Rachel e Clarice: diferentes aspectos da mulher selvagem

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LÍGIA REGINA CALADO DE MEDEIROS MULHER, MULHERES: TATEANDO O SELVAGEM EM PERSONAGENS DE RACHEL DE QUEIROZ E CLARICE LISPECTOR Rio de Janeiro 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

LÍGIA REGINA CALADO DE MEDEIROS

MULHER, MULHERES: TATEANDO O SELVAGEM EM

PERSONAGENS DE RACHEL DE QUEIROZ E CLARICE LISPECTOR

Rio de Janeiro

2010

2

LÍGIA REGINA CALADO DE MEDEIROS

Mulher, mulheres: tateando o selvagem em personagens de

Rachel de Queiroz e Clarice Lispector

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do Título de Doutor(a)

em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientadora: Profa Rosa Maria de Carvalho

Gens.

Rio de Janeiro

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA

MEDEIROS, Lígia Regina Calado de.

Mulher, mulheres: tateando o selvagem em

personagens de Rachel de Queiroz e Clarice Lispector/

Lígia Regina Calado de Medeiros. Rio de Janeiro:

UFRJ/FL, 2010.

xi, 252 f.; 3 cm

Orientadora: Rosa Maria de Carvalho Gens

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de

Pós Graduação em Letras Vernáculas (Literatura

Brasileira), 2010.

Referências Bibliográficas: f. 263-275.

1. Rachel de Queiroz. 2. Clarice Lispector. 3.

Mulher. 4. Representação. 5. Selvagem. 6. Literatura. I.

Gens, Rosa Maria de Carvalho. II. Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas. III. Mulher, mulheres:

tateando o selvagem em personagens de Rachel de

Queiroz e Clarice Lispector.

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Lígia Regina Calado de Medeiros

Mulher, mulheres: tateando o selvagem em personagens de Rachel de Queiroz e

Clarice Lispector

Orientadora: Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Doutor(a) em Letras

Vernáculas.

EXAMINADA POR:

Presidente, Profa Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens - Orientadora

Profa Doutora Anélia Montechiari Pietrani - UFRJ

Profa Doutora Angélica Soares - UFRJ

Profa Doutora Elódia Xavier – UFRJ

Profa Doutora Nadilza Martins de Barros Moreira – UFPB

Profa Doutora Fátima Cristina Dias Rocha – UERJ, Suplente

Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro, 25/02/2010.

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Ao “cabrêro” meu pai (IN MEMORIAM), dedico.

Que, no ―espeto‖ da vida, soube guardar

pensamentos como quem guarda um selvagem

rebanho.

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Agradecimentos

A Deus, por ter me colocado sempre em mãos seguras;

À minha família, um porto em que, nas minhas idas e vindas, posso ancorar para me abastecer

de energia e afeto;

Aos amigos antigos, de quem tive que me afastar, ainda que temporariamente; aos amigos que

fiz durante o Doutorado; aos recém-conquistados, na alegre volta para casa; e às minhas

queridas da Residência Maria Adelaide, onde morei, no Rio de Janeiro. Todos constituindo

uma torcida pelo bom desempenho deste trabalho;

À Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), em especial, à Unidade Acadêmica de

Letras (UAL-Cajazeiras-PB), por me concederem a liberação pelos quatro anos necessários ao

desenvolvimento do Curso e à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde fui tão

bem acolhida;

À CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela concessão da

bolsa de estudos;

À Rosa Maria de Carvalho Gens, pela confiança depositada, tranqüilidade na orientação,

autonomia concedida ao trabalho, competência e amizade com que me conduziu desde o

primeiro encontro, ainda quando eu era para ela uma desconhecida;

Aos professores José Maurício Gomes de Almeida, Ronaldes de Melo e Souza e Elódia

Carvalho de Formiga Xavier, estes últimos a quem devo, por intermédio das disciplinas que

ministraram, grande parte do rumo tomado pela tese;

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, nas pessoas de Ângela Beatriz de

Carvalho Faria (Coordenadora) e Maria Urânia Pacheco Marinho (Secretária), ambas

prestativas ao atender às minhas solicitações, mesmo quando à distância;

Ao NIELM, Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura, pela oportunidade de

envolvimento maior com as questões relacionadas à mulher no texto literário;

À Banca da minha Qualificação, principalmente à Elódia Xavier e à Angélica Soares, pela

leitura lúcida, crítica, e pelas sugestões encaminhadas a este trabalho de tese;

À Nadilza Moreira, pelo convite aceito para participar da Banca do Exame de Defesa e pela

presença efetiva em momentos importantes;

À Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), no Rio de Janeiro, nas pessoas de Eliane

Vasconcelos e de Eduardo Coelho, Chefes do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira

(AMLB), que me possibilitaram a pesquisa através do acesso ao Arquivo Clarice Lispector,

onde realizei uma fundamental coleta de dados. Agradeço principalmente aos funcionários

Paula Ferreira, Leonardo Cunha e Cláudio Vitena, da Sala de Consulta, a gentileza da

colaboração;

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Ao Instituto Moreira Salles (IMS), Rio de Janeiro, nas pessoas de Élvia Bezerra

(Coordenadora) e Manoela Purcell Daudt D‘Oliveira, funcionária da Biblioteca, por me

permitirem o acesso aos originais de A hora da estrela, sob guarda da casa;

À Maria Luíza, irmã de Rachel de Queiroz, pela simpatia com que me atendeu e prestou

esclarecimentos sobre o projeto de criação do Memorial da escritora, em Quixadá-CE;

À Daise Lilian Fonseca e à Luciana Calado, especializadas em Língua Estrangeira. É pela

mão amiga que elas participam desta atividade, traduzindo e/ou revisando as minhas

traduções;

À Talita Coriolano, que me apresentou à Maria Luíza de Queiroz, tornando possível meu

contato com ela.

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Minhas mulheres são danadas, não são?

Talvez seja ressentimento do que não

sou e gostaria de ser.

(Rachel de Queiroz)

Bom, eu, agora, eu morri. Vamos ver se

renasço de novo. Por enquanto eu estou

morta. Estou falando de meu túmulo.

(Clarice Lispector)

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RESUMO

MEDEIROS, Lígia Regina Calado de. Mulher, mulheres: tateando o selvagem em

personagens de Rachel de Queiroz e Clarice Lispector. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado

em Letras). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

2010.

Este trabalho de tese tem por princípio fazer um cotejo entre Rachel de Queiroz e

Clarice Lispector. Mulheres que fizeram da escrita a sua ficção e mulheres representadas por

elas na Literatura. Assim, sem a pretensão de estabelecer uma comparação de valor, o

instigante desafio desta análise consiste em fazer, no sentido polifônico do termo, um

contraponto entre as duas escritoras. Ou seja, perceber de que maneira as vozes de uma e de

outra, cada qual ao seu modo, concorrem, em O quinze, Perto do coração selvagem, A hora

da estrela e Memorial de Maria Moura, para a orquestração de um tema maior que é a

representação da mulher no texto literário, sob um prisma de relação com o selvagem.

Analisar, portanto, as primeiras e as últimas obras, publicadas em vida, é também uma forma

de acompanhar, textualmente, a maneira como a temática se apresenta em distintos momentos

da produção. O termo ―selvagem‖ assume, dependendo do emprego, acepções diversas, tanto

correspondendo aos sentidos da natureza quanto da sociabilidade. Ao primeiro se relacionam

referências ao agreste, primitivo, bravio, resvalando até para o feroz. Ao segundo se ligam

requisitos que anunciam incivilidade grosseira. Por esta ótica, selvagem é o inconversável, o

intratável, o inculto. Há, como se vê, diferentes aspectos de manifestação do conceito,

compreendido de forma polarizada, como o faz Lévi Strauss (2004), na distinção que

estabelece entre ―cru e cozido‖, para fazer oposição entre natureza e cultura; ou de forma

relativizada, como aparece em textos organizados por Adauto Novaes (2004), em que o

selvagem pode ser tomado como mediação para a relação entre nós e os outros. No jogo da

diferença, selvagem muitas vezes é tão-somente o invertido, o negado e por que não dizer o

explorado, para império de outra identidade. Neste entendimento, muito contribui a pesquisa

na teoria de gênero para uma maior compreensão do universo representado nas obras

supramencionadas. Perseguindo este propósito, então, o estudo sobre a representação da

mulher passa por reflexões que consideram a autoria feminina, a inserção das autoras em

território literário ainda ―selvagem‖, como proposto por Showalter (1994), a autonomia das

personagens refletida também pela representação do corpo no texto, e os motivos narrativos

que dão contribuição às imagens criadas. Por fim, contata-se que as duas escritoras, Rachel e

Clarice, têm mais em comum do que faz supor uma primeira observação. Além de trajetórias

de vida literária que em muito combinam entre si, a mulher criada por elas, aqui evidenciada,

muito denuncia delas próprias e daquela, não raro posta à margem de exceção, vivida em seu

tempo. Forte e decidida, como Conceição; reflexiva e amante, como Joana; impetuosa e

guerreira como Maria Moura ou carente e pura, como Macabéa, todas elas constituem, na

Literatura Brasileira, a representação de um tatear selvagem.

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ABSTRACT

MEDEIROS, Lígia Regina Calado de. Mulher, mulheres: tateando o selvagem em

personagens de Rachel de Queiroz e Clarice Lispector. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado

em Letras). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

2010.

This doctorial research is interested to analyze aspects of Rachel de Queiroz and

Clarice Lispector literary production. These women made of writing their own fiction and

represented women in their Literature. There is no objective of making a comparison between

them, however, the challenge of this analysis consists of the establishment of a counterpoint,

in the polyphonic aspect of the term, between the two writers. For example, perceiving the

way their voices - each one in its own way - represent women in the literary text, under the

perspective of the savage, as in O quinze, Perto do coração selvagem, A hora da estrela e

Memorial de Maria Moura. Analyzing their first and last novels, published while they were

still alive, it is also a way of accompanying, textually, the way the theme is presented in

different moments of their production. The term ―savage‖ is loaded, depending on its usage,

with several possibilities of interpretation, for example, it can correspond to the senses of

nature and also to aspects of social interaction. To the first one, there are related meanings

concerning the ―agreste,‖ the primitive, bravery, even ferocity. To the second one, the

meaning refers to aspects of a rude lack of civility. From this perspective, savage is something

that one can not talk about or deal with, and it is also something that lacks in education. There

are, as it can be seen, different aspects of the concept understood in a polarized way, as Lévi

Strauss (2004) proposes, in the distinction of the idea of what is raw and what is cooked, in

order to promote an opposition between nature and culture. This aspect of the term can also be

put into a relativist perspective, as it can be seen in texts organized by Adauto Novaes (2004),

in which the savage can be taken as a mediation in the relations between us and the others.

Considering this idea of difference, savage is only, in many cases, the inverted image, that is,

what is denied and what is exploited to the benefit of another identity. Therefore, gender

theory is a key element for the understanding of the universe represented in the literary works

already mentioned here. Having this purpose in mind, the study of women‘s representation

deals with issues such as female authorship; the insertion of the writers in a desert literary

field, as proposed by Shawalter (1994); autonomy of the characters in relation to the

representation of their bodies in the text; and narrative reasons that contribute to fabricated

images. By the end of this research, it could be seen that both writers, Raquel and Clarice,

have more points of similarities than a first glance could see. Besides the similarities in their

literary life, the female characters created by them and highlighted here, reveal a great deal of

the writers‘ experiences in their own time. Being them strong and straightforward like

Conceição; thoughtful and loving like Joana; impetuous and a fighter like Maria Moura or

needy and pure like Macabéia, they all constitute, in the Brazilian Literature, the

representation of a savage search for experiences.

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RÉSUMÉ

MEDEIROS, Lígia Regina Calado de. Mulher, mulheres: tateando o selvagem em

personagens de Rachel de Queiroz e Clarice Lispector. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado

em Letras). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

2010.

Ce travail de thèse s´ntéresse pour but de dresser une comparaison entre les

écrivaines brésiliennes Rachel de Queiroz et Clarice Lispector. Il s'agit d'une recherche sur

ces deux femmes qui ont fait de l´écriture leur fiction, ainsi que sur les femme représentées

dans leur textes littéraires. Alors, comme un défi captivant, cette analyse consiste à faire une

confrontation entre les deux écrivaines, sans pour autant, avoir la prétention d´établir une

comparaison de valeur. On tente de mettre en évidence, par la polyphonie, la manière dont

leurs voix, chacune à sa façon, contribue à l´orchestration d´une thématique plus large, celle

de la représentation de la femme dans une perspective de rélation avec le sauvage, dans les

oeuvres O quinze, Perto do coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria

Moura. Il s´agit, donc, d´analyser leurs premières et leurs dernières oeuvres, publiées de leur

vivant, comme une façon de suivre, textuellement, la manière dont la thématique se présente

dans de différents moments de production. Le terme « sauvage » prend plusieurs acceptions

différentes, d´après son emploi, soit par rapport aux sens de la nature, soit par rapport à ceux

de la sociabilité. En se rapportant au premier sens, on trouve des reférences à la région

« Agreste », au primitif, à la vaillance, voire la férocité ; et le deuxième sens est lié à des

éléments qui annocent l´incivilité grossière. Dans cette optique, le terme sauvage représente

l´intraitable, le grossier, l´inculte. Comme on peut le voir, cette notion comporte plusieurs

nuances différentes, comprises de manière polarisée, selon Lévi Strauss (2004), dans sa

définition sur « le Cru et le Cuit », qui marque l´opposition entre la nature et la culture. La

notion de sauvage peut aussi avoir une conception relativisée, de médiation entre nous et les

autres, selon les textes organisés par Adauto Novaes (2004). Dans le jeu de la différence, le

sauvage n´est souvent que celui qui est à contre-courant, le rejeté, et, pourquoi pas, l´exploré,

au détriment d´une autre identité. Dans cette perspective, les théories de genre contribuent à la

compréhension de l´univers représenté dans les oeuvres déjà citées. C´est, alors, en

poursuivant cet objectif que l´étude sur la représentation de la femme mène à des refléxions

sur les « auteurs femmes », leur insertion dans des territoires encore « sauvages »

(SHOWALTER, 1994), la représentation de leur corps dans leur écriture, l´autonomie des

personnages et aussi sur les motifs narratifs qui contribuent à la création des images. En

conclusion, on constate que les deux écrivaines Rachel e Clarice ont plus de points communs

que l´on pourrait supposer au premier regard. Outre la ressemblance de leurs parcours

littéraires, le portrait de femme repésenté dans leurs oeuvres dit beaucoup d´elles mêmes,

ainsi que des femmes, mises à l´écart de la société, marginalisées dans leurs temps. Des

femmes fortes et decidées, comme Conceição; réfléchies et amantes, comme Joana;

impétueuse et guérrière, comme Maria Moura ; ou fragiles et pures comme Macabéa, toutes

ces femmes représentent dans la Littérature Brésilienne la touche du sauvage.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 12

I – REPRESENTAÇÃO DA MULHER FRENTE AO SELVAGEM DE RACHEL DE

QUEIROZ E CLARICE LISPECTOR .............................................................................. 26

II – ESPRAIAR-SE EM CAMPO SELVAGEM: DA ESTRÉIA CONCEBIDA À

VERTIGEM DA ESTRELA ................................................................................................ 85

III – UM CORPO SE APRESENTA EM RACHEL E CLARICE: ESPELHO,

ESPELHO MEU, A MULHER QUE SOU EU................................................................. 135

IV – MOURA E MACABÉA ENTRE MOTIVOS: A DONZELA-GUERREIRA E OS

MACABEUS ........................................................................................................................ 197

CONCLUSÃO: QUANDO A MULHER SELVAGEM AMEAÇA IRROMPER ........ 244

REFERÊNCIA ................................................................................................................. 263

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INTRODUÇÃO

A idéia de unir Rachel de Queiroz e Clarice Lispector num mesmo trabalho,

autoras que, cada uma a seu modo, já alcançaram consagração na Literatura Brasileira, resulta

de um conjunto de experiências adquiridas ao longo do Curso de Doutorado na Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

Ao iniciar as atividades de Doutoranda, apresentara, na ocasião, um projeto de

pesquisa que, desde sempre, demonstrava o interesse pela representação da mulher na

Literatura, especificamente a mulher nordestina. O objetivo central do estudo constituía, à

época, verificar de que modo esta, analisada sob uma ótica fundamentada nos estudos de

gênero, vinha sendo representada. A proposta, incipiente, contava analisar obras exemplares

do Romantismo ao Modernismo brasileiros, a saber: O sertanejo, Inocência, Luzia-Homem,

D. Guidinha do Poço, O quinze e Grande sertão: veredas.

Ainda durante o período em que eram cursadas as disciplinas obrigatórias ao

doutoramento, tornou-se perceptível que o ―salto‖ pretendido com o estudo era maior do que a

―perna‖, e que o esforço empreendido para se alcançar o objeto talvez nem compensasse os

resultados a que levaria a investigação. Aos poucos, o que antes parecia interessante proposta

veio se constituindo uma insuficiência em pesquisa. Talvez o que mais tenha incomodado

nesse estudo, a ponto de exigir reestruturação, estivesse no quesito previsibilidade.

As primeiras análises realizadas sempre conduziram o trabalho a um denominador

comum. Ou seja, salvas as raríssimas exceções, observou-se uma tendência em se perpetuar

em obras de escritores da tradição literária, em sua maioria masculina, a imagem, já gasta, de

mulher elaborada em bases conservadoras, patriarcais, quase sempre vista de maneira

estereotipada e, por que não dizer, machista. Desse modo, muito pouco iria acrescentar o

trabalho aos estudos críticos em Literatura Brasileira.

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Um olhar mais maduro em torno das obras antes pretendidas também revelou uma

falta de critérios mais definidos na indicação dos títulos a serem analisados. Tome-se, por

exemplo, o fato de que, das seis obras apresentadas, fosse apenas uma de autoria feminina,

sem que houvesse, no projeto inicial, nenhuma informação adicional que justificasse tal

discrepância no processo de escolha. Ao que parece, hoje, a preocupação no momento de

escolher as obras esteve ao sabor da representação. Num procedimento de delimitação frágil e

pouco convincente, elegeu-se um romance representativo de cada período literário, buscando,

no conjunto, o alvo da investigação e só. Embora, em termos pragmáticos, nada impeça

efetivamente que tal estudo se realize, a pergunta que volta e meia veio sendo formulada era

em que aquela análise colaboraria para o quesito novidade em pesquisa.

A insatisfação com os resultados contraproducentes, até então alcançados,

impulsionou a pesquisa a um estágio de alteração radical, mantendo somente com a primeira

proposta, já apresentada, alguns pontos de contato. O interesse continuou sendo o estudo

sobre a Mulher na Literatura, mas a abordagem se dá, agora, numa direção mais definida.

A participação em atividades ligadas ao NIELM (Núcleo Interdisciplinar de

Estudos da Mulher na Literatura) bem como a freqüência em disciplinas do Curso de

Doutorado, ligadas à questão, associadas a um interesse já demonstrado, ainda que de forma

preliminar, foram cruciais para delimitar o trabalho para a autoria feminina. A esta altura, a

mudança de perspectiva justificou-se na própria mudança de atitude enquanto pesquisadora.

Espera-se, naturalmente, que um aluno, egresso de um curso, se torne, em termos de

experiências, bem diferente de quando ingressa nele, sobretudo no que se refere a ponto de

vista, e é isto que se vem notando. As leituras e as discussões promovidas em torno da

temática de gênero foram decisivas para o rumo dado à pesquisa.

Concorre para a nova decisão, também, um trabalho monográfico, preparado,

ainda, em cumprimento às exigências de crédito em disciplinas, sobre a personagem

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Conceição, de O quinze (1930). O aval da professora Elódia Xavier, com autoridade no

assunto, e a boa ressonância advinda desta investigação acerca da representação do corpo

feminino na Literatura Brasileira, trouxeram a certeza de que, de todas as obras anteriormente

sugeridas, o romance de Rachel de Queiroz era o único que tinha garantias de que

permaneceria na nova proposta de tese.

Os motivos que levaram à opção por Clarice Lispector foram bem outros. O

primeiro deles se deve ao professor Ronaldes de Melo e Souza e também está ligado ao

período de curso das disciplinas. Estudando o perspectivismo narrativo no romance brasileiro,

o professor instigou a reflexão em torno da perspectiva em narrativas do século XX, incluindo

entre as obras sugeridas para estudo o romance Perto do coração selvagem (1943). Clarice é,

entre os autores apresentados, a única mulher que o professor toma como exemplo para falar

da nova narrativa.

Assim é que, numa coincidência jocosa, Queiroz foi ―salva‖ entre seis num

trabalho que previa, além, dela, um estudo com Alencar, Taunay, Domingos Olímpio,

Oliveira Paiva e Guimarães Rosa. De forma semelhante, Lispector ―escapou‖ a um estudo

entre quatro. A análise da narrativa no século XX, na proposta do professor Ronaldes, incluía

Graciliano Ramos, Adonias Filho, Clarice Lispector e Autran Dourado.

Gracejos à parte, naturalmente foi o trabalho comparativo, entre Perto do coração

selvagem, de Clarice Lispector, e Retrato do artista quando jovem, de James Joyce, durante o

curso da disciplina acima referida, que motivou, inicialmente, a escolha da obra clariceana,

aqui também posta para análise. Desperta para o estudo acerca da narrativa do século XX,

Rachel de Queiroz e Clarice Lispector pareceram revelar para esta pesquisa as duas pontas de

um novelo. De um lado, a narrativa de 30, período em que o romance se associa, em

princípio, a uma perspectiva mais social; e, de outro, a geração Pós-45, ou assim

convencionada chamar, que se espraiou pela contemporaneidade, e a exemplo de Clarice e

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outros inovadores na arte, se manifestou com textos ligados a questões de ordem mais

psicológica.

Sabe-se que essa é uma frouxa divisão. Ao afirmar que o romance de Clarice

Lispector segue uma corrente psicológica é dizer pouco da sua produção. As obras dela,

comumente apontadas em aspectos de caráter introspectivo, intimista, filosófico, etc., estão

sujeitas aos desdobramentos. Da mesma forma os romances sociais desdobram-se, como bem

lembra Afrânio Coutinho (1986), apresentando-se comprometidos ora com o documental ora

com o revolucionário. É, portanto, considerando todas estas possibilidades que os romances

de Rachel de Queiroz e Clarice Lispector são estudados.

A despeito de parecerem, à primeira vista, literaturas díspares, e sem a pretensão

de estabelecer comparação de valor entre elas, o instigante desafio da análise pretendida

talvez esteja em fazer, no sentido polifônico do termo, um contraponto entre elas. De que

maneira as vozes de uma e de outra, cada qual ao seu modo, concorrem para a orquestração de

um tema maior que é a representação da mulher no texto literário, sob o prisma da relação

com o selvagem.

Decididas as autoras e os dois primeiros textos, faltava definir ainda que outras

obras seriam trabalhadas, simultaneamente, concorrendo todas para o alcance temático. Aos

poucos, algumas identidades foram aparecendo. Tanto O quinze quanto Perto do coração

selvagem constituem produção de estréia na carreira literária das escritoras Rachel de Queiroz

e Clarice Lispector, respectivamente, restando saber em que cada obra publicada pode

representar para cada autora um romance de formação.

As autoras também estão ligadas a fatos literários que, embora externos ao texto,

as colocam, num certo sentido, em trajetória parecida. Ambas começaram cedo na Literatura

oficial e mais cedo ainda no ofício da escrita, as duas exercendo a função de jornalista. Ainda

desconhecida, Lispector publica seu primeiro conto aos dezessete anos, mais ou menos, e

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Queiroz estréia como romancista aos dezenove, período em que publicou O quinze, ainda que

antes disso já tivesse escrito um romance de folhetim, sem divulgação. Em comum elas têm

também o prêmio ―Graça Aranha‖, de melhor romance no ano de cada publicação. Rachel de

Queiroz em 1931 e Clarice Lispector em 1943.

Vários artigos de jornais das principais capitais do país, alocados em pasta

específica no Arquivo Clarice Lispector, guardados pela Fundação Casa de Rui Barbosa

(FCRB), no Rio de Janeiro, tratam da concessão do prêmio. Num deles, em texto semelhante

a uma ata de reunião, aparece publicado:

Foi anunciado em seguida, o assunto principal da reunião, conceder o Prêmio Graça

Aranha de 1943. Recaiu a escolha no romance ―Perto do coração selvagem‖, de

Clarice Lispector. Como a autora se encontra em Nápoles, em companhia do seu

marido, o Cônsul Maury Gurgel Valente, a Fundação solicitou ao chanceler Leão

Veloso que consentisse em ser a notícia enviada por intermédio do Itamarati, no

que S. Excia. acedeu.

[...]

Pela segunda vez, o Prêmio da ―Fundação Graça Aranha‖ é dado a uma romancista,

Clarice Lispector, pelo seu livro ―Perto do coração selvagem‖. O seu primeiro

prêmio coube a Raquel de Queiroz, quando publicou o [sic] ―Quinze‖. (A manhã.

Rio de Janeiro, 13/10/1944).

O prêmio, bastante ambicionado, era concedido como mérito para obras de estréia

e representou para as duas, sem dúvida, um importante momento de recepção. Lograr a

honraria significava dizer que os textos atendiam aos critérios exigidos pela avaliação, entre

eles, o da modernidade e das idéias avançadas. Assim, a recomendação sob a forma de láurea

valia por uma bênção de estréia. O prêmio, atribuído a várias artes, indiciava uma carreira

promissora. Não por menos, todos que a mereceram, na Literatura Brasileira, se tornaram, de

fato, figuras relevantes na área.

Quanto ao caráter da escrita das duas, este merece ser analisado, de modo a

verificar se não ocorre interposição de vertentes numa mesma escritora. A despeito de uma

assimetria de produção, grande parte das obras de Rachel de Queiroz se volta para o social,

enquanto em Clarice Lispector uma menor parte do que produz se ocupa da questão, vale a

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pena investigar as implicações disto para os textos literários, sobretudo quando a discussão

recair sobre o procedimento narrativo assumido pelas autoras em áreas fronteiriças.

É verdade que se estabelecer em situações que remetem ao entre-lugar resulta, não

raro, em incompreensão. É o caso da perspectiva de Tristão de Athayde, sobre Rachel, na 5a

série de seus Estudos (1933), que vê como arrogante a atitude perscrutadora de Conceição, em

O quinze, para o que diz respeito ao seu próprio papel social e humano. Veja-se o que diz:

Conceição, que é visivelmente a figura da própria autora, delineia os traços de uma

rebelião individualista, apenas vagamente esboçada, pelo sentimento de

superioridade sobre o meio, pelo sarcasmo contra as preces da avó, pelo espírito de

visibilidade excessiva que revela a cada página. (ATHAYDE, 1933, p. 96).

Uma vez que a obra não se limita à perspectiva naturalista da seca, lugar-comum à

temática das obras de então, recai sobre a ótica do crítico esta visão negativa do que chama

―espírito interior‖ da personagem. Ou seja, se já era pouco comum mulheres escritoras, mais

incomum, ainda, seria admiti-las em constante reflexão, a exemplo do que ocorre no texto

com a personagem queirozeana. Conceição é uma mulher de ―de idéias‖ e isto muito

contradiz o espírito feminino ―legítimo‖ representado por sua avó. Depois, fugir ao padrão das

moças casadoiras e trair a vocação maternal, aparentemente inscrita no próprio nome, faz a

heroína deslocar-se socialmente, suas dúvidas em muito se aproximando das crises

existenciais a que têm ―direito‖ personagens masculinas já conhecidas.

Clarice Lispector, em contrapartida, sempre avessa a escrever sobre fatos em

Literatura, quando lança a novela, A hora da estrela (1977), última obra publicada em vida,

reúne no mesmo volume a temática social, dela tantas vezes cobrada, sem fugir, no entanto,

do investimento psicológico e de um narrador que tem em suas digressões as marcas de uma

individualidade, muito comuns ao autor implicado no texto e muito próprias da escritora.

Se o drama da seca, por sua vez, some em O quinze, o ambiente paisagístico

parecendo desaparecer em prol de uma visibilidade para a personagem, em A hora da estrela

Clarice Lispector chega a prescindir dele, no texto, para falar da nordestina. E embora a

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crítica comumente atribua às duas escritoras terrenos particulares, rotulando-as, de forma

unilateral, perceber nas obras em estudo o procedimento literário, sobretudo quando

supostamente uma resolve penetrar no território ―da outra‖, é o que pretende observar este

estudo.

Se o gérmen da investigação já se apresentava nas questões supramencionadas, o

evento ―Clarice Lispector: a estrela e o coração selvagem‖, promovido pelo NIELM/UFRJ e

ocorrido de 29 a 30 de outubro de 2007, em meio às comemorações dos 30 anos sem Clarice,

foi definitivo para consolidar uma decisão que já vinha sendo tomada e incluir A hora da

estrela no novo formato de pesquisa, em desenvolvimento.

Resolve-se escolher, também, o último romance publicado por Rachel de Queiroz,

Memorial de Maria Moura (1992), fechando, com este, o recorte dado ao objeto de estudo. A

idéia é, portanto, analisar as primeiras e as últimas obras de cada escritora já referida. Sendo

inapropriado estudá-las restringindo-as aos textos literários de estréia, incluir os dois últimos

trabalhos da produção delas em vida é também uma forma de tentar perceber de que modo a

maturidade, esperada na fase literária considerada adulta, se expressa e pode oferecer de cada

uma para o estudo aqui em questão.

O corpus desta pesquisa fica, então, circunscrito às obras: O quinze (1930), Perto

do coração selvagem (1943), A hora da estrela (1977) e Memorial de Maria Moura (1992).

Apesar de serem títulos ligados à literatura canônica, que já alcançaram um peso na tradição

literária brasileira, anima a idéia de colocá-los em inusitada parceria, fazendo das duas

escritoras um objeto de tese. Ademais, concorda-se, aqui, com Ítalo Calvino (1993) quando,

em resposta à indagação ―por que ler os clássicos?‖, que dá título a uma de suas obras, o autor

responde, fazendo graça, que é melhor do que não lê-los.

Uma pergunta que talvez se some a esta primeira é: Lê-los em que direção? Pois,

como endossa o professor Antônio Carlos Secchin, em 2006, numa palestra, ocorrida na

20

Academia Brasileira de Letras e alusiva ao cinqüentenário de obras de Guimarães Rosa, estes

mesmos clássicos são livros que, embora permanentes, se mexem sem parar, o que faz pensar

neles sempre como um convite aberto à exploração.

Rachel de Queiroz e Clarice Lispector já lograram para si uma fortuna crítica.

Estudiosos de renome se debruçaram sobre os textos delas e tanto uma quanto a outra, a

segunda talvez mais que a primeira, recebeu considerada referência em bibliografia dedicada

à produção. Todavia, pelo menos no que concerne à busca eletrônica, praticamente inexistem

trabalhos acadêmicos com pretensão semelhante, de fazer um estudo, simultâneo, voltado

para analisar, nas obras indicadas, a representação da mulher através do selvagem a que se

ligam as personagens.

E um primeiro passo importante para discutir a mulher relacionada ao selvagem,

neste trabalho, é se certificar dos conceitos que estão sendo utilizados. Assim, já o capítulo

primeiro inaugura-se com definições. Do dicionário de termos à resenha crítica sobre o

significado do selvagem, a perspectiva é dar elucidações sobre o tema, num breve

esclarecimento de pontos ligados à história e à mitologia, para só então partir para o estudo

literário propriamente dito.

Há diferentes aspectos de manifestação do selvagem, que fique claro, sendo

importante observar, nos textos em tela, de que maneira a mulher com eles se relaciona.

Savage (Oxford) ou sauvage (Michaelis) traduz-se de maneira variada, conforme seja a

percepção. Selvagem é o inculto, o de alma agreste, o de natureza primitiva e que apresenta

mesmo resistência em ser domesticado. Pode ser bravio, resvalando até para o feroz.

Apresentar incivilidade grosseira ou às vezes ser somente o inconversável, o intratável. De

qualquer modo, seja qual for o aspecto do selvagem em evidência, no texto literário ele é

carreado de significados. Entre estes, merece destaque o da alteridade. No jogo da diferença,

21

selvagem muitas vezes é tão-somente o invertido, o negado e por que não dizer o explorado,

para império de outra identidade.

Enfim, apresentados os motivos que levaram à escolha do tema, das autoras e das

obras, para um estudo sobre a representação da mulher relacionada ao selvagem em Rachel de

Queiroz e Clarice Lispector, bem como evidenciados os aspectos do selvagem de que se vai

tratar, resta apresentar, por sua vez, o que é desenvolvido nos demais capítulos.

No segundo capítulo, intitulado ―Espraiar-se em campo selvagem: da estréia

concebida à vertigem da estrela‖, faz-se uma apresentação geral das obras das escritoras, a

discussão se concentrando, todavia, nos romances O quinze e Perto do coração selvagem.

Espraiar-se aí, no sentido mesmo em que se emprega, de como as duas, Rachel de Queiroz e

Clarice Lispector, vencendo os obstáculos iniciais da carreira, se estendem pela Literatura

Brasileira, alcançando consagração. Como toda estréia que se propõe a lançar algo novo, tem

seu aspecto selvagem, é sob o signo desta concepção que se toma, então, a atuação das duas

na arte literária. Mulheres produzindo num terreno em que os homens ainda são maioria

autoral.

Aos motivos da recepção e aos motivos da narração se circunscrevem o segundo e

o quarto capítulos deste trabalho. Assim sendo, enquanto este concentra a discussão em torno

de Memorial de Maria Moura e A hora da estrela, é sobre as obras de estréia que aquele se

detém. Revisitar os primeiros textos da crítica quando do lançamento dos primeiros romances

e analisar em que se pautavam as discussões referentes às duas escritoras é uma tarefa que aí

se cumpre. Verificar de que modo as duas escritoras, de literaturas diferentes, têm trajetórias

que se combinam, também. Discutir, por fim, ainda que superficialmente, as influências sobre

Queiroz e Lispector, de outros autores e outros textos, ajuda, sem dúvida, o(a) leitor(a), antes

de se deter nas questões específicas que se quer analisar, a entrar em sintonia com este

primeiro momento da produção delas.

22

Desta fase da pesquisa, destaca-se, como de fundamental importância, a coleta de

dados possível graças ao trabalho de campo realizado no Arquivo-Museu de Literatura

Brasileira (AMLB), abrigado pela Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). No AMLB se

encontram arquivos de escritores brasileiros, alguns já inventariados, como é caso de Clarice

Lispector (CL), que recebeu organização e catalogação de todo o material doado à instituição.

Disposto em pastas que distribuem por assunto o que se refere a documentos pessoais (dp),

correspondência pessoal (cp), produção intelectual (pi), da escritora e de terceiros (pit),

recortes de jornais (j), entre outros, o acervo, na oferta de tão rico material, sem dúvida,

contribui, possibilitando uma investigação mais depurada sobre a escritora. Este espólio

concentra, obviamente, uma discussão em torno de Clarice, o que não equivale dizer que, por

intermédio dele, não tenham vindo proveitosas informações que fazem referência à Rachel,

possíveis de conferir mais adiante.

Da manipulação desses dados, cumpre dizer, a título de justificativa para as notas

de referência, que dois procedimentos foram adotados, no corpo deste trabalho, para orientar

o acesso a tudo quanto foi utilizado. São eles: cita-se a fonte original, informando ou não o

assunto e a pasta em que se encontram catalogados, quando se tratar de dados com definições

completas de edição. Como, por exemplo, um texto que apresente autoria, editor, local e data.

Quando estes não são definidos, utiliza-se, aqui, como elemento de referência apenas a

indicação do assunto, a pasta em que se encontra e a folha, respeitando a numeração,

conforme consta da organização do(a) arquivista. Aproveitadas e devidamente

contextualizadas, as informações permitem avançar, por fim, para a análise literária

propriamente dita. É a mulher textualizada por Rachel de Queiroz e Clarice Lispector, então,

que interessa nos capítulos que seguem a este.

O capítulo terceiro está comprometido, por sua vez, com a representação da

mulher em O quinze, Perto do coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria

23

Moura e se detém no estudo do corpo das personagens. Persegue-se, neste momento da tese,

portanto, a mulher encorpada. Sob o título ―Um corpo se apresenta: espelho, espelho meu, a

mulher que sou eu‖, a discussão trata do corpo representado para as protagonistas e suas

marcações ideológicas. Observa-se, neste propósito, por exemplo, que há em O quinze uma

insistente negação corporal de Conceição, arquitetada por um projeto literário que procura

conceber uma racionalidade para a heroína. Construído a partir de um ponto de vista

cartesiano, o processo de representação se dá de modo que, quanto mais ―mente‖, menos

―corpo‖ o texto tem para oferecer à personagem. De forma diferente ocorre com Maria Moura

em obra sugerida por título de memorial homônimo. A heroína desde sempre assume uma

corporalidade no texto. É uma mulher dona, sobretudo, de uma sexualidade. Ela assume seus

desejos na obra, o que a faz se distanciar, neste aspecto, da personagem Conceição.

Curiosamente parece haver uma movimentação contrária em Clarice Lispector, no

que concerne à representação do corpo das heroínas estudadas. Em Perto do coração

selvagem, na cena do banho, à luz de uma epifania, no sentido mesmo em que emprega

Affonso Romano de Sant´Anna (1990), em Análise estrutural de romances brasileiros, talvez

uma das cenas mais destacadas pela crítica do romance, um corpo parece ser descoberto por

Joana. Instaura-se na obra, apesar de tudo, um drama entre o sensível e o inteligível, como já

ocorrera também com a Conceição de Rachel, estando a abordagem em Clarice colocada

talvez de maneira ainda mais sugestiva. Trata-se, portanto, no romance clariceano, de uma

cena epifânica, reveladora de um corpo que brota da água. A própria imagem da água aparece

ligada à idéia de nascimento, de uma mulher que está nascendo, descobrindo o próprio corpo

no texto.

Já o corpo ―representado‖ para a nordestina Macabéa entra no procedimento da

anulação. Carente de tudo no texto, ela também vai sofrer, na obra, de carência corporal. De

―esvoaçada magreza‖, grande parte da invisibilidade da protagonista passa, metaforicamente,

24

pela insuficiência do corpo dela. O próprio fato de possuir ―ovários murchos‖ já é outro

indício de sua falta, impedida que é de continuar na cadeia da perpetuação. O corpo ―cariado‖

de Macabéa, no texto, é, por sua vez, a imagem perfeita de uma existência que dói em Clarice

Lispector.

O quarto capítulo da tese, o último, procura dar ênfase à Moura e à Macabéa, entre

dois motivos que constituem referentes anteriores para a narração: a donzela-guerreira e os

macabeus. Em contrapartida ao primeiro capítulo, desenvolvido em torno das obras de estréia,

este, como já foi mencionado, se concentra nas últimas obras delas, publicadas em vida.

Trabalhar as duas personagens femininas, Moura e Macabéa, a partir de uma perspectiva que

se volta para tais motivos narrativos, tem a sua razão de ser. A donzela-guerreira é uma forma

de representação de uma figura que se faz presente no imaginário de culturas bastante

diferenciadas. Trata-se da mulher que camufla a sua feminilidade e, assumindo um papel que

comumente seria atribuído ao pai, irmãos ou marido, se destaca na batalha pela bravura e

destreza das armas. Garantir a si mesma é uma das prioridades dessa figura. Apesar do

esforço, entretanto, comumente ela falha em seus propósitos, já que sua identidade é

descoberta pelos opositores e ela desmascarada.

Há em Maria Moura, sem dúvida, elementos que atualizam na personagem

características da donzela-guerreira. Os estudos em torno dessa representação, todavia, quase

sempre se circunscrevem, nos textos literários brasileiros, aos contextos rurais, de uma

―aristocracia‖ já passada. Mas, se for pensada a donzela-guerreira na contemporaneidade

literária, como ela seria? Macabéa também trava uma luta para sobreviver na cidade grande,

embora menos instrumentada do que se espera de uma heroína quando dos preparativos para

uma batalha. Ela também fracassa em sua empreitada e, assim como as irmãs antepassadas,

morre virgem, pois, como reza o modelo para o qual esta análise se volta, se resolve casar,

deixa de ser tanto donzela quanto guerreira.

25

Estas são, enfim, questões pontuadas ao longo do texto. A própria história bíblica

dos macabeus, de onde provavelmente se origina o nome da protagonista, está ligada a uma

relação de conflito, cuja desavença envolve a família judaica dos macabeus e os gregos, seus

opressores. Conta Flávio Josefo (2007), em História dos hebreus, que os macabeus foram

compelidos pelos gregos a transgredir suas práticas religiosas, sob pena de serem reprimidos

até à morte, caso se negassem a fazê-lo. Cansados da vilania imposta, eles insurgem contra os

opressores e recuperam o direito à doutrina. Em que a história dos macabeus se parece com a

história de Macabéa é algo digno de ser observado, seja pela aproximação dos nomes dos

heróis, pista narrativa que leva a uma leitura sugestiva de A hora da estrela, seja pela

perspectiva guerreira em que se pauta a discussão textual.

Diante de tais sugestões, vale chamar a atenção, no entanto, para um importante

dado de análise. Moura, no papel de transgressora, encontra uma maneira de sobreviver à

ausência dos pais e à opressão imposta pelos primos. Da mesma forma, Macabéa, assim como

os macabeus, também é vítima da opressão dos ―poderosos‖. Ela é uma pobre nordestina,

perdida na cidade grande e, como aqueles, do passado, resiste, desde quando lhe seja possível

resistir. De qualquer modo, seja na associação com a donzela-guerreira, seja na aproximação

com os macabeus, falar de Moura e Macabéa é falar, sobretudo, do diálogo em Literatura com

modelos de referência.

Só para não esquecer, todos os pontos levantados nesta análise e que envolvem a

representação do corpo, o gesto fundador em obras inaugurais e as associações que lembram o

mito, primitivo, são abalizados sem que se perca de vista a relação com o selvagem. Para

alcançar a representação que se faz da mulher pelo viés proposto, a teoria pode vir do texto

mesmo de Queiroz e Lispector. Estas, conscientes do novo papel da mulher na sociedade, não

raro inserem na discussão pistas de leituras realizadas por elas e relacionadas à questão

feminista. Inquirir de que modo as questões feministas refletem no ponto de vista narrativo, e

26

em que há uma teorização sobre o assunto, nos textos analisados, constitui um passo

importante nesta investigação realizada.

Além de contar com essa possibilidade, leituras são feitas sob a perspectiva das

críticas antropológica, sociológica, estilística, de gênero e da estética da recepção. É

revisitada, ainda, a fortuna crítica de cada uma das escritoras, inserida e discutida nesta

análise conforme a necessidade da abordagem.

Enfim, sendo esta a pesquisa realizada, fica aqui o convite para se perseguir o

rastro do selvagem e, relacionando-se com ele, perceber de que maneira vai sendo construída

a mulher em O quinze, Perto do coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria

Moura.

27

– REPRESENTAÇÃO DA MULHER FRENTE AO SELVAGEM DE RACHEL DE

QUEIROZ E CLARICE LISPECTOR

A leitura das obras, em apreciação, fez despertar interesses sobre o selvagem,

sobretudo na maneira com que se desdobra nos textos das autoras supramencionadas. A partir

do que se verifica da relação entre as personagens, aqui postas em evidência, é possível

perceber que o termo selvagem tem múltiplas acepções e qualquer tentativa de análise deste

deve levar em conta as formas distintas em que aparece, bem como o contexto que veicula o

significado.

De acordo com o registro, o Online Etymology Dictionary, traz as seguintes

definições 1:

Selvagem (adj.): c. 1300, ―selvagem, indomesticável, indomável‖ (animais e

lugares), do Francês Antigo sauvage, salvage ―selvagem, indomável‖, do latim

salvaticus, alteração de silvaticus ―selvagem‖, literalmente ―das matas‖, de silva

―floresta, arvoredo‖. Para pessoas, o sentido ―estouvado, ingovernável‖ é usado

desde c. 1400, em princípio no sentido ―indomável, valente‖ (c. 1300). Implicações

de ferocidade são atribuídas a partir de 1579, inicialmente para animais (1407). O

substantivo significando ―pessoa selvagem‖ é de 1588 em diante; o sentido do

verbo ―partir com os dentes, atacar‖ é de 1880 em diante. (TRADUÇÃO DA

AUTORA).

Consultando, ainda, a versão eletrônica do Novo Dicionário Aurélio, é possível

notar que há pelo menos doze acepções para o termo ―selvagem‖ e, reiteradamente, o

significado vai variar de acordo com a aplicação. Há sentidos que se ligam à raiz

―selva/silva‖, com qualificativos que determinam pessoas, animais e plantas

(selvático/silvático, silvestre, silvícola); outros, dependendo do emprego, qualificam um lugar

(desabitado, deserto, ermo); um comportamento natural (bravo, feroz) ou um comportamento

social (grosseiro, rude, intratável, inconversável). Há exemplos em que logo fica evidente, na

1 Savage (adj.): c.1300, "wild, undomesticated, untamed" (of animals and places), from O.Fr. sauvage, salvage

"wild, savage, untamed," from L.L. salvaticus, alteration of silvaticus "wild," lit. "of the woods," from silva

"forest, grove." Of persons, the meaning "reckless, ungovernable" is attested from c.1400l earlier in sense

"indomitable, valiant" (c.1300). Implications of ferocity are attested from 1579, earlier of animals (1407). The

noun meaning "wild person" is from 1588; the verb meaning "to tear with the teeth, maul" is from 1880.

(http://www.etymonline.com)

28

definição, a relação que se estabelece entre natureza e cultura para explicar o termo. É o caso

do aplicativo ―inculto‖, seguido da frase que ilustra a perspectiva que relaciona homem e

natureza, a saber: que ―ainda não foi domado, amansado, domesticado, ou que é difícil de

ser‖.

Sempre que o verbete aparece associado à cultura, como qualificativo para povos e

grupos étnicos (sem civilização, primitivo, bárbaro, não-letrado, tecnologicamente menos

desenvolvido), uma preocupação se evidencia no dicionário e em função mesma do risco da

inexatidão conceitual que pode resultar em preconceito. É em função disto que vem o alerta:

―o termo é atualmente evitado pelos antropólogos, por ser considerado impreciso e pouco

fundamentado, além de ter conotação depreciativa‖.

Tal resistência, então, encontra razões no uso indevido. Uma aplicação autoritária

do termo selvagem pode cumprir com a finalidade de escamotear uma realidade, por exemplo.

E entre as possibilidades de estudo, um dado não se pode negar: a figura do selvagem existe

no pensamento ocidental desde a Antigüidade e faz pensar. Em ―O selvagem e a História.

Heródoto e a questão do outro‖, publicação eletrônica da Revista de Antropologia da USP,

Klaas Woortmann (2000), professor da Universidade de Brasília, traz esclarecedoras

explicações em torno do significado ―selvagem‖ ao examinar, tendo por base o pensamento

grego antigo, os limites impostos pela teoria da história para a compreensão da alteridade.

Nesse contexto de idéias, como afirma o professor, é dada particular ênfase ao papel

desempenhado pelos ―citas‖, povos constituídos pela Antigüidade como os selvagens por

excelência.

Para discutir a História registrada por Heródoto, Woortmann (2000) faz um

contraponto com Aristóteles, e sua Política (2006), quando este, no estabelecimento da pólis,

determina que aquele que vive fora da cidade não possui uma humanidade plena, visto que

vive uma vida sem lei. Ou seja, se só realizava a plenitude o homem que vivia na cidade

29

projetada por ele, quem não era da pólis, não era grego, portanto, era considerado bárbaro ou

até mesmo selvagem. É fácil presumir que tal pensamento constitui uma premissa, dando

margem a muitos preconceitos registrados pela história, sobretudo no que tange à diferença.

Atento a isto e a uma perspectiva que envolve interesses, escreve Woortmann (2000, p. 02):

Se o bárbaro e o selvagem podiam ser tematizados e precisavam sê-lo, como

condição para a tematização da própria identidade grega e da pólis, pouco interesse

havia no conhecimento de povos concretos, fossem eles caracterizados ou não

como selvagens.

No entanto, informa, se o selvagem até então só interessou como tema imaginário,

Heródoto, fazendo uma espécie de etnografia da memória, trabalhando com elementos

concretos, vai se constituir como pensamento de exceção. Embora o seu interesse pelos citas

recaia sobre uma questão de rivalidade pessoal, o fato é que ele, na contramão das tendências

dominantes de sua época, postulava uma história que incluía os bárbaros, desde o Egito até os

persas, e mesmo os ―selvagens‖ citas, marginalizados até então.

Na verdade, o selvagem já existia no plano da mitologia e até antes mesmo de o

bárbaro ingressar no plano da história. Sua representação, por sua vez, encontra-se no texto de

Woortmann (2000) dividida entre seres selvagens que são mitológicos e seres selvagens que

são reais.

São representações do homem selvagem mitológico: centauros, ciclopes e ninfas.

Todos eles se opõem à pólis, são percebidos como ameaça, e estão em oposição à

―civilização‖. Klaas Woortmann (2000) lembra, de forma ilustrativa, que o ‗encontro

mitológico‘ entre o grego e o centauro, por exemplo, é paradigmático para o futuro ‗encontro

etnográfico‘ entre gregos e povos tidos como selvagens.

Mitologia e etnografia, como se vê, tendiam a se misturar, como explica o

pesquisador, à medida que os gregos intensificavam suas relações com outros povos. Assim é

que o canibalismo e o gigantismo dos ciclopes, bem como o desconhecimento deles em

relação à agricultura, permaneceram atributos do selvagem até o encontro com os ameríndios.

30

Ainda na linha de representação do selvagem ambíguo, além dos centauros

(metade homem metade cavalo), as amazonas também são percebidas como seres liminais

(meio termo entre humanos e não-humanos). Elas, como imagina Aristóteles, estão mais

próximas da natureza que da cultura e guardam, por seu turno, a fronteira entre espaços

liminais fundamentais para a cosmologia grega.

No que diz respeito aos selvagens ―reais‖, os citas, habitantes da Cítia (lugar

selvagem), terra de eremia (deserto) e região de eschatiá (confins do mundo), constituem para

o imaginário grego a antítese da civilização, possibilitando, no recurso da narração de

Heródoto, um contraste para a construção da identidade helênica.

Os citas, estudados por oposição, têm todas as características atribuídas ao

selvagem, sendo estas obviamente impensáveis para o modo de vida grego. Diferente dos

helenos, eles são nômades e desconhecem a agricultura. Não comem pão, freqüentemente

comem cru, não trabalham, não moram em casas e não edificam templos para os seus deuses,

que, aliás, se acham reduzidos em relação aos deuses adorados pelos gregos. Ou seja, os citas

são definidos pela história por tudo aquilo que os gregos não são.

No que compete ao comportamento cita, ainda, e certamente influenciado por

Hipócrates, que era médico, além de geógrafo, e defendia que as diferenças culturais em boa

parte se deviam ao ambiente físico, Heródoto também explica por este algumas ocorrências,

hábitos e costumes. A esterilidade dos citas, por exemplo, é resultado do excessivo frio a que

estavam expostos, uma vez que, na maior parte dos dias do ano, a temperatura da região

habitada por eles era muito baixa. Escreve Woortmann (2000, p. 08) a respeito:

A Cítia se explica , pois, através de um modelo de inversão. Conhecendo o Egito se

pode conhecer a Cítia por simetria, invertendo todos os sinais. E vale notar que se

os egípcios são bárbaros, são bárbaros ―civilizados‖, enquanto os citas são

―selvagens‖. Um tal modelo que, abstratamente concebido, poderia se aproximar da

epistéme, parece ter uma função de tornar exótico pelo contraste ― todas as outras

terras‖ cuja metonímia seria a Grécia (equilíbrio entre o frio e o quente; o seco e o

úmido).

31

A origem mítica dos citas também ganha visibilidade em Heródoto e, seja qual for

a investidura nela concedida, um dado não deve escapar: o povo cita é o povo mais novo de

todos os povos conhecidos e a legitimação da ultimogenitura, valorizada por eles, contrasta,

por sua vez, com o valor da senioridade na cultura grega. O mito helênico das origens dos

citas, como chama a atenção o pesquisador da UNB, é cheio de ambigüidades e serve,

principalmente, para demarcar o afastamento cultural, espacial e temporal em face dos gregos,

já que aqueles pertencem ao tempo dos monstros.

Segundo Woortmann (2000), ainda, Heródoto, no interesse demonstrado pelos

citas, procura helenizá-los. Seja na relação que estabelece entre o povo cita e as amazonas, de

um modo a fazer com que selvagens imaginários possam tornar mais familiares outros

selvagens, imaginados; seja na relativização da ―selvageria‖ cita. Para ele, a Cítia não é toda

deserta, embora contenha desertos. É ao norte que se encontram os desertos, e a selvageria vai

crescendo à medida que para lá se avança, explica o historiador grego. O nomadismo, por sua

vez, ganha novos e contraditórios contornos de significado. Para Heródoto, a nação cita teria

desenvolvido a mais sábia das soluções, pois um povo sem cidades, um povo de arqueiros a

cavalo, que não vive da agricultura, mas de seu gado e cujas habitações são carroças, é um

povo que não pode ser combatido e derrotado. Tal apologia, entretanto, empurra os citas em

direção contrária, tendo em vista que, constituindo-se o inverso dos gregos, seu nomadismo

sempre se definiu negativamente.

Os citas, na verdade, figuram como recurso narrativo no texto construído por

Heródoto, bons que são para pensar a relação entre gregos e persas. Selvagens mais que

bárbaros, eles são os mediadores cuja alteridade permite o relato que opõe os dois povos. E

para construir as diferenças significativas da alteridade, o historiador utiliza, de forma

argumentativa, a retórica da inversão. Embora trabalhando com esta, que mais afirma a

32

diferença do que a compreende, seu interesse pelos citas vem testemunhar, entretanto, que

todos são humanos e merecedores, portanto, da curiosidade histórica e etnográfica.

Para o pensamento grego, assegura Woortmann (2000), estimulando a percepção,

há oposição entre cosmos e caos, entre cidade e fora-da-cidade. Há, ainda, uma associação

entre o selvagem e o homem monstruoso. A suposta mudez de alguns povos podendo indicar,

inclusive, um estado ou estágio selvagem, alguém ininteligível, sem a linguagem que

caracteriza a sua humanidade. De um modo geral, resume-se no nomadismo, na ausência de

agricultura (saber) e num suposto ―comer cru‖ os sinais da selvageria. No plano simbólico,

bom não esquecer que centauros ou ciclopes podem ser usados perfeitamente como metáforas

para representar bárbaros ou selvagens.

Observar, também, que a idéia de selvagem incluía desde seres violentos e cruéis

até outros, sábios e justos. A propósito, cumpre assinalar que Sócrates foi comparado a um

silenus, um ser que era considerado bestial, mas capaz de decifrar os segredos do mundo.

Heródoto, por fim, se moveu, conforme argumenta Woortmann (2000), num espaço

intelectual que fundia, por necessidade, mitologia com etnografia. Lembrar, entretanto, que a

História deste pensador é a construção de uma identidade grega e nessa construção o

selvagem mitológico foi o espelho da alteridade, tanto quanto o foi o selvagem cita.

O texto do professor Woortmann instiga, sobretudo, porque vem ao encontro de

algumas das reflexões encontradas neste trabalho para o que diz respeito à representação do

selvagem. A questão da alteridade é, sem dúvida, um ponto importante a ser discutido, porque

remete a abordagem diretamente para uma das dificuldades do ser humano, em não só lidar

como compreender o outro, sendo mais preocupante ainda a questão quando este outro é o seu

diferente. O termo selvagem, a despeito de seu sentido primeiro, literal, assume, ainda, por

analogia, o significado de tudo aquilo que é estranho ao ―modelo‖, este, que se auto-define

como ―civilizado‖, que se localiza distante não só geográfico como político e, em especial,

33

culturalmente. Nisto incorrem muitos dos erros de percepção do outro, vale repetir, cujos

registros a história já se encarrega de demonstrar.

Aristóteles, para tanto, deu a sua parcela de contribuição. No que diz respeito ao

pertencimento ou não-pertencimento à pólis, tal questão, embora antiga, nem por isso deixa

de encontrar ressonância no pensamento moderno, sendo atualizada, por exemplo, em

políticas que concebem, de modos preconceituoso e estigmatizado, a cidade e o campo, o

interior e a capital, a periferia e o centro, sempre de uma maneira a estimular a segregação.

Como se pode notar, um estudo que envolva diversidade etnográfica precisa levar em conta as

diferenças, o que nem sempre acontece. Ao contrário, muitas vezes, em vez de compreendidas

e respeitadas em sua particularidade, quando vistas por um olhar de fora, são submetidas a um

processo de aculturação. Exemplo disto ocorre na história contada por Heródoto que, embora

procure dar visibilidade aos citas, o faz na tentativa de helenizá-los.

Uma coletânea recente, intitulada Civilização e barbárie, organizada por Adauto

Novaes (2004), com textos de áreas diversas das Ciências Humanas, atualiza algumas dessas

reflexões sobre a clássica oposição. Cite-se, por exemplo, o ensaio ―Tolerância e diferença‖,

de Newton Bignoto, em que este recorre ao texto de François Hartog (1999), sobre a

representação do outro e que toma por parâmetro a história registrada por Heródoto, em

procedimento próximo ao realizado por Woortmann (2000). ―Sem gregos, nada de bárbaros‖.

Esta é a defesa de Hartog, reiterada por Bignoto, que considera, ainda, ser a divisão mantida

como um marco fundamental para a compreensão do mundo civilizado. E completa:

Não seria absurdo pensar que muitas das características que os gregos atribuíam a si

mesmos parecem hoje as qualidades associadas às sociedades ocidentais e os

defeitos dos bárbaros, aqueles dos povos incapazes de seguir a marcha do progresso

e das idéias das Luzes. (BIGNOTO, 2004, p. 70).

É defesa comum dos estudiosos, vistos até então, que os bárbaros são insensíveis

ao saber ou à beleza pura, são alheios à ordem e desconhecem a arte. Bastam-se nas

34

satisfações das necessidades vitais e nos prazeres grosseiros. Assim sendo, constituem o

avesso da civilização.

Essa visão dualista, que separa o homem bárbaro, afeito ainda à natureza, do

homem civilizado, modificado culturalmente pela aquisição de hábitos que o distanciam do

homem primitivo, constitui uma referência importante em Lévi Strauss (2004),

especificamente em O cru e o cozido, primeiro volume da série ―Mitológicas‖. Já na abertura

do livro, há uma advertência do antropólogo, ainda quando em defesa da música, para o que

se constitui como recorrente no texto dele. Categoricamente, afirma Strauss: ―a natureza

produz ruídos, e não sons musicais, que são monopólio da cultura enquanto criadora dos

instrumentos e do canto.‖ (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 42).

Strauss (2004) estuda o comportamento de índios americanos e, ora aproximando

ora refutando mitos, busca uma compreensão antropológica das práticas deles, até chegar ao

alimento cozido, desde sempre apontado como ―arte da civilização‖ (LÉVI-STRAUSS, 2004,

p. 136). A técnica do cozimento é reconhecida em sua análise como promotora de

distanciamento entre os que a dominam e aqueles que, desconhecendo o fogo, comem carne

crua. De um modo geral, embora constituam práticas, ―cru‖ e ―cozido‖ são termos alçados ao

nível da metáfora e bem servem para representar os dois universos referendados

distintamente: de um lado a natureza, bárbara; e de outro a cultura, disciplinada por novos

hábitos, conforme explica o antropólogo:

[...] os mitos Jê de origem do fogo, assim como os mitos tupi-guarani sobre o

mesmo tema, operam por meio de uma dupla oposição: entre cru e cozido de um

lado, entre fresco e podre do outro. O eixo que une o cru e o cozido é característico

da cultura, o que une o fresco e o podre, da natureza, já que o cozimento realiza a

transformação cultural do cru, assim como a putrefação é a sua transformação

natural. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 172).

Por intermédio do cozimento há um sucedâneo de exigências da vida civilizada,

que não requer apenas o fogo, como também plantas cultivadas, que esse mesmo fogo permite

cozinhar, a exemplo do que é demonstrado em outro mito Jê. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p.

35

181). Mais adiante, além de colher e cozinhar, surge, também, a necessidade de temperar cada

planta. Tudo se resumindo numa espécie de aprendizagem de uma cultura culinária. (LÉVI-

STRAUSS, 2004, p. 307). Disto compreende-se o fundamental papel exercido pela

alimentação dos índios, em estudo, marcando não só a passagem da natureza à cultura, como

contribuindo para definir, através deles, a condição humana. Por esta lógica, o fogo da

cozinha é um fogo criativo, difere do fogo destruidor, por isso mesmo ele é cultural. Ou seja,

ele garante à cultura um poder sobre a natureza.

Cultura e natureza são elementos não só que rivalizam como parecem justificar o

ponto de vista que opõe civilização à barbárie. No entanto, há que se relativizar o problema e

Francis Wolff, no ensaio ―Quem é bárbaro?‖, se empenha nesta tarefa quando, ainda que sem

fugir à dualidade, procura dar-lhe uma nova roupagem. Veja o que diz, de forma conclusiva,

ao discutir os sentidos da barbárie, tentando elucidar a compreensão que tem do conceito:

O bárbaro, portanto, é aquele que pilha as igrejas para fundir o ouro que nelas

encontra, que queima os livros ou... destrói estátuas. Para alguns, é simplesmente a

civilização Disneylândia e McDonald‘s, pela imagem que passa da diversão ou da

gastronomia (WOLF, 2004, p. 22).

Para Wolff, a exemplo do que se vê, existem estágios para o sentido do conceito.

Assim sendo, o bárbaro tanto pode pertencer a um estágio anterior à própria cultura humana,

como a um estágio anterior de socialização ou de história política. De qualquer modo, seja

qual for o tipo de estágio a que o bárbaro se liga, isto o remete ao arcaísmo. Trata-se do

homem não suficientemente evoluído, quando não do bárbaro que se encontra em estágio

pior, do pré-humano, que o faz permanecer em estágio selvagem.

Relativizando ainda mais a questão, Wolff volta a atenção para os gregos antigos,

que consideravam legítima a escravidão dos persas, para eles uns bárbaros. Cumpre, aqui,

então, repetir a pergunta que faz, de modo insurgente: ―Mas o que é mais bárbaro,

desconhecer a retórica ou praticar a escravatura?‖ (WOLFF, 2004, p. 27). E quantos não

foram os povos considerados bárbaros, tão-somente por praticarem hábitos ou ritos religiosos

36

distintos dos deles. Isto é o que ocorre, por exemplo, entre índios e europeus. Quando aqueles

tiveram o reconhecimento de que eram dotados de alma, o que os habilitava à conversão

cristã, foram substituídos por outra mão-de-obra gratuita, advinda dos escravos trazidos da

África. Ou seja, prevalece a idéia de um povo sujeitado a outro. E, fruto da intolerância, na

impossibilidade de aceitar uma outra forma de humanidade, bárbara será sempre a dificuldade

de admitir e reconhecer nela outra cultura.

A verdade é que há formas do bárbaro se manifestar. É ilusória, para não dizer

arrogante, a idéia de um só bárbaro, simples e único, se opondo à idéia também simples e

única de civilização.

Uma cultura civilizada é sempre virtualmente mestiça. Em suma, uma civilização é

enriquecida por uma pluralidade de culturas, enquanto uma cultura é bárbara

quando é apenas ela mesma, só pode ser ela mesma, permanece centrada e,

portanto, fechada sobre si mesma. [...] Sim, existe barbárie, e não porque existem

povos ou culturas que sejam bárbaros por natureza, mas porque existe um modo de

pensar que é incapaz do uno e do múltiplo. (WOLFF, 2004, p. 42, grifo do autor).

Toda esta discussão, anteriormente referida, assume uma importância aqui

atribuída enquanto veículo de contextualização da temática em análise. Um estudo com

mulheres e sua representação na Literatura envolve questões que induzem o(a) leitor(a) a

pensar por caminhos que levam à Sociologia, à Antropologia, às relações culturais como um

todo. Assim compreendendo, sem a preocupação em adotar um conceito e aplicá-lo neste

trabalho, faz-se a opção de considerar todas as formas de representação encontradas. O

selvagem, aqui, em investigação, interessa mais em suas possibilidades de manifestação do

outro, no texto literário, do que em sua definição propriamente dita, embora não se chegue a

uma sem passar pela outra.

―Tatear‖ este outro é o que se pretende nos romances e novela elencados para

estudo. Sendo assim, a busca consiste em compreender de que modo as personagens de

Rachel de Queiroz e Clarice Lispector, sobretudo as femininas, com o selvagem se relaciona

nas narrativas apontadas. Como se dá o trabalho com a alteridade em O quinze, Perto do

37

coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria Moura? Que ―outro‖ se define

nestas obras quando filtrado pela perspectiva da mulher, quando ela por si só já sofre a

discriminação de ser compreendida como uma ―outra‖? As diferenças são compreendidas ou

também na literatura a segregação reproduz o que é ponto de vista da sociedade dominante?

Mulher selvagem é a que fala, porque inaugura, como é possível comprovar, uma nova voz,

mas também é a que se representa? Estas e outras são questões abalizadas ao longo deste

trabalho.

O não-conhecimento do objeto pode levar ao estigma. No caso dos gregos, o

pouco interesse por povos alheios à cultura deles fez destes verdadeiros ―monstros‖. Para eles,

os selvagens em tudo lhes faziam oposição. A convicção era tanta, que já havia um modelo

instituído, ficando fácil reconhecê-los. Ser selvagem, entre outras características, é ser

nômade, não possuir as técnicas básicas que garantam a sobrevivência (os citas não tinham o

saber agrário, por exemplo), é não ter o domínio da linguagem, fundamental para a realização

plena do ser humano, é ―comer cru‖, por ter desconhecimento das técnicas do cozimento (de

novo o saber), quando não, é ser canibal. Sempre um destruidor, que quando não ―pilha‖ o

próprio território, ―pilha‖ a própria espécie.

Sejam quais forem as manifestações deste selvagem antigo, a perspectiva analítica

deste estudo vai demonstrar possibilidades em que os resquícios dele se deixam encontrar na

literatura brasileira moderna. E por mais que pareça inusitada a questão, O quinze, Perto do

coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria Moura vão dar testemunho disto.

Embora a idéia não seja se bastar no texto de Woortamann, até porque rica é a

questão para ser retida num só ângulo, uma leitura imediata já colocaria o(a) leitor(a) em

sintonia com as afirmações que defende acerca do selvagem, como é possível notar do resumo

das idéias dele aplicadas às obras em questão.

38

Em O quinze, Conceição vai encontrar nas famílias de retirante, perfeitamente

representada pela de Chico Bento, o seu equivalente invertido. Culta, com domínio de

linguagem, morando na cidade e com uma profissão definida, a heroína em tudo contrasta

com a rudeza, a ausência de uma linguagem que caracterize a humanidade plena do grupo e a

carência econômica das personagens. Os emigrantes não têm, principalmente, um saber

técnico, que lhes garanta a sobrevivência básica. Ignorar, não ter uma linguagem plenamente

definida e vagar sem destino são ações que devolvem o homem aos tempos remotos da

humanidade, tempo do homem selvagem. Comparadas estas características, por uma ótica

etnocêntrica, como se vê, em muito se aproximam os retirantes de O quinze dos selvagens

antigos. Elas constituem, por extensão, modos de pensar o que ainda não foi ―civilizado‖, e o

que não alcança, por isso mesmo, a humanidade almejada em plenitude.

Um outro atributo possível para o selvagem está na ausência de razão. No romance

queirozeano, ainda que em episódio circunstancial, a racionalidade comprometida resulta em

crueldade e sinais conseqüentes de selvageria, manifestados no sumiço do menino Pedro,

estudado mais adiante. No geral, há, em O quinze, assim como se pode notar com os gregos

em relação ao povo cita, uma espécie de construção de identidades contrastivas, servindo

também os retirantes para marcar, por oposição, a identidade ―civilizada‖ de Conceição.

