Tópicos em Ontologia Analítica

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Tópicos em Ontologia Analítica

Decio Krause

Para Mercedes

Prefácio

Este livro surgiu de notas de aula preparadas para a disciplinaOntologia II do Curso de Filosofia da Universidade Federalde Santa Catarina, e visa ser utilizado em sala de aula comoauxiliar em cursos de graduação e de início de pós-graduação

em filosofia. No entanto, o texto pode ser também útil para interessadosem temas ontológicos da contemporaneidade, em especial dos vínculosentre ontologia e lógica e ontologia e a física presente. A ênfase dadavisa incentivar uma futura investigação, se é que se pode falar assim(discutiremos isso oportunamente), das bases ontologicas das teorias fí-sicas, em especial da física quântica, porém a simples apresentação daquestão não exige do leitor qualquer pré-requisito que não seja a físicado colégio. Os temas são encadeados de forma que os capítulos inici-ais possam ser utilizados em um curso sem qualquer comprometimentocom a necessidade de adentrar à física.

Importante salientar que o texto visa introduzir a maioria dos tópi-cos e a estabelecer um vínculo entre eles. É aconselhável que o leitortenha familiaridade com a linguagem da lógica atual, em especial o tratocom quantificadores. Deixaremos de considerar aqui, em virtude do ca-ráter introdutório destas notas e da complexidade do assunto, questõesrelacionadas ao espaço e ao tempo, essenciais em qualquer discussãosobre ontologia, mas extremamente problemáticas no contexto da ciên-cia presente. Oportunamente, falaremos mais sobre esta esta restrição eseus motivos (ver a seção 6.5).

O texto leva o título de ‘Tópicos’ em virtude de não cobrir todo omaterial envolvido com os assuntos tratados, o que seria impossível derealizar em um único livro (e talvez por uma única pessoa), e a deno-

vi Prefácio

minação ‘analítica’ segue uma tendência recente (creio que dos anos1980 para cá) de denominar de ontologia analítica e de metafísica ana-lítica os estudos em ontologia e, mais geralmente, em metafísica, de umponto de vista ‘analítico’. Temas como a ontologia formal de Husserl,as ideias de filósofos como Heiddegger e outros não serão tocadas pordois motivos básicos: porque estenderiam demais o presente volume,não obstante a importância desses autores, e pela minha falta de com-petência para me atrever a escrever sobre esses filósofos em um livro.Assim, proponho algo mais modesto e, na Introdução, tento delineareste ‘viés analítico’ um mínimo necessário para que o título deste livrofique justificado.

Após a Introdução, tratamos do chamado problema ontológico (ca-pítulo 2), no qual a questão ontológica básica é apresentada já no viés‘analítico’. A isso segue uma exposição mínima da teoria das descri-ções de Russell (capítulo 3), para então adentrarmos naquilo que podeser dito ser o presente paradigma da análise ontológica, o critério decomprometimento (ou compromisso) ontológico de Quine (capítulo 4).As partes originais do texto, exceto por formas de apresentação e deideias lançadas aqui e acolá entremeio o texto, vêm nos capítulos finais,onde se analisam as inter-relações entre lógica e ontologia (capítulo 5)e entre ontologia e física (capítulo 6). Um capítulo final discute a inde-terminação de uma ontologia por uma teoria física, revisa os principaispontos apresentados e coloca novas questões, sugerindo alguns aprofun-damentos que pensamos deveriam ser levados em conta em um estudomais detalhado.

Agradeço aos colegas Newton da Costa (pelos ensinamentos cons-tantes), Jonas Arenhart, Celso Braida, Steven French, Otávio Bueno,Christian de Ronde, Federico Holik, Graciela Domenech, mas princi-palmente a meus alunos por terem contribuído quando de diversos cur-sos realizados com essas notas. Agradecimento especial ao professorJezio Gutierre, da editora da UNESP, que acolheu este texto, e a Dani-ela Carvalho, diretora executiva da mesma editora.

O autor

Conteúdo

1 Introdução 11.0.1 Em resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

2 O Problema Ontológico 132.1 As duas faces do problema ontológico . . . . . . . . . 142.2 Algumas questões relacionadas ao tema da ontologia . 16

2.2.1 Alguns princípios da lógica clássica . . . . . . 222.3 Meinong e sua teoria de objetos . . . . . . . . . . . . 25

2.3.1 Meinong e o problema ontológico . . . . . . . 302.4 As críticas de Russell . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

3 Descrições Definidas 353.1 Frases descritivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363.2 Nomes como descrições abreviadas . . . . . . . . . . 423.3 Eliminação das descrições por definições contextuais . 433.4 Ocorrências de uma descrição . . . . . . . . . . . . . 453.5 O mundo das ficções . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

3.5.1 O que existe? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 483.6 As críticas de Strawson a Russell . . . . . . . . . . . . 513.7 Lógica elementar com o descritor . . . . . . . . . . . . 54

3.7.1 O ε de Hilbert . . . . . . . . . . . . . . . . . . 563.7.2 Uma lógica meinonguiana . . . . . . . . . . . 58

4 Ser é ser o valor de uma variável 594.1 Comprometimento ontológico . . . . . . . . . . . . . 60

Conteúdo viii

4.2 Eliminação de termos singulares . . . . . . . . . . . . 674.3 Verdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 694.4 A redução ontológica e o critério de identidade . . . . 714.5 O que é ‘ter identidade’? . . . . . . . . . . . . . . . . 77

5 Lógica e Ontologia 815.1 Lógica e lógicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 815.2 A evolução da lógica tradicional . . . . . . . . . . . . 855.3 As lógicas não-clássicas . . . . . . . . . . . . . . . . 895.4 A lógica é a priori ou empírica? . . . . . . . . . . . . 905.5 Inter-relações entre lógica e ontologia . . . . . . . . . 955.6 Existência e quantificação . . . . . . . . . . . . . . . . 985.7 Existências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1045.8 Os postulados de ZFC . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1075.9 ZFC e o ‘conjunto’ universal . . . . . . . . . . . . . . 1115.10 O ‘conjunto’ de Russell . . . . . . . . . . . . . . . . . 1135.11 O que pode ser o valor de uma variável? . . . . . . . . 114

6 Ontologia e Física 1216.1 Partículas e ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1246.2 Estranhezas quânticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132

6.2.1 Superposição . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1356.2.2 Indiscernibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . 1406.2.3 Individualidade e quanta aprisionados . . . . . 1466.2.4 Não-indivíduos . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

6.3 A linguagem e os objetivos do físico . . . . . . . . . . 1566.4 Teorias de substrato e teorias de pacotes . . . . . . . . 1636.5 Observações sobre o espaço e o tempo . . . . . . . . . 166

7 Ontologia de Não-Indivíduos 1737.1 Níveis de empenho ontológico do físico . . . . . . . . 1737.2 Entidades sem identidade . . . . . . . . . . . . . . . . 1767.3 Consequências da teoria tradicional da

identidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1827.4 Uma visão das teorias científicas e de seu progresso . . 189Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199

Capítulo 1

Introdução

Aliteratura filosofica consagrou a palavra ‘ontologia’ paradesignar a disciplina, ou parte da filosofia que, nas palavrasde Aristóteles, ocupa-se do ‘ser enquanto ser’ (ou do ‘enteenquanto ente’). “Há uma ciência, diz Aristóteles, que in-

vestiga o ser enquanto ser e os atributos que a ele pertencem em virtudede sua própria natureza” [Ar.2007, Γ 1003a20]. Esta ciência, descritacomo primeira filosofia, seria a ciência das causas e princípios últimos,devendo ser concebida como o ponto de partida para todas as outrasciências (ou disciplinas). A ‘primeira filosofia’ aristotélica é apresen-tada em um livro que posteriormente foi denominado de Metafísica,quando de uma reorganização de suas obras (acredita-se que) feita porAndrônico de Rodes (c. 60 a.C.), devido ao fato de haver sido colocado(possivelmente pensando-se que deveria ser lido) depois do livro Física,no qual Aristóteles trata da natureza e do mundo natural.1

Em um comentário em sua tradução espanhola da Metafísica, Her-nán Zucchi emenda que em certas passagens (em Aristóteles) “essa ci-ência estuda o ente enquanto ente de modo universal”, mas em outraso ente é visto “como realidade separada e imóvel” [Ar.2004, p.44], ouseja, concebendo as discussões sobre uma forma especial de ser queestá além das substâncias sensíveis, por exemplo, Deus. Assim, resulta

1A palavra ‘metafísica’ indicaria que este tratado apresentava-se depois do tratadoda Física.

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uma divisão de campos. Como sustenta Zucchi,

“a diferença tradicional desses textos, aparentemente in-conciliáveis, deu lugar ao que posteriormente um tal deMicraelius [ele se refere a Johann Micraelius, 1597–1658],no século XVII, batizaria (. . .) com os nomes de metaphy-sica generalis et metaphysica specialis. Esta denominaçãofoi aceita unanimemente. Muito depois, a metaphysica ge-neralis foi chamada de ontologia, e a specialis, ontologiaregional, metafísica, teologia, etc.” [Ar.2004, p.44].

Deste modo, parece que podemos dizer que a metafísica geral, ouontologia, se ocupa da natureza e constituição da realidade, bem comode sua estrutura e com os conceitos mais gerais do ser, ao passo quea metafísica especial, ou teologia, se ocupa da existência de entidadescomo Deus. (O interessante é que veremos nos capítulos finais quepresentemente há uma grande discussão sobre o sentido da palavra ‘re-alidade’ em virtude das conquistas da física quântica).

Ao que tudo indica, o primeiro uso da palavra ‘ontologia’ ocorreuno Ogdoas Scholastica, de Jacob Lorhard (1561-1609), de 1606 (vera figura 1.1). A denominação ‘ontologia’ foi associada, portanto, aoestudo daquilo que há, na acepção da metaphysica generalis. Assim,no sentido tradicional, podemos dizer que a ontologia é aquela parte dafilosofia que se ocupa do estudo do ser ou, em outras palavras, daquiloque há. Deste modo, não haveria sentido tentarmos dizer (ver maisabaixo), que pode haver mais de uma ontologia. Isso não teria sentido,pois o que há é o que há e se nos ocupamos de seu estudo, devemosdesvendar as espécies de seres. No entanto, modernamente admite-seque por ontologia podemos entender também o estudo daquilo que hádo ponto de vista de uma teoria ou concepção, ou seja, daquilo com oque nos comprometemos quando adotamos uma determinada visão outeoria (ficaremos doravante sempre considerando uma teoria científica).Nesse sentido, haveria como falar por exemplo da ‘ontologia de umamecânica quântica’, ou da ‘ontologia de uma teoria quântica de cam-pos’, ainda que em um ou outro caso seja difícil caracterizá-las. Emlinhas gerais, isso significaria mais ou menos o seguinte: uma vez que

Introdução 3

adotemos uma dessas teorias, as quais nos contam como podemos en-tender uma parcela da realidade, com que tipo de entidades estaremoscomprometidos? O que há, do ponto de vista da teoria adotada? Comoseriam as entidades sob o foco dessas teorias?

Nesse sentido, encontramos por exemplo Meinard Kuhlmann di-zendo, em um livro do qual é um dos editores, denominado OntologicalAspects of Quantum Field Theory [Kum.et al.2002], que2

“[A] ontologia concerne às características mais gerais, àsentidades e às estruturas do ser. Podemos investigar a on-tologia em um sentido muito geral ou com respeito a umaparticular teoria ou de uma parte ou aspecto particular domundo” [Kum.2006]

Esta nova acepção de uma ontologia vinculada a uma teoria (ou on-tologia naturalizada) é fruto dos avanços da ciência atual, ao que pareceem muito dependente de uma forma de kantismo, que nos ensina quenão podemos conhecer o mundo como ele é,3 mas apenas de uma par-cela do mundo tal como ele nos parece do ponto de vista de uma teoria.Assim, para a mecânica clássica, há partículas e ondas, e o mesmo sedá para algumas interpretações do formalismo da mecânica quânticanão relativista, mas para a mecânica quântica relativista (teorias quânti-cas de campos), as entidades fundamentais são campos, e as partículasaparecem como situações especiais (excitações) dos campos. Ou seja,mudando de teoria, mudamos de ontologia. Da mesma forma, BrigitteFalkenburg em seu livro Particle Metaphysics, salienta que

“a ontologia de uma teoria física é o domímio sugeridopor ela e [envolve] os tipos de entidades às quais ela serefere."[Fa.2007, p.165]

2No capítulo 6 encontraremos outras referências a este ponto. Citamos aqui onome do livro para que o leitor perceba como questões ontológicas têm tido repercus-são na filosofia da física.

3Recordamos que Kant sustentava que não podemos conhecer a coisa-em-si, comoelas são por si mesmas, à parte da experiência possível.

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Deste modo, uma ontologia torna-se algo dependente da teoria e,indo um pouco mais fundo, como veremos no capítulo 5, da lógicasubjacente à teoria considerada. Como enfatizaremos posteriormente,mudar de lógica também implica, quase sempre, em se mudar de onto-logia. Claro está que essa perspectiva, que necessita qualificação, abalaprofundamente os alicerces por assim dizer ‘tradicionais’, que conce-bem a ontologia como o estudo do que há, e de entes cujo status deveriaindepender de qual teoria estejamos considerando. Aliás, para enfati-zar, recordamos um resultado importante em física, chamado de efeitoUnruh que, sucintamente, diz que um observador acelerado detectaráradiação (logo, ‘partículas’) onde um observador em repouso não de-tecta nada.4 Ou seja, em certo sentido, a discussão sobre aquilo que hápode depender do estado do observador. É patente que as discussõessobre ontologia não podem mais desconhecer a lógica e a ciência pre-sentes. De um certo modo, hoje tendemos a rejeitar qualquer forma dearmchair ontology.5

A perspectiva de adotarmos o sentido corrente do termo ontologia,permitindo que possa envolver a ‘ontologia de uma teoria’, nos remetea considerar aspectos fundamentais das teorias científicas que impor-tariam ao seu ‘comprometimento ontológico’, como sua linguagem esua lógica. Sendo assim, um caminho sensato consiste em recorrer àchamada filosofia analítica para tal estudo, e denominar de ontologiaanalítica aquela parte da filosofia analítica que se ocupa dos estudosontológicos de um ponto de vista analítico, uma tendência que se acen-tuou muito no século XX. No entanto, igualmente não faremos aquiqualquer histórico detalhado desta tradição.6

4De acordo com a relatividade geral, observadores acelerados um em relação aooutro podem não partilhar dos mesmos sistemas de coordenadas espaço-temporais.Assim, eles detectariam estados quânticos distintos, e diferentes estados do vácuo:para um deles, pode haver radiação, para o outro, não. Importante salientar que anoção de vácuo é distinta da intuitiva, segundo a qual ‘vácuo é a ausência de matéria’,significando simplesmente o estado de menor energia possível —não há região doespaço livre de alguma radiação.

5Ou seja, uma ‘ontologia de poltrona’, concebida sem qualquer interação com omundo exterior e independente de qualquer ciência.

6Pode-se encontrar facilmente na web referências à ontologia analítica.

Introdução 5

Figura 1.1: Supostamente, o primeiro uso da palavra latina ‘ontologia’, em 1606(do site http://ontology.buffalo.edu/).

Costuma-se dizer que a filosofia analítica é uma filosofia ‘anglo-americana’, tendo surgido principalmente com B. Russell e G. Moore(e depois Wittgenstein, Ryle e Austin, entre outros) como uma oposi-ção ao idealismo de filósofos como Bosanquet e Bradley, e devido aoseu desenvolvimento posterior nos Estados Unidos, quando da migraçãode vários filósofos analíticos, como notadamente Rudolf Carnap, bemcomo da existência de filósofos analíticos nos Estados Unidos, comoQuine. Segundo o filósofo inglês Michael Dummett (1925–2011), isso éum erro, pois Russell, principalmente, teria tido perfeito conhecimentodos trabalhos de filósofos de fala alemã que já seguiam muito de pertoas tendências ‘analíticas’. Para Dummett, a despeito do que fizeramfilósofos escandinavos, italianos e espanhóis, a filosofia analítica de-veria ser considerada ‘anglo-austríaca’ [Du.1974, pp.1-2] (lembramosque Wittgenstein era austríaco). Segundo ele, o que caracteriza esta li-nha filosófica é, primeiramente, a crença que uma abordagem filosófica

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ao pensamento pode ser conseguida por meio da análise filosófica dalinguagem e, segundo, que pode ser feita somente deste modo (ibid.,p.4).

Para se ter uma ideia das diferenças entre essas correntes, podemosseguir Nicholas Rescher, que diz que o

“[i]dealismo certamente não necessita ir tão longe quantoafirmar que a mente cria ou constitui a matéria; é suficientemanter (e.g.) que todas as propriedades que caracterizamos existentes físicos reportam-se a propriedades sensóriasfenomenológicas em representar disposições para afetar amente das criaturas hábeis de um certo modo, de sorte queessas propriedades não podem permanecer sem o auxíliodas mentes.” [Re.1999]

Mais à frente, traça uma distinção entre o realismo ingênuo e o ide-alismo, nos pedindo para considerar a frase ‘As coisas externas existemexatamente como nós as conhecemos.’ Segundo ele, pareceremos realis-tas (ingênuos) ou idealistas conforme dermos ênfase às quatro primeiraspalavras ou às quatro últimas, respectivamente.

