CURRÍCULO DA INFÂNCIA E INFÂNCIA DO CURRÍCULO: UMA QUESTÃO DE IMAGEM

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1 CURRÍCULO DA INFÂNCIA E INFÂNCIA DO CURRÍCULO: UMA QUESTÃO DE IMAGEM Sandra Mara Corazza/UFRGS/CNPq/CAPES [email protected] RESUMO E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a infância, para a qual preparamos, organizamos e desenvolvemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse do que tão-somente imagem? Se também esse currículo fosse apenas imagem? E se o próprio pesquisador só pesquisasse a partir da imagem que faz da pesquisa? Se, antes, inclusive, de o pesquisador pensar o currículo e a infância fosse necessário ter inventado essas imagens dentre elas, a de pesquisa e a do próprio pesquisador para, só então, poder pensar? Se esse movimento formador de imagens fosse a sua própria gênese, à qual lhe seguisse o pensar? E se essas pesquisas, que extraem imagens e forjam modos de existência, tornassem o pensamento que os pensa de novo possível, promovendo inéditas articulações entre arte, conhecimento e vida? No caso de assumirem esse procedimento singular, denominado noologia ou estudo das imagens do pensamento , os pesquisadores investigam as imagens de currículo, infância e pesquisa, não para refutar ou certificar aquelas que existem e operam neles e na sociedade, mas para voltar a pensa-las de outra maneira. Promovem um pensamento por vir, que queima a memória e esfarela a história, enquanto controles miméticos, instalados no mito da infância e na essência do currículo. Pensam infância e currículo, como totalidades abertas, que mudam incessantemente, por meio da pesquisa que dispara, afirma e arrisca, lavada das sujidades do negativo. Pensamento insolente e fictício, que pensa sem trocas reguladas, tomando a pesquisa em educação, o currículo da infância e a infância do currículo como puros acontecimentos e variabilidades infinitas. Para viver a pesquisa noológica, o texto usa, como ponto de partida e trampolim, a produção de Deleuze (e Guattari), feita ao redor do conceito de imagem. Realiza uma taxionomia das imagens de pensamento da pesquisa: moral e heterogênea (sensação e plano); e de pesquisador: profundo, ascensional, de superfície. Cria, assim, condições para ativar o pensar da infância e do currículo, em meio ao pensamento educacional; e avaliar se tal pensar é nefasto ou propício ao vitalismo das suas afecções.

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CURRÍCULO DA INFÂNCIA E INFÂNCIA DO CURRÍCULO:

UMA QUESTÃO DE IMAGEM

Sandra Mara Corazza/UFRGS/CNPq/CAPES

[email protected]

RESUMO

E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a infância, para a qual preparamos,

organizamos e desenvolvemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse do que

tão-somente imagem? Se também esse currículo fosse apenas imagem? E se o próprio

pesquisador só pesquisasse a partir da imagem que faz da pesquisa? Se, antes, inclusive,

de o pesquisador pensar o currículo e a infância fosse necessário ter inventado essas

imagens – dentre elas, a de pesquisa e a do próprio pesquisador – para, só então, poder

pensar? Se esse movimento formador de imagens fosse a sua própria gênese, à qual lhe

seguisse o pensar? E se essas pesquisas, que extraem imagens e forjam modos de

existência, tornassem o pensamento que os pensa de novo possível, promovendo

inéditas articulações entre arte, conhecimento e vida?

No caso de assumirem esse procedimento singular, denominado noologia – ou

estudo das imagens do pensamento –, os pesquisadores investigam as imagens de

currículo, infância e pesquisa, não para refutar ou certificar aquelas que existem e

operam neles e na sociedade, mas para voltar a pensa-las de outra maneira. Promovem

um pensamento por vir, que queima a memória e esfarela a história, enquanto controles

miméticos, instalados no mito da infância e na essência do currículo. Pensam infância e

currículo, como totalidades abertas, que mudam incessantemente, por meio da pesquisa

que dispara, afirma e arrisca, lavada das sujidades do negativo. Pensamento insolente e

fictício, que pensa sem trocas reguladas, tomando a pesquisa em educação, o currículo

da infância e a infância do currículo como puros acontecimentos e variabilidades

infinitas.

Para viver a pesquisa noológica, o texto usa, como ponto de partida e trampolim,

a produção de Deleuze (e Guattari), feita ao redor do conceito de imagem. Realiza uma

taxionomia das imagens de pensamento da pesquisa: moral e heterogênea (sensação e

plano); e de pesquisador: profundo, ascensional, de superfície. Cria, assim, condições

para ativar o pensar da infância e do currículo, em meio ao pensamento educacional; e

avaliar se tal pensar é nefasto ou propício ao vitalismo das suas afecções.

