Propaganda de medicamentos: a medicalização da sociedade através do

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Texto apresentado no evento ComSaúde 2004 no Recife; Publicado nos Anais. Link: http://encipecom.metodista.br/mediawiki/index.php/M%C3%ADdia%2C_media%C3%A7 %C3%A3o_e_medicaliza%C3%A7%C3%A3o Propaganda de medicamentos: a medicalização da sociedade através do consumo. Autores: Carolina Bragança Sobreira (Bolsista CNPq) e-mail: [email protected] Instituto de Psicologia / Graduação - UERJ Aurea Domingues Guimarães (Bolsista FAPERJ) Instituto de Psicologia / Graduação - UERJ e-mail: [email protected] Ariane Ewald Prof.ª Adjunta do IP/UERJ e da Pós-graduação em Psicologia Social e.mail: [email protected] Nome do Grupo: GP 6-mídia, medicação, medicalização 1- Introdução. Este texto é um recorte da pesquisa “Cultura do consumo e subjetividade: mapeando a construção da lógica da modernidade no Rio de Janeiro” e enfoca a constituição de uma lógica da medicalização da sociedade. Tendo como ponto de partida a análise de propagandas de medicamentos, pretendemos refletir sobre a apropriação da noção de saúde como construída através do capitalismo, em que os medicamentos deixam de ser instrumentos curativos para se tornarem mercadorias promotoras de bem-estar individual. A cultura do consumo, estabelecida na modernidade, se fundamenta sobre o lucro, o desenvolvimento tecnológico e a produção de desejo de mercadorias. Esta perspectiva abrange um leque diversificado de produtos dentre os quais se encontram os medicamentos, que passam a ser instrumentos da lógica da mercadoria a partir do fim da segunda guerra mundial, época em que ocorreu a expansão da indústria farmacêutica. Tal acontecimento promove a diversificação dos fármacos, gerando a necessidade de criar demanda de consumo, o que conseqüentemente, coloca a propaganda como veículo fundamental para divulgação de um novo significado da medicação, sendo, portanto, material privilegiado para a nossa análise.

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Propaganda de medicamentos: a medicalização da sociedade através do

consumo.

Autores:

Carolina Bragança Sobreira (Bolsista CNPq) e-mail: [email protected]

Instituto de Psicologia / Graduação - UERJ

Aurea Domingues Guimarães (Bolsista FAPERJ) Instituto de Psicologia / Graduação - UERJ

e-mail: [email protected]

Ariane Ewald Prof.ª Adjunta do IP/UERJ e da Pós-graduação em Psicologia Social

e.mail: [email protected]

Nome do Grupo: GP 6-mídia, medicação, medicalização

1- Introdução.

Este texto é um recorte da pesquisa “Cultura do consumo e subjetividade: mapeando

a construção da lógica da modernidade no Rio de Janeiro” e enfoca a constituição de uma

lógica da medicalização da sociedade. Tendo como ponto de partida a análise de

propagandas de medicamentos, pretendemos refletir sobre a apropriação da noção de saúde

como construída através do capitalismo, em que os medicamentos deixam de ser

instrumentos curativos para se tornarem mercadorias promotoras de bem-estar individual.

A cultura do consumo, estabelecida na modernidade, se fundamenta sobre o lucro,

o desenvolvimento tecnológico e a produção de desejo de mercadorias. Esta perspectiva

abrange um leque diversificado de produtos dentre os quais se encontram os medicamentos,

que passam a ser instrumentos da lógica da mercadoria a partir do fim da segunda guerra

mundial, época em que ocorreu a expansão da indústria farmacêutica. Tal acontecimento

promove a diversificação dos fármacos, gerando a necessidade de criar demanda de

consumo, o que conseqüentemente, coloca a propaganda como veículo fundamental para

divulgação de um novo significado da medicação, sendo, portanto, material privilegiado

para a nossa análise.

