para onde vão Sem passado ou futurolidamos com a eterna prostituta apesar de uma aparen-te multiplicidade de formas permanece uma variante doeterno feminino Cadê as pessoas em carne e osso'?

A tipologia e um começo não um fim em si Ajudaa destacar diferenças a partir das quais devemos seguiradiante para investigar as dinâmicas particulares a cadacontexto Porem ironicamente se tivermos êxito neste empre-endimento se conseguirmos captar a especificidade por

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23 Ao todo trabalhamos commais de 60 mulheres sendo38 da praça centralOportunamente paracomparaçao usarei dadossobre as 22 mulheres dosoutros pontos

exemplo das prostitutas que passam a tarde na praçacentral corremos o risco de desconstruir o nosso objetooriginal Pois ao situa-las dentro de um determinadomodo de vida - o bairro onde moram suas redes de

parentesco suas preocupações de mãe etc - teremosdeslocado a ênfase da profissão para uma dimensãomais englobante da vida social criando uma novatotalidade heunstica Em outras palavras para o modode ser e de se ver destas mulheres a profissão prostitutanão ocupa necessariamente um lugar de destaque Aclassificação original que coloca as mulheres da praçano mesmo balaio junto com as acompanhantes emassagistas e tão util (ou inutil) quanto um quadro queaproxima o bicheiro do vendedor na bolsa de açõesPara um antropologo acostumado a justapor conchasenfileiradas com joias da coroa qualquer comparaçãopode ser estimulante desde que sirva para explodir acoerência pacata da unidade de analise e não comono caso da tipologia para reforça-la

A proposta desta pesquisa evoluiu portanto deuma descrição classificatona do campo total de prostitui-ção em Porto Alegre para a compreensão de uma partedeste universo Elegeu-se como alvo as prostitutas da praçacentral que costumam batalhar de dia desde as primeirashoras da tarde ate oito ou nove horas da noite Conseguiensaiar alguns passos nos caminhos extra-profissionaisdessas mulheres Tive acesso a uma festa familiar fui juntonum salão de bingo e aproveitei diversos encontrosfortuitos com minhas informantes - no ônibus na fila dobanco - onde pude observa-las desempenhando algumafunção familiar (levando a filha estudante secundanstapara reunião no colegio inscrevendo o filho para o serviçomilitar) Porem não cheguei a frequentar suas casas nosbairros operanos onde moram Afinal encontrei-medirecionada peb objeto de pesquisa (um grupo ocupacional)a investir a maioria de esforços no local de trabalho

A observação participante ocorreu antes detudo na praça entre mulheres mais velhas (40 anos emmedia) que - em epocas boas - têm dois ou três progra-mas por dia a R$15 cada Têm tempo para contar suashistorias e têm estonas para contar Depois de um preâm-bulo Fervi quando era gunal segue invariavelmenteuma lista de pecados bebida drogas cadeia amantesdinheiro Mas as historias desembocam sempre no mesmolugar agora levam vidas pacatas de trabalhadora mãee esposa Entre setembro de 1994 e outubro de 1995 juntoa assistente de pesquisa Alinne Bonetti fiz um pouco maisde 40 incursões na praça onde conheci cerca de 38mulheres2 Voltei repetidas vezes para falar com as mesmaspessoas passando horas aparentemente sem objetivoparticular e sem pressa acompanhando-as na sua eterna

ANO 4 14 1° SEMESTRE 96

(e discreta) espera por fregueses Como na guerra militar95% da batalha consiste em espera e e deste tempo - numambiente de sociabilidade feminina governada por umdeterminado estilo de vida/gosto de classe - que participei

Uma forma de sociabilidade feminina

' Todas as mulheres usamnome de artista (ou de

guerra )

"Lurdes24 e uma mulher alta de 43 anos (ninguemparece esconder a idade aqui) cabelo compridopuxado para tras Sua roupa e simples indistinguivel damaioria dos transeuntes circulando pelo centro dacidade Insiste que não tem problema em conversarconosco porque não esta na praça hoje para fazerdinheiro Veio mais para conversar com suas amigas Noentanto fica de olho nos 'velhos' que passam E quandoDenise vem nos dizer 'oi' as duas ficam comentando oshomens 'parados' na outra ala como clientes potenciais"(Diano de campo 11/11/94)

Ja morava em Porto Alegre ha mais de 15 anostransitando sempre por essa praça e nunca tinhapercebido a quantidade de prostitutas que ali passamsuas tardes A população e flutuante mas em diasbonitos nunca ha menos de 30 a 40 mulheres espalhadaspelos bancos povoando os diversos sub-terntorios demar-cados - entre arvores pracinha infantil e banheiropublico - pelas calçadas que atravessam a praçaProvavelmente não tinha visto por causa da faunavariada que a praça abriga Na calçada central ficamos artesãos vendendo bijuteria produtos de couro e saiashindus Numa das beiradas da praça nos inumerosbancos frente ao calçadão sentam os aposentados Laintercalados aos michês passam horas especialmenteno final da tarde olhando para o espetaculo da rua Aalguns passos adiante virando a esquina ao lado dabanca de revistas encontra-se um bolo de homens emgeral mais velhos jogando xadrez Do lado oposto dapraça dois predios publicos - o Museu de Arte e oCorreio - assim como o banco do estado atraem umvolume enorme de clientes mas poucos destes param napraça Nas duas alas externas perpendiculares a ruacomercial engraxates - principalmente negros - carre-gam seus 40 a 50 anos com sobriedade lustrandosapatos ou metendo-se nos jogos de xadrez Finalmenteha os vendedores ambulantes que erram incansavelmen-te pela calçada se dirigindo aos membros dessa pequena comunidade para promover seus produtos suco demanga cafe cachaça caipirinha xampu perfume

Navegando entre tantas e tão variadas figurasnão e surpreendente que eu não tivesse reparado asprostitutas Ainda mais porque a maioria delas nãocorrespondia a imagem convencional da profissional de

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sexo Com raras exceções elas usavam roupa simplesmuito semelhante ao estilo usado pelas donas-de-casaque eu pesquisara nos morros porto-alegrenses Nãoeram jovens aparentemente muitas usavam tinta nocabelo mas não exageravam na maquiagem Antes detudo passavam seu tempo em circules de comadres ondesentadas ou em pe participavam de animadas conversas

Apresentava-me nesta fase pre-inicial comopesquisadora da faculdade estudando as diferentesatividades que ocorriam na praça Aracy uma senhorade longos cabelos morenos usando saia preta cumpridae uma camisa branca de gola alta e nozinho logoaceitou falar comigo Não hesitou em dar sua idade (47anos) e passou a maior parte do tempo falando dos doisfilhos ja grandes (um segundo ela camelô o outroaluno de supletivo de primeiro grau) me dando receitaspara embelezar pele e cabelo e oferecendo a vendaroupa e livros que garantia ter guardados na sua casaVim embora convencida que Aracy era daquelas senhorasque se entediando em casa gostavam de imiscuir-se nasociabilidade da praça Nada mais Porem na proximavisita contente em encontrar este rosto familiar de novono mesmo banco fui logo lhe apresentar minha assisten-te de pesquisa Alinne Começamos como na primeiravez com fofocas e banalidades mas depois de dezminutos ela não se continha mais Colocou que achavamuito legal este tipo de pesquisa que algumas das

outras gurias não gostavam mas ela sempre cooperavacomo no ano passado quando eu batalhava na frente

do mercado e vieram estudantes da PUC nos entrevistarLembro dos debates - e não e e não e - que

