sobre o conceito da historia

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MAGIA E TeCNICA, ARTE E POLtTICA 223

Conhe~;~~~'~; ~~~tóriaT~~-~~autômato co~~tru;do detal modo que podia responder a cada'lance de um jogador dexadrez com um contralance, que lhe assegUravaa vitória. Umfantoche vestido à turca, COD)um narguilé na boca, sentava-sediànte do tabuleiro, coloca ;0 numa grande mesa. Um sistemade espelhos criava' a ilusão de que a mesa era totalmente vi~sível, êmtodos os seus pormenores. .Na realidade, um anãocorcunda se escondia nela; um Imestreno"xadrez, que dirigiacom cordéis a mão dó fantoche. Podemos imaginar uma con-traJ;>artidafilosófica desse mecanismo.' O fantoche chamado'tmaterialismo histórico" ganhará sempre. \Ele pode enfrentarqualquer. desafio, desde que tome a seu serviço a teologia.Hoje, ela é reco~ecidamente pequena e feiae não ousa mos-trar-se.

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capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que járespiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conver-sado, nas mulheres que po.deríamos ter possuido. Em outraspalavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente li-gada à da-salvação. O mesmo ocorre com a imagem do pas-sado, que a história transforma em coisa sua. O passado trazconsigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Poisnão somos tocados por um sopro do ar que foi respiradoantes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozesque emudeceram? Não têm as mulheres que córtejamos irmãsque elas não chegaram a conhecer? Se, àssim é, existe umencontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e anossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, comoa cada geração, foi-nos,concedjda 'uma frágil força messiânicapara a qual o passado d~rigeum apelo. Esse apelo não podeser rejeitado}mpunemente. O!J1~te.rialistahistqrico sabe disso.

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,- O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguirentre os graD:d~ e os .pequenos, leva em conta a verdâde deque nadá do que um dia aconteceu pode ser considerado per-dido para a história. Sem dúvida, spmente a humanidaderedimida poderá ápropriar-se totalmente do seu passado. Issoquer dizer: somente para a humanidade redimida o passado écitável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vi-vido transforma-se numa citation à l'ordre du jour - e essedia éjustamente o dojuízo final. - ,

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"Entre os atributos mais surpreendentes da alma'hu-mana", diz Lotze, "está, ao lado de tanto egoísmo individual,uma ausência geral de inveja de cada presente com relação aseu futuro". Essa reflexão conduz-nos a pensar que nossa,imagem da felicidade é totalmente mat:cada pela época quenos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade

"Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e emseguida o reino de Deus virá por si mesmo" .

,. , . Hegel, ,1807

A luta de classes, que um historiador educado por Marxjamais perde 'de vista, é uma luta pélas coisas brutas e ma-teiiais, sem as 'quais não existem as refinadas e espirituais.

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Mas na luta de classes essas cois-asespirituaisnão podem serrepresentadas como despojos "atIib!líd,osao vencedor. Elas semanifestam nessa luta sob a:forma da confiança, da coragem,do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundodos tempos. .Elas quesfuÍarão sempre cada vitória dós domi-'nadore~.Assimcomoas floresdirigem sua corolapara o sol, o '

passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta. dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O matérialismohistórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imper-ceptível de.todas.

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A verdadeira imagem do passadocperpassa, veloz. O pas-sádo só se deixa fixar" como imágem"que relampeja irrever~sivelmente, no momento em que é reconhecido. "A verdadenunca nos escaparâ" -' essa frase de Gottfried Keller carac-teriza o ponto exato 'em que o historicismo se separa do mate-rialismo histórico. Pois iriecuperâvel é cada imagem do pre-sente que se dirige ao presente, 'sem qtfeesse presente se sintavisado por ela.' ... ,:;', : . ::.'~ .,.c :.' .,

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,.Articular historicamente o passado não significa conhecê-10"como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma remi-niscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.Cabe ao materialismo histórico fixar'uma imagem do passado,como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito his-tórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaçatanto a existência da tradição como os que a recebem. Paraambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominan-tes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancara tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois oMessias não vem apenas como salvador; ele vem tambémcomo oyencedor do Anticristo. O dom de despertar no pas-sado as centelhas da espçrança é privilégio exclusivo do histo-riador'convencido de que .também os mortos não estarão em

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segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessadode vencer. .