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2- A “medicalização da sociedade”

A “medicalização da sociedade” tem sido muito discutida atualmente, em virtude

do incessante aumento da produção e do consumo de fármacos, que instaurou um fenômeno

social complexo rotulado com esta expressão. Ao contrário do que possa parecer, este

termo não se refere apenas a um processo recente, a medicalização da sociedade vem

acontecendo há mais de dois séculos, durante os quais foi ganhando formas diversas, como

a atual banalização do consumo de medicamentos. Este fato torna-se claro ao analisar as

mudanças ocorridas nas propagandas de remédios, desde o oitocentos – século em que eram

largamente divulgadas nos jornais brasileiros – até os dias atuais, visto que estes anúncios

contam a história dos caminhos percorridos por uma sociedade que vai cada vez mais se

apropriando do discurso médico e sendo apropriada por ele.

A propaganda de produtos medicamentosos exprime bem esta característica da

sociedade, demonstrando também as transformações que vão acontecendo no transcorrer

deste período, e que vão conferindo novos traços à medicalização da sociedade. Afinal, as

propagandas contam a história da medicalização das sociedades capitalistas modernas

(Temporão, 1986).

Ao falarmos dos primórdios do fenômeno de medicalização da sociedade no Brasil,

temos de ir até meados do século XIX, quando inspirada em modelos europeus, nascia a

medicina social brasileira. Nesses tempos, imperava na capital um cenário urbano caótico

composto por ruas estreitas e congestionadas do centro da cidade. Tal bairro era endereço

de estabelecimentos das mais diversas funções – cortiços, hospedagens, armazéns, oficinas,

fábricas e bancos – o que atraía a circulação de inúmeras pessoas, e tornava este local o

cenário ideal para o aparecimento e a proliferação de “mortíferas epidemias” (Benchimol,

1992, p.113).

O século XIX é um período de profundas mudanças políticas e econômicas no

Brasil, é também uma época em que a medicina sofre intensas transformações, no que se

refere principalmente, a “uma reorientação de seus objetos e métodos” (Antunes, 1999, p.

247). Segundo Machado (1978), “a transformação do objeto da medicina significa

fundamentalmente um deslocamento da doença para a saúde” (p. 155) e a tarefa do médico

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passa a ser essencialmente política, uma vez que está voltada para a intervenção urbana que

visa “dificultar ou impedir o aparecimento da doença, lutando, ao nível de suas causas,

contra tudo o que na sociedade pode interferir no bem estar físico e moral” (Id. Ibid.).

Intervindo diretamente no urbano e utilizando-se do seu status de ciência, a

medicina torna-se um saber sobre o social. A recíproca também é verdadeira, ou seja, a

sociedade vai aprendendo a pensar a partir da racionalidade médica, afinal, o objetivo

principal da medicina social é “de maneiras diversas, formar ou reformar física e

moralmente o cidadão” (Id. Ibid., p.280). Não basta apenas esquadrinhar e disciplinar o

espaço urbano, é preciso civilizar e urbanizar o homem, o que se entende por fazê-lo agir e

pensar de acordo com o que o saber médico impõe.

A partir da gradativa inserção da medicina social em terras brasileiras, inaugura-se o

processo de penetração do discurso médico no âmbito social e vice-e-versa. Este período é

marcado, portanto, pela “medicalização da sociedade”, que, como Roberto Machado (1978)

define,

é o reconhecimento de que a partir do século XIX a medicina em tudo intervém e

começa a não mais ter fronteiras; é a compreensão de que o perigo urbano não pode

ser destruído unicamente pela promulgação de leis ou por uma ação lacunar,

fragmentária de repressão aos abusos, mas existe a criação de uma nova tecnologia

de poder capaz de controlar os indivíduos e as populações tornando-os produtivos

ao mesmo tempo que inofensivos; é a descoberta de que, com o objetivo de realizar

uma sociedade sadia, a medicina social esteve, desde a sua constituição ligada ao

projeto de transformação do desviante – sejam quais forem as especificidades que

ele apresente – em um ser normatizado. (p. 156)

3- A propaganda no século XX: novos contornos da medicalização na sociedade

brasileira.

