A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE DEPENDENTES QUÍMICOS E OPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
INVOLUNTARY INTERNMENT OF DRUG ADDICTS AND THEPRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY
Dan Igor dos Santos1
Eduardo Felipe Tessaro2
RESUMO: O objetivo da presente pesquisa é demonstrar se ainternação compulsória, aplicada a dependentes químicos, violaou não a dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais.Esta questão tem gerado certa polêmica, e intenso debate entreespecialistas de diversas áreas, principalmente depois que osestados de São Paulo e Rio de Janeiro promoveram políticaspúblicas mais incisivas para aplicação da medida. Além disso,novos projetos visam alterar a atual lei de drogas (Lei11.343/2006), com escopo de permitir aplicação do institutoaos dependentes químicos, já que hoje, não há previsão legalespecífica sobre o assunto. Neste sentido, buscou-se fazer umestudo legislativo sobre a existência da internaçãocompulsória no ordenamento jurídico brasileiro, disposto nalei 10.216/2001. Após, foi realizada análise interdisciplinarsobre a reforma psiquiátrica e as recentes mudanças no novomodo de pensar sobre drogas. Por fim, foi feita análise doprincípio da dignidade humana e suas dimensões, no intuito dequestionar a viabilidade de violar a liberdade do indivíduopara tutelar sua saúde, por meio do instituto em tela.
PALAVRAS-CHAVE:Internação Compulsória; Dignidade da PessoaHumana; Dependentes Químicos; Reforma Psiquiátrica;
ABSTRACT: The objective of this research is elucidating if theinvoluntary internment, applied to drug addicts, violates ornot, their human dignity or fundamental rights. This questiongenerated some polemics, and huge debate of several areas’
1Acadêmico do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências SociaisAplicadas de Cascavel. 2Mestre em Direito - PUC/PR e Professor do Curso de Direito da UNIVEL –Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel.
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specialists, mainly, because of the intense institute’spromotion in the states of Rio de Janeiro e São Paulo, in thebeginning of the current year. Besides, there are new billsthat expect to change the current law of drugs (Law11.343/2006), in order to allow the application of theinstitute to the drug addicts, since there’s no specific legalprevision about it. Therefore, it has been done a legislativestudy about the existence of involuntary internment on theBrazilian state of law, specially on the law 10.216/2001.Later on, it has been made an interdisciplinary analysis ofpsychiatry reformation and the recent changes in the new wayto think on drugs. By the end, it can be found an analysis ofthe human dignity principle and its dimensions, with thedesire of question the viability to violate the liberty inorder to protect the wealth, through the institute mentioned.
KEYWORDS: Involuntary Internment; Human Dignity; Substancedependents; Psychiatry reformation;
1 INTRODUÇÃO
Muito embora se imagine que a dependência química é
problema das sociedades atuais, o uso de substâncias
toxicológicas acompanha a humanidade desde a antiguidade. Veja
que Hipócrates e Galeno, ainda na Grécia antiga, definiram que
droga seria toda substância que, em não sendo vencida pelo
corpo humano, teria capacidade de vencê-lo.3
Nas Ordenações Filipinas do Brasil colônia já havia
previsão sobre o uso e distribuição de tóxicos, no Livro V,
título LXXXIX, em que era possível se ler “Nenhuma pessoa tenha
em sua caza para vender, rosalgar branco, nem vermelho, nem amarello, nem
3NUNES, Laura. M; Jólluskin, G; O uso de drogas: breve análise histórica esocial. Disponível em: <http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/449/1/230-237FCHS04-15.pdf>. Acesso em:23 maio. 2013.
3
solimão, nem agua delle, nem escomanéa, nem opio, salvo se for boticario
examinado (...)”(sic)4
Foi no século XX, entretanto, que efetivamente houve
preocupação internacional, que ocasionou uma gradativa
política contra as drogas no Brasil, passando pelas várias
redações do artigo 281 do Código Penal de 1940, as antigas
leis de drogas de 1971 e 1976 até a recente Lei de drogas
11.343/2006.
Ainda sim, o problema das drogas, como é natural
observar, não foi contornado. O Instituto Nacional de Ciência
e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Drogas
(INPAD) demonstrou que três milhões de brasileiros utilizaram
maconha no ano passado, bem como dois milhões fizeram uso de
cocaína (na forma intranasal ou fumada) no mesmo lapso
temporal. Isso corresponde a 2% de toda a população do país.5
Os tóxicos acabam não apenas afetando a saúde dos
usuários, mas também corrompem um ordenamento por completo:
arruínam o desenvolvimento social dos dependentes, afastam
jovens dos meios educacionais e laborais, além de promover
imensas organizações criminosas pela narcotraficância.
A Constituição Federal, no artigo 196, expressa que:
A saúde é direito de todos e dever do Estado,garantido mediante políticas sociais e econômicasque visem à redução do risco de doença e de outros
4BRASIL.Ordenações Filipinas de 1595. (revogado) Disponívelem:<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5ind.htm>. Acesso em:29 maio.2013.5INPAD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Para Políticas Públicasdo Álcool e Outras Drogas). II LENAD (II Levantamento nacional de Álcool eDrogas. Disponível em:<http://inpad.org.br/wp-content/uploads/2013/03/LENAD_PressRelease_Coca.pdf>. Acesso em:30 maio.2013.
4
agravos e ao acesso universal e igualitário àsações e serviços para sua promoção, proteção erecuperação.6
Se o Estado tem o dever constitucional de promover a
saúde de todos, a questão que se coloca é como, efetivamente,
tratar e recuperar os usuários de drogas e, em estágio mais
avançado, os dependentes químicos.
Recentemente, o instituto da internação compulsória vem
sendo novamente analisado como medida cabível. Veja que nos
estados de São Paulo e Rio de Janeiro, no começo do ano de
2013, políticas públicas incisivas foram implantadas a fim de
promover a internação, em geral, não voluntária, dos
dependentes em ‘crack’.7
As medidas envolveram agentes sociais e de saúde,
policiais civis e militares. Os dependentes eram passados por
uma triagem, uma avaliação médica, e em seguida, após análise
por advogados e promotores, um juiz decidia com urgência, se
haveria ou não internação.8
Não bastasse isso, o recente Projeto de Lei 7663/2010,
visa realizar diversas modificações na atual lei de drogas
(11.343/2006), dentre elas, institucionalizar a aplicação da
internação compulsória aos dependentes químicos, já que no
atual panorama jurídico, não há específica previsão legal.
6BRASIL. Constituição Federal. Art. 196, caput. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.> Acesso em: 23 maio.2013.7SP inicia programa de internação compulsória de viciados em crack.G1.Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/01/sp-inicia-programa-de-internacao-compulsoria-de-viciados-em-crack.html>.Acesso em: 30 maio.2013.8COMEÇA internação compulsória de dependentes químicos. Conjur. Disponívelem: <http://www.conjur.com.br/2013-jan-21/comeca-internacao-compulsoria-dependentes-quimicos-sao-paulo>. Acesso em: 30 maio. 2013.
5
A internação compulsória relacionada aos dependentes
químicos, entretanto, se dilui em um paradoxo. Na ordem de
proteger a vida do toxicômano, viola-se a sua liberdade, sem
que ele tenha cometido qualquer crime ou delito. Para proteger
sua saúde, como é dever do Estado, rompe-se com sua
autodeterminação. Afinal, qual a legitimidade do Estado para
tratar usuários e dependentes químicos?
Claramente, o assunto desperta atenção, já que aponta
interesse não só da disciplina da disciplina de direito
Constitucional, mas também da área de direitos humanos e
fundamentais. Abrange também todo o ordenamento jurídico sobre
drogas e as leis que protegem as pessoas portadoras de doenças
mentais. Encontra ainda, enfoque sociológico, psicológico,
médico e político.
Em face disso, as críticas surgiram, dividindo
especialistas. Os operadores do direito não podem se escusar
desta realidade, sendo necessário o debate sobre os efeitos e
consequências da compulsoriedade da internação.
Isso porque o instituto não pode ser simplesmente
executado, no aguarde de resultados positivos. É necessária
ampla discussão sobre a viabilidade da medida, e se não há
violação de direitos fundamentais e humanos em sua aplicação.
O modo como tratamos nossos dependentes químicos e
doentes em geral demonstrará que tipo de estado constitucional
nós temos. O tema não ficará restringido ao plano interno, mas
poderá ter implicações internacionais. O Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crime enviou equipe para estudar o
6
assunto, e irá apresentar um relatório no ano de 2014, no
Conselho em Genebra, Suíca.9
Observando a importância do assunto, que certamente se
revelará na prática jurídica, a presente pesquisa buscará
primeiramente fazer um estudo sobre as leis que tratam sobre a
internação compulsória e sobre o tratamento devido aos
usuários de tóxicos.
Posteriormente, é necessário compreender se a internação
compulsória é passível de aplicação em face da recente reforma
psiquiátrica e das mudanças legislativas e políticas sobre
drogas.
Por último, será feita uma análise dos princípios e
direitos constitucionais envolvidos, com fim de determinar se
a internação compulsória encontra compatibilidade com nossa
Carta Magna de 1988.
Salienta-se ainda que haverá fuga da mera dogmática
jurídica, vez que o tema receberá enfoque interdisciplinar,
pelos diversos braços científicos em que se depreende.
2 A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
A lei 10.216/2001, após longos dez anos de tramitação no
Congresso finalmente foi aprovada, dispondo, conforme seu
preâmbulo, sobre a proteção e direito dos das pessoas
9UNODC – UNITED NATION OFFICE ON DRUGS AND CRIMES.Arrests and compulsorydetentions of drug users in Brazil concern UN experts. Disponível em:<http://www.unodc.org/lpobrazil/en/frontpage/2013/03/28-arrests-and-compulsory-detentions-of-drug-users-in-brazil-concern-un-experts.html>.Acesso em24 maio. 2013. Nossa tradução.