Alinne e eu travavamos tentando separar as prostitutasdas donas de-casa que estavam la apenas para passar otempo Viemos em pouco tempo a reconhecer que nãohavia duas populações femininas na praça Enquanto osmichês se camuflavam entre engraxates artesãos eaposentados virtualmente todas as mulheres ali sentadasou paradas eram de uma forma ou outra ligadas aomundo da prostituição

Admiro-me hoje da minha ingenuidade inicial maso ambiente despistava destoava demais dos estereotipesdo senso comum Naquelas primeiras tardes ensolarados emque saia a campo sempre achava em algum canto trêsou quatro senhoras tagarelando enquanto beliscavamsanduiches - matronas fazendo um piquenique noparque Em outro canto Ia estaria Dona Amelia adecana da Praça que com uma fragilidade pudicadigna de seus 72 anos esperava fregueses Perto daestatua central haveria alguma jovem mostrando seurecem-nascido para duas ou três outras obviamenteconhecidas de longa data

ANO 4 16 1 SEMESTRE 96

Era um territorio de intensa sociabilidade femininae muitas vezes familiar Os filhos e netos eram um temacomum de conversa - fosse para queixar-se de umingrato ou gabar-se de um bem-sucedido O filho de umaja tinha negocio proprio enquanto camelô o filho deoutra tinha sido preso uma filha tinha brigado com omarido e largado sua progenitura com a mãe (minhainterlocutora) outra era uma aluna ideal com seus 15anos ja entrava no segundo grau Informações sobreestes assuntos jorravam aparentemente sem censura Emcertos casos a informação era ilustrada por fotos ouacrescentada da frase Fulana ai ja conhece meu filhoPergunte para ela se não e assim Alias neste grupoapresentar os filhos parece ser um dos ntos de pertencimentoLembro-me de certa manhã quando ao sair de umarepartição publica (do outro lado da cidade) ouvialguem me interpelando Era Cigana Tinha acompanha-do seu filho de criação (18 anos) para alistar-se noexercito e estourava de orgulho ao me apresentar o rapaz

Marlene sempre insistia que sua nora parecia comAlinne Um dia me alertou Fique aqui porque daqui umpouco ela vai passar Prometeu trazer meu netinho parame visitar hoje Uma hora mais tarde Alinne e eu aavistamos num bolo de gente cacarejando maternal-mente em cima de três crianças Aproximamo-nos eassim conhecemos nora e neto Um dos integrantes dogrupo era o mando de Giovana outra guria da praçaAbrindo a bolsa enorme que ele carregava me mostrouuma churrasqueira portatil explicando que queriaaproveitar o fim da tarde para vender espetinhos Juntoa ele havia um casal de filhos pequenos Os dois gruposfamiliares se aproximaram para as crianças brincaremjuntas - o gesto espontâneo de pessoas que se conhe-cem como membros da mesma comunidade

Certos dias a praça parecia mais uma sala devisitas (o espaço publico domesticado pela presençafeminina) do que outra coisa Não sem frequência umadas regulares da praça nos apresentaria sua interlocutorafrisando que Ela não esta aqui para batalhar So veiopara matar saudades da gente Era o caso por exem-plo de Lurdes que tinha arrumado um velho e agoravivia enclausurada no seu JK Era o caso de Vendianaque tinha suspendido suas atividades profissionais paracurtir a visita de sua filha (com cinco anos de idade)vinda em ferias do interior Passaram na praça so paraas gurias conhecerem minha filha Era tombem o casode Linda que voltando de um cruzeiro onde foi acompanhar seu velho veio logo para a praça mostrar as fotosdela em Miami Gabou-se de seus talentos de muambei-ra dizendo que conseguiu vender tão bem as camisasde seda compradas na Florida que com o lucro pagou

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os presentes de toda a família - sobrinhos e netos Lindacom seus 52 anos e uma que diz não batalhar mais Jacriei todos meus filhos Agora não preciso mais E comseu cabelo curhnho e oculos vestindo trajes coloridos dosStates (blazer calça de abrigo tênis) mais parece umaavo faceira do que outra coisa Contudo naquelasemana voltou três dias seguidos tomando cerveja comseus antigos conhecidos ate 10 horas da noite

A praça em muitos aspectos tem o carater de umpequeno bairro caracterizado não pela harmonia idílicamas sim por um intenso interconhecimento Ha agres-sões brigas tensões Quando de madrugada cansaçoe alcool ultrapassam os limites toleraveis ha gurias queaproveitam o descuidado de uma colega para passar amão em sua bolsa Outras depois de um penodo semmovimento esquecem a etica da profissão e agemdescaradamente para tirar os fregueses de suas colegasMas na rotina do dia-a-dia e impossivel ou no =imosem graça viver sem ser integrado na turma

Quando o recem-nascido de Marganta foi hospita-lizado duas colegas da praça logo se organizaram parase revezar no hospital Quando Juliana foi largada porseu cara Giovana lhe deu um lugar onde dormir Em

troca Juliana cuidou de seus filhos As trocas vêm naforma de serviços abrigo e pequenos apoios morais Euestava junto ao grupo quando Cheiene soube da mortede seu irmão Todas estavam a par do caso Cheienetinha comprado uma cama d agua para ele na semanaanterior e esperava ansiosa noticias do hospital Suamãe trouxe finalmente a noticia junto a um pedido de150 reais para pagar o caixão Ninguem da praçaofereceu para ajudar Cheiene com as despesas masDiva logo falou que acompanharia sua amiga ao enterro

As sociabilidades se convertem em bloco politicotão logo entra em cena policial ou brigadiano O clientetruculento e outro elemento aglutinador capaz de juntaras mulheres numa frente comum costurada de indigna-ção e deboche Para traduzir este clima vale a penatranscrever um trecho de nosso diano

Eramos três ou quatro quarentonas metidas emfofocas sobre amor e paixão Cada uma tinha umahistoria sobre os homens de sua vida Em um caso foi umfreguês ( Era guarda aqui do museu - tu sabes eu nãoresisto a um uniforme' ) Em outro foi o propno mandoque depois de 12 anos fora morar com outra No meiode tudo passou um jovem musculoso e Marlene ruivasempre a mais ebuliente do grupo fez que ia desmaiarde êxtase Que gatão' Olha a bundinha'

A estas alturas um homem aparentando 25 anosfez sinal para Marlene se aproximar Como de costumeela saiu do circulo sem comentanos e sentou no banco

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25 Quem imagina que soprostitutas quarentonas seatrevem a brincar sobreassuntos de sexo deve ler apesquisa de Flavia Mottasobre idosas frequentadorasde um clube da LBA emPorto Alegre A linguagemda jocosidade abordaespecialmente (temas taiscomo) sexo corpo e certostalentos femininos Emboraessa jocosidade maliciosaesteja a cargo das maisfalantes e extrovertidas ogrupo como um todoparticipa ( ) permanentemente A bandalheira entreelas encontra certo grau delegitimidade e faz parte desuas praticas de sociabilidade Soa piadas gracejosbrincadeiras relacionadas acoisas sexuais e usando umalinguagem considerada debaixo cabo em circulosmais austeros Ver MOITAFlavia de Mattos BemMulherzinha o sexo ocorpo e a relaçao homem/mulher entre mulheres navelhice Cotidiano e GeneroCadernos de Antropologian3 PPGAS-UFRGS 1991 p26

