A apreensão do conceito de tempo através da literatura para a infância
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ATAS
2º CONGRESSO INTERNACIONAL
“PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E CULTURA”
Organizadores:
Leandro S. Almeida
Alexandra M. Araújo
José F. Cruz
José C. Morais
Mário R. Simões
Título:
Atas do 2º Congresso Internacional de Psicologia, Educação e
Cultura.
Organizadores:
Leandro S. Almeida, Alexandra M. Araújo,
José F. Cruz, José C. Morais e Mário R. Simões
Vila Nova de Gaia,
17 e 18 de julho de 2015
Edições ISPGaya,
Av. dos Descobrimentos 333, 4400-103 Vila Nova de Gaia
ISBN978-972-8182-17-5
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A APREENSÃO DO CONCEITO DE TEMPO ATRAVÉS DA LITERATURA PARA A INFÂNCIA
Nuno Martins Ferreira1 & Antónia Estrela2
1 Escola Superior de Educação (Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal), [email protected]
2 Escola Superior de Educação (Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal), [email protected]
Resumo
Com este trabalho, pretende-se explorar as potencialidades que a literatura infantil pode fornecer para a apreensão da noção de tempo por crianças do pré-escolar. Dependendo essa apreensão de fatores subjetivos e culturais, a experiência de vida da criança assume um papel essencial. O simples ato de escutar e contar histórias que abordem a dimensão temporal, assim como a relação que é estabelecida entre certos acontecimentos pessoais e a passagem do tempo, são ações que potenciam uma apreensão veloz deste conceito. O papel do educador poderá ser determinante neste âmbito e a riqueza da literatura para a infância deve ser aproveitada para esse efeito. Reconhecendo-se a importância de um trabalho integrado das várias áreas de conteúdo, nomeadamente as áreas de Conhecimento do Mundo e da Língua Portuguesa das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar, o objetivo deste estudo é apresentar as vantagens de um trabalho articulado, cruzando o conceito de tempo e a literatura infantil. Para tal, procedeu-se à análise de cinco livros de literatura para crianças, de reconhecido valor literário e estético e cuja temática está de algum modo relacionada com o tempo, tendo sido feito o levantamento de todo o vocabulário e expressões relacionados com este conceito. Esta lista foi depois analisada sob uma perspetiva linguística e histórica. As principais conclusões apontam no sentido de existirem livros que encerram uma quantidade elevada e diversificada de expressões de tempo, que devem ser usados para apreensão desse conceito pela criança. Tendo subjacente a interdisciplinaridade, apontaremos algumas pistas de trabalho. Palavras-chave: Conceito de tempo, literatura infantil, pré-escolar, desenvolvimento da linguagem
Introdução
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O campo da literatura infantil é muito rico para se levar a cabo estudos diversos e
também para se trabalhar a interdisciplinaridade a vários níveis. Com este trabalho, temos
como objetivo explorar as potencialidades que a literatura para a infância pode fornecer
para a apreensão da noção de tempo por crianças do pré-escolar. Assume-se, portanto, a
importância de um trabalho integrado das várias áreas de conteúdo, nomeadamente as
áreas de Conhecimento do Mundo e da Língua Portuguesa das Orientações Curriculares
para a Educação Pré-Escolar (OCEPE), e, consequentemente, as vantagens que advêm de
um trabalho articulado, cruzando-se o conceito de tempo e a literatura infantil.
Na primeira parte deste trabalho, descrevemos o modo como a noção de tempo é
apreendida pela criança; seguidamente, apontamos a pertinência do recurso à literatura
infantil como ferramenta valiosa para a apreensão do conceito de tempo, em particular, e
de outros conteúdos, no geral; na secção 3, mostramos a análise efetuada a partir de cinco
livros de literatura para crianças, de reconhecido valor literário e estético e cuja temática
está relacionada com o tempo, e disponibilizamos algumas propostas didáticas para o
trabalho em sala de aula; finalmente, apresentamos algumas notas conclusivas, relevando
a importância de um trabalho interdisciplinar.
