Um olhar sobre a História do Livro: Uma crítica a noção de autoria

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1 UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DO LIVRO: UMA CRÍTICA A NOÇÃO DE AUTORIA Rodrigo Conçole Lage 1 Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar a História do Livro e, por meio da teorização desse domínio, a partir dos estudos de Robert Darnton, repensar o conceito de autoria. Pretendemos mostrar que a autoria não pode ser vista como o único elemento a ser considerado no processo de produção de um livro. Com este fim, apontamos alguns limites no modelo de análise tomado como referência para nossos estudos. Palavras-chave: História do Livro, Autor, Teoria da História, Robert Darnton. Résumen: El objetivo de este artículo consiste en presentar la Historia del Libro y, mediante la teorización de este dominio, a partir de los estúdios de Robert Darnton, repensar el concepto de autoría. Pretendemos mostrar que la autoría no puede ser vista como lo único elemento a ser considerado en el proceso de producción de un libro. Con ese fin, se señalan algunos limites em el modelo de análisis tomado como referencia para nuestros estudios. Palabras clave: Historia del Libro, Autoría, Teoría de la Historia, Robert Darnton. 1 Graduado em História (UNIFSJ). Especialista em História Militar (UNISUL).

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UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DO LIVRO: UMA CRÍTICA A

NOÇÃO DE AUTORIA

Rodrigo Conçole Lage1

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar a História do Livro e, por meio da

teorização desse domínio, a partir dos estudos de Robert Darnton, repensar o

conceito de autoria. Pretendemos mostrar que a autoria não pode ser vista como o

único elemento a ser considerado no processo de produção de um livro. Com este

fim, apontamos alguns limites no modelo de análise tomado como referência para

nossos estudos.

Palavras-chave: História do Livro, Autor, Teoria da História, Robert Darnton.

Résumen: El objetivo de este artículo consiste en presentar la Historia del Libro y,

mediante la teorización de este dominio, a partir de los estúdios de Robert

Darnton, repensar el concepto de autoría. Pretendemos mostrar que la autoría no

puede ser vista como lo único elemento a ser considerado en el proceso de

producción de un libro. Con ese fin, se señalan algunos limites em el modelo de

análisis tomado como referencia para nuestros estudios.

Palabras clave: Historia del Libro, Autoría, Teoría de la Historia, Robert Darnton.

1 Graduado em História (UNIFSJ). Especialista em História Militar (UNISUL).

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Introdução

Dentre os diferentes estudos que compõem a Teoria da História,

podemos destacar os que se apresentam ligados a diversidade de

domínios, áreas em que o historiador se especializa, que compõem a

prática historiográfica. O objetivo deste artigo é estudar a História do

Livro como um deles, segundo a perspectiva de Robert Darnton. Para

procedermos a essa proposta, dividimos o artigo em duas partes. Na

primeira, descrevemos a evolução do domínio da História do Livro e,

na segunda, discutimos a teorização do referido historiador sobre esse

domínio, apontando lacunas em seu modelo de análise.

1- História do Livro: o surgimento e a difusão de um novo domínio

A História do Livro, com base nos objetos próprios do que se

considera cultura material, vai além do estudo do conteúdo de um livro

e procura valorizar o processo de produção, distribuição e recepção do

mesmo. De acordo com Darnton (1990, p. 110), pelo menos desde a

Renascença, destacam-se estudos que podem ser considerados

precursores das atuais histórias dos livros. A partir do séc. XIX,

contudo, recrudesceu o seu estudo como objetos materiais fazendo

com que, na Inglaterra, houvesse um crescimento da bibliografia

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analítica2. Assim, essa nova corrente que se desenvolve na França, nos

anos 1960, deve ser vista como algo novo – assim como a História

Cultural pode ser diferenciada, se comparada à História da Cultura.

