Vulgaridade teóricas iniviabilizadoras do marxismo: não é verdade que a mais-valia seja roubo,...

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Vulgaridades teóricas debilitadoras do marxismo: "a mais-valia é um roubo", "o capitalista não trabalha", "o Estado é o escritório da burguesia". Glaucia Angélica Campregher * Lucas Schönhofen Longoni ** ** Resumo: O artigo defende a necessidade de reforçarmos a compreensão das mediações dialéticas que nos permitem compreender que fenômenos imediatos estão imbuídos de uma lógica contraditória. Lógica esta só percebida quando se persegue os links, ou encadeamentos e desdobramentos, das formas históricas. Formas estas que, por sua vez, só podem ser percebidas enquanto tais se não identificamos no imediato a única forma possível de existência do que quer que seja. Sendo assim, a mais-valia não é apenas o lucro surgido na esfera da troca; o capitalista não é apenas a pessoa beneficiada pela apropriação ocorrida também nesta esfera; e o Estado não é a operacionalização de um conjunto de ações facilmente definidas visando a dominação. Palavras chave: dialética, marxismo, mais-valia, estado Introdução Partimos no presente trabalho da constatação de que a construção intentada por Marx do "socialismo científico" só pode elevar as questões práticas - dos interesses, dos valores, da moral - ao status de problema científico por ter se baseado num método ainda hoje de conhecimento não trivial. A sua "inversão da dialética hegeliana" tornou possível, de um lado, as críticas da ciência e da política de sua época (a economia política inglesa e as utopias políticas liberais e socialistas) e, de outro, uma concepção do homem ao mesmo tempo condicionado historicamente e livre ontologicamente. Sua crítica da ideologia escaparia de ser ela mesma ideológica, dado seu ponto de partida totalizante. Assim sendo, sua defesa dos interesses do proletariado seria feita desde um ponto de vista maior e imparcial - mais amplo e mais vasto no * Professora do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected] **** Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

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Vulgaridades teóricas debilitadoras do marxismo:"a mais-valia é um roubo", "o capitalista não

trabalha", "o Estado é o escritório da burguesia".

Glaucia Angélica Campregher*

Lucas Schönhofen Longoni****

Resumo: O artigo defende a necessidade de reforçarmos a compreensão dasmediações dialéticas que nos permitem compreender que fenômenos imediatosestão imbuídos de uma lógica contraditória. Lógica esta só percebidaquando se persegue os links, ou encadeamentos e desdobramentos, das formashistóricas. Formas estas que, por sua vez, só podem ser percebidasenquanto tais se não identificamos no imediato a única forma possível deexistência do que quer que seja. Sendo assim, a mais-valia não é apenas olucro surgido na esfera da troca; o capitalista não é apenas a pessoabeneficiada pela apropriação ocorrida também nesta esfera; e o Estado nãoé a operacionalização de um conjunto de ações facilmente definidasvisando a dominação.

Palavras chave: dialética, marxismo, mais-valia, estado

Introdução

Partimos no presente trabalho da constatação de que a

construção intentada por Marx do "socialismo científico" só pode

elevar as questões práticas - dos interesses, dos valores, da

moral - ao status de problema científico por ter se baseado num

método ainda hoje de conhecimento não trivial. A sua "inversão da

dialética hegeliana" tornou possível, de um lado, as críticas da

ciência e da política de sua época (a economia política inglesa e

as utopias políticas liberais e socialistas) e, de outro, uma

concepção do homem ao mesmo tempo condicionado historicamente e

livre ontologicamente. Sua crítica da ideologia escaparia de ser

ela mesma ideológica, dado seu ponto de partida totalizante. Assim

sendo, sua defesa dos interesses do proletariado seria feita desde

um ponto de vista maior e imparcial - mais amplo e mais vasto no

* Professora do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grandedo Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]****Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande doSul (UFRGS). E-mail: [email protected]

tempo e no espaço - que não necessitava do encobrimento dos

interesses parciais - no tempo e no espaço precisos - mas do seu

desnudamento.

É nosso ponto de vista que para se manter vivo e respondendo

aos problemas teóricos e prático-políticos enredados inclusive por

sua própria intervenção no mundo, o marxismo teria de continuar

refinando esse sofisticado tecer de mediações entre parte e todo

conseguido pela dialética hegelo-marxiana. No entanto, as

considerações metodológicas foram se enredando em território à

parte do mundo real, em complexas e sofisticadas discussões

acadêmicas, deixando caminho aberto para uma vulgarização do

marxismo que apela frequentemente à parcialidade das considerações

sem as mediações devidas. Três delas nos parecem exemplares. A

primeira, e mais simples, diz respeito à consideração da mais-

valia como "roubo", a despeito de todo o esforço de Marx em O Capital

para qualificar o processo de expropriação do trabalho coletivo que ocorre na

produção como algo impossível de ser compreendido corretamente a

partir da noção de roubo ou enganação, bem próprios ao processo de

troca. Consideração esta que vai trazer enormes prejuízos -

novamente teórico-práticos (ou seja, políticos) - ao dar a

entender que se pode calcular a mais-valia individual sobre a

contribuição de cada trabalhador na produção direta ou os lucros

individuais como se a taxa de lucro não tivesse uma determinação

sistêmica, devida não apenas à concorrência como à própria

organização das formas de propriedade. Esse problema que remete à

famosa discussão da transformação dos valores em preços é um bom

exemplo do que ocorre com o legado marxista pois, se alguns o

debatem em publicações acadêmicas sofisticadas, no dia a dia,

mesmo da academia, apenas é mencionado, de tal modo que um aluno

de economia, tanto quanto um sindicalista, acreditam mesmo ser

fácil calcular a exploração.

A segunda se relaciona a esta primeira e diz respeito à

vulgata de que, por ser a acumulação de capital o destino do

sobre-trabalho do trabalhador coletivo, o capitalista proprietário

é, ele mesmo, um bufão ladrão, fundamentalmente um indivíduo que

não trabalha. Concepção esta que de imediato faz crer que o

trabalho de organização do trabalho, não é trabalho ele mesmo.

Defendemos aqui que as atividades de organização, seja do

trabalhador coletivo, seja do capital coletivo, são uma certa

forma de trabalho. De certo modo um trabalho de racionalização,

ainda que de uma razão subordinada aos ditames do capital. A nosso

ver, a construção de novas experiências de socialismo terá de

enfrentar esta difícil questão do trabalho de gestão do todo. É

ingênua a fantasia marxiana de que cada um possa decidir o que

fará pela manhã, tarde ou noite, como se todo o trabalho feito

para o conjunto da sociedade fosse realizado por máquinas, e como

se ainda a manutenção de estruturas e instituições não exigisse um

trabalho, digamos, obrigatório. Também é ingênua a ideia de que as

trocas (econômicas e sociais, ou seja, aquelas relativas a

interesses, liberdades) possam ser diretas sem a mediação de

nenhuma forma de Estado ou mercado. Do nosso ponto de vista, o que

o socialismo terá de fazer é construir instâncias de mediação

compatíveis com a não exploração e a alienação capitalistas.

A terceira e última consideração, talvez a mais complexa, tem

justo a ver com essa questão, do Estado como instância de

mediação. Defendemos que este tema foi tratado com descuido pelos

fundadores do marxismo, Marx e Engels. Tendo sido sempre adiado e

merecendo atenção apenas quando da análise de eventos específicos

(a despeito dos esforços mais dedicados de Engels), o Estado é

tratado de modo quase vulgar, com descuido das mediações entre

parte e todo e entre classes em luta. Se Marx e Engels por vezes

simplificam demasiadamente suas impressões sobre o Estado é porque

acreditavam que o desdobramento das categorias (mercadoria, valor,

dinheiro e capital) seria suficiente para explicar a realidade das

lutas de classes. Contudo, a importância de ter o Estado como

mediação – o que equivale a vê-lo, como dirá Poulantzas, como

relação (e não como sujeito ao modo liberal, ou como objeto ao

modo marxista clássico) – significa colocá-lo dentro do movimento

destas categorias, pois só assim conseguimos entender as formas

específicas que ele assume no desenrolar da história concreta. Na

falta de uma compreensão maior das formas concretas do Estado, o

pensamento marxista deixa de alimentar projetos políticos

exequíveis, buscando construir uma crítica que se ausenta

totalmente das instituições vigentes e vendo uma suposta essência

a ser atingida com um só movimento (revolucionário) para além do

campo de ação posto diante de nós.

Para o desenvolvimento das teses expostas acima, este

trabalho contém quatro seções, além desta Introdução: a primeira

destinada ao esclarecimento de questões metodológicas preliminares

que nos permitem ir além de uma concepção maniqueísta do marxismo

como oposição moral; a segunda dedicada à discussão do lucro como

criação de riqueza nova antes indisponível, que impõe a

preponderância da produção sobre a circulação; a terceira dedicada

à discussão da natureza do trabalho dos que organizam (direta ou

indiretamente) o trabalho social e os capitais privados com fins

de valorização em escala; e a última dedicada ao Estado como

espaço de mediação entre as classes em conflito, o que faz com que

a dimensão de organização dos interesses dominantes seja mais

importante que a mera execução de tarefas a priori conhecidas.

1) Considerações preliminares sobre a dialética hegeliana -

imediato x mediado e senhor x escravo - e a dialética marxiana da

forma abstrata do trabalho no capitalismo.

Sem nos atermos em querelas filosóficas demasiado

sofisticadas, queremos destacar apenas que vemos na dialética

hegelo-marxiana o ponto de partida racional mais eficaz para

trabalharmos com concepções de mundo que sejam ao mesmo tempo

interessadas e neutras, ou neutras porque interessadas. Ou seja, o

reconhecimento de que o nosso olhar é um olhar interessado - e,

portanto, parcial - menos contamina e ideologiza nossas teses que

a afirmação (verdadeiramente ou falsamente ingênua) de que podemos

estar acima de interesses. Isso significa que vemos o ponto de

vista da totalidade não como um ponto de vista sobre-humano ou

supra-histórico, ou ainda, a nossa narrativa como uma meta-

narrativa a julgar todas as outras; mas com uma narrativa melhor

adaptada para negociar com estas, o que seria mais verdadeiro. Ou

seja, a nossa capacidade de incluir a dimensão oposta, o aparente

equívoco ou mero erro, no nosso próprio raciocínio, é o que o

torna mais potente, mas nunca eterno ou absoluto.

Muitos hão de pensar que se trata de uma concepção

relativista de mundo, mas preferimos pensar que se trata menos de

uma relativização do absoluto (de tal modo a se admitir que não

haja qualquer papel para um operador verdade objetivo) que de uma

absolutização do relativo, onde se pensa que verdades são

possíveis e úteis, mesmo que carregadas de negatividade. Essa

negatividade resta então menos que subjetiva, referida aos

sujeitos dos discursos, e mais objetiva. O que significa mais do

que dizer que os objetos jamais possam ser captados pela razão em

sua plenitude, à maneira kantiana; mas que a razão, que se instala

justo quando o pensar começa a operar, estabelecendo uma relação

sujeito/objeto, capta do objeto justo o principal: a sua

negatividade radical – qual seja de que ele próprio é finito,

instável, estado de passagem a outro estado. Sendo possível um

“pensamento do conceito”, à la Hegel, que capte justamente essa

unidade na negatividade, é possível uma verdade que se estabeleça

no conhecimento do que chamamos o algoritmo da mudança, que é o

que há de mais essencial a ser conhecido. Afinal, como bem o diz

Safatle (2012):“Em Hegel, o conceito traz as cicatrizes do fracasso reiterado emapreender aquilo que se dá como conteúdo da experiência. E se as feridasdo espírito se curam sem deixar cicatrizes é porque o conceito aprendeque, em certos momentos, fracassar a apreensão do conteúdo é a únicamaneira de manifestar aquilo que é da ordem da essência dos objetos”.

O pensar conceitual é o grande legado da filosofia hegeliana

apreendido por Marx. Este entendeu bem que para apreender a

verdade do mundo em sua objetividade máxima seria preciso entender

a essência social e histórica das concepções do sujeito que não

podem ser separadas do movimento da própria realidade objetiva.