O conceito de tempo e a criança
As dimensões de Espaço e de tempo têm diferentes graus de apreensão por parte da
Criança. Se o Espaço é uma dimensão na qual, desde o nascimento, a criança se move e
dela se vai apropriando à medida que cresce (Heal & Cook, 2004), o tempo, para além de
ser um conceito abstrato, complexo e multifacetado (Mendes, 1993), apresenta diferentes
características: é irreversível e não pode separar-se do espaço onde cada um de nós está
a observar as mudanças que sofre cada lugar; para além disso, o tempo é relativo pois
cada um o entende, ou vive, de maneira diferente à luz da sua cultura, urgência ou
descontração. Reconhece-se no tempo uma amplitude assinalável de significados: o
biológico, o religioso, o pessoal e/ou social. Num plano pessoal, cada Ser Humano tem
um entendimento do que é o tempo infinito, cíclico ou linear, objetivo ou subjetivo
(Santisteban & Pagès, 2011, p. 236).
A criança em idade pré-escolar vive centrada no momento presente, consegue muitas
vezes relembrar o passado recente e pensar no futuro imediato mas apresenta uma
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compreensão básica dos acontecimentos que vive, como predecessores ou sequenciais ao
momento presente. A contagem do tempo é, evidentemente, relativa. Os segundos,
minutos e horas são demasiado abstratos porque as diferentes velocidades do tempo são
associadas a ações concretas, muitas vezes ligadas à rotina dos dias (Silva & Frezza,
2010), por exemplo: o momento de deitar, a hora de arrumar, o tempo de festa, a hora de
almoço, etc. É por isso que a compreensão que a criança vai adquirindo ao logo dos
primeiros anos de vida é gradual e sequencial.
Seguindo de perto as fases da aprendizagem do tempo sugeridas por Trepat e Comes
(2000, p. 68), é possível ver que apenas entre os 4 e os 5 anos a criança consegue
verbalizar operações simples de alternância (antes/depois) e de simultaneidade (ao
mesmo tempo). Tal como sugerem Vukelich e Thornton (1990, cit. por Solé, 2009, p. 29),
é nesta faixa etária que se começa a fazer a “sequencialização intrapessoal e interpessoal”,
ou seja, se coloca de forma sequencial acontecimentos do quotidiano e membros da
família por idades. À entrada para o ensino básico, a criança consegue já localizar num
calendário o dia em que se encontra e ordenar os principais momentos de uma narrativa
simples.
A apreensão dos diferentes conceitos de tempo (subjetivo/qualitativo;
físico/mensurável; ou físico-matemático) (Solé, 2009) depende de fatores subjetivos e
culturais. A experiência de vida da criança joga aqui um papel essencial e definidor da
velocidade com que a consolidação dos conceitos de tempo é feita. A língua, o escutar e
contar histórias que abordem a dimensão temporal, a relação que é feita entre certos
acontecimentos pessoais e a passagem do tempo são ações estão dependentes de fatores
que vão além do processo cognitivo da criança (Cooper, 2002). Aqui, as oportunidades
que lhes são oferecidas no círculo familiar, escolar ou pela sociedade, em geral,
influenciam a apropriação do tempo. É neste contexto que se impõe a ideia de que o papel
do educador é fundamental para que este processo de apropriação se torne uma tarefa
mais fácil.
Do ponto de vista da educação pré-escolar, o tempo é, por excelência, o da rotina. De
acordo com as Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (OCEPE), o
planeamento da rotina, que deve ter em conta o espaço físico da sala, é importante nestas
idades pois “as referências temporais são securizantes para a criança e servem de
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fundamento para a compreensão do Tempo: passado, presente, futuro; contexto diário,
semanal, mensal, anual” (OCEPE, 1997, p. 40).
O ensino do tempo cronológico, ao implicar atividades com aplicação de unidades de
medida temporais, permite que, lentamente, a criança vá formando uma ideia de tempo,
enquanto “flujo continuo y lineal pasado-futuro” (Trepat & Comes, 2000, p. 48). Essas
atividades poderão ser de aprendizagem dos tempos verbais, de utilização do relógio, de
noções de dia, mês ou ano, etc. Para se aprender o tempo histórico e social é preciso
conhecer as mudanças operadas pelo tempo físico e astronómico.
É certo que, em si mesma, a cronologia apenas apresenta datas ou informa
sucintamente de acontecimentos humanos e sociais e não explica mais do que isso (Cruz
Rodriguez, 2004). De qualquer modo, como identificou Cooper (2002), para as crianças
em idade pré-escolar é mais importante ouvir falar do passado do que propriamente
perceber ou decorar datas.