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"Pensa na escuridão e no grande frioQue reinam nesse vale, onde soam lamentos."

Brecht, Ópera dos três vinténs

Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interes:sado em ressuscitar' uma época qu~ esqueça tudo o que sabesobre fases posteriores da hisJória. Impossível caracterizarmelhor o método com o qual{rompeu omaterialistmo histó-ricó. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia docoração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verda-

, deira imagem histórica, em seu relampejar fug"az.Para os teó-logos medi~vais, a acedia era o primeiro fundamento da tris-teza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: "Peu de gens devi-neront combien li a falIu être triste pour ressusciter Car-thage". A natureza dessa tristeza se tomarâ mais clara se nosperguntarmQScom quem o investigador historicista estabeleceuma'reláção de empatia. A resposta é inequívoca: com o ven-cedor. Ora, os que num.momento dado dominam são os her-deiros de todos os que venceram antes.. A empatia com t:>ven-cedor beneficia.sempre, portánto, esses dominadores. Isso diztudo pa~ap materialist~ histórico~.Todos ,os que até hoje ven-ceram participam do cortejo triunfal, em.que os dominadoresde hoje espezinham os corpos dos que .,estão.prostrados nochão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe.Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O mate-rialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todosos bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qualelenão pode refletir' sem horror. Devem sua existência não.'so-mente ao esforço dos grandes gênios que os criaram; como àcorvéia anônima dos seus contemporâneqs Nunca houve ummonumento da cultura que não fosse também um monumentoda barbârie. E, assim como a cultura não é isenta de l:arbárie,não o é, tampouco, o processo de transmis~'ão da cultura. Porisso, na medida do possível, o materiálistahistórico se desviadela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.

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A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado deexceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Preci-samos construir um conceito de hist6ria que corresponda aessa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefaé originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossaposição ficará mais forte na luta contrá o fascismo. Este sebeneficia da circunstância de que seus adversários o enfren-tam em nome do progresso, considerado como uma norma his-tórica. O assombro como fato de que os episódios que vivemosno séculos XX "aind~" sejam pos,sív~is,não -é ,um assombrofilosófico. Ele não gera nenhum cO!lh,eçimento,,a não ~er oconhecimento de que a concepção ,de ,hist6ria,da,qual emanasemelhante assombro é insustentáv~l. :_, .

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Os temas que as 'regras do claustro impunham à medi-tação dos monges tinham como função desviá-Ios do mundo edas suas pompas'. Nossas reflexões partem de uma preocu- -pação semelhante. Neste momento, em que os' políticos nosquais os adversários do fascismo tinham depositado as suasesperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a trai-ção à sua própria causa, temos que arrancar a política dasmalhas do mundo profano, em que ela havia sido enredadopor áqúeles traidores. Nosso ponto de partida é a idéia de quea obtusa fé no progresso (iesses políticos, sua confiança no"apoio das massas" e, 'finalmente, sua sub()rdinação servil aum {aparelho incontrolável sãQ'três aspectos da mesma reali-dâde.' Estàs'reflexões tentam mostrar como é alto o preço quenossos hábitos mentais têm que pagar quando nos assOCiamosa' uma concepção da história que recusa toda cumplicidadecom aquela à qual continuam aderindo esses'políticos.

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"Minhas asas estão prontas para o vôo,Se pudesse, eu retrocederia " ':::>

,Pois eu seria menos feliz .~~"Se permanecesse imerso no temp'" vivo."

,Gerhard 5cholem, Sáudação do anjo, , '.' ,'.. '.'

Há um quadro de Klee'que se 'chama ÂngelusNávus.Representa um anjo que parece,querer afas!ar-se de ~lgo queele encara fixamente, Seus olhos estão.escancarados, 'sua bocadilatada, suas asas abertas. O anjo da' história deve' ter esseaspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nósvemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofeúnica, que acumula incansaveJmente ruína sobre ruina e' asdispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar osmortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra doparaíse e prende-se em suas asas com tanta força que ele nãopode mais fechá-Ias. Essa tempestade o impele irresistivel-mente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto oamontoado de ,ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é oque chamamos progresso.