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Palavras-chaves: PESQUISA NOOLÓGICA – CURRÍCULO – INFÂNCIA

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E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a infância, para a qual preparamos,

organizamos e desenvolvemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse do que

tão-somente imagem? Se também esse currículo fosse apenas imagem? E se o próprio

pesquisador só pesquisasse a partir da imagem que faz da pesquisa? Se, antes, inclusive,

de o pesquisador pensar o currículo da infância e a infância do currículo fosse

necessário ter inventado essas imagens – dentre elas, a de pesquisa e a do próprio

pesquisador – para, só então, poder pensar? Se esse movimento formador de imagens

fosse a sua própria gênese, à qual lhe seguisse o pensar? E se essas pesquisas, que

extraem imagens e forjam modos de existência, tornassem o pensamento que os pensa

de novo possível, promovendo inéditas articulações entre arte, conhecimento e vida?

Se a pesquisa da imagem, que é a mesma da criação do pensamento, estimulasse

a estrangeiridade do pensar, evitando que as certezas coincidam com as verdades e

afastando críticas eruditas e capciosas? Se, ao conceber a imagem, relevada do registro

do pensamento, a pesquisa fornecesse, face à obstrução e, mesmo, à exclusão do pensar,

algo inédito para experimentar, problematizar, formular e criticar problemas?

Preparasse o pensar para a intensidade e a diferença, distinguindo-se da pesquisa que

apenas reconhece a infância e o currículo, por meio de estruturas, regularidades e leis;

divisão do trabalho e sexual; modelos e fitas métricas; representação e universais?

No caso de assumirem esse procedimento singular, denominado noologia, ou

estudo das imagens do pensamento (Corazza, 2002; 2010), os pesquisadores investigam

as imagens de currículo, infância e pesquisa, não para refutar ou certificar aquelas que

existem e operam neles e na sociedade, mas para voltar a pensa-las de outra maneira.

Promovem um pensamento por vir, que queima a memória e esfarela a história,

enquanto controles miméticos, instalados no mito da infância e na essência do currículo.

Pensam infância e currículo, como totalidades abertas, que mudam incessantemente, por

meio da pesquisa que dispara, afirma e arrisca, lavada das sujidades do negativo.

Pensamento insolente e fictício, que pensa sem trocas reguladas, tomando a pesquisa em

educação, o currículo da infância e a infância do currículo como puros acontecimentos e

variabilidades infinitas.

Essa noologia, contudo, nada vale sem o agenciamento das forças efetivas que

atuam sobre a pesquisa e as indeterminações afetivas que forçam o pesquisador a

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pensar. Pesquisa que acontece no presente e cria aquilo que é requerido pela experiência

real, não apenas possível. A sua potência é avaliada pelos sentidos de infância que

renova; pelos novos recortes que impõe ao currículo; pelas experimentações de pesquisa

que suscita. Uma pesquisa, realizada como jogo e vertigem, em zonas pré-individuais e

impessoais, sem remissão a objeto ou a sujeito; que expressa o que há de potente,

selvagem e vital, nos movimentos pesquisadores.

Para viver essa pesquisa das imagens do pensamento, o texto usa, como ponto de

partida e trampolim, a produção de Deleuze (1976; 1985; 1987; 1988; 2003; 2005;

2006; 2007; 2009; 2010; 2011), e de Deleuze e Guattari (1992; 1995; 1997), feita ao

redor do conceito de imagem. Cria condições para ativar o pensar do pesquisador, em

meio ao pensamento educacional; e avaliar se tal pensar é nefasto ou propício ao

vitalismo das suas afecções.

1. PENSAR

No entanto, a pesquisa noológica não teria qualquer valor, caso não chegássemos

a um acordo sobre o que, nessa condição, é entendido por pensar. Diremos, então, que o

pensamento difere do conhecimento e da reflexão, os quais são voluntários e

conscientes; que pensamos sem o saber, até contra os saberes; e que, por isso, pensar é

um ato involuntário, seja no seu surgimento seja no seu criar. Não nos damos conta que

pensamos e o fazemos sempre sem querer; por isso, afirmamos que refletimos; mas,

talvez, não possamos afirmar que pensamos; já que pensar é uma experiência de

raridade.

Para a noologia, pensar não é exercício de boa vontade, feito com a correta

aplicação de um método; não é indagar sobre a verdade das coisas, que correspondem às

próprias perguntas e definições; não é julgar, pois não se preocupa com a verdade.

Pensar é impressão, expressão, encontro com signos: “algo tornado estranho porque

instantaneamente imantado por uma heterogeneidade que não se oferta à recognição

tranquilizadora” (Orlandi, 2012, p.vi). Forçando-nos a olhar, constrangendo-nos a

interpretar e nos obrigando a pensar de outro modo, os signos propõem imagens que

irrompem e afetam aquilo que já sabemos. Carregam, assim, uma violência da

exterioridade, que arranca o pensamento do seu natural torpor e da vacuidade de meras

possibilidades abstratas. Essa violência impele a pesquisa a fabricar conceitos,

perceptos, afectos ou funções, em uma singular luta contra o caos; a qual, ao mesmo

tempo, esconde a secreta aliança contra aquilo que é o seu inimigo: lugares comuns da

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opinião, clichês, idées reçues (ideias feitas). Contra as convenções e as imitações, a

reflexão e a comunicação, a aliança do pensamento com o caos é o que restitui à

pesquisa “a incomunicável novidade que não mais se podia ver” (Deleuze; Guattari,

1992, p.262).