No que diz respeito à dimensão tempo, em respeito absoluto com a vivência e
experiência pessoal de cada criança, a educação pré-escolar “permite alargar esta noção
[de tempo] ao introduzir outros ritmos e sucessões e ao facilitar à criança a tomada de
consciência do desenrolar do tempo: o antes e o depois, a sequência semanal, mensal e
anual e ainda o tempo marcado pelo relógio, o que se faz a uma determinada hora”
(OCEPE, p. 75).
Já a Área do Conhecimento do Mundo trabalha, entre outros aspetos, o Meio próximo
a partir da “curiosidade natural da criança e no seu desejo de saber e compreender porquê”
(OCEPE, p. 79). A vivência do e no Meio próximo é valorizada nesta área, sobretudo em
momentos de deslocações ao exterior do espaço educativo. No caso da História, é possível
trabalhar com as crianças, a partir do seu presente, o passado mais próximo e o mais
longínquo. O educador deve potenciar o conhecimento da criança e partir da sua “história
pessoal e próxima1, estendendo-se a épocas mais longínquas (pré-história, etc)” (OCEPE,
p. 82). Um passeio pelo bairro onde se insere o jardim-de-infância ou uma visita a um
museu são apenas dois exemplos do que poderá ser um momento de aprendizagem
significativa do passado. Para além destes exemplos, a literatura para a infância oferece
possibilidades múltiplas.
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A apreensão e o domínio evolutivo da noção de tempo têm um precioso aliado: a
didática, enquanto corpo de conhecimentos racionais utilizados num processo de ensino
facilitador da aprendizagem (Sánchez Huete, 2008). A transmissão daquele conceito deve
ser feita a partir de atividades práticas (didáticas) e do que a criança já sabe ou quer saber.
Por isso, “es fundamental investigar cómo el alumnado construye los conceptos sociales,
cómo los aprende y como se le enseñan, y el uso que hace de los conceptos sociales en
contextos reales” (Pagès & Santisteban, 2013, p. 25).
O contributo da literatura para a exploração do conceito de tempo
Numa perspetiva em que se valoriza a interdisciplinaridade, é relevante conhecer
as possibilidades e potencialidades que são permitidas pela intersecção de áreas diversas,
deixando-se de parte as fronteiras rígidas de cada campo disciplinar. É nesta linha de
pensamento que se pretende mostrar a existência fundamental de práticas educativas que
promovem essa interdisciplinaridade, tendo por base a literatura para a infância. Como
sabemos, as histórias são importantes para a formação das crianças, uma vez que ouvir
histórias é o início do percurso para se construir um leitor. Ler e ouvir ler/contar são ações
que despertam o imaginário, a curiosidade, as emoções e as viagens para outros lugares,
sejam eles atuais ou passados.
A obra literária, não tendo a obrigação de explicar o real ou de descrever
acontecimentos reais, constrói-se recorrendo, geralmente, à imaginação e à ficção, o que
tem subjacente um afastamento do real. No entanto, essa mesma construção fictícia pode
ajudar as crianças a perceber as suas próprias vivências, o seu próprio mundo. É assim
que a literatura infantil, para além da fruição estética que proporciona, funciona também
como algo potenciador da apropriação de noções importantes com a de tempo, entre
outras.
Assim, para que o texto literário possa ser utilizado como um objeto mediador do
conhecimento, necessita de ser tratado como arte, como objeto estético e de fruição e não
apenas como um conteúdo a ser avaliado (Cosson, 2006). Na verdade, o problema da
avaliação, ainda que importante, não se coloca a este nível de ensino pelo que não será
discutido neste trabalho. O que importa salientar, acima de tudo, é a relevância da
literatura enquanto mediadora do conhecimento. As crianças podem aprender muito a
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partir das histórias que lhes são disponibilizadas. Será então o modo como o livro de
literatura infantil é trabalhado pelo educador uma peça fundamental para o sucesso deste
processo. Assim, para Zamboni e Fonseca (2010), “a literatura infantil constitui uma fonte
extremamente rica a ser problematizada pelo professor, que, por meio de um trabalho
interdisciplinar, promoverá o acesso do aluno a outras linguagens, outras histórias, e o
desenvolvimento de posturas críticas e criativas. Acreditamos que podemos enriquecer o
processo de alfabetização e ampliar a aprendizagem histórica num processo de diálogo,
aberto, livre e sensível entre memória, tempo, história” (p. 351).