26 Vi uma vez Marra umadas mais prosperasprofissionais de rua falandosobre a prostituiçao parauma plateia leiga Umestudante de Psicologiafazia perguntas persistentessobre trauma infantilprocurando algumaexplicaçao por esta

escolha ocupacionalMama veterena de muitasentrevistas retornou ainterrogação contra omenino e seus fantasmassexuais antes de terminarcom uma simples perguntaCom qual outra profissao

vou manter o estilo de vidaque tenho trocar de carrotodo ano e pagar a contado telefone")

com o freguês para chegarem a um acordo Mas elelogo foi embora Perguntei O que aconteceu'? E eladando de ombros respondeu Ele queria malandragemVendo minha perplexidade ela acrescentou Ele disse(ela faz voz grossa dramatica) Quero comer teu culCom isso as outras mulheres cairam na gargalhada eMarlene encorajada pela plateia foi elaborandodetalhes Ele disse que o troço dele tinha 20 cm (Maisrisadas) E eu disse pode ter 35 ou 40 ou 15 não fazdiferença nenhuma] Então ele foi embora mas xingandoTu não quer ganhar dinheiro mesmo Vai te foder 251

(Dano de campo 18/1/93)No processo de barganha com seus clientes a

mulher da praça não esta sozinha Atras dela tem umacomunidade moral pronta para lhe dar razão nos seusenfrentamentos com policia ou cliente Mas existe aindaoutro adversano masculino que inspira alianças femininaso mando Ao que tudo indica este cioso de seu controlesobre a mulher teme muito mais a influência da sociabili-dade feminina do que a da freguesia masculina Umadas poucas mulheres que se mantinha regularmenteafastada do grupo me confiou Meu marido não gostaque eu fique conversando com as outras Diz que so dazueira e vicio Zueira e vicio são termos que soboutra luz podiam ser traduzidos por irreverência eindependência - qualidades que reforçadas pela

solidariedade feminina podem fazer a diferença entrecidadania e escravidão

A prostituição como carreira

E uma profissão como qualquer outra (Morganadurante uma reunião do NEP em que surgiu o tema dalegalização da prostituição )

E evidente que a prostituição com seu statusestigmatizado alvo de repressão policial e censura pelosenso comum não e uma profissão como qualqueroutra E tambem verdade que certa parcela dasmulheres encontradas na praça não se considera nem econsiderada pelas outras como sendo da batalhafazem da prostituição uma atividade quase artesanalaparecendo na praça so de vez em quando para ver senão pinta alguma coisa E contudo inegavel que boaparte das mulheres mais velhas se vêem como gurias dabatalha e vivem suas atividades como especie de carreira

Estou aqui para sustentar meus filhos (ou netos) euma frase que ouvi muito no inicio da pesquisa Passadaesta fase de dar explicações para a pesquisadora 26

nunca mais houve referências a este tipo de desculpa Aentrada na profissão e contada pelo contrario sem

alarde Linda diz ter vivido desde 12 anos como menina

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27 Um dos unicos reconhecimentos implicitos do estigmaligado ao meti e o fato denenhuma mãe muito menosfilha ter sido descrita comocolega Esta profissao e

apresentada como escolhaindividual não familiar

" As batidas policiaisincomodam porque tiram asmulheres de circulaçaoApesar de conhecer seusdireitos muitas vezes aprostituta prefere pagar(fiança ou multa) antes deenfrentar horas de burocracia na delegacia rompendoseu ritmo de trabalhoperdendo clientes

de rua caindo na batalha como meio de sobrevivên-cia (As que começaram cedo - com 14 15 anos -declaram este fato ruidosamente como se a antiguida-de fosse prova de um grau superior de profissionalismo )Outra oriunda da fronteira começou servindo bebidasna taverna de sua mãe Uma mulher camareira de hotelfoi trazida para a rua por uma amiga que ja ostentava ostrofeus - roupa e dinheiro - da profissão Outra aindacomeçou sua carreira com 23 anos de idade depois deenviuvar e achar-se na incumbência de sustentar oitofilhos Ninguem da nossa pequena amostra diz ter sidoinduzida a profissão contra sua vontade Certas delaspodem ter começado por causa de necessidadeeconômica aguda mas tal fato foi raramente incorporado nas suas narrativas Evidentemente entre elas nãosentem a necessidade de salientar um momento dramati-co de ruptura ou decadência para justificar a queda "

Uma vez engajadas na profissão as gurias dabatalha têm que assegurar - venha chuva ou frio - umacerta regularidade no ponto Quando chove ficamaglomeradas debaixo das marquises ou sentadas naescada do banco estadual frente aos predios quecercam a praça (So as mais corajosas ficam rodando assombrinhas no meio da calçada ) Perder uma tarde - porcausa de doença ou outro impedimento - significa nãosomente uma diaria a menos Pode significar umaredução permanente de renda pois os homens sãopouco fieis Denise contou com grande magoa comoperdera um cliente de mais de quatro anos Os dias 15 e30 de cada mês logo depois de receber seu contrache-que ele vinha procura-la sempre em torno das 17h00Mas na ultima semana Denise tinha levado seu filho de12 anos ao dentista e por isso atrasou Sua vizinha (quetem ponto na frente do de Denise) não hesitou Foi seaproximando puxando assunto e acabou levando opretendente de sua rival para o hotel A partir daqueledia ele mudou de mãos Denise nunca mais fez progra-ma com ele ( Nem quis' )28

A unica ausência justificada e motivada porviagens Como em muitas outras profissões (restauraçãoturismo etc ) a mobilidade geografica e endêmicaQuando o movimento na praça esta ruim qualquerevento - a chegada dum navio a abertura de umagrande exposição o fluxo de turistas para a praia - bastapara incentivar migrações As mulheres mais velhas maisenvolvidas nos seus papeis de mãe e esposa têm contu-do dificuldade em se mudar para outras cidades Nestecaso agilizam outras taticas para completar sua renda

Praticamente todas as mulheres ja experimentaramoutro tipo de emprego não somente antes mas durantesua carreira de prostituta Muitas vezes a instabilidade da

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" Aparecem atitudessemelhantes entre mulherespesquisadas no livroMuchacha Cachifa CriadaEmpleada EmpregadinhaSirvienta y mas nadaCHANEY Elsa M e CASTROMary G (org ) CaracasEditorial Nueva Sociedad1993

3° Este mercado temmudado recentemente deperfil Aumentaram ostrabalhos femininos no setorformal diminuiu se aproporçao empregada emserviços domesticos (verBRUSCHINI Cristina OTrabalho da Mulher Brasileiranas Decadas RecentesRevista Estudos Feministasnumero especial 2semestre 1994 179 199 Aremuneraçao de serviçospessoais (faxineiraempregada domestica) temsubido É possivel que emfunçao dessas mudançasvemha a haver umareduçao de mulherestrabalhando no baixomeretriclo

31 Nos como Mazzanol emCampinas constatamos queas negras sao sub representadas entre as prostitutasquestao de moralidade maisestrita entre mulheres decor? Ou questão mais umavez da exigência de umaboa aparencia que afasta

as negras de empregos maislucrativos'?