O ―civilizado‖ se opõe ao selvagem, é o que se vem observando até então, e esta

temática igualmente se encontra na obra de estréia de Clarice Lispector. Joana, a heroína,

apresenta uma percepção mítica do selvagem, cujas reflexões o título da obra já parece querer

anunciar. Sabe-se que uma das principais representações do homem selvagem, no plano

mítico, centra-se na figura do centauro, híbrido de homem e cavalo. Curiosamente há, em

Perto do coração selvagem, uma verdadeira sedução por cavalos na narrativa. No texto

clariceano, é como se a protagonista transmitisse a eles o que tem de mais próximo do seu

―selvagem interior‖. Meio termo entre humanos e não-humanos, os centauros são seres

39

liminais. Paradoxalmente uno e dividido. Ainda que pareça forçada a comparação, muitas

vezes é assim que o(a) leitor(a) vai se deparar com Joana, na tentativa de encontrar consigo

mesma, cindida entre uma natureza de gente e outra, senão de ―fera‖, pelo menos de ―víbora‖.

O relato mítico é uma reflexão sobre a relação entre natureza e civilização, relação

problemática em todo o pensamento ocidental, na qual a natureza parece ser uma

categoria central do pensamento ao mesmo tempo em que é um estado a ser

suplantado. O encontro entre o herói civilizador e o centauro expressa, então, o

contraste entre a natureza selvagem e a civilização (WOORTMANN, 2000, p. 03).

Simbolicamente, é bom lembrar de que nem sempre os seres selvagens se

representam como violentos e cruéis. Há aqueles que são selvagens, no sentido de silvestres,

mas que são também justos e sábios. Parecem ser esta justiça e sabedoria perseguidas por

Joana, no romance, inconformada com sua natureza ―civilizada‖ e muito carente de sua

verdade animal. Os itinerários de Joana em Perto do coração Selvagem, assim como a

violência e crueldade que experimenta, embora por um ângulo mais filosófico, ligam-na, sem

dúvida, ao aspecto selvagem visto por uma atmosfera que se esmera em intelectualizar o

conceito.

Sem fugir completamente do selvagem mítico, e sob o reflexo de um modelo de

representação já conhecido, Memorial de Maria Moura oferece material suficiente para que,

neste estudo, a noção de selvagem encontre seu equivalente na perspectiva da mulher

guerreira. Moura, neste aspecto, bem poderia ter seu correspondente nas antigas amazonas,

seres também liminais, já que são mulheres com características tidas como masculinas. Elas

se inscrevem na oposição/complementaridade entre homens/mulheres e guerra/casamento. As

amazonas não se casam. Encontram-se sexualmente com homens de outro povo aos quais

entregam seus filhos, se do sexo masculino, mantendo consigo apenas as meninas.

Curiosamente, as amazonas só são guerreiras enquanto virgens. Depois do primeiro parto, elas

deixam a atividade guerreira para adotar a atividade política.

40

Se Moura está próxima da amazona, ainda mais vai estar da donzela-guerreira,

salvaguardadas as diferenças, como se verá adiante. De qualquer modo, ―pilhando‖ o próprio

território à medida que foge, como técnica de combate, e levando seu bando para os refúgios

mais longínquos, a heroína e seus cabras lembram também, por comparação, os citas

selvagens da Antigüidade.

Quando relacionados selvageria e ambiente físico, o sertão, em Memorial de

Maria Moura, combinado com o modo de vida e a cultura local, fornecerá os subsídios

necessários para fazer dos homens da heroína uns invencíveis pela força das armas. Os

lugares ermos, muitas vezes intransitáveis, por onde circula o bando, fazem lembrar regiões

desérticas e o deserto em algumas tradições, como a judaica, por exemplo, é lugar de

selvageria.

Uma cidade também pode se tornar, por comparação, um lugar selvagem. Assim é

que em A hora da estrela Macabéa será vitimada pelas implicações de um encontro com o seu

outro geográfico. Nesta relação, fica claro que na geografia de valores há um pólo de

referência e, decididamente, este não é o da nordestina, que se estabelece numa cidade ―toda

contra ela‖. Quanto mais afastada culturalmente está daquele centro citadino, mais se torna

uma presa fácil dele. À Macabéa será negado até o princípio da hospitalidade, próprio de um

mundo ―civilizado‖, logo ela, que tão bem assentaria nos moldes do selvagem de Rousseau:

ingênua, boa e pacífica, ainda que já ―corrompida‖ por alguns dos costumes da cidade. Há,

ainda, na novela em estudo, uma espécie de canibalismo social. Seus opositores, feitos

verdadeiros antropófagos, vão fazê-la sucumbir. E mais uma vez, estabelecido o jogo das

alteridades, na difícil relação com um outro radicalmente diferente tão quanto problemático,

uma identidade se afirma em A hora da estrela. E Macabéa será um prato servido ―cru‖.

De suma importância é esta discussão que abaliza os diversos aspectos do

selvagem, assim como importante é deixar claro, mais uma vez, que o termo, quando utilizado

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neste trabalho, interessa quando implicado em ordem cultural, no sentido mesmo em que

emprega Lévi Strauss, quando discute a respeito em O cru e o cozido (2004). Quanto mais

―civilizado‖, mais o ser humano vai se afastando do seu estado primitivo de natureza,

portanto, selvagem. Natureza e cultura serão, neste estudo, elementos fundamentais para se

compreender os processos mentais de representação simbólica nos textos apreciados.

Na relação que se estabelece entre o primitivo e o selvagem, há algo também de

inaugural, de ―coisa primeira‖, no sentido clariceano do termo. O selvagem, por outro lado,

como se quer demonstrar no texto literário, também pode se converter em selvageria,

resultado último da violência. Por esta ótica, há tanta violência em gestos de mandar matar ou

efetuar crimes, como ocorre com a protagonista de Memorial de Maria Moura, quanto há no

gesto da diáspora, de uma sociedade que rejeita, marginaliza e faz sucumbir a personagem

Macabéa, de A hora da estrela, vítima também do entrechoque cultural. A única diferença aí

talvez esteja no fato de que a violência sofrida por ela está em âmbito muito mais sutil, o que

em nada diminui, entretanto, a carga de crueldade das relações sociais, sugerida pelo texto.

É pensando, então, nas diferentes formas em que possa se manifestar o selvagem e

de que maneira se relacionam com ele as personagens Conceição (O quinze), Joana (Perto do

coração selvagem), Macabéa (A hora da estrela) e Maria Moura (Memorial de Maria Moura)

que esta pesquisa é desenvolvida. Nesse aspecto, deve-se considerar aqui a visão de Clarissa

Pinkola Estés (1994) em seu famoso livro Mulheres que correm com os lobos. Nesta obra, ela

associa o selvagem da mulher à origem do feminino e a tudo quanto for instintivo, chegando

mesmo a incentivar o indivíduo, especialmente as mulheres, a um regresso a um estágio de

natureza saudável. Em que pese a problemática, concordamos com ela quando afirma que,

apesar de soterrado pelo excesso de domesticação, há em toda mulher, como há em todo

homem, um lado selvagem e que a qualquer momento ele pode irromper.

42

Talvez o ponto mais importante da defesa da analista junguiana esteja na

convicção de que o ser humano está polarizado entre ordens da natureza e da cultura. Embora

o dualismo seja sempre passível de crítica, o texto interessa pela valorização que dá ao

relacionamento saudável entre mulher e natureza. Isto é compreendido de tal forma que, por

mais disciplina que a cultura imponha ao indivíduo, defende não ser concebida a ponto de

neutralizar aquela ordem primeira. Sendo assim, trazendo a discussão para o foco de estudo

deste trabalho, é preciso conhecer, de algum modo, a mulher, o selvagem, a mulher selvagem

e interessar-se mais por eles.

Numa associação de semas relacionados à temática, ―selva‖ e ―selvagem‖ são

termos que servem para identificar também, nos textos abordados, um lugar e uma condição.

Assim é que, respeitadas as especificidades, a natureza hostil das caatingas, típicas do sertão,

tem semelhança com a hostilidade comum em ambientes de selva. Tanto num quanto noutro o

indivíduo busca meios de sobreviver às intempéries. Será esta a movimentação das

personagens de O quinze, que têm em Conceição o seu expoente, assim como será esta

também a tentativa de Macabéa em se ajustar a uma cidade a que não pertence.

É o não-pertencimento e a desterritorialização da última personagem que farão

com que a metrópole se converta para ela numa versão modernizada da selva, só que feita de

pedra. Para tanto, concorrem nesta nova modalidade, de uma selva de pedra, não só o lugar,

estranha que é para ele, como a hostilidade das personagens com as quais passa a conviver na

obra. Mais que intolerantes, elas são indiferentes ao destino de Macabéa. Não perdoam,

sobretudo, o despreparo dela. É verdade. Talvez a personagem não estivesse preparada para

enfrentar a ―cidade grande‖. Mas, e a cidade, estaria para recebê-la? Ao que parece, acusá-la

de ―despreparada‖ é escamotear uma situação. Na dificuldade de lidarem com a diferença, o

patrão, a amiga de trabalho e, mesmo Olímpico, o namorado, exigem que Macabéa, sendo ela

43

outra, se ajuste. No entanto, nenhum passo solidário é dado, efetivamente, na direção dela,

contribuindo para que o ajustamento de fato aconteça.

Ainda no tocante ao lugar, há um outro aspecto do selvagem, ligando-o

negativamente às conotações do sertão, e que merece ser observado. Séculos se passaram e, a

despeito de estudos e discussões sobre o assunto, parece imperar ainda, na visão de muitos

leitores, a teoria do ―bom selvagem‖ de Rousseau. Numa atualização do pensamento do

filósofo, dir-se-ia, numa síntese interpretativa, que o afastamento do homem que se localiza

distante dos grandes centros urbanos, sendo estes mais propícios às interferências culturais do

mundo ―civilizado‖, traz-lhe ―benefícios‖ porque o isenta das corrupções próprias deste

mundo.

Esta visão romântica já foi utilizada para falar dos indígenas e dos sertanejos na

Literatura brasileira. Bom selvagem, então, é aquele que continua na selva. E o romantismo

está mesmo no dado em que, à guisa de elogio, deixa este mesmo homem de fora da

―civilização‖.

Selvagem e primitivo são termos que se interligam, sendo possível montar,

portanto, uma quase semântica em torno da questão. Na plurissignificância do termo

―primitivo‖ há, então, um conhecimento que aponta para a pobreza cultural, que se alimenta

da rudeza e da falta de desenvolvimento tecnológico. Um primitivismo ligado ao descaso

político, que nada tem a ver com o preconceito, fisiologista, e que deve ser descartado para o

bem da ―civilidade‖. E há um outro conhecimento, do primitivismo ligado às origens, ao

princípio de tudo, à fonte a que se chega, depois de cavar para além do fundo do poço. Este

sim, tomado em sentido positivo e perseguido pela filosofia, na busca pelo ―quê‖ das coisas.

Transportada para o universo dos livros a serem analisados, esta discussão leva, no

primeiro caso, por exemplo, ao encontro com as personagens migrantes de O quinze, que têm

em Conceição a versão elitizada do retirante, assim como ao encontro com Macabéa, de A

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hora da estrela. Todas as protagonistas, de uma forma ou de outra, vítimas da cultura, do que

se julga falta dela ou vítimas do entrechoque cultural.

No segundo caso, que se volta para um primitivismo de ordem mais existencial,

tem-se em Joana, do primeiro romance de Lispector, o signo da busca não só interior como

anterior. Já a epígrafe do romance, retirada de Joyce, fala do chegar perto do coração

selvagem da vida. Apesar de a personagem não penetrar, mas só chegar perto do primitivo, o

texto é uma tentativa da heroína de entrar em sintonia com o que há de mais natural.

Obviamente a tentativa é frustrada porque a cisão entre o corpo e a mente é tão violenta na

obra que, quase sempre, leva à exaustão, como é possível perceber, no capítulo três, mais

especificamente ao que tange à representação do corpo da protagonista.

Há, realmente, algo de selvagem nos textos de Clarice Lispector e muito digno de

verificação. E sendo esta a tarefa a ser cumprida, não deixa de ser curioso que ela própria, de

aparência singular, emanasse um ―ar selvático‖, abrigado por trás do olhar misterioso. O

propósito desta afirmação faz lembrar o impacto que a imagem dela causou em Ferreira

Gullar, quando a conheceu pessoalmente. É o poeta que declara:

Ao vê-la, levei um choque: os seus olhos amendoados e verdes, as maçãs do rosto

salientes, ela parecia uma loba – uma loba fascinante. Não tenho qualquer

lembrança do que conversamos naquela ocasião, porém quase nada devo ter eu

falado, a não ser talvez algumas palavras de elogio a [sic] sua literatura. Ela era

afável e simples [sic] mas de pouco falar. Saí dali meio atordoado, com aquela

imagem de loba na cabeça. Imaginei que, se voltasse a vê-la, iria me apaixonar por

ela. (GULLAR, Ferreira In: DE FRANCESCHI, 2004, p. 53, grifo nosso).

Há um provérbio latino que diz que o homem é o lobo de si mesmo (homo homini

lupus) e parece que é a esta conclusão que o(a) leitor(a) chega ao se aproximar cada vez mais,

da loba e apaixonante Clarice, de percepção e espírito aguçados. A imagem da loba

fascinante, percebida por Gullar, traindo o jeito ―afável‖, ―simples‖ e ―de pouco falar‖, faz

lembrar, entre as possíveis máscaras do selvagem, a da loba que se disfarça em cordeiro. Nos

textos da autora, a imagem da loba bem serve para metaforizar a busca instintiva pelo que

cada indivíduo reserva de mais selvagem, de que é exemplo, no texto literário, o primitivo

45

coração da personagem Joana. Como serve para dar conta, também, da idéia mesma sugerida

pelos latinos, e tão ao gosto dos evolucionistas, acerca do caráter predatório do ser humano. O

homem é o lobo do homem e, na natureza, só o mais forte sobrevive. A experiência de

Macabéa, fora do território de origem, bem ilustra esta formulação, presa fácil que se torna

em confronto com uma cultura predadora e voraz.

Nesta comparação ilustrativa, entre mulheres e lobos, repare-se no que escreve

Clarissa Estés (1994, p. 16) a respeito:

[...] as duas espécies foram perseguidas e acossadas, sendo-lhes falsamente

atribuído o fato de serem trapaceiros e vorazes, excessivamente agressivos e de

terem menos valor do que seus detratores. Foram alvo daqueles que preferiram

arrasar as matas virgens bem como os arredores selvagens da psique, erradicando o

que fosse instintivo, sem deixar que dele restasse nenhum sinal. A atividade

predatória contra os lobos e contra as mulheres por parte daqueles que não os

compreendem é de semelhança surpreendente.

É preciso, então, seguir o rastro dessa pista para alcançar os significados da

semelhante e, quase sempre sutil, ―caçada‖. Assim, ciente da castração imposta pela cultura

dominante, estudar os diferentes aspectos da mulher relacionada ao selvagem em Rachel de

Queiroz e Clarice Lispector é também uma forma de avaliar, nas obras indicadas, o

tratamento dado à questão. Ao longo das análises, será de grande importância perceber, para a

compreensão da mulher que se representa nas narrativas, as figurações do selvagem que

aparecem em cada uma, e que mensagem delas se pode depreender.

Em que pese o estudo sobre o selvagem em Memorial de Maria Moura, por

exemplo, ele vai estar ligado, simbolicamente ou não, à violência. A personagem, ainda

adolescente, sofre os abusos do padrasto, mais tarde morto sob as ordens dela. Em resposta à

perseguição dos primos, interessados na sua herança, ela atiça fogo na própria casa onde

morava. Monta, sob sua proteção, um bando de cabras, armados, e, com eles, ganha, pilhando,

o mundo do sertão.

Muito próxima de uma guerreira, a selvageria em Moura vai ser intermediada

pelos homens que ela chefia. Mesmo parecendo estar no front das batalhas, cabe a eles

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executar as ações, sob o comando da heroína. E nisto reside, também, um outro aspecto da

violência, a do mandatário, que planeja, ―financia‖ e organiza os homens para a sua

empreitada, sendo tão participante dos crimes quanto quem os executa, já que os calculou. Na

obra, as ações de Moura comumente logram êxito, até mesmo quando tem que decidir a morte

do amante. Em nome de propósitos maiores, a personagem violenta a si mesma, pondo a

vingança acima do próprio amor que sente.

A luta de Moura é bem diferente da de Conceição, Joana e Macabéa, e por isso

mesmo digna de observação. Ela quer ter o domínio de sua vida nas próprias mãos e não

mede esforços para tanto. Apesar das diferenças, ela está muito próxima das donzelas-

guerreiras, estudadas por Walnice Nogueira Galvão (1998). Essas tantas que se encontram na

Literatura brasileira perambulando feito bicho do mato pelo sertão. Ser selvagem, como já foi

mencionado, neste trabalho, é também uma condição e, no caso de Maria Moura, é a

selvageria de seus homens que, mandados, garantem-lhe a sustentação do nome. Ela

literalmente monta para si uma verdadeira fortaleza de guerra, instrumentando-se contra o

inimigo. A violência de Moura se especializa na narrativa a ponto de produzir a própria

pólvora, utilizada para consumo e venda. Ou seja, a cultura da violência, como se vê, tem seus

estágios de formação.

É claro que tudo isto é estudado levando-se em conta o contexto cultural. Todas as

obras sugeridas, à exceção de Perto do coração selvagem, exploram a temática do sertão.

Entretanto, a preocupação, aqui, não vai estar no ambiente. Repare-se que a problemática

sertaneja é abordada em A hora da estrela, sem que a história ambiente-se por lá.

Mesmo os textos de Rachel, identificados com a Literatura do ciclo sertanejo,

merecem ser vistos, neste aspecto, com cautela. O quinze e Memorial de Maria Moura se

referem ao sertão nordestino, mas é preciso mesmo atentar até que ponto sai do ambiente dos

romances o substrato da matéria narrada. Tanto a primeira quanto a última obra de Rachel

47

voltam-se para ambientes de seca, entretanto, são ambientes diversos. Para se ter uma idéia,

Memorial de Maria Moura tem grande parte ambientada na serra, região aposta ao sertão, que

faz parte dele, mas dele difere, de forma contrastante.

Neste ponto, não se pode desconsiderar, na pesquisa, os procedimentos da

narração. Uma obra pode se passar em determinado lugar, mas ser este um fato de pura

contingência, de modo que, para o narrado, o ambiente é aquele como poderia ser qualquer

outro. Explicado isto, espera-se que esteja justificada, portanto, a inserção da obra de Clarice

Lispector também para falar de sertão.

Levando a perspectiva do território para o campo das idéias, o texto de Elaine

Showalter, ―A crítica feminista no território selvagem‖, na abertura do livro, organizado por

Heloísa Buarque de Hollanda, Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura

(1994), interessa, pois procura reunir, sob forma de um panorama geral, idéias da crítica

feminista e das polêmicas desenvolvidas especificamente na área de Literatura. Ela remete a

discussão à década de 80, quando os estudiosos da área se ressentiam, ainda, de uma ausência

de uma base teórica para o Feminismo como estudo crítico. Trata de um período em que a

crítica feminista representava, para ela, ―um órfão empírico perdido na tempestade da

teoria‖(SHOWALTER, 1994, p. 24).

Pelas etapas mesmas, evolutivas da crítica, este impasse foi vencido, encontrando

em pensadores como Foucault, Deleuze, Barthes, Derrida, Kristeva, entre outros, importantes

fontes de contribuição. Na atualidade, embora o pensamento feminista tenha surgido como

novidade para a crítica literária, acadêmica, conseguiu, ao longo dos anos, não sem os

esforços dos interessados, impor-se na academia como uma tendência teórica inovadora e de

forte potencial crítico e político, como bem lembra Hollanda (1994, p. 07).

Até chegar a este estágio de consolidação, todavia, a crítica transitou pelo território

selvagem. E, em que pese a discussão teórica promovida por Showalter, bastante elucidativa

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para este trabalho, a utilização do termo ―selvagem‖ para indicar, em teoria, o que constituía

uma falta, ou, noutra direção, um pioneirismo, serve bem ao propósito metodológico desta

pesquisa. É conclamando ao preenchimento do espaço teórico, anteriormente vazio, que

Showalter (HOLLANDA, 1994, p. 24) escreve:

Nós, críticas feministas, podemos espantar-nos por encontrar-nos entre os teóricos

pioneiros, já que na tradição literária americana o território selvagem tem sido

exclusivamente masculino. Contudo, entre a ideologia feminista e o ideal liberal do

desprendimento encontra-se o território selvagem da teoria, no qual devemos

também tornar visível nossa presença.

Ou seja, a novidade do Feminismo, enquanto ideologia, já supria uma falta, uma

vez que os territórios ―inexplorados‖ vinham sendo dominados pelos homens, na tradição.

Faltava apenas ―inaugurar‖ a teoria, com um suporte analítico que sustentasse o ideal

feminista e desse visibilidade à crítica, o que acaba de fato acontecendo, a partir da década de

90. Ocupar, portanto, o território selvagem, que já significa preencher um falta, é, por outro

lado, inaugurar, também, a ordem do novo, daquilo que se instala em bases iniciais.

O selvagem, então, a partir do que se depreende do processo mental de Showalter,

se refere, antes de mais nada, a uma atitude de enfrentamento. Assim, diante das

possibilidades que o termo oferece, toma-se de empréstimo a estratégia utilizada pela

estudiosa americana para discutir carências e meios de enfrentá-la, no texto literário, e,

enveredando pela temática do selvagem, refletir sobre ele, pensando, inclusive, nas

possibilidades de desdobramento do conceito.

Adotado como recurso metodológico neste trabalho de análise, então, o selvagem

deve ser abordado em suas diferentes manifestações, à medida que aparece nas obras

escolhidas para estudo. Em todas elas interessa o ponto de vista da mulher, ocupante de um

―território selvagem‖. É a perspectiva dela que interessa, agora, neste universo então

representado.

No que se refere à primeira obra em estudo, O quinze, o selvagem vai estar, a

princípio, na delimitação mesma de territórios, na Literatura moderna, no sentido inaugural

49

em que emprega Showalter em seu texto. O pioneirismo de Rachel de Queiroz no ciclo do

romance nordestino forçou a sua inserção na Literatura Brasileira porque inegável é a

contribuição que dá, para as letras do país, quando discute, dentro da temática do social, a

posição da mulher na sociedade moderna. Afrânio Coutinho (1986, p. 279), a despeito de

mencionar que a escritora utiliza os problemas geográficos e sociais nordestinos como pano

de fundo para falar sobre a mulher, escreve:

As figuras femininas, em seus livros, são esboçadas com finura psicológica,

situadas em posição de reação contra a dependência e a inferioridade da mulher. Os

romances contam histórias da rebelião individual contra o ambiente doméstico e

social, que junge a mulher à condição de prisioneira de uma tradição arcaica.

Ao que parece, o crítico consegue enxergar o ponto nodal da temática principal da

autora, que é o papel da mulher na sociedade, alvo de preconceitos morais e sociais, mas não

enxerga o suficiente, a ponto de deslocá-la da temática social. Ora, posto assim, é como se o

projeto textual de Rachel de Queiroz, na construção literária da mulher nordestina, pudesse

prescindir das implicações geográficas e sociais, e dessa última principalmente. Não há como

falar da mulher em Literatura sem levar em conta a teia de relações. Mais do que pano de

fundo, é possível averiguar, os problemas geo-sociais podem constituir uma das portas de

entrada para explicar a mulher que nos textos se representa.

No que se refere aos modos da escrita, ainda, o crítico, de início reconhece a

atitude insurrecta da escritora, atestada acima, para negá-la na produção queirozeana, reduzida

a romances de amor. Observe:

Com a sua preocupação pelo papel da mulher, era natural que o amor fosse

dominante. O amor, a concepção, o nascimento, o destino da criança, o amor

materno, o direito ao amor e os direitos do amor, o casamento, eis aí os pontos

cardeais em que gira a psicologia de suas análises. E nesse ponto está a maior

riqueza da romancista, em cujas mãos a alma feminina se mostra em toda a sua

escala de valores (COUTINHO, 1986, p. 280, grifo nosso).

Repare-se, inicialmente, na forma taxativa com que afirma ser a temática amorosa

―naturalmente‖ assunto de mulher. Por esta ótica, casamento, reprodução, família, são

assuntos de menor interesse para o homem e ―pessoais‖ demais a ponto de não caberem na

50

crítica social. Se isto é verdade, já não se sabe mais em que recai o interesse nos estudos da

sociedade se, pelo visto, interesses primários, como a constituição da família, primeira

organização social, são deixados de fora. Faltando sensibilidade ao crítico para enxergar tanto,

até se torna aceitável pensar com ele, neste caso, que somente por ―mãos femininas‖, a alma

da mulher vá se mostrar em toda a sua escala de valor.

Quando necessário, oportunidade não faltará, neste trabalho, de demonstrar o

envolvimento integral de Rachel de Queiroz com o social. Seca, processo migratório, frentes

de trabalho, todos estes são temas sociais passíveis de estudo em O quinze. E esta discussão se

estende às relações que a obra estabelece com o selvagem, foco dessa pesquisa, uma vez que

do jogo de oposição entre sociedade e natureza resultam também os qualificativos

―civilizado‖ e ―selvagem‖. Perceba-se que este, por sua vez, se manifesta em O quinze quase

sempre em zonas de fronteira. A caatinga não é uma selva, obviamente, mas se parece com

ela em suas intempéries. O sertanejo não é um selvagem, isto é certo, mas, quando acuado,

reage como fera, ferida ou violenta, atitude comum a qualquer ser humano em situação de

opressão.

Antes de chegar à zona do selvagem a que se acopla a personagem Conceição,

talvez valha a pena destacar, no romance, ainda que a título de ilustração, outras formas em

que ele se manifesta. Para a heroína há uma compreensão do selvagem numa perspectiva

diversa da que se apresenta para as personagens, analisadas a seguir, sendo para ela

demonstrada mais adiante.

Há, em O quinze, pelo menos três ocorrências narrativas que explicam

personagens em suas relações com o selvagem que enfraquece, a exemplo de Mocinha, que

perde os poucos luxos que tem, à medida que a seca assola; com o selvagem que animaliza e

faz do homem um ser impetuoso, caso de Chico Bento, num episódio do livro em que abate

um animal encontrado na estrada e, acusado de ladrão, acha-se, diante da dignidade atingida,

51

em vias de cometer assassinato; e, por fim, com o selvagem predatório, que faz o homem

tornar-se presa do próprio homem.

A este último se associam indícios de uma antropofagia, sugerida pelo sumiço do

menino Pedro, filho de Chico Bento, bem como a atuação de mulheres, personagens de fundo,

do romance, que emprestam os filhos feito um ―embrulho vivente‖, para, servindo de pretexto

à esmola de pedintes, morrerem em mãos alheias. Há que se considerar em todos estes

aspectos a seca, elemento natural ao qual se inclina o jugo das personagens referidas.

Condição diferente do selvagem é para Conceição, a quem se soma, como vislumbre, um

território selvagem como forma de reação a elementos impostos pela cultura dominante,

sobretudo no que diz respeito à mulher, como se verá mais adiante.

Entre as histórias paralelas do primeiro romance queirozeano, está a que envolve o

drama da família de Chico Bento, vaqueiro das Aroeiras, que se vê forçado a migrar.

Cumprindo ordens da patroa, justificadas em função da grande seca, que tudo torra, a

personagem se vê obrigada a soltar o gado, o que, de quebra, tira dele também o ofício que

desempenhava na fazenda.

Sem trabalho e sem perspectiva nenhuma de chuva, o vaqueiro comunica e

providencia a mudança da família, como tentativa que lhe resta de sobreviver à cruel

estiagem. Desfaz-se dos parcos bens, abandona a casa e segue rumo imaginário ao Amazonas,

onde, ele procura acreditar, certamente não lhe faltariam trabalho nem recursos para sustentar

os seus. Acompanham-no nesta retirada além da mulher, Cordulina, os quatro filhos pequenos

e a cunhada Mocinha.

Preparada para ―arribar‖, Mocinha se oferece ao leitor, trajada de ―vestido

engomado, também levava sua trouxa debaixo do braço, e na mão, os chinelos vermelhos de

ir à missa.‖ (QUEIROZ, 1987, p. 25)2. A princípio, apresentada em trajes de passeio, a moça

2 A partir desta nota, no intento de dar sistematização ao corpo do trabalho, sempre que se referir a esta obra de

Rachel de Queiroz, no texto, será utilizada a sigla OQ (O quinze).

52

parece alheia ao que os próximos acontecimentos lhe reservam. Ela, ausente do problema, não

compartilha do sentimento de fuga forçada que toma conta da família. A indiferença em

Mocinha é tanta que até mesmo a Rendeira, uma das vacas entregues ao abandono e que

cruza, em caminho, com a família, à sorte, parece sofrer mais que ela. Observe a seguinte

passagem narrativa:

A Rendeira fitou em todos os seus grandes olhos dolorosos, donde escorria uma

lista clara sobre o focinho escuro, como um caminho de lágrimas.

Só Mocinha olhou a rês com indiferença, ajeitou na mão as chinelas, e continuou a

andar no seu passo macio, tão rápido e leve que mal esmagava os torrões

quebradiços do chão. (OQ, p. 26).

Percebe-se que há, na narrativa, uma aproximação imagética entre o gado bovino e

a família do vaqueiro retirante. Tanto esta quanto aquele é ―enxotado‖ pelo ―verãozão‖ feroz .

Não por menos, depois de atravessar todo um sertão, a pé ou de trem, o destino final da

viagem leva a família do vaqueiro à capital, Fortaleza, desembarcando numa estação por

nome de ―Matadouro‖. Por esta ótica, percebe-se que, ora sofrendo o processo da

antromorfização, ora o da zoomorfização, os viventes de O quinze se equiparam.

Na passagem narrativa acima, personifica-se a Rendeira, atribuindo-lhe

sentimentos, de modo a contrastar com a rudeza de Mocinha. Ela aí está muito mais próxima

dos brutos do que a própria natureza animal da vaca. A afilhada de D. Inácia age inicialmente

assim. Entretanto, a seca nivela por baixo. Bastaram três dias de extenuada caminhada,

embaixo de sol causticante e sofrendo sede, para irem humanizando a personagem. Os trajes e

o comportamento mudam e Mocinha, rendida, na cena que se segue, está no mesmo nível da

Rendeira, servindo, como ela, de animal de carga.

O vestido, amarrotado, sujo, já não parecia toilette de missa. As chinelas baianas

dormiam no fundo da trouxa, sem mais saracoteios nos dedos da dona. E até levava

escanchado ao quadril o Duquinha, o caçula, que, assombrado com a burra, chorava

e não queria ir na cangalha.

Chico Bento troçava:

— Heim, minha comadre! Botou o luxo de banda... (OQ, p.27).

53

Humanizar Mocinha, paradoxalmente, é torná-la próxima do bovino, que já

demonstrara mais sensibilidade do que ela. Por outro lado, quanto mais desce ao nível animal,

estando nisso um processo que inferioriza a personagem, mais ela se aproxima do selvagem

no texto. Convém lembrar, neste propósito, ainda, outra imagem, a da serpente, reiterada em

O quinze. Sendo esta um ícone do mundo selvagem, ela aparece pelo menos em duas ocasiões

no texto para metaforizar a retirada e a fome.

Uma delas surge na comparação que o narrador faz entre o animal e o trem que

conduz Conceição e a avó a Fortaleza. Ele completa: ―E o comboio, entrando numa curva,

sibilando e rugindo, era como uma cobra que fugisse sobre o borralho ainda quente de uma

coivara.‖ (OQ, p.24) Esta imagem sugere porque é posta exatamente num momento em que

os retirantes, de um lado Conceição e a avó, e, de outro, a família de Chico Bento, fogem da

estação que, sem chuva, para eles representa a constituição dos infernos.

Em outra parte da narrativa, a imagem da serpente é invocada para representar a

fome. O desespero pela falta de comida, este sim, faz o homem rastejar e regredir a uma

condição de bárbaro. É na barbaridade da fome, portanto, que homem e animal estão em

equivalência na cadeia do selvagem. Veja-se na cena em que Cordulina, faminta, oferece ao

filho um peito também seco. ―E o intestino vazio se enroscava como uma cobra faminta, e em

roucos surdos resfolegava furioso: rum, rum, rum...‖ (OQ, p.35, grifo da autora)

Nesta perspectiva do selvagem, que animaliza o homem, a passagem que diz

respeito ao episódio em que se envolve Chico Bento, merece ser mencionada. Depois de

abater um animal com o qual se depara na estrada, o vaqueiro descobre, na fúria do dono, que

aquela foi mais uma tentativa frustrada de enfrentamento da fome. No intento de salvar da

morte os seus, que já haviam caído, Chico Bento, contra seus princípios morais, mas a favor

da própria sobrevivência, ―põe a mão no alheio‖. O insucesso da empreitada termina com ele

54

implorando ao dono da cabra que lhe deixe ao menos um pedaço de carne suficiente para um

caldo para a mulher e os meninos.

E o homem disse afinal, num gesto brusco, arrancando as tripas da criação e

atirando-as para o vaqueiro:

— Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se

tripas é até demais!...

A faca brilhava no chão, ainda ensangüentada, e atraiu os olhos de Chico Bento.

Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e ir disputar a presa; mas foi ímpeto confuso e

rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe ânimo. (OQ, p.49).

Este ímpeto de assassino pelo qual é tomado Chico Bento, ainda que rápido, faz

parte da sua herança selvagem. É somente por muito pouco que a personagem não disputa

aquela presa à ponta da faca. Violência maior não pode haver do que ter o seu alimento

confiscado. Diante do desespero e da morte iminente, o indivíduo faminto treslouca e torna-se

capaz das mais ferozes atrocidades. Matar o semelhante é só o começo de uma delas.

Histórias sobre canibalismo em circunstâncias de alucinante fome estão em acontecimentos

reais e, em O quinze, uma delas parece se fazer presente, ainda que posta sutilmente.

Em meio a tanta desgraça experimentada pela família do vaqueiro das Aroeiras, o

sumiço de Pedro, o filho mais velho, sugere ligar-se com o predatório selvagem. Esta

temática, pela crueldade mesma que encerra, exige um tratamento delicado da narrativa, por

isso, cuidando para não direcionar o texto ao horror, ela aparece no romance de Rachel de

Queiroz num clima de suspeição. Antes mesmo do sumiço do garoto, já uma conversa entre

Vicente e a tia, antecipa e torna suspeita a fuga de Pedro. Cobrado em notícias do sertão,

dispara Vicente: ―— Contar o quê? História de seca? Diz que um negro lá pras bandas de

Morada Nova matou um menino, salgou, e ficou comendo os pedaços, aos poucos.‖ (OQ,

p.55).

Páginas adiante o(a) leitor(a) se depara com o pai à procura do menino, num

abandono de estrada onde haviam passado a noite e Pedro não acordara entre eles.

Desassossegado, Chico Bento procura em vão pelo filho, mas, na ―estrada limpa e seca só se

viu um homem com uma trouxinha no cacete, e mais à frente, dentro de uma nuvem de

55

poeira, um cavalo galopando.‖ (OQ, p.59). Como se vê, armam-se neste sumiço os indícios

de uma antropofagia em O quinze e, semelhante à narrativa policialesca, sequer são

dispensados os suspeitos. O próprio delegado, a quem procura para fazer as diligências do

caso, desanima Chico Bento: ―─ Não tenho jeito que dar não meu amigo... O menino,

naturalmente, foi-se embora com alguém... Um rapazinho, assim sozinho, muita gente quer.‖

(OQ, p.60).

Ficam no jogo das reticências as respostas não dadas ao desaparecimento do

garoto de 11 anos. Dirigindo-se à Cordulina, mãe do menino, é a autoridade policial que mais

uma vez dispara: ―─ Sossegue, comadre, já mandei caçar seu filho. Se estiver por cima do

chão, se acha...‖ (OQ, p.62). Obviamente, Pedro, na narrativa, não será encontrado. Histórias

como esta, fantasiosas ou não, são contadas e fazem parte do imaginário sertanejo, quando se

referem às piores secas que os nordestinos já tiveram que enfrentar. E a de 1915, para a qual o

romance de Rachel se volta, constitui uma delas, transformando homens em feras humanas.

Selvageria maior não há no ato canibal. Em O quinze, todavia, além dessa

canibalização, supostamente física, há outras formas também de ―comer‖ o outro, seu

semelhante. O texto faz menção, como já foi dito, às crianças que são usadas pelos adultos

para, no abuso da boa fé de terceiros, conseguir deles o auxílio desejado via compaixão. São

atitudes extremadas, da fome que mata de qualquer jeito, mas nem por isso disfarça a maldade

do ser humano. Só o homem pode tornar-se lobo dele próprio, constata para o(a) leitor(a) a

experiência de D. Inácia, que acolhe uma criança de colo já moribunda e que vem a morrer na

casa dela. A velha senhora descobre, horrorizada, a farsa da falsa mãe. Repare no diálogo que

se segue:

─ E então ele não é seu filho?

[...]

─ É não senhora... A mãe me empresta mode eu pedir esmola mais ele... Sempre

dão mais, a gente indo com um menino...

[...]

A mulher continuou, como se desculpando:

─ De tarde eu dou a ela uma parte do que tiro, nas esmolas... Ai, a gente faz o que

pode para não morrer de fome... (OQ, p.96).

56

Esta é, no romance, uma versão igualmente cruel para a outra face bestial do

homem, também revelada sob o estímulo da fome. Não querer padecer de fome serve de

argumento para as mulheres cometerem tal crime. Buscando justificativa no ato, elas não se

dão conta, miseráveis que são, do nível de derrocada da espécie. Morta, a criança não passa de

um meio a menos que proporcione subsistência do outro. E a fúria da mãe legítima, ao se

deparar com o inocente morto, não se dá em função da perda do filho, atitude comum até

mesmo às feras, mas por enxergar naquela morte desfalque de ganha-pão.

─ Se eu tivesse dado o pobre do bichinho a outra, não tinha morrido! Desgraçada!

Isso foi maltrato com a criança!

A rapariga avançou, com mais fúria ainda, o cabelo cor de estopa lhe franjando a

cara contraída:

─ Criança! Boca de criança! Uma mundiça para morrer, que não dava mais nem um

caldo!

─ Mundiça, mas há duas semanas que você come à custa dele! Agora quero ver se

só com o outro eu posso passar! (OQ, p.97).

Criminosas passagens, pois criminoso é o homem que nelas se envolve em O

quinze. Impera na obra, como se vê, a lei do mais forte. Tais crimes, entretanto, são

compensados e, ao longo da narrativa, o tom condescendente do discurso corrobora isto,

porque foram praticados em prol de um direito inalienável, que é o direito à vida. Isto por si

só já justifica os meios. Em tais comportamentos, a racionalidade, comprometida, regride e

faz do homem uma vítima dele próprio. Nestes casos, ela percorre todo um caminho de volta,

fazendo o ser humano reencontrar o que a natureza lhe revela de mais animalesco, seu lado

selvagem.

Costurados com exigente delicadeza, tais episódios se somam a outros que, no

quesito latência, são encontrados em O quinze com bastante significação. É o que se percebe,

por exemplo, no comportamento da heroína que, questionando valores, parece reclamar para a

mulher que representa uma ocupação em bases sociais renovadas. Este espaço, porque novo, é

que vai se constituir em algo selvagem para ela. Sem dúvida, há em Conceição um árido

processo de busca pela afirmação. Sob esta ótica, o tema da seca e a perspectiva posta sobre a

57

retirante vão extrapolar as características físicas ou meramente regionais do flagelo. Há, como

quer Vilma Arêas (1997, p. 94), uma secura de processo para o que se refere às conquistas da

mulher, representada pela personagem queirozeana. A este respeito discute a autora de

―Rachel: o ouro e a prata da casa‖, quando destaca:

[...] uma leitura atenta pode compreender esta ―seca‖ como figuração inesperada e

original do caminho da mulher moderna de uma certa classe, ―retirante às avessas‖

como diz João Cabral de Melo Neto referindo-se a uma outra situação, pois

desloca-se do conforto das posições e proteções patriarcais para a secura de sua

autoconstrução, necessariamente solitária e radical. (Grifos da autora).

Conceição, ainda que titubeando, como será possível demonstrar ao longo do

estudo, busca a penetração num território ainda selvagem, na linha de argumento próxima ao

que defende Elaine Showalter. Há novidade nesta forma de concepção da personagem,

tomada sobre um ponto de vista da mulher que anseia por uma participação mais efetiva como

membro de uma sociedade. A protagonista é a primeira de uma galeria de personagens

femininas montadas por Rachel de Queiroz. E, por sua atuação na obra, fica evidente que a

mulher representada por ela difere dos modelos das moças casadoiras de então.

Já no início do livro, o(a) leitor(a) se depara com uma Conceição que boceja diante

das narrativas românticas, entediada porque, dos cem livros à disposição dela, na estante do

quarto, era capaz de repetir, decorado de muitos deles, versos e trechos de tratados científicos.

Muito ―pobre‖ andava a sua estante, é o que declara, por fim, a personagem. (OQ, p. 04). E

esta cena narrativa ganha importância ainda mais quando contrastada com a que ocorre no

quarto ao lado do dela, da avó, enlevada em rezas.

Não bastasse isto, Conceição é professora. Embora seja esta uma profissão há

muito identificada com a mulher, e todos conhecem as implicações deste tipo de identificação,

o fato de trabalhar fora do espaço doméstico dará à personagem uma autonomia maior em

relação a outras mulheres do próprio romance. Ainda refutando ideais românticos, há um

momento no texto em que a moça, de forma patente, rejeita a ―alma azul‖ de sua avó (OQ, p.

58

58), expressão que ficou corriqueira em Machado de Assis, quando queria fazer menção às

candura, tolerância, bondade e outros adjetivos com que procurava qualificar a mulher

romântica, em sua pureza de mãe ou de esposa.

Há, ainda, no livro, o interesse de Conceição em leituras de caráter, hoje se diria,

feminista, e o envolvimento dela nas questões da sociedade. Conceição não só reflete sobre os

níveis da miséria que a cerca como, de algum modo, se movimenta numa tentativa de reagir a

eles. Isto fica claro no trabalho voluntário que desenvolve no Campo de Concentração,

prestando socorro aos flagelados, bem como na atenção concedida à sofrida família de Chico

Bento. Mais do que fazer caridade, Conceição tem consciência dos males sociais, causados

por uma seca que, acima de tudo, assola a vida das pessoas.

Por tudo isso, percebe-se que Conceição é ―retirada‖, excetuando-se a um modelo

de personagem feminina já bastante gasto em Literatura. Criada sem a proteção dos pais, sob

os cuidados da avó, a quem chama de Mãe Nácia, a protagonista de Rachel de Queiroz cedo

teve que desenvolver mecanismos para sobreviver ao convencionalismo das relações do meio

social que integrava, principalmente no que compete à família, ao estudo, ao trabalho e ao

casamento.

Só que romper com esta estrutura impõe-lhe um preço. Ao que parece, é sempre a

velha fórmula cartesiana que impera, não deixando escapatória ao indivíduo, em sua busca

pelo conhecimento. Render-se à razão ou à emoção são as opções. Só que elas, nesta

perspectiva, são exclusivistas, de modo que, seja qual for a escolha, a outra parte sempre vai

estar em desvantagem. E Conceição, embora não se violente, ferindo princípios por ela

defendidos, ao longo da narrativa, terá que fazer escolhas, como é possível atentar mais

adiante, na discussão acerca do envolvimento dela com o primo Vicente. Escolhas que, se não

atendem ao que os outros esperam dela, atendem a ela mesma e ao que busca, sendo isto o

que realmente importa no texto em questão.

59

Em que se dá a ―secura‖ da autoconstrução da personagem Conceição passa a ser

também a preocupação desta análise. Uma personagem que é ―necessariamente solitária‖ no

texto, como sugere Vilma Arêas (1997). E a solidão talvez seja resultado da busca mesma

empreendida por ela, em seu processo de individuação.

Ciente disto, este trabalho, como vem sendo afirmado, consiste, inicialmente, em

compreender O quinze centrado na perspectiva da mulher representada. Ou seja, perceber

como se representa esta mulher queirozeana, e interpretar o arcabouço montado pela autora

para figurar esta representação, ajuda, por certo, a pensar criticamente a narrativa apresentada

por Rachel de Queiroz, o modo como concebe a sua primeira heroína, e as bases em que estão

fundadas tal concepção.

A mesma intenção é estendida à obra de Clarice Lispector. De narrativa

essencialmente simbólica, pouco importando se nela o intento da personagem é bem sucedido

ou não, a temática do enfrentamento a que é convocada a mulher também se acha presente. O

livro Perto do coração selvagem, título por si só sugestivo para o que se pretende analisar,

aqui, demonstra, no rastro da protagonista Joana, num exemplo semelhante ao que ocorre com

Conceição de O quinze, o quanto uma vida estrangulada pela inteligência pode comprometer a

vitalidade do ser humano.

Respeitados os distintos procedimentos narrativos nas obras, há linearidade em

Rachel de Queiroz, há complexidade em Clarice Lispector, as duas trazem, a público,

personagens parecidas porque parecido é o mecanismo social que engendra as relações. No

final das contas, temos duas heroínas extremamente solitárias. Joana aproxima-se de

Conceição, pois, como ela, é uma mulher ―ilhada‖ em si mesma. No romance de estréia de

Clarice, a heroína vive um drama de existência. Ela simplesmente não consegue estabelecer

comunicação com o outro, seja ele o pai, o marido ou amante. Instaura-se um verdadeiro

60

abismo entre eles. Em O quinze, refletindo sobre a impossibilidade de relação amorosa entre

ela e o primo Vicente, percebe Conceição, a certa altura do romance:

Ele era bom de ouvir e de olhar, como uma bela paisagem, de quem só se exigisse

beleza e cor.

Mas nas horas de tempestade, de abandono, ou solidão, onde iria buscar o seguro

companheiro que entende e ensina, e completa o pensamento incompleto, e discute

as idéias que vêm vindo, e compreende e retruca às invenções que a mente

vagabunda vai criando?

Pensou no esquisito casal que seria o deles, quando à noite, nos serões da fazenda,

ela sublinhasse num livro querido um pensamento feliz e quisesse repartir com

alguém a impressão recebida. Talvez Vicente levantasse a vista e lhe murmurasse

um ―é‖ distraído por detrás do jornal... Mas naturalmente a que distância e com

quanta indiferença...

Pensou que, mesmo o encanto poderoso que a sadia fortaleza dele exercia nela, não

preencheria a tremenda largura que os separava. (OQ, p. 58-59).

Numa situação não muito diferente, encontra-se Joana, refletindo acerca da relação

lacunar que mantém com o marido Otávio. Duas existências juntas, mas sem nada que os

ligue, de fato. Acompanhe o raciocínio de Joana, através do que é narrado neste trecho:

Às vezes, no entanto, talvez pela qualidade do que dizia, nenhuma ponte se criava

entre eles e, pelo contrário, nascia um intervalo. ―Otávio – dizia-lhe ela de repente –

você já pensou que um ponto, um único ponto sem dimensões, é o máximo de

solidão? Um ponto não pode contar nem consigo mesmo, foi-não-foi está fora de

si.‖ Como se ela tivesse jogado uma brasa ao marido, a frase pulava de um lado

para outro, escapulia-lhe das mãos até que ele se livrasse dela com outra frase, fria

como cinza, cinza para cobrir o intervalo: está chovendo, estou com fome, o dia

está belo. (LISPECTOR, 1998, p. 33).

Tanto com Conceição quanto com Joana tem-se o exemplo de personagens

mutiladas entre corpo e mente ou corpo e alma, embora em Joana o conflito narrativo, neste

aspecto, seja maior. Em O quinze, o apagamento do corpo da heroína não constitui drama,

como se vai notar no capítulo terceiro. O drama, todavia, nem é delas, mas da civilização

ocidental. Talvez por isso Joana almeje atingir, também por intermédio do corpo, o ―coração

selvagem‖, ainda não domesticado pelas fórmulas de uma cultura impositiva, sobretudo com a

mulher.

61

Em Perto do coração selvagem3 tudo é narrado a partir do ponto de vista da

heroína. Intercalando episódios entre a vida da Joana criança e da Joana adulta, o texto inicia-

se num ―regresso‖ à vida infantil para demonstrar a solidão enorme de uma criança que tenta

conversar com o pai e não consegue. Veja o seguinte diálogo:

─ Papai, que é que eu faço?

─ Vá estudar.

─ Já estudei.

─ Vá brincar.

─ Já brinquei.

─ Então não amole. (PCS, p.15).

Como se vê, tem origem a solidão de Joana. Há, de certo modo, algo de

―primitivo‖ na mundividência da criança. Uma criança é sempre uma promessa que se cumpre

ou não na vida adulta, como reflete a protagonista, nesta passagem narrativa, em

questionamentos de si mesma: ―Toda a sua vida fora um erro, ela era fútil. Onde estava a

mulher da voz? Onde estavam as mulheres apenas fêmeas? E a continuação do que ela

iniciara quando criança?‖ (PCS, p.24).

Joana desde cedo demonstra inquietude diante do que o mundo lhe apresenta. Em

criança, desconserta a professora, não se contentando com conceitos triviais, querendo ir mais

fundo nos porquês. É esta precocidade que faz o pai temer aquela vida embrionária. Joana,

medita o pai por um instante, é um ―ovinho, é isso, um ovinho vivo. O que vai ser de Joana?‖

(PCS, p.17) E mesmo que ela se transforme, às vezes, em ―ovo quente‖ nas mãos dele (PCS,

p.26), ser ―ovo‖ não é ser princípio?

Talvez por isto, somente vivendo, no texto, o ―fio da infância‖ é que Joana adulta

experimente sentir-se livre. Livre o suficiente para ser espontânea. Bicho brabo que reage à

profusão de afetos demonstrados pela tia, alguém que não conhecera e que a recebe após a

3 É utilizada neste trabalho a edição da Rocco, de 1998. E, a exemplo do que foi feito com o texto de Rachel,

sempre que se referir, a partir daqui, ao primeiro romance de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, será

indicada em nota a sigla PCS.

62

morte do pai. ―─ Me deixe!‖ (PCS, p.37) grita Joana, repelindo o artificialismo dos

sentimentos comandados pela obrigação de parentesco.

Quando adulta, e só até certo ponto ―domesticada‖, ressente-se daquela vida

interrompida, como se quebrada ainda na casca do ovo:

O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em

violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança

irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem

medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o

mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de

inconseqüências, de egoísmo e vitalidade. (PCS, p.18).

Esse animal, entretanto, é, em todo o romance, forçosamente contido. Embora

repugnasse a idéia de deixá-lo vir à solta, Joana não podia negar, desde sempre esteve atraída

pelo selvagem. Talvez por isto a sua sedução ao contemplar a ferocidade com que um homem

guloso fazia uma refeição (PCS, p.19). A herança animalesca refletia-se nos gestos dele,

sobretudo na forma como espetava um pedaço de carne sangrenta. E a gula, assim como a

sexualidade excessiva, adverte Woortmann (2000), em texto já citado, são marcas que

denunciam, na visão preconcebida dos gregos, o homem selvagem. No texto de Clarice,

Joana, vendo-o, estremece. Para ela aquele homem é pura força. A cena fascina-a, mas ao

mesmo tempo lhe traz perturbação porque se sabe incapaz de tanta naturalidade. Ela se

considera sóbria ou ―civilizada‖ demais para tanto.

Interessante notar, neste primeiro romance da autora, o quanto as imagens do reino

animal lhe inspiram quando o assunto é a espontaneidade, a força, a liberdade, a criação, o

selvagem. Uma inspeção rápida na obra não tarda a levar o(a) leitor(a) a se deparar com uma

personagem enclausurada em si mesma, talvez por isso desejosa de uma liberdade campeira:

E eu estou no mundo, solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me

suave como um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés leves,

atravesso campos além da terra, do mundo, do tempo, de Deus. Mergulho e depois

emerjo, como de nuvens, das terras ainda não possíveis, ah ainda não possíveis.

Daquelas que eu ainda não soube imaginar, mas que brotarão. Ando, deslizo,

continuo, continuo... Sempre, sem parar, distraindo minha sede cansada de

pousar num fim. (PCS, p.67-68, grifos nossos).

63

O desejo de liberdade da personagem se contrapõe às intervenções de um mundo

que aprisiona, como o internato, por exemplo, decisão dos parentes de Joana, como tentativa

última de frear-lhe os ímpetos. A heroína, entretanto, busca o sensível. Se for levado em

consideração o dualismo que se instaura nas obras iniciais de Rachel de Queiroz e Clarice

Lispector, aqui em apreciação, fica fácil perceber que se as personagens de O quinze têm

fome, física, de um corpo atroz, igualando o homem ao animal, a fome de Joana é de alma.

Melhor dizendo, Joana tem sede, ―profunda e velha‖. Ciente disto, da falta de vida, ela soube

que ―estava vivendo menos do que podia e imaginava que sua sede pedisse inundações.‖

(PCS, p.19-20)

Joana é uma personagem excessiva num mundo excessivamente carente para ela,

resultando daí a sua excentricidade. É a tia que, cedo, a define como um ―bicho estranho‖.

Muito diferente das espécies ―domesticáveis‖ com as quais estava acostumada a lidar, a

sobrinha, traindo a ingenuidade própria da criança, transforma-se numa víbora para a

desesperada senhora.

─ É diferente! É diferente! – explodiu a tia vitoriosa. Armanda, até roubando, é

gente! E essa menina... Não se tem de quem ter pena nesse caso, Alberto! Eu é que

sou a vítima. Mesmo quando Joana não está em casa, fico agitada. Parece loucura,

mas é como se ela estivesse me vigiando... sabendo o que eu penso. Às vezes estou

rindo e paro no meio, gelada. Daqui a pouco, na minha própria casa, no meu lar,

onde criei minha filha, terei que pedir desculpas não-sei-de-quê a essa guria... É

uma víbora. E uma víbora fria, Alberto, nela não há amor nem gratidão. Inútil

gostar dela, inútil fazer-lhe bem. Eu sinto que essa menina é capaz de matar uma

pessoa... (PCS, p.51, grifo nosso).

Como é possível observar, já em pequena a protagonista inspira sentimentos

selvagens, daí a urgência em repreendê-la, ―enjaulando-a‖ num colégio interno, para que seja

domada a sua incapacidade de sujeição. Não por menos, Joana, adulta e conduzida ao

casamento, sem muita convicção, assim também se sinta, como se estivesse, com o

matrimônio, ―traindo toda a sua vida passada‖ (PCS, p.113). A heroína compreende,

inconformada, que a ligação entre ela e Otávio é, acima de tudo, uma relação de apropriação.

Minada, embora se percebendo incapaz de ir além da fronteira da revolta, ela confessa, em

64

inquietante dúvida: ―como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? Como

impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes?‖ (PCS, p.31)

A personagem se casa, vive seu instante de encantamento, mas nunca sofreu de

nenhuma dependência sentimental. De espírito independente, ela está na obra sempre se

inaugurando, de modo que, nunca se bastando numa experiência, logo almeja outra. Acima de

tudo, o selvagem que habita em Joana insurge-se contra o adestramento e clama por liberdade,

sua natureza-mãe:

O sangue corria-lhe mais vagarosamente, o ritmo domesticado, como um bicho que

adestrou suas passadas para caber dentro da jaula. [...] Olhou ansiosa de um lado

para o outro, procurando alguma coisa. Mas tudo ali era como era há muito. Velho.

Vou deixá-lo [...] Vou deixá-lo [...]. [Joana se refere a Otávio. PCS, p.109].

Em Perto do coração selvagem, a metáfora dos bichos será uma constante e surge

tanto associada à protagonista quanto aos demais que com ela convivem. O professor, por

exemplo, referência masculina até certo ponto positiva, e por quem nutre admiração, é

considerado um animal, ―um animal maior que o homem.‖ (PCS, p.56). Este fascínio que

identifica os homens aos animais, para a valorização destes, também está no episódio em que

Joana, alisando prazerosamente o ventre de uma cachorra grávida, parece confirmar, para o

horror de Otávio, a feroz comunhão que há, entre ela, fêmea, e a cadela. (PCS, p.90-91)

Também o desejo da heroína, em ―cumprir-se‖, no romance, a coloca

indiscutivelmente em conexão com o território selvagem e o reino dos animais: ―Desejava

ainda mais: renascer sempre, cortar tudo o que aprendera, o que vira, e inaugurar-se num

terreno novo onde todo pequeno ato tivesse um significado, onde o ar fosse respirado como da

primeira vez.‖ (PCS, p.80).

Em ares e terras novos não poderiam faltar os cavalos, verdadeiros corcéis e com

os quais a narrativa, reiteradamente, se oferece para falar de beleza e força ao final do livro.

Estes animais parecem exercer grande sedução sobre Clarice, aparecendo em diferentes textos

dela. Numa entrevista com Carybé, em ―Diálogos possíveis com Clarice Lispector‖, publicada

65

pela revista Manchete e disponível à folha 124, pasta 02, referente a recortes de jornais (j), do

Arquivo Clarice Lispector (CL), organizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), a

autora, por sua vez, diz ter ―alucinação por cavalos de todas as espécies‖. Faz, ainda, em outro

momento, uma deferência para o cavalo preto, que considera ―inteiramente selvagem‖ (CL/j

04-10, fl. 221).

Importante não perder de vista esta relação na obra em apreciação. É Importante

também não perder o envolvimento real de Clarice Lispector com este animal. Tamanho é o

interesse, que ela chega a preparar uma lista, em material datilografado, sob o título ―Estudo

sobre cavalos‖, possível de ser localizado no arquivo da escritora, numa pasta referente à sua

produção intelectual (CL/pi, 33, s/f.). A partir deste, ela prossegue com o ―Estudo sobre

cavalos II‖, publicado na coluna que assina para o Jornal do Brasil em 11/08/1973 e o

―Estudo sobre cavalos III‖, também no JB, em 18/08/1973, sendo este especificamente sobre

o cavalo demoníaco.

O destaque a este material de estudo da autora aqui se justifica pela relação direta

que estabelece com o elemento selvagem, de que se vem tratando. Repare-se nas passagens

citadas, a seguir, entre as desenvolvidas por Clarice Lispector a partir de características

observadas no animal. Os tópicos, aqui colocados entre parêntesis, entre outros da lista que

elabora, também são indicados por ela.

Cavalo livre é a nudez completa/perfeita do corpo. O cavalo é nu. (Despojamento);

Inútil aprisioná-lo. Deixa-se domesticar, mas com um simples safanão, sacudindo a

crina como a uma solta cabeleira, mostra que sua íntima natureza é sempre bravia,

límpida e livre. (A falsa domesticação do cavalo);

Tenho um cavalo dentro de mim que raramente se exprime. Mas ao ver outro

cavalo, o meu se expressa. Sua forma fala. (Forma);

Todo cavalo é selvagem e arisco. (Sensibilidade);

Se pudesse ter escolhido queria ter nascido cavalo. Mas – quem sabe? – talvez o

cavalo ele-mesmo não sinta o símbolo de vida livre que nós sentimos nele. (Ele e

eu);

Lembro-me de mim-adolescente. De pé com a mesma altivez do cavalo e a passar a

mão pelo seu pêlo lustroso. Pela sua agreste crina agressiva. Eu me sentia como se

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alguém me visse de longe. Assim: ―A moça e o cavalo‖. (Adolescência da menina-

potro).

E entre todas as indicações que aparecem na lista, uma merece particular atenção.

Para o tópico denominado Promessa desafiadora, Clarice escreve: ―------- e de qualquer luta

ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.‖ O curioso é que todo este

ponto da lista preparada por ela foi riscado de caneta esferográfica vermelha, donde se

imagina tratar de uma indicação de uso, já que esta frase é também a última, fecho do

romance Perto do coração selvagem. O texto datilografado não tem data, nem identificação,

mas as anotações e correções que aparecem foram feitas com caneta esferográfica,

reconhecendo-se nelas a caligrafia da escritora.

Voltando ao romance propriamente dito, cumpre informar que, além da

importância dada à imagem do cavalo, outros bichos aparecem na obra, ligados a esta mesma

concepção. Joana, por exemplo, num breve momento do texto, em que se mira num espelho,

reconhece nela própria a aparência de uma ―gata selvagem‖ (PCS, p.81). Ao se ver revelada,

portanto, pelo contrário de sua natureza humana, em traços físicos que se querem

semelhantes, a imagem refletida acusam uma sintonia com o selvático da natureza animal.

Destaquem-se na imagem da gata, ainda, os olhos que ardem e as faces incendiadas por um

fogo que, embora dito advindo do tédio, nem por isso deixa de ser na personagem um fogo de

viver.

Não raro a heroína recorre, como é possível observar, aos quatro elementos da

natureza para fazer referência a uma selvagem vida em si mesma. Terra, ar e fogo são

mencionados na passagem acima, e a água aparece na que se segue, quando uma mulher,

sedenta, mais uma vez se coloca no mesmo plano de um animal, aqui superficialmente

saciado: ―[...] um animal que matara a sua sede inundando seu corpo d‟água. Mas ansiosa

e feliz como se apesar de tudo restassem terras ainda não molhadas, áridas e sedentas.‖ (PCS,

p.98. Grifo nosso).

67

É possível que, dividido o mundo entre o sensível e o inteligível, em Perto do

coração selvagem, reserve-se para a figura do animal o fulcro de uma experiência selvagem,

pressentida e desejada. Benedito Nunes (1969, p.125) compreende a funcionalidade de tais

representações nos seguintes termos:

[...] os bichos que a escritora descreve têm o ser à flor da pele, que eles nos

comunicam mais rapidamente do que podem fazer as outras coisas, a presença da

existência primitiva, universal, que o cotidiano, o hábito e as relações sociais

mantêm represada. Através deles é que essa vida sempre ativa se infiltra no

cotidiano, intensificando os nexos insuperáveis que nos ligam ao ‗terror primitivo‘,

ao vital e ao orgânico, nexos que a sociedade, a cultura e a história, em testemunho

da impossibilidade da completa humanização de nossa natureza, não podem jamais

desfazer.

Considerando este ponto de vista, o que se percebe em toda a obra, então, é uma

acusação implícita de que é a intelectualidade de Joana que, em contrapartida, confisca-lhe a

natureza. É assim que se entende, por exemplo, a inveja que a protagonista demonstra para

com a mulher da voz e para com Lídia, a suposta rival.

Inveja a primeira, pois constata que a criatura, por ignorar a si mesma, atada que

estava a uma realidade cambiante, realiza-se mais completamente. A mulher da voz, pensa

Joana, ainda, ―compreende a vida porque não é suficientemente inteligente para não

compreendê-la.‖ (PCS, p.78) A heroína de Clarice Lispector também enxerga em Lídia o que

invejar. E não só a gravidez da moça, pois embora não tenha tido filhos com Otávio, se diz

aparelhada para tê-los, afinal, ―qualquer animal tem filhos.‖ (PCS, p.156)

Procurando não supervalorizar a importância da grávida Lídia, pois, como explica,

―em todos os ventres de mulheres pode nascer um filho‖ (PCS, p.143), Joana, ao tomar

conhecimento da amante do marido, põe em prática a sua inteligência emocional, tratando do

―problema‖ de uma maneira não muito convencional. A protagonista, por outro lado, admira

por contraste com ela própria a beleza de uma poesia que deveria ser a base da vida de Lídia.

Esta personagem, inclusive, recebe, na sutileza da narrativa, um nome pastoril, de inspiração

68

poética. ―A mulher da voz multiplicava-se em inúmeras mulheres...‖ (PCS, p.141), constata,

afinal, a heroína.

Talvez o que mais perturbe Joana seja perceber, diante da outra, o abismo que a

separava do marido. Se um casamento é uma comunhão, Lídia é muito mais casada com ele

do que Joana. Triste é ver duas existências separadas e apenas justapostas. Assim é que é o

casamento entre ela e Otávio. A diferença entre as duas mulheres é registrada, também, em

coerência com tudo o mais, em nível de natureza, sendo Lídia a mais espontânea e a que

reflete o primitivismo como base e não como busca.

Pela identificação/percepção de Joana, assim são definidas as duas:

Sou um bicho de plumas, Lídia de pêlos, Otávio se perde entre nós, indefeso. [...]

Compreendo porque Otávio não se desligou de Lídia: ele está sempre disposto a se

lançar aos pés daqueles que andam para frente. Nunca vê um monte sem enxergar

apenas sua firmeza, nunca vê uma mulher de busto grande sem pensar em deitar a

cabeça sobre ele. Como sou pobre junto dela, tão segura. (PCS, p.144, grifo nosso).

Plumas e pêlos são, no plano dicotômico do livro, os qualificativos encontrados

pela narração para determinar o que é acessório e o que é essência, dando bem a tônica, nesta

passagem narrativa, da largura da separação entre as duas mulheres de Otávio. Pela trajetória

de Joana, no romance, o que ela inveja tanto na mulher da voz quanto em Lídia, tem menos a

ver com a singeleza da vida que levam, e tudo a ver com a imagem apaziguada demonstrada

pelas duas e que no entender da heroína transmite delas algo de princípio divinal. No desejo

de realização resume-se, talvez, a busca de Joana e do ser humano. Para alcançá-la, uns

encontram caminhos mais suaves; outros descobrem veredas mais tortuosas, mas todos,

porém, esperam chegar a este fim.

No geral, há em Perto do coração selvagem, como há em O quinze, sobretudo

quando entram em confronto natureza e cultura, uma intelectualidade que ausculta. A

diferença talvez esteja no modo de compreensão temática de cada escritora. Se cada

personagem traz em si sua própria floresta insuspeita, como quer a narradora clariceana, ou é

69

reconduzida a um recanto de mata (OQ, p. 58), como quer Conceição, na comparação

narrativa feita para avaliar as diferenças entre ela e Vicente, outros, como a inquieta Joana,

não se bastando, ainda, escorregam muito fundo dentro deles, como querendo se irmanar até

com a penumbra mais remota, desde que ela oculte algum poder de existir. Ao final de contas,

se permitido fosse sintetizar a busca de cada uma, dir-se-ia que tanto Conceição quanto Joana,

reivindicam, dando legitimidade ao que procuram, mesmo que transitando de modo diverso, o

direito ao seu território selvagem.

Com Rachel de Queiroz, esta busca em Conceição, embora subliminar, tem ares de

inaugural na forma com que a narrativa atende a uma perspectiva moderna sobre a mulher no

texto literário. Até então, tendo em vista a Literatura oficial e as obras mais conhecidas, fica

fácil perceber que elas constituíam, ainda, um território inexplorado e convidativo para as

escritoras nele se exercitarem.

E se o gérmen da insurreição está posto em O quinze, de maneira um tanto quanto

filosófica, Memorial de Maria Moura4, obra da produção madura, tem, na insurrecta Moura,

idéias como instrumento de ação de efeito mais prático. Embora arcaico seja ainda o contexto

ao qual se reporta, a mulher que há no último romance de Rachel de Queiroz exige passagem

nem que, para tanto, precise recorrer ao uso da força das armas. Este é o resultado último a

que leva a intolerância do ser humano. Ainda quando utilizadas para dar um basta numa

situação, nem por isso a arma na mão do homem deixa de ser paradoxal. Desse modo, quanto

menos ele tolera mais se aproxima de uma natureza primitiva, animal.

No texto queirozeano, aliás, não faltam, neste sentido, qualificativos para Moura.

Os primos, opositores da protagonista no texto, em seguidas vezes se referem a ela como:

―cabrita de raça ruim‖, ―bichinha‖ de ―cabelo na venta‖ (MMM, p. 51), ―gata brava‖ (MMM,

p. 52), ―jararaquinha do rabo fino‖ (MMM, p. 54), ―jaguatirica‖ (MMM, p. 56), ―piranha de

4 QUEIROZ, 2005. A partir desta nota, todavia, será utilizada a sigla MMM para se referir à obra em questão.

70

valente‖ (MMM, p. 60), ―víbora‖ (MMM, p. 96). Em certa altura da narrativa, um forasteiro

teme a proximidade com a Casa forte, depois de edificada, por entender que ali estava a ―cova

da onça‖ (MMM, p. 336).

