Fotografia : Objeto Ambíguo - Estranhamento e desautomatização do olhar em Pedro Meyer
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
João Carlos Ruza
Fotografia: objeto ambíguo Estranhamento e desautomatização do olhar em Pedro Meyer
Mestrado em Comunicação e Semiótica
São Paulo
2014
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
João Carlos Ruza
Fotografia: objeto ambíguo Estranhamento e desautomatização do olhar em Pedro Meyer
Mestrado em Comunicação e Semiótica
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE
em Comunicação e Semiótica sob a orientação do Prof.
Dr. Norval Baitello Junior.
Banca Examinadora:
__________________________________
__________________________________
__________________________________
À Ângela, sem a qual este trabalho sequer teria
sido iniciado e a Gabriel e Bruna, que me
fazem sempre buscar o melhor de mim.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Norval Baitello Junior, pela orientação e aulas.
À Profª Drª Lucrécia D’Aléssio Ferrara e ao Prof. Dr. Maurício Ribeiro da Silva
pelas contribuições à dissertação e participações nas Bancas de Qualificação e Defesa.
Ao Prof. Dr. Amálio Pinheiro, Profª Drª Jerusa e Profª Drª Lucia Leão pelos
esclarecimentos e novos conhecimentos.
Aos colegas de sala, funcionários da coordenação e amigos em geral, pela
companhia e paciência.
À CAPES, por viabilizar parte desta pesquisa.
Enfim, a todos que, de modo direto ou não, contribuíram para a realização deste
trabalho.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo o questionamento da concepção que aborda a
fotografia como registro fidedigno e neutro da realidade. Não se trata de negar o aspecto
documental da fotografia, nem sua materialidade objetiva, mas antes, do reconhecimento
da fotografia como imagem intrinsecamente ambígua e polissêmica, uma representação
codificada do real e, portanto, reconhecer também seu caráter simbólico de objeto que
implica ser “decifrado” para que revele seus significados mais profundos. Para tanto,
utilizamos como base teórica autores que, de algum modo, abordaram criticamente a
imagem; entre eles, Vilém Flusser, Hans Belting, Arlindo Machado e Joan Fontcuberta.
Partimos das constatações observadas em nossa prática profissional de que, atualmente,
grande parte das mediações humanas são realizadas por intermédio de imagens e de que
esta relação nem sempre se mostra significativamente satisfatória em contexto inflacionado
de imagens, em particular no que diz respeito à visão acima, que toma a fotografia por
simples reprodução e não representação do real, ainda amplamente vigente. Entendemos
necessário um “desmonte” desta visão e a busca por possíveis abordagens mais ricas em
relação ao fenômeno fotográfico como um todo. Tomamos o procedimento denominado
estranhamento, desenvolvido inicialmente pelo grupo que veio a ser conhecido como
“Formalistas Russos”, como possibilidade de estratégia desautomatizante na relação
sujeito/imagem, buscando entender seus significados e práticas, utilizando como exemplo
sua aplicação na análise do trabalho do fotógrafo mexicano Pedro Meyer, em particular sua
obra denominada Heresias (2008).
Palavras-chave: Fotografia, Heresias, Estranhamento, Imagem.
ABSTRACT
This work aims to question the conception which deals with photography as a
reliable and neutral register of reality. This is not a refuse of the documentary aspect of
photography, neither its objective materiality, but rather the acceptance of photography as
a image intrinsically ambiguous and polysemic, a codified representation of reality and so
accept its symbolic character of object which needs to be “deciphered” in order to reveal
its deepest meaning. For this, we use theoretical basis authors who, somehow, discuss
critically the image; among them, Vilém Flusser, Hans Belting, Arlindo Machado and
Joan Fontcuberta. Our findings were based on our professional practice that currently most
of human measurements are made through images and that this relation not always are
significantly satisfactory in a context of excess of images, particularly with regard to the
above view which sees the photography as a simple reproduction and not a representation
of reality, yet widely present. We think that is necessary a “deconstruction” of this view
and the search of a richer approach related to photographic phenomenon as a whole. We
use the proceed called estrangement, initially developed by the group known as “Russian
Formalists”, as a possibility of a “frame-braking” approach in the relationship
subject/image, aiming understand its meanings and practices, using as example its use in
the analysis of the work of Mexican photographer Pedro Meyer, particularly his work
called Heresias (2008).
Key words: Photography, Heresias, Estrangement, Image.
Quando tudo tiver encontrado uma ordem e um lugar em minha mente,
começarei a não achar mais nada digno de nota, a não ver mais
o que estou vendo. Porque ver quer dizer perceber diferenças,
e, tão logo as diferenças se uniformizam no cotidiano
previsível, o olhar passa a escorrer numa
superfície lisa e sem ranhuras.
Italo Calvino - Coleção de Areia
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................10
I. DESCONSTRUÇÃO........................................................................................................24
1.1 A Gênese automática................................................................................................25
1.2 Objeto ambíguo.......................................................................................................39
II. ESTRANHAMENTO.....................................................................................................60
2.1 Pequena genealogia de um termo............................................................................61
2.2 Criação e hábito.......................................................................................................76
III. HERESIAS....................................................................................................................94
3.1 Origens.....................................................................................................................95
3.2 O Projeto..................................................................................................................98
3.3 A Obra....................................................................................................................102
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................142
10
INTRODUÇÃO
A fotografia é um instrumento perfeito para duvidar.
Adolfo Montejo Navas
Em seu livro El beso de Judas: fotografía y verdad
1, Joan Fontcuberta
2 afirma
que a história da fotografia pode ser contemplada como um diálogo entre a vontade de nos
aproximarmos do real, de apreendê-lo e as dificuldades de realização de tal intento. A
traição à qual se refere o título da obra de Fontcuberta já nos dá pistas sobre o modo como
a fotografia, pelo menos a que podemos chamar de contemporânea, responde a tal
problema. O título, certamente irônico, tenta dar conta das conclusões a que acabam por
chegar aqueles que, por determinados motivos, ainda insistem em buscar na fotografia uma
ontologia que não relativize, de algum modo, sua condição de espelho absoluto da
realidade.
Tecnologia criada a serviço da corroboração do real, supostamente isenta de
intervenções subjetivas, a fotografia, segundo este autor, na verdade nos trai – como, na
história, Judas trai seu mestre –, mente, camuflando os mecanismos culturais e ideológicos
embutidos, por assim dizer, em sua feitura que acabam também por se transportar para a
sua recepção3. E, é justamente esta aparência de real, sua verossimilhança, que é
1 FONTCUBERTA, 1997.
2 Joan Fontcuberta (Barcelona, 1955) tem exercido uma atividade multidisciplinar no mundo da fotografia:
criador, crítico, docente, editor e curador de exposições, colaborador de publicações especializadas em arte e
imagem (Nueva Lente, Aperture, Afterimage, European Photography e Lápiz). Em 1980, foi cofundador da
Photovision, uma publicação bilíngue (espanhol e inglês) da qual continua editor. Em 1996, foi nomeado
diretor artístico do Festival Internacional de Fotografia de Arles. Fonte: http://f508.com.br/perfil-joan-
fontcuberta/. 3 O termo “recepção” utilizado aqui e no decorrer do trabalho não pretende fazer referência direta a uma ou
outra teoria específica (tais como, por exemplo, a Teoria da Recepção de Hans R. Jauss). Embora possa, num
momento ou outro coincidir com os conceitos defendidos por tais autores, temos em mente uma concepção
mais fenomenológica do termo, como a que é comumente usada por Flusser em seus textos aqui citados, que
se refere, lato sensu, ao contato visual com uma imagem.
11
imediatamente tomada por afirmação de verdade. É neste sentido que nos alerta Vilém
Flusser4 a respeito das imagens, chamadas por ele “técnicas”, ou posteriormente,
“tecnoimagens” 5, isto é, aquelas criadas por meio de aparatos, neste caso, a máquina
fotográfica ou, mais atualmente, qualquer outro gadget que nos permita a captação de
imagens deste tipo. Afirma Flusser:
Elas são dificilmente decifráveis pela razão curiosa de que
aparentemente não necessitam ser decifradas. Aparentemente6, o
significado das imagens técnicas se imprime de forma automática
sobre suas superfícies como se fossem impressões digitais
(FLUSSER, 2002, p.13).
Isto é, numa abordagem mais superficial, o mundo representado numa imagem
fotográfica aparenta ser somente o resultado direto e imediato de uma complexa cadeia
causal. Ora, sem dúvida, a fotografia pode e, como observado na prática, no geral das
vezes assim o é, descrita deste modo. Quer dizer, ainda acompanhando o pensamento
flusseriano, o mundo a ser representado na imagem
(...) reflete raios que vão sendo fixados sobre superfícies sensíveis,
graças a processos óticos, químicos e mecânicos, assim surgindo a
imagem. Aparentemente, pois imagem e mundo se encontram no
mesmo nível do real: são unidos por cadeia ininterrupta de causa e
efeito (...). Quem vê imagem técnica parece ver seu significado,
embora indiretamente (FLUSSER, 2002, p.14).
4 “Vilém Flusser nasceu em 1920, em Praga, na antiga Tchecoslováquia, de onde foge em 1939, forçado pela
invasão nazista. Chega ao Brasil dois anos depois, após ter passado pela Inglaterra e, em 1950, naturaliza-se
brasileiro. A partir de 1960, passa a lecionar filosofia em instituições como FAAP (Fundação Armando
Álvares Penteado), ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e USP (Universidade de São Paulo) ao mesmo
tempo em que escreve para os jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo. Publica mais de trinta
livros em português e outras línguas, além de centenas de artigos em revistas e jornais de todo o mundo. Em
1973, muda-se para a França; passa a publicar na Alemanha e a ser reconhecido como filósofo dos novos
media. Sua obra Filosofia da Caixa Preta é editada primeiro em alemão e depois em português (encontra-se
traduzida em mais de 15 línguas). Em 1991, volta a Praga e morre nesse mesmo ano”. BERNARDO In
FLUSSER, 2007a). 5 Para maior aprofundamento da questão, ver: FLUSSER, 2011, p.117.
6 Grifo nosso.
12
Esta abordagem, denominada “ingênua” pelo autor, permanece amalgamada à
fotografia e a sua prática desde seu nascimento até os dias de hoje. Diversas são as razões
para a permanência deste tipo de aproximação em relação ao processo fotográfico, aqui
entendido como englobando a produção e recepção das imagens assim produzidas.
Permanência esta que se verifica tanto em nossa prática profissional, como fotógrafo,
quanto na condição de docente em cursos de fotografia e que se demonstra como agente de
alienação do sujeito em relação à vasta gama de significações possíveis, latentes nas
imagens fotográficas.
Alienação que toma a forma de anestesia perceptiva, resultante da certeza de
familiaridade absoluta que a superexposição ao imenso fluxo atual deste tipo de imagens
acarreta.
De modo que, acreditamos que uma relação mais interessante com este tipo de
imagem, algo que possibilite a desautomatização perceptiva de nossos olhares, passe antes
pela desconstrução desta abordagem “ingênua” e, posteriormente, por escolhas conceituais
e procedimentos que busquem fugir à regra, à norma vigente do que se instaura como
“clichê” ou padrão perceptivo em determinados momentos da produção imagética, sem,
contudo, afirmar tais procedimentos como fórmulas funcionais ou absolutas, mas antes
acreditando serem estes parte de uma possível práxis fotográfica mais consciente e
ampliadora de nossas concepções de mundo.
Por conta disso, no capítulo I, Desconstrução, levantamos algumas das
possíveis razões para o nascimento e a manutenção de tal abordagem no que diz respeito às
imagens fotográficas, sem pretensão de se esgotar tais questões, mas acreditando na
importância destas implicações para uma relação mais consciente com estas imagens.
É importante esclarecer que o termo Desconstrução aqui, embora não se refira
de forma única e absoluta aos conceitos relacionados a algum autor em especial, mantém
em mente referências a ideias vindas, não só, de pensadores como Martin Heidegger e
Jacques Derrida, no sentido que estes o utilizaram no que diz respeito à necessidade de se
decompor pensamentos arraigados e naturalizados, no intuito de se liberar novas
possibilidades de entendimento encobertas pelo passar do tempo e a familiaridade que
deste processo deriva. Trata-se de voltar a estranhar o naturalizado, aquilo que já nem se
percebe mais como construção.
13
É em sentido muito próximo a este que o fotógrafo e pesquisador Boris Kossoy
utiliza o termo “desmonte” do signo fotográfico, para afirmar que
Toda fotografia resulta de um processo de criação; ao longo deste
processo, a imagem é elaborada, construída técnica, cultural,
estética e ideologicamente. Trata-se de um sistema que deve ser
desmontado para se compreender como se dá sua elaboração,
como, enfim, seus elementos constituintes se articulam. Para tal
proposta, devemos perceber a complexidade epistemológica da
imagem fotográfica enquanto representação e documento visual
(KOSSOY, 2007, p. 32).
Também nos apoiamos nas ideias de outros autores, representantes de áreas
distintas, mas que, em diversas ocasiões, colocaram-se criticamente sobre a questão da
imagem, sua inserção na cultura humana e o modo como ela se refere ao mundo fora dela
mesma, tais como, Vilém Flusser, Joan Fontcuberta, Hans Belting, Norval Baitello jr.,
entre outros.
Não se trata então de questionar uma “verdade absoluta” para colocar outra, do
mesmo tipo, em seu lugar, mas antes, atualizar nossas concepções sobre algum fenômeno,
na tentativa de ampliar seus limiares e limites, em exercício de incessante investigação. Ou
mais, como sintetiza Flusser em sua autobiografia7, não se trata tanto de afirmar um
pensamento ou um modo de pensar em si, de prová-lo verdadeiro ou “logicamente” válido;
mas sim, de colocá-lo à prova, investir contra sua própria estrutura na esperança de que ele
se mantenha em pé aguardando o próximo abalo.
Ainda neste capítulo, tratamos em duas partes dos temas da relação que existe
entre a gênese automática ou a característica intrínseca à fotografia de ser o primeiro modo
de produção de imagens por meio de aparatos − sua característica de imagem técnica − e a
crença de que a fotografia é um meio neutro e fiel de reprodução da realidade; e também
das ambiguidades latentes no signo fotográfico que mostram a necessidade da ampliação
das abordagens que a reconhecem apenas como um índice da realidade. Embora
permaneça esta divisão em partes temáticas, estas se entrelaçam e reaparecem ao longo do
trabalho. Tal separação foi mantida apenas por julgarmos necessária a uma melhor
7 FLUSSER, 2007(a).
14
compreensão das ideias aqui colocadas com intuito de tentarmos entender melhor o porquê
da naturalização de tal relação “ingênua”.
Entrelaçamento que será também observado no trabalho como um todo, e que
resulta de uma abordagem que entende que instâncias tais como receptor/emissor, produzir
imagens/consumir imagens, ficcional/documental, geralmente entendidas como
coordenadas polares e, muitas vezes dicotômicas, na verdade se mostram mais como
fenômenos amalgamados e que estas divisões se apresentam importantes apenas como
intuitos didáticos.
De modo geral, neste capitulo pretende-se então questionar a visão, ainda
muito comum, da fotografia como reprodução fiel e automática da realidade, réplica
essencialmente objetiva do mundo, e como o fenômeno fotográfico é tratado enfaticamente
através da relação entre o homem e o aparato tecnológico, produtor da imagem fotográfica.
Não se trata, porém, de negar o aspecto documental da fotografia, afirmando uma absoluta
arbitrariedade de significados, mas antes, reconhecer sua natureza ambígua enquanto
documento e representação8 que parte do real.
Acreditamos que parte da questão se deve ao que chamamos de gênese
automática − tratada na primeira parte do capítulo − ou a característica de ser, a fotografia,
o primeiro meio de produção de imagens por meio de aparatos técnicos e o respaldo
científico que tal tipo de produção carrega em si no momento que podemos chamar de
“nascimento da fotografia” como a conhecemos. Por extensão, e novamente, sem
pretensões de esgotamento, torna-se importante a abordagem da implicação de questões
como a do papel da perspectiva renascentista – e o tipo de representação visual que com
ela começa a vigorar – em relação a tal problemática.
Parte do que aqui chamamos Desconstrução, trata do reconhecimento da
imagem fotográfica como imagem simbólica que precisa ser decifrada para que revele os
seus reais significados, portanto, uma, entre diversas possíveis, interpretação codificada do
mundo concreto. Torna-se então importante o desmonte de determinadas visões em relação
8 “Representação é um conceito da filosofia clássica, que utilizado em semiótica, insinua – de maneira mais
ou menos explícita – que a linguagem teria por função estar no lugar de outra coisa, de representar uma
‘realidade’ diferente. Está aí, como se vê, a origem da concepção das línguas enquanto denotação: as palavras
(e imagens) não são então nada mais do que signos, representações das coisas do mundo” (GREIMAS;
COURTÈS, 2008, p. 419).
15
ao fenômeno fotográfico no intuito de que tal procedimento nos leve a entender as reais
ambiguidades relacionadas a este processo e ao seu resultado, a imagem fotográfica.
A ideia da importância de tal procedimento, como já afirmado anteriormente,
surge da leitura dos trabalhos teóricos referentes à fotografia, mas também, e
principalmente, de longa prática de trabalhos realizados por meio de tal linguagem,
âmbitos onde ainda se verifica a forte vigência de tal pensamento em relação às imagens
como um todo, mas de modo bastante acentuado no que diz respeito à fotografia em si.
Esta prática mostra que a expansão do uso dos aparatos produtores de imagens
– devido, entre outros fatores, ao relativo barateamento, acompanhado da simplificação
cada vez maior de seu manuseio – torna-nos hoje, praticamente todos, criadores de
imagens ou ao menos seus “consumidores”. Em grande medida, ambos. Daí surge a
preocupação no tocante à maneira como nos relacionamos com este todo complexo que
envolve importantes interações humano/máquina e intersubjetivas.
As mediações humanas são, cada vez mais, realizadas por meio de imagens.
Estas são produzidas por aparelhos cada vez mais herméticos no que se refere ao seu
funcionamento e automatizados no que diz respeito a sua manipulação Desse modo,
estamos utilizando cada vez mais algo sobre o qual, no fundo, conhecemos cada vez
menos. É neste sentido que nos esclarece Regis Debray:
A técnica avança apagando suas marcas e quanto mais reforça sua
influência, tanto mais se escamoteia a si mesma. À medida que
cresce nosso suposto domínio sobre as coisas, diminui nossa
aptidão para dominar, nem que seja pela inteligência, esse mesmo
domínio (DEBRAY, 1994, p. 261).
Aceitamos como bônus cada nova função automatizadora que facilite o nosso
trabalho em relação à captura e manipulação das imagens. “Você aperta o botão, nós
fazemos o resto”, afirmava George Eastman (fundador da Kodak) em 1888, já anunciando
os termos da relação homem/máquina fotográfica e que marca até hoje grande parte dos
esforços dos fabricantes destes aparatos.
16
De modo que, a traição representada pelo “beijo de Judas” se expande para
além do aspecto colocado no início deste texto e toma a forma de um irônico paradoxo: a
automatização destes aparatos, preconizada e, de fato, assim comprovada, como elemento
facilitador no que diz respeito à produção das imagens fotográficas, parece apontar para
uma liberdade maior em relação a nossas escolhas, pois poderíamos – ao menos em tese –,
nos concentrar mais no que pretendíamos representar em nossas imagens, já que
precisaríamos nos preocupar menos com a utilização daqueles botões e comandos todos
que, outrora, marcavam a utilização do aparato fotográfico.
No entanto, a julgar pelo resultado da imensa maioria da produção imagética a
qual temos acesso, o que verificamos é justamente uma homogeneização cada vez maior de
tal produção. Isto, porque, ao menos em parte, o tal “resto” que a empresa de Eastman faria
por nós, a tal simplificação de nossa prática, de fato resulta em simplificação de resultados,
na medida em que são produzidos por programas cada vez mais amigáveis em sua
utilização e, portanto, universalizáveis em suas opções de escolha.
Ocorre que, como já notado por Flusser em seu histórico ensaio Filosofia da
Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia, pensamos estar cada vez
mais livres para efetuarmos nossas escolhas. Mas, na verdade, fotografamos aquilo que as
máquinas, as tais caixas pretas, através de seus programas progressivamente mais simples
(pelo menos no que diz respeito ao seu input e output9) nos permitem fotografar.
Flusser propõe então a necessidade de uma práxis fotográfica consciente de
seus códigos como fundamental para se entender as reais possibilidades de se viver
livremente num mundo cada vez mais programado por aparelhos. O autor nos alerta para a
necessidade de uma filosofia da fotografia que se oponha aos automatismos inconscientes,
decorrentes, entre outros motivos, da facilidade de manuseio cada vez maior destes
aparelhos.
9 “No caso específico de Flusser, o conceito de caixa preta deriva mais propriamente da cibernética. Nesse
campo particular, dá-se o nome de caixa preta a um dispositivo fechado e lacrado, cujo interior é inaccessível
e só pode ser intuído através de experiências baseadas na introdução de sinais de onda (input) e na
observação da resposta (output) do dispositivo. Em geral, caixa preta traduz um problema de engenharia:
como deduzir acerca do que há dentro de uma caixa, sem necessariamente abri-la, mas apenas aplicando
voltagens, choques ou outras interferências externas? No entender de Flusser, o transporte desse conceito
para a filosofia permite exprimir um problema novo: (que a fotografia foi justamente o primeiro dispositivo a
colocar) o surgimento de aparatos tecnológicos que se podem utilizar e deles tirar proveito, sem que o
utilizador tenha a menor ideia do que se passa em suas entranhas” (MACHADO In FLUSSER, 1998, p.12).
17
No texto acima citado, como parte do que seria uma práxis adequada, Flusser
aponta como exceção os “fotógrafos assim chamados experimentais” que “tentam,
conscientemente, obrigar o aparelho a produzir imagem informativa que não está em seu
programa” e “sabem que sua práxis é estratégia dirigida contra o aparelho”. Entretanto,
alerta Flusser: “Mesmo sabendo, não se dão conta do alcance de sua práxis. Não sabem
que estão tentando dar resposta, por sua práxis, ao problema da liberdade em contexto
dominado por aparelhos, problema que é, precisamente, tentar opor-se” (FLUSSER, 2002,
p.76).
Assim, no capítulo II, Estranhamento, buscamos verificar a possibilidade da
utilização do procedimento denominado Ostranenie (desfamiliarização, desautomatização,
estranhamento), teorizado pelo linguista, ligado ao movimento que ficou conhecido como
“formalismo russo”, Viktor Chklovski, como possível prática a ser incorporada na relação
sujeito produtor/receptor de imagem como alternativa para uma práxis mais crítica no que
diz respeito ao fenômeno fotográfico. Levantamos algumas de suas raízes e aplicações em
outras áreas ou linguagens além da própria fotografia e as transformações que neste
caminho ocorreram, por acreditar em seu potencial de aplicação à prática fotográfica e à
ampliação de sua compreensão já que esta, segundo Flusser, revela-se de fato difícil para o
observador ingênuo, incapaz de reconhecer que imagens fotográficas são conceitos
transcodificados que apenas pretendem ser “impressões automáticas” do mundo. “É tal
pretensão que deve ser decifrada por quem quiser receber a verdadeira mensagem da
fotografia” (FLUSSER, 2002, p.40).
Dentro do contexto atual e da importância da fotografia neste observada, torna-
se de suma importância “decifrar alguns significados”, dentre os diversos possíveis,
resultantes da interação entre sujeito e imagem. Isto porque partimos do pressuposto de que
a imagem deve ser abordada também como linguagem portadora de significados
simbólicos e não apenas como um registro puro e simples do real. Como afirma Arthur
Danto, somos, enquanto seres humanos, “ens representans” ou seres que,
constitutivamente , representam o mundo, e
que nossas histórias individuais são as histórias também de nossas
representações e de como estas representações se modificam no
decorrer de nossas vidas, que as representações formam sistemas
que constituem nossa imagem de mundo [...] que o mundo e nosso
18
sistema de representações são interdependentes, isto é, algumas
vezes mudamos o mundo para que ele se encaixe em nossas
representações e, noutras, mudamos nossas representações para
que elas se encaixem no mundo (DANTO, 2005, p.11).
E aqui o termo “portadora” deve ser entendido não no sentido de um simples
transporte de significado de um ente a outro, mas como um elemento que altera à medida
mesmo em que é utilizado, quer dizer, a própria linguagem aplicada determina alguns
significados; conteúdo e forma não são aspectos totalmente distintos, mas interdependentes
e que compõem um todo. Como no caso da linguagem fotográfica que pressupõe em sua
utilização, quase sempre, um comparativo imediato com o real ou verdadeiro.
Assim, procurar possíveis ferramentas que tragam contribuições a esta
compreensão mostra-se, em nosso momento, imprescindível visto que, como bem observa
Flusser, “quanto mais houver gente fotografando, tanto mais difícil se tornará tal
deciframento de fotografias, já que todos acreditam saber fazê-las” (FLUSSER, 2002,
p.79).
Nossa abordagem não intenciona uma “limpeza de campo” em busca de uma
verdade essencial sobre a fotografia ou seu “noema”.10
Uma verdade que aguardaria
ansiosamente seu desvendar, enterrada sob plurais visões equivocadas, através da redução
a seus componentes principais, “sua substância primordial”. Não se trata, portanto, de uma
abordagem totalizante ou totalizadora do fenômeno.
O que se propõe é uma aproximação ao fenômeno complexo que é a fotografia,
sua prática e algumas de suas diversas implicações, mas que, mesmo quando trate de seus
aspectos mais técnicos, tenha em mente não a técnica em si − o manuseio do aparato
utilizado para a captação de imagens − mas uma aproximação, como observou Hans
Belting11
, de caráter antropológico, no sentido de se pensar sempre por meio da implicação
do ente humano concreto em toda sua complexidade cultural, com a técnica. Se
aproveitarmos o próprio processo fotográfico como analogia, nossa aproximação se
entende como uma “fotografia”, que ao ser tirada de um continuum específico pode ser
10
Entendido como a unidade mínima de significado relacionada a algo, como em Barthes, que afirmava ser
“Isto foi” o noema da fotografia (BARTHES, 1984). 11
BELTING, 2007, p. 263.
19
considerada um comentário possível sobre este. Comentário que, somado a outros, pode
enriquecer nossa visão sobre aquele fluxo determinado, mas jamais abarcá-lo totalmente.
Não é objetivo deste trabalho impor métodos práticos, seja por achá-los
melhores ou corretos, seja porque, enquanto produtores/receptores/replicadores de imagens
verificamos a necessidade de uma ecologia profilática em relação às imagens. Mas a
tentativa de somar algo à lista de contribuições para uma relação mais saudável entre nós e
as imagens fotográficas.
A questão subjacente a nossa pesquisa, e que, de algum modo nos guiou durante
sua realização é: como pode se dar esta prática mais consciente? Ou, em decorrente
desdobramento: quais estratégias possíveis em relação à produção de imagens que voltem a
ser, nas palavras de Flusser, “mapas” que nos guiem no mundo e não “biombos” que se
interpõem entre nós e ele? Trata-se de promover o desmonte da ideia de fotografia como
cadeia causal, onde o objeto é causa e o efeito é a foto e passar a uma abordagem da
fotografia enquanto fenômeno distinto do acontecimento ou objeto do qual ela se originou,
portanto, fenômeno de segunda ordem ou reconfiguração do mundo.
Por fim, ainda é importante observar que muitos termos ou conceitos por nós aqui
empregados poderiam ser considerados como específicos do universo ou modalidade
usualmente chamada de “artística” ou “ficcional” da fotografia. Aquela que, de modo
geral, pertence mais ao âmbito das galerias e museus do que a dos periódicos jornalísticos,
por exemplo, esta, muitas vezes, denominada fotografia “documental”.
Tal emprego, no entanto, tem sua razão de ser. Em primeiro lugar, por entendermos
o termo “artístico”, acompanhando o pensamento de Flusser, em sentido mais amplo do
que a visão que separa as “Belas Artes” das artes menores, ou seja, a concepção ainda
predominante no ocidente e na história da arte em geral. Em sentido flusseriano, toda obra
que visa à produção de novos sentidos, que visa “lutar contra a entropia geral”, poderia ser
considerada “artística”.
Assim, todo trabalho que gerasse informação nova que pudesse ser publicada e, ao
menos potencialmente, sugerir novas maneiras de viver, poderia ser chamado de artístico.
De modo que artístico aqui, refere-se mais a uma práxis livre que é ao mesmo tempo
política, estética e ética − já que, para o autor, esta divisão é menos real e mais fruto de
20
uma “esquizofrenia moderna” − na forma de articulação do que ainda não foi articulado,
pois “o novo é criado ao se abrir o velho para o ainda-não-articulado” 12
, com intuito de
trocas subjetivas, quer dizer, com intenções de ordem comunicacional ou ainda, na síntese
de Flusser: “Trata-se da elaboração e da comunicação de modelos para nossas experiências
concretas do mundo”.13
Neste sentido, o “belo” aqui se torna a medida de aumento dos parâmetros do real,
e o desafio problemático da comunicação de ordem estética seria:
se ela contém muito pouca informação, (se é muito “tradicional”),
ela não é “bela”, (ela não aumenta o domínio da experiência). E se
ela contém muita informação, (se ela é muito “avant-garde”), ela
também não é “bela”, (ela não aumenta o domínio da experiência,
pois ela não comunica). O problema do artista é caminhar pela
trilha estreita que separa a banalidade da loucura, a redundância do
ruído. Encontrar essa trilha é persistir: é o que chamávamos,
antigamente, o “gênio” (FLUSSER, 1975, p. 12).
A partir destas observações, podemos então pensar arte ou o “belo”, o interessante
na arte, não mais pelas categorias fechadas de imitação de uma arte clássica ou pura e
simplesmente o afã pelo “mais novo” inédito. Mas pensar, por exemplo, novas relações
postas entre elementos antigos. Estendendo ainda mais este pensamento, sem no entanto
deixarmos de nos amparar no raciocínio de Vilém Flusser, pode se dizer que o grau de
“artisticidade” de um trabalho, sua qualidade “estética” − termo que, originalmente,
significava capacidade de ser notado, percebido − estaria mais relacionado a algo que se
afaste do programa posto, que crie situações improváveis, do que ao belo entendido como
“agradável” aos olhos, como observa o autor:
12
Flusser em Conferência na Maison de la Culture, Chalon s/ Saone, 26/3/82. In: FLUSSER, 1998, p.175. 13
“Aula não publicada, escrita originariamente em francês (‘L’art: le beau et joli’), para ser usada num curso
intitulado ‘Les phénomènes de la communication’ (Théâtre du Centre, Aix-en-Provence, 1975-1976). Trata-
se de um texto especialmente importante na bibliografia flusseriana, por tratar de modo direto da
conceituação de noções centrais da estética e da filosofia da arte. Tradução e Notas: Rachel Cecília de
Oliveira Costa. Revisão Técnica e Notas: Romero Freitas” (In: FLUSSER, 1975, p.9).
21
Se nós desejamos viver agradavelmente, devemos nos contentar
com os modelos velhos, tradicionais da experiência. Eles são
agradáveis, pois somos programados por eles. “Agradável”: é estar
dentro do meu programa de experiência. Mozart é mais agradável
que Schoenberg, eu estou programado por Mozart para a
experiência acústica (FLUSSER, 1975, p. 12).
Mas, o importante aqui é retermos a ideia de que “artístico”, dentro desta linha de
pensamento, não tem apenas a ver com o que costumamos entender, lato sensu, como
“arte”, mas com uma visão mais geral que amplia concepções já defasadas. Como no caso
da fotografia, onde, mesmo trabalhando sobre uma pauta − ainda que interna, pessoal −
com intenções “documentais”, os aspectos subjetivos, escolhas estéticas pessoais ficam
claramente evidentes14
.
Em segundo lugar, por ser esta também a abordagem central do trabalho do
fotógrafo que aqui analisamos, Pedro Meyer, que também não vê muito sentido nesta
diferenciação (ficcional/documental), e que costuma referir-se ao seu trabalho − mesmo
aquele onde o objetivo era a cobertura de conflitos sociais, pautado por jornais ou revistas
− usando a expressão “ficções documentais”, como propomos mostrar no capítulo III,
Heresias. Como declara o próprio Meyer:
Estou bem ciente de que os defensores da "imagem direta"
gostariam de manter a aura de veracidade da fotografia, mesmo
quando todos os fatos apontam contra este argumento. A fotografia
é um mero fragmento de evidência de algo que aconteceu diante da
câmera, não um fragmento da realidade como alguns querem
interpretar. Como sabemos, tal evidência é em grande parte uma
representação subjetiva, isto é tudo o que pode ser.15
Ali pretendemos analisar, sinteticamente, uma amostra do abrangente trabalho deste
fotógrafo mexicano, pois acreditamos ver neste um exemplo possível do tipo de fotografia,
fruto de procedimentos que poderiam ser chamados de desautomatizantes ou que foram
14
Podemos, como exemplo de tal procedimento, citar as obras do fotógrafo Sebastião Salgado, cujo trabalho,
em grande medida guiado por intenções “documentais”, possui carga subjetiva e preocupação estética
fortemente explicitadas. Ver: http://www.amazonasimages.com/accueil. 15
MEYER, Pedro. Fragmento extraído do editorial do site ZoneZero (em tradução livre do espanhol) de Nov.
de 2005. Disponível em: http://zonezero.com/editorial/marzo01/marzo.html. Acesso em: 1/2/2012.
22
conscientemente construídos pelo fotógrafo, com intuitos próximos ao procedimento
descrito no capítulo II como estranhamento. Concentramo-nos mais especificamente em
sua obra Heresias por acreditar que esta, em ambos os aspectos, conteúdo/forma, poderiam
nos revelar a possibilidade de utilização de tal procedimento, como prática interessante
dentro do universo fotográfico.
Muito embora o fotógrafo em questão não tenha se referido diretamente a este
procedimento ou ao termo estranhamento, seu próprio processo de escolhas, modus
operandi, e o resultado de sua longa produção nos parece demonstrar preocupações
paralelas e sintonizadas ao que são propostos como objetivos relacionados a este termo.
Acreditamos encontrar ali um exemplo possível de aplicação do procedimento de
desfamiliarização e desautomatização, não só em relação ao olhar, ou à fotografia em si,
mas também em relação a todo um cânone que permanece atrelado ao processo
fotográfico.
Por fim, ainda é necessário observar que embora este se pretenda um trabalho de
pesquisa científica e que esta, muitas vezes, tem como parte de sua caracterização a ideia
de neutralidade de valores, não acreditamos ser possível assumir uma neutralidade
absoluta, isto é, a isenção total de afirmações que demonstrem a tendência por
defendermos determinadas posições em detrimento a outras. Pensamos ser necessário
partir em direção ao conhecimento do modo mais aberto e despreconceituoso possível, mas
também − crença que provavelmente advém da relação não apenas teórica, mas também
prática, em proximidade cotidiana com o objeto central aqui estudado, a fotografia − que
posições podem e devem ser demarcadas no intuito de se ampliar a qualidade desta prática.
Como observa Flusser16
, trata-se da distinção entre “o que é” ou “como é”
(universo dos fenômenos), mundo do conhecimento e da pesquisa científica, do que “como
deveria ser”, “como seria adequado” (universo dos valores). Aquele, com necessárias
pretensões de universalidade, este intrinsecamente individual, já que opinativo, mesmo que
muitas vezes, em somatória, formem consenso. Acreditamos que, a mera escolha de
determinado tema ou de determinados autores − já que nos parece impossível tratar de
todos, principalmente no que diz respeito a um tema vivo, a fotografia, de produção teórica
em exponencial ampliação − já demonstra em si a adesão à determinada linha de
16
Ver: FLUSSER, 1987, p.45.
23
valoração; e também que esta, como muitas outras tratadas aqui, são distinções que não se
apresentam de modo tão claro e distinto na prática, quanto em sua teoria.