32 GILFOYLE Timothy J City ofEros New York Cityprostitution and thecommercialization of sex7 790 7920 Nova IorqueW W Norton & Co 1992p 69 (traduçao por C F)

33 lbid p 67 Mais perto decasa o estudo de DonnaGuy sobre El sexo peligrosola prostitucion legal enBuenos Aires 1875-1955(Buenos Aires EditorialSudamencana 1994)fornece uma viagemsemelhante

clientela obriga-as a acionar simultaneamente diversastaticas para ganhar a vida Algumas como Aracy sãorevendedoras outras como evidenciado pelo cartãodistribuido por uma das mulheres pautam serviçosespecializados Conserto de panela de pressão - fogãoa gas e outros aparelhos (segue o nome completo eendereço em Guaíba a 20 km de Porto Alegre)

A prostituição com seu horario sumamente flexivelnão exclui empregos assalariados Vera Lucia porexemplo tem carteira assinada em uma firma de limpe-za trabalha em banco das sete ao melo dia Depoistrajando a roupa que carrega na sua sacola sai de tardepara a praça Mas viver so de salario 9 Nem brinca i Comofalou Morgana numa entrevista televisada Ja trabalheicomo balconista em lanchonete - com aquilo queganhava não dava nem para alimentar meus cachorros'

A alternativa mais comum e o serviço domesticoem casa de família - mas esta atividade - classicamen-

te acionada por mulheres do baixo meretricio e quasesempre apresentada em termos pejorativos A donaqueria me fazer de escrava Tinha que lavar três trouxasde roupa e cuidar de um punhado de crianças laganhar em um mês o que ganho aqui (na praça) em trêsdias Não fiquei com ela nem uma semana l E sempreque alguem aceita trabalhar neste ramo ai sim surgealguma justificação Vou para a praia ver se não arrumoumas faxinas - so ate passar a crise ate o movimentoaqui na praça melhorar 29

A verdade e que no mercado atual de empre-go3° as alternativas abertas a mulheres com origemhumilde e baixo nivel de escolaridade não são particular-mente atraentes Historiadores e antropologos têmdemonstrado repetidamente que para a mulher jovem ebonita em tais circunstâncias a prostituição soa comoopção nada desprezivel' Por exemplo Gtlfoyle no seuestudo de Nova Iorque novecentista descreve inumeroscasos de meninas que fugiram de casa desafiando seusfamiliares para entrar na prostituição Citando o exemplode meninas que vendiam sua virginidade por US$50sugere que (e)m um mercado de emprego que ofere-cia a meninas adolescentes rendas minguadas de US$35a US$50 por ano a ideia de um tal rendimento por suamocidade podia ser muito persuasiva 32 Insistindo quesalarios baixos e instaveis levavam costureiras floristas ecamareiras a recorrerem episodicamente a prostduçãoeste autor alega que durante o seculo passado entre 5e 10% de todas as nova-iorquinas entre 15 e 30 anostinham se prostituido em algum momento Para a mãeviuva o artesão desempregado e o imigrante pobreprostituição não era uma violação da retidão moral massim um elemento indispensavel da economia familiar 33

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O Novo Detonaria Aureliodefine carreira comomodo de vida profissao e

no caso da carreiradiplomalica como umaordenação de postos O

Webster de lingua inglesafala em termos maispositivos progresso navida avanço numadeterminada vocaçao

A noção de carreira presente em particular naliteratura norte-americana serve para combater o mise-rabilismo que tantas vezes assola a pesquisa sobre prostituiçãoNeste vies a mulher e vista como uma especie deempresaria que fez uma avaliação realista das oportuni-dades econômicas abertas a ela No que diz respeito anossa pesquisa não ha duvida de que a maioria dasmulheres da praça se considera profissional Contudoa ideia de carreira implica um espirito individualista eempresanal34 que talvez não seja tipo° do elhos deste grupo

Nas minhas pesquisas nos morros porto-alegrensesnunca achei uma menina que estivesse pensando seuemprego como eixo de um projeto de realização pesso-al De secretaria a empregada domestica de professoraprimaria a balconista as ocupações femininas sãosubordinadas a trajetona da mulher enquanto noivamulher e mãe Arrisco a hipotese de que entre asmulheres da praça a situação não e muito diferente

A outra carreira ser mãe e mulher

Não se fala normalmente de maridos na literaturasobre prostitutas Prostituta diz o senso comum não temmando tem gigolô Parece quase sacnlegio aproximaruma noção a outra Mas depois de um ano na quadratenho minhas duvidas O que dizer por exemplo de umcasal como Nino e Manza que vivem junto ha mais dedez anos A festa de aniversario na casa deles revelou umcasal bem integrado nas redes familiares A casa estavacheia de parentes - irmãos e sobrinhos - que se reveza-vam entre o jogo de dorminhoco na mesa de jantar umfilme de VanDamme no video e futebol na frente decasa Uma das sobrinhas tinha vindo com seu namoradoO burburinho da festa era indistinguivel do de qualqueroutra casa ate que uma das convidadas amiga daAssociação de Prostitutas falou em distribuição decamisinhas O silêncio subito do grupo indicava queaquele assunto estava ai fora de lugar Explicaramdepois que todo mundo da família sabia das atividadesprofissionais do casal mas não vazavam a noticia sempreparo a por exemplo o namorado da sobrinha

Durante o trabalho etnografico conheci uma sozona onde os homens correspondiam a minha ideia degigolô Em uma rua perto da rodoviaria a regra e quatroou cinco meninas - majoritariamente jovens (entre 15 e 20anos) - trabalharem para o mesmo homem Este alem dese gabar do tamanho de sua empresa parece mandarnas suas empregadas com uma mão de ferro - obrigan-do-as a praticamente bater ponto e outorgando-lhesraros dias de folga A "zona 2" onde trabalha Manza ediferente Bem articuladas estas mulheres cobram caro

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36 Antes da fundaçao doGAPA em 1989 a policiafazia batidas penochcasentre prostitutas da rua Eranessa epoca quaseindispensavel a mulher terum gigolo para pagarfiança e solta la da cadeiaNos ultimos anos uma seriede ONG s (NEP GAPA) juntocom os Conselhos de Mulherno nivel estadual emunicipal tem exercidouma influencia importantede forma que hoje aviolencia policial sejabastante contida

36 Pesquisas entre mulheresde bairros trabalhadoresmostraram que a pratica dedar e pegar filhos não erestrita a mulheres daprostituição Para umaanalise da circulaçao decnanças enquanto dinamicafamiliar em grupos populares veja FONSECA ClaudiaCaminhos da Adoçao SaoPaulo Cortez 1995

37 É obviamente arriscadodescrever maridos ecompanheiros que nunca viA rua e um lugar defabulação Longe dos olhosde filhos e familiares aspessoas podem usar esteespaço de liberdade parainventar passados e mesmopresentes que correspondemmais a vida que gostariamde ter do que aquela quetem Marido e teoricamenteum item de prestigio quepoderia ser inventado Masas historias que me foramcontadas eram frequentemente tao queixosas sobremaridos tao pouco ideaisque acabei sendoconvencida de suaveracidade Ainda maislidava com mulheres que seconhecem ha tempo e quefalam umas das outrasAssim era possivel corroborar dados e acrescentardetalhes a historias individuais

" Ver por exemplo SARTICynthia Reciprocidade eHierarquia relações de

por cada programa (em torno de meio salano minimo)Todas vivem com um parceiro que ajuda a cuidar deuma maneira ou outra do negocio familar38 (Ao nosapresentar seu companheiro pela primeira vez Manzadeu uma piscadela Permita-me apresentar meu empre-sano ) Em geral não têm filhos mas ostentam grandeestabilidade nas suas vidas conjugais (com duração de12 14 17 anos) ao mesmo tempo que parecem poucosubmissas aos seus companheiros São alias estasmulheres que mais animam e garantem a continuidadeda associação profissional proposta por NEP Consideran-do seu estilo de vida - telefone celular carro de ano - aprostituição neste caso pode ser pensada como umacarreira isto e uma via de ascensão econômica planeja-da a longo prazo