7
portadoras de doentes mentais, redirecionando o modelo
assistencial em saúde mental.10
É chamada por alguns autores de Lei da Reforma
Psiquiátrica, já que corolária deste movimento. Atualmente,
vem sendo utilizada para legitimação do instituto em estudo,
já que no artigo 6º, § único, estão disciplinados, nos
incisos, os três tipos de internação para doentes mentais: a
voluntária, a involuntária e a compulsória. 11
Como a própria lei vem expor, a internação voluntária é
aquela que obtém o consentimento do usuário. A involuntária se
dá sem consentimento do paciente, a pedido de terceiros. Já a
compulsória, tema principal deste projeto, é aquela
determinada pela justiça.
A Organização Mundial da Saúde considera a dependência
química uma doença, devidamente inserida no Cadastro
Internacional de Doenças (CID-10)12. Com isso, a priori, a
aplicação da internação compulsória aos dependentes estaria
autorizada por lei, já que são, até por consenso geral,
doentes mentais.
Conforme Salo de Carvalho13, “no direito, a cegueira
provocada pelo positivismo dogmático invariavelmente tem
obscurecido a necessária abertura do tema (aqui ele se refere
às drogas em geral) aos demais ramos do saber.” Em função10BRASIL, Lei 10.216/2001. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acessoem: 01 jun. 2013.11Idem. Art. 6º, § único e incisos. 12ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório sobre a saúde no mundo: SaúdeMental. Nova Concepção, nova esperança. 2001. Disponível em:<http://www.who.int/whr/2001/en/whr01_po.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2013.13CARVALHO, Salo. A política criminal de drogas no Brasil: Estudocriminológico e dogmático da lei 11.346/2006. 6º Ed. Saraiva. São Paulo.2013. p. 46
8
disso, o mero estudo das leis sobre o assunto mostra-se
deficiente, razão a qual se torna imprescindível apoio das
demais ciências.
2.1 A reforma psiquiátrica e o advento da lei 10.216/2001
Toda lei advém de um contexto histórico, social e
teleológico. No caso da lei 10.216, não poderia ser diferente.
A promulgação dela é resultado de anos da luta antimanicomial,
pelos direitos dos doentes mentais.
Segundo Cíntia Menezes Brunetta, “na metade do século XX,
as falhas dos manicômios passaram a ser evidenciadas por
repetidos casos de maus-tratos aos pacientes, má
administração, má aplicação dos recursos, falta de pessoal e
procedimento”. De acordo com a autora, à época vigorava o
sentimento de proteção à sociedade, e não de acolher, proteger
ou tratar os doentes.14
Em face disso, iniciou um movimento, posteriormente
chamado de ‘reforma psiquiátrica’, que se mostrou evidente no
Brasil na década de 80, no II Congresso Nacional do MSTM em
Bauru, no qual se concretizou o lema ‘por uma sociedade sem
manicômios’15
14BRUNETTA, Cíntia Menezes. O direito das pessoas portadoras de doençasmentais. In PIOVESAN, Flávia (org.)Doutrinas Essenciais: Direitos Humanos.Vol. IV. Grupos Vulneráveis. São Paulo. RT. 2011. p. 946-947.15AMADOR, Salete Monteiro. A reforma psiquiátrica brasileira e a lutaantimanicomial. Disponível em: <http://www.sermelhor.com/especial/luta_antimanicomial.htm>. Acesso em: 29
9
Essas reivindicações desencadearam, no panorama
internacional, a Declaração de Caracas, no ano de 1990, na
qual se lê:
(...) VERIFICANDO que a assistência psiquiátricaconvencional não permite alcançar objetivos compatíveiscom um atendimento comunitário, descentralizado,participativo, integral, contínuo e preventivo (...)DECLARAM (...) 3) que os recursos, cuidados etratamentos dados devem: A) salvaguardar,invariavelmente a dignidade pessoal e os direitoshumanos e civis. B) estar baseados em critériosracionais e tecnicamente adequados C) propiciar apermanência do enfermo em seu meio comunitário (...).16
Os psicólogos Elisângela Maria Machado Pratta e Manoel
Antonio dos Santos expõe a importância dessa retomada
histórica, ao nos lembrar que antes, os drogadictos “eram
encaminhados para instituições psiquiátricas com a finalidade
primordial de retirá-los do convívio social e promover o
abandono do uso, utilizando, para tanto, as mesmas técnicas
empregadas com outros internos.”17
Os mesmos autores, citando Paulo Sérgio Ferreira e
Margarita Antonia Villar Luis prosseguem explicando que a
intervenção do usuário de drogas “vinculada à assistência
psiquiátrica, traz consigo a questão da violação dos direitos
humanos, além do problema da má qualidade dos serviços
maio.2013.16DECLARAÇÃO DE CARACAS, 1990. Disponível em:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaraca o_caracas.pdf. Acessoem: 02 jun.2013.17PRATTA, E.M.M; SANTOS, M.A. O processo Saúde-Doença e a DependênciaQuímica:Interfaces e Evolução. Psicologia: teoria e pesquisa. Brasília. V.25. nº 2. p. 203-211. Abr-Jun 2009. Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/ptp/v25n2/a08v25n2.pdf. Acesso em: 29 maio.2013.
10
prestados aos usuários, pois tem como base o modelo
hospitalocêntrico”18
Em face de tal reforma, e de todo o avanço científico na
área, os hospitais psiquiátricos foram sumindo gradativamente,
ao passo que surgiram outros modelos institucionais, a exemplo
dos CAPs – Centos de Atenção Psicossocial – que são serviços
de saúde comunitários, buscando sempre a reinserção do doente
mental na sociedade, com auxílio de equipe multiprofissional.19
É justamente essa abordagem multidisciplinar que
efetivaria, de acordo com os especialistas, o órgão ideal para
recuperação e tratamento de dependentes químicos.
Perceba-se diante do exposto, que houve efetiva luta
antimanicomial no panorama mundial, que influenciou nosso
ordenamento jurídico não só através da lei 10.216/2001, mas
também de diversas portarias e normas expedidas pelo poder
executivo, através do Ministério da Saúde. O tratamento aos
dependentes químicos faz parte desta evolução.
Primeiramente, cabe explanar que para ser internado
contra a vontade, de acordo com o artigo 6º da famigerada lei,
o doente mental precisa ser submetido a laudo médico,
preferencialmente, de uma equipe de profissionais.20
Em seguida, é instaurado um processo de intervenção, e o
juiz competente, levando em consideração as condições de18FERREIRA, P.S; LUIS, M.A.V. Percebendo as facilidades e dificuldades naimplantação de serviços abertos em álcool e drogas. 2004 apud PRATTA, E.M.M;SANTOS, M.A. op. cit.19CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO PARANÁ. A estrutura no modelosubstitutivo ao hospitalocêntrico. Revista Contato.Curitiba. Ed. 71,Set/Out. 2010.p. 22. Disponível em:http://www.crppr.org.br/revistas/111.pdf. Acesso em: 04 jun.2013.20BRASIL, Lei 10.216/2001. op. cit. Art. 6º, caput: “A internação psiquiátricasomente será realizada mediante laudo médico circunstanciado quecaracterize os seus motivos.”
11
segurança do estabelecimento que irá promover a internação, a
salvaguarda do paciente e dos demais internados e
funcionários, deferirá, ou não, o tratamento forçado. 21
Com isso traçado, aqui cabe fazer outros apontamentos
sobre a lei 10.216/2001. No artigo 4º, há disposição de que a
internação, em quaisquer modalidades, “só é indicada quando os
recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.22
Mais adiante, se lê no parágrafo único do mesmo artigo,
que a internação buscará, como finalidade permanente, “a
reinserção social do paciente em seu meio”.
É partindo da análise da lei de internação, e também de
todo esse contexto por trás dela, que despontam as críticas ao
instituto.
2.2 Aplicação e Eficácia do Tratamento Forçado
Recentemente, a Organização Pan-Americana da Saúde e a
Organização Mundial da Saúde no Brasil emitiram nota técnica
expondo que o tratamento forçado tem sido usado com prioridade
em relação às outras medidas, afirmando que uma medida extrema
como a compulsória está na contramão do conhecimento
científico sobre o tema, além de aumentar a vulnerabilidade e
a exclusão social dos usuários de drogas.23
De fato, em especial nas ‘cracolândias’ paulistas, foi
empreendida verdadeira cruzada na busca da internação
21Idem. Art. 9º.22Ibidem.Art. 4º.23ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE SAÚDE.Nota técnica da OPAS/OMS no Brasil sobreinternação involuntária e compulsória de pessoas que usam drogas.Disponível em: <http://goo.gl/9GPCd>. Acesso em: 22 jul.2013
12
compulsória de todos os dependentes, sem que tivesse havido
notícia da tentativa de outras formas de tratamento ou
recuperação.
Verificando as medidas que foram empregadas atualmente,
podemos perceber que há uma crença de que aos dependentes
químicos de drogas consideradas ‘pesadas’, o tratamento
forçado é a única solução, ou no mínimo a melhor delas. Mas
não é bem assim.
Uma carta24 foi remetida ao Congresso Nacional, assinada
por 417 instituições por todo o Brasil, expondo que “a
aplicação do instituto repetida ad nauseum, ignora, com descaso
e negligência, a rede de serviços substantivos, opção primeira
de qualquer tratamento digno e de qualidade”, violando, dessa
maneira, o artigo 4º da lei em pauta.
Mesmo sendo favorável à internação, a psiquiatra Ana
Cecília Marques25, em debate no programa ‘contra ou a favor’,
da TV Cultura, expôs que “a internação serve pra minoria dos
pacientes”, deixando claro que a necessidade do tratamento
forçado decorre da gravidade do caso, devendo ser indicado
sempre por equipe multidisciplinar.
Isso não tem um fulcro apenas médico, mas também
jurídico, já que são direitos dos dependentes serem tratados
pelos métodos menos invasivos possíveis, de acordo com o
24Dentre as instituições, destacam-se a Associação Brasileira de PsicologiaJurídica, o Conselho Federal de Psicologia e a Frente Nacional de Drogas eDireitos Humanos. A carta, em sua totalidade, bem como a relação deinstituições que a subscreveram pode ser vislumbrada aqui:<http://www.cfess.org.br/arquivos/1Anexo_1-Carta_aos_Deputados_Federais.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2013.25TV CULTURA. Contra ou a favor: Internação Compulsória. Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=5V_0vWSA2FQ>. Acesso em: 24 jul. 2013.