Tal como entendida hoje, ela nasce com a Escola dos Annales, no

processo de busca por novos objetos de pesquisa: “[...] em 1952, em

nota publicada na revista Annales, Lucien Febvre chamava a atenção

dos historiadores sobre um domínio até então legado aos eruditos,

colecionadores e especialistas em biblioteconomia ou em literatura: o

livro” (MOLLIER, 2004, p. 1).

Um fato importante na criação desse domínio foi à publicação

de L’Apparition du livre, em 1958, que se destaca por ter sido a

primeira grande obra a tratar do tema. Com o passar do tema ele foi se

difundindo com o surgimento de revistas, centros de pesquisa e

colóquios. Com isso, a História do Livro pôde se consolidar como um

campo específico dentro da historiografia.

Ao mesmo tempo em que essa ampliação se tornou

fundamental para sua consolidação e legitimação surgiu um problema.

O historiador, segundo Darnton (1990, p. 111), “se vê emaranhado

numa densa vegetação de artigos de revistas, e fica desorientado com o

entrecruzamento de disciplinas” Podemos então dizer que a História

2 Bibliografia analítica é um tipo de bibliografia na qual, além dos elementos descritivos do documento, é inserida uma análise ou um resumo do mesmo.

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do Livro ficou tão povoada de disciplinas auxiliares que é impossível

definir seus contornos gerais, o que tem sido um dos grandes

problemas da História na contemporaneidade, por não conseguir

manter uma identidade própria diante das outras ciências sociais.

Essa filiação aos Annales fez com que os novos historiadores

do livro inserissem suas pesquisas no âmbito da história

socioeconômica, e com isso, não se dedicaram apenas aos detalhes da

bibliografia. Procurou-se, então, descobrir o modelo geral da produção

e do consumo do livro ao longo de grandes períodos de tempo, como

veremos adiante.

[...] os historiadores formados por Febvre e

Martin orientaram suas pesquisas na direção da

economia do livro, das técnicas de produção, das

feiras, dos mercados, privilegiando os períodos

remotos que a documentação existente era capaz de

atingir (MOLLIER, 2004, p. 2).

Além disso, apesar dos historiadores terem inicialmente

escolhido o livro como objeto de estudo, alguns têm se concentrado em

ouros meios impressos como os jornais, folhetos e outras formas, além

do livro. Como as pesquisas envolvem o processo de venda e

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distribuição dos livros, os pesquisadores puderam dirigir sua atenção a

outras pessoas, além do autor. O leitor passou a ser visto não só como

um receptor passivo do texto, mas alguém que cria suas próprias

interpretações. Isso permitiu a criação de um novo domínio, a História

da Leitura, e os estudos de recepção na Alemanha. Outra figura que

passou a ser privilegiada nesses estudos foram os livreiros permitindo

o surgimento de biografias sobre eles e pesquisas sobre seu trabalho.

O estudo da propaganda também se apresenta como algo

importante a ser examinado. Tal mecanismo permite mapear a

penetração da palavra impressa na sociedade, como um todo, ou nos

diferentes grupos que a compõe. Assim, estudando a maneira como

eram apresentados ao consumidor e os tipos de publicidade utilizados

(dos anúncios em jornais aos cartazes de muro), poderíamos aprender

sobre as atitudes em relação ao livro e o contexto de sua utilização.

Hoje, podemos dizer que ainda é um domínio restrito, embora

Darnton acredite na possibilidade desse âmbito se desenvolver

adquirindo a mesma importância que a História da Arte e a História da

Ciência. Sobre o âmbito mais específico de seu objeto de estudo,

segundo o modelo de análise escolhido por nós, nós teceremos

algumas considerações na segunda parte desse trabalho.

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2- O método de Robert Darnton

O objetivo da História do Livro é investigar como eles surgem e

são difundidos na sociedade. As condições em que isso ocorre, mudam

completamente, dependendo do lugar e da época, sendo impossível

criar um modelo único de análise. Isso, sem contar o fato de que, com o

surgimento dos e-books, surgiram novas formas de produção e

distribuição, totalmente diferentes das antigas e que ainda não fazem

parte desses estudos.