25
1.1 A Gênese Automática
Desde o seu surgimento e, de modo geral, até os dias de hoje a fotografia tem
sido tratada como meio de reprodução neutra e fidedigna da realidade. A abordagem da
fotografia como um documento que, simplesmente, copia a realidade de modo objetivo
permanece atrelada a este tipo de imagem de modo natural e ainda não suficientemente
questionado.
A expressão “gênese automática” foi extraída do ensaio A ontologia da
imagem fotográfica17
, do crítico e teórico André Bazin e, embora mantenha o mesmo
significado que o utilizado pelo autor, aqui nos serve, como veremos no decorrer da
exposição, com intenções argumentativas distintas.
Em seu texto, Bazin utiliza esta expressão – ao que tudo indica, criada por ele
mesmo – para referir-se à “objetividade essencial” e à suposta ausência da intervenção
humana no processo de produção de uma imagem fotográfica. Nas palavras do autor:
Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representação nada
se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma
imagem do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a
intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso
determinismo [...] Todas as artes se fundam sobre a presença do
homem; unicamente na fotografia é que fruímos da sua ausência
(BAZIN In XAVIER, 1983, p. 121) 18
.
Parte da intenção geral do ensaio de Bazin é distinguir a maneira como a
pintura e a fotografia representam a realidade e como esta (a fotografia), neste sentido, é
17
A versão aqui utilizada foi traduzida de André Bazin, Qu’est-ce que le cinéma? Vol. 1, Paris, Editions du
Cerf, 1958. In XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal:
Embrafilme, 1983, p. 121 ss. 18
Importante lembrar que a reflexão realizada por Bazin, no texto citado, ultrapassa em muito o significado
do trecho aqui utilizado e, se ainda assim o citamos, é por entendermos que é necessário mostrar que a visão
que aqui tentamos questionar era, e ainda é, muito comum e tem sua lógica e razão de ser.
26
superior àquela justamente por se tratar de “uma reprodução mecânica da qual o homem se
achava excluído”. Portanto, mesmo em 1958, pouco mais de um século após o que poderia
ser chamado do “surgimento” da fotografia, como a conhecemos mais genericamente,
ainda reverbera o tipo de pensamento que se concentra, quase exclusivamente, na relação
de representação entendida como direta entre o mundo concreto e a imagem fotográfica.
Assim, Bazin se refere a esta força de homologia, característica da fotografia,
como “transferência de realidade” 19
, e esta, por sua vez, seria justificada pela contiguidade
entre o mundo retratado e o retrato do mundo num processo mediado apenas pelo aparato
fotográfico onde o papel do sujeito, no caso o fotógrafo, resumir-se-ia apenas a se
posicionar e acionar o botão da máquina.
Ainda que, principalmente a partir dos anos 1980, à medida que se ampliam
os estudos relacionados a tal problemática, a abordagem acima tenha sido alvo de diversas
críticas, prevalece no pensamento comum20
a noção de fotografia como documento exato e
objetivo, ou como nos esclarece Flusser: “O caráter aparentemente não-simbólico,
objetivo, das imagens técnicas21
, faz com que seu observador as olhe como se fossem
janelas, e não imagens” (FLUSSER, 2002, p.14). Isto é, como se as imagens nos
fornecessem uma passagem direta ao mundo concreto, uma passagem imediata, se
tomarmos aqui a ideia de “janela” como um limiar entre o “aqui” e o “lá fora” e a esta
contrapormos a ideia de “imagem” justamente como mediação entre nós e o mundo.
O que Flusser pretende aqui, entre tantas coisas, é chamar a nossa atenção para
um equívoco muito sutil, mas de grandes consequências, no que diz respeito à maneira
como nos relacionamos com as imagens fotográficas. Uma relação que se tornou “natural”
devido à aparente inquestionabilidade de tal visão, atrelada a concepções de mundo
19
Significativamente a palavra japonesa usada para se referir ao que conhecemos como fotografia é
“shashin”, que é composta pela junção do ideograma pronunciado como “sha”, que pode significar
“reproduzir”, mas também “tomar”, “copiar” mais “shin”, que remete à “verdade”, “realidade”, portanto,
algo como “tomar a verdade” ou “copiar a realidade”. 20
Não se trata apenas do âmbito do que se costuma chamar de “senso comum”, mas também o pensamento
que ainda permeia grande parte da prática profissional fotográfica e, por extensão, a descrição ontológica,
que, mesmo de modo não consciente, costuma ser utilizada para se referir a este tipo de imagem. 21
Segundo Flusser, imagens técnicas são aquelas produzidas por aparelhos que, por sua vez, são produtos da
técnica que se caracteriza por ser texto científico aplicado. Muito embora o autor tenha se referido a este tipo
de imagem de outras maneiras, como “tecno-imagens”, por exemplo, para efeito das questões abordadas aqui
nos interessa sua diferenciação em relação às imagens nomeadas por Flusser como “tradicionais”, a pintura,
por exemplo, que se caracteriza por uma relação mais direta entre o sujeito e a imagem produzida.
27
correntes na época de sua formulação e o simples hábito que passou a reafirmar estas
noções.
E necessário então investigar, sempre levando em consideração a
impossibilidade do esgotamento total de tal problemática, o que sustenta esta “crença” na
objetividade representativa da imagem fotográfica, alinhando-nos à concepção oposta que
afirma que a fotografia, antes de tudo, é representação do real, uma “interpretação” do
mundo, que traz em si marcas indeléveis das escolhas que a geraram ou, como afirma
André Rouillé: “A fotografia nunca registra sem transformar, sem construir, sem criar”
(ROUILLÉ, 2009, p. 77).
Entre os motivos que caracterizam a fotografia como um tipo de representação
humana muito peculiar, podemos destacar o fato de que, devido a características do
momento histórico de sua gênese, ela ao nascer já inaugura consigo, como veremos,
discussões muito complexas em relação a sua própria ontologia.
Embora seus rudimentos, tais como a camara obscura22
– já teorizados por
Aristóteles, 23
que utilizou pequenos orifícios feitos nas folhas de uma árvore para observar
um eclipse solar e posteriormente utilizados por Da Vinci – datassem de muito tempo, a
fotografia propriamente dita surge entre nós por volta de 1839, respondendo às
necessidades de uma sociedade que passava por um período de grandes e cada vez mais
aceleradas transformações com seus novos ritmos impostos pelos meios de produção
capitalista e que precisava de meios mais “eficazes” no que diz respeito ao registro do
mundo à sua volta.
Quer dizer, à camara obscura – que consistia basicamente numa “caixa” com
vedação quase total à luz, excetuando-se um orifício por esta, rebatida pelo objeto a ser
22
Camara Obscura: Expressão latina que designa um tipo de compartimento mantido na obscuridade,
dispondo de um orifício num dos lados. A luz que entra por este orifício projeta na parede oposta uma
imagem invertida dos objetos exteriores. Este dispositivo foi pormenorizadamente descrito no século XVI e é
considerado precursor das câmeras. O princípio da Camara Obscura é mencionado, na Antiguidade, por
Aristóteles, na sua obra Problemática, mas é com Leonardo Da Vinci que a Camara Obscura é descrita
detalhadamente nos seus manuscritos Codex Atlanticus (1452-1519). O físico italiano Giambatista Porta
adaptou à Camara Obscura uma lente, em substituição do orifício convencional, o que permitiu obter
imagens mais luminosas e mais nítidas. A Camara Obscura foi muito utilizada pelos pintores do
Renascimento como auxiliar de desenho, uma vez que fornecia ao pintor a perspectiva pretendida. Restava só
introduzir um suporte sensível à luz que fixasse a imagem projetada. (http://www.infopedia.pt/$camara-
obscura; jsessionid =Zy l0hDp0bibUm-wWr4WV3g). 23
Ver: KOSSOY, 2007, p.48, n.r.21.
28
registrado passava, já há muito utilizada por artistas como artifício de precisão em relação
à representação do real – faltava ainda a isenção necessária só conquistada com o advento
da máquina fotográfica, uma vez que, na utilização da primeira (ver ilustração abaixo),
havia a intervenção do artista, ainda que restrita ao traço, ao copiar a imagem invertida do
mundo gerada na parede posterior da camara.
Ilustração representando a camara obscura
Respondendo às demandas de corroboração dentro de uma perspectiva
positivista24
vigente em considerável parte do pensamento da época – que pregava uma
abordagem metódica, racional e objetivista, opondo-se a qualquer metafísica –, a máquina
vem a substituir o que era considerado o último empecilho em direção à neutralidade e à
24
“Essa pretensa certeza ganhou força por conta de ser a fotografia considerada, desde seu advento, como um
registro, ‘objetivo’, ‘neutro’, produto de um mecanismo óptico-quimico ‘que não pode mentir’, um duplo da
realidade, uma reprodução mimética do objeto que se achava frente à objetiva. Nada mais adequado que essa
‘objetividade’ fotográfica para a comprovação dos preceitos do positivismo” (KOSSOY, 2007, p. 44).
29
absoluta fidelidade na representação do real, ou seja, a “imprecisão” humana, manifesta no
uso do olhar, da mão humana e do pincel25
.
Utilizando-se como referência a ilustração anterior, podemos visualizar
facilmente uma progressão da camara obscura para o que veio a ser chamado de máquina
fotográfica, onde o que muda é justamente a posição interferente − e a importância dada a
esta − do ser humano e de toda subjetividade implicada nesta presença. De parte integrante
intermediária no processo causal que resulta na imagem – já que ainda era a mão humana
quem copiava a imagem ampliada na parede da câmara –, a sujeito, segundo esta linha de
pensamento, acionador de um botão e de um processo que dali por diante seguia seu curso
automaticamente até resultar em uma fotografia. Em outras palavras:
Introduzia-se assim entre o processo de formação da imagem e o
sujeito uma separação física, uma distância, um afastamento, que
eram necessariamente lidos em chave de emancipação. No
afastamento e na distância subjazia de fato a ausência de
implicação e uma grande dose de neutralidade: a liberação da
subjetividade (FONTCUBERTA, 2012, p.187).
Isto impedia a fotografia de ser entendida como fruto de um ato expressivo, ou
resultado de interpretação subjetiva do mundo, pois que, resultante de trabalho
tecnicamente independente de aspectos fisiológicos − o corpo não estava ali envolvido −,
ficando assim, supostamente, apartada de quaisquer implicações de nossas vontades e
escolhas pessoais.
A gênese dos experimentos fotográficos surge em meio a momento em que,
como observa Fontcuberta26
, “os deuses já haviam abandonado os homens e o espírito
positivista dominava o mundo moderno”27
e acaba por materializar o desejo destes de
apreender, analisar e controlar a totalidade ao seu redor. Ao homem cabe o, um tanto
paradoxal, papel de observador individual do mundo, porém guiado pela universal “razão”,
manifesta na realidade por meio da pressuposta neutralidade do processo científico.
25
Neste sentido, afirma André Rouillé: “A mecanização, o registro, a impressão, todavia, são fatores de
verdade apenas em virtude da crença moderna que deseja que a verdade cresça à medida que diminua a cota
do homem na imagem” (ROUILLÉ, 2009, p. 64). 26
FONTCUBERTA, 1997, p.55. 27
Ver também: KOSSOY, 2007, pp. 44 e 54.
30
A ciência moderna nasce de uma ruptura radical em relação à visão anterior de
mundo. Ela se fundamenta numa premissa central revolucionária para a época, que
implicava “uma separação total entre o indivíduo conhecedor e a Realidade, tida como
completamente independente ao indivíduo que a observa” (NICOLESCU, 1999) 28
. Isto,
como parte de antigo projeto, coloca o sujeito observador em local privilegiado, o homem
vira farol que, pretensamente, ilumina toda natureza e seus mistérios e a “Ciência” a luz
que ilumina todo processo. Mas, apesar de humano, este conhecimento não poderia ser
relativizado por conta de diversos pontos de vista subjetivos relacionados aos diversos
sujeitos singulares. A razão deveria ser humana, porém universal, pois só assim
conseguiria desvendar a “verdade” subjacente a todos fenômenos.
De modo que a fotografia, desde sua origem vem sendo, ainda em grande parte,
compreendida como um meio da natureza, ou do mundo representarem a si mesmos devido
a sua suposta característica de neutralidade, como novamente exemplifica Fontcuberta:
A fascinação que produziu seu “descobrimento” apontava para a
ilusão de automatismo. Um slogan publicitário do daguerreótipo
afirmava: “Deixe que a natureza plasme o que a natureza criou”29
.
Tal declaração ontológica sobre a essência da imagem fotográfica,
pressupõe a ausência de intervenção, portanto, a ausência de
interpretação. Trata-se de copiar a natureza com máxima precisão e
fidelidade sem a dependência das habilidades de quem a realiza. A
consequência aparente era a obtenção direta, sem mediações, da
verdade (FONTCUBERTA, 1997, p.26) 30
.
Em seu aspecto dimensional, o espaço – entendido, desde o advento da
perspectiva renascentista31
(ver representação seguinte), como um sistema matemático,
28
Basarab Nicolescu, fundador e presidente do Centro Internacional de Pesquisas Transdisciplinares
(CIRET). 29
Em outro artigo, de 1838, com intuito de atrair investidores para desenvolver seu aparato, Daguerre
escreve: “O daguerreótipo não é apenas um instrumento que serve para retratar a natureza [...] dá a ela a
capacidade de reproduzir-se”. In SONTAG, 2006, p. 204. 30
Em tradução livre do original em espanhol. 31
Apesar de assim ser conhecida, segundo Norval Baittello jr., os princípios da perspectiva visual já teriam
sido teorizados pelo matemático persa Abu Ali al-Hasan (965-1040), muito antes do ocidente a perpetuar. In
BAITELLO jr, 2012, p. 66.
31
projetado racionalmente para se criar a ilusão de tridimensionalidade – converteu-se em
entidade mensurável e reprodutível em duas dimensões, de modo a tornar o homem, ao
menos no que diz respeito a representações visuais da realidade, a “medida de todas as
coisas”. A fotografia acrescentaria ao processo, então, a suposta isenção da automatização
técnica. A posterior possibilidade de “reprodução” mecânica do mundo em imagens
possibilitada pela fotografia gerou significativo impacto na maneira como registramos e
observamos o mundo, concretizando um paradigma de representação objetiva que elimina
a presença de algum autor individual.
Cristo entregando as chaves a São Pedro
Afresco de Pietro Perugino (1481-82) localizado na Capela Sistina
A perspectiva, característica intrínseca à produção da imagem fotográfica,
transforma o mundo percebido em universo racional, traduzindo em um ponto de vista
único os diversos e complexos momentos da percepção, funcionando como um símile da
causalidade: os objetos são encadeados em disposição que estabiliza, dá coerência e ordem
ao mundo. Organiza-os uns frente aos outros de modo claro, em relações hierárquicas,
32
universalmente coerentes como se todos se colocassem exatamente no mesmo local para
observá-lo. Contudo, observa Merleau-Ponty:
A perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva
geométrica ou fotográfica: na percepção, os objetos próximos
aparecem menores, e os objetos afastados maiores, do que numa
fotografia, como se vê no cinema quando um trem se aproxima e
aumenta de tamanho muito mais rápido que um trem real nas
mesmas condições (MERLEAU-PONTY, 2004, p.129).
Isto é, a perspectiva, antes de ser um meio de se captar a realidade como ela é,
trata-se de um modo construtivo de representá-la. Meio que foi culturalmente naturalizado
e está intrinsecamente ligado às representações fotográficas.
No ambiente social do século XIX, cenário onde surge a fotografia, era muito
forte a vigência da concepção de máquina como sinônimo de imparcialidade e precisão
científica. Servindo, inicialmente, como meio de documentação policial, auxiliar de
estudos botânicos e ao jornalismo, devido ao seu poder de credibilidade, a fotografia
respondia a uma demanda cada vez maior de ausência de subjetividade tão valorizada
naquele momento, pois
como qualquer outra, essa sociedade tinha necessidade de um
sistema de representação adaptado ao seu nível de
desenvolvimento, ao seu grau de tecnicidade, aos seus ritmos,
modos de organização sociais e políticos, aos seus valores e,
evidentemente, à sua economia (ROUILLÉ, 2009, p.31).32
Isto porque, “nenhuma técnica de representação do mundo é imortal. Somente
o é a necessidade de imortalizar o instável, estabilizando-o” (DEBRAY, 1994, p.40).
Referimo-nos aqui ao momento em que surge o que poderíamos chamar de
uma crise da representação, no sentido de certo abalo na confiança do valor de “verdade”
relacionado às imagens produzidas manualmente pelos homens, pois o mundo havia se
tornado mais vasto, veloz e complexo. O “agora”, alvo intrínseco ao ato fotográfico,
32
De modo análogo, afirma Michel Foucault: “Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política
geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros..., as técnicas e
os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade (...)” (FOUCAULT, 1989, p. 12).
33
tornava-se, em termos perceptivos, mais efêmero, portanto o mundo exigia daqueles que
almejassem seu registro e apreensão, meios que acompanhassem tais mudanças tão
significativas, um modo de registrá-lo com a precisão e velocidade com que este se
transformava.
O desenho − que possui a mesma raiz de desígnio e carrega em si os
significados de propósito, projeto, marca ou traço, portanto, uma ponte entre o intelecto, a
intenção e a marca singular e sensível da mão −, outrora considerado como eficaz
ferramenta na representação do mundo, que servira para “constituir a arte como um campo
de conhecimento intelectual”33
, já que extraia do mundo suas formas universais,
“conceitos”, não respondia mais às demandas de confiabilidade, como havia sido num
período anterior.
Desse modo, a fotografia chega ao seu formato final34
como fruto de extensas
pesquisas e com a importante “chancela” de juntar em si a representação imagética (até
então “subjetiva”) do mundo com conceitos científicos tais como as leis da ótica, presentes
no conjunto de lentes da máquina fotográfica (significativamente chamadas de objetivas),
reações químicas (a sensibilidade de algumas substâncias à luz), a matemática e a
geometria, pois a máquina já trazia em si incorporada um modo próprio destas ciências de
se olhar o mundo − a referida perspectiva.
A máquina fotográfica era vista então como aparato técnico, criado a partir da
racionalidade instrumental que produzia de modo “automático” reproduções do mundo
sem a “imperfeição humana” e de “indiscutível veracidade”. A partir disto se deduziu que
“a foto não interpreta, não seleciona, não hierarquiza”, pois regida por tais leis, ela “só
pode retransmitir com precisão e exatidão o espetáculo da natureza. Eis pelo menos o que
fundamenta o ponto de vista comum, a doxa, o saber trivial sobre a foto” (DUBOIS, 2006,
p.32).
Não se coloca aqui em dúvida o fato de que – pelo menos de modo geral e
quando é esta a intenção – uma fotografia nos remeta muito mais eficazmente à realidade
33
DIDI-HUBERMAN, 2013(a), p. 103. 34
Aqui consideramos como formato final aquele que de modo geral é entendido como resultante de
experimentos anteriores, como já dito sobre a camara obscura, e que se formata quando se consegue fixar a
imagem captada sobre uma superfície através de meios químicos, já que sua parte ótica já estava, de certo
modo, resolvida.
34
do que, por exemplo, uma pintura ou desenho como é afirmado no ensaio de Bazin, citado
anteriormente.
Parece não haver empecilhos em relação a concordarmos com declarações
como a feita pelo autor. Não obstante, elas demonstram ser resultado de uma dupla
abordagem que reafirma e traz em si embutida as mesmas características técnicas da
origem da fotografia: a ênfase na importância de corroboração científica (objetividade) e a
aparente isenção da interferência humana no processo devido a sua mediação
tecnológica.35
Pensamento este transformado pelo hábito – e a cada vez maior facilidade no
que diz respeito à utilização destes aparatos – em um tipo de consenso de princípio que
entende que o documento fotográfico presta contas do mundo com fidelidade, quer dizer:
Foi-lhe atribuída uma credibilidade, um peso de real bem singular.
Essa virtude irredutível de testemunho baseia-se principalmente na
consciência que se tem do processo mecânico de produção da
imagem fotográfica, em seu modo específico de constituição e
existência: o que se chamou de automatismo de sua gênese
automática. (DUBOIS, 2006, p. 25).
A ideia de que a fotografia coincide de modo absoluto com seu referente,
torna-se visão arraigada e difundida, fundada em convenções socioculturais e teorias de
caráter determinista, que parecem não necessitar de refutação, visto sua práxis parecer tão
facilmente comprová-la a todo instante.
A fotografia é tratada apenas e naturalmente como uma “emanação luminosa”
do próprio fenômeno retratado, numa “confusão ontológica entre signo e objeto”
(MACHADO, 1984, p.34), ignorando-se assim sua ambiguidade característica, conforme
veremos adiante36
.
Ora, é natural que a fotografia, enquanto um meio desenvolvido no sentido de
aperfeiçoar aparatos que já haviam sido criados no intuito de representar mais
35
É relevante notar que, em chave inversa, este mesmo discurso afirmativo da objetividade intrínseca da
fotografia seria responsável também pela considerável resistência inicial em aceitá-la como meio de
expressão artística. 36
Neste mesmo sentido apontam as reflexões do fotógrafo e pesquisador Boris Kossoy. Ver: KOSSOY, 2007.
35
perfeitamente o mundo (como a camara obscura) e que, para tanto, utilize práticas ainda
hoje consideradas comumente como padrão de definição do que é a verdade, ainda traga
em si a “marca” de absoluta verossimilhança e total neutralidade em sua referência ao
mundo objetivo. Com efeito, este tipo de análise parece se concentrar demasiadamente no
aparato (máquina fotográfica e seus processos interiores) utilizado para produção da
imagem e desconsiderar, pelo menos em certa medida, a intervenção humana – que
ultrapassa o simples apertar do botão – por parte daquele que objetivamente produz a
imagem, bem como por parte daquele que a recebe.
Ou seja, dito de outro modo, existe um “antes” e um “depois” humanos além
do momento “técnico” (momento “automático”), do “fazer fotográfico” e este, por sua vez,
no interior do qual acontecem codificações em relação à imagem, permanece, na maioria
das vezes, inacessível à compreensão mais leiga.
Como nos afirmou Flusser anteriormente, tais aparatos resultantes de teorias
complexas aplicadas, não nos deixam “ver” o que de fato ocorre em seu interior, parecem
também neutros, no sentido de não interferirem na realidade que por eles “entra” e “sai”.
O mesmo autor observa que a reprodução do mundo na fotografia passa a ser
codificada inclusive por filtros referentes à parte do aparato fotográfico, como é o caso dos
filmes de diferentes procedências utilizados no interior das máquinas, ou mesmo, para
sermos mais atuais, os diferentes tipos de sensores das máquinas digitais ou mesmo o
conjunto de lentes da máquina (objetiva), onde a luz é alterada para nos dar maior ou
menor profundidade/extensão de campo ou foco.
Tais filtros codificadores implicam, mesmo que de modo aparentemente
imperceptível, na construção de uma realidade específica, resultante da abstração da
realidade transformada, como nos esclarece Flusser: “O verde do bosque fotografado é
imagem do conceito ’verde’, tal como foi elaborado por determinada teoria química. O
aparelho foi programado para transcodificar tal conceito em imagem”. Obviamente, há
clara relação de convenção cultural entre o “verde” que vemos na foto e o “verde” que
vemos lá fora no bosque, para isto basta os observarmos, mas o processo de codificação se
revela ao verificarmos as diferenças entre a captação de tal “verde” observados os
36
resultados da utilização de diferentes tipos de negativos que resultarão em diferentes tipos
de “verdes”, “temos o ‘Verde Kodak’ contra o ‘Verde Fuji’” (FLUSSER, 2002, p.40).
Na prática, o que se observa é que, além destes e outros fatores “técnicos”,
ainda existem intervenções efetuadas no momento pós-captação que se realizam em grande
parte da produção de imagens fotográficas. A ideia de uma imagem produzida única e
exclusivamente pelo aparato em si não é exata. É certo que respondemos a um programa
embutido nestes aparatos37
, mas é certo também que o número de combinações possíveis e
variáveis fornecidas por estes programas é imenso e ultrapassa o razoavelmente
mensurável.
Pode-se verificar a intervenção humana em todas as instâncias do processo
fotográfico em si e também no percurso histórico da fotografia como um todo. Muito antes
das explícitas intervenções realizadas por meio de softwares de edição e tratamento de
imagens como o Photoshop e afins, já nos informava em 1931, Walter Benjamin:
Os clichês de Daguerre eram placas de prata, iodadas e expostas na
camara obscura; elas precisavam ser manipuladas, em vários
sentidos, até que se pudesse reconhecer, sob uma luz favorável,
uma imagem cinza pálida (BENJAMIM, 2008, p.93).
E é Benjamim também quem afirma, neste seu importante ensaio A pequena
história da fotografia, que a realidade expressa em uma imagem fotográfica é, muitas
vezes, de outra ordem pois “a natureza que fala a câmera não é a mesma que fala ao olhar,
é outra, especialmente porque substitui um espaço conscientemente trabalhado pelo
homem” (BENJAMIM, 2008, p.94). Ele se refere às possibilidades percebidas apenas
indiretamente por nós, devido mesmo às limitações de nossa percepção visual. Quer dizer,
a fotografia nos mostra, muitas vezes, uma “realidade” muito própria à captação do aparato
fotográfico em resultado a escolhas feitas por nós ao manipulá-lo. Imagens de pessoas
“paradas”, em pleno ar, em fotos realizadas de pessoas saltando; imagens revelando coisas
minúsculas imperceptíveis aos olhos humanos sem o uso de tais aparatos; percepções de
mundo nunca antes possíveis e construídas pela utilização de recursos auxiliares nos
37
A importante questão entre a escolha humana em relação aos programas embutidos em tais aparatos é
tratada em profundidade em FLUSSER, 2002.
37
revelando este “inconsciente ótico”. No entanto, é também neste mesmo ensaio, que o
autor nos lembra, utilizando as palavras de Bertolt Brecht, da insuficiência característica de
algumas destas imagens, quando nos atemos apenas às suas superfícies, sem nelas nos
aprofundarmos adequadamente:
Com efeito, diz Brecht, a situação “se complica pelo fato de que
menos que nunca, a simples reprodução fotográfica da realidade
consegue dizer algo sobre a realidade. Uma fotografia das fábricas
Krupp ou da AEG não diz quase nada sobre estas instituições [...]
As relações humanas, reificadas – numa fábrica, por exemplo –,
não mais se manifestam” (BENJAMIM, 2008, p.106).
De modo que, é sempre de uma realidade construída, técnica ou
perceptivamente, que nos fala a fotografia. Em grande parte, como já observado por
questões relativas a sua gênese técnica (como sua relação direta com a Perspectiva
Renascentista) o que parece ocorrer é antes uma imposição de verdade por meio de uma
“transferência de subjetividade”. Quer dizer, o que vejo na imagem fotográfica é, muito
mais, um ponto de vista específico de outrem, efetivado em uma imagem e “endossado”
por nós, o que significa que a construção em perspectiva, observada na fotografia,
nos dá sempre uma paisagem já vista e já dominada por um olhar;
isto significa que quando vemos uma foto não é simplesmente a
figura que nos é dada a olhar, mas a figura olhada por outro olho
que não o nosso (MACHADO, 1984 p. 94).
O que ocorre ao observarmos uma fotografia – falando agora de modo genérico
– é um tipo de anulação temporária de nosso discernimento e, devido sua força de
coincidência visual com o mundo, a identificação com a mirada do sujeito que vê a cena e
a registra a seu modo. A força de verdade é gerada então a partir desta visão imposta por
uma espécie de “sujeito transcendental” que nivela todos observadores e cria daí a
aparência de neutralidade objetiva que acaba por implicar a automatização do olhar38
causada pela familiaridade imediata com o que é visto tridimensionalmente.
38
Questão tratada adiante no capítulo II, Estranhamento.
38
É ainda Arlindo Machado quem observa que as imagens fotográficas não
expressam o mundo “passivamente” ou simplesmente reproduzem de modo neutro as
coisas, mas, ao contrário, constroem representações do mundo “como de resto ocorre em
qualquer sistema simbólico”, exceto por uma diferença fundamental, uma vez que
A imagem processada tecnicamente se impõe como entidade
“objetiva” e “transparente”, ela parece dispensar o receptor do
esforço da decodificação e do deciframento, fazendo passar por
“natural” e “universal” o que não passa de uma construção
convencional (MACHADO, 1984, p.11).
A nós parece que os modos de tal fazer precisam ser abordados como um
processo dialógico, que tem, inexoravelmente, o humano em seus dois extremos e que esta
ênfase em seu “meio”, que é o aparato tecnológico, advém, entre outras coisas, da já
mencionada necessidade de neutralidade como atestado de veracidade tão caro ao
pensamento vigente no momento de sua gênese.
Como afirma Fontcuberta, todo ato de percepção “requer uma aprendizagem e
está sujeito a diversos fatores adquiridos, não naturais” e embora para muitos “a impressão
da luz sobre os sais de prata” 39
– aqui especificamente falando da fotografia analógica –
seja a descrição de sua essência, isto seria reduzir um complexo processo à sua mínima
forma de expressão.
39
FONTCUBERTA, 1997, p. 87.
39
1.2. Objeto Ambíguo
Quase um século após a invenção do daguerreótipo, Walter Benjamim,
apontando para a importância da reflexão em relação à fotografia e a sua prática,
vaticinava:
Já se disse que “o analfabeto do futuro não será quem não sabe
escrever, e sim quem não sabe fotografar” 40
. Mas um fotógrafo
que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um
analfabeto? (BENJAMIM, 2008, p. 107).
Passado já quase outro século, ainda há muito que se pensar sobre o assunto.
São três momentos, radicalmente distintos de um mesmo fenômeno contínuo que, ainda
hoje, dá sinais claros de não ter terminado seu ciclo de transformações.
No primeiro, meados do século XIX, com Daguerre41
, onde, grosso modo,
pode se dizer que todas as condições necessárias a sua materialização alcançam a
maturidade, a fotografia é vista quase como uma manifestação mágica, rudimentar, um
lento e complicado processo, mas fruto direto de esforço científico no sentido de melhor
representarmos o mundo, juntando conhecimentos adquiridos sobre as leis da ótica e as
interações químicas entre certas substâncias e a Luz.
40
Frase atribuída ao pintor, designer e fotógrafo László Moholy-Nagy. 41
“Em 1793, Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) tenta obter imagens gravadas quimicamente com a
camara obscura. Nesta época a litografia era muito popular na França e como Niépce não tinha habilidade
para o desenho tentou obter através da camara obscura uma imagem permanente sobre o material litográfico
de imprensa. Em 1826 foi tirada a primeira fotografia permanente do mundo, quando Niépce expôs uma de
suas placas de estanho (durante aproximadamente 8 horas) com betume branco de Judéia que tinha a
propriedade de se endurecer quando atingido pela luz. Esse processo foi batizado por Niépce como
Heliogravura - gravura com a luz solar. O processo denominado Daguerreotipia seria a revelação controlada
com a placa com a imagem, sendo submetida a um banho fixador para dissolver os halogenetos de prata não
revelados, formando as áreas escuras das imagens. Inicialmente foi usado o sal de cozinha como elemento
fixador, sendo substituído posteriormente por tiossulfato de sódio que garantia maior durabilidade da
imagem”. Disponível em: http://www.eca.usp.br/prof/mylene/grad/Projetos/sites9/taniamm/Historia%20da%
20fotografia/hist%C3%B3ria _da_fotografia%2002.htm. Acesso em: 25/01/2014.
40
Exemplo de imagem produzida pelo Daguerreótipo.
No segundo momento, começo do século passado, a capacidade de observação
e análise crítica de Benjamim42
já notava claramente, ampliando as observações de
Moholy-Nagy, o que seria um futuro onde estas imagens se tornassem possivelmente,
graças à sua possibilidade de reprodução massiva, o principal médium das sociedades
urbanizadas e o processo fotográfico, por sua vez, já avançava com intenções de se
transformar em prática popular por conta das já correntes e práticas câmeras portáteis que
transformavam, como afirmou a respeito Regis Debray, um ato antes excepcional em
cotidiano “e a laboriosa operação do especialista, numa brincadeira de criança”. 43
E o terceiro momento, hoje, onde o presente mostra que a preocupação
benjaminiana tinha razão de ser. Porém, talvez nem mesmo um pensador muito além de
seu tempo, como ele, poderia prever o que aconteceria, menos de cem anos depois de sua
42
O ensaio de Benjamin de onde foi extraído o breve trecho acima, “Pequena História da Fotografia” (ver:
BENJAMIN, 2008, p.91), data de 1931 e a câmera portátil – Kodak – desenvolvida por George Eastman
surge em 1888. 43
DEBRAY, 1994, p. 265.
41
declaração. O quanto este fenômeno se expandiria, a ponto, como podemos observar
cotidianamente, praticamente todos se tornarem, mesmo que apenas eventualmente,
produtores destas imagens, utilizando-se dos mais variados gadgets que incorporam em si
a capacidade de captar imagens digitais, alterar suas aparências por meio de “filtros”,
editá-las e as distribuírem quase que instantaneamente.
O que ainda parece atravessar todos este momentos é esta espécie de ligação
mágica que com elas − fotografias − estabelecemos. Obviamente muitas transformações
ocorreram neste relacionamento. Em tempos de Photoshop, por exemplo, e após tantos
problemas de fraudes registradas (algumas de comprovação também duvidosa) em famosos
periódicos do mundo todo e até em conceituadas premiações do fotojornalismo44
, pode-se
dizer que, em certo sentido, já não somos enganados tão facilmente. No entanto, ainda se
percebe algo de ingênuo na relação que mantemos com estas imagens, ainda resta um
pouco do “comportamento mágico” que demonstramos em relação às fotografias. Ora, não
é justamente esta característica que torna as imagens tão eficazes, sua capacidade de nos
fazer acessar algo que não está ali a ponto de nos relacionarmos com elas como se, de fato,
fossem a presença do ausente?
Parecemos mesmo, como reflete Hans Belting,45
lidar com as fotografias como
se estas fossem um fragmento que a câmera “arranca do mundo” e coloca diante de nós e
não um comentário visual, entre todos os possíveis, sobre o mundo concreto. Em
consonância com o pensamento de Flusser, Belting também nos alerta para pensarmos a
imagem fotográfica como algo que simboliza nossas percepções e memórias do mundo e
não apenas reproduz o mundo como ele concretamente é.
Lidar com imagens fotográficas como se estas fossem apenas um “objeto”
fruto da utilização de um aparato técnico, parece ser uma abordagem insuficiente e
resultante de um tipo de pensamento de caráter objetivista ainda contido no fenômeno
fotográfico desde a sua gênese. Ocorre que, a permanência da relação entre este modo de
pensar e a fotografia permanece viva por razões, a nosso ver e entre outras, justificáveis
pela não observação de uma, entre tantas, ambiguidade intrínseca à imagem fotográfica.
44
Ver fraude em prêmio: http://blogs.estadao.com.br/28mm/agencia-associated-press-encerra-sua-colabora
cao-com-fotografo-narciso-contreras e http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view /ap_ dispensa_
fotografo _que_adulterou_uma_unica_imagem. 45
BELTING, 2007, p. 233.
42
Ambiguidade que não foi fruto de transformação posterior, mas parece ser
também inerente ao próprio fenômeno da fotografia, já que seu advento inaugura também
novas formas de se ver o mundo, ampliando nossa capacidade imaginativa46
. Segundo
Fontcuberta, esta outra faceta, diríamos, mais simbólica, foi relegada e mesmo “proscrita
como bastarda” devido a
Proeminência da cultura tecnocientífica e seus valores
subordinados, tais como o olhar empírico do positivismo ou a
atitude apropriacionista do capitalismo colonial. A câmera não só
impunha certa estética à forma de configurar o mundo como
também inventava novas categorias éticas, como a precisão e a
objetividade. De fato, a fotografia promovia um novo estágio da
consciência histórica na qual se começava a conceder à tecnologia
a missão de sancionar valores morais, como o rigor, e a verdade
(FONTCUBERTA, 2012, p.111).