Por isso mesmo o conceito de mercadoria, por exemplo, não poderia

jamais ser pensado por Aristóteles, tendo em vista que não havia

condições objetivas para a existência da mercadoria na sociedade

aristotélica. Se existe um conceito de mercadoria é porque ele

existe acima e/ou ao lado das “n” mercadorias particulares. Um

pensar conceitual estaria preparado assim para perceber as coisas

para além de sua percepção no imediato, não num um além

transcendental (como poderia querer um Pareto1), mas inserido no

contexto histórico-social.

É importante começarmos nossa reflexão aqui sobre o pensar

conceitual de Marx, a partir da dialética de Hegel, porque é essa

compreensão que faz da identificação das contradições que movem a

sociedade o diferencial da obra marxiana. Por outro lado, é a

dificuldade em conviver com a contradição (seja no mundo real, da

ação política inclusive, como no discurso científico) - o ser e

não ser ao mesmo tempo isso e aquilo - que explica um sem número

1 Numa demonstração ímpar de preconceito contra o raciocínio mais complexo,Pareto irá fazer o elogio da redução dos objetos à sua percepção na realidadeimediata pelo sujeito (o que deixa sem problematizações todo o jogo derepresentações que os torna de fato apreensíveis por nós). Em seu Manual deEconomia Política, ele se solidariza com Diógenes e ridiculariza Platão por este terolhos que vêm coisas demais, uma vez que viam uma “essência da xícara, qualidadede ser uma xícara, a xícara em si”, por trás da xícara. Diz ele: “Devo confessarao leitor que sou quase tão cego quanto Diógenes, e que a essência das coisas meescapa inteiramente” (PARETO, 1996, p. 53).

de simplificações dessa mesma obra. Assim antes de analisarmos

cada uma das três inverdades que acreditamos subsistirem dentro do

universo marxista é preciso que exploremos, ainda que

marginalmente, porque estas inverdades puderam ter lugar.

Citamos no título desta seção dois pares de oposições

hegelianas (imediato x mediato e senhor x escravo) que, a nosso

ver, uma vez mal compreendidas em sua íntima relação, irão dar

numa compreensão equivocada - promovendo mais o julgamento moral

preso às formas presentes que a compreensão dialética que entende

o movimento de passagem de uma forma a outra2. Logo, para não

termos uma compreensão estática, maniqueísta ou moralista das

oposições marxianas que são nosso objeto aqui - roubo x lucro,

capitalistas x trabalhadores, e estado de classe x de todos (que

esconde uma outra contradição entre eternidade das instâncias de

mediação x fantasia da sua superação), precisamos fazer um detour

rápido à dialética hegeliana do imediato x o mediado, e do senhor

x escravo.

A difícil reflexão hegeliana na Fenomenologia do Espírito almeja,

como salientado por inúmeros intérpretes3, tornar-nos conscientes

de quão pouco o somos do como processamos as nossas experiências.

Para tanto, em primeiríssimo lugar, Hegel deverá mostrar como a

“certeza sensível” não é certa de nada. O que a princípio parece

dizer a coisa na sua máxima plenitude porque capturada no “aqui e

agora”, aparentemente poderoso justo porque não requer qualquer

mediação, é na verdade uma ilusão pois, i) só capta da coisa o seu

momento que ii) só é neste momento, neste lugar, e esta coisa

2 É por isso que a defesa da ação consciente dos homens sobre a história quepropõe o marxismo está longe de ser voluntarista. O socialismo científico requerpois a compreensão das contradições. Se queremos atuar na história temos dereconhecer que a herdamos em movimento. Para decifrar o código desse movimentonão podemos estabilizar os opostos nas suas formas presentes, mas ver como estasestão se alterando mutuamente.3 Vide os comentários de Henrique Vaz na apresentação desta obra onde oestudioso mostra o porquê de Hegel chamar a Fenomenologia de a “ciência daexperiência da consciência” (HEGEL apud VAZ, 1992, p. 10).

precisamente, justo por não ser outro o momento, o lugar, ou outra

coisa qualquer. Ou seja, mesmo o este/isto, aqui, e agora, só são

o que são comparados a outros estes/istos, aquis e agoras. Estes

dêiticos são meros indicadores4, sendo que o que mais indicam é

quão insuficientes são para dizer da coisa o que ela é. Isto só

seria possível tendo outras coisas como parâmetros. Como diz

Safatle (2012) eles são algo como shifters, unidades gramaticais que

só podem ser definidas junto ao que referem, ao ato mesmo de

enunciação, funcionando dentro de um contexto, portanto. Logo,

impõe-se uma estruturação de contextos para compreendermos as

designações que se dão dentro destes. É o necessário ‘isto em

relação a que?’. Isto significa impor uma distância entre o

imediato e o real, e uma aproximação deste com a linguagem (e todo

o jogo de representações que lhe será sempre, de algum modo,

anterior). Ou ainda, não existe um imediato, virgem, natural,

onde a compreensão do que está a ocorrer é instantânea. Mesmo o

imediato é fruto de mediações.

Vemos o convite hegeliano como, de certo modo, humilde.

Trata-se menos do estabelecimento de um “tribunal da razão” (Kant)

que fiscaliza os usos e abusos desta no seu exercício de apreensão

do real, e mais do reconhecimento de que a falha é estrutural -

pois que há uma “exterioridade irredutível do sensível ao

dizível”5. Mas trata-se de uma humildade relativa, uma vez que

4 Como explica Paulo Arantes: “O dêitico ‘agora’ não remete à ‘realidade’, nem aposições objetivas no tempo, mas à enunciação, cada vez única, que o contém eassim reflete seu próprio emprego, ou seja, remete à mensagem, é enfim auto-referencial ou, na língua hegeliana, mostra-se como ‘simplicidade mediatizada’”(ARANTES, 1977, p. 389).5 Toda vez que vamos dizer/pensar algo, o designamos como um universal que elenão é; enunciamos o sensível como um universal, sendo que universais sãopróprios da nossa linguagem e não do real. Como diz Hegel: “O que dizemos é:isto, quer dizer, o isto universal; ou então: ele é, ou seja, o ser em geral. Com isto,não nos representamos, de certo, o isto universal, ou o ser em geral [pois nãotemos a menor ideia de quantos caberiam nessa designação], mas enunciamos ouniversal; ou, por outra, não falamos pura e simplesmente tal como nós os‘visamos’ na certeza sensível. Mas, como vemos, o mais verdadeiro é a linguagem:nela refutamos imediatamente nosso visar, e porque o universal é o verdadeiro dacerteza sensível, e a linguagem só exprime esse verdadeiro, está pois totalmente

Hegel acredita que o conceito pode fazer a reconciliação entre o

significado da coisa e o seu designar pela linguagem.

Não podemos nos deter aqui a explicar como seria isso6, apenas

deixamos marcado que, é ao se relacionarem entre si, que todas as

coisas, umas e outras, vão determinando seus limites de

existência. Mas, o importante para nós, é reter que a consciência

só alcançará a verdade das coisas quando se perguntar sobre quais

são os processos sociais que sustentam suas expectativas

cognitivo-instrumentais, dado que, como dirá Brandon, não há uma

só ideia transcendental que não seja uma instituição social7. Isso

significa que o pensamento não é uma mediação do meu cérebro com o

mundo externo, mas o legado das mediações anteriores, de todos os

homens que me antecederam com seus mundos, que funciona como pano

de fundo para que eu registre o meu.

Acreditamos que o que foi dito até aqui seja suficiente para

mostrar como a dialética hegeliana aponta para um exercício

radical de mediação. Mas ainda assim falamos desse processo em

abstrato. Uma maior concretização dele encontramos no próprio

Hegel e em sua dialética do Senhor e do Escravo (DSE). A tese

geral de Hegel é que: "A consciência-de-si é a reflexão, a partir

do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a

partir do ser-Outro" (HEGEL, 1992, p. 120). E isso valeria tanto

para a razão universal, que ao longo da história vai tomando

consciência de si nas controvérsias nas quais vai se enredando,

como para a consciência individual (lembrando que a possibilidade

de que haja uma consciência individual é também um produto dos

excluído que possamos dizer o ser sensível que visamos” (HEGEL, 1992, p. 76).6 Remetemos o leitor à leitura do próprio Hegel, facilitada recentemente pelosesforços de Safatle, 2012.7 Como explica Safatle, a consciência compreende que suas “expectativascognitivo-instrumentais” são dependentes de modos de interação e de práticassociais. Algo como se fosse prévio a toda operação de conhecimento aconfiguração “background normativo socialmente partilhado, no qual todas aspráticas sociais aceitas como racionais estão enraizadas.” Daí Safatle concluircom Brandon que: "toda constituição transcendental é uma instituição social”(SAFATLE, 2012, aula 15).

tempos). Qualquer ideia só se formula contra uma outra, como

também qualquer forma de organização da matéria. O interessante da

DSE é que há um intrincado de relações entre estes dois pólos –

ideia e matéria –, indo da carência (onde se quer submeter a

matéria às nossas necessidades, destruindo-a), ao trabalho (onde

se transforma a matéria segundo uma intenção), que vai dar as

bases para o reconhecimento, mais limitado - Senhor (S) - ou mais

potente - Escravo (E). Mais uma vez não podemos explorar aqui

todos os argumentos e desdobramentos da análise hegeliana, logo

vamos nos atentar apenas para o que mais nos interessa.

O ponto de partida da DSE é a luta de vida e morte, tanto dos

homens com a natureza, como dos homens entre si. Nesta segunda,

fica ainda mais evidente que é uma situação que coloca um (o

vencedor) como S e outro (perdedor) como E. Mas os pólos opostos

nessa luta não têm qualquer identidade prévia, natural, apenas com

sinais trocados; de fato, eles vão se constituindo, se

determinando, nessa luta. O interessante é que, a posição do S no

conflito aponta desde saída para um paradoxo, pois, se “a

consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para

si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido" (HEGEL,

1992, p. 126), e o outro E não aparece para o S como um Outro

igual (ou seja, um verdadeiro Outro, um igual em quem possa recair

a diferença), logo o S vive um impasse. Este paradoxo só faz

crescer se sabemos ainda que a oposição do S e E no conflito

guarda também uma relação específica de mediação com a

coisa/matéria que é, por sua vez, condição para a mediação entre

consciências. Ou seja, haveria não só uma limitação para o

reconhecimento da consciência de si do S no seu Outro (E) porque

esse Outro não aparece como tal (como Outra consciência) mas como

objeto (subjugado às ordens daquele), mas também uma relação entre

S e o mundo objetivo que guarda ainda novas dificuldades de

reconhecimento. A relação do S com a coisa (por conta da relação

que tem com o E) é reduzida a uma relação de consumo, destruição

da coisa.

O paradoxo do S ilustra bem como a consciência se recusa num

primeiro momento a se render às mediações. A tentativa do S de se

afirmar suprimindo seus vínculos de dependência para com o mundo

objetivo exterior e para com a outra consciência-de-si, a fim de

se afirmar em sua pura imediatez, está fadada ao fracasso uma vez que

só faz tornar-se mais dependente de ambos. Sendo a consciência-de-

si dependente da negação do outro como Outro, e assim também

negação da coisa, ela não é certeza de nada. Por outro lado, o E

só irá reconhecer-se na mediação, uma vez que este vê sua essência

na coisa, resultado de um trabalho que ele produz, mas que sequer

produz para a satisfação de suas necessidades particulares.

Segundo Hegel isso confere independência ao E, ainda que não o

retire da condição de escravidão, dado que sua essencialidade

(independência) está posta nas mãos do S que dispõe de sua vida e

trabalho. De todo modo, o sair da particularidade e imediaticidade

do desejo (ao qual está preso o S) coloca o E em relação com o

universal, o qual ele passa a trabalhar dado seu condicionamento

imposto. Uma relação que não se definirá apenas por sua dimensão

de negação. Ou seja, a submissão ao outro do E ainda joga um papel

positivo porque não fica na dissolução, "mas se implementa efetivamente no servir. Servindo, suprime em todos osmomentos tal aderência ao ser-aí natural e trabalhando-o, o elimina. Maso sentimento da potência absoluta em geral, e em particular o do serviço,é apenas a dissolução em si e embora o temor do senhor seja, sem dúvida,o início da sabedoria, a consciência aí é para ela mesma, mas não é aindao ser para-si; ela porém encontra-se a si mesma por meio do trabalho".(HEGEL, 1992, p. 132).