O grande impulso alcançado pela filosofia analítica deve muito aoTractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein, publicado em 1921[Wi.2001] que, grosso modo, enfatiza a ideia de que a estrutura da lin-guagem revela a estrutura do mundo.7 Por exemplo, diz Wittgenstein:

“4.003 A maioria das proposições e questões sobre temasfilosóficos não são falsas, mas contra-sensos. Por isso, nãopodemos de modo algum responder a questões dessa espé-cie, mas apenas estabelecer seu caráter de contra-senso. Amaioria das questões e proposições dos filósofos surgem denossa falha em entender a lógica de nossa linguagem. (. . .)

7O leitor sem muita experiência deve ser avisado de que deve tomar cuidado comfrases como esta—principalmente de autores como Wittgenstein, que soam interes-santes, mas que podem, se desconsideradas que devem ser lidas dentro de um certocontexto, dar origem a mal entendidos e a interpretações errôneas.

Introdução 7

E não é surpreendente que os problemas mais profundosnão sejam propriamente problemas.

4.0031 Toda filosofia é ‘crítica da linguagem.’ (. . .)”

Essa filosofia influenciou o chamado Círculo de Viena, uma con-gregação de filósofos, lógicos e demais cientistas (que floresceu nosanos 1920) que se reuniam em torno de figuras como Moritz Schlick,tendo como expoentes Rudolf Carnap, Hebert Feigl, Hans Hahn, OttoNeurath e outros, como Alfred Ayer, um dos maiores divulgadores dasideias do Círculo na Grã-Bretanha [Ay.1978, Ay.1990]. Para esses fi-lósofos (os positivistas lógicos), a filosofia deveria centrar esforços noataque aos problemas das sentenças científicas, relegando as ‘verdadesmetafísicas’ a pseudo-problemas. Carnap, que celebrizou uma críticaà imprecisão da ‘linguagem metafísica’ exemplificando com a célebrefrase de Heidegger ‘Das Nichts selbst nichlet’ (algo como ‘o nada nadi-fica’),8 destacou, dentre outras, as seguintes expressões: ‘o Absoluto’,‘o Infinito’, ‘o Ser-que-está-sendo’, ‘o Espírito objetivo’ como casos desem-sentidos (ver [Car.1959, p.73] na tradução espanhola). O leitor in-teressado em aprofundar essa questão particular pode consultar tambémo primeiro capítulo de [Ay.1990].

Em [Car.1950], Carnap distingue entre questões internas e questõesexternas relativas a uma teoria (na verdade, ele fala de ‘frameworks lin-guísticos’). Tomemos por exemplo a Aritmética; exemplo de questõesinternas (resolvíveis dentro da teoria) são: ‘Mostrar que 1 + 1 = 2’,‘Existe um número primo maior do que 2 e menor do que 6’? Comoexemplos de questões externas (‘metafísicas’), podemos sugerir coisascomo ‘Existem números?’, ou ‘Há alguma forma de platonismo envol-vida com os pressupostos da aritmética usual?’. As questões externasseriam destituídas de sentido, enquanto que as internas poderiam serrespondidas no âmbito da teoria.

O próprio Russell traça algumas linhas sobre as origens do que de-nomina de ‘filosofia da análise lógica’, no Capítulo XXXI de sua His-tória da Filosofia Ocidental [Ru.1997]. Segundo ele, deve-se principal-

8O artigo de Carnap [Car.1959] pode ser visto emhttp://www.ditext.com/carnap/carnap.html, e tem tradução em [Ay.1978].

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mente aos matemáticos do século XIX o desejo de “limpar sua matériade sofismas e raciocínios desmazelados” (ibid., p.383) que eram co-muns até então, como o uso de infinitesimais nos fundamentos do cál-culo diferencial e integral, e a não aceitação de outro tipo de infinito queo ‘potencial’, e de conceitos usados de forma extremamente vaga comoos de continuidade, função e número.9 Uma das consequências desse‘retorno aos fundamentos’, que exigia uma esmerada análise lógica dosconceitos e o desenvolvimento de linguagens adequadas (como a teoriados tipos, criação do próprio Russell, a axiomatização da teoria de con-juntos por Zermelo, etc.), resultou, dentre outras coisas, na criação (ouo desenvolvimento) da lógica matemática e da teoria de conjuntos.

No século XX, como diz Russell,

“foi-se tornando claro que uma grande parte da filosofiapode ser reduzida ao que podemos chamar de ‘sintaxe’, em-bora a palavra tenha que ser empregada num sentido maisamplo do que tem sido até agora habitual. Alguns homens,notadamente Carnap, expuseram a teoria de que todos osproblemas filosóficos são, na realidade, sintáticos, e que,quando são evitados erros de sintaxe, um problema filosó-fico ou é resolvido ou mostra a sua insolubilidade. Penso,e Carnap agora concorda [o texto original é de 1945], queisso é um exagero, mas não há dúvida de que a utilidade dasintaxe filosófica, em relação aos problemas tradicionais, émuito grande.” [Ru.1997, p.385]

Um dos exemplos mais notáveis dessa alegada utilidade vem coma teoria das descrições do próprio Russell (que estudaremos no capí-tulo 3) que, segundo ele, “esclarece os milênios de confusão acerca da‘existência’, começando pelo Teeteto de Platão.” (ibib., p.386).10

9Os detalhes não são nosso assunto aqui; o leitor interessado pode consultar um li-vro de história da matemática, como [By.1974]; sobre este assunto, também [Kr.2002].

10Desde que não faremos uma digressão aos textos de Platão, a fim de deixar claraa referência ao diálogo mencionado, reproduzo aqui uma passagem, também mencio-nada em parte por Simpson [Si.1976, p.84]:“Sócrates: E se alguém formula um juízo, pensa sobre algo, não é assim?

Introdução 9

Retornando um pouco mais ao texto mencionado de Russell, eleaponta (já em 1945) algumas direções em física que a ‘análise analítica’não poderia deixar de percorrer, com especial destaque para a mecânicaquântica ([Ru.1997]). Claro que Russell não poderia antecipar muitodo que se fez em filosofia dessa disciplina nos últimos 50 ou 60 anos;nosso capítulo 6 tenciona introduzir algumas dessas questões sob umprisma ‘analítico’ ainda que, como dissemos acima, deixando de ladoos problemas fundamentais relacionados ao espaço e ao tempo.

Com relação ao ‘programa de eliminação da metafísica’, propug-nada principalmente pelos positivismas lógicos (Círculo de Viena e suasramificações), cabe notar que houve uma retomada de questões metafí-sicas partir dos anos 1950 no seio dessa mesma corrente, por exemplocom Quine e Strawson, e depois com Kripke, David Lewis e muitos ou-tros [Sy.2009]. Os temas metafísicos, e ontológicos em particular (namedida em que se pode falar de uma distinção entre essas duas discipli-nas), como teremos chance de ver em alguns casos, permeiam a lógica,a matemática e a ciência presente. Aliás, isso sempre ocorreu; Ber-trand Russell e Ludwig Wittgenstein, dois dos principais articuladoresda filosofia analítica, encerravam ideias metafísicas em suas concep-ções, como suas versões da teoria do atomismo lógico (como reconhe-ceu o próprio Russell—[So.2002, p.40]). Na abordagem de Russell, adoutrina sustenta, falando por alto, que o mundo consistiria de coisassingulares, ou particulares simples (os ‘átomos’), que teriam qualida-des igualmente simples e manteriam entre si relações simples. Russell

Teeteto: Necessariamente.Sócrates: E quando pensa algo, pensa sobre uma coisa que é?Teeteto: Sim.Sócrates: De modo que pensar o que não é, é pensar sobre nada.Teeteto: Sim.Sócrates: Mas, seguramente, pensar nada não é pensar em absoluto.Teeteto: Parece evidente.Sócrates: Logo, não é possível pensar o que não é, nem em si mesmo nem em relaçãoao que é.”Este é, como veremos nas palavras de Quine, ‘enigma platônico do não-ser’, que nosinteressará em algumas versões no que se segue (há inúmeras versões dos diálogosplatônicos na web).

10 Tópicos em Ontologia Analítica

visava contrastar filósofos idealistas que sustentavam que a realidadeconsistia uma totalidade cujas partes estão entre si relacionadas que nãopodem ser facilmente separadas sem causar distorções. Como comentaAvrum Stroll, uma das consequências desse ‘monismo’ idealista era quenenhum enunciado singular é completamente verdadeiro ou completa-mente falso, mas apenas parcialmente verdadeiro ou falso, na medidaem que as noções de verdade e falsidade se apliquem a esses enunciados[So.2002, p.40]. Para Russell, pelo contrário, os fatos são compostos decoisas singulares, o que permite sua individualização, podendo entãoserem verdadeiras ou falsas.11

Como se vê, questões metafísicas estão sempre permeando as dis-cussões filosóficas, não se podendo descartá-las por completo. Assim,por ontologia analítica entenderemos os estudos de ontologia (no sen-tido da metafísica geral visto acima) desenvolvidos no estilo da filosofiaanalítica, ou seja, enfatizando a análise das linguagens e o uso da lógicae dos sistemas matemáticos em geral.12 Nosso objetivo não é apresen-tar um tratado geral de ontologia, mas destacar pontos relevantes queconduzam a um estudo das bases ontológicas (e metafísicas) da ciênciapresente, em especial da física.

Finalmente, uma observação. Dissemos acima que os conceitos deespaço e de tempo são problemáticos no contexto da ciência presente.Como estamos adotando uma visão ‘relativizada’ (ou ‘naturalizada’,como preferem alguns) da ontologia, devemos considerar essas ques-tões, pois as entidades que povoam nossa ontologia (ou o mundo) estãocertamente localizados no espaço e no tempo. Como uma discussãopormenorizada estaria para além do escopo deste livro, falaremos bre-vemente disso na seção 6.5.

11Note-se que hipótese semelhante é pressuposta pela lógica clássica, quando as-sume que o valor de verdade de uma sentença complexa é função dos valores verdadedas sentenças atômicas que a compõem.

12Uma boa revisão histórica dessa disciplina pode ser vista em [Sy.2009].

Introdução 11

1.0.1 Em resumoPodemos sintetizar o que dissemos acima da seguinte forma, em umalinguagem mais atualizada: a palavra ‘ontologia’, apesar de ter ganhoao longo dos tempos diversos significados, quase sempre permaneceusendo entendida como designando aquela parte da metafísica que tratadas estruturas mais gerais daquilo que há, ou seja, de como as coisassão por elas mesmas. Presentemente, no entanto, aceita-se que, dadauma teoria científica, podemos indagar como seria o mundo do pontode vista da teoria, ou seja, o que seriam as coisas com as quais elanos compromete. Claro que, sob esta perspectiva, um mesmo domímiopode se apresentar de diferentes formas, dependendo da teoria que use-mos para investigá-lo. Mais à frente, termos oportunidade de analisarmais detalhadamente esta afirmativa. Esta é a visão ‘relativizada’, ou‘naturalizada’ da ontologia, a qual adotamos aqui.

Exercícios

1. Qual a distinção entre metaphysica specialis e metaphysica gene-ralis?

2. Enuncie algumas características da chamada filosofia analítica.

3. Procure caracterizar o que usualmente se entende por ‘realismo in-gênuo’ e por ‘idealismo’, e depois destaque algumas distinções entreesses conceitos.

4. Que tipo de questões os positivistas lógicos qualificavam de pseudo-problemas? Dê exemplos.

5. Como você formularia o problema do não-ser?

6. O que você acha das críticas dos positivistas lógicos à metafísica?

7. Dada uma teoria como a Aritmética usual, enuncie duas questõesque poderiam ser qualificadas como ‘questões internas’ e duas quepoderiam ser ‘questões externas’.

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8. Distinga entre a acepção ‘tradicional’ de ontologia da ontologia‘naturalizada’. Comente o assunto.

9. Você concorda com as críticas como as de Carnap a questões‘metafísicas’? Desenvolva.

10. Comente a distinção carnapiana de ‘questões internas’ e ‘ques-tões externas’ relativamente a uma dada teoria. Dê exemplos outrosdaqueles apresentados no texto, por exemplo, de uma teoria bioló-gica.

Capítulo 2

O Problema Ontológico

Para o filosofo norte-americanoWillard von Orman Quine(1908–2000), o problema ontológico pode ser condensadoem uma pergunta simples: “O que há?". Sua resposta resu-me-se a uma palavra: “Tudo!" [Qu.1980]. A resposta é intri-

gante. Tudo? Então há duendes, triângulos, cavalos alados, neutrinos?Face a importância de Quine, que deu contribuições realmente valoro-sas aos estudos de ontologia no escopo da filosofia analítica, na ver-dade proporcionando um direcionamento teórico que muito influenciouos estudos ontológicos contemporâneos, devemos com certeza procu-rar entender essa sua resposta enigmática, ainda que suas ideias nãosejam imunes à discussão e tenham sido criticadas (como aliás acon-tece, via de regra, com qualquer filósofo). O seu critério de compro-metimento ontológico (ou ‘compromisso ontológico’, como preferemalguns) é algo que todo estudante de filosofia deve conhecer.

O que faremos neste capítulo será introduzir as principais ideias queantecedem Quine neste tipo de questão—as ideias de Quine serão apre-sentadas no capítulo 4. Com efeito, ele vai usar muito da teoria das des-crições de Russell, que veremos no próximo capítulo e, para introduzí-la, devemos retornar um pouco, o quão pouco sendo algo bastante sub-jetivo.

Correndo o risco de imprecisão e de omissões, iniciamos caracteri-zando algumas formas de se atacar o problema ontológico, e depois de

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algumas ideias básicas sobre os alicerces da lógica clássica, falaremosbrevemente de Alexius Meinong e de sua teoria de objetos.

2.1 As duas faces do problema ontológico

Podemos olhar para o problema ontológico mencionado acima da formaseguinte, seguindo o filósofo argentino Thomas Moro Simpson. Simp-son aponta para duas faces desse problema; a primeira trataria da ques-tão da veracidade das frases existenciais negativas. A outra trataria daquestão da existência dos sujeitos gramaticais das frases significativas[Si.1976, cap.3].

A segunda se apresenta em afirmativas como ‘O atual rei da Françaé calvo’. Dado que não há um atual rei da França, a que corresponde osujeito dessa sentença? Se dizemos ‘Elizabeth II é a atual rainha da In-glaterra’, sabemos perfeitamente bem a quem se refere o sujeito da frase(uma simpática senhora inglesa, que sabemos identificar por fotos, etc.).Mas, e no caso do atual rei da França? E se dissermos ‘Pégaso era o ca-valo alado de Belerofonte’, e sabemos da mitologia que de fato Pégasoera o cavalo de Belerofonte, a que corresponde o sujeito da sentença?

Quanto à primeira questão, suponha que afirmemos que ‘Não há du-endes’. Ora, isso não implica que teremos que assumir a existência deduendes, para depois negá-la? Esta questão foi denominada por Quinede enigma platônico do não-ser, e segundo ele pode ser assim colocado:“o não-ser deve em algum sentido ser, caso contrário, o que é aquilo quenão é?"[Qu.1980]. O problema do não-ser remonta aos pré-socráticos,e constitui tema que necessitaria de análise detalhada, impossível de serfeita em poucas linhas.1 Como este não é nosso objetivo aqui, diremossimplesmente que Parmênides (c. 530–460 a.C), por exemplo, em seucélebre poema Sobre a Natureza, através da deusa Justiça, muda o dis-curso anterior dos filósofos, que procuravam o conhecimento na origem

1Há muita biliografia sobre esses filósofos, por exemplo os verbetes da StanfordEncyclopedia of Philosophy, a começar por [Cd.2007], acessíveis na web. O pri-meiro volume da coleção Os Pensadores, da Abril Cultural, é outra boa referência([PreSoc.1973]).

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das coisas, ou dos primeiros princípios do mundo (arquê), para a buscapelos modos de se chegar ao conhecimento, via o discurso sobre o ser,já que a trilha pelo não-ser seria “insondável". Como indica a deusa nopoema,

“ IIPois bem, agora vou eu falar, e tu, prestes atenção ouvindo a [palavra]

acerca das únicas vias de questionamento que são a pensar:uma, para o que é e, como tal, não é para não ser,

é o caminho de Persuasão —pois segue pela Verdade—,outra, para o que não é e, como tal, é preciso não ser,

esta via afirmo-te que é uma trilha inteiramente insondável;pois nem ao menos se conheceria o não ente, pois não é

realizável , nem tampouco se o diria:III

...pois o mesmo é a pensar e também ser.“2

Figura 2.1: Parmênides

Ou seja, o não-ser não poderia terqualquer forma de existência, e é pre-cisamente isso que será questionado pe-los filósofos posteriores. Por exemplo,em seu dialogo O Sofista, Platão tentadistinguir o filósofo do sofista,3 em par-ticular procurando ‘definir‘ o que seriaeste último. Uma das estratégias consisteem reconhecer, como salienta L. Hebe-che, que “a essência do sofista só podeser enfrentada por filósofos, pois só elespoderão arriscar-se a tratar do problemado erro, do falso e, portanto, do não-ser“[He.2007, p.111]. Isso se deveria ao fato do sofista dominar “a arte dosimulacro“, do que é falso em relação à realidade. Assim, para enfrentá-lo, devemos saber como dizer o que não é, sem no entanto nos compro-metermos com ele. Em especial, salienta nosso autor citando Platão,

2Cf. tradução disponível no site do Laboratório Ousia, da UFRJ.3Aquele que faz raciocínios capciosos.