13
artigo 2º, VIII da lei 10.216/200126, em consonância com o
artigo 4º da mesma lei, já mencionado.
Sendo assim, as medidas públicas instaladas nos estados
do Rio de Janeiro e São Paulo, não estariam legitimadas pela
famigerada lei de internação, mas sim, indo contra ela, vez
que não foram adotadas outras medidas preliminares para
tutelar a saúde daqueles indivíduos. Consta que hoje se busca
aplicação da medida compulsória para quase todos os casos de
dependência, sem nem mencionar tentativa da intervenção
voluntária.
O psiquiatria Dartiu Xavier esclarece ainda, que a
internação compulsória é dispositivo médico para ser usado
quando há risco constatado de suicídio, ou quadro com surto
psicóticos, quando por exemplo, o indivíduo pensa que está
sendo perseguido por alienígenas, ou acredita que pode voar e
pula da janela27
Ou seja, meros usuários de drogas que recusam tratamento
não devem ser internados, e também não são todos os
dependentes químicos que necessitam do tratamento forçado. Uma
minoria destes indivíduos deve ser encaminhada à internação.
Além disso, compreendemos que na teoria, forçar o
tratamento na busca pela abstenção de usar drogas não é tão
eficaz como imaginado. Mesmo quando os dependentes fazem
tratamento em clínicas de recuperação e já estão há muito
tempo sem consumir drogas, estes podem ter recaídas, e esse
26BRASIL, Lei 10.216/2001. op. cit. 27CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO PARANÁ. Internação Compulsória: soluçãoou tática higienista?.Revista Contato. Curitiba. Ano. 15. Ed. 86. Mar-Abr.2013. p. 20
14
fato não está relacionado aos sintomas da abstinência, pois
essa se dissipou há muito tempo.28
Deve-se explanar ainda, que não há quaisquer estudos
brasileiros concretos sobre a viabilidade ou funcionalidade da
internação compulsória, ou pelo menos, eles não são
divulgados.
Isso rompe, até, com a Política Nacional sobre Drogas do
CONAD, que explana que “as ações de tratamento, recuperação,
reinserção social e ocupacional devem ser vinculadas a
pesquisas científicas, avaliando-as e incentivando-as e
multiplicando aquelas que tenham obtido resultados mais
efetivos (...)”29
Embora esses estudos inexistam no Brasil, o tratamento
forçado de dependentes químicos já foi amplamente usado em
diversos países, e em nenhum deles, os resultados foram
positivos.
Aponta Alex Stevens que:
Há pouca, ou talvez, nenhuma evidência que o tratamentocompulsório desta natureza seja efetivo quanto aosobjetivos do tratamento da drogadição. Em verdade, háestudos que comprovaram o fracasso da internaçãocompulsória, quanto essas questões, em diversos países,incluindo os Estados Unidos, Suécia e Holanda, bem comohá relatóriosainda não confirmados na China em que astaxas de relapso após o tratamento compulsório sãosuperiores a 98%. (minha tradução)30
28OGA, S. CAMARGO; M. M. A. BATISTUZZO, J. A. O. Fundamentos de Toxicologia.3º Ed. Atheneu.São Paulo. 2008. p. 327.29CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS. Resolução03 de 27 de outubrode 2005. Disponível em: <http://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=101642>.Acesso em: 25. Jul. 2013.30STEVENS, Alex. The Ethics and effectiveness of coerced treatment of peoplewho use drugs. Human Rights and Drugs. Volume 2.Nº I. 2012. Disponível em:<http://kar.kent.ac.uk/29903/1/Stevens%202012_ethics%20and%20effectiveness.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2013.
15
Sandra Franco explica por sua vez, que a internação
compulsória não teria efetividade, porque os profissionais têm
árdua missão de provocar reflexão no dependente, e se o
paciente não estiver motivado a mudar, qualquer tentativa de
tratamento está fadada ao fracasso. “O norte não é parar de
usar drogas, mas (re) construir uma identidade e círculo de
referências (familiar, social, profissional), resgatando
habilidades e qualidades positivas”.31
Alguns especialistas explanam que o tratamento deve ser
forçado uma vez que os dependentes químicos, pela situação em
que se encontram, não tem discernimento para procurar um
tratamento e, em face disso, caminham para a morte certa.
Entretanto, o instituto Human Rights Watch32 já alerta
que “a presunção que usuários de drogas não têm capacidade de
consentir com um tratamento é perigosa, uma vez que ignora
garantias legais quanto a tomada de decisões para tratamento,
além de aumentar as possibilidades de potenciais abusos”. Não
o bastante, o mesmo estudo demonstrou diversas violações de
direitos humanos em países asiáticos que promoveram o
tratamento forçado, como na China, no Vietnam, Tailândia,
Singapura, Laos e Rússia.
Além disso, na área de políticas públicas voltadas à
saúde, existe um consenso que faltam recursos (no sentido
amplo) para implantação da medida de maneira adequada. Dartiu31FRANCO, Sandra. A internação compulsória de dependentes químicos é eficaz?Revista Consulex. São Paulo. Ano XVII. nº 388. p. 54-55. mar. 201332HUMAN RIGHTS WATCH; et. al.Human rights and drug policy: compulsory drugtreatment. Briefing 4. Londres, Inglaterra. Count The Costs. Disponível em://www.countthecosts.org/sites/default/files/IHRA_Compulsory_Treatment.pdf>.Acesso em: 23 jul. 2013. Nossa Tradução.
16
Xavier preconiza novamente que os hospitais modelos para
implantação do tratamento forçado ainda trazem a herança do
modelo manicomial, vez que muitas vezes as internações não têm
prazo determinado, e os pacientes não recebem atenção
multidisciplinar.33
Veja que no artigo 4º, §2º da Lei 10.216/200134, há
menção expressa sobre direitos à assistência médica, social,
psicológica além de serviços ocupacionais e de lazer. O texto
parece ter virado letra morta na lei, já que a realidade de
nossos serviços públicos de saúde é reconhecidamente
destoante.
Nesse sentido, Sérgio Seibel35, dispõe que:
(...) as intervenções de tratamento coercitivo devem serretardadas até o sistema de saúde ser capaz (e o nossoestá longe disso) de prover acesso apropriado a qualquerum que busque assistência até que evidências empíricasdemonstrem que o tratamento via Judiciário, coercitivoseja superior às opções de tratamento no sistema desaúde.
Mas supondo que os serviços fossem adequados, ou que um
dia venham a ser, ainda não é suficiente, pois a internação
não pode durar pra sempre – aliás, deve se perdurar pela menor
quantidade tempo possível. O cerne da questão é justamente o
retorno à sociedade do toxicômano, eis que mesmo sendo medida
33CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO PARANÁ. Internação Compulsória: soluçãoou tática higienista?. Op. cit. p. 22. 34BRASIL, Lei 10.216/2001. op. cit. Art. 4º, §2º.35SEIBEL, Sérgio. A Lei 11.343/2006 sobre drogas e o impacto na saúdepública. IBCCRIM.Disponível em:<http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4744-A-Lei-11.343-2006-sobre-drogas-e-o-impacto-na-saude-publica>. Acesso em: 26. jul. 2013.
17
in extremis, o fim primordial da internação é a reabilitação e
reinserção do paciente.36
As maiorias das drogas, principalmente o crack, causam
dependência física e psíquica, que duram meses, ou talvez
anos, mesmo sem utilização das substâncias. Em função disso, a
dependência é um transtorno crônico, no qual a recaída é um
risco constante, e por isso, implica tratamento contínuo.37
Segundo os especialistas, os fatores de risco para recaída são
as comorbidades psiquiátricas, condições socioeconômicas,
estresse, desproteção e disponibilidade da droga.38
Esses riscos se alongam ainda mais quando falamos das
‘cracolândias’. É ridículo imaginar que um indivíduo está em
uma delas tão somente porque usa ‘crack’. Após o término da
internação, o paciente é obrigado a voltar ao meio do qual
saiu. Não há menor possibilidade de êxito no tratamento,
quando nossas políticas de saúde ignoram as condições
político-sociais dos dependentes.
Portanto, é um consenso, até para os defensores assíduos
da internação forçada, que após a desintoxicação é necessário
acompanhamento multidisciplinar. Infelizmente, isso não tem
ocorrido adequadamente na atualidade, nem no Brasil e nem nas
outras nações, razão a qual é tão corriqueiro vislumbrar
36MENEZES, Joyceane Bezerra. A Autonomia privada do paciente dependentequímico no Brasil e a discussão sobre a internação involuntária:instrumentos de controle. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/CESUMAR. 2009.Maringá, PR. Disponívelem:<http://www.conpedi.org.br/anais/36/03_1503.pdf>. Acesso em: 05. ago.2013.37DIEHL, Alessandra. CORDEIRO, Daniel Cruz. LARANJEIRA. Ronaldo. DependênciaQuímica: prevenção, tratamento e políticas públicas. 1º Ed. Artmed. SãoPaulo. 2011. p. 3138Idem
18
dependentes que já foram internados dezenas de vezes e
continuam consumindo drogas.
Sendo assim, considera-se que a dependência é uma
complexa doença cerebral, e sua prevenção e tratamento requer
a compreensão de diversos fatores biológicos, genéticos,
sociais, psicológicos e ambientais39, e justamente por isso, a
internação, tratando a droga como o problema principal, não se
mostra a melhor solução.
Aliás, por vezes, há conclusão de que o problema é a
droga em si, e não o ambiente ou meio propício para a doença.
Em conta disso, devemos nos abrir a uma realidade maior que
nos cerca.
2.3. A política contra drogas no Brasil e o modelo repressor.
Várias foram as legislações que trataram sobre drogas no
Brasil. Surpreendentemente, após início do século XX, muitas
delas trataram sobre a internação/tratamento forçado ao
usuário/dependente.
A primeira menção foi no decreto nº 4.294/1921,
naturalmente inspirado na convenção de Haia do mesmo ano, em
que embriagar-se por hábito, tornando-se nocivo a si, aos
outros ou a ordem pública tinha como sanção “internação por
tresmezes a um anno em estabelecimento correccional adequado.”