Na praça central entre as prostitutas mais velhasfoco da minha pesquisa de campo a situação e aindaoutra Aqui a vida familiar parece com a de muitasoutras donas-de-casa dos grupos populares Quase todasas mulheres são mães boa parte e avo Meia duma diz terdeixado um filho com a avo (geralmente materna) paracriar Porem mais do que a metade esta vivendo comparte ou toda sua prole e varias ja pegaram filhos adoti-vos para criar38

Entre as entrevistadas havia mais casadas doque solteiras Cerca da metade delas mencionou umcompanheiro fixo com quem coabita em um arranjodomestico em geral monogãmico e que elas denomi-nam mando Este tem via de regra uma historia deemprego irregular igual a de muitos homens das classestrabalhadoras consegue um bico durante alguns meses(como pedreiro empreiteiro de obras vigilante camelôou pintor) depois folga alguns meses Em um ou doiscasos as mulheres alegam que seus mandos não sabemdas suas atividades Nos outros entende-se que a rendafeminina e implicitamente aceita sendo o principalsustento da casa Em todo caso trata-se de relaçõesconjugais relativamente estaveis chegando facilmente adez ou doze anos e envolvendo filhos37

A queixa das mulheres contra seus maridos nãodifere muito da de mulheres descritas na literatura sobreclasses populares em gera1 38 Ele bebe Ele não botanada dentro de casa Ando suspeitando que ele temoutra E ainda Sabe o que e quando depois de 18 anostu não sentes mais nada por um homem" Estou com ele sopor causa das cnanças 1 Da mesma forma as expectativase elogios não diferem muito dos de mulheres em outrasprofissões Os maridos são companheiros com os quaisassistem a televisão em casa fazem churrasco no domingoorganizam festas familiares planejam o futuro ( Estamospensando em montar uma venda ) e criam seus filhos

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gênero na periferia de SaoPaulo Cadernos de Pesquisada Fundaçao Carlos Chagas70 38 46 1989 DUARTE L FPouca Vergonha MuitaVergonha sexo e morouidade entre as classestrabalhadores urbanos InLOPES J S L (coord ) Culturae Identidade Operariaaspectos da cultura daclasse trabalhadora Rio deJaneiro UFRJ Proed 1987

Falar de mando significa não somente ter filhosem comum significa tambem uma relação de exclusivi-dade afetiva Uma das coisas que mais estranhei nocampo foi ouvir as mulheres falarem de traição conjugalMarlene ao contar da paixão que sentira por um de seusfregueses suscitou a indignação de sua colega Tu querdizer que estavas colocando guampas no teu marido' ? ERosana para me explicar por que vivia com medo deengravidar de seu marido disse Se eu pedir para eleusar camisinha ele vai pensar que tenho outro na ruaSeus maridos sabem muito bem como elas ganham avida mas freguês não e caso Para as mulheres dapraça o freguês implica uma relação que não dura dezminutos Teoricamente não envolve conversa nem outrospreliminares alem da barganha quanto ao preço eserviços E um arranjo que corresponde de perto a ideiade mal necessano promovida por medicos durante oseculo XIX em que para os homens o ato sexual seriauma questão basicamente fisiologica Na realidade aprofissional que se preza cultiva seu cliente tenta estabe-lecer um laço de afetividade a ponto de ele se tornarfreguês Mas e subentendido que a relação so duraenquanto for paga A relação de mando/mulher poroutro lado e marcada pelo não-pagamento

Para melhor entender o lugar do mando nestahistoria e preciso examinar uma ultima categoria deparceiro masculino o velho Dir-se-ia que o ideal detodas as mulheres e ter um velho que me ajude isto eum cliente que se torna freguês fornecendo alem depagamento regular um amplo leque de presentes Estesvariam de uma cesta basica ate secadoras de roupaviagens e eventualmente casa O velho não se confun-de com marido Trata-se de um tipo de otano que nutre ailusão de ser unico ou pelo menos privilegiado no que dizrespeito aos afetos da mulher Por exemplo quando Mariase queixou de que não ganhava de seu velho a metadedos presentes que sua amiga ganhava esta prontamenteachou a explicação Mas o teu sabe que tu tens marido

O velho e uma figura que não somente deve serenganado deve ser tombem explorado As mulheres comen-tam com admiração sobre suas colegas que enriqueceramdesta maneira e se gabam de suas propnas conquistas

O primeiro - fiquei seis anos com ele Ele era bemrico me comprou casa tudo Mas a família dele ficoucuidando para eu não engravidar Quando ele morreu acasa ficou para mim mas não ganhei pensão A pensãoficou para a mulher dele (Diano de campo 11/11/94)

E embora possam existir laços de afeto e respeito mu-tuos a atitude publica em relação ao velho beira o desprezo

Diva uma figura imponente - que com seucollant salto alto e mini-saia parece uma teenager de

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4° FONSECA C CrimeCorps Drame et Humourfamille et \fie quotidiennedans la culture populairebresilienne Tese deDoutorado de Estado emEtnologia Universite deNanterre 1993 p 238 Vejatambem BOFF Adriane ONamoro Esta no Ar naOnda do Outro um olharsobre os afetos em grupospopulares Dissertaçao deMestrado em AntropologiaSocial UFRGS 1994 Nestapesquisa sobre mulheresdescasadas entre 40 e 50anos que procuram atravesda emissora radiofônica umcompanheiro a autoramostra que arranjar umvelho e um objetivofeminino nao somentecomum mas abertamentedeclarado

4° Ver FONSECA ClaudiaAliados e Inimigos emFamília o conflito entreconsanguineos e afins emuma vila porto alegrenseRevista Brasileira de CienciasSociais no 4 vol 2 88 1041987

" Alguns dias depois Divacontou orgulhosamente queseu velho a tinha levado no

GBOEX para colocar suapensao em nome dela Otenente olhou para mim eperguntou O senhor sabe oque esta fazendo'? E o velhorespondeu Sei muitobem I

50 anos - abre sua roda de conversa para me incluirLinda ja o vê de longe e anuncia Diva - e para ti Olhoe vejo um senhor franzino um bone de lã xadrez maltapando seus cabelos brancos Ele vem chegandodevagar devagar Esta de casacão com mãos no bolsopara se proteger contra o frio Diva sem parar o ritmo deseu discurso lança um comando na direção deleEspera um pouco não viu que estou conversando" As

mulheres começam a rir - impossivel o homem não saberque estão gozando da cara dele mas ele pacienteespera 39" (Diario de campo 14/4/95)

E interessante notar que a figura do velho tambemaparece no discurso de não prostitutas Durante pesqui-sas anteriores em famílias de bairros populares pudeobservar que a ideia de enriquecimento pelo casamento- o golpe do bau - permeia o imaginam sobre relaçõeshomem/mulher E uma estrafega discretamente espera-da da menina/moça (a virgindade como dote) eassunto de acusação jocosa contra o homem que seenvolve com uma mulher mais velha Porem e nabrincadeira com mulheres viuvas e descasadas que seencontram as referências mais explicitas Vide a cenaque transcrevi de uma visita ao bairro

Bete se queixa de não poder guardar seus filhosjunto a ela Eles foram viver com o pai deles e sua novamulher Se ficassem comigo iam morrer de fome Suavizinha oferece uma sugestão Por que tu não arrumaum velho" la resolver tudo A qual Bete responde Nãoconsegui um velho nem quando tinha 15 anos como vouconseguir agora que tenho 30 439