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“é preciso supor ou conjecturar o não-ser como ser, pois nada defalso seria possível sem esta condição“ (O Sofista, 237a; [He.2007,loc.cit.]). O assunto, como se percebe, invade as discussões ontológicasaté mesmo nos dias de hoje, e apresentam questões as mais relevantespara a filosofia da ciência, a filosofia da linguagem, bem como à episte-mologia, à lógica e à ontologia.

Com efeito, as investigações da ciência atual estão repletas de enti-dades que não sabemos ao certo se de fato são, como partículas virtuaise outras entidades como ‘cordas‘, ‘supercordas‘, etc. Seriam elas ape-nas ficções úteis, ou teriam algum significado ontológico? A que sereduz a ontologia de uma teoria? O que significa ‘existir‘? (ver as ques-tões postas no início da seção seguinte).

Desde os desenvolvimentos da lógica e da filosofia analítica em ge-ral, essas questões ganharam uma perspectiva que não é meramente es-peculativa, mas que podem ser analisadas em consoância com o uso quefazemos das linguagens. É precisamente nesse contexto que o critériode comprometimento ontológico de Quine aparece, como veremos.

2.2 Algumas questões relacionadas ao temada ontologia

Motivados pelas questões colocadas acima, que de alguma forma têmconexão com o problema ontológico, podemos formular as seguintesperguntas:

(1) O que significa ‘existir‘?

(2) Dois dos conceitos básicos da física, desde a física clássica atéa moderna teoria quântica, são ‘partícula’ e ‘onda’, que auxiliama formular explicações adequadas (no sentido de conformarem-se àexperiência) sobre a realidade. O que são partículas? O que sãoondas?

(3) O que são significados? Como os significados se relacionam àssentenças, às linguagens, às teorias?

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(4) O que são nomes próprios, como ‘Maria‘, ‘Pégaso’, e como elessão (ou podem ser) usados? Podemos usá-los em qualquer contexto?

(5) Por exemplo, em física quântica, somos livres para ‘nomear‘ umapartícula elementar de modo que esse nome funcione como um nomena acepção usual (por exemplo, como ‘Napoleão Bonaparte’ designaum certo general francês)? Que acepção é essa?

(6) Qual a diferença entre o nome próprio ‘Napoleão Bonaparte‘ ea expressão (que aprenderemos ser uma descrição definida) ‘O ge-neral francês que foi derrotado na batalha de Waterloo’? Podemoschamar um elétron de ‘Napoleão Bonaparte’? Se fizermos isso, essenome funciunará como um nome próprimo na acepção comum?4 Senão podemos, por que não podemos? (esta última questão merecerádestaque no capítulo 6).

(7) Por que os nomes e as sentenças acima estão entre aspas?

(8) Qual o papel da lógica nas discussões de natureza ontológica?

(9) Em física, falamos em partículas virtuais, e supomos entidadesfísicas que não têm qualquer comprovação experimental. Elas ‘exis-tem‘? Em que sentido? Qual o seu papel nas teorias?

(10) O que significa ‘ontologia de uma teoria‘? Há sentido em talexpressão?

(11) Existem triângulos, círculos, números? O que isso significa?

(12) Quais as relações entre lógica e linguagem?

(13) Existem os objetos da ficção, como duendes e Sherlock Hol-mes?

4Claro que estamos pressupondo algum conhecimento do que se chama de ‘teoriados nomes próprios’, que tem várias versões; o livro mencionado de Simpson menci-ona o assunto.

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(14) O que Einstein pretendia dizer quando falou a Heisenberg que éa teoria que determina o que pode ser observado? Não há ‘observa-ção pura’?

Essas são apenas algumas das questões que podem ser colocadascomo relevantes para a discussão ontológica atual. Não podemos es-perar dar respostas a todas elas, e nem aprofundar qualquer delas osuficiente para uma discussão filosófica detalhada em notas de cará-ter introdutório como estas. O que objetivamos é apresentar algumasdessas questões de maneira mais geral possível, visando introduzir aproblemática e despertar o interesse do estudante e do leitor curioso.

Um dos problemas que a filosofia analítica enfrenta em questõescomo essas é o do uso essencial que faz da lógica como auxiliar emquestões linguísticas e filosóficas. Até meados do século passado, aslógicas não-clássicas não haviam sido suficientemente desenvolvidaspara que se percebesse o seu alcance e uso em áreas como a filosofiada linguagem, a filosofia da ciência e a epistemologia. Isso mudou so-bremaneira nos últimos 50 ou 60 anos, mas as relações desses sistemascom a ontologia constituem ainda um tema que requer estudo e apro-fundamento, principalmente devido à enorme transformação que estáocorrendo no campo científico devido às teorias físicas mais recentes,que (como sustentam alguns) não são passíveis nem mesmo de compro-vação experimental (falaremos de algo nesse sentido no capítulo 6).

Assim, dentro do espírito que rege esse texto, usaremos recursos‘lógicos‘ livremente daqui para frente. Por exemplo, tomemos a afir-mativa acima de que não há duendes. Outra pessoa (e sempre há taispessoas) pode sustentar que há duendes (algumas até já os viram!). SeD(x) é entendido como uma abreviação para ‘x é um duende‘, então aafirmativa de que há duendes pode ser escrita, na linguagem usual dalógica, como ∃xD(x), que informalmente significa ‘existe um duende‘(pelo menos um).5 A negação dessa sentença é ¬∃xD(x), que é equi-valente (de acordo com as regras da lógica clássica) a ∀x¬D(x), que

5A ênfase em palavras como ‘informalmente‘, ‘intuitivamente‘, etc. são essenciaisnesta etapa. Visam esclarecer que as ‘traduções‘ das expressões em linguagem lógicapara o português têm suas limitações e nem sempre correspondem àquilo que formal-mente se pretende. Com efeito, o ‘significado‘ dos símbolos lógicos é determinado

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significa (intuitivamente) ‘nenhum x é duende’.6 Ora, como nos mos-trará Russell, com uma tal forma de escrever, o discurso deixa de sersobre duendes e passa a ser sobre os objetos de um certo domínio queobedecem determinadas propriedades. Por exemplo, podemos definirD(x) por ‘(x é pequeno) ∧ (x é verde) ∧ (x mora no jardim)’ (ou quemsabe por algumas propriedades a mais). Ou seja, estamos falando deontologia: para os crentes, há duendes em sua ontologia e, para os des-crentes, não há. O importante é notar o modo de falar: empregamos va-riáveis que percorrem domínios de objetos. Uma certa entidade existese puder ser o valor de uma variável em expressões como as acima. Estaé a grande solução de Quine para o problema ontológico, e constitui oseu critério de comprometimento ontológico, que estudaremos mais àfrente e que pode ser assim resumido: ser é ser o valor de uma variá-vel.

No entanto, é preciso cuidado com tudo isso. Os matemáticos mui-tas vezes ‘provam’ que alguma coisa existe sem exibi-la explicitamente,bastando para isso mostrar (no escopo da lógica clássica) que a sua nãoexistência conduz a uma contradição. Tomemos por exemplo a demons-tração baseada na apresentada por Euclides de Alexandria, em seus Ele-mentos, de que não existe um maior número primo (ou seja, que o con-junto dos números primos é infinito). Um número primo é um númeronatural maior do que 1 que é divisível unicamente por ele mesmo e pelaunidade, como 2, 3, 5, 7, 11, 13, etc. Desse modo, se há infinitos deles,não pode haver um maior primo. Começamos assumindo (nossa hipó-tese) que existe um número primo maior que todos os outros, e vamoschamá-lo p. Então, p é primo e, pela hipótese que estamos assumindo,para todo primo q, tem-se que q ≤ p. Definamos o seguinte número:

pelos axiomas e regras que os regem, e isso depende da lógica que está sendo empre-gada. Assim, é um erro afirmar pura e simplesmente que uma expressão como α∨¬α(uma das versões do princípio do terceiro excluído) é uma ‘verdade lógica‘ ou umatautologia. Com efeito, α ∨ ¬α pode ser considerada ‘verdadeira’ (termo a ser escla-recido) no tocante à lógica cássica, mas essa expressão não é um teorema (portanto,não é ‘verdadeira‘) na lógica intuicionista. No capítulo sobre Lógica e Ontologia vol-taremos a esse importante assunto.

6Lembramos que, na lógica clássica, as expressões ¬∃x, ¬∀x, ∃x¬ e ∀x¬ podemser substituídas respectivamente por ∀x¬, ∃x¬, ¬∀x e ¬∃x.

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t = (2.3.5.7 . . . p) + 1, ou seja, o produto de todos os primos (que porhipótese existem em número finito), mais um. Ora, é claro que t > p.Assim, se t for primo, será maior do que p e isso viola a hipótese de quep é o maior primo. No entanto, t pode não ser primo. Mas, nesse caso,é um número composto, e pode ser fatorado em produto de primos (seesse produto seguir a ordem dos primos, a decomposição será única);por exemplo, 60 = 22.3.5, ou então 225 = 20.32.52, etc. Esse resultadoé conhecido como Teorema Fundamental da Aritmética. Ora, os fato-res de um número dividem-no exatamente. Assim, os primos que sãofatores de t não podem ser quaisquer dos primos 2, 3, . . . , p, pois essesnúmeros não dividem t exatamente, como é fácil perceber se dividirmost por 2, depois por 3, por 5, e assim por diante, verificando que sempreobtemos resto 1. Portanto, se t é composto, os primos que são os fatoresde t têm que ser primos não pertencentes a essa lista, e então têm queser maiores do que p. Consequentemente, há primos maiores do que p,o que contraria a hipótese novamente. Ou seja, nossa hipótese conduza uma contradição. Assim, (no escopo da lógica clássica) a hipótesetem que ser falsa, e a sua negação, que é o que estávamos procurando,é verdadeira, como queríamos estabelecer.

Este tipo de demonstração é denominada de redução ao absurdo, eacredita-se que tenha sido introduzida na matemática por influência defilósofos como Zenão de Eléia, que as usava em suas formas de argu-mentação. Trata-se de um raciocínio típico de quem podemos chamarde ‘matemático clássico’, ou seja, quem segue as regras da lógica clás-sica. Com efeito, um matemático de outra linha, como um intuicionista,não aceitaria esse tipo de demonstração. Dito sem muito rigor, para ummatemático intuicionista, se desejamos provar uma certa proposição, oumostrar que ‘existe’ um certo objeto (como um certo número), devemosexibir um ‘modo construtivo’ de obter a proposição (ou de exibir o nú-mero em questão). Ora, o argumento de Euclides apenas mostra que,dada a hipótese de que p é o maior dos primos, então a negação dessahipótese conduz a proposições incompatíveis logicamente com a hipó-tese assumida. Na lógica clássica, qualquer proposição que impliqueproposições contraditórias (uma das quais é a negação da outra, como ahipótese e suas duas formas de negação vistas acima) deve ser falsa, e

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portanto, a negação da proposição em apreço deve ser verdadeira. Ex-pressamos isso por meio de um teorema da lógica clássica (informal-mente, os teoremas são as proposições ‘verdadeiras‘) conhecido comolei de Scotus, que pode ser assim apresentado (há outras formas equiva-lentes que às vezes são usadas alternativamente):7

α ∧ ¬α→ β.

Os antigos liam isso assim: de uma contradição (a conjunção deuma proposição e sua negação), ‘tudo‘ se segue, já que β é uma fórmulaqualquer: ex falso sequitur quodlibet.8 Assim, mostrando que a hipótesede que a existência de um maior número primo conduz à sua negação,ela deve ser falsa, e consequentemente, como visto, a sua negação éverdadeira.9

Para um intuicionista, falando por alto, já que os detalhes são de-licados, existir significa ‘dar uma prova da possibilidade de se cons-truir o referido objeto’. Por exemplo, um intuicionista aceita que existeo número natural 101000, já que temos um ‘processo construtivo’ paraobtê-lo: inicie com 1 e vá somando uma unidade; um dia (daqui hámuito tempo) você chega lá. Para um ‘clássico’, existir pode significar‘ausência de contradição’ (este era, aliás, o critério que usualmente seatribui ao matemático alemão David Hilbert). Um matemático paracon-sistente, por outro lado, que convive razoavelmente bem com contra-dições formais, pode dizer que existir significa não ser trivial, ou seja,uma proposição pode implicar uma contradição (ou, mais geralmente,duas proposições contraditórias); o que ela não pode é implicar ‘qual-quer coisa’.10

7Uma discussão extensa sobre este assunto e em particular sobre a chamada Lei deScotus encontra-se em [Go.2013].

8Por exemplo, vejam como Aristóteles, criticando Heráclito, se expressa na Meta-física: "[a] doutrina de Heráclito, segundo a qual todas as coisas são e não são, parecetornar tudo verdadeiro"(Γ 1012a26-6). Ressalte-se que no tempo de Aristóteles, nãohavia a distinção entre verdade e demonstração.

9No presente caso, podemos formular esse princípio na forma seguinte: A→ ((A∧¬A)→ ¬A), sendo A a proposição ‘p é o maior número primo‘.

10Nem sempre de duas proposições contraditórias (isto é, uma delas sendo a ne-gação da outra), se obtém uma contradição—a conjunção de duas proposições con-

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Vê-se assim que tratar de questões de existência usando recursoslógicos traz um problema delicado, pois depende da lógica que se estáutilizando (enfatizaremos isso no capítulo Lógica e Ontologia). Aindamais, mesmo que fixemos por exemplo a lógica clássica, a existênciade algo pode depender, como veremos, da interpretação que se dê aosquantificadores. Essas questões são complexas, e estão no cerne dasdiscussões presentes em ontologia.

2.2.1 Alguns princípios da lógica clássicaPara encerrar esta seção, revisaremos aqui alguns dos princípios básicosda lógica clássica, que pela sua importância e pelo fato de que entrarãona discussão que se segue, devem ser conhecidos.11 Com efeito, ostextos usuais de filosofia, quando se referem à filosofia analítica ou àontologia, via de regra presupõem a lógica clássica. Não há nada quejustifique essa escolha. É certo que temos com ela uma longa história,e que estamos mais acostumados a lidar com suas regras, mas qualquerescolha de lógica sem uma justificação adequada se mostra arbitrária epassível de questionamentos. Com efeito, como estamos começando aperceber, a lógica desempenha papel preponderante nas discussões quecercam os assuntos deste livro.

Iniciemos com os três mais célebres princípios, que alguns auto-res chegam a sustentar (erroneamente) que são os princípios básicosdessa lógica,12 os princípios da identidade, da contradição (ou da não-

traditórias; isso só ocorre nos sistemas ‘adjuntivos’, ou seja, nos quais sempre sepode formar a conjunção de duas proposições. O ‘qualquer coisa’ da frase acimasignifica ‘qualquer fórmula da linguagem do sistema’. Um sistema dedutivo é tri-vial se ele permitir que se derive todas as suas fórmulas como teoremas. Se a lógicasubjacente ao sistema (ou teoria) for a clássica—ou a grande maioria dos sistemasconhecidos, inconsistência implica trivialidade e reciprocamente. Sobre as lógicasparaconsistentes, ver o artigo de divulgação [Kr.2004]; para assuntos mais técnicos,ver [Co&Kr&Bu.2007].

11O leitor pode ver mais detalhes sobre a filosofia da lógica em [Co.1980].12Com efeito, a lógica clássica não pode ser estabelecida unicamente com base

nessas leis. Ademais, esses autores esquecem que não há um único modo de formulá-los, e que as várias maneiras de os enunciar não são equivalentes, como veremosabaixo.

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contradição) e do terceiro excluído.

Princípio da Identidade O princípio da identidade pode ser formu-lado de vários modos não equivalentes, como os seguintes, sempre ad-mitindo que as linguagens mencionadas incorporem os símbolos utili-zados:

1. Formulações sintáticas (ou seja, formulações que não envolvemconceitos semânticos como ‘verdade‘, ‘denotação‘, ‘sentido‘ e ou-tros, ficando restritos aos aspectos sintáticos das linguagens):

a) Em uma linguagem proposicional, p → p, ou p ↔ p, sendo puma variável proposicional.b) Em uma linguagem de primeira ordem, ∀x(x = x), sendo xvariável individual;c) Em uma linguagem de segunda ordem, ∀P∀x(P(x) ↔ P(x)),sendo P uma variável para predicados e x uma variável individual;pode-se estender para linguagens de ordens mais altas.

