A apreensão do conceito de tempo através da literatura para a infância

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ATAS 2º CONGRESSO INTERNACIONAL PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E CULTURAOrganizadores: Leandro S. Almeida Alexandra M. Araújo José F. Cruz José C. Morais Mário R. Simões

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ATAS

2º CONGRESSO INTERNACIONAL

“PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E CULTURA”

Organizadores:

Leandro S. Almeida

Alexandra M. Araújo

José F. Cruz

José C. Morais

Mário R. Simões

Título:

Atas do 2º Congresso Internacional de Psicologia, Educação e

Cultura.

Organizadores:

Leandro S. Almeida, Alexandra M. Araújo,

José F. Cruz, José C. Morais e Mário R. Simões

Vila Nova de Gaia,

17 e 18 de julho de 2015

Edições ISPGaya,

Av. dos Descobrimentos 333, 4400-103 Vila Nova de Gaia

ISBN978-972-8182-17-5

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A APREENSÃO DO CONCEITO DE TEMPO ATRAVÉS DA LITERATURA PARA A INFÂNCIA

Nuno Martins Ferreira1 & Antónia Estrela2

1 Escola Superior de Educação (Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal), [email protected]

2 Escola Superior de Educação (Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal), [email protected]

Resumo

Com este trabalho, pretende-se explorar as potencialidades que a literatura infantil pode fornecer para a apreensão da noção de tempo por crianças do pré-escolar. Dependendo essa apreensão de fatores subjetivos e culturais, a experiência de vida da criança assume um papel essencial. O simples ato de escutar e contar histórias que abordem a dimensão temporal, assim como a relação que é estabelecida entre certos acontecimentos pessoais e a passagem do tempo, são ações que potenciam uma apreensão veloz deste conceito. O papel do educador poderá ser determinante neste âmbito e a riqueza da literatura para a infância deve ser aproveitada para esse efeito. Reconhecendo-se a importância de um trabalho integrado das várias áreas de conteúdo, nomeadamente as áreas de Conhecimento do Mundo e da Língua Portuguesa das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar, o objetivo deste estudo é apresentar as vantagens de um trabalho articulado, cruzando o conceito de tempo e a literatura infantil. Para tal, procedeu-se à análise de cinco livros de literatura para crianças, de reconhecido valor literário e estético e cuja temática está de algum modo relacionada com o tempo, tendo sido feito o levantamento de todo o vocabulário e expressões relacionados com este conceito. Esta lista foi depois analisada sob uma perspetiva linguística e histórica. As principais conclusões apontam no sentido de existirem livros que encerram uma quantidade elevada e diversificada de expressões de tempo, que devem ser usados para apreensão desse conceito pela criança. Tendo subjacente a interdisciplinaridade, apontaremos algumas pistas de trabalho. Palavras-chave: Conceito de tempo, literatura infantil, pré-escolar, desenvolvimento da linguagem

Introdução

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O campo da literatura infantil é muito rico para se levar a cabo estudos diversos e

também para se trabalhar a interdisciplinaridade a vários níveis. Com este trabalho, temos

como objetivo explorar as potencialidades que a literatura para a infância pode fornecer

para a apreensão da noção de tempo por crianças do pré-escolar. Assume-se, portanto, a

importância de um trabalho integrado das várias áreas de conteúdo, nomeadamente as

áreas de Conhecimento do Mundo e da Língua Portuguesa das Orientações Curriculares

para a Educação Pré-Escolar (OCEPE), e, consequentemente, as vantagens que advêm de

um trabalho articulado, cruzando-se o conceito de tempo e a literatura infantil.

Na primeira parte deste trabalho, descrevemos o modo como a noção de tempo é

apreendida pela criança; seguidamente, apontamos a pertinência do recurso à literatura

infantil como ferramenta valiosa para a apreensão do conceito de tempo, em particular, e

de outros conteúdos, no geral; na secção 3, mostramos a análise efetuada a partir de cinco

livros de literatura para crianças, de reconhecido valor literário e estético e cuja temática

está relacionada com o tempo, e disponibilizamos algumas propostas didáticas para o

trabalho em sala de aula; finalmente, apresentamos algumas notas conclusivas, relevando

a importância de um trabalho interdisciplinar.