(sic)40
39OGA, S. CAMARGO, M. M. A. BATISTUZZO, J. A. O. Op. cit. p. 336.40BRASIL. Decreto 4.294/1921 (Revogado). Disponível em:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-4294-6julho1921569300republicacao-92584-pl.html>. Acesso em: 22 jul.2013.
19
Anos mais tarde, no decreto 20.930/1932, estava disposto
que “Os toxicômanos e os intoxicados habituais por
entorpecentes e pelas bebidas alcoólicas ou, em geral,
inebriantes, são passíveis de internação obrigatória ou
facultativa por tempo determinado ou não.”41É perceptível neste
texto legislativo, que o paciente era internado “a bem dos
interesses da ordem pública” (art. 45, §1º), e não haviam
menções sobre direitos como duração ou métodos adequados. A
intervenção era feita para a sociedade, e não para o paciente.
Logo em seguida, a Lei de Fiscalização de Entorpecentes
(Decreto Lei 891/1938) tratava que a internação obrigatória
dar-se-ia quando fosse adequado ao dependente (embora não
explicasse como isso seria avaliado) e quando fosse
conveniente à ordem pública. Além disso, deveria também ser
procedida sempre que houvesse condenação por embriaguez
habitual ou absolvição fundada em doença mental. 42
Esta lei também trazia os tipos penais de tráfico e
outras condutas penalizadoras quanto às drogas, mas apesar
disso, encontra-se em pleno vigor. É preferível acreditar que
ela foi tacitamente revogada pelos demais ordenamentos sobre
tóxicos43.
É, no entanto, a partir da década de 50 que surgem os
discursos relativamente coesos sobre as drogas ilegais e o
41BRASIL. Decreto 20.930/1932 (Revogado). Disponível em:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/19301939/decreto2093011janeiro1932498374publicacaooriginal-81616-pe.html>. Acesso em: 22 jul. 2013.42BRASIL. Decreto Lei 891/1938. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del0891.htm>.Acesso em: 24 jul.2013. 43 FILHO, Vicente Grego. RASSI, João Daniel. Lei de drogas. 1º Ed. Saraiva.São Paulo. 2007. p.05
20
controle repressivo.44 É neste período, consoante Salo de
Carvalho, que se gera o “pânico moral que deflagrará intensa
produção legislativa em matéria penal”. 45
Isso foi alavancado internacionalmente, pela Convenção de
Estupefacientes de 1961, que reconheceu a toxicomania como
flagelo aos indivíduos, constituindo “perigo social e
econômico para a humanidade”.46Nos Estados Unidos, em 1973,
Richard Nixon declarou a ‘War on drugs’, identificando as
drogas como inimigo nº 1 da América, incentivando aumento das
ações repressivas do estado, no plano interno e externo.47
Marcado por este modelo, a lei 6368/1976, agravada ainda
pelos princípios da ditadura militar, declarava que “o
tratamento sob regime de internação hospitalar será
obrigatório quando o quadro clínico do dependente ou a
natureza de suas manifestações psicopatológicas assim o
exigirem.”48
Segundo Salo de Carvalho49, é a partir disso que se
solidifica o discurso Médico-Jurídico num binômio
‘dependência-tratamento’ e ‘tráfico-repressão’. De acordo com
o autor, esta cisão era tão somente aparente, eis que operando44CARVALHO, Salo. op. cit. p. 6145Idem acima, p. 6246CONVENÇÃO ÚNICA SOBRE ESTUPAFACIENTES DE 1961. Disponível em:<http://www.idt.pt/PT/RelacoesInternacionais/Documents/ConvencoesInternacionais/convencao_unica_1961.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2013 47RODRIGUES, Luciane Boiteux Figueiredo. Controle Penal sobre as drogasilícitas: O impacto do proibicionismo no sistema pena e na sociedade. 2006.273f. Tese (Doutorado em Direito). Universidade de São Paulo. Disponívelem:<http://www.comunidadesegura.org/files/controlepenalsobredrogasilicitas.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2013. p. 152. 48BRASIL. Lei 6768/1976. (revogado). Art. 10º. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivi03/leis/l6368.htm>. Acesso em: 24 jul.2013.49CARVALHO, Salo. Op. cit. p. 75
21
no sistema repressivo, criavam-se dois estatutos proibitivos
diferenciados, moldados conforme a lógica médica-psiquiátrica.
Ele explana ainda que:
A tonalidade alarmista, efeito próprio das campanhas deLei e Ordem, está presente na legislação, revelando ostemores que passam a nortear o senso comum sobre amatéria. O discurso de pânico demonstra a distorçãoentre o real e o imaginário, sobretudo porque os índicesde comércio e consumo de drogas ilícitas no Brasil, emmeados da década de setenta, se comparados aos de outrospaíses ocidentais, não são substancialmente elevados. 50
De acordo com Maria Lúcia Karam51, com a Convenção de
Viena Contra52 as Drogas, em 1988, o proibicionismo e o
aprofundamento das práticas repressivas chegam ao seu auge. De
acordo com a autora, o texto, nitidamente inspirado na ‘guerra
às drogas’, se reproduzirá internamente nas nações,
promovendo-se a repressão contra produtores, comerciantes e
consumidores de ilícitos.
Embora promulgada meses antes do referido tratado, não é
surpresa que nossa Constituição Federal, inspirada por esta
guerra global, dispôs normas bastante repressivas contra as
drogas, em todo seu texto, como nos artigos 5º, incisos
XLIII53, LI; Art. 144, §1º, II e Art. 243. 50Idem.51KARAM, Maria Lúcia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitosfundamentais. LEAP Brasil. p. 3. Disponível em:http://www.leapbrasil.com.br/textos. Acesso em: 24 jul. 2013.52A autora ainda explica a escalada histórica repressiva, quando explana queos títulos dos tratados anteriores eram ‘sobre entorpecentes’ ou ‘sobresubstâncias psicotrópicas’, enquanto a Convenção de Viena de 1988 seintitulou ‘contrao tráfico ilícito de entorpecentes e substânciaspsicotrópicas’. Além disso, as normas criminalizadoras apareceriam logo noinício, no art. 3º, ao contrário das anteriores.53BRASIL. Constituição Federal. op. cit. Art. 5º, XLIII: “a lei considerarácrimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática datortura, o tráfico ilícito de entorpecentes (...)”.
22
O último estatuto antes de nossa nova lei de drogas, a
Lei 10.409/2002 pretendia, enquanto projeto, substituir
integralmente a Lei 6.368/76, não logrando êxito por falta de
técnica legislativa.54 Seu texto também trazia consigo a
internação forçada como medida cabível, embora já houvesse
normas protetivas aos eventuais pacientes, eis que já previsto
o necessário atendimento multidisciplinar, a assistência da
família, dentre outras regras.55
Busca-se demonstrar nessa singela retomada histórica, que
desde o século passado os governos mundiais adentraram numa
cruzada contra as drogas, buscando os modelos repressores e o
proibicionismo total como fórmula que por si só, encerraria o
problema. A evolução das disposições sobre internação em
nossas legislações sobre drogas apenas reforça essa ideia.
Maria Lúcia Karam, novamente expõe que as drogas foram
apresentadas “como ‘mal universal’, um ‘flagelo’, algo
assustador e ameaçadoramente próximo, que seria incontrolável
por meios regulares e deveria ser enfrentado com medidas mais
rigorosas, excepcionais ou emergenciais.”56
De acordo com Luciane Boiteux Figueiredo Rodrigues, em
extenso trabalho sobre o tema, o modelo proibicionista
sustenta-se no fundamento moral e no fundamento sanitário
social. Segundo a autora, a “proibição repousa sobre a
premissa da supressão da oferta por meio da interdição geral e
54FILHO, Vicente Grego. RASSI, João Daniel. op. cit. p. 655BRASIL, Lei 10.409/2002. (Revogada). Artigos 11 ao 13. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10409.htm>. Acesso em: 25jul. 2013. 56KARAM, Maria Lúcia. op. cit.p. 8.
23
absoluta detodo o uso, comércio e produção, que passaram a ser
previstos como crime, e sancionados com pena de prisão”57
Mas, entre tamanho proibicionismo do século passado e o
novo ordenamento sobre drogas (Lei 11.343/2006), houve
significativa evolução. Em que pese nossa política ainda estar
amarrada ao sistema de repressão total, no novo texto
legislativo não há nenhuma menção sobre ‘internação’,
‘tratamento forçado’, ou quaisquer termos similares. O
tratamento compulsório simplesmente não foi previsto na nova
lei para o usuário ou dependente.58
2.4 A nova Lei 11.343/2006 e a recente mudança de paradigmas
Enquanto na antiga lei 10.409/2002, há algumas
disposições sobre internação, pouco tratando sobre a prevenção
e tratamento dos usuários de drogas, a nova lei 11.343/2006,
dedicou os artigos 1º ao 2659 para tratar de tais assuntos.
No artigo 4º do novo estatuto60, temos os princípios do
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, onde se
lê, no inciso I: “o respeito aos direitos fundamentais da
pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua
liberdade”.
Sobre essa disposição, Alice Bianchini61 dispõe que: 57 RODRIGUES, Luciane Boiteaux Figueiredo. Op. cit. p. 4658GOMES, Luis Flávio. Nova lei de drogas comentada. 1º Ed. São Paulo.Revista dos Tribunais. 2006. p. 103.59Em que pese ter havido veto do artigo 6º ao 15, foi a maior disposição denormas com caráter preventivo e principiológico que uma lei de drogas játeve no Brasil. 60BRASIL, Lei 11.343/2006. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11343.htm>.Acesso em: 30 maio. 2013.61GOMES, Luis Flávio. op. cit. p. 29.