Através das histórias, podemos ajudar as crianças a ampliar a perceção do conceito
de tempo. É importante reforçar-se uma prática aliada à leitura e à literatura no jardim-
de-infância. Quanto mais precoce for a inserção de livros e de histórias na vida da criança
mais benéfico será. Os livros selecionados devem ser ricos quer em relação ao conteúdo,
quer em relação à linguagem. Na construção dessa relação com o livro, haverá maiores
probabilidades de se proporcionarem aprendizagens significativas, que são preparadas
intencionalmente em sala de aula.
Desde cedo que se pode trabalhar a medida temporal com crianças, aproveitando,
por um lado, momentos que sejam significativos para eles do ponto de vista pessoal, por
exemplo, explorando a data de aniversário (Trepat & Comes, 2000, p. 56), e, por outro,
centrando-se em histórias lidas. A partir do livro, pode-se recorrer a atividades de
aprendizagem com o intuito de estabelecer relações entre as situações vividas e as
histórias. Para o investigador italiano Antonio Calvani1, a ideia de que crianças mais
pequenas não conseguem compreender o tempo não tem tanto que ver com o seu estádio
de desenvolvimento mas sim com a “modalidad linguistica del relato o en el grado de
correspondencia de los materiales presentados con la idea que del tiempo ya poseen los
niños y las niñas” (Trepat & Comes, 2000, p. 59).
É pelas razões expostas que é fundamental uma seleção cuidada das obras a utilizar
com as crianças. Calvani afirma que as crianças pequenas chegam à escola com uma ideia
feita de duração e, por isso, com um certo sentido de história, a sua história pessoal
baseada no tempo vivido. Ainda assim, com base nos seus estudos, Calvani entende que
as crianças quando chegam ao ensino básico apresentam uma capacidade para imaginar
e conceber tempos mais recuados. Deu o exemplo da ideia de homens primitivos, que
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viviam em cavernas, caçavam para comer e vestiam peles dos animais caçados. Esta
localização num tempo remoto, que não sabem situar na realidade, pode surgir através
dos desenhos animados televisionados ou de livros. Veja-se o caso dos dinossauros ou
dos dragões. As crianças associam o tempo destes seres, imaginários ou não, a um passado
mais ou menos longínquo. Para além desse tempo tão distante, importa fazer a criança
perceber que o tempo se constrói de minutos, horas, dias, meses e anos; que há o ontem,
o hoje e o amanhã; que há o passado, o presente e o futuro; e que todos estes tempos
surgem nas histórias e aí se fazem claros. A literatura serve o tempo e o tempo serve a
literatura, para que nada fique esquecido.
Cinco obras literárias: uma análise
Como vimos, a literatura para a infância poderá contribuir para a aprendizagem
do conceito de tempo e, para que tal aconteça, tem de ser dado um papel de destaque ao
livro e às histórias na sala de aula. Cabe essencialmente ao educador trazer os livros para
junto das crianças. Sendo o conteúdo aqui em destaque a apreensão do conceito de tempo,
a escolha das obras deve ser feita em conformidade, ou seja, devem ser selecionados
livros que, sendo ricos e completos enquanto obra literária, abordem essa temática. Após
uma busca mais ou menos minuciosa, pudemos constatar que há um leque diversificado
de obras que podem satisfazer quem pretende trabalhar as questões do tempo. Para o
nosso estudo, selecionamos cinco obras que focam claramente o conteúdo em análise. No
nosso entender, esses livros possibilitam a exploração do tempo de uma forma rica e
variada, pois estão presentes diferentes tempos; experiências humanas distintas através
do tempo; diferentes memórias. É nossa intenção apresentar seguidamente essas obras e
lançar breves pistas sobre o modo como poderão ser abordadas em sala de aula.