O conceito de tempo e a criança

As dimensões de Espaço e de tempo têm diferentes graus de apreensão por parte da

Criança. Se o Espaço é uma dimensão na qual, desde o nascimento, a criança se move e

dela se vai apropriando à medida que cresce (Heal & Cook, 2004), o tempo, para além de

ser um conceito abstrato, complexo e multifacetado (Mendes, 1993), apresenta diferentes

características: é irreversível e não pode separar-se do espaço onde cada um de nós está

a observar as mudanças que sofre cada lugar; para além disso, o tempo é relativo pois

cada um o entende, ou vive, de maneira diferente à luz da sua cultura, urgência ou

descontração. Reconhece-se no tempo uma amplitude assinalável de significados: o

biológico, o religioso, o pessoal e/ou social. Num plano pessoal, cada Ser Humano tem

um entendimento do que é o tempo infinito, cíclico ou linear, objetivo ou subjetivo

(Santisteban & Pagès, 2011, p. 236).

A criança em idade pré-escolar vive centrada no momento presente, consegue muitas

vezes relembrar o passado recente e pensar no futuro imediato mas apresenta uma

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compreensão básica dos acontecimentos que vive, como predecessores ou sequenciais ao

momento presente. A contagem do tempo é, evidentemente, relativa. Os segundos,

minutos e horas são demasiado abstratos porque as diferentes velocidades do tempo são

associadas a ações concretas, muitas vezes ligadas à rotina dos dias (Silva & Frezza,

2010), por exemplo: o momento de deitar, a hora de arrumar, o tempo de festa, a hora de

almoço, etc. É por isso que a compreensão que a criança vai adquirindo ao logo dos

primeiros anos de vida é gradual e sequencial.

Seguindo de perto as fases da aprendizagem do tempo sugeridas por Trepat e Comes

(2000, p. 68), é possível ver que apenas entre os 4 e os 5 anos a criança consegue

verbalizar operações simples de alternância (antes/depois) e de simultaneidade (ao

mesmo tempo). Tal como sugerem Vukelich e Thornton (1990, cit. por Solé, 2009, p. 29),

é nesta faixa etária que se começa a fazer a “sequencialização intrapessoal e interpessoal”,

ou seja, se coloca de forma sequencial acontecimentos do quotidiano e membros da

família por idades. À entrada para o ensino básico, a criança consegue já localizar num

calendário o dia em que se encontra e ordenar os principais momentos de uma narrativa

simples.

A apreensão dos diferentes conceitos de tempo (subjetivo/qualitativo;

físico/mensurável; ou físico-matemático) (Solé, 2009) depende de fatores subjetivos e

culturais. A experiência de vida da criança joga aqui um papel essencial e definidor da

velocidade com que a consolidação dos conceitos de tempo é feita. A língua, o escutar e

contar histórias que abordem a dimensão temporal, a relação que é feita entre certos

acontecimentos pessoais e a passagem do tempo são ações estão dependentes de fatores

que vão além do processo cognitivo da criança (Cooper, 2002). Aqui, as oportunidades

que lhes são oferecidas no círculo familiar, escolar ou pela sociedade, em geral,

influenciam a apropriação do tempo. É neste contexto que se impõe a ideia de que o papel

do educador é fundamental para que este processo de apropriação se torne uma tarefa

mais fácil.

Do ponto de vista da educação pré-escolar, o tempo é, por excelência, o da rotina. De

acordo com as Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (OCEPE), o

planeamento da rotina, que deve ter em conta o espaço físico da sala, é importante nestas

idades pois “as referências temporais são securizantes para a criança e servem de

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fundamento para a compreensão do Tempo: passado, presente, futuro; contexto diário,

semanal, mensal, anual” (OCEPE, 1997, p. 40).

O ensino do tempo cronológico, ao implicar atividades com aplicação de unidades de

medida temporais, permite que, lentamente, a criança vá formando uma ideia de tempo,

enquanto “flujo continuo y lineal pasado-futuro” (Trepat & Comes, 2000, p. 48). Essas

atividades poderão ser de aprendizagem dos tempos verbais, de utilização do relógio, de

noções de dia, mês ou ano, etc. Para se aprender o tempo histórico e social é preciso

conhecer as mudanças operadas pelo tempo físico e astronómico.