24
Tal princípio inaugura uma nova mentalidade acerca daproblemática que envolve o consumidor de drogas. Eleestá em conformidade com as tendências criminológicasmodernas, nas quais o enfoque estereotipado doconsumidor-doente cede lugar à autonomia da vontade,respeitando e permitindo que o sujeito envolvido comdrogas deixe a situação passiva, para passar aparticipar do processo que envolve o uso ou adependência da droga. Expressam as preocupações com aliberdade e com a tolerância. O princípio da liberdadedecorre da concepção de Estado democrático. Nele háreconhecimento, por parte do Estado, de determinadoâmbito de autodeterminação individual cuja penetraçãolhe é proibida.
O artigo 28 da Lei de Drogas62 submete os usuários a
determinadas medidas. Mesmo assim, a nova lei, numa inovação
ante as anteriores, não estabeleceu penas privativas de
liberdade, e veio estabelecer a liberdade dos usuários, dando
conta de que não devem ter a autodeterminação suprimida, nem
por lei posterior, tampouco por medida pública.
No artigo 22 da nossa lei de tóxicos, temos que as
atividades de atenção e reinserção social devem observar:
I - respeito ao usuário e ao dependente de drogas,independentemente de quaisquer condições, observados osdireitos fundamentais da pessoa humana, os princípios ediretrizes do Sistema Único de Saúde e da PolíticaNacional de Assistência Social; II – (...)III - Definição de projeto terapêutico individualizado,orientado para a inclusão social e para a redução deriscos e de danos sociais e à saúde;IV - atenção ao usuário ou dependente de drogas e aosrespectivos familiares, sempre que possível, de formamultidisciplinar e por equipes multiprofissionais; (...)
62BRASIL, Lei 11.343/2006. Artigo 28: Quem adquirir, guardar, tiver emdepósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas semautorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar serásubmetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas;II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa decomparecimento a programa ou curso educativo. op. cit.
25
É salutar compreender que a internação compulsória
voltada aos dependentes químicos, não se compatibiliza com
nenhum desses princípios, e que outros modelos de tratamentos
voluntários deveriam estar sendo avaliados. Em contrapartida,
projetos de lei tramitam na busca de tornar a lei 11.343/2006
ainda mais repressiva, e o que parecia evolução, caminha para
retrocesso.
Os projetos de lei 7663/201063, proposto pelo deputado
Osmar Terra, e 3167/201264, do deputado Marcos Feliciano visam
instituir a internação compulsória dentro da Lei de Drogas, o
que na prática, apenas legitimará as medidas que já acontecem,
eis que os favoráveis da medida a justificam na Lei
10.216/2001.
Entretanto, existe um gradual abandono deste estilo de
política no panorama mundial, o que levou, inclusive, a
Comissão Global de Políticas sobre Drogas declarar
expressamente que o mundo havia perdido a guerra contra as
drogas.65
63O projeto, na íntegra, se encontra disponível em<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb /prop_mostrarintegra?codteor=789804&filename=PL+7663/2010>. Acesso em: 30 maio.2013. Dentreoutros objetivos, pretende acrescentar o artigo 23-A, que institucionalizaa internação compulsória de modo amplo, eis que abarca tanto os merosusuários quanto os dependentes em si.64Disponível em:<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=963666&filename=PL+3167/2012>. Acesso em: 30 maio. 2013. Esteprojeto recebe ainda mais críticas, eis que insere a internação compulsóriacomo medida cabível no artigo 28, ao usuário de drogas. O excerto,aparentemente, dispensaria qualquer laudo médico, e leva a crer, pelasdisposições, que bastaria comprovação do uso de tóxicos.65COMISSÃO GLOBAL DE POLITÍCAS SOBRE DROGAS. Guerra às Drogas. 2011.Disponível em: <http://www.globalcommissionondrugs.org/reports/>. Acessoem: 05 ago. 2013.
26
Rogério Fernando Taffarello66 conclui em seu trabalho que
o proibicionismo não encontra compatibilidade com a
principiologia atual, não oferecendo “proteção à saúde pública
ou mesmo à segurança pública. Ao revés, consubstancia um
paternalismo estatal indevido”. Ele ainda dispõe ainda:
No que toca a prevenção, a ampla disponibilização deprogramas de redução de danos como trocas de seringas,terapias de substituição, salas de consumo seguro, eoutros deve ser o objetivo central de uma políticapragmática. O sistema penitenciário igualmente há de terprogramas de tratamento efetivos, que, antes de impô-los, tenha mecanismos para estimular adesão voluntária.67
Para Luciane Boiteux Figueiredo Rodrigues68, as medidas
proibicionistas falham em seus objetivos, pois visam a
abstinência sob quaisquer custos. Do contrário, as estratégias de
redução de danos69 preconizam a ideia de moderação, por meio de
uso controlado de drogas e da substituição por condutas menos
arriscadas. O modelo de redução de danos, segundo a ilustre
autora:
66TAFFARELLO, Rogério Fernando. Drogas: Falência do proibicionismo ealternativas de política criminal. 2009. 154f. Dissertação (Mestrado emDireito). Universidade de São Paulo. p. 144.67Ibidem68RODRIGUES, Luciane Boiteux Figueiredo. Op. cit. p. 70. Os grifos são da autora.69Segundo a IHRA – International Harm Reduction Association, redução dedanos é “é um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir osdanos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ounão querem parar de usar drogas”. A prática é exemplificada naadministração de drogas em menor quantidade da usual, ou distribuição deseringas esterilizadas, com escopo de evitar doenças transmissíveis. Apesarde paradoxal, a prática é reconhecidamente funcional, e demonstrou, nospaíses em que foi adotada, grande êxito na diminuição do consumo de drogas.Disponível em:<http://www.ihra.net/files/2010/06/01/Briefing_what_is_HR_Portuguese.pdf>.Acesso em: 09 set.2013.
27
Reconhece que as pessoas continuarão a fazer uso dedrogas, independente da proibição, razão pela qualdirige seu foco de atuação para a prevenção, a saúdepública, e o bem-estar do toxicômano. Seu fundamentosocial é justamente a reinserção social do usuário dedrogas e a melhoria das suas condições de vida.70
Enquanto muitas nações passaram a investir em políticas
pragmáticas, liberais e de redução de danos, a exemplo de
Portugal, Suiça, Argentina, recentemente o Uruguai, e até
mesmo os Estados Unidos71 – que outrora era o precursor de
políticas incisivas contra as drogas – o Brasil, num atraso
irremediável, continua insistindo em medidas que visem a
abstinência total, com discursos moralistas e sem comprovação
científica.
A título de ilustração, em 2001, o porte pessoal de
drogas ilícitas foi descriminalizado em Portugal, ao passo que
políticas de redução de danos foram traçadas para apoiar
toxicômanos. Além de o consumo ter caído drasticamente no
país, os usuários se viram livres de perseguições morais e o
número de usuários que passou a buscar tratamento voluntário
dobrou.72
Já na Argentina, no ano de 2009, a Suprema Corte de
Justiça declarou inconstitucional norma que exigia o
processamento de usuários de drogas. Em seu voto, o ministro
argentino Eugênio Raul Zaffaroni explanou que:
70RODRIGUES, Luciane Boiteux Figueireido. Op. Cit. p. 70.71COMISSÃO GLOBAL DE POLITÍCAS SOBRE DROGAS. op. cit.72GREENWALD, Gleen. Drug Decriminalization in Portugal: Lessons for creatingfair and successful drug policies. Cato Institute. 2009. p. 28. Disponívelem:< http://www.cato.org/publications/white-paper/drug-decriminalization-portugal-lessons-creating-fair-successful-drug-policies>. Acesso em: 05ago. 2013.(Nossa Tradução).
28
Que el processiamento de usuarios se convierte en un obstaculo para larecuperacion de los pocos que son dependientes, pues no hace mas queestigmatizar los y reforzar su identificación mediante el uso del toxico, comclaro prejuicio del avance de cualquier terapia de desintoxicacion ymodificación de conducta que, precisamente, se propone el objectivoinverso, esto es, la remoción de esa identificación em procura de suautoestima sobre la base de otros valores.73
Por fim, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime74, que anteriormente sugeria medidas repressivas,
recentemente estabeleceu os princípios norteadores do
tratamento de usuários. Nas disposições, claramente se lê que
este não deve ser forçado, salvo em casos realmente
excepcionais em que haja risco grave para o dependente ou para
outrem. (Nossa tradução)
Outrossim, há novas e mais modernas políticas sobre
drogas, e o Brasil está avançando na contramão delas. A
insistência para tornar nossas leis mais rigorosas e de
institucionalizar a internação compulsória como medida ampla
advém de práticas moralistas do século passado, as quais
fracassaram em todos os objetivos.
Salo de Carvalho75 informa que a premissa fundamental de
qualquer tipo de intervenção deve ser o reconhecimento do
envolvido com drogas como um sujeito capaz de diálogo, pois
conforme Mariana de Assis Brasil Weigert, ele deve ter o
direito de decidir sobre a sua vida, sobre seu corpo e sua
73CORTE SUPREMA DE JUSTITIA DE LA NÁCION. Rel. Min. Carmen M. Argibay.Recurso de Hecho nº A-891. XLIV. Julgado em 25 ago. 2009. Disponível em:<http://www.csjn.gov.ar/confal/ConsultaCompletaFallos.do?method=verDocumentos&id=671140>. Acesso em: 06 ago. 2013.74UNODC – UNITED NATION OFFICE ON DRUGS AND CRIMES.WHO – WORLD HEALTHORGANIZATION. Principles of Drug dependence Treatment. 2009. Disponível em:<http://www.unodc.org/docs/treatment/Principles_of_Drug_Dependence_Treatment_and_Care.pdf>. Acesso em: 06 ago 2013.75CARVALHO, Salo. Op cit. p. 443
29
mente, inclusive com fim de contribuir para que o tratamento
tenha êxito.76
Consoante os dizeres de Alice Bianchini, deveria haver
ciência e consciência de que as soluções para o uso indevido
de drogas devem partir de ações dos próprios consumidores,
pois assim, os resultados seriam mais positivos77. Ou seja, o
estado deve disponibilizar tratamento, e não forçá-lo.
Deste modo, fica demonstrado que a internação compulsória
não é instituto novo, mas sim, ideia antiga, que retorna à
práxis jurídica através da repetição de modelos repressores,
motivados pelo inevitável fracasso da atual política de drogas
no país.