Todos estes semas, de natureza animal, concorrem desde cedo na narrativa para

demonstrar na característica insurgente da heroína a filiação com o selvagem. No que tange à

relação com animais traiçoeiros, vale a pena lembrar de que mesmo as cobras, primitivas, só

atacam quando se sentem ameaçadas. A personagem trai, com esta característica, toda uma

docilidade esperada de um ―animal doméstico‖, nisto estando o seu indigerível veneno. Em

Memorial de Maria Moura, sempre que provocada, é com ―chifres‖, unhas e dentes que se

defende uma enfurecida Moura, como se pode depreender da cena que se segue, relatando o

confronto dela com um dos primos, o Irineu:

A mão dele, segurando a arma, tremia. A ponta do punhal tremia, também,

piorando a dor. E eu, então, desesperada, dei-lhe um pontapé na canela, batendo

com o salto da minha bota, com toda a força. Ele se encolheu, o aço se afastou um

pouco da minha carne, deu para eu me virar. Meti as unhas na cara dele, pegou no

canto do olho, quase rasgou. Irineu, com um berro, largou o punhal, me soltou e, de

um pulo, saltou em cima do cavalo, arrancando ao mesmo tempo as rédeas da

forquilha. Eu tinha caído ajoelhada, o pescoço sangrando. Foi tudo tão depressa

que, no momento em que João Rufo e os outros se curvaram sobre mim, enquanto

eu caía, Irineu dava partida no cavalo e já tomava galope.

Eu, do chão, gritei:

─ Fogo nele!

[...]

Foi bom que eu tivesse sofrido aquela sangria. Na raiva em que estava, era capaz de

estourar uma veia. Nunca na minha vida tinha sentido tanta fúria. (MMM, p. 203).

Este teste, a despeito do insucesso da empreitada, serve para demonstrar, porém,

quão violenta pode se tornar a fera Moura, sobretudo quando ferida. No limiar, portanto, de

uma natureza selvática, este aspecto também é considerado, na obra, quando está em

discussão a sexualidade da moça, precocemente despertada para ela. São os primos, mais uma

vez, que avaliam a questão como sendo esta uma herança de família. Repare-se no diálogo

abaixo, entre o Irineu e o Tonho:

─ A mãe [de Moura] também era mal falada. Titia. Daí, não foram elas nem as

primeiras. Essas mulheres da nossa família sempre foram escandalosas. Se lembra

da Tia Vivinha? Fugiu com aquele mulato, cabra forro, vindo das bandas do

Maranhão!

71

─ É. O mulherio da nossa raça parece que nasceu com fogo no rabo. É mesmo raça

de índia: não enjeita homem. (MMM, p. 53, grifo nosso).

Identificada esta sintonia entre Moura e os selvagens, até mesmo a casa grande da

fazenda, por ela construída e de onde delibera, delegando funções à cabroeira que comanda,

traz, na cerca que a fortifica, os sinais dessa relação. É ―uma cerca de faxina, alta de oito

palmos, toda feita de mourões grossos, como paliçada em aldeia de índio bravo.‖ (MMM,

p.13)

O mourão, pela firmeza, ao cravar-se na terra, é o pau que sustenta o arame nas

cercas, delimitando, por sua vez, territórios. Assim sendo, não parece absurdo fazer

comparações subjetivas entre a finalidade deste e a da própria heroína no romance, de

sobrenome homófono. Ela, na obra, oferece proteção e guarda a indivíduos transgressores.

Sua fazenda, servindo no texto como um ―coito de perseguido‖ (MMM, p.395) é concebida,

desde sempre, na narrativa, como um território fora-da-lei. Somente a ela cabe, portanto,

governar a Casa forte e cada protegido só é recebido se, subjugado, aceitar as regras, ditadas

por ela, do bem viver no lugar.

Firme e brava é a mulher com a qual o (a) leitor(a) se depara já nos primeiros

capítulos do texto. E sua natureza violenta vai se manifestar aos primos, de forma

conseqüente, no episódio em que ateia fogo à própria casa. Como se sabe, é mínimo o limite

que separa o violento do selvagem. Repare-se, abaixo, no estado de perplexidade dos

inimigos, diante do audacioso gesto da jovem:

Que natureza de fera o diabo daquela mulher! [...] Tocar fogo na própria casa e sair

escondida na fumaça e nas faíscas!

[...]

─ Isso é coisa de bruxa! [...]

─ [...] É pauta com o cão! (MMM, p.72-73).

Pôr fogo à casa é um ato de rebeldia da personagem Maria Moura. Mas há no

gesto, também, algo de ritual simbólico. Com fogo a protagonista faz o próprio batismo no

72

texto. Ela deixa para trás, ainda que não sem sentimento, toda uma vida, para dar início a uma

outra, muito mais autônoma. Deste modo, assemelhando-se à primitiva Fênix, saída das

cinzas, Moura renasce forte e bela. A formação de uma espécie de milícia, governada por ela,

e a história de seus feitos têm início a partir desse episódio narrativo. A valentia da

personagem, entretanto, independe de fatos. Esta, quando extremada, beira ao selvagem,

mesmo quando disfarçada na ação do outro, como se vê mais adiante.

Em Memorial de Maria Moura, a violência, contrapartida do que o homem guarda

em si de mais primitivo, sempre encontra para a heroína os seus intercessores. É assim com

Jardilino, João Rufo e Valentim, por exemplo. Às vezes alheios aos reais motivos, outras

vezes só conhecendo parcialmente a razão que leva a tanto, todos, manipulados, matam no

lugar dela.

Moura trama com Jardilino, agregado às terras do Limoeiro e este, convencido,

mata Liberato, o padrasto malfeitor. Da mesma forma, quando percebe em Jardilino um

obstáculo, arma cilada de morte contra ele, encontrando em João Rufo o executor. São mortes

magistrais, de uma mente arquiteta. Quase sempre por vingança, ela, dando mostras de que a

violência também tem seu requinte, realiza execuções, sem que esteja, fisicamente, presente

nelas. Também não é diferente a morte de Cirino, o amante traidor, no final do livro. Moura

chega ao refinamento cruel de construir para ela um assassino. Valentim não era como os

demais bandidos que viviam na Casa Forte. Ela, entretanto, conseguiu convencê-lo a matar o

referido rapaz.

É verdade que há em tudo isto a maneira encontrada por ela de vencer a opressão.

Sempre que se sente acossada e precisa agir, repete para si mesma a expressão ―era ou ele ou

eu‖. Esta é reiterada no romance, como a justificar atitudes violentas, feito um lema selvagem

de sobrevivência, em que vence o mais forte. Liberato explorou a mãe de Moura, abusou da

heroína e, não satisfeito, ainda queria arrancar dela os bens. Jardilino, exigindo direitos sobre

73

ela, quando o envolvimento dos dois não passava de um interesse de Moura em eliminar o

primeiro, torna-se uma ameaça viva. Havia sempre no então comparsa, além do mais, o risco

de que testemunhasse contra ela. Cirino, por sua vez, mostra-se como o pior de todos. Ele não

apenas trai a confiança e a fé da heroína, como tenta comprometer, colocando sob suspeição,

a credibilidade dela como guardiã:

E agora – eu tinha que enfrentar aquela traição. Não de amor, que se pode perdoar,

mas de fé. Traição à Maria Moura, à mulher de quem Cirino se gabava, na casa das

raparigas, que comia na palma da mão dele. Qual, e eu me imaginando tão forte, tão

braba. Agora não se tratava mais de ligeireza de moço mimado, era afronta. Afronta

demais. Afronta e perigo, também. Porque ele me desmoralizando, ele entregando

aos inimigos um homem que foi posto debaixo de minha guarda, dando prova

sobeja de que eu estava metida naquela combinação suja – era acabar comigo.

Quem mais ia acreditar na palavra de Maria Moura? (MMM, p.425).

Cirino, à revelia dos cuidados de Moura, exerce sobre a heroína um poder

destrutível, daí que necessite ser morto. Ao agir, na surdina, ele não só ameaça pôr em xeque

toda uma dignidade que a levou merecer a consideração dos demais como constitui uma

ameaça a ela própria, sedutoramente atraída por ele. É um jogo de quem pode mais. Sem que

isto seja elucidado no texto, o temor maior de Moura talvez fosse se transformar numa

―Mariazinha‖ não mãos dele.

Pesou demais à moça, aliás, tomar conhecimento de que o rapaz considerava-a

comendo na palma da sua mão. Esta docilidade não se aplica ao animal que há em Maria

Moura e logo a personagem se encarrega de corrigir Cirino no erro. É este, inclusive, um

segundo exemplo, no texto, do verbo ―comer‖ aplicado em sentido antropofágico. Já

Jardilino, comia-a com os olhos (MMM, p.29), engano pelo qual também terá que pagar no

texto.

―Comer‖ o outro ou fazê-lo comer na palma da mão é sempre uma situação em que

alguém sai em desvantagem. E no caso em questão, reparar o ―malfeito‖ de Cirino vai

significar, à heroína, ter que cortar na própria carne. Neste propósito, percebe-se o quanto os

castigos aplicados ao rapaz resultam, numa relação simbiótica, em tortura a ela própria no

74

texto. Sabia-se ofendida, mas, à medida que seus homens maltratavam-no, doía nela também.

Ao ser resgatado pelo bando dela, Cirino é reconduzido, amarrado, à Casa forte. Moura,

acompanhando-o de perto, também se sente atingida, de modo que, de vez em quando se pega

esfregando o próprio pulso, ―como se ele, também, estivesse ralado da corda.‖ (MMM,

p.445). Não muito atrás, ela observa, julgando os crimes que ele cometera:

Se estava amarrado era por ser criminoso. Por fazer duas mortes a sangue frio e

sem motivo. E o crime pior dele não eram nem as duas mortes – o grande crime foi

praticado contra mim. Foi em mim que ele deu o tiro de bacamarte, foi na minha

carne que ele enterrou a faca. (MMM, p.443).

―Fula de raiva‖ (MMM, p.43) parece ser a expressão perfeita para representar a

fúria da personagem. E convicta está a moça em imaginar que naquela situação, de fato, é ela

ou ele. É por desafiar a poderosa Moura, então, que Cirino vai pagar com a própria vida. No

sertão dos justiceiros, os criminosos muitas vezes pagam sofrendo na pele do mesmo mal que

propagaram. E assim ocorre com a personagem, alvejada de faca no romance. À traição, a

morte de Cirino repete, por insistência, a cena em que Valentim, o atirador, salva o filho,

acertando um cão da fazenda, violentamente acometido pela raiva e que investia na direção da

criança. (MMM, p.13)

É também em nome do filho que Valentim julga matar Cirino em Memorial de

Maria Moura. É esta a exigência da protagonista por fazer do garoto o herdeiro universal

dela. Mas, na verdade, o que está em jogo mesmo é o legado de honra de Moura, vingada, na

narrativa, pelas confiáveis mãos do compadre atirador de facas.

Percebe-se, se levado em consideração o primeiro romance de Rachel de Queiroz,

uma mudança na forma de representação da mulher em Memorial de Maria Moura. O

pragmatismo da heroína deste último faz dela uma mulher adulta e experienciada numa

autonomia em tese já iniciada por Conceição. Para tanto, o próprio tratamento de referência

dado às duas, nas obras, dá conta dessa figuração. Conceição é a ―Doninha‖ de O quinze (p.

40), já que na escala hierárquica do poder, em família, ela estava abaixo da avó, a quem devia

75

obediência ainda que por respeito. Mais livre que a primeira, já que nenhum dos parentes

dela, de grau mais próximo, vive, para intermediar uma relação com o patriarcado, Maria

Moura é, por isso mesmo, muito mais senhora de si. Independente, ela é a ―Sinhá Dona‖

(MMM, p.11) ou ―Dona Moura‖ (MMM, p.13) como é respeitosamente tratada no livro.

Era assim que eles [os cabras] agora me chamavam: a Dona. Às vezes diziam

também ‗Dona Moura‘ e eu achava que estava bem. Acabada era a ‗Sinhazinha‘ do

Limoeiro; nem tinha pegado aquela história de ‗Chefe‘ que o João Rufo inventou.

Muito macho pro meu gosto. ((MMM, p.153, grifo nosso).

A julgar pela leitura que faz dos nomes que vai recebendo ao longo da narrativa,

percebe-se em Moura uma personagem muito mais integrada que a primeira. Nela, corpo e

mente andam juntos, diferente do que acontece com Conceição. Embora calculista, ela é

sempre quem planeja os assaltos, Moura sabe tirar das experiências as suas lições (MMM,

p.231). Ela tira proveito das correrias e prejuízos quando da fugida do Limoeiro e mesmo o

insucesso causado pelos erros da emboscada no Irineu faz dela uma personagem notadamente

mais preparada para a aventura.

Quando vislumbra um projeto, entrega-se a ele por inteira, sabendo esperar para

fazer, mas fazendo com propósito, como ilustra a seguinte passagem, em que revela ao bando

os interesses em reclamar de volta as terras da Serra dos padres: ―─ Não nego a vocês que

tenho um plano na cabeça. Na cabeça e no coração, posso dizer. É uma idéia muito velha,

que eu trago comigo desde os tempos do finado meu avô.‖ (MMM, p. 84, grifo nosso).

Essa totalidade da mulher representada por Maria Moura significa, de fato, um

avanço na produção queirozeana. Entretanto, dados outros, já localizados em O quinze,

permanecem e fazem pensar. Repetem-se em Memorial de Maria Moura as impossibilidades

de relacionamento, entre ela e Duarte por preconceitos, agora de raça; e entre ela e Cirino por

uma disputa mesmo de poder, cuja moral de um significa o aniquilamento do outro. De novo

se repetem as relações de compadrio, assim como ocorre com as personagens Conceição e

Vicente, em O quinze, apadrinhando o filho mais novo de Chico Bento. Moura e Duarte no

76

último romance queirozeano tornam-se padrinhos do filho de Valentim, casado, por sua vez,

com uma prima legítima dela. Esta criança é alçada à condição de herdeira única da heroína e,

pelo visto, mais uma vez cumpre com o papel de sublimar uma falta proveniente dos filhos

não nascidos, atitude comum às personagens femininas de Rachel de Queiroz.

No relato da gravidez de Marialva, a prima talvez esteja em resíduo contraste,

frente à incapacidade de Maria Moura em conceber na narrativa. O nascimento de um filho é

posto no texto permeado entre o sublime e o real. Perceba-se na surpresa apresentada pela

prima da heroína, abaixo, o inusitado da descoberta:

Então uma coisa importante como ter um filho começa de maneira tão idiota? – se

desmaiando? Eu pensava que, quando um filho fosse concebido, a gente havia de

sentir a diferença – um calor por dentro, uma luz... e eu até me lembrava do Anjo e

da Virgem Maria... Mas desmaiar, na hora do trabalho, cair no chão num

faniquito... (MMM, p.293).

Moura, entretanto, não participa, na obra, desta novidade. Diferente de Conceição,

a madrinha virgem, ela se descobre estéril. Não há nessa constatação da personagem, no texto,

nenhum ar de gravidade. Em nenhum momento da narrativa isto chega a constituir problema

para a personagem, ao contrário, ela aceita o fato até com certa naturalidade:

Nos primeiros tempos, também, eu morria de medo de pegar filho. Mas com os

meses se passando e nada acontecendo, tomei confiança. Afinal no tempo de

Liberato, também não peguei filho nenhum; a falta era de ser comigo mesma.

(MMM, p.351, grifo nosso).

Independentemente de constituir problema ou não, a falta é registrada e a

reiteração dela nos romances de Rachel de Queiroz não pode deixar de ser percebida. Nesta

ótica, a mulher selvagem que há nas duas heroínas, em estudo, adormecida talvez em

Conceição e em estado de ebulição em Moura, termina por se perder na cadeia hereditária que

as mantém presas aos antepassados. Moura, por exemplo, transfere em herança de testamento

todo o seu legado, em anos conquistado, para o primo/afilhado. Ao passar o bastão e sair do

texto, à francesa, ainda que sob as ameaças dos perigos que reservam o front de uma nova

batalha, ela delega a um homem a guarda do seu passado.

77

Num caso e noutro é com a imagem de heroínas solitárias que a narrativa

queirozeana se despede. A trajetória de uma vida selvagem, cada uma a sua maneira, leva-as a

uma espécie de esvaziamento da existência. Sublimado por Conceição, no exercício de sua

maternagem, e sublimado por Moura quando, infeliz pelos acontecimentos com Cirino,

precipita-se para o que parece ser sua última guerra. À mulher selvagem, os ermos solitários.

Parece ser esta a máxima a que se dedicam os livros queirozeanos.

Em Clarice Lispector, também Joana, de Perto do coração selvagem, embora

seguindo outros rumos, já deu, neste estudo, testemunho de solidão. No entanto, Conceição,

Joana, Maria Moura, todas estas ao menos têm de si a reflexão. Situação primária mesmo é a

de Macabéa em A hora da estrela5, última obra de Lispector aqui estudada. Sem se dar conta

sequer que tem direito ao grito, resgate íntimo do selvagem, antes é preciso que alguém o faça

por ela, a personagem, na obra, ―é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira.‖

(AHE, p. 13).

Esta moça, que ―não se conhece senão através de ir vivendo à toa‖ (AHE, p. 15),

pouco ou quase nada sabe de si. Está longe de Joana, a primeira personagem clariceana, mas

de alguma maneira, mantém aproximação com ela, como previne o texto da novela, já se

encaminhando para o seu final: ―Espraiar-se selvagemente e no entanto atrás de tudo pulsa

uma geometria inflexível. Macabéa lembrou-se do cais do porto. O cais chegava ao coração

de sua vida.‖ (AHE, p. 82-83). A diferença talvez em relação à Joana é que o drama que

Macabéa desperta no(a) leitor(a) é palpável. Ele tem cor, lugar, forma. Tem a geometria de

uma fome não mais espiritual, mas concreta.

A fome, como já vista em Rachel de Queiroz, embora de um modo diferente, mais

uma vez é responsável por uma selvagem forma de vida, manifestada na seguinte passagem

da narrativa:

5 Para se referir a esta novela, última obra de Clarice Lispector publicada em vida, será usada, daqui por diante,

a sigla AHE no corpo deste trabalho.

78

Havia um anúncio, o mais precioso, que mostrava em cores o pote aberto de um

creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela. Executando o fatal

cacoete que pegara de piscar os olhos, ficava só imaginando com delícia: o creme

era tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo não seria boba. Que pele,

que nada, ela o comeria, isso sim, às colheradas no pote mesmo. É que lhe faltava

gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada

esfarelada. Tornara-se com o tempo apenas matéria vivente em sua forma primária.

(AHE, p. 38).

Literalmente, isto é consumir em Clarice Lispector. E ao sugerido e desesperado

ato de comer, somem-se outros selvagens e ligados ao antropofágico, perfeitamente

representável, por exemplo, na figura de uma personagem engolida pela cidade, como se vê

ao fim de tudo. Nesta cidade, o consumo não é só de mercado, ironicamente patrocinando o

texto construído. Pessoas são consumidas no imediatismo mesmo das relações descartáveis. A

título de ilustração, repare apenas na rapidez interesseira com que Olímpico, o namorado de

Macabéa, avaliando novos ganhos, faz sua opção por Glória.

Em síntese, nisto se resume a problemática do texto, que vai tratar de uma moça de

dezenove anos, vinda do sertão de Alagoas e suas (des)venturas ―numa cidade toda feita

contra ela.‖ (AHE, p. 15) Diante de tais referentes, cumpre repetir aqui uma pergunta feita por

Eduardo Portella, num texto escrito a pedido da própria Clarice Lispector para servir de

introdução à primeira edição de A hora da estrela. Neste ensaio, reunido mais tarde em

coletânea, indaga o crítico: Estaria ―o coração selvagem comprometido nordestinamente com

o projeto brasileiro?‖ (PORTELLA, 1983, p. 175, grifo do autor).

Longe de querer responder a este questionamento, até porque outros estudiosos já

se encarregaram disto, uma dúvida que se soma a essa primeira, e que parece contribuir mais

para a questão, aqui, em análise, consiste, noutra vertente, em querer verificar de que maneira

o nordeste contribui para o selvagem que se espraia em A hora da estrela e em que medida o

texto faz de Macabéa, por síncope, o supra-sumo de sua representação. Afinal, a história dela

é, nas palavras tomadas de empréstimo mesmo de Lispector, e muito bem lembradas por

Portella (1983), resumo do encontro ou desencontro de uma ―‗resistente raça anã teimosa que

79

um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito‖ (AHE, p. 80) com o ―ambicionado clã do sul

do país‖ (AHE, p. 59).

Observe-se, a propósito, que o discurso, estigmatizado, não disfarça o lado

etnocêntrico do texto. Este suposto encontro, por sua vez, faz lembrar, por analogia, o

encontro etnográfico, já descrito por Woortmann (2000), entre o povo grego e os citas, povos

antigos, tidos como selvagens.

Assim é que, na tessitura do etnocentrismo, as relações entre os personagens na

obra vão estar circunscritas a um entrechoque cultural. Macabéa, por metáfora, será sempre

uma anã em terra de Golias, com a diferença de que não consegue abater o gigante, ao

contrário, é derrubada por ele. Desde sempre condenada ao fracasso, a personagem, então,

como as demais nordestinas medidas por ela, traz estampado no rosto o ―sentimento de

perdição‖ (AHE, p. 12).

Apesar de residente, Macabéa não passa de uma mulher invisível na cidade do Rio

de Janeiro. Tola, ela chega ao ponto de sorrir, na rua, para os outros, que não respondem ao

sorriso dela ―porque nem ao menos a olham‖ (AHE, p. 15-16). Essa invisibilidade social

evolui na obra de modo a se traduzir em algo vampiresco. Isto é confirmado, inclusive, em

determinado momento do texto, quando a própria personagem não consegue se enxergar no

espelho:

Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira

por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara

toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um

palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com

ferrugem. (AHE, p. 25).

Sabe-se que o vampiro é um sanguessuga selvagem e que não reflete no espelho. É

pela mordida que os vampiros se reproduzem, mas a sugestão não vale para Macabéa, vítima

deformada. Havendo diversas formas de manifestação do vampirismo, é por analogia que o

―homem-vampiro‖ é citado em A hora da estrela, ―aquele que chupa sangue da pessoa

mordendo-lhe o tenro da garganta‖ (AHE, p. 25). Da mesma forma se entende por vampiresca

80

toda relação em que um indivíduo é visto ―dando o sangue‖ para a sobrevivência de outro. No

caso de Macabéa, não podendo ser vampira, já que pelo DNA apresentado para a personagem

ela não pode ser outra coisa a não ser ela mesma, a personagem, ―ferida‖, vai sangrar até

morrer.

Em relação a esta incapacidade vampiresca da personagem, lamenta o discurso

narrativo, antecipando, por sua vez, o fim da moça no texto: ―Até que não seria de todo ruim

ser vampiro pois bem que lhe iria algum rosado de sangue no amarelado do rosto, ela que não

parecia ter sangue a menos que viesse um dia a derramá-lo.‖ (AHE, p. 26)

Como se depreende das passagens citadas, o selvagem que há em A hora da

estrela faz da personagem uma vítima. Ela é caça e não caçadora. Conduzida pela tia ao

Sudeste do país, Macabéa, como outros tantos, deixa para trás uma ―terra braba e rachada pela

seca.‖ (AHE, p. 57). Gerada de uma idéia vaga qualquer de pais famintos (AHE, p. 58), a

personagem tem nessa gênese sua herança maldita. Filha da fome, portanto, o raquitismo na

vida adulta é, ainda, um mau antecedente do sertão.

De ―idéia vaga‖, Macabéa passa a ―fantasma suave e terrificante de uma infância

sem bola nem boneca‖ (AHE, p. 33), até se transformar, na vida adulta, numa criatura que

―pouca sombra‖ faz no chão (AHE, p. 47). Incompetente em tudo (AHE, p. 24), não só no

trabalho e no amor, ela fracassa, sobretudo, como gente, pois faltam a ela os instrumentos

essenciais para gerenciar a própria vida. Ou seja, de uma idiotia sem par, a moça viera não só

ao Rio como a este mundo completamente despreparada para viver.

Aportar numa cidade, verdadeira selva, em que só o mais forte sobrevive, só traz

para ela complicações ainda maiores, levando-a à morte, que ocorre no fim do livro, embora,

lentamente, esta se estenda por toda a obra. Morte física, pois a morte social é desde sempre

declarada na narração. Tanta inoperância impacienta Rodrigo S. M. (AHE, p. 16),

encarregado de contar a história da nordestina. Arriscar-se ia mesmo a dizer que há em A hora

81

da estrela um misto de ódio e culpa desferido pelo narrador à personagem e tudo quanto ela

representa.

Posta à margem, Macabéa vai incomodar exatamente porque acusa o homem de

um esquecimento sério: o abandono de um seu semelhante, ainda quando não deseje sê-lo. Ela

é, pelo que se depreende, o estrato negativo de uma raça que, ao mesmo tempo choca e acusa

o outro de fazer dela um ―subproduto‖ (AHE, p. 59), nisto se resumindo, também, a agonia da

narração. Reduzida em sua condição de gente, Macabéa escapa o tempo todo entre os dedos

do narrador.

A própria ―aparência assexuada‖ (AHE, p. 34), a despeito de uma libido que beira

ao hipererotismo, confirma a questão. Pelo que se depreende da narração, Macabéa não tem,

em nível aparente, as ―marcas‖ que a identificam como homem ou mulher, e, ainda que isto

seja por sugestão em A hora da estrela, não ter um sexo definido é sempre uma forma híbrida

de tratar o assunto. Se na ótica da sexualidade pouca importância tem para a novela o fato de

Macabéa ser homem ou ser mulher, o mesmo não se pode dizer da origem nordestina da

moça, de primordial importância, no jogo das alteridades, para a compreensão das identidades

assumida e preterida pelo texto.

Quanto mais regride em sua humanidade, como já foi dito, mais o homem se

aproxima da natureza animal. Assim é, por exemplo, com o que une Macabéa e Olímpico no

texto: ―dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam.‖ (AHE, p. 43). Na Clarice

de Perto do coração selvagem os bichos seduzem-na pela força vital, pela espontaneidade e

verdade primitiva que expressam. Mas há também o lado asqueroso da animália. E em A hora

da estrela, o que é desprezível no homem também pode ser lido pelo que é nojento no animal.

Nessa perspectiva, Macabéa, informa a narrativa, tão alheia a tudo, era como ―uma cadela

vadia‖, ―teleguiada exclusivamente por si mesma‖ (AHE, p. 18). Ela simplesmente ―não sabia

que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro.‖ (AHE, p. 27).

82

Muito próxima da raça canina, a personagem, entretanto, só recupera dela o lado

dócil, obediente. Esquece que cães, também, reagem. De pobreza superior ao animal, note-se

que Macabéa está em situação de desvantagem quando posta em proximidade com o cão do

narrador, que tem mais comida do que ela (AHE, p. 26). A jovem também é desprestigiada

frente ao cão que em criança exigira da tia, parecendo o animal ser bom demais para ela, que

merecia tão pouco: ―Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho. Mas a tia

achava que ter um bicho era mais uma boca para comer. Então a menina inventou que só lhe

cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão‖. (AHE, p. 29, grifo nosso).

Por que criar um cão, se ela própria se parece com um e dos mais sarnentos? Só

faltavam mesmo as pulgas para encerrar para a personagem um processo de decrépita

zoomorfização. Já os ―olhos enormes, redondos e saltados‖, resultado talvez de distúrbios da

tireóide, explica o narrador (AHE, p. 26), contribui para a sua aparência canina. Além do

mais, ela possui um cheiro ―murrinhento‖ e tem manchas no rosto, associadas no texto a

algum mal do fígado (AHE, p. 27). O rosto manchado é resultado talvez de uma alteração

dermatológica conhecida no nordeste como ―pano preto‖. Não por acaso, também consta do

imaginário popular uma velada acusação de que, pessoas com ―panos‖, preto ou branco,

experimentam processos de transformação em lobisomem.

Ou seja, no que consistem as analogias postas entre Macabéa e os animais que

aparecem no texto, a exemplo do cão, recuperam-se delas somente características negativas.

Assim sendo, diferente do que ocorre com o primeiro romance de Clarice Lispector, a

personagem invejando a natureza animal, aqui, o narrador rejeita-a. O animal que há em

Macabéa representa o asco e, por isso mesmo, cumpre exigência de que seja afugentado do

texto. Neste aspecto, bom que ela seja estéril, assim, com ovários ―tão murchos‖ (AHE, p. 33,

p.58), descarta-se nela toda e qualquer possibilidade de procriação.

83

Interessante notar que o selvagem que há em A hora da estrela se esconde sob a

forma severa do tratamento narrativo concedido à personagem. E, neste sentido, quão

corajoso é o discurso em assumi-la. Trata-se de uma forma impiedosa de concepção. Cortante

e aniquiladora. Nisto, admite o narrador: ―eu não tenho piedade do meu personagem principal,

a nordestina: é um relato que desejo frio.‖ (AHE, p. 13) Sua frieza, diria, tem a dose certa da

crueldade que o caso exibe.

Acerca deste comportamento do narrador, que se sabe impiedoso, cumpre observar

a diferença que Georges Bataille (1988, p. 67) estabelece entre violência e crueldade.

Discutindo sobre o erotismo e, por extensão, paixões desumanas, regresso à animalidade,

esquecimento definitivo dos limites, canibalismo, entre outros, ele assevera que a violência,

seja na fome, seja na guerra, irmaniza homens e animais, mas estes últimos são incapazes de

desenvolver crueldade. Só o ser humano, portanto, sabe ser cruel.

É sob uma ótica cruel, então, que a narrativa tenta trazer à luz a nordestina

Macabéa. Outros nordestinos, como ela, já foram antes merecedores da atenção, de modo que,

numa perspectiva étnica, esta não é, em A hora da estrela, uma tentativa inaugural. Assim

como o fictício Rodrigo S. M., narradores anteriores, embora numa outra situação de

―guerra‖, em que também se digladiavam forças opositoras, já se incumbiram desta tarefa de

representação. É o que ocorre, por exemplo, com o autor textual de Os sertões, evocado em A

hora da estrela, num breve intertexto, e que recebe, no exemplo de Macabéa, uma correção

narrativa: ―O sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdôo.‖ (AHE, p. 66). Não há

como falar de força em Macabéa, isto é verdade, mas não é verdade que vai ser perdoada no

texto. O agir passivo da personagem, que em toda obra espera até não poder mais, muito pelo

contrário, causa irritação, como já demonstrado, ao narrador.

A dificuldade maior deste, em A hora da estrela, está em ―iluminar‖ o que está em

névoa, ou, nas palavras dele mesmo, tentar divisar ―o invisível na própria lama‖ (AHE, p. 19).

84

É que vivendo num limbo impessoal, a personagem lhe escapa a cada instante. Existindo, sem

alcançar o pior nem o melhor, ela ―somente vive, inspirando e expirando, inspirando e

expirando.‖ (AHE, p. 23). Respirar é uma condição primária de conexão entre os seres vivos.

Existir, porém, na base mesma de uma existência concreta, e nisto está a insatisfação do

narrador para com a mediocridade da vida dela, reclama significados outros não fornecidos

por Macabéa.

Talvez por isso, por tamanho esforço na tentativa de focalizar-lhe na obra, o

narrador escute, nesta tarefa, um interiorizado rufar de tambor (AHE, p. 22). Não deixa de ser

curioso notar que, à medida que escreve, vai também sentenciando a condenação da

protagonista. E não eram assim promulgadas as condenações antigas, sob os rufos selvagens

dos tambores? É verdade que sofre com ela, assim como verdadeiro é seu reconhecimento em

perceber-se nada fazendo de concreto em benefício da moça (AHE, p. 23). Procura, pela

escrita, então, exorcizar-se dessa culpa.

Numa situação muito semelhante à experimentada pela heroína do Memorial de

Maria Moura, que sente nos pulsos intactos a dor da corda ralada no pulso alheio, Rodrigo S.

M., vivendo o inferno da história de Macabéa, deseja nunca necessitar descrever o lázaro, pois

fatalmente se cobriria de lepra como ele (AHE, p. 39). Ainda assim, embora complacente, a

afirmação não faz dele um piedoso no texto, ao contrário, é bastante cruel. Precisa se vestir

com roupa velha e rasgada. Tudo isso para se pôr ao nível da nordestina. (AHE, p. 19).

Compreensível é o esforço empreendido pelo narrador, no intuito de colar-se no

outro para representá-lo melhor, mas não deixa de ser sintomática a forma de concebê-lo. E

por falar nas vestes de Macabéa, sintomáticas também são as ―manchas bastante suspeitas de

sangue pálido‖ que se encontram na combinação de brim com que dormia (AHE, p. 24).

Funcionando como elemento de antecipação narrativa, elas não deixam de constituir um

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índice cruento, na novela, principalmente se relacionado ao sangue derramado por ela no final

do livro.

O selvagem, ou a mulher vítima dele, se representa, por fim, em A hora da estrela,

ainda que, contraditoriamente, sob uma técnica mais refinada de apresentação. Forças de

oposição se digladiam na obra, embora surda seja a batalha vivida pela personagem

clariceana. E mesmo que aniquilada seja esta protagonista, a morte é para ela o seu galardão.

Ironia ou crueldade? Os dois talvez. Irônico mesmo é o final do discurso do narrador que,

depois de pedir desculpas pela morte dela, acende, aliviado, quem sabe, um cigarro em

comemoração. Lembra, ainda, de que ―é tempo de morangos‖ (AHE, p. 87). Ou seja, a vida

segue, em estação, para quem ainda pode dela desfrutar. Decididamente, este não é o caso de

Macabéa.

86

II – ESPRAIAR-SE EM CAMPO SELVAGEM: DA ESTRÉIA CONCEBIDA À

VERTIGEM DA ESTRELA

No que concerne às personagens, iniciadas por Conceição e Joana, a vinda a

público inaugura uma verdadeira galeria de tipos femininos, a predominar de maneira quase

absoluta sobre as narrativas das escritoras. Estas duas heroínas representam oficialmente o

começo, em Literatura, não deixando de ser curioso observar que a protagonista de O quinze

apareça ligada à concepção já pelo nome. Situação semelhante é a de Joana, em Perto do

coração selvagem, que também tem seu momento de ―ovo‖, ou de princípio narrativo, como

se quer considerar aqui.

Se estas personagens, por um lado, estão ligadas à gestação, ao nascimento de

uma produção literária, Maria Moura e Macabéa, situadas em pólo oposto, quando Rachel de

Queiroz e Clarice Lispector encerram com elas a produção em vida, aparecem, ainda que não

seja proposital, ligadas aos semas da morte. É verdade que admiti-la para a heroína de

Memorial de Maria Moura é, de certo modo, frustrar para o(a) leitor(a) todo um projeto

emancipatório para a mulher que vem sendo desenhada ao longo da narrativa.

Mais crítica, ainda, se torna a morte em A hora da estrela, pois, desejada pela

narração, constitui para a protagonista, no exemplo de seus ―ovários murchos‖, a

representação da derrocada de uma espécie. Assim posto, por mais que solicitado seja o ―meio

termo‖ para a compreensão das questões postas para análise, esta se vê restrita a uma

percepção binária, observável nos textos avaliados. Princípio e fim, vida e morte, afirmação e

negação aparecem como sentenças de ordem no desenvolvimento do conjunto narrativo que

as obras estudadas representam aqui.

No que diz respeito à recepção das obras de estréia, se o romance queirozeano,

de estrutura linear, ligando personagens a uma realidade acontecida, dentro de todas as

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categorias previstas pela crítica tradicional, ainda assim levantou especulações em torno da

autoria, imagine o que não dizer do impacto causado, como atesta Antonio Candido (1970, p.

27), pelo surgimento de um romance ―diferente‖ como é Perto do coração selvagem, uma

novidade que, rompendo com o já constituído por tradição em análise literária, em princípio

não se enquadrava em nenhum referente conhecido pela crítica de então.

Basta citar, como exemplo, a dificuldade de compreensão de uma narrativa em

que o drama das paixões das personagens toma uma dimensão maior do que a própria

personagem no romance. Até a crítica perceber que métodos convencionais de análise não se

aplicam a textos não convencionais, é um custo. E há ainda o problema da escrita feita por

mulheres que se insurgem por um território selvagem, de dominância masculina.

No caso de Rachel de Queiroz, ao chamar a atenção do país para um nordeste

sofrido e marginalizado, ela denuncia, sem fazer da denúncia, no entanto, o objetivo último de

suas questões. Ou seja, a espontaneidade com que trata do assunto, justificada talvez pelo fato

de que conheça de perto o que busca elucidar, leva a crer que, mais do que dar lição, a autora

busca representar fatos ou imagens da vida nordestina como ela é. É a força imagística do

texto queirozeano que faz de O quinze, ainda que não seja este o interesse da autora, um dos

mais notáveis romances sociais brasileiros.

Este procedimento da narrativa queirozeana muito entusiasmo causou a Augusto

Frederico Schmidt que, admitindo não resistir à tentação de se manifestar em relação à obra

recém publicada, declara, constituindo uma das primeiras vozes a saudar a estreante Queiroz,

no texto crítico intitulado Uma revelação:

Nada há no livro de D. Rachel de Queiroz que lembre, nem de longe, o

pernosticismo, a futilidade, a falsidade da nossa literatura feminina. É o livro de

uma criatura simples, grave e forte, para quem a vida existe.

[...]

Não há nenhum sentimentalismo na escritora de O quinze. Constata ela apenas a

realidade [...] Não reclama nenhuma providência contra a seca, pois seu livro nada

tem de caráter panfletário. Não amaldiçoa a terra, não força sentimento de piedade

com inventivas violentas, nem com lamentações pungentes. (SCHMIDT In:

QUEIROZ, 1968, p. 17-18).

88

Trata-se de um romance ―sem gorduras‖, como se costumava dizer na época. E se

o texto impressiona pela contenção dos excessos, representado, sobretudo, por uma linguagem

sóbria, surpreende, como se vê, por vencer a futilidade e o sentimentalismo creditado, de

forma precipitada, à literatura feita por mulheres. Independente desta visão do crítico, reflexo

de uma perspectiva absorvida culturalmente, voltar-se para a realidade e comprometer-se na

discussão de problemas humanos e sociais, sem fazer disso um panfleto, coloca o texto

queirozeano em evidência, atraindo o foco da crítica em sua direção.

É verdade que ainda era pouco comum mulheres fazendo a chamada literatura

engajada, daí a excepcionalidade da situação representada por O quinze. Excepcionalidade,

inclusive, que levou Graciliano Ramos, mais tarde amigo de Rachel de Queiroz, a duvidar da

autoria, no período em que o livro fora lançado. Para ele, parecia demais uma garota de

dezenove anos ter dado uma obra tão definitiva ao romance brasileiro. Assim é que, a despeito

de estar comentando acerca de outro livro da romancista, escreve um incrédulo Graciliano

Ramos:

Naquele tempo, excetuando-se A bagaceira, que tinha feito barulho enorme, não

tinha literatura no Nordeste. Se havia, era coisa que se acabava por lá mesmo,

ninguém tinha conhecimento dela.

O quinze caiu de repente lá por meados de 30 e fez nos espíritos estragos maiores

que o romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que na verdade

causava assombro, de mulher nova. Seria realmente de mulher? Não acreditei. Lido

o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: Não há ninguém com este

nome. É pilhéria. Uma garota fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito

barbado. (RAMOS, 2005, p. 194-195).

Não constitui novidade, em crítica literária, esta desconfiança primeira dedicada a

obras de autoria feminina, nos momentos iniciais da recepção. E o assombro, experimentado

também por Schmidt, sempre veio justificado pelo fato de que não bastasse ser mulher, coisa

que para o universo da publicação vigente, dominantemente masculina, já causa

estranhamento, espanta, ainda, o tratamento de ―questões sérias‖, supostamente impensadas

para a mulher de então. Por esta ótica, fica fácil imaginar o porquê da acusação de Graciliano

89

Ramos. Não identificando as futilidades que julgava dever encontrar num texto escrito por

uma mulher, sua opinião imediatamente submete-o às barbas de um homem:

Daí pode-se perceber a debilidade da situação da mulher intelectual na sociedade

brasileira dos anos de 1930. Pode-se igualmente perceber a força inaugural de

postura profissional de Rachel e de sua audácia na construção de personagens

femininas. Mulheres livres, que respondem às turbulências políticas da década de

1930 e de um momento em que a literatura assume a tarefa de pesquisar e conhecer

a realidade social do país. Estes traços, também presentes na personagem-Rachel,

desenham sua primeira figura feminina, a Conceição. O sertão que a autora vê e

descreve é o sertão experimentado por Conceição e sua consciência da realidade

social do nordeste. (HOLLANDA, 2005, p. 15).

A verdade é que O quinze marca a estréia de Queiroz na Literatura, mas não na

escrita. Sua experiência de cedo iniciada no jornal é que faz com que ela pareça chegar ―já

pronta‖ ao ofício literário. Daí também o espanto de Ramos, que mais tarde admite a falsa

impressão que lhe deixou o primeiro livro da autora. No entanto, cauteloso, só o faz depois do

terceiro romance dela vir a público, intitulado Caminho de pedras (1937). Ao que parece, até

o livro João Miguel (1932), o segundo romance escrito por Rachel de Queiroz, Graciliano

Ramos ou ainda não estava muito convencido da força intelectual da escritora ou, desconfiado

como ele era, desejava ter, em mãos, mais provas para a justiça de seu argumento.

Certa está Heloísa Buarque de Hollanda quando recorda existir uma debilidade na

situação das escritoras brasileiras, sobretudo, vale completar, quando se trata de serem aceitas

enquanto tais. E Rachel de Queiroz, é preciso que se diga, nem foi das mais desprezadas, ou

posta à margem. Pelo contrário: por merecimento, é certo, mas também por sua articulação

política, muito cedo ela se constituiu centro. As obras dela foram, desde logo, largamente

aceitas no meio literário e seus pares sempre a tiveram em grande estima.

Mário de Andrade, outro amigo da escritora, e a quem a romancista tinha como

modelo literário, sempre ressaltava, entusiasmado, a concisão de uma escrita considerada por

ele objetiva e funcional. É Heloísa Buarque de Hollanda (2005, p. 14) quem lembra, também,

de um comentário acerca da autenticidade de O quinze, a análise dele colocando Rachel de

90

Queiroz em superação a outros colegas regionalistas como Euclides da Cunha, Domingos

Olímpio ou José Américo de Almeida.

Pontuando positivamente a expressão lingüística em Queiroz, e sempre destacando

nos textos dela os elementos de simplicidade e clareza, Mário de Andrade, no livro de ensaios

O empalhador de passarinho (2002), embora discutindo outra obra, As três Marias, põe em

pauta uma reflexão perfeitamente passível de ser aproveitada para o conjunto da obra da

escritora. Trata do que ele aponta como aspecto da feminilidade no texto queirozeano.

Para ele, Rachel de Queiroz se mostra vingativa, ao analisar os homens,

corriqueiramente representados no discurso de forma ofuscada, entre mulheres nítidas. Este

procedimento, assegura Andrade (2002, p. 121), constitui o ―instante em que ela se vinga do

eterno masculino lhe penetrando pouco ou mal a incapacidade de grandeza.‖

Os homens de Rachel, acusa o crítico, ao correr da pena, são tímidos, suicidas,

incompetentes, incapazes, quando não, figuras incompletas e bastante sem dor.

Em compensação, estas [as mulheres] vivem com riqueza esplêndida, todas

descritas com uma segurança de análise, uma firmeza de tons, uma profundeza de

observação verdadeiramente notáveis. Num equilíbrio perfeito de estilo e

concepção, a escritora não se desdobra em análises psicológicas pormenorizadas. A

[sic] simplicidade direta do seu estilo, corresponde a simplicidade direta da análise.

[...] A análise de Rachel de Queiroz é curta e incisiva, à maneira Machado de Assis.

E lembra mesmo invencivelmente o Mestre, mais que seus imitadores.

(ANDRADE, 2002, p. 121-122).

Embora esteja ultrapassado este discurso polarizador, que coloca homens contra

mulheres, o fato é que as personagens femininas em Rachel de Queiroz ganham expressão e

autonomia. Elas existem nas obras por elas próprias, sem necessitarem de muletas para

sobreviver. E se de repente se mostram nítidas a Mário de Andrade, a razão não pode ser outra

senão pela visibilidade não concedida à mulher, no texto literário, em tempos de outrora.

Os textos da autora, sem dúvida, acham-se permeados pela temática feminista e

mesmo que Rachel de Queiroz sempre tenha refutado esta filiação, a prática dela, posta em

Literatura, depõe e muito a favor da teoria feminista. Talvez tenha sido esta a descoberta de

91

Heloísa Buarque de Hollanda, quando, depois de muito resistir, dedicada que era à pesquisa

sobre as escritoras consideradas ―não-oficiais‖, constata, ao conhecer mais sobre a

romancista, que ―estudar a mulher no Brasil e na literatura brasileira sem passar por Rachel de

Queiroz é, no mínimo, imprudência.‖ (HOLLANDA In: DE FRANCESCHI, 1997, P. 105).

É Heloísa Buarque de Hollanda, aliás, no ensaio ―O éthos Rachel‖ (1997), quem

reclama de uma ociosidade da crítica, em contraste absoluto com o alardeado sucesso causado

pelo lançamento de O quinze. A pesquisadora, entre as feministas do eixo Rio-São Paulo,

vem, já há algum tempo, se debruçando, de maneira interessada, sobre a obra da romancista

Queiroz, responsável, inclusive, pela organização e seleção dos textos para a coleção Nossos

Clássicos, da Agir. Segundo Hollanda, até mesmo a crítica acadêmica, que eclode a partir da

criação dos programas de pós-graduação em Letras, nos anos 60, deve reparar a injustiça da

subestimação desferida àquela que foi considerada ―fenômeno literário‖ dos anos 30 aos 40.

Em relação aos estudos acadêmicos, a obra da escritora tem despertado o interesse

da crítica genética, como é o caso da linha de pesquisa que reúne, em torno da professora

Marlene Gomes Mendes, da Universidade Federal Fluminense, em Niterói-RJ, alguns

orientandos. É da professora Mendes (1998), inclusive, a Edição crítica, em uma perspectiva

genética, do romance As três Marias. Nesta edição, o romance de Rachel de Queiroz é lido

em suas diversas etapas da escrita, transcritas no aparato genético. Ou seja, através da leitura

dos manuscritos, em que são analisadas ocorrências como rasuras, substituições, acréscimos,

deslocamento, entre outros, o(a) pesquisador(a) tenta, no encalço do raciocínio de quem

escreve, descobrir o percurso do texto. Afora este trabalho de filigrana, estendido à obra de

Queiroz, muito pouco tem repercutido a crítica em torno dos livros da escritora.

É possível apontar sugestões para este silêncio dos críticos, mas qualquer uma

delas seria indicada por uma via subjetiva que talvez não interesse aqui. Hollanda (In: DE

FRANCESCHI, 1997, P. 104), por exemplo, afirma, categoricamente, que, menos do que

92

omissão ou rejeição, o que a crítica brasileira tem mostrado é medo de enfrentar Rachel de

Queiroz, seja por sua relação conflituosa com o movimento feminista, seja pelo sucesso,

poder público e uma natural autoridade com que transitava nos bastidores da cena literária e

política do país.

A despeito deste silêncio, a escritora permaneceu. E ainda que haja um

descompasso com a crítica especializada, em débito com ela, já que não acompanhava o ritmo

em que ia se formando o conjunto de sua obra, Rachel de Queiroz teve uma vida literária

muito produtiva. Do pioneirismo de O quinze (1930), passando por João Miguel (1932), ela

escreve, também, Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939) e Dora Doralina (1975),

para ficar somente nos romances. Como prova liminar da aceitação nas letras oficiais do país,

em 1977, é indicada e eleita, sem maiores dificuldades, como a primeira mulher a entrar para

a Academia Brasileira de Letras (ABL). Pelo depoimento dos amigos, sua eleição foi, desde

sempre, um fato consumado, o que justifica por si só o que vem sendo afirmado acerca de sua

atuação como escritora, como política, enfim, como mulher moderna e que reclama para si o

reconhecimento de novos significados dentro do meio social do qual participa.

É com Dora Doralina em mãos que Rachel de Queiroz comparece à solenidade de

posse na ABL, embora depois dele publique, ainda, Memorial de Maria Moura (1992), seu

último romance.

Queiroz, anos mais tarde, em 1998, numa entrevista concedida à Cynara Menezes,

enviada pela Folha de São Paulo, convidada a fazer uma avaliação de sua obra, é enfática ao

revelar que não costumava reler os seus romances e que tinha particular aversão pelo primeiro

que escreveu. É o que diz: ―Nunca releio um livro meu. Tenho um pouco de vergonha de

todos os meus livros, de „O quinze‟ tenho uma antipatia mortal, esse livro me persegue há

60 anos. Detesto eles todos.‖ [Grifo nosso].

93

Talvez a escritora, neste olhar em retrospectiva, esteja sendo severa demais

consigo mesma. Os anos, já acumulados de experiência e envergadura crítica, parecem

endurecer-lhe a opinião, não lhe permitindo enxergar no texto de estréia os valores que nele

realmente há. Gosto não se discute, e a escritora, obviamente, tem direitos autorais sobre os

dela, mas, como assegura detestar todos os livros que escreveu, isto mais se assemelha a um

sintoma, cuja explicação talvez esteja na psicanálise, a aproximá-la de outros escritores que,

como ela, criaram antipatia pelo texto depois de publicado.

Independente desta opinião, O quinze tem a sua projeção e até hoje continua,

naturalmente pela importância que tem, incluído nos programas de Literatura do Ensino

Médio, Cursos pré-vestibulares e Ensino de Graduação. Só que, diferente do que faz supor,

ainda é uma obra pouco conhecida, como ilustra a sinopse que se segue, retirada de um sítio

de vendas de importante livraria brasileira:

Obra: O QUINZE

Autor: QUEIROZ, RACHEL DE

Editora: JOSE OLYMPIO

Assunto: LITERATURA BRASILEIRA

Esse romance de estréia na carreira de Raquel de Queiroz foi publicado em

Fortaleza em 1930. A obra relata o conflito entre homem e natureza, narrando a

difícil marcha de um retirante e sua família rumo ao Amazonas. Paralelamente

existe a história de uma moça sonhadora que adora ler romances franceses.

(Disponível em: <http://www.livrariacultura.com.br>. Acesso: 05/04/2009 Grifo

nosso).

O primeiro equívoco em que se incorre, ao considerar a história de Conceição

paralela a dos retirantes e atribuir à família de Chico Bento o enredo principal, ainda que

tenha por esta preferência, já revela desconhecimento da obra que está tratando. Depois,

reduzir o papel da heroína a uma alienada leitora de romance, se não é má fé, é, no mínimo,

irresponsabilidade. Como está escrito, trata-se de uma propaganda enganosa, pois a narrativa

passa por outro texto que não O quinze, este, sim, oferecido à venda. Não se discute que a

preocupação em sítios como este gira em torno da comercialização. Todavia, se há uma

exigência de que a obra seja apresentada, ainda que em rápidas pinceladas, supondo depender

94

disto, também, a decisão de compra do(a) futuro leitor(a), que ao menos se tenha o cuidado de

verificar a legitimidade do que está sendo informado.

No que diz respeito às influências sobre a produção de Rachel de Queiroz,

Machado de Assis, já citado em comparação feita por Mário de Andrade, mais atrás, aparece

em resposta da própria autora que, entre os escritores brasileiros, e frente às possibilidades

oferecidas pela mãe, admite ter por ele grande adoração. Eis o que responde, na mesma

entrevista já referida anteriormente:

[...] minha mãe era uma intelectual muito lida, foi formando meu gosto de pequena.

Ia me dando o Eça, o menos pesado do Eça – sem dizer isso, porque aí eu ficava

curiosa pelo mais pesado. Gosto muito dos autores ingleses, mas fui criada nos

franceses, nos portugueses. Dos brasileiros, Machado, que é meu ídolo, meu deus

literário. (MENEZES, 1998, grifo nosso).

Sabe-se que Rachel de Queiroz recebeu, em casa, os estímulos para um

desenvolvimento intelectual apurado, onde todos liam muito. A mãe, sem dúvida, sendo a

responsável pela formação do gosto literário dela. A moça, ao escrever O quinze, já era

considerada uma profissional, haja vista a sua experiência no jornal, iniciada aos dezesseis

anos de idade. Todavia, se é do seio da família que vem o incentivo, nela também é cobrada.

A própria escritora chega admitir, em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira

(1997), que a mãe, exatamente por incentivar, passa a ser uma entre os seus críticos mais

severos. E como na casa dela todos liam e opinavam, declara, ainda, se escrevesse uma

―bobagem‖, seguramente teria a austera censura dos familiares todos. Por outro lado, citar Eça

de Queiroz e Machado de Assis, entre os autores consagrados, é praticamente dar o

testemunho de uma época. Dois expoentes são eles que, na dobradinha Brasil-Portugal de

Literatura, exerceram grande influência sobre a geração dos novos e talentosos escritores.

Ainda no tocante à comparação, sobretudo entre técnicas de composição

narrativa, para destacar Rachel de Queiroz das demais, Tristão de Athayde (1969, p. 110-111)

95

menciona o nome de D. Júlia Lopes de Almeida, ao comentar sobre a importância do texto

queirozeano dentro de um quadro brasileiro que reúne ―meio século de presença literária‖,

expressão que dá título ao livro do crítico. Veja a anotação, à guisa da novidade, acerca da

publicação de autoria feminina:

Na prosa só o sexo masculino se apresentava na onda intelectual que vinha arrancar

as nossas letras da estagnação e do academicismo. De modo que a publicação de O

quinze, em 1930, foi um acontecimento, que ainda por esse motivo vinha dar um

cunho novo à segunda geração modernista. Parecia espantoso que uma jovem de

vinte anos tivesse tomado como tema de suas veleidades literárias – ao contrário do

lirismo religioso de uma Auta de Sousa ou do lirismo pagão de uma Gilka Machado

e mesmo tão longe da novelista burguesa de D. Júlia Lopes de Almeida – uma

realidade tão trágica como a do drama das secas. [Grifo nosso].

A comparação com D. Júlia é feita por oposição, como se pode notar, mas para a

felicidade de Rachel. Um dado, entretanto, chama a atenção no texto de Athayde e diz

respeito ao incomum da aproximação mesma entre elas. É que, geralmente, a crítica literária

utiliza como referência do século XIX nomes masculinos, como o de Machado, por exemplo,

reiterado, em vários trabalhos. Importante este registro no ensaio deste crítico, de 1969, pois

testemunha, ainda que na contramão dos discursos da época, que havia uma produção

feminina valorizada em Literatura e precisava ser considerada e mostrada.

No que concerne à figuração do outro em Literatura, Luís Bueno lembra, em

Uma história do romance de 30, que o proletário, ―grande personagem do romance brasileiro

nos anos de 1933 a 1936‖ (BUENO, 2006, p. 283), forjou abertura para outros marginalizados

da ficção, como a mulher, que passa a ter importante participação no texto literário, a exemplo

de Conceição, representada sob um novo tipo de personagem feminina. Até então vista pelo

ângulo da esposa ou da prostituta, estes papéis foram se mostrando insuficientes para a

compreensão da mulher na sociedade. Assim, obras como O quinze:

[...] ajudam a identificar a presença nos meios literários brasileiros da percepção de

que havia a necessidade de descobrir ficcionalmente a mulher de uma maneira

menos redutora – o que se confirmou com a boa aceitação dos romances escritos

por mulheres que foram surgindo aos poucos e que, de uma forma ou de outra,

96

contribuíram para dar uma nova figuração da mulher em nosso romance. (BUENO,

2006, p. 303).

Inegável, portanto, é a contribuição da geração de 30 para o desenvolvimento do

romance de autoria feminina. No início dos anos 30, Clarice Lispector, ainda menina, reside

em Recife, e já demonstra paixão pelos livros. Em texto encontrado no Arquivo da escritora,

sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), ela testemunha isto, relatando acerca

de um episódio que tanto lhe marcara na infância. A autora se refere ao empréstimo do livro

As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, adquirido por intervenção da mãe de uma

colega, que teimava em não lhe ceder o tão cobiçado objeto de desejo.

Quando estréia, em romance, em 1943, Queiroz, há mais de uma década, já

atuava na ficção brasileira. O fato, entretanto, de existirem mulheres publicando, não

significava em nada de que houvesse mudado o preconceito em relação à existência delas na

Literatura Brasileira, sendo bastante limitado o acesso ao meio. Obviamente, a autora de

Perto do coração selvagem obteve esta experiência. Basta dizer que quando passou a

freqüentar, em 1941, o bar Recreio, na Cinelândia, centro do Rio, ponto de encontro de

autores, conforme consta dos Cadernos de Literatura Brasileira (2004, p. 13), o nome da

principiante Clarice Lispector e o da já conhecida Rachel de Queiroz eram os poucos nomes

de mulheres que se ouviam entre os de vários escritores, reunidos no local, a exemplo de

Lúcio Cardoso, Otávio de Faria, Adonias Filho, Vinicius de Moraes e Cornélio Pena.

Apesar de estrear como romancista, em 1943, no Rio de Janeiro, constam em

depoimentos dela e em alguns documentos do Arquivo Clarice Lispector (FCRB) relatos de

tentativas frustradas de publicação no caderno infantil do Diário de Pernambuco, do período

em que lá residia. Há também menção a um conto, escrito aos catorze ou quinze anos, sob a

influência de O lobo da estepe, de Herman Hess, e que, segundo a jovem escritora, ―não

acabava nunca‖. A despeito destas informações, o primeiro registro da atuação dela como

97

ficcionista, que se tem documentado, entretanto, data de 1940, quando é publicado, na revista

Pan, dirigida por Tarso da Silveira, o conto ―Triunfo‖.

Em ―Lembrança da feitura de um romance‖ (Jornal do Brasil, 02/05/1970), que

consta na pasta de número três, referente aos recortes de jornais, do Arquivo Clarice, ela

admite que ―tomou posse‖ da vontade de escrever, conscientemente, aos treze anos de idade.

E declara:

Comecei, e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro – o

sentido se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo a mais para

realmente não poder. A história interminável que então comecei a escrever (com

muita influência de O lobo da estepe, Herman Hesse), que pena eu não a ter

conservado: rasguei, desprezando todo um esforço quase sobre-humano de

aprendizagem, de auto-conhecimento.

Desconhecida até então, só em 1943 publica o primeiro romance, mas não sem

esforços. Rejeitada pela José Olympio, situação a que se submete seguidas vezes, o texto sai

pela editora ―A noite‖, sob a intervenção de colegas de redação e sem a garantia dos direitos

autorais. À época Clarice Lispector trabalhava como jornalista naquele grupo. Esta, como já

foi dito, é outra qualidade que une as duas escritoras, aqui, em estudo. Ambas começam a

escrever cedo. Iniciam como profissionais no jornal e só mais tarde se estabelecem na

literatura de ficção.

Neste período, a José Olympio gozava de grande prestígio editorial e constituíra

para Rachel de Queiroz a sua segunda casa. Lucila Soares, em Rua do ouvidor 110, livro que

conta a história da livraria José Olympio, demonstra que tão íntima era Queiroz daquela

editora, que ―Durante muito tempo, usou o endereço da José Olympio como seu endereço

pessoal. Era para a Ouvidor 110 que sua família mandava queijo, doces e outros mimos que

amenizavam a saudade do Ceará.‖ (SOARES, 2006, p. 84). Diferente, entretanto, foi o

tratamento recebido por Clarice Lispector naquela casa, a José Olympio nunca aceitando

nenhum livro desta escritora. Só muito mais tarde a editora publica e detém os direitos

autorais da obra dela até 1971.

98

Também houve especulação em torno do nome da última escritora, nos primeiros

textos de recepção crítica, como ocorre com Sérgio Milliet, em conhecido jornal da época,

fazendo referência ao ―estranho‖ nome da autora, que julgava ser um desagradável

pseudônimo. O estranhamento do nome se estende por sua vez à incompreensão da crítica,

quando dos primeiros momentos da recepção. Conta Lispector, numa entrevista dada a

Nevinha Pinheiro em 1977 e publicada pelos Cadernos de Literatura Brasileira (2004, p. 77):

Quando acabei de escrever Perto do coração selvagem, o crítico da moda era

Álvaro Lins. Telefonei para ele sem conhecê-lo e enviei o manuscrito, perguntando

se valia a pena publicá-lo. Uma semana após, ele me dizia pelo telefone: ―Olha

moça, não entendi nada. Quem sabe o Otto Maria Carpeaux entende?‖. Não mandei

os originais ao Carpeaux, publiquei o livro. Acho que agora estou na moda.

Demorou a vir o reconhecimento. Afora um texto ou outro, a crítica

especializada não parecia só se sentir muito insegura como bastante incomodada com a leitura

de Perto de coração selvagem. Antonio Candido fora, ainda na década de quarenta, pioneiro

apreciador crítico, num texto curto, intitulado ―No raiar de Clarice Lispector‖, em que não

enxerga na obra somente defeitos, atitude comum aos demais. Ao contrário, pontua a grande

contribuição que dá a autora para a renovação de uma Literatura já bastante acostumada aos

modelos gastos.

Destaca em Clarice Lispector a excepcionalidade da descoberta do quotidiano, o

ritmo de busca no romance, compatível com a procura da personagem, a pouca importância

dada a categorias como espaço e tempo, instrumentos de trabalho tão caros à crítica

tradicional, o antagonismo na narrativa entre o mundo e o coração selvagem, assim como a

virtude de Joana que, dotada de força interior, recusa a aparência das coisas e luta pelo

inefável. Candido encerra seu texto, profetizando:

A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade de vida interior poderão

fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais

da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização.

(CANDIDO, 1970, p. 131).

99

Em que pese a seriedade do crítico, o texto dele, todavia, imperou durante longa

data, solitário, em meio ao silêncio que se instaurou sobre a questão. Em contrapartida, várias

foram as publicações empenhadas em analisar a experiência dela válida apenas como

tentativa. Falha, defeito, irrealização, todos estes constituíam qualificativos comuns ao

julgamento da escrita clariceana.

No entrar da década de 60, outro texto veio se somar àquele escrito por Candido,

décadas atrás. Trata-se da leitura feita por Schwarz (1981) sobre o romance clariceano de

estréia e publicado no livro de ensaios intitulado A sereia e o desconfiado. O crítico põe em

destaque o que considera o projeto ambicioso de Clarice em subverter as categorias

narrativas: ―Não estamos, no caso, diante de uma história com começo, meio e fim‖

(SCHWARZ, 1981, p. 54). Para ele, o romance desprovido de estrutura definida nada tem a

ver com a acusação, tantas vezes repetida, de carência da obra. Os episódios, formados por

uma causalidade psíquica é que agem, por isso mesmo, por acúmulo e insistência. Nesta nova

forma de conceber a narrativa, o tempo inexiste como evolução, o espaço não tem função

histórica, tudo visando assegurar a independência de acontecimentos recorrentes.

Schwarz admira na autora, sobretudo, a capacidade de construção de

experiências psíquicas seguindo o fluxo da consciência. Argumenta, também, referindo-se

talvez a uma característica crucial para o entendimento do romance, que o que é carência em

psicologia pode ser virtude em ficção. E isto pode ser explicado na inquietação mesma de

Joana em Perto do coração selvagem. É o sentimento de inquietude, consumindo a

personagem, que, reiteradas vezes, chega a sobrepô-la no texto. Por fim, identificando uma

solidão que Joana experimenta em face dos outros e de si mesma, o crítico procura

compreendê-la numa perspectiva dual. Por esta ótica, então, há duas Joanas no romance, uma

conhecida e outra procurada:

Uma Joana, a que se conhece e interpreta, habita as ante-câmeras da poesia, da

objetivação do espírito. A outra, deseja-se qual pedra rolando, qual montanha, quer-

100

se desfeita em processos elementares que a introduzam no mundo primário da

causalidade simples, pré-humana. [Selvagem?] (SCHWARZ, 1981, p. 57).

Depois do texto de Schwarz, publicado em 59, a década de 70, sobretudo no que

compete às intervenções universitárias, trouxe importantes contribuições para o estudo de

Clarice Lispector. Nessa linha, ressalte-se a importância, também pioneira, do professor

Benedito Nunes, da Universidade Federal do Pará, hoje um especialista na obra da escritora e

um amigo conquistado da época de residência dela na capital paraense. Em ―O mundo

imaginário de Clarice‖, publicado em O dorso do tigre, Nunes (1969), na virada da década,

traz a público depurada discussão em torno da concepção do mundo numa obra literária e da

atitude criadora da artista. É a partir desse enfoque filosófico, despertado pelos textos de

Lispector, relacionada então à filosofia existencial, haja vista a recorrência em sua obra de

temas individuais e dramáticos, que cercam a existência humana, que a crítica ―positiva‖ da

obra dela vai ganhar nova expressão.

Do período, registra-se, ainda, o trabalho de Affonso Romano de Sant‘Anna, em

Análise estrutural de romances brasileiros, apontado entre os que, vencendo a inércia dos

estudos críticos tradicionais, colaboraram para uma nova formação do pensamento da crítica

em torno de Clarice Lispector. A despeito de uma rigidez em análise, de base estruturalista,

não se desvencilhando, portanto, dos instrumentos convencionais, que prevêem um estudo a

partir das categorias narrativas, Sant‘Anna (1990), filiando-se a uma linha de estudo sobre

James Joyce, cuja narrativa se estrutura sobre um receptáculo de epifanias, vai identificar na

escritora brasileira características de uma escritura convergente com o fenômeno epifânico.

Ao despertar para o conceito da epifania aplicada ao texto literário, e enxergando

na escritora nítidas possibilidades dessa realização, o crítico, sem dúvidas, abre novas

diretrizes para a análise dos textos clariceanos. Em Perto do coração selvagem, a cena do

banho de Joana, já citada neste trabalho e melhor explorada no capítulo terceiro, pode ser lida

como um momento de revelação para a heroína que, como se tivesse sob efeito de uma

101

iluminação súbita, vinda do ordinário ato de se banhar, se descobre como portadora de um

corpo vivo e que a põe em conexão, no texto, com o tão perseguido mundo sensível.

Depois de 1970 a escritora, como ela própria diz, ―entrou em moda‖,

proliferando-se os estudos críticos em torno da obra dela, para o que concorreu, certamente, o

papel da crítica universitária. Bastante lida, hoje, Clarice Lispector talvez tenha, neste sentido,

traçado caminho inverso ao de Rachel de Queiroz. Excetuando-se os leitores especializados, é

provável que os aficionados clariceanos se multipliquem em proporção bem maior aos

queirozeanos. Independente de tratar de gosto ou identificação, não se pretende discutir o

caso, a observação é feita somente para destacar a trajetória de leitura angariada por cada

uma.

Que elas se conheciam e tinham contato, disso ninguém duvide. Não só

participavam da roda de escritores que se reuniam na Cinelância, como, mais tarde, tornaram-

se leitoras uma da outra. Consta, na lista de autores, oferecida pelos Cadernos de Literatura

Brasileira (2004, p. 11), o nome de Rachel de Queiroz, entre os brasileiros lidos por Clarice,

como também o de Machado de Assis, José de Alencar, Graciliano Ramos e Jorge Amado.

De outra feita, acontece de referências aos trabalhos das duas figurarem num

mesmo exemplar, como ocorre com uma coluna assinada por Valdemar Cavalcanti (Jornal

literário – O jornal – 2o caderno, p. 04, 06/03/1969, à disposição no Arquivo Clarice

Lispector), em que é anunciada a publicação pela José Olympio de duas novas edições de

romances de Rachel de Queiroz. A 10a de O quinze e a 5

a de João Miguel. A nota coloca a

escritora entre os melhores que representam o Nordeste como José Américo de Almeida e

José Lins do Rego. Completa ainda: ―Agora indicados como textos para estudos em

numerosos colégios, com trechos transcritos nas melhores antologias modernas os romances

de RQ [Raquel (sic) de Queiroz] estão na alça de mira das novas gerações e vão ganhando por

isso uma consistência de obra clássica.‖ Logo a seguir, numa outra nota, intitulada ―Rápidas‖,

102

é anunciada, entre outras, como ―boa leitura para crianças‖, A mulher que matou os peixes, de

Clarice Lispector, lançada pela editora Sabiá.