A relação das mulheres da praça com seusmaridos não surgem do nada Suas noções sobre mari-do e mulher se remetem a um conjunto de valorescompartilhados por seus vizinhos nos bairros popularesNestes segundo a maioria de pesquisadores a relaçãoconjugal e regida por um contrato de reciprocidade - umpacto tacsto segundo o qual o homem fornece o susten-to da casa em troca da exclusividade dos favores sexuaisde sua esposa Mas a presença neste meio de umcontingente não negligenciavel de mulheres na prostitui-ção não deixa de ter uma influência sobre a construçãoda norma Por um lado a ideia da prostituição (inversãototal do pacto) serve para estigmatizar comportamentosdesviantes e assim reforçar a norma (Qualquer

homem sustentado por sua esposa arrisca ser taxado degigolô que colocou sua mulher na batalha 41) Por

outro vemos que ate dentro do casal da prostituta haespaço para a negociação das identidades de marido emulher Vide o seguinte trecho de meu dano de campo

Ja conhecia Denise algum tempo quando um diaela se meteu a falar do marido Acho que posso falar

ESTUDOS FEMINISTAS 25 N 1/96

42 Ver SAHLINS Marshall Ilhasde Historia Rio de JaneiroJorge Zahar Editor 7990

" BEST Joe) Careers inBrothel Prostitution St Paul1865 1883 Joumal ofInterdisciplinary History XII 41982

para ti agora E que no inicio a gente nunca sabe Tupodia ser da policia Moro com um cara quatorze anosÉ pai do meu guri

Não pude me conter fiz a pergunta indiscreta Eletrabalha'? E ela Não Algumas pessoas dizem que ele egigolô mas eu não vejo assim Trabalho quando queroonde quero Seis anos atras quando me operaram dabacia ele segurou minha bronca Fiquei três mesesparada e não faltou nada em casa A gente se ajuda(Diano de campo 11/2/95)

A reciprocidade esta ai assim como a co-residên-cia e o filho em comum Em muitos aspectos o discursode Denise parece com o de outras mulheres não-prostitu-tas que conheci em pesquisas anteriores Experimentamuma mesma realidade contextuai em que poucos homensconseguem um emprego bastante regular e bem-pagopara realizar o modelo ideal Na vivência do dia-a-diacoloca-se em ação uma estrutura performativa 42 emque os valores são reatualizados onde o companheirocontinua sendo um marido apesar de não se confor-mar a definição ortodoxa

Ao recusar a analise que encara prostitutas comouma categoria a parte ao optar por uma perspectivaque enfoca a interação entre sua realidade e a do grupomaior do qual fazem parte somos levados inevitavelmen-te a aprofundar nossa reflexão sobre a relação conjugalem grupos populares Vemos então que o pacto dereciprocidade conjugal se constroi na tensão constante -a sombra da ameaça de um desequilíbrio a favor de umcônjuge ou do outro Colocado de outra forma e nazona movediça entre gigolô e velho entre quem explorae quem e explorado que um mando tem de se movimentar

Pensando a Previdência

Na literatura sociologica sobre carreiras fala-semuito da entrada e avanço na profissão fala-se poucodo fim da carreira ou da salda dela Essa tendência eexacerbada no estudo da prostituição por causa do mitoda morte precoce - a crença de que prostitutas mergu-lham na decadência de tal forma que não sobrevivem -alem dos trinta anos O historiador Joel Best43 em seuartigo sobre bordeis de Minnesota no final do ultimoseculo (1865-1883) confronta este mito Lembra que nãoexistem registros sobre ex-prostitutas O material disponi-vel policial e jornalistico e quase sempre sobre prostitutasativas Os reformadores completam este material comdepoimentos proferidos por ex-prostitutas amargamentearrependidas No entanto as que não se arrependeramas cujos destinos diluiram-se na massa anônima evidente-mente não merecem destaque

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Com um extraordinano trabalho de detetive Bestconsegue reconstruir a trajetona de quarenta cafetinas e89 prostitutas descobrindo que aproximadamente 10%usaram esta profissão como via de ascensão econômicaA titulo de exemplo o autor cita o caso de uma cafetinaque comprou inumeros lotes urbanos virando umapoderosa agente 'mobiliaria Ele reconhece que segun-do artigos nos jornais da epoca certas mulheres tiveramum destino conforme o estereotipo negativo - morreramprecocemente de doença ou assassinato Porem Bestsugere que a mann° seguiu um caminho pouco dramati-co entre a degenerescência e o sucesso retumbante

Apesar de haver muita diversidade entre elas ascarreiras das prostitutas tendiam a trilhar caminhosparecidos Cafetinas e empregadas de bordeis exerciamum papel ativo na confecção de suas carreiras entraramno vicio tipicamente porque este oferecia renda maisalta e independência maior do que outros empregos quelhes estavam abertos procuravam boas oportunidadesmudando constantemente de lugar algumas prostitutastornaram-se empresarias abrindo seus proprios bordeis edaquelas cujos destinos são conhecidos existem tantasque voltaram para a vida respeitavel atraves da aposen-tadoria do casamento ou da recuperação quanto as

44 Ibid p 618 (tradução por que morreram cedo 44

CF)

Best tem em comum com a maioria de pesquisa-dores a ideia de que a meretriz não permanece naprofissão depois de certa idade Frisando que as prostitu-tas dos arquivos policiais tinham entre 16 e 30 (commediana de 22) e que as cafetinas tinham entre 20 e 40anos (com uma mediana de 28) deduz que

Mesmo se as mulheres mentiam (quanto a suaidade) não podiam esperar continuar muito tempo nestaprofissão com cada ano elas ficavam menos atraentes

" lb p 615 com menos apelo no mercado competitivo 45

Os raros levantamentos sobre a idade de prostitu-tas no Brasil tambem mostram uma população jovem Viade regra menos de um terço das profissionais teriam maisde trinta anos as com mais de 45 anos constituiriam

46 Ver MATTOS L op cit apenas 5% do total4ó Este tipo de dado entretanto nãoBACELAR op cit e inteiramente confiavel Podemos aventar a hipotese de

que as mulheres mais velhas sempre existiram e aindaconstituem uma parte importante da prostituição mas talfato não aparece nas estatisticas seja porque sendomais experientes elas têm habilidade em se esquivar aocontrole policial seja porque os policiais e reformadoresnão as acham dignas de atenção Em todo caso tendosido confrontada durante minha pesquisa de campo aum bom numero de prostitutas de 40 anos para cimacheguei a conclusão de que nem todas as mulheresdesistem da carreira com o avanço dos anos Ja que a

46 lb p 615

46 Ver MATTOS L op citBACELAR op cit

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47 Sandra Azeredo relatouum mesmo silêncio sobre oproblema de AIDS entreprostitutas em Belo Horizontena sua participaçao damesa Sexo como Arma eCorpo como Alvo assediosexual prostituição e crimessexuais Semtnano Internamna! Feminino e Masculinoigualdade e diferença najustiça Themis AssessoriaJuriclica e Estudos deGênero Porto Alegre 5-7 dejulho 1995

prostituta como qualquer outra mulher envelhecepermanece a pergunta Qual seu destino na velhice"

Temos a niticla impressão de que as mulheres maisvelhas não ganham bem sua vida Em 1995 vivem umestado de penuna que parece amedronta-las mais aindado que a lembrança de batidas policiais Ha uma queixaquase diaria da crise da clientela Aquelas que estãomais tempo na rua evocam nas suas lembranças umaepoca aurea em que o dinheiro e fregueses rolavam soltosTecem teorias uma ciência nativa para explicar a mudan-ça sena por causa do medo generalizado de violência (osclientes acham que vão ser assaltados) ou da crise econô-mica (crtualmente o trabalhador não possui o minimo necessa-no para pagar um programa) Contudo as explicaçõespara a escassez de clientela que a mim parecem asmais evidentes - AIDS e velhice - são aqui não-ditos."