Essa relação entre trabalho e consciência superior a

encontraremos também em Marx e na defesa do proletariado como

classe revolucionária. Já em Hegel vê-se o trabalho (objetivo,

material, mesmo quando intelectual) como produtor da consciência

(subjetiva). A consciência de si aparece pois não como fruto de

uma “dedução transcendental”, mas como resultado de um processo

social de reconhecimento realizado no interior de práticas de

interação social. O trabalho do E sobre a matéria mostra que as

relações de mediação que este estabelece, com as necessidades e

aspirações do outro que o subordina, é também possibilidade de

passagem para um outro ainda mais universal. Com isso Hegel prova

que existe uma racionalidade em operação nos modos mais

elementares de interação social8.

Em suma, a filosofia hegeliana herdada por Marx, mostra como

nada, coisa alguma, fenômeno algum, nos é dado, é exclusivamente

natural, mas que nossa participação ao tentar dizê-los, percebê-

los, é que os produz enquanto tais. Vimos como o próprio Hegel vai

inserir o trabalho como fator maior de mediação entre o sujeito e

o objeto (do qual carece, forma e se expressa através). É esta

herança hegeliana que faz do trabalho em Marx um fundamento

ontológico, ou próprio à existência dos homens9, e não uma

descoberta científica, lógica, que explicaria, por exemplo, os

preços numa dada sociedade. O trabalho (suas formas e relações) é

que, ao contrário, explicaria porque há sociedade onde coisas têm

preços. Dito isto, o trabalho aparecerá em Marx como também sendo

8 Esta racionalidade também está presente em Marx, uma vez que o que odiferencia, por exemplo, dos economistas políticos que o antecederam, é que otrabalho não tem para ele uma dimensão empírica imediata de dispêndio deenergia, mas resulta de “práticas de interação social” por sua vez resultantesde um certo modo de lidar com a matéria (aí a dimensão técnica das “forçasprodutivas” do seu pensamento) e um modo de lidar com os homens (aí a dimensãosocial da “luta de classes”). O desvelamento da forma mercadoria só foi possívelpor Marx acreditar, como Hegel, que há nas práticas sociais uma racionalidadeobjetiva que compartilhamos, algo como uma gramática a estruturar uma linguagem.A mercantilização das relações, o cálculo de valores, que Marx viu nocapitalismo, era assim algo como uma gramática social, conferindo uma certaracionalidade (a do cálculo) às práticas de interação social. Apontar seualcance (revolucionário inclusive) e seus limites perversos, a partir de certomomento, era sua tarefa científica e política. Tarefa esta que, como veremos aseguir, não desempenhamos a contento se perdemos o movimento por trás dasformas. Se congelamos as formas aparentes apenas porque já sabemos lidar comelas, perdemos justo o que interessa, o movimento da história, onde quanto maisconscientes, mais atuantes somos.9 Vide CAMPREGHER, 1993, onde se faz uma investigação do trabalho comofundamento ontológico da construção marxiana.

passível de ser visto como a chave para a compreensão de uma certa

“gramática social” (daí o valor ser apenas um dos signos) que

estrutura (numa determinada dimensão) a sociedade burguesa. Ou

seja, só compreendendo todo o contexto – no seu vir-a-ser – pode-

se alcançar a contradição que é então estruturante (e motora) do

todo social. Só por partir da totalidade em movimento (vendo o link

entre as formas finitas de cada tempo) é que Marx consegue centrar

na “forma mercadoria” do produto do trabalho o segredo da

estruturação e da dinâmica do modo de produção capitalista. Daí

ver a gênese deste no processo de generalização daquela forma (o

que inclui a transformação em mercadoria do trabalho, bem como da

terra e do capital, mesmo não sendo coisas). Daí ver na

contradição entre o trabalho coletivo – produtor de mercadorias -

e a apropriação privada dos seus frutos, a condição para o

desenvolvimento da acumulação capitalista que já de início, nega o

trabalho como medida original do valor (como Marx mostra no Capital)

e que, ao fim, nega o trabalho como fundamento da produção de

riqueza10.

O que fica evidente para o leitor atento11 é que i) o trabalho

que gera a mercadoria (seja no aspecto coisa concreta e útil, seja

no aspecto de veículo de trabalho social), ii) que possibilita o

cálculo do valor (relacionado àquele segundo aspecto), iii) que

justifica a continuidade do processo de valorização via

incorporação em máquinas e equipamentos do mais valor obtido na

produção e venda das mercadorias produzidas, é o trabalho social,

combinado, dos muitos trabalhadores individuais que não tem como

produzirem sozinhos ou associadamente.

O que ocorre pois é que é a mediação desaparece da vista dos

homens. Já de início, desaparece na troca, onde o dinheiro é que10 Ambos os aspectos são bastante explorados em CAMPREGHER, 1993.11 Talvez devêssemos dizer o leitor não preconceituoso com a reflexão filosóficae também antropológica mais presente no jovem Marx, reflexão esta recusadaequivocadamente, a nosso ver, pelo marxismo estruturalista althusseriano (o queé explorado também em CAMPREGHER, 1993.

aparece como trabalho imediatamente social – o que deveria revelar, mas

ao contrário vela, o segredo das sociedades mercantis onde ele

domina. Mais tarde, com o surgimento da maquinaria e ainda de toda

uma superestrutura administrativa da produção, vai ficando cada

vez mais, ao mesmo tempo óbvio e difícil, ver como se combinam as

várias formas de trabalho. Primeiro o uso da maquinaria aparece

como meio privado de produção que se contrapõe aos trabalhadores

como algo que lhes é externo, algo que os subjuga e subordina e

não algo criado por outros como eles. Depois, a complexidade do

todo social aparece cada vez mais como um sistema de coisas. É nesse

ponto que vemos Marx e Engels caírem sob o encanto do

desaparecimento da necessidade das mediações, colocando o

comunismo como um estado de coisas onde “o governo das pessoas é

substituído pela administração das coisas”, onde o processo de

produção traria a socialização por seus próprios meios, e onde “o

Estado extingue-se”12.

Veremos a seguir como a falta desta reflexão dialética que

aposta nas mediações sócio-históricas produtoras de formas (que

por sua vez estabelecem mediações entre si), gera compreensões um

tanto simplistas e equivocadas como: a mais-valia ser roubo, o

capitalista ser alguém que não trabalha e o estado ser um mero

escritório da burguesia.

2) A mais-valia não é roubo cometido contra indivíduos na

circulação isolada, é expropriação do trabalho social numa

mediação permanente entre produção e circulação.

Nosso ponto de partida aqui não é apenas o que Marx expõe a

respeito de que o “roubo” é uma melhor caracterização de processos

que se dão na circulação, entre indivíduos e que não tem

sustentabilidade de longo prazo (a não ser com a ajuda de

12 “O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e peladireção dos processos de produção. O Estado não será ‘abolido’, extingue-se”(ENGELS, 1977, p. 332).

violência), mas ainda que: i) sem uma teorização em torno da

correspondência entre valores-trabalho e preços de produção (que,

grosso modo, devem levar em consideração regras sociais outras, que

não os valores na distribuição reiterada do excedente13) fica sem

sentido qualquer intenção de mensuração rigorosa da mais-valia; e

ii) independente da correlação entre valores e preços, ou seja,

mesmo pensando apenas em termos de valores absolutos (e não

valores de troca), o fato de que o trabalho envolvido na produção

é cada vez mais separado de suas partes intelectuais (que são

incorporadas à maquinaria ou repassadas a outros trabalhadores),

que também se vê acrescido de atividades novas, implica que a

medida universal originária vai perdendo utilidade

contraditoriamente quando ganha ainda mais universalidade.

Marx na sua tarefa maior de explicitar a especificidade

histórica do capitalismo começa por diferenciar roubo do lucro

capitalista uma vez que este seria criado (do nada, ou, mais

propriamente de uma situação que não existia antes) e não seria

obtido graças ao que ele chamava a “violência extraeconômica” –

que dominou a história pregressa do capitalismo14 e foi13 Esse modo de pensar pode parecer próximo dos “marxistas críticos” (comoPOSTONE, 1993) que duvidam da eficácia da lei do valor e de toda uma ênfase queo “marxismo tradicional” dá à exploração em detrimento das análises mais atentasàs mudanças de formas de sociabilidade. Mas há análises marxistas que conseguemvalidar a ideia de exploração justamente apelando para as formas concretas desociabilidade (como PAULA, 2000). São análises que criticam ao mesmo tempoabandonar a teoria do valor ou validá-la numa operação completamente estranha aomarxismo, de construção de sistemas de determinações simultâneas de valores epreços a partir de uma quadro de equilíbrio geral. Como sugere Paula, há queconstruir sistemas que captem a não automaticidade das passagens sucessivascirculação-produção-circulação, de modo a captar o que há de mais concreto: “oselementos da concorrência: as modalidades concretas de extração da mais-valiaoperada pelos outros capitalistas; a dinâmica do progresso tecnológico; a‘politização’ dos preços decorrente da atuação do Estado; a entrada de novoscapitalistas no ramo da produção considerado; as modificações no gosto e naspreferências dos consumidores...” (PAULA, 2000, p.119).14 Sohn-Rethel resume bem este ponto ao dizer que: “A distinção decisiva entreantigos e modernos é que só entre os modernos a produção de riqueza provém daprodução de mais-valia, e não da apropriação (portanto puro deslocamento depropriedade de valores existentes). Nos clássicos antigos a formação de riquezaera essencialmente de tipo extra e não intra-econômico, ou seja baseada no rouboe exploração de outras comunidades e de estrangeiros, portanto na submissão adever tributário ou na transformação em escravos” (SOHN-RETHEL, 1989).

preponderante ainda na fase dita da acumulação primitiva já na

transição para este15. Não provém pois do comprar barato e vender

caro próprios da enganação, do segredo, de relações de poder e

favor, mais marcadas por contingências que por qualquer forma de

racionalidade impessoal. O lucro capitalista provém da

racionalidade no processo de exploração do trabalho, que ganha

assim um significado moral seu – explorar é tirar o máximo,

combinando as capacidades e habilidades individuais de modo a

obter a máxima produtividade, o que significa reduzir o custo, em

trabalho, ao menor possível e a frente dos demais produtores. Se

há uma questão a ser denunciada aí é que os trabalhos privados só

são passíveis de serem combinados pelo capitalista porque os

produtores não podem fazê-lo eles mesmos, dado o processo anterior

que lhes destituiu da posse dos meios de produção, este sim, um

processo marcado pelo roubo.

Desse modo, a mais-valia é uma expropriação de sobre-trabalho

mas não é roubo porque não se trata de iludir ou ludibriar os

trabalhadores na esfera da circulação mas de se criar valor novo

na esfera da produção. O problema é que, como salienta João

Antonio de Paula (2000, p. 122), a circulação se imiscui na

produção:“os capitalistas, de posse das informações de mercado, buscam a cadamomento tanto adequarem suas estratégias competitivas, quanto seusrelacionamentos com fornecedores e clientes, e, sobretudo, suas políticasde salários, organização do trabalho e inovações tecnológicas, de talmodo que, de fato, há uma permeabilidade permanente entre as esferas dacirculação e da produção”.

Este tipo de reflexão faz com que muitos marxistas nos nossos

dias se empenhem em construir modelos de determinação de valores e

preços não inspirados em resolver o problema da transformação mas

em entender a dialética da relação valor-preço (PAULA, 2000), o

que significa menos construir modelos matemáticos à la equilíbrio15 O que não significa que práticas dessa natureza não estejam presentes aindahoje, como mostra Harvey (2011) ao falar da “acumulação por espoliação” quemarca o capitalismo financeiro dos nossos dias.

geral que construir modelos efetivamente dinâmicos e concretos

onde o papel da esfera da circulação e da mercadoria sejam

fundamentais para criar os signos e a estrutura gramatical onde se

darão as relações de produção propriamente.