Mas, com todas essas variações, cabe indagar: o que há de

comum em todos os livros para que possam ser estudados da mesma

forma? Darnton identifica um ciclo, em todos eles, que funciona como

um circuito de comunicação que vai do autor ao leitor. Nesse caminho,

o livro passa pelo editor (ou livreiro, pois no passado, muitos

assumiram o papel de editores), impressor, distribuidor e vendedor,

para então, fechando o ciclo, chegar ao leitor. O leitor é posto no final

não só porque o compra, mas, por ser a razão de sua existência,

influindo também na sua venda e distribuição.

Como os autores são também leitores e se associam a outros

leitores e escritores, criam uma série de noções que fazem parte desse

universo literário (gênero, estilo literário, formato, etc.). Além disso, a

composição de um livro é um empreendimento tanto comercial quanto

literário e isto afeta a própria composição dos textos. Um conto, uma

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novela ou um livro didático, são escritos tanto para atender a demanda

(escrito de determinada forma, para atender a certas exigências que

dizem respeito ao público que irá atingir) e sua finalidade comercial (é

escrito de determinada forma, para atingir um tipo específico de

consumidor, que aprecia certo formato ou gênero, por exemplo). No

que diz respeito ao circuito percorrido pelo livro o historiador afirma

que:

Ele se dirige a leitores implícitos e ouve a resposta

de resenhistas explícitos. Assim o circuito percorre

em ciclo completo. Ele transmite mensagens,

transformando-as durante o percurso, conforme

passam do pensamento para o texto, para a letra

impressa e de novo para o pensamento. A história

do livro se interessa por cada fase desse processo e

pelo processo como um todo, em todas as suas

variações no tempo e no espaço, e em todas as suas

relações com outros sistemas, econômico, político e

cultural no meio circulante (DARNTON, 1990, p.

112).

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Assim, estudá-lo é estudar o objeto, aqueles que são

responsáveis por toda sua produção e também o processo de

circulação e o meio em que circula, com todos os fatores que influem

nesse processo de difusão. Darnton criou um modelo que, com algumas

adaptações poder ser utilizado para todos os períodos da história do

livro impresso. Para os períodos em que foram produzidos de forma

manuscrita e para a contemporaneidade – onde temos os livros

eletrônicos – outros modelos devem ser construídos. Para entender

todo esse processo é preciso examinar as diferentes fases que

compõem a produção. Seguindo essa trajetória conseguiremos, ele

afirma, demonstrar que cada fase do circuito está ligada a quatro

fatores, a saber:

(1) outras atividades que uma determinada pessoa

desenvolve num determinado ponto do circuito; (2)

outras pessoas no momento temporal em outros

circuitos; (3) outras pessoas em outros pontos no

mesmo circuito; (4) outros elementos na sociedade.

As três primeiras considerações se referem

diretamente à transmissão do texto, ao passo que a

última diz respeito a influências externas, que

podem variar ao infinito (DARNTON, 1990, p. 114).

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Passaremos, então, a examinar os diferentes elementos do

circuito e ver algumas questões envolvendo seu estudo:

- Autor

É o primeiro elemento da composição, pelo fato do livro nascer

com sua escrita pelo autor. O estudo das biografias dos grandes

escritores, das condições básicas da autoria e da própria natureza de

uma carreira literária está no cerne desses estudos. Porém, o

conhecimento desses dados, continua obscuro para inúmeros períodos

da história, e inúmeras regiões do planeta. Como envolve o estudo

sobre a escrita do livro, isso requer o exame do manuscrito, quando

existente, e o estudo de qualquer fonte que trate sobre a composição

da obra (cartas, diários, relatos de amigos, etc.). Entre outros temas,

pode-se estudar também como o autor planeja distribuir sua obra, as

negociações para a venda (escritores famosos podem negociar a venda

de uma obra ainda não escrita ou em fase de composição), entre outras

possibilidades.

A pesquisa pode envolver também as relações do autor com

seus patrocinadores, com os editores, os impressores, os livreiros, os

resenhistas que, ao lerem o manuscrito, ou parte dele, sugerem

modificações no texto.