2. Formulaçõs semânticas:

a) Uma proposição verdadeira é sempre verdadeira, e uma falsa,sempre falsa;b) Toda proposição possui um único valor de verdade;c) Em qualquer contexto, as ocorrências de um dado símbolo de-vem sempre ter o mesmo sentido (Newton da Costa chama estaformulação de ‘pragmática’ [Co.1980, p.96]);d) Todo objeto é idêntico a si mesmo;e) A é A (eventualmente acrescentando-se ‘e não é não-A‘), sendoA uma variável.

O leitor deve notar que essas formulações não são todas equivalen-tes, de forma que, quando se fala do ‘princípio da identidade‘ (e omesmo vale para os demais princípios apresentados abaixo), deve-seespecificar de qual formulação se está falando, ou deixar isso bemclaro pelo contexto.

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Princípio do Terceiro Excluído O princípio do terceiro excluído tempelo menos as seguintes apresentações:

1. Formulações sintáticas

a) Numa linguagem proposicional, p ∨ ¬p;

b) Em uma linguagem de primeira ordem, ∀x(F(x) ∨ ¬F(x)),sendo F uma constante para predicados monádica, ou então sendoF(x) uma fórmula qualquer tendo x como variável livre (e po-dendo conter eventualmente outros parâmetros);

c) Numa linguagem de ordem superior, ∀F∀x(F(x) ∨ ¬F(x)),sendo x variável individual e F uma variável para predicados mo-nádica;

2. Formulação semântica Dadas duas proposições contraditórias,isto é, uma das quais sendo a negação da outra, uma delas é ver-dadeira.

Princípio da Contradição Quanto ao princípio da contradição (ou danão-contradição), temos:

1. Formulações sintáticas

a) Numa linguagem proposicional, ¬(p ∧ ¬p);

b) Em uma linguagem de primeira ordem, ∀x¬(F(x) ∧ ¬F(x)),sendo x variável individual e F uma constante monádica para pre-dicados (ou então F(x) denota uma fórmula qualquer com x comovariável livre, eventualmente contendo outros parâmetros);

c) Em uma linguagem de ordem superior, ∀x∀F¬(F(x)∧¬F(x)),sendo x variável individual e F uma variável para predicados mo-nádica.

2. Formulações semânticas

a) Dadas duas proposições contraditórias, isto é, uma das quaissendo a negação da outra, uma delas é falsa.

O Problema Ontológico 25

b) A não pode ser, sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, B enão-B.c) ‘A é B‘ e ‘A não é B‘ nunca são simultaneamente verdadeiras.

Composicionalidade Outro pressuposto básico da lógica clássica é acomposionalidade. Falando por alto, isso significa que o valor verdadede uma proposição composta, como p → (q ∨ ¬p), depende (pelo mé-todo das tabelas-verdade) dos valores de verdade de suas proposiçõescomponentes, ou átomos, no caso, de p e q. Alguns autores chamameste pressuposto de Princípio de Frege.

Demais princípios clássicos Outros pressupostos clássicos são, porexemplo, a lei da dupla negação, que diz que ¬¬p é equivalente a p.Essa lei não vale em algumas lógicas distintas da clássica, como a intui-cionista ou (irrestritamente) em alguns cálculos paraconsistentes. Outropressuposto básico da lógica clássica é o de que, dadas duas proposiçõesquaisquer p e q, sempre se pode formar sua conjunção p ∧ q. Lógicasque permitem isso são chamadas de adjuntivas. Há no entanto lógicasnão-adjuntivas, como as lógicas paraclássicas, a lógica de Jaskowski ealguns sistemas propostos por G. Priest (ver [Co&Kr&Bu.2007]).

Como se pode perceber, é preciso algum cuidado quando se afirmaque vale algum princípio lógico, pois isso depende de qual formulaçãoestamos considerando e a qual lógica estamos nos referindo. No res-tante deste livro, exceto quanto explicitamente mencionado o contrário,estaremos sempre pressupondo a lógica clássica e as versões que adota-remos dos princípios ficarão claras pelo contexto.

Ter em mente os princípios acima auxiliará o entendimento da dis-cussão que se segue.

2.3 Meinong e sua teoria de objetosAlexius Meinong (1853-1920), filósofo austríaco, é bastante conhe-cido pela sua teoria de objetos (veja [Mk.2008]). Segundo ele, a me-tafísica tradicional teria tendência a dar atenção unicamente ao real,

26 Tópicos em Ontologia Analítica

esquecendo-se de que há outras categorias de objetos. Por isso, umateoria mais geral de objetos seria para ele necessária. Dentre outrascoisas, a importância de seus trabalhos reside em ter induzido filósofoscomo Russell, Wittgenstein, Ryle e outros a constatar que significadosdevem ser distinguidos de objetos.

Em resumo, as teses básicas da teoria dos objetos de Meinong são:13

(P1) Há objetos que não ‘existem‘ (mas que meramente subsistem).

(P2) Qualquer coisa que possa ser alvo de um processo mental dealgum modo, é um objeto.

P3) Todo objeto possui as propriedades que o caracterizam. Porexemplo, o quadrado redondo é tanto quadrado quanto redondo.

(P4) Pode haver sentenças verdadeiras acerca daquilo que não temser.

Figura 2.2: Alexius Meinong

Meinong distinguiu entre duas for-mas básicas de ser: os objetos que estãolocalizados no espaço e no tempo exis-tem; os demais subsistem. Assim, Sher-lock Holmes, o Saci Pererê e Pégaso ape-nas subsistem. Apesar do que dissemosacima, na verdade é dúbio se para Mei-nong objetos impossíveis como o triân-gulo quadrado subsistem. Alguns auto-res como Stroll sustentam que, para Mei-nong, objetos contraditórios como o quadrado redondo nem existem enem subsistem, ainda que tivessem algum tipo de ser [So.2002, p.23].Outros autores não concordam que o quadrado redondo seja na verdadeum objeto que encerre propriedades contraditórais, pois ele poderia serum triângulo, ou seja, nem quadrado e nem redondo. Sob este ponto devista, ‘ser quadrado’ e ‘ser redondo’ não seriam contraditórais, mas con-trárias, no sentido do quadrado das oposições aristotélido, podendo ser

13Para mais detalhes, consultar [Mk.2008].

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ambas falsas, mas não ambas verdadeiras. No entanto, aparentemente amaioria dos autores interpreta Meinong aceitando objetos impossíveise objetos contraditórios (possuindo propriedades contraditórias) comocertos casos de pensamento auto-referencial (como o que origina o pa-radoxo do mentiroso)14 de fato subsistem, dado ao fato de que Meinongtentou dar sentido à sua frase “Há objetos para os quais é verdade quenão há tais objetos."

Claro que a questão básica está ligada ao sentido de existe (em ‘há‘).Mesmo se entendermos, como aparentemente ele pretendeu, que os ob-jetos ‘reais‘ existam, como (hoje) o Empire State em Nova Iorque, éproblemática a questão de se saber se supercordas existem.15 Comose vê facilmente, as discussões são muito vagas, e é em assuntos dessanatureza que a filosofia analítica mostra a sua força.

Sem pretender uma análise detalhada de suas ideias, vamos tentar,sem fazer qualquer exegese, esquematizar a teoria de objetos de Mei-nong como segue. Iniciemos com uma distinção entre ser e existir. Porexemplo, tomemos a sentença

(S) Não há centauros.

Negando uma existência espaço-temporal, (S), ao que tudo indica, éverdadeira. Negando que centauros de alguma forma são (por exemplo,personagens de histórias), é falsa. Assim, se julgarmos algo, não julga-mos acerca de nada. Quando julgamos, julgamos algo, ainda que estealgo não tenha existência real. (Mas note aqui o problema de se ter queassumir que se sabe, pelo menos em princípio, o que é ‘real‘).

14O paradoxo do mentiroso pode ser formulado considerando-se a frase ’Eu estoumentindo’. Se a frase for verdadeira, segundo a teoria da verdade como correspondên-cia, o que ela assevera é o que é, ou seja, que eu estou falando uma mentira, dizendouma falsidade. Portanto, se ela for verdadeira, terá que ser falsa. Reciprocamente, seela for falsa, ela está dizendo exatamente isso, e terá que ser verdadeira. Há diver-sas outras formulações; o leitor curioso pode procurar pelo verbete ‘Liar Paradox’ naStanford Encyclopedia of Philosophy, http://plato.stanford.edu.

15Entidades supostas pelas teorias de cordas, um dos campos mais atuais da físicamoderna—ver [Gr.1999]. Uma corda é uma entidade não pontual com a dimensão daescala de Planck, cerca de 10−23 cm. A vibração dessas cordas originaria as partículas.

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Podemos colocar as coisas assim: ser é tudo aquilo que pertence atodo ser concebível, a cada objeto do pensamento, ou seja, tudo aquiloque pode aparecer em uma proposição (falsa ou verdadeira), inclusive aprópria proposição. Existir é uma prerrogativa daqueles objetos que têmuma relação específica com a existência (no sentido acima, coisa que aprópria existência não parece ter). Ou seja, nesse esquema, qualquercoisa concebível por um ato mental é um objeto.

Podemos voltar agora à distinção entre existir e subsistir. Por exem-plo, a diferença (vista como uma relação) que há entre o vermelho e overde não tem localização espaço-temporal, portanto, apenas subsiste.Do mesmo modo, o atual rei do Brasil, a raiz quadrada de dois, o nú-mero π, etc., apenas subsistem. Mesmo um objeto que não é nem aomenos pensável tem a característica de não ser pensável e, portanto, é.Se um tal objeto existe ou não, é um outro tipo de problema.

Há portanto que se distinguir entre o ser de um objeto (Sein) e assuas características (Sosein), que são independentes de seu ser. Umquadrado redondo, por exemplo, tem as características de ser tanto qua-drado quando redondo, mas não tem Sein (existência ‘real’). Trata-sede um objeto impossível, pois tem Sosein contraditória (ou, conformea discussão acima, ‘contrária’). Os objetos possíveis são aqueles quenão têm Sosein contraditória ou contrária. Alguns existem, como aatual presidente do Brasil (em 2012), enquanto outros apenas subsis-tem, como a montanha de ouro, que além de tudo é um objeto incom-pleto.16 Seguindo a motivação dada pelo quadrado das oposições, háuma outra forma de negação envolvida na discussão, além da contradi-toriedade (expressas por proposições categóricas das formas A e O, Ee I) e da contrariedade (A e E), a saber, a sub-contrariedade (I e O).Neste último caso, poderíamos conceber objetos com propriedades quepodem ser ambas verdadeiras, mas não ambas falsas, ou seja, um objetoparaconsistente!

Interessante observar que esta discussão pode ter interseções com amecânica quântica, da qual falaremos à frente, mas fica a indicação: na

16Este conceito foi introduzido por Meinong em 1915, significando objetos que sãoindeterminados por pelo menos uma propriedade, como um triângulo, que é indeter-minado relativamente à propriedade ‘ser verde‘ (cf. [Mk.2008].

O Problema Ontológico 29

mecânica quântica, há contextos em que nem todas as propriedades deum sistema podem assumir valores simultâneos (teorema de Kochen-Specker). Assim, haveria sentido em considerarmos os objetos quânti-cos como ‘objetos incompletos’ no sentido de Meinong? Mas voltemosao nosso ponto.

Segundo Marek (op.cit.), Meinong teria distinguido entre negar umpredicado (como em ‘x é não verde‘, que podemos escrever assim (∼V)(x) e ‘é falso que x seja verde‘, que seria ¬V(x) (note que usamosdois símbolos de negação). Deste modo, Meinong aceitaria o princípioda contradição na forma

∀F∀x¬(F(x) ∧ ¬F(x)), (2.1)

bem como o princípio do terceiro excluído

∀F∀x(F(x) ∨ ¬F(x)), (2.2)

mas ele teria também aceitado princípios como

∃F∃x(F(x) ∨ (∼ F)(x)), (2.3)

∃F∃x¬(F(x) ∨ (∼ F)(x)). (2.4)

Note que na lógica clássica, as duas negações acima não seriamdistintas, e assim (2.1) e (2.3) seriam a negação uma da outra, bemcomo (2.2) e (2.4). Por razões como essas, Meinong foi taxado poralguns, como Russell, que não aceitava a distinção entre as duas nega-ções acima, de ser inconsistente, como veremos. Outros filósofos, noentanto, ou por aceitarem a distinção apontada, ou simplesmente porquepensam poder fundar até mesmo uma teoria de objetos inconsistentes,propõem que a teoria de Meinong deveria ser baseada em uma lógicadistinta da clássica.17 De qualquer modo, a análise não pode ser feita acontento sem que se considere a natureza das negações usadas acima.

17O leitor pode ver as indicações de [Mk.2008] ou [Co&Do&Pa.1991], onde osautores propõem o uso de uma lógica paraconsistente para elaborar uma teoria deobjetos—como o quadrado redondo—inconsistentes. Como dito em outro local (verà página 96), há uma presentemente uma linha filosófica chamada dialeteísmo, que

30 Tópicos em Ontologia Analítica

2.3.1 Meinong e o problema ontológicoConsiderando os dois aspectos do problema ontológico indicadas an-teriormente, como Meinong as responderia? Creio que podemos con-jecturar que suas respostas seguiriam aproximadamente as seguintes li-nhas:

(1) Quanto aos sujeitos gramaticais das frases significativas, elesexistem ou subsistem. Em ‘A atual presidente do Brasil é latino-americana’, o sujeito existe. Já em ‘O atual rei da França é careca’,o sujeito subsiste. O mesmo se daria com ‘O quadrado redondo équadrado’.

(2) Com respeito às frases existenciais negativas, haveria sentençasque negam a existência espaço temporal de objetos que apenas sub-sistem, e que seriam verdadeiras, como ‘O atual rei do Brasil nãoexiste.’

Essas questões, no entanto, não são assim tão simples de se analisar.Como dissemos, Meinong não é um filósofo simples de se discutir a res-peito, como tem sido amplamente reconhecido na literatura (o tratado deRichard Routley, Exploring Meinong’s Jungle and Beyond [Ro.1980],tem 1035 páginas!).

Exercícios

1. Dê exemplos de objetos que cumpram 2.1, 2.2, 2.3 e 2.4 acima.

2. Esclareça a distinção entre existência e subsistência, dando exem-plos.

(3) Você acha que a solução ‘meinonguiana’ dada aos dois aspectosdo problema ontológico nas linhas acima são satisfatórias? Justifi-que.

sustenta haver contradições ‘reais’, ainda que o sentido da palavra ‘real’ seja (paramim ao menos) vaga —ver [Kr.2007].

O Problema Ontológico 31

2.4 As críticas de RussellEm 1905, Russell publicou um artigo célebre, ‘On denoting’ [Ru.1905],e mais tarde desenvolveu as mesmas ideias em outros trabalhos, no qualcritica a teoria de Meinong. Segundo Russell, “a teoria de Meinong re-puta qualquer frase gramaticalmente correta como representando (stan-ding for) um objeto. Então, ‘o presente Rei da França’, ‘o quadrado re-dondo’, etc., são supostos serem objetos genuínos." [Ru.1905, pp.482-3]. Um pouco mais adiante, ele comenta que “é aceito, por exemplo,que o existente presente Rei da França existe, e também que não existe;que o quadrado redondo é redondo, e também não é redondo, etc.. Masisto é inadmisível." (op.cit., p. 483).

Para Russell, alguns objetos, como o quadrado redondo, são con-traditórios. O quadrado redondo, sendo quadrado e redondo (logo, nãoquadrado), fere o princípio da contradição. Por outro lado, se o rei daFrança tem alguma forma de existência (já que subsiste, e isso é umaforma de ser), ele fere o princípio (P3) das condições (pág.26), pois(sendo a existência um atributo daqueles seres que ‘existem’),18 existiriae não existiria. Essas críticas poderiam ser talvez respondidas levando-se em conta a ideia de que ‘ser quadrado’ e ‘ser redondo’ não seriamcontraditórais, como explicado acima, mas contrárias. Deste modo, oprincípio da contradição não seria violado. Mas voltemos a Russell.

Russell apresenta sua teoria das descrições (que veremos no capí-tulo seguinte) para contornar as objeções mencionadas. Em síntese,ele apresenta as descrições (definidas e indefinidas) como símbolos in-completos, elimináveis em uma linguagem envolvendo quantificadores.Para ele (fielmente dentro da tradição analítica), como salienta Marek,os problemas que surgem com a teoria de Meinong devem-se a umaconfusão entre a forma gramatical da linguagem usual e a sua formalógica, e que portanto se uma sentença da linguagem natural afirma aexistência de algo, infere-se que esse algo deve de algum modo existir[Mk.2008]. Como ele mostrará com a sua teoria, expressões da forma ‘oassim e assim’ (uma descrição definida) nada implicam nesse sentido,quando devidamente parafraseadas em uma linguagem lógica conveni-

18O que será contestado depois.

32 Tópicos em Ontologia Analítica

ente. Contrariamente ao que acreditava Meinong, tais expressões viade regra não são expressões que denotem, e se assim forem concebidas,ferirão as leis da lógica clássica, o que Russell não admitia.