Já, para Roland Barthes, “Isto Foi” 47
seria o “noema” ou uma descrição
ontológica apropriada à fotografia pois, de fato, se há foto, algo esteve em frente à máquina
numa determinada coordenada espaço/temporal e este algo foi registrado na imagem, ou
mais detalhadamente, como afirma Machado:
O pintor pode representar uma paisagem apenas de lembrança, ou
mesmo simular uma paisagem imaginária; o escritor trabalha com
signos que apenas remotamente apontam para um referente
concreto; mas diante de uma foto ninguém pode negar que “a coisa
esteve lá”: a presença do objeto fotografado nunca é metafórica
(MACHADO, 1984, p.38).
Provavelmente não possamos discordar do noema barthesiano, não sem
corrermos o risco de não mais podermos chamar o resultado deste processo de
“fotografia”. O problema parece ser nos darmos por totalmente satisfeitos apenas com esta
46
Podemos, hoje mais ainda, observar esta capacidade no fato de que grande parte do mundo que
conhecemos normalmente é apresentado por intermédio das imagens que deste são feitas. De modo que,
formamos em mente um mundo que, muitas vezes, só possui realidade nestas fotos. 47
BARTHES, 1984.
43
constatação, o “Isto foi”, e não buscarmos entender que tipo de testemunho podemos
encontrar nestas imagens. Quer dizer, acrescentar ao afirmativo “Isto Foi” algo como um
interrogativo “mas o que isto significa?”.
A importância aqui incide diretamente sobre este “apenas”, pois o caso é mais
de ampliar do que de negar abordagens unívocas em relação ao fenômeno fotográfico.48
A
imagem fotográfica, pensando-a em termos semióticos, quer dizer, como um signo49
, é
abordada na maior parte das vezes como um traço do real, isto é, um índice no sentido
Peirceano do termo.
De modo bastante sintético, podemos dizer que Charles Sanders Peirce propõe
uma divisão dos signos em três tipos: Índice, Ícone e Símbolo que se distinguem pelo tipo
específico de relação que cada um tem com o que eles representam ou seus referentes50
.
Assim, ainda de forma bem resumida, teríamos os Ícones como signos que representam por
semelhança, um exemplo poderia ser os desenhos colocados na porta dos sanitários para
diferenciar o masculino do feminino. Signos estilizados para provocar um reconhecimento
imediato, mas que remetem diretamente à aparência “um homem” e “uma mulher”, ou
mesmo, uma pintura que represente algo concreto; os Símbolos que representam por meio
de convenção geral, relacionada a uma cultura específica, por exemplo, como as palavras
de uma mesma língua que só fazem sentido dentro deste contexto e, por fim, os Índices que
representam por conexão física, como por exemplo, uma pegada na areia, uma impressão
digital, ou seja, signos que, em algum momento, foram afetados por objetos e mantiveram
uma relação de conexão real, de contiguidade física, estiveram imediatamente co-presentes
com seus referentes causais, ou como já em 1895 afirmava o próprio Peirce:51
48
No âmbito deste trabalho, entendemos “fenômeno fotográfico” como o complexo processo que envolve,
entre outras coisas, alguém que produz estas imagens, sua subjetividade, as escolhas e ações feitas a partir
desta, o aparato fotográfico em si e em relação aquele que o maneja, aquele que tem acesso a esta imagem e a
própria imagem em si. 49
Segundo Machado, “O signo existe, grosso modo, para remeter para alguma coisa fora dele mesmo, ou
seja, para ‘representar’ algo que não é ele próprio; daí a definição clássica de signo: aquilo que está no lugar
de alguma coisa” (conf. MACHADO, 1984, p.20). 50
Para maior aprofundamento, ver: PEIRCE, 1975. 51
Importante notar que, como já indicava o próprio Peirce, estas categorias não são puras ou excludentes,
mas se interpenetram e se apresentam de forma mais ou menos acentuada em cada signo como característica
dominante.
44
As fotografias, e em particular as fotografias instantâneas, são
muito instrutivas porque sabemos que, sob certos aspectos, elas se
parecem exatamente com os objetos que representam. Porém essa
semelhança deve-se na realidade ao fato de que essas fotografias
foram produzidas em tais circunstâncias que eram fisicamente
forçadas a corresponder detalhe por detalhe à natureza. Desse
ponto de vista, portanto, pertencem à nossa segunda classe de
signos: os signos por conexão física (Índice) (PEIRCE apud
DUBOIS, 2006, p.49).
Ainda que o objetivo de Peirce não fosse criar definições de caráter ontológico
para imagens fotográficas, muitos ensaios e estudos posteriores relacionados a este tipo de
imagem utilizaram-se deste enfoque para tratar do fenômeno fotográfico e, na prática
fotográfica cotidiana, entre os próprios profissionais produtores de imagens, podemos
observar uma grande maioria que entende a imagem fotográfica como um traço direto e
imediato (no sentido espacial do termo) da realidade. Portanto, algo como “um fenômeno
não simbólico” que já trouxesse em si explícito tudo que se pode dizer sobre o objeto ali
captado52
, uma imagem que, como observado por Flusser, não precisasse ser decodificada,
permitindo “que o significado transpareça pelo símbolo” (FLUSSER, 2007, p. 155), para
nos revelar suas mensagens e não um signo de caráter polissêmico.
É o próprio Flusser que, em sentido análogo53
, aponta para o equívoco de se
tomar as imagens fotográficas por “sintomas” ao invés de “símbolos”:
As tecnoimagens pretendem que não são simbólicas como o são as
imagens tradicionais. Pretendem que são sintomáticas, “objetivas”.
A diferença entre símbolo e sintoma é que o símbolo significa algo
para quem conhecer o convênio de tal significação, enquanto o
sintoma está ligado causalmente com seu significado... Tal
pretensão à sintomaticidade, à objetividade, da tecnoimagens é
fraude (FLUSSER, 2011, p.118).
52
É em sentido próximo que Roland Barthes, em seu importante estudo sobre a fotografia, chega a defini-la
como “mensagem sem código” (BARTHES,1984). 53
Importante esclarecer que não se pretende estabelecer quaisquer tipos de comparação teórica entre os dois
autores (Peirce e Flusser), porém, para a exposição do raciocínio que aqui tentamos desenvolver, o ponto
específico, semelhança, entre índice (Peirce) e Sintoma (Flusser) torna-se relevante.
45
Desse modo, continua Flusser, a palavra “cachorro”, por exemplo, simboliza
este animal, bastando que para isso entendamos o código envolvido em tal operação, que
no caso da palavra é a língua portuguesa, e uma pegada deste animal marcando o solo ou
algo assim “sintomatiza o bicho”. Na visão de Flusser, os aparelhos, neste caso, a máquina
fotográfica, “transcoda sintomas em símbolos”, em imagens e o fazem por meio dos
programas embutidos em tais aparelhos. E é por entender a tecnoimagem como simbólica
que o autor reconhece também sua ambiguidade, ou a ambiguidade com que estas imagens
comunicam seus significados, pois “o símbolo é fenômeno que representa outro fenômeno
que lhe é significado” e faz esta substituição “dialeticamente, porque o apresenta e
simultaneamente o encobre” (FLUSSER, 2007, p. 155).
Nesta mesma linha segue o pensamento de Arlindo Machado, que acredita que
uma das razões para os problemas em relação a uma compreensão mais clara do fenômeno
fotográfico deriva, justamente, de seu “enquadramento na categoria peirceana do índice”.
Segundo ele, “enquadramento, no mínimo, problemático”, já que tal fenômeno trata-se
mais de “um processo extraordinariamente complexo, que se encontra alguns anos-luz da
simplicidade franciscana dos índices visuais clássicos, como uma pegada deixada no solo
por um animal, ou a impressão digital” (MACHADO, 2000, s.n.).
Para ele, este enquadramento consiste em uma “aberração teórica” que, se
tomada a rigor, afirmaria ser fotografia outros fenômenos com poucas ligações com a
fotografia em si. Pois,
Se a “essência ontológica” da fotografia é a fixação do traço ou do
vestígio deixado pela luz sobre um material sensível a ela, teremos
obrigatoriamente de concluir que tudo o que existe no universo é
fotografia, pois tudo, de alguma forma sofre a ação da luz. Se me
deito numa praia para tomar banho de Sol, a pele do meu corpo
“registrará” a ação dos raios de luz sob a forma de bronzeamento
ou queimadura (MACHADO, 2000, s/p.).
Quer dizer, para este autor, a falta de uma “reflexão sistemática” sobre a
fotografia como símbolo somada a naturalização das teorias que apontam a fotografia
como índice, dentro obviamente do paradigma peirceano são, ainda em grande parte, as
responsáveis pela maneira como a fotografia é conceitualmente propagada. Do mesmo
modo, alerta-nos o etnólogo Sebastien Darbon, ao observar que
46
Uma imagem fotográfica é algo eminentemente fabricado, e essa
fabricação assenta-se sobre convenções relativas à representação:
representa somente algo que se assemelha às cenas no momento
em que são fotografadas. Assim sendo, o suposto realismo
fotográfico é algo do qual temos dificuldade de nos desprender, e
que produz seus efeitos de modo suficientemente pernicioso
(DARBON In SAMAIN, 2005, p. 97).
A essência da fotografia como índice, ainda é a abordagem prático/teórica que
define as descrições ontológicas relacionadas à fotografia. Isto porque, parte da formação
dos profissionais da área passa pela bibliografia disponível e esta, até certo ponto, é que
fundamenta a compreensão destes.
O centro da questão, para Machado, parece ser a incompatibilidade entre a
comparação das descrições do que seriam os índices com o que se observa, num olhar mais
demorado, na descrição do fenômeno fotográfico. Este dependeria de complexas inter-
relações, coordenadas e escolhas que tornam a imagem final algo muito diferente de uma
pegada na areia, por exemplo.
Uma pegada, enquanto índice − ou sintoma, em nomenclatura flusseriana −
revelaria uma relação de contiguidade direta com a areia, muito diferente de uma fotografia
que sofre diversas codificações, seja por intermédio das propriedades particulares do
aparato e posterior revelação e produção da imagem, seja por escolhas de caráter estético
ou ideológico por parte de quem a produz.
Assim, na abordagem deste autor54
, a fotografia pode ser considerada um signo
“de natureza predominantemente simbólica” muito embora, como ele próprio observa,
“ainda que um certo grau de indicialidade esteja presente na maioria dos casos”. Porém,
não somente resultado de “uma impressão indicial de um objeto”, mas também de
propriedades intrínsecas à câmera, escolha de lentes, mídia onde será apresentada, etc,
entre outros tantos fatores técnicos ou não.
Novamente, não se trata de negar este caráter que podemos chamar de
“documental” à fotografia, mas de apontá-lo como, a nosso ver, insuficiente para dar conta
de tal processo. A imagem fotográfica seria então composta por aspectos “documentais”,
no sentido de ter registrado num determinado momento uma “cena” do mundo concreto,
porém este “mundo” passa por diversos filtros codificadores antes de se transformar em
54
Particularmente em MACHADO, 2000.
47
imagem bidimensional (no caso, obviamente de imagens impressas). Se acompanharmos o
pensamento flusseriano, esta imagem estaria significativamente distante do que
classificaríamos como índice, visto que as imagens fotográficas seriam “imagens de
conceitos”, já que frutos de uma técnica (conceitos) que criou um aparato que lhe serve de
instrumento de captação que “transcodifica algo em cena”. A própria máquina
transcodifica estas determinadas teorias (perspectiva, ótica, química) em imagens e, do
ponto de vista do fotógrafo, as imagens são resultado da transcodificação de conceitos do
fotógrafo (ideologia, escolhas profissionais ou estéticas, repertório cultural) em imagens
fotográficas.
Convém, porém, lembrar que, apesar de considerarmos a imagem fotográfica
como algo que se apresenta codificado de diversas formas, isto não deve significar que
exista algo como um código único, específico, que nos permita decifrá-las totalmente, isto
é, não nos parece correto afirmar a existência de um sistema único de significação que seja
intrínseco a todas as imagens, mas antes, um complexo cultural e heterogêneo de códigos
que permanecem em constante transformação e que, desse modo, transforma a imagem
neste objeto de apreensão tão complexa.
Entre outras, uma das ambiguidades mais significativas a respeito da fotografia
reside neste seu caráter de ser ao mesmo tempo registro (documento) e construção
(linguagem): eu registro, por exemplo, uma paisagem à minha frente num “click”
instantâneo (salvo exceções), paisagem esta que se encontra ali pronta; não pude escolher
os locais onde seus elementos estão. Excetuando os casos onde há a interferência de
softwares específicos, não posso tirar aquela árvore da esquerda (a não ser que a extraia e a
replante em outro lugar, mas vamos ignorar este caso extremo) que, segundo algumas
regras de composição, ficaria melhor ao lado direito e assim por diante.
No entanto, outros elementos construtivos fundamentais, conscientes ou não,
interferem neste processo: o enquadramento que pode incluir e excluir elementos
significativos, a escolha de lentes que ampliam o campo de visão que costumamos ter do
mundo percebido ou mostrem detalhes quase inatingíveis a olho nu, a definição de abertura
e velocidade do obturador que pode impor uma hierarquia de importância a este ou aquele
elemento da imagem e assim por diante, além de outros elementos inconscientes, memórias
latentes em meu repertório imagético interno.
48
Outro exemplo que aqui pode ser apontado sem que, no entanto, devido às
limitações deste trabalho, seja explicado em toda sua complexidade, é a questão de se
perguntar, no caso de fotos captadas com a consciência de quem está sendo fotografado:
que tipo de real ali é captado? Ora, podemos observar em nosso cotidiano a alteração de
comportamento gerado nas pessoas quando uma câmera penetra em um determinado
ambiente e é percebida pelos sujeitos ali presentes.
Assim, caberiam algumas questões tais como: o real que está sendo captado
numa circunstância deste tipo, não é, ao menos em parte, criado pela própria presença da
câmera (além, é claro de todas codificações aqui já anteriormente apontadas)? A presença
da câmera ali, não se torna então um princípio construtivo de uma realidade específica que
de outro modo não existiria? Como falar de isenção e neutralidade em casos deste tipo?
Poderíamos até, como afirmam outros autores, assumir a radicalidade de tal
fluxo de pensamento e questionar se nosso próprio olhar para o mundo concreto já não é
em si transcodificador, como afirma Regis Debray:
Não, não há percepção sem interpretação. Não há grau zero do
olhar (nem, portanto, de imagem em estado bruto). Não há camada
documentária pura sobre a qual viria implantar-se, em um segundo
tempo, uma leitura simbolizante. Todo documento visual é, na
hora, uma ficção. (DEBRAY, 1994, p.60).
São diversos fotógrafos – e produtores de imagens que utilizam a fotografia em
seus trabalhos – que insistem na derrubada desta dicotomia “documental/ficcional”.55
E aí,
já não se trata de tentar derrubar um edifício de ideias tão antigo ou esvaziar a importância
de uma linguagem. Sim, pois é disto que se trata aqui, a fotografia enquanto uma
linguagem, uma construção codificada. A maneira como nos acercamos do mundo, no
sentido de entendê-lo, muda e grande parte destas mudanças refletem e ao mesmo tempo
são fruto de incrementos tecnológicos, como o foi a fotografia na época de seu surgimento.
Mas é Debray, também, quem nos mostra que a ambiguidade que aqui
tentamos apontar é a ambiguidade de uma relação, isto é, a diferenciação entre índice,
ícone ou símbolo não designa diferentes naturezas de objetos, mas antes, diferentes tipos
55
Como, por exemplo, o do fotógrafo Pedro Meyer (ver capítulo III, Heresias).
49
de “apropriações do olhar”, modos diferentes de aproximações de um fenômeno e é
também por isto que aqui falamos na necessidade de uma abordagem múltipla para nos
aproximarmos eficazmente do fenômeno fotográfico.
De modo que, existem outros fatores além da contiguidade física entre a
objetiva56
da máquina fotográfica e o objeto a ser registrado e a suposta isenção humana no
processo mais básico de captação da luz por uma superfície sensível que devem ser
analisados se quisermos obter uma aproximação esclarecedora de tal fenômeno.
É preciso reconhecer este caráter ambíguo da fotografia (que, até certo ponto,
pode ser estendido às demais imagens produzidas por aparelhos), a característica de ser
algo que não se abre ao esclarecimento a não ser que se rompa este tipo de purismo
ontológico que define as coisas por meio de aproximações do tipo “é isso ou aquilo” ao
invés de “é isso e aquilo” ou como observa Dietmar Kamper em relação às imagens em
geral, reconhecer
Essa posição mutável entre uma ordem mágica da plena presença
na qual a imagem é idêntica àquilo que mostra e uma ordem da
representação que tende ao vazio, no qual, no melhor dos casos, é
semelhante (uma impressão, um espelho, uma semelhança…),
nunca se perdeu de todo... Ambígua desde o começo, “imagem”
significa, entre outras coisas, presença, representação e simulação
de uma coisa ausente (KAMPER, 2002, pp. 2 e 12).
É Hans Belting57
– que em sentido próximo ao que tentamos esclarecer, já
havia também chamado a atenção para a necessidade de se entender a fotografia como algo
que, embora fosse um “índice da realidade”, trazia em si implícita a “ausência”
propriamente constitutiva das imagens – quem aponta que a fotografia já foi considerada a
“Vera Icon da Modernidade” e continua a pagar esta “hipoteca”, como podemos observar
em sua prática e muitas vezes na maneira como ela é conceitualmente abordada.
Porém, ela nunca realmente reproduziu os fatos da realidade, mas antes,
“sincronizava o nosso olhar com o mundo”, ela era mais uma reprodução de um modo de
56
A própria objetiva é um elemento codificador que transforma de maneira significativa as emanações
luminosas em imagem fotográfica. Para o aprofundamento desta questão, ver: MACHADO, 1984. 57
BELTING, 2007, pp. 236 e 266.
50
ver o mundo do que do mundo em si, geometrizando, nivelando, classificando e
hierarquizando visões específicas da realidade.
Ao que tudo indica, o autor se refere ao “Véu de Verônica”, que seria o pano
em que uma das mulheres que acompanhava o calvário de Jesus passou-lhe sobre o rosto,
transferindo para o tecido suas feições gravadas em sangue. Vale notar que, embora
existam diferentes versões para a história desta, que viraria posteriormente importante
relíquia, a mulher é chamada de Verônica possivelmente por uma transformação do termo
Vera Icon ou Imagem Verdadeira.
Este pedaço de tecido teria sido elevado a status de documento comprobatório,
atestado de veracidade existencial, justamente por sua característica de – a partir da
classificação sígnica aqui vista anteriormente – signo indicial, novamente, aquele que teve
relação de contiguidade com o objeto concreto ao qual este dá significado. No entanto,
com o passar do tempo e devido mesmo à importância do que ali se representava, este
objeto passa a ser tratado como um símbolo de intensidade incontestável para muitos.
Neste caso específico, enquanto índice o que se contesta é se, de fato, o rosto impresso ali é
mesmo o do filho de Deus. Transportado à categoria de símbolo, este questionamento
perde a razão de ser, pois, à revelia de discordâncias em relação à comprovações técnicas,
para muitos o martírio está ali representado.
Assim, parece haver um certo delay, um descompasso entre a complexidade do
mundo atual – os modos de compreensão deste – e a maneira como nos relacionamos
conceitual e praticamente com o fenômeno fotográfico. Sem dúvida, a “hipoteca” a qual se
refere Belting ainda é paga pela fotografia, que para muitos é apenas rastro deixado numa
superfície e que assim com ela se relacionam.
A complexidade e importância da fotografia – e, por extensão, das imagens em
geral – torna-se novamente aguda como foi nos revolucionários momentos de sua aparição
e atual expansão. Naquele, como quebra de paradigma da percepção e, neste, por
transformar a relação do humano com as imagens em um mundo onde elas são tão
presentes.
Mesmo que de modo não consciente, o sujeito se apropria das mensagens, as
ressiguinifica, dá-lhes sentidos diferentes, sintetiza novas informações a partir da mistura
destas com suas imagens “endógenas” e muitas vezes as reproduz na forma de suas
próprias imagens.
51
É possível então dizer que a fotografia em si, enquanto objeto, impresso ou
não, pode ser considerada fruto de um processo de captação de um fragmento do concreto,
um traço do “real” que, no entanto se “anima”, toma vida ou mesmo é recriada,
reconfigurada por nós, enquanto sujeitos que tomam contato com elas tornando se assim,
nesta relação, imagem simbólica, um signo aberto em sua polissemia.
A fotografia parte sim da realidade fenomênica, mas o que ela nos oferece
como produto final é uma realidade de outra ordem, um outro tipo de fenômeno por assim
dizer, uma realidade simbólica de tipo especial, pois, como observa Flusser, as imagens
“não são conjuntos de símbolos com significados inequívocos, não são ‘denotativas’.
Imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo, neste sentido, são
símbolos ‘conotativos’” (FLUSSER, 2002, p.8). E, sendo assim, permitem inclusive
interpretações contraditórias.
Pensar a imagem fotográfica não mais como algo de significado unívoco
(portanto, cancelar a “hipoteca” a qual se refere Belting), liberta-a para, entre outras coisas,
ser fonte poderosa de expressão e mesmo troca de experiências existenciais.
A própria palavra símbolo, que segundo Debray, origina-se de symbolon
derivado de symballeín, significa reunir, colocar junto e, em sua origem, designava uma
téssera (espécie de pequena plaqueta) que tinha a função de sinalizar hospitalidade,
um fragmento de taça ou de tigela quebrada em dois por hóspedes
que transmitem os pedaços aos filhos para que, um dia, possam
reencontrar as mesmas relações de confiança, ajustando os dois
fragmentos lado a lado (DEBRAY, 1994, p. 61).
Um sinal também, portanto, de reconhecimento com intuito de reparar uma
separação ocorrida no tempo, o retorno de um acordo, a retomada de um entendimento.
Espíritos então separados pela distância, tempo ou mesmo por características pessoais são,
pelo uso de um “objeto convencional”, reunidos através desta mediação. Ainda segundo
Debray, simbólico e fraterno são sinônimos: “não se fraterniza sem alguma coisa para
partilhar, não se simboliza sem unir o que era estranho” e é esta a razão de ser primordial
do símbolo, reunir, mediar. Sintomaticamente, em grego, o antônimo do termo é diabolo
ou aquele que separa, diabólico (DEBRAY, 1994, p. 61).
52
É ainda Debray quem afirma que “a linguagem falada pela imagem,
ventríloqua é a de quem olha”. De modo que, sim, as imagens tem muito a falar, mas falam
a partir de nós, somos nós que damos a elas alguma voz. E não se trata da mesma voz que
damos às palavras, já que “a imagem pode ser interpretada, mas não lida”:
Uma cadeia de palavras tem um sentido; uma sequência de
imagens tem mil. Uma palavra pode ter larguíssimo número de
acepções, mas suas ambivalências são identificáveis em um
dicionário, exaustivamente enumeradas: pode-se chegar ao fim do
enigma. Uma imagem é para sempre e definitivamente enigmática,
sem "boa lição" possível [...] uma Polifonia Inesgotável
(DEBRAY, 1994, p.59).
Assim, pensar a imagem fotográfica como imagem simbólica, implica em
entendê-la como abertura para diálogo, pois só na troca é que seus significados diversos e
infindáveis poderiam nos levar a compreensões para além de nós mesmos, para
significações que transcendam as nossas próprias e as enriqueçam ou a pensarmos com
Flusser, trocar “diferentes informações disponíveis, na esperança de sintetizar uma nova
informação” 58
ou novos modelos existenciais significativos.
Pode-se então tomar de empréstimo a distinção flusseriana entre discurso e
diálogo para entender que a imagem fotográfica, quando abordada exclusivamente como
índice, ou sintoma direto de um fenômeno da realidade concreta torna-se discurso, ou
forma de se perpetuar uma informação, de modo que costumamos chamar o resultado desta
abordagem de documental. Ora, sua característica de documento está intrinsecamente
ligada à ideia de veracidade que dela formamos, sua conexão indiscutível com algum
fenômeno concreto, quer dizer, para ser documento de algo ou relatar fielmente o modo
como algo se deu, é preciso que esta aponte para uma direção significativa só.
No entanto, aqui há um perigo de fechamento e estagnação, pois este tipo de
aproximação nos levaria a apenas transmitir uma informação, por muitos vista como útil e
definitiva, uma vez que aponta para verdades indubitáveis. Estaríamos, como muitas vezes
parecemos estar, incapazes de gerar novos significados a partir das imagens por
58
FLUSSER, 2007, p.97.
53
simplesmente acharmos que, já esgotados seus significados imediatos, só restaria nos
acostumarmos a viver com elas em nosso entorno sem delas extrairmos nada mais. Pois é
necessário, como afirma Kossoy, um sistemático e sensível exercício:
Devemos aprender a nos comunicar com as imagens, dialogar com
elas, decifrar seus códigos e resgatar suas realidades interiores,
seus silêncios, isto é, seus significados, o sentido − da vida e das
ideias − escondido sob a aparência de suas realidades exteriores
[...] a realidade das aparências (KOSSOY, 2007, p. 154).
Já, o perigo de uma abordagem totalmente aberta, de relatividade radical, seria
a de simplesmente as abandonarmos a sua condição de informação, pois aquilo que pode
significar absolutamente qualquer coisa, corre o risco de nada significar.
Obviamente aqui se fala de extremos conceituais que nos servem
esquematicamente de forma didática, mas que se complexificam em suas realidades
factuais. Se continuarmos a pensar ancorados pelo pensamento flusseriano, entenderemos
que as duas abordagens são complementares e interdependentes, pois, não há informação
nova a ser passada adiante se esta não foi anteriormente captada em discurso ou, nas
palavras de Flusser:
Para que surja um diálogo, precisam estar disponíveis as
informações que foram colhidas pelos participantes graças a
recepção de discursos anteriores. E, para que um discurso
aconteça, o emissor tem que dispor de informações que tenham
sido produzidas em diálogo anterior (FLUSSER, 2007, p.97).
A informação rica seria aquela sintetizada por meio deste complexo processo
de troca que se dá no ambiente da cultura, esta também vista como um processo
interminável de transformação, muitas vezes conflitante de intersubjetividades.
Enquanto produtores de imagens, cabe-nos o papel de entender a fotografia
como fruto de aparato tecnológico, consequentemente, com características próprias
advindas de programas desenvolvidos no sentido de uniformizar – até por questões de
mercado – seu uso, mas também como forma de produzirmos informações interessantes do
ponto de vista dialógico anteriormente exposto.
54
Para isso, torna-se necessária certa mudança de abordagem ou, a partir das
possibilidades abertas pelo pensamento de Vilém Flusser, trocar o foco da ideia de
fotógrafos enquanto “produtores de fotografias” para “transmissores de informação” por
meio da fotografia. Não a “informação programada” e automatizada dos aparelhos e das
convenções culturais, mas informação que supere significativamente tal programação
(FLUSSER; BEC, 2011, p.122).
De outro lado, enquanto consumidores destas imagens − sempre entendido em
seu significado amplo, isto é, que se refere a todos que de algum modo travam contato
significativo com estas −, entendê-las como comentários específicos sobre o mundo que
podem, através de processo intersubjetivo, sintetizar e produzir tal riqueza de informação.
Enquanto imagem documental, rastro indicial, ela pode conservar um pouco de
sua aparente transparência com intuito de nos transportar até o ocorrido ou tentar trazê-lo
até nós. Mas se esta transparência é, por nossa percepção, levada ao seu extremo podemos
nela nos perder, como alguém que vive um sonho e nele deposita sua confiança total sem
dele posteriormente se afastar para entendê-lo ou reconhecer seus aspectos simbólicos, ou
seja, uma espécie de alucinação. Corremos o risco, como há muito já alertava Flusser, de
confundir as imagens com janelas imediatas para o fenômeno ali registrado. Um portal
espaço/temporal que ignora, entre outras coisas, as codificações culturais envolvidas nos
momentos de captura e recepção destas imagens.
Noutro extremo, se tomarmos estas imagens, que aqui, apenas por questões de
explanação, denominaremos ficcionais, ou desconsiderarmos justamente estes aspectos
ligados a sua origem indicial, o que significa “descola-las” totalmente do momento no
continnum ao qual ela mantém uma certa ligação, perderíamos um ótimo instrumento de
conhecimento em que, não só a fotografia, mas todas imagens criadas pelo ser humano,
podem se transformar.
Importante reafirmar que estes são dois extremos conceituais didáticos. Não se
trata de defender um deles como melhor ou não. Talvez se trate mesmo de reconhecê-los,
afinal, como categorias que remetem ainda há um outro tempo, uma outra forma de
explicar o mundo que, apesar de já bastante questionada em alguns meios, ainda
permanece bem viva no pensamento comum. Em sentido próximo, afirma Kossoy:
55
O processo de construção do signo fotográfico implica
necessariamente a criação documental de uma realidade concreta.
Trata-se, entretanto, da realidade da representação que, não raro,
conflita com a realidade material, objetiva, passada. Do ponto de
vista do receptor, há um confronto entre o documento presente
(originado no passado) com o próprio passado inatingível
fisicamente, apenas mentalmente, subjetivamente (KOSSOY,
1996, s/p.).
As imagens nos colocam em contato com o mundo trazendo-o, de um certo
modo, até nós, permitem-nos acessá-lo mesmo à distância física; podem ser instrumentos
de conhecimento, mas também criam maneiras diferentes de enxergá-lo; influenciam nosso
modo de ver as próprias imagens que dele criamos. Assim, uma aproximação que afirme,
reiterando o que já foi dito, o caráter “isso e aquilo”, que não vê na ambiguidade,
necessariamente, um impasse, parece ser mais adequada aos nossos tempos e sintonizada à
maneira como outras áreas do conhecimento demonstram contemporaneamente se
aproximar dos fenômenos.
São dois aspectos importantes e não excludentes e muitos envolvidos com a
produção de imagens fotográficas, de um modo ou de outro, já há um certo tempo o
perceberam. Não é possível listá-los todos aqui, mas, é notório o trabalho de Juan
Fontcuberta (influenciador e influenciado por Flusser) com grande e premiada produção
artística, acadêmica e docente e do fotógrafo Pedro Meyer (ver capítulo III, Heresias),
ambos, cada um a sua forma, trabalhando para fortalecer e ampliar esta região que se
localiza entre os dois extremos expostos acima, tratando de mudar, de dentro para fora, a
maneira de nos aproximarmos da fotografia. É Pedro Meyer mesmo que afirma ser seu
trabalho “ficção documental” em ambos aspectos, de conteúdo e forma. Trabalhando em
“região” onde muitos ainda caracterizam como “herege”, pecha que reflete o quanto ainda
se encontra esta linguagem, presa a cânones há muito estabelecidos.
Vista desse modo, a fotografia pode libertar-se da “hipoteca” apontada por
Belting e passar a ser instrumento de transcendência e criação de novas realidades, ao
invés de queremos cobrar aquilo que dela não podemos esperar devido mesmo a sua
própria natureza de imagem, como afirma o autor:
56
Somos rápidos em criticar as imagens porque elas mentem, algo
que nós não lhes perdoamos. Porque nelas procuramos provas
daquilo que queremos ver com os nossos próprios olhos. Quando
isso não é possível, exigimos imagens, para podermos nos fazer
uma idéia de algo. Com isso, chegamos rapidamente à imagem
autêntica, algo que não é mais do que um conceito diferente para
uma imagem que reproduz a realidade tal como ela é. As imagens
são usadas como janelas para a realidade. Porém, como o nosso
conceito de realidade muda constantemente, muda também a nossa
expectativa diante das imagens. É provável que o fato de nós
querermos ter fé nas imagens esteja relacionado com essa
expectativa, mas as imagens têm que justificá-la (BELTING, 2005,
p. 1).
E é também Belting quem nos fala da necessidade – no que diz respeito ao
estudo e a compreensão do que vem a ser as imagens – de uma “abordagem
antropológica”, isto é, um enfoque mais direcionado ao ser humano, sem que se deixem de
lado questões da técnica, ou melhor, concentrar-se mais na relação entre o humano e a
imagem do que na própria imagem como objeto de análise. Pois somos nos mesmos quem
damos unidade simbólica aquilo que chamamos de imagens, resultante de síntese entre o
que vemos, o que vimos, o que imaginamos. O autor também esclarece que a imagem está
para além de simples produto da percepção humana, mas resultado de “simbolização
pessoal e coletiva”, pois
tudo o que passa pelo olhar ou frente ao olho interior, pode ser
entendido como imagem ou transformar-se em uma. Devido a isso,
se considerarmos seriamente o conceito de imagem, unicamente
pode se tratar de um conceito antropológico (BELTING, 2007,
p.14).59
Em suma, a desconstrução que propomos, refere-se ao questionamento da
visão polarizadora que separa de forma “clara e distinta” o fenômeno fotográfico em
documental/ficcional, índice/símbolo, dentre tantas outras. Objetividade absoluta de um
lado e exploração ficcional ou artística de outro. O que não quer dizer que não existam
produtores de imagens que ainda trabalhem se utilizando destas distinções e outros tantos
estudos que assim dividem o fenômeno fotográfico. Porém, tendemos a pensar como Joan
59
Em tradução livre do original em espanhol.
57
Fontcuberta no sentido de que a câmera fotográfica é, obviamente uma máquina, mas, de
certo aquele que a opera, o fotógrafo, não é um robô, já que
O ato fotográfico submete o fotógrafo a uma sequência de decisões
que mobiliza todas as esferas da subjetividade. O fotógrafo é um
personagem que pensa, sente, se emociona, interpreta e toma
partido. E faz tudo isso, inclusive sem perceber [...] de modo que a
história da fotografia é a crônica de um processo de
transubstanciação (FONTCUBERTA, 2012, p. 188).
A verdade que a fotografia mostra é uma verdade construída (muitos até
afirmariam o mesmo sobre quaisquer “verdades”), produzida por discursos que nela
mesmo se apoiam e, como é da “natureza” de toda construção, tende a se naturalizar
conforme o hábito. O fenômeno fotográfico envolve uma série de gestos, alterações e
escolhas que determinam seu resultado final e que, bem antes do advento da fotografia
digital, já eram conscientemente realizados pelos produtores de imagens. Neste sentido
afirma Pedro Meyer:
Permita-me substituir o termo manipulação pela palavra alteração.
Com efeito, alteramos tanto as imagens do mundo analógico (com
produtos químicos) como alteramos no digital (eletrônico). Os
fotógrafos o fizeram sempre. A única consideração é que hoje nós
fazemos isso de maneiras diferentes, e em diferentes fases do
processo. Historicamente, isto tem sido feito geralmente antes do
disparo do obturador, enquanto agora, no ambiente digital, também
pode ocorrer após o clique.60
Certamente resultados distintos podem ser observados a partir de
intencionalidades distintas. Pode-se dizer que uma fotografia de um jornal exibe uma
intenção de veracidade diversa da de um artista visual que utiliza o meio fotográfico como
expressão. No entanto, ambas portam importantes verdade humanas, compostas em seu
limiar de diversas imagens anteriores, sejam estas interiores ou não. Assim, não se trata de
em nosso mundo complexo escolher entre ficção ou verdade, mas entendê-las como
60
MEYER, Pedro. Fragmento extraído do editorial do site ZoneZero (em tradução livre do espanhol) de 1 de
março de 2001. Disponível em: http://zonezero.com/editorial/marzo01/marzo. Acesso em: 1/2/2012.