Ainda no tocante à relação entre elas, a própria Rachel de Queiroz comenta a

respeito, em entrevista, já mencionada, feita por Cynara Menezes (1998), da Folha de São

Paulo. Repare neste trecho:

(Folha de S. Paulo) - Clarice Lispector era sua amiga?

(Rachel) – Gostava muito dela e ela gostava muito de mim. Era uma pessoa

estranha, muito fechada, cheia de fragilidades. Você magoava a Clarice sem saber,

era uma pessoa extremamente difícil. Como escritora, era a maior de todas nós.

(Folha de S. Paulo) – E qual seria sua posição?

(Rachel) – Acho que a última.

Eis aí um bom exemplo da modéstia queirozeana. De qualquer modo, pode-se

perceber que as duas, se não eram amigas, no sentido da intimidade, eram bastante cordiais.

No que diz respeito à produção de cada uma, Lispector não viveu o suficiente para ver

publicado, por exemplo, Memorial de Maria Moura, considerada por muitos a obra prima de

Queiroz. Esta, entretanto, teve vida longa. Como ela mesma costumava afirmar, ―sobreviveu

aos seus‖. E é com a propriedade de quem sabe o que está falando que, no trecho acima, não

titubeia ao colocar Clarice Lispector entre os grandes nomes femininos da Literatura, mesmo,

efetivamente, não citando nenhum.

As duas escritoras, aos poucos se vai notando, têm mais em comum do que

deduz a maioria. Lispector, a exemplo do já visto como particularidade em Queiroz, quando

interpelada, repete, constantemente, que não relia nunca um texto seu depois de pronto.

Sequer revisava o que escrevia. Isto quando não acontecia de rasgar o texto, como assegura a

Júlio Lerner, numa entrevista que a ele concedeu. Esta entrevista, realizada pela TV Cultura,

em fevereiro de 1977, especialmente para o antigo programa ―Panorama‖, circula hoje

livremente pela internet, que disponibiliza a todos os interessados, através da busca ou

navegação na rede, o acesso ao vídeo.

103

Num determinado trecho da conversa com Lerner, a autora, em meio a um

desabafo, discute acerca do peso de uma relação que a restrinja ao seu ofício. Para ela, e esta

transcrição consta do registro audiovisual, tudo o que diz, ―a maior bobagem, então, é

considerada uma coisa linda ou uma coisa boba‖, baseado sempre no fato de ser ela uma

escritora. O visível incômodo de Clarice Lispector resulta da incapacidade das pessoas de

desprendê-la da profissão. Os escritores estão sujeitos à censura, faz parte do ofício, a

exemplo do que já experimentou Rachel de Queiroz, até no seio da família, mas isto não pode

se converter em atrapalhação.

O vídeo, apreciado, importa, ainda, porque, entre outras coisas, é o único registro

com imagem e som que o público tem da escritora, morta em dezembro de 1977. Aliás, é em

atenção a um pedido dela que o programa, embora gravado no mês de fevereiro, somente é

exibido depois que ela morre, em dezembro daquele ano. Ao longo da entrevista, Lispector,

entre outros assuntos, menciona o processo que leva à criação de Macabéa, a nordestina de A

hora da estrela, bem como discute as influências literárias que se manifestam na obra dela

como um todo.

Quando indagada acerca da formação, como escritora, e quais escritores ela

sente que mais influenciaram ou marcaram sua produção, responde a entrevistada, de um

modo impaciente:

Eu não sei porque eu misturei tudo! Lia livro para mocinha, romance ―cor de rosa‖,

misturado com Dostoievski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelo autor, que

não tinha conhecimento nenhum. Fui ler Herman Hess aos treze anos e foi um

choque! (TRANSCRIÇÃO DA AUTORA).

Esta impaciência da escritora se deve talvez à falta de imaginação da crítica, que

sempre parece querer enxergar na influência uma dependência e no escritor uma marca de

fora. De qualquer modo, dispensando o caráter visto a priori como dependente, uma obra ou

um autor influir sobre outro denota diálogo, e, quando bem aproveitado, é sempre bem vindo.

104

Percebe-se, a julgar pelo já visto com a escritora Rachel de Queiroz, que eram

mais ou menos os mesmos os escritores lidos na época. No caso de Clarice Lispector, além de

Dostoievski e Julien Green, Eça de Queiroz, que tanto fascínio exerceu sobre a primeira,

também está entre os autores estrangeiros pelos quais a última escritora brasileira citada

demonstrou predileção (DE FRANCESCHI, 2004, p. 11). Num recorte de texto, intitulado

―Minha próxima e excitante viagem pelo mundo‖, publicado no Jornal do Brasil, em

01/04/1972, a autora comenta uma viagem que gostaria de fazer à capital portuguesa e faz os

seguintes planos: ―Irei ao Chiado. E de novo pensarei em Eça de Queiroz. Preciso relê-lo. Sei

que vou gostar de novo – como se fora a primeira leitura – do suculento estilo de Eça.‖

E se Machado de Assis foi, para uma geração de escritores iniciados, o ―Grande

Mestre‖, não faltou quem defendesse uma relação intertextual entre o famoso conto

machadiano e A hora da estrela, último livro que Clarice Lispector viu chegar a público,

como atesta esta passagem da ―Folha de rosto‖, que introduz os Cadernos de Literatura

Brasileira (DE FRANCESCHI, 2004, p. 07):

No mais brasileiro de seus trabalhos, que comporta, como todas as obras-primas,

uma variada gama de interpretações, Clarice Lispector estabelece um diálogo com

ninguém menos do que o maior dos autores nacionais: Machado de Assis. É algo

machadiano o desfecho da novela, em que a ficcionista, inicialmente motivada por

sua própria experiência com a quiromancia, entrega a vida de sua personagem – ela

morrerá – nas mãos de uma cartomante, sucessora da que nomeia o conto do

escritor carioca, um clássico do gênero.

Ainda sem sair da questão que toma, por parâmetros, nomes já referendados em

Literatura, a pesquisa realizada com os documentos que constam no Arquivo Clarice

Lispector, sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), revela que o nome de D.

Júlia Lopes de Almeida, que já aparecera, neste trabalho, em comparação feita com Rachel,

agora surge num texto de Jorge de Lima intitulado ―Romances de mulher‖, publicado no Rio

de Janeiro, pela Gazeta de Notícias, em 01/11/1944, fazendo referência à Lispector. Cita-se:

105

―Clarice Lispector como a Senhora Dupré sugere o clima do romance feminino em que

tivemos uma das mais altas e corajosas cultoras em D. Júlia Lopes de Almeida.‖

Embora não se deixe de notar que, se a aproximação de Rachel de Queiroz com

D. Júlia é refutada, por Tristão de Athayde, em função mesma da novelística burguesa

apresentada pela última, o texto queirozeano mais comprometido que é com a problemática

social; identificar Clarice Lispector com a autora novecentista, como faz Jorge de Lima, é,

pela ótica anterior, associá-la, por justaposição, à produção de um modo de pensar burguês.

De qualquer modo, ilustrativa é a comparação, sobretudo pelo que representa a Literatura de

D. Júlia, que muito significa para a participação de escritoras efetivamente em atividade no

Brasil do século XIX. Como se vê, de um modo geral, as duas escritoras, Rachel e Clarice,

quando vistas em conjunto, apresentam equivalências, neste estudo, ora por oposição, ora por

aproximação.

De maneira significativa, tornam-se mais comuns os nomes de mulheres, por sua

vez, ligadas à Literatura canônica no século XX. Exemplo disto é o elenco fornecido por

Camillo de Jesus Lima, no jornal A tarde (Salvador, 07/10/1944), numa crítica que faz a

Schopenhauer, este afirmando serem todas as mulheres uns animais ―de cabelos compridos e

idéias curtas‖. Para contrariar o filósofo pessimista, Lima faz lembrar os nomes de Clarice

Lispector, Cecília Meireles, Lúcia Miguel-Pereira, Dinah Silveira de Queiroz, Madame

Dupré, Gilka Machado, Adalgisa Nery, entre outras, além de, vale a pena citar, em destaque

nosso: ―esta humaníssima Rachel de Queiroz que é o Graciliano Ramos de saia da nossa

época.‖

A despeito de nomes que já se faziam notar no rol literário de autoria feminina,

não se pode deixar de perceber que, para modelo de referência, eram ainda os exemplos

masculinos que serviam de expoente para destacar alguma notoriedade neste campo da arte. À

medida que as mulheres foram galgando espaço e visibilidade, entretanto, foram também

106

servindo de espelho uma para as outras. Apesar de não constar a data, nem dados de edição,

exemplo disso se comprova no comentário que Lúcio Cardoso faz, a propósito do lançamento

de Perto do coração selvagem, acerca de uma nova geração de escritores. O texto, abaixo,

localizado no Arquivo Clarice Lispector (FCRB), na pasta 16, referente a recortes de jornal,

folha 148, aparece citado, também, ou pelo menos parte dele, na biografia de Lúcio Cardoso

(CARELLI, 1988, p.44-45). Muito convicto de sua posição, em determinado momento,

assegura Cardoso, de forma crítica:

Dos nomes femininos, creio que nenhum se compara ao da Sra. Clarice

Lispector, cuja estréia há pouco, parece-me em certo sentido tão importante e

avassaladora quanto o foi no passado o da Sra. Raquel de Queiroz, com o seu

sempre lembrado e inimitável “O quinze”. Não que a Sra. Clarice Lispector

tenha se debruçado sobre um drama coletivo ou uma tragédia oriunda de uma chaga

da natureza. Poucas vezes temos visto um tão exacerbado individualismo, uma tão

lenta e obstinada sondagem do seu próprio eu, como o faz a autora de ―Perto do

coração selvagem‖. Deste mundo essencialmente feminino, cheio de imagens, de

sons, de claridades azuis, brancas e esverdeadas, de folhas novas e manhãs ainda

cheirando a mato, Clarice Lispector consegue nos transmitir uma imagem poderosa

e viva. [Grifo nosso].

Lúcio Cardoso, também romancista, foi um incentivador da carreira de Clarice

Lispector, além de grande amigo da escritora. É com a lucidez do crítico que o jovem escritor

fez ver, já no início da produção dela, os indícios de uma carreira promissora. Igualmente

interessado pelos mistérios da criação literária, ele não só lia como opinava sobre os textos da

jovem escritora, fazendo, inclusive, sugestões de leitura comparativa.

De certo modo, a amizade entre os dois faz lembrar o nível de intimidade,

inclusive familiar, que havia entre Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, comprovada, entre

outras, pela biografia do escritor, O velho Graça, de Dênis de Moraes (1996). Márcio, um dos

filhos de Graciliano, do primeiro casamento, sofria com problemas psicológicos e, no Rio,

afeiçoara-se a Rachel de Queiroz e ao marido dela, Oyama de Macedo. Era este também quem

o medicava nas crises nervosas. Não bastasse ser perturbado mentalmente, o filho de

Graciliano Ramos comete um homicídio e não suportando lidar com isso, suicida-se. Queiroz

e Macedo estavam ausentes, em viagem pela Europa, mas quando aquela soube do ocorrido,

107

teria comentado: ‗Tenho a convicção de que se eu estivesse no Brasil, quando se deu a

tragédia, o Márcio, em vez de se matar, teria corrido para nós. Eu me culpei sempre por isso.

Era comigo e com Oyama que ele contava nessas ocasiões difíceis‘. (apud Moraes, 1996, p.

270). Parceiros na literatura e na vida, Rachel de Queiroz, que muito apoiou Graciliano

Ramos nas crises de ceticismo, termina por despertar ciúme em Heloísa Ramos, esposa do

escritor. É uma amiga do casal que conta: ―─ Heloísa tinha muito ciúme de Rachel de Queiroz

e de Lia Corrêa Dutra [outra amiga literária]. Às vezes, ela dizia-lhe: ‗você é o Jacó, não

podendo ter a Rachel, está se pegando com a Lia.‘‖ (apud Moraes, 1996, p. 180).

Amizade confundida com romance, esta parece ter sido também a experiência de

Clarice Lispector. Embora a relação entre ela e Lúcio Cardoso não passasse de uma acurada

afinidade, há quem defenda nela uma paixão não correspondida por este, como faz o biógrafo

do escritor, Mário Carelli, no texto ―A paixão de Clarice‖ (CARELLI, 1988, p. 43-53). Seja

como for, Lúcio sempre foi para a escritora Clarice o seu ―Corcel de fogo‖. É com esta

criativa expressão que a ele se refere, em documentos localizados no Arquivo, numa

atribuição bastante sugestiva, principalmente se considerada a paixão que ela tinha pelos

cavalos. Interessante também foi perceber que o biógrafo de Cardoso valoriza esta

particularidade entre os dois, no título da obra que vale por uma homenagem: Corcel de fogo:

vida e obra de Lúcio Cardoso (1988).

A despeito das intrigas de bastidores, a que se refere o texto de Moraes (1996),

não dá para falar da geração de 30 sem mencionar o grupo de escritores formado, pelo talento,

mas, também, pela amizade que unia Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e José Lins do

Rego, todos vivendo a experiência nova de não só escrever como conseguir publicar neste

país. Talento e estreita amizade são igualmente os requisitos demonstrados pelo grupo

contemporâneo que reunia Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Rubem Braga e Fernando

Sabino, entre outros.

108

A íntima relação entre eles está registrada em cartas que trocaram e que constam

no Arquivo Clarice (FCRB), no item referente à correspondência pessoal. São muitas as

informações, ali guardadas, em discussões que vão das atualidades literárias e do que compete

à atividade de cada um, às questões que envolvem a publicação e a vida particular deles. Érico

Veríssimo, por exemplo, tem uma relação de compadrio com Lispector. O casal Veríssimo

apadrinha Pedro e Paulo, os filhos da escritora, sendo muitas cartas, entre os dois, voltadas,

também, para a questão familiar.

Outro, muito próximo da escritora, é Fernando Sabino. Este não só revisava os

textos de Clarice Lispector, que costumava acatar todas as sugestões de alteração dele,

conforme atestam as cartas escritas por ele, uma de 19/12/1956 e outra provavelmente de

1957, ambas constando do Arquivo Clarice. Além disso, atesta a correspondência pessoal

entre eles, Sabino negociava e acompanhava os processos de publicação junto às editoras.

Chega a oferecer ceder o título de uma novela dele, O homem feito, para o romance dela, mais

tarde intitulado A maçã no escuro. Quando fundou a Sabiá, muitos foram os títulos de obras

clariceanas que saíram por esta casa editorial. E na abertura de importante livro, confidencia:

―Na última fase da vida de Clarice surgiram-lhe outras relações de amizade, mas a nossa foi

das primeiras, e das mais intensas, desde o início de sua carreira literária.‖ (SABINO, 2003, p.

07).

Escritor e muito amigo, ele reuniu e organizou a correspondência trocada entre

os dois, em livro cujo título não só homenageia a primeira e das mais significativas obras

clariceanas como dá a tônica do relacionamento deles. As Cartas perto do coração reúnem,

além de outras, mensagens de afeto e mútua admiração, sendo apenas algumas delas possíveis

de localizar no Arquivo da escritora (FCRB), já que as demais pertencem ao arquivo pessoal

do escritor.

109

Perto do coração selvagem, como vem sendo repetido, é o primeiro romance

publicado pela autora, em 1943. Depois dele vieram, ainda, nas categorias romances e novela,

respectivamente: O lustre (1946), A cidade sitiada (1949), A maçã no escuro (1961), A

paixão segundo G. H. (1964), Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), Água viva

(1973), Um sopro de vida (1978) e A hora da estrela (1977).

Verdes anos, como os definem Cosette de Alencar (Diário Mercantil) são

aqueles em que aparece o primeiro romance da escritora. Entretanto, mesmo depois de

publicá-lo, as dificuldades na recepção permaneceram. O lustre vem a público pela Editora

Agir e instaura-se sobre ele a indiferença. Fernando Sabino, em carta do Rio, em 06/05/1946,

comenta, em contrapartida, o furor causado pela publicação de Sagarana, de Guimarães Rosa.

Adianta que Álvaro Lins ―descobriu-o‖ e ―consagrou-o‖. Diz ter gostado do que leu, mas

assegura que não é o gênero dele e pensa que Clarice Lispector também não gostaria.

Comenta ter ficado sabendo que Álvaro Lins finalmente está lendo O lustre, mas com ligeiras

indisposições facilmente adivinháveis. E completa o texto, que consta da correspondência

pessoal da escritora, em Arquivo já referido:

Acho que realmente estão exagerando no silêncio em torno de seu livro, todo

mundo quer sair do Brasil e os que vão mesmo sair só pensam em escrever sobre o

Sagarana, por entusiasmo mas também por misteriosas razões ministeriais

ligeiramente antipáticas: são uns sagaranas.

A princípio, só os amigos mesmos pareciam empolgados com a produção dela.

Pelo menos é o que leva a crer este comentário de João Cabral de Melo Neto, num pós-escrito

de uma carta produzida em Barcelona, a 15/02/1949, em que dá notícias da reação de um

outro colega para com o terceiro romance publicado pela escritora, em A noite, mesma editora

em que lançara o primeiro. Veja-se o que diz:

Não sei como o Lêdo [Ivo] leu A cidade sitiada. Se não me engano de alguma

palavra, o que ele me escreveu about foi: ―Clarice mandou um romance-de-fechar-

o-comércio-da-Rua-Gonçalves-Dias-às-cinco-horas–da-tarde.‖ Não acha V. que por

debaixo dessa expressão tão alagoana estão uma porção de formidáveis adjetivos?

110

De 1943 a 1949, como se tem conhecimento, ela publicou três romances. Clarice

Lispector, no entanto, continuava a dispor de reduzido público. Em relação a este período de

leitura pouco entusiasmada, Assis Brasil, discutindo Laços de família, no Jornal do Brasil,

em 24/09/1960, comenta que a recepção de textos publicados entre 44 e 49 muito deve ainda

aos poucos nomes que sustentavam a acadêmica ficção e ―quase todos remanescentes do

chamado romance do nordeste‖. Quando não, ―eram pequenas incursões num romance

psicológico incaracterístico ou repetições de um certo aspecto do romance machadiano.‖ Ou

seja,

Estrear naquela época com um livro de ficção irreverente ou de alto nível literário

seria o mesmo que quebrar as torres de uma catedral. Sem falar em Cornélio Pena –

um experimentador isolado, ou em Graciliano Ramos já realizado – poderíamos

apontar, no mesmo plano situacional de Clarice Lispector, o ficcionista Adonias

Filho (Memórias de Lázaro – 1952), que também foi relegado e só agora com as

novíssimas gerações, reconhecido. Guimarães Rosa também (Sagarana – 1946),

incursionando uma nova dimensão no regionalismo, só com o seu último livro

[Grande sertão: veredas] alcançaria a consagração devida.

Depois de um intervalo de dez anos, então, sem publicar, é com o livro de

contos, Laços de família (1960), comentado acima por Assis Brasil e editado pela Francisco

Alves, que Clarice Lispector faz o seu debut entre os best-sellers (Cf. ―Clarice vende‖, CL j,

pasta 09, fl. 396). No ano seguinte, sai o romance A maçã no escuro (1961), considerado por

ela o melhor de todos os romances que escreveu, numa entrevista dada a O globo feminino,

em 15 de maio de 1961, quando o livro ainda estava no prelo. Livro que Eduardo Portella diz

que gostaria de ter escrito, quando entrevistado por ela em ―Diálogos possíveis com Clarice

Lispector‖, seção que a escritora mantinha na revista Manchete, Rio de Janeiro, cujo texto se

encontra no Arquivo Clarice (FCRB), referente aos recortes de jornais, pasta 02. ―Esse modo

como em certa hora o mundo nos ama.‖ Esta é a resposta irônica dada por Clarice Lispector

para a seção feminina do Diário de notícias, do Rio de janeiro, em 30/07/1961, sobre a

aceitação de A maçã no escuro, considerada à época, como uma das melhores obras nacionais.

A paixão segundo G. H. (1964) é a única obra a receber, em 1988, uma edição

crítica, organizada por Benedito Nunes (1996), com textos de pesquisadores pioneiros da obra

111

dela. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é considerado, também por Assis Brasil, no

Jornal do escritor, um dos melhores livros de 1969. Esta obra rendeu para a autora o prêmio

―Golfinho de ouro‖, do Museu da Imagem e do Som (RJ), conforme atestam documentos

encontrados no Arquivo da escritora (FCRB). Daí para frente é a consagração de Lispector em

nossas letras. Deste período constam, portanto, a novela A hora da estrela (1977), única

escrita por ela, e em apreciação neste estudo, bem como os romances Água viva (1973) e Um

sopro de vida (1978), sendo este último romance, um livro póstumo. Era nele que trabalhava

quando veio a falecer, sua edição sendo possível graças aos fragmentos em parte reunidos por

Olga Borelli.

No que compete ao academicismo oficialmente instituído, diferente de Rachel de

Queiroz, Clarice Lispector nunca chegou à Academia Brasileira de Letras (ABL). Dizia-se

pouco gregária e, em função disto, nunca era convidada a pertencer a grupo nenhum. De fato,

a escritora experimentou, durante longo tempo, uma solidão nas letras brasileiras, cedo

profetizada por Alceu Amoroso Lima, quando escreveu sobre o primeiro livro dela. E talvez o

crítico continue tendo razão, sobretudo quando se pensa o estilo de Clarice, numa solidão de

permanecer pioneira. Autônoma, Lispector terminou por constituir, como se costuma dizer,

uma ―imortal sem o fardão‖, sua permanência na Literatura independendo de um atestado

oficial das letras. Bastante lida, hoje, se viva fosse, de certo não reclamaria de que não tivesse

leitores e até escritores adeptos, admiradores que são de seu fazer poético.

No que concerne à produção das duas escritoras, Rachel de Queiroz e Clarice

Lispector, ou do que elas duas guardam em comum, as últimas obras delas, Memorial de

Maria Moura e A hora da estrela, aqui, em estudo, sofreram, fosse porque contemporâneas de

uma época propícia a tais recursos técnicos, adaptações videográficas. A primeira, para a

televisão, em minissérie dirigida por Mauro Mendonça Filho e Denise Saraceni (1994); a

segunda, para o cinema, num longa-metragem, sob direção de Suzana Amaral (1986). Este

112

filme, inclusive, deu a Marcélia Cartaxo, atriz paraibana (Cajazeiras-PB), que faz a

personagem Macabéa, o Urso de prata de ―Melhor atriz‖, na 36a edição do Festival de Berlim

(1986), troféu até então inédito para uma brasileira, conforme relembra, em nota, a revista

Veja, em 19/03/2008 (Edição 2052, Ano 41, no 11), quando menciona o prêmio Urso de ouro

para Tropa de elite, filme vencedor do mesmo festival, no ano em que a matéria é publicada.

Feita esta última observação, dentro de um panorama geral, e considerando que o

quarto capítulo deste trabalho é dedicado a alguns motivos da narração, nas últimas obras das

escritoras em estudo, supramencionadas, é ainda em torno das primeiras obras de cada uma

que este capítulo quer tratar: O quinze e Perto do coração selvagem. Para tanto, no esteio das

influências, o texto desprende-se do ―registro cartorial‖ e propõe-se a uma leitura de mão

dupla com duas outras obras: Vidas secas, de Graciliano Ramos e Retrato do artista quando

jovem, de James Joyce.

A escolha destes romances, entretanto, não se dá de forma aleatória. Ela segue as

pistas dos discursos, alguns já vistos, que associam Rachel de Queiroz e Clarice Lispector a

referentes masculinos e que têm em Graciliano Ramos e James Joyce os nomes reiterados,

sobretudo pela técnica. Lispector, talvez por perceber na comparação uma ameaça de

sujeição, negou veementemente que tivesse lido o romance de Joyce, antes de escrever o seu

Perto do coração selvagem, e que só posteriormente, depois do romance pronto, retirou dele a

epígrafe. Até onde o diálogo se expande, não ficando restrito ao trecho de Joyce, que abre o

livro da escritora, disto não há dúvida, é uma questão que talvez valha a pena ser observada.

Com Queiroz e Ramos a proposta se dá num ângulo inverso. Embora a temática os una e seja

ela sempre a comparada, ainda que de forma positiva, com ele, a leitura, aqui, propõe mostrar

de que modo O quinze, sendo anterior à publicação de Vidas secas, pode ter deixado, ainda

que sutilmente, marcas textuais na escrita de Graciliano Ramos, que dá seguimento ao que já

aparece referendado por Rachel de Queiroz.

113

A intertextualidade entre Perto do coração selvagem (PCS) e Retrato do artista

quando jovem6 é perceptível desde as primeiras páginas dos romances, quando os autores, no

jogo da escrita, ―brincam‖ com as imagens que querem formar. Repare-se, abaixo, nos trechos

da narrativa introdutória das distintas obras, a semelhante perspectiva de linguagem:

A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem

poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? Roupa-roupa-

roupa. (PCS, p. 13);

Certa vez – e que linda vez que isso foi! – vinha uma vaquinha pela estrada abaixo,

fazendo muu! E essa vaquinha, que vinha pela estrada abaixo fazendo muu!,

encontrou um amor de menino chamado de Pequerrucho Fuça-Fuça... (RAQJ, p.

09).

É, como se pode notar, pela mundividência das personagens, em criança, que

Joyce e Lispector introduzem a narrativa. Em ambos, registra-se a presença do pai como

importante figura. No primeiro trecho narrado, e para uma compreensão mais ampla da

perspectiva de Joana menina, há uma inter-associação entre o relógio, o pai e a máquina de

escrever. No segundo trecho, o(a) leitor(a) se depara com Stephen Dedalus, o protagonista,

rememorando uma história que fora contada pelo pai dele, quando era menino, e com a qual

se identifica: ―Ele era o Pequerrucho Fuça-Fuça que tinha encontrada a vaquinha que fazia

muu!‖ (RAQJ, p. 09).

Estas ocorrências não passaram despercebidas aos críticos quando do

lançamento do romance. Em ―O mundo subjetivo de Clarice Lispector (2)‖, texto localizado

entre os recortes de jornais que constam do arquivo da escritora (pasta 11, fl. 232), de uma

série de pelo menos seis, com o mesmo título, já Assis Brasil comenta que, ―distantes no

tempo e no espaço Joyce e Lispector usam do mesmo artifício lúdico para iniciar suas obras‖.

Retrato do artista quando jovem (1916) é uma narrativa de acontecimentos não-lineares.

Ambientado na Irlanda, nela os acontecimentos experimentados pela personagem vão se

6 Para efeito de referência, nesta discussão, utilizar-se-á, daqui em diante, da sigla RAQJ, sempre que se referir a

este romance.

114

intercalando entre a vivência no internato, a vivência no seio da família e a vivência do

Stephen Dedalus adulto.

Igualmente cindida entre as experiências da criança e da adulta é que se encontra

a Joana, de Perto do coração selvagem (1943). E se nesta obra a imagem do relógio é também

uma metáfora do trabalho maquinal do pai, em Retrato do artista quando jovem ele aparece

como força de argumento, num testemunho que dá um dos padres, do colégio em que Dedalus

estuda, para falar de uma visão que teve sobre o inferno:

Pareceu-lhe estar no meio de um grande vestíbulo negro e silencioso onde não

havia senão o bater de um grande relógio. O bater prosseguia incessantemente: e a

esse santo pareceu que o som desse relógio era a repetição sem cessar das palavras:

sempre, nunca; sempre nunca. (RAQJ, p. 149).

Dedalus também terá sua visão particular do inferno (RAQJ, p. 154-155), esta

imagem tendo interesse no romance em virtude da formação eclesiástica do rapaz. Dessa

formação vem o discurso doutrinário que domina uma parcela considerável do texto,

polarizado na força atrativa das questões que envolvem os contrários que há entre céu e

inferno, pecado e arrependimento, corpo e alma, até a revelação dos sentidos do ser e do não

ser.

Com Joana o rapaz se semelha quando, já em pequeno, levado a adaptar-se na

rotina do internato, sofre com as dores da alma. ―Mas não era no rosto que ele se sentia

doente. Pensou que estava doente mas era no coração, se é que se pode ter doença nesse

lugar.‖ (RAQJ, p. 16). É também com o internato que Joana é ameaçada na obra clariceana

ao demonstrar pouco esforço de adaptação à casa da tia, para lá levada após a morte do pai.

Na perspectiva do internato, destaque-se, ainda, do seio familiar, o papel dos tios nas

narrativas. Os de Stephen, exercendo sobre ele uma afetividade positiva, sobretudo na

imagem que aparece do tio Carlos, no segundo capítulo da obra. Já a tia de Joana, uma

afetividade negativa. É ela quem decide colocar a jovem numa instituição, com a justificativa

115

de que a garota escapava à educação dela. Estando lá, Joana introjeta os ensinamentos da

casa, sempre dividida, entretanto, entre o que deseja e o que a ela se apresenta:

Que importa que em aparência eu continue nesse momento no dormitório, as outras

moças mortas sobre as camas, o corpo imóvel? Que importa o que é realmente? Na

verdade estou ajoelhada, nua como um animal, junto à cama, minha alma se

desesperando como só o corpo de uma virgem pode desesperar. (PCS, p. 67).

Diferente da protagonista de Lispector, Dedalus, o herói de Joyce, se envolve

com as questões teologais a ponto de ser convidado, por um dos padres, para seguir a

vocação. Embora o ofício da religião o seduzisse, é pela Universidade que o rapaz se decide,

depois de muito titubear.

Esse era o chamado de vida para a sua alma! Não a voz grossa e brutal do mundo

dos deveres e do desespero; não a voz inumana que o tinha chamado para o serviço

incolor do altar. Um instante de selvagem vôo o tinha libertado, e o grito de triunfo

que os seus lábios tinham retido retumbou no seu cérebro fendendo-o. (RAQJ, p.

190).

Mesmo que dê por certa a decisão que toma, o novo se revela para a personagem

num misto entre prazer e medo: ―uma vida nova e selvagem cantava-lhe nas veias.‖ (RAQJ,

p. 191) O rapaz, agora adulto, deixaria a segurança do seminário para ingressar num mundo

novo, que para ele se descortinava.

E refletindo sobre aquela tomada de atitude que o libertaria de uma obrigação

religiosa, conclui, na passagem que tanto fascínio exerceu sobre Clarice Lispector, a ponto de

com ela abrir o seu primeiro romance: ―Ele estava longe de tudo e de todos, sozinho. Ele

estava desligado de tudo, feliz, rente ao coração selvagem da vida. Estava sozinho, e era

jovem, cheio de vontade, e tinha um coração selvagem‖ (RAQJ, p. 191).

Daí por diante, tem-se, para a personagem, na narrativa, o estudante

universitário. É como se a cada fase de sua formação um novo Stephen surgisse. Neste mundo

de disciplinas e estudos, muitas vezes um evento banal, como o ato de acender um fogão,

pode se transformar num diálogo filosófico, como ocorre entre o rapaz e um dos mestres mais

116

antigos, empenhado em acender um fogo, pretexto para discutirem a diferença entre as artes

liberais e as artes úteis.

Não raro, encontros corriqueiros com eventuais colegas de turma sujeitam a se

transformar em semelhantes diálogos socráticos, para defesa de um ponto de vista relevante

em política, religião, filosofia e também literatura. Aliás, é debruçado sobre a produção de um

ensaio sobre estética que o(a) leitor(a), em algumas páginas do livro, com Dedalus se depara.

O ensaio, por osmose, é incorporado ao próprio romance, marcas autorais do teórico Joyce e

das quais o Retrato do artista... não consegue se desvencilhar. Otávio, no romance clariceano,

é quem aparece, à semelhança de Stephen Dedalus, empenhado em escrever um artigo (PCS,

p. 126). Trata-se de um projeto de um livro sério, de direito civil, plano a que espera dar

seguimento, tão logo se livrasse de Joana. (PCS, p. 182-183)

Como se vê, a perspectiva de estudo, a figura do professor e os diálogos que este

mantém com Joana, em Perto do coração selvagem, parecem estar em sintonia com o que se

representa no texto de Joyce. Além disso, há um episódio no romance clariceano que faz

pensá-lo numa relação com o anterior. Repare-se na passagem:

No momento em que a tia foi pagar a compra, Joana tirou o livro e meteu-o

cuidadosamente entre os outros, embaixo do braço. A tia empalideceu.

Na rua a mulher buscou as palavras com cuidado:

─ Joana... Joana, eu vi...

[...]

─ Eu roubei o livro, não é isso?

─ Mas, Deus me valha! Eu já nem sei o que faça, pois ela ainda confessa! (PCS, p.

49).

O roubo sem necessidade escandaliza a tia de Joana, estupefata com a frieza da

menina que não só comete o delito como o confessa, sem o menor tom de censura. Para a

garota, roubar só faz mal quando desperta algum sentimento, principalmente o medo. E

completa: ―─ Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal algum.‖ (PCS,

p. 50)

117

Em Retrato do artista quando jovem, a questão do roubo aparece numa

discussão com um estudante amigo que relembra ideais libertários anteriormente

demonstrados por Stephen no texto. Diz aquele:

─ Liberdade! – repetiu Cranly. – No entanto ainda não és livre bastante para

cometeres um sacrilégio. Dize-me uma coisa: serias capaz de roubar?

─ Antes tentaria pedir esmola – respondeu Stephen.

─ E caso não arranjasses nada, roubarias?

─ Estás mas é me querendo dizer – respondeu Stephen – que direitos de

propriedade são provisórios e que, em certas circunstâncias, não é ilícito roubar.

Qualquer um se apoiaria nesta crença. Portanto, não te respondo a isso. [...]

─ Fá-lo-ias? [insiste o moço]

─ Acho – confessou Stephen – que fazer isso me amofinaria tanto quanto ser

roubado. (RAQJ, p. 279).

Insuflado, então, pelo amigo, que o vê incapaz de cometer uma transgressão

como roubar ou deflorar uma virgem, explode Stephen Dedalus, numa confissão que bem

valeria por uma profissão de fé em Clarice Lispector, a saber:

Não servirei aquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha

pátria, ou a minha igreja: e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de

arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa,

empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio,

exílio e sutileza.

[...]

Fizeste que eu confessasse os pavores que tenho. Mas vou dizer também o que não

me apavora. Não tenho medo de estar sozinho, de ser desdenhado por quem quer

que seja, nem de deixar seja lá o que for que eu tenha que deixar. E não tenho

medo, tampouco, de cometer um erro, um erro que dure toda a vida e talvez tanto

quanto a própria eternidade. (RAQJ, p. 279-280).

Em Perto do coração selvagem a solidão está, como admite a heroína, misturada

à sua essência (PCS, p. 179), sendo esta também o preço que paga por sua inadaptação a um

mundo previamente moldado para ela.

Ainda no que diz respeito à força das imagens, o mar, desdobrado em semas que

remetem a ele, como areia, onda e vento, alimenta desejos de liberdade no romance de Joyce.

Ele fica próximo ao internato e com ele faz contradição (RAQJ, p. 72). Também é para este

ambiente, ―de alegria profana‖, que Stephen se volta depois de recusar a carreira eclesiástica

ofertada por um dos padres mestres: ―Caminhou, caminhou, caminhou, a passos largos, até

118

longe, por sobre a praia, cantando selvagemente para o mar, gritando para saudar o advento da

vida que tinha gritado para ele.‖ (RAQJ, p. 192).

Presente em Retrato do artista quando jovem, o mar aparece de forma fluida em

Perto do coração selvagem, a reiterar conceitos como profundidade: ―O pai morrera como o

mar era fundo!‖ (PCS, p. 39); fonte de desejo: ―Fugir, correr para a praia, deitar-se de bruços

sobre a areia, esconder o rosto, ouvir o barulho do mar.‖ (PCS, p. 59); turbulência: ―Na areia

seus pés afundavam e emergiam de novo pesados. Já era noite, o mar rolava escuro, nervoso,

as ondas mordiam-se na praia.‖ (PCS, p. 61); sabedoria: ―Com o ouvido ela sabia que o outro,

indiferente a tudo, prosseguia nas suas batidas regulares, no seu caminho fatal. O mar.‖ (PCS,

p. 112); introspecção: ―sou a onda leve que não tem outro campo senão o mar, me debato,

deslizo, vôo, rindo, dando, dormindo, mas ai de mim, sempre em mim, sempre em mim.‖

(PCS, p. 137); e conhecimento: ―Pode crer em mim, eu sou uma das pessoas que mais

conhecem o mar.‖ (PCS, p. 170).

Esta última imagem é reforçada pela viagem de navio que as duas personagens,

Joana e Dedalus, empreendem no final dos livros. Ambos igualmente anunciam uma travessia

como forma de resolução, no texto, e se entregam a uma busca, na esperança de que ela lhe

conceda algo novo, para além do sentido aparente das coisas:

Eu vou ao encontro, pela milionésima vez, da realidade da experiência, a fim de

moldar, na forja da minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça.

(RAQJ, p. 287);

[...] me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a

incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me

cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer

luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo. (PCS, p. 201-

202).

A despeito destas informações, que tanto aproximam uma narrativa da outra,

Clarice Lispector, como já se mencionou, não só negava como demonstrava aborrecimento

quando indagada sobre esta referência. Certa vez, em carta a Lúcio Cardoso, que disse não

gostar do título de O lustre, por achá-lo mansfieldiano, ela reclama: ―O diabo é que

119

naturalmente eu venho sempre por último, de modo que eu sempre estou no que já está feito.

Isso muitas vezes me deu certo desgosto.‖ (CARELLI, 1988, p. 52).

Ainda quando do lançamento de Perto do coração selvagem ela anuncia, em

24/04/1944, numa nota de jornal que consta em pasta própria do arquivo (FCRB):

Parece-me bem pouco o que eu posso dizer aqui [a respeito da influência de Retrato

do artista...]. Descobri essa legenda [epígrafe], o título do livro e o próprio Joyce

quando o livro estava bem pronto. Escrevi-o em 8 ou 9 meses, enquanto estudava,

trabalhava e noivava – mas ele não tem influência direta do estudo, do noivado, de

Joyce, do trabalho. Escrevi-o há uns dois anos, tateando na escuridão. Que as coisas

me permitam renovar sempre a inexperiência.

A autora, em outro momento, admite ter acatado o título sugerido por Lúcio

Cardoso, de quem tomava emprestado, algumas vezes, a erudição. O fato é que a amizade que

os unia dava abertura a este tipo de interferência na produção dela, conforme fazem imaginar

as perguntas, em forma de retórica, de Silviano Santiago (In: DE FRANCESCHI, 2004, p.

196):

A generosa imaginação de Lúcio Cardoso não teria sido preparada e condicionada

pelas cartas que recebera de Clarice e pelo diálogo que com ela mantinha? Ao ler

no original o notável romance do irlandês James Joyce – Retrato do artista quando

jovem (1916), cuja tradução só seria publicada pela Editora Globo em 1945 – Lúcio

não teria sublinhado, como muitos de nós fazemos, uma frase e anotado na

margem: ―É a cara de Clarice‖?

Tudo isto são suposições. Lúcio Cardoso conhecia de perto o que Clarice

Lispector vinha produzindo, em partes aleatórias, mas que, segundo ele, fariam sentido

quando reunidas mais tarde. De outra parte, a autora, ainda que de ―ouvir falar‖, pode

perfeitamente ter participado da leitura de Retrato de artista quando jovem, por intermédio da

realizada por Cardoso, já que assegura só ter tido acesso ao livro mais tarde.

De qualquer modo, sejam quais foram os meios utilizados para chegar à obra de

Joyce, o que não se pode negar é que ela esteja em Perto do coração selvagem, como se

demonstrou, anteriormente. E não há nisso nenhuma acusação que incrimine Lispector aqui.

Ao contrário, tal constatação só revela o quanto a escritora brasileira andava atualizada em

120

Literatura. O escritor James Joyce, considerado um vanguardista, também foi o mais

experimental dos ficcionistas que as letras modernas já conheceram. Natural, então, que

Clarice Lispector, em sua fase inicial, no esteio do que aparecia como novo no Brasil, se

interessasse por ele. A identificação não tira a luz própria do romance clariceano e o diálogo

que mantém com Joyce só torna ainda mais enriquecedora as relações entre as obras literárias.

No que diz respeito a Vidas secas (1938), obra que se deseja, aqui, numa relação

com O quinze (1930), a própria Rachel de Queiroz, quando dela toma conhecimento, interpela

Graciliano Ramos e, entre surpresa e entusiasmada, graceja no reconhecimento que faz do

talento do colega. Veja-se este depoimento, transcrito por Dênis de Moraes (1996, p. 164):

Poucos amigos sabiam que os contos [antes publicados por Graciliano Ramos]

eram partes de um romance. ―Ele escreveu na maior moita‖, recordaria Rachel de

Queiroz. ―Quando recebi o livro já editado, fiquei uma fera e disse-lhe todos os

palavrões possíveis. Perguntei-lhe: ‗Então, seu cachorro, você joga uma obra-prima

em cima dos nossos pobres livrinhos?‘ Ele riu muito, ficou na maior alegria com a

minha bruta admiração pelo seu trabalho.‖

Que se trata de uma obra-prima isto é consenso geral. No entanto, nem de

brincadeira O quinze é desmerecido, podendo, inclusive, ser considerado em importância para

a confecção do romance posteriormente publicado por Ramos. Pertencendo ao mesmo ciclo,

as obras se irmanam pela temática da seca, mas, é no que se refere à perspectiva sobre a

mulher que as duas mais se aproximam em Literatura. E, para uma melhor compreensão do

que se afirma, nesta última colocação, diferente da análise feita com as obras anteriores,

abalizadas em alguns pontos, parte a parte, talvez importe verificar algumas passagens em que

há coincidência de perspectiva, nas obras, para só então discutir a mulher especificamente

representada por sinha Vitória, tentando perceber em que sua ―filosofia de bruto‖ se parece

com a postura analítica apresentada por Conceição de O quinze.

121

Já o pequeno grupo de retirantes em Vidas secas7, a narrativa logicamente

motivada pelo tema, comungado à época, faz lembrar a travessia migratória realizada pela

família de Chico Bento em O quinze. É como se Graciliano Ramos ampliasse o que já aparece

como um problema, exemplificado na família de retirantes representada na narrativa

queirozeana. A diferença é que os episódios em que o grupo se envolve naquela obra não

correm paralelos à história da heroína como ocorre nesta. Os retirantes de Vidas secas

constituem, de fato, o foco principal da narração.

É a caminho do ―Sul‖ que as alpercatas dos retirantes de Vidas secas, assim como

os de O quinze, terminam por se dirigir, ao final da obra, mas, sendo este, por sua vez, um

dado registrado pela história da emigração no Brasil, a semelhança pouco acrescenta para o

cotejo entre as duas, uma vez que se trata de algo documental.

No que tange às personagens, um estudo de análise que se define pelo plano

entre o desejo e a realidade, denuncia, nos romances, uma aproximação entre Cordulina (O

quinze) e sinha Vitória (Vidas secas), quando tomadas, sobretudo, pela ótica dos esposos,

Chico Bento e Fabiano, respectivamente. Para o primeiro, entre a imagem evocada por ele e a

imagem real do texto, instaura-se o desejo por uma vida menos penosa para ambos. É da

confusão entre as duas imagens que se representa, abaixo, o pesadelo vivido por Fabiano,

ainda quando acordado na narrativa. Observe-se:

Chico Bento olhou dolorosamente a mulher. O cabelo, em falripas sujas, como que

gasto, acabado, caía, por cima do rosto, envesgando os olhos, roçando na boca. A

pele empretecida como uma casca, pregueava nos braços e nos peitos, que o casaco

e a camisa rasgada descobriam.

A saia roída se apertava na cintura em dobras sórdidas; e se enrolava nos ossos das

pernas, como um pano posto a enxugar se enrola nas estacas da cerca.

Num súbito contraste, a memória do vaqueiro confusamente começou a recordar

Cordulina do tempo do casamento.

Viu-a de branco, gorda e alegre, com um ramo de cravos no cabelo e argolas de

ouro nas orelhas...

[...] e seus olhos visionaram uma Cordulina fantástica, magra como a morte,

coberta de grandes panos brancos, pendendo-lhe das orelhas duas argolas de ouro,

que cresciam, cresciam, até atingir o tamanho do sol. (OQ, p. 46-47).

7 Também será utilizada a sigla VS, em alguns momentos da discussão, para se referir a este romance de

Graciliano Ramos.

122

Realidade e fantasia também se confundem em Fabiano, de modo que os

primeiros indícios a levar a uma possibilidade de chuva, em Vidas secas, renovam nele a

esperança de dias melhores para toda a família, permitindo-o sonhar. Tem-se na perspectiva

do inverno, portanto, os sinais da boa aventurança, refletidos no colorido da roupa e da

paisagem, no corpo carnudo da companheira e na espontaneidade das crianças, como se vê, a

seguir:

Eram todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara

murcha de sinha Vitória remoçaria, as nádegas bambas de sinha Vitória

engrossariam, a roupa encarnada de sinha Vitória provocaria a inveja das outras

caboclas.

[...]

Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam à cara triste de sinha Vitória. Os

meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam

pelos arredores. A catinga ficaria verde. (VS, p. 16).

Ainda no lugar-comum das imagens, tantas vezes exploradas em romances de

seca, duas outras passagens narrativas se irmanam em O quinze e Vidas secas, ambas

relacionadas a uma situação limite em que a fome, na iminência de fazer as personagens

sucumbirem, exerce sobre elas o direito de reivindicar a comida. Os exemplos que se seguem

são demonstrações colhidas de episódios em que a disputa pelo alimento, nas obras em

questão, resume-se, literalmente, a ter que ―beber o sangue‖ para alcançá-lo. E embora as

perspectivas sejam diferentes, amargura para um, euforia para outro, servir-se do líquido

vertido dá bem a tônica da espécie de vida predatória de que tratam as narrativas.

Pedro [o filho], sem perder tempo, apanhou o fato [vísceras do animal abatido pelo

pai e reclamado pelo dono] que ficara no chão e correu para a mãe.

Chico Bento ainda esteve uns momentos na mesma postura, ajoelhado.

E antes de se erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe deixaram na

boca um gosto amargo de vida. (OQ, p. 49, grifo nosso);

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá.

Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras,

afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o

focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. (VS,

p. 14, grifo nosso).

123

Não por menos se encontra a personagem Vicente, primo de Conceição, em O

quinze, absorvido em pensamentos, avaliando o estrago físico, moral e emocional que

representava para o ser humano atravessar mais um ano de seca. Assim é que, angustiado, tem

―um súbito desejo de emigrar, de fugir, de viver uma terra melhor, onde a vida fosse mais

fácil e os desejos não custassem sangue.‖ (OQ, p. 32, grifo nosso)

Se em tudo isso há uma consonância de vozes, motivada, quem sabe, pela

experiência comum, pois tanto Rachel de Queiroz quanto Graciliano Ramos conheceram, de

perto, o flagelo de que tratam no texto, no quesito figuração da mulher os dois escritores,

ainda mais, se encontram, como é demonstrado a seguir, a atenção se voltando, com mais

acuidade, para a personagem sinha Vitória e a forma como é concebida pelo texto.

No geral, o drama que se manifesta em Vidas secas (VS) tem dupla conotação. É

dramático o evento narrado, no sentido da calamidade; e dramática é a perspectiva posta sobre

cada personagem, que encena, cada um tem a sua vez, dramas personalizados. Sendo assim,

para conhecer mais sobre a personagem sinha Vitória, vale a pena perseguir os monólogos

dela, percebendo, ainda, de que maneira a representação da personagem Fabiano, em seus

desdobramentos, contribui para que seja conduzido para ela o foco narrativo. Isto ajuda a

compreender alguns significados para a mulher que se representa no romance em questão,

pois é na relação com o marido, sobretudo, que vai sendo composto o perfil da personagem

em estudo.

Sinha Vitória, mesmo com toda a limitação, nem por isso deixa de ser uma mulher

percebida por um ponto de vista integrado. Ela assume papéis, na obra, que, agregados,

alargam a perspectiva da mulher circunscrita à condição de esposa de Fabiano. Dentro do

mundo tosco do vaqueiro, é com ela que conta quando o assunto é a curiosidade e a

―impertinência‖ dos meninos ou o (des)ajuste de contas com o patrão. É por ela, e também

124

pelos filhos, que Fabiano, justificando-se, deixa-se acovardar, na chance que tem de se vingar

do soldado amarelo.

Sem dúvida, é grande a admiração de Fabiano por sinha Vitória. Espanta-o,

sobretudo, as idéias da mulher e a capacidade dela de largar ―tiradas embaraçosas‖. Na

verdade, sinha Vitória, repetindo as palavras de Bueno (2006, p. 653), é uma ―criatura mais

consciente e de maior poder de reflexão que o marido‖, o que lhe atribui, neste aspecto,

bastante relevo no romance.

A propósito, se a ordem conta para a importância, afirma Moraes (1996, p. 162)

que o capítulo ―sinha Vitória‖ é o segundo ―conto‖ produzido pelo autor, sucedendo, portanto,

à escrita de ―Baleia‖, que dá origem aos demais. Ou seja, quando decide escrever um

romance, esboçando os perfis dos donos da cachorra, que tanto sucesso lhe rendera, conhecida

no formato do conto, é para a personagem sinha Vitória que Graciliano Ramos se volta.

Apesar de muito parecida com Fabiano, aos poucos, vão surgindo na obra

qualidades que individualizam sinha Vitória. E o marido, mesmo, contribui, e muito, para que

assim seja percebida. Ao fixar-se como vaqueiro, na fazenda abandonada, e demonstrando

preocupação com a excessiva curiosidade dos filhos, ―capetas de idéias‖, como bem prova o

menino mais velho, é com ela que quer tratar da educação deles:

Agora queria entender-se com sinha Vitória a respeito da educação dos pequenos.

Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da casa, regando os

craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e

regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados

como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem

com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha. (VS, p. 21-22).

Embora haja o reconhecimento da ocupação da mulher, não deixa de haver neste

discurso do vaqueiro, também, uma acusação, ainda que de forma velada, pelo relaxamento

com as crianças. Por outro lado, Fabiano não se exime, por sua vez, da responsabilidade que

os dois devem ter com a educação dos meninos. E se incomoda a ele o jeito inquiridor dos

filhos é porque tal comportamento perturba a ignorante paz em que repousa o seu espírito, só

125

isto justificando as repreensões que os garotos sofrem o tempo todo do pai. Na sua concepção,

importa às crianças limitarem-se a aprender o ofício do pai como: ―saberem cortar mandacaru

para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não

calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira.‖ (VS, p. 24-25). Para Fabiano, é por

estar infenso a isto tudo que o dono da bolandeira, sofrendo precipitadamente as

conseqüências da seca, cedo é aniquilado.

Páginas e mais páginas do romance são necessárias para que o (a) leitor(a) tome

conhecimento acerca do que pensa sinha Vitória sobre esta questão. Contrariando Fabiano por

achar que menino, por ser ―bicho miúdo, não pensa‖, bem como se demonstrando contrária ao

plano de que ―vaquejassem‖, sinha Vitória dispara: ―Nossa senhora os livrasse de semelhante

desgraça. Vaquejar, que idéia! (...) Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.‖

(VS, p. 123).

Dando crédito aos pensamentos dos meninos, a personagem, todavia, nem sempre

demonstra paciência com a bisbilhotice deles. Célebre é o cocorote que o menino mais velho

recebe da mãe, insistindo para que explicasse, ao seu juízo infantil, os significados do inferno.

A inabilidade da mãe, em lidar com a questão, desperta no filho alguns sentimentos

revolucionários. Não teve dela o conceito desejado, mas, cedo soube compreender, na dura

experiência, o significado do que seria um tratamento infernal:

Levantou-se. Via a janela da cozinha, o cocó de sinha Vitória, e isto lhe dava

pensamentos maus. Foi sentar-se debaixo de outra árvore [...] O inferno devia

estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam

cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca. (VS, p. 60-61,

grifo nosso).

Veja quão contextualizado é o conceito a que chega o menino. E, a ―cobra‖ da

mãe, independente das intenções, acaba por ajudá-lo a chegar a esta conclusão. Quer queiram,

quer não, os pais serão sempre referência para os filhos, como justifica, por exemplo, a

passagem narrativa em que o menino mais novo tenta montar um bode, imitando o pai. O

126

mais velho, por sua vez, talvez tenha enxergado na mãe as possibilidades de uma orientação,

o que de fato alcança, embora frustrado pela violência do cocorote.

Pensando em sinha Vitória como orientadora do marido e dos filhos, bem como na

corporalidade da personagem, manifestada na figuração de um corpo ―a serviço‖, pelo menos

em dois momentos da narrativa o ―cocó‖ da mulher de Fabiano cumpre com a finalidade de

nortear uma busca até ela. O primeiro momento aparece neste, supramencionado, em que o

filho, injuriado, identifica-a de longe. O segundo é quando, na festa de natal, na cidade,

Fabiano, temendo perdê-la na multidão, que se aglutina no átrio da igreja, visualiza-a também

pelo penteado. ―Estremeceu, tentou ver o cocó de sinha Vitória. Precisava ter cuidado para

não se distanciar da mulher e dos filhos.‖ (VS, p. 77).

Ao que parece, metonimicamente falando, a cabeça de sinha Vitória serve de guia

à família. É por isso que Fabiano a ela recorre, sempre que tem dificuldade para examinar

alguma situação. No acerto anual, com o patrão, cabe à mulher, por exemplo, fazer as vezes

da contadora:

Fabiano [...] foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para o

barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias

espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte voltou à cidade, mas ao

fechar o negócio notou que as operações de sinha Vitória, como de costume,

diferiam da do patrão. (VS, p. 94).

Inconformado, Fabiano tenta entender em quê estava a diferença. Reclamava,

sobretudo, porque se reconhecia um bruto, ―mas a mulher tinha miolo.‖ (VS, p.94). Ele logo

percebe que se tratam de lógicas diferentes, a do fazendeiro e a da mulher do empregado.

Todavia, mediante a impossibilidade de administrá-las e lidando com uma ameaça real, feita

pelo patrão, Fabiano se rende, submetendo-se às condições impostas. Oprimido e sem

alternativa, esforça-se, ainda, em disfarçar o sentimento, atribuindo à mulher o engano do

cálculo: ―Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor),

acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.‖ (VS, p.95).

127

No íntimo, o vaqueiro, sabendo-se espoliado, crê nas contas realizadas por sinha

Vitória, ciente de que a diferença certamente não estava nas operações matemáticas realizadas

por ela:

Desejava saber o tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas com o amo

o prejuízo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe

dera uma impressão bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam

palavras difíceis, ele saía logrado. (VS, p.97).

A tirania do patrão castra Fabiano e este, vexado, volta para casa e tenta

inutilmente dormir, como se fosse capaz, depois de tanta humilhação. O vaqueiro dilacera-se

na consciência suspeita de sua condição de explorado, sem que seus ―miolos‖ nada possam

fazer para dissipá-la. Esse tipo de opressão, representada nos sentimentos da personagem

Fabiano, revela, por sua vez, intenções do escritor, quando do processo de feitura do romance,

conforme afirma em carta a João Condé, transcrita por Dênis de Moraes:

Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais

recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior,

isto é, a hostilidade do meio físico e da injustiça humana. Por pouco que o

selvagem pense – e os meus personagens são quase selvagens – o que ele pensa

merece anotação. (MORAES, 1996, p. 163, grifo nosso).

Em Vidas secas, Fabiano, ressentindo-se quase sempre de uma brutalidade, confia

à mulher a arte de pensar, já que ela era ―atilada e percebia as coisas de longe.‖ (VS, p. 115).

Ele admira na esposa essa capacidade de razão, por isso, sempre que se sentia na expectativa

de alguma decisão: ―Precisava consultar sinha Vitória‖ (VS, p. 116), já que ela, tão parecida,

―pensaria como ele‖ (VS, p. 116). Ou seja, os pensamentos podem até ser comuns, em

determinados momentos, mas ele necessita de quem os traduza.

A admiração pela perspicácia de sinha Vitória se mostra, de maneira mais enfática,

no capítulo ―O mundo coberto de penas‖. Este texto, amparado na sabedoria popular,

alimenta-se no celeiro da região e exerce função premonitória no romance. É cultural o

conhecimento que representa as aves de arribação como portadoras de mau agouro. Este saber

128

passa a ser autorizado em Vidas secas, visto que as aves prenunciam uma seca que se avizinha

na obra e que, de fato, se confirma.

Nesse aspecto, considerando o prisma cíclico, do romance, vale a pena conferir a

montagem das cenas, abaixo, preparadas para introduzir, na obra, as estações das chuvas e da

seca. Perceba que elas encerram um jogo imagético entre índices relacionados ao inverno e

semas indicadores da prolongada estiagem. No cotejo, note-se como a figuração das aves

reforça a perspectiva dramática do segundo trecho:

De repente um traço ligeiro rasgara o céu para os lados da cabeceira do rio, outros

surgiram mais claros, o trovão roncara perto, na escuridão da meia-noite rolavam

nuvens cor de sangue. A ventania arrancara sucupiras e imburanas, houvera

relâmpagos em demasia – e sinha Vitória se escondera na camarinha com os filhos,

tapando as orelhas, enrolando-se nas cobertas. (VS, p. 65);

De repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o

medonho rumor de asas a anunciar a destruição. Ele já andava meio

desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das

manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes. Agora confirmavam-se as

suspeitas. (VS, p. 113-114, grifo nosso).

Ao raio que corta os céus, anunciando chuva, corresponde o traçado das aves,

divisando na claridade exacerbada dos dias, a praga iminente. Ambos os casos refletem a

percepção de Fabiano que, numa constatação empírica, aprendera, examinando os céus, a

interpretar tais sinais, deles tirando a sua conclusão. É tentando acertar com a origem do

problema, que declara: ―As bichas excomungadas eram a causa da seca.‖ (VS, p. 114). É

observando as aves, portanto, que o casal confirma para si uma suspeita, antes levantada. O

vaqueiro sabe que elas prenunciam desastre, mas se espanta com a inusitada constatação da

mulher, quando especula: ―aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o

gado.‖ (VS, p. 109).

Dita, assim, a frase de sinha Vitória soa extravagante a Fabiano, não cabendo na

sua avaliação primária acreditar que um bicho de penas tivesse poder para tanto. Só depois de

129

muito refletir é que, pelo processo da indução, consegue compreender, nas sutilezas da

sugestão, a intenção da mulher:

A frase dela tornou ao espírito de Fabiano e logo a significação apareceu. As

arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As

arribações matavam o gado. [...] Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer.

Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de sinha

Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha idéias, sim senhor, tinha muita

coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. Então! Descobrir que as

arribações matavam o gado! E matavam. (VS, p. 110).

Fabiano tem absorvido para si o sentido que as aves representam. ―Desde o

aparecimento das arribações vivia desassossegado.‖ (VS, p. 119). O que lhe parece novidade é

a forma de comunicá-lo encontrada por sinha Vitória. A personagem reconhece-se na

incapacidade de colocar em termos semelhantes a sentença proferida e, convencido da

inteligência, demonstra por ela ainda mais admiração.

As aves, que tanto temor causam, já trazem no próprio nome o perigo que o casal

tanto teme: a ―arribação‖. Curiosamente, o processo migratório delas, ―em viagem para o sul‖

(VS, p. 110) vai se associar à arribada encabeçada por Fabiano e sinha Vitória. Ao decidir,

sob a influência de sinha Vitória, seguir idêntica direção, a família, repetindo aquela trajetória,

se assemelha àquelas aves-irmãs. Imitando-as, o grupo se retira, ―arribando‖, em busca da

sobrevivência em outros ares.

Em Vidas secas, assim como ocorre em O quinze, no exemplo ilustrado pela

personagem Mocinha, há um processo de zoomorfização que faz com que homens e bichos se

irmanem. No entanto, em Graciliano Ramos, a cada animal, a concessão da classe. Liberdade

de pássaro é voar, as aves de arribação seguindo os limites naturais do instinto. Ao homem,

entretanto, apesar das adversidades, cabe-lhe o desejo de escolha, o livre arbítrio. É pensada a

migração da família em Vidas secas. Só que desta vez, sob a intervenção da mulher,

persuadindo o marido, a migração tem rumo certo, não seguirá passos aleatórios pela caatinga

afora, sobrevivendo por pura contingência. Para ela, o sonho de chegada ao ―Sul-maravilha‖ é

130

uma idéia a ser perseguida. Garantias não há no romance de que ele se realize, mas ninguém

poderá negar-lhe o esforço da tentativa.

Chama-se a atenção, de imediato, para duas questões que relacionam as obras

apreciadas. Uma leitura ingênua de Vidas secas poderia levar a crer que está apenas sobre

Fabiano o foco da narração. Engano que muito comprometeria a interpretação do texto, pois

dispensaria dele a natureza multiperspectivada, a obra cedendo oportunidade para que todas as

personagens exponham pontos de vista na narrativa. Da mesma forma, uma leitura

conformada ao nível aparente de compreensão de O quinze poderia fazer acreditar que o foco

principal estivesse apenas sobre a grande seca de quinze, que dá título ao livro, o que deixaria

de fora a importância da atuação da personagem Conceição, para o que diz respeito à

representação da mulher no texto literário, sobretudo no que ela pensa.

Se expressões como ―ter miolos‖, ser ―atilada e perceber as coisas de longe‖,

proferidas por Fabiano, em monólogo narrado, conferem à sinha Vitória, uma habilidade na

arte de pensar, autorizando-a como ―cabeça‖ da família em Vidas secas, Conceição, como se

sabe, é uma mulher de idéias, em O quinze, ―Acostumada a pensar por si‖ (OQ, p. 05).

Naturalmente as duas se distinguem pela ocupação. A heroína queirozeana exerce

o professorado e vivia entre livros, ―relendo trechos conhecidos‖ (OQ, p. 04). Sinha Vitória

tem o saber empírico, para o que independe a instrução oficial. Cuida da casa, educa os filhos.

Mesmo em sua limitação matemática, ajuda o marido nas contas a serem prestadas com o

patrão. Ela é a orientadora, a que pensa com e por eles e, por fim, a que vai guiar a todos

quando decide que direção tomar no fim do livro.

―A mulher é a salvação ou a perdição da família. Ela leva o destino da família nas

pregas do seu vestido.‖ Este aforismo do filósofo, poeta e crítico suíço, Henri-Frédéric Amiel,

ao propósito dos ensinamentos morais, quando a eles se davam mais crédito, bem serve para

ilustrar, numa perspectiva em contrário, uma mania da personagem Conceição. Num gesto,

131

reiterado na obra, e que lhe parece bastante peculiar, a heroína queirozeana, sobretudo em

tomadas de importantes decisões, aparece ―riscando pensativamente com a unha as pregas da

saia‖ (OQ, p. 79). É como se o hábito ajudasse-lhe na concentração e esta, na determinação

do que fazer.

Como mulher atuante, ela, então, vai agir, intervindo sobre os acontecimentos. É

assim que ocorre, por exemplo, quando, reproduzindo um pensamento, muito comum à época,

a moça demove a idéia de Chico Bento de seguir com a família para o Amazonas, em busca

de trabalho nos seringais. Conceição aconselha e toma providências para que mudem para São

Paulo, onde há ―Trabalho por toda parte, clima sadio... Podem até enriquecer...‖ (OQ, p. 79).

De qualquer modo, há neste comportamento uma intenção de mudança positiva.

Tenta-se mudar, com a atitude, a condição de pobreza das personagens. Esta forma de pensar

também se encontra na personagem sinha Vitória, que igualmente não se conforma à situação.

Ela, diferente de Fabiano, não quer que os filhos tenham o mesmo ofício que ele, deseja uma

cama nova, objeto que condensa, no texto, aspirações a uma vida mais confortável e, por fim,

persuade o marido a migrarem para o ―Sul‖, onde a família poderia adotar outros costumes.

Se a perspicácia e a capacidade de raciocínio de sinha Vitória, na conclusão que

chega, observando as arribações, reforçam a admiração que o marido lhe dispensa, papel

semelhante é o desempenhado por Conceição, pela ótica do primo Vicente, atraído por ela,

conforme atestam as seguintes passagens:

Só Conceição, com o brilho de sua graça, alumiava e floria com um encanto novo a

rudeza de sua vida.

[...]

Havia de ser quase um sonho ter, por toda a vida, aquela carinhosa inteligência a

acompanhá-lo. E seduzia-o mais que tudo a novidade, o gosto de desconhecido que

lhe traria a conquista de Conceição, sempre considerada superior no meio das

outras, e que se destacava entre elas como um lustro de seda dentro de um confuso

montão de trapos de chita. (OQ, p. 31-32).

Como se vê, tanto Conceição quanto sinha Vitória são personagens admiradas

pelos pares e exatamente pelo que representam: mulheres fortes, decididas, determinadas e,

132

sobretudo, inteligentes. Interessante perceber que em meio a tanta carência, sobretudo em

Vidas secas, escape esta visão sobre a mulher no romance representado.

É possível que, assim concebida, isto se deva a outros modelos de representação,

já vistos, donde não se pode ignorar o papel exercido por Rachel de Queiroz, em O quinze.

Por outro lado, não se pode ignorar, também, a visão do autor. Graciliano Ramos prezava a

inteligência nas mulheres e, ainda que respeitadas as diferenças da invenção, transpôs para o

texto criado, deixando filtrar nele a sua real percepção.

Conta Dênis de Moraes (1996, p. 180) que o escritor costumava dizer que o

serviço doméstico às vezes embrutecia as mulheres, e certa vez, ao chegar a sua casa e

encontrar uma das filhas a tricotar, teria disparado:

─ Por que você não compra uma blusa pronta? Lucraria mais lendo um bom livro.

Não suportava hipocrisia. Quando saiu no Brasil O amante de Lady Chatterley,

muitos maridos proibiram as mulheres de ler aquela ‗pornografia‘. Com Heloísa [a

esposa] seria o contrário: Graciliano compraria o livro para ela.

Assim sendo o homem Graciliano Ramos, já não parece tão absurdo enxergar em

sinha Vitória a mulher admirável que chega a ser em Vidas secas. Na aproximação com

Conceição, outro elemento de discussão, ainda, reclama para elas uma análise. Trata-se da

corporalidade das duas nos romances. Se há em Conceição um corpo representado de forma

metonímica, como é visto neste trabalho, mais adiante, algumas partes corporais de sinha

Vitória coincidem com as que se repetem para a mulher, na obra, na idéia reiterada de um

corpo tomado em sua utilidade, sempre a serviço. Repare-se, por exemplo, nas passagens

narrativas em que a cabeça da mulher de Fabiano, por intermédio do ―cocó‖ que usa, serve de

orientação para a família.

Acrescentem-se ainda as passagens comuns nos textos em que o corpo é

condução, ―Sinhá Vitória, com o filho mais novo escanchado no quarto, equilibrava o baú de

folha na cabeça‖ (VS, p. 58); é meio de improvável alimento: ―pobrezinho! O peito [de

Cordulina] estava seco como uma sola velha!‖ (OQ, p. 35); é provimento, sempre a suprir

133

necessidades. Quando é chegado o inverno e a família se reúne em volta do fogo, lá está

―sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos.‖ (VS, p. 63). E

como chuva é sinal de fartura, é uma gorda senhora que oferece ao filho mais velho o calor e

a proteção: ―Enrolou-se, acomodou-se, adormeceu, uma banda aquecida pelo fogo, a outra

banda protegida pelas nádegas de sinha Vitória. (VS, p. 69.

Muita importância tem também a questão da maternidade, via representação do

corpo das personagens. Basta dizer que em Cordulina, no exemplo supracitado, o drama da

personagem, em sua carência, é ainda mais reforçado pela imagem dos seios mirrados. Tudo

isto é assunto, entretanto, a ser desenvolvido no próximo capítulo e, especificamente, com as

heroínas de Rachel de Queiroz e Clarice Lispector. Um estudo em que o corpo, analisado em

suas potencialidades de representação, muito diz das personagens.