Os indivíduos, no século XIX, aprenderam a organizar suas vidas de acordo com as

normas médico-sanitárias, passando a ter noção de que, através de seus comportamentos, é

capaz de prevenir o desenvolvimento de certas doenças. O século seguinte é marcado pelo

alastramento desta medicalização da sociedade, que vai progressivamente ganhando novos

contornos.

No contexto brasileiro, este processo acontece de forma peculiar. Apesar dos ideais

sanitaristas terem suscitado muitas discussões governamentais e sociais durante a segunda

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metade do oitocentos, concretamente, muito pouco foi feito em prol de uma reforma do

espaço urbano e da conscientização, principalmente das classes mais pobres, quanto à

importância da prevenção. O cenário do Rio de Janeiro na virada do século, ainda era

povoado pela aglomeração popular nas partes centrais da cidade, e conseqüentemente, pelas

devastadoras epidemias. No senso comum, a noção de saúde permanece atrelada ao cuidado

posterior ao surgimento da doença, o que pode ser verificado através da propaganda dos

medicamentos desta época, onde, predominantemente, são divulgadas fórmulas cuja

indicação é curativa.

As primeiras medidas político-sanitárias começam a sair do papel, com a

consolidação da república, sob o governo de Rodrigues Alves. O “bota a baixo” de Pereira

Passos e a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola foram as primeiras intervenções

diretas da medicina no espaço público.

Apesar desta profunda reestruturação da medicina e de todo o aparato de

higienização da sociedade, no mundo todo, durante o começo do novo século, “a

pneumonia, a difteria, as doenças infecciosas eram causas freqüentes de mortes, e a

tuberculoses figurava entre os flagelos sociais” (Aries e Duby, 1987, p. 107). Esse

panorama só começou a ganhar novas dimensões com a elaboração dos medicamentos

cientificamente formulados em prol da extinção destas patologias. O primeiro grande

sucesso que estas pesquisas cientificas obtiveram, foi com a invenção dos antibióticos,

antídotos capazes de dizimar os “micróbios” causadores de diversas epidemias. A partir

desta descoberta, o investimento em pesquisas farmacêuticas não parou de crescer, o que

inaugurou o processo que veio gerar o que hoje observamos.

No contexto brasileiro, o desenvolvimento farmacológico dos primeiros anos da

república, ainda estava muito calcado em produtos fitoterápicos, segundo Nascimento

(2003),

até fins do século XIX, a maioria desses remédios era obtida através de purificação

ou destilação de substancias de origem natural, e pouco ou nada se conhecia de sua

natureza ou de sua estrutura química. A utilização destes medicamentos repousa,

principalmente na tradição e na observação empírica de seus efeitos”. (p. 28).

Tal panorama não muda muito nos primeiros trinta anos do século posterior, como

ressalta Temporão (1986),

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“indústrias de pequeno e médio porte”(...). Estes estabelecimentos predominas de

fins do século passado até os trinta primeiros anos deste século, e se dedicavam a

produção de remédios utilizando como insumos extratos vegetais e produtos de

origem mineral (p. 26).

Embora os medicamentos nacionais não fossem elaborados a partir de técnicas

cientificas e da tecnologia empregada na indústria farmacêutica internacional, as

propagandas destes produtos os divulgavam como frutos das mais modernas pesquisas, se

valendo da credibilidade que o conhecimento científico começava a ganhar no imaginário

popular. Isto é possível porque, naquele tempo, a propaganda não tinha necessariamente um

compromisso com a veracidade das informações que trazia, “o importante era colocar no

papel desmedidos elogios ao produto, prometer sem muita preocupação e delirar” (Vieira,

2003, p. 16). Como faz a propaganda da “Cutis Cloty”, tônico rejuvenescedor divulgado na

Revista da Semana de 20 de fevereiro de 1925:

CUTIS CLOTY

Rejuvenescer = = Tonificando

Aprovado pela saude publica

Processo “Cutis Cloty”

E’ inofensivo e incomparavel, são injecções tonicas para o rejuvenescimento,

consiste simplesmente em TONIFICAR e NUTRIR o tecido gorduroso; desta forma

as rugas, depressões faciaes, seios flacidos desaparecem no momento da aplicação.