Chamar a atenção para a “anterioridade lógica e histórica da

esfera da circulação” (PAULA, 2000) é, partir desta esfera, como

dissemos na seção anterior, como de uma instância de mediação,

socialmente compartilhada, que funciona como pano de fundo para o

posicionamento dos indivíduos no processo que se dá a seguir, a

produção. No capitalismo, esta instância é o mercado, e o que há

nele, as mercadorias e seus preços. Ao marxismo será fundamental

mostrar, como Marx no Livro I d’O Capital, que por trás dessa

aparência de imediaticidade há todo um mundo de mediações, mas,

contudo, apenas alguns marxistas notarão que algo desta

imediaticidade veio pra ficar. Ela se impõe justamente porque é

fruto da construção social anterior, e, como tal, está sempre

condicionando as ações de cada capitalista, cuja reação a alterará

no futuro. Mas, o que importa ressaltar é que a extração de mais-

valia será ao mesmo tempo o fator de ajuste no interior das

estratégias de sobrevivência dos vários capitalistas que irá

definir, para o sistema como um todo, trajetórias mais ou menos

dinâmicas em termos tecnológicos, distributivas, financeiras, etc.“Para cada nível de preço do produto, e para cada nível da taxa de juros,os produtores em função de sua estrutura técnica da produção e dasrelações concretas das relações de dominação do trabalho, adotarãoestratégias que implicam em tentativas de renegociar preços de capitalconstante, salários, juros e alugueis, redefinição da jornada detrabalho, esforço de venda, busca de subsídios, incentivos e proteção,etc. Contudo, a grande e fundamental estratégia que os produtores podemadotar, é a alteração das formas concretas de extração de mais-valia.”(PAULA, 2000, p.126).16

Sendo assim, o que a consideração deste sistema de mediações

ligado à concorrência nos mostra é que “as mudanças não são16 Entre estas estratégias não se descarta a pressão para a diminuição dossalários, que seria pois algo como um retorno a formas pretéritas (maisassemelhadas ao roubo) da fase da acumulação primitiva.

sincronizadas e nem absolutamente proporcionais” (PAULA, 2000, p.

126), o que torna as massas totais de mais valia e lucro, bem como

as taxas de lucro medidas em termos de valor e de preços, apenas

tendencialmente iguais. Qualquer cálculo preciso é grosseiro e

ilusório, e mais, uma falsificação da própria dinâmica

capitalista.

Em suma, o que estamos vendo é que o capitalismo cria uma

ilusão de mensuração a partir da presença de certas formas

universais imediatas (o dinheiro da forma preço, o trabalho

abstrato da forma valor) que no entanto obscurecem o principal, a

natureza mediata delas próprias e da dinâmica do processo social

que lhes dá sustentação. Dialeticamente, se levamos a sério tais

mediações, o imediato não nos aparece mais em sua forma negativa

de mero possibilitador de medidas17 mas como um imediato

reconciliado, por exemplo, o trabalho social se reconhecendo como

trabalho social. Vejamos como isso pode ser a partir da evolução

das condições da cooperação que vão tornando cada vez mais

impossível a percepção das contribuições individuais.

Sabemos que, como coloca Marx, as características individuais

devem desaparecer de “n” modos na produção dirigida pelo capital.

No que diz respeito ao capitalista ele mesmo:"Um mínimo determinado e sempre crescente de capital nas mãos de todo ocapitalista é a premissa, bem como o resultado constante do modo deprodução especificamente capitalista. O capitalista deve ser proprietárioou detentor dos meios de produção a uma escala social: seu valor não tem,de ora em diante, nenhuma proporção com aquilo que pode produzir umindivíduo ou sua família. Este mínimo de capital é tão mais elevado em umramo de produção quanto este seja explorado de uma maneira maiscapitalista e quanto mais desenvolvida a produtividade social dotrabalho. À medida em que o capital vê aumentar seu valor e assumedimensões sociais, ele perde todas suas características individuais"(MARX, 1971, pp. 194-195)

17 Esse primeiro modo de aparição do universal é o que Hegel chama de universalabstrato, negação primeira do particular concreto. A segunda negação seriapositiva e concreta ela mesma. O que quer dizer aqui que o que se torna concretoé o imediato, social.

No que diz respeito aos trabalhadores, apenas na produção

manufatureira não sofisticada, os diferentes atributos individuais

eram a base da cooperação e os trabalhadores especializados

tornados especiais. E se num primeiro momento o aprofundamento da

divisão do trabalho irá reforçar a especialização, tratar-se-á já

de um outro movimento, onde se é especialista na execução de

simples movimentos, condição, por sua vez, de seu repasse para

sistemas mecânicos. Chegados a este ponto, temos o aprendizado de

gerações de trabalhadores convertidos num mecanismo que aparece ao

trabalhador como estranho, quando não inimigo. Sendo assim, o

processo de transformação da cooperação simples em grande

indústria é também um processo que vai do mediato, ou da mediação

visível (o social vindo da combinação de trabalhos individuais),

ao imediato visível (a máquina sendo o social imediato).

Não podemos nos deter aqui sobre as similaridades e

diferenças entre estas formas de cooperação, em Marx e em todo um

debate entre marxistas depois dele18, mas nos importa mostrar que

em todos os casos o que está em jogo é o trabalho social, e não o

trabalho individual, como base da exploração do capital. Na

cooperação simples ou na manufatura pouco se modifica o processo

de trabalho herdado do artesanato e as mediações sociais -

ideológicas e políticas, entre as quais o uso da violência – que

são necessárias para se combinar o trabalho individual sob comando

do capital (o que implica que a mais-valia deva ser extraída por

meios despóticos); já na grande indústria tais mediações se tornam

desnecessárias (e a mais-valia é obtida de modo “mecânico”). Daí

Marx (1996b, p. 20) dizer que:“No sistema de máquinas, a grande indústria tem um organismo de produçãointeiramente objetivo, que o operário já encontra pronto, como condiçãode produção material. Na cooperação simples e mesmo na especificada peladivisão do trabalho, a supressão do trabalhador individual pelosocializado aparece ainda como sendo mais ou menos casual. A maquinaria,com algumas exceções (...), só funciona com base no trabalho

18 Para isto, veja-se, por exemplo, CORIAT, 1985; NETO, 1991; ANTUNES, 2002.

imediatamente socializado ou coletivo. O caráter cooperativo do processode trabalho torna-se agora, portanto, uma necessidade técnica ditada pelanatureza do próprio meio de trabalho.”

Os efeitos desse sistema onde “máquinas produzem máquinas”,

no que diz respeito à liberação de uma força produtiva sem par na

história, são amplamente conhecidos. Mas o papel central da

cooperação aí não fica claro, até porque ele irá transcender a

fábrica19. Que não se trate mais de um “aumento da força produtiva

individual por meio da cooperação, mas da criação de uma força

produtiva que tem de ser, em si e para si, uma força de massas”

(MARX, 1996a, pp. 442-443) é o que mostra que o trabalho coletivo

já é, então, imediatamente social. Não à toa, nos Grundrisse, Marx

vai falar que essa força produtiva cada vez mais socializada, cada

vez mais “geral”, aparece na sua imediaticidade como um

“indivíduo-social”."O que aparece com a grande coluna de sustentação da produção e dariqueza [é que] não é nem o trabalho imediato que o próprio ser humanoexecuta nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua própriaforça produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza por suaexistência como corpo social – em suma, o desenvolvimento do indivíduo social”.(MARX, 2011, p. 587; grifos nossos).

Mais uma vez, vemos reforçada a ideia de que o universal

trabalho abstrato não serve mais como medida, da riqueza ou da

exploração: “O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a

riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em

comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio

da própria grande indústria." (MARX, 2011, p. 589).

A realidade dos nossos dias mostra que é mesmo o capital que

resiste a abandonar o trabalho como fonte e medida do valor (com

19 E transcende porque antecede. É a cooperação que torna possível uma aparentenão cooperação, o cada um por si é o melhor para todos, no capitalismo. Curiosover como é justamente isso que diz Adam Smith, o primeiro a cantar as glóriasdos ganhos de produtividade advindos com a especialização e a maquinaria. Antesde ser um defensor da mão invisível e de um egoísmo natural, o que este tinha emmente era que a produção combinada de todos para todos era um pressuposto do seudesenvolvimento. Ou seja, o auto-interesse não é natural mas é um auto-interessecombinado socialmente. Vide CAMPREGHER; LONGONI, 2013.

toda precariedade que, como vimos, permite a atuação de uma lógica

da concorrência atuando paralelamente a uma lógica do valor),

preferindo a precarização a uma diminuição radical das jornadas,

entre outras práticas retrógradas ressuscitadas nesta fase de

“acumulação por espoliação” (HARVEY, 2011). Ao contrário, a utopia

guia de Marx para o socialismo é trocar as contribuições

individuais à produção da riqueza passada pelo potencial produtivo

de cada um (uma vez que a autonomia individual ganharia novo

significado) e as necessidades de cada um (uma vez que se partiria

do reconhecimento de que todos teriam direito imediato a alguma

parcela desse produto). 20

Enfim, vimos que não há propriamente um roubo no capitalismo

ainda que os ganhos do trabalho social sejam apropriados pelo

capital. Agora, defenderemos que o agente desta apropriação apenas

muito grosseiramente poderia ser caricaturado como ladrão ou

ocioso. Estas são caricaturas que, se já cumpriram um papel

histórico e político contribuindo para a construção de uma

identidade de classe dos trabalhadores datada do início da

revolução industrial21, hoje obstruem uma análise mais produtiva

teórica e politicamente. Isso não significa que apontemos para a

inutilidade da análise de classes, mas o oposto, a necessidade de

atualizarmos tal análise para reconstruirmos a identidade da

classe trabalhadora.

3) O trabalho de organização do trabalho e do capital alheio é

feito pelos capitalistas

Como víamos acima, o taxar de roubo a expropriação do

trabalho coletivo guarda equívocos porque o roubo é algo melhor

20 No comunismo “a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada umsegundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!” (MARX,2009).21 Não é assim um despropósito que Marx & Engels (2011, p. 28) tenham dito que:“há aqueles (...) que [no regime capitalista] trabalham e nada adquirem, eaqueles que adquirem qualquer coisa e não trabalham”.

estabelecido entre indivíduos, na troca, e ainda assim se a

tornamos estática, fora do tempo. Assim, o roubo sistemático entre

indivíduos não pode ser uma boa caracterização da nossa sociedade.

Isso não significa que não se possa dizer que uma classe rouba

outra, ou que um país roube outro, mas não é uma boa descrição do

processo, porque, afinal, há um processo envolvido (que o imediato

da ação roubo não capta)22, que transcende o fenômeno. Algo

semelhante acontece com o taxar de preguiçoso ou ocioso o

capitalista. A análise não tem sentido ao nível individual, não

apenas porque há efetivamente os que fazem ‘alguma coisa’ como os

que nada fazem, mas porque o que define o que é um capitalista é

que este seu fazer esteja a serviço do capital, mais propriamente

do seu processo de valorização do capital, o que ele faz

apropriando-se de tanto trabalho alheio quanto permitem a sua

posição na concorrência. Logo, a questão é: o que fazem os

capitalistas e por que, do nosso ponto de vista, isto que fazem é

também trabalho?

Em primeiro lugar devemos fazer menção ao conceito de

trabalho com o qual operamos. Em linhas gerais, entendemos o

trabalho como um dos fundamentos ontológicos da existência

humana23, ele abarca toda e qualquer mediação entre os homens e a

natureza, bem como dos homens entre si, que produza as condições

objetivas, materiais, da sua sobrevivência e do seu

desenvolvimento enquanto espécie de vida, mas ainda as condições

subjetivas que nos permitem o desenvolvimento da própria

individuação, o que implica também o desenvolvimento das

22 Como salienta Marx, ridicularizando Bastiat, roubos sistemáticos não existem,quer dizer, fora de um contexto de produção: “Verdadeiramente engraçado é osenhor Bastiat, que imagina que os antigos gregos e romanos teriam vivido apenasdo roubo. Quando porém se vive muitos séculos do roubo, tem que haverconstantemente algo para roubar, ou seja, o objeto do roubo tem que reproduzir-se incessantemente. Parece, portanto, que também os gregos e romanos tinham umprocesso de produção” (MARX, 1996a, p. 206).23 À la Hegel estes seriam três, o trabalho, o desejo e a linguagem. Para maioresdetalhmentos sobre a ontologia do trabalho em Hegel e Marx, vide CAMPREGHER,1993.

sociedades, e da humanidade em um sentido que transcende ao

natural24.