Meinong tentou responder a essas questões. Como resume Marek(op.cit.), à primeira objeção ele respondeu que somente os objetos queexistem no espaço e no tempo podem ferir as leis da lógica, enquantoque os objetos impossíveis fariam mesmo com que certas leis, como oprincípio da contradição, não pudessem vigorar. Lembrando a distinçãoentre as duas formas de negação apresentadas acima, ∼ (a negação deum predicado) e ¬ (a negação de uma sentença), podemos tentar en-tender o seu ponto. Para ele, o quadrado redondo é quadrado (Q(x))e redondo (R(x)), mas isso não implica que seja redondo (R(x)) e não-redondo ((∼ R)(x)). O que não poderíamos ter é que ele seja redondo,R(x), e que não seja redondo, ¬R(x), pois ele aceitaria o princípio dacontradição na forma (2.1). Como comenta Marek, da mesma forma,“O triângulo não é nem verde e nem não-verde, porém ele é ou verdeou não é verde." Em suma, Meinong não aceitaria a equivalência entre(∼ P)(x) e ¬P(x) no caso dos objetos que não existem no espaço e notempo.

Com relação à segunda objeção, Meinong distinguiu entre o quechamarei de ser-existente (Existieren-sein), que tem alguma forma deexistência, ou subsistência, e existência (Existieren), como determina-ção do ser. Isso leva-o a distinguir entre objetos como a montanha deouro ou o quadrado redondo, que são seres-existentes, mas não seres,objetos que existem no espaço e no tempo, esses sim podendo-se di-zer que existem. Claro está que Russell, apegado à lógica clássica, nãopoderia aceitar uma tal distinção.19

Exercícios

1. Quais são as duas facetas do problema ontológico, na acepção deSimpson?

19Presentemente, podemos ainda acrescentar mais problemas a essa discussão, lem-brando que as noções de espaço e de tempo não têm uma única e bem definida inter-pretação, mas dependem da teoria física utilizada.

O Problema Ontológico 33

2. Exemplifique cada uma delas com exemplos outros que os dadosno texto.

3. Procure no texto de Quine [Qu.1980] a afirmativa de que o enigmado não-ser é tão antigo quanto ‘a barba de Platão’. Discuta o assunto.

4. Leia algumas passagens de O Sofista nas quais aparece a questãodo não-ser.

5. Quais os pressupostos básicos da teoria de objetos de Meinong?

6. Dê exemplos de objetos que existem e de objetos que apenas sub-sistem. Questione essa noção simples de ‘existência’ levando emconta o fato de haver presentemente entidades presentes nas teoriascientíficas das quais não temos qualquer evidência direta (o que seriaisso?) de sua ‘existência’. Elas existiriam ou subsistiriam?

7. Como Meinong responderia às duas questões do exercício 1?

8. Resuma as críticas de Russell à teoria de Meinong.

9. Resuma as respostas de Meinong às críticas de Russell.

34 Tópicos em Ontologia Analítica

Capítulo 3

Descrições Definidas

Bertrand Russell (1872-1970) é sem dúvida um dos grandesfilósofos do século XX. Sua contribuição à lógica é vasta eimportante, e seu livro (em três volumes) Principia Mathe-matica, escrito com A. N. Whitehead (publicados em 1910,

1911 e 1913), é um marco na história da lógica e do estudo das disci-plinas formais. Apesar de uma contribuição ampla e variada, Russellreferiu-se à sua teoria das descrições, apresentada em 1905 em um ar-tigo denominado ‘On Denoting’ (‘Sobre Denotar’), como sendo a suamaior contribuição à lógica [Ru.1905]. Somente essa referência, dadaa importância de Russell e de sua obra, já seria suficiente para que todapessoa interessada em filosofia se obrigasse a ter pelo menos uma ideiarazoavelmente precisa do que seja essa teoria e de sua relevância. Espe-cialmente para os interessados em ontologia contemporânea, ela é comefeito vital. Por isso, veremos neste capítulo alguns detalhes do queconsiste a teoria das descrições russelliana (uma discussão ampla de-mandaria muito mais), e veremos como ela importa para os assuntosdeste texto, ainda que não se faça uma análise exaustiva do tema nestelivro introdutório. O texto a seguir é uma breve introdução à teoria deRussell; o leitor interessado em mais detalhes deve consultar a Biblio-grafia ao final.

36 Tópicos em Ontologia Analítica

3.1 Frases descritivas

Há dois tipos de frases descritivas: (1) as descrições indefinidas, quesão expressões da forma ‘um(a) assim e assim’ e (2) as descrições de-finidas, que são expressões da forma ‘o(a) assim e assim’, sempre nosingular. À primeira categoria pertencem expressões como ‘um alunode filosofia’, ‘uma menina bonita’, enquanto que à segunda pertencem‘o mestre de Platão’, ‘o atual rei da França’, ‘o maior número primo’.(Uma exposição informal do assunto é feita por Russell no capítulo 16de seu livro Introdução à Filosofia Matemática).

Figura 3.1: Bertrand Russell(1872-1970).

Como vimos anteriormente, senten-ças como ‘O atual rei da França é ca-reca’ nos trazem problemas, pois apa-rentemente, ao asseverá-la, estamos noscomprometendo com a ‘existência’ doatual rei da França, que presentementesabemos não haver. Segundo Russell,a forma gramatical de enunciados como‘O atual rei da França é careca’ nos en-gana, e sua forma lógica é na verdade ou-tra. Para ele, enunciados como ‘o atualrei da França’, ‘a montanha de ouro’, ‘oquadrado redondo’ são descrições defi-nidas, e nem sempre podem ser tomadoscomo nomes de entidades: para Russell, as descrições (definidas) nãosão logicamente equivalentes a nomes próprios. Estes designam obje-tos ‘existentes’, como Sócrates, Julio Cesar, Henri Poincaré, aquelasdescrevem entidades que podem inclusive não existir. ‘Nomes’ aplica-dos a entidades não existentes, como Pégaso, Saci Pererê, para ele naverdade não são nomes, mas ‘descrições abreviadas’. Certas expressões(nomes), no entanto, podem eventualmente ser usadas como descrições,como veremos. Frases descritivas como ‘o autor de Methods of Logic’,para Russell, devem ser parafraseadas de modo que as referências desig-nativas desapareçam. Inicialmente, ele encontra um modo de escrever a

Descrições Definidas 37

forma lógica de ‘o F’, introduzindo um operador: em símbolos, escreve

ιxF(x) (3.1)

sendo ιo operador de descrição, ou descritor. A expressão acima se lê‘o (único) x tal que F(x)’, e é na verdade uma representação simbólicapara a frase seguinte, escrita na linguagem da lógica de primeira ordemcom igualdade: ‘Existe um único x que tem a propriedade F’. Por meiodesse artifício, ou seja, vertendo a descrição para uma expressão dalinguagem da lógica usual, Russell consegue eliminar a descrição pormeio de uma definição contextual, como veremos depois. Expliquemosum pouco o que se passa.

Russell introduziu o símbolo " ι", o descritor, ou operador de descri-ção para expressar frases como ‘x é o autor de Methods of Logic’ podemser escritas assim:

ιx(x o autor de Methods of Logic),

que se lê ‘o único x tal que x é autor de Methods of Logic’. Ou seja,se F(x) diz que x é o autor de Methods of Logic, então ιxF(x) expressa‘o (único) objeto que é o autor de Methods of Logic’. A descrição de-finida, importante dizer, indica um único objeto que tem a propriedadeF, desde que exista esse objeto (no caso, trata-se de W. V. Quine). Se hámais de um ou se não existe tal objeto, para Russell a descrição é falsa,e já veremos por que.1

Formalmente, o descritor funciona do seguinte modo: ele é um ‘ope-rador que liga uma variável a uma fórmula para formar um termo’ (éum v.b.t.o.; em inglês —‘variable binding term operator’). Ou seja, seconsiderarmos uma linguagem de primeira ordem, da qual F é um pre-dicado unário, então F(x) é uma fórmula , e ιxF(x)) é um termo, que de-signa o único objeto que satisfaz F, se existir tal objeto.

1Isso não acontece na teoria de Frege. Para Frege, quando há mais de um objetosatisfazendo a descrição não tem referência, podemos fixar um objeto, preferencial-mente um que exista em qualquer domímio, como o número 1, que para Frege temexistência necessária. Assim, ‘o autor de Principia Mathematica’, que designa igual-mente Russell e Whitehead, pode ser identificado com o número um. (Um estudobastante detalhado da teoria das descrições de Frege é o ensaio de Pelletier e Linsky[Pe&Linss.ND]; agradeço a Marco Ruffino por esclarecimentos neste ponto.

38 Tópicos em Ontologia Analítica

Caso não exista um objeto que tenha a propriedade F ou se há maisde um, há algumas alternativas, como simplesmente postular que ne-nhum objeto é designado por ιxF(x) (teoria de Russell) ou fazer comque todas as descrições definidas impróprias denotem o mesmo objeto,escolhido arbitrariamente (como sugeriu Frege), ou ainda, atribuímosa cada uma delas um objeto, não necessariamente o mesmo. A solu-ção de Russell, no entanto, é considerar que nesses casos a descrição éfalsa. Isso se deve ao fato de que a descrição ‘o autor de Methods of Lo-gic’ deve ser parafraseada em algo como ‘existe um x que é o autor deMethods of Logic, e para todo y, se y é autor de Methods of Logic, entãoy é idêntico a x’. Em símbolos, se denotarmos por M(x) o predicado ‘xé o autor de Methods of Logic’, temos

∃x(M(x) ∧ ∀y(M(y)→ y = x)). (3.2)

Assim, se não há nenhum autor de Methods of Logic, ou se há maisde um (como ocorre com os Principia Mathematica), a descrição é falsana teoria de Russell.2

Para Russell, uma descrição definida não tem sentido por si mesma,mas unicamente dentro de um contexto. Um nome, por outro lado, de-nota ou designa um particular indivíduo, e significa esse indivíduo. Ouseja, para Russell, um nome tem um significado, a saber, o próprio ob-jeto que designa. (Ele mudou de ideia por um tempo, mas depois voltoua sustentar essa posição, que assumiremos). Uma descrição definida,no entanto, não é um nome (como era para Frege), algo que denota di-retamente um objeto. Pensemos na frase ‘Hilbert é careca’. A palavra(nome próprio) ‘Hilbert’ designa um particular indivíduo, e tem umafunção lógica diferente da descrição ‘o grande matemático alemão queescreveu Grundlagen der Geometrie’, que descreve Hilbert. Suponhaentretanto que alguém descubra que não foi Hilbert quem escreveu osGrundlagen, mas outra pessoa. Neste caso, a descrição e o nome nãomencionariam o mesmo indivíduo. Logo, eles não têm a mesma funçãológica. Com efeito, tomemos a expressão ‘Hilbert = o grande mate-mático alemão que escreveu Grundlagen der Geometrie’. Neste caso,

2Isso se deve ao fato de que uma conjunção é falsa se um dos membros é falso (nocaso, M(x)).

Descrições Definidas 39

o nome ‘Hilbert’ é, como diz Russell, um objeto simples, significandoo indivíduo que nomeia (no caso, Hilbert), designando esse indivíduodiretamente. Quando as descrições são usadas como nomes, elas po-dem ser inter-substituídas de forma a se preservar as regras da lógicaclássica. No entanto, quando usadas não como nomes, mas como des-crições estrito senso, a história é outra. Para entender isso, lembremosque as propriedades fundamentais (postulados) da identidade (ou igual-dade, simbolizada por ‘=’), são os seguintes:

(Refl) (Lei Reflexiva da Identidade, ou Princípio da Identidade):∀x(x = x). Informalmente, ‘Todo objeto é idêntico a ele mesmo’.

(Subst) (Lei da Substitutividade, ou Princípio da Indiscernibilidadedos Idênticos), onde A(x) é uma fórmula que tem x como variávellivre, A(y) é a fórmula que resulta de A(x) pela substituição de x pory em algumas das ocorrências (livres) de x, sendo y uma variáveldistinta de x: ∀x∀y(x = y→ (A(x)→ A(y))).

Informalmente, Subst diz que ‘coisas iguais’ podem ser substituídasem qualquer contexto (aqui, fórmula) preservando-se a verdade (salvaveritate, como dizia Leibniz). A lei Subst é por muitos chamada deLei de Leibniz. Por exemplo, em 2+3=5, podemos substituir 2 por1+1 ‘salva veritate’, obtendo (1+1)+3=5. Será que isso vale quandohá descrições envolvidas? Para ver isso, vamos usar um exemplo dopróprio Russell.

Sabemos hoje que o novelista escocês Sir Walter Scott (também au-tor de Ivanhoé, Rob Roy e de uma vasta obra) era o autor das novelasWaverley, mas este fato não era conhecido à época em que George IVera o rei a Inglaterra (de 1820 a 1830). Então, se ‘Sir Walter’ e ‘Scott’(que são nomes da mesma pessoa) são usadas como nomes, isto é, fa-zendo referência direta ao célebre novelista escocês, a lei Subst podeser usada. Assim, usando a partícula ‘é‘ no sentido de identidade (maisabaixo veremos o seu uso como existência), então ‘Scott é Scott’ é amesma proposição que ‘Scott é Sir Walter’. Isso se deve ao fato deque os nomes, para Russell, denotam entidades existentes (em algummomento do espaço-tempo –assim, para ele, ‘Pégaso’ não é um nome

40 Tópicos em Ontologia Analítica

mas, como veremos, uma ‘descrição disfarçada’). Pensemos agora, naexpressão anterior, em considerar uma descrição no lugar de um nome.Assim, em uma expressão contendo uma descrição, se substituirmos umnome por uma descrição, mesmo que ela descreva o mesmo objeto no-meado (pelo nome), obtemos uma proposição diferente da original. Oexemplo de Russell é tomarmos ‘Scott é Scott’ e substituirmos a des-crição ‘o autor de Waverley’ na segunda ocorrência do nome, obtendo‘Scott é o autor de Waverley’, que não é equivalente à anterior, posto queagora a descrição, por hipótese, não está sendo usada como um nome deSir Walter, mas descrevendo o autor das famosas novelas. Com efeito,suponha que fosse descoberto que o autor de Waverley não é Scott, maso Sr. X (distinto de Scott). Neste caso, a segunda proposição seria falsa,ao passo que a primeira é, como diz Russell, um ‘truísmo trivial’. Comodiz o próprio Russell,

“Uma proposição contendo uma descrição não é idênticaao que aquela proposição se torna quando o nome é subs-tituído, até mesmo se o nome nomeia o mesmo objeto quea descrição descreve. ‘Scott é o autor de Waverley’ é, ob-viamente, uma proposição diferente de ‘Scott é Scott’: aprimeira é um fato na história literária e a segunda é umtruísmo trivial. E se colocarmos qualquer outro que nãoScott no lugar de ‘o autor de Waverley’, nossa proposi-ção se torna falsa, portanto, não mais sendo, certamente,a mesma proposição." (Russell 1974, pp.166-7)

Constatamos então que ‘Scott é Scott’ e ‘Scott é o autor de Waver-ley’ são proposições distintas não somente no seu aspecto sintático. Aprimeira é um fato lógico, ao passo que a segunda não é trivial, mas umadescoberta histórica (mais abaixo, voltaremos a essas questões). Rus-sell explicou este fato, e a maioria dos filósofos (mas não todos) aceitaa solução de Russell, que pode ser colocada na forma seguinte:

(1) Scott é Scott, e isso é um fato trivial.

(2) Scott é o autor de Waverley é um feito da história da literatura.

Descrições Definidas 41

(3) Se colocarmos qualquer outra pessoa no lugar de ‘o autor deWaverley’ na sentença (2), a proposição se torna falsa.

Assim, de x = x podemos inferir que Scott = Scott, mas em geralnão que o autor de Waverley = o autor de Waverley, porque a descri-ção pode não denotar (ao passo que um nome, para Russell, sempredenota). Note-se que aqui estamos usando a partícula ‘é’ como signi-ficando identidade. Assim, o postulado básico pode ser escrito assim,chamado de Axioma de Hilbert-Bernays:3

∃!xA(x)→ ( ιxA(x) = ιxA(x)), (3.3)

ou seja, ‘O autor de Waverley = o autor de Waverley’ pode ser inferidode x = x somente no caso em que a descrição denota (como é o caso).Por exemplo, na teoria de Russell não se segue de x = x que ‘O atual reida França é o atual rei da França’, que é uma proposição falsa. Ou seja,de x = x, que é uma verdade lógica (na lógica clássica), não podemosobter ‘o atual rei da França = o atual rei da França’, que é falsa, pois adescrição não denota.

Filósofos como Avrum Stroll acham que a caracterização de Rus-sell é restritiva, e que o mesmo pode ser colocado em termos de descri-ções somente. Assim, Stroll formula o seguinte contra-argumento, uma‘imagem especular’ do argumento de Russell, como chama ele (Stroll2000, cap.2):

(1) Que o autor de Waverley é o autor de Waverley é um fato óbvio.

(2) Que o autor de Waverley é o autor de Ivanhoé é um fato histórico.