Não sendo conteudo PARAFINA e sim TONICO: a prova e’ que estas injecções

absorvem-se, eliminam-se sendo a sua duração de oito a dezoito mezes. A sua

renovação e’ feita pelo preço de 20 $ 000, as vantagens desse tratamento são

innumenras porque além de rejuvenescer de 20 annos, tonificam o organismo.

APPLICAÇÃO SEM DOR

Emmagrecer – garantimos 600 grammas diarias. Banhos corporaes e faciaes de

luzes e a vapor, etc.

E’ com esses banhos que as matronas romanas, Cleópatra, etc. conservam a sua

belleza e mocidade.

Delírio parece ser a palavra de ordem de diversas propagandas de remédios, neste

período. Ora pelas infindáveis promessas de cura – quase que mágicas – das mais diversas

doenças contidas em apenas um produto, outrora, pelos exageros e pela dramaticidade

envolvidos nos apelos feitos ao consumidor. O uso de longos e contundentes depoimentos

de pessoas exaltando elixires que extirparam suas doenças e de imagens mostrando cobras e

diabos como símbolos dos males combatidos pelas fórmulas apresentadas, eram técnicas

comuns para chamar a atenção do consumidor. Alguns anúncios antigos parecem

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verdadeiras obras de ficção. O que não era para menos, uma vez que as propagandas eram

elaboradas por famosos escritores e ilustradas por importantes artistas gráficos da época. O

anúncio do elixir emagrecedor “Leanogin”, exemplifica essa característica da propaganda:

OS GORDOS NÃO PODEM SER ELEGANTES

As pessoas excessivamente gordas estão privadas de innumeros prazeres,

accessiveis ate os mais humildes dos mortaes. A destreza de movimentos, os

encantos caracteristicos da juventude, a esbelteza, etc., todos estes attrativos

desaparecem e ficam afogados nos tecidos adiposos. O phisico deformado pela

gordura constitui um permanente e inquisitorial supplicio. As victimas da gordura

só podem conhecer roupas bem talhadas e de bom aspecto no corpo alheio e nos

manequins. A situação anormal do gordo precisa, portanto, ser combatida quanto

antes, porque, além de o collocar ingratamente aos olhos da sociedade, representa

uma constante ameaça para a sua saude. Cumpre combater a gordura e defender a

saude com o uso de Leanogin, o producto inconfundivel que não contém tyroide e

dispensa o auxílio de dietas e gymnastica martyrizantes. Leanogin restitui ao corpo

porte grácil da mocidade. (Apud. Vieira, 2003, p. 146).

Por apresentar promessas fictícias, que, na maioria das vezes, o produto exposto era

incapaz de cumprir, “a propaganda tinha muito menos credibilidade do que hoje” (Id. Ibid..

p. 17). Ela era livre para se apropriar tanto do imaginário, quanto da expectativa do

consumidor em relação ao produto e anunciá-lo como real fornecedor do efeito esperado,

embora esta relação fosse completamente falsa. “Não se fabricam cremes de beleza, mas

garantias mágicas de eterna beleza” (Id. Ibid.). Desta maneira, a divulgação dos produtos,

cada vez mais, fomenta uma ânsia social pela saúde – beleza, juventude, vigor, virilidade,

etc. – perfeita, inabalável e irreal, visando somente criar um terreno propício para a venda

de seus produtos, mesmo que o preço destes seja a própria saúde. A propaganda vai

moldando a sociedade de acordo com seu interesse primordial – a venda de suas fórmulas –

e, conseqüentemente, contribui para a difusão de uma maneira peculiar de medicalização.

A população brasileira da primeira metade do novecentos tinha como costume a

auto-medicação. Não era comum nesta época que um cidadão consultasse um médico para

saber que remédio poderia tomar quando apresentava qualquer sintoma de doença. Baseada

nisso, a propaganda de medicamentos nacionais, investia pesado na divulgação de seus

produtos nos meio de comunicação que a população tinha mais acesso. Jornais, revistas,

cartazes em bondes e ônibus, de tudo valia para atrair a tenção dos enfermos em potencial.