A obra 365 Pinguins é um livro sobre a preservação da natureza, em que o passar
do tempo empo e a matemática marcam uma presença muito forte. Todos os dias, durante
um ano, uma família recebe um pinguim pelo correio. O passar do tempo é-nos fornecido
através do suceder das horas (“Às nove da manhã”), dos dias (“Na segunda-feira”), dos
meses (“No dia 4 de agosto”), das estações (“Com a chegada do verão”). A história vai-
se desenrolando e tudo serve para medir o tempo, desde a duração do som emitido pelos
pinguins (“Em menos de um cruac”) até à duração do mês de fevereiro (“Fevereiro só
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tem vinte e oito dias”). O livro constrói-se sobre o próprio tempo também para nos
lembrar que urge fazer algo para a proteção das espécies, porque “O tempo passa num
instante” e algo tem de mudar rapidamente a bem do planeta, que já conta 4,5 bilhões de
anos.
O número que surge no título da obra também não é inócuo: aponta para a
quantidade de dias que o ano tem e esse pode ser o ponto de partida para a exploração do
livro. Uma possibilidade é a de convidar as crianças a antecipar o conteúdo do livro
através do título. Porque será que se refere 365 pinguins e não 325? Será um número com
algum significado especial? Qual? E terão todos os anos 365 dias? Pode ser trazido, para
a sala de aula, um calendário em que as crianças assinalarão alguns datas especiais, como
as festas ou o início das estações. A alternativa é serem elas próprias a construir um
calendário, em que assinalarão, diariamente a passagem do tempo, por exemplo.
Outra obra é Ainda Nada, que mostra a importância de se ser paciente. O senhor
Luís semeou uma semente e espera que ela nasça. É uma longa espera, os dias vão-se
sucedendo (“No dia seguinte”) e a flor tarda em nascer (“Ainda nada”). Demora tanto que
o senhor Luís perde a paciência (“Já estou farto … Não merece a pena voltar amanhã.”).
Ora, é precisamente nesse dia que a flor nasce e o senhor Luís nunca chega a sabê-lo.
Entre o achar que “Era demasiado cedo” e que a flor “Tarda em brotar”, o senhor Luís
perde a esperança e perde a flor. Ganha-a o pássaro que, apesar de calado, era mais
paciente e estava apaixonado. Do ponto de vista didático, poder-se-á apresentar às
crianças as imagens que ilustram a obra e propor que sejam elas mesmas a ordenar os
desenhos tendo em conta aquilo que ouviram. Deste modo, aperceber-se-ão do que
aconteceu primeiro, do que se passou a seguir, e assim continuamente.
No livro Eu Espero, não é o vocabulário usual que marca o passar do tempo, mas
sim a ideia implícita do fluir dos dias que surge a partir da apresentação dos vários
momentos da vida da personagem. Desde a infância (“Espero… crescer”) e o casamento
(“Espero… que ela diga sim”.) até à paternidade (“Espero… um bebé”) e à morte da
amada (“Espero… que ela não sofra mais”), a vida vai-se escoando por entre as páginas,
sempre marcadas pela presença de um fio de lã vermelha. A personagem espera os inícios
e os fins com a mesma aparente naturalidade de quem sabe que a primavera virá sempre
depois do inverno.
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Ao nível didático, o livro pode ser trabalhado a partir dos momentos mais
importantes da vida de uma pessoa. A este propósito, pode-se convidar a criança a expor
os momentos mais importantes da sua vida e a situá-los no tempo ou então pode-se
incumbir a criança de pedir a alguém mais velho (aos avós, por exemplo) que faça esse
relato. Com estas informações, pode ser criado um friso cronológico para que a
informação fique visualmente disponível. A elaboração de um friso cronológico pode ser
uma tarefa divertida, especialmente porque representará a vida da criança ou de alguém
que ela conhece. A um outro nível a construção de um friso pode ser uma tarefa mais
trabalhosa, requerendo uma planificação cuidada. É o que acontece quando se apresentam
factos históricos, por exemplo. Sobre uma linha, representa-se o tempo absoluto ou
cronológico (sucessão regular de meses, anos, séculos...). Há que ter em conta alguns
aspetos importantes como a definição do conteúdo do friso mediante a apresentação de
um título significativo; a definição do período que se vai representar, a escolha da unidade
de medida (meses, anos, séculos…); a seleção dos factos mais significativos, entre outros.