Não podemos desenvolver muito mais este conceito, mas

interessa marcar que ele confere ao marxismo não só uma teoria

crítica do capitalismo, mas uma teoria da história, cujo

fundamento está mesmo numa compreensão alargada do conceito de

trabalho25. Esta compreensão guarda bastante proximidade com a

teoria lukácsiana do trabalho como práxis e vai no sentido contrário

ao desenvolvido por certos marxistas críticos que jogam fora junto

com a centralidade do valor-trabalho e a ênfase no proletariado

como classe revolucionária (esta última de fato por vezes

exagerada num primeiro Lukács), a própria dimensão ontológica do

trabalho.26 No entanto, a perspectiva de autores como Postone, ao

descartarem um papel preponderante ao trabalho e preferirem as

categorias marxianas (principalmente a mercadoria e o capital)

como “capazes de abordar a sociedade capitalista como um modo de

vida social caracterizado por formas de dominação quase-objetivas

que sublinham uma dinâmica histórica específica” (POSTONE, 2004,

p. 53) é mais “amigável” com a nossa perspectiva de ver como

trabalho o que faz o capitalista que a perspectiva do marxismo

tradicional.

Retomemos então o fazer dos capitalistas justamente

acompanhando as dinâmicas históricas específicas. Bem sabemos que

nos primórdios da transição para o assalariamento e a produção

especializada para o mercado, a pessoa do capitalista – vinda do

comércio ou da produção ela mesma – não apenas arregimentava os

24 Segundo Mészáros, é por isso que o trabalho como "atividade com finalidade","atividade essencial da vida", é “anterior lógica e historicamente ao conceitode homem” (MÉSZÁROS, 198, p.112).25 É exatamente isto o que fizemos em CAMPEGHER, 1993.26 Entre estes, se destaca Moishe Postone (1993), com o qual concordamos em umasérie de questões mas não justamente com o ponto de partida de se fazer “umacrítica do trabalho, mas não do ponto de vista do trabalho”. Ao nosso ver é esteponto de vista que faz o marxismo ter uma teoria materialista e dialética dahistória.

trabalhadores que iria colocar num mesmo espaço como poderia

dividir o trabalho com seus contratados ao mesmo tempo que geria o

“chão de fábrica” e o todo do negócio (o que incluiria o trabalho

administrativo de compra de insumos e venda das mercadorias). Daí

dizer Hobson (1996, p. 74) da produção artesanal que:“O ponto fraco dessa economia estava nas complicações e incertezas nacomercialização do produto. Era aí que o comerciante, representando aforma mais antiga do capitalismo industrial, exercia pressão sobre oartesão-capitalista, que era seu próprio empregado. Tomando do pequenoprodutor o seu produto, pagando por ele, e assumindo as dificuldades, osatrasos e os riscos de encontrar consumidores para adquiri-lo a um preçoque lhe permitisse lucro, o comerciante o desobrigava da função para aqual ele tinha menos competência.”

É cada vez mais frequente pois que o agente financeiro que

assume os riscos do negócio passe a querer geri-los desde dentro.

Nesta fase o fazer do capitalista no chão de fábrica já não se

mistura aos dos subordinados, atendo-se a vigiá-los e observá-los

de modo a inventar novas formas de organização do trabalho, novos

processos e sistemas mecânicos27 – que viessem a simplificar e

substituir o trabalho, mormente onde ele é mais caro ou mais

organizado (MARGLIN, 1974). Além deste resta ainda o fazer

administrativo que, contudo, desde muito cedo também vai se

dividindo e sendo passado a funcionários até que o escritório se

pareça também com o chão de fábrica (BRAVERMAN, 1980). Mas é a

gestão dos resultados do processo produtivo, dos lucros obtidos,

que faz o capitalista, já desde o início, se especializar na

tarefa de planejamento do crescimento dos negócios, tornando o

proprietário dos meios de produção o responsável pela obrigatória

expansão do seu capital (tanto mais obrigatória quanto mais pese

sobre o capitalista a concorrência que o pode jogar nas fileiras

dos candidatos ao assalariamento). Desde então o capitalista se

especializará no cálculo estratégico do que fazer para ampliar

27 O que não significa que este trabalho inovador seja uma exclusividade docapitalista. Já Smith anunciava que tais inovações poderiam vir de homens defora da produção, pensadores, cientistas, além dos próprios trabalhadores.

produção e mercados tendo em vista a valorização. Este trabalho

exigirá um conhecimento profundo de “n” realidades espaciais,

temporais, além de um certo afastamento de motivações

particularistas de aventura, prazer ou sucesso. Daí o homem de

negócios ser um racionalista onde, como diria Weber (2010), o

método está adiante dos fins, e como diria Hirshman (2002), os

interesses substituem as paixões, e onde, como diria Marx, ele

seja a “personificação do capital”. Isso significa que o

capitalista “trabalhará” não para ficar rico ele próprio (ainda

que isso seja uma consequência) mas para aumentar o capital.

É verdade que, num certo sentido, isso signifique não que o

capitalista trabalhe, mas que ele não trabalhe mais. Agora que ele

é o “capital personificado”, o que faz é eleger seus

beneficiários, reproduzindo e aumentando (claramente de modo

relativo e por vezes mesmo de modo absoluto) as desigualdades.

Sim, isso seria verdade se então tivéssemos uma teoria que nos

explique de onde vem esta autonomia e esta liberdade do

capitalista, que o coloca sujeito e não fantoche do capital. Ou

retiramos seu ser livre e sujeito unicamente da riqueza que ele

dispõe? Se assim for, esta teoria existe, é a da desutilidade

marginal do trabalho frente a utilidade marginal do lazer, que

parte da naturalização (ou da posição mais que da pressuposição)

de que sejamos todos indivíduos, livres, iguais, e conscientes. Do

nosso ponto de vista quem é livre e sujeito aqui é o capital, não

o capitalista. Pode até ser que estes tenham mais condições de

virem a ser livres, mas isto, se se livrarem de servir ao

capital.28

28 Por outro lado, mesmo insistindo na designação do capitalista enquantopersonificação do capital veremos que este não representa tão somente apropriedade do capital, senão que é o responsável por realizar a movimentaçãoprodutiva do dinheiro entesourado que, portanto, passa a funcionar como capital.É nesse sentido que a função do capitalista se separa da sua mera designaçãocomo proprietário, o que faz diferenciar sua renda, o lucro líquido descontadodo juros referente ao prestamista. “O capitalista funcionante é pressuposto aquicomo não-proprietário do capital (...) a parte do lucro que cabe ao capitalistaativo aparece agora como ganho empresarial oriundo exclusivamente das operações

Na falta pois de uma teoria da liberdade, da emancipação, e

das possibilidades de individuação do capitalista29, haveria apenas

um outro senão, que as funções

administrativas/criativas/inventivas venham a ser todas ocupadas

por funcionários assalariados e não pelos proprietários/serviçais

do capital. Isso é verdade, mas i) se estas funções forem

consideradas estratégicas pelos próprios capitalistas não deverão

ser ocupadas por “meros trabalhadores”, os que o forem deverão ser

devidamente cooptados, e ii) não há porque pensar que estas

funções tenham um limite e sua super simplificação tornará o

capitalista e os seus completamente desnecessários, uma vez que a

função principal dos capitalistas visando a valorização do capital

consiste justamente em inventar necessidades! Já Marx sabia que os

capitalistas não desaparecerão por causa dos efeitos da divisão do

trabalho e da mecanização, trata-se de luta de classes e

dominação. E por isso eles têm de se justificar como classe, que

organiza e gere a exploração e a alienação, o que contudo, faz

deles também explorados e alienados.

Sendo assim, detalhemos um pouco mais o que consideramos ser

o trabalho (já não usaremos mais o neutro fazer), dos capitalista.

Sabemos que se trata de um trabalho bastante intelectual que um

dia foi dos próprios produtores diretos. E que estes só o perderam

ou funções que ele efetua com o capital no processo de reprodução,especialmente, pois, das funções que como empresário ele exerce na indústria ouno comércio” (MARX, 1984, p. 280).29 Uma teoria desta ao nosso ver teria de retomar o argumento hegeliano nadialética do senhor e do escravo (DSE). Poderia começar por reconhecer que se ocapitalista enquanto Senhor não vive de usufruir/destruir o objeto, mas separticipa de alguma maneira do processo de mediação, ele comunga algo aí com oEscravo/trabalhador. Por outro lado, se antes o Escravo era esvaziado devontade, o capitalista Senhor, também. Ao nosso ver o que esta aproximação teriade alvissareira esbarra no mesmo problema que já havia na crença hegeliana deuma reconciliação possível entre sujeito e objeto por meio da consciência. Mas opior é que mesmo o materialismo marxiano não colocou muito maior materialidadena crença do operariado como classe revolucionária, parecendo o raciocínio deMarx com o do próprio Hegel. Afinal definir os trabalhadores comorevolucionários porque não têm mais nada a perder não é transformar o abstrato enegativo em positivo sem mais? Voltaremos oportunamente a este tema.

porque antes o trabalho individual deu lugar ao trabalho

socializado. Como diz Marx (1996b, p. 137):“Na medida em que o processo de trabalho o é puramente individual, omesmo trabalho reúne todas as funções que mais tarde se separam. (...)Mais tarde ele será controlado. O homem isolado não pode atuar sobre aNatureza sem a atuação de seus próprios músculos, sob o controle de seupróprio cérebro. Como sistema natural cabeça e mão estão interligados, oprocesso de trabalho une o trabalho intelectual com o trabalho manual.Mais tarde separam-se até se oporem como inimigos.”30 (grifos nossos)

Entre as funções intelectuais que aparecerão como “inimigas”

não estão apenas aquelas diretamente ligadas à produção, mas

outras que lhes dão sustentação, e que o processo de divisão do

trabalho transformará em negócio também. Estas funções

intelectuais cobrem: i) as de planejamento e crescimento do negócio,

portanto, elaboração e encaminhamento das estratégias de

valorização dentro e fora (associações, conluios, e aplicações

financeiras) da produção; ii) as de direção e gestão do processo produtivo

ao nível micro (das unidades produtivas); iii) os desenvolvimentos da

técnica e da ciência aplicada à produção (se dando estas no nível micro

ou ainda num nível maior, digamos nos espaços que vão sendo

constituídos para a pesquisa e mesmo para o treinamento

profissional e a educação formal, que, contudo, se servem

diretamente àquele, também o transcendem); e iii) a estrutura legal-

constitucional-política-cultural que serve a legitimação da nova classe dominante.

Hoje, muitas destas funções estão contidas naquilo que se

chama (a nosso contragosto porque não existem fora da

30 Interessante notar com Cavalcante (2012, p. 9) que esta última frase nãoaparece na tradução francesa feita por J. Roy mesmo tendo sido esta revisadapessoalmente por Marx. No nosso entender Marx não quis usar aqui a expressão deoposição do trabalho manual com o trabalho intelectual, pois o significado dapassagem diz respeito à transformação do trabalhador individual em trabalhadorcoletivo, que “mais tarde será controlado”. Já na Ideologia Alemã, Marx se utilizada mesma ideia e anota ao lado que esta separação “coincide [com] a primeiraforma de ideólogos, padres” (MARX, 1996c, p. 56) – tão mediadores quanto oscapitalistas na concepção idealista do mundo com a qual Marx ainda dialogava.Este controle é típico da inserção do trabalho na manufatura capitalista e nãodiz respeito ao trabalho intelectual em si, mas aquele relacionado as funções desupervisão, engenharia, e outras que se assemelham as do próprio capitalista.Interessante notar que Marx “resolve” a questão no Capítulo VI Inédito, colocando ocapitalista como executor de trabalho produtivo.

materialidade) de “trabalho imaterial” (NEGRI; LAZZARATO, 2001),

mas não são muito distintas do trabalho intelectual inicialmente

feito pelos próprios proprietários/gestores na produção artesanal

clássica. Como dissemos o que ocorre é que a divisão do trabalho

alcança também estes processos a tal ponto de mecanizá-los, dado

que também as operações mentais podem ser simplificadas a ponto de

não as precisarmos mais executar, como bem ilustram, as antigas

máquinas calculadoras e registradoras, e os modernos

computadores31. É fato que este processo leva tempo e que, no

caminho, tenha produzido uma grande diferenciação também entre

trabalhadores32, que além de tornar mais difícil as estratégias de

unidade e identidade de classe na ação política e na análise

científica, deixaram transparecer que, se um dia o capitalista

trabalhou, agora ele não o faz mais.