Em face dos signos, o pensamento é faca que corta o caótico, como um plano

corta um cone; o que implica captar, apreender, definir uma fatia de caos; o qual, no

entanto, permanece livre em outras direções. O pensamento é um crivo, que seleciona e

fixa, determina e contém o rio de Heráclito; embaralha a sintaxe e produz ideias

voláteis, precárias, facilmente perdíveis, mas que atravessam todas as atividades

criadoras. Pensar difere, assim, dos conhecimentos adquiridos e consolidados, da

erudição e da bagagem cultural dos pesquisadores. Logo, para estes, aprender consiste

em decifrar a ininterrupta emissão de signos, que “são objeto de um aprendizado

temporal, não de um saber abstrato”, diante de “uma matéria, um objeto, um ser”

(Deleuze, 1987, p.4).

O pensamento que pensa as imagens e os signos é perturbação, ruptura,

experimentação, processo de criação, singularidade, diferença, fluxo nômade, viagem.

Tendo uma geografia antes de ter uma história: “o pensamento pressupõe ele próprio

eixos e orientações segundo os quais se desenvolve”, traçando “dimensões antes de

construir sistemas” (Deleuze, 1998, p.131).

Ao pesquisar noologicamente, esse pensamento-outro não se pensa a si mesmo,

sem tornar-se inútil ou aprisionar-se numa interioridade estéril, condenado ao

subjetivismo, ao relativismo, ou à impotência. O seu problema é pensar a exterioridade

e a sua necessidade; exercitando não uma sucessão regrada dos conhecimentos do

espírito, mas um construcionismo; que encontra o pensar se fazendo e, ao fazer-se,

pensando as suas criações. Todo pensamento nasce nos limites do próprio pensar, desde

que carrega a potência de saltar, de ultrapassar-se, de ir até o extremo do que pode

pensar.

Assim operando, a pesquisa propõe um pensamento sem imagem; ou desenvolve

uma nova imagem do pensamento, expressa pelo plano de imanência, na filosofia; pelo

plano de composição, na arte; ou pelo plano de referência, na ciência. Diferenciam-se,

desde aí, a concepção e a prática da pesquisa noológica de outras pesquisas, baseadas na

reflexão sobre o currículo e a infância. Isso encaminha a imagem com a qual

pesquisamos.

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2. IMAGEM

A imagem do pensamento é o que precisamos para pensar. Em cada tipo de

pensamento, encontramos imagens, embora elas nem sempre sejam evidentes. Ao

formar uma imagem de infância e de currículo, ou ao deslocar-se dramaticamente de

uma a outra, cada pesquisador começa a pensar de novo; isto é, volta a formular o que

seja pensar a infância e o currículo. Assim, para a noologia, o que valem são as

imagens, como pressupostos do que seja pensar, nessa ou naquela direção. Qualquer

criação supõe, em primeiro lugar, uma imagem – como figura, paisagem, cena, chão

pré-teórico –, que subjaz ao saber e o prefigura; de modo que um saber só é

compreendido a partir desse campo prévio.

Mas, o que é uma imagem de pensamento? Não se trata de cópia mental ou

representação subjetiva; nem mesmo é uma Weltanschauung (concepção de mundo);

não é representante da coisa no intelecto, ou visão do objeto na consciência; não pode

ser deduzida da ideologia, nem do contexto social e econômico; tampouco, pode ser

confundida com a transparência das formas ou das ideias, nem com o esclarecimento de

proposições; não é um dado psicológico, nem está no cérebro do sujeito – ao contrário,

tanto o cérebro quanto o sujeito são imagens entre outras.

A imagem é diagrama, horizonte e solo, atmosfera e reservatório, vibração

movente da matéria e relação de forças sensíveis, desprendidas dos afectos. Ela é um

ser, uma coisa, “um arquivo audiovisual” (Deleuze, 1991, p.60). Entendida como uma

aparição, no sentido de Bergson (1999), não necessita ser percebida para existir; mas

tem uma existência física, como um choque, traumatismo, concussão, fulguração. Nesse

realismo, a imagem não é encontrada; mas é fabricada, como resposta a problemas; os

quais não se resolvem de uma vez por todas; mas formulam-se continuamente, ou se

dissolvem em novos problemas, persistindo nas soluções que recebem. A noologia lida

com intuições sobre problemas (Deleuze, 1999), que fazem aparecer a imagem; e, ao

mesmo tempo, acompanham a sua construção.

Sendo plural, como a força, não há nunca uma imagem isolada, mas

multiplicidade de imagens, feitas de velocidades e lentidões. Podemos encontrar dois

tipos básicos, radicalmente diferentes um do outro: a imagem dogmática do

pensamento, baseada no modelo do reconhecimento; e um pensamento sem imagem (ou

uma nova imagem do pensamento), considerado como encontro com a heterogeneidade

dos signos. Seguindo os percursos do conceito, na obra de Deleuze, os pesquisadores

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podem operar com esses tipos básicos de imagem, a moral e a heterogênea; sendo que

esta última se abre, ainda, em duas direções, quais sejam: sensação e plano.