Seria absurdo dizer que o envelhecimento não sejauma preocupação para as mulheres da batalha Aquantidade de conselhos que eu recebi para o combateaos sinais de envelhecimento no meu propno corpo(rugas cabelos brancos) e neste respeito reveladoraEntretanto a relação entre velhice e falta de freguesianão aparece Diversas vezes eu arrisquei a hipotese deque minhas interlocutoras não trabalhavam em boates(onde o preço de um programa e bem mais alto) porqueestes espaços eram ocupados por gurias mais moçasCada vez elas me corrigiam Não não trabalho emboate porque não quero La rola uma historia de drogasTem que passar a noite inteira bebendo Uma vezdurante uma reunião do NEP tentei levantar o assunto davelhice (menopausa aposentadoria) Apesar da presen-ça de duas ou três mulheres acima de 50 anos o debatenormalmente animado não andava Depois de muitaespera uma ou outra mulher deu palpite Sandra faloude um cliente que rejeitou seus avanços chamando elade velha Meia hora depois ele estava la gritando quea moça que subiu com ele tinha roubado tudo que tinhaRi da cara dele Linda se queixou de que quanto maisvelha mais tempo a mulher tem que gastar esquentandoos ouvidos do freguês antes de subir para o quarto comele Entre grandes gargalhadas alguem imitou os homenscujos olhos soltam das orbitas quando passa uma jovembonita Mas a conversa parou nisso e o temcj não voltou

A evitação frente ao fator velhice na vidaprofissional pode ser explicada atraves de consideraçõespsicologicas ignoramos aquilo que mais doi Todos osoutros inconvenientes do metiê empalidecem ao lado doespectro da falta de clientes Passar oito horas a esperado freguês que não vem e um pesadelo que assombracada membro da comunidade - um pesadelo que aoque tudo indica vai se aproximando da realidade com

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49 Essa tese foi desenvolvidaem outros artigos (ver porexemplo FONSECA CTrabalho e Cotidiano o quecondiciona o quê) EstudosEconômicos (USP) V 22 25-47 1992 Limitam() nos aquia dizer que num contextoonde as dinamicas sociaissão regidas pelo valor dareciprocidade a ideia dapoupança soa estranhaSendo uma estrafegaindividualista de enriquecimento rompe com formastradicionais de sociabilidade

5° Soubemos de fontesjornalisticas que no final de1995 a Associação Uruguaiade Meretrizes conquistoupara sua categoria o direitoa aposentadoria

48 GUTMAN Herbert WorkCulture and Society inIndustnalizing Americaessays n Amencan workingclass and social history NovaIorque Vintage Books 1976THOMPSON E P Time WorkDiscipline and IndustrialCapitalism Past and Present38 56 97 1967 DONZELOTJacques A Policia dasFamilias Rio de JaneiroGraal 1977

cada ano Mas a falta de previdência - a relutânciaem poupar dinheiro de planejar em função das limita-ções profissionais que trazem a velhice - e tambemligada a fatores contextuais

Historiadores trabalhando sobre o seculo XIXmostraram quão dificil foi a introdução de uma novaconcepção de tempo industrial entre classes trabalhado-ras na Inglaterra e nos Estados Unidos O respeito porhorarios disciplinados projetos a longo prazo noções depoupança e previdência não foram imediatamente acertosPelo contrario para as classes trabalhadoras perceberemo interesse destas inovações foi preciso acionar taticassedutoras que redundassem em beneficio rea148

Sugiro que para as prostitutas da praça integran-tes de grupos que não foram atingidos por essas taticassedutoras as noções de projeto profissional e previdênciasão problematicas Comenta-se a imprevidência em tomde critica Eu ja ganhei muito dinheiro Hoje seria rica senão tivesse jogado tudo fora em drogas e bebida Umaou outra mulher pretende estar pagando INPS comocostureira para garantir uma aposentadoria eventualMas o fato de que elas continuam batalhando e decerta forma prova de que não souberam administrar suarenda de forma a garantir um descanso na velhice

As mulheres da praça não estão sozinhas No Brasilcontemporâneo muitas trabalhadoras mesmo as emempregos regulares - não investem nas suas carreirasprofissionais como projeto de ascensão A noção decarreira implica estrategias calculadas - projetos planeja-dos - a longo prazo Implica uma certa percepção dacontinuidade de tempo de te na linearidade de causa econsequência - percepções que especialmente nosgrupos onde rege a instabilidade generalizada deemprego moradia e saude não são de forma algumaevidentes As pessoas acabam portanto apostando emoutros mecanismos - o apoio de filhos por exemplo - paralhes garantir alguma proteção durante os anos pos-produtivos Travam estrategias coerentes com os valoresdo grupo49 e uma percepção particular de tempofundamentada em condições concretas de vida

Voltamos agora a pergunta o que fazem asmulheres da praça para garantir seu futuro' ? Ja que noBrasil não ha reconhecimento legal da profissão asprostitutas não podem esperar ter um plano oficial deaposentadorias' Lurdes uma das nossas informantesdiscorre sobre as possiveis alternativas

Sinto pena dessas mulheres por ai Devem pensarnelas botar dinheiro de lado ou comprar uma casa emvez de jogar tudo fora com seus gigolôs Olha a Marlene -ela e uma que consegue fazer bastante dinheiro porque- oh (faz gesto com mão) - ela e muito malandra mas

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51 DE CERTEAU Michel AOperação Histonca In LEGOFF Nora (ed ) Historianovos problemas RJFrancisco Alves 1979 p 26

52 Ver GROSSI MinamTrabalho de Campoterntorio de fronteiras degênero Fronteiras daCultura (C Fonseca org )Porto Alegre Editora daUniversidade/UFRGS 1993

52 LAGENEST op cit p 116

54 Ver tombem o livro quaseetnografico escrito por umaex delegada cariocaAGUIAR Anesia Frot OLenocinio como ProblemaSocial no Brasil Rio deJaneiro 1940

pensa bem Daqui cinco anos ela não vai poder continu-ar vindo para ca E o que vai ser dela' ? Ela tinha que fazercomo eu arrumar um velhinho (Diano de campo 11/11/94)

Lurdes como sua amiga Marlene tem 43 anos soque esta ultima mora ha onze anos com um homem quenão trabalha e vive as custas dela Este não e gigolô poissem aparecer na praça ele não controla as atividadesde Marlene nem fornece proteção E marido Velho emcompensação e quem sustenta sua mulher Lurdesorgulha-se de estar vivendo com seu segundo velhoTenho sorte diz Lurdes Não gosto de garotão vou

com a cara dos velhinhos E irônico que nesta conjuntu-ra as mulheres precavidas sejam as que evoluem degigolô a marido de marido a velho São essas queparam de ser bobas e se arrumam na vida Em outras

palavras arranjar um velho e um objetivo perfeitamenteadequado a logica do contexto uma tatica em queconvergem as duas carreiras familiar e profissional paragarantir alguma segurança na velhice

Os meandros da subjetividade o lugar que ocupamos

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Lembrando que a analise de qualquer pesquisadordepende do "lugar que ocupa nos conflitos de seupresente"51 cabe uma ultima observação sobre a nature-za subjetiva de nosso recorte

O sexo do pesquisador e um dos multiplos fatoresque compõem este lugar52 Por exemplo e possivel quepesquisadores masculinos atribuam mais importância do queas femininas ao papel do gigolô Não e sem significânciao fato de que entre os autores que contribuiram para olivro de Lagenest so o organizador (evidentemente ounico homem da coletânea) detem-se no assunto dehomens exploradores O que existe e o que todos os

sociologos de organizações politicas observam e que aolado de cada mulher ao lado de cada prostituta existesempre a figura terrivel do explorador profissional 53