É certo que, em si mesma, a cronologia apenas apresenta datas ou informa

sucintamente de acontecimentos humanos e sociais e não explica mais do que isso (Cruz

Rodriguez, 2004). De qualquer modo, como identificou Cooper (2002), para as crianças

em idade pré-escolar é mais importante ouvir falar do passado do que propriamente

perceber ou decorar datas.

No que diz respeito à dimensão tempo, em respeito absoluto com a vivência e

experiência pessoal de cada criança, a educação pré-escolar “permite alargar esta noção

[de tempo] ao introduzir outros ritmos e sucessões e ao facilitar à criança a tomada de

consciência do desenrolar do tempo: o antes e o depois, a sequência semanal, mensal e

anual e ainda o tempo marcado pelo relógio, o que se faz a uma determinada hora”

(OCEPE, p. 75).

Já a Área do Conhecimento do Mundo trabalha, entre outros aspetos, o Meio próximo

a partir da “curiosidade natural da criança e no seu desejo de saber e compreender porquê”

(OCEPE, p. 79). A vivência do e no Meio próximo é valorizada nesta área, sobretudo em

momentos de deslocações ao exterior do espaço educativo. No caso da História, é possível

trabalhar com as crianças, a partir do seu presente, o passado mais próximo e o mais

longínquo. O educador deve potenciar o conhecimento da criança e partir da sua “história

pessoal e próxima1, estendendo-se a épocas mais longínquas (pré-história, etc)” (OCEPE,

p. 82). Um passeio pelo bairro onde se insere o jardim-de-infância ou uma visita a um

museu são apenas dois exemplos do que poderá ser um momento de aprendizagem

significativa do passado. Para além destes exemplos, a literatura para a infância oferece

possibilidades múltiplas.

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A apreensão e o domínio evolutivo da noção de tempo têm um precioso aliado: a

didática, enquanto corpo de conhecimentos racionais utilizados num processo de ensino

facilitador da aprendizagem (Sánchez Huete, 2008). A transmissão daquele conceito deve

ser feita a partir de atividades práticas (didáticas) e do que a criança já sabe ou quer saber.

Por isso, “es fundamental investigar cómo el alumnado construye los conceptos sociales,

cómo los aprende y como se le enseñan, y el uso que hace de los conceptos sociales en

contextos reales” (Pagès & Santisteban, 2013, p. 25).

O contributo da literatura para a exploração do conceito de tempo

Numa perspetiva em que se valoriza a interdisciplinaridade, é relevante conhecer

as possibilidades e potencialidades que são permitidas pela intersecção de áreas diversas,

deixando-se de parte as fronteiras rígidas de cada campo disciplinar. É nesta linha de

pensamento que se pretende mostrar a existência fundamental de práticas educativas que

promovem essa interdisciplinaridade, tendo por base a literatura para a infância. Como

sabemos, as histórias são importantes para a formação das crianças, uma vez que ouvir

histórias é o início do percurso para se construir um leitor. Ler e ouvir ler/contar são ações

que despertam o imaginário, a curiosidade, as emoções e as viagens para outros lugares,

sejam eles atuais ou passados.

A obra literária, não tendo a obrigação de explicar o real ou de descrever

acontecimentos reais, constrói-se recorrendo, geralmente, à imaginação e à ficção, o que

tem subjacente um afastamento do real. No entanto, essa mesma construção fictícia pode

ajudar as crianças a perceber as suas próprias vivências, o seu próprio mundo. É assim

que a literatura infantil, para além da fruição estética que proporciona, funciona também

como algo potenciador da apropriação de noções importantes com a de tempo, entre

outras.

Assim, para que o texto literário possa ser utilizado como um objeto mediador do

conhecimento, necessita de ser tratado como arte, como objeto estético e de fruição e não

apenas como um conteúdo a ser avaliado (Cosson, 2006). Na verdade, o problema da

avaliação, ainda que importante, não se coloca a este nível de ensino pelo que não será

discutido neste trabalho. O que importa salientar, acima de tudo, é a relevância da

literatura enquanto mediadora do conhecimento. As crianças podem aprender muito a

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partir das histórias que lhes são disponibilizadas. Será então o modo como o livro de

literatura infantil é trabalhado pelo educador uma peça fundamental para o sucesso deste

processo. Assim, para Zamboni e Fonseca (2010), “a literatura infantil constitui uma fonte

extremamente rica a ser problematizada pelo professor, que, por meio de um trabalho

interdisciplinar, promoverá o acesso do aluno a outras linguagens, outras histórias, e o

desenvolvimento de posturas críticas e criativas. Acreditamos que podemos enriquecer o

processo de alfabetização e ampliar a aprendizagem histórica num processo de diálogo,

aberto, livre e sensível entre memória, tempo, história” (p. 351).