Avaliando os novos modelos sobre tóxicos, temos que a lei
11.343/2006 não disciplinou qualquer tipo de internação, e é
gigantesco retrocesso optar agora por fazê-lo, ou realizar
‘interpretação lato senso78’ para legitimá-la amplamente a todos
os dependentes, já que isso viola os princípios que foram
positivados.
Vemos que a internação forçada, voltada aos dependentes
em geral, caminha na contramão da Lei dos Doentes Mentais
(10.216/2001) e da Lei de Drogas (11.343/2006). E quanto a
nossa carta magna? O estado tem legitimidade constitucional para
forçar um tratamento em dependentes químicos?
76WEIGERT. Mariana de Assis Brasil. O discurso psiquiátrico na imposição eexecução de medidas de segurança. 2006 apud CARVALHO, Salo. op. cit. p. 443.77GOMES, Luis Flávio. Op. cit. p. 59.78Aqui nos referimos a argumentações simplistas como ‘já que todo dependentequímico é doente mental, a internação compulsória deve ser feita com fulcrona lei 10.216/2001’. Isso porque, como já demonstramos, não é todo doentemental que deve ou pode ser internado à força.
30
3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A COMPATIBILIDADE
CONSTITUCIONAL DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA.
Como declarou Miguel Reale, a justiça pressupõe o valor
transcendental da pessoa humana e, por conseguinte, de todo o
ordenamento jurídico.79 Segundo o autor, houve compreensão
histórico-social neste sentido de justiça, o que levou a
positivação do direito à dignidade humana na Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948, não só no preâmbulo,
mas logo no artigo 1º80.
A ideia de dignidade fortaleceu-se após os horrores da
segunda guerra mundial, mas deriva da antiguidade.Com a
evolução filosófica, Kant diria que todo homem tem dignidade,
e não umpreço como as coisas. O homem em sua individualidade é
insubstituível, sem equivalente, e não poderia ser trocado por
coisa alguma, razão qual deveria ser tratado como fim em si
mesmo.81
Em nossa Constituição Federal, a dignidade da pessoa
humana foi declarada não apenas como direito fundamental, mas
como princípio fundamental da República82.Segundo Flávia
Piovesan, ela se impõe “como núcleo básico e informador de
todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de
79REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20º Ed. São Paulo. Saraiva. 2002. p.272. 80DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Artigo 1º. Todos os sereshumanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Disponível em:<http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/declaracao_universal_dos_direitos_do_homem.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2013.81COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação história dos direitos humanos. 7º ed.São Paulo. Saraiva. 2010. p. 3482BRASIL, Constituição Federal. op. cit. Artigo 1º, III.
31
valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema
constitucional”.83
José Afonso da Silva84 considera que a “dignidade da
pessoa humana é um valor supremo, que atrai o conteúdo de
todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à
vida”. De acordo com o autor, não insere em seu arcabouço
apenas os direitos pessoais tradicionais, mas também, os
direitos sociais que garantem as bases da existência humana.
Um dos conceitos mais utilizados na comunidade jurídica é
o do doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet85, que conclui dignidade
da pessoa humana como:
A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cadaser humano que o faz merecedor do mesmo respeito econsideração por parte do Estado e da comunidade,implicando, neste sentido, um complexo de direitos edeveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contratodo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, comovenham a lhe garantir as condições existenciais mínimaspara uma vida saudável86, além de propiciar e promoversua participação ativa e co-responsável nos destinos daprópria existência e da vida em comunhão com os demaisseres humanos.87 (grifos meus)
83PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e aconstituição de 1988. in PIOVESAN, Flávia (org.)Doutrinas Essenciais:Direitos Humanos. V. I. Teoria Geral dos Direitos Humanos. São Paulo. RT.2011. Pg. 31684SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 22º Ed. SãoPaulo. Malheiros. 2002. p. 105.85SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana:construindo uma compreensão jurídico constitucional necessária e possível InSARLET, Ingo Wolfang (org.) Dimensões da Dignidade: ensaios da filosofia dodireito e direito constitucional. 2º Ed. Porto Alegre. Livraria doAdvogado. 2009. p. 3786O doutrinador ainda trás nas notas de rodapé que segundo a OrganizaçãoMundial da Saúde, saúde não é a mera ausência de doenças, mas um completobem-estar físico, mental e social. Segundo o autor, este conceito deveservir para diretriz mínima a ser assegurada pelos Estados.87O Supremo Tribunal Federal tem tratado o princípio dessa forma: (...)“Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisae não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mastambém pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos” (...)
32
Recorrentemente, há argumentações no sentido de que o
estado tem o dever de promover tratamento forçado a todos os
dependentes, vez que em face de sua condição psíquica
claramente alterada pela droga, eles acabaram perdendo a
dignidade, cabendo aos órgãos públicos resgatá-la.
Este é um equívoco, eis que “A pessoa humana conserva a
dignidade independentemente de tudo aquilo que externa e
internamente pode degradá-la, humilhá-la e destruí-la.”88
Esclarece-se desde já, que o tratamento compulsório não
visaria (ou não deve visar) devolver a dignidade do paciente
(porque ele nunca a perdeu), mas respeitá-la e concretizá-la.
3.1 A autonomia e liberdade do dependente químico e a
concretização de sua dignidade
A interface entre a psiquiatria e o direito, embora
imprescindível, se faz de maneira árdua, eis que, “enquanto a
linguagem médica descreve o estado do paciente em uma escala
que vai de grave a completamente saudável, a linguagem
jurídica é binária: o doente é capaz ou incapaz, necessita ser
internado ou não (...)”.89
(STF. Inq. 3412. Rel. Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Julgado em 29mar. 2012. Disponível em:<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3076256>. Acesso em: 10 ago. 2013.88MAURER, Beatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana… oupequena fuga incompleta em torno de um tema central. In SARLET, IngoWolfgang. (org.) op. cit. p. 13989ZEMISCHLANY, Z. MELAMED, Y. The impossible dialogue between psychiatry andthe judicial system: a language problem. 2006. apudBARROS, Daniel Martinsde; SERAFIM, Antonio de Pádua. Parâmetros legais para a internaçãoinvoluntária no Brasil. Rev. Psiquiatria Clínica. São Paulo.v. 36. n. 4.2009 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
33
Segundo Daniel Martins de Barros e Antonio de Pádua
Serafim, a justificativa da internação involuntária do
indivíduo decorre da perda da autonomia deste, em face de sua
doença mental, que o impede de entender e compreender o
caráter desadaptativo de seu quadro.90
Conforme preceitua Maria Helena Diniz, o Estado deve
tratar o indivíduo que perdeu essa autonomia, com base na
teoria do parens patriae, caso ele apresente perigo para si ou
para outrem.91
Traçando comentários sobre a dignidade, Ingo Wolfgang
Sarlet destaca que ela deve ser considerada em abstrato, “como
sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de
autodeterminar sua conduta”, não dependendo da efetiva
realização, de tal sorte que o absolutamente incapaz ou
portador de deficiência mental tem a mesma dignidade que
qualquer outro.92
Deste modo, seria legítimo para o Estado buscar o
tratamento dos dependentes químicos, se eles, outrora,
voluntariamente se dispuseram a utilizar drogas? Cabe ao poder
público quebrar essa vontade de usar substâncias
toxicológicas, substituindo a autonomia deles?
O próprio doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet sustenta que a
dignidade possui uma dimensão dúplice, que se manifesta no
arttext&pid=S010160832009000400008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 ago.2013.90BARROS, Daniel Martins de; SERAFIM, Antonio de Pádua.op. cit.91DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 8º Ed.São Paulo.Saraiva. 2011. p 20892SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana:construindo uma compreensão jurídico constitucional necessária e possível.In SARLET, Ingo Wolfang (org.) op. cit.p. 23
34
respeito à autonomia da pessoa, mas também, na necessidade de
sua proteção por parte do Estado. Segundo o ilustre autor:A dignidade, na sua perspectiva assistencial (protetiva)da pessoa humana, poderá, dadas as circunstâncias,prevalecer em face da dimensão autonômica, de tal sorteque, todo aquele a quem faltarem as condições para umadecisão própria e responsável (...) poderá até mesmoperder – pela nomeação eventual de um curador ou asubmissão involuntária a tratamento médico e/ouinternação – o exercício pessoal de sua capacidade deautodeterminação, restando-lhe contudo, o direito de sertratado com dignidade (protegido e assistido).93
Portanto, não é como dizem alguns, que os dependentes
químicos, por sua condição perderam a dignidade, mas sim, que
justamente para efetivá-la e concretizá-la, é necessária a
intervenção, em diferentes graus, conforme o estado do
paciente.
Segundo o mesmo autor, a dignidade da pessoa humana é
simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais. De modo
salutar, ele explica que como tarefa, se vislumbram diversos
deveres concretos de tutela por parte dos órgãos estatais, “no
sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe
também por meio de medidas positivas (prestações) o devido
respeito e promoção”.94
Isto se compatibiliza com a falta de prudência que seria
deixar o dependente químico, tomado pelo vício nas substâncias
toxicológicas, decidir por si só em continuar fazendo uso de
drogas, destruindo a saúde física e psíquica. Não há nada de
‘digno’ em tentar promover um direito de poder usar drogas
ilícitas.
93Idem.p. 3094Ibidem, p. 32
35
Em face disso, deve haver um equilíbrio: o Estado não
pode transformar o usuário em coisa, retirando-o do convívio
social tão somente por que usa drogas, mas definitivamente não
pode manter-se silente, e deve promover medidas para tratá-lo
e respeitar a sua dignidade, até porque, tem o dever
constitucional de promover a saúde de todos.