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- Editor

O autor escreve. Por outro lado, para publicar ele precisa, na

maior parte do tempo, desde o surgimento da imprensa, de um editor

que queira publicá-lo e só assim seu manuscrito se tornará um livro.

Ao longo do tempo muitos escritores imprimiram sua obra e a

venderam por conta própria. Na contemporaneidade, com o

surgimento da internet isso mudou. A partir desses exemplos podemos

dizer que, em muitos casos, esse elemento do circuito pode inexistir. Se

antes ele foi uma figura totalmente ignorada nos estudos sobre os

livros, ganhou papel fundamental, graças aos novos estudos voltados

especificamente para ele. Para maiores detalhes sobre a figura do

editor, seu papel na produção dos livros e algumas linhas de pesquisa

ver meu artigo O papel do editor na produção dos livros (vide

referências).

- Impressores

De acordo com Darnton (1990, p. 124) “a oficina gráfica é muito

mais bem conhecida do que os outros estágios da produção e difusão

do livro” por ter sido um tema muito valorizado dentro da bibliografia

analítica. Assim, por meio do estudo do processo de sua impressão, os

pesquisadores procuram reconstituir o texto original do qual não

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temos os manuscritos originais. É comum que o texto sofra algumas

alterações com o passar do tempo, como acontece com erros de

impressão, alterações gramaticais e mesmo cortes no texto que se

perpetuam de uma edição para outra. Mas, mesmo que não consigam

reconstituir esse texto original, pode-se demonstrar a existência de

diferentes edições de um texto, mostrando as variações no texto

existentes, algo importante nos estudos de difusão.

Estudar a impressão envolve o estudo de dois grupos de

pessoas: os fornecedores e os gráficos. Os fornecedores são aqueles

que fornecem aos impressores os materiais usados na impressão, o

que pode ser estudado a partir das notas de compra dos arquivos dos

impressores. Edições voltadas para o público infantil, de menor ou de

maior poder aquisitivo, vão determinar o tipo de material usado, a

qualidade de impressão, entre outros fatores.

Cabe ainda considerar que, ao estudarmos esses elementos,

podemos conhecer maiores detalhes sobre o público consumidor. O

estudo dos arquivos dos impressores é fundamental para isso e, ao ser

feito a partir das técnicas dos bibliógrafos, inaugurou uma nova fase

arquivística na história da impressão, estabelecendo novas perguntas

aos historiadores.

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Como os impressores calculavam os custos e

organizavam a produção, principalmente após a

expansão do jornalismo e da impressão de

materiais volantes? Quais as alterações sofridas nos

orçamentos dos livros com a introdução do papel

feito a máquina, na primeira década do séc. XIX, e

do (sic) linotipo nos anos 1880? (DARNTON, 1990,

p. 125).

Outro grupo a ser considerado, é o dos gráficos: os que fazem a

impressão. Estudar esse grupo permite entender o processo de

produção do livro colocando perguntas como: “de que maneira as

transformações tecnológicas afetaram a produção do trabalho? E que

papel desempenharam os oficiais gráficos, um setor excepcionalmente

expressivo e militante do operariado do trabalho?” (ibid. 1990, p. 125).

Tais questões estão relacionadas à realidade da Europa; para

um país como o Brasil, algumas das questões apontadas podem não ter

relevância e novas questões poderão ser colocadas devido às condições

especiais em que a imprensa veio se instalar no Brasil. Não se pode

esquecer que, inicialmente, havia a proibição da impressão de livros e

jornais no país. Mais tarde, com a vinda da família real para o Brasil, é

que ela veio a ser abolida, pois “a proibição de impressão surge apenas

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como mais uma restrição à iniciativa econômica da colônia”

(HALLEWELL, 2005, p.95). No que se refere à impressão podemos

destacar que a escolha dos materiais utilizados não é algo aleatório e

pode ser uma exigência da editora, no sentido de definir o público para

o qual o livro de dirige, como do autor, que tem determinada intenção

ao escolher determinado material ou tipo de fonte.