58
aproximações imprescindíveis já que, no fundo, como propõe Slavoj Žižek, “são
precisamente as ficções o que nos permitem estruturar a nossa experiência do real”. 61
Sendo assim, pelo menos neste sentido, podemos alinhar a desconstrução aqui
mencionada àquela utilizada por Derrida no que ela consiste na “deposição e
decomposição de uma estrutura” e em “desfazer, sem nunca destruir, um sistema de
pensamento hegemônico e dominante [...] é, de certo modo, resistir à tirania do Um”.62
Indo um pouco mais além, é neste sentido, que o pesquisador da imagem
François Soulages afirma que as fotos não são “provas, mas, vestígios de objeto”, em parte
incognoscível e em parte “infotografável” e, ao mesmo tempo, de sujeito com as mesmas
características. A fotografia possui sua face indicativa de uma dada realidade, um indício
que pode ser considerado em si como prova de existência, mas também sua face
conotativa, aberta a significações convencionais em constante mudança, isto é, a
fotografia, enquanto objeto para nossa consciência, sempre terá sua parcela de relatividade
semântica que, ao invés de ser considerada um entrave na relação sujeito/imagem deve, ao
contrário, justamente ser tomada como sinal de sua complexa riqueza. Estaria aí
possivelmente uma das maiores contribuições da fotografia: “articulação de dois enigmas,
o do objeto e o do sujeito”.63
Como dito anteriormente, alguns fotógrafos e/ou pesquisadores fazem destas,
questões cruciais em seus trabalhos. Centralmente na ideia de se desnaturalizar a relação
que estabelecemos com a fotografia e tentar nos colocar no papel de sujeitos que refletem
sobre e por meio de imagens, e de construir novos modelos existenciais a partir de diálogos
mais interessantes na tentativa de escapar da “absoluta fadiga” ou “padecimento dos olhos”
que faz com que estes comecem a se recusar a enxergar, como afirma Norval Baitello64
,
referindo-se ao pensamento de Dietmar Kamper.
Flusser – que aponta a prática de “fotógrafos experimentais” em relação à
utilização de aparatos como possibilidade de abertura para novas visões –, por exemplo,
desenvolvia pouco antes de sua morte, junto a Joan Fontcuberta, o conceito de
61
In FONTCUBERTA, 2012, p.106. 62
DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p.9. 63
SOULAGES, 2010, p.346. 64
BAITELLO jr., 2010, p.94.
59
“contravisão” como tentativa de desnaturalização destas relações automatizadas devido ao
hábito e é sobre esta problemática que nos concentramos no próximo capítulo.
Questão que se faz premente em meio ao desenvolvimento de novas relações
entre nós e as imagens nascidas a partir do advento da tecnologia digital e a consequente
aceleração e aumento da produção e difusão de informações que parecem anunciar, ao
menos momentaneamente, a drástica diminuição do tempo da reflexão, colocando esta
quase sempre como algo a se fazer num momento futuro ao da recepção dos dados.
61
2.1 Pequena genealogia de um termo
Antes de iniciarmos esta sintética investigação do termo referente ao
procedimento conhecido como estranhamento, faz-se necessário um pequeno recuo, no
sentido de explicitar a que nos referimos quando aqui dizemos termo. Em alguns sentidos,
estaremos acompanhando a definição mais usual de “termo” como sendo a expressão
verbal que define um conceito, sendo este, por sua vez, a representação mental de uma
coisa, seja ela concreta ou abstrata, ou em sua concepção mais clássica, mas ainda muito
utilizada de abstração realizada pela operação de subsunção do particular pelo universal.
Ocorre que, na maioria das vezes, esta concepção permanece ainda presa à ideia de que um
conceito, por ser fruto de um esforço de redução em busca − certamente legítima − “da
verdade”, tende a ser entendido como válido por ter um significado uno e imutável.
Aquilo a que costumamos chamar de “Ciência Ocidental” baseia, em muito, o sucesso de
suas descobertas neste procedimento, indubitavelmente funcional em relação, ao menos, às
chamadas “ciências naturais”.
No entanto, no âmbito de nosso trabalho, quando nos referirmos a termo, que
permanece como sendo a expressão de um conceito, teremos em mente algo que se
aproxima mais das definições que faz Gilles Deleuze65
deste último. O autor tende a pensar
o conceito como algo complexo, aberto e em constante transformação, retirando-o de seu
isolamento mais comum. Assim, um conceito seria uma singularidade, porém, composta
sempre de multiplicidades que se transformam cultural e historicamente, remetendo e
contaminando-se, inevitável e infinitamente a outros conceitos, retomando significados
antes abandonados em sua característica intrínseca de pensamento em devir.
Para Deleuze, os conceitos são “vizinhos que não delimitaram bem seus
territórios”, então se mesclam e nunca “se isolam ou se purificam de todo” e,
principalmente, mostram-se mais eficazes não tanto por conseguirem definir bem uma
65
DELEUZE; GUATTARI, 1992.
62
ideia universal, mas na medida em que conseguem ampliar seus próprios sentidos,
variações e ressonâncias que ampliem juntamente nossa compreensão das coisas, assim,
cada conceito deve ser considerado como um vetor, “um ponto de coincidência, de
condensação ou de acumulação de seus próprios componentes” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p.32). Temos então, acompanhando a visão deste autor, a ideia de que cada vez que
se utiliza um conceito, procede-se como que uma atualização do mesmo, uma nova
“condensação” deste que retira e acrescenta componentes a partir de um centro vibratório.
De modo que, nosso esforço aqui, por meio da abordagem do conceito de
estranhamento, não pretende alcançar uma definição única e verdadeira − fixada em uma
de suas aparições históricas − do que este representaria, mas antes verificar algumas de
suas ocorrências e como estas se expressaram em procedimentos práticos com
características comuns.
Temos em mente, portanto, o conceito muito mais como um vetor
diacrônico/sincrônico e intrinsecamente mutável e múltiplo, que nos auxilie, no âmbito
deste trabalho, na compreensão de questões relacionadas à necessidade de uma “práxis
fotográfica conscientizada” (FLUSSER, 2002).
Significa buscar não só entender algumas das adições, subtrações e implicações
que tal coordenada prático/conceitual tenha sofrido e influenciado ao longo do eixo da
história, mas também apontar, ao menos, como esta coordenada se relaciona com sua
atualidade, isto é, de que maneira ela pode ser funcional em relação a sua práxis concreta
na troca com a prática de cada época, como ela enquanto potência de criação pode se
atualizar em cada circunstância.
Por isto julgamos necessário buscar algumas das transformações e
hibridizações que tal vetor demonstra em sua errância através da cultura humana,
emergindo em diversas práticas e teorias ou algo próximo ao que propõe Carlo Ginzburg
quando, em referência e reconhecimento ao importante pensamento de Aby Warburg,
propõe-nos a ideia de Logosformel66
, como uma ideia ou pensamento que permanece como
potência na memória cultural humana e que se manifesta, de tempos em tempos, devido à
força inerente a sua necessidade.
66
GINZBURG, 2013. Em prefácio disponível em: http://www.lespressesdureel.com/PDF/1950.pdf . Acesso
em: 20/6/2013.
63
Como já mencionado anteriormente, fatores como o grande crescimento do
número de aparatos capazes de registrar uma imagem devido ao seu relativo barateamento,
a ampliação de suas facilidades de uso − automatização −, o advento da Internet e,
principalmente, das redes sociais como veículo replicador de imagens nos colocam
atualmente em contexto imageticamente inflacionado. Tendência esta que ao que tudo
indica tende ainda a se ampliar antes de um possível declínio na curva.
No entanto, estas imagens parecem cada vez mais afastadas de uma das suas
“razões de ser” originais: a significação de algo, no sentido de representá-lo ou mesmo
expandir a sua compreensão. Este “esvaziamento das imagens” parece se relacionar
proporcionalmente à sua “multiplicação exacerbada” e sua “onipresença” atuais
(BAITELLO jr., 2005).
Mergulhados em fluxo cotidiano de realidade, quase sempre mediada por
tecnologia, que amplia a velocidade de troca de informações em proporção inversa à
medida que criamos condições de processá-las, por meio do distanciamento reflexivo
necessário a apreensão de qualquer informação que se proponha como transformadora ou
geradora de novas vivências, damos sinais de caminhar cada vez mais apartados de uma
relação construtiva com as imagens.
É certo que nosso modo complexo de Ser, como entes “mergulhados” no
mundo, condicionados ao mesmo tempo que condicionantes, que afetamos enquanto somos
afetados, revela-se como o de um projeto em aberto, não só singularmente como entes que
contém, cada qual, sua história pessoal, mas também como entidades que coletivamente
formam uma cultura. Quer dizer, o ser humano respondeu e continua respondendo a
desafios e problemas criados por nós mesmos em nosso processo “civilizador”, muitas
vezes superando o que outras gerações considerariam questões insolúveis. De modo que,
muito provavelmente seguiremos, melhor ou pior, com nossas vidas, independente da
gigantesca quantidade de imagens que surgem a todo tempo em nosso entorno aflorando e
até da qualidade da relação que tenhamos com elas.
Disso não decorre, necessariamente, que nós, enquanto seres sociais, não
possamos, ou mesmo devamos buscar modos de sermos diferentes ou ferramentas que nos
permitam nos relacionar de forma menos alienada com nossas próprias criações. Este tem
sido o papel do pensamento crítico, em seu sentido lato, independente de em que área do
conhecimento ele esteja sendo empregado.
64
Assim, surge então a questão de se buscar tais ferramentas, sem a pretensão de
encontrar uma que seja a única, nem completa e, muito menos, definitiva, que nos auxiliem
em tal intento, que aqui, centralmente, seria o de buscar meios de produção e recepção de
imagens de modo mais significativo, ou seja, mais crítico. Ou buscar entender e mesmo
criar formas de se lidar com as imagens sem que por ela sejamos “engolidos” passivamente
como resultado de processo de “fadiga... [que]...se instala no olhar que já não vê o que
avista, já não enxerga o que vê, já não anima o que enxerga” (BAITELLO jr., 2005, p.20).
Não se trata de desenvolver estratégia específica e funcional em relação às
imagens, mais especificamente, às imagens fotográficas ou antídoto, fórmula ou
procedimento específico a uma prática relacionada à fotografia. Isto parece um tanto
impraticável. Seria como considerar a fotografia, ou sua prática, como algo dado e não
como algo que se mostra muito mais como um processo em vital transformação − no
momento, na forma do câmbio entre o analógico e o digital e na sua crescente
popularização por meio de infiltração em todo tipo de gadgets – de difícil apreensão.
Trata-se antes de participar de modo reflexivo deste outro processo que é pensar as
imagens, seus modos de uso e sua práxis produtora e a maneira como a consumimos e por
ela somos consumidos.
Tal tipo de preocupação já se notava, ao menos em parte, nos estudos
realizados na primeira metade do século passado, pelos assim chamados formalistas
russos67
, em particular no trabalho do Linguista Viktor Chklovski (1893–1984) 68
, que
enxergava na arte um “instrumento” para despertarmos de nossos hábitos automatizados.
Em seu texto A Arte Como Procedimento69
, de 1917, o autor afirma:
67
Corrente de crítica literária que se desenvolveu na Rússia a partir de 1914, sendo interrompida
bruscamente em 1930, por decisão política. O nome do movimento foi objeto de discussão e, muitas vezes, se
disse que era inadequado. Nos textos introdutórios da tradução portuguesa (de Isabel Pascoal) da coletânea de
textos dos formalistas russos, preparada por Tzvetan Todorov, quer Roman Jakobson quer o próprio Todorov
começam por chamar à designação formalismo uma espécie de falácia ou termo pejorativo, criado pelos
opositores desta teoria. In E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia. Disponível em: http: // www.
edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link _id=212 & Itemid=2>. Acesso em: 7/6/2013. 68
Viktor (ou Victor) Borisovich Chklovski (ou Chklovsky ou, ainda, Shklovski), escritor, cenógrafo, editor e
linguista, foi um dos principais expoentes do “formalismo russo” e fundador do grupo OPOYAZ (Sociedade
para o Estudo da Linguagem Poética), criada em São Petersburgo, em 1916. 69
Texto publicado originalmente em russo como Iskusstvo kak priem (A Arte como processo) ou (A Arte
como procedimento), no livro Poetika, 1917. Utilizamos para este trabalho a tradução de Boris Schnaiderman
A Arte Como Procedimento. Ver: CHKLOVSKI, 1976, ed.2.
65
“Se toda a vida complexa de muita gente se desenrola
inconscientemente, então é como se a vida não tivesse sido” 70
. E
eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos,
para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O
objetivo da arte é dar a sensação de objeto como visão e não como
reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da
singularização dos objetos e o procedimento que consiste em
obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da
percepção (CHKLOVSKI [1917], 1976, p.45).
O autor nomeia este procedimento por meio do neologismo Ostranenie71
, que
seria o ato de apresentar de forma singular − utilizando-se de linguagem poética, em
oposição à linguagem “normal” ou cotidiana (prosaica) – os objetos ou acontecimentos em
uma obra, no intuito de chamar a atenção sobre aspectos que, de outro modo, não seriam
percebidos devido à automatização da percepção gerada por nossos hábitos. E é justamente
a partir destas constatações que opera o procedimento de estranhamento de Chklovski,
construindo circunstâncias singulares, que interrompam o fluxo naturalizado de nossas
percepções.
Trata-se da tentativa de colocar aquele que trava contato com a obra em
posição de recuo reflexivo, por assim dizer, em relação a esta. Observa-se, no entanto, que
o termo estranhamento, quando tomado com ênfase em sua concepção de
desfamiliarização ainda pressupõe certo reconhecimento do que ali se coloca, quer dizer,
para utilizarmos o exemplo acima, não é possível entendimento algum de algo dito ou
escrito em outra língua se não tivermos um conhecimento mínimo dos códigos utilizados
em tal língua. De fato, não faria sentido algum e não é este o caso. Trata-se antes da
produção consciente daquilo que se convencionou chamar de “ruído” ou a inserção do
mesmo onde, devido ao hábito, instaurou-se a condição de “redundância” ou “informação”
redundante ou, mais precisamente, o “desenvolvimento de procedimentos que levam o
receptor a ver a realidade de outro modo, o que implica um re-conhecimento, isto é, não
identificar, porém, conhecer outra vez” (FERRARA, 2009, p.33).
70
Frase possivelmente extraída do diário de Leon Tolstói, de 28 de fevereiro de 1897. 71
Neologismo provavelmente derivado de otstranit (estranhar), normalmente traduzido como estranhamento,
mas também como “singularização”, “desfamiliarização”, “distanciamento” ou “desalienação”.
66
Ainda nos referindo ao texto de Chklovski, e a título de ilustração, temos o
exemplo retirado por ele do conto Kholstomér – A história de um cavalo de Leon Tolstói,
onde o autor discute, através da narração feita por um cavalo, entre outras coisas, o direito
de propriedade, como segue:
(...) convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito
de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra
“meu” a um número maior de coisas, segundo a convenção feita,
considera-se a pessoa mais feliz. Não sei por que as coisas são
deste modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei
compreender isto, supondo que daí viria algum proveito direto,
mas verifiquei que isto não era exato (TOLSTÓI apud
CHKLOVSKI, 1976, p.47).
O estranhamento surge neste caso, do procedimento antropomórfico de dar voz
a um cavalo que passa a discutir questões que, do ponto de vista humano e naquele
determinado momento histórico, são tidas como “dadas” mas que, nesta forma, fazem-nos
atentar para o seu claro absurdo.
Aqui, torna-se imperativo chamar a atenção para dois pontos: em primeiro
lugar, não se deve tomar o exemplo acima como uma fórmula a ser aplicada em obras no
sentido de torná-las “obras de arte” ou mesmo obras de arte relevantes, úteis ou funcionais.
Se assim procedêssemos, facilmente nos encontraríamos novamente diante do problema –
de solução nunca completa – do hábito72
, já que qualquer procedimento fechado e
definitivo seria, com o tempo e o uso, reabsorvido e naturalizado também, passando a ser
parte do fluxo cognitivo cotidiano, ou comum. O próprio Chklovski trata, apesar do tom
muitas vezes imperativo do texto73
, de relativizar alguma impressão do tipo acima, como
podemos observar na passagem seguinte:
Na arte há uma “ordem”; entretanto não há só uma coluna do
templo grego que a siga exatamente, e o ritmo estético consiste
num ritmo prosaico violado; houve tentativas para sistematizar
72
Questão tratada mais detalhadamente à frente. 73
Segundo Carlo Ginzburg, tal ímpeto é traço típico do discurso de um “primeiro formalismo” e da
juventude de seus autores, alguns, como é o caso de Chklovski, na casa de seus vinte anos. GINZBURG,
2009, pp. 18-19.
67
estas violações (...) Podemos pensar que esta sistematização não
terá sucesso. Com efeito, não se trata de um ritmo complexo, mas
justamente da violação do ritmo, de uma violação tal que não
podemos prever; se esta violação tornar-se regra, perderá a força
que tinha como procedimento de obstáculo (CHKLOVSKI, 1976,
p. 56).
Assim, trata-se mais, no caso especifico deste texto, de chamar a atenção para a
diferença importante entre a linguagem prosaica, que é (e assim o deve ser) clara, objetiva,
direta e, até mesmo, “automatizante”, devido mesmo às necessidades advindas de seus
aspectos funcionais e a linguagem poética que, na concepção do autor, deve ser
complexificada, elaborada e “tortuosa” 74
, e em âmbito maior, dos formalistas em geral –
apesar destes estarem reunidos em torno de algumas ideias, mas em discordância em tantas
outras –, de fundamentar o solo para estudos que considerassem a especificidade da
linguagem literária, exigência dos novos tempos. Não obstante, foi também um
movimento75
marcado por paradoxos, como o de ao mesmo tempo em que procurava
definir o específico da linguagem em sua forma literária (poética), “afirmava a necessidade
de fundir a arte na vida cotidiana”, apesar de serem estes, paradoxos considerados pelos
formalistas, aspectos próprios ou intrinsecamente “dialéticos do fenômeno literário”
(SCHNAIDERMAN, 1976, p. XII). Segundo este último autor, houve uma espécie de
condenação, não totalmente sem motivos – advinda das próprias declarações dos
formalistas – do movimento; condenação esta, vaga e sem uma noção exata de sua
importância, interrompida em seu desenvolvimento por questões de natureza política, a
ponto de o termo ser considerado vergonhoso ou mesmo assustador por alguns76
.
Nota-se então haver certa precipitação em condenações muito simplificadoras
em relação ao que se chamou de formalismo, fruto de abordagens muito superficiais de
74
CHKLOVSKI, 1976, p. 56. 75
Segundo Tzvetan Todorov e Roman Jakobson, o termo “formalista” foi cunhado por detratores do
“movimento” que desconheciam em pormenores suas propostas. Para Boris Eikhenbaum, não havia sequer
uma “doutrina ou sistema completos”, mas apenas “hipóteses de trabalho, com a ajuda da qual,
compreendemos os fatos” (EIKHENBAUM, 1976, p. 4). 76
SCHNAIDERMAN, 1976, p.XX.
68
suas proposições, somadas à maneira como aqueles, ainda estudantes, se expressavam
publicamente de modo persuasivo sem, contudo, se pretender como
dogma que negligenciasse o estudo do significado da obra para
privilegiar os procedimentos significantes, antes, era para melhor
reconhecer, para melhor indicar o aspecto semântico que se partia
da identificação dos procedimentos em todos os seus aspectos
(FERRARA, 2009, p.7).
O segundo ponto significativo e que decorre deste primeiro referido acima,
pode ser divido em dois aspectos complementares, aqui expostos de modo um tanto
resumido: um é a importante influência dos pressupostos – ainda que não totalmente
desenvolvidos – formalistas para os estudos da semiótica da cultura e sua reverberação
penetrante em outras áreas para além da literatura. Em relação ao primeiro aspecto deste
ponto, nota-se o posterior desenvolvimento de ideias germinadas a partir das sementes
formalistas em trabalhos como os de Mikhail Bakhtin, de Yuri Lotman77
, nos
desenvolvimentos posteriores dos trabalhos do pensador e linguista Roman Jakobson e o
Círculo Linguístico de Praga – concebido para ser o sucessor do formalismo russo78
–, e
mais à frente em trabalhos como o do poeta Haroldo de Campos e de algumas pesquisas de
Mario de Andrade para a criação de seu Macunaíma, bem como em formulações dos
teóricos da comunicação, principalmente em relação ao efeito de estranhamento, seus
desdobramentos e suas ressonâncias com a concepção de ruído na comunicação, como é o
caso de Umberto Eco que, segundo Boris Schnaiderman, “chega a afirmar que era
espantoso que o artigo de Viktor Chklovski, ‘A arte como procedimento’, antecipasse todas
as possíveis aplicações estéticas de uma teoria da informação que ainda não79
existia”
(SCHNAIDERMAN, 1976, p.i.) e, em complemento sobre o tema, segue Eco:
77
Como nos informa FERREIRA, 2004, p.71. 78
Segundo BYSTRINA, 1990. 79
Grifo nosso: fica anotado, a quem possa interessar, que na versão de 1976 do livro Teoria da literatura:
formalistas russos, utilizada em nossa pesquisa, lê-se: “...de uma teoria da informação que ainda existia”, o
que faz com que o trecho fique um tanto sem sentido. Já, no texto de Eco, de onde se extraiu a referência,
consta como colocamos “... de uma teoria da informação que ainda não existia”, confirmando o caráter de
antecipação da abordagem utilizada por Chklovski. O problema se deve, provavelmente, a um erro
tipográfico.
69
O estranhamento era para Chklovski um desviar da norma, um
“agredir” o leitor com um artifício contrário a seus sistemas de
expectativas e capaz de fixar sua atenção sobre o elemento poético
que lhe era proposto. Ele analisa certas soluções estilísticas de
Tolstói, onde o autor finge não reconhecer certos objetos e os
descreve como se os visse pela primeira vez. A mesma
preocupação está presente na análise que Chklovski faz de
Tristram Shandy: aqui também ele coloca em evidência as
constantes violações à norma em que é fundamentado o romance
(ECO, 1991, p.123, n.r. 19).
O próprio Eco afirmaria, em referência à noção de estranhamento postulada
por Chklovski, que sua utilização no discurso artístico nos colocaria numa condição de
“despaisamento"; referência ao termo francês Dépaysement que pode ser entendido como
“mudança de cenário”, de novidade em relação aos hábitos arraigados, por meio da
infração das regras as quais nos acostumamos, assim as “coisas nos apareceriam sob uma
nova luz, estranha, como se as víssemos pela primeira vez” 80
, de modo que teríamos de
nos esforçar por compreendê-las, intervindo através de atos de escolha.
Outros pensadores, ainda de algum modo relacionados à linguagem escrita e às
implicações das diferenças, muitas vezes relativizadas, entre seus aspectos poéticos ou
mais prosaicos, exploraram de forma crítica o termo estranhamento.
Neste sentido, podemos apontar as reflexões de Carlo Ginzburg81
que, ainda
que com ressalvas, considera o estranhamento “um antídoto eficaz contra um risco a que
todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade (inclusive nós mesmos)”
(GINZBURG, 2009, p. 41) e desenvolve uma verdadeira arqueologia do termo,
estabelecendo relações do mesmo com o pensamento estóico82
e a influência deste sobre o
80
Entrevista concedida ao poeta Augusto de Campos, publicada no Suplemento Literário de O Estado de São
Paulo, em 17 de setembro de 1966 (In ECO, 1991, p.279 e ss.). Consideramos importante também citar a
utilização que Umberto Eco fez do termo em relação, por exemplo, ao meio televisivo (ver: ECO, 1991, pp.
191-201). 81
Em particular, o capítulo 1- Estranhamento: pré-história de um procedimento literário (GINZBURG,
2009, p. 15 e s.s). 82
De Estoicismo. Uma das grandes escolas filosóficas do período helenista, assim chamada devido ao pórtico
pintado (Stoápoikílé) onde foi fundada, por volta de 300a.C, por Zenão de Cício. Os principais mestres dessa
escola foram, além de Zenão, Cleante de Axo e Crisipo de Soles. Com as escolas da mesma época,
epicurismo e ceticismo, o estoicismo compartilhou a afirmação do primado da questão moral sobre as teorias
e o conceito de filosofia como vida contemplativa acima das ocupações, das preocupações e das emoções da
vida comum (ABBAGNANO, 1971, p.375).
70
imperador romano Marco Aurélio que haveria, com intuito mnemônico de autoeducação,
escrito diversas vezes “Cancela a representação!”; para isso se utilizava do termo grego
φαντασια (phantasia), empregado pelos estóicos, que tanto poderia significar fantasia,
como imaginação. Seguindo, assim, a doutrina estóica ou, mais precisamente, o
pensamento do filósofo Epicteto.
Tratava-se, grosso modo, de investigar de maneira analítica as informações
advindas das sensações, para “alcançar uma percepção exata das coisas, e, portanto atingir
a virtude” (GINZBURG, 2009, p. 19). A preocupação do filósofo dizia respeito à
capacidade de persuasão e desvio – do que seria a verdade íntima das coisas –, que
caracterizavam as representações. Estas, quando postas a nu, através da redução a seus
componentes básicos e ao que elas realmente fazem referência, diminuiriam seu poder
sobre nós, auxiliando-nos a superar as aparências e, portanto, sua força ilusória que tanto
nos provocariam as paixões, segundo aquela linha de pensamento, desvios alienantes da
realidade verdadeira.
Marco Aurélio, por sua vez, e ainda segundo Ginzburg, teria influenciado
Tolstói (cujo texto, como já visto, foi citado por Chklovski) que teria profunda admiração
pelo imperador e suas ideias relacionadas ao estoicismo. O autor segue traçando as
conexões e aproximações do termo, passando por textos medievais, Michel de Montaigne
(Sobre os canibais), Voltaire e até sintonias e divergências com a obra do escritor Marcel
Proust.
Ginzburg, contudo, não deixa de apontar criticamente o que para ele seria um
certo afastamento “de qualquer perspectiva histórica” 83
, segundo ele, típico dos
formalistas, fruto da ideia de que se a arte é um mecanismo, não nos importaria muito
saber algo sobre suas origens, mas nos concentrarmos sobre como ela funciona, quer dizer,
o autor nos chama atenção para o que, em sua visão, seria a ênfase prioritariamente
colocada sobre os aspectos sincrônicos da questão. Embora posições como esta tenham
sido contemporizadas em momentos distintos, por outros autores84
como Schnaiderman, ao
afirmar que:
quando se estuda em pormenor a contribuição dos formalistas
russos, percebe-se, desde o início, uma tendência marcada a levar
83
GINZBURG, 2009, p.18. 84
Por exemplo, em: DIDI-HUBERMAN, 2013(a), p.p 213 a 230.
71
em conta a relação dialética entre sincronia e diacronia, a ver a
língua como um fenômeno social e, como tal, relacionada com as
demais “séries sociais” e, sobretudo uma acentuada importância
atribuída ao estudo histórico, tanto da linguagem como de sua
expressão literária (SCHNAIDERMAN, 1976, p.XIV).
O outro aspecto deste segundo ponto por nós referido anteriormente é a
expansão do alcance destes estudos e, mais especificamente, a concepção de
estranhamento de Chklovski a outras áreas para além da literatura, a partir de onde foi
originalmente desenvolvido. É neste sentido que Ginzburg, apontando para os “profundos
ecos da noção de estranhamento na arte e na teoria literária do século XX”, refere-se à
obra do importante dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Em sintonia a este pensamento,
informa-nos Lucrécia Ferrara:
O conceito de “estranhamento” criado por Chklovski em 1916 é
apreendido por Brecht por volta de 1935, surgindo em sua obra a
partir de 1936 (FERRARA, 2009, p.36).
No caso de Brecht, o estranhamento ou sua derivação Verfremdungseffekt
(efeito V), que pode ser traduzido por “efeito de distanciamento", produzir-se-ia através de
diversas técnicas de encenação, de interpretação do ator e do trabalho sobre o texto em si.
Seu objetivo era destruir a relação de “transe hipnótico” entre o público e a peça
apresentada, eliminando, por exemplo, a noção de “quarta parede” típica do teatro burguês
que consistia em, imaginando-se o espaço cênico como uma caixa (quatro paredes), a
“parede” correspondente à posição da plateia, que dizer, a abertura e invasão do espaço do
espectador pelo que está sendo encenado, e vice-versa, provocando o público a se
transformar em agente através de participações, concretas ou subjetivas, nas questões
apresentadas pela encenação à sua frente, de modo que o teatro brechtiano
eliminou o fosso que separava palco e plateia, humanizou o ator e
destruiu aquele abismo que dava nobreza ao palco e embriagava o
público. O teatro perdeu seu caráter ritual e místico, dessacralizou-
se e continuou a ser arte; apenas substituiu o altar por um palanque,
onde o sussurro do diálogo transformou-se em grito da multidão
(FERRARA, 2009, p.37).
72
Assim como na leitura de Tolstói proposta por Chklovski, pode se inferir, no
teatro de Brecht, a participação do público (ou leitor) como importante constituinte de tais
procedimentos, quer dizer, a transformação de sujeito passivo em participante ativo, visto
ser necessário o esforço consciente na decodificação das mensagens informadas por estes
meios. Não obstante, não se pode dizer que o conceito em questão tenha exatamente o
mesmo significado e “aplicação” para os dois autores (Chklovski e Brecht); pequenas
distinções podem ser apontadas, tais como as que nos são apresentadas a seguir:
enquanto o estranhamento é desautomatização da percepção para
criar um específico artístico, para Brecht, afastamento é a tentativa
de alterar, através da arte, a função de elemento de um sistema. Se
em Chklovski temos uma definição de arte, em Brecht temos a
defesa da arte, ou seja, a especificação de sua função (FERRARA,
2009, p.36).
Em Brecht, vemos então sinais de expansão do procedimento de
estranhamento que, neste caso, já não é mais apenas um procedimento relacionado mais
fortemente ao âmbito da linguagem escrita, muito embora se verifique também a
aproximação do texto de suas obras a esta noção. Ali, outros aspectos de seu trabalho são
contaminados por tais ideias, tais como cenários, iluminação e a própria atitude dos
personagens por meio do trabalho físico dos atores.
Outra forte influência direta deste procedimento, esta mais próxima do nosso
tema, pode ser verificada no trabalho fotográfico de Aleksandr Ródtchenko (1891-1956)85
com suas escolhas inusitadas e inovadoras em relação à utilização do aparato fotográfico.
Iniciando seus trabalhos como pintor e posteriormente artista gráfico, passa a fotografar,
inicialmente, para obtenção de matéria prima, então um tanto escassa para as suas
fotocolagens. O trabalho de Ródtchenko − que afirmava: “Nós que estamos acostumados a
85
Aleksandr Miklailovitch Ródtchenko (1891- 1956). Em 1911, estuda na Escola de Arte de Kazan,
completando os estudos em Moscou, no Instituto Artístico e Industrial Strogonov a partir de 1914. Em 1921,
foi um dos fundadores do movimento construtivista, tentando desenvolver ou proporcionar manifestações
culturais que estabelecessem ligações entre a arte e a indústria. Produziu algumas fotocolagens e trabalhos
gráficos e, a partir de 1924, quando se reduzem as oportunidades para a livre criação, dedica-se à fotografia e
ao cinema, criando imagens que se caracterizam pelas perspectivas pouco convencionais. In Infopédia Porto:
Porto Editora. Disponível em: http://www. infopedia.pt /$aleksandr-ródtchenko. Acesso em: 12/6/2013.
73
ver o usual, o aceito, devemos revolucionar nosso raciocínio visual” 86
− pode ser
considerado inovador em diversas áreas onde atuou.
Sua relação com o termo abordado neste capítulo vem, dentre outras conexões,
do desenvolvimento de trabalhos junto a autores de algum modo relacionados ao grupo dos
formalistas russos e mais especificamente das capas que realizou para a revista Novyi Lef
87, da qual foi ilustrador, capista e, posteriormente, Diretor de Arte do grupo “Lef” da qual
faziam parte, entre outros, o cineasta Sergei Eisenstein88
(de O Encouraçado Potenkim, de
1925) para o qual Ródtchenko desenvolveu cartazes, o poeta Vladímir Maiakóvski, com
quem colaborou na ilustração de poemas e também Chklovski que, em 1924, passa a fazer
parte do conselho editorial da revista editada pelo grupo89
.
A prática fotográfica acaba se mostrando para Ródtchenko como uma
possibilidade de produção híbrida entre o realismo e a abstração. Segundo Rubens
Fernandes jr., as diferentes posições assumidas pela câmera na fotografia do construtivista
russo são parte integrante do “programa desenvolvido” por este para “estranhar” ou
“chocar” o olhar daqueles que tomavam contato com suas imagens; prática que refletia
incorporação e influência das teorias formalistas, em particular, Chklovski, “cujo conceito
de estranhamento lhe servia de base para uma virada radical na prática fotográfica
habitual” (FERNANDES, jr., 2010, s/p.).
86
RÓDTCHENKO, 1988, p. 262. 87
LEF foi a revista da Frente de Esquerda das Artes (Levyi Front Iskusstv), uma ampla associação de
escritores, fotógrafos, críticos e desenhistas de vanguarda na União Soviética, fundada e editada inicialmente
por Osip Brik e Vladímir Maiakóvski, fortemente relacionada ao Construtivismo, teve dois períodos, um de
1923 a 1925 como LEF e, posteriormente, de 1927 a 1929 como Novyi LEF (Nova LEF), quando foi editada
por Maiakovski e Sergei Tretyakov. O objetivo desta publicação, como se assinalou em um de seus primeiros
números, era "reexaminar a ideologia e as práticas da chamada 'arte esquerdista', e abandonar o
individualismo para acrescentar o valor da arte para o desenvolvimento do comunismo". A revista despontou
como um fórum de debates em torno de estéticas vanguardistas, concentrando-se particularmente na questão
da responsabilidade do artista para com a sociedade e seu papel nesta. Fonte: http://gnuclear.net/test/us01
apos/a181111Tutorial%20Revista%20LEF.pdf. Acesso em: 15/4/2013. 88
Para a considerável influência dos construtivistas, em particular Chklovski, na obra cinematográfica de
Eisenstein, apontamos para a leitura de ALBERA, 2002 (em particular os capítulos II e III). 89
Fonte:MoMA – Disponível em: http://www.moma.org/interactives/exhibitions/1998/rodchenko/chronology
_f_new.html.
74
Escada de incêndio, Ródtchenko -1925 Garota com uma Leica, Ródtchenko -1934
O tratamento da luz como um elemento de criação de contrastes que reforçam
as geometrias e a, vitalmente importante, escolha de “mostrar o real sob ângulos
desconhecidos ao olhar dos homens” (ALBERA, 2002, p.276), ângulos invulgares,
possíveis devido à mobilidade concedida pela utilização de câmeras compactas, acabam
colocando “em xeque” não só a maneira como normalmente as fotografias são captadas,
mas toda uma visualidade criada historicamente na forma do hábito, muito antes do
advento da fotografia, de se abordar visualmente o mundo por uma perspectiva central e
unívoca, como vimos no capítulo I.90
90
Para aprofundamento e desdobramentos da questão, como a da relação entre fotografia, ideologia e
perspectiva, ver: MACHADO, 1984.
75
Segundo o próprio Ródtchenko, este tipo de enquadramento fotográfico
habitual, muito comum à época, esconde um clichê, produto de uma rotina visual que deve
ser quebrada, aproveitando-se da mobilidade da câmera para se encontrar pontos de vistas
diferentes, portanto, menos naturalizados. O fotógrafo questiona: “Que será dos fotógrafos
e repórteres soviéticos, se o seu pensamento visual estiver obstruído pelas autoridades da
arte universal com suas composições de arcanjos, de Cristos e senhores?” 91
– em
referência aos modelos tradicionais de enquadramento, herdados das artes plásticas
canônicas. É em sentido próximo que o artista descreve, neste mesmo texto, a sua
experiência da sensação de “peso” relacionada à grandiosidade da Torre Eiffel quando,
após tê-la visto de longe e em postais, em enquadramento tradicional e esta não ter lhe
causado nenhuma grande impressão, ele, da janela de um ônibus pôde enxergar, a partir de
baixo, as suas linhas de fuga em direção ao topo e a sensação de vertigem causada por tal
intensa impressão.