(3) Se substituirmos ‘o autor de Ivanhoé’ por alguém diferente de oautor de Waverley na sentença (2), ela se torna falsa.

Isso mostra, segundo Stroll, que as mesmas distinções estabelecidasentre nomes e descrições valem entre as descrições unicamente. Deste

3Recordamos que a expressão ∃!xA(x) significa informalmente que há um único xque satisfaz A(x). A definição formal é a seguinte: ∃!xA(x) := ∃x(A(x) ∧ ∀y(A(y) →y = x)).

42 Tópicos em Ontologia Analítica

modo, se escrevemos ‘Scott é Sir Walter’ e se esses nomes são usadosno sentido descritivo, não para indicar diretamente um objeto, mas paradescrevê-lo, equivaleria à igualdade entre descrições "A pessoa cha-mada ‘Scott’ é a pessoa chamada ‘Sir Walter’". Neste caso, como asdescrições acima denotam, ou seja, a pessoa chamada ‘Scott’ (e ‘SirWalter’) de fato existe (no caso, existiu), parece natural aceitar que a leiSubst. seja válida.

Para uma análise mais correta, segundo Stroll, devemos nos voltarpara a distinção feita por Frege entre sentido e referência, da qual falare-mos abaixo. Mesmo que Russell possa ser criticado por questões comoessa (e há outras, levantadas por vários filósofos), há que se reconhecero grande avanço que sua teoria das descrições proporcionou ao estudodo tema. Vamos portanto prosseguir mais um pouco com ela.

3.2 Nomes como descrições abreviadasVoltemos à sentença ‘Hilbert é careca’. Para Russell, ‘Hilbert’ é umnome (próprio), pois denota um objeto (no caso, Hilbert). Na lingua-gem da lógica de predicados de primeira ordem, o que desempenha opapel de nomes são as constantes individuais. Coloquemos então emnossa linguagem a constante individual a e suponha que o predicadounário F represente a propriedade ‘ser careca’ em uma dada interpre-tação I. Então, ‘Hilbert é careca’ pode ser escrita como F(a). Assim,a sentença (fórmula sem variáveis livres) F(a) será verdadeira na nossainterpretação se e somente se há no subconjunto do domínio de nossainterpretação (que pode ser o conjunto das pessoas) e que corresponde àcoleção das pessoas carecas, um indivíduo denotado por a. Escrevemosisso assim, sendo I a interpretação, Ext(F) o subconjunto do domínioformado por aqueles indivíduos que têm a propriedade F e I(a) o objetodo domínio que é associado à constante individual a:

I |= F(a) see4 I(a) ∈ Ext(F). (3.4)

4Usamos "see" para abreviar "se e somente se".

Descrições Definidas 43

Figura 3.2: David Hilbert(1862-1943).

Isso mostra o comprometimento ‘exis-tencial’ do quantificador existencial (comoera supostamente de se esperar). A expres-são acima implica a seguinte

I |= ∃xF(x) see I(a) ∈ Ext(F), (3.5)

ou seja, ‘existe um objeto que é um F’ see somente se o subconjunto do domínio quecorresponde à extensão de F (o conjunto dosobjetos ‘que são F’) não é vazio.

Tomemos no entanto a expressão ‘Pé-gaso’. Podemos fazer com ‘Pégaso é o ca-valo alado de Belerofonte’ o mesmo que fizemos com ‘Hilbert é ca-reca’? Russell vai dizer que não. O motivo é que ‘Pégaso’ não denota,e portanto pode unicamente ser substituído por uma descrição, como‘o cavalo alado de Belerofonte’, sendo então um ‘nome disfarçado’ so-mente, uma descrição abreviada.

Claro que a teoria de Russell tem limitações, como foi reconhe-cido por vários filósofos posteriores, como Strawson, Kripke e outros,conforme veremos abaixo. Uma delas é a vagueza desse ‘critério deexistência’; ora, sabemos que o autor de Waverley existiu, mas não es-tamos certos a respeito de, por exemplo, Pitágoras. Segundo supomos,não existem cavalos alados, logo Pégaso não existe. Mas, o que dizerde certos objetos supostos pelas teorias físicas, como quarks, neutrinose outras (como cordas, membranas, etc.)? Essa questão não é simples, ea ela voltaremos mais à frente, no capítulo Ontologia e Física. Por ora,continuemos com a teoria de Russell.

3.3 Eliminação das descrições por definiçõescontextuais

Pensemos agora na sentença ‘O atual rei da França é careca’. Se acei-tarmos, como Russell, que os nomes próprios e as descrições são coisasdistintas, esta sentença, se estamos usando a lógica clássica, não pode

44 Tópicos em Ontologia Analítica

ser escrita na forma F(a). Isso se deve ao fato de que, para F(a) ser ver-dadeira, a extensão de F deve ser não vazia, ou seja, a constante a temque denotar (referir) a um indivíduo bem determinado nessa extensão.Em português, a sentença em questão pode ser escrita (segundo a aná-lise de Russell) como ‘existe uma pessoa e somente uma que é o atualrei da França e essa pessoa é careca’. Em notação simbólica, podemosescrever isso levando em conta as seguintes sentenças:

(a) ∃xR(x) que traduzimos por ‘existe ao menos um x que é o atualrei da França’

(b) ∀x∀y(R(x) ∧ R(y) → x = y) que diz que o atual rei da França éúnico (se houver dois, eles são iguais).5

(c) ∀x(R(x) → C(x)) qualquer que seja o indivíduo x que seja rei daFrança, ele é careca.

Lembremos agora que ‘x é o atual rei da França’ pode ser escritocom o descritor: ιxR(x), e portanto ‘o atual rei da França é careca’ ficaC( ιxR(x)). Por outro lado, as sentenças (a), (b) e (c) acima podem sersintetizadas em

∃x(R(x) ∧ ∀y(R(y)→ y = x) ∧C(x)), (3.6)

como você pode constatar com um pouco de boa vontade (para issoprecisa conhecer as regras da lógica clássica, claro). Esse é o modo peloqual Russell elimina a descrição ιxRx. é o que ele chama de definiçãocontextual, ou seja,

C( ιxR(x)) := ∃x(R(x) ∧ ∀y(R(y)→ y = x) ∧C(x)). (3.7)

Em síntese, em sua definição contextual, não é dito explicitamenteo que é o descritor, mas como ele deve ser usado em um certo contextoC. Desse modo, ‘O atual rei da França é careca’ torna-se ‘Existe umúnico objeto que é o atual rei da França e esse objeto é careca’. Escre-vendo as frases contendo descrições deste modo, uma sentença como ‘Oatual rei da França não existe’ torna-se simplesmente falsa (ver Exercí-cio abaixo).

5Isso pode ser abreviado assim: ∃!xRx, o quantificador ∃! sendo lido ‘existe umúnico’.

Descrições Definidas 45

3.4 Ocorrências de uma descriçãoNa linguagem de Russell, uma função proposicional é o que hoje cha-maríamos de uma fórmula com variáveis livres. Ela ‘se torna uma pro-posição’ (hoje, uma sentença que é verdadeira ou falsa) quando as variá-veis livres são substituídas por termos outros que variáveis individuais esem variáveis livres. Por exemplo uma expressão da forma F(x), com xlivre e F um predicado unário, torna-se uma proposição quando substi-tuímos x por um termo (como um nome) e é, então, verdadeira ou falsa.No dizer do próprio Russell [Ru.1974, cap.XV]: “Por ‘proposição’ que-remos dizer primariamente uma forma de palavras que expressa o queé ou verdadeiro ou falso", enquanto que “Uma ‘função proposicional’é, na verdade, uma expressão contendo um ou mais constituintes inde-terminados tais que, quando lhes são assinalados valores, a expressãose torna uma proposição. Em outras palavras, ela é uma função cujosvalores são proposições.” (Ibid., p. 149).

Russell dizia que os nomes próprios que aparecem em sentençascomo ‘Pégaso não existe’ são descrições disfarçadas, ou abreviadas.Assim, devemos substituí-lo pela descrição ‘o cavalo alado de Bele-rofonte’, e expresssar a proposição ‘o cavalo alado de Belerofonte nãoexiste’ da seguinte forma, onde A(x) significa ‘o cavalo alado de Bele-rofonte’, e E(x) significa ‘x existe’:

¬∃x(A(x) ∧ ∀y(A(y)→ y = x) ∧ E(x)). (3.8)

Neste caso, o que é negado não é algo (a existência) de um certoindivíduo, mas uma afirmativa acerca da existência de uma certa enti-dade no considerado domínio do discurso (o mundo, digamos), ou seja,estamos dizendo que é falso que no mundo exista um único indivíduoque é o cavalo alado de Belerofonte e o que quer que seja o cavalo aladode Belerofonte, esse indivíduo existe. Assim, a sentença (3.8) é verda-deira, porque ∃x(A(x)∧ ∀y(A(y)→ y = x)∧ E(x)) é falsa. (No entanto,estamos tratando a existência como um predicado, e isso não passarádesapercebido mais abaixo).

Um outro modo de simbolizar ‘o atual rei da França não existe’ seria

∃x(R(x) ∧ ∀y(R(y)→ y = x) ∧ ¬E(x)) (3.9)

46 Tópicos em Ontologia Analítica

que não é equivalente a (3.8), pois é simplesmente falsa, em virtudede que não há um atual rei da França, ao passo que (3.8) é verdadeira.Nesta última sentença, o que estamos negando é a existência (dada pelopredicado E). Assim, temos (3.8) e (3.9), que não se equivalem.

Com a teoria de Russell, nomes de entidades fictícias como ‘Pégaso’devem ser analisadas como ‘o único x que é um cavalo alado branco’,e assim nos livramos de ter que nomear entidades não existentes. Damesma forma, o mesmo ocorre com ‘círculo quadrado’, que se torna‘existe um único x que tem as propriedades de ser um círculo e serquadrado’, e portanto são simplesmente falsas. Desse modo, Russellelimina a pretensão de Meinong e a sua teoria. (Mais tarde, veremos queQuine aceitou que todo nome próprio, inclusive os que denotam, podemse tornar uma descrição, e então eliminados pelo método de Russell —na verdade, Quine elimina todos os chamados termos singulares).

Exercícios

1) Como você justifica o fato usado no texto acima de que ∃x¬R(x)e ¬∃xR(x) não são equivalentes? (Sugestão: ache um "modelinho"em que uma delas seja verdadeira e a outra falsa).

2) Distinga entre frases descritivas definidas e indefinidas.

3) Usando definição contextual, elimine a descrição em ‘o Saci Pe-rerê fuma cachimbo’.

4) Repita com ‘Sherlock Holmes morava em Baker Street’.

5) Idem para ‘Marte é o deus da guerra’.

6) A existência é uma propriedade da Rainha Elizabeth, como seringlesa e morar em Londres?

3.5 O mundo das ficçõesSeriam então criaturas como Pégaso, Sherlock Homes e o Saci Pe-rerê criaturas da ficção, que ‘existiriam’ unicamente nesses contextos?

Descrições Definidas 47

Se os enunciados acerca de objetos fictícios não têm valor-verdade, por-que esses objetos não existem, como podem ter sentido? Podemos sim-plesmente dizer que eles não têm critérios de aceitabilidade (por nós)e que asserção são distintas de suas condições de verdade. Mas, nestecaso, como saber se as leis da lógica clássica permanecem válidas? Comefeito, em um enunciado da forma A∨ B, se A e B não têm valor de ver-dade, como dizer que A ∨ B tem um? Da mesma forma, se A não temvalor de verdade, como pode ¬A ter um? Assim, alguns filósofos de-fendem que a lógica dos objetos fictícios deve ser não clássica (comocomentaremos mais à frente).

Um terceiro tipo de análise é possível. A expressão ‘denotar aquiloque não existe’ tem pelo menos dois sentidos: (1) significa não ter qual-quer referência e não denotar nada, e (2) denotar uma entidade não exis-tente. Se optarmos por (2), podemos relegar todo o discurso sobre en-tidades fictícias como dependentes de um operador ‘dentro da ficção’.Desse modo, podemos dizer (dentro da ficção): ‘O Saci Pererê é ummoleque que pula em uma perna só’. Esses enunciados podem entãoser verdadeiros ou falsos, mas somente ‘dentro da ficção’. Porém, se in-terpretarmos o mundo das ficções como sendo efetivamente um mundode entidades, voltamos a uma espécie de concepção meinonguiana. Amesma estratégia é adotada quanto aos objetos possíveis: dizemos quecertos enunciados são verdadeiros em certos mundos possíveis, mas nãoem outros, o que nos reporta a considerar as modalidades (necessário epossível) e a semântica dos mundos possíveis (de Saul Kripke). Porém,seria unicamente a referência a ‘em um mundo possível’ suficiente paranos fazer aceitar enunciados cujos sujeitos são unicamente possíveis?A semântica da lógica modal de Kripke fornece condições de verdadepara enunciados envolvendo as modalidades ‘necessário’ e ‘possível’,mas não resolve o problema ontológico acerca da natureza dos obje-tos possíveis. Mesmo quando filósofos como David Lewis (ver abaixo,seção 3.5.1) sustentam que existem os mundos possíveis contendo osobjetos possíveis e que eles são tão reais como é o mundo real relati-vamente aos objetos reais, mostra-se aí uma nova volta aos objetos nãoexistentes de Meinong. Precisamos, pois, aprofundar o nosso estudo.

48 Tópicos em Ontologia Analítica

3.5.1 O que existe?

Sem termos uma definição sensata do que significa ‘existir’, não pode-mos avançar muito na questão posta acima. Mas, temos uma tal defi-nição? O tema da ‘existência’ é bastante amplo na literatura filosófica(veja [Mi.2002]). Sem entrar nessa discussão, antecipamos algo doscapítulos que estão por vir, dizendo que, de um ponto de vista ‘analí-tico’, a questão da existência não pode ser posta sem que se considereuma lógica. Ou seja, dependendo da lógica utlizada, certas entidadespodem ‘existir’ em um certo sentido, e ‘não existir’ em outras. Porexemplo, o chamado conjunto de Russell, do qual falaremos no capítuloLógica e Ontologia, não ‘existe’ nas teorias usuais de conjuntos, su-postas consistentes, mas ‘existem’ em certas teorias paraconsistentes deconjuntos. Como não podemos dizer sem reservas o que é ‘real’ (comoveremos no capítulo Ontologia e Física), não teremos, aparentemente,critério melhor do que este para existir. Em resumo, uma saída algo in-gênua de dizer que ‘existe o que é real’ nos remete à suposta realidade,e veremos que não temos condições de afirmar que são ‘reais’ muitasdas entidades postuladas pelas teorias físicas atuais. Assim, ‘existir’fica necessariamente relativizado a um contexto, uma linguagem, e umalógica subjacente.

O realismo modal de Lewis Em um livro célebre intitulado On thePlurality of Worlds [Lw.1986], David Lewis (1941-2001) defendeu atese da pluralidade de mundos, que abreviadamente diz o seguinte. Onosso mundo (o mundo real) seria um dentre outros possíveis. ParaLewis, é possível haver um mundo no qual porcos voem e produzammel. Tais porcos existiriam, mas não no nosso mundo. Todos os ‘ou-tros’ mundos seriam tão reais para seus habitantes como o nosso mundoo é para nós. O fato de chamarmos o ‘nosso mundo’ de real é umfato meramente contingente, pois se habitássemos outro mundo, aqueleseria (para nós) o mundo real. Esses diversos mundos são espaço-temporalmente isolados, não havendo relações espaço-temporais quevigorem entre eles, que portanto não são afetados pelo que ocorre nosdemais mundos.

Descrições Definidas 49

O realismo de Lewis não é uma divagação tola, ainda que seja muitocontrovertido. Na verdade, uma das grandes virtudes de sua aborda-gem é permitir uma análise das chamadas modalidades, ou seja, ex-pressões como ‘possível’, ‘necessário’, ‘poderia’, ‘deve’, dentre outras,bem como dos denominados condicionais contrafactuais, a saber, ex-pressões da forma ‘Se p tivesse acontecido, então q teria sido o caso’.6

Com efeito, a sentença ‘Porcos produzem mel’ é falsa em nosso mundo,mas poderia ser verdadeira em um mundo possível. Lewis deu um trata-mento diferente aos ‘mundos possíveis’, uma ideia que parece remontara Leibniz, e que foi usada em lógica por Saul Kripke justamente parafundamentar uma semântica para as lógicas modais.

Figura 3.3: David Kel-logg Lewis(1941-2001).