O hábito do consumo de fármacos sem prescrição médica, justificava a importância

do caráter preponderantemente explicativo da propaganda do início do século. É

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imprescindível informar o consumidor quanto às aplicações do produto divulgado, para,

desta forma, facilitar sua escolha quando for acometido por um determinado mal estar. Tal

caráter ganhava ainda mais importância em virtude da imensa diversidade de produtos à

disposição no mercado farmacêutico, e à vasta gama de patologias para os quais estes

produtos serviam. Como relata Temporão (1986), “impressionava na virada do século, o

número de propagandas de medicamentos” (p. 38) e estas tinham preparados “para toda e

qualquer patologia” (Id. Ibid.), “um amplo espectro de indicações é uma constante.

Verdadeiros bálsamos que tudo curam, os remédios da época resolvem quase todos os

problemas” (Id. Ibid., p. 45). Um anúncio do “Elixir 914” exemplifica bem este caráter da

propaganda:

UM PREPARADO COMO HA POUCOS!!!

ELIXIR 914

É deveras suprehendente a acceitação colossal do notavel preparado ELIXIR 914, o

melhor depurativo, que limpa completamente o sangue, acabando com as

Moléstias da pelle, Manchas, Epinges, Eczemas, Erupções, Erysipela, Coceiras,

Feridas bravas, Rachaduras, Espinhas, Furúnculos, Boubas, Cancros.

O ELIXIR 914 é licor agradavel composto de plantas medicinaes e o melhor e mais

scientifico preparado para combater a syphilis em todas as suas manifestações,

como nos Rheumatismos, agudos ou chronicos, Queda do cabello, Tumores,

Supurações.

Adoptado e usado com sucesso no Hospital da Cruz Vermelha Brasileira.

Aconselhado para creanças, moços e velhos.

GRANDE DEPURATIVO DO SANGUE. (Jornal da Moças, 25 de outubro de

1928).

Este cenário não muda muito até as vésperas da segunda guerra mundial. Na década

de 30, as publicações brasileiras “pareciam uma verdadeira farmácia. Vendia-se panacéias

contra tudo, literalmente tudo, de calvície à doença venérea (...). Não havia mal que um

xarope, uma pílula ou um ungüento não curasse quase instantaneamente” (Vieira, 2003,

p.131).

Nesta época, a industria estrangeira apresentava algumas inovações na área da

farmacologia, no entanto, a maioria das propagandas destes novos produtos era feita apenas

aos médicos. Ao contrário do que ocorria com os fármacos nacionais,

a propaganda por anúncios e reclames dos preparados estrangeiros é feita em regra,

quase sem exceção, nos jornais médicos ou em avulsos folhetos aos médicos

pessoalmente endereçados; as bulas são redigidas aos técnicos em linguagem só

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acessível aos médicos. (Boletim SMB, ano III, n° 31, 1931. Apud Temporão, 1986,

p. 34).

Portanto o público leigo não tinha acesso a estes produtos, pois o consumo de

fármacos não se dava a partir da prescrição do médico, mas sim, da livre escolha do

enfermo, que adquiria o remédio que fosse divulgado como eficaz para combater os

sintomas da qual sofria. Tal contexto fazia com que a população optasse

predominantemente por produtos nacionais em detrimento dos estrangeiros. A sociedade

brasileira das quatro primeiras décadas do século XX, já tem uma certa familiaridade com o

discurso médico. No entanto, devido ao limitado acesso às pesquisas farmacêuticas de

ponta, a população ainda demonstra em suas práticas de manutenção e restauração da

saúde, muitas características calcadas em costumes tradicionais. Nesta época, rituais de

cura e preparados caseiros figuravam ao lado das fórmulas farmacológicas nacionais como

formas utilizadas para o tratamento das enfermidades populares.