Retrato do artista quando jovem (RAQJ) e Vidas secas (VS) compõem, na

discussão apresentada até então, um quadro de possibilidades de leitura, motivado a partir de

indicações da crítica, que fazem lembrar a aproximação entre os escritores, como já se

mencionou. E longe de pretender uma análise profunda, o cotejo dos romances visa, na

verdade, ventilar acessos aos textos iniciais das autoras, seja seguindo a pista dos temas

comuns, seja tentando compreender de que modo as personagens, embora pertencendo a obras

distintas, e, neste momento independendo de serem masculinas ou femininas, podem aparecer

refletindo umas nas outras.

Ao tentar sintonizar-se com os estudos publicados sobre as escritoras, quando

lançaram suas produções, sem enxergar nisto nenhuma relação de fragilidade artística ou uma

dependência, que parece querer pôr um(a) autor(a) em débito com um anterior, a idéia aqui é

tão-somente aproveitar o rico material de relação intertextual, o diálogo literário por si só

fazendo valer o investimento.

134

Este capítulo da tese cumpre, então, com objetivos bem definidos. Ao fixar apenas

nos discursos que remetem para as obras iniciais, embora as últimas também interessem neste

trabalho, sendo o quarto capítulo a elas dedicado, busca-se, com isso, perceber de que modo, a

despeito das opiniões em contrário, as duas escritoras se parecem, sobretudo em trajetórias

que se combinam.

É atuando em campo literário selvagem, porque inaugural, portanto, que Rachel de

Queiroz e Clarice Lispector se insurgem. Elas participam de um seleto grupo de mulheres

escritoras a galgar, entre os nomes masculinos já então consagrados pela arte oficial, uma

carreira que, de fato, se consolida na Literatura Brasileira. E como toda novidade gera

estranheza, o começo não foi fácil, especialmente para Clarice Lispector, cujo valor, à custa

de muita incompreensão, foi conquistado.

Os textos das duas, sem dúvida, apontam para caminhos diferentes, mas isso não

quer dizer que em alguns momentos, e arrisca-se a dizer que não são poucos, não se cruzem,

por aproximação. É de fato a mulher, ou mulheres escritoras que aqui se sobressaem, neste

capítulo. Reserva-se para os próximos, entretanto, a concepção que Queiroz e Lispector fazem

daquela, representada nos textos apreciados.

E, no espelho desta criação, seja através de um corpo que materializa uma

ideologia, seja perseguindo os motivos narrativos que iluminam a figuração nas obras, o que

importa, afinal, é ver a mulher surgindo em perspectivas que reconhecem nela uma atuação,

valorizam a inteligência, a luta delas e sua determinação. As mulheres ―danadas‖ de Rachel e

Clarice, e veja-se que não são poucas as que aparecem na produção das duas, são fortes e

humanamente falíveis, como não poderiam deixar de ser. Aqui elas exigem passagem e, sem

precisarem mais de licença, aceitas que são, vão concentrar, por intermédio das personagens

Conceição, Joana, Macabéa e Moura, em campo narrativo, o que até então vem se mostrando

numa trajetória literária em execução.

135

Entre as possibilidades de análise narrativa, o tratamento dado ao corpo em O

quinze, Perto do coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria Moura, a seguir,

se mostra, sem dúvida, profícuo aos saberes acerca da mulher, social e culturalmente

representada nas obras. Assim, no intento de compreendê-la, também por um viés corporal, o

texto de Ieda Tucherman, em que pensa as apropriações simbólicas voltadas para a questão da

alteridade nos processos de subjetivação, interessa, nesta discussão, sobretudo, quando

afirma:

O nosso olhar tem por hábito encontrar o corpo, que sendo uma imagem-invólucro

que encerra a rude presença da carne, é também, e em cada experiência histórica,

particularmente apreendido e interpretado como expressão. Ainda que numa ótica

de separação de corpo e alma, ou na secularização da alma no corpo que a

experiência moderna pareceu realizar, a determinação hereditária nos faz

prisioneiros, mas nos dá voz e narrativa. O corpo conta uma história e é só por isto

que ele ganha a sua existência. (TUCHERMAN In: VILLAÇA, GOES &

KOSOVSKI, 1999, p. 151-152, grifo nosso).

No esteio da ―corporeidade‖, termo preferencialmente utilizado pelas

organizadoras do livro, acima referido, a professora Tucherman também se serve das

inscrições corporais, marcadas pelo excesso ou pela falta, que caracterizam os monstros

enquanto categoria corporal, para falar de o Eu e o Outro dentro das fabulações. Para ela o

corpo participa dos mecanismos de identificação e alteridade. Produz, portanto, o idêntico e o

diferente, ainda que este par seja projetado a partir de uma idealização estabelecida com base

na cultura.

Longe de serem monstras, mas muito próximas desse Outro que se apresenta, as

mulheres refletidas por Conceição, Joana, Macabéa e Moura, através do corpo para elas

representado, reclamam uma visibilidade própria, na diferença que lhes cabe e no tempo

específico de cada uma. Deste modo, nunca é demais lembrar de que no exemplo do mito de

Narciso, a fixação da imagem, na água, mas também no espelho, só é possível porque o corpo

a fornece. Sem corpo não há imagem, e embora nesta não se cristalize a eternidade, afinal o

tempo do espelho é o tempo do agora, cada imagem que se faz reflexo no corpo deste

trabalho, vale por um testemunho da mulher nele representada e passível, portanto, de existir.

136

III – UM CORPO SE APRESENTA EM RACHEL E CLARICE: ESPELHO,

ESPELHO MEU, A MULHER QUE SOU EU

Durante muito tempo o corpo da mulher foi motivo de especulação. O imaginário

medieval procurando fazer dele um extrato do céu ou do inferno, dependendo da situação.

Assim, ―era visto, tanto por pregadores da Igreja católica quanto por médicos, como um palco

nebuloso e obscuro no qual Deus e o Diabo se digladiavam. (DEL PRIORE, 2004, p. 78).

Alvo da ira celestial ou visto como agente de satanás, este corpo, porque incompreendido, se

prestava a vários tipos de feitiçaria, emprestando seus líquidos, pêlos e sucos para a confecção

de poções mágicas. Por outro lado, lembra Bataille (1988, p. 48), discutindo os interditos da

sexualidade, líquidos como o da menstruação são evitados porque estão relacionados ao

horror da violência, sendo o sangue mesmo um sinal dela.

Com o tempo, entretanto, a compreensão do corpo da mulher evoluiu e, de

elemento de arte da feitiçaria, estudos o transformaram em mera fisiologia. Neste intento,

muito contribuiu a investigação na chamada Ciência Moderna. Como se sabe, muitos foram

os tratados do período em que, a partir da dissecação, o corpo da mulher era estudado sempre

em oposição ao do homem. Vários desenhos datados, desta época, ilustram a mulher

―defeituosa‖. Exemplo disto está na crença médica de que os ovários femininos nada mais

eram do que testículos, o defeito estando exatamente no fato de que eram menores que os dos

homens.

É claro que o avanço da Medicina Contemporânea permitiu a desconstrução desses

absurdos. Todavia, não faltou quem, a despeito de improváveis teses de ordem física, tempos

mais tarde, buscasse submetê-las à ordem psíquica. Os seguidores da Psicanálise, sobretudo

Lacan, alardearam a idéia da existência de um ―falo invertido‖ nas mulheres. Como se vê, ao

137

estatuto biológico da mulher, sempre estiveram associados outros, psíquicos, morais,

filosóficos, etc.

Longe de pretender traçar, aqui, uma história do corpo feminino, as ocorrências

supramencionadas servem apenas para destacar o quanto o corpo da mulher, ao longo da

História, esteve ligado à arte da invenção. À criação de teorias que colocaram homens e

mulheres sempre em campos antagônicos (céu X inferno; corpo enfeitiçado X corpo

enfeitiçador; testículos grandes X testículos pequenos; falo ―vertido‖ X falo invertido). Tudo

isso faz pensar até onde pode ir a ciência, quando se coloca a serviço de uma ideologia. E

quando a Biologia ameaçou não dar conta de tais teorias, veio aquela da Psiquiatria.

Em A dominação masculina, Bourdieu (2005, p. 18-20) escreve:

O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de

princípios de visão e de divisão sexualizantes. Esse programa social de percepção

incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e antes de tudo, ao próprio corpo,

em sua realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos,

conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação

arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres [...] A diferença biológica

entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino e,

especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser

vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os

gêneros. [Grifos do autor].

Refutando a naturalização dos princípios biologizantes, é desse corpo, construído,

como informa Bourdieu, que este trabalho vai se ocupar. Artisticamente construído, é

verdade, já que reside sobre os textos de Rachel de Queiroz e Clarice Lispector o foco da

investigação. A análise vai se deter nas imagens do corpo de Conceição, Joana, Macabéa e

Maria Moura, protagonistas das obras, já apontadas, numa tentativa de compreender a mulher

representada através delas. Partindo do princípio de que, em se tratando de criação artística, o

corpo feminino, não raro, onipresente no discurso dos poetas e prosadores, se manifesta em

imagens de toda natureza como quadros, esculturas, etc., até onde esse corpo exposto,

encenado, não continua sendo opaco, é a pergunta que se faz, como indaga Michelle Perrot

(2003), quando discute sobre Os silêncios do corpo da mulher.

138

Ainda sobre o ―não-corpo‖ ou sobre a construção de uma corporeidade, para uma

análise das personagens, neste aspecto, vale a pena considerar, sobretudo no que se refere às

relações sociais, o estudo de Arthur W. Frank (1996), ―Por uma Sociologia do corpo: uma

revisão analítica‖ (For a Sociology oh the body: na analytical review), em uma proposta de

teorização que articula corpo e sociedade.

Nesta obra, o autor chama a atenção para o fato de que a Sociologia, ainda atrelada

a uma abordagem do ―não-corpo‖, necessita se juntar aos demais discursos acadêmicos em

sua centralidade no corpo. Cita os trabalhos de Pierre Bourdieu, por ele considerado um dos

teóricos do corpo mais prestigiado, na contemporaneidade, além de incluir Erving Goffman e

Marcel Mauss (que estão mais na área de Antropologia do que na da Sociologia, como

também o Bourdieu) como exemplos de iniciativas que descobrem o corpo enquanto

importante locus de estudo e pesquisa.

Em sua argumentação sobre o tema, aponta três abordagens pela quais há

possibilidades de estudo sobre o corpo, a saber: a modernista (modernist), a pós-modernista

(postmodern) e a feminista (feminist). Considera esta, em sua importância por abrir um novo

campo de investigação, quando, retomando a questão de Heriter-Augé sobre o patriarcalismo,

questiona como foi que se configuraram as condições sociais para que os corpos masculinos

dominassem os corpos femininos.

E, ainda sobre o ―esquecimento do corpo‖ pelos sociólogos, é enfático ao criticar8:

Esta Sociologia tem refletido a dominação masculina na medida em que primeiro

naturaliza as capacidades do corpo e depois legitima essa naturalização, isto é, é

‗natural‘ que haja dominação no trabalho na medida em que cada um [homem ou

mulher] esteja atuando de acordo com suas habilidades e dotes naturais. (FRANK,

1996, p. 41, TRADUÇÃO DA AUTORA).

Ou seja, repetindo o discurso da naturalização, a Sociologia, neste aspecto,

reduplica o que a Biologia já fez, numa perspectiva contestada pelas feministas (different from

8 This sociology has body a male domination which first naturalizes the capacities of bodies and then,

legitimated by this naturalization, denies any domination, at work in it, i. e., each does according to her or his

‗natural‘ endowments.

139

a feminist perspective), que procura desconstruir esse tipo de discurso. Não satisfeito, ainda,

Frank complementa citando como exemplo de um posicionamento ―machista‖, na Sociologia,

a argumentação de Durkheim contra o divórcio. Este reconhece o papel subordinado da

mulher na sociedade, mas, ao mesmo tempo, aceita que tal situação de submissão seja

necessária para a manutenção da ordem social.

Conclamando, então, a uma tomada de atitude e entendendo o corpo social em

interação com o corpo individual, escreve o analista9:

A sociologia do corpo [...] entende as organizações sociais como essência da

reprodução das corporeidades. A corporeidade não é algo neutro ou natural da

sociedade, mas antes reproduz princípios de dominação de gênero e de classe (Cf.

Bourdieu). Sobre estas questões de dominação e apropriação recaem muitas outras

da história da sociedade. O Feminismo tem entendido que a história de ambos

inicia e termina no corpo. (FRANK, 1996, p. 42, TRADUÇÃO DA AUTORA).

Assim sendo e, antes mesmo de chegar ao texto literário propriamente dito,

também é de grande valia para a discussão pretendida, acerca da mulher metaforicamente

construída a partir do corpo representado pelas heroínas supramencionadas, o estudo crítico

feito por Elisabeth Grosz (2000), intitulado Corpos reconfigurados. É compreendendo o

corpo como uma das categorias relevantes nas discussões feministas que ela vai tentar

explicar as relações entre corpo, corporalidade e gênero.

Ela parte do ponto de vista da Filosofia para elucidar o que considera como

―profunda somatofobia‖, ou base em que se funda a tradição do pensamento ocidental, sendo

Descartes e Espinosa os filósofos mais mencionados para a questão. Neste ensaio, Grosz,

discutindo especificamente sobre o feminismo e o corpo, produz, ainda, um levantamento

acerca da compreensão que se faz deste nas três correntes feministas de que se tem

conhecimento. Procura, por fim, dar sugestões de análise que concorram para uma visão mais

positiva do corpo, de modo a superar as categorias engendradas em oposição.

9 The sociology of the body [...] understands social organization as being about the reproduction of embodiment.

Embodiment is anything but a natural constant in social life, representing instead the political principles of class

(i. e., in Bourdieu) and gender domination. On the questions of domination and appropriation hang much of the

story of society. Feminism has taught us that story both begins and ends wich bodies.

140

Em meio ao debate promovido, destaque-se o que escreve:

O feminismo adotou acriticamente muitas das suposições filosóficas em relação ao

papel do corpo na vida social, política, cultural, psíquica e sexual e, pelo menos

neste sentido, pode ser visto como cúmplice da misoginia que caracteriza a razão

ocidental. (GROSZ, 2000, p. 47).

A questão levantada por ela concentra-se na problemática do pensamento

dicotômico, que transforma o ser humano num sujeito diametralmente dividido. Isso é próprio

da filosofia cartesiana e a preocupação de Grosz está no fato de que, conscientes ou não,

algumas feministas terminam por endossar isto, quando se comportam como se fossem

sujeitos que pudessem ser separados do mundo do corpo para poder refletir sobre ele.

Para ela, essa dicotomia que divide o homem entre mente e corpo, pensamento e

extensão, razão e paixão, psicologia e biologia, hierarquiza os termos polarizados, de modo

que um deles se torna o termo privilegiado, suprimindo, em contrapartida, o seu outro, que é

subordinado e negativo. ―O termo subordinado é meramente negação ou recusa, ausência ou

privação do termo primário, sua queda em desgraça; o termo primário define-se expulsando

seu outro e neste processo estabelece suas próprias fronteiras e limites para criar uma

identidade para si mesmo.‖ (GROSZ, 2000, p. 48).

As rivalidades entre as questões relativas ao corpo e à mente, ilustram bem este

tipo de lógica; sobretudo porque aquele é a contrapartida subordinada desta. Mais perigosa se

torna tal forma de pensamento quando dela partem outros pares de oposição. E Grosz procura

ver nesses jogos binários a própria gênese para a distinção macho e fêmea. De forma

correlata, o homem estaria para a mente (e, por associação, para a razão, a sensatez, o ser, a

profundidade, a realidade, o mecanicismo, a transcendência e a psicologia, etc.); assim como

a mulher para o corpo (e, por osmose, para a paixão, a sensibilidade, o outro, a superfície, a

aparência, o vitalismo, a imanência e a fisiologia). Ou seja: tudo leva à definição do corpo por

temos organicistas, que o desvalorizam se comparado à mente. Ele é o intruso ou o

interferente nas operações mentais, de tal modo que exige ser superado.

141

Quando a Filosofia mostrou-se primordialmente preocupada com as idéias, a razão

e o julgamento, termos associados à mente, passando, assim, o conhecimento a ser puramente

conceitual, a relação da disciplina com os corpos e a corporalidade ficou comprometida.

Desse modo, exclui-se, então, por uma codificação implícita, não só o corpo da mulher como

a feminilidade, como uma ―desrazão‖ associada a eles. Por este prisma,

A Mulher (com maiúscula e no singular) permanece o eterno enigma da filosofica

[sic], seu objeto misterioso e inescrutável – o que pode ser um produto do estatuto

misterioso e altamente contido e restrito do corpo em geral, e dos corpos das

mulheres em particular, na construção da filosofia como um modo de

conhecimento. (GROSZ, 2000, p. 51).

Como entender a relação entre Mulher e Filosofia, eis a problemática levantada

por Elizabeth Grosz, sobretudo quando o quesito for conciliação. Se há uma apregoada

incompatibilidade entre elas, expressa pela associação entre corpo e mente, respectivamente,

fica-se a imaginar o que reserva um texto como o que figura em O quinze, para começar, que

traz como protagonista uma mulher pensante, como atesta o seguinte trecho narrativo, retirado

do final do primeiro capítulo da obra, e funcionando, aqui, também, como mais uma

apresentação da heroína de que se vai tratar.

Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas

de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista;

dizia-se alegremente que nascera solteirona.

Ouvindo isso, a avó encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não casa é

um aleijão...

─ Esta menina tem umas idéias!

Estaria com razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse umas idéias;

escrevia um livro sobre pedagogia , rabiscara dois sonetos, e às vezes lhe acontecia

citar o Nordau ou o Renan da biblioteca do avô.

Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que

lhe saíam as piores das tais idéias, estranhas e absurdas à avó.

Acostumada a pensar por si, a viver isolada, criara para seu uso idéias e

preconceitos próprios, às vezes largos, às vezes ousados, e que pecavam

principalmente pela excessiva marca de casa. (OQ, p. 05, grifos da autora).

Estando desde cedo posto que falar de Conceição é falar em O quinze de uma

mulher que pensa por si própria, a primeira dúvida reside em saber como fica a representação

desta mesma mulher quando o quesito for o corpo. Ou seja, em que pesa o corpo da

142

personagem, para que figure esta mulher de idéias no texto, é o que se pretende investigar, em

princípio, o mesmo procedimento sendo atribuído, mais adiante, às personagems Joana,

Macabéa e Maria Moura.

No caso de Conceição, de que maneira as ―idéias‖ da personagem, que tanta

estranheza causam, não só à avó, como a todos que com ela convivem, podem estar

implicadas para a composição da mulher representada por Rachel de Queiroz, no momento de

sua iniciação na Literatura Brasileira.

Uma hipótese levantada e que, aos poucos, vai sendo reforçada é a de que há

mesmo, em Conceição, a suposta divisão entre corpo e mente, restando apenas averiguar o

modo como ela se processa no texto queirozeano. Um primeiro dado está no fato de, em toda

a narrativa, o corpo da protagonista chegar em ―partes‖, de forma metonímica, induzindo a

suposição de que, se ela é ―uma mulher de idéias‖, há nisso uma preocupação da narrativa

para que haja ―menos corpo‖ no texto.

A imagem inteiriça do corpo de Conceição quase não aparece na obra, e, quando

aparece, é de forma generalizada ou superficial, como a passagem em que o narrador informa

que ela chegava à fazenda ―emagrecida pelos dez meses de professorado; e voltava mais

gorda com o leite ingerido à força, reposta de corpo e espírito graças ao carinho cuidadoso da

avó.‖ (OQ, p. 05). [Grifos nossos].

Ser gorda ou ser magra, diz muito pouco do corpo de Conceição ao leitor(a), que

precisa atentar para as informações deixadas alhures pelo texto se quiser montar uma

descrição corporal da personagem. Sabe-se, por exemplo, que a figura da moça impunha

respeito, pois era chamada por várias outras personagens por ―dona‖ ou ―doninha‖, talvez em

função mesma da profissão de professora que exercia; e que tinha vinte e dois anos, o que já

fazia dela uma velha para a época, conforme atesta o diálogo entre ela e Vicente, este

estranhando o fato da heroína, na cidade, ir, da escola para a casa, sem nenhuma companhia:

143

─ Mas eu, é porque sou uma professora velha, que vou para o meu trabalho! Uma

mocinha bonitinha não passeia só, não!

Ele ainda disse, levado pelo seu zelo de matuto:

─ Pois mesmo assim, sendo professora velha, como você diz, se eu lhe mandasse,

só deixava sair com um guarda de banda...

A moça encolheu os ombros:

─ Tolice! Mas vamos falar noutra coisa? Ande, conte o que há de novo no sertão!

(OQ, p. 55, grifo da autora).

Ainda assim, não é difícil perceber que a caracterização ―velha‖ está ligada muito

mais a um aspecto conceitual, dominante, ideológico, do que a um atributo físico. Era comum,

no período, o pensamento que media a passagem do tempo para a mulher de acordo com a

idade que a família burguesa julgava ideal para casar. E, de fato, sendo o casamento a razão

da existência das jovens da época, ter feito dezoito anos sem arrumar marido significava para

elas ter ficado ―moça velha‖, e daí não ter quem as quisesse mais, e por esta razão mesma.

Não é o que acontece com a protagonista de O quinze, como se pode depreender

da ilustração acima. Vicente, o primo de Conceição, nutre por ela um amor calado, que se

manifesta, embora de forma reticente, como que desconfiado da recepção dela. A heroína

queirozeana, por sua vez, não está alheia aos sentimentos de Vicente, todavia, procura se

defender desse amor, evitando falar do assunto e procurando ―falar noutra coisa‖.

Mais do que um ―corpo velho‖, estão no embate velhas idéias, que sempre

colocaram os seres em oposição. Neste caso, o fosso entre Conceição e Vicente também

aparece bem marcado: de um lado, a professora; de outro, o matuto, o tolo. Embora a

narrativa venha demonstrar que os dois têm o mesmo interesse pelo sertão, pela família, pelo

amor às criaturas, a neta de Mãe Nácia, neste e em outros momentos da obra, chega a ser

didática quando arrola para si mesma esta separação, apregoando uma falta de convergência,

resultado, sobretudo, do distanciamento intelectual entre os dois.

Um outro dado chama a atenção, na obra, ressaltando ainda mais a diferença entre

as personagens. Conceição, é sabido, trabalha fora de casa, condição ainda pouco comum para

a época em que se vivia. Embora fosse crescente o número de normalistas no início do século

144

XX, no Brasil, o país ainda estava se acostumando àquela novidade. O fato é que, esse

trânsito da heroína, fora do espaço doméstico, também contribui para outras perspectivas da

personagem, agora distintas das possibilidades sociais daquelas confinadas ao lar. Essa

―liberdade‖ da personagem, conquistada, soa a Vicente como uma preocupação, uma

necessidade de vigilância, caso ela estivesse sob a sua dominação. É ele quem afirma que, ―se

lhe mandasse, só deixava sair com um guarda de banda...‖

À medida que vai contrariando um costume, Conceição, ao que parece, procura

redefinir, no texto, o papel da mulher. Ao se comportar assim, denuncia o preconceito social

de que eram vítimas. Essa preocupação com as jovens solteiras, de que só andassem ―com um

guarda de banda‖, termina por revelar a situação de controle a que eram submetidas. Por

analogia, lembra o que escreve Foucault em Vigiar e punir (1987), sobre ―os corpos dóceis‖,

ou aqueles passíveis de adestramento. Para que haja uma espécie de ―saúde‖ na sociedade, a

medicalização dos corpos, tanto físicos quanto sociais, exige medidas preventivas. A

disciplina imposta às moças da época, então, era a forma de tê-las sob o domínio patriarcal,

que, evitando os desregramentos sociais, procurava poupar, por intermédio delas, a moral das

famílias.

Só que não cabe a Vicente o domínio de Conceição na narrativa, já que ele, ao que

parece, vai constituir o extremo oposto de Conceição. Pelo menos no que se refere ao assunto

da corporalidade, é assim que a matéria é tratada na narrativa. Na descrição da personagem,

logo abaixo, atente-se para o tratamento narrativo dado ao corpo do herói queirozeano:

Mal começou a dança, entrou Vicente, encourado, vermelho, com o guarda-peito

encarnado desenhando-lhe o busto forte e as longas perneiras ajustadas ao relevo

poderoso das pernas. A [sic] Conceição, pareceu que uma rajada de saúde e de

força invadia subitamente a sala, purificando-a do falsete agudo do gramofone, das

reviravoltas estilizadas dos dançarinos... (OQ, p. 10-11).

Como se vê, não há subterfúgios na representação corporal de Vicente. Mostrando-

se por inteiro, o corpo dele, autêntico, contrasta com a artificialidade dos janotas e isso agrada

145

à Conceição, enlevada talvez pelas idéias de originalidade, muito apreciadas na defesa do

regional. A cor vermelha, de sol, o busto forte e o poder das pernas traduzem-se em Vicente

como pura energia e ação, condizentes com o comportamento da personagem no texto, a

―teimar‖ com a própria seca.

E será sempre com esses termos que o corpo da personagem será identificado.

Visto em sua completude corporal, percebe-se que há em Vicente uma espécie de força

telúrica, que tanto atrai a prima, e habilita-o a enfrentar as calamidades da vida do sertanejo.

No auge da grande seca de quinze, mesmo quando todos migram em busca dos ares mais

frescos da serra, ou do refúgio das cidades, Vicente insiste, disposto a ficar e enfrentar o

horror dos longos períodos de estiagem:

Conceição, calada, olhava o primo. Estava mais bonito. Ficava-lhe bem, a roupa

cáqui; muito vermelho, queimado de sol, os traços afinados pela labuta

desesperada, as pernas fortes bronzeadas, as mãos pousadas no joelho, falava

lentamente com seu modo calmo de gigante manso.

Era o mesmo homem forte do sertão, de beleza sadia e agreste, tostado de sol,

respirando energia e saúde... (OQ, P. 55).

Decididamente, Vicente é uma personagem corpórea. Se a composição do corpo

de Conceição é um processo metonímico, que toma as partes pelo todo, como é possível

atestar mais adiante, o mesmo não ocorre com o corpo de Vicente. Sempre visto em sua

inteireza, ele é a própria metáfora da terra, com a qual se identifica, pois é tão forte quanto

ela.

Por outro lado, esta força, proveniente do convívio imediato com a natureza, e que

tanto fascínio exerce sobre Conceição, ao invés de aproximá-los, contribui mesmo para a

distância entre eles. É Maria de Lourdes Dias Leite Barbosa, professora de Literatura

Brasileira da Universidade Estadual do Ceará, que levanta a questão em sua dissertação de

Mestrado, posteriormente publicada em livro. É dela a seguinte afirmação, referindo-se aos

insustentáveis amantes de O quinze:

O moço também está apaixonado por ela, seduzido por sua inteligência brilhante,

mas, entre eles, existem diferenças que se agravarão com o passar do tempo, e uma

146

delas será a responsável pela separação: o olhar de Vicente dirige-se para a terra,

para a fazenda; ao passo que o de Conceição vai mais além, direciona-se para as

regiões distantes, que podem contribuir para o seu crescimento pessoal. Conforme

Benjamin Abdala Júnior (1995), a atuação dela, na cidade, junto às vítimas da seca,

e a obtenção de passagens para que Chico Bento e sua família partam para São

Paulo mostram que seu horizonte não se conforma à região. (BARBOSA, 1999,

p.36).

Essa interpretação leva a análise a considerar, também, o que escreve Roberto

Damatta (1997), quando reflete acerca da representação simbólica dos espaços da casa e da

rua, na sociedade brasileira. Quando elege ―casa‖ e ―rua‖ como categorias sociais, o

antropólogo se vale da defesa de que, no Brasil, tais palavras designam mais do que espaços

geográficos. Alçadas ao nível da metáfora, essas categorias terminam por revelar, em

determinados discursos, o que a sociedade pensa e de que modo, através delas, institui seus

valores e idéias.

Dentro da tradição de estudos históricos e sociais brasileiros, a idéia de ―casa‖

sempre aparece associada a um local de privilégios. É o local da família, sobretudo dos

domínios do patriarcado. Definindo-se como espaço do íntimo e do privado, a domesticidade

da casa vai se opor ao mundo externo a ela, representado pelo universo da rua. Ou seja, esses

espaços, agora de âmbito moral, se definem pelas fronteiras mesmas impostas por cada um.

Assim, elas aumentam ou diminuem de acordo com a unidade que surge como foco de

oposição ou de contraste.

Por exemplo, se é aceitável a identificação de Vicente com a terra, sempre

dedicado que é aos afazeres da fazenda; contribuindo para isso o que pensa Elódia Xavier

(1998, p. 34), quando afirma que a ―casa na ficção de Rachel, inclui a terra, constituindo um

patrimônio sólido e seguro‖, fica mais fácil entender a admiração que Conceição demonstra

para com Vicente, na festa, citada anteriormente, na casa do Major, outro personagem da

narrativa, no dia em que se comemorou a chegada do gramofone. O filho mais velho da casa

havia trazido dois colegas para passar as férias com ele no sertão e, aos olhos da heroína,

147

Vicente se destacava positivamente, contrastando com o ―pracianismo dos outros, de cabelo

empomadado [e] calças de vinco‖ (OQ, p. 11). Ou seja, pertencendo àquela terra e àquela

gente, a preferência por Vicente se dá por identificação. Todavia, não é sempre assim que

ocorre com a heroína, que vai mudando em O quinze, a cada saída sua para a capital cearense.

Estas saídas, sempre lamentadas por Vicente, concorrem substancialmente para um

distanciamento cada vez maior entre eles. Ao sair, ainda no encalço de Damatta (1997, p. 57),

é como se Conceição deixasse para trás todo um espaço de subjetividade, marcado pela

distinção da casa como sinônimo de calmaria, repouso, recuperação, hospitalidade e tudo o

mais que envolve a idéia de amor, carinho e calor humano. A rua é sempre um ―local

perigoso‖, o local da objetividade, da exposição, do embate corporal. Sujeita a toda sorte de

perigos, a rua, sobretudo para a mulher, representa um lugar onde ela pode ser confundida, ou

tomada pelo que não é, residindo nisso também a preocupação de Vicente com Conceição,

que andava sozinha pelas ruas de Fortaleza.

Na discussão sobre o corpo da heroína, em O quinze, bem como na certeza de que

ele se manifesta na obra, ainda que ―aos pedaços‖, é possível fazer um levantamento das

imagens corporais diluídas e reiteradas no romance. Destas imagens, algumas fazem menção

às mãos, aos braços, aos olhos e aos cabelos de Conceição. Dispostas aqui e além, somente

quando rastreadas é que se percebe que uma ou outra entra na discussão da pauta narrativa,

praticamente inexistindo os casos em que estas imagens edificam o corpo inteiro da

protagonista.

Na constituição deste levantamento de imagens corporais, observa-se, todavia,

que, às vezes, à mão, associam-se outras partes do corpo da personagem, como os braços, ou

parte dele; os olhos; ou, ainda, a cabeça; especificamente os cabelos. E sendo a parte do corpo

referente ao cabelo de Conceição bastante recorrente, o mais comum no texto, entretanto, é

ela aparecer em intersecção com outras imagens que surgem do corpo dela.

148

As imagens, de partes do corpo da heroína, reiteradas ao longo do romance, a

constituir o que se nomeia, neste estudo, uma representação metonímica do corpo de

Conceição, em O quinze, convidam o(a) leitor(a) a pensar um pouco sobre elas.

Em relação às mãos, percebe-se, nas imagens coletadas, que elas se apresentam

distintamente. O narrador se refere a elas, no singular, em momentos de individualização da

personagem, representada na intimidade de um cumprimento e na domesticidade de uma

convivência, ―De fora, beijou a mão da tia e apertou ainda uma vez a de Conceição‖ (OQ, p.

23); ou a elas se refere em sentido plural. Nestes casos, mais do que um mero elemento de

particularidade da moça, as imagens sugerem o envolvimento dela com seus pares ou

semelhantes, seja pela idéia de ela e Vicente serem um casal, ainda que no papel; como

aparece na certidão de batismo, que os autoriza padrinhos de Duquinha, ―mãos juntas, unidas

(...) sobre a cabeça do neófito‖ (OQ, p. 65); seja quando, por suas mãos, Chico Bento

consegue as passagens que conduzirão a família a São Paulo, em busca de vida melhor.

―Numa efusão repentina [Cordulina], agradecida pela intervenção de Conceição, abraçou a

moça, beijando-lhe as mãos‖ (OQ, p. 83).

Neste último modelo, o(a) leitor(a) está diante de mãos que simbolizam em O

quinze. União e reconhecimento se encontram nestas imagens. As ―mãos juntas‖, unidas pela

autoridade eclesiástica, no primeiro momento narrativo, termina por revelar desejos secretos

da personagem, de ter uma relação amorosa oficialmente consumada. Já no segundo, são

mãos solidárias que se apresentam, reveladas na gratidão de Cordulina, que vê no gesto de

Conceição um ato de caridade.

As mãos de Conceição são mãos que doam. Mais do que metaforizar um desejo

que termina por esvair-se da personagem, elas metaforizam ação. E representam bem o ato

voluntário da jovem que se desdobra no texto entre o exercício do professorado, visto

acriticamente já como missão ou doação; e o trabalho mesmo que desenvolve no Campo de

149

Concentração. ―Ela faz parte do grupo de senhoras que distribuem comida e roupa aos

flagelados.‖ (OQ, p. 53). No entanto, a parca distribuição dos víveres, concedidos pelo

Governo e, muitas vezes, mal divididos, como o caso relatado de uma mulher, protegida de

uma das senhoras, a quem não faltava café, açúcar e pão (p. 81), levava os retirantes a pedir

esmola a quem passasse pelo Campo, experiência vivida por Conceição:

Às vezes uma voz atalhava:

─ Dona, uma esmolinha...

Ela tirava um níquel da bolsa e passava adiante, em passo ligeiro, fugindo da

promiscuidade e do mau cheiro do acampamento.

Que custo, atravessar aquele atravancamento de gente imunda, de latas velhas, e

trapos sujos! (OQ, p. 40).

Conceição chegava a passar quase o dia inteiro no Campo de Concentração,

cuidando dos condenados pela seca. ―De vez em quando porém, a avó tinha que repreendê-la

por quase não comer, por sempre chegar em casa atrasada, por consumir todo o ordenado em

alimentos e purgantes para os doentinhos do Campo‖ (OQ, p. 94). E apesar de reclamar desta

alteridade em Conceição, a própria avó termina por reforçá-la em atos semelhantes. ―E sua

bolsa de couro preto já estava com a mola gasta de tanto fechar e abrir‖ (p.95), em

atendimento à solicitação dos pedintes.

Enquanto símbolos de doação, as mãos de Conceição extrapolam a característica

física e entram no domínio das idéias, de uma consciência do Outro narrado, desdobrada no

fazer da protagonista. Talvez por isso mesmo, embora o exemplo seja pontual, ganhe

importância a supressão do vocábulo mão, em trecho já citado, em que o referente aparece no

singular. Trata do momento em que Vicente, despedindo-se das duas, beija a mão da tia e

aperta mais uma vez ―a de Conceição‖. A elipse acaba sendo sugestiva a esta interpretação,

pois, aparecendo a imagem das mãos de forma distinta, se uma delas é omitida, impedida que

é de aparecer, abre-se espaço para os significados da outra. O que não seria de todo absurdo,

sobretudo numa narrativa com tendências duais. Embora a imagem plural apareça em menor

150

ocorrência, é dela, de fato, que o texto vai tratar, consolidando, assim, as preocupações sociais

do romance queirozeano, manifestadas, aqui, simbolicamente.

Falando em omissão, a imagem dos braços, vistos por si sós, quase não assume

uma forma explícita no texto. E o(a) leitor(a), se quer chegar até eles, vai pela dedução das

mãos. Necessários eles se fazem para conduzi-las ao alto, por exemplo, quando a personagem

arruma os cabelos em coque, na cabeça, ou faz deles uma trança. Aliás, é nesta parceria com

os cabelos que, de forma dedutiva, a suposta imagem dos braços mais se justifica.

Diferentemente são os olhos tratados em O quinze. Presumindo-se que há em

Conceição mãos que doam, há, também, olhos que analisam e estes são reiterados no romance

nesta perspectiva de análise mesma. Se, de uma forma geral, algumas partes do corpo da

personagem aparecem associadas aos livros, os olhos, como são de esperar, mantêm com eles

uma relação muito singular.

Olhos que perscrutam, olhar que denuncia, parece ser esta a intenção de visão da

personagem na narrativa. Longe de associá-los a ―janelas‖ através das quais adentravam-se à

alma, sobretudo à alma feminina, como insistiam os românticos, os olhos de Conceição fazem

um movimento inverso. São olhos de mulher, que espionam o mundo no que ele tem mesmo

―de fora‖. Talvez esta parte do corpo da protagonista no romance se aproxime mais da

imagem, também já gasta, de olhos ligados ao campo semântico da luz, e, por extensão, do

saber, do conhecimento, o que reforça ainda mais a relação deles com os livros em O quinze.

Se o saber ao longo da História sempre representou um ―perigo‖ para os homens

em geral, para a mulher nem se fala. Interessante notar no texto a preocupação de Mãe Nácia,

associando a magreza de Conceição ao excesso de leituras que, aliás, considera tolices.

Enquanto lê para se documentar, como afirma a heroína, tendo comumente à mão livros de

estudos considerados sérios, a avó indaga para quê uma moça precisa daquilo, principalmente

151

se não pretende ser doutora ou escritora. Para Mãe Nácia, Conceição, se comportando assim,

em vez de casar, torcia a ―sua natureza‖ (p. 92).

Como se vê, destino/natureza e cultura rivalizam nesta expressão. Sendo

inconciliáveis, como pensa a avó, isto não leva a outra situação a não ser àquela em que a

moça, para não fugir à metáfora queirozeana, ―acaba ficando na peça...‖ (p. 92). A tradição

compreendendo o casamento como destino de toda mulher, quando esta, não o tem como

meta prioritária, como faz Conceição, mais preocupada que está com sua aprendizagem, acaba

por criar confusão, uma vez que perturba a ordem das coisas, e escapa ao controle que a

sociedade procura ter sobre estas questões.

Outro equivocado conceito que aparece em O quinze liga o estudo à debilidade

física, como foi mencionado anteriormente. Não data de tanto tempo assim a idéia

preconceituosa e que ainda perdura em situações de senso comum, de o indivíduo, quando

dedicado, acabar definhando de tanto estudar. E não é por menos que a avó de Conceição,

julgando a vida da neta orientada pelos livros que ela lia, previne, de forma imperativa: ―─

Pois vá-se guiando por heroína de romance, e depois não acabe tísica...‖ (OQ, p. 95).

A vida de Conceição em O quinze não é um romance, pelo menos não nos moldes

da tradição romântica em que as heroínas acabavam, de fato, doentes. O ―mal do século‖,

denominação de uma fase contextual, histórica, a que esta análise se reporta, é uma síntese

que representa bem ocorrências da segunda metade do século XIX, fundindo Literatura e

realidade. Ao surto de tuberculose que se alastra pela Europa, neste período, somam-se as

intenções de escritores, num projeto ideológico que apregoa a arte de ―morrer de amor‖. E não

são raros os enredos românticos em que os heróis, mal sucedidos na aventura amorosa,

acabam somatizando, ou seja, trazendo para o corpo o que era conflito do espírito.

A preocupação de Mãe Nácia no texto, por sua vez, conduz a reflexão, aqui, a um

outro ponto de vista, o da mulher, enquanto leitora, e leitora de folhetim apenas. Sabe-se que a

152

participação da mulher é fundamental, no período que coincide com o Romantismo em

Literatura, para a formação de um público leitor. Inicialmente, a freqüência com que

acompanhava as novelas folhetinescas muito contribuiu para a constituição do romance, na

formatação em que se conhece hoje. Todavia, esta contribuição ainda hoje, em muitos casos,

parece querer se esgotar naquela fase inicial. De forma retrógrada, a mulher tem a sua

capacidade enquanto leitora subestimada, recebendo a pecha de que só lê romance. E nessa

visão, que faz dela uma alienada, tem a sua compreensão reduzida, de forma preconceituosa, a

enredos de amor, de preferência, com música romântica ao fundo.

Se o fato de ler já exige para a mulher um ―policiamento‖, e Mãe Nácia lembra

bem de que, na época dela, jovem, era assim que as coisas se passavam, isto explica o absurdo

que significa para a avó vê Conceição envolvida com teorias, tratados e outros estudos de

cunho científico:

Dona Inácia tomou o volume das mãos da neta e olhou o título:

─ E esses livros prestam para moça ler, Conceição? No meu tempo, moça só lia

romance que o padre mandava...

Conceição riu de novo:

─ Isso não é romance, Mãe Nácia. Você não está vendo? É um livro sério, de

estudo...

─ De que trata? Você sabe que eu não entendo francês...

[...]

─ Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos

maternais, do problema... (OQ, p. 92, grifo nosso).

Dispensando as indicações dogmáticas, as leituras de Conceição introduzem no

texto o que o mundo mais tarde conheceria como luta pela emancipação feminina. A

narrativa mesma manifesta isso, citando trechos, recuperados mentalmente por ela, num

momento em que percorria com a vista o que estava lendo, como atestam as ocorrências

textuais, situadas com o devido destaque dado pela autora de O quinze:

―A gente precisa criar seu ambiente, para evitar o excessivo desamparo... Suas

idéias, suas reformas, seu apostolado... Embora nunca os realize... nem sequer os

tente... mas ao menos os projete, e mentalmente os edifique...‖ (OQ, p.93);

―E a eterna escrava vive insulada no seu próprio ambiente, sentindo sempre que

carece de qualquer coisa superior e nova...‖ (OQ, p.94).

153

Aí estão, sob referência, as idéias de um feminismo em Rachel de Queiroz. Em

vida, porém, a escritora foi sempre muito cautelosa quanto a esta caracterização, chegando

mesmo a negá-la, veementemente, quando indagada sobre tal afirmação. Mas, ainda que

considerando respeito pelas posições dela, e cada um é que sabe das suas estratégias políticas

de sobrevivência, não se imagina a autora, sobretudo em O quinze, sem que pese sobre suas

idéias um crivo feminista.

A mulher, representada por Conceição, e com vistas emancipatórias, projeta-se no

romance. A heroína queirozeana trabalha, estuda, exerce a sua cidadania e discute

relacionamentos, bem como exige direitos sobre si mesma, exercitando-se num processo de

construção de identidades tão caro, é fato, às feministas mais recentes. E se, vítima do próprio

contexto, vê-se impedida de desenvolvimento em plenitude, sendo sua ―reforma‖ edificada

apenas mentalmente, a semente de uma visão crítica está na obra mesma, carente de

germinação.

Em se tratando da concepção da personagem no romance, é difícil afirmar,

também, que ela se represente, então, isenta desta nova percepção. Aqui, sim, valeriam as

preocupações de Mãe Nácia sobre as influências das leituras realizadas pela protagonista, na

obra. Conceição, o tempo todo da narrativa, busca essa ―qualquer coisa‖ de nova e superior,

para o que concorre a expressividade do olhar dela no texto.

Aliás, é preciso separar os olhos, parte do corpo, do ―olhar‖ da personagem, ou

suas intenções de visão, parecendo dominar sobre este último a perspectiva da narração.

Concorrem, para isso, as expressões, mesmas, ilustradas anteriormente. Os olhos da

personagem ―doem‖, pela miséria vista, e eles, sempre atentos ao ambiente, ―reconhecem‖,

―absorvem‖, ―circunvagam‖. Todos estes semas se identificam mais com o ―olhar‖. E mesmo

a dor sugerida, no primeiro caso, não pertence ao corpo, é proveniente de uma visão, de um

ponto de vista, portanto, reconhece-se nela mais uma operação mental do que corporal.

154

Privilegiando sempre as idéias, em detrimento do corpo, é o olhar, como lente de

uma perspectiva, que domina, mesmo quando, em alguns casos, são os olhos que se

apresentam. Dão bem a tônica disto, as expressões ―olhos perdidos‖ (OQ, p.72), ―olhos

distraídos‖ (OQ, p.89) e ―olhos escuros‖ (OQ, p.91), colhidas no texto. Elas, dispostas assim

como estão, são perfeitamente passíveis de substituição. Parecem ser mais coerentes os

termos ―olhar perdido‖ e ―olhar distraído‖, sem falar que o escuro dos olhos, considerado o

contexto em que a frase figura, aponta conotativamente para uma profundidade na

observação.

Tudo isto em O quinze está em consonância com o que se vem detectando como

uma espécie de aspecto fugidio do corpo, este que escapa sempre, ainda que sob a sugestão de

suas partes. Numa situação em que o narrador se refere à ―face assustada‖ (OQ, p.89) de

Conceição, por exemplo, registra-se uma dificuldade para a apreensão da imagem corporal

que, de fato, lhe pertença, uma vez que se afigura aí muito mais a transitoriedade de um gesto,

de uma arte mímica, do que uma descrição física dela.

Se Conceição é combativa no texto, parecendo insurgir-se contra a perspectiva de

um ―destino de mulher‖ em O quinze, ela também é vencida por um golpe do ―baixo corpo‖,

ao ter a sua maternidade negada na obra. Neste quesito está, de forma patente, a fragilidade da

protagonista. Até a energia que demonstra, quando defende a sua solteirice, ao dispensar

Vicente, por exemplo, difere da forma com que atesta em algumas passagens da narrativa a

impossibilidade de ser mãe.

Estaria nisso, talvez, o impasse da personagem Conceição, dividida entre idéias

incorpóreas. Ela assume, no texto, a obrigação da maternidade pelo desejo manifestado na

atenção que dedica às crianças na narrativa. São muitas as referências aos meninos da seca,

crianças mortas de fome, envenenadas ou comidas por outros flagelados famintos. Além de

155

mencionar esses pequenos, apresenta ainda a filharada dos retirantes, sempre esfomeada ou

doente, não escapando desta os filhos de Chico Bento.

A presença infantil está até em momentos de reflexão e leitura, como esta, em que,

pensando alto, declara acerca da condição feminina: ―─ É preciso criar seu ambiente... e até

no meu, brinca uma criança...‖ (OQ, p. 94). Essa atenção concedida às crianças, inicialmente

sugerida como elemento de alteridade, denuncia, no decorrer dos acontecimentos, interesses

individuais, resguardados para a condição de mãe. E se esse interesse permanecerá no texto

enquanto manifestação de um desejo, a impossibilidade de efetivá-lo está também na ausência

de corpo da heroína, incapacitando-a para a gestação.

Como se vem afirmando, quase não há referências às ―partes baixas‖ do corpo de

Conceição e, decididamente, não é pelo pensamento que se geram os filhos. Assim é que,

desejando ser mãe, a heroína vai buscar outras formas de realização materna, como a adoção

do afilhado Duquinha, por exemplo. Antes disso, porém, Conceição exerce uma espécie de

―maternagem‖ no Campo de Concentração, quando cuida das vítimas do flagelo,

especialmente das crianças. Eram elas a maior causa de preocupação da heroína e era a elas

que se dirigia, assim que chegava ao serviço voluntário, ―ajudando a tratar, vendo morrer às

centenas as criancinhas lazarentas e trôpegas que as retirantes atiravam no chão, entre montes

de trapos, como um lixo humano que aos poucos se integrava de todo no imundo ambiente

onde jazia.‖ (OQ, p. 94).

Ao que parece, se há um código cifrado para o amor materno, a tarefa do cuidar

pertence a ele. E se a maternidade falta à Conceição, ela compensa isto cuidando dos que com

ela convivem. O próprio desvelo com a avó ganha ares de maternal. E se for considerado que

o idoso, nesse aspecto, assemelha-se à criança, numa teia de relações solidárias, como faz

crer, pelo menos em parte, a existência dela em O quinze, é compreensível que, em

156

determinada etapa da vida, filhos cuidem dos pais e netos cuidem dos avós quando for

chegada a velhice.

Conceição fora criada pela avó e isto traz sérias implicações para a personagem.

Se, por um lado, já representa uma das várias ausências do materno no texto, por outro, ou

talvez por isso mesmo, contribui para a formação da mulher autônoma que Rachel de Queiroz

busca representar. Provavelmente, ser órfã de pai e de mãe tenha ajudado a personagem

queirozeana a erguer-se, cuidando dos outros, mas, cuidando, principalmente, de si mesma.

A própria mudança na célula familiar, inicialmente constituída por laços de

sangue, vai se dilatar, em O quinze, sendo constituída, mais tarde, por laços de afetividade,

desenvolvida na criação do afilhado. Não se corporificando em plenitude, a personagem não

pode gerar. Daí é que ela, atingida pela felicidade doméstica da prima, com sua filhinha, por

exemplo, sublime a falta dos filhos concebidos, lembrando a si mesma de que é mãe de

Duquinha, o filho cedido, que corre em sua direção:

À vista do menino, adoçou-se a amargura no coração da moça.

Passou-lhe suavemente a mão pela cabeça; e pensou nas suas longas noites de

vigília, quando Duquinha, moribundo, arquejava, e ela lhe servia de mãe.

Recordou seus cuidados infinitos, sua dedicação, seu carinho...

E, consolada, murmurou:

─ Afinal, também posso dizer que criei um filho... (OQ, p. 112, grifo nosso).

Duquinha é o filho que a vida reservou para Conceição e ela procurou recebê-lo de

bom grado. Mas, fica claro, não substitui os filhos não nascidos. Ela ―serve‖ de mãe para ele,

não é a mãe dele, nisto estando a diferença entre desejo e realização. De qualquer forma, a

personagem encontra consolo em criar um filho, ainda que não o tenha concebido.

E, por falar em criação, é importante que não passe despercebido que a heroína já

traz no nome uma marca que a associa ao materno. Conceição vem de concepção, daquela que

concebe, que cria. Todavia, é de uma outra fecundação que parece tratar o texto. Em O

quinze, ela é uma personagem ―grávida‖ de idéias e por elas abre mão até mesmo da

descendência.

157

Nos limites entre o corpo e a mente, a maternidade para a protagonista permanece

no romance enquanto idéia, sublimada, no texto, pelo processo de adoção. Do ponto de vista

da concepção autoral, Conceição é uma mulher independente, decidida e avançada para a

época. A imagem, criada por Rachel, evolui muito em termos de comportamento, se

considerado, por exemplo, o perfil romântico das heroínas tradicionais. Ela é uma mulher que

lê, que discute assuntos antes só tratados por homem e difere das outras por apresentar

opinião formada. É tão decidida que não se entrega ao amor, por força intelectual.

A heroína de Rachel de Queiroz, numa maneira incomum, apesar de instalar-se

com as Rodrigues, vive sozinha na capital cearense, garantindo, no exercício da profissão, o

próprio sustento. Em O quinze, é da protagonista a decisão de não se casar, pouco lhe

importando o que uma sociedade inteira venha a pensar dela. Ou seja, tudo isto aflora para

uma nova figuração, a da mulher intelectual, pouco presente, à época, na Literatura Brasileira.

É verdade que esta é uma representação ainda em estágio germinal e, por isso

mesmo, oscila entre avanços e reduplicações do pensamento sobre a mulher. A condição de

mãe, negada à Conceição, por exemplo, é resultado de um investimento mental para a

personagem, que tem o corpo esvaziado ao longo da narrativa. Apesar disso, a heroína,

fecunda de razão, não tarda a encontrar mecanismos, na obra, de escapar à insatisfação

causada pela ausência de realização materna.

Mais uma vez, como já foi repetida, está armada a equação cartesiana. Para o

império da mente, que morra o corpo, impedido de reproduzir, de procriar, de desenvolver.

Este é o tributo pago pela heroína insurgente. E nisto não há novidade. Há repetição. Se por

um lado esta, em O quinze, encerra uma coerência de uma composição narrativa, em meio ao

universo nele narrado, de outro, quando problematizada, denuncia, ainda que de forma pálida,

o desejo de afirmação da mulher, sob o fogo cruzado da dominação masculina.

158

O corpo, como se sabe, representado em sua pluralidade ou em sua unidade, muito

diz do sujeito por ele esboçado. E se vale a pena insistir, como lembra Elisabeth Grosz (2000),

contra as perspectivas platônico-cartesianas, desconstruindo qualquer hierarquia rígida,

sobretudo para o que diz respeito às relações entre corpo e mente, vistos de forma distinta em

O quinze, esta é uma atitude carente de ser redimensionada também em Perto do coração

selvagem.

Ou seja, o mundo representado por estas obras se encontra cindido. Tanto Rachel

de Queiroz quanto Clarice Lispector assumem a perspectiva da bipolariadde em seus

romances, sobretudo os primeiros, selvagens, porque inaugurais, ficando mesmo difícil

apontar, neles, elementos que sejam da ordem da zona de fronteira, ou da intermediação de

sentidos do corpo, para o que se constituiria, de fato, um novo perfil de representação.

Basta, para tanto, dizer que o dualismo, embora considerado artificial, se manifesta

na obra clariceana, por exemplo, já na mundividência que separa na personagem Joana a

criança da adulta. Se há, independente do ambiente de seca, em O quinze, um processo de

secura, na tentativa de auto-afirmação da personagem Conceição, como quer Vilma Arêas

(1997), aridez semelhante é identificada na heroína do primeiro romance publicado por

Lispector, buscando, na trilha do selvagem, refazer-se sempre para, na perspectiva de

encontrar algo novo, dar significado ao seu existir.

Joana é uma personagem inquieta e pouco conformada à situação. Já em menina se

mostra sensorial e racionalmente atenta, buscando apreender, em sua precocidade, as coisas

que lhe cercam. Não raro o(a) leitor(a) com ela se depara, a exercitar-se em suas filosofias de

criança, como atesta esta seguinte passagem do romance: ―Afastou o pensamento difícil

distraindo-se com um movimento do pé descalço no assoalho de madeira poeirento.‖ (PCS, p.

14).

159

Estar absorvido(a) em pensamentos leva as criaturas a desenvolver, às vezes,

certos cacoetes, como este, quando Joana, extremamente atenta, acompanhando a conversa do

pai com um amigo, acerca da mãe Elza, ―riscava com a unha o couro vermelho da velha

poltrona.‖ (PCS, p. 27). Esta passagem da narrativa, acerca da atitude reflexiva da menina, a

título de ilustração, faz lembrar a mania de Conceição, em O quinze, quando, numa situação

semelhante, costumava riscar as pregas do próprio vestido.

Pensar parece ser a ―brincadeira‖ preferida de Joana, que arquiteta mil maneiras

dela se ocupar. Inventa poesias, fantasia festas para a boneca preferida, faz de pedaços de

papelão os seus alunos, alguns diletos e outros não, e imagina para ela mesma um

homenzinho ―do tamanho do fura-bolos‖ (PCS, p. 15), disposto em servi-la, já que a menina

se mantinha em sua ―ocupação‖.

Quando se acha esgotada de idéias e, desconsolada, reclama ao pai o que fazer,

este, depois de várias sugestões, a ela inúteis, dispara: ―─ Bata com a cabeça na parede!‖

(PCS, p. 17). Naturalmente, a esta inventiva Joana sucede uma adulta também desejosa de se

reinventar, embora não saiba exatamente em quê.

Da menina, ainda, algumas imagens corporais são apresentadas, dela avultando o

pequeno ser. É magrinha (PCS, p. 17), inclusive de pernas (PCS, p. 37), tem ―rosto branco‖ e

―mão rósea‖ (PCS, p. 16), ―olhos escurecidos‖ (PCS, p. 37) e ―pés escuros e finos como

galhos‖ (PCS, p. 39). A este edifício corporal que se vai montando, de formas e colorido

infantis, somam-se outras características de Joana, quase mocinha.

Destaque-se desta fase uma cena do romance, mais especificamente a que ela

ouve, atrás da porta, uma decisiva conversa entre os tios. O corpo da garota, num exemplo de

isomorfismo em Clarice Lispector, vai se adequar à imagem que a tia faz dela quando,

motivada talvez pelo comportamento que se sabe reprovável, o de ouvir atrás da porta,

tremula os ombros. Numa reprodução, ao que parece, dos movimentos intermitentes da

160

víbora, com quem a tia a compara. A menina, com isso, assinala a identidade entre elas. ―Até

seus ombros, que ela considerava tão distantes de si mesma, palpitavam vivos trêmulos.

Quem era ela? A víbora.‖ (PCS, p. 51).

Talo ―frágil‖, porém ―ardente‖, é a Joana mocinha que se conhece, também, em

crise de identidade mediante a atraente esposa do professor, quando por este a heroína se

encontra enamorada. É numa situação de confusão sentimental, em resposta à convulsão de

choro, que se dá o diálogo abaixo, entre a menina e o seu mestre:

— É que sou feia – respondeu obediente, a voz presa na garganta.

[...]

— [ ...] Quem disse que você é feia? – riu de novo. — Levante-se.

[...]

— Um pouco sem forma, ainda, convenho, mas tudo isso vai melhorar, não se

perturbe, disse ele. (PCS, p. 57-58).

Apesar da imprecisão da forma, o professor enxerga a diferença entre a Joana que

se apresenta a ele, em sua pureza primitiva, e as mulheres com as quais se relaciona, daí o

narrador afirmar, colando-se à sua voz:

―Ela‖, a esposa, era mais bonita? A ―outra‖ também o era. E a ―outra‖, de hoje à

noite também. Mas quem tinha aquela imprecisão no corpo, as pernas nervosas,

seios ainda por nascer – o milagre: ainda por nascer, pensou tonto, a vista escura -,

quem era como água fresca e clara? (PCS, p. 58-59).

Há nostalgia neste pensamento do professor, mas há também a esperança

depositada no vir a ser de Joana. É ele que distingue a sua pupila daqueles outros, ―feitos de

terra que sem adubo nunca florescerá‖. A menina, diferentemente destes, assegura, pertence

àqueles ―que matariam para florescer.‖ (PCS, p. 53). Ele também que prevê para a

personagem, ainda, uma felicidade insólita. Uma ―felicidade que poucas pessoas invejarão‖. E

complementa, sentenciando sua solidão: ―nem sei se poderia chamar de felicidade. Talvez

você não encontre mais ninguém que sinta com você, como...‖ (PCS, p. 56).

Focada, já, em questões que serão permanentes na Joana adulta, a Joana menina

leva uma vantagem sobre aquela, quando consegue estabelecer uma mediação entre o seu

corpo e sua mente. Isto se nota, por exemplo, no episódio do café-da-manhã que toma, antes

161

de se dirigir à casa da tia, onde vai morar depois que o pai morre. O bolo escuro e de gosto

horrível que experimentara na refeição daquela manhã, pensava a menina, ―pesava-lhe no

estômago e dava-lhe uma tristeza de corpo que se juntava àquela outra tristeza‖ (PCS, p. 35).

Entre reações internas e reações externas, o comportamento de ojeriza que a

menina assume, diante da tia, em nada fica a dever à náusea, do romance homônimo de Sartre

(2005). Entretanto, em plano mais pragmático, assim se dá o encontro entre as duas:

Nova onda de choro rebentou no seu corpo [da tia]. Joana recebeu beijos

angustiados pelos olhos, pela boca, pelo pescoço. [...] Joana fechou os olhos um

instante, engoliu o enjôo e o bolo escuro que lhe subiam do estômago com arrepios

por todo o corpo.

[...]

— Me deixe! – gritou Joana agudamente, atendo o pé no chão, os olhos dilatados, o

corpo tremendo. (PCS, p. 36-37).

Joana, na verdade, não compreende a efusão de afeto demonstrada pela tia,

postiça, é preciso que se diga, já que o marido dela é que é irmão do pai da heroína, e a quem

via pela primeira vez. A náusea, física, que aí se instala, é da menina, sem dúvida, mas

também é da narração que parece rejeitar as relações que procuram se pautar na aparência ou

no sentido da obrigação. Além dos gestos, tudo na tia se mostrava a Joana em demasia. As

―mãos gordas‖ e os seios, que cresciam com os soluços, ameaçavam sufocar a menina. ―Os

seios da tia podiam sepultar uma pessoa!‖ (PCS, p. 37). E dentro deles Joana a escuta como

se através de um travesseiro. (PCS, p. 36).

Mesmo a precocidade de Joana não suporta o espetáculo dos negativos excessos. A

menina, horrorizada, foge da casa da tia em direção ao mar, só neste ambiente se dando conta

da extensão e profundidade que significava para ela a perda do pai. ―O pai morrera como o

mar era fundo! compreendeu de repente.‖ (PCS, p. 39). Movida, então, pela força de tais

sentimentos, o corpo da jovem, não suportando mais, traduz, jorrando para fora, todo o seu

teor de rejeição. ―Sem se conter mais, a cólera e a repugnância subiram-lhe em vagas

violentas e inclinada para a cavidade entre as rochas vomitou, os olhos fechados, o corpo

doloroso e vingativo.‖ (PCS, p. 38).

162

Há, sem dúvida, um corpo sensível para a heroína de Perto do coração selvagem.

E, neste aspecto, bem se vê, a mulher que se representa, principia a se distanciar da

simbolizada por Rachel de Queiroz, através de Conceição. Se em O quinze a protagonista,

negada em sua corporalidade, se vê envolvida por um projeto narrativo que separa à maneira

cartesiana, o corpo da mente, o primeiro romance clariceano, em vez de recusar o corpo,

busca dar-lhe relevo. Em vez de negá-lo, descobri-lo, revelá-lo, em suas múltiplas

manifestações, parece ser a nova tônica da exposição. No entanto, do corpo inicialmente

insurrecto da jovem, o(a) leitor(a) se encaminha para a percepção do corpo adulto de uma

Joana insatisfeita e intelectualmente distante dele.

Em mocinha, ainda, no quarto de banho do internato, Joana descobre, entre feliz e

posteriormente culpada, um corpo todo seu.

A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios

pequenos brotaram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas

emergiu da infância. Estende uma perna, olha o pé de longe, move-o terna,

lentamente como a uma asa frágil. Ergue os braços acima da cabeça, para o teto

perdido na penumbra, os olhos fechados, sem nenhum sentimento, só movimento.

O corpo se alonga, se espreguiça, refulge úmido na meia escuridão – é uma linha

tesa e trêmula. Quando abandona os braços de novo se condensa, branca e segura.

Ri baixinho, move o longo pescoço de um a outro lado, inclina a cabeça para trás –

a relva é sempre fresca, alguém vai beijá-la, coelhos macios e pequenos se

agasalham uns nos outros de olhos fechados. – Ri de novo, em leves murmúrios

como os da água. Alisa a cintura, os quadris, sua vida. (PCS, p. 65).

Uma mulher nasce aí, descobrindo o próprio corpo gerado da água, princípio

selvagem da vida. A água que ―borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira‖ (PCS,

p. 64), se faz vapor, embaça espelhos, reflete, nos mosaicos úmidos, o corpo nu da jovem. No

contato com a água, a menina-mulher se toca, se sente. Água que pesa sobre o seu corpo, que

se faz maré, invadindo-a e levando a constatar: ―Sobre o mesmo corpo que adivinhou alegria

existe água – água.‖ (PCS, p. 65).

É verdade que após esta cena, em que desperta para o corpo que tem, é com o

desconforto da personagem que o(a) leitor(a) vai se deparar. Joana, imediatamente ao que

ocorre, assume uma atitude séria, questiona-se, agita-se e procura fugir dela mesma no texto.

163

―Enxuga-se sem amor, humilhada e pobre‖ (PCS, p. 66). Ao que parece, sucede à tentativa

ainda de comunhão com o sensível, uma interferência do inteligível, para o que é bastante

conivente, nesta perspectiva opositora, a referência a um corpo humilhado.

À medida que cresce, não é que Joana, na obra, vá ter o corpo negado. Mas,

também, já não há, se é possível dizer, um interesse sobre ele, a narrativa de Perto do coração

selvagem se voltando para questões de ordem mais conceitual e intelectualizada, portanto.

Exemplo disto está na pouca importância dada às partes corporais da Joana adulta. Em vez

disto, o texto esmera-se em fornecer designações do corpo dela. Deste modo a heroína é

focalizada em seu ―corpo sofredor‖ (PCS, p. 96), ―corpo dolorido‖ (PCS, p. 97), ―corpo

doente‖ (PCS, p. 98), ―Corpo feito para o amor‖ (PCS, p. 99), ―corpo iluminado‖ (PCS, p.

106), ―corpo insensível‖ (PCS, p. 106) e ―corpo flutuante, sem apoio, quase inexistente‖

(PCS, p. 181), este último muito significativo para o que aqui vem sendo defendido.

O corpo de Joana não é metonímico como o de Conceição. Personificado a partir

das ilustrações acima, ele é, antes de tudo, um corpo vivo, como a narrativa clariceana

redunda ao dizer. Não constituindo matéria na vida adulta de Joana, o corpo da heroína é,

antes de tudo, um conceito. E assim sendo, dele tem consciência, como demonstra a seguinte

passagem narrativa:

[...] tudo o que eu não sou não pode me interessar, há impossibilidade de ser além

do que se é – no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu

quase normalmente -; tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação do

meu começo (PCS, p. 20, grifo nosso).

Tal afirmação, em Clarice Lispector, faz lembrar, em contrapartida, Georges

Bataille (1988) quando afirma que há uma busca psicológica no erotismo e isto é o que o

difere da mera atividade sexual, independente do fim natural da preocupação em procriar. É

que, erótica, no texto, e a personagem mesma admite haver ―muitas sensações boas‖ (PCS, p.

44), da mesma forma que Otávio, avaliando o corpo dela, em movimento, atesta-lhe uma

sensualidade excessivamente luminosa, (PCS, p. 91), há em Joana, por sua vez, uma ânsia

164

que ultrapassa o próprio corpo, ou, melhor dizendo, uma busca imensa no desejo de

transcendê-lo. Para ela, como assegura, em outro momento da narrativa, numa assertiva que

vale por um lamento: ―o corpo restava no começo do caminho, vivendo em outro ritmo, cego

à experiência do espírito‖ (PCS, p. 44).

Torna-se-se cada vez mais perceptível esta separação na narrativa. É em lusco-

fusco que a imagem do corpo se evidencia em Perto do coração selvagem. Ela aparece

―iluminada‖ na cena do banho de Joana, e tende a esvair-se a partir dela mesma, quando a

heroína se põe a questionar o ocorrido para, em seguida, fazer adormecer a sua descoberta:

―Cerra as janelas do quarto – não ver, não ouvir, não sentir. Na cama silenciosa, flutuante na

escuridão, aconchega-se como no ventre perdido e esquece. Tudo é vago, leve e mudo.‖

(PCS, p. 66).

Como diz Bataille (1988, p. 12), afirmação que de certo modo vai ao encontro do

que defende Elisabeth Grosz (2000), já estudada, ―o erro da filosofia consiste em apartar-se da

vida‖. E seja esta uma sentença para provocação ou não, o fato é que, em se tratando de Perto

do coração selvagem, a esta obra se aplica. Tem-se no romance, em síntese, uma existência

estrangulada. O resultado disto está na velha equação que não concebe o corpo em sua junção

com o espírito. E desta, quantas oposições mais, como ilustra o trecho a seguir, em que a

personagem, pretendendo se entregar a uma imaginação desejosa, só encontra no livro o seu

inverso: realidade e solidão.

Ainda na cama, [Joana] pensava em areia, mar, beber água do mar na casa da tia

morta, em sentir, sobretudo sentir. Esperou alguns segundos sobre a cama e como

nada acontecesse viveu um dia comum. [...] Quis o mar e sentiu os lençóis da

cama. O dia prosseguiu e deixou-a atrás, sozinha. (PCS, p. 23, grifo nosso).

O mar, de algum modo, parece cumprir com este papel para a heroína do romance:

alivia o corpo, a alma, a solidão de ser dois, corpo e alma, ou ser somente um, porém mais

integrado. ―E foi tão corpo que foi puro espírito.‖ (PCS, p. 97), como expressa a narração,

num raro momento em que estes, corpo e alma, não são vistos de forma estanque. Esta

165

afirmação, por sua vez, coincide com o exato momento em que a personagem vive a novidade

do encontro com Otávio. Isto, entretanto, é passageiro.