2.1. Moral

Junto à tradição filosófica dominante, especialmente racionalista, a imagem é

uma preconcepção implícita e tácita, que o pensamento se dá dele mesmo. Tal imagem

deriva do senso comum, do consenso, do pensamento identitário, pretensamente natural:

“segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui

formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro” (Deleuze, 1988, p.219).

Os pesquisadores trabalham, aqui, com uma imagem clássica do pensamento,

que é sempre moral, fundamentando-se em oito postulados: princípio da existência de

um pensamento universal, bom por natureza; o bom senso ou o senso comum são a

determinação do pensamento puro; o modelo transcendente, que opera a distinção entre

o fato e o direito, é a recognição, ou o exercício concordante de todas as faculdades

sobre um objeto suposto como o mesmo, que implica a identidade do Eu; a

representação, que subordina a diferença ao quádruplo: Mesmo e Semelhante, Análogo

e Oposto; o negativo do pensamento, concebido como erro; a função lógica, ou o

primado, na proposição, da designação, identificada à relação da verdade sobre a

expressão; a modalidade das respostas e soluções, que se dá a problemas já dados; o

fim, ou o resultado obtido, qual seja, o saber (Deleuze, 1988, p.218-p.273).

A imagem dogmática é um dispositivo repressor, pois impede a pesquisa de

pensar o inédito, ao valorizar noções, como: universalidade, ideias justas, método,

pergunta e resposta, reconhecimento e recognição; ou temas como: república dos

espíritos, pesquisa do entendimento, tribunal da razão, puro direito do pensamento. No

transcurso da história, a pesquisa tem emprestado essa imagem aos aparelhos de Estado;

e, assim, perdido sua potência como máquina de guerra (Deleuze; Guattari, 1997).

Para ela, pensar significa conhecer, desde que o pesquisador rejeita as coisas

como aparecem e as acolhe como verdadeiramente são. Fora de si, o pensamento

reconhece materialmente o que, de maneira formal, já possui; levando a imagem a

funcionar por meio de um dualismo entre a interioridade pura (intelecto) e a

exterioridade indiferente (essência da coisa). A verdade da pesquisa é, assim, pensada

como adaequation intellectus et rei (adequação do intelecto à coisa); na qual, a

faculdade do pensamento adequa-se ao objeto externo, fazendo corresponder aquilo que

a infância e o currículo são em essência e as suas representações intelectuais.

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Nesse tipo de imagem, pesquisar seria responder corretamente à pergunta “o que

é a infância e o currículo”?, de modo a conhecê-los em suas verdadeiras naturezas. Para

tanto, a pesquisa os prefigura em lugares comuns; e, no contato com essa imagem

dogmática, reconhece-os, julgando sua verdade e falsidade. Logo, sabe o que significa e

quer (mesmo) a infância e como elaborar e desenvolver (de fato) um currículo, por força

de um ou mais atos fundadores. Há, nessa imagem, uma necessidade essencial de

começar; a qual nada mais é do que uma ilusão; visto que todo fundamento refere-se

diretamente à opinião vigente, ou à sua forma disfarçada em Urdoxa. A partir desse

fundamento, outros conceitos conquistam objetividade, como desenvolvimento infantil

ou paradigma curricular; porém, sob a condição de estarem ligados aos primeiros; de

responder a problemas sujeitos às mesmas condições; e de permanecer sobre o mesmo

plano de pensamento.

2.2. Heterogênea

Em contraponto à dogmática, a pesquisa encontra uma nova imagem na obra de

Nietzsche (Deleuze, 1976); tributária, ainda, de Spinoza, Hume, Bergson, Proust,

Godard, entre outros. O verdadeiro e o falso não são mais os elementos do pensamento;

mas o sentido e o valor, o nobre e o vil, o alto e o baixo, o interessante e o banal;

segundo a natureza das forças que dele se apoderam. Para essa imagem, importa o fora

do pensamento, o seu outro, o diferente de si, que o tira dos trilhos. O ato de pensar não

é possibilidade natural, mas uma criação; de maneira que só pensamos verdadeiramente

ao criar.

Outrossim, se a pesquisa for além dessa nova imagem, pode até encontrar um

pensamento livre de imagem (entenda-se de imagem dogmática): sem modelo, sem

formato subjacente, sem regras prévias, sem estriagens. Um pensamento que sustenta e

assina o seu começo autorreferente, repetição do novo e diferença múltipla; enquanto

espaço liso, vetorial, cortado por intensidades e por forças de atualização; as quais

passam pelo virtual e dele retiram consistência: “o pensamento é como o Vampiro, não

tem imagem, nem para criar modelo, nem para fazer cópia” (Deleuze; Guattari, 1997,

p.47).

A noologia trabalha, aqui, com a imagem-Heterogênea de um pensamento

imprevisto, incompreensível, inassimilável; que apresenta a radical novidade de ver o

ato de pensar engendrado em sua própria genitalidade; o qual inclui o nomadismo, os

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devires, as núpcias contra-natureza, as capturas e os voos, as línguas menores, as

gagueiras na língua.