Ainda sobre o realismo de Lewis, cabe ob-servar que recentemente alguns filósofos têm as-sociado essas ideias a uma das mais faladas in-terpretações da mecânica quântica, chamada deinterpretação dos muitos mundos (que remontaa 1957). A ideia geral é a seguinte.7

Um dos traços característicos mais relevan-tes da mecânica quântica, que a distingue subs-tancialmente da chamada física clássica, con-siste no fato de admitir que os sistemas físicos possam estar em su-perposição de estados, mesmo que estes sejam ‘contrários’ em um sen-tido.8 Representemos o estado de um sistema físico por uma funçãoque é "soma" (na verdade, uma combinação linear) de dois estados Ae B assim: E = A + B. A mecânica quântica convencional diz que,quando se faz uma medida de algum observável do sistema em tal es-tado, a função E ‘colapsa’ em um dos estados A ou B, digamos emA, e B simplesmente deixa de existir. O que a interpretação dos mui-tos mundos diz é que, pelo contrário, o estado B continua a existir em

6Uma discussão introdutória pode ser vista em [Ga.2008, cap.2].7Evidentemente, trata-se de uma simplificação exagerada; para detalhes, ver por

exemplo [Sau.et.al.2010].8Um dos exemplo mais significativos é o proposto por Schrödinger em 1935, co-

nhecido como o "problema do gato de Schrödinger", do qual falaremos no capítulosobre Ontologia e Física. Adiantamos que defendemos uma interpretação na qual‘gato vivo’ e ‘gato morto’ não são contraditórias, mas contrárias.

50 Tópicos em Ontologia Analítica

um universo paralelo, inacessível a partir do universo A, mas tão realquanto o estado descrito por A, o por assim dizer ‘nosso mundo’. Destemodo, a cada instante estariam sendo criados uma quantidade enormede mundos paralelos, todos eles ‘reais’.

Pode parecer estranho, mas esta interpretação tem trazido bons fru-tos à filosofia da física, pelo menos na visão de seus defensores, comose vê no mencionado livro [Sau.et.al.2010].

Exercícios

1) Escreva R(x) para ‘x é o atual rei da França’ e C(x) para ‘x écareca’ e simbolize adequadamente a frase ‘Existe um único objetoque é o atual rei da França e esse é careca’ na linguagem do cálculode predicados de primeira ordem com igualdade.

2) Repita, escolhendo predicados adequados, com ‘Pégaso é um ca-valo alado’, e ‘O Saci Pererê tem uma perna só’.

3) Explique, depois de simbolizar adequadamente, porque ‘O atualrei da França não existe’ é falsa na teoria de Russell. —

4) Justifique porque ¬∃!x(R(x) ∧C(x)) é verdadeiro, como indicadono texto acima.

5) Justifique, com base no texto, porque podemos dizer que nomesde entidades fictícias como ‘Pégaso’ devem ser analisadas como ‘oúnico x que é um cavalo alado branco’, e assim nos livramos de terque nomear entidades não existentes.

6) Explique como Russell elimina a teoria de Meinong.

7) Em que sentido você pode dizer que o Saci Pererê existe sem secomprometer com que a pessoa que ouve possa assumir que ele andapulando por aí?

8) Justifique porque se há mais de um objeto, ou se não há nenhumobjeto satisfazendo uma descrição definida, na teoria de Russell elaé falsa.

Descrições Definidas 51

9) O que você acha que Russell queria dizer quando afirmou que‘denoting phrases have no meaning in isolation.’ [‘frases denotativasnão têm significado quando isoladas’]?

10) Explique porque uma proposição contendo uma descrição nãoé idêntica ao que se torna quando a descrição é substituída por umnome, mesmo que o nome nomeie o mesmo objeto que a descriçãodescreve. Dê um exemplo.

11) Dê exemplos de proposições contendo nomes sendo usados comonomes, e de proposições contendo nomes sendo usados como descri-ções.

3.6 As críticas de Strawson a RussellNa lógica aristotélica, sempre se pode passar de uma proposição cate-górica universal afirmativa (A) para uma particular afirmativa (I) porsubalternação: de ‘Todo S é P’ (como ‘Todo homem é mortal’) , po-demos inferir licitamente que ‘Algum S é P’ (ou seja, ‘Algum homemé mortal’). Assim, se (A) é verdadeira, também o será a (I) correspon-dente. No entanto, se usarmos o simbolismo da lógica atual, escrevemos(A) assim

∀x(S x→ Px) (3.10)

enquanto que a (I) correspondente torna-se

∃x(S x ∧ Px). (3.11)

Ora, a lógica atual não tem a restrição da lógica tradicional de quetodos os termos gerais (como ‘homem’, ‘mortal’) devam ser não vazios(isto é, correspondam à existência de pelo menos um homem e de pelomenos um mortal). Nas sentenças (3.10) e (3.11), o termo geral ‘ho-mem’ deixou de ser o sujeito gramatical das frases, passando a fazerparte de um seus dos predicados. Como os predicados S e P podem teragora extensões vazias (ou seja, não haver qualquer x que seja um S ouum P), nada mais resta das frases denotativas aristotélicas (que semprese referiam a alguma coisa ‘existente’).

52 Tópicos em Ontologia Analítica

Figura 3.4: Peter Strawson.

Desse modo, se não há homens (senão há x tal que S x), então (3.10) é ver-dadeira (o antecedente do condicional éfalso), mas (3.11) é falsa (pois é umaconjunção de duas sentenças, uma dasquais é falsa). Disso resulta que a in-ferência de (3.10) para (3.11), na lógicaclássica, não é lícita.

A transformação das frases denotati-vas (A) e (I) aristotélicas em sentençasda linguagem lógica atual (3.10) e (3.11)respectivamente são, para Strawson, umdos motivos de discórdia, pois de acordocom a lógica clássica, toda sentença, como (3.10) e (3.11), deve ser ouverdadeira ou falsa, e para ele este é o erro que está sendo suposto. Ve-jamos um outro exemplo. Essas considerações têm interesse em váriosdomínios, como por exemplo quando consideramos leis físicas.

Com efeito, considere a Lei da Inércia, um dos postulados da me-cânica newtoniana (chamada Primeira Lei de Newton): Todo corpo quenão sofre a ação de forças externas acha-se em repouso ou em movi-mento retilíneo uniforme (MRU). Segundo a lógica aristotélica, pode-mos dizer que se trata de uma proposição da forma universal afirmativa(A). Se colocada na notação russelliana (da lógica usual), admitirá umaparticular afirmativa (I) correspondente que será falsa porque no uni-verso não existem corpos que não estejam sob a ação de forças exter-nas. Assim, podemos raciocinar, como o antecedente da Lei de Inércia éfalso, a inexistência de tais corpos seria uma garantia para a veracidadeda lei física!

Qual o problema com isso? Trata-se do fato de que poderíamos,como diz Simpson [Si.1976, p.179], formular a seguinte ‘lei física’:Todo corpo celeste dirigido por um demônio realiza uma órbita qua-drada, que pelos mesmos motivos seria verdadeira! O que se faz usu-almente é subentender que leis como a da inércia são condicionais noseguinte sentido: se existirem corpos que não estejam sujeitos a for-ças externas, então eles estarão em repouso ou em movimento retilíneo

Descrições Definidas 53

uniforme. De tais hipóteses, tiram-se consequências fantásticas, comoa física deixa transparecer. Mas o problema filosófico não acaba e anotação lógica utilizada, deveras importante, ainda nos traz dissabores.Com efeito, na lógica aristotélica, há ainda a chamada conversão poracidente: de ‘Todo homem é mortal’, podemos inferir que ‘Algum mor-tal é homem’ (passa-se de uma universal afirmativa para uma particularafirmativa trocando-se sujeito e predicado).

Neste caso, a questão torna-se complicada se tomarmos a proposi-ção ‘Todas as montanhas de ouro são montanhas’, que é analiticamenteverdadeira. Por acidente, obtemos ‘Algumas montanhas são montanhasde ouro’, que é falsa. Isso nos reporta ao problema do importe existen-cial; uma sentença da forma ‘Todo S é P’ apresenta importe existen-cial quando parece envolver a informação implícita de que existem S s.Neste caso, a inferência

Todo S é P. (A)(Hipótese) Existem S s(Conclusão) Alguns S são P (I).

é lícita no âmbito da lógical clássica, pois ∀x(S x → Px), ∃xS x `∃x(S x ∧ Px), ao passo que ∀x(S x → Px) pode ser verdadeira (casonão existam S s), sem que ∃x(S x ∧ Px) o seja.

Essa aparente discrepância entre a linguagem natural e as regras dalógica clássica está, no dizer de Strawson, em se supor (como assume alógica tradicional) que as sentenças têm sempre que ser verdadeiras oufalsas. Ou seja, somos impelidos, na linguagem natural e em seu uso,a procurar sempre a condição semântica das sentenças das quais faze-mos uso. Nisso Strawson concorda com Frege em que a veracidade oua falsidade de uma sentença não é condição necessária para sua signifi-catividade, pois a questão da veracidade não se coloca nesses casos. Senão há entidades que sejam filhos de Paulo, a sentença ‘Todos os filhosde Paulo dormem’ não é nem verdadeira e nem falsa. Para Strawson,há que se fazer uma distinção entre sentença (‘sentence’) e enunciado(‘statement’). Ao final, voltaremos a este ponto mostrando que essadiscussão é facilmente inteligível se fizermos a distinção entre sintaxe esemântica de uma linguagem.

54 Tópicos em Ontologia Analítica

Strawson distingue entre sentenças e enunciados. Para ele, a ver-dade e a falsidade são propriedades de enunciados, e não de sentenças.Qual a diferença? Uma sentença é uma coleção (o matemático diriainformalmente que é uma classe de equivalência) de marcas no papel,cada uma delas sendo uma instância da sentença, que é um objeto abs-trato. Uma sentença não é verdadeira e nem falsa, mas quando ela éusada em um determinado contexto, ela pode referir-se por exemplo acertos indivíduos, e então sim poderá ser dita ser verdadeira ou falsa.Deste modo, a veracidade ou falsidade de uma sentença depende docontexto (como diremos segundo a lógica atual, ‘depende da interpre-tação’). Ou seja, uma sentença pode ter um significado, que não deveser confundido com a sentença ela mesma. O problema é que os termos‘sentença’ e ‘enunciado’ não estão definidos de modo preciso.

Como se pode perceber, a discussão não se encerra com as discus-sões apontadas superficialmente acima. O assunto ainda é candente naliteratura filosófica, tendo valor por si só. Porém, dado o caráter introdu-tório dessas notas, achamos por bem encerrar a discussão neste ponto,deixando algum espaço para outros detalhes não vistos com frequêncianos textos usuais de filosofia, como o da seção seguinte.

3.7 Lógica elementar com o descritorNesta última seção, veremos de que modo podemos formalizar a lógicaelementar (de primeira ordem) clássica com igualdade de forma a incor-porar um símbolo adicional, o descritor ι, ainda que não estudemos aquiesta lógica. Denotaremos por L ιuma linguagem contendo os seguintessímbolos primitivos:

1. Os conectivos sentenciais usuais (um conjunto completo)

2. Quantificadores (um deles, o outro sendo definido a partir deste).

3. Variáveis individuais: uma coleção enumerável.

4. Constantes individuais: uma coleção qualquer.

Descrições Definidas 55

5. Símbolos para predicados: para cada natural n > 0, uma coleçãonão vazia de símbolos de predicados de peso n.

6. O símbolo de igualdade.

7. O símbolo de descrições: ι

8. Símbolos auxiliares: parênteses.

Todas as convenções sintáticas são as usuais, que podem ser vistasem qualquer livro de lógica elementar, com o adendo de que, se A(x) éuma fórmula na qual a variável x figure livre, então a expressão ιxA(x)é um termo no qual a variável x é ligada. Os postulados de nossa lógicasão os da lógica elementar clássica com igualdade, aos quais adiciona-mos os seguintes postulados para o descritor:9

( ι1) ιxA(x) = ιyA(y)

( ι2) ∀x(A(x)↔ B(x))→ ιxA(x) = ιxB(x))

( ι3) ∃!xA(x)→ ∀x(x = ιxA(x)↔ A(x))

Quanto à semântica, ela procede assim: se existe um único objetoque satisfaz A(x), então o termo ιxA(x) denota esse objeto. Caso nãohaja nenhum ou haja mais de um, diremos que ιxA(x) é destituído designificado, e assim as expressões contendo o referido termo não serãonem verdadeiras e nem falsas (id.ibid.).

Vê-se que a lógiva do descritor (na acepção de Russell, ao menos)assim como a sua eliminação contextual, depende essencialmente daidentidade. Ao final (cap. 7), falaremos de um contexto na qual esteimportante conceito pode ser questionado, e então as descrições nessedomínio adquirirão um sentido novo, ainda a ser explorado.

9Cf. [Co.1980, p.138].

56 Tópicos em Ontologia Analítica

3.7.1 O ε de Hilbert

A partir do descritor, podemos definir um outro v.b.t.o. importante, ochamado epsilon de Hilbert, denotado por ε. Este símbolo pode serpensado como útil para formalizar a noção de descrição indefinida, damesma forma como usamos ιpara tratar das descrições definidas. Ana-logamente ao caso do descritor, uma expressão da forma εxA(x) é tam-bém um termo, no qual a variável x, que era livre em A(x), é agora ligadaem εxA(x). Semanticamente, εxA(x) denota um dos objetos que satifa-zem A(x), e permite-se que possam haver vários. Em outras palavras, orequisito da unicidade que havia com ιfoi deixado de lado.

Uma lógica elementar com o símbolo de Hilbert tem a linguagemda lógica quantificacional clássica de primeira ordem com igualdade,como acima, mais um símbolo primitivo ε, e postula-se que se A(x) éuma fórmula na qual a variável x ocorre livre, então εxA(x) é um termono qual x é ligada. Os postulados correspondentes a ε são:

(ε1) A(x)→ A(εxA(x)) (axioma de Hilbert)

(ε2) ∀x(A(x)↔ B(x))→ εxA(x) = εxB(x))

Em uma lógica com ε, não necessitamos de quantificadores, poisesses podem ser introduzidos por definição, como segue (esta foi a mo-tiviação de Hilbert para introduzir o ε), das quais os postulados usuaisda lógica quantificacional clássica podem ser derivados como teoremas:

Definition 3.7.1 Na lógicaM, pode-se definir os quantificadores exis-tencial e universal, bem como o descritor:

(∃) ∃xA(x) := A(εxA(x))

(∀) ∀xA(x) := A(εx¬A(x))

( ι) ιxA(x) := εx(∃!xA(x) ∧ A(x))10

10Claro que ∃!xA(x) abrevia ∃x(A(x) ∧ ∀y(A(y)→ y = x)).

Descrições Definidas 57

A recíproca, no entanto, não é verdadeira, ou seja, ainda que a ló-gica elementar clássica esteja ‘imbutida’ na lógica com ε, nem todas asexpressões contendo ε encontram correspondente na lógica usual (semo ε). Ou seja, a lógica com ε é estritamente mais forte do que a lógicaelementar clássica. Uma consequência importante de se adotar ε é quepor seu intermédio podemos derivar uma proposição equivalente ao axi-oma da escolha em teoria de conjuntos. Este importante fato pode serdescrito suscintamente como segue (ver também a seção 5.8).

Em uma de suas formulações, o axioma da escolha diz que, dadauma coleção Aii∈I de conjuntos não vazios e dois a dois disjuntos,existe um operador (uma ‘função escolha’) que seleciona um e somenteum elemento de cada um dos conjuntos da coleção, de modo a formarcom eles um novo conjunto, o conjunto escolha. Seria como se tivésse-mos um hotel completamente lotado e fossemos formando em volta dapiscina uma coleção de pessoas contendo uma pessoa de cada quarto.Essa possibilidade é bastante intuitiva e é um teorema das teorias usu-ais de conjuntos em caso da coleção ser finita (como no caso do ho-tel). Porém, se a coleção Aii∈I contém infinitos elementos, sabe-se quenão se pode demonstrar a existência do conjunto escolha (na verdade,esse resultado é independente dos demais axiomas das teorias usuais deconjuntos, supostos consistentes). O axioma da escolha tem inúmerasaplicações em matemática. Em resumo, o axioma da escolha pode serdemonstrado em um sistema conveniente fundado em uma lógica comε (este foi o modo como Bourbaki originalmente apresentou a teoria deconjuntos, somente que usando o símbolo τ no lugar de ε [Bo.1968]).

O ε funciona como o operador escolha mencionado acima. Comefeito, podemos entender εxAi(x) como representando um elemento ar-bitrário de Ai da coleção acima. Este conceito pode ser deixado pre-ciso com um pouco de tecnicidade (o interessado pode ver [Kn.1963,p.101]).

Relativamente à ontologia, uma vez que o uso do símbolo de Hilbertimplica o axioma da escolha, no sentido apontado acima, em uma teoriaque o admita em sua linguagem teremos restrições quanto à existênciade conjuntos que podem ser provados ‘existir’ em uma matemática quenão suponha tal axioma, como veremos no capítulo 5. Ou seja, onto-

58 Tópicos em Ontologia Analítica

logia, de certo modo, depende da lógica. Isso, esperamos, ficará claromais à frente.

3.7.2 Uma lógica meinonguianaEm [Co&Do&Pa.1991], da Costa, Doria e Papavero propuseram umaformalização da teoria dos objetos de Meinong com o auxílio do ε deHilbert e de uma lógica paraconsistente. Sua ideia é a de que por meiode uma lógica que possa admitir contradições (as lógicas paraconsisten-tes foram desenhadas para tanto), possa-se contornar o obstáculo de queentidades, como o quadrado redondo, são entidades contraditórias.