A nossa quarta proposta é o livro A Casa, que atravessa o século XX, tendo a casa
como narrador. Numa espécie de prefácio, a própria casa anuncia o que vai contar: “Esta
é a minha história do século vinte (…)”. Assim, há uma associação constante da história
da própria casa à do século, como se uma não vivesse sem a outra. Com uma referência
constante aos anos, são destacados simples eventos familiares e laborais como o
casamento, a vindima e a ceifa, mas também as grandes guerras mundiais e as suas
consequências. A Casa tem uma voz problematizadora da realidade, apontando, por
exemplo, para a existência de uma guerra que já vai demasiado longa: “De quem é esta
guerra que dura há mil luas?”.
De um ponto de vista didático, poderá ser interessante aproveitar, entre outros
aspetos, esta referência às “mil luas”. Para além da questão matemática, há o tema da
cronologia e do modo como o tempo pode ser contado. Há milhares de anos, a
humanidade não possuía artefactos que auxiliassem na medição do tempo. Assim, eram
os próprios fenómenos naturais periódicos que constituíam uma ferramenta favorável
para levara a cabo essa tarefa. Um projeto proveitoso será, por exemplo, o de descobrir
como as antigas civilizações contavam o tempo.
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Finalmente, o livro A Lagartinha Muito Comilona aborda a passagem de uma
lagartinha a borboleta, num percurso que, começando “num domingo de manhã”,
atravessa os sete dias da semana e volta novamente ao domingo: “O dia seguinte era outra
vez um domingo”. É a ciclicidade do tempo que é aqui mostrada. A lagartinha alimentou-
se gulosamente todos os dias para, no final do trajeto, se fechar no casulo “mais de duas
semanas” e se transformar numa bela borboleta.
Esta história pode ser aproveitada para introduzir os dias da semana. Mais uma vez,
poder-se-á recorrer a um calendário em que as crianças vão assinalando o dia em que
estão. Deste modo, vão-se apercebendo dos nomes dos dias e da ciclicidade do tempo que
cadenceia a nossa existência. Para além disso, e depois de se analisar brevemente a vida
do autor, Eric Carle, pode-se pensar na versão original da obra, em inglês, e apresentar os
dias da semana nessa língua. Será um modo divertido de começar a aprender algumas
palavras de uma língua estrangeira.
Notas conclusivas
Como se depreende, trabalhar o tempo com crianças pequenas é objetivamente
uma potencialidade que exige investimento por parte do educador. O estudo do conceito
e a procura de estratégias didáticas para trabalhá-lo são duas dimensões de um processo
que, em última análise, contribuirá para a formação de crianças com uma perceção mais
clara daquilo que é o tempo e para uma cidadania mais ativa e responsável: “una
enseñanza orientada a la formación del pensamiento social, geográfico e histórico de los
niños y de las niñas [...] para que puedan decidir consciente y libremente qué tipo de
ciudadano y ciudadana desean ser” (Pagès & Santisteban, 2013, p. 20). O educador poderá
valer-se da literatura para construir esse trajeto, uma vez que as obras literárias
direcionadas para crianças constituem ricas bases de significações das tramas das
experiências humanas nos diversos tempos e espaços (Zamboni & Fonseca, 2010),
funcionando como estímulos preciosos para a reflexão sobre a formação e a educação dos
mais novos.
Depois desta exposição de ideias que visam estreitar a relação entre a literatura e
outras áreas de conteúdo, o passo seguinte será o de averiguar o modo como o livro de
literatura infantil é trabalhado, por professores e crianças, em sala de aula e a influência
que essas práticas exercem no processo de atribuição de sentido à noção de tempo.
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Paralelamente, uma abordagem ao modo como se passa a noção do tempo através da
imagem nos livros para a infância revelar-se-á útil, tendo em conta que, cada vez mais, a
ilustração vem assumindo um papel de destaque.
Obras analisadas
Jean Luc Fromental, Joelle Jolivet, 365 Pinguins, Orfeu Negro
Christian Voltz, Ainda Nada?, Kalandraka
Davide Cali, Serge Bloch, Eu Espero, Bruaá Editora
J. Patrick Lewis, Roberto Innocenti, A Casa, Kalandraka
Eric Carl, A Lagartinha Muito Comilona, Kalandraka
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