Essa imagem pensa o fora por meio de acontecimentos com conceitos; estados

de coisas com funções; monumentos com sensações. Um desses pensares não é melhor

do que o outro, ou mais plenamente pensado; mas cruzam-se e se entrelaçam, sem

síntese nem identificação; traçando, nas três grandes formas do pensamento (arte,

ciência e filosofia), planos sobre o caos. Há todo um tecido de correspondência entre

elementos heterogêneos, dotado de pontos culminantes e igualmente perigosos; os quais

podem reconduzir a pesquisa à opinião de onde pretendia sair; ou, então, precipitá-la no

caos que se dispôs a enfrentar.

2.2.1. Sensação

Existe, ainda, para a pesquisa noológica, a possibilidade de utilizar a imagem-

Heterogênea, no nível da sensação. Os pesquisadores remetem-se, assim, às imagens

picturais e cinematográficas, independentes da linguagem e articuladas semioticamente

à realidade plástica dos corpos, das linhas, das cores, dos sons, do movimento e do

tempo (Artaud, 2008; Aumont, 1995; Aumont; Marie, 2003; Bogue, 2003; Buyden,

1990; Colebrook, 2006; Deleuze, 1985; 1991; 2005; 2007; 2009; 2011; Kennedy, 2000;

Lins, 2007; Marrati, 2003; Mostafa; Cruz, 2011; Paquot, 2008; Pelbart, 2004; Rancière,

2001; Revue d’Estéthique, 2004; Sasso; Villani, 2003; Sauvagnargues, 2006; 2009;

Vasconcelos, 2006; 2008).

Derivada das artes não-discursivas, a matéria dessa imagem do pensamento de

currículo e infância é não-linguisticamente formada; assignificante e assintática;

irredutível aos enunciados e significações linguageiras. Essa imagem signalética remete

a uma lógica do sensível, que não deixa de ter efeito sobre o pensamento e de dar o que

pensar. A pesquisa estética e programática dessa nova imagem implica avaliar a

variação de seus movimentos, em seu poder de afetar e de ser afetada; e analisar o

tempo, em estado puro, sem os liames sensório-motores. Fazendo coexistir uma imagem

atual com seu duplo virtual, a imagem-Movimento e a imagem-Tempo definem, desta

feita, a forma do que seja pensar; além de se associarem à matéria do ser: “é nesse

sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa. Ou melhor, o movimento

não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser” (Deleuze; Guattari, 1992,

p.41).

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A pesquisa constrói enquadramentos e montagens, cortes móveis e perspectivas

temporais no pensamento, desenvolvidos em prol da potência para pensar o Todo da

infância e do currículo, que é o Aberto, como um vazio ou meio fluido: “o Todo é o que

muda, é o aberto ou a duração” (Deleuze, 1985, p.41; Bergson, 2005). Os seus

movimentos reais e durações concretas fazem com que se autodiferenciem e

exteriorizem em imagens que se dão à visibilidade; ou, inversamente, com que

interiorizem, na própria totalidade, suas linhas, figuras de luz e blocos de espaço-tempo

(Deleuze, 2005). A originalidade dessa imagem-Sensação reside no seu impoder de

pensar discursivamente currículo e infância; e em poder pensa-los enquanto

agenciamentos de movimentos, sistemas de ação-reação, ou imagens óticas e sonoras

puras – impoder e poder que habitam o coração mesmo do pensamento.

2.2.2. Plano

A segunda dobra da imagem-Heterogênea remete a uma utilização inteiramente

positiva do conceito de imagem, que corresponde ao abandono da busca por um

pensamento sem imagem. Agora, a imagem, como requisito inevitável para pensar, é

assimilada a planos de imanência, composição e referência. Para a pesquisa dessa

imagem-Plano, infância e currículo não são conceitos pensados nem pensáveis; mas

tornam-se, antes, traçados não-filosóficos, não-artísticos e não-científicos; orientações

no pensamento; imagens para fazer uso do pensar; reivindicando o movimento infinito

do próprio pensamento.

Mais complexa do que um método e positivamente pressuposta, como a

condição mesma do exercício do pensamento, a imagem nunca é transcendente a algo,

seja à consciência ou à qualquer forma do eu; mas exerce-se nos termos de uma

interrogação relativa às transformações das próprias imagens. Dota de consistência a

pesquisa da natureza dos postulados inerentes à imagem (dogmática) de currículo e de

infância; que funcionam (ilusoriamente), na imagem-Moral, como prolegômenos ao

pensar; para ir em direção à construção de uma nova imagem, que não obedece àquela

imagem prévia que determina de antemão o que implica orientar-se no pensamento.

A pesquisa apresenta-se, decididamente, menos como a produção regulada de

algum quebra-cabeça e mais como um lance de dados. Ressoando entre si, sobre um só

e mesmo plano de imanência, de referência ou de composição, currículo e infância

impelem a noologia a traçar os planos; ao mesmo tempo em que criam os pensares que

os povoam. Os planos instauram-se, então, como solos da pesquisa; a par de

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desterritorializá-la; constituindo a imagem de pesquisador que o pensamento se atribui

de direito: “Imagem do Pensamento-Ser” (Deleuze; Guattari, 1992, p.88).