À medida que a relação da sociedade com a medicina vai se transformando,

acompanhada pela mudança na forma de estruturação da propaganda, um novo momento da

relação das pessoas com os medicamentos se instaura. As experiências obtidas até os anos

40, no ramo do anúncio de produtos farmacêuticos, fazem com que a indústria eleja como

principal estratégia de divulgação de seus produtos, a propaganda ética. Como coloca

Temporão (1986), “a moderna indústria já havia captado esta necessidade de um diálogo de

respeito baseado na ciência e na pesquisa” (p. 32).

A partir da década de 40 ocorre o aperfeiçoamento tecnológico da indústria

farmacêutica que passa a se apropriar do discurso cientifico a fim de demonstrar a eficácia

de seus produtos. Nesse contexto, a propaganda entra em cena e passa a ser o cerne da

indústria, anunciando os efeitos de medicamentos comprovados em pesquisas científicas.

Conseqüentemente, a utilização da propaganda somada à diversificação dos fármacos,

provocou um incremento do consumo dos mesmos. (Áries e Duby, 1987). A partir deste

momento, verificamos a incorporação da saúde na cultura de consumo: obter saúde passou

a significar o uso de medicamentos, obtidos através da compra. Nesse sentido, cada vez

mais surgem pesquisas atestando a eficácia dos medicamentos e propagandas para

aumentar a venda dos mesmos. Assim, a propaganda cria um elo entre a medicina e a

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sociedade, na medida em que promove uma identificação entre sofrimento e a cura pela

compra do medicamento.

A incorporação da saúde na cultura de consumo se inscreveu nos países do primeiro

mundo, e posteriormente se amplia, chegando ao Brasil no século XX. No período pós-

guerra, o cenário brasileiro é invadido pelo “American Way of Life”, havendo um grande

incentivo para compras de terrenos e bens de consumo; surgem também muitas lojas de

departamento e firmas imobiliárias; há um enfoque na praticidade, no tecnicismo e a na

pressa. Fazendo parte dessa lógica, as indústrias farmacêuticas internacionais entram no

país, monopolizando o mercado consumidor nacional e investindo em propagandas para a

população.Nas décadas de 40 e 50, as propagandas eram dotadas de ótima qualidade, apesar

de ainda não haverem recursos gráficos avançados e computadores: poetas e artistas

gráficos eram requisitados para criar textos e imagens de anúncios desta época. Neste

período de pós-guerra, as revistas brasileiras estavam repletas de anúncios reverenciando

uma nova era de progresso, conforto e prosperidade. (Vieira, 2003). Fazendo uma análise

nas principais revistas cariocas do período, podemos observar as seguintes características

nas propagandas de medicamentos: presença de textos informativos com rimas e frases de

efeito; propagandas ressaltando o consumo do medicamento pela família; anúncios de

medicamentos para dar vigor, como fortificantes, tônicos, e elixires; remédios relacionados

à sexualidade, como regulador menstrual e medicamentos para impotência e por fim,

remédios para emagrecimento.

Após o referido boom de propagandas de medicamentos nas décadas de 40 e 50, cai

o número de anúncios de fármacos na imprensa escrita no fim da década de 60. Podemos

destacar três fatores que contribuíram para esse declínio: em primeiro lugar, a televisão

torna-se o principal meio de comunicação na década de 70, mesmo que o espaço

publicitário nela fosse muito caro e pouco acessível; em segundo lugar, passa a haver um

rígido controle de preços sobre os medicamentos, o que impede que os produtores repassem

os gastos com propaganda para o consumidor; em terceiro lugar, desde a década de 50 até a

década de 70 há um grande desenvolvimento de ansiolíticos, anti-psicóticos e pílulas

anticoncepcionais, tais fármacos vão tomando cada vez mais espaço na produção industrial,

e conseqüentemente deslocam para si os investimentos das campanhas publicitárias.

(Temporão, 1986).