- Distribuidores

Os distribuidores são aqueles que remetem os livros das

gráficas para os depósitos, para os livreiros, e para todos os canais de

distribuição. Darnton afirma que, pouco se sabe sobre a maneira como

os livros saíam das gráficas e chegavam aos depósitos, supondo que:

A influência do carreto, da barcaça, do navio

mercante, do correio e da estrada de ferro sobre a

literatura pode ter sido maior do que se imagina.

Embora tenha sido provavelmente pequeno o efeito

das facilidades de transporte sobre o comércio nos

grandes centros editoriais, como Londres e Paris,

algumas vezes elas determinavam o ritmo dos

negócios em áreas distantes (DARNTON, 2010, p.

125).

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Podemos então dizer que estudar o transporte permite

entender como isso influi no seu custo, as despesas geradas por ele,

como esse livro era distribuído em contextos mais remotos, entre

outras coisas. A distribuição não influi no processo de produção. Mas,

permite entender, por exemplo, como funciona o comércio livreiro e as

dificuldades de acesso aos livros.

Além disso, no passado, a distribuição envolvia, em alguns

casos, a própria venda dos livros. Robert Chartier, por exemplo, em A

História Cultural, cap. 6, ao estudar os livros da chamada Bibliothèque

Bleue (que corresponde a nossa literatura de cordel), revela que, entre

outras práticas, eles eram distribuídos por vendedores ambulantes,

como acontece no Brasil com a literatura de cordel, em algumas

regiões.

- Livreiros

É por meio deles que o livro chega ao leitor sendo relevante

conhecer o seu mundo social e intelectual, seus gostos e valores e a

inserção em suas comunidades. Tal análise pode contribuir para o

entendimento de suas escolhas ao publicar ou recusar a publicação de

uma obra. Darnton também apresenta questões como:

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Eles também operavam dentro de redes

comerciais que se ampliavam e se desfaziam como

as alianças no mundo diplomático? Quais a s leis

que governavam a ascensão e a queda dos impérios

comerciais na área editorial? (DARNTON, 1990, p.

126).

Analisando as múltiplas possibilidades no âmbito da análise

dos livreiros – como elementos constitutivos da autoria – o historiador

supracitado, sugere a consideração dos estudos comparados no que se

refere ao comércio de livros, relativos a histórias nacionais. Isso

permite entender o funcionamento do mercado editorial nas diferentes

regiões e a possibilidade de inserção de um autor dentro desse

mercado. Outra possibilidade de pesquisa sugerida por ele seria o

estudo comparativo nas diferentes nações, o que permite entender as

diferenças e semelhanças do mercado editorial nos diferentes países e

como o autor se insere neles.

- Leitores

Os leitores são abordados como o último elo no circuito pelo

fato de que os livros são escritos para serem consumidos por eles.

Estudando-os podemos responder a questões sobre como entendem os

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sinais na página impressa, quais os efeitos sociais dessa experiência e

como ela sofre variações com o tempo, e de um lugar para outro. Nesse

sentido, acreditamos que estuda-los é vê-los também como uma

espécie de coautores, pelo fato de elaborarem sua própria

interpretação do texto, que será em maior ou menor grau diferente da

do autor.

Na contemporaneidade, tais estudos, feitos tanto entre os

pesquisadores ligados a literatura, quanto entre os historiadores, levou

à criação de um novo domínio da história que é o da História da Leitura

e cujo desenvolvimento exige um estudo em separado. Alguns

trabalhos sobre esse domínio como o livro O príncipe de Maquiavel e

seus leitores e o artigo Roger Chartier, o especialista em história da

leitura estão citados nas referências bibliográficas no final deste artigo.

Ao estudarmos todos os elementos desse circuito e as práticas a

que eles se relacionam, pode-se inferir que, a partir das pesquisas

sobre a História do Livro, é possível adotar uma nova definição do

conceito de autoria. Para isso, precisamos entender que o livro é um

objeto que surge a partir do trabalho de todos os envolvidos na sua

produção – o que impõe incluir para quem o livro é produzido.