Nessas operações, a noologia leva o pensar e o ser a se transformar um no outro;

reconhece que a base de todos os planos pensáveis, imanente a cada um, não pode ser

pensado por si mesmo, mas por aquilo que permanece sempre o seu fora absoluto; e não

somente pensa o plano, seja ele qual for, mas mostra que está lá, como o não-pensado

em cada plano: “não cessa de se tecer, gigantesco tear” (Deleuze; Guattari, 1992, p.41).

A partir daqui, a pesquisa cria regimes de visibilidade e de dizibilidade da

infância e do currículo, nos quais, existe uma pluralidade de imagens diferentes.

Imagens em que, no entanto, é possível encontrar similitudes, como: o abandono do

erro, que coloca a pesquisa na errância infinita; a recusa de um modelo único de

pensamento e de pensador; a multiplicação de imagens a serem pensadas e de planos a

serem traçados. Assim, a pesquisa cumpre o requisito do ato de pensar; qual seja, a

autocriação no seio do próprio pensamento.

Admitindo a pertinência de usar a noção de imagem para pesquisar o currículo

da infância e a infância do currículo, as análises conduzem os pesquisadores a

confrontar uma imagem com outras. Longe de invalidar os princípios dos quais

procedem cada uma, o trabalho com as imagens renova o interesse e alarga os limites da

pesquisa; nos quais, elas são estabelecidas na exploração e tentativa de compreensão

dos planos.

3. DOS TRÊS TIPOS DE IMAGENS

Na noologia, não perguntamos pelas imagens, mas pensamos em imagens. Para

isso, realizamos uma taxionomia das imagens, que podemos encontrar, no campo

problemático do intratável, do não-pensado, na pesquisa de infância e currículo. Damos,

agora, a ver três imagens, que são relações de forças plurais, situadas ao nível da própria

matéria fluente e em sua variação; que existem em si e subjazem aos exercícios da

pesquisa; deles se nutrindo e, ao mesmo tempo, os instaurando.

Dispostas segundo perspectivas de uma geografia do pensar, em que se move a

pesquisa noológica, essas imagens distribuem os pensares em relação à mudança, ao

movimento e à duração. O texto cartografa essa disposição, ou seja: esboça um exame

crítico dos tipos de pesquisa e de pesquisador, postos em jogo; realiza um mapa do seu

poder de afetar e de ser afetado; faz estética, semiologia e etologia de suas potências;

percebe e apreende seus materiais e vias de subjetivação; desenha seus tipos sócios-

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históricos; leva seus gritos, crivos, desertos moventes, em viagens de tradução (Corazza,

2011). Nos circuitos da pesquisa de currículo e de infância, aparecem, então: a imagem-

Profunda; a imagem-Ascensional; e a imagem-de-Superfície.

3. 1. Profunda

Herdeira dos pré-socráticos, a imagem-Profunda é aquela da pesquisa do fundo,

do mais baixo sob a terra, da autoctonia, do Tártaro. Na profundidade absoluta e negra

da physis de infância e de currículo, a pesquisa faz escavações nos corpos e no

pensamento, sondando os elementos primordiais: água e fogo, ar e terra. Para ir a

campo, os pesquisadores calçam sandálias de bronze (que o vulcão Etna costuma

devorar e regurgitar). O seu arquétipo é Empédocles. Seus pais são Diógenes Laércio;

Diógenes o Cínico; Crisipo o Estóico. Eles têm por irmãos os megáricos, os estóicos e

os cínicos. Os animais de sua zoologia são: a toupeira, o rato e o tatu.

Os instrumentos com os quais trabalham são os martelos do geólogo e do

espeleólogo. Com eles, sentem a vibração dos infantis; a aspereza das pedras

curriculares; a umidade dos buracos da pesquisa. Também deformam e quebram

estátuas de crianças; destroem os pés de barro dos ícones das áreas curriculares;

escavam e rasgam modelos didáticos. Mesmo promovendo tais subversões no mundo da

pesquisa, desta esperam a salvação.

Alguns, dentre os pesquisadores do subsolo, são populares na pólis e habitam ou

ocupam lugares públicos. Mostram-se implacáveis, autônomos e suficientes. Todos

recusam o fio de Teseu; e, se o usam, é para enrolar-se ou enforcar-se nele. Calam-se

quando indagados; brandem o seu bastão; quebram barris; vestem andrajos; dizem

disparates; pensam em paradoxos. Isso faz com que sustentem discursos novos, que

contêm a força do chumbo; e criem espaços e tempos determinados, ritmos, máscaras,

anedotas.

No abismo infernal e em suas dobras, encontram matérias venenosas para sair da

imagem moral de pensamento, que produz clichês. Sabem que só o impensável tem

condições de fazê-los pensar; mas, nem por isso, deixam de ser confundidos com o

clichê científico mais básico do personagem-pesquisador: aquele que é profundo. Por

isso, comprometem-se a romper a maldição da pesquisa feita com clichês. Para

começar, reconhecem os clichês como pivôs decisivos e ecos importantes do

impensado; logo, a via pela qual este pode tornar-se perceptível.