Essa tutela do indivíduo deve ocorrer mesmo que ele
queira continuar fazendo uso de drogas, eis que “em nome da
liberdade, da autonomia pessoal, é grande o risco de que cada
um determine, defina a sua própria dignidade como bem
entenda”. 95 Esse tipo de ideia encontra respaldo na mitigação
do estado liberal pelo estado prestacionista, que informa a
dignidade da pessoa humana como um limite à autonomia da
vontade.96
Neste sentido, Luís Roberto Barroso dispõe que a
autonomia é o elemento ético da dignidade, fundamentando-se no
livre arbítrio de cada um, que lhe permite buscar, à sua
própria maneira, o ideal de viver bem e ter uma vida boa.97
O Ministro nos explica ainda que essa autonomia pressupõe
o preenchimento de determinadas condições, dentre elas, a
razão, como capacidade mental de proferir decisões.98, o que de
certa forma, falta aos dependentes em estado avançado. Ainda,
consoante suas ideias:
95MAURER, Beatrice. op. cit. p. 129.96NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio dadignidade. In PIOVESAN, Flávia (org.)Doutrinas Essenciais: Direitos Humanos.V. I. Teoria Geral dos Direitos Humanos. São Paulo. RT. 2011. Pg. 197.97BARROSO. Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direitoconstitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz dajurisprudência mundial 1º ed. 2º reimpressão. Belo Horizonte. Fórum. 2013.p. 81.98Ibidem.
36
(...) ínsito à ideia de dignidade humana está o conceitode mínimo existencial, também chamado de mínimo social,ou o direito básico as provisões necessárias para que seviva dignamente. A igualdade em sentido material ousubstantivo, e especialmente a autonomia (pública ouprivada) são ideias dependentes do fato de os indivíduosserem ‘livres da necessidade’ (free from want), nosentido de que suas necessidades vitais essenciais sejamsatisfeitas. Para serem livres, iguais e capazes deexercer uma cidadania responsável, os indivíduosprecisam estar além de limiares mínimos de um bem-estar,sob pena de a autonomia se tornar mera ficção, e averdadeira dignidade humana não existir.99
Por conseguinte, buscar o tratamento dos dependentes não
desrespeita a autonomia e dignidade destes, eis que se
procedido pelas vias legais, não os rebaixa a instrumentos ou
coisas, mas – bem pelo contrário – procura reconstruir a
identidade desses drogadictos de modo a possibilitar uma vida
livre e saudável.
Sendo assim, vislumbrado que ao paciente falta a razão,
tomada pelo uso das drogas, cabe ao estado realizar a
interferência, com escopo de tutelar a saúde e dignidade do
drogadicto. Este só poderá se contrapuser se estiver dotado
das faculdades mentais para compreender seu estado. Registra-
se, todavia, que esta ‘invasão’ estatal, não necessariamente
será a internação compulsória, pelas razões a seguir.
3.2 O direito ao tratamento correto/proporcional como forma de
concretização e respeito à dignidade humana do dependente
químico.
99Idem, p. 84 e 85.
37
Expondo os direitos dos doentes mentais em geral, Cintia
Menezes Brunetta expõe que eles devem receber o “tratamento
adequado à sua condição cultural e apropriado às necessidades
de sua saúde.”100
Neste sentido, e fazendo um paralelo com o princípio da
proporcionalidade, o Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha pronunciou-se desta forma:
O meio empregado pelo legislador deve ser adequado eexigível, para que seja atingido o fim almejado. O meioé adequado quando, com o seu auxílio, se pode promover oresultado desejado; ele é exigível quando o legisladornão poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, masque seria um meio não prejudicial ou portador de umalimitação menos perceptível a direito fundamental.101
Analisando agora, a questão lógica, é evidente
compreender que toda e qualquer ação voltada aos dependentes
químicos deve intentar tratá-los, da melhor forma possível. A
ação deve visar o indivíduo em si, e jamais a sociedade,
conforme entendimento de Luís Roberto Barroso:
(...) do valor intrínseco do ser humano decorre umpostulado antiutilitarista e antiautoritário. (...) Oprimeiro se manifesta no imperativo categórico kantianodo homem como um fim em si mesmo, e não como um meiopara a realização de metas coletivas ou de projetospessoais de outros; o segundo, na ideia de que é oestado que existe para o indivíduo, e não contrário.102
Assim, o paciente não deve ser submetido a tratamentos
ineficazes ou ilegais sob a justificativa de um suposto estado
100BRUNETTA, Cíntia Menezes. op.cit. p. 954. 101BVerfGE. 30, 292In: FILHO, Willis Santiago Guerra Filho. Ensaios de TeoriaConstitucional. 1989. p. 87 apud BARROSO, Luís Roberto. Interpretação eAplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucionaltransformadora.7º ed. São Paulo. Saraiva. 2009. p. 234.102BARROSO, Luís Roberto. A dignidade... op. cit. p. 77
38
caótico envolvendo o uso de drogas no país. O mesmo Estado que
criou as condições propícias para a dependência não pode
querer extingui-la de quaisquer formas.
Conforme já exposto, a eficácia da internação compulsória
tem sido questionada, eis que nunca foi comprovada através de
estudos práticos. Além dessa conclusão empirista, é
reconhecível quedado o poder destrutivo e causador de
dependência, o paciente precisa de grande força de vontade e
predisposição, de modo que, o tratamento, quando compulsório,
já inicia fracassado.
Obtendo o conhecimento de que a internação compulsória
pode falhar, não é responsável adotar a medida. Conforme
preconiza Dirley da Cunha Júnior, o subprincípio da adequação,
corolário do princípio da proporcionalidade, “exige que as
medidas adotadas pelo poder público se apresentem aptas para
atingir os fins almejados”103, que no caso exposto é o
tratamento do indivíduo.
Por isso mesmo, citando o Código de Ética dos Médicos, os
especialistas Daniel Martins de Barros e Antônio de Pádua
Serafim alertam que só se deve decidir pela internação quando
o risco é extremo, como no caso de iminente perigo de vida.104
Como orienta Luís Roberto Barroso, um certo grau de
paternalismo é aceitável, “mas os limites de tal interferência
devem ser definidos com bastante cuidado para que ela seja
considerada legítima”.105
103CUNHA JÚNIOR. Dirley da.Curso de Direito Constitucional. 6º Ed. Salvador.JusPODIVM. p.234104BARROS, Daniel Martins de; SERAFIM, Antonio de Pádua. op. cit. 105BARROSO. Luís Roberto. A dignidade... op. cit. p. 90
39
Coadunando-se a isto, Alfredo Jorge Kraut explana que um
dos princípios norteadores da internação involuntária deve ser
a imprescindibilidade desta, sem que haja quaisquer
alternativas terapêuticas mais eficazes e menos restritivas de
direitos.106
Logo, considera-se que uma medida extrema como a
internação compulsória não deve, de modo algum, ser ampliada a
todos os dependentes químicos, podendo ser utilizada como ultima
ratio, em casos de extrema necessidade, para salvaguardar a
própria vida do paciente, ou outros bens jurídicos similares.
De acordo com o que fora considerado no segundo capítulo
deste artigo, exemplifica-se que poderia ser internado
compulsoriamente o dependente que está tentando suicídio, que
desenvolveu quadros psicóticos graves, que está em vias de
overdose, ou que, em decorrência da droga, se tornou
extremamente violento.
Expondo um pouco do pensamento traçado, o Superior
Tribunal de Justiça107 já determinou que:
(...)II - A internação compulsória, qualquer que seja oestabelecimento escolhido ou indicado, deve ser, sempreque possível, evitada e somente empregada como últimorecurso, na defesa do internado e, secundariamente, daprópria sociedade.(...)IV - Não há constrangimento ilegal na imposição deinternação compulsória, no âmbito da Ação de Interdição,
106KRAUT, Alfredo Jorge. Los derechos de los pacientes. Buenos Aires. 2000.apud PINHEIRO, Gustavo Henrique de Aguiar. O devido processo legal deinternação psiquiátrica involuntária na ordem jurídica brasileira. Revistade Direito Sanitário. São Paulo. v. 12, n. 3, p. 125-138 Nov.2011/Fev.2012107STJ. HC 130.155/SP. Rel. Min. Massami Uyeda.Terceira Turma. Julgado em 04maio. 2013. Publicado em 14 maio. 2010. Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200900372607&dt_publicacao=14/05/2010>. Acesso em: 24 jul. 2013.
40
desde que baseada em parecer médico e fundamentada naLei 10.216/2001. Observância, na espécie.V -O art. 4º da Lei nº 10.216/2001, fruto de umaconcepção humanística, traduz modificação na forma detratamento daqueles que são acometidos de transtornosmentais, evitando-se que se entregue, de plano, aquele,já doente, ao sistema de saúde mental.VI - Todavia, a ressalva da parte final do art. 4º daLei nº 10.216/2001, dispensa a aplicação dos recursosextra-hospitalares se houver demonstração efetiva dainsuficiência de tais medidas. Hipótese dos autos,ocorrência de agressividade excessiva do paciente.(grifos meus).
Deste modo, é importante ressaltar que as disposições
trazidas pela lei 10.216/2001 são direitos fundamentais dos
dependentes químicos, pois tratam da violação de bens
jurídicos essenciais, como a liberdade, a autonomia e a
dignidade em si.
Outrossim, o dependente que for internado
compulsoriamentesem que recursos extra-hospitalares tenham
falhado ou sido indicados108 (violação ao artigo 4º da lei
10.216/2001); sem que a reinserção social esteja sendo
avaliada ou sem serviços de assistência multidisciplinar
(violando os §1º e 2º do mesmo artigo); ou sem laudo que
justifique109 (artigo 6º) não é vítima de mera ilegalidade, mas
108TJSP. Apelação Cível nº. 0000761-36.2010. Rel. Salles Rossi. Julgado em12 jun. 2013. Disponível em <http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=6802218>. Acesso em: 12 ago. 2013. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. (...)Decreto de Improcedência. Internação compulsória que é medida extrema.Julgamento convertido em diligência. Prova pericial indicativa apenas danecessidade de tratamento ambulatorial (...) Pretensão exordial que nãoencontra amparo no artigo 4º da lei 10.216/2001. 109Nestes meios, TJSP. Apelação Cível nº 0037400-69.2012.8.26.0053. Rel.Isabel Cogan. Julgado em 07 ago. 2013. Disponível em:<http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=6924005>. Acesso em:12 ago. 2013. (...) A internação compulsória depende de laudo médicocircunstanciado que caracterize os seus motivos (art. 6º da lei10.216/2001). (...)