Otávio, de certo modo, cumpre a mesma função que Vicente, o primo de

Conceição em O quinze. Embora, diferente deste, ele esteja intelectualmente melhor

preparado, não alcança, por sua vez, a profundidade de Joana. Ou seja, mesmo próximo, não

há comunicação entre os dois, que vivem mundos diferentes.

Até uma família à parte Otávio monta para ele. E chega a se lastimar, meio que se

justificando também: ―se Lídia não estivesse dividida de Joana‖! (PCS, p. 119). Ora, tem-se

aí, uma reprodução, em senso comum, do pensamento machista que dá ―direito‖ ao homem de

procurar noutra mulher aquilo que julga faltar à primeira. Sem fugir ao dicotômico, embora

no incomum da regra, há uma curiosa inversão em Perto do coração selvagem: Otávio tem, e

isto é bastante valorizado no texto, uma Joana em corpo, conforme acredita o marido, mas

depois disso só lhe resta os vazios.

Em sua excessiva carga de intelectualidade, quando toma conhecimento da

gravidez de Lídia, é, mais uma vez, uma Joana racional que se apresenta ao leitor(a), diante de

um ―ventre‖ que ―crescia, farto, brilhante‖. (PCS, p. 130). A afirmar, posteriormente, por

intermédio da narração: aquela mulher está ―cheia de sementes para o mundo‖ (PCS, p. 188).

No entanto, procura não exagerar a importância da gravidez da moça. Toda mulher, em

princípio, pode gerar, inclusive ela própria, como assegura veementemente. Depois, quando

pressionada por Lídia a tomar uma atitude em relação ao nascimento do filho de Otávio,

dispara, sob a intervenção do narrador, de forma bem objetiva:

Então vai ter um filho..., continuou. Quer Otávio, o pai. É compreensível. Por que

não trabalha para sustentar o guri? [...] Por que não trabalha? Assim não precisaria

de Otávio. Não estou disposta a lhe ceder exatamente tudo. (PCS, p. 44). (PCS, p.

146).

O discurso que dirige à Lídia é educado, mas carregado de fel. E a despeito do

evidente sarcasmo, tem-se dele uma boa medida da visão de Joana, acerca da mulher

166

―independente‖. Sua análise, fria, ignora os sentimentos da prima de Otávio e rápido encontra

uma sugestão para o sustento da criança. Tudo muito razoável se não fosse o caso dela e

Otávio estarem, há tempos, separados na narrativa. Ela mesma admite isto, em momento

anterior, da narrativa, quando, refletindo sobre a questão, confessa também à Lídia: ―Pois eu

não pensava em me casar. O mais engraçado é que ainda tenho a certeza de que não casei...‖

(PCS, p. 149). Já Otávio comunga deste mesmo pensamento, revelado, numa conversa que

tem com a esposa, antes de se separarem de uma vez, em forma de questionamento: ―mas

você não acha que tudo está quase terminado entre nós? – E quase desde o princípio...‖ (PCS,

p. 177).

Questões sentimentais à parte, a discussão procura deter nesta perspectiva

pragmática de Joana, que enxerga no trabalho da mulher, por exemplo, possibilidades de uma

autonomia para ela. Em Perto do coração selvagem esta é, naturalmente, impensável para o

que se conhece da personagem Lídia, frágil, insegura e completamente submissa a Otávio.

No que diz respeito à Joana, entretanto, ela se sustenta no texto de um modo

diferente. A heroína clariceana, por associação, está muito mais próxima da mulher que busca,

na vida prática, se esta fosse a sua, ―um teto todo seu‖. Este é o título de um importante livro

de Virginia Woolf (1985) e aqui pede passagem para introduzir uma discussão. O empréstimo

se deve ao fato de que nele Woolf apresenta, já sintetizada na feliz expressão, um ideal de

autonomia para a mulher que defende nos ensaios. Uma autonomia que germina no plano da

vida econômica e se estende, galgando patamares outros como o social, o político e o

artístico, estando sobre este último, entretanto, o ponto de vista da ensaísta.

Um teto todo seu discute a condição da mulher, especificamente em seu trabalho

de escritora. Neste fim, avaliando o descompasso entre o número de escritoras e o de

escritores no século XVI e mesmo no século XIX, a autora enfatiza que situações e condições

de produção tão distintas para os dois só poderia resultar em nulidade ou produtividade baixa

167

no que concerne à autoria feminina. Desse modo, não é que não existissem mulheres que

seriam, na arte literária, excelentes poetisas, contistas, romancistas. O contexto de opressão,

sobretudo para com as mulheres desejosas de se lançarem na literatura e na arte em geral, é

que não lhes dava oportunidade de serem tais.

É célebre deste, livro, a referência à Judith, fruto da criação da autora, que a

imagina como irmã de Shakespeare. Bastante eloqüente, neste criativo ensaio, Woolf vai

mostrar que mesmo dotada de talento semelhante, Judith, porque submetida a uma educação e

uma cultura impositiva para com as mulheres, se tivesse existido, teria, na certa, um fim

desastroso, em nada parecido com o do irmão. E vai mais além, quando, se referindo às

escritoras em potencial, da época a que se reporta, afirma:

[...] qualquer mulher nascida com um grande talento no século XVI teria

certamente enlouquecido, ter-se-ia matado [como ocorre com a fictícia Judith] com

um tiro, ou terminado seus dias em algum chalé isolado fora da cidade, temida e

ridicularizada. (WOOLF, 1985, p. 65).

O livro de Woolf, é importante que diga, desperta a atenção desta pesquisa, de um

lado, por permitir uma discussão que, teórica, cumpre também, como deve ser, com uma base

aplicável ao que vem sendo desenvolvido até então. De outro, pela possibilidade de ter

influenciado, de alguma maneira, senão a construção da personagem Joana, ao menos a

percepção de Clarice Lispector acerca das mulheres que representa.

Esta escritora foi leitora de Virginia Woolf e testemunha isto numa resenha que ela

faz, de Um teto todo seu, publicada em jornal de sua época. Este texto, sob o título A violência

de um coração, está localizado no arquivo da escritora, na pasta 04, referente aos recortes de

jornais (CL j 04, fl 94) e, infelizmente, sem dados de edição. Nele, Lispector, para o que

muito contribui a sua experiência de cronista, rememora a história de Judith, dando destaque

ao impasse que leva ao suicídio da fictícia moça. Como ser mulher e ser artista em pleno

século XVI? Seria a pergunta do(a) leitor(a) comum. Clarice Lispector, entretanto, prefere

colocar esta questão de forma artisticamente elaborada, resenhando, mas também, repetindo

168

Woolf (1985, p. 64), quando, nestes termos, conclui o que escreve: ―E assim acaba a história

que não existiu. ‗Quem‘, diz Virginia Woolf, ‗poderá calcular o calor e a violência de um

coração de poeta quando preso no corpo de uma mulher?‘‖

É desse corpo que se vem tratando, embora reducionista seja a maneira de encará-

lo, em Perto do coração selvagem, principalmente quando comparada à perspectiva posta por

Woolf. Distintas são as perspectivas sobre o objeto, mas igualmente importantes para uma

discussão em torno da representação da mulher, também por uma ordem do corpo. Judith é

vítima da sociedade que a fabrica. Em sua busca de uma realização, na historieta de Woolf,

ela é seduzida, se descobre grávida e, sem escolhas, se suicida, ou seja, mata o próprio corpo.

Outra é a época de Joana e outra, como se vem repetindo, é a perspectiva posta

sobre ela. Não engravidar, por exemplo, não tem o mesmo peso para ela, em Perto do

coração selvagem, como o tem para Conceição, em O quinze. Também não é que a

maternidade seja negada para Joana. A heroína admite poder engravidar, só nunca quis. Na

verdade, ela é adiada pela moça, no romance, até não poder mais.

Se a heroína de Rachel de Queiroz, ao fim do livro, por exemplo, se vê atingida

pela felicidade doméstica da prima Lourdinha, irmã de Vicente, daí buscar conforto no

afilhado, a heroína clariceana age de forma diversa. Em princípio afetada pela falsa prima, a

gravidez de Lídia ―penetrava Joana‖ (PCS, p. 141), tão-logo esta resolva a sua situação com

Otávio, vira a página, e passa a se movimentar na narrativa em torno de outras questões da

ordem dela mesma.

Embora cindida, Joana também difere de Conceição pelas poucas, porém,

existentes, brechas que o discurso clariceano abre para fugir do dicotômico e falar do híbrido,

como ocorre na passagem do livro em que Joana, em seu desejo selvagem, muito próxima está

do fabuloso centauro: ―O cavalo de onde eu caíra, esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei

169

pelas encostas que a sombra já invadia e refrescava. [...] Sentia o cavalo vivo perto de mim,

uma continuação do meu corpo.‖ (PCS, p. 71, grifo nosso).

Eis aí um exemplo da imaginação criativa da Joana adulta, fazendo lembrar

também a menina que acredita nas fábulas que lhe contam. É como se aí elas se encontrassem,

ainda que por breve instante.

Neste propósito, convém resgatar também a passagem em que, mesmo sem

saudade, a jovem relembra a sua infância. E quando Otávio retruca que cedo demais ela fora

abandonada aos estranhos e ao internato, a moça, embora não desconsiderando esta

constatação dele, pondera, lembrando de que, a despeito de tudo isto, ―havia muitas coisas

misturadas ao sangue.‖ (PCS, p. 48). Esta idéia de sangue vertido, ligado ao dilaceramento, já

aparece em outros momentos deste trabalho, sendo inusitado, aqui, no entanto, a perspectiva

da personagem enxergar prazer, apesar do sofrimento.

Quanto ao selvagem que há em Joana, de todas as imagens colhidas ao longo do

romance, talvez a evocação do centauro seja a que melhor lhe represente. Figura mista, meio-

cavalo, meio-homem, o centauro, como se sabe, é um ser violento, de modos bárbaros e que

se alimenta de carne crua (corpo vivo?). Curiosamente, o mito dos centauros está ligado à

origem da tempestade e esta, por sua vez, bem serve, aqui, para metaforizar o conflito e a

agitação vivida por Joana. A heroína, a exemplo do trecho, acima citado, é uma amazona que,

em sua busca, cavalga no campo selvagem e em meio às turbulências.

De um modo geral, impera no livro, entretanto, uma civilizada Joana. Esta, por sua

vez, encontra, numa viagem de navio, mundo à fora, luxo que lhe permite uma herança, até

então intocada, sua solução narrativa. O corpo da heroína se colocando, neste final, senão no

mar, que tanto deseja, pelo menos rente a ele.

Interessante perceber que esta imagem de navio reaparece em A hora da estrela,

última obra publicada por Clarice Lispector, e analisada sob o aspecto do corpo de Macabéa,

170

logo a seguir. Só que, diferente do que ocorre com Joana, em viagem concreta, descobre-se

para a nordestina uma sugestiva partida, evocada desde sempre pelo apito do cargueiro que a

heroína com freqüência escuta na novela, pois mora próxima ao cais.

E à medida que se aproximam os dois textos, Perto do coração selvagem e A hora

da estrela, outras relações parecem iluminar a primeira e a última personagem que Clarice

pode divulgar em sua vida. Ambas têm a feiúra em comum. Mesmo quando contrariada pelo

professor, na puberdade, ao despertar para a questão, é para uma Joana adulta, declarada feia

por Otávio (PCS, p. 94) e também pelo amante, encontrado no final do livro (PCS, p. 163),

que a leitura se volta. As duas protagonistas têm, ainda, uma relação com uma tia má. Se a de

Joana é um problema, a de Macabéa chega a bater nela, acreditando estar nisto uma

disciplina.

No que diz respeito ao espelho, tomado aqui como metáfora de representação, o

corpo de Joana, ainda que embaçado, vai refletir em superfície espelhada, como acontece na

cena do banho, já referida em Perto do coração selvagem. Isto, entretanto, não ocorre com

Macabéa no episódio em que ela, também se dirigindo ao banheiro para se lavar, em A hora

da estrela, mira-se no objeto acima da pia. A moça busca a imagem dela no reflexo e não a

encontra. Ou seja, em síntese, refletir e não-refletir no espelho, e por extensão, na narrativa,

constituem, ao que parece, excelentes índices para a análise e a investigação em torno das

duas heroínas.

Até um galo aparece em comum nas duas obras de Clarice. É evidente a

curiosidade de Joana em relação às galinhas quando criança, em Perto do coração selvagem,

mas cabe ao galo, neste romance, assim como ocorre também em A hora da estrela, cumprir

com um papel de anunciador da mudança que realmente se configura na narrativa. É no

encontro com o homem que Joana o escuta pela primeira vez: ―Como de outro mundo, soou o

grito fraco de um galo distante.‖ (PCS, p. 161). E mais adiante, espantada, inclusive, por não

171

ser madrugada, atesta para a narração: ―ouviu subitamente um galo próximo lançar seu grito

violento e solitário.‖ (PCS, p. 189).

Na representação de um corpo que se faz luz e tende, aos poucos, a desaparecer,

em Perto do coração selvagem, fica a sugestão também para a mulher que nele figura. É

verdade que as questões da heroína, aparentemente individuais, são alçadas à universalidade

do ser. Todavia, tamanho investimento é posto em recursos psicológicos e filosóficos, na

narrativa, que se perde exatamente aquilo que Bataille (1988) chamaria de vitalidade para a

personagem.

Incompreendida, embora outro seja o sentimento de perdição, Joana, também no

que se refere ao desejo de morte, se assemelha à Macabéa, de A hora da estrela, que parece

retornar a um corpo fetal no desfecho da novela. É de um modo igualmente cíclico que a

primeira heroína clariceana, no fim do livro, espera, por intermédio da morte, retornar ao

novo, ao princípio próximo de sua vida selvagem.

Deus, como ela afundava docemente na incompreensão de si própria. E como

podia, muito mais ainda, abandonar-se ao refluxo firme e macio. E voltar. Haveria

de reunir-se a si mesma um dia, sem as palavras duras e solitárias... Haveria de se

fundir e ser de novo o mar mudo brusco forte largo imóvel cego vivo. A morte a

ligaria à infância. (PCS, p. 190, grifo nosso).

Se há, como vem sendo demonstrado, um corpo recusado em O quinze, visto para

a personagem Conceição de forma metonímica, e há um corpo personificado em Perto do

coração selvagem, a narrativa fazendo dele um conceito, em A hora da estrela, o(a) leitor(a),

considerando todo um desenvolvimento narrativo, termina por reconhecer no corpo de

Macabéa, com todos os quesitos de uma condensação, uma metáfora que bem serve para

simbolizar uma existência que se manifesta de forma anulada na obra da escritora Clarice

Lispector. Representar a um outro, ou ao seu diferente, é pensá-lo em sua totalidade. Todavia,

dar-se a vê-lo como representação especular é o que nem sempre ocorre na novela. Bom

lembrar de que, próxima do vampiro, informação já mencionada, anteriormente, Macabéa é o

anti-reflexo. Neste sentido, constitui-se a antítese de Narciso, aquele que se vê refletido no

172

espelho. Neste jogo entre o Eu, que reflete a si mesmo, numa tentativa do idêntico, e o Outro,

que não reflete, é possível adiantar, aqui, parece se resumir a perspectiva da alteridade em A

hora da estrela. Esta, que se constrói, geralmente, como se tem visto, com base em uma

antítese, a determinar, assim, uma identidade.

No caso de Macabéa, a tentativa de identificação da personagem passa já pela

apreensão mesma em que se encontra o narrador, tentando focalizar-lhe na narrativa. Assim

como passa pelo corpo que, carente, como ela própria, reflete a sua condição e é carreado de

significados. ―A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e

minha materialização em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei

em macio cipó.‖ (AHE, p. 20. Grifo nosso).

O corpo, como bem lembra Pierre Bourdieu (2005, p. 16), em seus movimentos e

deslocamentos, está enraizado numa topologia sexual, se reveste de significação e tem a sua

construção fincada em bases sociais. Assim sendo, a análise da protagonista clariceana, por

um viés de leitura que parte da corporalidade para ela representada, obviamente não deve

prescindir de elementos ligados à sua condição social. Pobre, nordestina, migrante,

disciplinada sob os preceitos de uma educação impositiva, sobretudo para com a mulher,

Macabéa traz em sua manifestação corporal as marcas ideológicas dessa repressão.

Um exemplo disto está na passagem narrativa, comentada por Elódia Xavier

(2007, p. 61), em que a moça, contrariando a tia, que ensinara que comer ovo fazia mal ao

fígado, ainda assim tinha por ela obediência, já que docilmente adoecia quando comia um, seu

corpo disciplinado sentindo dores, ainda que ―do lado esquerdo oposto ao fígado‖. (AHE, p.

34).

A tia, embora falecida no presente do texto, exerce sobre a moça uma força

coercitiva. Dada a orfandade da sobrinha, ela toma para si uma disciplina que seria de

responsabilidade paterna, sem deixar também de preencher esta falta com toda uma amargura

173

proveniente de um dever cumprido sob a tutela da obrigação: ―às regras incutidas pela tia

carola de Macabéa, responsável pela sua ―formação‖, veremos que o vazio existencial da

personagem, isto é, sua carência (lack), sustenta-se pela obediência cega a essa regimentação‖

(XAVIER, 2007, p. 60, grifo da autora).

A educação recebida pela jovem é antes de tudo punitiva, à base de vigilância, nos

termos propostos por Foucault (1987). Sempre disposta a censurar, a velha senhora muitas

vezes tatua no corpo da protagonista, sob uma chuva de pancadas no cocuruto (AHE, p. 28), o

que julga ser um providencial corretivo. Trata-se, no caso da nordestina, de um ensinamento à

base de prescrição, em que o ―erro‖ é devidamente condenado e a tentativa de ―acerto‖

estimulada sob a forma enfática da repetição. Sendo assim, a partir do que defende Xavier

(2007) acerca da própria reprodução impensada do que aprendia, fosse ouvindo a Rádio

Relógio, fosse pela contrição de uma fé mandada e ensinada sob o signo da culpa, tem-se em

Macabéa uma personagem passível ao adestramento. Até mesmo os anúncios que coleciona

dão a tônica dessa passividade, ela que está sempre disposta a obedecer.

Propensa à disciplina, e o corpo dela dá conta disto, a personagem em A hora da

estrela sofre, portanto, os procedimentos narrativos que resultam em sua anulação no texto.

Dotada de um corpo insuficiente, a moça é focalizada na narrativa em sua ―esvoaçada

magreza‖ (AHE, p. 19). Ou seja, o pouco corpo que tem parece esvair-se aos olhos do (a)

leitor(a), tudo concorrendo, metaforicamente, para alargar a sua invisibilidade. Assim, em

meio às indecisões e dificuldades do narrador em representá-la, tão logo fica sabendo:

Não há dúvida que ela é uma pessoa física. E adianto um fato: trata-se de uma

moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha. Vergonha por pudor ou por

ser feia? Pergunto-me também como é que vou cair de quatro em fatos e fatos.

(AHE, p. 22, grifo nosso).

Envergonhar-se do próprio corpo já é uma forma de negá-lo, ainda que a razão

esteja na pudicícia da moça. Quanto à feiúra, este é outro dado com o qual o(a) leitor(a) cedo

se depara, atestado aqui pela lente da personagem Glória, que dispara na direção de Macabéa:

174

― – Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?‖ (AHE, p. 62). Beleza e feiúra são conceitos

construídos socialmente, isto é fato. Entretanto, quais sejam os fundamentos que os norteiam,

em A hora da estrela, não se pode negar, a beleza passa por alguma coisa pisada, maculada.

Não por menos a heroína traga estampadas no rosto manchas, que em vão a moça procurar

ocultar:

No espelho [Macabéa] distraidamente examinou de perto as manchas no rosto. Em

Alagoas chamavam-se ―panos‖, diziam que vinha do fígado. Disfarçava os panos

com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o

pardacento. (AHE, p. 27).

Não se pode deixar de perceber que a imagem que o espelho sugestivamente

reflete é duplamente falsa. Não bastasse devolver para a jovem a sua imagem invertida, ainda

por cima ela vem disfarçada em ―grossa camada de pó‖. O que se esconde por trás desta

mascarada personagem é perseguido aqui, na tentativa de compreender quem ela realmente é

no texto.

Às vezes a aparência e a expressão de Macabéa se confundem numa feiúra só,

como testemunha Olímpio, nesta passagem, dando importância a certos atrativos não

encontrados na namorada, como explica: ―A cara é mais importante do que o corpo porque a

cara mostra o que a pessoa está sentindo. Você tem cara de quem comeu e não gostou, não

aprecio cara triste, vê se muda – e disse uma palavra difícil – vê se muda de ‗expressão‘‖.

(AHE, p. 52).

Assim vai sendo montado o perfil da moça. Além de feia, triste, além de triste, de

uma idiotia sem par, ainda que o narrador se esforce em afirmar o contrário. Ao mencionar

que ela, mesmo sem motivos, ―tinha a felicidade pura dos idiotas‖ (AHE, p. 69), embora não

sendo uma, o narrador deixa no jogo do disse não disse a sugestão.

A despeito de tantas qualidades reprováveis, uma, todavia, parece surpreender o

narrador e diz respeito à sexualidade aflorada da moça. O(a) leitor(a) é informado,

inicialmente, que a jovem tinha sonhos eróticos, apesar da ―aparência assexuada‖, e que, ao

175

acordar ela ―se sentia culpada sem saber por quê [...] Culpada e contente.‖ (AHE, p. 34).

Repare que não escapa à personagem sequer o fetiche, ela, que tinha verdadeira adoração por

soldados e sempre que via um pensava, ―com estremecimento de prazer‖ (AHE, p. 35), se ele

iria matá-la. Preparado o terreno, o narrador declara afinal: ―Macabéa, esqueci de dizer, tinha

uma infelicidade: era sensual. Como é que num corpo cariado como o dela cabia tanta

lascívia, sem que ela soubesse que tinha? Mistério.‖ (AHE, p. 61).

O comportamento ―sensual‖ de Macabéa, que é uma ―infelicidade‖ para o

narrador, e devendo ser em função mesma de um quadro que vai traçando para ela, mais

parece, ao olhar atento, uma natural expressão do desejo sexual, pulsando no ser humano que

há em Macabéa, embora constantemente esteja sendo posta em xeque a sua plenitude. A

moça, em A hora da estrela, tem a afetividade e o sexo negados. A frágil possibilidade de se

realizar como mulher, tendo uma vida erótica, não se concretiza para ela quando do encontro

com Olímpico, que a rejeita. Assim, permanecendo no texto sem ter as necessidades

atendidas, Macabéa sofre as urgências de um corpo que, mesmo contrariado, teima em se

resolver.

Ela sabia o que era o desejo – embora não soubesse que sabia. Era assim: ficava

faminta mas não de comida, era um gosto meio doloroso que subia do baixo-ventre

e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraço. Tornava-se toda

dramática e viver doía. Ficava então meio nervosa e Glória lhe dava água com

açúcar. (AHE, p. 45).

Pouco ou nada orientada acerca dessas manifestações, a jovem, quando não apela

para o religioso, rezando para expiar-se de uma culpa (AHE, p. 34), tem crises nervosas como

esta, acima citada, em que é socorrida pela colega Glória. Interessante perceber, também, que

a sexualidade dela, vista por estes termos, é mais uma, entre as muitas misérias reservadas

para a desejosa Macabéa. ―Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol

num túmulo.‖ (AHE, p. 70). Ou seja, entre o plano do desejo e o plano da realização, a pobre

moça só conhece o primeiro e nele vai ter que se bastar. Assim, na novela, em função da

176

paralisia de uma vida, carente, a que está submetida, a protagonista, buscando Eros, encontra-

se com Tanatos.

Vida e Morte parecem duelar no próprio corpo da protagonista. Hipererótica de um

lado e completamente estéril de outro, assim é edificada a corparalidade de Macabéa na

novela em estudo. Seu ―baixo corpo‖, por intermédio de ovários, murchos, já se constituindo

um índice de não-reprodução, equivalendo dizer que dela nada se pode gerar a não ser morte

apenas.

A representação corporal da moça, portadora de uns ovários inúteis, faz lembrar a

definição de Deleuze e Guattari (2004) para o que designam por ―corpo sem órgãos‖. Embora

não se limitando a definição apenas ao corpo enquanto organismo vivo, mas a toda uma

perspectiva de organicidade, um corpo sem órgãos é, segundo defendem, um corpo

improdutivo, estéril, inengendrado, inconsumível.

Apesar de considerados radicais nos estudos de uma teoria pós-modernista sobre o

corpo, a definição que dão para ―corpo sem órgão‖ em muito vem esclarecer acerca da

corporalidade da heroína em A hora da estrela:

É um corpo sem imagem. Ele o improdutivo, existe onde é produzido [...]. É

perpetuamente re-injetado na produção. O corpo catatônico é produzido na água do

banho. O corpo pleno sem órgãos é anti-produção; mas é ainda uma característica

da síntese conectiva ou produtiva ligar a produção à anti-produção, a um elemento

de anti-produção. (DELEUZE & GUATTARI, 2004, p. 14, grifo nosso).

―Instinto de morte‖ (DELEUZE & GUATTARI, 2004, p.13) é o nome dado a este

corpo e em A hora da estrela, Olímpico, comparando Macabéa com outra pretendente, em sua

física promessa de fertilidade, parece farejar, na heroína a sua finitude: ―Pelos quadris [de

Glória] adivinhava-se que seria boa parideira. Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si

mesma o seu próprio fim.‖ (AHE, p. 60). E numa perspectiva repulsiva, própria também deste

corpo definido por Deleuze e Guattari, o(a) leitor(a) vai encontrar, feito cobra que engole o

próprio rabo, uma autófaga Macabéa, em A hora da estrela. ―Vivia de si mesma como se

comesse as próprias entranhas.‖ (AHE, p. 37-38). Suficiente o bastante para encerrar-se em

177

si, ela, para se aquecer nas noites frias de inverno, ―enroscava-se em si mesma, recebendo-se e

dando-se o próprio parco calor.‖ (AHE, p. 24).

Desde sempre ―ilhada‖ e fadada ao fracasso, a primeira imagem da protagonista é

assim anunciada pelo narrador: ―numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o

sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina.‖ (AHE, p. 12). Se nesta

caracterização o rosto da jovem de certo modo já é também prenúncio de um fim, outros

elementos do texto também concorrem para esta afirmação: ―A moça tinha ombros curvos

como os de uma cerzideira‖ (AHE, p. 26) e sua cara, ―de tola‖, exibia um ―rosto que pedia

tapa‖ (AHE, p. 25). Além de ―magricela‖, tinha ―pulmões frágeis‖ e era suspeita de contrair

tuberculose no início da narrativa, confirmada mais tarde em atestado médico (AHE, p. 68).

Do ponto de vista sensorial, nem a cor, nem o cheiro, nem o gosto, eventualmente

a ela associados, eram agradáveis:

Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. [...] Uma colega de

quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não

sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era

iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de

opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. (AHE,

p. 27, grifo nosso).

Completamente dispensável, é madama Carlota que melhor objetiva a condição

dela, quando, às vésperas da morte, trata-a no livro por ―minha enjeitadinha‖ (AHE, p. 77).

Não tendo consciência de si e possuindo um frágil corpo, Macabéa é, em A hora da estrela,

uma personagem natimorta. E o(a) leitor(a) não demora muito a perceber isto, ajudado pela

indução do narrador quando afirma que ela ―havia brotado da terra do sertão em cogumelo

logo mofado.‖ (AHE, p. 29).

Ciente da mediocridade da vida da moça e da penosa tarefa de representá-la, a que

se destina, o enunciador se previne, com as seguintes observações, confessando:

[...] o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser

homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas. (AHE, p. 14);

178

Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma

nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro. (AHE, p. 57).

Em que pese o preconceito do narrador contra a literatura de autoria feminina, ele

procura revestir-se de uma autoridade de conhecimento, parecendo querer ganhar a confiança

do(a) leitor (a). Tão convicto se mostra, em relação à criatura, que a este (a) recomenda:

―Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua‖ (AHE, p.

19).

Demonstrando ciência de um projeto criativo em mãos, o narrador, seguramente,

sabe separar ficção de realidade. É tanto que a imagem da ―borboleta branca‖, supostamente

criada para associá-la à Macabéa, e reiterada, mais tarde, na narrativa, ao mencionar as

―borboletas noivas‖ (AHE, p. 42), antecipando o encontro com Olímpico, logo é refutada no

texto. Veja o que declara a narração:

Essa idéia de borboleta branca vem de que, se a moça vier a se casar, casar-se-á

magra e leve, e, como virgem, de branco. Ou não se casará? O fato é que tenho nas

minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente

inventar: sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigado a procurar uma verdade que me

ultrapassa. Por que escrevo sobre uma jovem que nem beleza enfeitada tem? (AHE,

p. 20-21).

Para o narrador, ao que parece, não há o que fazer diante do irremediável. Que

enfeite pode ser acrescido a um ―corpo cariado‖ (AHE, p. 35)? Aliás, esta é a imagem perfeita

para representar, no recurso da metáfora, uma existência que dói em Clarice Lispector, sob a

pele do seu narrador. À dor de dente da personagem, permeando toda a narrativa e que, do

ponto de vista da precariedade social, desce o ser humano a uma condição humilhante, soma-

se a dor da narração, angustiada em contar a história da malfadada datilógrafa. Ou seja, para a

confecção da narrativa, sob o tom das palavras acha-se o contratom, que é ―o baixo grosso da

dor.‖ (AHE, p. 16).

Sendo esta dor uma constante na narrativa, no caso de Macabéa ela vai servir,

inclusive, de motivação para inventá-la quando não aparece. Ela alega sentir dor de dente nas

179

duas vezes em que prefere se dispensar do trabalho. Uma quando quer ter um dia livre só para

si (AHE, p. 41), e outra quando se decide pela visita à cartomante (AHE, p. 71). Ela mentiu

ao chefe, justificando que ―arrancar um dente era muito perigoso.‖ (AHE, p. 41).

Tanta importância tem essa dor em A hora da estrela, que o narrador, neste

aspecto, anuncia: ―Devo acrescentar um algo que importa muito para a apreensão da

narrativa: é que esta é acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de

dentes, coisa de dentina exposta.‖ (AHE, p. 24).

Assegurada a relevância desta dor, no texto, vale a pena perceber que ela, por sua

vez, sintetiza diferenças. A personagem só se dá conta que sua vida fora ruim quando

vislumbra a otimização das promessas feitas pela madama Carlota. Animada com a

perspectiva alvissareira, afinal são tantos os bons agouros, Macabéa, diante deles, e já se

sentindo outra, ousa até pedir conselhos para ter mais cabelo (AHE, p. 78). Ora, crente de

uma posse futura de tudo quanto lhe fosse necessário, a moça já se dava ao luxo de pensar o

supérfluo. Logo ela que, ironicamente, um dia pareceu a Olímpico um cabelo numa sopa, não

lhe dando vontade nenhuma de comê-la (AHE, p. 60). Importa dizer que também um corpo é

prometido a ela, que, ao longo da narrativa, parece não ter nenhum em consistência. Diante do

sutiã sem seio e quase em contato com a pele da moça, a mulher, erroneamente, profetiza:

―Você não tem busto mas vai engordar e vai ganhar corpo.‖ (AHE, p. 77-78).

A euforia da jovem, diante de tais promessas da madama, vai constituir, por sua

vez, uma outra forma de escamoteamento da dor, ela contente já do que inda não tem. Na

obra, somente o narrador lamenta a existência da protagonista. A dor dele, no entanto,

transcende a de Macabéa, que participa em A hora da estrela de um sofrimento de ordem

mais pragmática. A dor da personagem está cravada no corpo dela. E por mais que Rodrigo S.

M. esteja próximo dessa dor, ainda assim não desconsidera que dela possivelmente escape.

Embora tantas vezes defenda que para estar ao nível da nordestina precise se revestir dela,

180

usando, inclusive, ―roupa velha‖ e ―rasgada‖ (AHE, p. 19), ele é consciente da distância que

se alarga entre os dois. Veja esta passagem:

Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que

me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho gelado pois faz calor neste

cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo.

(AHE, p. 22).

De fato, realidades distintas resultam em distintas dores no texto. Tanto é assim

que, parecendo perseguir um princípio de verossimilhança, a ser alcançado, admite: ―sou um

homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo

um desonesto.‖ (AHE, p. 18). Esta desonestidade é presumida por não se julgar com

autoridade suficiente para representar a jovem. E se esta é uma estratégia da narrativa, o

narrador logra êxito, uma vez que os contrastes entre os dois ainda mais se evidenciam.

Macabéa, então, termina por se constituir uma fratura exposta, estilhaço de um corpo social

que o narrador parece admitir participar. E se em determinado momento declara conhecer a

nordestina, também não chega a desconsiderar no texto o lado presunçoso desta afirmação.

Imbuída dessa linha de pensamento, a narração conseqüentemente é dominada pela

incerteza. Tal atitude perturba o narrador a ponto de, metaforicamente, temer tocar o pão da

jovem, com o receio de que ele possa se transformar em ouro (AHE, p. 15). Se isto ocorresse,

a ação dele seria danosa. Ela impediria que a protagonista mordesse o alimento e, como

conseqüência, viria à morte por inanição. É esta uma preocupação justa do narrador, que

demonstra comprometimento com a ―verdade‖ da moça.

Encarregado de tornar a dor de Macabéa multivocal, ele destaca já no início da

novela: ―A dor que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então

eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que

carrego o mundo e há falta de felicidade.‖ (AHE, p. 11, grifo nosso).

Eis aí um ensinamento poético já admitido por Fernando Pessoa (2005), em

Autopsicografia: um eu que finge ser dor ―A dor que deveras sente‖. De forma semelhante

181

parece haver, no exemplo mais acima citado, uma tensão narrativa entre o que se finge e o que

se sente na narrativa clariceana em estudo. Ainda que nesta passagem a narração direcione o

discurso a uma coletividade, a história está fincada na problemática social, prevalece em A

hora da estrela a perspectiva do Eu. Este substitui o gemido, proveniente da dor, em ―canto

alto agudo‖. Talvez o narrador busque, com isto, tirar da música algum prazer e com ele,

então, reverter a dor de narrar.

Avessos no discurso, prazer e dor, ligados também ao corpóreo, às vezes se

revezam na narrativa clariceana. Os ―cascudos no alto da cabeça‖ (AHE, p. 28) de Macabéa

causavam ―grande prazer sensual‖ à tia solteirona, que esperava com eles frear também os

ímpetos da jovem. A propósito desta passagem, relacionada à idéia de um corpo prazeroso,

não deixa de ser significativo o fato de que, nos manuscritos originais de A hora da estrela

(na folha 06), depositados temporariamente no Instituto Moreira Salles (IMS), sede do Rio de

Janeiro, conste a referência objetiva à expressão ―prazer sexual‖ da tia, substituída depois,

pelo ―sensual‖ da publicação.

No texto, a tais pancadas a moça se acostumara, sabendo, de experiência, que, se

esperasse um pouco, a dor terminaria por passar. É em sua relação com a tia, promotora de

dores, que ela aprende, ainda, que há outras formas de o prazer dela ser confiscado. ―[...] o

que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única

paixão da sua vida. Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida?‖ (AHE,

p. 28).

Se o narrador recorre à melodia para enganar a dor, como se nota mais acima,

também Macabéa, nos breves momentos concedidos pela narração, vai encontrar numa

recorrência sonora a sua válvula de escape. Contrariando inclusive as expectativas do

narrador, que se diz espantado com o inusitado da idéia, um cantar de galo é ouvido pela

jovem. Em meio a uma paisagem inóspita, de zona portuária, à estranheza do narrador vai se

182

somar a familiaridade da moça. Dava-lhe prazer ouvir o galo cantar de madrugada. Uma vez

ou outra é que ela tinha a sorte de ouvi-lo. Ele cantava à vida e, ouvindo-o, vinha-lhe em

reminiscências nostálgicas a imagem do sertão (AHE, p. 30). Assim, numa perspectiva

prazerosa, breve intervalo da dor sentida, o ―cantar de galo na aurora sanguinolenta dava um

sentido fresco à sua vida murcha.‖ (AHE, p. 31).

É verdade que este prazer, lenitivo, não raro se converte em melancolia. Se o

cocoricar do galo aguça-lhe a saudade, ouvir o sinal sonoro emitido pelos navios cargueiros

lhe causa angústia. Pensaria a personagem em partida? Difícil afirmar. Ela, entretanto, sem

que o soubesse, pouco a pouco vai se despedindo da narração. Para Macabéa, constituem

prazer auditivo no texto:

[...] um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava

aperto no coração, um ou outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo.

Era do nunca que vinha o galo. Vinha do infinito até a sua cama, dando-lhe gratidão.

(AHE, p. 31).

Tais prazeres, não raro contaminados pela dor, aparecem como a unir,

sugestivamente, as pontas de um mesmo novelo narrativo. O passado da jovem, representado

pela imagem do galo, e seu (in)certo futuro, tantas vezes promulgado pelo narrador, e

perfeitamente passível de representação na figura de um navio cargueiro. Ora, navios

lembram grandes viagens e, ao fim da narrativa, Macabéa não deixa de metaforicamente

realizar a sua. E a dela será uma viagem sem volta.

O curioso é que a morte da personagem em A hora da estrela é sempre, num

eufemismo sui generis, a sua salvação. E isto também se aplica à temática corporal. Para

quem não tem um corpo em que se sustentar na narrativa, na hora da morte é protagonizado

para a moça, passo a passo, a mulher que não fora em toda a obra. É criança quando, depois

de atropelada, acomoda ―o corpo em posição fetal‖, e é adulta, e não mais virgem, quando, em

estremecimento final, seu rosto faz lembrar, em esgares de desejo, um momento de intensa

ânsia sexual (AHE, p. 84). É como se a narrativa quisesse lhe devolver, nos últimos instantes,

183

tudo aquilo que lhe fora tirado no texto. Para Bataille (1988, p. 11), o erotismo é uma

aprovação da vida até na hora da morte. Assim, na morte é como se ela vivesse. Como se

neste encontro último, ainda que por breve intervalo, Eros saísse vencedor.

A imagem do corpo dela, estéril, está em desvantagem, ainda, no presente da

narrativa, com o corpo sugestivamente fértil da sua rival, Glória. O dente cariado da jovem,

responsável fisicamente pelo incômodo dela em toda narrativa também contrasta com o

canino de ouro de Olímpico (AHE, p. 46), que dispensa na narrativa um dente perfeito em

prol de uma marca sedutoramente social. Destacada pela diferença que exclui, então, Macabéa

apresenta todas as condições para se danar no texto, perdida que está já desde o início da

narração.

O narrador, entretanto, num momento raro de condescendência, dá a ela um

instantezinho de luz e tenta transformar em glorioso um final que poderia ser compreendido

somente como trágico. Assim é que, em sua agonia, ela quer vomitar algo que não seja corpo,

―vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.‖ (AHE, p. 85). Neste desfecho, encenando o

espetáculo de si mesma, ela realiza, por fim, um dos seus mais secretos desejos. E apesar de

não ter nem rosto ―nem corpo‖ para ser artista de cinema (AHE , p. 53), a moça estréia, em

seus últimos instantes de vida, um grand finale.

Sendo respeitadas as diferenças, sempre, como se vem insistentemente afirmando,

esta polarização vida X morte, bastante marcada no desfecho de A hora da estrela, alcança

um momento também importante em Memorial de Maria Moura, a heroína, a partir dele,

dando um direcionamento novo à sua vida prática.

Trata-se do episódio em que Moura, numa resposta à violência iniciada pelos

primos, põe fogo na casa do Limoeiro, objeto da intriga entre as personagens. Naturalmente

esta atitude da moça pega os dois rapazes de surpresa, eles que imaginavam ser ―uma

brincadeira‖ (MMM, p. 72) a expedição em que esperavam se apossar das terras e da jovem,

184

como atesta esta exaltação do Irineu: ―— E a Maria Moura? Está morrendo ali dentro, está

morrendo queimada!‖ (MMM, p. 71). O moço ainda sem compreender que aquele gesto,

extremo, foi estrategicamente pensado por ela, que em muito se antecipa ao ataque dos dois, e

representará, na narrativa, de fato, a sua libertação. Ela se livra, com isto, da tirania dos

primos e, por extensão, irrompe, inaugurando ou fazendo nascer um outro estágio de vida para

a personagem.

Na fuga, e em meio ao fogo, selvagem, é com uma amazona Moura que

o(a)leitor(a) se depara, rédea em mãos, a comandar a pequena, porém decidida, tropa que

consegue formar. ―Voei em cima da sela – sela de homem – claro que era também a sela de

Pai. Ali era tudo dele até eu – até eu não -, principalmente eu, sangue e carne dele.‖ (MMM,

p. 68).

No espelho das influências, é realmente com o pai que a heroína busca semelhar-

se, identificação explorada no estudo com o motivo da donzela-guerreira, em capítulo

seguinte. Esta identidade com o pai muito diz da protagonista e é o Tonho que pontua esta

relação, quando lembra à jovem: ―A gente sempre soube que o seu pai era um homem muito

perigoso. Onde ele botava a mão, ficava a marca de sangue.‖ (MMM, p. 41).

A intenção aqui, no entanto, é chamar a atenção para as duas Mouras do texto. O

destaque é para a guerreira, como se comprova ao longo da narrativa, mas esta não prescinde

de todo da donzela, que dá origem àquela, como ilustra a cena abaixo, em que a jovem,

sofrendo com o resultado a que levou a sua interferência sobre os acontecimentos, declara:

―vendo a minha casa transformada em fogaréu, e feito pela minha própria mão, desabei em

pranto.‖ (MMM, p. 69).

Não é sem dor que a heroína se vê convocada a uma nova tomada de atitude no

texto. Esta dor, aparecendo de forma bastante integrada, ora se manifesta inscrita no corpo,

ora está nele interiorizada, de ordem mais psicológica, como se vê abaixo:

185

Pois agora eu era livre. Em cima do meu cavalo Tirano, embaixo do meu chapéu de

palha... Me doíam os lombos, me doía o espinhaço. Os pés estavam meio inchados,

dentro dos coturnos. Quando o cavalo chouteava forte, me atacava aquela dor que

chamam dor de veado, a que dá uma pontada forte nos vazios.Me sentia suja, sem

os meus banhos de cheiro,sem roupabranca para trocar. (MMM, p. 90);

Nem posso dizer direito como é que eu me sentia. Tudo era novidade para mim,

mas uma novidade esperada. Meu corpo chegava a doer quando a gente se

tocava – e continuava doendo quando se separava. Assim mesmo, eu procurava

disfarçar de todo mundo as fraquezas da Moura nova, fingindo a antiga dureza, a da

Moura de antes. (MMM, p. 399, grifo nosso).

No primeiro plano, a dor de Moura, coincidindo com as andanças da heroína pelo

sertão, é física, e neste momento, muito próxima ela se faz de Macabéa, e sua dentina exposta

na novela clariceana. No segundo, quando a moça se vê dividida, entre as lembranças de amor

experimentado ao lado de Cirino e a angústia que lhe causa a morte do rapaz, próxima vai

estar de Joana, de Perto do coração selvagem. É uma personagem mergulhada em si mesma

que se vê nesta última passagem citada do romance queirozeano. Uma dor que é só dela e que

parece ameaçar, inclusive, a imagem em que investiu: de durona, forte.

Após a morte de Cirino, e atingida por uma dor que a impede até de chorar, é com

uma Moura cega, surda e vazia que o(a) leitor(a) se encontra (MMM, p. 470). E se cai

―doente‖, como adianta a personagem Rubina, a moça tem consciência de que sua gravidade

tem origem em outro mal, quando diz: ―Não era dor propriamente que eu sentia; era mais um

estupor que me deixava dormente, numa espécie de meia morte. O corpo não me doía em

lugar certo, mas tudo me doía. Principalmente a cabeça.‖ (MMM, p. 472).

O amor por Cirino faz despertar uma ―nova‖ Moura, mais entregue às

subjetividades. A decepção que o rapaz lhe causa, em contrapartida, parece recuperar nela

uma objetividade, antes sua marca e que nela vinha relaxando. Amor e decepção, portanto, se

misturam na hora de decidir pela morte do rapaz. Quando a decisão se consuma, de fato, a

mulher sente como se estivesse cortado na própria carne. O corpo denunciando nela a dor do

espírito: ―Me lembro que tive uma grande dor de dente nessa ocasião. Rubina me tratou com

186

cozimento de malva e eu deixava a dor doer, parece loucura, mas, com ela, a outra dor doía

menos.‖ (MMM, p. 477).

Em A hora da estrela a dor de Macabéa é perpassada pela dor da narração, que se

desenvolve em torno de um projeto de anulação do corpo da jovem, já demonstrada em

discurso anterior. E se este mesmo corpo, negado em Conceição de O quinze, é descoberto

para depois sem esquecido por Joana, de Perto do coração selvagem, em Memorial de Maria

Moura um corpo se afirma, hiperbolicamente construído, ao longo do texto, na figurada

mulher-homem.

Na primeira obra de Rachel de Queiroz o corpo da heroína é visto ―aos pedaços‖.

Na última, é vista de corpo inteiro, desde as primeiras páginas do romance, quando assim se

apresenta ao Beato Romano: ―E então apareceu a Dona. Calçava botas de cano curto, trajava

calças de homem, camisa xadrez de manga arregaçada. O cabelo era aparado curto, junto ao

ombro.‖ (MMM, p. 14).

Como é possível observar, é por uma curva ascendente que o(a) leitor(a) chega ao

corpo de Moura, vista, literalmente, dos pés à cabeça. E recorrer aos recursos do

travestimento masculino é sempre uma maneira, frouxa, se diria hoje, porém necessária ao

meio em que a heroína vive, para sustentar uma autonomia que busca para si. E não é à toa

que, entremeando toda uma identificação com o pai, o corpo da moça também a ele se ajuste,

como ela própria diz: ―Pai era magro como eu, e tinha pouco mais que a minha altura.‖

(MMM, p. 66).

Há certa simbologia neste travestimento. A moça como se quisesse, com isso, não

só representar o pai, colando-se a ele, como, na pista de um canibalismo imaginário, se servir

da sua imagem e dela tirar o devido proveito. Talvez por isso, também, a sensação prazerosa

que experimenta a personagem ao usar as roupas paternas, como relembra: ―eu sentia um

187

gosto especial em enfiar as calças pelas pernas, apertar no cós o cinturão (também dele),

arregaçar as mangas da camisa, comprida demais para os meus braços.‖ (MMM, p. 232).

Como aparece em uma linha de estudo, na Antropologia, o canibalismo, em

algumas tribos que o tem por característica, é sempre uma forma de, no processo de ingestão,

engolir também as qualidades e o poder advindo da presa, o que torna o devorador, conforme

se acreditava, muito mais forte, já que acrescentará as qualidades do outro às suas próprias

qualidades. Em que pese o rito e a crença sobre tudo isto, o fato é que em Memorial de Maria

Moura é o pai, já morto, que alimenta o ideal de guerreira da moça. É ela, reproduzindo a fala

do Tonho, já citada na referência que faz ao pai, que agora diz: ―— Eu só ando junto com

gente perigosa. Eu mesma levo uma vida muito perigosa...‖ (MMM, p. 331). No entanto, fica

fácil perceber que, em toda a narrativa, a movimentação da heroína leva à superação do seu

genitor.

É verdade que, em princípio, se for considerada a relação do pai dela com o fazer

sangrar, e sendo esta, portanto, a sua herança violenta, a heroína precisa superar, antes, sua

aversão ao líquido, uma limitação que pode comprometer a personagem enquanto guerreira. É

que a simples idéia de sangue vertido parece desestabilizar Maria Moura. E isto ocorre mesmo

quando já envolvida nos assaltos da estrada, como revela esta preocupação, no trecho a

seguir: ―[...] eu ainda não sei bem se sou capaz de ver sangue derramado. Nunca experimentei

ver de perto o sangue dos outros; e pior será se for tirado pela minha própria mão.‖ (MMM,

p. 180).

De qualquer modo, o projeto de autonomia para a jovem tem origem no pai.

Talvez sem esta referência, masculina, impensável fosse para ela ter o domínio inclusive do

próprio corpo no romance. A protagonista, por exemplo, admitindo ter ―fogo por homem‖

(MMM, p. 124), deseja um, para fazer amor, mas também para tê-lo em companhia, ajudando

a tirar o sentido da sua solidão. É ciente disto que determina, disposta, em sua entrega: ―Quero

188

tirar do meu corpo as marcas das mãos do Liberato, que às vezes ainda sinto queimando.‖

(MMM, p. 128).

Cada vez mais dona de si, é ainda na relação com Duarte que mais se exercita em

dominar sexualmente. É ela que dá o ―sinal‖ para os dois se encontrarem. E ele que, de

mansinho, viesse se sujeitando ao seu querer. (MMM, p. 332-333). O primo, cerimonioso,

mesmo gostando da heroína, nunca se adianta, esperando sempre pelo ―chamado dela‖

(MMM, p. 389).

Somente com Cirino é que tanto poder será, literalmente, ―derrubado‖, a exemplo

do que ocorre na cena em que, fingindo-se de doente, consegue atraí-la para o quarto dele:

E de repente Cirino se sentou na cama, nu da cintura para cima; segurou o braço

estendido, me puxou com força, me derrubou no colchão. E num pulo, como se

fosse um gato, saltou por cima de mim, prendeu minhas pernas entre os joelhos.

Com o peso do corpo me esmagava o peito, os seios. E apertando a boca na minha,

me mordia. Afinal, com um gesto rápido da mão, me levantou a camisola e me

forçou – como se me desse uma facada.

[...]

Não sabia que homem fosse capaz daquela violência. E logo depois senti que eu

estava gemendo, baixinho, no compasso dele. E não era gemido de dor, muito

menos de raiva. Nem sei dizer o que era. (MMM, p. 366).

Desde mocinha a heroína tem a sua sensualidade assegurada no texto. Novinha,

―bonitinha‖ e de ―peitinhos empinados‖, ela não tarda a despertar no Irineu um desejo de

posse. E para possuí-la, se necessário fosse, não se eximiria de praticar com ela violência,

como antecipa o moço, na seguinte passagem do texto:

Com ela era preciso tomar chegada por trás, prender os braços dela com toda a

força dos meus, deixando a mão livre pra ir alisando os peitinhos, a barriguinha;

falando baixinho no ouvido, pra ela se acalmar. Mulher não resiste a carinho bem

feito. Se ela for bater com o salto do sapato nas minhas canelas, aí o jeito é

derrubar. Cair-lhe por cima, e seja então o que Deus quiser. (MMM, p. 55).

Naturalmente este desejo de Irineu não se realiza. Moura não é do tipo que se

deixa vencer pela força. Numa relação que envolve previamente poder e domínio, é comum a

sujeição, muito própria do criado. A heroína, definitivamente, não está no campo da sujeição.

Tanto é que mais tarde, se referindo a outra situação, mas que pode ser aplicada a esta, a moça

é enfática ao se rebelar: ―Maria Moura não é criada de ninguém.‖ (MMM, p. 344).

189

Cirino é que subverterá todas as ―normas‖ do amor a dois, prescritas por Moura.

Com ele não há ―sinal‖ previsto e, pega de surpresa, a moça vai se envolver pelo rapaz. Se

render a ele, por um lado, traz-lhe uma preocupação, receio de se mostrar fraca, como ao

comum das mulheres apaixonadas. Por outro, Moura deseja abandonar-se. Seria capaz de tudo

para tê-lo por perto. Talvez por isso, sinta-se tão aniquilada pela traição do rapaz e pelos

modos com que fez pouco caso dela, ―gabando-se‖ para os outros de tê-la em suas mãos. ―E

eu adorar um desgraçado desses, abrir pra ele o meu quarto, a minha cama, o meu corpo. Foi

humilhação demais‖ (MMM, p. 426), reflete a inconformada heroína.

Embora assim se sentindo e contrariando toda a lógica, até porque do contrário não

seria paixão, Moura, mesmo depois de capturá-lo, a ele outra vez se entrega, de novo levada

pelas artimanhas do amante, que consegue fazer com que ela o liberte, mesmo por breves

instantes, do quarto onde estava preso.

Eu estava com a arma apontada, olho no olho dele. E de repente, nem vi como,

devo ter, só por um segundo, desviado a vista para a janela, e Cirino saltou para

cima de mim, me derrubando na cama. Como da primeira vez. Me tapou a boca

com a dele, me cobriu o corpo com o seu.

Foi um amor desesperado, furioso, que doía e machucava; amor de dois inimigos,

se mordendo e se ferindo, como se quisessem que aquilo acabasse em morte.

(MMM, p. 455).

E o resultado, já previsto aí, não poderia ser outro senão a morte do rapaz,

encomendada por ela ao fim do livro. No amor tresloucado de Moura e Cirino reflete-se o

jogo da dominação. Repare-se, por exemplo, considerando a topologia dos corpos de

Bourdieu (2005), as posições que cada um ocupa no enlace amoroso, a dela sempre em

desvantagem.

Apesar disso, de todas as obras, aqui estudadas, é a que mais avança em expor a

questão da corporalidade. Sem dúvida é um grande passo dado por Rachel de Queiroz,

sobretudo se considerado o tratamento dado à temática do corpo em O quinze. Em Memorial

de Maria Moura, o amor também é decisão. Moura não mata somente para se vingar de

190

Cirino, isto sim podendo ser tomado por uma atitude passional. Ela mata, ainda que grande

seja o sofrimento em fazê-lo, porque, em caso contrário, colocaria em xeque a sua situação.

O texto não dispensa, como se vê, a razão prática dela. A moça tinha, segundo o

código de ―justiça‖ do qual participa, razões para matar Cirino. E, apesar de comprometida,

emocionalmente, sabia, mais uma vez, que naquele caso era ele ou ela. Não esquecer,

também, que a história da moça faz dela uma estrategista. Ela traça planos, congrega,

convence e põe-se em ação, quase sempre saindo com sucesso das empreitadas que articula na

narrativa. Enfim, como bem lembra Rubina, a mãe de Duarte, numa atitude de nítida

admiração por Moura, a quem prestará serviços domésticos, mais tarde, a heroína é ―a melhor

cabeça da família‖ (MMM, p. 309).

Rubina, ainda que fazendo graça, dá conta, no texto, das influências que Moura

exerce com sua maneira de se comportar. Como se sabe, o hábito de andar a cavalo,

―escanchada‖, constituía para mulher da época uma transgressão. Não era comum as moças

praticá-lo, de modo que, sua incidência gerava muita especulação, sobretudo de ordem moral,

como atesta esta passagem narrativa em que a mãe de Duarte se compraz, no inusitado da

imitação:

Rubina veio montada escanchada, como homem, com as saias de chita espalhadas

em cima do cavalo. O filho queria que Rubina montasse nas andilhas [sela das

mulheres], ela recusou:

— Se Maria Moura pode, que é moça de família, como é que eu não posso? Agora

ficou na moda! (MMM, p. 310, grifo nosso).

Realmente, Moura é uma figura de exceção no meio em que circula. Um a um,

porque outros eram os propósitos, ela vai se liberando dos papéis que, a princípio, ligariam-na

ao doméstico. Mesmo em suas andanças sertão a fora, cabe a João Rufo o papel de ‗cão de

guarda‘ (MMM, p. 64). Ele não só se encarrega da proteção da jovem, como zela por suas

necessidades de alimentação, banho e troca de roupa. Nos lugares em que Maria Moura fez

pouso, no ―Socorro‖ e na ―Serra dos padres‖, as personagens Libânia e Jovelina é que

assumem a tarefa de cozinhar para o bando.

191

A personagem não borda, apesar de ter aprendido (MMM, p. 364), informação

que chega a surpreender Cirino, que não consegue enxergar nela uma bordadeira. Também

não sabe costurar (MMM, p. 329), como se toma conhecimento no episódio em que vê a

necessidade de preparar uma batina para o Beato Romano, recomendada à mãe de Duarte,

então, que confecciona a vestimenta.

A chegada de Rubina à Casa Forte, aliás, vai dispensar a moça dessas obrigações

todas, o que, na verdade, já nem desempenhava. De qualquer maneira, transferi-la, dando

―ordens‖ à Rubina, tem sua importância no texto. A heroína, eximindo-se daquelas

―responsabilidades‖, mas ao mesmo tempo sem delas sair do comando, vai delegar à alguém

de confiança as tarefas domésticas, para só então poder se dedicar integralmente a outras

atividades produtivas e que exigiam dela a administração. Por isso, não é sem alívio que

entrega àquela senhora todas as chaves da casa e diz:

— Estas chaves agora são suas, Rubina. Pergunte às meninas onde é que serve cada

uma. E eu fico livre de qualquer responsabilidade! Casa, roupa, comida, não é mais

comigo. Você que providencie tudo!

Rubina ficou muito séria:

— Isso eu sei fazer. (MMM, p. 310)

A não-responsabilidade sobre estas tarefas domésticas só vem reforçar o papel da

heroína, mais comprometida com o universo fora da casa, com todas as implicações que isto

traz, conforme já estudado a partir do que considera Roberto Damatta (1997) a respeito.

Repete-se em Rachel, portanto, a exemplo do que já foi analisado em O quinze,

esta noção de auto-suficiência das personagens, o que, em Memorial de Maria Moura, se

traduz também pela convicção das diferentes conseqüências que resultam entre as ações de

comandar e ser comandada, sobretudo por um homem (MMM, p. 206). A heroína, se alcança

esta independência, no texto, é porque demonstra, por sua vez, consciência das limitações de

educação para com as moças, suas contemporâneas, como exemplifica o trecho citado,

abaixo, carreado de significações reveladoras de uma cultura restritiva para a mulher, porque

baseada na proibição.

192

[...] depois de moça, a gente fica presa dentro de quatro paredes da casa. O mais

que saí é até o quintal para dar milho às galinhas, uma fugidinha ao roçado antes do

sol quente [...]. O curral é proibido, vive cheio de homem. E ainda tem o touro,

fazendo pouca vergonha com as vacas. Fica até feio moça ver aquilo. (MMM, p.

65).

Reproduz-se no final deste trecho, e de forma introjetada, uma voz cultural

eminentemente reguladora. Óbvio que, entre as várias sanções impostas à mulher, resida sobre

a sexualidade uma vigilância maior. Desta imposição depende, por sua vez, a ―moral‖ da

família e, por extensão, da sociedade. Uma disciplina cuja eficiência passa, sem dúvida, pela

contenção dos ímpetos, bem aos moldes do que apresenta Foucault (1987) em Vigiar e punir.

Não esquecer, de que dentro deste código moral em que circula a narrativa, a virgindade da

mulher é tomada por questão de honra. Constitui-se crime, se violada em desrespeito aos

acordos da família. Baseando-se neste entendimento, portanto, é que vem a ameaça do Tonho

em instigar a esposa a dizer que o Irineu ―desonrou a prima donzela – e só para se apossar do

sítio.‖ (MMM, p. 58).

Maria Moura, no entanto, tenta romper com esta perspectiva manipuladora, e, sem

conseguir fugir dela, inverte apenas os papéis na narrativa. É ela que domina, até a sua vida

sexual, pelo menos até onde, no texto, isto lhe é possível.

De qualquer modo, mesmo quando ainda integra o espaço da casa e da

subjetividade, simbolizada, no caso, pela família, é sob forte tensão narrativa que a moça se

vê representada. Pensando assim, a personagem faz lembrar a perspectiva de análise de Maria

Lúcia Rocha-Coutinho (1994), em Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas

relações familiares. Para Rocha-Coutinho, mesmo presa às teias de um patriarcado que

confina ao lar, a mulher, num intrincado jogo de interdependência, através do qual exercita

também o seu lado político junto ao homem, exerce poder.

Relativizando, portanto, a dominação masculina e tirando a mulher da mera

condição de vítima, o estudo citado parte da afirmação de que aquela, oficialmente subjugada

pela cultura, exerce domínio, sim, ainda que restrito ao espaço a que foi submetida. É em

193

casa, junto dos empregados, do marido e dos filhos que a mulher, de maneira direta ou

indireta, sob a forma de ordens, pancadas e castigos ou chantagens emocionais e sedução, vai

exercendo o seu domínio.

Sugestivo, por fim, é o título dessa obra que une o ―tecer‖, freqüentemente

atribuído como tarefa das mulheres, à capacidade delas de articular, enredar. Da mesma

maneira são representadas, na imagem ilustrativa, ―por trás dos panos‖, as formas

despercebidas com que elas exercem domínio, ainda quando inseridas numa estrutura

patriarcal.

Moura, em muito difere das moças de sua época, mais coniventes com o papel da

donzela romântica, como se comprova no diálogo a seguir, entre ela e Cirino, quando este se

empenhava em cortejá-la:

— Pois foi uma pena [ter queimado o livro sobre Carlos Magno...]. Uma moça que

não lê romance não sabe o que está perdendo. Minhas primas...

— Você tem primas, Cirino?

— Muitas. Mas tudo feia. Gordas, brancas, cor de leite azedo. Usam uns cachinhos.

Não tem nenhuma nem de longe igual a você.

[...]

— Isso eu acredito. Não sou mesmo parecida com nenhuma mocinha cacheada.

(MMM, p. 365).

Que Moura é uma mulher bonita (MMM, p. 363), esta é uma informação que a

narrativa oferece, e em seguidas vezes. Entretanto, sua beleza em nada se ajusta ao ideal de

mulher representado pelas primas de Cirino. Por não se enredar em leitura de folhetins nem se

ocupar em cachear os cabelos, de modo a torná-los mais angelicais, é que talvez tenha

sobrado tempo para participar mais dos rumos dados ao próprio ―destino‖.

Não é à toa que, ainda sob o signo da mocinha que reside na casa do Limoeiro, ela

trame, preparando o caminho que a conduzirá, de fato, a ter as rédeas da vida na própria mão.

E mesmo com Liberato, por quem fora seduzida, ou melhor, ―desonrada‖ (MMM, p. 33), e

―que era perigoso‖, a moça arranja um ―jeito de dar-lhe a última palavra‖ (MMM, p. 332).

A morte de Liberato, e em seguida a de Jardilino, este sim seduzido por ela, é

tramada de modo a tornar inconteste a sua condição de mocinha indefesa. Neste momento da

194

narrativa a heroína usa, conscientemente, deste artifício, para se livrar de qualquer acusação

contra ela. Ou seja, outro é o objetivo em Memorial de Maria Moura, mas, com este

comportamento a heroína, à luz de Rocha-Coutinho, dá um bom exemplo de alguém que ―tece

por trás dos panos‖. E embora haja no romance quem duvide da completa inocência dela, uma

voz ―alheia‖ ao discurso aposta que alguma ela aprontou (MMM, p. 37), isto vem denunciar,

por sua vez, o caráter dissimulador da moça. Matar os dois, em resumo, significa remover o

obstáculo que representam, em princípio, à sua liberdade e depois à sua capacidade de exercer

domínio.

No que diz respeito ainda ao corpo sensual, a heroína, como se sabe, tem em

Liberato a sua iniciação, só mais tarde compreendendo que, para além do abuso dele, havia ali

uma sedução consentida por uma mulher desejosa e carente de realização:

Ah, bem se diz, carinho não dói. E talvez, desde menina, no fundo do coração, eu

tivesse inveja de Mãe: aquele homem enxuto de corpo, branco de cara, cabelo

crespo, mostrando os dentes sem falha quando se ria.

Começou mais como uma brincadeira. E aos poucos, bem aos poucos, é que foi

ficando uma brincadeira perigosa. (MMM, p. 24-25).

Assim, quanto mais se afasta na narrativa desse amor culposo, que lhe dá

remorsos, mais ela se torna uma mulher de ―corpo liberado‖, no sentido mesmo em que o

emprega Elódia Xavier (2007), em Que corpo é esse, baseando-se numa tipologia cuja gênese

se encontra em Arthur Frank (1996), também considerado neste estudo.

Adulta, Moura é senhora do seu prazer. Uma autonomia de prazer comparável

somente à do homem, parece querer dizer o texto, para o que se justifica também a sua

vestimenta. Ela tão resolvida é, neste sentido, que não deixa dúvida quanto à sexualidade.

Mulher inteligente, Moura cedo percebe que as roupas usadas pelos homens dão a eles mais

liberdade de movimento. E sendo a liberdade algo por que muito preza a heroína, resolve

investir nelas, portanto. Assim, tão à vontade se vê a moça dentro das roupas, que acaba por

convencer a todos que elas realmente lhe ficam bem, como atestam estas observações da

prima Marialva, logo que chega à Casa Forte:

195

Fazia anos que eu não via a minha prima. Parecia que estava mais alta, mais esguia,

metida nos seus trajes de homem, cabelo cortado na altura do pescoço. Duarte tinha

falado do modo de vestir de Maria Moura: ―Eu acho que ela escolheu essa roupa

para impor respeito à cabroeira. E, nela, não ficam mal‖.

É, a gente estranhava – mas não ficava mal. A Moura não era mulher de muito

quarto e muito seio, mas esguia de verdade, e bem mais alta do que eu. Calçada de

botas, rebenque no pulso, ela própria devia ter desmontado há pouco do seu cavalo,

que ainda estava selado junto ao alpendre. (MMM, p. 37).

Do ponto de vista da montaria, é, de fato, sobre o Tirano, nome também muito

sugestivo para o animal, que a heroína vive suas principais aventuras. Por intermédio dele, se

fosse atribuir uma ligação de Moura com o mitológico, sem dúvida, estaria sobre as amazonas

primitivas sua primeira identificação. No entanto, não se pode deixar passar esta ocorrência

narrativa, abaixo, registrada em meio aos primeiros ataques do bando. Trata-se do episódio

em que Moura, mais uma vez se servindo da imagem da donzela indefesa, planeja e toma de

assalto um comboio que, além da carga de mantimentos, portava grande quantia em dinheiro.

É João Rufo, empenhado em dar explicações, que tenta fazer o proprietário do Pouso acreditar

ser Maria Moura uma jovem ―meio mofina‖, que nunca fez grandes jornadas e, por pura falta

de adaptação, prefere não utilizar a sela de andilha, mais apropriada às moças. Ao que,

intervém o esperto homem, depois de ouvi-lo: ―— Mofina? Ela parece que nasceu em cima

desse cavalo!‖ (MMM, p. 145, grifo nosso).

Embora seja esta uma expressão corriqueira, que denote a aptidão da moça para a

montaria, a imagem, aparentemente despretensiosa da narrativa, faz lembrar uma outra, a do

centauro, que igualmente parece se fazer presente em Perto do coração selvagem, para evocar

a ligação de Joana, associada à adoração que tem por cavalos, ao mundo selvagem.

Se os cavalos representam para a heroína clariceana, por sua vez, uma

metaforização do desejo da protagonista, em Memorial de Maria Moura, ele é essencial para

o transporte da protagonista de Queiroz, possibilitando à donzela, mas também à guerreira,

como se verá no capítulo a seguir, toda uma movimentação.

As duas personagens vão estar distantes, ainda, no que se refere à corporalidade,

como é fácil perceber. A narrativa queirozeana, para o que constituiria descoberta do corpo, se

196

analisada tomando por base o banho de Joana, no primeiro romance de Clarice, recebe no

tratamento dado à questão uma apreciação também distinta. Em Perto do coração selvagem, a

revelação do corpo da heroína, por intermédio do recurso da emersão na água, evolui pra o

apagamento dele, como se percebe no desenvolvimento do texto. Já o banho, para Moura,

cercado de ―cuidados‖ e vigilância, deve servir de marco, no romance, também, para definir o

estágio em que a jovem, mais tarde dele distanciada, alcança a sua emancipação.

Há, em tais cuidados, ao que parece, uma tentativa de que o corpo permaneça

ocultado, protegido e por que não dizer contido de toda a sua expressão, como se vê, no

exemplo abaixo, em que Moura, dando continuidade às reflexões em torno do que era e o que

não era permitido às moças com as quais dividia tal costume, informa:

Restava ainda o banho no açude, tomado mito cedinho, a água ainda morna. Mas

banho só naquela hora certa, que os homens respeitam. Já sabem que não podem

chegar no açude e ai de quem vá espiar. Por causa de banho de mulher já tem

morrido muito rapaz adiantado, pela mão de um pai ou um marido mais zeloso.