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Para os pesquisadores profundos, os clichês não são degenerescência da imagem

e não vêm depois da imagem original de currículo e de infância; ao contrário, os clichês

precedem essas imagens. Ou melhor, são os clichês que permitem à imagem aceder,

nascer a seu olhar e atualizar-se, para traçar algo. Indagam, desde aí: em que consiste

uma imagem de infância e de currículo que não seja um clichê? Onde termina o clichê e

começa a imagem? Onde a pesquisa começa, efetivamente, a pensar? Quando a

pesquisa começa a criar e não mais a reproduzir os clichês; mas expor-se às suas

pequenas mortes, enfrentando o risco de ficar, eventualmente, prisioneira de sentidos

congelados?

3. 2. Ascensional

Para a imagem-Ascensional, há toda uma reorientação do que significa pensar:

não mais em profundidade, mas na altitude celeste. Os pesquisadores são dotados de

asas. A fim de fazer suas pesquisas, devem sair das cavernas e elevar-se, mediante o

cumprimento de exercícios ascéticos. O seu arquétipo é, sem dúvida, Platão. Os seus

animais são: a águia, o abutre e o condor. Devido à metafísica dessa imagem, cultivam

laços estreitos entre moral e pensamento. Transcendentes, padecem de um psiquismo

ascensional. Seus ideais elevados os jogam em outra ideia popular e científica de

pesquisadores: aqueles que têm a cabeça nas nuvens. E, para eles, o céu é, de fato,

inteligível; haja visto que compreendem suas leis.

As operações centrais desses pesquisadores, rumo à salvação, são a ascensão e a

conversão. Voltados ao princípio do alto, do qual procedem, se, por desgraça, caem, na

imanência terrestre, tratam de ascender aos cumes, pela purificação. Muito se determina

se, nessa volta, encontram o vazio ou monstros alados, duplos dos abismos infernais. O

grande perigo da sua pesquisa é ser acusada de evocar a existência de uma

representação mental da natureza do pensamento; condicionante do fato mesmo de

pensar. Lá, nas alturas do oriente platônico, onde tudo se passa, mora a suposição que a

pesquisa é incapaz de atingir a verdadeira ideia de currículo e de infância; estando, de

partida, condenada a não perceber mais do que os seus reflexos ou sombras.

Por isso, à pesquisa Ascensional são atribuídos os epítetos de impotente ou

ilusória; visto manejar um pensamento que está determinado a ignorar a sua verdadeira

natureza e os seus reais pressupostos; tal como afirma Heidegger (2007), para o qual, os

pesquisadores não pensaram ainda; ou como Foucault (1966) analisa no mundo clássico

da representação.

13

Os pesquisadores elevados, no entanto, têm também, como os seus colegas da

imagem-Profunda, de lutar contra os clichês de currículo e infância, para se permitirem

a positividade de pensar alguma coisa. Entendem que as imagens são o próprio

currículo e a própria infância; e que estão sempre lá, pré-fabricadas e performadas na

matéria; como os simulacros de Lucrécio, as criaturas animadas e as imagens vivas. Os

seus cérebros são écrans (telas), onde essas imagens vêm se imprimir ou se clicherizar;

de modo que os clichês são quase o princípio do seu pensar; isto é, imagens flutuantes,

imagens-coisas, dados figurativos; os quais não são os meios de ver uma imagem; mas

são eles que os pesquisadores veem e não veem nada mais do que eles (Deleuze, 2007).

3. 3. De-Superfície

O terceiro tipo de imagem da pesquisa e do pesquisador de infância e de

currículo não possui a orientação pelo alto, com suas elevadas causas; tampouco a

orientação das profundezas, com suas essências recobertas. Esta é uma imagem de-

Superfície, efeito dos acontecimentos de currículo e de infância (Corazza, 2004). Aqui,

a profundidade é vista como uma ilusão digestiva; e as alturas enquanto uma ilusão

ótica ideal. A sua gesta é cantada pela filosofia do futuro de Nietzsche; a qual coloca em

questão, justamente, o problema das orientações do pensamento, por onde o ato de

pensar se engendra no pensamento; e, ainda, por onde o pensador se engendra na vida:

“não devemos nos contentar nem com biografia nem com bibliografia, é preciso atingir

um ponto secreto em que a mesma coisa é anedota da vida e aforismo do pensamento”

(Deleuze, 1998, p.132).

Na junção entre modo de pensar e estilo de existência, os pesquisadores lidam

com as forças vitais da linguagem, da sensação e dos corpos da infância e do currículo.

A zoologia dessa imagem passa pelos golfinhos, carrapatos e todos os anelídeos. Os

pesquisadores concebem que pensar é um efeito de-Superfície, da qual operam como

agrimensores e pacificadores da terra. Conectando Dioniso, habitante do abismo; e

Apolo, povoador do celestial; encarnam, agora, o Hércules da Superfície; trajando o

manto duplo de Antístenes e Diógenes.