De fato, nos parece mais consequente pensar que estas funções

ainda sejam desempenhadas em grande parte pelos capitalistas a

estas alturas tornados sócios majoritários. Senão vejamos o que

dizem Hobson (1996) e Lenin (2011), das funções de planejamento e

crescimento dos negócio, elaboração e encaminhamento de

estratégias de valorização dentro e fora da produção, organização

da expansão e divisão dos mercados, na fase do capitalismo

31 Segundo os manuais de arquitetura de computadores, estes nada mais são quemáquinas de armazenar e processar dados: “Todo e qualquer processamento dedados, por mais complexo que seja, nada mais é que uma combinação de açõeselementares baseadas em tomadas de decisões simples”(http://www.bpiropo.com.br/arqcom1.htm). O que vai de par com a reflexãosmitiniana de que a rotinização e mecanização alcançariam “a filosofia oupesquisa [tornando-as] como qualquer ofício, a ocupação principal ou exclusivade uma categoria específica de pessoas” (SMITH, 1983, p. 45). Pesquisadores nosnossos dias mostram os efeitos dessa superespecialização no mundo científico,padronizando conteúdos, empregando rotinas controladas, impedindo o remanejo,reforçando monopólios exercidos por indivíduos no topo da hierarquia dasequipes, frequentemente no lugar de quem decide sobre financiamento, concepção edivulgação do produto. (COUTO, 1999). Isso prova, para nós, que os da base,mesmo da produção científica se tornam, mesmo com status diferenciados, merostrabalhadores, e os do topo, capitalistas lucrando com o trabalho coletivo.32 Desde os “operários aburguesados” ou “aristocracia operária” de Lenin (2011),passando pelos “colarinhos brancos” de Braverman (1980), a “nova pequenaburguesia” de Poulantaz (1978), até os “analistas simbólicos” de Reich (2008).

financeiro e monopolista. Segundo nossos autores trata-se de um

processo que cria uma “oligarquia financeira”, que incluirá, ao

nosso ver, a incorporação de todo um staff de executivos à classe

proprietária (o que é facilita pelo regime das sociedades

anônimas). Que isto seja obrigatório, tem a ver com as próprias

condições de acirramento da concorrência em meio à crescente

concentração monopolista. Hobson (1996, p. 8), já no final do

século XIX advertia que:“Uma grande parcela do esforço intelectual engajado no mundo dosnegócios, está dirigida a experimentar e inventar métodosadministrativos, incluindo organização empresarial e financeira com oduplo objetivo de obter economias de escala do lado do custo de oferta e,desta maneira, monopolizar e controlar os mercados para impedir que estesganhos passem ao consumidor pela competição entre produtores.”

Não se trata aqui apenas de uma função a ser executada por um

tipo novo de funcionário, mas de serem os antigos proprietários e

os novos financistas os novos donos do poder. “A estrutura docapitalismo moderno tende a lançar um poder cada vez maior nas mãos dos

homens que manejam o mecanismo monetário das comunidades industriais — a

classe dos financistas” (HOBSON, 1996, p. 235; grifos nossos)33.

Que os proprietários (sócios majoritários) continuem ativos e

importantes no comando dessas operações não exclui que: i) deixem

de administrar suas empresas de origem, ii) grande parcela do

trabalho de gestão financeira não possa ser executada por

trabalhadores especializados que, mesmo bem pagos (e cooptados em

seus valores, costumes e estilos de vida) não se confundem com os

proprietários do capital, iii) não elimina que alguns dentre estes

não sejam alçados de fato ao seu grupo dos sócio proprietários, e

33 Na continuação do parágrafo: “Os pequenos financistas, como usurários ouemprestadores de dinheiro, viveram, em todos os tempos, dos transtornos einfortúnios da classe dos agricultores, artesãos e pequenos negociantes. Mas foisó depois que o desenvolvimento dos métodos industriais modernos exigiu um fluxogrande, livre e variado de capital, em muitos canais do emprego produtivo, que ofinancista deu sinais de assumir o posto de autoridade que hoje ocupa em nossosistema econômico. Cada passo importante que demos no sentido do desenvolvimentoda estrutura industrial contribuiu para afastar a classe dos financistas daclasse mais geral dos capitalistas, assegurando-lhe um controle maior e maisvantajoso sobre o curso da indústria” (HOBSON,1996, pp. 235-236).

iv) que todo um universo de familiares/dependentes destes dois

grupos não se tornem plenamente ociosos se dedicando

exclusivamente a dissipação e não a produção (real ou fictícia) de

riqueza. Sua função é ainda essencial se atentarmos para a

complexificação dos processos de gestão e construção de

estratégias de valorização quando da superconcentração e

centralização dos capitais. Ou ainda como diz Hobson (1996, p.

236):“O ganho em complexidade atingido pelos processos industriais, queresultou na formação de empresas separadas, a concatenação de uma longasérie de diferentes empresas, contribuindo diretamente para a produção detodo tipo de mercadoria, a relação de cada elemento dessa série comempresas dependentes ou subsidiárias, cada uma das quais é,individualmente, um elemento de outra série de processos ordenados emseparado, a interdependência dos processos manufatureiros ou comerciaismais amplamente divergentes, por meio do uso de uma fonte comum de forçamecânica ou de um instrumento de transporte, a expansão e conseqüentetransformação de mercados locais em mercados nacionais e mundiais, queconcretizam a unidade de sistemas industriais antes distintos eautossuficientes — em resumo, o funcionamento de tal organizaçãoindustrial importa um mecanismo delicado e intrincado de ajustamentos.Para que esse sistema possa funcionar correta e economicamente, torna-senecessário um instrumento automático para a aplicação de estímuloseconômicos e a geração de força produtiva em pontos de carênciaindustrial e uma correspondente aplicação de dispositivos de contenção empontos de excesso industrial: a força industrial deve ser distribuída deforma geral por todo o organismo, a fim de ser transformada em formasespecíficas de energia produtiva onde for necessário.”

O fato de Hobson (na esteira de Veblen) caracterizar os

especialistas em finanças - cuja tarefa seria “a direção

estratégica das relações intersticiais do sistema” e cujos métodos

aperfeiçoados de informações comerciais aumentaria enormemente o

espectro de investimentos (HOBSON, 1996, p. 236) – como um nova

classe, instalada entre os antigos proprietários que perdem o

controle direto de seus capitais, não implica que estes últimos

tenham se tornado meros dissipadores como em Veblen. Os

especialistas em finanças – alçados a sócios –, e os proprietários

– não mais controladores diretos de seus capitais originários mas

controladores indiretos de muitos capitais – é que são a classe

capitalista reconfigurada mas ainda correspondente a sua função

essencial, de fazer valorizar e acumular o capital. Se no início

do capitalismo o trabalho dos capitalistas era a organização dos

trabalhos cooperados, a partir do final do sec. XIX ele passa a

ser a organização do que Hobson chama dos “capitais cooperados”.

De fato, podemos dizer que o trabalho do capitalista na fase

das sociedades anônimas se assemelha ao da administração pública.

O capitalista na ponta de todo um conglomerado de empresas e

organizações parece mesmo o chefe de um governo – o que não

significa que se trate de um governo democrático34 ou voltado para

a equidade e a justiça; mas que sua função transcende os objetivos

particularistas de seus negócios originários, isso transcende. Tal

conclusão é semelhante ao que vemos na reflexão de Lênin sobre o

capitalismo monopolista e a importância nesta fase do capitalismo

da oligarquia financeira como condutora de uma lógica de

valorização que inclui uma racionalidade macro-estratégica que vai

reduzir a competição entre empresas e aumentar a competição entre

nações e a divisão do globo entre estas35.

34 Como diria Hobson: “Tendo, pois, a forma de uma democracia econômica, dotadade um governo elegível responsável, a sociedade anônima é, porém na maior partedos casos, uma oligarquia fechada: deseja-se o apoio monetário do público, masnão sua direção”. O que tornará seu governo bastante despótico, uma vez que“esse expediente de controle centralizado constitui a base racional de um poderfinanceiro que é responsável por grandes e perigosos abusos” (HOBSON, 1996, p.240). A atualidade desta reflexão de Hobson quase não exige comentários.35 Para Lenin no centro desta oligarquia financeira estariam os bancos afuncionar tal qual um “capitalista coletivo” mais racional. "Os capitalistasdispersos acabam por constituir um capitalista coletivo. Ao movimentar contascorrentes de vários capitalistas, o banco realiza, aparentemente, uma operaçãopuramente técnica, unicamente auxiliar. Mas quando esta operação cresce atéatingir proporções gigantescas, resulta que um punhado de monopolistas subordinaas operações comerciais e industriais de toda a sociedade capitalista,colocando-se em condições - por meio das suas relações bancárias, das contascorrentes e de outras operações financeiras -, primeiro de conhecer com exatidãoa situação dos diferentes capitalistas, depois de controlá-los, exercerinfluência sobre eles mediante a ampliação ou a restrição do crédito,facilitando-o ou dificultando-o, e, finalmente, de decidir inteiramente sobre oseu destino, determinar a sua rentabilidade, privá-los de capital ou permitir-lhes aumentá-lo rapidamente e em grandes proporções, etc." (LENIN, 2011, p.144).

As funções de conhecimento necessárias a estratégia de

expansão do capital carregam ao mesmo tempo algo de racionalidade

(superação de objetivos particulares) e irracionalidade

(reforçando interesses ainda particulares, de Nações associadas a

grandes grupos de capital); pois, se limitar a concorrência pode

significar racionalidade - menor desperdício de riquezas e

energias de trabalho – pode levar também a obsolescência

programada, ao “grande demais para quebrar”, e outras práticas que

geram custos sistêmicos exorbitantes além de impedir a seleção dos

processos mais eficientes e inovadores. Entre estas a produção da

especulação, como diria Keynes (1983), mais como regra que como

exceção: é o que aparece como a mais improdutiva e execrável das

modernas funções capitalistas. Mas mais uma vez, mostrar quão

perniciosas ou improdutivas estas sejam, ao nosso ver, só reforça

a necessidade de vê-las no seu conjunto.

Se temos em mente que nas sociedade modernas todo e qualquer

indivíduo participa de algum modo (mesmo que frequentemente

improdutivo36) do amálgama de trabalho tornado abstrato37 e viva uma

vida subordinada ao capital, mesmo não colaborando para a produção

de nenhuma forma de riqueza, produzindo serviços que (como as

finanças especulativas) ajudam na reprodução do sistema (com tudo

de irracional que haja nele), podemos ver que o capital explora e

aliena mesmo os seus donos.38

36 Apesar da importância que Marx dá a esta questão, não é absolutamente clara adiferença entre trabalho produtivo e improdutivo. Muitos autores, como Jappe(2006) alertarão que o que torna produtivo um trabalho qualquer é que o produtoque ele crie retorne a produção, consumido pelos demais trabalhadores ou usadopor eles como bem de investimento.37 Lembremos que, para Marx, o que torna indistintas toda e qualquer forma detrabalho não é o que ocorre num processo produtivo específico, mas ageneralização das trocas mercantis compatíveis com a liberação do trabalho devínculos obrigados. Daí Marx explicar porque era impossível para Aristótelesentender o valor. (MARX, 1996a, p. 187).38 Obviamente, as condições desta exploração e alienação divergem, mas podemosdizer que o que muda é a qualidade da gaiola, não o fato de o serem. De todomodo, haveria que fazermos pesquisas no intuito de mostrar o que nos pareceintuitivo, que nunca antes na história o fazer dos que se colocavam na posiçãode grupo no poder foi tão semelhante aos de seus subordinados. Seria o outro

Em suma, quisemos defender aqui que a especialização do

capitalista como gestor e estrategista mesmo que devolva para a

produção de mercadorias as tarefas mais intelectuais que ele

retirou dos produtores diretos na passagem para o capitalismo,

novas funções vão surgindo associadas ao crescimento da

complexidade do sistema. Se parte destas novas funções são

produtivas somente no sentido anárquico e irracional da reprodução

capitalista, outras vão no sentido de uma racionalização que se

choca inclusive com os desígnios da acumulação. Tais tarefas de

racionalização do processo produtivo, incluindo a distribuição,

devem sobreviver ao próprio capitalismo, mas desta vez não mais

executadas pelos capitalistas. Como e por quem, é o que deveremos

responder. Mas já antecipamos que nos parece algo fantasiosa a

ideia de que possamos dispensar todo o trabalho de mediação, e com

isto nos livrarmos do problema do poder. Ideia esta que figura na

formulação de Engels (1977, p. 332) sobre o comunismo como algo

onde “o governo das pessoas é substituído pela administração das

coisas”.