Através das histórias, podemos ajudar as crianças a ampliar a perceção do conceito

de tempo. É importante reforçar-se uma prática aliada à leitura e à literatura no jardim-

de-infância. Quanto mais precoce for a inserção de livros e de histórias na vida da criança

mais benéfico será. Os livros selecionados devem ser ricos quer em relação ao conteúdo,

quer em relação à linguagem. Na construção dessa relação com o livro, haverá maiores

probabilidades de se proporcionarem aprendizagens significativas, que são preparadas

intencionalmente em sala de aula.

Desde cedo que se pode trabalhar a medida temporal com crianças, aproveitando,

por um lado, momentos que sejam significativos para eles do ponto de vista pessoal, por

exemplo, explorando a data de aniversário (Trepat & Comes, 2000, p. 56), e, por outro,

centrando-se em histórias lidas. A partir do livro, pode-se recorrer a atividades de

aprendizagem com o intuito de estabelecer relações entre as situações vividas e as

histórias. Para o investigador italiano Antonio Calvani1, a ideia de que crianças mais

pequenas não conseguem compreender o tempo não tem tanto que ver com o seu estádio

de desenvolvimento mas sim com a “modalidad linguistica del relato o en el grado de

correspondencia de los materiales presentados con la idea que del tiempo ya poseen los

niños y las niñas” (Trepat & Comes, 2000, p. 59).

É pelas razões expostas que é fundamental uma seleção cuidada das obras a utilizar

com as crianças. Calvani afirma que as crianças pequenas chegam à escola com uma ideia

feita de duração e, por isso, com um certo sentido de história, a sua história pessoal

baseada no tempo vivido. Ainda assim, com base nos seus estudos, Calvani entende que

as crianças quando chegam ao ensino básico apresentam uma capacidade para imaginar

e conceber tempos mais recuados. Deu o exemplo da ideia de homens primitivos, que

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viviam em cavernas, caçavam para comer e vestiam peles dos animais caçados. Esta

localização num tempo remoto, que não sabem situar na realidade, pode surgir através

dos desenhos animados televisionados ou de livros. Veja-se o caso dos dinossauros ou

dos dragões. As crianças associam o tempo destes seres, imaginários ou não, a um passado

mais ou menos longínquo. Para além desse tempo tão distante, importa fazer a criança

perceber que o tempo se constrói de minutos, horas, dias, meses e anos; que há o ontem,

o hoje e o amanhã; que há o passado, o presente e o futuro; e que todos estes tempos

surgem nas histórias e aí se fazem claros. A literatura serve o tempo e o tempo serve a

literatura, para que nada fique esquecido.

Cinco obras literárias: uma análise

Como vimos, a literatura para a infância poderá contribuir para a aprendizagem

do conceito de tempo e, para que tal aconteça, tem de ser dado um papel de destaque ao

livro e às histórias na sala de aula. Cabe essencialmente ao educador trazer os livros para

junto das crianças. Sendo o conteúdo aqui em destaque a apreensão do conceito de tempo,

a escolha das obras deve ser feita em conformidade, ou seja, devem ser selecionados

livros que, sendo ricos e completos enquanto obra literária, abordem essa temática. Após

uma busca mais ou menos minuciosa, pudemos constatar que há um leque diversificado

de obras que podem satisfazer quem pretende trabalhar as questões do tempo. Para o

nosso estudo, selecionamos cinco obras que focam claramente o conteúdo em análise. No

nosso entender, esses livros possibilitam a exploração do tempo de uma forma rica e

variada, pois estão presentes diferentes tempos; experiências humanas distintas através

do tempo; diferentes memórias. É nossa intenção apresentar seguidamente essas obras e

lançar breves pistas sobre o modo como poderão ser abordadas em sala de aula.