A imagem deveria buscar o desvio “da visão padronizada, da visão
tradicional”; seria necessário buscar o olhar padrão de cada momento e “renovar este olhar:
este é um tema chklovskiano bem conhecido (...) tornar estrangeira a relação com um
referente visado em um texto ou imagem, que Ródtchenko como fotógrafo desenvolverá”
(ALBERA, 2002, p. 276). Ou seja, para Ródtchenko – e isto se estendia, em maior ou
menor intensidade e através de outras práticas, aos outros artistas de seu grupo
construtivista –, a fotografia poderia funcionar como agente de conscientização da
sociedade, que deveria reeducar seu olhar, abrindo-se a uma nova visão de mundo exigida
pelas mudanças características de uma sociedade moderna e fragmentada, veloz em suas
transformações e que não admitia mais ser apreendida por meio de um enfoque único92
.
91
RÓDTCHENKO, 1988, pp.141-146 (em tradução livre do francês). 92
Cabe apontar resumidamente, já que este não é o enfoque deste trabalho, que esta espécie de re-educação
do olhar − e, ao se incluir o restante dos membros próximos ao fotógrafo, da percepção em geral − que surgia
como fruto de reflexão de que determinado tipo de arte contemplativa deveria dar lugar à expressões
artísticas menos “alienadas”, acaba por ser rechaçada pelos representantes do Estado, no caso específico de
Ródtchenko por ser considerada “formalista e burguesa”, sendo, ao menos em parte, motivo para o seu quase
ostracismo posterior. Logicamente a questão é mais complexa e se deve a um contexto histórico-político
muito especifico, cujo espaço aqui não nos permite aprofundar.
76
2.2 Criação e hábito
Neste mesmo instante, milhões de imagens estão sendo despejadas no mundo
em sua forma cada vez menos “concreta”, ou mais caracterizada como uma “não coisa”,
não manipulável, mas, manipuladora, automatizante. Torna-se importante a reflexão em
torno das práticas relacionadas à produção dos diversos tipos de imagem ou “quebrar o
círculo mágico da inconsciência automatizada” como “atividade emancipatória”.93
Para
tanto, não é possível mais pensar as imagens e, em particular, a fotografia, a partir de
abordagens que levem em consideração apenas o aparato técnico em si ou apenas seu
resultado final, a imagem fotográfica e seus aspectos puramente formais (seja ela coisa ou
não coisa).
Também não parecem ser interessantes abordagens que considerem a produção
e recepção de imagens enquanto processo puro, mecânico e linear, desconsiderando a
multiplicidade do mesmo e o envolvimento neste de questões tão complexas como a da
memória e sobrevivência das imagens. É preciso entender a imagem como processo
heterogêneo que envolve em seus extremos o ser humano e suas próprias complexidades.
Obviamente não é possível abarcar todas estas questões em apenas um trabalho e,
provavelmente, em se tratando do estudo de imagens, nem na somatória de todos os
trabalhos realizados.
Entendendo o termo em questão neste capítulo como algo que de algum modo
pode orientar a prática em relação à produção/recepção de imagens fotográficas, ainda que
não de modo mecânico nem metódico, mas, acima de tudo, como uma prática
experimental, podemos passar então a falar de estranhamento, como também o fez Brecht,
como um efeito a ser buscado por meio de procedimentos. Ora, se falamos de efeito, parece
então necessário uma abordagem que envolva não só a produção da imagem, mas também,
necessariamente, sua recepção.
Reiterando a necessidade de uma abordagem do processo fotográfico que fuja
de noções lineares ou processos causais absolutos, portanto, de sentido único, acreditamos
93
SANTAELLA, 2008, p.125 (em referência direta ao pensamento de Vilém Flusser).
77
que a imagem fotográfica pode ser entendida a partir de um modelo, também experimental,
fornecido por Belting, ou seja, passar a pensar as imagens a partir de outros determinantes,
tais como mídia, aqui entendida em seu sentido mais restrito de “agente pelo qual são
transmitidas as imagens” e corpo, tanto o que perfomatiza quanto o que percebe, e também
entender a imagem não apenas como o resultado de um processo, mas ela mesma como um
complexo processo que acontece, quer dizer, “as imagem não existem por si mesmas, mas
ocorrem”, não se encontram, independentemente, nas superfícies ou em nossas cabeças.
Elas são transmitidas e percebidas, em um processo que envolve diversas influências e
trocas subjetivas e objetivas (BELTING, 2006).
De modo que, quando usamos os termos “produção” e “recepção”, o fazemos
no sentido de tentar penetrar conceitualmente tal processo no intuito de problematizá-lo
para entendê-lo melhor, mas tendo em vista que se trata de um esforço esquemático que
busca traduzir uma relação em constante alternância e não dos âmbitos de separação clara e
distinta.
Tendo isto em mente, e pensando o estranhamento como um efeito, torna-se
importante a investigação de dois pontos: a criação, entendida como o problema da
produção da imagem fotográfica que produzisse efeito de estranhamento, e o problema da
recepção que, aqui, será abordado através de questões relacionadas ao hábito.
Em seu livro Filosofia da Caixa Preta94
, o filósofo Vilém Flusser nos chama a
atenção para o que seria um problema de grandes implicações, mas que, no geral dos casos,
acaba por passar despercebido. Podemos colocá-lo da seguinte forma: as imagens, e aqui
mais especificamente o que o autor denominou, em determinado momento de sua
produção, de imagens técnicas, que a princípio foram criadas para melhor explicar o
mundo, nos servir de “mapas”, acabam por serem tomadas, devido ao seu caráter de
imagens aparentemente não simbólicas (não codificadas), por “janelas”, isto é, aberturas
diretas (imediatas) em relação a uma situação (fenômeno) concreta. Quer dizer, justamente
a eficácia de tais imagens em representar (estar no lugar de) algo, sua verossimilhança
(aliada a sua gênese técnica, conforme vimos no capítulo I) nos afasta de sua real condição
de “presença de uma ausência” (BELTING, 2006). Desse modo, ainda segundo Flusser, as
94
FLUSSER, 2002.
78
imagens se transformam em “biombos”, “encoberturas, alienantes do mundo”, que se
interpõem entre nós e a realidade (FLUSSER, 2011, p.115).
Ficamos como que presos em duas possíveis armadilhas: ou mergulhamos
através da passagem desta janela como se a imagem fosse um portal que nos levasse direta
e imediatamente (sem mediação) àquilo nela registrado, ou ficamos presos em suas
superfícies sem as decodificar, aplicar as dimensões dali extraídas no processo codificador
do ato fotográfico. É em proximidade deste sentido que nos esclarece Norval Baitello:
a imagem permite facilmente – e não deveria – que sejamos
sequestrados pelo seu conteúdo mais superficial, pela manifestação
de sua natureza de plano. Sim, porque ela tende a nos levar a uma
leitura sempre superficial, a sua maneira peculiar de tradução do
mundo, a transposição das entranhas e profundezas para a
superfície (BAITELLO jr., 2005(b), p.71).
Ainda que, na Filosofia da Caixa Preta, a fotografia seja muito mais um mote,
subterfúgio para que Flusser trate de questões muito mais abrangentes, como a
possibilidade da “Liberdade” num mundo cada vez mais “programado”, seu trabalho acaba
por propor reflexões fundamentais como ferramentas de desnaturalização de lugares-
comuns referentes às mediações realizadas pelas imagens fotográficas e, no tocante a
produção das imagens, “para que a práxis fotográfica seja conscientizada”. À sua maneira,
Flusser aponta como possibilidade de despertar para tal “inconsciência” a exceção que
seria a prática de “fotógrafos assim chamados de experimentais” que “tentam produzir
imagens informativas que não estão” embutidas nos programas das máquinas (FLUSSER,
2002, p.76).
Percebe-se, em contato com a produção flusseriana, a importância que o autor
dá à ideia de criação. Sua abordagem, no entanto, foge de concepções idealizadas,
românticas ou modernas, relacionadas ao termo, que propõem a criação como fruto de
alguma espécie de “gênio” ou pessoa especial. Para Flusser, a arte não é “mergulho no
nada, para de lá voltar carregado de algo”, isto é, o resultado da criação, a “arte não é
produto ex-nihilo”95
(FLUSSER, 2011a, p. 159).
95
Do Latim Ex nihilo nihil fit, "nada vem do nada", frase atribuída ao filosofo Parmênides (515 a.C /450
79
Assim, em reação à entropia natural a que todas as coisas estão sujeitas, o
homem luta na tentativa de sintetizar informações novas a partir de repertório96
adquirido
em suas vivências. De modo que, o criador (produtor da imagem) passa a ser visto como
“jogador” que “brinca com pedaços disponíveis de informação”, ou seja, a criação passa a
ser vista muito mais como um “diálogo” ou a troca destas informações que, por sua vez,
resulta em “obra”.
Lembrando que o autor nos define, enquanto ente humano, como zoon
politikon97
, o que pressupõe um ente que utiliza a linguagem (formada por signos) com
intento comunicacional e desta interação resultaria a koinonia (raiz grega da palavra
comunicativo em latim). Neste sentido,
um código é um sistema de símbolos ou signos ordenados por
regras, cuja finalidade é possibilitar a comunicação entre as
pessoas. O ser humano é visto como animal solitário, que tenta
superar sua solidão por meio de símbolos, ou seja, pela
comunicação, pelo reconhecimento dialógico do outro, que é o
motivo existencial de toda comunicação. Assim, a comunicação
humana é vista como processo artificial, que depende de
ferramentas e instrumentos, ou seja: símbolos (HANKE, 2003,
p.67).
O homem armazena informações adquiridas em suas vivências no intuito de
transmiti-las a outros homens através de produção, ou, sua “impressão” sobre um objeto
que sirva de “médium rumo ao outro”. Porém, este “armazenar” não se trata de
procedimento passivo. As informações que armazeno, são reprocessadas e decifradas
(decodificadas) a partir, por assim dizer, de meu estoque anterior (memória) para, em
seguida, serem novamente codificadas e devolvidas ao fluxo do mundo ou, em termos
flusserianos, “publicadas”. Não se tratam, entretanto, de processos apartados, pois
a.C.) de Eléia. Fonte: IEP-Internet Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: http://www.iep.utm
.edu/parmenid/. 96
Memória da existência de um indivíduo ou grupo, codificada em um sistema harmônico (FERRARA,
2009, p.57). 97
Expressão atribuída ao filósofo grego Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) que significa Animal Político, no
sentido de afirmar o homem como um animal racional que interage com a cidade-estado (Pólis), enquanto
organismo maior da qual faz parte.
80
o processamento não é independente da expressão, a “criatividade”
não é independente da “produtividade”. Se é verdade que, para
imprimir informação sobre objeto, devo tê-lo processado, não é
menos verdade que processo informações em função de
determinado objeto a ser por mim informado (FLUSSER [1981],
2012, p.1).98
Em decorrência da abordagem crítica e informacional flusseriana do conceito
de “arte”, passa “todo objeto manipulado pelo homem, a ser portador de informações
epistemológicas, políticas e artísticas”, quer dizer, em sentido amplo, toda obra humana
“seja ela, teoria científica, uma instituição política, ou um quadro” é portadora de
informações, portanto, obra. Em síntese,
obras são produzidas pela impressão de informações adquiridas e
processadas, sobre objetos, com a intenção original de guardarem
tais informações para outros, e com a intenção adicional de
servirem de armazéns de informação a próprio título (FLUSSER
[1981], 2012, p.3).
Na expressão das impressões gravadas em si durante sua vivência é que o
homem externaliza sua interioridade, objetiva a sua subjetividade de modo a ser
decodificada pelo outro e o faz, ainda segundo o autor, por meio da luta com objeto que
oferece resistência. A criação, a rigor, seria então esta troca de informações entre meu
repertório interior e o mundo no sentido de sintetizar novos “modelos de vivência, que são
também modelos de conhecimento e de comportamento e que pervadem a vida do
indivíduo e da sociedade” (FLUSSER [1981], 2012, p.3).
Segundo Flusser, o processo não segue uma ordem causal linear, que vai da
minha subjetividade para a minha objetividade em direção ao objeto escolhido para ser
“informado” (seja ele pedra, tinta, língua falada ou escrita), mas o “homem vivencia, desde
já, em função de determinado objeto”, de modo que os objetos, quaisquer que sejam,
acabam por também modelar a vivência humana (FLUSSER; BEC, 2011, p.111).
98
Extraído do texto Como explicar a produção. Primeira parte do ciclo de quatro palestras, intitulado: Como
explicar a arte, proferidas por Flusser em Outubro de 1981(segundo Rainer Guldin) e traduzidas do original
para o português por Andréa S. Calderón. Ver: FLUSSER, 2012. Disponível em: Flusser Studies, http://
www. flusserstudiesn.net/ pag/archive13.htm. Acesso em: 4/4/2013.
81
Assim, se formos construir uma imagem para tal processo, o esquema linear
não seria suficiente, pois a interação entre as partes, muitas vezes indistintas, envolvidas no
processo se dá de maneira dialógica e circular ao mesmo tempo, isto é, nosso modo de
existência é o de seres intrinsecamente relacionais.
Neste sentido, Flusser alerta para a necessidade da mudança de modelos
vivenciais vigentes e naturalizados pelo tempo de uso, sobretudo o modelo que afirma ser a
existência um simples encontro de um sujeito transcendente, uma “mente”, com objetos,
“de um ‘Eu’ com o mundo”, que afirmaria o conhecimento, para exemplificar, como o
encontro entre “um conhecedor” e um “a-ser-conhecido” (FLUSSER; BEC, 2011, p.66).
Afetamos e somos afetados pelo mundo ao mesmo tempo, ou mais
precisamente, somos exatamente esta relação e não um sujeito separado das coisas que se
encontram num espaço externo. Nosso modo de Ser é “estar-no-mundo”, e a realidade é
exatamente este encontro sujeito/objeto considerados de maneira não hierárquica e as
modificações da realidade são modificações nesta relação. Se ainda falamos em emissor e
receptor, não é por pensarmos este enquanto estâncias ou âmbitos separados, mas sim
porque nossa própria linguagem nos coloca nesta posição necessária.
Para o autor, o informar dos objetos se dá por meio do embate que passa a
revelar a estrutura dos mesmos que é, por sua vez, reabsorvida em forma de vivência pelo
homem. Sou moldado enquanto moldo, sou modificado neste confronto e transmito aos
outros − além das técnicas que desenvolvi neste embate − estas modificações que em mim
ocorrem. E é, justamente este feedback entre homem e objeto, a “essência da arte humana”.
Tal abordagem coloca em xeque as distinções concebidas modernamente, ao
menos no que diz respeito ao pensamento “ocidental”, em relação ao que seria ou não
considerado “arte” e até o que poderia ser entendido como “objeto” de arte, já que novas
informações não precisam, necessariamente, serem impressas em objetos, como já é o caso
das imagens digitais e os diversos suportes nos quais estas são “publicadas”.
Criar pode então ser visto como “qualquer atividade humana que visa produzir
situações improváveis” dentro da tendência crescente das situações se encaminharem para
o provável, seria se opor à entropia geral, sintetizando informações novas a partir de
repertório anterior, visando à publicação e recepção por outros, codificar informações para
serem decodificadas por outros. O mundo da cultura ou “mundo de segundo grau”,
conforme Flusser, seria esta “camada” codificada, portanto minimamente comum,
82
“composta de mundo de livros, imagens, instrumentos, leis, teorias, impressões sensoriais,
cores, etc. Todo tipo de símbolos que foram organizados (informados) segundo
determinadas regras”.99
O filósofo afirma também que em contexto estético seria mais adequado se
falar em “hábito” ao invés de “probabilidade”, pois estética “significa ‘capaz de ser
experimentado’ e ‘hábito’ implica anestesia”, quer dizer, aquilo que se tornou habitual não
é mais capaz de ser, efetivamente, experimentado (FLUSSER, 2004, p. 52).
Tomando então o hábito como “vara de medição”, uma de suas pontas
indicaria o “ruído total, total improbabilidade, ou seja, uma situação que se aproxima do
impossível; o outro extremo será redundância total, quase total probabilidade, ou seja, uma
situação que se aproxima de tautologia, ausência de informações” (FLUSSER 2004, p. 53).
Para o autor, os códigos da humanidade oscilam entre dois extremos: “códigos denotativos,
os quais permitem apenas uma leitura única”, os da lógica simbólica ou da matemática,
como exemplo e “códigos conotativos, que permitem toda uma gama de leitura, exemplo:
os códigos das artes” (FLUSSER; BEC, 2011, p.92).
No caso da produção de imagens que visem o efeito de estranhamento, ou
“imagens esteticamente mais interessantes”, teríamos então de nos situarmos num ponto
entre estes dois extremos que considerasse o incomum sem abandonar totalmente o
provável, utilizando-se de codificação incomum, não familiar, no intuito de provocar a
reflexão e se explicitar o código utilizado, liberando suas diversas significações.
Lembrando, porém, que este ponto, de acordo com Flusser, não poderia ser um ponto fixo,
mas, necessariamente “deslizante”, de modo que, não se trata de uma escala linear onde a
criação bem sucedida deveria se localizar; estes “não critérios” seriam flutuantes e
mutáveis historicamente, portanto, não se tratam de critérios eternos, pois toda informação
nova tenderia, em seu determinado tempo a tornar-se habitual, naturalizada, ou seja, “essa
dinâmica da escala de valores exige que ela seja marcada não com segmentos claros e
distintos, como um critério, mas sim com as zonas de sobreposição, para permitir a
medição do deslizamento do fenômeno estético” (FLUSSER, 2004, p. 54).
Desse modo, e ainda segundo Flusser, aquilo que é comunicado sem esforço (o
Kitsch, por exemplo) acaba por ser absorvido, e facilmente habituado sem esforço por
99
Explicar a Produção, p.1. In FLUSSER, 2012.
83
parte do receptor que assim sequer poderia percebê-lo. Tais “produtos” recebidos sem
esforço tenderiam a anestesiar o receptor.
É neste sentido que Lucrécia Ferrara nos esclarece que o efeito de
estranhamento está relacionado ao de automatismo e de economia de energia mental
(Herbert Spencer), pois
todos nossos hábitos estão submersos no domínio do inconsciente;
a ação, tornando-se costumeira, torna-se automática e a percepção
é tão mais rápida quanto mais automática, quanto mais
prontamente for identificado o dado novo em relação ao
conhecimento automatizado (FERRARA, 2009 p.34).
É da própria natureza da comunicação humana a troca de informações sob
código comum, a tendência à economia de energias dispendida no conhecimento e sua
eficiência em muito se deve à identificação “imediata” em relação à recepção dos dados.
Tendemos a aprender os códigos envolvidos em tais operações, para, assim que possível,
podermos “esquecê-los” ou introjetá-los e, ainda segundo a autora acima, era exatamente
neste eixo entre o automatismo e a percepção que Chklovski situava a originalidade do
plano artístico:
A arte é feita para dar a sensação da coisa enquanto coisa vista e
não enquanto coisa reconhecida; o procedimento da arte é o
procedimento da representação insólita das coisas, é o
procedimento da forma confusa que aumenta a dificuldade e a
duração da percepção (...) (CHKLOVSKI apud FERRARA, 2009,
p. 34).
No entanto, nenhum destes autores, fala de um procedimento mecânico e
fechado, uma ferramenta especificamente funcional, mas sim de um vetor mutável, neste
caso identificado como “desvio da norma”. Porque o efeito de estranhamento não se daria
simplesmente pela substituição, por exemplo, de algo simples por outro mais “elaborado
ou complexo”, mas sim pela quebra da norma, de modo que “quando a expressão culta
equivale ao uso comum, o mais estranho seria apelar para o termo vulgar” e seria neste
“descentramento do uso comum”, neste desvio que justamente se situaria a qualidade de
estranheza que estaria “na base da produção e da percepção estéticas” (FERRARA, 2009,
84
p.35). O produto oblíquo, que obstaculiza, ainda que não totalmente, a comunicação torna
mais difícil, portanto mais fértil a percepção daquele que recebe a imagem.
No que diz respeito às imagens – isto em comparação à linguagem verbal, seja
ela escrita ou oral – existe a possibilidade ainda maior de redundância, se levarmos em
consideração a profusão destas como mediadoras em nossa contemporaneidade.
Entre os motivos para isto, podemos apontar o fato de que, no caso das
imagens, os códigos utilizados na formatação de sua informação nem sempre estão
explícitos – em verdade, quase nunca – e, se explícitos, nem sempre compartilhados ou
apreendidos de forma crítica por quem decodifica tais signos. O que ocorre em menor grau,
se voltarmos a nos referir à linguagem verbal, que pressupõe para o exercício
informacional a consciência e domínio mínimo em relação aos seus códigos. Quer dizer, é
impossível “informar” algo verbalmente sem o mínimo conhecimento de um alfabeto
específico ou uso oral da língua. Isto nos coloca, pelo menos a um passo de distância do
código, ou seja, o código é aqui minimamente objetificado. O que não ocorre,
necessariamente, com as imagens, estas muito mais universalizadas que os textos.
Ora, a palavra “mesa” para sua decodificação básica nos exige, ao menos, um
mínimo de conhecimento em relação ao seu código (alfabeto e gramática da língua
portuguesa) e não faria o menor sentido para um finlandês, por exemplo, que não possuísse
o conhecimento básico em relação a este código. Assim, em relação à prática
verbal/textual, é necessário um recuo em relação ao mundo. O mesmo não se poderia
afirmar – ao menos não tão facilmente − em relação à imagem de uma mesa, que só
dependeria para sua decodificação superficial de um elementar compartilhamento mútuo
de costumes culturais, no caso, a utilização comum deste objeto representado na imagem
mesa.
Ou seja, a cada vez que utilizamos os referidos códigos na criação e troca de
informações em sua forma textual, nós os atualizamos, trazemos como que à tona diante de
nossa consciência – mesmo que de forma mais automática que na fase de apreensão do
mesmo – as estruturas e regras básicas do código em questão.
Já, nossa relação com as imagens, falando de modo geral, dá-se na maioria das
vezes de modo muito mais direto e arbitrário. Não à toa sua história estar tão diretamente
ligada à magia e aos rituais arcaicos e, em momentos posteriores, onde o saber humano se
desloca destes referenciais antigos para uma instância que exige cada vez mais controle,
85
lógica, objetividade, afirmação de verdade em relação às coisas do mundo concreto, as
imagens serem muitas vezes condenadas a produtoras de enganos, de ilusão. Das
preocupações de Platão aos iconoclasmos, esta estranha e paradoxal característica de
mediador que parece ser imediato, objeto que, mesmo em sua forma opaca e plana – como
no caso de fotografias impressas em papel – causa-nos a mencionada impressão de janela
para o fenômeno. De modo um tanto paradoxal, é justamente esta característica que nos
permite falar em algo como “arte”, ao menos no que diz respeito às suas formas
imagéticas. Uma pintura, por exemplo, sem a aceitação parcial de tal “ilusão” seria apenas
pigmento colocado de certo modo sobre uma superfície de tecido de algodão esticado
sobre um chassi de madeira.
No mundo atual, o problema se agrava, pois o embate com objeto, mencionado
antes, no intuito de vencer a inércia deste, de informá-lo e assim torná-lo objeto que
expressa informações, pois cada vez mais mergulhados em mundo automatizado por
aparatos pré-programados, a questão central se torna o processamento de tais informações.
O objetivo do homem torna-se então as estruturas destas informações. Tal libertação da
necessidade de modelar objetos, esta “tarefa produtora” não parece resultar em espaço
mais amplo e tempo mais longo para “sociedade dedicada à criatividade” ao contrário,
demonstra o caminhar mais rápido em direção à “vida programada”.
Pensando como Flusser, caberia então ao “artista”, aqui em seu sentido amplo,
o importante papel de possível agente de “emancipação da sociedade” programada cada
vez mais por aparelhos, nossa sociedade atual, liberando-a destes modelos programados,
através da estratégia de penetrar os mesmos, subvertê-los, contaminando-os por outros
modelos, com o objetivo de “perturbar as mensagens que estes transmitem” 100
.
Porém, em mundo mergulhado em torrente de imagens, a sociedade só se
torna, segundo Flusser101
, reflexivamente consciente destas “quando há dificuldade de
atravessá-las” quando, por exemplo, “esbarro em informação para a qual me falta o
código”, diante da qual ou me desvio ou busco a apreensão do código ausente em meu
repertório; ou diante daquelas que “contém muitos ‘ruídos’ que dificultam meu
deciframento”; ou ainda, em contato com mensagem que decodifiquei e vi que não se
encaixa em modelos já armazenados por mim.
100
Explicar a distribuição, p.4. In FLUSSER 2012. 101
Explicar a recepção, p.1. In FLUSSER 2012.
86
Para Flusser, em se tratando de mensagens artísticas, isto é, daquelas cuja
intenção é a de fornecer modelos de vivência concreta, estas dificuldades estão inscritas na
intenção do autor, pois o “artista quer que a sua mensagem contenha ruídos, e que o
modelo proposto por ele entre em conflito com os modelos já disponíveis”, quer dizer, os
modelos que foram naturalizados através do hábito. O artista então procura modificar o
código “a fim de torná-lo mais rico e permitir que transporte mensagens de tipo novo” 102
.
Em pensamento que dialoga103
com o que vimos até aqui sobre o efeito de
estranhamento, Flusser prossegue:
quanto mais difícil o deciframento de determinada mensagem, por
causa da utilização de ruídos intencionais, mais vale a pena
procurar decifrá-la. Será mensagem tanto mais informativa. E tanto
mais enriquecerá a memória do receptor, já que aumentará a
competência dos códigos por ele armazenados (FLUSSER [1981],
2012, p.2).
Neste sentido, o desafio para o produtor de imagens contemporâneo, ou demais
“mensagens artísticas”, não seria mais a busca pelo padrão aceito pelo senso comum como
boa imagem, pois a imagem recebida em situação total de “agrado, de satisfação, de calma,
quando é tida por bonita, pode ter certeza que tal mensagem pouco informa, pouco
enriquece” (FLUSSER [1981], 2012 p.3).
Afirma o filósofo que a mensagem produtiva, que produz informações novas,
ao contrário daquelas cujo intuito do artista era apenas chamar a atenção para sua
originalidade (ou domínio técnico), quando decodificada e constatada como rica em
informações devido a estes ruídos, será recebida com um prazer “sui generis”, “será
recebida como bela” pois a verdadeira beleza se revela como resultado não só do esforço
do emissor, mas igualmente do receptor. Quer dizer, “a beleza não é fácil”. 104
102
Ibidem, p.2. 103
Possíveis relações conceituais entre os pensamentos de Chklovski e Vilém Flusser também foram tratadas
no artigo Bazin, Flusser, y la Estética de la Fotografia de Alberto J. L. Carrillo Canán e Marco Calderón
Zacaula. In FLUSSER STUDIES 13. Disponível em: http://www.flusserstudies.net/pag/archive13.htm. 104
Explicar a recepção, p.3. In FLUSSER, 2012.
87
Flusser entende a fotografia, ou as imagens técnicas em geral, como produtos
de “aparelhos que foram inventados com o propósito de informarem, mas que acabam
produzindo situações previsíveis, prováveis”.105
Contradição em grande parte devida ao
acréscimo de recursos técnicos, por parte dos desenvolvedores destes aparatos, com
objetivo de automatizar sua utilização, facilitando seu manuseio e assim popularizando sua
distribuição.
Ocorre que, tal contradição, inerente a este tipo de imagem, acaba por gerar um
desafio àqueles que pretendem criar imagens singulares ou informativas, segundo o autor
este desafio seria produzir imagens
que sejam pouco prováveis do ponto de vista do programa dos
aparelhos. O seu desafio é o de agir contra o programa dos
aparelhos no “interior” do próprio programa [...] mas, tais como
programados, os aparelhos não servem para produzir imagens
informativas. É, pois, preciso utilizar os aparelhos contra seus
programas. É preciso lutar contra a sua automaticidade (FLUSSER,
2008, p. 26).
Trata-se de gesto retroativo, invertido contra si próprio, “pecaminoso” 106
,
segundo o filósofo. Primeiro, porque os programas que controlam o funcionamento destes
aparatos são desenvolvidos, alimentados, justamente por feedback fornecido pelos próprios
usuários destes, no que diz respeito à facilitação de seu manuseio; segundo, porque, como
dito acima, este processo de automatização nivela os usuários que necessitam fazer menos
escolhas em relação a como vão captar determinada imagem, já que o programa do aparato
os libera de diversas escolhas, antes necessárias e, desse modo, as imagens passam a ser
mais parecidas umas com as outras, simplificadas. Gesto que, para o autor, mostraria que
toda imagem técnica traria, em si, o rastro “de tal colaboração e luta entre o programador e
a liberdade informadora” (FLUSSER, 2008, p.26).
105
FLUSSER, 2008, p.26. 106
No texto em referência, Flusser aponta este gesto invertido como exemplo do que seria o “supremo
pecado, segundo a igreja católica: cor inversun in se ipsum”, algo como a inversão do próprio coração, ou
desejo, provavelmente uma referência aos comentários do reformador João Calvino ao escritos do profeta
Oséias.
88
Ou seja, trata-se, também, de gesto dialético, no sentido de que cada nova
descoberta, cada novo gesto informativo, tenderia a ser absorvido em determinado
momento pelo programa, incorporado a este pelo técnico/programador em respostas às
demandas dos próprios usuários. Estes, por sua vez, procurariam ir de encontro a estas
incorporações no sentido de suplantá-las e assim criar nova imagem informativa.
Dilema antigo, já que grande parte do que costumamos chamar de criação,
passa, num momento ou outro, por gesto informativo e luta contra objetos a serem
informados, porém que em se tratando de imagens técnicas e sua capacidade de
reprodutibilidade, apontada há tempos por Walter Benjamin107
, torna-se mais abrangente,
principalmente se tratando dos dias de hoje, onde tantos são os que produzem e replicam
estas imagens com impressionante facilidade.
Ainda apoiados nas reflexões flusserianas − porém no tocante ao que se refere
mais ao papel de receptores destas imagens − podemos afirmar que possuímos modelos
que formam nosso repertório e estes funcionam como “redes” para captar novas
informações de modo a “adquiri-las”, mas não são modelos no sentido kantiano, quer dizer
“não são modelos apriorísticos”, são modelos adquiridos culturalmente, nas trocas já
mencionadas anteriormente. Portanto são modelos móveis e em constante transformação,
muitas vezes de modo parcialmente anacrônico. Podemos dizer, em proximidade ao
pensamento de Aby Warburg108
, que alguns modelos se atualizam, agem sobre nós para
depois retornarem a sua qualidade de potência, aguardando nova situação que os tragam à
superfície consciente, muitas vezes com sinais trocados e significados renovados em
circularidade não abarcável por teorias causais lineares.
De modo complementar, Flusser nos chama a atenção para a “trans-
temporalidade da arte”. Significa que a novidade de um modelo não seria função direta de
sua qualidade de atual, do modelo presente, pois um modelo antigo pode afetar e mudar o
nosso “estar-no-mundo” atual: “Bach é tão novo quanto Schoemberg”, afirma o autor.
Flusser reconhece, porém, que “receber mensagens artísticas jamais foi tarefa fácil” e que,
107
BENJAMIN, 1935/1936, s/p. 108
Aby Warburg, ou Abraham Moritz Warburg (1866 -1929), nascido na Alemanha, foi historiador da arte,
antropólogo, pai da iconologia moderna e, segundo Norval Baitello jr, precursor de uma teoria geral da
imagem.
89
em grande parte dos casos, o ato de decifrar tais mensagens implica em decepção, mas é
tarefa necessária porque
se for bem sucedida, emancipará o receptor da opressão
programadora exercida pela “arte de massa” (do Kitsch), e abrirá
regiões insuspeitadas de vivências abaladoras. E não será isto
“viver”: mudar-se por vivências novas que levam a decisões novas
e ações novas? (FLUSSER [1981], 2012, p.4).
Apoiados no que até aqui foi colocado nos parece claro que as questões
relacionadas ao problema produção/recepção necessitam ser abordadas de modo
multidisciplinar, mas sempre partindo da ideia de que este é parte de um processo que
envolve em seus extremos o humano. Sem se desconsiderar os problemas da técnica ou
processos formais da imagem em si em seu início e fim, o que está envolvido é a relação
de um ser com seu entorno, ser envolvido em cultura, esta também um processo que é
afetado por nós ao mesmo tempo em que nos afeta. Entendemos pois, que tal problema
exige um “passo atrás” no sentido de passarmos − pensando aqui naqueles que para além
de produtores/receptores de imagens tratam de pensá-las − a nos concentrar menos no
objeto físico fotográfico, este, cada vez mais escasso ou mesmo nas imagens em si, quando
em uma tela (em sentido digital). Nos parece cada vez mais importante uma mudança de
foco que recue e implique o humano no processo, quer dizer, concentre-se − sem
detrimento do “o que vemos” − mais no “como vemos” e em que condições e meios
registramos e publicamos o que vemos de tal modo.
É nesta direção que Flusser, ao pensar uma prática fotográfica que procurasse
dar conta de problemas do tipo acima colocado, afirma que a visão deveria ser pensada
criticamente, pensando-a como prática política, isto é, que envolve uma ação no mundo,
uma intenção que visa uma prática. Isto porque o aparato fotográfico, além de unir a
técnica ao olhar, também é uma sincronização entre o olho e a mão, entre “teoria” e
“práxis” e esta sincronização é que está por trás da intencionalidade da visão. Na
concepção do filósofo, o fotógrafo dirige (manipula) a câmera para que possa dirigir seu
olhar ao mundo, e é aí que devem se concentrar nossas reflexões, não nas visões de mundo,
mas na maneira como o vemos, uma “visão da visão” já que nele estamos mergulhados
(FLUSSER, 2012(b), p.1).
90
O autor se referia aqui diretamente ao conceito, inicialmente utilizado por Juan
Fontcuberta, com o qual desenvolveu diálogo e amizade, chamado por este fotógrafo
espanhol de “contravisiones” 109
ou, em certos momentos, “contravision”.
Fontcuberta esclarece que o gérmen desta ideia se baseava na certeza de que
toda linguagem gera suas próprias contradições, portanto a fotografia também teria as suas
“contradições visuais” ou contravisões, que seriam “elementos que provocavam uma
fricção em certa lógica da própria linguagem fotográfica” 110
, como exemplo, teríamos as
fotomontagens, que acabavam por romper com certos hábitos visuais estabelecidos por
padrões de realismo visual (perspectiva central, analogia visual, etc) “referendados
cultural, histórico e ideologicamente” pela fotografia e,
A contravisão deve ser entendida como a ação de ruptura com as
“rotinas” (segundo sua acepção utilizada na informática) que
controlam os “programas” do pensamento visual: atuar como um
hacker atacando as defesas vulneráveis do sistema. A contravisão
deveria perverter o principio de realidade atribuído à fotografia e
representava não tanto uma crítica da visão, mas sim da intenção
visual (FONTCUBERTA, 1997, p.184).