Partindo dessas premissas, contudo, consideramos importante

assinalar que, nos textos de Darnton, não são mencionados alguns

profissionais relacionados ao processo de produção de um livro como

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tradutores, revisores e ilustradores. Essas ausências abrem novas

possibilidades de estudo e mesmo diante da brevidade desse artigo,

entendemos ser necessário tecer algumas considerações.

A ausência do tradutor se explica pelo fato de Darnton estudar,

nas obras consultadas, autores franceses publicados em seu próprio

país ou vendidos para o exterior; cabe destacar que ele não trabalha

com autores estrangeiros publicados na França. Portanto, uma

pesquisa que envolvesse o estudo da publicação de autores

estrangeiros no próprio país, ou no exterior, obrigatoriamente, teria

que incluir os tradutores dentro do circuito. Já a do revisor e a do

ilustrador, e de quaisquer outros profissionais envolvidos na produção

do livro e que não foram percebidas durante a execução do trabalho, a

nosso ver, requerem uma pesquisa que possa tentar explicar sua

ausência, o que não é nosso objetivo.

Deve-se assinalar que o revisor é o encarregado de examinar o

texto antes de ser impresso para corrigir, principalmente, erros

gramaticais, de digitação, etc. Um fato interessante a se destacar a

importância desse profissional e demonstrar como uma falha na

revisão pode alterar o texto, é o romance de José Saramago, História do

Cerco de Lisboa, que trabalha com essa questão.

A obra gira em torno de um revisor que altera o texto de um

livro, colocando um “não”, e com isso muda todo o sentido da história,

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pois o texto passa a negar um fato que aconteceu. Nesse sentido

podemos apresentar a hipótese de que o revisor também pode ser

visto como um tipo de coautor, pelo fato de que pode mudar o texto

por conta própria, independentemente da vontade do autor.

Já o ilustrador é responsável pelas imagens existentes em uma

obra e com isso pode se entender que ele cria uma interpretação do

texto. Podemos observar tal mecanismo nas ilustrações existentes em

muitas Bíblias. Vemos, então, que o estudo desses profissionais pode,

em muito, enriquecer os estudos voltados para a História do Livro no

que se refere ainda à questão da autoria – nosso enfoque preferencial.

Ressaltamos, assim, a necessária valorização de outros

mecanismos que, junto a esse modelo, muito podem contribuir para

ampliar a abordagem do processo de produção. Assim como o estudo

de alguns dos profissionais envolvido na produção e que exigem um

estudo individual, por terem sido ignorados por Darnton, o que fugiria

aos limites desse trabalho. Para terminar, precisamos destacar o fato

de que a questão da autoria impõe uma contínua reflexão para que

essas e outras possíveis ausências sejam preenchidas por novos

estudos.

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Conclusão

Os historiadores da Escola dos Annales incorporaram novos

objetos de estudo o que levou ao surgimento de diferentes domínios

dentro da historiografia, sendo um deles a História do Livro. Dentre os

que trabalham dentro dessa área pudemos examinar a teorização

desse campo pelo historiador Robert Darnton. Procuramos

demonstrar como a noção de autoria deve ser trabalhada de forma

mais ampla que o usual, incluindo todos os profissionais responsáveis

pela produção do livro. Além disso, indicamos o domínio da História da

Leitura como uma área relacionada que abre caminho para novos

estudos.

Nosso artigo não pode ser considerado o ponto final sobre o

assunto. Como foi assinalado, Darnton, em seus estudos, não incluiu

alguns profissionais como o tradutor, o revisor ou o ilustrador, que

procuramos inserir em nossas reflexões como parte essencial da

problematização sobre a questão. Essas, e outras possíveis ausências –

ainda que se considere seu modelo como referência maior – indicam

que o tema precisa de maiores estudos no que diz respeito a noção de

autoria, a fim de tornar mais ampla sua compreensão.

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