Arriscamos a hipotese de que tendo dificuldade em vera prostituta como sujeito o autor acentua o papel de umoutro que a induz a quedas' Enquanto a mulher (especi-almente a mulher pobre prostituta) representa umaalteridade radical o autor localiza seu semelhante - e seuadversario - na figura do gigolô

Certamente em nenhum dos trabalhos acadêmi-cos da atualidade acharemos os vieses moralistas asfrases bombasticas de trinta anos atras Alias todos estãohoje de acordo que o rufianismo no Brasil nuncachegou ao nivel europeu Contudo entre pesquisadoreshomens parece permanecer a necessidade de explicara pouca força do gigolô. Bacelar por exemplo sugereque (no Maciel a) pobreza da prostituição e a sua

" BACELAR op cit p 58

55 FREITAS op cit p 62

57 RAGO op cif p 10 11

58 MAZZARIOL op cit p 6 7De forma significativaachamos algo deste tipo deidentificaçao no trabalho dehomens sobre profissionaismasculinos Ver porexemplo SILVA HelioTravesti a invenção dofeminino Rio de JaneiroRelume Dumara 1993 ePERLONGHER Nestor ONegocio do Michèprostituiçao viril em SaoPaulo São Paulo Brasiliense1987

iminente extinção retratam-se na quase inexistência dafigura do gigolô 55 E Freitas não desvendando umafigura masculina significativa na vida das mulheres quepesquisou levanta a hipotese de que ( )a condiçãode prostituta dada a sua precariedade moral inviabilizaa negociação de um status afetivo satisfatono comclientes colegas e rufiões 55 A ausência de um homemadministrador deixa os pesquisadores perplexos procuramcircunstâncias excepcionais para explicar como umamulher independente pode organizar sua vida desta forma

Se os homens tendem a analisar a prostituta emfunção da presença (ou ausência) do gigolô as pesqui-sadoras são mais facilmente levadas a pensar a mulherenquanto sujeito autônomo Por exemplo as autoras dacoletânea de Lagenest (1960) na sua maioria assistentessociais não são isentas de atitudes moralizantes mastendem a fitar a degradação feminina antes do que amalvadez masculina E quando esta entra em pauta emais provavelmente para lamentar a brutalidade policialdo que a malandragem de um gigolô

As pesquisadoras contemporâneas vão ainda maislonge aventando a possibilidade de uma certa realiza-ção pessoal no trabalho A historiadora Margaret Pagoreflete a feminização do pensamento acadêmico quandopropõe uma revisão das concepções lombrosianas sobreo desejo feminino ora afirmando a absoluta ausênciade tesão na mulher nascida natural e exclusivamentepara a maternidade ora alardeando contra a existênciade misterios em sua sexualidade 57" Longe de sublinhar aprecariedade moral ou uma eventual baixa auto-

estima das prostitutas antropologas tais como Gaspar eMazzanol ressaltam sua propna identificação com ossujeitos de pesquisa

As vezes eu não via diferença nenhuma entreestar no meio delas conversando em uma casa deprostituição ou estar em casa de qualquer uma deminhas amigas de família Jogavamos todas em ummesmo time mulher A diferença fundamental era o jogoentre ser sustentada por um ou vanos homens ter umasituação legalizada ou se virar 58

(Sera que não e essa identificação pesquisadora-pesquisada que leva a primeira a dispensar a insistênciano papel masculino Ja que a propna pesquisadora nãose vê com gigolô por que seu alter-ego teria necessaria-mente de aturar tal situação'?)

E evidente que alem de qualquer identificaçãocom seu objeto de estudos o sexo de um individuo temgrande influência sobre seu acesso a dados e situaçõesde campo Homens presenciam cenas que seriamvedadas a mulher e vice versa Em Bordei Bordeis porexemplo Freitas transita livremente pelos corredores das

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69 Uma investigaçao que hade ser feita traçaria aevoluçao da prostituiçaojuvenil Sabemos queatualmente existe no Brasilum mercado enorme decrianças e adolescentes naprostituição Sera queconstituem uma proporçaomaior do que em temposanteriores', É sina da nossaepoca9 O culto dajuventude e a exploraçaoda sexualidade infantilandam juntos9 VerDIMENSTEIN GilbertoMeninas da Noite prostituição de meninas escravas noBrasil 1992

zonas junto a uma enorme quantidade de (outros)homens Duvido que uma pesquisadora tivesse tido amesma inserção Mas o status masculino pode tombemcriar obstaculos Consideramos por exemplo o trechoseguinte de meu diario de campo

Quando de vez em quando o marido de Juliaaparece na praça ela faz um enorme esforço paradisfarçar a identidade dele Estava conversando commeu marido quando chegou um cliente Ele logo semandou O cliente queria saber quem era mas eudesconverse! Disse que era um cara que queria transarsem camisinha e mandei sair de perto

Deduzimos então que a facilidade com a qual asmulheres falam conosco sobre suas vidas familiares comque nos apresentam aos seus maridos e filhos quandoaparecem na praça não seria necessariamente amesma frente a um pesquisador homem

Ao fator gênero somamos uma ultima consideração - sobre idade Nossos estereotipas fazem sempre dasninfetas seu objeto sexual O termo puta velha temimpacto justamente porque para o senso comum ha umdescompasso entre uma palavra e outra E certamenteninguem negaria a realidade de um mercado sexual queprivilegia juventude e beleza 59 Assim quando lancei mãode uma pesquisa sobre prostituição jamais imaginei quefosse lidar com mulheres da minha idade Entretanto quaren-tona fui gravitando em direção das mulheres que tinhammais em comum comigo Descobri um grupo de prostitu-tas que por serem mais velhas casadas com filhos enetos tambem podiam fazer projeções em cima de mimNo jogo de espelhos entre eu e a outra fui conhecendominhas proprias ambivalências sobre temas como relaçõesconjugais previdêç)cia social e sexualidade na velhice

No inicio eu imaginava que as mulheres da praçafossem esconder sua idade e dissimular a profissãoPorem a julgar pelas brincadeiras fofocas e acusaçõesentre colegas elas não achavam estranho batalharnem com 30 nem com 40 nem com 50 anos Haviadissimulação mas sobre outro assunto Inventavambordados e enfeitavam remendos para tapar sua roupaesburacada Escondiam o endereço para ninguem veras condições miseraveis em que moravam Quandomentiam mentiam para gabar-se de compras imaginariasConclui surpresa que se demonstravam vergonha nãoera da idade nem da atividade profissional mas dapobreza em que por causa da idade e situação declasse eram obrigadas a viver

Na construção de objeto que esboçamos no iniciodeste artigo rejeitamos a perspectiva reducionista quedefine as prostitutas unicamente em termos de suaprofissão Elegemos um recorte que abrisse nossa visão

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para outros elementos da vivência dessas mulheres -formas de sociabilidade relações conjugais preocupa-ções maternas - experiências femininas que permitiamuma aproximação entre pesquisadora e pesquisadasPorem para não descambar para o romantismo ingênuoa inter-subjetividade inerente neste tipo de pesquisa devedestacar alem das semelhanças as diferenças historica-mente batidas entre sujeito e objeto de pesquisa Ao colocaruma ênfase na vergonha antes de tudo da pobreza asmulheres da praça demonstraram a especificidade deseu lugar na histona - um lugar que alem de gênero e idadedefine-se fundamentalmente por sua situação de classe

ESTUDOS FEMINISTAS 33 N 1/96

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