Assim, qualquer variante “que provocasse o questionamento de suas diretrizes
podia ser considerado como contraditório em relação às tendências desta própria
linguagem” 111
ou seja, “contravisões” que nos chamassem a atenção para o que, devido a
hábitos culturais, havia sido “naturalizado” ou absorvido acriticamente. A exposição destas
contradições retiraria a linguagem específica, neste caso a fotografia e suas visualidades
automatizadas, da condição estanque, tornando possível a introdução de uma dinâmica
dialética que questionasse estas mesmas visualidades. Seria então papel de uma
“contravisão” o apontamento de consensos introjetados culturalmente, por meio da
109
Fontcuberta começa a utilizar o termo em 1977, em artigo para uma revista independente The Village Cry
(referência irônica ao Village Voice de N.Y.) em texto que fora solicitado para acompanhar a publicação de
algumas de suas imagens. As referências de Flusser ao termo foram retiradas de seu “pré-ensaio” Counter-
vision, que não chegou a ser publicado e, segundo Andréa S. Calderón e Rainer Guldin, era parte de projeto
em comum entre Flusser, Fontcuberta e o fotógrafo Andréas Muller-Pohle. 110
Em entrevista concedida à Cristina Zelich para o livro que leva o nome do fotógrafo dentro da série
Conversaciones com fotógrafos, editado em 2001 pela editora espanhola La Fabrica. Disponível em:
http://www.fontcuberta.com/. (personales/entrevista/los orígenes/ página3). 111
Idem.
91
revelação destes mesmos, através de práticas críticas que quebrassem esta espécie de
“encanto”. Parece-nos ser este o sentido próximo do comentário de Umberto Eco quando
afirma, ainda no início dos anos 1960, que “uma sociedade realmente democrática só se
salvaria se fizer da linguagem da imagem uma provocação à reflexão e não um convite a
hipnose” 112
.
Em seu desenvolvimento do conceito, Flusser acrescenta que a prática de uma
“contravisão” implicaria na mudança do foco visual-teórico, “o centro das atenções”, das
coisas para nossa relação com as coisas e assim, através da descoberta de como
significamos as coisas por meio destas escolhas visuais, por esta práxis, descobrir outros
novos “significados possíveis para o mundo” 113
e mudar os antigos. “Ver”, diferentemente
de “olhar”, implicaria uma intenção, preferência por isto ao invés daquilo e necessidade de
definição, significação do mundo. A questão central para o desenvolvimento prático e
teórico de uma “contravisão” seria, através deste recuo abstrato das coisas do mundo, a
mudança de foco para o nosso “estar-no-mundo”, focalizando nossa existência concreta.
Podemos considerar que este modo de reflexão “estranhada”, portanto, em
recuo em relação ao mundo, ou o modo como nos conscientizamos dele, é utilizado por
Flusser, em parceria com Louis Bec na criação de seu Vampyroteuthis Infernalis
(FLUSSER; BEC, 2011), para nos colocar em perspectiva em relação a nós mesmos.
Trabalho que mantém forte relação, de inspiração em “mão dupla”, com a obra de
Fontcuberta, notadamente em suas séries fotográficas “Herbarium” (para qual foi
solicitado a Flusser um texto de apresentação) e “Fauna” 114
, ambos os autores apontando
para a necessidade da criação como um “espelho a fim de reconhecer-se nele, a fim de
poder alterar-se, graças a tal reconhecimento” 115
.
Esta “quebra” na linha natural da percepção cotidiana, ou recuo crítico que nos
colocaria em relação temporalmente dilatada com as imagens em sua materialidade “de
mídia secundária”, tempo este necessário à leitura crítica e decifração e “para o confronto e
o diálogo com as nossas imagens interiores” pois, “neste diálogo é que nós nos
112
Pirelli/Rivista d’informazione e di técnica, anno1961, 14°, numero I. - Disponível em:http://www.
fondazionepirelli /rivista /1961/1-I/sfoglia?pagina=30.Acesso em: 20/03/2013. 113
FLUSSER, 2012(b), p.2. 114
Ambas disponíveis em seu site: http://www.fontcuberta.com/. 115
FLUSSER; BEC, 2011, p.134.
92
espelhamos, nos enriquecemos, bebemos, vivemos e multiplicamos o nosso espaço
comunicativo. É com este diálogo que nós aprendemos a ver, a nos ver e a ver o mundo”,
do contrário, “Ao invés de as imagens nos alimentarem o mundo interior é o nosso mundo
interior que vai servir de alimento para elas” (BAITELLO jr. 2005, p. 35). Pois, como
observa Lucrécia Ferrara:
Os automatismos perceptivos levam a uma simplificação da
realidade pela imediata referencia entre signo e objeto e a única
maneira de permitir a apreensão da realidade em sua complexidade
é provocar, justamente pelo procedimento estético, a não
identificação, a inadequação entre a linguagem e o referente
(FERRARA, 2009, p.20).
Assim, do ponto de vista da prática da produção de imagens fotográficas, pode-
se afirmar que o efeito de estranhamento em um determinado trabalho é uma possibilidade
que envolve tanto o produtor quanto o receptor de imagens, instâncias estas cada vez mais
difíceis de estipular e em constante revezamento de seus papéis, já que o papel de
produtores de imagens se amplia exponencialmente, e acabamos por, em grande parte, nos
relacionar com o mundo circundante por meio deste revezamento.
Esta possibilidade envolve, além de uma intenção óbvia em produzir imagens
significativas, o esforço ativo por parte de um receptor interessado, quer dizer, não se pode
(ou ao menos não se deve) obrigar ninguém a prestar a atenção a uma determinada
imagem. Este sujeito, aquele que toma contato com a imagem, por sua vez, passa a fazer
parte da equação como uma variável que, a cada experiência significativa em relação às
imagens que lhe tocam e lhe provocam posterior reflexão (ética, estética, política),
enriquece seu repertório e amplia justamente sua capacidade para posteriores recepções
mais complexas e diálogo enriquecedor com a outra variável ou à sua própria prática,
quando no papel de produtor.
A astúcia de Flusser consiste em perceber a fotografia e sua prática como
modelo paradigmático para nossa forma de pensar o mundo a partir do advento da
modernidade e agora, em tempos/espaços cada vez mais virtuais, informatizados e
imagéticos, não-cartesianos, portanto não lineares, difusos e complexos.
93
Em partes é o que demonstra o autor ao nos remeter à necessidade de
“escrutínio filosófico” relativo a esta práxis, portanto, novamente trata-se de um recuo
reflexivo a partir da simples contemplação de imagens “belas” ou sua produção para uma
abordagem que envolva de modo significativo a prática de criar e olhar para as imagens,
para o modo como as abordamos, somos abordados, as absorvemos, as produzimos e com
elas dialogamos que, no limite, trata-se do modo como vemos o mundo, como nele agimos
e a partir de quais escolhas fazemos isto.
95
3.1 Origens
Em sua origem, o termo “heresia” possui relação direta com escolhas e estas, a
rigor, podem ser consideradas sempre como individuais. Podemos, sim, dizer que
preferências pessoais, agregadas em consenso, tornam-se preferências coletivas, mas não
parece correto dizer “escolhemos em grupo”. Derivado do grego hairesis116
(e,
posteriormente, haeresis no latim, referente à escola de pensamento, seita filosófica), o
termo tem significado, como já referido, próximo à “escolha” (hairein), “opção” ou à
capacidade para tais ações.
Apenas posteriormente passa a ter conotação pejorativa relacionada a
“desrespeito”, “engano”, “ignorância” fazendo referência a seitas, dissidentes do
pensamento principal e dominante, a Igreja. Isto porque, pensamentos hegemônicos
devem, por uma questão de sobrevivência, prescindir de escolhas individuais que, neste
caso, possuem um caráter muito mais próximo das anuências do que propriamente das
escolhas. Consensos absolutos, se é que existem, são raros, mas ainda assim, de tempos em
tempos − a história da cultura humana o mostra claramente − corpos de ideias tentam se
impor de modo dogmático em busca de fundamentar paradigmas.
Ainda que expressem anseio legítimo e profundo, afinal, independente das
aventuras humanas, no fundo parecemos na maior parte do tempo agir em busca de
certezas, de saber a verdade última sobre as coisas; encontrar fundamentos sólidos e
essenciais, que ao menos nos tranquilizem, mesmo que temporariamente, em relação às
contingências da vida e de nossa inexorável condição de seres finitos, basta verificar os
arquivos da história para se notar quantos conflitos mortais surgiram a partir da
radicalização de tal anseio.
Por outro lado, a relação entre “A Verdade” − muitas vezes referida como “A
Palavra” − e a imagem, no mais das vezes, não foi amigável, entre outros motivos,
116
In:http://www.dicionarioetimologico.com.br/searchController.do?hidArtigo=DCFE47FD9DC8D7F57F1F0
C41F087F02C. Acesso em: 08/04/2012.
96
justamente por sua característica de signo polissêmico (... mais que mil palavras, dizem). A
escrita, no intuito de explicá-las, rompe seu domínio num revezamento histórico entre uma
e outra que longe de terminar, mostra-se contemporaneamente como um problema muito
ativo, mergulhados que estamos em profusão de imagens mal “digeridas”.
Mas houve momento neste revezamento em que a separação entre imagem e
palavra apresentou-se claramente como sentido de valoração de uma em detrimento claro
da outra, a consagração da primeira junto à demonização da outra. Segundo Hans Belting,
esta “santificação” da palavra teria ocorrido, ao menos em parte, em decorrência de uma
simplificação:
quando São Jerônimo, um dos pais da Igreja, na sua versão do
Evangelho de São João (1.1), traduziu para o latim o amplo
conceito grego de logos simples e diretamente como palavra
(verbum). Desse modo ele conferiu não apenas a essa palavra, mas
a todas as palavras no futuro, uma autoridade diante da qual as
imagens tiveram que capitular (BELTING, 2005, p. 2).
Ainda segundo este autor, o monoteísmo (portanto a concepção de verdade
unívoca) era iconofóbico por conta da percepção de que as religiões, cada qual com seu
deus local e uma (ou várias) representação respectiva dos mesmos, assim procediam por
intermédio de ídolos, imagens que durante muito tempo foram tomadas como a própria
presença destes deuses, que por sua vez diferenciavam entre si de diversas formas,
“refutando-se mutuamente” e, assim, anulando qualquer possibilidade de hegemonia em
relação à Verdade. A epifania, que explicitava a compreensão da essência verdadeira das
coisas dava-se apenas através da palavra, a voz e a escrita. Ao invés de um pedestal ou
estátua “tornou-se lei apenas na letra. A escrita é a manufatura do Deus único” (BELTING,
2005, p. 2), portanto, a incontestável “Verdade”. E neste sentido que segue o irônico
comentário do fotógrafo Gerard Castello-Lopes:
Existem religiões onde a representação do mundo é proibida
(“usurpação do poder de um Deus criador de todas as coisas”).
Pensando bem, é bem possível que fotografar seja uma artimanha
do Diabo e cada disparo um pecado (CASTELLO-LOPES apud
FONTCUBERTA, 1997, p. 21) 117
.
117
Em tradução livre do original em espanhol.
97
Retornando, o termo heresia tinha, originalmente, a ver com opções singulares,
mas, com o correr do tempo, adquire valor enfaticamente negativo passando a ser
associado a escolhas do tipo que eram consideradas “erradas” e, assim o eram julgadas, por
outros que não o sujeito da própria escolha. Daí, passar a ser considerado fruto da
ignorância, ou mesmo da loucura, pois, o sujeito da escolha, se sábio ou em sã consciência
escolheria o “correto”.
Podemos nos referir − se tomarmos, momentaneamente, como ponto de vista o
pensamento hegemônico − à heresia como um tipo de aberração cometida por aquele que
destoa do senso comum e, se observarmos as ocorrências desta atitude nos registros da
cultura, verificaremos também que elas muitas vezes vêm acompanhadas de reações
contrárias, em geral mais ou menos violentas, como anteriormente apontado. Quer dizer,
não é só uma opinião que diverge da maioria, mas sim, uma opinião que devido a essa
divergência causa incômodo, implica em colocar em dúvida as certezas assentadas na
forma de lugares-comuns convertidos em zonas de conforto e, principalmente, a ideia de
um pensamento dominante. Ou seja, o herege é, antes de qualquer coisa, alguém perigoso,
pois a novidade ou o questionamento do que está posto tende, aos poucos, a minar a
solidez de nossos fundamentos.
Assim, e pensando um pouco como Thomas Kuhn118
, as mudanças de direção
no pensamento humano, não se dão de maneira tão linear e gradativa como costumamos
pensar. Os pensamentos que um dia causaram rompimentos profundos e mesmo a quebra e
mudança de paradigmas milenares, passam então a ocupar o lugar deixado pelo
pensamento antecessor e ali permanece até que surjam anomalias em grau e número
suficiente para que o pensamento vigente seja colocado em questão. De modo que,
teríamos assim, momentos de “calmaria” – denominados “Ciência Normal” –
absolutamente necessários ao desenvolvimento e aperfeiçoamento das teses e resultados
práticos desta, intercalados por rompimentos, muitas vezes radicais – “Revoluções
Cientificas” – devido a crises geradas justamente pelos questionamentos e dúvidas frutos
da descoberta e apontamento de anomalias nos resultados e observações relacionadas às
teorias científicas vigentes (KUHN, 2003).
Logo, para que o pensamento se aprofunde nas questões que lhe são caras, é
indispensável à aceitação de tal pensamento por uma maioria que gere segurança e
118
Para maior aprofundamento da questão, ver: KUHN, 2003.
98
respaldo teórico e prático, contudo, para que o pensamento prossiga seu caminho em busca
de, se não definitivas, ao menos melhores verdades, é também indispensável àqueles que
questionem tais seguranças. São estes questionamentos que colocam à prova as teorias, e
seus desdobramentos na sociedade, mantendo seus defensores alertas em relação a
possíveis “falhas” no sistema.
Enfim, parece redundante dizer que é mais cômodo pensar dentro de um
paradigma estabelecido do que tentar observar possíveis brechas que, geralmente, a duras
penas, são levantadas – as tais anomalias – no intuito de apontar aquilo que se encontra
para além do horizonte imediato do conhecimento ou da prática humana. Toda mudança
paradigmática implica a troca de cenários que se naturalizaram, tornaram-se familiares,
portanto, implica incômodo necessário e, muitas vezes, inevitável. As crises, quase sempre
características destes momentos, tornam-se, para alguns, oportunidades, brechas no
“programa” onde, de fato, podemos escolher ou, como já apontou Vilém Flusser −
referindo-se ao que para ele consistia na verdadeira prática “filosófica” −, colocar nossas
formas de pensar “à prova” (muitas vezes torcendo para que estas se sustentem) muito
mais do que simplesmente tentar “prová-las”, como tentaremos exemplificar a seguir.
3.2 O Projeto
Em 2002, o fotógrafo mexicano Pedro Meyer foi convidado pelo diretor do
Centro de Imagem da Cidade do México para realizar uma retrospectiva das suas cinco
décadas de produção fotográfica. Ao aceitar o convite, percebeu-se diante do imenso
problema119
de ordem curatorial que era sintetizar a produção de um período tão longo e de
tamanha proporção, algo em torno de 300 mil imagens, em formato de uma Mostra. Das
soluções encontradas para o problema, resultou seu trabalho denominado Heresias.
Significava, segundo Meyer (2008), sair da “ortodoxia” de como eram, geralmente,
montadas tais exposições.
119
O relato completo, em espanhol ou inglês, encontra-se em MEYER, 2008, p. 333 e ss.
99
Nascido em Madrid, em 1935, Meyer emigrou para o México com seus pais
dois anos depois, onde se naturalizou. Fundou o Conselho Mexicano de Fotografia (1978),
organizou os primeiros colóquios de fotografia latinos e foi um dos primeiros profissionais
a adotar o uso de equipamento digital sem restrições. Em 1991, realiza a primeira
exposição com fotos digitais impressas em papel fotográfico. É docente, curador de
exposições, editor de livros e criador de um dos primeiros sites dedicados à fotografia
(1993), o ZoneZero120
, até hoje, um dos mais visitados da Internet. Ganhador de diversos
prêmios, entre os quais a bolsa Guggenheim, o National Endowment For Art e o
Internazionale di Cultura Città di Anghiari; em 2007, cria a Fundação Pedro Meyer para
contribuir para a pesquisa, reflexão e estudo da imagem fotográfica em meio às novas
tecnologias.
Para a realização de Heresias, o total de sua produção foi divido em 20 temas
considerados pelo fotógrafo como estrutura capaz de sintetizar representativamente seu
trabalho. Utilizando a experiência que já possuía em relação à criação do site ZoneZero,
propôs ao presidente do Conselho de Imagem que a exposição-retrospectiva fosse feita
utilizando-se de diversos sistemas complementares. A mostra se realizaria, então, em
diversas plataformas e suportes.
Como em todo projeto pioneiro, na prática, diversas dificuldades deveriam ser
transpostas. Algumas relacionadas à escolha da própria tecnologia a ser utilizada num
trabalho de tal porte, que envolvia o escaneamento de tal montante de imagens e também o
desenvolvimento de uma base de dados específica para o arquivamento e exposição destas
imagens na Internet. Assim, é possível dizer que, ainda em sua formatação, o projeto
Heresias já fornecia material para discussão em relação a questões de como o veículo onde
as imagens são vinculadas, sua “mídia”, pode mudar drasticamente o modo de sua
“recepção”, já que graças à utilização dos novos meios, “um arquivo morto, antes inútil”,
transmuta-se em arquivo vivo (MEYER, 2008).
Percebeu-se então que o projeto poderia e deveria ser expandido a outras
instituições no mundo. O propulsor de tal pensamento era, além claro da possibilidade
aberta a tal prática devido aos incrementos tecnológicos, a observação de que seu trabalho
anterior, Verdades y Ficciones, que intencionava tratar sobre “novas visões de mundo”,
120
http://www.zonezero.com/zz/.
100
tema que, de certo modo perpassa toda sua produção, havia demorado mais de sete anos
até completar o circuito pretendido, um tempo muito longo, segundo Meyer, para ser
associado ao termo “nova visão”.
Assim, o resultado foi uma exposição simultânea, realizada em outubro de
2008, com mais de 65 instituições ao redor do mundo (incluindo o Brasil) fazendo suas
curadorias próprias a partir de uma base de dados comum e, ainda segundo Meyer (2008),
trazendo à tona a ideia de ubiquidade121
relacionada às imagens. De modo que as imagens
poderiam ser vistas, simultânea e globalmente nos museus e galerias, em tamanhos
maiores, impressas ou não e a veiculação na Internet privilegiaria as possibilidades de
apresentar uma maior quantidade de imagens e atingir um número maior de pessoas.
Por fim, ainda utilizando-se de procedimentos canônicos (exposição, curadoria,
museus, galerias), porém de modo formalmente inovador, decidiu-se pela publicação de
um livro que respeitasse tal intento. Logicamente o formato de “catálogo de exposição”
normalmente utilizado nestes casos, além de não se encaixar na proposta geral do trabalho,
ainda gerava a inevitável questão sobre de “qual” exposição seria o catálogo. Assim, foram
convocados 20 curadores que escreveram os pequenos textos que constam no livro, bem
como comentários em forma de áudio que podem ser acessados no site da fundação, além
de disponibilizar uma versão gratuita do livro Heresias em formato PDF e uma versão
impressa, que poderia ser adquirida nas livrarias e na Fundação Pedro Meyer, em um
permanente diálogo entre os meios, ainda hoje fonte de discussões opositoras e
hierarquizantes, entre o “analógico” e o “digital”.
Ainda sem entrarmos na questão do conteúdo de sua produção − as imagens,
propriamente ditas −, despontam aqui as razões para a escolha do trabalho de Pedro Meyer
e, em particular, Heresias, como importante divisor de águas e fonte de discussão para o
que seriam procedimentos libertadores relacionados à práxis fotográfica. Numa época em
que museus e instituições sofrem restrições econômicas e vivenciam o questionamento de
seu papel social mais tradicional, Heresias se revela, já em suas motivações e posterior
formatação, como um projeto fechado em torno de uma postura muito própria à obra de
Meyer, tal prática já havia sido demonstrada no início dos anos 1990 em seu polêmico I
121
Refere-se à capacidade de estar presente em diversos lugares ao mesmo tempo.
101
Photograph to Remember122
, que, segundo o autor, é o primeiro trabalho a unir imagem,
narração e música em formato CD-ROM e que “relata” a história dos últimos dias de vida
seus pais, do momento que recebem, quase simultaneamente, o diagnóstico de câncer até as
suas mortes. Trabalho que, como era de se esperar, suscitou os mais diversos comentários,
mas principalmente críticas ferozes à sua suposta insensibilidade − ou mesmo insanidade −
em respeito a assunto tão intimo e complicado como é o tema da finitude. Não à toa surgir
daí, acusações indignadas de “insensível”, “herege”, entre outras. No mais das vezes
surgidas a partir de críticos que não haviam entendido a obra como um reflexo quase
natural de sua relação com seus pais e destes todos com a fotografia.
Seu caráter questionador e nada ortodoxo inicia-se por sua visão particular de
mundo, passa por suas escolhas profissionais e reflete-se em suas imagens, pois, convém
lembrar, a relutância quase geral a entender a mudança para fotografia digital (em
contraponto a analógica) como algo inevitável, algo que hoje parece trivial, mas que em
seus primórdios também era considerada uma afronta. Principalmente nos meios onde sua
aplicação era denominada “documental”, pois se atribuía à fotografia digital uma facilidade
de “manipulação”, em comparação à fotografia analógica, que comprometeria sua
credibilidade como documento atestador do real. Para Meyer − que prefere “alteração” à
“manipulação”, devido ao caráter de engodo relacionado culturalmente ao segundo termo −
e como é sabido por quem tem um contato básico com o processo fotográfico,
alteramos as imagens no mundo analógico com químicos e
alteramos as imagens digitais nos meios eletrônicos. Os fotógrafos
o tem feito desde sempre. A única diferença é que fazemos de
modo e em momentos diferentes do processo, historicamente, isto
já tem sido feito antes mesmo do momento do disparo e agora, com
o advento dos meios digitais, facilmente depois do click123
.
Para ele, a fotografia, no que diz respeito à relação desta com a representação
da verdade, continua sendo apenas um comentário particular, uma interpretação do real,
122
Disponível para visualização e download em: http://www.pedromeyer.com/galleries/i-photograph/index
.html. 123
MEYER, Pedro. Fragmento extraído do editorial do site ZoneZero (em tradução livre do espanhol) de 1 de
março de 2001. Disponível em: http://zonezero.com/editorial/marzo01/marzo.html. Acesso em: 1/2/2012.
102
mas que, nem por isso, perde a sua potência de documentar, ou perpetuar visualmente um
fenômeno ocorrido diante do fotógrafo e traduzido por este em imagem que registra suas
impressões e pontos de vista.
3.3 A Obra
Muito antes das atuais questões tecnológicas, as ideias que circundam o termo
heresia há muito aparecem relacionadas ao fenômeno da fotografia. Em seu texto, escrito
um século depois do que podemos chamar de invenção da fotografia124
, Walter Benjamin
apontava, com franca ironia, para o comentário que teria sido publicado em um
“chauvinista” jornal alemão, o Leipziger Anzeiger, para combater o que seria uma
“invenção diabólica de além-Reno”. Segundo o autor, lia-se no jornal:
“Querer fixar efêmeras imagens de espelho não é somente uma
impossibilidade, como a ciência alemã o provou irrefutavelmente,
mas um projeto sacrílego. O homem foi feito à semelhança de
Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum
mecanismo humano. No máximo o próprio artista divino, movido
por uma inspiração celeste, poderia atrever-se a reproduzir esses
traços ao mesmo tempo divinos e humanos, num momento de
suprema solenidade, obedecendo às diretrizes superiores do seu
gênio, e sem qualquer artifício mecânico” (BENJAMIN, 2008, p.
92, grifo nosso).125
Num quadro mais amplo, o problema das imagens em seu aspecto de
representação remete aos primórdios do pensamento humano, ao menos no que diz respeito
124
Lembrando que a fotografia, propriamente dita, surge entre nós por volta do final dos anos 1830. Ou, é
pelo menos aí que se completa o processo de “captura” da imagem, com a descoberta de processos de fixação
desta numa superfície por meio de processos químicos. 125
O notável nesta citação reside no fato de, segundo o fotógrafo e pesquisador espanhol Joan Fontcuberta,
ela ser falsa, quer dizer, o fato deste jornal sequer ter existido. A citação de Benjamin, já reproduzida em
vários tratados sobre fotografia, teria sido tomada da biografia do fotógrafo Max Daunthendey, escrita por
seu próprio filho, que pretendia assim ampliar o tom hagiográfico da obra de seu pai. Ainda segundo o autor
(FONTCUBERTA, 1997, p. 29), não fica claro se Benjamin estava ou não ciente de tal fato.
103
a sua linhagem ocidental, como na tão proclamada preocupação platônica126
com o poder
mimético das imagens que nos desviariam de um ideal essencial e metafísico. Problema
que prosseguiria de modo bastante complexo, historicamente representado pelos
iconoclasmos e querelas frequentemente associados a imposições de caráter religioso em
nome da manutenção de uma verdade dogmática.
Como já visto aqui (capitulo I, Desconstrução) a relação entre a fotografia,
enquanto linguagem, e a “verdade” não é apriorística, mas fruto de construção e posterior
hábito cultural. Assim, o senso comum é o de subdividir o resultado da prática fotográfica
em, ao menos, dois tipos: a fotografia documental que, supostamente, seria produto de uma
relação direta e pura com a realidade concreta, uma representação fiel e inquestionável da
verdade; e a fotografia ficcional (também chamada de autoral ou artística) esta, também
em suposição, fruto de manipulação ou alterações feitas pelo autor da imagem ou outros,
considerada artística justamente pelo papel da subjetividade injetada por meio das
intervenções nela realizadas. O trabalho de Pedro Meyer busca justamente, de modo muito
consciente, a pulverização ou, no mínimo, o questionamento de tais divisões tão
cartesianas.
Em Heresias, como em quase todo trabalho que pretenda representar uma
prática tão longa, verificamos uma produção de caráter plural e bastante heterogêneo, que
vai desde seu início como foto-jornalista, cujo trabalho era vinculado ao conceito de
Straight Photography127
(fotografia pura ou direta) − vertente da fotografia moderna,
surgida nos Estados Unidos, no começo dos anos 1900, que preconizava um contato direto
da câmera com a realidade sem intervenções laboratoriais ou nas cópias −, participando de
coberturas de conflitos e manifestações político/sociais, passando por imagens que nos
instigam à uma recepção incomum relacionada à própria estranheza da realidade,
acentuada pelo enquadramento e descontextualização gerado pelo recorte da fotografia
(figura 1), até a utilização de montagens e filtros de efeito de softwares como o Adobe
Photoshop entre outros editores de imagem (figuras 2, 2a e 2b). Outra prática muito
126
A este respeito, remetemos o leitor ao Livro X de A república. In PLATÃO, 2001. 127
Podemos apontar como principais expoentes desta prática, entre outros, Alfred Stieglitz (1864-1946), Paul
Strand (1890-1976), Edward Weston (1886-1958) e Anselm Adams (1902-1984).
104
comum é a reutilização ou reaproveitamento de imagens já utilizadas em outros contextos
anteriores, juntando-as a outras ou retirando e acrescentando elementos às mesmas,
provocando alterações sutis em seus significados, ou mesmo, sua total ressignificação.
Na figura 1 (Silla Monumental), a seguir, vemos o que pode parecer, a
princípio, uma montagem digital que mostra uma cadeira gigante colocada sobre um
pedestal em uma praça. O fotógrafo nos chama a atenção para o fato de a cadeira gigante
realmente se encontrar em tal lugar, quer dizer, a imagem não foi alterada digitalmente e
sua inserção em meio a outras teve o intuito de justamente causar a dúvida sobre sua
“fidelidade” ao real, efeito acentuado quando apresentado junto a outras imagens
nitidamente modificadas ou construídas. O efeito de estranhamento é gerado pela traição
da imagem em relação à visualidade culturalmente estabelecida que nos afirma que,
normalmente, uma cadeira não pode ser maior que um prédio ou mesmo uma placa de
trânsito. A situação em si é extravagante, mas assim que descoberto o fato − segundo
Meyer, inscrito na placa cravada à frente do monumento − que aponta aquele como o local
de fabricação da “maior cadeira do mundo” a expectativa de explicação se arrefece. No
entanto, como já apontado acima, inserida no conjunto de tantas outras imagens alteradas
física ou digitalmente, a imagem torna-se ferramenta de artimanha para, segundo Meyer, se
chamar a atenção para a necessidade de sempre desconfiarmos do que as imagens nos
apresentam de imediato. Ou, em suas palavras:
Na primeira vez em que expus esta imagem, da cadeira sobre um
pedestal na rua, todos que a viram estavam convencidos de que eu
havia colocado a cadeira utilizando Photoshop. A possibilidade de
que pudesse ser uma cadeira “real” foi rechaçada de imediato. Era
mais crível a explicação de uma manipulação digital e fazia mais
sentido que a extravagante ideia de que em Washington, D.C.
existisse realmente semelhante cadeira. As noções de verdadeiro e
falso haviam fechado um círculo. Agora tendemos a descartar o
real, por este parecer falso128
.
128
MEYER, Pedro. Fragmento extraído do editorial do site ZoneZero (em tradução livre do espanhol) de 8 de
julho de 2004. Disponível em: http://www.zonezero.com/editorial/julio04/julio.html. Acesso em: 4/3/2012.
105
Fig. 1 "Silla Monumental", Pedro Meyer, 1989. Washington, D.C., EUA - Negativo P&B – 35mm.
Quer dizer, em meio a tantas intervenções que observamos a partir do
surgimento de softwares de edição e manipulação de imagens, da fotografia digital e de
toda a discussão gerada em torno do assunto − na maioria dos casos relacionadas muito
mais a aspectos éticos do que formais ou estéticos − tornamo-nos desconfiados full-time a
ponto de nos estranharmos diante de qualquer imagem que nos pareça incomum.
Ironicamente, em tempos atuais, parece mesmo mais fácil pensar a imagem acima como
fruto de uma mentira ou de um real construído. Neste caso, é no registro da inversão de
uma expectativa visual naturalizada, dentro de um espaço cultural específico, o
contemporâneo, que trabalha a reflexão de Meyer, contrariando a expectativa normal. Este
efeito é potencialmente aumentado quando esta − a foto em questão − é apresentada no
contexto do trabalho Heresias.
106
Os procedimentos variados realizados pelo fotógrafo mexicano, tocam em
alguns cernes conectados à sacralidade da imagem fotográfica e sua relação com a
representação do real.
A ambiguidade latente em suas fotografias acaba por remeter o receptor a
questionamentos em relação às próprias certezas arraigadas embutidas em sentenças
corriqueiras, tais como, “ver para crer”, por exemplo. Seu trabalho busca suspender a
naturalizada relação causal entre imagem e objeto, muda o foco das discussões polarizadas
entre real ou ficção, espontâneo ou construído, analógico ou digital, tão caras e ainda
constantes no meio fotográfico. É neste sentido que aponta Helouise Costa, pesquisadora
da imagem e curadora responsável pela montagem de Heresias em São Paulo, no ano de
2008:
Longe de exaltar a tecnologia em si, Meyer faz uso de seus
recursos para atuar criticamente na origem do processo de
construção do sentido. Ele recupera o potencial subversivo da
imagem, que as vanguardas históricas souberam tão bem explorar,
e aponta para a zona nebulosa daquilo que define a nossa condição
humana. Talvez por isso mesmo, as imagens de Meyer sejam tão
inquietantes, capazes de evidenciar a fragilidade de nossas certezas
(COSTA apud PERSICHETTI, 2008).
Subversão esta, caracterizada pelo não comprometimento com um caminho ou
prática específica das relacionadas nos cânones da linguagem fotográfica, mas, ao
contrário, um caminho centrado justamente na exploração destas diversas práticas sempre
no intuito de questioná-las.
Mais abaixo podemos ver um exemplo de seu trabalho relacionado à
montagem fotográfica, La tentacíon del ángel, realizada a partir da fusão da imagem 2ª
(sem título) com parte da imagem 2b (idem).
107
Fig. 2 (montagem 2a+2b) - “La tentacíon del ángel” – Pedro Meyer, 1991/1991 - Magdalena Jaltepec,
Oaxaca, México. Negativo color. - Imagem modificada digitalmente.
Como podemos observar − e confirmar, através do depoimento do próprio
Meyer129
−, a figura 2a (a seguir) foi alterada, tendo seu fundo “desfocado” na pós-
produção, através de interferência feita em software de edição, com intuito de se destacar a
parte da imagem, em primeiro plano, que mostra a menina vestida de anjo. Por meio do
mesmo procedimento, foram retiradas as marcas de “Pepsi-Cola” que estavam no tampo da
mesa, pois eram uma referência muito forte à concretude do mundo e também uma
propaganda desnecessária. E, por fim, foi acrescentada, a imagem recortada da senhora
(possivelmente, uma curandeira) segurando uma rama de plantas secas em chamas, que
seria usada, no momento em que sua foto foi tirada, para o preparo de um ritual de
Temazcal130
, extraída da imagem 2b após esta ser digitalizada.
129
O depoimento multimídia do autor, em relação a esta e outras imagens desta série, pode ser acessado em:
http://www.pedromeyer.com/galleries/truths/. 130
Trata-se de um tipo de sauna (temas = banhar-se, calli = casa) utilizada por alguns indígenas (maias e
astecas, entre outros) para a purificação do corpo e do espírito através da interação entre os humanos e os
elementos considerados, por eles, sagrados: o fogo e a água.
108
Fig.2a - Sem título - Oaxaca, México, Pedro Meyer, 1991 - Negativo color. - 35mm.
Fig.2b - Sem título - Oaxaca, México, Pedro Meyer, 1991 - Negativo color. - 35mm.
109
O resultado de tal procedimento − a primeira imagem, “La tentacíon del
ángel” (Figura.2) − que poderia ser caracterizado como de significado ambíguo, acaba
por apontar para certas ambivalências dialógicas131
que, de modo geral, acabam por
conviver de forma, até certo ponto não conflituosa, principalmente no que diz respeito a
culturas latino- americanas, mais abertas a pluralidades deste tipo. As duas imagens que
dão origem à terceira, foram captadas em locais e datas muito próximos e, mesmo estando
sincronizadas no espaço/tempo mais amplo, formam característica de hibridez existente e
reconhecida em tal ambiente cultural, representando, deste modo, aspecto “real” de tal
contexto histórico/social.
O efeito de estranhamento, neste caso, é induzido pela interferência em algo
que temos como dado e que, de fato, pode assim ser entendido, ou seja, a perspectiva a
qual estamos acostumados, indicadora de que aquela senhora não poderia ser daquele
tamanho a não ser que estivesse localizada mais distante do primeiro plano. Pode-se
apontar também como importante a geração de certo antagonismo representado pela
relação entre os pares simbólicos em oposição: monoteísmo cristão/politeísmo pagão,
jovem/velho e, talvez não intencionalmente, o preto/branco e a disputa relacionada ao
tabuleiro de jogo sob o qual aparece a imagem da senhora.
Fica claro para quem, assim como Meyer, tem contato próximo com a
tecnologia de edição de imagens (no caso deste fotógrafo, desde seus primórdios) que não
se trata de uma montagem que “camufla” seus procedimentos codificadores. Até porque, as
próprias legendas colocadas em suas imagens − no caso desta, “imagem alterada
digitalmente” − acabam por deixar claro a interferência no código. Ou seja, do ponto de
vista de se utilizar tal procedimento com o intuito de gerar uma “ilusão de real” ou o efeito
de uma falsa realidade no receptor da imagem, poderíamos afirmar que o resultado seria
muito pouco satisfatório.
É notório, devido à perspectiva nada verossímil, indicada pela presença da
imagem da senhora sobre a mesa, que não há intuito de se criar, com tal intervenção, uma
imagem que nos sugerisse um fenômeno de ordem “natural” ou corriqueiro, algo que de
fato pudesse ter ocorrido dentro daquilo a que estamos acostumados. Assim, o resultado
acaba por ser um efeito de estranhamento, devido ao “ruído” gerado por tal interferência
131
Para maior aprofundamento da questão, ver: FERRARA, 2009, p. 79.