Ao ser destituída de altura e de profundidade, a imagem sofre uma reorientação

geral dramática. Subindo, descendo e permanecendo na superfície (como ave de rapina),

o pensamento recebe um estatuto completamente outro e uma autonomia para descobrir

os acontecimentos incorporais e os sentidos, irredutíveis aos estados de coisas, aos

corpos profundos e às altas ideias. Nada há no céu, atrás das cortinas, a não ser misturas

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inomináveis; assim como nada há debaixo do tapete, salvo o piso do não-senso. Os

sentidos de currículo e de infância surgem e atuam, como vapores sobre o vidro; que os

dedos dos pesquisadores escrevem com letras de poeira.

Não há, nessa imagem, nem conversão nem subversão; mas, perversão. A

pesquisa não contempla, não reflete, nem comunica; mas traça, inventa e cria na

imanência pura. O pensamento deixa de ser dócil e submisso, aplicado e satisfeito;

torna-se urgente, contrariado e perigoso, nascendo sob o impulso dos signos e dos

acontecimentos intrusivos que o surpreendem. O ato de pensar é feito sob a

contingência apavorante de uma experiência do fora, que o desbloqueia ou desencadeia,

sem que dele se possa apropriar. O pensar resiste à capacidade de saber dos

pesquisadores: “pensar é criar e, antes de tudo, criar no pensamento o ato de pensar”

(Deleuze, 1987, p.109).

Nesses redemoinhos, a pesquisa noológica confronta o pensamento das formas,

dos sujeitos, dos órgãos, das funções e dos estratos às suas representações elevadas e

subterrâneas; a ponto de se representar a possibilidade de pensar, independentemente de

toda representação. Mostra as piores dificuldades para pensar, que põem a nu uma

estrutura que pertence, de pleno direito, a todo pensamento: a existência de uma

acefalia, que conduz à necessidade de engendrar pensar no pensamento; indo da

percepção orgânica à sua franja intensiva; do significante e significado à semiótica de

imagens e signos; do subjetivo individuado a uma singularidade impessoal.

A ética dessa imagem aponta que não é suficiente deformar ou parodiar os

clichês de infância e de currículo para obter uma verdadeira deformação. Os

pesquisadores precisam deixar-se impregnar por esses canais sociais; por essas imagens

feitas, vulgares, reativas, cansadas pelo uso; por essas percepções comuns, opinativas,

estatísticas; e, até mesmo, moldar as suas condutas molares de pesquisa por eles; em

outras palavras, entrar em um devir-clichê. Só então, ao quebrar a imagem dogmática e

receber a violência de uma sensação real, não mais convencional, terão procedido a uma

pesquisa de vidência, que faz aparecer o currículo e a infância, na Superfície deles

mesmos – literalmente, sem metáforas nem analogias.

4. TRAMA

Uma pesquisa da imagem do pensamento é concebível? Há várias tábuas e uma

trama de imagens a conhecer. Essa é a questão da noologia. Tentar dizer com imagens e

sair da narratividade; fragmentar os protagonistas e extrair procedimentos; criar novos

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desenhos, visualidades, falas, biografemáticas, sem-sentidos, que apresentam

problemas. Recorte e colagem de elementos díspares. Na prática, um uso do discurso

indireto livre. Artificio do intervalo, do hiato, em direção ao método de criação do

entre-imagens. Experiência de disjunção inclusiva. Importa não lidar com as imagens no

plano da significância; não fazer uma hermenêutica; não produzir uma massa

interpretativa.

Seria um exagero afirmar que tudo é imagem? Os pesquisadores são centros de

indeterminação, que funcionam como obstáculos: para refletir o visível e o enunciável,

produzindo imagens. Imagens de pensamento, que rebotam como bumerangues, para

criar. Pesquisar é seleção, ação de retirada, delimitação, subtração, sonho, alucinação,

embriaguez, dobramento do universo. As imagens são os seres vivos da pesquisa;

enquanto os seus dinamismos espaço-temporais são condições de possibilidades para a

criação.

Se o pesquisador de imagens é um mostrador de vidências, o mundo informe da

pesquisa é plástico. Já o tempo da pesquisa é transcendental; pois, não muda; porém,

muda tudo o que faz aparecer. Apreensão sensível e corte imóvel na duração, que

possibilitam a diferenciação. A noologia pode nos levar a pesquisar em educação: não

mais representando, mas engendrando e percorrendo; não descobrindo as formas, mas

procurando singularidades; não contemplando, mas nos arrastando no fluxo turbilhonar

de infância e de currículo.

O que costuma produzir a pesquisa régia? Dogmatização, representação,

recognição. De qualquer modo, tudo aquilo que produzimos vira clichê. A clicheria

parece ser a fatalidade humana, demasiadamente humana. Só que o clichê pode ser uma

via para o não-clichê. Entre a forma e o informe, o encontro: novas direções de

percepção; novos poros; novas sensibilidades.

A noologia faz pensar: pensar imagens. Imaginarizar é questão de pesquisa. O

ato de criar diferencia imagens na pesquisa. Pesquisa educacional como arte de

selecionar, organizar e inventar imagens. O pesquisador-Vidente torna-se Amigo da

Imagem. Alguém que define que a sua pesquisa intervém, na infância do currículo e no

currículo da infância; e cria, ela própria, currículos e infâncias possíveis. Como

pesquisadores, sejamos dignos dessas imagens.

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