41
de um desrespeito grave contra sua dignidade, tornando o
tratamento eivado de inconstitucionalidade.
Importante a disposição de Gustavo Henrique de Aguiar
Pinheiro, afirmando que “é da Constituição, e não simplesmente
da lei, que deriva o devido processo legal da internação
psiquiátrica involuntária, bem como as conseqüências e
garantias”110. Neste sentido, Maria Helena Diniz expõe que é
“inadmissível o tratamento psiquiátrico que venha a oprimir o
paciente, desrespeitando sua dignidade e a recuperação de sua
saúde mental”111
Nunca é demais dizer, que além de poder ser ineficaz, a
internação também pode ser perigosa. Como expôs José Osmir
Fiorelli e Rosana Cathya Ragazzoni Mangini “a dependência é de
difícil remissão”112 e que a retirada da substância psicoativa
deve ser feita com extrema cautela com escopo de evitar a
síndrome da abstinência, que causa “grande mal-estar físico e
mental, acompanhado de tremores, sudorese, náusea e vômito,
chegando a convulsões, delirium tremens, e até mesmo, a morte.”113
Infelizmente, esse conhecimento científico tem sido
ignorado em algumas ações de interdição civil114, de modo que
não é raro acompanhar decisões em que os direitos fundamentais
110PINHEIRO, Gustavo Henrique de Aguiar. Op. Cit. 111DINIZ, Maria Helena. op. cit. p. 210112FIORELLI, José Osmir; MANGINI. Rosana Cathya Ragazzonni. PsicologiaJurídica. 1º Ed. São Paulo. Atlas. 2009. p. 124.113Ibidem.114A título de exemplo: TJSP. Apelação Cível nº. 0000105-27.2012.8.26.0302.Rel. Fábio Henrique Podestá. Julgado em 28.08.2013. Disponível em:<http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=6982904&vlCaptcha=xyqrr>. Acesso em: 12 ago. 2013.Necessidade derealização de perícia médica visando aferir o grau de dependência.Tratamento de drogadição. Não observância dos princípios da ampla defesa edo contraditório. (...) Recurso provido.
42
dos dependentes químicos são ultrajados, pela justificativa
simplista de que a saúde sempre está acima da liberdade, não
dotando a matéria do devido conhecimento científico, quase
considerando que a internação é mágica e cura o paciente com a
mera abstinência.
Considera-se, em contrário, que a internação voltada aos
dependentes químicos deve afastar um flagrante estado de
perigo, com escopo de salvaguardar a sua dignidade e
possibilitar um tratamento por outros meios, já que a
internação involuntária pode não ser efetiva, e há outras
formas mais eficazes de encerrar a drogadição.
O ideal seria que o Brasil seguisse os exemplos das
outras nações e investisse em políticas de redução de danos,
ou pelo menos, em políticas que se fundassem no diálogo com os
dependentes, de modo a incentivá-los a buscar apoio
psicológico e sanitário.
Sobre isso, Salo de Carvalho sustenta que qualquer
política de tratamento no interior de um modelo proibicionista
tende ao fracasso, mas que na contramão, “os projetos de
redução de danos (...), fixam como requisito da intervenção o
reconhecimento do envolvido com drogas, usuário ou dependente,
como sujeito com capacidade de diálogo, dotado dos atributos
da fala e da escuta.”115
Neste ponto, é essencial apontaruma pesquisa realizada
pela Unidade de Pesquisa e Álcool e Drogas que entrevistou 170
usuários de crack, e constatou que 47% dos dependentes se
submeteriam a um tratamento, bem como 62,3% gostariam de parar
115CARVALHO, Salo de. op. cit. p. 443 e 444.
43
de usar substâncias toxicológicas.116Ao contrário do que o senso
comum indicaria, os dependentes químicos, mesmo de drogas
consideradas de alto potencial lesivo, tem certo entendimento
de compreensão e autonomia, e se abordados da maneira correta,
poderiam ser tratados sem menção de compulsoriedade.
A dependência química não é uma doença como outra
qualquer. A droga entra na vida do indivíduo em decorrência
de problemas sociais e psicológicos. Não são remédios que a
curam, e como já traçado, a simples abstinência da droga não
induz tratamento, eis que a vontade do uso da droga irá
acompanhar o toxicômano para o resto de sua vida.
Desta feita, como disse o recém ministro do Supremo
Tribunal Federal, “O dano a si mesmo pode constituir uma base
aceitável para a limitação da autonomia pessoal (...), mas
nesse caso o ônus de comprovar a sua legitimidade vai
usualmente recair sobre o Estado”.117
Cabe ao Estado, detentor do dever de promover a saúde,
institucionalizar medidas eficazes que invadam da menor forma
possível a esfera individual do paciente. Abranger a
internação forçada a todos só estigmatiza os usuários e rompe
com os objetivos e fins de qualquer tratamento.
4. CONCLUSÕES
116MAIORIA dos usuários da Cracolândia se submeteriam a tratamento, afirmapesquisa da Uniad/Unifesp.UNIAD. Disponívelem:<http://www.uniad.org.br/desenvolvimento/index.php/noticias/ 12250-maioria-dos-usuarios-da-cracolandia-se-submeteriam-a-tratamento-afirma-pesquisa-da-uniadunifesp.> Acesso em: 12. ago. 2013.117BARROSO. Luís Roberto. A dignidade... op. cit. p. 97
44
A reforma psiquiátrica no Brasil fez com que os direitos
humanos e fundamentais alcançassem também os doentes mentais –
e dessa forma, os dependentes químicos – a fim que não fossem
tratados como objetos, que poderiam simplesmente ser excluídos
do meio social, em prol da comunidade.
Neste sentido, demonstra-se que não há estudos que
comprovem a internação compulsória aos dependentes químicos
como um tratamento viável ou eficaz. Pelo contrário, parece
uma restrição à liberdade e uma invasão à autonomia do
indivíduo que prejudica o abandono da drogadição.
A nossa política contra as drogas é antiquada, e apesar
de nossa lei de tóxicos ser recente (2006), ainda carregamos
modelos repressores da década de 70, razão a qual estamos
atrasados no panorama mundial. O preconceito, a estigmatização
e a falta de conhecimento científico fazem com que,
equivocadamente, a internação compulsória seja considerada a
única, ou a melhor medida cabível a todos os dependentes
Analisando nossa Constituição e, em especial, o princípio
da dignidade humana, fica notável uma dimensão dúplice: por um
lado, deve-se respeitar a autonomia do dependente, mas por
outro, deve-se garantir a ele um mínimo existencial, não se
podendo permitir que ele continue fazendo uso de drogas, pois
isso inibe uma vida social plena, além de corromper a saúde, a
vida e a dignidade em si. Não há um ‘direito de usar drogas’.
Isso, entretanto, não permite qualquer tipo de abordagem
aos dependentes químicos. A intervenção estatal deve ser
eficaz, e deve abordar o usuário como sujeito capaz de
diálogo, promovendo medidas alternativas para encerrar a
45
toxicomania. Essa intervenção deve ser feita para o paciente,
e não para os fins da sociedade.
A internação compulsória deve ser usada como medida
extrema: a ultima ratio para casos em que o tratamento
ambulatorial ou psicológico realmente não bastam. Deve ser
empregada quando a própria vida do sujeito estiver em risco,
ou quando ele, por meio de comportamentos inadequados, esteja
pondo em risco direitosponderáveis de outras pessoas.
Caso a internação seja realmente necessária, as
disposições da lei 10.216/2001 são garantias fundamentais dos
dependentes, e os requisitos precisam ser preenchidos, um a
um. Se o texto legislativo for cumprido, e a internação for
realmente imprescindível, não há violação à dignidade humana,
eis que a medida será promovida justamente para respeitá-la.
Cabe a ressalva, que essa internação deverá durar o
mínimo possível, e ela por si não irá bastar como tratamento.
Após a intervenção, é necessário um longo acompanhamento
social e psicológico, além de medidas que realmente efetivem o
tratamento da dependência.
Por fim, o especialista internacionalmente reconhecido no
tratamento de drogadição George de Leon, conta em seu livro,
que se costuma perguntar a pessoas recém-admitidas em centros
de tratamento ‘Qual é o seu problema?’. A resposta usual, como
deveria se imaginar ‘Drogas, eu uso drogas’. Neste passo, os
pacientes recebem sempre a mesma réplica: ‘Mas este é o seu
sintoma, não o seu problema’.118
118 LEON, George De. A comunidade terapêutica: teoria, modelo e método. SãoPaulo. Loyola. 2003. p. 41
46
Há gigantesco atraso em nossa política de tóxicos.
Atacamos a droga em si, mas não os problemas que levam a
drogadição. Armamos nossas fronteiras, na expectativa cega de
que drogas não entrem, mas não promovemos medidas eficazes
para evitar que as pessoas as busquem. Caçamos os traficantes,
estigmatizamos os usuários, e rompemos com a dignidade dos
dependentes. Criamos um estado de repressão, e não de
prevenção.
Nosso Estado, estranhamente, quer promover a internação
compulsória aos dependentes, mas não incentiva o tratamento
voluntário, nem o disponibiliza para quem o desejar. O mesmo
Estado às vezes se exime de internar dependentes em clínicas
particulares, em decorrência da falta de locais públicos
adequados.119
É preciso que seja feita avaliação da internação
compulsória com extrema cautela, em cada caso concreto, e que
se busque outras medidas para o tratamento da drogadição, que
respeitem os dependentes e busquem tratar as causas do
problema, e não somente os sintomas.
REFERÊNCIAS
AMADOR, Salete Monteiro. A reforma psiquiátrica brasileira e aluta antimanicomial. Disponível em:
119Neste sentido, decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que mantevesentença condenatória ‘a quo’ determinando que o município de Itapetiningaarcasse com as despesas da internação de dependente em clínica particular,pela falta de disponibilização de local público para o tratamento. TJSP.Apelação Cível nº 0001478-95.2012.8.26.0269. Rel. Luciana Bresciani.Julgado em 27.03.2013. Disponível em:<http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=6828678>. Acesso em:12 ago. 2013.
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