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A análise do uso de propagadas pelas indústrias de medicamentos no Brasil do

século XX revela a inclusão da saúde na lógica do consumo. A importância dessa análise se

dá pelas implicações do consumo desenfreado de medicamentos à saúde. Atualmente,

tornou-se bastante freqüente o hábito da auto-medicação, que, em virtude da alienação

própria a cultura do consumo, promove uma total ausência de crítica em relação à

utilização destes produtos: a população toma quantidades cada vez maiores de remédios

desconsiderando efeitos colaterais e o possível surgimento de novas patologias, em

decorrência do consumo excessivo destas fórmulas.

4- Considerações Finais.

Finalmente, podemos notar que à medida que a medicina se apropria do social, as

práticas e os discursos sociais se apropriam da racionalidade médica. A partir deste

momento, a vida cotidiana torna-se medicalizada. Isso acontece uma vez que o cidadão

comum começa a ter familiaridade com as noções médicas largamente difundidas, passando

a conceber a saúde como valor primordial e, conseqüentemente, a fazer de tudo para

preservá-la ou restaurá-la. Tal atitude é reforçada pelo contexto capitalista, uma vez que o

corpo saudável equivale a um trabalhador cheio de força para produzir: saúde é o principal

valor humano na sociedade do capital porque é sinônimo de força de trabalho e, por

conseguinte, de produtividade. Esse imaginário social implantado desde o oitocentos é um

terreno fertilíssimo para a indústria farmacêutica.

A implantação da saúde como principal motor para a produtividade explica um

fato muito presente na atualidade: os indivíduos passam a fazer de tudo para ter saúde,

conceito que vai, cada vez mais, deixando de estar somente relacionado a práticas

preventivas, e se associando ao consumo de medicamentos. Por conseguinte, este consumo

deixa de ser meramente curativo, visto que há um abandono da tradição de fazer uso de

fármacos somente no tratamento de doenças. Em parte isso se deve a uma ampliação da

diversidade dos produtos fabricados pelas indústrias de remédios, que, progressivamente,

vão se prestando a um número maior de funções. Este processo é acompanhado por uma

alteração na relação indivíduo-medicamento: em lugar do uso anteriormente feito, os

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sujeitos habituam-se a consumir descontroladamente uma vasta gama de fármacos para

evitar doenças, fortalecer o organismo, amenizar mal-estares passageiros ou subjetivos,

dentre outras utilidades não curativas. Em suma, os remédios são usados para “obter

saúde”, sem que necessariamente se esteja enfermo.

Uma conseqüência direta desse processo é a banalização do uso de medicamentos

tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo. O que instaura o cenário que estamos

vivenciando atualmente, um momento marcado pela crença de que é possível encontrar

saúde em produtos vendidos em drogarias. Nascimento (2003) denomina este fenômeno de

o “mito da saúde em pílulas”. De acordo com esta autora, passamos a considerar as

dificuldades da vida como problemas médicos solucionáveis através de fórmulas

farmacêuticas. Se deveras isso fosse uma realidade, não haveria motivo para criticarmos a

propagação desta idéia. No entanto, constatadamente não existem soluções milagrosas para

os problemas, principalmente para aqueles que dizem respeito a questões psicológicas.

Além disso, mesmo com todo o recente desenvolvimento da indústria farmacêutica, os

resultados obtidos pelas novas drogas não tem uma comprovação a longo prazo, portanto,

não se sabe suas conseqüências futuras no organismo humano.

Diante deste panorama, percebemos que não existe na cultura do consumo – na qual

está inserida toda a lógica atual da utilização desenfreada de fármacos – uma preocupação

com a ética: o que importa é que se consuma, não sendo relevantes as conseqüências disso.

Nesse sentido, pretendemos alertar para a banalização do uso de medicamentos, que ao

invés de promover a inabalável saúde prometida nas propagandas de remédio, está

conduzindo nossa sociedade a uma nova enfermidade: a dependência farmacêutica.

5- Bibliografia.

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no Brasil 1870 / 1930. São Paulo: Ed. UNESP,1999.

ARIÈS, P. e DUBY, G. História da vida privada – da primeira guerra aos nossos dias. São

Paulo: Schwarcz, 2001. Vol. 5.

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BENCHIMOL, J.pereira Passos: Um Haussmann tropical: A renovação urbana da cidade

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