(MMM, p. 65).

No espelho dessas águas, a mulher que nelas mergulha, em Memorial de Maria

Moura, pelo menos no que se processa ao longo do texto, é culturalmente disciplinada, só que

sem oferecer garantias nenhuma de que também assim possa delas emergir. Assim é que, de

um extremo a outro, a narrativa vai da mocinha que um dia teve o corpo vigiado, até na hora

do banho, ao encontro com a mulher, senhora de si e de seu corpo.

E se é por um processo disciplinar que a heroína vem regimentar as suas ações na

construção da Casa Forte, exemplo minimizado do que seria um corpo social, o mesmo não se

aplica ao corpo individual. Livre, ela o é, inclusive, para fazer dele o que bem quiser. Sem pai

ou marido a quem prestar conta, a corporalidade em que se afirma a heroína, neste romance, é

mais uma conquista, entre as que se somam para ela e, por extensão, para a mulher que

representa.

Por fim, é com a imagem do galo, repetida nas obras analisadas, que se deseja,

recorrendo à licença poética para a aplicação, finalizar esta discussão. Bastante comum no

197

interior do país e menos comum nas capitais, daí sempre o inusitado da presença dele nas duas

obras de Clarice Lispector, em estudo, este bicho parece cumprir com um papel anunciador,

que muito atende aos propósitos da escritora. Assim, aceitando esta imagem premissa e se

espelhando nos textos que dão sustentação ao corpo que se anuncia em O quinze, Perto do

coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria Moura, uma passagem, colhida

deste último, bem serviria, no afã da questão, para ilustrar a temática do corpo desenvolvida

em cada um. É a voz do narrador, em destaque nosso, perpassando a de Moura, que se faz

ouvir, a seguir, em forma de interlúdio: ―Afinal cantou o galo da madrugada. O da meia-

noite já tinha cantado e dormido outra vez. O de agora cantava e amiudava, a barra do

dia estava rompendo.‖ (MMM, p. 50).

O discurso, tomado, aqui, de empréstimo, faz pensar. Se no primeiro romance de

Rachel de Queiroz, para o que diz respeito ao corpo, ―o galo nem cantou‖, negada que é a

corporalidade para a heroína em O quinze, no primeiro romance de Clarice Lispector, em que

―o galo canta, mas a heroína não sabe aonde‖, tem-se bem a tônica da representação corporal

dela. Joana descobre um corpo para depois perdê-lo em Perto do coração selvagem, assim

como perdido para sempre vai estar o corpo de Macabéa em A hora da estrela. Somente

Maria Moura, no reflexo da mulher que para ela vai sendo edificada, tem a sua corporalidde

afirmada e garantida. E nesta perspectiva otimista, reside a esperança de que não tarde a

nascer, também por intermédio do corpo, esta tão desejada mulher. ―O [galo] de agora cantava

e amiudava, a barra do dia estava rompendo.‖

198

IV – MOURA E MACABÉA ENTRE MOTIVOS: A DONZELA-GUERREIRA E OS

MACABEUS

Conceição e Joana, personagens das obras de estréia de Rachel de Queiroz e

Clarice Lispector, por mais que pareçam diferentes, sobretudo na proposta de concepção,

acham-se em convergência neste estudo quando, relacionadas aos modelos de

representação do selvagem, sinalizam para uma compreensão da mulher simbolizada por

cada uma delas.

Isso se verifica com as protagonistas das obras inicialmente avaliadas e com

Moura e Macabéa que, na distinção, também oferecem subsídios de análise para outros

perfis de mulher no texto literário. De um modo geral, pode-se dizer que sejam quais

forem os caminhos que levam à representação dela em Memorial de Maria Moura

(MMM) e A hora da estrela (AHE), associada ao selvagem, um deles conduz o(a)

leitor(a) ao encontro com a donzela-guerreira, por um lado, e com os macabeus, por outro.

Juntos, os dois motivos narrativos constituem diálogos possíveis registrados pela

Literatura, a crítica, neste capítulo, circunscrita a estas últimas obras das escritoras, mais

especificamente às heroínas supramencionadas.

Há elementos dialogizantes entre os textos analisados e os textos precedentes, em

alguns casos, parecendo intenção deliberada da narrativa de promover o encontro. E se

não cabe falar de mito no romance e na novela em apreciação, pode-se dizer, ao menos,

que os motivos presentes nas obras estão muito próximos daquele. A donzela-guerreira,

por exemplo, está bem perto dos ―arquétipos‖, assim denominados por Jung para

personificar as fantasias do inconsciente coletivo.

Este inconsciente coletivo é universal, ―idêntico em todos os seres humanos, e

portanto, constitui um substrato psíquico comum de uma natureza suprapersonal

que está presente em todos nós‖ [...] São estes [arquétipos] os que produzem as

―imagens arquetípicas‖ comuns nos mitos, nos sonhos, na arte e na literatura,

199

―imagens universais que existem desde os tempos mais remotos‖. (RUTHVEN,

1997, p. 33).

Sendo a donzela-guerreira um motivo sobre o qual recai Memorial de Maria

Moura, cumpre aqui observar, à semelhança do que ocorre nos mitos, em que se pauta o

substrato de tal representação, especialmente porque este motivo e suas variantes

continuamente são utilizados em Literatura para figurar em contextos rurais, quando não

em remotos espaços nos confins do sertão.

Igual intenção se estende à novela A hora da estrela. A princípio, desperta a

atenção o nome Macabéa, registrado para a heroína. Este se origina em cultura distante, de

uso estranho à maioria e permite pensá-lo, à luz do paratexto, em relação a um referente

externo, cujo contexto também remonta à guerra. Ao utilizar-se da alusão para nomear a

personagem, o recurso narrativo, por intermédio dela, possibilita, então, recuperar

importantes informações da história da Bíblia. Sabe-se, por exemplo, que a rebelião

macabéia, organizada pelos judeus antigos, recebe esta designação em homenagem ao

cognome de um dos seus mentores, Judas Macabeu, protagonista de muitas peripécias

realizadas em reação à tirania de alguns líderes gregos.

A novela clariceana não deixa de recorrer a este motivo narrativo, na atualização

que faz para contar a saga da nordestina. Se, ainda que por sugestão, a história desta moça

faz lembrar a experiência vivida pelos macabeus, o texto de Ruthven (1997) mais uma vez

auxilia esta análise, sendo esclarecedoras as considerações que faz em torno do grau de

politização dos mitos, principalmente quando o assunto se referir a fábulas etnográficas.

Estudar a obra sob este aspecto exige, portanto, que renovada seja a atenção.

Há uma relação tênue entre mito, religião e realidade, isto se comprovando, por

exemplo, na guerra dos macabeus. Inicialmente religiosa, seu desdobramento resulta, por

fim, em uma disputa política, quando então são demarcados, por negociação, os territórios

judaicos. Vista por um ângulo associativo, pode-se dizer que a movimentação de

200

Macabéa, em A hora da estrela, também se dá a partir de uma ótica e de um território

socialmente demarcados. Por este prisma, falar da mulher, ou de um outro que se

representa, e falar da demarcação de territórios na Literatura Brasileira passa, de forma

semelhante, pelo viés político.

O estudo da personagem Maria Moura, por sua vez, pelo parâmetro da donzela-

guerreira, liga-se à representação do selvagem, visto negativamente como um outro. Este,

sendo feminino, aparece carreado de novos significados no texto queirozeano. Na pista do

símbolo, a heroína, para além do espaço físico, em Memorial de Maria Moura, vai ocupar

também um espaço social selvagem. Avaliar estes espaços de representação social,

todavia, implica perceber o nível da associação simbólica. E, para alcançar este propósito,

vale repetir, importantes são os conceitos de natureza e cultura, empregados de forma

relativizada, sempre que possível for. Para o cotejo entre a personagem e a donzela-

guerreira, sem dispensar de todo o mito das amazonas, deve-se levar em conta, também, o

tratamento entre formas simples e formas complexas, no sentido em que as emprega

André Jolles (1976) para a configuração da narrativa.

A figura emblemática da donzela-guerreira é recorrente em algumas civilizações e

decorre da História à Mitologia. Em Literatura, sua presença se faz sentir comumente para

configurar, em determinada personagem, traços básicos de uma personalidade forte.

Geralmente, é assim apresentada:

Filha de pai sem concurso de mãe, seu destino é assexuado, não pode ter amante

nem filho. Interrompe a cadeia das gerações, como se fosse um desvio do tronco

central e a natureza a abandonasse por inviabilidade. Sua potência vital é voltada

para trás, para o pai; enquanto ela for só do pai, não tomará outro homem [...] Filha

única ou mais velha, raramente a mais nova, de pai sem filhos homens, corta os

cabelos, enverga trajes masculinos, abdica das fraquezas femininas – faceirice,

esquivança, medo -, aperta os seios e as ancas, trata seus ferimentos em segredo

assim como se banha escondida. Costuma ser descoberta quando, ferida, o corpo é

desvendado; e guerreia; e morre. (GALVÃO, 1981, p. 08-09).

No que diz respeito à temática selvagem, há, como é esperado de um conceito que

se volta para o mito, algo de natureza primitiva, de um ideal propagado em valores universais.

201

Seguindo, então, o pensamento de Jolles (1976), para quem formas simples como o mito são

passíveis de atualizações históricas, de onde derivam as formas literárias mais complexas, a

donzela-guerreira tradicionalmente vai encontrar no mito grego das amazonas o seu

equivalente anterior. Embora a origem desta figura esteja distante da cultura brasileira,

cabendo aos gregos disseminá-la, o motivo da donzela-guerreira veio para o país pela mão dos

europeus. É sabido que, ao chegar aqui, trouxeram na bagagem, além de sonho e cobiça de

ouro, um rico imaginário acerca deste Novo e desconhecido Mundo. E este imaginário, como

bem lembra Oliveira (2005, p. 43), ―fora forjado com os mitos, as formas, os temas e os afetos

da cultura de origem, como ilustra a adaptação nacional do mito grego das amazonas, presente

nos discursos inaugurais sobre o Brasil‖.

Os exploradores, ao aportarem, provavelmente viram nas encantadoras índias, que

surgiam do desconhecido da selva, a presença mítica das guerreiras gregas. Na narrativa

original, estas eram mulheres arqueiras, conhecidas pela destreza nos combates. Juntas, elas

formavam uma espécie de sociedade matriarcal. Cumpriam ritual que dispensava a prole

masculina, nascida de consórcios eventuais com outros guerreiros, reservando-se apenas no

cuidado em educar as meninas, futuras guerreiras da tribo. Tanta importância tinha para as

amazonas o manejo do arco, que elas chegavam a extrair o próprio seio, com o intuito de

assegurar uma melhor adaptação do instrumento de guerra ao corpo. É daí que vem o nome a-

mazon, ou, mulheres sem-seio (OLIVEIRA, 2005, p. 43).

A propósito delas, em se tratando de romance brasileiro, Mário de Andrade (1997),

em Macunaíma, dedica-lhes uma bela homenagem quando, em forma de paródia, se dirige,

numa carta escrita na narrativa, às Icamiabas, uma nação de mulheres guerreiras. Estas são

representadas, na obra, pelo comando de Ci, a Mãe do Mato, imediatamente reconhecida pelo

falso herói, quando com ela se depara pela primeira vez, conforme testemunha a narração:

202

―Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de mulheres

sozinhas‖ (ANDRADE, 1997, p. 18).

As amazonas, mencionadas, pertencem ao que Klaas Woortmann denomina, em

texto já mencionado, selvagens imaginários, a manter relações com os seres reais, embora

com eles contrastando. E por falar em imaginário, a arte brasileira comprometida com um

projeto político-literário, que atenda à necessidade primeira de construir uma identidade

genuinamente nacional, faz com que as índias, vistas pelos colonizadores, sejam alçadas,

idilicamente, no plano estético, ao nível de símbolo nacional. Passado esse primeiro momento

romântico, no entanto, e havendo urgência ainda de dar continuidade ao ―descobrimento‖ do

Brasil em Literatura, o romance evolui e a tendência regionalista surge como possibilidade

crítica de discussão, a valorizar o que se convenciona chamar na arte brasileira de regiões

literárias. Por esta ótica, para falar de Nordeste, e, por indução, do país, a figura do sertanejo

concorre, em síntese, para a ocupação do papel já desempenhado pelos indígenas, quando

proposto o ideal de uma identidade.

De posse destas informações e considerando que etnografia muitas vezes se

confundiu com mitologia, como lembra Woortmann (2000) acerca da História Antiga, cada

vez mais interessante fica aproximar/distanciar as mulheres representadas por Moura e

Macabéa, no que cada uma revela de sua identidade, do arquétipo das donzelas-guerreiras.

Começando por Maria Moura, é possível afirmar, de imediato, algumas

particularidades da heroína queirozeana que se equiparam às apresentadas para as amazonas

guerreiras: a coragem, determinação, destreza nas armas, auto-sacrifício. Também das

amazonas se podem notar reflexos nas donzelas-guerreiras, como demonstra Valdeci Oliveira

(2005, p. 43), em trecho citado:

Se cotejarmos o mito das amazonas com o motivo donzela-guerreira, veremos

haver entre eles vários pontos de aproximação. Destaco, entre eles, o fato de que

ambas as figuras são mulheres destemidas e belicosas, capazes de virar pelo avesso

os estereótipos da fragilidade feminina. Ainda podemos aproximá-las no episódio

referente à ocultação dos seios como parte anatômica definidora do sexo feminino.

203

Mas aqui há uma diferença de peso, pois, enquanto a donzela-guerreira

simplesmente os oculta sob o gibão de couro, a radicalidade das amazonas vai

mais longe porque os mutila, ou mutila um dos seios apenas. (Grifo nosso).

Como se vê, tais representações dialogam e, especificamente, é sobre esta

encouraçada ―donzela‖ de gibão que o texto se debruça inicialmente. Antes, porém, é

conveniente trazer à baila da discussão elementos que não só sustentam a imagem como

contribuem para uma melhor compreensão da heroína que, oscilando entre papéis

masculinos e femininos, irrompe, impondo-se sobre um mundo apregoado falocêntrico.

Ainda que antecipado seja o julgamento, bom perceber que há em torno deste motivo uma

tendência em construir uma desigualdade representada em cima da diferença que favorece

o imaginário masculino. Isto é igualmente assegurado por Walnice Nogueira Galvão

(1981, p. 20) quando destaca que:

Sendo muito menor a pressão da fantasia feminina no sentido de obrigar um

homem a ter destino de mulher, pode-se avançar a hipótese de que a Donzela-

Guerreira, antes de ser uma aspiração feminina, é mais uma fantasia masculina,

afirmação que se fundamenta em resquícios que ficaram agarrados à representação.

(GALVÃO, 1981, p. 20).

Marcado na configuração pela oposição cultural entre homens e mulheres, como se

vê, o modelo apresentado age, portanto, em favor da dominação masculina e não em nome

de um propósito que vise à igualdade, ainda que utópica, entre os sexos. Figura ambígua,

em princípio, é demonizada em sua diferença. Na perspectiva medieval, por exemplo,

chega a ser igualada às feiticeiras, o que contribui para fazer dela uma ―mulher marginal‖,

―solitária‖ e ―segregada até espacialmente para o lado de fora da comunidade‖ a que

pertence (GALVÃO, 1981, p. 09).

De uma maneira geral, seja na mitologia, na religião ou na arte, a figura se faz

presente, como demonstra levantamento feito por Galvão (1998), em A donzela-guerreira:

um estudo de gênero, ao apontar e discutir suas distintas formas e veículos de

representação. O elenco vai de Palas Atena, Atalanta, Camila e Joana d‘Arc, até nomes da

204

história mais recente como Maria Quitéria, Maria Úrsula e Anita Garibaldi, só para ficar

nos mais conhecidos.

Entre seres reais e imaginários, todas, postas em destaque, cumprem determinação

de guerrear. Quando donzelas-guerreiras completas, andam armadas e se vestem de

homem. Sendo a guerra, na realidade, uma área em princípio vedada à experiência

feminina, disfarçar-se é a maneira encontrada por elas de burlar a proibição.

Em Literatura, muitos são os registros de sua aparição. Entre eles, merecendo citar,

no caso brasileiro, as peripécias de Diadorim em Grande sertão: veredas (2001) que,

como lembra Galvão (1998, p. 173), ―vem se expor completa em todos os traços, tal como

nos rimances ibéricos‖. Nesta obra, o sertão, símile espacial da aventura nas narrativas

medievais, apresenta-se como palco perfeito para as muitas andanças da personagem.

Que o tema da donzela-guerreira tem permanecido em nossas letras, isto é fato,

comprovado, inclusive, por romances da Literatura publicada posteriormente ao registro

das obras contempladas por Galvão, a exemplo de Memorial de Maria Moura (1992), em

estudo, que, entre repetições e inovações, desenvolve, sob o reflexo desta temática, a sua

aventura heróica.

Entre as perspectivas que o livro vai oferecendo, pela lente de diferentes

personagens, o(a) leitor(a), aos poucos, vai conhecendo a história da jovem. É sob a

suspeição de um crime, admitido pela moça, em confissão a um padre, que a narrativa, no

recurso do flashback, se inicia. O confessor, a troco de asilo, uma vez que é na condição

de foragido que busca em Moura proteção, oferece, no texto, ainda que de forma velada, o

segredo dele pelo dela, exercendo com isso, então, o papel de denunciador secreto da

heroína. A primeira falta de que se tem conhecimento é acobertada por este padre, o Beato

Romano, e constitui na história o gérmen para os demais crimes cometidos por Maria

Moura.

205

Matar o padrasto é o primeiro de uma sucessão de assassinatos, encomendados,

como parece defender a narrativa, em reparo da honra. Luís Liberato sempre foi para

Moura uma afronta à memória do pai. A própria morte da mãe da heroína tem indícios

criminosos. O suicídio pode ter ocorrido por achar-se desgostosa com o companheiro,

mas, não se deve desconsiderar, também, que o plano de Liberato tenha ido exatamente

nesta direção: realizado para parecer suicídio. Que o homem com o qual vivia a mãe de

Moura tinha interesses escusos, disso não há dúvida, tanto que a senhora nunca quis com

ele casar, para não ter que lhe passar direitos sobre a propriedade. Acaso imaginava o

moço que, morrendo a mãe, ficava mais fácil ―dobrar‖ a filha? Logo Liberato vai

descobrir o engano.

A jovem Moura, ao decidir matá-lo, vinga, sobretudo, as mulheres da família.

Ela própria fora vítima dos abusos do homem que dela se aproveitou, em substituição à

mãe amante. Não bastasse isso, Liberato faz chantagem e amedronta a heroína que,

diferente da mãe, reage, invertendo o jogo. Em vez de morrer, ela mata, sob a

condescendência de um discurso que será uma constante no livro: ―era sempre ou eles, ou

eu.‖ (MMM, p. 27)

Um crime foi levando a outro, sempre magistralmente encobertos. Bem sucedida

em suas andanças, o poder de mando de Maria Moura vai se notabilizando quando ela,

dando-se por sozinha, assume a administração do patrimônio herdado. Desde cedo

contrária ao casamento, o que a personagem deseja mesmo é ter o governo da própria vida

em suas mãos, o que não tarda a conquistar, ainda que para isso tenha que se valer das

armas. E a disputa das terras com os primos, que após a morte da tia aparecem para fazer

valer o direito de herança, é só o começo da grande batalha.

Acossada, afinal não podia matar os primos sem que a suspeita se voltasse sobre

ela, principal beneficiada, nem tampouco negar a condição deles como herdeiros, já que

206

eram donos de dois terços da herança, Maria Moura sente, inclusive, a opressão judicial

que cobra dela o cumprimento da lei. Moura, no entanto, permanece segura em não ceder.

E enquanto decide reunir os cabras para enfrentar com ela aquela questão, os iludidos

primos, sobretudo o Irineu, esperam domá-la a todo custo, sendo o almejado casamento

apenas uma das formas de repreensão. Veja este diálogo, enquanto os dois discutem a

rebeldia da moça:

─ Na mão de um marido macho mesmo, ela se aquieta. Nem que seja a poder de

relho.

Agora, quem de novo não gostava era eu [Tonho]:

─ Eu nunca bati em mulher.

E ele:

─ Ora, mano! E a surra de peia que você deu naquela Sabina Roxa? A pobre ficou

uma semana em folhas de bananeira, para sarar o couro.

─ Quando eu digo mulher, é outra coisa. Aquilo era só uma quenga. Moleca muito

sem vergonha.

─ Pode ser. Mas você quase matou a rapariga. (MMM, p. 53, Grifo da autora).

Se para eles a mulher tem que ser dominada, o lema propagado por Irineu é;

―quem come do meu pirão, leva do meu cinturão‖ (MMM, p. 54), Maria Moura insurge-

se contra esta perspectiva, numa detestável surpresa para os primos. Assombro maior eles

terão quando, acobertados por um direito, ainda que sem a autorização de um mandado de

busca, vão tomar a parte deles nas terras e a moça, devidamente paramentada para o que a

ocasião exige, heroicamente revida, ateando fogo em tudo. Ela prefere que o fogo

consuma a propriedade a ter que ceder naquela querela com os dois rivais. Este, sem

dúvida, é um momento limítrofe para a personagem, na obra, pois demarca a sua inserção

no mundo guerreiro. Ela, neste episódio, principiante, porém determinada, faz a sua

estréia no manejo das artes bélicas:

E eu que quase me esquecia da munição! Boa guerreira que eu ia ser! Mas a gente

aprende, aprende.

[...]

E aí eu dei outra prova da minha inocência:

─ Pois eu pensava que pólvora se compra junto com as armas e vem tudo de país

estrangeiro...

Ainda me falta muita coisa para aprender!

João Rufo até se riu:

─ Ninguém pode esperar que uma moça de família saiba dessas coisas. A

sinhazinha nunca lidou com pólvora.

207

─ Você pode mesmo dizer que, até pouco tempo, a Sinhazinha nunca tinha visto

um dedal de pólvora. Mas vou aprender. Aprender e ficar sabendo. Todo homem

não aprende? Eles não nascem sabendo. (MMM, p. 45).

A representação da heroína Moura guarda com o motivo da donzela-guerreira,

como se pode notar, o matiz das narrativas de aventura, muito próximas, inclusive, das

novelas de cavalaria, co as quais se relaciona. A ambigüidade caracterizada já no nome,

composto na tentativa de fundir semas contrários, desorganiza no conceito o que em nível

cultural, vale relembrar, representa sanções impostas ao feminino. Exemplo disto pode ser

fornecido no primeiro encontro que há, na narrativa, entre Maria Moura e Jovelina, a

selvagem. Espantada, ao ouvir a voz de uma mulher contrastando com os trajes

masculinos que estava usando, ela dispara:

— O sinhô é mulher?

Todo mundo riu, eu também.

— É, eu sou mulher; sou uma moça. Ando vestida de homem porque dá mais jeito

para montar a cavalo. (MMM, p. 237).

Curiosamente parece haver, na atribuição do nome da personagem, em Memorial

de Maria Moura, semelhante objetivo de fusão. Maria é nome feminino, talvez o mais

generalizado para o batismo da mulher, sobretudo em contexto católico cristão. Já o

sobrenome, o Moura ou a Moura, comum aos dois gêneros, contribui para tornar dialética

a identidade da jovem.

Das características apresentadas pela donzela-guerreira, a fragilidade,

supostamente atribuída às mulheres, e uma das verdades mais caras ao patriarcado, é

contestada pela heroína, tendo em vista o comportamento que assume no texto, estando na

perturbação desse conhecimento estereotipado o seu principal dilema: unir ―a pureza e a

fragilidade de uma donzela com a força moral e a belicosidade de um guerreiro. Essa

contradição delineia o perfil da figura e dá-nos a especificidade de seu caráter.‖

(OLIVEIRA, 2005, p. 48).

208

A disposição de Moura em aprender, todavia, é fundamental para a concepção de

um novo modelo para o qual a heroína quer se voltar. Determinada, o pensamento da

heroína faz lembrar a responsabilidade da conhecida citação de Simone de Beauvoir, ao

iniciar o segundo volume de O segundo sexo (1980) afirmando que ninguém nasce

mulher, torna-se uma. De forma idêntica, tem-se, na ilustração acima, Moura, empenhada

em tornar-se guerreira. E interessante é perceber que a observação é válida também para

os homens que arrebanha em bando, seus futuros pares nas empreitadas em que participa.

Eles, argumenta a moça, em prol de uma visão supostamente igualitária, aprenderam a

guerrear, portanto, como ela, não nasceram sabendo.

A ―inocência‖ da jovem, mencionada anteriormente, mais que despreparo para a

guerra, revela um estágio em que a personagem está presa ainda aos referentes da

sinhazinha ―donzela‖. Uma ―moça de família‖, como quer João Rufo, não tem obrigação

nenhuma de ter conhecimento sobre as armas. No entanto, empenhada em refutar esta

idéia, repare-se, no trecho narrativo citado, a ênfase que Maria Moura dá a esta

observação, ligando a imagem da ―sinhazinha‖, despreparada, a um passado do qual

almeja se distanciar.

Há aproximação entre os perfis das heroínas, Maria Moura e donzela-guerreira,

sem dúvida, cujos exemplos a narrativa queirozeana encarrega-se de demonstrar.

Entretanto, vale antecipar, sem conseguir sair da dualidade, entre a donzela e a guerreira,

prevalece para a heroína a última distinção. A predisposição guerreira de Maria Moura se

evidencia desde as primeiras páginas da obra de Rachel. ―Coiteira de perseguidos‖, sendo

a própria protagonista um deles, Moura reúne para si uma tropa bandoleira, identificada,

no decorrer da obra, como tropa bonita, de gente nova e resolvida (MMM, p. 277). Esta

reúne vários ―guerreiros‖ (MMM, p. 185) como diz o velho Amaro, se referindo aos

homens por ela comandados. E a Casa Forte, QG da Moura, em tudo seria uma fazenda

209

igual às outras, ―não fosse aquele jeito quase de quartel.‖ (MMM, p. 14). Não por acaso,

quando reunidos os cabras no pátio da fazenda, tudo aquilo parece aos olhos do padre, o

Beato Romano, uma personagem paralela, verdadeira ―praça de guerra‖ (MMM, p. 20).

Se o lugar já denuncia, Maria Moura, mesmo, empenhada em investir em sua

nova condição, cedo cuida de usar o disfarce guerreiro. Não bastasse o jeito de encarar,

―que parece um homem, olho duro e nariz pra cima, igual mesmo a um cabra macho‖

(MMM, p. 55), ela, não se dando por satisfeita, toma para si as roupas e a montaria do

pai. Para completar o ritual de passagem, demonstrando deixar para trás a sinhazinha do

Limoeiro, ela corta, diante de seus homens, o cabelo na altura do pescoço (MMM, p. 87).

O disfarce, tão caro às narrativas sobre os feitos de uma donzela-guerreira, porque oculta a

sua verdadeira identidade, serve, no romance queirozeano, aos de fora que, não

reconhecendo nela uma mulher, tomam-na como um dos cabras, o que traz ao personagem

João Rufo, um fiel escudeiro, é preciso que se diga, uma preocupação a menos em seus

cuidados com a moça, que ajudou a criar e que os rapazes tinham visto menina.

No esteio da transgressão, já em criança, os modos de Moura andar a cavalo,

escanchada, contrariava o das outras meninas. Sobre esta observação, é válido lembrar de que

o imaginário que cerca a donzela-guerreira, nos textos em que ela figura, cumpre com um

papel social desestabilizador. Com um outro modo de ser, a jovem, embora não questionando,

ameaça valores patriarcais. Assim é que, ainda mocinha, os sonhos de liberdade de Maria

Moura não só não coincidiam com os previamente esperados para o comportamento de uma

donzela, como escandalizavam a mãe (MMM, p. 90).

Na verdade, quase nenhuma influência esta exerce sobre a filha. Em Memorial de

Maria Moura, a admiração que a heroína reserva ao pai, ausente de filhos homens, é símile do

modelo de referência. No romance, é do progenitor, inclusive, o projeto de ocupação da Serra

dos Padres, retomado para ela na narrativa. Trata-se de um território selvagem, herdado do

210

avô e reclamado por direito. É Moura quem indaga: ―João, os outros eu não sei; mas você não

se lembra do Avô e Pai falarem nas terras da Serra dos Padres, que são nossas de direito,

desde quando ainda andava índio por lá?‖ (MMM, p. 84).

Interessante notar que no momento em que a heroína inaugura ou investe numa

condição extremamente nova para ela, haja, no romance, de forma sugestiva, um território

selvagem à espera que possa conquistá-lo. É em busca dessas terras que a personagem sai,

disposta a fazer a guerra. Chegando lá, encontra uma gente primitiva, um pouco melhor do

que os selvagens de outrora, de modo que, ficando fácil conquistá-la, logo faz dali o seu

―condado‖ (MMM, p. 244). A prosperidade do território da Moura, todavia, sempre

dependeu do sucesso dos saqueadores a serviço dela. Que as armas da heroína andavam

nas mãos da cabroeira, isto é fato. Ela, porém, garantindo a si própria o poder de mando,

alertava-os: ‗Vocês atiram, mas sou eu que escolho a hora de puxar o gatilho‘. (MMM, p.

266).

Estas armas, empunhadas em determinado momento contra os gananciosos

primos, são também uma herança do pai da moça que ―devia ter deixado para defender a

filha dos ataques de homem, que é coisa que não falta a mulher, neste mundo.‖ (MMM, p.

37). Insuflada pelos primos, então, ela é movida na narrativa pelo desejo de vingança. A

determinação da personagem talvez tenha origem paterna, mas não se basta nesta. É

Moura mesmo quem lembra de que o Pai até pensava em cobrar as cobiçadas terras, mas,

―tinha que brigar [com a gente que lá estava], formar um grupo armado, abrir luta. Ele

então foi deixando para depois‖ (MMM, p.85). Muito diferente, entretanto, é a

perspectiva da heroína, para quem, desde sempre, os propósitos estiveram definidos, como

se lê a seguir:

A minha idéia era ir levando os cabras a se acostumarem na luta, porque da luta é

que ia sair o nosso pão de cada dia. Tinha muito com quem brigar nesse mundo

afora – porque eu já estava convencida de que, nesta vida, quem não briga pelo que

quer, se acaba.

211

Eu queria ter força. Eu queria ter fama. Eu queria me vingar. Eu queria que muita

gente soubesse quem era Maria Moura. Sentia que, dentro da mulher que eu era

hoje, não havia mais lugar para a menina sem maldade, que só fazia o que a mãe

mandasse, o que o pai permitisse. (MMM, p. 123-124).

A personagem sabe pelo que briga e não entrega fácil um direito adquirido,

como se pode notar no caso do incêndio no sítio Limoeiro quando ela, reunindo homens e

armas, à disposição, faz a sua estréia como guerreira (MMM, p. 44-45). Àquela altura, a

moça, autônoma por convicção, precisava pôr em prática os ideais libertários. Além do

que, nenhuma autonomia é o bastante se não se confirma numa vida prática. Força, fama,

poder, tudo isto vai ser conquistado por Moura à medida que vai angariando riqueza e

garantindo não só moral como materialmente a existência do grupo formado por ela.

Ela também tem consciência de que a morte do pai tem para ela importante

papel, uma vez que lhe permite preencher, ainda que em perspectiva distinta, uma vaga já

ocupada por ele. Ao tomar o lugar do pai, posição destinada aos irmãos, natimortos, a

heroína em tudo será uma mulher diferente. Da forma de se vestir à forma de se

relacionar, Moura transgride as normas de um patriarcado, definindo-se numa posição

social independente. São reflexões dela o que se segue:

Ah, Pai, se o senhor não tem morrido, a vida nossa seria tão diferente. Talvez eu já

estivesse casada, dormindo nos braços do meu marido. (...) No que toca à minha

vida – minha vida particular – só me resta ser eu mesma o meu pai e a minha

mãe. E quem sabe o meu marido. (MMM, p. 232, grifo nosso).

Ao romper com as relações convencionais, cultivando para si uma espécie de

androginia, marcada que é, na aparência, pela vestimenta masculina, Moura, vale repetir,

guarda semelhança com a imagem da donzela-guerreira. Mas, é uma semelhança à

primeira vista, uma vez que, ao se observar com mais acuidade, logo ressaltam as

diferenças entre elas. É verdade que contribui para a aproximação tanto as vestes da

heroína, a roupa escolhida talvez ―para impor respeito à cabroeira‖ e que ―nela, não fica

212

mal‖ (MMM, p. 358); como as andanças mesmas promovidas pelas ‗correrias de estrada‘

(MMM, p. 395).

Esta associação, aparentemente deliberada pela narrativa, se comprova no

surpreendente impacto que ela causa em Cirino, no primeiro encontro dos dois. O rapaz vai à

fazenda devidamente ciente da importância da jovem, do pavor e do respeito que impõe a sua

aparição. No entanto, diante dela, não deixa de reparar, a despeito de outra opinião, que havia

ali uma mulher por dona da situação. É o que diz:

[...] eu também ouvi muita história a seu respeito. Por isso fiquei pensando que era

uma mulher curtida da vida, quem sabe uma velha. E chego aqui, encontro essa

moça bonita, parece até que está brincando de fingir que é homem. Já li um livro

que tinha uma mulher assim. Um romance. (MMM, p. 363).

Provavelmente o moço se refira ao romance da donzela que vai à guerra, novela

que circulou em Portugal na Idade Média e, de inspiração cavaleiresca, serviu de modelo a

outros romances, de narrativas posteriores. A novela de cavalaria atravessou os séculos e

repercutiu aqui mesmo, no Brasil, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do

século XX, onde encontrou interessados leitores. Por esta razão, não é difícil encontrar na

produção literária brasileira, principalmente a de contexto regional, modernista ou não,

referência a obras ou personagens de tais produções. Em Memorial de Maria Moura,

embora a heroína negue qualquer leitura de romance, dissuadindo a idéia de Cirino de que

talvez tenha buscado em algum deles uma identificação, fica-se sabendo que o pai da

moça tinha um livro que vivia lendo e do qual gostava muito. Aliás, fora nele que Moura

aprendera a ler. Trata-se da novela a Vida do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares

de França (MMM, p. 364-365), talvez a mais popular entre os leitores brasileiros.

Em que pesem estas pistas do enunciado, há intenção, sem dúvida, de aproximá-

la da figura, mas é bom o(a) leitor(a) reter a idéia de que está diante de uma versão

modernizada do conceito. Apesar da eventual semelhança, não são poucos os registros em

que a heroína subverte o modelo primeiro. Nesta perspectiva, refutadas são as

213

características da donzela, a iluminar a guerreira. Pelo conceito, a donzela-guerreira, filha

única de pais sem filhos, vai à guerra, travestida de homem, constituindo nisto o segredo

da jovem. Ela cumpre exigência de castidade e luta em pé de igualdade com os demais

guerreiros. Jamais se casa. Se isto acontece ou se o disfarce dela se revela, ficam

comprometidas as identidades da donzela e da guerreira.

Maria Moura, na narrativa, em defesa de uma corporalidade para a heroína,

desenvolvida no terceiro capítulo deste trabalho, afasta-se do modelo da donzela. Muito

pelo contrário, a sexualidade cedo chega para a personagem. E se isto se inicia de uma

maneira culposa, tão logo Moura assume os seus desejos como expressão de uma

vitalidade que só confirma, ainda mais, a sua autonomia.

Apesar de se identificar com o pai, Maria Moura supera-o em determinação, como

já foi observado. O próprio corte de cabelos que representa no modelo uma passagem da

donzela para a guerreira não ocorre em sigilo, como deveria sê-lo. Moura o faz diante de seus

cabras, marcando com aquela tosa o fechamento de um ciclo. Com o gesto, a personagem, ao

que parece, mais que a imagem de donzela, que ainda por ventura tenham dela, quer deixar

para trás a imagem da sinhazinha da fazenda. Quanto à indumentária masculina, bom não

esquecer, também, que todos que ingressaram na companhia dela o fazem sabendo estar em

presença feminina, não sendo enganados e, portanto, não havendo no texto o que revelar

quanto a isso.

Embora haja nítido reflexo entre as duas figuras, não há dúvida, a donzela Moura é

insistentemente negada em prol da guerreira. A identificação com o lado masculino da

figura é maior talvez porque, na pista dos estereótipos, encontre nele uma virilidade

impensada para o ideal de mulher comumente propagada. Tamanha é a intenção que, para

refutar em definitivo a donzela que possa parecer a heroína, em Memorial de Maria

Moura, o texto apela para uma outra imagem, previamente conhecida para o que se

214

representa, a de São Jorge, o santo guerreiro. Assim feito, é com o santo protetor, agora,

que a narrativa a identifica, como atesta a passagem em que ela se exibe para o pessoal de

casa, encantado com a recente aquisição em ouro roubado, enfeitando o pescoço e os

dedos dela:

Vim me mostrar para o pessoal, especialmente para a velha Libânia, que caiu de

joelhos, de tão embelezada:

- Sinhazinha até parece uma santa!

E o Roque corrigiu:

- Santa, só de saia e manto. Sinhá Dona parece mesmo é com São Jorge

Guerreiro... (MMM, p. 179, grifo nosso).

Interessante é notar as associações que são feitas no livro, para ilustrar a questão.

Por exemplo, quando a personagem quis se reunir à tropa, pela primeira vez, ainda sob o

signo da sinhazinha, eminentemente marcado para ela, mesmo a moça já se empenhando

em desconstruí-lo, veja-se, em grifo nosso, a comparação feita, por ela, frente ao espanto

de João Rufo, diante daquela decisão: ―Se Santa Luzia ameaçasse nos acompanhar no

seu cavalinho, ele não se escandalizava tanto.‖ (MMM, p. 130).

A certa altura da narrativa, menos donzela e cada vez mais guerreira, as ―jóias‖,

acima referidas, parecem ofuscar uma para a iluminação da outra imagem. Deste modo,

coerente é o uso, a que recorre a narrativa, aproximando a heroína do cavaleiro da

Capadócia. Este, considerado na Idade Média Patrono da Cavalaria, seja porque

―cavaleiro corajoso, intrépido e vencedor‖, tem a história de seu martírio contado por

Alonso de Villegas no quarto volume do Flos Santorum, livro que narra a vida dos

santos. Visitando a adaptação do texto, preparada para o site da Igreja de São Jorge, fica-

se sabendo que a maravilhosa história deste santo também ocorre em meio à lenda, num

matiz poético que em muito condiz com a repetida invocação: ―Eu andarei vestido e

armado, com as armas de São Jorge‖.

Figura cercada de aparato militar, Jorge, a serviço do rei, mata o dragão para

defender uma donzela do sacrifício (Lenda). Como militar valoroso e também cristão,

215

insurgiu-se contra a perseguição religiosa. Defendeu o cristianismo, renegou os deuses do

império e por isso foi condenado à morte por decapitação. Antes que isso acontecesse, no

entanto, o cavaleiro é submetido a vários suplícios, não só sobrevivendo bravamente a

todos eles, como alcançando, a cada tentativa de morte, a conversão dos supliciadores

(História). Ou seja, o cavaleiro cristão jamais desanima, e, mesmo em grande aflição,

busca incansavelmente atingir os seus objetivos. Se nesta persistência, aparece uma

relação com Maria Moura, estão também nos imperativos guiar, defender e proteger as

metas que, respeitadas as diferenças, representam a profissão de fé dos dois heróis.

Ainda que, no intento da associação, o texto permaneça ancorado num modelo

de representação masculina, reiterando uma identificação culturalmente preconcebida, o

recurso da aproximação ao menos concorre para ajudar a dissipar uma dualidade

concebida de forma preliminar. A donzela que há em Maria Moura está posta às avessas,

conclui-se, não cabendo mais em Memorial de Maria Moura a sua idealização.

A figura de São Jorge, em seu cavalo, por sua vez, lutando contra um dragão é

obviamente uma metáfora de luta contra a opressão. E, no caso do romance em estudo,

serve bem ao propósito de um texto que se volta para a ação da personagem. Montada em

seu animal e liderando homens sob a sua proteção, Maria Moura enfrenta a todos que a

oprimem. É assim com o padrasto, o Jardilino, os primos, enfim, os que constituem no

romance obstáculo à sua realização. Outro empecilho, e que constitui talvez o maior de

todos eles, porque nem sempre possível vencê-lo, é o de lidar com uma sociedade

enrijecida em valores patriarcais já instituídos.

A luta da heroína, por associação, pode ser comparada, na atualidade, à luta e

conquistas das muitas mulheres, suas irmãs, cada vez mais ocupando, por merecer,

competentes espaços na sociedade, criativamente representados na Literatura. Se muitos

são os custos, a exemplo do que se estuda em Memorial de Maria Moura, muitos também

216

são os créditos sociais. Descortinar a relação desigual e reivindicar direitos de participação

na sociedade, ainda quando imaginada, é um deles. É verdade que o poder de mando de

Maria Moura, no livro, está restrito aos domínios do território que ela chefia. Fora dele, as

diligências que empreende se dão sempre à margem da lei. Suas solicitações, todavia, são

atendidas pela força que tem o oprimido quando se junta a outro.

De qualquer maneira, que não se desvaneça o pensamento que alimenta a

renovação. Quanta força não acumulariam as muitas Marias guerreiras que se tem por aí?

De Moura vem o exemplo de enfrentamento e permanência na batalha. E sendo incerto o

futuro da personagem, ela, que pouco caso faz dos presságios narrativos, deixa a sugestão,

ao fim do texto, de que se tiver que morrer, será lutando, morte que, a despeito de uma

punição, muito comum ao modelo de aventura com o qual dialoga, não é menos digna da

heroína que representa.

Maria Moura, no final do texto, só não conseguiu vencer o lugar-comum das

narrativas na qual se espelha. Ela, embora negando a maior parte da caracterização,

termina como as donzelas-guerreiras de outrora. Ainda que acompanhada do bando, é uma

heroína solitária que se movimenta na narrativa, parecendo marchar para a morte, preço

que deve pagar por conta de sua insurreição.

Numa discussão bastante contemporânea, para falar da mulher, cada vez mais

emancipada em seu tempo, e sendo ela própria uma delas, Rachel de Queiroz busca

contemporizar, oferecendo na narrativa, de forma simbólica, belos exemplos de sugestão.

Quem sabe o apelo para imagens já sedimentadas não se dê em função de que elas,

contendo a ideologia que quer propagar, talvez o façam na sutileza de quem não quer

atingir a susceptibilidade alheia. Assim, a escritora, embora não resolvendo, encontra a

sua solução. Tendo bebido bem da fonte que gerou as muitas donzelas-guerreiras de que

se tem conhecimento, ela leva o(a) leitor(a) a pensar, através do papel desempenhado pela

217

heroína Moura, a condição da mulher na sociedade, sem, contudo, criar animosidade com

o patriarcado.

E se a autora desloca a sua história para um passado, distante de quando escreve,

poético, mas, também rudimentar, as paragens agrestes do romance, neste sentido, vão

coincidir com o estágio de uma representação feminina transgressora dos moldes

patriarcais, posta ainda em bases inaugurais, embora mais dialéticas que em O quinze, por

exemplo, principalmente se considerado o cotejo com o desempenho da personagem

Conceição, da primeira obra estudada.

Por esta ótica, o selvagem que se quer em Maria Moura atende a um discurso

que não consegue sair do preliminar. Mesmo assim, cumpre com um papel anunciador. A

ambigüidade mesma, expressa na imagem da donzela-guerreira, é um meio termo para a

questão. Prevalece sobre a perspectiva da donzela-guerreira a visão de um ponto de vista

masculino e imperialista, no entanto, já não se pode negar que há ali um gérmen propício

a uma discussão feminista. A mulher, por mais que se tente negar, é um ser social e como

tal exige que se reserve para ela um lugar de direito na sociedade, nisto parecendo,

também, reclamar o conceito.

Revesti-la de símbolos, no romance, por sua vez, é sempre uma maneira

encontrada pela autora que, diante de uma sociedade não suficientemente preparada para

aceitar a mulher autônoma, quando representada na imagem de uma heróica figura,

também não a rejeita.

É como se o primeiro modelo, através do qual busca orientar o texto, tirando dele

os motivos para a sua narração, já trouxesse, em sua imanência, o cerne da discussão,

cabendo à nova criação repeti-lo ou renová-lo, atendendo, por sua vez, às solicitações da

vida social da qual participa a heroína. Assim, Moura, no rastro da donzela-guerreira,

dentro de um contexto socialmente arcaico e paralisante, no sentido de que a mobilidade

218

social para a mulher ocupar novos papéis é praticamente nula, abre frestas no discurso

patriarcal, oxigena, com isso, as relações e, no intuito de torná-las mais eqüipolentes,

procura também reinventá-las.

A metáfora da donzela-guerreira, por fim, é uma tentativa de condensação para o

duplo em que se vê envolvida a mulher, por comparação, nas demandas da vida e da

Literatura modernas. Como mulher, Maria Moura exige para si, no romance, um novo

modelo de inserção. Ela quer decidir o que é melhor para ela, escolher os seus caminhos,

ser sujeito e não objeto da história que participa. Isso, sem dúvida, faz da mulher uma

guerreira, mas, a exemplo do que ocorre no romance, ascender a esta condição, todavia,

não implica necessariamente abdicar de uma vida afetiva consolidada. Isto, longe do

idealismo da donzela, é realização pessoal.

Moura, como guerreira, condição pela qual opta o discurso, no romance,

conquista riqueza, fama, poder, respeito, admiração. Mas o(a) leitor(a) encontra-a apática

no final do livro. Sua investida numa nova operação, desnecessária e avaliada em todos os

riscos, mais lembra a disposição de quem já não se importa mais em perder. É preciso

seguir lutando, isto não se discute, mas é importante, também, não abrir mão das

conquistas. É que no esteio da emancipação, o somatório delas é que garantirá à mulher

sua nova realidade.

Espaço dessa representação e de muitas outras no campo artístico, o Nordeste, e,

mais especificamente, o sertão, com sua cultura própria e modo de vida arraigado em

tradições, fornece os subsídios necessários para um imaginário local. Só que, entre a

invenção e os muitos espaços reais no mapa do Brasil, há os desacordos. É assim no que

diz respeito aos territórios assim como é na idéia determinista que se estende à sua gente,

como bem comprova alguns exemplos de que se tem conhecimento.

219

Um Nordeste inventado como espaço da saudade, e veiculado pela literatura,

música, pintura, arte como um todo, é a tese defendida por Albuquerque Júnior (1999),

nisto se justificando já a idéia de uma região ligada ao passado. Em A invenção do

Nordeste e outras artes, o historiador, desfazendo essencialismos, critica os diferentes

discursos que ajudaram a construir esta imagem de Brasil rural, do atraso e de uma

natureza perdida. Seu objetivo sendo, com isso, segundo anuncia, tentar entender alguns

caminhos através dos quais se produzem o Nordeste na cultura brasileira, numa

importante convicção:

O Nordeste não é recortado só como uma unidade econômica, política ou

geográfica, mas, primordialmente, como um campo de estudos e produção cultural,

baseado numa pseudo-unidade cultural, geográfica e étnica. O Nordeste nasce onde

se encontram poder e linguagem, onde se dá a produção imagética e textual da

espacialização das relações de poder. [...] Neste trabalho, o geográfico, o lingüístico

e o histórico se encontram, porque buscamos analisar as diversas linguagens que,

ao longo de um dado processo histórico, construíram uma geografia, uma

distribuição espacial dos sentidos. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 23).

Tentar compreendê-lo, sob estes aspectos, portanto, é estudar a formação

histórica de um preconceito, em seu sentido mais literal. Ou seja, tomado numa visão

preconcebida, o Nordeste é inventado sempre na repetição regular de determinados

enunciados que se querem definidores do caráter da região e de seu povo. Ao estudioso,

então, fica reservada a tarefa de examinar as práticas e enunciados que deram

conformação a estas idéias.

Na construção espacial dos sentidos, empenha-se o analista histórico em avaliar

de que maneira tais discursos, em sua maioria nordestina, na tentativa de representar a

região, de forma visível ou dizível, o fazem de forma a consagrá-lo numa dada imagem e

texto que se impõem até hoje.

Nesta tentativa de reaprender a pensar o espaço, Albuquerque jr. (1999) pode

encontrar consonância de idéias em Marc Augé (2008), sobretudo no que se refere aos

220

―Não-lugares‖, estudo que faz do espaço, na supermodernidade, percebido por um viés

antropológico.

Para Augé, a organização do lugar, visto como fronteira demarcada entre

natureza selvagem e natureza cultivada, com sua divisão permanente ou provisória das

terras, das águas e da geografia (econômica, social, política e religiosa), tem muito de

invenção. E explica:

Este lugar comum ao etnólogo [...] é, num certo sentido (no sentido do latim

invenire), uma invenção: ele foi descoberto por aqueles que o reivindicam como

seu. Os relatos de fundação são, raramente, relatos de autoctonia, na maioria das

vezes, ao contrário, relatos que integram gênios do lugar e os primeiros habitantes à

aventura comum do grupo em movimento. A marca social do solo é muito

necessária porque nem sempre ela é original. O etnólogo, por sua vez, reencontra

essa marcação. Acontece mesmo de sua intervenção e sua curiosidade devolver

àqueles os quais ele investiga o gosto pelas origens, que os fenômenos ligados à

atualidade mais recente conseguiram atenuar e, às vezes, abafar: as migrações para

a cidade, os novos povoamentos, a extensão das culturas industriais. (AUGÉ, 2008,

p. 44)

Esta invenção, como se vê, fornece ao etnólogo a matéria-prima e o objeto de

estudo, mas pode oferecer, também, garante o autor, fantasias e ilusões. Ou seja, se assim

é numa percepção antropológica, o que Albuquerque Jr. apresenta, em sua defesa do

Nordeste, pode ser traduzido à luz de Augé, como uma dupla invenção. É invenção o que

está na arte, analisada por ele, assim como já é o espaço ao qual se reporta.

Apesar de assim ser, o lugar, apontado por Augé como dispositivo espacial vai se

definir, ainda, na discussão que desenvolve, em oposição aos ―não-lugares‖. Estes, por sua

vez, constituem verdadeiros portos de passagem e visam certos fins como transporte,

trânsito, lazer, comércio, todos muito próprios da modernidade.

Como se nota, a respeito desta informação, muito específico é o contexto para o

qual se volta o estudo do analista. Entretanto, se faz se distanciar do contexto das obras,

aqui estudadas, pelo menos no que se refere à ―deslocalização‖ do indivíduo (AUGÉ,

2008, p. 41), esta ganha identificação, neste trabalho, com o que vem sendo entendido

como ―desterritorialização‖ da personagem.

221

É o caso, por exemplo, de Macabéa, que apesar de ter a sua história acontecida na

cidade do Rio de Janeiro, a ela nunca se ajustou. ―Desterritorializada‖, em A hora da

estrela, ela é uma heroína enxertada numa cidade à qual não pertence, disso resultando

também grande parte de seu desajuste. Desajuste que passa pela lente do outro,

representado pelo narrador Rodrigo S. M., em sua vã tentativa de compreensão. A moça é

uma ―estranha‖ para ele. E a respeito desse distanciamento, embora outra seja a

perspectiva, Augé (2008, p. 37), se referindo aos ―civilizadores‖, argumenta: ―as culturas

exóticas não pareciam, outrora, tão diferentes aos observadores ocidentais que eles não

tenham ficado tentados a, primeiro, lê-las por meio das grades etnocentradas de seus

costumes.‖ Seria este o caso do narrador de A hora da estrela? É o que se tenta responder

ao longo da discussão que se segue.

Antes, porém, de adentrar nela, vale a pena chamar a atenção, nesta proposta de

diálogo entre protagonistas de obras diferentes, o quanto a conquista espacial se dá de

modo inverso para Moura e Macabéa. Se em Clarice Lispector a cidade se volta toda

contra a personagem, a ponto de rejeitá-la, em Rachel de Queiroz, não deixa de ser notória

a representação, no romance, da conquista de um território para Maria Moura. Só dela,

reivindicado por direito e assumido por posse. A Serra dos padres, terras pelas quais briga

Maria Moura, é também espaço de autonomia na obra queirozeana. Ela buscou, encontrou

e fez ali a sua, muito significativa, Casa Forte.

Toda esta discussão que envolve conquista ou não de espaço, nos textos literários,

em estudo, leva o(a) leitor(a), aqui, a considerar, também, o aspecto regional das obras em

apreciação. Desse modo, faz pensar em que medida serve, para o quesito figuração da

mulher, a imagem da donzela-guerreira, por exemplo, quando associada ao estereótipo da

―mulher-macho‖, veiculada com mais freqüência na literatura nordestina. Estaria naquele

ambiente ―fantasioso‖ o espaço apropriado para a representação?

222

Provavelmente os ―construtores do Nordeste‖, como Albuquerque Jr. os

identifica, da mesma forma que deram visibilidade à região, atrelada ao termo ―seca‖,

bebendo na fonte do passado, da memória e da tradição, também tenham contribuído para

figurar, principalmente na Literatura de cordel, esta imagem de mulher que, mais

parecendo ―homem‖, por invadir com sua prática os ―domínios‖ dele, em tudo difere das

muitas Luzias que se quer propagar. Ideal, por exemplo, alardeado em conhecido romance

de Domingos Olímpio (1996).

A Literatura popular, ao que parece, encontra no espaço referente ao Nordeste, sua

melhor representação. Todavia, identificada com o espaço que representa, comumente

fica, como ele, sujeita às mesmas sanções. É o que lembra o crítico, quando argumenta:

O cordel fornece inclusive a visão tradicionalista que impregnará parte da produção

sobre esta região. O ―primitivismo‖ ou o ―barbarismo‖ da fabulação oral parece,

pois, ser a forma mais adequada para expressar uma região cujo conteúdo também

se vê como ―primitivo‖ ou ―bárbaro‖, uma forma não moderna de expressão para

mostrar uma região também não moderna. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.

113)

Longe de querer discutir a problemática do cordel, o que importa aí, no entanto,

é voltar a atenção somente para esta percepção de alguns críticos, poucos amantes da

produção. Com base numa perspectiva enviesada, o Nordeste, conclui-se, sendo um ―lugar

selvagem‖, de ―homens-feras‖, primitivo também será em âmbito cultural. Assim tomado,

o cordel recebe, neste julgamento de valor, nítida desvalorização artística. Considerado

―menor‖, em arte, sua veiculação, por esta ótica, nada mais sendo que uma produção

também carente, como todo o resto que representa. Naturalmente esta é uma lógica

elitista, que estimula a segregação literária, revelando-se, por sua vez, na presunção da

existência de uma arte, por comparação, mais ―elevada‖.

No que diz respeito ao Nordeste representado na arte do romance, em O quinze,

como quer Albuquerque Júnior (1999, p. 145), mas também em Memorial de Maria

Moura,

223

Rachel de Queiroz se situa a meio caminho entre a construção do Nordeste como

um espaço da tradição, um espaço da saudade do mundo do sertão dos seus

antepassados, e o Nordeste como espaço da revolução social, como o espaço

antiburguês, ponta de lança de uma transformação social mais profunda no país, por

seu grau de injustiças e de misérias. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 145).

Que a autora vive um conflito entre o tradicional e o novo em literatura, o estudo

das obras torna evidente. Nordestina, falando de sertão, ambientando seus romances,

sobretudo, por lá, no que diz respeito à representação da região e da mulher, é nesta forma

ambígua que delas vai tratar. Se assim se processa no romance regional, fica-se

imaginando o que a última obra publicada por Clarice Lispector, atípica a esta primeira

classificação, pode guardar de revelação para esta análise. A autora, na novela em

apreciação, servindo-se talvez de sua infância nordestina, vai, de forma magistral, discutir

a temática do Nordeste, sem, contudo, fazer dele o ambiente da trama, assim como vai

inserir uma personagem feminina, entre os principais da novela, sem que demonstre com

isso real interesse por sua condição de mulher.

Mesmo parecendo andar na contramão do que, em princípio, se quer ver

representado, esta análise, na pista dos motivos narrativos, encontra neles uma relação.

Inicialmente importa chamar a atenção para alguns elementos estruturais como o espaço e

o tempo em que decorre a narrativa, assim como, aos poucos, ir identificando o ponto de

vista a partir do qual se desenvolvem os acontecimentos. Quanto a este, numa visão

preconcebida, o(a) leitor(a) cedo é prevenido: ―Desculpai-me mas vou continuar a falar de

mim que sou meu desconhecido‖ (AHE, p. 15). Esta necessidade do narrador de falar

mais dele, faz supor, tendo em vista sua importância como personagem, admitida em

discurso, que a outra personagem, embora importante, já seja ―conhecida‖. Resta,

portanto, perceber, ao longo desta discussão, em que base se dá essa constatação e se ela

produz ou reproduz conhecimento sobre a nordestina.

Na perspectiva, portanto, de um Nordeste ligado a um tempo anterior, e por que

não dizer primitivo, tome-se como exemplo o casal Macabéa e Olímpico. Os dois, embora

224

vivendo na cidade do Rio de Janeiro, estão voltados para trás. Contrariamente ao presente

da narrativa, o encontro destas personagens, em A hora da estrela, alimenta-se da saudade

de um Nordeste passado, perdido para eles, portanto, como garante a narração: ―As

poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne-de-sol, carne-seca,

rapadura, melado. Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o amargor da

infância porque esta já que passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia.‖ (AHE, p. 47).

Concentrar a conversação entre os dois em torno da comida da região é, por uma

leitura em contrário, remetê-los também para o reiterado espaço da fome. Esta, em muitos

casos, respondendo pelo selvagem que há em cada personagem. É, portanto, como

famintos que os dois são tomados em A hora da estrela. Todavia, enquanto a fome de

Macabéa, no texto, pede comida mesmo, a de Olímpico não, ele ―tinha fome de ser outro‖

(AHE, p. 65). Ambicioso, o rapaz almeja fama, dinheiro, poder. Casar com uma carioca,

de fato a sua primeira ―glória‖ conquistada, é só o começo de uma carreira que deseja

galgar até a câmara dos deputados.

Distante de Macabéa, então, é somente na ferocidade que os dois se aproximam,

ligados por um passado feroz, como ocorre no encontro dos dois, em um açougue: ―Para

ela, o cheiro da carne crua era um perfume que a levitava toda como se tivesse comido.

Quanto a ele, o que queria ver era o açougueiro e sua faca amolada. Tinha inveja do

açougueiro e também queria ser.‖ (AHE, p. 53). E ainda que haja aproximação, repare-se,

no entanto, que as posições são bem definidas. Atraída pelo cheiro da carne, Macabéa,

passiva como é, está mais para uma presa fácil. A moça, para quem Olímpico ―é muito

sabedor das coisas‖ (AHE, p. 52), em muito se distancia dele. O rapaz tem uma ―grandeza

demoníaca‖ (AHE, p. 45), para o que concorre já o significado do nome que carrega, em

nítido contraste com o dela, principalmente quando tomado em sua forma diminutiva,

―Maca‖, como muitas vezes a personagem Glória se refere a ela.

225

Olímpico, em resumo, tem ânsia de fera. Busca vingar-se como pode em A hora

da estrela, daí a sua reiterada admiração pelo açougueiro. Matando a faca, Olímpico, de

certo modo, a ele se iguala. Roubar e trapacear são outras formas que encontrou na

narrativa para mostrar que não se sujeita. Até mesmo quando, com sucesso, transforma as

fotos de poderosos, que saem nos jornais, em caricaturas ridículas, Olímpico, neste fazer,

encontra uma maneira de expressar a sua subversão.

O moço é o que se chama no Nordeste ‗cabra safado‘ (AHE, p. 46), uma

específica linguagem, usada para dar conta do ―mau-caratismo‖ de um indivíduo, e

reproduzida, aqui, enquanto tal. Já a ―sapiência‖ dele, entretanto, se engana à ingênua

Macabéa, não engana ao narrador, mais ―safo‖ que suas personagens. No que diz respeito

à jovem, sua ―cultura‖, palavra, aliás, que nem sabe o significado (AHE, p. 50), bebe do

que ouve na Rádio Relógio:

Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos

dos quais talvez algum dia viesse precisar saber. Foi assim que aprendeu que o

Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus. Verdade que nunca

achara modo de aplicar essa informação. (AHE, p. 37, grifo nosso).

Em A hora da estrela, é ao narrador, sem dúvida, que se reserva a erudição. Se

para Macabéa, esta é uma informação que nem lhe faz sentido, Rodrigo S. M. não só sabe

do que trata, como insiste nela, na repetição da heroína, em conversa com o então

namorado: ― ─ Olhe, o Imperador Carlos Magno era chamado na terra dele de Carolus!‖

(AHE, p. 56). E fosse porque, buscando alguma inspiração nos romances da cavalaria,

Carlos Magno, os doze pares de França, cada cavaleiro com a donzela cuja honra se

propôs a defender, mais adiante, no texto, ele assevera, ainda que, de novo, por

comparação a Olímpico, se refira à alienação da moça: ―Macabéa era na verdade uma

figura medieval‖ (AHE, p. 46).

Se a narrativa não se desvencilha de referentes que se ligam a um tempo

passado, como é mostrado, não se pode, por outro lado, ignorar a preocupação do autor

226

textual, quando adverte: ―Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre

mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje

e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.‖

(AHE, p. 18)

Estando, então, o texto da novela comprometido, como quer o narrador, com o

presente da narrativa, fica-se a imaginar diante de tais referentes, que atualizações podem

ser feitas, quando se pensa, por exemplo, a aplicação do modelo, já conhecido, definindo

uma nova versão da donzela-guerreira, agora no contexto de uma metrópole

contemporânea. Levada a pretensão para a novela A hora da estrela, a cidade, no quesito

espaço, agora é que é palco das aventuras da suposta figura, mudando, na trama, também,

o seu aparato de ―guerra‖.

Mantendo-se nessa linha de pensamento, muito provavelmente o cavalo, meio de

locomoção da nova heroína, caso o possua, deve ser substituído por um transporte mais

moderno, talvez um automóvel ou uma motocicleta. Embora em outra roupagem, somente

a luta deve ser a mesma. Sobreviver à crueldade de uma cultura impositiva é uma

necessidade e, neste objetivo, a saga da heroína se mantém.

Se, porém, forçosa é a comparação, talvez alguns exemplos da obra clariceana

ajudem o(a) leitor(a) a ser demovido(a) da opinião. No que diz respeito aos fatos,

Macabéa é filha órfã de pai e mãe. Criada por uma tia, migra do sertão de Alagoas, onde

vivia vestida ―de chita‖ e ―sem nenhuma datilografia‖, ela ―só tinha o terceiro ano

primário‖ (AHE, p. 15), para a cidade do Rio de Janeiro, onde se estabelece. Com tão

pouca instrução, o conflito vai se configurando, sobretudo porque a protagonista é

percebida por um narrador-personagem com nível considerável de erudição. ―Por ser

ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra‖ (AHE, p. 15).

227

Não bastasse isto, a origem da jovem parece piorar a questão. A cidade, de onde

provém o discurso do narrador, é ―realidade de artifício, de cimento, em contraposição à

[realidade] nordestina, ‗que foi deus que fez e não o homem‘. Uma seria a região da

memória; a outra, o lugar da história, do passar do tempo.‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR,

1999, p. 105). Em suma, uma é natureza; a outra, cultura.

Estabelecida, então, esta equação, a moça é dada a conhecer. Tem dezenove

anos, um subemprego, e vive na iminência de perdê-lo. Ela divide a moradia de um quarto

compartilhado com outras quatro colegas, todas elas Marias (AHE, p. 31), e em situação

pouco menos pior do que a dela. Inexistindo nesta jovem uma consciência de luta,

Macabéa, que tem por característica apenas ―ir vivendo‖, é construída, no texto, em torno

da lembrança de tudo que lhe falta. Também lhe faltará voz narrativa que lhe dê

sustentação enquanto ser verbal, crítico. No entanto, seguindo a pista de um discurso que

assegura haver ―direito ao grito‖ (AHE, p. 13), caminha-se na direção dele, tentando

entender de que modo o narrador, fazendo por ela, representa-a audível em A hora da

estrela.

Dos fatos, chama a atenção, ainda, a donzelice da personagem, neste aspecto,

muita próxima do que ocorre no motivo da donzela-guerreira em que se pautam, aqui, as

considerações, ainda que respeitadas sejam as diferenças. O único pretendente de que se

tem conhecimento no texto, e que, na verdade, nem chega a sê-lo, pois o rapaz não passa

de uma ―primeira espécie de namorado‖ (AHE, p. 43), torna-se para ela uma aventura

amorosa improvável. É, portanto, na condição de virgem que Macabéa morre em A hora

da estrela. Nesta observação, vale a pena lembrar, mais uma vez, do estudo de Walnice

Nogueira Galvão (1981, p. 09), no que diz respeito às características da figura, com

destaque, entre as apontadas, para o lado terrível da donzela-guerreira, que vive uma

sexualidade per se, sem procriação.

228

Se o casamento, então, desde cedo é vedado à heroína, bom perceber, também,

que Olímpico, algumas vezes, em conversa com ela, enfatiza este aspecto da personagem.

Isto ocorre, por exemplo, quando ele, irritado com as indagações da jovem, afirma não lhe

proferir palavrões, embora Macabéa merecesse, apenas por se tratar de uma ―moça-

donzela‖ (AHE, p. 49). E sendo esta uma expressão culturalmente utilizada para se referir

às mulheres virgens, novamente ela vai aparecer, com deferência, na conversa entre os

dois, quando a protagonista, querendo saber o significado de uma palavra que ouvira no

rádio, recebe dele, sob a ocultação de brios feridos, por não conhecer a real resposta, a

sanção de uma fala imposta também pela cultura, como demonstra, abaixo, o seguinte

diálogo:

─ Na Rádio Relógio disseram uma palavra que achei meio esquisita: mimetismo.

Olímpico olhou-a desconfiado:

─ Isso é lá coisa para moça virgem falar? E para que serve saber demais? O

Mangue está cheio de raparigas que fizeram pergunta demais. (AHE, p. 55, grifo

nosso).

À base de um ensinamento moral, então, para o que concorre, também, o papel

de Olímpico, nesta passagem, Macabéa tem assegurada a sua virgindade no texto. Neste

aspecto, não há o disfarce, em Macabéa, no sentido preponderante para que fosse

configurada nela sua ligação com o motivo da donzela-guerreira. No entanto, há o que se

revelar na obra, pois esta é uma ―História exterior e explícita, sim, mas que contém

segredos‖ (AHE, p. 13).

É dedicando-se a estes, portanto, que Rodrigo S. M., o narrador de A hora da

estrela, tenta trazer à luz uma personagem que insistentemente é percebida por ele como

―uma névoa úmida‖ (AHE, p.16). Como é possível observar, sua intenção, ao que parece,

consiste numa tentativa de ―iluminar‖, com o seu conhecimento, a natureza e a vida da

jovem protagonista. Trata-se de uma história que, no esforço de contar, admite,

assemelha-se à árdua tarefa de ―tirar ouro de carvão.‖ (AHE, p.16).

229

De um modo geral, pode-se afirmar que a desventura de Macabéa está à altura

do que ela representa. Isto se comprova, a seguir, no advertido discurso do narrador que,

na tentativa de uma justificação, incorre, por outro lado, em preconceito, ao mencionar

determinada produção literária. É pelo sentimento de prevenção que a voz narrativa,

referindo-se à história que escreve, dispara: ―(Eu bem avisei que era literatura de cordel,

embora eu recuse a ter qualquer piedade.)‖ (AHE, p. 33).

Sendo esta a perspectiva da narração e antes mesmo de adentrar nos meandros da

análise, que passa pelo comportamento do narrador clariceano, cumpre informar, porém,

que, mesmo não havendo intenção primeira de comparar as duas obras, aqui em estudo,

fica impossível não perceber, na representação do outro em Literatura, o quanto se

irmanam. Neste propósito, o narrador na novela também se antecipa, quando diz: ―É

paixão minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço esquálido igual a ela.‖ (AHE, p.

29).