4) O Estado não é o escritório da burguesia, é o lócus de

articulação da dominação.

Podemos dizer que a forma burguesa do Estado se constitui ao

mesmo tempo que a sociedade burguesa, ou o capitalismo (mais

precisamente, europeu ocidental); que as classes burguesas vão

passando a dominantes justamente ao instituírem novas formas de

participação política junto a novas formas de vida econômica, o

que significa construir a instituição Estado ao mesmo tempo que o

mercado, e também a si mesma como classe orgânica. Trata-se como

sabemos de um processo lento, ainda que mais acelerado em algumas

partes do continente europeu. Sabemos que passado o momento

lado de todo uma agenda de pesquisa já existente que coloca enorme ênfase nopapel dos hábitos e modos de vida (à la Bordieu e outros) na diferenciação entreas classes.

inicial da acumulação primitiva e hegemonia do capital mercantil

(onde a burguesia comercial não se indenpendentiza dos favores dos

monarcas e estes, por sua vez, não se indepentendizam da nobreza e

não constituem uma figura política própria) será com a consumação

da Revolução Francesa que o Estado nacional adquirirá tal figura,

que se afigurará tão importante que Hegel o verá como “o princípio

racional em si e para si do homem”39.

Marx será um crítico da visão hegeliana do Estado onde este é

lócus (e agente) da reconciliação entre a particularidade - da

sociedade civil onde se situam os conflitos individuais e de

classes - e a universalidade - onde todos se reconhecem como

cidadãos de um Estado - via mediação da vida ética. A revolução

política burguesa seria assim, segundo Marx, parcial e

insuficiente uma vez que não realizaria a emancipação formal no

Estado para a realidade socioeconômica40. Se os interesses de

classes não podem ser objeto de uma síntese universal no Estado,

apenas o fim das classes o permitiria, o que traria a

desnecessidade, no comunismo, do próprio Estado. Porém Marx não

desenvolveu nenhuma teoria do Estado. De fato, o que há são

referências esparsas em sua obra onde este aparece, ora de forma

mais simplista como “comitê para gerenciar os assuntos comuns de

39 “O fim racional do homem é a vida no Estado.” (HEGEL apud INWOOD, 1997, p.124). “A essência do estado é o universal em si e para si, o racional davontade; mas enquanto é sabendo-se e atuando é pura e simplesmentesubjetividade, e enquanto efetividade é um só indivíduo.” (HEGEL, 2011, p.305). Perspectiva essa distinta de outra que funda o liberalismo, a de Kant,para quem a razão jurídica aparece como resultado da deliberação individual e arealização da liberdade como amparada nesta esfera. Ver “Resposta à pergunta: Oque é Esclarecimento?” e “Que significa orientar-se no pensamento?” In KANT,2008.40 “(...) o Homem se liberta por meio do Estado, liberta-se politicamente de umabarreira, ao se colocar em contradição consigo mesmo, ao se sobrepor a essabarreira de modo abstrato e limitado, de modo parcial. Segue-se, além disso, que oHomem, ao emancipar-se politicamente, o faz por meio de um subterfúgio, através de ummeio, ainda que seja um meio necessário” (MARX, 1996c, pp. 185-186). “O limite daemancipação política se manifesta, imediatamente, no fato de que o Estado possalivrar-se de um limite sem que o Homem dele se liberte realmente; no fato de queo Estado possa ser um Estado livre sem que o Homem seja um homem livre” (MARX, 1996c,p.185).

toda burguesia” (MARX e ENGELS, 2011, p. 13), ora de modo mais

complexo como “mediador entre o Homem e a liberdade do Homem”

(MARX, 1996c, p. 186), ou até mesmo não aparece, de modo a ser

acusado de despolitizar as análises sobre o capitalismo41.

Do nosso ponto de vista, uma investigação mais rica acerca do

papel do Estado (seja para a mera reprodução do capital, seja para

a ambiciosa emancipação humana) deve partir justamente das

diferentes formas que este assume, por mais que seja difícil

precisá-las. Para que se reconheçam estas mudanças de formas há

que se romper com a ideia de um conteúdo que lhes subjaz inerte,

e, ao contrário, ver nestas um espaço para a reconfiguração

daquele. Também há que se romper com a ideia de que tais formas

fazem parte de uma superestrutura (jurídica e política) em

separado de uma infraestrutura (econômica).

Mesmo sem avançar aqui no que seriam estas formas típicas42 em

diferentes períodos históricos43, gostaríamos de mencionar que as

formulações em torno do Capitalismo Monopolista de Estado (CME),

que motivou todo um debate entre marxistas entre os anos 50 e 80

do século passado44, e que parecem ter sido superadas nas

discussões, digamos, mais acadêmicas, ainda informam certos grupos

41 Ver FIORI, 1999.42 E sabedores das dificuldades que seria trabalhar com estes tipos que, comosalienta Marx (2009), são ficções, menos justificáveis que aquelas que usamospara as sociedades: “A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista, que existeem todos os países civilizados, mais ou menos livre de complementos medievais,mais ou menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico decada país, mais ou menos desenvolvida. Pelo contrário, o ‘Estado atual’ semodifica com as fronteiras de cada país. No Império prussiano é diverso do queexiste na Suíça, na Inglaterra é diferente do dos Estados Unidos. ‘O Estadoatual’ é, portanto, uma ficção”.43 Para construir “tipos ideais” mais complexos precisaríamos incluir nestesdeterminações que não se prendessem ao econômico. Apenas a título de sugestão,poderíamos pensar em algo como: i) o Estado Absolutista; ii) o EstadoConstitucional (republicano e democrático para dentro e imperial para fora) dafase de consolidação do capitalismo industrial; iii) o Estado do Bem-Estar, quese inicia no entre guerras mas se generaliza na fase pós segunda guerra; iv) oEstado Neoliberal, dos nossos dias (que substitui o Estado do Bem-Estar nocentro do sistema e o aborta lá onde no máximo se constituiu um Estado NacionalDesenvolvimentista).44 Para uma apresentação mais detalhada vide TEIXEIRA, 1983.

políticos marxistas que desconhecem as críticas a estas concepcões

como sendo limitadas a ver no Estado apenas o seu “lado coisa”,

como diria Poulantzas (1984). Tais considerações do papel do

Estado como mero instrumento é justamente o que queremos criticar,

pois estas não apanham a dimensão do Estado enquanto sujeito –

ainda que não livre e independente como nas formulações liberais –

mas como sujeito do qual nós mesmos, os críticos, somos partes

constitutivas. O que significa que participamos, ajudando a

construir o processo de dominação que recai sobre nós. São as

lutas e os conflitos, os quais o Estado media, que vão construindo

a própria materialidade desse Estado (daí Poulantazs falar em

“condensações materiais de conflitos”) e vão condicionando assim

as lutas futuras. Senão, vejamos...

Sabemos que nas formas primeiras de constituição dos aparatos

jurídico-políticos, acima e ao lado da sociedade civil, que marcam

o nascimento da forma Constitucional do Estado, encontramos uma

sua fundamentação na igualação entre indivíduos promovida pela

economia mercantil. Assim é que Marx, partindo da submissão do

Estado à sociedade civil, reconhece que existe nesta uma “relação

de direito” anterior (já algo “superestrutural”), que será

instituída pelo Estado e sua superestrutura jurídica e política45.

As origens do contrato político estão na própria generalização da

produção mercantil e na sua liberdade e igualdade necessárias para

a efetivação da troca econômica de mercadorias. Isso significa que

desde a saída os “indivíduos não são apenas suportes mas sujeitos

45 Devemos assim relativizar argumentos que supõem que nas sociedadescontemporâneas a tradição tem pouca ou nenhuma relevância; pois só tem poucarelevância se pensarmos que ela se apresenta no aparato estatal como umordenamento racional burocrático diferente. No entanto, “o surgimento e aconsolidação de um quadro jurídico e político separado, ao qual todas as outraspartes da superestrutura têm de estar sujeitas, deve sua determinação a fatoressócio-históricos muito mais recentes que a constituição original da superestruturacomo costumes e tradição. (...) [Esta] continua sendo o constituinte estrutural eontologicamente fundamental, não obstante a posição dominante da lei e dapolítica ao longo da história das sociedades de classe” (MÉSZÁROS, 2011, p.103).

de direito. A relação é assim ao mesmo tempo econômica e jurídica.”

(FAUSTO, 1987, p. 295).

Todavia, importa ressaltar que há um salto entre as relações

contratuais na troca e a sua hipostasiação pelo Estado; algo como

uma transposição do direito (pressuposto) para o Direito (posto)46.

Salto este que anda de par com um outro que, no lugar da harmonia

contratual baseada na equivalência de valores, estabelece o

conflito entre possuidores e despossuídos de meios de produção tão

logo eles se tornem conscientes disso, uma vez a base contratual

econômica originária ao adentrar os movimentos do capital, gesta a

apropriação de trabalho e a reprodução das desigualdades47. Essa

interversão da igualdade em desigualdade e dominação é responsável

pelo adjetivo “formal” às democracias ocidentais e, de fato, marca

um lado para o Estado atuar privilegiadamente. No entanto, isto

significa também que o conflito foi internalizado no Estado. Se é

assim, este não poderia ser derivado linearmente das necessidades

de uma classe social, fora da pressuposição de uma comunidade, da

qual estas emergem com luta, e luta esta que se dá com a atuação

do Estado de “n” formas e em “n” palcos diversos. Desde então, o

Estado não é correia de transmissão dos interesses da classe

dominante, mas tão pouco é o defensor do interesses da

“comunidade”. Como dirá Fausto, (1987, p. 324) “o Estado é e não é

a comunidade”48. Assim:

46 “Uma sociedade que é coagida, pelo estado de suas forças produtivas, a manteruma relação de equivalência entre dispêndio de trabalho e a remuneração sob umaforma que lembra, mesmo de longe, a troca de valores-mercadorias, será coagidaigualmente a manter a forma jurídica” (PACHUKANIS, 1988, pp. 28-29).47 Tal movimento encontra-se bem localizado n’O Capital na passagem da primeiraseção para a sétima, onde a aparência da circulação simples e da troca detrabalhos iguais sofre uma interversão na qual o trabalho alheio paga a própriaforça de trabalho contratada à medida que os ciclos reprodutivos do capitalrealizem o valor do capital inicial investido. Daí Fausto dizer que “(...) oEstado capitalista (considerado a partir das formas) não deriva da contradiçãoentre classes, ele deriva da contradição (interversão) entre a identidade e acontradição” (FAUSTO, 1987, p. 293).48 “Quando o Estado capitalista (...) realiza certas tarefas de interessecoletivo, é inútil supor que a sua ação deva ser explicada em todos os casos apartir das necessidades objetivas da produção ou ainda do interesse de classe. O

“O Estado (...) é o guardião da identidade. Ele garante o funcionamentode relações que não podem ser abandonadas a elas mesmas, mesmo emcircunstâncias normais, justamente porque elas são contraditórias. Essafunção o Estado exerce cristalizando a aparência do sistema (da base dosistema) e o garantindo pela violência. Por outro lado, a própria fixaçãodessa aparência enquanto universalidade abstrata supõe uma universalidadeconcreta (comunidade).” (FAUSTO, 1987, p. 311).

O que se passa é que, ao longo da história do capitalismo,

cresce a profundidade daquelas contradições e exige-se do Estado

um reforço, bastante diferenciado no tempo e no espaço, desta

“universalidade concreta”, que transita da sociedade civil para o

Estado e que implica certo processo (e trabalho) de

racionalização. Desta mesma compreensão compartilha Poulantzas

(1984), para quem o trabalho da burocracia e as realizações do

Estado dele resultantes não podem ser analisados nem a partir da

“lógica mercantil” (empobrecimento da perspectiva materialista de

Marx), nem da lógica “não-utilitarista”, “corporativista”, de

matriz weberiana. A lógica capitalista que é constitutiva do

aparelho estatal é a lógica da divisão das classes – ordenada,

regulamentada, e, inclusive, em diversos casos, instituída pelo

Estado (sendo pois, ao mesmo tempo, a função e a razão de ser

deste) – e da divisão do trabalho – especialmente a divisão entre

trabalho manual e intelectual. Desse modo o Estado aparece como

espaço dentro da sociedade onde se articulam as relações de

produção dominantes.