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O conformismo, que sempre esteve em seu elemento nasocial-democracia, não condiciona apenas suas táticas polí-ticas, mas também suas idéias econômicas. É uma das causasdo seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a clas-se operária alemã que a opinião de que ela nadava com acorrente. O desenvolvimento técnico era visto como o decliveda corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí s6 haviaum passo para àer que o trabalho industrial, que apareciasob os traços do progresso técnico, representava uma grandeconquista política. A antiga morál protestante do trabalho,secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalha-dora alemã. O Programa de Gotha já 'continha elementosdessa confusão. Nele, o trabalho é definido como ,"a fonte detoda riqueza e de toda civilização". Pressentindo o pior, Marxreplicou que o homem que não possui outra propriedade que asua força de trabáIho está condenado a ser 'íoescravo deoutros homens, que se tornaram... proprietários". .Apesardisso, a confusão continuou a propargé;lt-se,.e pouco depoisJosef Dietzgen anunciava: "O traba111d'é o Redentor dos

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tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho residea riqueza, que agora p9de realizar () que não foi realizado pornenhum salvador". Esse conceito de' trabalho, típico do mar-xismo vulgar, não examina a questão de como seus produtospodem beneficiar trabalhadores que delés não dispõem. Seuinteresse se dirige apenas aos progressos na dominação danatureza, e não aos retrocessos na organização ,da sociedade.Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráti<::osquemais tarde vão afIorar no fascismo. ..Entre eles, figura umaconcepção da natureza que contrasta sinistramente com asutopias socialistas anteriores ,a março de 1848. Q,trabalho,como agora compreendIdo, visa ,J.lIp.a,~~pioraçãoda natureza,comparada, com ingênua complacência, à exploração do pro-letariado. Ao lado dess~ concepção po~itivista, asf!ll!tasias'deum Fonrier"tão ridicularizadas,-reyelaQ'l-se surpreendente-mente razoáveis. Segundo F:ourier,2,0 trabalhp spcial bemorganizado teria, entre seus efeitos ,que quatro luas ,ilumina-riam a noite, que o' gelõ se retirarlarlospólós, que;a águamarinha deixaria de ser salgada e'que os animais predatóriosentrariam a serviço do homem. ~ssas fantasias ilustram umtipo de trabalho que, longe de explorar a natureza,1ibera ascriações que dormem, como virtualidades, em seu-ventre. Aoconceito corrompido de trabalho corresponde o conceito,com-plementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, "está ali,grátis" .

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Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir àclasse operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso,ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desa-prendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacri-fício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos ànte-passados escravizados, e não dos descendentes liberados.

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"Nossa causa está cada dia mais clara e o povo cada diamais esclarecido. ..

< Josê!Dietzgen, Filosofia sacia/-democrata;,/;..I? .." ,

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A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia, 'foram determinadas por um conceito dogmático de progresso

sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-dêmocratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progressoda humanidade em si, e não das suas capacidades e conheci-mentos. Em segundo lugar, era um proc'esso sem limites, idéia

, ,corresponden!~ à da perfectibilidade infinita do gênero hu-mano;-Eriíterceiro lugar, era um processo essencialmenteautomático, percorrendo, irresistivel,. uma trajetória em fle-cha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido epoderia ser criticado. Mas, 'para' ser rigorosa, a crítica precisair além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia deum progresso da humanidade nahistóriá é inseparável daidéia de sua marcha no interior de um tempo va:iioe homo-gêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto acrítica da idéia dessa marcha.

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"Precisamos da história, mas não como precisam delaos ociososque passeiam nojardim da ciência."

Nietzsche, Vantagens e desvantagens da históriapara a vida .

14o sujeito do conhecimento histórico é a ,própria classe

combatente e oprimida. Em Marx,ela aparece como a ultimaclasse escravizada, como a classe vingadora que consuma' atarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essaconsciência, reativada durante algum tempo no movimentoespartaquista, foi sempre inaceitável para a social-democracia.Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de

"A Origem é o Alvo."Kar1 Kraus, Palavras em verso

A história é objeto de uma construção cujo lugar não é otempo homogêneo e vazio, m..asum témpo saturado de "ago-ras". Assim, a Rom~ antiga era para Robespierre' um passado

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carregado de "agoras", que ele fez explódir do continuum dahist6ria. A Revolução Francesa se via como uma Roma res-

o surreta. Ela citavaa Roma antiga como a moda dta um ves-tuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde querque ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto detigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arenacomandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livrecéu da hist6ria, é o salto dialético da Revolução, como o con-cebeu Marx.

senta a imagem "eterna" do passado, o materialista hist6ricofaz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros atarefa de se.esgotar no bordeI do historicismo, com a me-retriz "era uma vez". Ele fica senhor das suas forças, sufi-cientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum dahistória.