A obra 365 Pinguins é um livro sobre a preservação da natureza, em que o passar

do tempo empo e a matemática marcam uma presença muito forte. Todos os dias, durante

um ano, uma família recebe um pinguim pelo correio. O passar do tempo é-nos fornecido

através do suceder das horas (“Às nove da manhã”), dos dias (“Na segunda-feira”), dos

meses (“No dia 4 de agosto”), das estações (“Com a chegada do verão”). A história vai-

se desenrolando e tudo serve para medir o tempo, desde a duração do som emitido pelos

pinguins (“Em menos de um cruac”) até à duração do mês de fevereiro (“Fevereiro só

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tem vinte e oito dias”). O livro constrói-se sobre o próprio tempo também para nos

lembrar que urge fazer algo para a proteção das espécies, porque “O tempo passa num

instante” e algo tem de mudar rapidamente a bem do planeta, que já conta 4,5 bilhões de

anos.

O número que surge no título da obra também não é inócuo: aponta para a

quantidade de dias que o ano tem e esse pode ser o ponto de partida para a exploração do

livro. Uma possibilidade é a de convidar as crianças a antecipar o conteúdo do livro

através do título. Porque será que se refere 365 pinguins e não 325? Será um número com

algum significado especial? Qual? E terão todos os anos 365 dias? Pode ser trazido, para

a sala de aula, um calendário em que as crianças assinalarão alguns datas especiais, como

as festas ou o início das estações. A alternativa é serem elas próprias a construir um

calendário, em que assinalarão, diariamente a passagem do tempo, por exemplo.

Outra obra é Ainda Nada, que mostra a importância de se ser paciente. O senhor

Luís semeou uma semente e espera que ela nasça. É uma longa espera, os dias vão-se

sucedendo (“No dia seguinte”) e a flor tarda em nascer (“Ainda nada”). Demora tanto que

o senhor Luís perde a paciência (“Já estou farto … Não merece a pena voltar amanhã.”).

Ora, é precisamente nesse dia que a flor nasce e o senhor Luís nunca chega a sabê-lo.

Entre o achar que “Era demasiado cedo” e que a flor “Tarda em brotar”, o senhor Luís

perde a esperança e perde a flor. Ganha-a o pássaro que, apesar de calado, era mais

paciente e estava apaixonado. Do ponto de vista didático, poder-se-á apresentar às

crianças as imagens que ilustram a obra e propor que sejam elas mesmas a ordenar os

desenhos tendo em conta aquilo que ouviram. Deste modo, aperceber-se-ão do que

aconteceu primeiro, do que se passou a seguir, e assim continuamente.

No livro Eu Espero, não é o vocabulário usual que marca o passar do tempo, mas

sim a ideia implícita do fluir dos dias que surge a partir da apresentação dos vários

momentos da vida da personagem. Desde a infância (“Espero… crescer”) e o casamento

(“Espero… que ela diga sim”.) até à paternidade (“Espero… um bebé”) e à morte da

amada (“Espero… que ela não sofra mais”), a vida vai-se escoando por entre as páginas,

sempre marcadas pela presença de um fio de lã vermelha. A personagem espera os inícios

e os fins com a mesma aparente naturalidade de quem sabe que a primavera virá sempre

depois do inverno.

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Ao nível didático, o livro pode ser trabalhado a partir dos momentos mais

importantes da vida de uma pessoa. A este propósito, pode-se convidar a criança a expor

os momentos mais importantes da sua vida e a situá-los no tempo ou então pode-se

incumbir a criança de pedir a alguém mais velho (aos avós, por exemplo) que faça esse

relato. Com estas informações, pode ser criado um friso cronológico para que a

informação fique visualmente disponível. A elaboração de um friso cronológico pode ser

uma tarefa divertida, especialmente porque representará a vida da criança ou de alguém

que ela conhece. A um outro nível a construção de um friso pode ser uma tarefa mais

trabalhosa, requerendo uma planificação cuidada. É o que acontece quando se apresentam

factos históricos, por exemplo. Sobre uma linha, representa-se o tempo absoluto ou

cronológico (sucessão regular de meses, anos, séculos...). Há que ter em conta alguns

aspetos importantes como a definição do conteúdo do friso mediante a apresentação de

um título significativo; a definição do período que se vai representar, a escolha da unidade

de medida (meses, anos, séculos…); a seleção dos factos mais significativos, entre outros.