Resta lembrar que para tanto é fundamental a sustentação de

uma aura de neutralidade do Estado que repousaria numa certa

autonomia da política em relação aos conflitos da sociedade civil

permitindo ao Estado atuar administrando benefícios e construindo

vantagens mútuas para os conflitantes tendo em vista a reprodução

Estado capitalista realiza tarefas de interesse coletivo porque como todo Estadoele representa o interesse coletivo. Só que ele representa esse interesse nointerior do modo de produção capitalista. E essa particularização é nessa medida uma‘negação’ da primeira determinação. O Estado no interior do modo capitalistaserve à coletividade, mas na forma pela qual o modo de produção transfigura essesserviços” (FAUSTO, 1987, p. 324).

do capital. Não se trata, tão somente, de controlar as demandas

sobre o Estado dos interesses conflitantes, mas de manter

burocracia estatal, principalmente nos momentos críticos, apta a

identificar mudanças no caráter dessas demandas, de tal modo que

possa reagir a estas sem forçar os limites do arranjo original.

Poulantzas, como um autor esclarecido acerca destas questões, as

sintetiza afirmando que:“A separação do Estado e da sociedade civil, ou seja, o caráterverdadeiramente político do Estado capitalista, se manifesta [...] no caráterde universalidade que reveste um conjunto particular de valores queconstituem os fatores objetivos de estruturação a mediação específicaentre a base e a supra-estrutura política das instituições de um Estadoengendrado por um ‘tipo’ particular de modo de produção que caracteriza aformação social capitalista-intercambista. Este conjunto de ‘valores’desempenha não simplesmente um papel ideológico de justificação, mas afunção de uma condição de possibilidade das estruturas objetivas doEstado representativo moderno.” (POULANTZAS, 1984, p. 11).

A política de Estado é assim relativamente autônoma graças em

primeiro lugar a este pano de fundo de defesa de valores de

“liberdade e igualdade formais e abstratos”. Em segundo lugar

estes ganham concreticidade no modelo de forma jurídica que

permite reconhecer demandas trabalhistas. Em terceiro, a

burocracia estatal vai além, antecipando demandas e encaminhando

mudanças nos arranjos políticos-institucionais. Desde o princípio

este esvaziamento do conteúdo de classe permite que o Estado se

transforme no negociador de demandas e mudanças estruturais

falando em nome do “bem geral”. E isso não apenas porque ele

anuncia a liberdade e igualdade enquanto oculta os conflitos mas

porque administra esse jogo duplo sustentando uma cisão para com a

sociedade civil, o que permite que se apresente como um “Estado-

popular-de-classe” com “suas instituições organizadas em torno dos

princípios da liberdade e da igualdade dos indivíduos ‘ou’ pessoas

políticas [enquanto] o sistema jurídico moderno (...) reveste um

caráter ‘normativo’, expresso num conjunto de leis sistematizadas

a partir dos princípios de liberdade e de igualdade: é o reino da

‘lei’.” (POULANTZAS, 1984, pp. 42-43).

Há aí o que Poulantzas identifica como um “efeito

isolamento”49 no qual as estruturas jurídicas ocultam aos agentes

as suas relações como relações de classe (POULANTZAS, 1984, p.

49). Ou seja, a partir da igualdade entre sujeitos no Estado, as

classes passam a se relacionar entre si como indivíduos na esfera

privada, o que permite ao ordenamento estatal conduzir políticas

no sentido de atingir o “bem geral”. De tal modo que “enquanto as

relações de produção privatizam os indivíduos (...) o político

visa traduzir essas relações privadas sob a forma de “interesses

gerais” da sociedade” (SADER, 1993, p. 108), os quais apesar de

contemplarem as diferenças entre as condições estruturais dos

contratantes econômicos, ficam incapacitados de resolver a

contradição inerente ao conflito de classes. Ou seja, a forma do

Estado capitalista carrega em si o caráter da ideologia mercantil.

Até aqui usamos o termo sociedade civil para distinguir o

Estado (Marx só o usa em suas obras iniciais) no intuito de

refutar certas concepções marxistas vulgares do “Estado como

Coisa” – apropriada como tal pela classe capitalista dominante.

Mas a separação dessas esferas não pode ser entendida como

dissociação simples pois então cairíamos no conceito burguês de

Estado, o qual o entende como instância racional e positiva, ou

seja, um “Estado como Sujeito”50. Em suma, Já comentamos que, na

primeira versão, o Estado aparecer como meramente funcional tem a49 “Este efeito de isolamento é terrivelmente real e tem um nome: a concorrênciaentre os operários assalariados e entre os capitalistas proprietários privados.”(POULANTZAS, 1984, p. 49).50 Este, como aponta Marx, só poderia atingir o que promete via revoluçãopermanente: “Nos momentos de seu amor próprio especial, a vida política trata deaniquilar o que é sua premissa, a sociedade burguesa e seus elementos, e a seconstituir na vida genérica real do homem, isento de contradições. Só podeconseguir isso, entretanto, mediante contradições violentas com suas própriascondições de vida, declarando a revolução como permanente. E o drama políticotermina, portanto, não menos necessariamente, com a restauração da religião, dapropriedade privada, de todos os elementos da sociedade burguesa, do mesmo modopelo qual a guerra termina com a paz.” (MARX, 1996c, p. 189).

ver com resumir as contradições do sistema à apropriação privada

de trabalho coletivo. Contudo, se enxergamos que a lógica da

valorização interverte a lei do valor e espalha a contradição

sociedade civil afora, podemos ver o Estado tanto sustenta uma

igualdade formal sob “pés de barro”, quanto constrói bases mais

“racionais” para a reprodução social.

Antes de seguir perguntando que racionalidade é esta, até que

ponto se resume aos próprios interesses de longo prazo do capital

(de que capitais e a contra gosto de que outros) e como é visada

pelas distintas formas do Estado, nos resta ainda analisar o

exemplo dado pelo próprio Marx de como o Estado age na mediação de

interesses das classes dominante e dominada. Trata-se da análise

d’O 18 de Brumário de Luis Bonaparte, onde o Estado bonapartista é

mostrado como não representando classe alguma, ou antes, buscando

se legitimar em uma não-classe, no campesinato. Como diz Sader

(1993, pp. 110-111):“O Estado bonapartista é um Estado de classe, para Marx, bem como todosos tipos possíveis de Estado. Porém, Estado de classe quer dizer Estado de umasociedade dividida em classes; nesta se encontram as raízes do seu caráterclassista, como também do fato da cultura, do direito etc. marcarem-sepela ideologia. A expressão “instrumento das classes dominantes” só temsentido quando explicitada dessa forma. Porque não se identificamsumariamente “interesses das classes dominantes” e comportamento doEstado; este representa o produto de uma relação com a totalidade dasrelações sociais, isto é, o Estado representa a relação dos interessesdas classes dominantes com os das outras classes sociais. (...) Assim,quando Marx diz que o Estado é instrumento das classes dominantes, nãoestá afirmando que é a posse do Estado que lhe dá esse caráter, mas simque, porque são classes dominantes, o Estado, enquanto preserva as relaçõessociais que lhes favorecem, funciona como instrumento seu.”

Pode se pretender que tais observações só se fizeram

necessárias no contexto particular do governo do sobrinho de

Napoleão, mas do nosso ponto de vista as observações de Marx de

que a burguesia sabia que precisava impedir "o perigo de seu

autogoverno", que o parlamento burguês deveria ser posto a

descansar e ela ser posta no nível das outras classes, e que é

justamente por agir como uma sociedade particular e independente

no mecanismo do Estado que a burocracia assegura a realização dos

interesses da classe dominante capitalista, apontam para uma tese

mais geral, a de que o Estado deve poder ter autonomia para poder

alcançar uma racionalidade de poder mais ampla, estável e

legítima.

Dito isso, podemos nos deter sobre que racionalidade que é ou

não acessada pelo Estado (mais precisamente por sua burocracia). E

como fazer isto sem corrermos o risco de, ao rechaçar as teses

simplistas do Estado como escritório da burguesia, abraçarmos as

teses idealistas do Estado civilizador do capital? De certo modo é

esta a aposta hegeliana recusada por Marx. E isto porque, para

Marx, não é a razão ou espírito, mas o capital que é a substância

auto-movente que é sujeito do seu próprio processo (HEGEL, 1992,

p. 29). E não à toa a transição para uma sociedade superior é um

processo complexo porque o proletariado deveria tirar do capital e

assumir para si este papel de sujeito, o que, de Lenin em diante,

poderia ser feito via o Estado desapropriando o capital.

O insucesso da experiência soviética e o constante reexame das

teses originais de Marx, leva-nos hoje a dois tipo de teses. Uma

primeira, defende que o capital carrega as relações sociais de um

modo que não podem ser captadas pelas relações de classe, uma vez

que “a lógica do capital não é uma manifestação ilusória das

relações de classe subjacentes mas é uma forma social de dominação

inseparável das formas/relações sociais características do

capitalismo” (POSTONE, 2004, p. 61). Na prática, isso

inviabilizaria uma crítica do capitalismo a partir do trabalho com

todas as suas consequências, entre as quais, a defesa do

proletariado como classe revolucionária capaz de colocar o Estado

a seus serviços51. Uma segunda, aposta ainda que os conflitos de

51 Para Postone seria pois o caso de “abandonar a hipótese trans-histórica deque a história humana em geral tem uma dinâmica, para demonstrar que umadinâmica histórica é uma característica historicamente específica do

classe, e a dominação resultante, tem uma dimensão outra – fora da

materialidade (social é verdade) posta no capital –, no trabalho

burocrático. É a tese que afirma que a burocracia é “o

institucional, quase transcendental, racionalizador da

irracionalidade estrutural do capitalismo” (CISTELECAN, 2011, p.

7) um “mediador não evanescente”, cuja missão perpétua é

“erradicar sua missão”.52

Não podemos levar adiante esta reflexão, e sequer podemos

apresentar as teses evocadas acima. Mas quisemos mostrar que ambas

evidenciam a necessidade da construção de teorias mais complexas

acerca do que é (e do que pode) o Estado nesse momento. Relevante

é pensar que isto remete justo ao papel do trabalho, histórico ou

ontológico. Assim, enquanto Postone (2004, p. 68) critica a trans-

historicidade do trabalho como um mediador maior que a sua forma

concreta posta no capital, este sim, “o gerador do complexo

dinâmico histórico (...) que coloca a possibilidade de sua própria

superação”; Cistelecan (2011, p. 21) aposta no trabalho da

burocracia justo como mediador trans-histórico, que herda e

desenvolve um papel, ou uma atividade, “a partir da qual são

estabelecidas os diferentes domínios de toda atividade”.

REFERÊNCIAS:

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capitalismo. Esta dinâmica dialética não pode ser capturada nem em termos doestado nem nos da sociedade civil. Antes, ela existe ‘para além’ delas,modelando cada uma tanto quanto suas relações” (POSTONE, 2004, p. 64).52 Daí Cistelecan dizer “paraphrase Guy Debord, unites the separate, but itunites it only as separate: while ensuring that the historical contingency issublated into a natural necessity, it also sees that concerns regarding theexpert organization of economy and the social deliberation of politics areproperly kept apart.” (CISTELCAN, 2011, p. 171).

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Vulgaridades teóricas debilitadoras del marxismo: “la plusvalía esun robo”, “el capitalista no trabaja”, “el Estado es la oficina dela burguesía”.

Resumen: El presente artículo defiende la necesidad de reforzar lacomprensión de las mediaciones dialécticas que nos permiten comprendercuales fenómenos inmediatos están cargados de una lógica contradictoria.Lógica esta solamente percibida cuando se persigue los enlaces oencadenamientos y fraccionamientos de las formas históricas. Formas estasque, por su vez, sólo pueden ser percibidas tal como son si noidentificamos en el inmediato la única forma posible de existencia de loque sea. Así, la plusvalía no es sólo el lucro surgido en la esfera delcambio; el capitalista no es solamente la persona beneficiada por laapropiación sucedida también en esta esfera; y el Estado no es laoperacionalización de un conjunto de acciones fácilmente definidas quetienen como objetivo la dominación.

Palabras clave: dialéctica, marxismo, plusvalía, estado

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