Naturalmente por constituírem textos com estilos bastante diferentes, Memorial

de Maria Moura e A hora da estrela discutem a problemática da negação de maneira

também diferente e é disto que esta pesquisa quer tratar. Se fosse possível resumir, no que

interessa a este trabalho, assim seria apresentada a temática das duas: a primeira traz uma

personagem autônoma o suficiente para contestar valores. Já a segunda personagem é

posta na narrativa como possibilidade de vir a ser, ou ter algum valor. ―Pois até mesmo o

fato de vir a ser mulher não parecia pertencer à sua vocação.‖ (AHE, p.28). Por esta ótica,

Macabéa, avesso de tudo, constitui a grande negação da obra de Clarice.

Que moça é esta, que quer vir à tona a despeito até da vontade do narrador? Ele,

de antemão, já assegura: ―Eu não inventei esta moça. Ela forçou dentro de mim a sua

existência.‖ (AHE, p.29-30). Ao aparecer, portanto, uma heroína, ainda que forçada seja a

sua aparição, resta perguntar se, havendo luta, pelo que guerreia. Como se vê, estudar

230

Macabéa é se deparar em A hora da estrela com uma constante inquirição. E é preciso não

se conformar com o que está na superfície do texto para que, aos poucos, ela vá se

revelando. O próprio nome, já referendado e bastante incomum, suscita pistas que podem

contribuir, por ilustração, para a compreensão de sua identidade.

É por uma clareira aberta pelo discurso que o(a) leitor(a) observa a jovem, na

persistência de ser comum e nada profunda, feito ―capim‖, imagem bastante reiterada para

fazer referência à Macabéa, ser dada como ―tão antiga que podia ser uma figura bíblica.‖

(AHE, p.31). Ela, que, até então, permanecia anônima em A hora da estrela, surge, no

texto, com esta referência ao mais antigo dos livros. Esta associação da heroína com a

Bíblia estimula a análise, então, a visitar a história dos macabeus, narrada nos livros

apócrifos da sagrada escritura. História contada também entre o mito e a realidade,

concorrendo para tanto, inclusive, a autenticidade não comprovada dos fatos referidos.

São dois os livros históricos registrados na Bíblia de Jerusalém e embora um não

seja a continuação do outro, mas paralelos, o Segundo Macabeus, concordando em geral

com o livro primeiro, termina por dar credibilidade aos acontecimentos narrados por estas

duas fontes independentes. Diferentemente do Segundo, que sendo mais erudito, é

também mais fantasioso, e escrito com intenção de agradar, pois mais prega do que conta,

o Primeiro Macabeus constitui um documento histórico precioso. Apesar de ser história

religiosa o que pretende narrar, na linha do gênero literário, não se pode levá-lo em conta

sem considerar, como esclarece a introdução aos textos apócrifos, a sua tentativa de

imitação das antigas crônicas de Israel, nem tampouco as intenções do autor. Este,

É judeu zeloso de sua fé e compreendeu que ela era o motivo da luta entre a

influência pagã e os costumes dos pais. É, portanto, adversário resoluto da

helenização e é cheio de admiração pelos heróis que combateram pela Lei e pelo

Templo e que conquistaram para o povo a liberdade religiosa e posteriormente a

independência nacional. É o cronista de uma luta em que foi salvo o judaísmo,

portador da Revelação. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2006, p. 716).

231

Neste primeiro livro são narrados, então, os acontecimentos que envolvem a

família do profeta Matatias e seus filhos, com especial atenção para Judas, Jônatas e

Simão, todos eles sucessores do pai em liderar os judeus na revolta contra os gregos. O

primeiro é designado pelo patriarca que, antes de morrer, lhe entrega, em sua substituição,

o comando das tropas. Os demais guerreiros são aclamados pelo povo, um após a morte

do outro, para representá-lo, sucessivamente.

É do cognome do valoroso Judas, principal herói desta história, também

conhecido como o Macabeu, sobrenome depois estendido aos demais irmãos, que vem a

atribuição do nome dado à rebelião. O etnarca Matatias, judeu inconformado, governou o

povo por um ano, sua chefia aclamada quando ele, indignado com a devastação que os gregos

vinham fazendo em Jerusalém, inflama-se e parte para o ataque. Arma-se, então, o grande

conflito, liderado, por um lado, pelo rei Antíoco Epífanes, que profana o Templo e

desencadeia a perseguição; e, por outro, por Matatias, que lança o apelo à guerra santa.

É para o selvagem deserto que Matatias foge com a família, exortando todo

aquele perseverante na Lei a segui-lo. Foram muitos os refugiados que, renegando a prática

religiosa dos gregos, se recusaram a comer carne de porco, profanar o sábado ou deixar de

fazer a circuncisão nos filhos, conforme o ensinamento da doutrina, então contrariada pelos

pagãos. Estes, de forma tirânica, exigiam que os judeus, rejeitando os seus, passassem a

adorar os deuses deles. Aquele que burlasse a proibição pagaria com a própria vida.

É verdade que, em princípio, os judeus, no embate com a cultura helênica, são

vítimas da própria prática doutrinária, como confirma Flávio Josefo (2007, p. 564), em A

história dos hebreus.

Não podendo convencê-los [pelos argumentos] os soldados os atacaram num

sábado e os sufocaram nas cavernas, porque a reverência que os judeus dedicavam

a esse dia era tão grande que o temor de violá-lo, mesmo em tal extremo, fez com

que eles, para manter o descanso que a Lei ordenava, não somente deixassem de se

defender como também nada fizessem para obstruir a entrada das cavernas.

232

Não bastasse a opressão, o golpe baixo. Os gregos, cientes, então, dessa

reverência, de propósito escolhiam o dia de sábado para atacar, até que o sumo sacerdote,

percebendo a intenção, libera os irmãos judeus daquela observância quando em situação de

ataque. Assim é que, de enfrentamento em enfrentamento, eles, de espada em punho, foram

vencendo o inimigo, recuperando o direito à doutrina e à restauração do Templo. Seguidas

vezes, os macabeus venceram o povo helênico. À custa de grandes batalhas, intercaladas por

intervalos em que a paz foi selada, os judeus tiveram a expressão religiosa garantida, sendo

derrotados apenas quando, aliados, se deixaram corromper pelos romanos.

A cada conquista, todavia, além do direito à religião, outros eram reivindicados

pelo conquistador. Dos despojos de guerra, por princípio, à independência política, tudo era

exigido por Judas. É no comando do Macabeu, principalmente, que religião e direito de nação

andam juntos, sendo este, inclusive, o motivo pelo qual a luta continua com ele, mesmo

depois da liberdade religiosa adquirida.

Com esta forma de pensar do líder Judas, muitas são as vitórias do povo, e muitos

são os tratados de aliança assinados em seu governo, todos reconhecendo na pessoa dele a

perícia e a importante força política. Judas, assim como vai ocorrer com todos os líderes

macabeus, é laureado sumo sacerdote, sendo esta ainda a máxima autoridade religiosa

concedida por um rei. Digno de todas as honras, portanto, os aliados, por intermédio dele,

estendem aos judeus, além do respeito à religião e à amizade em guerras futuras, o domínio

dos territórios conquistados.

Das práticas desenvolvidas pela narração bíblica, duas delas devem ser

observadas. Uma diz respeito às repetidas fugas para o deserto selvagem. Esta região, como

estratégia de guerra, com seus esconderijos e dificuldades de acesso, parece ser o lugar ideal

para que os judeus, reunidos, melhor planejem as suas operações.

233

É o deserto, inclusive, escolhido pelos judeus do Egito como espaço original para

principiar a construção de um templo em honra do Deus Todo-Poderoso, na tentativa de que

fosse igualmente ou mais reverenciado do que o de Jerusalém. No lugar havia um castelo

chamado Bubaste, ou O selvagem, sendo a construção no local muito apropriada, como

defende a narrativa, ―porque lá se encontram animais em abundância e outras coisas próprias

para os sacrifícios, e onde já existe um templo, meio destruído e que não está consagrado a

divindade alguma‖ (JOSEFO, 2007, p. 592).

Outra prática importante, mais ligada aos ensinamentos religiosos, está no ritual de

purificação, em que os guerreiros judeus, ante as situações de dificuldade imposta pelos

obstáculos, rasgam as vestes, aspergem pó e oram ou clamam em altos brados, com o intuito

de purificarem-se para, só então, estarem aptos a lograr êxito nas empreitadas.

É verdade que, à primeira vista, parece improvável pensar uma relação entre o

herói, para quem muito significa a estrela de Davi, e a persongem, aqui estudada, em A hora

da estrela. Logo esta que, em vez de cinco, tem ―mil pontas‖ (AHE, p. 85). Se falta à

Macabéa a mola propulsora da indignação, ela que em nenhum momento vê pelo que lutar, e

nem se acha com motivos, no texto, para se sentir ofendida (AHE, p. 40), batizá-la na novela,

fazendo menção ao povo heróico, constitui, por sua vez, um modo narrativo para defini-la por

seu contrário. Macabéa, para se salvar, perdida que está para a narração, precisaria, portanto,

lutar e, assim, sair do limbo a que foi banida (AHE, p. 23). No entanto, a julgar pelo embate

de forças no livro, fica-se a imaginar a quem interessaria, na obra, realmente, esta ―desejada‖

insurreição da personagem.

A história dos macabeus, em suma, modelo de rebelião, parece correr submersa à

história da protagonista, se fazendo notar, aqui e ali, por intermédio de uma ou outra

informação narrativa que vem à tona. Para este propósito da narração talvez concorra,

234

refletindo sobre o que se escreve, a própria ligação de Clarice Lispector com o judaísmo,

religião que, se não professa, ao menos a ela vai estar ligada desde o nascimento.

Se no âmbito da narrativa as associações com a história dos macabeus ficam no

campo da sugestão, a pesquisa realizada nos originais de A hora da estrela, tarefa já

mencionada, vem mostrar, em uma parte do texto que foi suprimida para a publicação da

obra, por alguma razão desconhecida, uma referência mais direta para o que diz respeito à

questão. O trecho que se segue, vale repetir, não consta da publicação da novela, no entanto,

através da imagem do pássaro-macabeu, a que recorre, constata-se diálogo com a história

desse povo, aqui discutida. Diz o narrador, no registro dos manuscritos, fl. 42-43, conforme

numeração do arquivista, fazendo apologia à morte da jovem:

Mas é preciso dizer que exatamente no instante da morte de Macabéa um bico fraco

furou a casca do ovo e nasceu-se um mero pardal – só para que o mudo soubesse

que Macabéa não era insubstituível: em lugar dela um pardal nascia. Esse novo

macabeu saiu hesitante mas logo planou vôo oblíquo e suave ao som do Danúbio

Azul tocado pelo homem de terno preto ao violino. (Grifo nosso).

À morte de Macabéa, no texto em supressão, segue-se este novo macabeu. E para

fazer referência a este povo, de forma imagética, ou à perseguição de que foi vítima, prefere

remeter os sentidos do texto para uma situação de caça predatória, por intermédio do pardal,

também predador. No texto que foi publicado, por sua vez, a idéia de que ―a vida come a

vida‖ se mantém, só que agora expressa na águia voraz que ergue para o alto a tenra ovelha,

da mesma forma que um gato macio estraçalha um rato sujo qualquer (AHE, p. 85). Ou seja,

no fim, tudo é substituição, como leva a crer o discurso do narrador, acima, ironicamente

também substituído no texto que foi para a publicação.

Ainda nesta linha de pensamento, que enxerga em A hora da estrela rastros de

uma doutrina, mas sem dispensar dela os conflitos, Berta Waldman (2003), estudando, entre

outras, os reflexos do judaísmo na obra da escritora, traz importantes explicações sobre a

representação dos judeus na Literatura contemporânea. Eles são geralmente percebidos e

―enquadrados nos estereótipos dos ‗inassimiláveis‘, tornando-se inadequados ao projeto de

235

construção da brasilidade‖. Embora esta falta de assimilação se dê por características diversas

do apresentado, até aqui, no quesito deslocamento as duas representações se encontram. Os

judeus comumente são tomados como usurários e pouco solidários, o que faz deles parasitas

sociais, sem falar que são ―inconvertíveis‖, dada a uma religião restrita e impassível de

amálgama. De qualquer forma, enquanto tais, são eles uns ―indesejáveis em todos os sentidos

porque rotulados como opositores do progresso e do engrandecimento da pátria brasileira.‖

(WALDMAN, 2003, p. XVII).

Ao que parece, sob o reflexo desta representação, Macabéa, procurando em A hora

da estrela, de algum modo, o seu lugar, vai fazer, então, intertexto com o judeu errante:

No romance A Hora da Estrela, Clarice Lispector procede intertextualmente, isto é,

seu texto, através do nome da protagonista, Macabéa, inscreve imediatamente dois

planos escriturais paralelos, sendo o matricial o Livro dos Macabeus, considerado

apócrifo pelos judeus. A alusão à matriz externa provocada pelo nome da

protagonista faz com que os textos dialoguem, levando-nos a ressignificá-los, o que

coloca o romance de Lispector no eixo dos comentários modernos e laicos do texto

sagrado. (WALDMAN, 2003, p. XXVII).

Numa perspectiva mais contemporânea, e conforme uma tendência que se

manifesta histórica e literariamente, os judeus, ―braço de trabalho barato‖ como o de todos os

imigrantes chegados ao Brasil, também vão fugir do campo e se instalar nos centros urbanos,

estando nesta particularidade uma outra semelhança com a heroína Macabéa.

Ciente, portanto, desta possibilidade de relação, esta análise verifica na narrativa

clariceana, ainda, uma coincidência entre esta e o que se narra nos livros apócrifos em

referência ao costume dos antigos judeus. Os macabeus, como já foram mencionados, quando

se achavam diante das aflições que antecediam as grandes batalhas, cumpriam ritual de

interpelação divina, rasgando as vestes e se cobrindo de cinzas.

Não por menos, em obediência ao modelo primeiro, é assim que o(a) leitor(a) vai

encontrar Rodrigo S. M., no início da novela, vivendo as suas dificuldades para compor a

narrativa. E em que pese a difícil relação mantida com um outro, discutida em capítulo já

236

apresentado, o narrador, neste sentido, ―rebaixando-se‖, para se pôr ao nível da nordestina,

repete, ainda que por alusão, o hábito já conhecido pelos macabeus. Ele, na tentativa de

capturar a moça Macabéa, segue todo um ritual no texto. Veste-se com ―roupa velha rasgada‖

(AHE, p. 191) e, como muito já dela ―adivinhou‖, reclama de que lhe tenha grudado na pele,

―qual melado pegajoso ou lama negra‖ (AHE, p. 21), tudo isto numa atitude muito comum

aos antigos.

Isto não constitui, como é dado perceber, uma relação leviana em A hora da

estrela. O narrador, para tratar a questão, parte das próprias experiências, como chega a

declarar: ―Ainda bem que o que vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em

mim. Tenho é que me copiar‖ (AHE, p. 20). Assim sendo, é possível que haja mesmo uma

tentativa de aproximação entre as histórias, sendo a migração nordestina comparada, na

sutileza da narrativa, quem sabe, ao êxodo que submeteu o povo judeu a ser um desterrado na

própria pátria.

Quanto à história dos macabeus, a prepotência, já conhecida nos gregos, constitui a

velha fórmula encontrada para exercer opressão. Ao arvorarem para si a condição de

civilizadores, se acham no direito de condenar o outro e submetê-lo às suas vontades. Deste

modo se for levada em conta uma perspectiva de representação dominante, os macabeus, dos

livros apócrifos, estão, por comparação, muito próximos dos bárbaros, já estudados pela

história oficial, embora consigam, pelo menos por um determinado tempo, reverter a situação.

Em A hora da estrela, por sua vez, estando Macabéa, pela invocação do nome, do

lado dos macabeus, Olímpico, o falso pretendente, vai se reunir aos gregos, cujo nome já

denuncia, para não deixar dúvidas quanto à oposição narrativa entre os dois. E já que não

existe discurso inocente, sem intenção, repare-se neste trecho, referindo-se à visita que fazem

ao zoológico, como, pelo sema religioso, aparece ilustrada a questão. ―O rinoceronte lhe

pareceu um erro de Deus, que me perdoe por favor, sim? Mas não pensara em Deus nenhum,

237

era apenas um modo de. Com a graça de alguma divindade Olímpico nada percebeu [do

medo que ela teve do animal]‖. (AHE, p. 55, grifo nosso).

Como se vê, o jogo de oposição se enuncia a todo momento. E se a leitura da

novela revela que não há nela conflito de religião, fosse o(a) leitor(a) convidado(a) a apontar

na obra indício de uma questão, talvez arriscasse dizer que, havendo desacordo em A hora da

estrela, ele se estabelece em âmbito cultural, e deste, nem Olímpico escapa, pois quando se

trata de caracterizar as personagens pelo prisma regional, não esquecer de que ele e Macabéa,

no texto, são dois bichos da mesma espécie, que se farejam (AHE, p. 43).

Tem-se aí, portanto, a fórmula já cristalizada. De um lado, a pobre nordestina,

vinda do sertão de Alagoas, cuja terra, considerada a aridez, também pode ser tomada pela do

namorado paraibano. De outro, o antípoda Rodrigo S. M.. O Rio de Janeiro, quando

comparado à região de onde vêm as personagens, sendo visto, assim, como terra de

promissão. É antiga, como se sabe, esta relação cartesiana, entre campo e cidade, e a novela

clariceana, neste aspecto, endossa este tipo de representação opositiva.

Embora a realidade histórica seja muito mais variada, não cabendo mais na

binaridade, há que se considerar estes tradicionais extremos, que se coadunam, no texto

literário, em atitudes parcialmente poderosas. Como lembra Raymond Williams (1990, p. 11),

Na longa história das comunidades humanas, sempre esteve bem evidente esta

ligação entre a terra da qual todos nós, direta ou indiretamente, extraímos nossa

subsistência, e as realizações da sociedade humana. E uma dessas realizações é a

cidade: a capital, a cidade grande, uma forma distinta de civilização.

O campo, associado em Literatura a uma forma natural de vida, freqüentemente

também aparece como lugar do atraso, da ignorância e da limitação. A cidade, por sua vez,

centro de realização, inicialmente associada ao lugar do saber, assim surge em A hora da

estrela, em estudo, por exemplo, e jamais em sua associação negativa com o lugar do barulho,

mundanidade e ambição. Tudo se resumindo num problema de perspectiva, como bem lembra

238

o crítico (WILLIAMS, 1990, p. 21), discutindo a realidade inglesa, mas que tão bem se aplica

às demais realidades.

Mais grave que a divisão territorial, entretanto, é a diferença que se estabelece na

obra por intermédio da intelecção. Ou seja, é pela forma de ver ou entender, tomando por base

uma confortável posição, tanto social quanto intelectual, que o outro, por exemplo, porque

diferente, tem a sua caracterização baseada na falta. É assim que se mostra o discurso

galvanizado de A hora da estrela. Mais do que tentar compreender a personagem através de

um contexto econômico e político, totalmente adverso, o que não significa impassível de

síntese, os insucessos da personagem parecem originar-se mais em sua cultura ―primitiva‖,

portanto, anti-moderna. Somente aquele que se reinventa é capaz de sobreviver na diferença,

como exemplifica o texto clariceano. E Macabéa era ―habituada a se esquecer de si mesma.

Nunca quebrava seus hábitos, tinha medo de inventar.‖ (AHE, p. 49).

A guerreira supostamente imaginada para ela só se sustenta pelo que não é ou pelo

que falta à personagem. Assim, Macabéa não existe em A hora da estrela, a não ser por

sugestão. Desde sempre fadada ao fracasso, escrever sobre a jovem, por exemplo, é também

um jeito encontrado pelo narrador de derrotá-la, dela se livrando, como ocorrerá no final do

livro.

No que diz respeito, ainda, ao nome dela, que mais lembra a Olímpico uma

doença de pele (AHE, p.43), responde a moça:

─ Eu também acho esquisito mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa

Senhora da Boa Morte se eu vingasse, até um ano de idade eu não era chamada

porque não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter

um nome que ninguém tem mas parece que deu certo. – Parou um instante

retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor; ─ Pois como o

senhor vê eu vinguei... pois é...

E nesta desculpa por ter vingado, fica-se sabendo que a personagem é prometida à

morte desde o nascimento. Cedo ficando órfã, a moça chega a esquecer o nome dos pais, já

que a tia nunca os mencionava (AHE, p.37), de modo que nem sabia mais o ―gosto‖ que dava

239

ter um. No quesito corporalidade, Macabéa, ―que de aparência era assexuada‖ (AHE, p.34), e

apesar do esforço da narrativa em fazer dela um ser estéril, imagem reiterada pela constante

referência aos ―ovários murchos‖, conhece a lascívia e as urgências de um corpo desejante.

Isto, entretanto, em nada contribui para a vitalidade da personagem, insistentemente negada

pelo narrador, a exemplo do que afirma: ―A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no

capim vagabundo há desejo de sol.‖ (AHE, p.28).

Macabéa, sem dúvida, é uma personagem desejosa, apesar de não saber que o

fosse. Entretanto, permanece virgem na narrativa. O romance com Olímpico, não se

confirmando, é para ela motivo de frustração, já que, fantasiosa, ―só pensava no dia em que

ele quisesse ficar noivo. E casar.‖ (AHE, p. 59). Sem casório, sem filhos, ela encerra-se nela

mesma, não há o que perpetuar. E veja que, para tanto, libido não lhe faltava: ―era realmente

de se espantar que para corpo quase murcho de Macabéa tão vasto fosse o seu sopro de vida

quase ilimitado e tão rico como o de uma donzela grávida, engravidada por si mesma, por

partenogênese‖ (AHE, p.60, grifo nosso).

Interessante perceber, todavia, o quanto a morte é restituidora da personagem em A

hora da estrela. Inclusive no quesito revelação. Se não há disfarce para a personagem, uma

vez que na obra ela é servida ―crua‖, no sentido mesmo em que emprega Lévi-Strauss (2004),

a obviedade de Macabéa é apologética em seus instantes finais. No momento de agonia da

personagem, a narrativa não só lhe concede certa sensualidade, como parece lhe devolver um

corpo até então não pertencido. E completa, buscando uma desculpa numa proposta feita à

revelia do discurso de Simone de Beauvoir (1980): ―Seu esforço de viver parecia uma coisa

que, se nunca experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora entendia que

mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser mulher.‖

(AHE, p.84, grifos nossos).

240

E Macabéa não fora mulher. Mas a questão maior é: como ser, numa narrativa toda

contrária a ela? Desde sempre o Rio de Janeiro representa para a personagem a sua ―cidade

inconquistável‖ (AHE, p.81). Neste palco de adversidades, para onde migrou, a batalha diária

pela sobrevivência foi sempre vã. E ela não guerreia, como faz supor a uma combatente

heroína, apenas, enquanto pode, teima em resistir.

Faltam a Macabéa, como se pode notar, o cavalo, a espada, a atitude consciente

dos ideais por que lutar. Abundante, todavia, é o repertório de sugestões. Há no conceito da

donzela-guerreira, como se sabe, uma tendência a um monologismo de representação. Apesar

do duplo que tenta simbolizar, é comum em narrativas que operam com o motivo da donzela-

guerreira o atendimento às expectativas exclusivistas da dominação masculina. Ou se é

―homem‖ ou se é ―mulher‖, sendo rejeitadas, portanto, as interposições.

No caso de Macabéa, que tem a sua condição de guerreira rejeitada desde o

princípio, isto faria supor que predominariam para ela as características da donzela, o que

também constitui engano. É que no esforço de compensá-la, de algum modo, nem que seja

concedendo-lhe uma boa morte, o narrador, provavelmente se expiando de uma culpa, por

teimar em negá-la, chega ao seguinte consentimento: ―Se iria morrer, na morte passava de

virgem a mulher‖ (AHE, p.84).

Desse modo, nada é Macabéa em A hora da estrela. Nem uma guerreira, que se

assemelhe aos irmãos macabeus, nem a donzela, a ela prometida por seu lado ―medievo‖. Ao

fim do livro, resta somente a grande ironia da narração: ―E enorme como um transatlântico o

Mercedes amarelo pegou-a – e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um

cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.‖ (AHE, p. 79).

Sendo este o momento em que o destino a assalta na narrativa, é também a vez,

mais uma, em que o narrador Rodrigo S. M., do alto de seu cabedal de cultura, através do

relincho do cavalo, ri de sua personagem e de tudo o que ela representa. Ora, só uma gente

241

muito primitiva, da estirpe de Macabéa, pode acreditar em falsos profetas, parece querer

concluir o presunçoso narrador. Sem escapatória, portanto, a morte dela, em A hora da

estrela, é regada à ilusão, assim como, no elegante recurso da sugestão, é regada a sua vida.

Caracterizada até o fim da narrativa, por não saber, a personagem morre, portanto,

sem sequer desconfiar que a previsão da madama Carlota fora trocada, pois estava endereçada

a outra crédula cliente. Quanto ao leitor(a), cumpre assistir, por fim, já sem nenhuma surpresa,

à imitação cênica desta última página da vida da personagem, ―Voltando ao capim.‖ Ou seja,

chegada a sua hora e nada mais havendo a fazer, a heroína, fielmente, é devolvida à ―grande

natureza‖ (AHE, p. 80), representativa para a heroína, quem sabe, da sua origem de ―maus

antecedentes‖ (AHE, p. 27) .

Tanto em Memorial de Maria Moura quanto em A hora da estrela deve-se chamar

a atenção para o papel desempenhado pelas protagonistas. Moura, no papel de guerreira,

encontra uma maneira de sobreviver à ausência dos pais e à opressão imposta pelos primos.

Da mesma forma, Macabéa, assim como os antepassados macabeus, também é uma vítima

oprimida. A tirania sendo exercida, entretanto, no estabelecimento de relações sociais pré-

definidas por um supra-discurso da fala dominante. Não bastasse o narrador, o chefe, a amiga,

o namorado, todos eles estão na novela numa situação mais confortável que a carente jovem.

A heroína de Rachel, ambígua, portanto, sem uma condição ainda definida, ao

menos pode ser vista como uma personagem no entre-lugar da representação. Macabéa, no

seu mundo contraditório, nem lugar tem. É uma retirante, na Geografia e no Discurso. Ao

migrar, tornou-se deslocada para sempre, é o que faz crer a narração, o Rio nunca podendo lhe

conceder sentido algum.

Como mulher, Macabéa também é insistentemente improdutiva, o que a difere de

Olímpico. Ela, juntamente com a tia, tinha migrado de Alagoas, ―ignora-se por quê‖ (AHE, p.

30), informação de saída que, mais que conotação econômica e política, referente ao tira-

242

teima entre o cáustico Nordeste e o Sul maravilha, faz contrastar com a de Olímpico, que não

só migrou do sertão da Paraíba, de lá fugiu, por ter matado um homem (AHE, p. 46). Gaba-

se, inclusive, de ter a foto saída em jornal. Ambicioso, o moço traça suas metas e, de fato,

caminha na direção delas, pouco importando por que caminhos escusos.

De todas as referências de Olímpico, duas merecem o destaque narrativo: suas

belas esculturas de santo faziam dele um artista, ainda que não o soubesse, e, diferente da

jovem, ele é uma personagem com futuro, como antecipa o narrador, informando que o rapaz

realmente chega a ser deputado, obrigando, inclusive, a chamarem-no de doutor. (AHE, p.

46). Por tudo isso,

Era mais passível de salvação que Macabéa pois não fora à toa que matara um

homem, desafeto seu, nos cafundós do sertão, o canivete comprido entrando mole-

mole no fígado macio do sertanejo. Guardava disso segredo absoluto, o que lhe

dava a força que um segredo dá. Olímpico era macho de briga. (AHE, p. 57).

Em suma, falta à Macabéa, como em tudo, esta ―ousadia‖ de macho, com honra

lavada em sangue. ―Ele também se salvava mais que Macabéa porque tinha grande talento

para desenhar rapidamente perfeitas caricaturas ridículas dos retratos de poderosos nos

jornais‖ (AHE, p. 58). Como se vê, Olímpico, além de tudo, é salvo pela arte, lado sublime da

personagem que surpreende, no texto clariceano, porque contrasta com a ―natureza‖ rude do

rapaz.

É verdade que Macabéa também tem lá a sua sensibilidade, mas esta, quando não é

voltada para trás, como o canto do galo que a deixa nostálgica, é para ela mortal. O botão de

rosa, que costuma comprar, a cada salário recebido, possui uma beleza efêmera, e sua

predileção por filmes em que apareça mulher enforcada, ou que leva tiro no coração, revelam

no gosto da moça o princípio de uma personagem fadada à morte.

Quando cotejados, então, a vida de Olímpico terá continuação, como se sabe, na

projeção de que ―dele nasceriam filhos, ele tinha o precioso sêmen‖ (AHE, p. 58). Ela, não,

encerrando-se em si mesma, não será perpetuada, já que não tem como reproduzir, ―seus

243

pequenos óvulos tão murchos. Tão, tão.‖ (AHE, p. 33). Calculista, outra característica

impensada para Macabéa, Olímpico vê em Glória, além de todas as vantagens ―que nordestino

não podia desprezar‖ (AHE, p. 59), ―material de boa qualidade‖, imagem repetida ao menos

duas vezes, na novela (AHE, p. 60), para dar conta de Glória como sua mais valia, a que não

faz o moço pensar duas vezes quando lhe aparece a possibilidade de troca.

Enfim, de todas as questões sugeridas pelo texto, discutir a mulher que se

representa em A hora da estrela, por intermédio de Macabéa, é mesmo tarefa para exaustão.

Quanto mais se quer saber dela, mais se sabe de Olímpico, seu equivalente, por oposição.

Assim procedendo a narrativa, ainda que feminina seja a autoria, esta concede ao narrador,

também masculino, plenos poderes de dominação.

Na verdade, se é que há nisto uma coerência, não há, no texto, um interesse em

captá-la, nem como mulher, nem como gente. Daí que a imagem do capim, a ela tantas vezes

relacionada, condense esta informação. De viver ―ralo‖, ele se lastra facilmente, como as

tantas, vistas por Macabéa, que se encontram por aí. E mesmo que almejem ceifá-lo, o

narrador disso parece ter consciência, teimará a persistir, feito uma erva daninha que, por mais

que se tente, dela não consegue se livrar totalmente.

Por isso mesmo, seja na associação com a donzela-guerreira, seja mencionando os

macabeus, falar de Moura e Macabéa, a despeito das diferenças entre elas, é falar, sobretudo,

de resistência dentro da Literatura Brasileira. Se a sociedade contemporânea age com

crueldade no tratamento dado às diferenças, Rodrigo S. M., como fiel representante dela, vai

calar o discurso de Macabeá, suplantado por outro, que tenta tornar inócuo tudo o que ela

anuncia.

Em Memorial de Maria Moura, a narração se desloca para um passado em que a

necessidade de um modelo ao qual a personagem deve acoplar parece maior, ainda que refeito

pelas exceções. Já em A hora da estrela, seja porque se trata de uma narrativa do agora, ou,

244

como pretende o narrador, escrevendo na hora mesmo em que é lido (AHE, p.12), não há um

modelo deliberado a seguir, embora o passado, invadindo a obra presente, abra espaço para

muitas sugestões.

A morte, por exemplo, nas narrativas sobre a donzela-guerreira, é vista como

resultado da transgressão. Maria Moura mesmo parece não conseguir se livrar dela no final da

obra, ficando implícito que o combate final ao qual se dirige pode ser a sua danação. De

forma diferente parece ocorrer para Macabéa na novela clariceana. Somente morta é que

Macabéa parece viver, ou seja, somente morta é que a personagem se ―salva‖, contrapartida

do texto que, reconhecendo nela a exata medida da ―grandeza‖ que cabe a ―cada um‖ (AHE,

p.81), ainda que na última hora, concede-lhe uma morte que se não é poética ao menos tira e

muito o tom trágico.

Quanto à donzela-guerreira, motivo escolhido também para falar da mulher, nas

obras em questão, em muito ele se modifica, acompanhando, como faz crer, os passos de uma

sociedade em evolução. Na Literatura, algumas obras publicadas dão mais conta dela, como

Memorial de Maria Moura, outras menos, como A hora da estrela, mas todas valendo pelo

objeto da tentação. A mulher que se esconde neste topos é sempre um segredo que se guarda

mais, e que sempre vale a pena contá-lo. A que se revela, como Macabéa, em sua obviedade,

transforma a leitura em pura expectação.

Numa medida ou noutra, sejam quais forem os parâmetros que norteiam a

representação da donzela-guerreira na atualidade, sempre que surgir, no texto, é porque há

questões, para a mulher, sem dúvida, exigindo que sejam inseridas ou consolidadas na

discussão. E mesmo quando evocada sob uma pálida lembrança, como ocorre com a

protagonista de A hora da estrela, melhor não duvidar: de alguma forma ela lá se encontra,

ainda que metamorfoseada pelas artimanhas do subtexto.

245

Conclusão: QUANDO A MULHER SELVAGEM AMEAÇA IRROMPER

Em que o selvagem interessa, neste trabalho, a ponto de se prezar por ele, é uma

pergunta que veio norteando a discussão. Aos poucos, e a partir do que se representa em O

quinze, Perto do coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria Moura, a

questão é elucidada e, entre as possibilidades de estudo, que o conceito permite, a mulher,

a ele associada, também vai se revelando.

É Conceição, que tem a sua identidade em relevo, à medida que se conhece mais

sobre os retirantes, muito próximos de uma natureza selvagem; é Joana, ensinando a(o)

leitor(a) que o selvagem nem sempre é rejeitado e pode, sim, ser perseguido, como ela o

faz na narrativa clariceana, exigindo desta pesquisa, inclusive, que sejam relativizados os

conceitos; é Macabéa, uma vivente, ou melhor (sobre)vivente, tão outra numa cidade em

tudo indiferente à ela, que faz crer estar a moça ―perdida‖ para a ―civilização‖; e é, por

fim, Maria Moura, a princípio contida no lar e na família, mas guerreira o suficiente para

se rebelar e aproveitar a primeira oportunidade para se fazer livre, livre como só um

selvagem sabe ser.

Para todas essas personagens reside uma perspectiva de mulher que nelas se

representa. É da consideração do Outro, no entanto, que se trata aqui, e para o que serve a

simbolização do selvagem nos textos. Outro como princípio de uma alteridade e, por

extensão, de um caráter definidor de uma identidade egocêntrica.

Quase sempre tomado como elemento de oposição ao ―civilizado‖, o selvagem é

também visto como um Outro, sobretudo, quando impera na narrativa um Eu textual,

empenhando em marcar-lhe pela diferença. Será freqüentemente considerado Outro, por

esta lógica, o oposto ou o não-idêntico a si mesmo.

246

Se esta perspectiva do Outro vale para as personagens representadas, o mesmo se

aplica à mulher, escritora, insurgindo-se numa seara, até então de dominação masculina,

que fala, nestas obras, e que também nelas se representa. Estão nesta particularidade da

voz feminina, que se enuncia, os rumos, também, do tratamento dado à temática. Talvez

por conhecer bem a condição de Outra, que a cultura, masculina, lhe outorgou, esteja ela,

a mulher, conscientemente apta para a tarefa. Assim sendo, e aceita a perspectiva, ela

própria se faz objeto do que escreve.

Se encontra o terreno propício, então, estas mulheres, no exemplo de Rachel de

Queiroz e Clarice Lispector, vão se oferecer como elemento de mediação. Só que desta

vez o ângulo narrativo fica entre Elas/Nós e os Outros. E se nesta pesquisa nem sempre se

comprova uma concepção feminista na análise e pensamento das duas, ao menos é uma

visão de mulher que chega até o(a) leitor(a), às vezes mais, às vezes menos obscurecida

pela tradição.

No que diz respeito à produção, fosse porque amplo era o território em Literatura,

a ser explorado e por isso mesmo selvagem, no sentido da ocupação proposta por

Showalter (1994), as escritoras brasileiras em apreciação, vêm, com muita propriedade,

situar seus nomes entre as poucas mulheres da época que escreviam oficialmente.

Ambas estréiam cedo na arte, e mais cedo ainda no ofício de jornalista, deste

vindo, como é possível concluir, uma importância crucial para a formação literária delas.

As duas se exercitam em diversos gêneros. Além de romances, há destaque, com

exclusividade, para o teatro, em Rachel de Queiroz; e para o conto e a novela em Clarice

Lispector. Na crônica, elas encontram um pleno exercício de formação. E como vasto era

o leque de possibilidades na escrita, também não deixaram de enveredar pela Literatura

Infanto-Juvenil. Nessa linha de pesquisa um estudo relacional com produção delas instiga

a apreciação crítica, resultando, quem sabe, em interesse numa investigação futura.

247

Têm-se aí, então, mulheres, escritoras, falando de mulheres em O quinze, Perto do

coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria Moura. No percalço da

universalidade, embora as diferenças nem sempre sejam compreendidas e ela se confunda,

também, com masculinidade, a autoria feminina contribui com um texto que carrega a

imanência de uma marca e de um ponto de vista. Daí a importância de mulheres

escrevendo ou deste Outro (mulher) se representando.

Falar de mulher, por sua vez, sem considerar a crítica feminista é sempre um risco

de fazê-lo a partir da ótica dominante. No caso de Rachel de Queiroz e Clarice Lispector,

pelas pistas do discurso que foram criando, fica fácil perceber que elas não estiveram

imunes e se envolveram com a questão. Dos trechos citados por Conceição em O quinze,

às pistas deixadas pela leitura de Simone de Beauvoir, em A hora da estrela, conclui-se

que o Feminismo as interessava.

Queiroz, em vida, sempre demonstrando antipatia para com as feministas, vai

construindo, às vezes até na contramão do discurso pretendido, uma argumentação que

não fica a dever àquela corrente crítica. Lispector, mesmo nos textos considerados não-

literários, aqueles que escreve sob o pseudônimo de Helen Palmer, para o Correio

feminino, incute-lhes a marca da mulher esclarecida. Cercando-se de saber, lendo, se

documentando e se atualizando, ela, nos textos preparados para a coluna, incita, sempre

convocando as leitoras em potencial a fazer o mesmo. A resenha que faz de Um teto todo

seu, de Virginia Woolf, também publicada em jornal, é outra comprovação de que Clarice

Lispector não se manteve afastada das discussões de caráter feminista.

Enfim, de todos esses dados, um, no entanto, encontrado no arquivo da escritora,

mais especificamente no que se refere à documentação pessoal dela, parece não condizer

com esta postura combativa de Clarice e se refere aos registros profissionais dela. Foram

atestados em documentos como carteira profissional, carteira de trabalho e até na certidão

248

de casamento entre ela e Maury Gurgel, os seguintes registros, a saber: jornalista,

redatora, escritora.

Todavia, em toda a documentação referente ao pedido de divórcio e separação de

bens, aparece, como informação de sua ocupação, o referente ―prendas domésticas‖,

expressão que se repete também nas cartas de recomendação emitidas pelo Ministério das

relações Exteriores, nas vezes em que exerceu o papel de correio diplomático. Em que isto

poderia trazer algum benefício à interessada, não se discute aqui. O fato é que a condição

de ―presa‖ ao lar, sugerida pela expressão, destoa da tão aclamada e defendida

participação da mulher em luta pela independência dela.

Do arquivo Clarice Lispector, cujo acervo foi inventariado pela Fundação Casa de

Rui Barbosa (FCRB), informações importantes foram colhidas, o que possibilitou, neste

trabalho, sem dúvida, um conhecimento mais integral sobre a vida e a obra da escritora. A

partir de acessos a documentos pessoais originais, já mencionados, assim como à sua

correspondência, textos das obras e crítica em geral, tanto veiculado por jornal quanto por

revista, vai se compondo uma imagem dela. Sua intimidade, com o marido, os filhos, os

amigos; sua luta para se estabelecer na profissão; sua paixão pela Literatura e em fazer

Literatura. Aliás, grande parte deste material se encontra, hoje, reproduzida e publicada.

Sendo as informações do Arquivo obviamente relativas à escritora Clarice

Lispector, não se pode negar, entretanto, nessa possibilidade de estudo conjunto com

Rachel de Queiroz, às vezes em que a trajetória de uma veio iluminar a da outra, como se

pode notar.

A aceitação de Queiroz a partir da publicação de O quinze é fato consumado. A

crítica, no exemplo de Augusto Frederico Schmidt, Mário de Andrade e o próprio Graciliano

Ramos, que revê sua posição anterior em relação à escritora, é bem favorável à produção dela.

A jovem autora passa a publicar, de forma ininterrupta, e ter na livraria José Olympio,

249

endereço editorial dos escritores mais atuantes, na época, uma constituição similar à sua

segunda casa. Largamente aceita entre os pares, ela é, inclusive, a primeira mulher a vestir o

fardão da Academia Brasileira de Letras, em 1977. Seu último romance, Memorial de Maria

Moura, entretanto, é de1992.

De forma diferente, o processo de aceitação se dá para Lispector, que migrou de

editora em editora. A José Olympio, mesmo, em seguidas vezes, recusa livros seus. Apesar da

euforia de novidade causada pela publicação de Perto do coração selvagem, o livro saiu pela

editora A Noite, com a ajuda de amigos e sem os direitos autorais. O segundo livro, O lustre,

saiu pela editora Agir e teve como recepção da crítica apenas o silêncio. Sem vender, Clarice

Lispector volta a publicar por A Noite e chega a um intervalo de mais de dez anos sem

publicação de nenhum romance, até trazer a público A maçã no escuro, sucesso de vendas e

crítica.

Como se vê, demorou a vir o reconhecimento. A crítica especializada, sobretudo,

se mostrando bastante incomodada desde a leitura de Perto do coração selvagem.

Paulatinamente e com a contribuição de nomes de monta como Antonio Candido, Roberto

Schwarz e mais tarde Benedito Nunes, este último especializando-se na obra desta escritora, é

que veio a reparação de uma negligência. Depois de 1970 é que Clarice Lispector, como ela

própria dizia, ―entrou em moda‖, e desta consagração pouco desfrutou em vida, já que morreu

em 1977, mesmo ano da publicação da novela A hora da estrela, aqui em estudo.

Se o trabalho de pesquisa no Arquivo Clarice Lispector permitiu coletar dados e,

por intermédio deles, confrontar informações já existentes, infelizmente, e esta tarefa de

investigação disto se ressente, não foi possível ter o mesmo procedimento no que diz respeito

especificamente à Rachel de Queiroz. Uma parcela de sua obra, atualmente, está sob a guarda

do Instituto Moreira Salles (IMS), sede do Rio de Janeiro. Entretanto, como nada foi

250

inventariado, o acesso ao material é restrito. Consulta, só com prévia de possibilidades e,

ainda assim, a julgar pelo material solicitado. Tudo isso dificultando o trabalho de pesquisa.

O Instituto, por outro lado, vem passando por uma reestruturação, inclusive no

quadro administrativo, com previsão de espaços adequados para receber os pesquisadores, o

que inclui uma biblioteca central a ser inaugurada. Dentro da programação de atividades a ser

desenvolvida pelo IMS, ao longo do ano 2010, está previsto para o mês de novembro, o

evento em comemoração à Rachel de Queiroz, que este ano faria cem anos, se viva fosse.

A escritora nasceu em 17 de novembro de 1910 e sua morte, ocorrida em 04 de

novembro de 2003, ainda é considerada recente, pode-se dizer, se levada em conta a

morosidade com que anda o incentivo dado às instituições, divulgadoras da cultura e

mantenedoras da pesquisa, neste país, a depender do poder público. Isto em parte dizendo

respeito às dificuldades pelas quais passam a criação de órgãos que se dispõem a custodiar,

por exemplo, acervos literários, caso do projeto, frustrado, que contava inaugurar o Memorial

Rachel de Queiroz, em abril de 2008, na cidade do Quixadá-CE.

Em contato com a irmã de Rachel, Maria Luíza de Queiroz, fica-se sabendo que

grande parte da documentação da escritora, ainda sob posse da família, havia sido despachada

em 2007 para aquela cidade, onde seria construído o Memorial. Do material cedido ao

bibliófilo José Augusto de Bezerra, para este fim, conforme explica Maria Luíza, constam os

originais do romance Caminho de pedras, obras editadas em outras línguas e até um livro,

nunca publicado, em que a escritora usa o pseudônimo Rita de Queluz. Além desses, entre

outros, uma antiga edição do Flos Sanctorum, livro dos santos da Igreja Católica, troféus,

medalhas, diplomas, objetos pessoais, cartas e cerca de 200 fotografias que mostram a

escritora em diversas fases da vida.

O Memorial, conforme entrevista de José Bezerra ao Diário do Nordeste, de

Fortaleza, deveria ser instalado no Chalé da Pedra. Uma edificação, erguida sobre um

251

monolito, cuja engenharia, informa Maria Luíza, a escritora conhecia e muito apreciava.

Trata-se de um exótico imóvel construído pelo industrial Fausto Cândido de Alencar, em

1920 e que hoje integra um dos mais belos cartões postais da região. O museu especial, pela

proposta, funcionaria, então, neste espaço, dentro do Instituto Cultural José Augusto Bezerra,

sua abertura, inicialmente, se destinando a historiadores e pesquisadores da obra queirozeana.

Para a implantação, estavam assegurados, pelo governo do Estado do Ceará e Prefeitura de

Quixadá, recursos tanto para a restauração do imóvel, climatização e mobília adequada,

quanto para o trabalho de catalogação, fotografia e recuperação do material que comporia o

acervo, bem como da criação e lançamento de um site que abrigaria uma versão virtual do

Memorial.

Apesar da proposta de criação, que muito agradou à família da escritora, o projeto

não conseguiu sair do papel, de modo que todo o material, hoje, assegura a irmã de Rachel de

Queiroz, se encontra em Fortaleza, guardado na residência de José Bezerra, mas que pretende

entregá-lo a uma instituição de pesquisa, conforme acordado entre as partes interessadas. Por

enquanto, é todo um acervo na mão de um particular, que, se não se opõe a dividi-lo com os

estudiosos, como garante Maria Luíza, traz limitação, entretanto, ao trabalho destes.

Ao que parece, destinar-se à mão de particulares tem sido o caminho tomado pelas

obras queirozeanas. O Instituto Moreira Salles guarda alguns originais dela, sobretudo

crônicas, mas a casa não dispõe, por exemplo, dos manuscritos referentes à última obra

publicada por Queiroz. Segundo a Coordenadora, Élvia Bezerra, e depois confirmado pela

irmã da escritora, os papéis referentes ao Memorial de Maria Moura estão sob a posse da

professora Marlene Gomes Mendes, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a mesma

que, especializada em crítica genética, produz a edição crítica de As três Marias (1998). Esta

doação, feita pela própria autora, não deixa de ser lamentável, pois, como vem sendo

252

mencionado, e, ainda mais neste caso, priva os demais pesquisadores de terem acesso à obra

queirozeana.

Os originais de A hora da estrela estão no Instituto Moreira Salles, ainda que em

caráter provisório, conforme consta do contrato firmado com Paulo Gurgel Valente,

proprietário da documentação. Enriquecedora, portanto, foi a experiência de manuseá-los

e encontrar neles, por exemplo, parte do texto da novela, que não foi para a publicação, e,

no entanto, conserva uma importante passagem para a ligação da protagonista com os

macabeus, ponto de análise e defesa desta pesquisa.

O trabalho com os originais, a demonstrar, no texto, em definitivo, mais supressão

e substituição, do que propriamente acréscimo, revela, ainda, o penoso trabalho da

escritora que, hospitalizada, a novela é de 1977, ano também da morte de Clarice

Lispector, aproveita tudo quanto é pedaço de papel para fazer nele anotações, lembretes da

narrativa e falas completas das personagens de A hora da estrela. Os textos completos, e

de natureza corrente, também arquivados numa mesma pasta, pressupõe terem sido

escritos em períodos de melhor convalescença da escritora. Tão rico material, coletado em

concomitância com o estudo dos romances, e da novela, possibilita, por fim, montar o

arcabouço necessário ao desenvolvimento desta análise.

A temática do selvagem, embora diversificada, em Rachel de Queiroz e Clarice

Lispector, aparece nos textos, naturalmente, com perspectivas que muito dizem do

direcionamento da produção delas. Na primeira, por um ponto de vista mais social, de que

é exemplo a função dos retirantes em O quinze, assim como o papel desempenhado pela

heroína em Memorial de Maria Moura; e, na segunda que, se de um lado há um forte

apelo para a filosofia existencial, em Perto do coração selvagem, de outro, vai

demonstrar, na última obra publicada, em resposta às críticas de que não fazia Literatura

engajada, sua capacidade de praticá-la em A hora da estrela.

253

Neste trabalho, portanto, desarmar-se dos rótulos constitui condição sine qua non

para que a abordagem entre elas aconteça. Perceber que antes de se filiarem a uma

corrente, filosófica ou social, há, no ofício da escrita, mulheres voltadas para a

representação na arte literária, como vem sendo demonstrado. Tendo-se isto aceito, fica

mais fácil aceitar, também, que, para além dos territórios individuais, há o território

conjunto, que só a Literatura pode promover e nele oferecer trânsito livre.

Assim, considerando este território, conjunto, é que o(a) leitor(a) vai encontrar o

narrador de O quinze a explorar o que se constitui chamar ―espírito interior‖ de

Conceição, em constante reflexão no texto, o que a deixa, nestes momentos, muito

próxima de Joana, de Perto do coração selvagem. Aliás, nesta perspectiva, a obra

extrapola a exterioridade comum aos romances de seca e dá uma visibilidade maior ao

mundo subjetivo da personagem, técnica sem dúvida aprimorada na literatura clariceana.

Embora sem conseguir fugir das digressões, muito próximas de um Eu que mesmo

tentando falar do outro não se ausenta, o narrador de A hora da estrela discute a temática

social, falando de pobreza, fome, migração, sem sequer recorrer à perspectiva paisagística

tradicional. Ou seja, na pista mesma destes procedimentos, especialmente para o que faz,

neste aspecto, o narrador da última obra de Clarice Lispector, esta pesquisa encontra, no

cotejo das duas, uma soma entre elas.

Recair a escolha sobre as primeiras e as últimas obras publicadas em vida por

Queiroz e Lispector, deixando de fora as que estão o meio da produção, tem sua razão de

ser. Primeiro, desconfia-se mesmo do caráter evolutivo como parâmetro de avaliação.

Uma última obra não pode ser ―melhor‖ que a antepenúltima, penúltima ou mesmo a

primeira, pressupondo evolução. E aquele (a) escritor (a) que, em vez disso, permaneceu

em seu estilo, ou pior, regrediu pelo caminho? Esta é uma possibilidade, embora, aqui, a

opção tenha sido não considerar tal aspecto. Depois a questão é de interesse mesmo. Mais

254

que avaliar o percurso evolutivo das obras das duas, importa à análise verificar a

apresentação e o tratamento dado à mulher, bem como sua relação com o selvagem, em

estágios distintos da publicação delas. Comentar, sim, mas sem a obrigação de submetê-

las ao julgamento da evolução.

É deste modo que se parte das primeiras obras em direção às últimas, sem ―escala‖

no meio do caminho. A leitura de O quinze e Perto do coração selvagem, pela perspectiva

que é posta sobre a narrativa, e, sobretudo, para a mulher que nele se representa, faz

lembrar, ainda que de passagem, o que os escritores alemães, na linha de Goethe,

definiram por romance de formação (BOLLE, 2004). Opondo-se ao romance social,

embora este não seja o caso da primeira obra queirozeana, o romance de formação

constitui um gênero narrativo centrado no indivíduo. Negar a marca social de Rachel de

Queiroz, em sua primeira obra, seria, inclusive, negar grande parte do que já foi discutido

neste trabalho. Entretanto, não deixa de chamar a atenção, também, que em O quinze as

histórias paralelas se resumem, no fim, em estratégias narrativas que visam focalizar a

trajetória de formação de sua heroína. No final de tudo, é da mulher Conceição que o texto

trata. A primeira, de uma série de heroínas finalizadas por Maria Moura.

O romance de formação se define também pelo conflito entre as leis da sociedade

e a aspiração do indivíduo à autonomia. Fixando-se no indivíduo e na sua introversão, tal

prática narrativa muito se semelha a de Perto do coração selvagem, com Joana

experimentando uma tensão entre uma busca existencial e as estruturas e leis costumeiras

de uma sociedade que não atende aos seus anseios. Depois de Joana, outras personagens

femininas de Clarice Lispector vieram à tona, mas está sobre esta, sem dúvida, a gênese

de uma formação. Além de fundante, no sentido de originário, o primeiro romance, como

assim o permite a autora, de algum modo continua possibilitando o trânsito com os

255

demais, como se notam das passagens, em que A hora da estrela leva o(a) leitor(a),

através de algumas imagens, reiteradas, de volta àquela obra inaugural.

Do ponto de vista da narrativa, propriamente dita, possibilitando a análise da

representação da mulher no texto literário, dois caminhos, neste estudo, a ela permitem o

acesso: um, através do corpo representado para as protagonistas Conceição, Joana,

Macabéa e Maria Moura; e outro, através dos motivos que deram narração a temas

anteriores, como sugere a abordagem em Memorial de Maria Moura relacionada à

figuração da donzela-guerreira, e da mesma forma a relação que se faz, ainda que por

oposição, entre a personagem de A hora da estrela e o povo macabeu. Este assunto,

dedicado às últimas obras publicadas em vida, por elas, constitui o quarto capítulo da tese

e está em contrapartida ao segundo, que recai, exclusivamente, sobre as obras de estréia, a

recepção delas e as supostas influências recebidas.

No que diz respeito ao corpo, socialmente construído, como informa Bourdieu, a

idéia é perseguir a mulher configurada a partir dos corpos representados para as

personagens supramencionadas.

Em Conceição, a imagem inteiriça do corpo, em O quinze, quase não aparece na

obra, sua corporalidade chegando ao leitor(a) em ―partes‖, de forma metonímica e

induzindo-o a crer que, sendo ela uma ‗mulher de idéias‖, como atesta a narração, há

uma preocupação para que haja ―menos corpo‖ para ela no texto.

O apagamento do corpo da heroína também se verifica em Perto do coração

selvagem, reflexo de uma personagem que intelectualiza suas experiências. Entretanto,

diferente de Conceição, Joana é uma mulher desejante, de corpo, assim como o é de

vida. O destaque, nesta abordagem, fica para as diferentes perspectivas sobre o corpo da

Joana criança e da Joana adulta; a descoberta do corpo, na cena do banho, como se até

então Joana ignorasse ser dona de um; assim como o apagamento que sucede a esta

256

revelação. O corpo sensível da heroína, mais patente na criança, evolui para o

conceitual, de modo que a partir de qualificativos como ―iluminado‖, ―sofrido‖,

―dolorido‖, ―flutuante‖ ou ―inexistente‖, o(a) leitor(a) faz a sua idéia do corpo da

heroína. Trata-se, aí, de um corpo personalizado, no texto. O problema é que, quanto

mais intelectualizada é a visão, mais carente de vitalidade, portanto, é a heroína.

E por falar em carência, o corpo representado para a nordestina de A hora da

estrela entra no procedimento da anulação. Esta carência tem início na fome da

personagem e se espraia por toda a concepção dela. Numa magreza, fácil de ser levada

pelo vento, Macabéa é arrastada por um corpo que lhe é insuficiente. Feia, suja,

assexuada, a pobreza corporal da moça, reforçando a pobre que realmente é, se resume

na imagem da esterilidade, marcada pelos ―ovários murchos‖, como são os seus.

Improdutiva é Macabéa, no sentido mesmo em que Deleuze & Guattari empregam o

termo, o corpo dela só confirmando a sua nulidade também como ser social.

De todas as personagens analisadas pelo ponto de vista do corpo, Maria Moura é a

mais autônoma, inclusive sexualmente. A heroína desde sempre tem assumida para ela

uma corporalidade na narrativa. O corpo da personagem reafirmando a mulher que se

ergue no texto. Moura é uma mulher dona, sobretudo, de uma vontade no romance. Ela

assume seus desejos na obra e estes são bem distintos do desejo de Joana, é bom que se

diga. Longe também ela vai estar de Conceição e Macabéa, ambas, nos textos, em

processo de negação e anulação corporais. Destaque-se da corporalidade de Moura,

entretanto, o travestimento de um corpo, construído pela hipérbole da mulher-homem.

Interessante é perceber que, se há negação corporal na primeira heroína de Rachel

de Queiroz, e ela é conquistada para Moura, sua última; movimento contrário parece

haver para as protagonistas de Clarice Lispector. Ao corpo descoberto por Joana, a partir

257

da sugestão da própria mulher que nasce do ato de se banhar, some-se a indicação de um

corpo perdido para Macabéa, em A hora da estrela.

Dando prosseguimento ao estudo da narrativa, e seguindo as pistas de seu

enunciado, o último capítulo da tese mostra que há intenção, sem dúvida, de aproximar

Maria Moura da donzela-guerreira. Entretanto, que fique claro, apesar da eventual

semelhança, não são poucos os registros em que a heroína queirozeana subverte o

modelo primeiro. Assim, em Memorial de Maria Moura, refutadas são as características

da donzela, a iluminar a guerreira. Se o corpo da personagem já se encarrega de fazer a

desconstrução da imagem da donzela, sua disposição e enfrentamento logo denunciam

nela um caráter bélico. A perspectiva da identificação paterna, comum às narrativas

sobre a donzela-guerreira, se estabelece, mas também no sentido da superação. O pai

inicialmente é o modelo, mas não tarda e a heroína vai ultrapassá-lo, dando um outro

rumo à sua representação. O próprio corte dos cabelos que representa no referente

anterior uma passagem da donzela para a guerreira não ocorre em sigilo, mas, diante de

seus cabras, não havendo, portanto, o que revelar quanto a isso. Tamanha é a

identificação da moça com o lado guerreiro que no texto é lembrada para ela uma

semelhança com São Jorge, o santo guerreiro. No recurso desta imagem, por sua vez,

fica-se para trás, assim como a pretérita imagem da donzela, a comparação feita ao

relance da narrativa, com Santa Luzia.

Apesar de distintos, os corpos representados para as personagens, negado,

personalizado, metaforizado ou hiperbolizado, têm algo em comum, que é a não-

reprodução. No entanto, cada uma delas, à sua maneira, termina por se resolver quanto a

isso. Joana, por exemplo, apesar de seduzida pela idéia de uma gravidez para ela, que

emerge em Lídia, logo se vê demovida deste pensamento e se ocupando de outros.

Resolvido o conflito inicial, a protagonista claricena, por sua vez, vai demonstrar, de

258

forma inteligente, que não se tratando de impossibilidade do corpo, a angústia por não

gerar só tem sentido quando fruto da indecisão ou da incapacidade de fazer uma escolha.

Ao adotar como faz Conceição ou cumprir o papel da madrinha, quando falta ao

protegido o cuidado mais próximo, as heroínas de Rachel de Queiroz encontram

também a sua solução. No caso de Moura, em que não há conflito quanto a isso,

sobretudo, não fosse a decepção causada por Cirino, a heroína bem serviria ao modelo

que atesta a possibilidade de ser feliz, sim, mesmo sem ter filhos. Quando de novo, ao

fim do livro, se lança numa nova empreitada, sua ação bem faz lembrar Simone de

Beauvoir, quando assegura, comentando a conquista do voto para as mulheres, que,

decididamente, não foi como mãe que elas conquistaram os seus direitos.

No que diz respeito aos macabeus, referentes que constituem motivos para a

narração em A hora da estrela, importante, sem dúvida, foi a descoberta, para esta

pesquisa, do texto suprimido por Clarice Lispector. Na verdade, o estudo dos

manuscritos originais da obra termina por confirmar uma direção que vinha sendo

desenvolvida no quarto capítulo, numa aposta que leva o(a) leitor(a), a partir das pistas

do narrador, ao encontro, ainda que indireto, com a história do povo macabeu.

Excetuando o nome da protagonista, na narrativa, tudo o mais é extraído do texto

por intermédio da associação. Quando se tem a citação da autora, por intermédio do

narrador, no trecho encontrado nos manuscritos, a sugestão permanece, mas, agora, é

como se tivesse a autorização da própria escritora para nela prosseguir.

Os macabeus são lembrados por sua rebelião. É o espírito insurgente deste povo

que os leva a enfrentar os gregos, seus opositores, na cultura e, sobretudo, na religião. É

uma história de lutas, de conquistas e realizações muito próprias de um povo heróico.

Sendo Macabéa uma personagem, síntese de uma raça que ainda nem reivindicou o

259

direito ao grito (AHE, p. 80), conclui-se que este é mais um dos jogos de oposição em

que se monta a novela.

A menção aos macabeus constitui, assim, um modo da narrativa para definir a

jovem por seu contrário, o seu anti-heroísmo sendo posto em relevo, a partir do

heroísmo daquele povo, a quem equivale por inversão. Ou seja, dócil, pacífica, indolente

e incapaz de subversão, até porque não parece sentir a opressão, a moça é, no espelho da

identificação, o reflexo deformado daquela gente. Até a morte, gloriosa para alguns

heróis, inclusive macabeus, é, para Macabéa, apesar de sua espetacularização na

narrativa, a solução de uma lástima.

Neste trabalho, como é mostrado, todas as obras analisadas encerram uma

perspectiva de oposição. Percebe-se que há em O quinze, por exemplo, uma tensão entre

uma cultura letrada, representada pela formação da heroína, e a cultura iletrada dos

retirantes. Em Perto do coração selvagem, as expressões de um mundo sensível, de que

é exemplo a mundividência de Joana criança, se contrapõe a uma Joana adulta e

intelectualizada. Em A hora da estrela, embora outra seja a autora, se repete a distinção

entre saber e não-saber, se desdobrando em outras, como natureza e cidade, produção e

não-produção ou, melhor dizendo, realização e não-realização. Fecha este ciclo, aqui

desenvolvido, Memorial de Maria Moura, com uma heroína aparentemente dividida

entre ―ser homem‖ e ―ser mulher‖.

Em todas elas perpassam, por fim, a temática da morte, em contradição à vida.

Como percurso do vivo, esta nada teria de trágico, se não tivesse o peso da negação. Em

A hora da estrela, ao que parece, se ela não é a personagem principal, é, na certa, a

personagem preferida, como atesta o fim da narração. Matar Macabéa é a solução de um

problema que persegue Rodrigo S. M., o narrador, desde as primeiras páginas do livro.

260

Permeando todas as obras, a morte representa, então, o fracasso de cada retirante,

em O quinze. No romance Perto do coração selvagem, embora não tenha a mesma

relevância que nas obras demais, ainda assim ela aparece, como tentativa de resgatar

alguma coisa perdida, que ficou para trás. Na novela A hora da estrela ela é, na ironia da

narrativa, a salvação para uma personagem que, em toda a obra, é condenada a se danar.

Por fim, em Memorial de Maria Moura, a morte, que fica em suspensão para a heroína,

pode, talvez escapando ao domínio da narração, representar, se aceita, o fim, não só da

moça, como de um projeto de emancipação para a mulher que nela se edifica,

silenciando com isto, o que seria lamentável, uma nova voz que nela se anuncia.

Se todas estas oposições tornam os textos artificiais, como fazem parecer a uns

olhos mais críticos, elas são reflexos também, como diria Elisabeth Grosz (2000), de um

sujeito, no caso narrativo, dividido por uma cultura solidificada em bases cartesianas.

Rachel de Queiroz e Clarice Lispector não inventaram esta oposição. E se faltam às

duas, por sua vez, condições de romper com esta perspectiva, de uma estrutura narrativa

que se baseia na negação, é que elas, como não poderia deixar de ser, receberam a sua

cota na herança de uma civilização ocidental. Recaem sobre as duas, como se vê, uma

pedra milenar que, não sendo intransponível, se faz, no apelo, aqui, à licença poética, de

difícil remoção, sobretudo quando se está no caminho da alteridade.

Implicando esta, como se sabe, numa relação que também envolve a polaridade,

Eu X Outro, a recorrência ao selvagem, nesta pesquisa, cumpre ainda com este papel de

chamar a atenção para a diferença nos textos analisados. Assim é que os retirantes,

muito próximos dos selvagens, em O quinze, iluminam, por oposição, a perspectiva de

um Eu que é construído para a heroína. De maneira semelhante se dá a construção da

introspectiva Joana, em Perto do coração selvagem. Mergulhada no Eu, tão distante ela

261

vai estar, que não alcança comunicação com o Outro, seja o pai na infância, seja o

marido, na vida adulta.

Visível, por sua vez, é a fenda que se faz entre Macabéa e o narrador de A hora da

estrela. A personagem, reduzida a uma condição de vivente, no texto, por isso mesmo

muito próxima de uma primária vida selvagem, termina por dar relevo ao evoluído

Rodrigo S. M., tudo se resumindo, no fim, a uma perspectiva em que o Eu se faz, à

medida que vai neutralizando o Outro.

A enorme distância que se estabelece entre os dois leva, algumas vezes, ao

estranhamento e ao riso. Este pelo menos foi o acesso a que teve o professor Eduardo

Parente Cunha, da UFMG, contando, em evento recente, sobre a Mulher e a Literatura,

suas experiências como espectador do filme A hora da estrela, rodado a partir da

adaptação da obra de Clarice Lispector. Cumpre acrescentar, aqui, entretanto, que este é

um humor que não tem graça nenhuma, principalmente se considerado o ponto de vista

relacional. Ao contrário, faz lembrar o que Bakhtin (1996) escreve acerca do riso como

paródia ou estética da inversão. Por esta ótica, definitivamente de fora do riso jubiloso,

há para Macabéa, conduzida ao papel da anti-heroína, que termina por representar, um

riso que a ridiculariza e a diminui perante os olhos do narrador.

Ainda no âmbito da alteridade, somente em Memorial de Maria Moura, ao que

parece, a questão ensaia uma relativização, com Rachel de Queiroz inserindo o híbrido

em sua narrativa. E é pela ótica da mulher-homem que vem sendo exposto o problema.

Para tanto, o selvagem que há na heroína encontra sua identificação em modelos

narrativos anteriores, a exemplo do que se conhece das amazonas guerreiras, ou da

versão atualizada delas, freqüente na narrativa da donzela que vai à guerra.

Ora, sendo o espaço da guerra, em princípio, ―destinado‖ ao homem, a partir de

sua inserção nele, a personagem, com a sua movimentação, desestabiliza na obra

262

conceitos culturais que relacionam o que é próprio do homem, o que é próprio da

mulher. Em suma, em Memorial de Maria Moura o Eu e o Outro estão fundidos na

própria representação dela, travestida ao longo do texto.

E se o final do livro, de certo modo, decepciona, há que se considerar também o

contexto em que a obra se passa, bem como as limitações da própria percepção. O

híbrido, neste caso, se apresenta oscilando entre o tradicional e o novo. De um lado,

este, acenando para um estágio em que se almeja a tão sonhada emancipação da mulher

e, de outro, a tradição e a dificuldade de saída para quem se nutriu dela. De qualquer

forma, muito válida é a tentativa.

O último romance de Rachel de Queiroz é de 1992. Se for considerado, então, que

somente a partir do final da década de 80 os estudos sobre o Feminismo ganham

repercussão no Brasil, a autora, que sempre se declarou numa relação conflituosa com as

feministas, parece ter mais delas do que julgava o próprio parecer. Queiroz, por outro

lado, é de uma família de matriarcas, o que talvez tenha dado a ela, também, esta

vivência sobre as mulheres nos moldes que representa.

Em O quinze, Perto do coração selvagem, A hora da estrela e Memorial de Maria

Moura, aqui analisadas, há, ―por trás dos panos‖ da narração, isso é fácil perceber, uma

mulher, dedicada às personagens centrais de seus textos. No entanto, nunca é demais

observar, para além do feminino, é da condição humana que elas tratam. Sua

sobrevivência, seu medo do irracional, sua carência, seus desejos. A novidade, no

entanto, fica por conta desta feminina voz que se anuncia em Literatura e,

especificamente, neste trabalho.

O que fazem, portanto, é dar visibilidade a estas mulheres. Decididas, como

Conceição, inquiridoras e amantes como Joana, carentes como Macabéa ou guerreiras

como Moura. Ao representá-las, assim, por sua vez, Rachel de Queiroz e Clarice

263

Lispector encontram, nesta forma multifacetária, uma maneira também de irromper,

numa ameaça selvagem que, no caso delas, mais significa força e espírito, cabeça e

corpo, voltados para a mesma questão.

264

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