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15O historicismo culmina legitimamente na hist6ria uni-

versal. Em seu método, a historiografia materialista se dis-tancia dela talvez mais radicalmell~eque de qualquer outra. Ahistória universal não tem qualquer armação teórica. Seu pro-cedimento é aditivo. Ela utilizá a massa dos fatos, para comeles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a.

,historiografia marxista tem em sua base um princípio cons-trutivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mastambém sua imobilização. Quando o pensamento pára, brus-camente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes .

comunica um choque,através do qual essa configuração secristaliza enqu~!lJo mônada. O materialista histórico s6 seaproxima- de um objeto histórico quando o confronta en-quanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal deuma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito deoutro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar porum passado oprimido., Ele aproveita essa oportunidade paraextrair uma época determinada do curso homogêneo da his-tória; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida deter-minada e, da obra compo,sta durante ,essa vida, uma obradeterminada. Seu método resulta em que na obra o conjuntoda obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidadedo processo histórico são preservados e transcendidos. O frutonutritivo do que é compreendido historicamentecóntém emseu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas.

A consciência de fazer explodir o continuum da história éprópria às classes revolucionárias no momento da ação., AGrande Revolução introduziu um novo calendário. O dia como qual começa um novo calendário funciona como um acele-radór histórico. No fundo, é o mesmo dia que retoma,sempresob a forma dos-~ias feriados, que são os dias da reminiscên-cia. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmomodo~qué os relógios. Eles são mO!lumento.~de uma cons-ciência histórica da qual não 'parece'mais haver na Europa, hácem anos, o mínimo vestígio. A Revolução de julho registrouainda um incidente em que essa consciência se mànifestou.Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que emvários bairros de Pari~, independentes uns dos outros .e namesma hora, foram disparados tiros contra os relógios locali-zados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva àrima a sua intuição profética, escreveu: .. ..

"Qui te croiraitl 00 dit qu'irrités cootre l'heureDe nouveaux Josués: au pied de chaque tour,Tiraient sur les cadraos pour arrêter te jour."

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O materialista histórico não pode renunciar ao conceitode um presente que não é transição, mas p,ára no tempo e seimobiliza. Porque ese conceito define exatamente aquele pre-sente em que ele mesmo escrevea história. O historicista apre-

18,

"Comparados com a hist6ria da vida orgânica na Terra",diz um bi(>logocontemporâneo, "os míseros SO000 anos do

L32 WALTER BENJAMIN

- ,

Homo sapiens' representam algo como,dois segundos ao fim de- um dia de 24 horas. Por essa escala, toda a história da huma-

nidade civilizada preencheria um quinto do último segundo, da última hora." O "agora", que como modelo do messiânicoabrevia num resumo incomensurável a história de toda ahúmanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado nouniverso pela história humana,

Apêndice

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.. O historicismose contenta c;mestabelecerum nexo cau-sal entre.yários momentos da ,história. Mas ,nenhum Jato,meramente por ser causa, é s6 por isso um fato histórico. Ele

,se transforma em fato hist6rico postumamente, graç~s a acon-tecimentos que podem estar dele separados por milênios.. Ohistoriador consciente disso renúncia a desfiar entre os dedosos acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta aconfiguração. em "que"su.a própria ,época entrou em contatocom uma época anterior,'perfeitamente.determinada. .Comisso, ele funda um conceito do presente como um "agora" noqual se infiltraram estilhaços do messiânico..

2.'1',..,

Certamente, os adivinhos que interrogavam o temp.opara'saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavamnem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em menteesse' fato, poderá talvez ter uma idéia' de como o tempo pás"sado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem comohomogêneo. Sabe-se qne era proibido aos judeus investigar ofuturo. "Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na ,reme-moração. Para os discípulos, a rememoração desencantava, ofuturo, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos.Mas nem por isso o futuro sê converteu para os judeus numtempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a portaestreita pela qual ~odia penetrar o Messias.,' .., '

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