110
na recepção que fazemos da imagem. Já que, como notou Arlindo Machado, o “senso
comum” só percebe a existência de um caráter organizador que naturaliza topologicamente
nossa recepção da imagem, quando, em oposição o enquadramento se torna “bizarro e
difícil”. Isto é, quando fazemos escolhas usualmente incomuns, pois, são
os enquadramentos em ângulos tortuosos e insólitos que desnudam
a função da fotografia como forma de exercício do olhar: em
posição excêntrica, a perspectiva age explicitamente como
instrumento de deformação e a posição do olho/sujeito se denuncia
como agente instaurador de toda ordem. É assim que se perfura a
sensação de naturalidade e de “realismo” proporcionada pelo
enquadramento frontal (MACHADO, 1984, p.112).
Assim, a alteração promovida por Meyer nos códigos (perspectiva, desfoque na
profundidade de campo, etc.) naturalizados e aceitos cognitivamente devido a nossos
hábitos em relação à maneira como vemos e representamos o mundo, acaba por gerar a
interferência necessária à abertura para ressignificações. O efeito de desautomatização, em
relação ao fluxo natural do olhar, causado por tal procedimento, abre espaço e
possibilidades para a geração de questionamentos por parte de quem observa tal imagem.
Questões referentes a distinções entre verdadeiro/falso, realidade/ficção, hábitos
visuais/novos modos de ver.
No entanto, tal procedimento, habitualmente utilizado pelo fotógrafo em
questão, não se apresenta como mero malabarismo técnico, mas antes é parte de sua ideia
de “ficção real”, quer dizer, parte da intenção de explicitar suas impressões sobre uma
determinada situação apresentada que não seria possível, ou restaria incompleta sem a
utilização de tal processo. De modo que duas situações antagônicas, que convivem em
proximidade no plano cultural, mas que não ocupavam o mesmo espaço próximo no
momento da realização da imagem, passam a conviver no espaço simbólico de sua
montagem, revelando com mais precisão do que as imagens em separado, àquilo que o
fotógrafo julga ser um quadro mais próximo de seu ponto de vista sobre o real.
Sua prática pressupõe que a fotografia, mesmo a assim chamada “documental”,
é sempre um comentário de um determinado sujeito em relação ao mundo e sempre parte
de uma subjetividade, de escolhas que levam em consideração, conscientemente ou não, o
repertório cultural de quem produz tal imagem ou, nas palavras do próprio fotógrafo:
111
Percebemos que a, uma vez sacrossanta, noção de que uma
fotografia era a representação mais fiel da realidade, nunca foi
verdade, e uma nova variável entrou em jogo, e isso é que a
representação subjetiva de qualquer assunto é também uma forma
muito significativa de tratar as graves preocupações humanas, que
por sua vez nos fazem pensar sobre o mundo ao nosso redor. Eu
espero que nós tenhamos chegado a um estágio onde possamos
realmente libertar a fotografia e liberar o seu potencial criativo para
fazer grandes ficções documentais que nos façam ver o mundo de
novas maneiras132
.
As interferências que ele realiza em suas imagens são sempre explicitadas de
modo a não promoverem “enganos” ou “ilusões”, mas sim deixar claro o seu caráter de
visão específica de mundo, uma interpretação daquilo que esteve diante de sua máquina e
seu olhar, num determinado momento, a ampliação do real ou documentação do
imaginário, enfatizando o caráter de construção − tanto por parte do fotógrafo que compõe
a imagem por meio de suas escolhas quanto por aquele que a reconstrói em sua imaginação
− inerente a toda imagem fotográfica, trazendo à consciência reflexões sobre o poder de
representação legitimado culturalmente ao longo da história do meio fotográfico em
particular e das imagens em geral.
É preciso reiterar, no entanto, não se tratar de procedimento puramente formal,
mas antes a busca de uma imagem expressiva e que consiga atingir e provocar seus
receptores, retirando-os de sua passividade e os colocando no papel de co-criadores de
novos significados enriquecedores de nossas experiências com o mundo concreto. Isto
porque, passamos as ver ao invés de simplesmente olhar tais imagens, já que
o ver não diz respeito somente à questão física de um objeto ser
focalizado pelo olho, o ver em sentido mais amplo requer um grau
de profundidade muito maior, porque o indivíduo tem, antes de
tudo, de perceber o objeto em suas relações com o sistema
simbólico que lhe dá significado (ZAMBONI apud BARBOSA,
2002, p. 69).
Nestes casos, o contato com imagens, dispara um processo dialógico em que
participamos somando aos significados percebidos, por intermédio destas imagens
132
MEYER, Pedro. Fragmento extraído do editorial do site ZoneZero (em tradução livre do espanhol) de
janeiro de 2006. Disponível em: http://zonezero.com/editorial/enero06/enero06.pdf. Acesso em: 22/10/2012.
112
“endógenas” − quando estão em nosso interior, na imaginação, sonhos, devaneios ou
“arquivadas” de algum modo em nossa memória e nossas imagens “exógenas” − quando
estas se encontram em suportes externos, em outros corpos (mídias) que não os nossos
(BELTING, 2006), processo que se renova e reatualiza – já que esta divisão em dois tipos
é de difícil delimitação – a cada novo contato que se realiza com estas imagens. Assim a
imagem, a rigor, nunca é a mesma, pois é fruto de interação interdependente e interferente
entre subjetividade (eu), objetividade (a própria), ambos inseridos em fluxo diacrônico de
mudanças culturais.
São estas imagens que chamam a atenção para algo de intrínseco às imagens
como um todo, sua “polissemia”133
, sua multisignificação, o que permite que as abordemos
não como “pontos finais” de um processo de sentido, mas sim pontos a partir dos quais
podemos penetrar aberturas para novas significações ou sentidos.
Em se tratando de imagens fotográficas, porém, devido a sua forte
característica de verossimilhança e todos os outros pontos vistos até aqui, esta polissemia
acaba por gerar uma série de discussões que extrapolam a esfera problemática relacionada
a outras formas de linguagem e representação. É interessante notar como, mesmo que
falando de modo um tanto superficial e genérico, o mesmo não ocorre com as
representações textuais, quer dizer, de um modo geral, as afirmações sobre a realidade,
quando representadas em sua forma textual/verbal, tendem a ser vistas como o que de fato
são, comentários, pontos de vista sobre algum fenômeno.
Ainda a respeito da relação entre nossas imagens endógenas e as imagens que
se apresentam como exógenas, podemos dizer que o processo de decodificação das
imagens, coloca-nos em um nível que não é mais o do apenas reconhecimento de uma
forma ou conteúdo (obviamente também não é o do não reconhecimento absoluto), da
mera percepção do familiar, mas num lugar de reconstrução. O aparato fotográfico pode
assim ser visto como máquina de transmutação de uma aparência de realidade − um
fenômeno que se apresentou diante do olhar do fotógrafo e de suas escolhas (em grande
parte limitadas aos parâmetros do aparato) − para outra realidade, da ordem do simbólico.
133
Do Grego, poli: "muitos", sema: “significados". Termo utilizado em linguística que significa propriedade
de uma palavra ou locução que tem vários sentidos ou conjunto dos vários sentidos de uma palavra ou
locução, quer dizer, “sua diversidade de referências semânticas” (ABBAGNANO, 1971 p. 772). Referimo-
nos aqui à qualidade das imagens de representar diversos sentidos e significados possíveis.
113
De modo mais sintético, poderíamos ilustrar com a ideia de que não é de
importância cabal se a imagem decorrente de uma foto que produzi de um carro que corria
na rua resulta na imagem de um carro parado, “congelado”, dependendo das escolhas
programáticas que eu fizer na utilização da máquina. O que nos importa mais é sublinhar
que a imagem é como um “mecanismo” disparador de outra narrativa que resultará, em
partes, da experiência anterior que o receptor teve com “carros”, pois suas representações e
a relação que com elas estabeleceu anteriormente definirá em muito a decodificação que
fará desta imagem. Portanto, de certo modo, podemos dizer que o real “concreto” se
transforma em real “simbólico”, disparador de outra narrativa, em parte
descontextualizada, porém, mantendo ainda certa filiação à inicial, quando transformado
em imagem fotográfica.
Podemos afirmar, ainda que de modo experimental, que muito do efeito de
estranhamento relacionado às imagens de Meyer advém de seu esforço consciente em
causar este atrito dialético entre imagens internas e externas, imagens retiradas de um
continuum perceptivo comum, que envolve a nossa relação mais cotidiana com o
espaço/tempo e imagens de outros fluxos perceptivos que, quando acopladas num mesmo
espaço imagético, colocam “em xeque” nossas percepções comuns.
Equivale dizer que, em sentido muito profundo, somos nós quem criamos
nossas imagens. Estas, “não se encontram independentemente”, sejam nas superfícies
externas, fotos, telas ou “nas cabeças”, nossa memória e/ou imaginário. Imagens “não
existem por si mesmas, mas sim acontecem; elas ocorrem” via “transmissão e percepção”
(BELTING, 2006, p. 33). De modo que o processo envolve muito mais uma circularidade,
no sentido de trocas, do que uma linha reta causal. E é justamente este recuo em relação à
imagem que pode nos colocar em posição de entendê-las e de novo trazê-las para nosso
lado como agentes de conhecimento do mundo onde vivemos.
Este processo pode nos colocar em posição mais interessante em relação à
imagem fotográfica, de modo a extrairmos daí sínteses mais ricas resultantes do
revezamento entre a consciência de sua qualidade enquanto mídia − pois “imagens estão
presentes por causa e através de suas mídias, ainda que elas encenem uma ausência da qual
elas são imagens” 134
−, sua superfície ou corpo (e a relação de nosso corpo com este outro)
134
BELTING, 2007, p. 49.
114
e sua qualidade de representação, seus conteúdos e significados pois, “quanto mais
prestamos atenção a uma mídia, menos ela pode esconder suas estratégias”, ao passo que,
“quando a mídia visual torna-se auto-referencial, ela se volta contra suas imagens e nos
desvia a atenção” (BELTING, 2007, p. 36).
Em certo grau de sentido, é a este revezamento que se referia Aby Warburg
situando o ato artístico em região equidistante, “tanto do modo típico da imaginação de
colher os objetos quanto daquele característico da contemplação conceitual” 135
, de modo a
pensar a criação como caminho e caminhar de mão dupla entre a imaginação, e sua
tendência a se perder no objeto contemplado, e a racionalidade, que para objetificar o
mundo precisa, ao contrário, dele se afastar. Warburg sintoniza-se com o pensamento que
coloca esta separação consciente ou criação da distância entre nós e o mundo ou nossa
condição fundamental de seres que existem − no sentido de ek-sistência, ou transcendência,
estar à frente, fora e, mais especificamente, à capacidade de se subtrair aos códigos, à
medida que nós próprios os criamos − ou que se colocam como sujeitos que objetificam o
mundo, chegando mesmo a afirmar a criação desta distância como “ato fundamental da
civilização humana”.136
Seria então de suma importância, à própria sanidade humana, o resgate destas
categorias lentamente perdidas ao longo de nossa trajetória em nome de uma objetividade
que legitima apenas os aspectos “claros” e “indubitavelmente distinguíveis” em
contraponto aos aspectos humanos de caráter mais simbólico há muito considerados
perigosos ou mesmo inúteis, personificados por meio do embate entre a importância de
nossos aspectos ditos “apolíneos” e “dionisíacos”. Ou restabelecer, de modo consciente, a
já um tanto perdida relação ambivalente entre dois pólos, “um abandono de si mesmo
apaixonado e uma fria e distante serenidade na contemplação ordenadora”137
. Restabelecer,
segundo Warburg o movimento pendular entre a posição das causas como imagens e como
signos, seria, no fundo, restabelecer esta capacidade inerente aos símbolos de orientar o
espírito humano ou, em se tratando de imagens, nos modificarmos para que novamente
135
Introdução ao Atlas Mnemosyne (1937). In Mnemosyne L’Atlante della memória di Aby Warburg. Roma:
Artemide edizioni, 1998. Ver: WARBURG, 2008. p. 125. 136
Idem. 137
Idem.
115
possamos utilizá-las, como já afirmou Vilém Flusser, como mapas do mundo que nos
orientem138
.
É neste cenário problemático que se encontra e age aquele que se propõe a
produzir imagens significativas ou ir além da, já difícil, produção de imagens fáceis ou
simplesmente belas e agradáveis. Nesta região, o belo, classicamente falando, pode ser
festejado na condição de um subproduto da prática, mas não como um fim em si mesmo
que justifique uma busca verdadeiramente humanizadora para as imagens.
O desvio da relação mais condicionada de nossa percepção causa/efeito e
espaço/tempo, apontado mais acima, pode, quando explicitado, retirar-nos da condição de
meros receptores passivos, colocar-nos diante de um novo modo de pensar mais rico e
complexo, entender a complexidade inerente a processos onde, como afirmou Edgar
Morin, “os efeitos retroagem sobre as causas e as realimentam” 139
.
Não é fruto de acaso a fotografia, considerando-a como um processo, acabar
por tornar-se foco privilegiado de atenção de tantos pensadores (Benjamim, Flusser,
Barthes, etc), pois se, como já vimos140
, muito da razão desta ser considerada como
atestado de veracidade e cópia fiel do “real”, deve-se justamente à sua gênese relacionada a
um modo de se ver o mundo, ainda muito influenciado por reflexões que separam
diametralmente o homem, indivíduo conhecedor, de seu objeto, a realidade, e esta, por
meio de um paradigma que privilegia a simplicidade, ser expressa na forma de uma
continuidade causalmente explicável.
Dizemos explicitado, como é no caso do trabalho de Pedro Meyer, pois sem
algumas informações adicionais uma foto como a abaixo (Figura 3), poderia ser tomada
como uma simples e comum fotografia retirada de um álbum de família qualquer. No
entanto, por intermédio de seu procedimento descritivo, seja na forma de legendas ou
mesmo de narrativas multimídia, que muitas vezes acompanham a exposição de tais
imagens, percebemos intenções outras que parecem ter como guia interno central o
questionamento de nossos hábitos perceptivos.
138
FLUSSER, 2002. p. 9. 139
MORIN, 2003. 140
Ver:capítulo I. Desconstrução.
116
Objetivamente, trata-se de uma imagem inicialmente produzida no sentido de
registrar Ernesto, o pai de Meyer (em pé, usando gravata escura), tendo seu filho, o próprio
Meyer, pequeno à frente, num local parecido com um parque ou praça. Posteriormente, foi
acrescentada digitalmente (à esquerda de quem vê) a presença de Meyer, de óculos e barba,
tendo à sua frente, seu filho Julio, portanto, neto de Ernesto.
Figura 3 “Los Meyer” . Pedro Meyer,1940/2000- Distrito Federal, México. Negativo P&B 6x6 e original digital.
Imagem modificada digitalmente.
117
É comum ouvirmos a descrição do processo fotográfico como um corte no
espaço/tempo ou o “congelamento” de um momento e, é em dialogo questionador com
estas noções − que de fato são interessantes e têm, sem dúvida, sua validade − que se
coloca o fotógrafo quando constrói a fotografia acima.
Noções que passam por momentos de abalo a partir das novas concepções de
mundo, formuladas pelas recentes, mais já influentes, visões sugeridas pelas mais novas
abordagens da física e outros tipos de teorias da complexidade141
e que parecem não ter
relação muito direta com a fotografia, mas que inevitavelmente se encontram nas práticas
representativas destas novas visões de mundo.
Como dito, a partir do conhecimento do procedimento construtivo,
tecnicamente simples em tempos de Photoshop, o fotógrafo pretende discutir questões
paradoxais não tão óbvias, referentes a debates essenciais como o tempo e sua finitude.
Como nos relata Meyer:
Em essência, o que estamos contemplando aqui é a continuidade da
vida entre as gerações, só que nesta imagem a “linha do tempo”
não é linear, como é muitas vezes, visto que, naquele momento, eu
tinha outro filho já grande. Essa "confusão cósmica", como diria
meu amigo E. Beardsley, faz com que nossa atenção centre-se com
profunda emoção em nossas expectativas habituais. Nunca antes
fomos capazes de criar representações visuais de tais questões com
a facilidade de hoje em dia. Aqui reside, a meu ver, um dos campos
mais interessantes de exploração fotográfica.142
Segundo o fotógrafo mexicano, este procedimento aparentemente trivial, que
mistura o passado e o presente, representa muito mais do que as simples noções de
“recortar” e “colar”, associadas a “quadros de tempo lineares”, mas sim a uma entrega
mais complexa e rica em “nuances de consciência” relacionadas a uma nova maneira de
perceber o mundo em camadas sincrônicas de vários níveis que explicitam como
“transformamos nosso presente em relação a acontecimentos passados e futuros” 143
. Tais
141
Como exemplo, ver: MORIN, 2005. 142
MEYER, Pedro. Fragmento extraído do editorial do site ZoneZero (em tradução livre do espanhol) de 2 de
junho de 2000. Disponível em: http://zonezero.com/editorial/junio00/junio.html. Acesso em: 22/10/2012. 143
Idem.
118
procedimentos buscam explicitar, de modo subjetivo, como uma imagem o faz, a
importância do papel da memória na construção de nossas realidades presentes.
O próprio Meyer aparece na imagem como um futuro de seu pai, um futuro de
si, em si mesmo, e um futuro de si na forma de sua continuação perpetuada em seu filho
Julio. E se, como já dito, a imagem é a “presença de uma ausência”, a imagem fotográfica
afirma isto ainda com mais estridência, devido ao seu caráter de ser também signo
indicial144
que, como já colocado, teve relação de contiguidade como o objeto/fenômeno
que foi fotografado, pois “aquilo” que ali está na fotografia, de algum modo se postou
diante da objetiva que a captou. É uma relação que pode ser afirmada como necessária,
mas não suficiente, já que, como também vimos, este “aquilo” ao ser transportado para este
outro corpo, seu suporte midiático, transmuta-se em outra coisa que, muitas vezes, mantém
com este “aquilo” apenas uma relação de parentesco isomórfico.
Esta “presença de uma ausência” parece nos falar e atingir mais
profundamente, como bem observado por Norval Baitello, quando se trata, como é o caso,
de imagens familiares, pois “tornam evidentes as marcas do tempo, trazem de volta algo
perdido para sempre, recordam o que já esquecemos ou queremos esquecer e não
conseguimos” 145
, mas também podem evocar momentos que desejamos perpetuar ou, no
caso da imagem de Meyer146
, com seu pai e filho, inventar, já que, libertos das amarras
canônicas do fazer fotográfico − como captação do real, e do tempo da causalidade e
contingência linear −, podemos então criar novas realidades e significados para a vida.
A fotografia está longe de ser a simples captação de cena contígua ao aparato
utilizado por um fotógrafo. É preciso abordá-la muito mais como um processo do qual este
fragmento, o momento da captação da imagem por quem a produz, é apenas “um” − dentre
vários possíveis − fragmento abstraído de um complexo maior que envolve
necessariamente outros entes e instâncias que, de modo geral, espelham “não somente o
mundo externo; elas representam também estruturas essenciais do nosso pensamento”
(BELTING, 2006, p. 54). Isto implica, entre outras coisas, a importância das
transformações realizadas em seus “corpos”, as mídias que lhes servem como “transporte”
144
Ver: capítulo I. Desconstrução. 145
BAITELLO, jr., 2012, p. 103. 146
O tema parece ser recorrente na obra do autor, como, por exemplo, em seu trabalho já mencionado aqui, I
Photograph to Remember.
119
e como estas se alteram em relação à cultura em seu aspecto mais amplo do que a de uma
simples captação de um momento através de um aparato.
De modo que, nesta imagem em particular, já não se pode mais falar em corte
no tempo, mas a convivência de diversos tempos − alguns, inclusive, reciclados pois
reativados a partir de arquivos de fotos antigas − num só espaço estático, sua superfície
enquanto mídia, que, paradoxalmente é animado neste ato, como já notado por Belting147
,
de “abrirmos a sua opacidade para a transmissão de imagens”, a partir do momento em que
as chaves para isto nos são apresentadas. Ademais, só as animamos quando elas “nos
trazem de volta nossas próprias recordações”, isto é, quando as relacionamos com nosso
repertório de vivências ou “arquivo” visual, de modo que cada olhar, de cada sujeito, é a
atualização única de uma potência e “diverge da mesma maneira que divergem suas
memórias” (BELTING, 2007, p. 269).
É neste sentido, que a prática fotográfica de Meyer já foi referenciada como
“cinema-fixo”, questionando a própria ontologia fundamental da imagem fotográfica e
revertendo as noções de imagem em movimento que, segundo o próprio fotógrafo, em
funcionamento similar ao que observamos em nossos processos de memória, “destila
várias impressões visuais, por meio de uma só imagem paradigmática” 148
. Traem-se assim
as concepções mais comuns, inclusive dentro do próprio meio fotográfico, relativas ao
“tempo” usualmente caracterizado como o da fotografia, o do “congelamento” de um
instante.
Pode-se até afirmar como intrínseca às imagens esta qualidade de suscitar
movimento no sentido de escoar de tempo, pois mesmo uma imagem como esta acima,
onde seus elementos permanecem “fisicamente” estáticos, surge em nós outro tipo de
movimento, o movimento que “discorre” ou um tipo de narrativa que criamos a nos
relacionar significativamente com as imagens, porque, no fim das contas, nos
relacionamos, mesmo que num segundo momento, com as imagens explicando-as a nós
mesmos, processo inerentemente narrativo.
147
BELTING, 2006, p. 50. 148
MEYER, Pedro. Fragmento extraído do editorial do site ZoneZero (em tradução livre do espanhol) de
setembro de 2005. Disponível em http://zonezero.com/editorial/septiembre05/septiembre.html. Acesso em:
22/10/2012.
120
Relação traduzida por Vilém Flusser ao descrever o modo como “deciframos”
as imagens fotográficas, sendo estas, sínteses entre duas intencionalidades, a do emissor e a
do receptor (FLUSSER, 2002, p.8) e seu espaço interpretativo intrínseco ao processo de
conotação gerado por imagens de caráter simbólico, isto é, há um espaço de abertura
criativa no processo de recepção de imagens que nos torna, invariavelmente,
coparticipantes da produção desta.
Segundo Flusser, “ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo
relações temporais entre os elementos da imagem”. Este vaguear, denominado muito
propriamente, pelo autor, como scanning, faz com que, ao contrário da leitura de textos
escritos, seja consideravelmente subjetivo e tenda a “voltar para contemplar elementos já
vistos”. Ao contrário dos textos, que nos obrigam a uma leitura num determinado sentido
causal para que possamos decifrar suas mensagens, a imagem nos oferta e, em certo
sentido, impõem uma leitura aberta e circular ou o olhar “diacroniza a sincronicidade por
ciclos” (FLUSSER, 2002, p. 8).
Neste processo, nosso olhar tende a eleger elementos preferenciais de
significado, que dependeriam, de novo e necessariamente, de nosso repertório imagético
interior, da relação entre este circular, e de nossas experiências anteriores, num tempo,
“tempo da magia”, diferente da leitura textual, por exemplo:
No tempo linear, o nascer do Sol é a causa do canto do galo; no
circular, o canto do galo dá significado ao nascer do sol e este dá
significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da
magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O
significado das imagens é o contexto mágico das relações
reversíveis. O caráter mágico das imagens é essencial para a
compreensão das suas mensagens. Imagens são códigos que
traduzem eventos em situações, processos em cenas. Não que as
imagens eternalizem eventos, elas substituem eventos por cenas
(FLUSSER, 2002 p. 8).
Cabe então ao receptor da imagem decodificá-la para captar seus significados
possíveis, já que eles variam e podem até ser considerados infinitos, dado o número de
variáveis e possíveis atualizações envolvidas no processo, e que, a cada fruição relacionada
à imagem, independente até das possíveis intenções iniciais do produtor, equivale a uma
“interpretação e uma execução” (ECO, 1991, p. 40), pois a cada uma, a obra revive dentro
121
de uma perspectiva original, isto é, atualiza sua potencia em significações infinitamente
possíveis.
Em relação, novamente, à imagem de Meyer, temos paradoxalmente a
convivência entre estes dois tempos, o da “magia” que nos absorve no fluxo contemplativo
circular da imagem, mas ao mesmo tempo a fragmentação e quebra do continuum induzida
pela intervenção em nossas expectativas. Sempre levando em consideração que é parte
intrínseca do processo da maioria de seus trabalhos a exposição de parte da codificação por
ele realizada através, como já dito, da explicitação do processo (seja pela obviedade de sua
construção, o uso de legendas explicativas ou mesmo a descrição aberta do procedimento
envolvido), o efeito desarticulador de expectativas pode ser observado quando dois eventos
“capturados” por autores diferentes − a foto antiga, por sua mãe e a mais recente, pela mãe
de seu filho − passam a conviver neste outro tempo que é o agora da recepção da fotografia
em si.
Se, segundo Flusser, as “imagens técnicas”, neste caso uma fotografia, já são
naturalmente percebidas de modo a nos utilizarmos para isto de um regime de tempo
circular, nesta imagem o looping é ampliado a ponto de sua ruptura “magicizante” (a não
explicitação de sua condição de algo codificado), ao propor múltiplas e distintas
temporalidades na possibilidade de vórtices diferentes, mas simultâneos no scanning da
imagem. Quer dizer, o efeito de circularidade inerente à leitura de imagens acaba sendo
explicitado e complexificado ao se sobrepor várias temporalidades possíveis para esta
leitura, por intermédio da incorporação de passado, presente e futuro, na leitura de uma
mesma imagem.
Sempre de forma experimental, mas também implicativa, pode-se pensar o
efeito de estranhamento causado por certo atrito entre a grande pregnância de suas
imagens, advinda de sua longa prática e pesquisa e estas rupturas formais, simbólicas e na
maioria das vezes direcionadas criticamente a cânones sejam de caráter político-social ou
mesmo estéticos.
Propor movimento e distintas temporalidades são práticas conscientes e
significativas do trabalho de Pedro Meyer, realizadas com o intuito de questionar a própria
ontologia comum referente ao que seria uma imagem fotográfica, portanto colocar em
risco a própria definição de fotografia ou o que se costuma chamar assim.
122
Por outro lado, podem-se também abordar estes procedimentos como
ferramentas necessárias à exteriorização das necessidades mais íntimas deste fotógrafo,
reflexo mais direto de seus questionamentos internos, do que de uma busca puramente
estético-formal. Declaradamente, a ideia de que suas imagens se prestam antes de tudo a
contar histórias, relatar suas impressões sobre determinado assunto da realidade que o
cerca. Desse modo, sua prática se justifica como um “cinema-fixo” ou uma via diferente
das práticas mais clássicas da fotografia, que possuem ainda grau de parentesco muito
próximo a um “momento decisivo” e único da realidade, captado graças à sorte, astúcia ou
domínio técnico do fotógrafo.
Não se trata de questionar a validade destas práticas, mas antes de situar o
trabalho de Meyer próximo à vertentes mais contemporâneas, que respondem a
questionamentos de outras ordens, entre eles, como já referido, os próprios cânones
fundantes destas concepções clássicas, não só da fotografia, mas também de todo nosso
hábito visual ocidental, sugerindo imagens questionadoras e questionáveis que incitem
uma forma de tradução de uma determinado fenômeno e, que busca, da melhor maneira
possível, apresentar um relato, uma visão de mundo, que poderíamos certamente relacionar
ao que vimos aqui sobre o procedimento denominado estranhamento. Ou, nas palavras de
Pedro Meyer:
quando não entendo completamente e de imediato o que estou
olhando me sinto mais intrigado com a imagem. Posso especular,
tenho a oportunidade de ser criativo em relação às possíveis
interpretações sobre o que a imagem diz. É sempre bom provocar a
pergunta “O que é que estou vendo?” na mente do receptor. As
imagens que são facilmente decifráveis no momento em que as
vejo são, normalmente, imagens muito pouco interessantes. São
equivalentes a uma piada simples. Perde-se o interesse antes que se
estabeleça um diálogo entre o receptor e o criador.149
Talvez devêssemos, ao falar de suas imagens, referirmo-nos ao sentido de uma
hipertradução, pois a configuração única − posto que fruto de sua subjetividade − que
constrói com sua narrativa da realidade, empenha-nos a reconstruí-la na forma de nossa
149
MEYER, Pedro. Fragmento extraído do editorial do site ZoneZero (em tradução livre do espanhol) de
dezembro de 2005. Disponível em: http://zonezero.com/editorial/diciembre05/diciembre.html.
123
narrativa, isto é, de algum modo a retraduzimos para nós mesmo em nossas próprias
palavras. Provocar a pergunta acima, no receptor, é um dos resíduos positivos do processo
de se pensar a produção de imagens que nos atinjam, e nos façam de algum modo dialogar
com elas e nos levar a regiões de questionamento e revezamento entre os estados, referidos
aqui anteriormente a Aby Warburg, de identificação (imaginação) / distanciamento
(contemplação conceitual), no tocante às imagens e ao mundo.
O efeito de estranhamento, encontrado em diversos procedimentos relativos
aos trabalhos de Meyer, chama-nos a atenção para o caráter de corpo de uma imagem, de
agente de transmissão de uma mensagem.
O fotógrafo mexicano, aproveitando-se conscientemente dos recursos
oferecidos pelas novas tecnologias de edição de imagem, e sabendo da outorga de “cópia
do real” que muitos ainda lhe atribuem, trabalha justamente nesta zona intermediária entre
uma foto de caráter documental (já que invariavelmente aponta sua câmera para pessoas ou
situações sociais onde, entre outras coisas, relações de poder e dominação se mostram
mesmo que sutilmente) e imagens que penetram nosso imaginário e se relacionam
diretamente com nossas imagens internas, sonhos e memórias afetivas. E é sobre estes
determinados efeitos fruto de recursos de pós produção que afirma Kossoy:
o “tratamento” de imagens por computador, provoca nos receptores
um determinado impacto ou impressão que ultrapassa o conteúdo,
dramatiza a mensagem, cria uma atmosfera, serena ou tensa
(conforme a intenção do operador), reforçando ou criando
estereótipos, alimentando mitos no imaginário, contribuindo, assim
para a construção de uma outra realidade (KOSSOY, 2007, p.50).
O trabalho de Meyer nos coloca na situação perceptiva dúbia entre o caráter de
imagem que parece ser não-mediada, típico das imagens fotográficas “documentais”, ao
mesmo tempo em que nos desloca deste registro, situando-nos em posição desfamiliar ao
acrescentar à nossa experiência mais naturalizada com as imagens os ruídos causados por
suas interferências. Suas imagens nos induzem a trabalhar a recepção em regiões onde
muitas vezes a fotografia, já em seu caráter de imagem simbólica, ultrapassa a mera
relação de representação com seu referente, criando novas sínteses que vão para além do
representado diante da câmera e por esta captado. Algumas vezes até se deslocando a
124
ponto de lhe acrescentar conteúdos inexistentes neste “real” captado, enriquecendo-o por
meio dos processos subjetivos referentes a nossa usina interna de transformação de
imagens, nosso imaginário.
Não quer dizer que a imagem seja captada de modo neutro e depois sintetizada
em algum “local” interior. Já falamos aqui em repertório imagético, construído a partir do
material de nossas vivências e isto é processo que se constrói em mão dupla e, mesmo sem
adentrar a nebulosa área − ainda com muito a se explorar − da percepção humana,
acreditamos poder afirmar que este, o processo de recepção de imagens, também não se dá
ex-nihilo, isto é, nosso campo perceptivo não mostra ser uma tabula rasa que recebe uma
percepção pura e intocada, mas antes uma base, tal como um palimpsesto ou, como no
exemplo de Freud, um Wünderblock150
, espécie de brinquedo que o autor utiliza para fazer
referência à percepção e à memória, onde os traços impressos nunca são totalmente
apagados, mas mantém resquícios sobrepostos uns aos outros. Repertório que já se mostra
ativo quando elegemos numa imagem, por exemplo, algo, ao invés de outro, que nos
chame a atenção e passe a ser elemento preferencial desta interação homem /imagem.
De modo bastante resumido, o que está aqui se apontando é que o processo de
recepção de imagens é, em si mesmo, e em diversas instâncias, processo tradutório e
construtor de realidades. Verificado mais de perto, o conjunto de nossas visões de mundo
se mostraria extremamente complexo, no sentido de riqueza, por conta destes mesmos
fatores. O universo simbólico do humano representa sim códigos comuns aos seus
participantes, porém resultado de somatória de vivências comuns e não de abstração
simplificatória.
De vota ao trabalho de Pedro Meyer, podemos observar que suas imagens
suscitam o engajamento de um receptor ativo, que muitas vezes se vê colocado em relação
de desconfiança ou mesmo de caráter enigmático diante destas, sem que, contudo, seja-lhes
tirado completamente o fundamento mínimo necessário para um reconhecimento de caráter
150
“Consiste de uma prancha de cera escura sobre a qual são colocadas duas folhas: a primeira, de papel
bastante fino e transparente, que adere completamente a uma base de cera; e outra folha de cobertura feita de
celofane ou celuloide. Basta calcar com uma ponta a folha de cobertura para que os traços se tornem visíveis
como linhas pretas na superfície do celuloide. Para se apagar o que foi escrito, retira-se de uma só vez as duas
folhas e o que foi escrito sobre a cera desaparece imediatamente. Com a repetição do procedimento,
entretanto, a cera registra em sua superfície as marcas dos riscos e dos apagamentos anteriores” (DIDI-
HUBERMAN, 2013(a), p.91).
125
mimético, o que em muitos sentidos se conecta aos pressupostos teóricos que se
relacionam ao procedimento de estranhamento, descrito desta forma por Ferrara:
A teoria de Chklovski que se apóia na ação de estranhar o objeto
representado procura transpor o universo para uma esfera de novas
percepções que se opõem ao peso da rotina, do hábito, do já visto.
Extraindo o objeto do seu contexto habitual e revelando-lhe uma
faceta insólita, o artista destrói os clichês a as associações
estereotipadas, impondo uma complexa percepção sensória do
universo. A deformação enquanto ato criativo torna mais sagaz a
percepção e mais denso o universo que nos circunda (FERRARA,
2009, p.34).
Assim, “não podemos instituir momentos de alta informação senão apoiando-
nos em faixas de redundância, todo avanço do novo se apóia no velho, o inverossímil se
estrutura em articulações do verossímil” (FERRARA, 2009, p. 69).
A fotografia de Meyer nos solicita − obviamente se a isto estivermos dispostos
− um trabalho de decodificação complexa que poderia ser chamada de atualização e que a
cada contato novo passa a ser uma reatualização ou ressignificação dos potenciais
conteúdos presentes nestas. De modo que, é preciso entender o estranhamento como uma
proposição de abordagem crítica da imagem em seus aspectos de produção, recepção e não
como uma chave ou procedimento formalmente rígido, uma fórmula ou mesmo um
“truque” para fazer com que as pessoas notem as imagens, mas o trampolim para uma
reflexão sobre as imagens e os procedimentos nela implicados.
Ainda que de modo um tanto simplificado e esquemático, mas a título de
esforço compreensivo, podemos falar em termos de diferenças entre experiências em
relação às imagens como: experiências triviais, e experiências estéticas. Nossas
experiências triviais, num extremo, seriam as rotineiras, cotidianas, como quando
passamos diante de outdoor na rua e mal o percebemos, experiências que nos afetam
intencionalmente na tentativa de se implantarem e iniciar o processo, em parte,
inconsciente, de mistura com nossas mensagens internas, com intuito de gerar certos
resultados, como o consumo, por exemplo, e num outro extremo ideal, as imagens
estéticas, que também intencionalmente nos causariam uma impressão primeira, mas que
126
nos incitariam em seguida a um processamento, não necessariamente lógico, de seu
conteúdo, mas sempre um segundo momento participativo, interessado.