A nossa quarta proposta é o livro A Casa, que atravessa o século XX, tendo a casa

como narrador. Numa espécie de prefácio, a própria casa anuncia o que vai contar: “Esta

é a minha história do século vinte (…)”. Assim, há uma associação constante da história

da própria casa à do século, como se uma não vivesse sem a outra. Com uma referência

constante aos anos, são destacados simples eventos familiares e laborais como o

casamento, a vindima e a ceifa, mas também as grandes guerras mundiais e as suas

consequências. A Casa tem uma voz problematizadora da realidade, apontando, por

exemplo, para a existência de uma guerra que já vai demasiado longa: “De quem é esta

guerra que dura há mil luas?”.

De um ponto de vista didático, poderá ser interessante aproveitar, entre outros

aspetos, esta referência às “mil luas”. Para além da questão matemática, há o tema da

cronologia e do modo como o tempo pode ser contado. Há milhares de anos, a

humanidade não possuía artefactos que auxiliassem na medição do tempo. Assim, eram

os próprios fenómenos naturais periódicos que constituíam uma ferramenta favorável

para levara a cabo essa tarefa. Um projeto proveitoso será, por exemplo, o de descobrir

como as antigas civilizações contavam o tempo.

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Finalmente, o livro A Lagartinha Muito Comilona aborda a passagem de uma

lagartinha a borboleta, num percurso que, começando “num domingo de manhã”,

atravessa os sete dias da semana e volta novamente ao domingo: “O dia seguinte era outra

vez um domingo”. É a ciclicidade do tempo que é aqui mostrada. A lagartinha alimentou-

se gulosamente todos os dias para, no final do trajeto, se fechar no casulo “mais de duas

semanas” e se transformar numa bela borboleta.

Esta história pode ser aproveitada para introduzir os dias da semana. Mais uma vez,

poder-se-á recorrer a um calendário em que as crianças vão assinalando o dia em que

estão. Deste modo, vão-se apercebendo dos nomes dos dias e da ciclicidade do tempo que

cadenceia a nossa existência. Para além disso, e depois de se analisar brevemente a vida

do autor, Eric Carle, pode-se pensar na versão original da obra, em inglês, e apresentar os

dias da semana nessa língua. Será um modo divertido de começar a aprender algumas

palavras de uma língua estrangeira.

Notas conclusivas

Como se depreende, trabalhar o tempo com crianças pequenas é objetivamente

uma potencialidade que exige investimento por parte do educador. O estudo do conceito

e a procura de estratégias didáticas para trabalhá-lo são duas dimensões de um processo

que, em última análise, contribuirá para a formação de crianças com uma perceção mais

clara daquilo que é o tempo e para uma cidadania mais ativa e responsável: “una

enseñanza orientada a la formación del pensamiento social, geográfico e histórico de los

niños y de las niñas [...] para que puedan decidir consciente y libremente qué tipo de

ciudadano y ciudadana desean ser” (Pagès & Santisteban, 2013, p. 20). O educador poderá

valer-se da literatura para construir esse trajeto, uma vez que as obras literárias

direcionadas para crianças constituem ricas bases de significações das tramas das

experiências humanas nos diversos tempos e espaços (Zamboni & Fonseca, 2010),

funcionando como estímulos preciosos para a reflexão sobre a formação e a educação dos

mais novos.

Depois desta exposição de ideias que visam estreitar a relação entre a literatura e

outras áreas de conteúdo, o passo seguinte será o de averiguar o modo como o livro de

literatura infantil é trabalhado, por professores e crianças, em sala de aula e a influência

que essas práticas exercem no processo de atribuição de sentido à noção de tempo.

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Paralelamente, uma abordagem ao modo como se passa a noção do tempo através da

imagem nos livros para a infância revelar-se-á útil, tendo em conta que, cada vez mais, a

ilustração vem assumindo um papel de destaque.

Obras analisadas

Jean Luc Fromental, Joelle Jolivet, 365 Pinguins, Orfeu Negro

Christian Voltz, Ainda Nada?, Kalandraka

Davide Cali, Serge Bloch, Eu Espero, Bruaá Editora

J. Patrick Lewis, Roberto Innocenti, A Casa, Kalandraka

Eric Carl, A Lagartinha Muito Comilona, Kalandraka

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