A fruição neste caso é prolongada para além do contato com o objeto e suas
formas, cores, enfim, aquilo que nele nos atraiu e que se vai assim que o abandonamos. O
efeito de estranhamento causaria o distanciamento necessário para esta cisão entre minha
consciência e o objeto dado. A espécie de abandono do objeto para o tratamento deste por
meio de reflexões enriquecidas por meu repertório. De certo modo, no caso da consciência
estética, esta precisa também negar a percepção obtida, e mesmo o objeto dado, após sua
fruição, para poder reproduzi-lo em síntese com minhas imagens internas. Mas aqui, trata-
se de uma negação enriquecedora, pois gerativa de outros significados, ao contrário do
simples abandono das imagens e objetos que apenas passaram por mim no fluxo de
imagens corriqueiras. É neste sentido que nos lembrava o filósofo francês Jean-Paul Sartre
(1905-1980) em suas reflexões sobre o imaginário:
Para determinar os traços próprios da imagem enquanto imagem, é
preciso recorrer a um novo ato de consciência: é preciso refletir.
Assim, a imagem enquanto imagem só é descritível por um ato de
segundo grau, com que o olhar se desvia do objeto para dirigir-se
sobre a maneira como este objeto é dado. É o ato reflexivo que
permite o julgamento “eu tenho uma imagem” (SARTRE, 1996, p.
15).
Vale lembrar que este distanciamento nunca o é total, isto é, sujeito e objeto
cada um para um lado, ou um sujeito totalmente isolado contemplando objeto em separado.
Como já reiterado, trata-se de processo não causal, portanto circular e de interferência
mútua e descontinuada entre olhar, imagens internas, externas, memória (repertório) e, se o
parece de outro modo, é mais em função da própria limitação de nossa linguagem ao
abordar o processo. Meu contato com o mundo e, neste caso, com uma imagem, é, em si
mesmo, transformador de seu resultado, visto que a imagem só surge para minha
consciência neste ato. Quer dizer, ela “é” este contato, totalmente contaminado por meu ser
num determinado momento, pois em outro, já seria outra imagem, reatualizada em cada
ocorrência deste processo.
127
Como, no mais das vezes, a qualidade de nossos processos perceptivos parece
estar diretamente ligada ao tempo de sua permanência, torna-se fundamental o aspecto
“duração” no que diz respeito à recepção de imagens, aspecto já apontado em partes aqui,
por meio das reflexões geradas a partir dos escritos de Chklóvski151
e influências
decorrentes, pois se torna praticamente impossível pensar um receptor ativo sem que
pensemos junto um tempo de fruição adequado.
Tarefa desafiadora destinada aos produtores de imagens contemporâneos, se
levarmos em conta a velocidade e quantidade em que as imagens são vinculadas através
dos diversos meios, principalmente os digitais, de interfaces, ao menos neste momento, de
tendências cada vez mais icônicas e conteúdos cada vez mais imagéticos.
Com certeza não será a presença do esquisito, da aberração ou do estranho por
si só, resposta à equação. Por vezes, até ao contrário, podem se transformar em motivo de
abandono do contato em relação a uma determinada imagem ou mesmo à anestesia, devido
à superexposição, além do, muito comum − em decorrência da velocidade das
transformações tecnológicas −, perigo de se confundir “novidade do código com novidade
de ruídos” pois “códigos novos, podem mascarar regras gastas e parecerem boas novidades
reais” (FLUSSER, 1981, p.2). Assim, não se deve tomar o novo como bom, simplesmente
por sua novidade.
Além do mais, a codificação realizada pela imagem fotográfica jamais abarca a
totalidade de um fenômeno que se apresentou à nossa experiência, ou foi colocado diante
de uma objetiva. Deste são abstraídas características inerentes àquilo que chamamos de
experiência de real, tais como aromas, sons e deslocamentos. Estes por sua vez são
“reimplatados” no ato de reconstrução de uma imagem interna, que se dá pela soma desta
percepção “incompleta” do fenômeno com nossas percepções anteriores que se possam
relacionar de algum modo com o que a imagem nos apresenta. E tudo isto acontece em
território cultural em constante e cada vez mais rápida mutação onde seus agentes,
produtores ou receptores, encontram-se inseridos, interferem e sofrem interferências das
151
Ver: capítulo II, Estranhamento.
128
mais diversas, de modo que os significados extraídos por meio de múltiplas decodificações
possíveis devem ser sempre referidos às influências absorvidas nestes meios.
Disto podemos avançar para a ideia de que quanto mais rico o repertório do
receptor da imagem − formado, entre outras coisas, por outras imagens que lhe causaram
alguma impressão duradoura − e maior o tempo de duração de seu contato significativo
com uma imagem, maior será a riqueza de sua experiência estética e a possibilidade de
transformação de si que esta pode promover, como reflete sinteticamente Flusser:
o artista procura introduzir ruídos no código por ele utilizado, a fim
de que este possa transmitir ao receptor modelos novos de
vivência, modelos que o abalem e o obriguem a mudar de vida. Na
grande maioria dos casos fracassa em ambos os esforços (...) O
modelo pode ser inoperante ou muito pobre. É preciso decifrar toda
a massa desprezível, no intuito de ali encontrar a informação nova.
Tarefa gigantesca (FLUSSER, 1981, p.3).
Mas é certo que qualquer aproximação resolutiva em direção à questão passe
pela reflexão em torno da maneira como produzimos e recebemos as imagens, o que elas
nos dizem sobre nós mesmos e sobre como as retransmitimos ao mundo, já que, com as
novas mídias e a importante função das redes sociais associados a estas, o papel de
“transmissor” ou replicador torna-se também central e de necessária reflexão. Imagens
significativas, como visto anteriormente, são as que nos mostram modelos novos de
vivência, fazendo-nos questionar, inclusive, nosso próprio repertório, mudando o
significado de antigas imagens interiores, conforme nossa predisposição para o mesmo,
pois, como afirma Flusser,
se recebermos modelo novo de vivência, diferente do armazenado,
nossa experiência pode ser abalada e a profundidade do abalo
dependerá do nível da memória sobre qual modelo incide. Se for
nível superficial, o abalo será menos forte, mas, modelos profundos
também podem ser abalados, modelos que gerem transformações e
mudanças importantes (FLUSSER, 1981, p.3).
Em meio à profusão de imagens inócuas ou hipnotizantes, trabalhos como os
de Pedro Meyer, desde sua concepção prática, curadoria, escolhas formais, de suportes e
129
linguagens, etc. parecem traduzir a prática que aqui tentamos, ao menos, apontar como
“boa” prática produtora de imagens. Afinal, parece ser um dos males do homem
contemporâneo, a má ecologia em relação às imagens que nos atingem. Pois estas, quando
não processadas em termos significativos acabam por se voltar contra nós mesmos,
coibindo-nos a “vida interior, impondo padrões, medidas e atitudes, induzindo-nos a fazer
coisas sem termos tempo de tomar as decisões” (FLUSSER, 1981, p.4).
Não há aqui a pretensão de se indicar como ou o que um produtor de imagens
“correto” deveria utilizar como prática, mas produzir reflexão que nos ajude a
compreender tal problemática. Para que as imagens voltem a, como nos informa Norval
Baitello, “vincular, para criar pontes com os outros seres” e alcançar “a caixa de
ressonância interior e profunda, gerando novas imagens, retornando às entranhas,
reverberando novamente em múltiplas dimensões” (BAITELLO jr. 2005, p. 71).
Neste sentido, um dos principais desafios que se coloca ao produtor de tecno-
imagens ao manipular estes aparatos é o de, como afirma Edmond Couchot, “transformar
as certezas das ciências em incertezas da sensibilidade, em gozo estético, e este excesso de
clareza, em sombra”. Mediar acordos entre estas partes aparentemente tão distintas e
transcender os modelos, programas e limitações impostas, arrancando-os de sua
“performatividade científica e técnica” para que possa interpretá-los, traduzi-los em sua
linguagem simbólica, de modo a constituir uma criação híbrida “entre o universo simbólico
feito de linguagens e números e o universo instrumental dos utensílios, das técnicas”,
enfim, hibridização entre “o pensamento tecnocientífico, formalizável, automatizável, e o
pensamento figurativo criador, cujo imaginário nutre-se num universo simbólico de
natureza diversa que os modelos nunca poderão anexar” (COUCHOT In PARENTE, 2011,
p.46).
A consciência clara de que a realidade fotográfica sempre será uma construção,
libera-nos para a verdadeira questão importante na fotografia: não se trata tanto de “como”
a fotografia representa ou não o mundo, mas atentar para o modo como nós próprios vemos
o mundo através das imagens. Entender que a fotografia pode ser a expressão verdadeira
de uma visada particular de mundo.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em sua história, a imagem já passou por diversos momentos distintos. História
esta que caminha inseparável da história da cultura humana, visto que é o homem, afinal,
quem concede o poder que a imagem tem de ser ela mesma. Do contrário, só teríamos
diversos tipos de manchas, pigmentos e impressões diversas sobre superfícies variadas sem
significado algum.
Esse caminhar-junto pode ser visto como tão longo quanto o próprio caminhar
do homem sobre a terra, uma vez que, ao que tudo indica, a imagem sempre esteve
presente, interna e externamente, seja nos sonhos e imaginação, seja nos utensílios, paredes
das cavernas ou substituindo algo que não está mais presente, pelo menos não diante dos
olhos. Já foi considerada presença viva, mágica, representação, atestado e, em nossos dias,
possivelmente o mais presente mediador entre os humanos. Sempre as consumimos, mas
nunca as produzimos de modo tão abundante e isto, pode se afirmar, tem sua razão de ser
entrelaçada à possibilidade de se produzi-las por meio de aparatos tecnológicos.
Muito já foi dito desde a criação desta possibilidade, mas parece não haver
dúvida em relação ao que poderíamos entender como fundamental turning-point nesta
relação imagem/humanos, quer dizer, a possibilidade de reprodução e divulgação de
imagens advindas do nascimento tanto da imprensa, mas também, e fundamentalmente, da
fotografia.
Ao concordarmos com o que aqui é exposto poderíamos então afirmar que o
caminhar-junto passa, a partir deste histórico momento, ser não mais duplo, mas de um
trio: imagem/humanos/técnica − ou tecnologia, se entendermos as outras formas de
representação imagéticas anteriores como também frutos de “técnicas” específicas152
.
152
No sentido, por exemplo, em que podemos falar sobre diferentes “técnicas de pintura”, tais como óleo,
têmpera, aquarela e assim por diante.
131
Como já colocado anteriormente, o relativo barateamento somado às
facilidades cada vez maiores de utilização dos aparatos produtores de imagens técnicas,
transformaram-nos em prolíficos produtores de imagens. Se, a isto acrescentarmos os
recentes meios de publicação e divulgação, notadamente a Internet e especificamente as
redes sociais, temos então formado um cenário onde as imagens tornaram-se, praticamente,
onipresentes.
Certamente, benefícios também podem ser observados neste cenário, tais como
a viabilização prática e facilitação do trabalho de profissionais relacionados às áreas de
produção de imagens, cuja captação, tratamento e propagação de seus trabalhos mostram-
se hoje muito mais simplificados e de custo, em geral e em longo prazo, menor e a
possibilidade de interessantes trocas intersubjetivas através de um meio − a fotografia −
restrita, até relativamente pouco tempo, a um grupo muito pequeno de pessoas.
Mas, os mesmos incrementos que criaram estas novas possibilidades também
são responsáveis por um tipo de inflação imagética que, rapidamente, começa a esvaziar
seu poder positivo de transformação humana. É certo que, normalmente se observa, no que
diz respeito a aparatos e gadgets lançados a todo tempo em campanhas milionárias pelo
mundo, certa curva que descreve um momento inicial de consumo e uso um tanto
exacerbado e, muitas vezes, acrítico destes aparatos − para isto bastam alguns minutos
“navegando” pelas redes sociais −, mas estas curvas normalmente mostram outro momento
de assentamento destas tendências e um uso um pouco mais consciente e restrito dos
mesmos. Ou seja, não é o caso de se pensar de modo negativo, mas sim crítico em relação
a estes fenômenos.
De qualquer modo, as imagens estão aí, entranhadas em nosso cotidiano,
criando nossa realidade, influindo em nossas decisões, transformando o nosso imaginário
numa velocidade que muitas vezes impossibilita uma relação interessante e que de algum
modo transforme o nosso cenário em algo melhor.
Teoricamente, parece ser uma tendência “natural” a nós humanos ficarmos
cegos para aquilo que muito vemos. Sem entrar mais profundamente em tais teorias,
podemos observar que, se assim não fosse, nossa existência estaria muito comprometida, já
que a quantidade de informações fornecidas a nossa percepção parece exceder a nossa
capacidade de processamento. Depois de aprendido, por exemplo, nosso caminho de casa
ao trabalho, nós o automatizamos para podermos tratar de outras preocupações, como saldo
132
bancário ou coisas do tipo. No entanto, os estímulos e cobranças advindas do modo de
vida contemporâneo, notadamente nos grandes centros urbanos exacerbam esta, a
princípio, útil, capacidade nos levando a viver como autômatos a maior parte do tempo.
O que tentamos apontar aqui, apoiados no pensamento dos autores citados e
outros que nos estimularam de outras formas, é apenas uma possibilidade dentre muitas
que podem ser experimentadas no intuito de se transformar para melhor a relação que
temos com as imagens. Em particular com as imagens fotográficas, que são as que estão
mais próximas a nossa prática cotidiana. Entendemos que as reflexões e possibilidades
concretas apresentadas a partir destes pensadores e, em particular dos possíveis
entendimentos e insights produzidos por práticas derivadas das ideias apresentadas em
torno do conceito estranhamento, mostram-se como uma, dentre várias aberturas, a um
relacionamento mais sadio com as imagens que produzimos e que nos rodeiam.
Por isto mesmo o estranhamento, enquanto procedimento, não pode nunca ser
visto a partir de uma fórmula fechada, como uma bula que instrua, em nosso caso, “como
fazer fotos significativas”. Ao contrário, a chave parece ser justamente a constante
abertura, não necessariamente e apenas para o novo em si, mas também para novas
relações entre elementos antigos, sua reutilização e ressignificação num constante revolver
de nossos arquivos internos e externos. Logicamente, esta funcionalidade está diretamente
relacionada a um conhecimento abrangente do mundo ao redor da parte de quem produz ou
mesmo pensa sobre estas imagens, já que tal procedimento e seus efeitos desejados −
desfamiliarização, desautomatização do olhar − implicam antes em um “modo de se fazer”
do que em um “o que fazer”.
Como afirma Viktor Chklovski, trata-se de uma “violação do ritmo”, isto é, do
que foi introjetado devido à prática, naturalizado e assim tirado da frontalidade de nossa
consciência. E este “ritmo” muda, está vivo, é mimetizado e transformado em produto de
consumo, que, como sabemos, para tanto precisa justamente ser entendido como natural,
correto, dado como certo, portanto indiscutível. Assim, é preciso entender que a “forma”
aqui é uma estrutura mutante de “caráter dinâmico”, não algo que busque e reflita “este ou
aquele aspecto”, mas sim “uma relação, um processo dialético que põe em conflito um
certo número de coisas” 153
.
133
O contato com estas formulações aponta para a importância e necessidade de se
revisitar tais teorias e práticas que se mostram ainda muito vigorosas e sintonizadas com
nosso momento. Observadas as devidas atualizações necessárias, é um pensamento vivo e
que, por diversos motivos, acabou por ser absorvido pelo esquecimento.
É ainda Didi-Huberman quem aponta para importantes analogias entre as
concepções formalistas − particularmente a desconstrução da ideia clássica de sujeito − e
as novidades, à época, dos conceitos psicanalíticos. Ambos os pensamentos podem sugerir
interessantes ferramentas para o trabalho com as imagens no sentido de compreendê-las em
suas aberturas para novas significações que transcendam o nível do que está imediatamente
dado numa imagem. Um, por nos chamar a atenção para um contato reflexivo com estas,
tirarem-nos de zonas de conforto perceptivas e reascender um contato vivo, questionador
entre nós e as imagens; outro, por nos incitar a investigar também aquilo que permanece
subjacente à imagem como objeto de conhecimento, isto é, motivações, memórias, trocas
que refletem questões singulares surgidas do contato de cada um com uma foto, por
exemplo, para além das análises universalizantes mais comuns. Ambos, como propõe este
pensador, por se fundamentarem, entre outras coisas, na ideia de que “uma forma sempre
surge e se constrói sobre uma ‘desconstrução’ ou uma desfiguração crítica dos
automatismos perceptivos” (DIDI-HUBERMAN, 2013(b), p.213).
Quer dizer, buscar também nas imagens o que elas podem nos dizer para além
do que aparentemente mostram. Sem dúvida, caminhos interessantes são apontados e
mostram-se potencialmente produtivos nas abordagens de autores como Aby Warburg,
Georges Didi-Huberman, Hans Belting e os textos, ainda por desvendar, de Vilém Flusser,
entre tantos outros que, por questões intrínsecas ao tipo de trabalho como este, aqui não
puderam ser tratados em sua necessária profundidade. Todos, de algum modo, apontam
para a necessidade de uma relação mais produtiva com este mistério chamado imagem e
sua importância para o entendimento do homem enquanto ente cultural.
Ou seja, quando no papel de produtor de imagens, ou o que Flusser aponta
como “fotógrafos experimentais”, aqueles que tentam justamente lutar contra estas
programações − que é a quem este trabalho mais diretamente pretende se dirigir − é
necessário o entendimento significativo do que está sendo naturalizado, pelo excesso ou
153
DIDI-HUBERMAN, 2013(b), p.213.
134
costume, em um determinado momento da cultura, para que possa trabalhar no sentido de,
a partir daí, criar informação nova ou, como já dito por Flusser, “lutar contra a entropia à
qual todas as coisas estão sujeitas”. Em outras palavras, é preciso antes entender quais
procedimentos estão se sedimentando em determinado momento, a “norma”, para que se
possa a partir daí, quebrá-la, por assim dizer.
Tarefa nada simples, já que estas próprias anomalias tendem com o tempo a se
normatizar e serem absorvidas e transformadas, como quase tudo, em produto para
consumo.
Exemplo ilustrativo pode ser fornecido pelo Instagram154
e seu uso. Parte dos
“filtros” ali utilizados, no sentido de se aplicar efeitos nas imagens captadas via celular ou
similares, emulam justamente a aparência de imagens advindas de equipamentos
analógicos.
Uma das possíveis formas de analisar a grande procura e utilização de tal meio
e os efeitos citados é justamente a profusão de imagens produzidas por aparato digital e a
perceptível homogeneidade visual desta. A “perfeição” facilmente alcançada a partir dos
aparatos digitais e a facilidade de uso destes devido à automatização de procedimentos
antes definidos necessariamente pelo fotógrafo, que precisava efetuar uma série de
escolhas a partir de coordenadas tais como, que tipo de lente, qual abertura e velocidade se
utilizar, necessárias em grande parte dos equipamentos analógicos.
Como consequência e em resposta a esta homogeneidade, houve uma retomada
da utilização de câmeras analógicas que, em muitos casos, geravam − devido às
características próprias destes equipamentos, a precariedade, por exemplo, de suas baratas
lentes feitas de plástico, alguns bem acessíveis como as HOLGA e a LOMO155
−,
154
“Instagram é uma rede social de fotos para usuários de Android e iPhone. Basicamente se trata de um
aplicativo gratuito que pode ser baixado e, a partir dele, é possível tirar fotos com o celular, aplicar efeitos
nas imagens e compartilhar com seus amigos. Há ainda a possibilidade de postar essas imagens em outras
redes sociais, como o Facebook e o Twitter. No Instagram, os usuários podem ‘curtir’ e comentar as suas
fotos e há ainda o uso de hashtags (#) para que seja possível encontrar imagens relacionadas a um mesmo
tema, mesmo que as pessoas que tiraram essas fotos não sejam suas ‘amigas’”. Fonte: Canatech – Disponível
em: http://canaltech.com.br/o-que-e/instagram/O-que-e-Instagram/. 155
“No ano de 1982, o mundo, ainda Guerra Fria. Na URSS, o general Igor Petrowitsch Kornitzky, do
Ministério da Indústria e da Defesa Soviético, ordenou ao diretor da empresa LOMO, Michael Pantiloff,
em São Petersburgo, a produção maciça de máquinas fotográficas pequenas, robustas e fáceis de usar. O
general amante da fotografia, tinha-se deixado encantar por uma pequena máquina japonesa, muito resistente
e cujas lentes eram de qualidade excepcional. A ideia era produzir LOMOS baratas para que estas se
tornassem verdadeiros instrumentos de propaganda, com todas as famílias da URSS a documentarem
amplamente, graças a elas, o estilo de vida soviético. A Lomo Kompact Automat foi produzida em série e
135
distorções nas imagens que remetiam a uma estética onde os “erros” pareciam atribuir
novamente alguma autoria singular às imagens, isto é, de algum modo pareciam
novamente humanizar o digital, visto como de resultado quase sempre uniforme e
impessoal.
Ou seja, o que a princípio era considerado como erro − devido à precariedade
intrínseca ao equipamento − a ser superado por um equipamento melhor é, posteriormente,
incorporado como medida para “disfarçar” o que há de “digital” no digital.
O “acaso”, gerado pelo equipamento pouco controlável, é transformado em
programa (os filtros, que já existiam em outros softwares, mas que passaram a ser mais
fácil e amplamente utilizados a partir do Instagram) “popular”, homogeneizando
novamente a produção, a ponto de se tornar comum a utilização do comentário: “foto com
estilo Instagram” e este, por sua vez, ser também naturalizado. É todo um ciclo que se
fecha, transformando o que era “ruído” em “norma”.
O trabalho de Pedro Meyer pode ser considerado um exemplo ilustrativo do
procedimento que em partes procuramos aqui expor ou, ao menos, de ideias e práticas que
se sintonizam com ele. Sua abrangente produção mostra, através de suas escolhas e de
como as realiza, que o que chamamos de aspectos simbólicos − que normalmente são
entendidos como externos ao que chamamos de real −, compõem, na verdade, dimensão
importante do que verificamos mais amplamente como realidade humana, já que, ao que
tudo indica, parte daquilo que nossa percepção capta e que nos afeta é processado por nós
de modo não totalmente consciente ou, ao menos não totalmente, racional e lógico.
A produção de Meyer, entre outros tantos importantes fotógrafos, procura abrir
brechas em ambientes cujo cenário se encontra um tanto cristalizado pela ação do tempo,
transformando, na forma de um circuito retroativo, o que é em geral visto como linha reta
causal e contribuindo assim, por meio de diálogo constante com outras áreas do
conhecimento e novas tecnologias disponíveis, para a construção, inclusive, de novas
estruturas cognitivas de percepção e explicação da realidade.
vendida não só na União Soviética, mas também em países como o Vietnam, a Alemanha Oriental
e Cuba”(http://pt. wikipedia . org/wiki/Lomografia).
136
Uma de suas maiores contribuições, sem dúvida, é seu questionamento das
categorias real e ficção, também apresentadas na forma da bipolaridade fotografia
documental / fotografia artística. Suas “ficções reais” explicitam, muitas vezes numa
mesma imagem, aquilo que já é observado há um certo tempo por pesquisadores que se
utilizam das imagens fotográficas em suas pesquisas ao longo da história: muitas vezes,
uma imagem captada, a princípio com intenções “documentais”, pode emergir num outro
momento, ressignificada, como uma representação a ser apresentada em museus ou
galerias. Inversamente, o mesmo pode e costuma acontecer nos casos em que uma imagem
que se pretendia artística passa, devido a diversos motivos ou circunstâncias, a ser tratada
como documento sobre, por exemplo, os costumes de uma determinada época. Imagens
muitas vezes captadas ao acaso, sem maiores intenções além das do registro cotidiano,
podem adquirir significados imensos no decorrer de sua existência156
.
A fotografia informa, configura o mundo de um determinado modo e também
distribui esta informação utilizando a si própria como suporte. Sua recepção pressupõe
uma reconfiguração por parte daquele que a recebe, pois este conta com seus próprios
filtros pessoais e com as fortes determinações culturais postas no momento em que se dá
esta recepção. O passar do tempo altera as imagens em diversos sentidos, fisicamente
inclusive, quando estas são impressas, porém, mais afetados ainda são seus possíveis
significados. Diante disso tudo é praticamente impossível prever seus efeitos futuros.
Assim, esta divisão, acompanhando a própria complexidade do mundo
contemporâneo, parece também já não fazer mais muito sentido e continuar existindo,
como aqui já anteriormente dito, apenas como recurso didático, já que ainda estamos
acostumados a definir as coisas em pares de opostos excludentes.
Portanto, o real pode se tornar “mais real” ou sua experiência e processamento
ser mais rico, à medida que seja mais “simbolizado”, ou que, em sua interpretação, sejam
156
Susan Sontag oferece um importante exemplo de tal “metamorfose” ao comentar as imagens do fotógrafo
Roman Vishniac (1897 – 1990) que, quando tomadas em 1938, buscavam apenas representar a vida cotidiana
nos guetos da Polônia, mas que têm seus significados brutalmente alterados quando, tempos depois,
verificamos que ali se encontravam pessoas que pouco tempo depois seriam todas mortas (SONTAG, 2006,
p.85).
137
somadas às experiências resultantes das trocas simbólicas advindas dos processos
intersubjetivos.
Neste sentido, torna-se fundamental a estudos futuros a aproximação em
relação ao importante papel que a imaginação demonstra ter nesta relação entre tecno-
imagens e nós, humanos. Tal relação se mostrou como fundamental e extremamente
complexa durante a pesquisa e realização deste trabalho − bem como pelos insights
sugeridos na prática fotográfica deste mesmo período −, mas que não puderam, devido à
natureza deste, aqui serem aprofundadas.
Outra questão que se mostra de extrema importância e merece aprofundamento
é o entendimento sobre a relevância do papel da memória neste mesmo processo, já que
quando no papel de produtor das imagens é dela que estamos inevitavelmente munidos e é,
dentre outras coisas, a partir dela que partimos em direção ao mundo a ser sintetizado e
transformado em imagens; e no papel de consumidores, é também a ela, a memória, a
quem primeiro nos referimos, caso contrário, provavelmente não reconheceríamos ali nada
significativo. E também é numa área de negociação com a memória que se dá qualquer
possibilidade de estranhamento, já que é com referência a ela que, em parte, atentamos
para algo ou não.
Cabe, portanto, libertar a fotografia destes verdadeiros “atavismos
ideológicos”157
, de antigas amarras, teóricas e práticas e abordá-la como processo
complexo de produção de representações, em grande medida simbólicas, portadoras de
mensagens conotativas que apontam sempre para uma abertura de significados. O que não
quer dizer que ela não possa ser portadora de conhecimentos “verdadeiros” ou ferramentas
efetivas para atingi-los.
Para isto é necessário, porém, assumir esta complexidade e procurar a partir
disto uma relação menos ingênua com as imagens, objetos em crise permanente e de difícil
apreensão, mas de grande poder de síntese e de possibilidade de entendimento de nós
mesmos.
157
Termo empregado por Joan Fontcuberta no Fórum Latino Americano de Fotografia de São Paulo.
Disponível na integra em: http://www.forumfoto.org.br/joan-fontcuberta-2/. Acesso em: 20/12/2013.
138
Ter em mente que processos lineares de causa e efeito absolutos não dão conta
do processo de produção e recepção das imagens. Estas se abrem em seus significados,
apenas quando evitamos tratá-las como objetos simples e acabados e passamos a abordá-
las como parte de um circuito retroativo158
, do qual também fazemos parte e onde somos
afetados à medida que afetamos, ou como afirma Christoph Wulf159
, nosso mundo
imagético interno é condicionado “por uma lado, pelo imaginário coletivo de sua cultura,
por outro, pela singularidade e inconfundibilidade das imagens originárias de sua história
pessoal, e finalmente pela recíproca superposição e penetração de ambos os mundos
imagéticos” (WULF, 2000, s/p.) 160
Naturalmente, este contato, para ser efetivo, despertar-nos para suas
possibilidades, necessita de regime de tempo mais lento adequado a sua decifração,
duração que nos permita ir além da simples percepção, para o complexo processo de
significação, no qual o papel da troca entre as imagens externas e internas é, sem dúvida,
crucial. Como observa Norval Baitello, este tempo é necessário “para o confronto e o
diálogo com nossas imagens interiores” pois, é apenas deste modo que “aprendemos a ver,
a nos ver e a ver o mundo” bem como “multiplicamos o nosso espaço comunicativo” 161
.
Se partirmos da concepção de que o mundo concreto, na verdade, consiste de
um fluxo ininterrupto de transformações, a fotografia pode ser vista como captação de um
vestígio que passa a se relacionar com outros fluxos, inclusive o nosso, interno, em
relações de significação abertas ao infinito. Uma mesma imagem é apresentada a diversos
sujeitos com repertórios culturais distintos onde os significados diferem temporal e
158
Segundo Edgar Morin: “O princípio do circuito retroativo, introduzido por Norbert Wiener, permite o
conhecimento dos processos auto reguladores. Ele rompe com o princípio da causalidade linear: a causa age
sobre o efeito, e o efeito age sobre a causa, como no sistema de aquecimento, em que o termostato regula o
andamento do aquecedor” (MORIN, 2003, p.94). 159
Christoph Wulf é pesquisador do Centro de Antropologia Histórica de Berlim e professor da Faculdade de
Educação da Universidade Livre de Berlim. É autor e organizador de livros (inclusive conjuntamente com
Dietmar Kamper) sobre a rubrica de lógica e paixão, sobre temas como corpo, violência,
imagem,performance, ritual e gesto. Fonte: REVISTA GHREBH . http://www.cisc.org.br/revista/ghrebh9. 160
Texto apresentado no Seminário Internacional “Imagem e Violência”, promovido pelo CISC – Centro
Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, no SESC Vila Mariana, em São Paulo, durante os dias
29, 30, 31 de março e 1º de abril de 2000. 161
BAITELLO jr., 2005, p.35.
139
geograficamente, quer dizer, novos significados se sintetizam a cada atualização, a cada
mirada, a cada reviravolta em nossos sistemas de significação, enfim é algo vivo.
Como bem aponta Flusser162
, nosso mundo privado, pessoal é caracterizado por
ser experiência única e intransferível, ao menos em sua totalidade, seja ela ativa ou
passiva. Porém, ao menos em parte, minha experiência ou “aishteton” (o sensível), pode
ser passada adiante por meio de código intersubjetivo, portanto, espaço de âmbito público,
pois, caso existisse um código privado, em termos de trocas, de nada nos serviria.
Certamente, este processo de codificação não demonstra ser processo puro ou
neutro. Nele ocorrem alterações, já que é necessário uma tradução de minha experiência
em código e este também é traduzido ao ser apreendido pelo outro. De modo que o que
temos são aproximações de sentido, que, na maioria dos casos, mostram-se efetivos, por
assim dizer e, se não alteram nossa condição humana de “ilhas” de percepção podem, no
mínimo, construir pontes entre estas.
A fotografia, devido mesmo a sua atual facilidade, tanto a de produção quanto
a de distribuição, pode ter papel importante na difícil tarefa de atravessar este
aparentemente instransponível espaço entre o “eu” e o “outro”. Tarefa contraditória, mas
que em sua prática pode sim gerar vínculos efetivos e transformadores em todas partes
implicadas. Desde que sejam observados aspectos importantes em todo este processo.
Entre eles, procurar entender a imagem fotográfica como portadora de mensagem
conotativa, isto é, que implica interpretação e envolve nesta também aspectos subjetivos,
culturais e emocionais, muitas vezes de caráter inconsciente.
Entender que a imagem fotográfica nos fala de maneira polifônica, de
enunciados heterogêneos que se modificam constantemente à medida que todos entes
envolvidos também se modifiquem. Trata-se, na verdade, de reconhecer o que há de rico
nesta sua característica de abertura que nunca se fecha, fonte de conhecimento inesgotável,
ainda que nela se conserve uma estreita ligação com um fenômeno real e concreto, que se
deu numa determinada coordenada espaço/temporal, ela inevitavelmente conservará em si
um espaço de mistério insondável. Quer dizer, desistir do que, para Didi-Huberman, se
162
Mesa redonda Art and Communications, no Institut de L’Environment, em Paris (França). Participa com
tema Le role de l'art dans une rupture culturelle. (novembro-1972). Disponível em: http://www
.flusserestudios.cl/FLUSSERWEB/flusser%20archiv/mecanografiado/portugues/o-arte-e-ruptura-cultural.pdf.
Acesso em: 03/07/ 2013.
140
trata de um “mito positivista”: a “omnitraduzibilidade das imagens” 163
, que pode ser
entendida como a pretensão de esgotamento dos significados relacionados a uma
determinada imagem, sem daí concluir que isto implique em vazio de sentido, resultante de
uma relativização total de seu conteúdo.
Segundo o autor, este mito estaria relacionado à concepção da metafísica
clássica: adaequatio rei intelectus164
, portanto ao logos ou ao discurso guiado pela razão
como medida de conhecimento, de onde derivaria a máxima de São Tomás “ver para crer”.
Ora, só podemos descrever desta forma aquilo que vemos, a coisa que está ali. Daí acaba-
se por deixar de lado o que se encontra oculto ou valores individuais advindos de
interpretações singulares, subjetivas e passamos a nos concentrar no que está ali à vista
para todo mundo, a mirada universalizante da ciência mais “dura”, em sua modalidade
considerada “exata”.
Não cabem aqui princípios de incerteza, ou ainda como observa o mesmo
autor, trata-se de uma concepção fundada sobre a certeza de que a representação das coisas
é um “espelho exato ou um vidro transparente”, basta apenas nomear tudo que está ali.
Visão excessivamente pragmática que acaba por enfatizar muito mais os aspectos técnicos,
que dizem respeito apenas ao funcionamento do aparato em si − como se este tivesse vida
própria e fosse o objetivo final −, em detrimento da participação humana no fenômeno e os
processos de significação inexoravelmente resultantes desta relação.
Como ainda se observa em grande parte das publicações e cursos voltados à
linguagem fotográfica, bem como na abordagem de muitos profissionais da área, a
fotografia ainda é em grande parte abordada através de prisma que muito tem a ver com a
sua gênese técnica. Trata-se de aspecto fundamental na economia relacional
homem/imagem, já que, se entendermos os aparatos como instrumentos auxiliadores na
produção de novas significações, novos mapas que nos guiem em nossa realidade, torna-se
fundamental o domínio de seus aspectos técnicos. De outro modo, como “re-agir” às
programações sem delas sequer ter consciência?
163
DIDI-HUBERMAN, 2013(a), p.11. 164
Do latim: Veritas est adaequatio rei et intellectus (algo como: a verdade como adequação entre a coisa e o
intelecto ou razão). Famosa definição de verdade, atribuída por São Tomás ao médico e filósofo Isaac ben
Salomon Israeli (ca. 855-955), mas que teria, na verdade, como autor o também filósofo Ibn Sina, que ficou
conhecido no ocidente como Avicena e que influenciou o pensamento de Tomás de Aquino.
141
Acreditamos que assim como a própria fotografia, nossa relação com ela deve
ser conscientemente aceita como ambígua. Há a necessidade do momento da, por assim
dizer, perda de si mesmo, do encontro e do mergulho nas imagens, que poderíamos chamar
de “alienação positiva”, quando nos deixamos anular diante delas, deixamos que elas nos
toquem antes de a elas nos encaminhar com nossas interrogações. Do contrário, muito da
experiência artística em si, tornar-se-ia mera ferramenta funcional e pragmática voltada a
um objetivo externo qualquer ou a uma ideologia específica, por exemplo. No entanto,
também há a necessidade de um momento reflexivo, para que processemos seus
significados adequadamente e delas possamos nos nutrir.
De forma que, passa a ser meta de suma importância em tempos de
predominância tão grande das imagens, buscar entendê-las em sua profundidade e riqueza
− mesmo as que se colocam como “puramente” documentais ou fruto de relação indicial,
sintomática com o que é representado nela −, como portadoras de significados abertos,
inclusive de valores cambiantes à medida que se recolhem e ressurgem em suas
atualizações no fluxo da cultura humana.
142
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