Explorar a ontologia meinonguiana à luz de uma lógica não-clássicaé algo de fato interessante, pois deste modo pode-se talvez assumir queentidades contraditórias possam de fato ‘existir’ (serem valores das va-riáveis da linguagem em questão). Porém, como salientamos acima,talvez o mais interessante seja não ver os objetos meinonguianos, comoo quadrado redondo, como contraditórios, mas como ‘contrários’, emsentido já discutido antes. No entanto, não entraremos nesses pormeno-res a este respeito.

Exercícios

1. Escreva a Lei da Inércia (página 52) nas formas (A) e indique acorrespondente (I) conforme a notação lógica atual.

2. Você concordaria com as críticas de Strawson a Russell? Saberiacomo justificar sua resposta?

3. Explore com mais detalhes a semântica indicada para a lógicacom o descritor.

4. Foi afirmado no texto que a ontologia depende da lógica. Vocêverá mais sobre isso à frente, mas tem alguma coisa a dizer sobreisso desde já?

Capítulo 4

Ser é ser o valor de umavariável

Ofilosofo brasileiro Oswaldo Chateaubriand Filho, em um ar-tigo denominado ‘Quine and ontology’ [Ch.2003], comentaquais seriam os três principais temas da obra de Quine rela-tivamente à ontologia. Seriam eles:

1. O comprometimento ontológico (ou ‘compromisso ontológico’,como preferem alguns)

2. A redução ontológica, e

3. O critério de identidade.

Analisar os três pontos indicados por Chateaubriand é uma exce-lente maneira de se focar a obra de Willard van Orman Quine (1908-2000) relativa à ontologia. Quine foi um dos principais filósofos do sé-culo XX, e suas ideias importam para qualquer discussão em ontologia,sendo especialmente importante para a filosofia analítica contemporâ-nea.

Vamos dedicar este capítulo a aspectos das ideias de Quine, visandoem especial explicar a sua máxima "ser é ser o valor de uma variável”,que resume o seu critério de comprometimento ontológico de uma teo-ria, bem como do contexto no qual ela se insere. Ao final, falamos dos

60 Tópicos em Ontologia Analítica

outros pontos mencionados acima bem como de outras questões que nosparecem relacionadas.

Figura 4.1: Oswaldo Chateubri-and Filho, filósofo brasileiro.

Tendo em vista o caráter introdutó-rio destas notas, não faremos uma inves-tigação exegética, limitando-nos a abor-dar o tema de forma expositiva e, muitasvezes, informal. As nossas referências,no entanto, contêm indicações de obrasnas quais o leitor pode aprofundar os es-tudos. Um excelente livro de apoio, doqual muito nos valeremos, é o de Orens-tein [Or.2002] (o leitor pode também ver[De.2002]).

4.1 Comprometimento ontológico

É importante retomar brevemente aqui um assunto já discutido no capí-tulo primeiro sobre o uso da palavra ‘ontologia’. Vimos naquela opor-tunidade que, conforme a tradição, este termo designa uma disciplinaque se ocupa do estudo daquilo que há, e nesse sentido não há sentidoem se falar em diferentes ontologias ou, como diremos mais abaixo, nocomprometimento ontológico de um determinado discurso. Com efeito,nessa ótica, há o que há, e se devemos nos ocupar daquilo que há, nãopodemos ser parciais ou interpretativos. No entanto, modernamente apalavra ‘ontologia’ tem sido usada em sentido diverso, o que pode des-gostar alguns filófosos tradicionais, em especial se esses tiverem afini-dade com Aristóteles. Hoje é comum falarmos em ‘ontologia associadaa uma teoria’, como ‘ontologia de uma mecânica quântica’, ou ‘onto-logia de uma teoria de conjuntos’, ainda que seja difícil caracterizá-la.Veremos nos capítulos à frente que a ontologia, assim entendida, ficadependente de várias coisas, como de uma determinada lógica. Por ora,basta que entandamos o sentido em que a palavra vai ser usada dora-vante.

A primeira questão proposta por Chateaubriand trata de saber o que,

Ser é ser o valor de uma variável 61

em um determinado discurso, revela um comprometimento ontológico.Ou, como sugere Orenstein, o que (que tipo de discurso) expressa umaontologia. A resposta de Quine é breve: dizeres de existência podem serconstruídos em uma linguagem quantificacional adequada (ele se refe-ria a uma linguagem ‘regimentada’), na qual os quantificadores, como‘existe’, devem ser vistos como predicados fictícios. Explicar isso, noentanto, demandará algum esforço, e necessitaremos fazer uma digres-são aos ditames da lógica tradicional, mas a compensação final serácertamente apreciada.

Figura 4.2: Willard van OrmanQuine.

O problema começa com o uso quefazemos dos nomes próprios como ‘Só-crates’, ‘Pégaso’, bem como dos nomescomuns, ou termos gerais, como ‘filó-sofo’ e ‘alado’. O uso de termos ge-rais, e de variáveis para designá-los, éuma das grandes realizações de Aristó-teles. Na lógica tradicional (aristotélica),as proposições categóricas, ou seja, ex-pressões exprimindo fatos, são de quatrotipos, denotados pelas respectivamente

pelas letras A, E, I e O, onde S é o ‘termo sujeito’ e P é o ‘termopredicado’:

(A) (Universal Afirmativa): Todo S é P(E) (Universal Negativa): Nenhum S é P(I) (Particular Afirmativa): Algum S é P(O) (Particular Negativa): Algum S não é P

As letras A, E, I e O vêm das expressões latinas AffIrmo, e NegO(obviamente essa terminologia não se deve a Aristóteles, mas aos es-tudiosos medievais). Em todas elas, são empregados termos gerais noslugares do sujeito ‘S’ e do predicado ‘P’, como ‘filósofo’ ou ‘brasileiro’.Importante salientar que, na lógica tradicional, todos esses termos de-vem denotar ou, como diríamos hoje, suas extensões não podem ser va-zias, o que não é exigido na lógica moderna (e que constitui em grandeavanço, como veremos). As inferências realizadas utilizando-se esses

62 Tópicos em Ontologia Analítica

tipos de proposições foram codificadas por Aristóteles em sua teoria dosilogismo categórico, que vigorou como sinônimo de ‘lógica’ pratica-mente até meados do século XIX, mas não é nosso assunto discuti-laaqui. Importa salientar que, nessa tradição, admite-se que as sentençasafirmativas têm conotação existencial; se uma sentença da forma A ouda forma I é verdadeira, então o sujeito da proposição (o referente dotermo S) existe, e ela é falsa em caso contrário (quando da não exis-tência). Na lógica tradicional expressões da forma ‘Maria é bonita’ ouentão ‘Maria é mais alta que Joana’ devem ser entendidas no sentidode se atribuir uma característica a um sujeito. Todas as proposiçõessão da forma ‘Sujeito–cópula–Predicado’; no nosso primeiro exemplo,‘Maria’ é o sujeito, ‘é’ é a cópula, e ‘bonita’ o predicado. No segundocaso, o sujeito e a cópula são como anteriormente, e o predicado é ‘[ser]mais alta que Joana’. Um dos grandes avanços da lógica moderna foiextrapolar essa limitação; no primeiro caso, o predicado passa a ser ‘éhumano’, e no segundo entra em cena uma relação binária ‘. . . é maisalta que . . .’, que tem dois indivíduos como argumentos. Na linguagemda lógica de predicados atual, escrevemos B(m) para o primeiro caso,onde ‘m’ denota Maria e ‘B’ o predicado ‘bonita’, enquanto que o se-gundo exemplo torna-se ‘A(m, j)’, sendo que ‘A’ representa a relaçãobinária mencionada, e respectivamente m e j são constantes individuaisde denotam Maria e Joana respectivamente. No final do século XIX,entra em cena a lógica quantificacional pelas mãos de Gottlob Frege(1848-1925) e Charles Sanders Peirce (1839-1914).

Com os quantificadores, a partir de B(m) podemos obter ‘x é bonita’,ou B(x), fazendo uso de uma variável x, que supostamente percorre umdomínio de indivíduos, e então, fazendo uso de um dos princípios bási-cos da lógica clássica, chamado de Generalização Existencial, obtemosB(m)→ ∃xB(x). Assim, se B(m) é o verdadeiro, derivamos (por ModusPonens) ∃xB(x), ou seja, que há pessoas bonitas. Isso não está dizendoque Maria existe, mas que o domínio da interpretação contém pelo me-nos um indivíduo que cai sob o conceito ‘bonita’ (mais tecnicamente, aextensão do predicado B, que é um conjunto) não é vazio. Se Maria nãoé bonita, ou seja, de ¬B(m) for o caso, o condicional B(m) → ∃xB(x)é trivialmente (o matemático diria ‘vacuamente’) verdadeiro, mas nada

Ser é ser o valor de uma variável 63

se infere acerca de existências.No entanto, se B(m) (for verdadeiro), então, como mostrado acima,

inferimos ∃xB(x), o que nos compromete com coleções, ou conjuntos(no caso, de pessoas bonitas), como evidenciaremos à frente quandofalarmos da redução ontológica. Se B(m), então Maria pertence a esseconjunto.

Perceba a diferença para com a lógica tradicional. Quine dizia que“o idioma quantificacional é o idioma ontológico por excelência”; a lin-guagem e a lógica dos quantificadores, que permite que explicitemosexpressões como ∃xB(x), permite que tornemos explícitas nossas hipó-teses ontológicas. Por exemplo, se esta expressão é verdadeira, estamosnos comprometendo com a existência de (conjuntos de) indivíduos bo-nitos. Para vermos isso como maior clareza, voltemos um pouco. Quineiniciou suas digressões sobre esse assunto a partir do papel desempe-nhado pelos nomes próprios, que assumiu servirem de alicerce para osignificado ontológico de um discurso. Do que se disse acima, do fatode Maria ser bonita, aparentemente estamos nos comprometendo on-tologicamente com (pelo menos) um indivíduo bonito. Mas, além dosnomes, há o que Quine chamava de “expressões sincategoremáticas”(syncategorematic expressions), os não-nomes, como ‘redondeza’ ou‘filósofo’. Será que quando dizemos que círculos são redondos, esta-mos nos comprometendo com a existência de uma entidade, que pode-mos chamar ‘redondeza’? Essa questão remonta à antiguidade, e foimuito debatida na Idade Média; trata-se do ‘problema dos universais’,mas não trataremos dele aqui (veja [Kli.2013]).

A resposta de Quine a essa questão é dada também pela lingua-gem quantificacional. Se assumimos que ‘redondeza’ é um nome de-signando uma entidade (por exemplo, um círculo, da mesma forma que‘bonita’ designa, em particular, Maria) então, aplicando o procedimentoanterior, chegamos a ‘∃x(x é uma propriedade de círculos)’, o que noscompromete ontologicamente com pelo menos uma entidade abstrata,o universal ‘redondeza’. Dito em outros termos, existem aquelas enti-dades para as quais estejamos dispostos a fazer valerem leis usuais dalógica quantificacional. O que passa a importar é um certo lugar nas ex-pressões que podem ser substituídos por variáveis que percorrem certos

64 Tópicos em Ontologia Analítica

domínios. Como disse Quine,

“em vez de descrever nomes como expressões com respeitoàs quais a generalização existencial é válida, podemos equi-valentemente omitir menção expressa à generalização exis-tencial e descrever os nomes simplesmente como as expres-sões constantes que substituem as variáveis e que são subs-tituídas por variáveis de acordo com as regras usuais daquantificação.” (Quine, em ‘Designação e existência’, ci-tado por [Or.2002, p.25]).

As variáveis passam a desempenhar um papel preponderante no es-quema quiniano. Ele continua a citação acima:

“Uma variável é usualmente pensada como associada a umdomínio de entidades, o assim chamado domínio dos valo-res das variáveis. O domínio dos valores não deve ser con-fundido com o domínio dos substituendos (substituends).Os nomes são substituendos; as entidades nomeadas são osvalores. Os numerais, nomes dos números, são substituen-dos para as variáveis da aritmética; os valores dessas variá-veis, por outro lado, são números. As variáveis podem sersuperficialmente pensadas como nomes ambíguos de seusvalores. Esta noção de nomes ambíguos não é tão misteri-osa como primeiramente parece, porque é essencialmentea noção de um pronome; uma variável ‘x’ é um pronomerelativo usado em conexão com um quantificador ‘(x)’ ou‘(∃x)’.1

“Aqui há, então, cinco modos de dizer a mesma coisa: ‘Háuma coisa como apendicite’, ‘A palavra “apendicite” de-signa’, ‘A palavra “apendicite” é um nome’, ‘A palavra“apendicite” é o substituinte de uma variável’, ‘A doença

1[Escrever ‘(x)’ é um modo alternativo e bastante comum de expressar a quantifi-cação universal ∀x].

Ser é ser o valor de uma variável 65

apendicite é o valor de uma variável’. O universo das en-tidades é o domínio dos valores das variáveis. Ser é ser ovalor de uma variável.” (ibidem)

Assim, para ele, existem aquelas entidades que podem ser os valoresdas variáveis nas sentenças quantificadas, de modo que as instanciaçõesdessas variáveis pelos momes dessas entidades tornem as referidas sen-tenças verdadeiras. Falaremos mais sobre isso abaixo, com mais deta-lhes.

E se não há variáveis? Uma questão ao critério quiniano poderia sercolocada da seguinte forma. Se existe aquilo que pode ser valor de umavariável, como podemos adotar esse critério se a linguagem de umacerta teoria não dispõe de variáveis? Este é o caso, por exemplo, daversão da teoria Zermelo-Fraenkel (que vermos na seção 5.8) apresen-tada por Nicolas Bourbaki [Bo.1968], ou então pela teoria de conjuntosdestituída de variáveis de Tarski [Tar.Giv.]. Não importa aqui revisarcomo Bourbaki ou Tarski apresentam suas teorias, o que nos distanci-aria de nossos objetivos. Mas, aceitando que isso é possível, podemossimplesmente dizer que o critério de comprometimento ontológico deQuine diz respeito linguagens devidamente ‘regimentadas’, sendo a lin-guagem quantificacional o ‘idioma ontológico por excelência’, comojá tivemos chance de ver acima. Na sua abordagem, isso certamenteenvolveria variáveis, dada a consideração que Quine fazia para com alógica, entendendo-a como a lógica elementar sem identidade com umnúmero finito de predicados. A linguagem dessa lógica, é de se esperar,conteria variáveis individuais, que poderiam ser introduzidas, e assim oseu critério não padeceria dessa crítica.

Há no entanto outras objeções, algumas das quais mencionaremosmais à frente, no capítulo 5.

Interpretações dos quantificadores A ênfase na distinção entre os‘substituendos’ e os ‘valores das variáveis’ tem a ver com as interpreta-ções mais comuns que se dão aos quantificadores, a objectual e a subs-titucional. De acordo com a interpretação objectual, que Quine preferia

66 Tópicos em Ontologia Analítica

[De.2002, p.24], um quantificador é interpretado em termos dos valoresda variável que nele ocorre, ou seja, dos objetos (em um certo domínio)que a variável percorre.

Assim, ∀xF(x) significa "para todos os objetos x do domínio, F(x)".A interpretação substitucional, por outro lado, apela aos substituendos,para aquilo que pode entrar no lugar de x, e não para os valores das va-riáveis propriamente (os objetos). Deste modo, ∀xF(x) significa "todasas instâncias substitucionais de x em F(x) são verdadeiras".

A interpretação substitucional, ainda que preferida por alguns filó-sofos, apresenta problemas quando o domínio não é enumerável (nãopermite uma bijeção com o conjunto dos números naturais), pois nes-ses casos, as linguagens ‘regimentadas’ usuais, que são enumeráveis,não conterão nomes em quantidade suficiente para todas as substitui-ções. Como os domínios infinitos não enumeráveis (como o conjuntodos números reais) são fundamentais em matemática, a interpretaçãoobjectual é mais afeita às necessidades matemáticas. Para Quine, o quepode ser valor de uma variável é o objeto, e não o seu nome. Insistamosum pouco mais neste ponto.

A frase ‘ser é ser o valor de uma variável’, como dissemos, centra-liza a concepção ontológica quiniana. Repare que com isso Quine nãoestá asseverando o que há, mas o que pode ser admitido existir: aquiloque pode ser o valor de uma variável de uma adequada linguagem. Noentanto, Quine moveu-se acerca do que podia ser associado aos valoresdas variáveis. Inicialmente, admitiu o ato de nomear, ou designar (inter-pretação substitucional dos quantificadores). Posteriormente, percebeuque a predicação é mais fundamental que o nomear. Como disse,

“Um outro modo de dizer que objetos uma teoria requer édizer que são os objetos acerca dos quais alguns dos predi-cados da teoria tenham que ser verdadeiros a fim de que ateoria seja verdadeira. Mas isso é o mesmo que dizer quesão os objetos que têm que ser valores das variáveis paraque a teoria seja verdadeira.” (in [Qu.1980])

Orenstein discute dois motivos para essa mudança de estratégia deQuine. Primeiramente, como dissemos acima, teria percebido ele que

Ser é ser o valor de uma variável 67

há domínios, como o conjunto dos números reais que, nas linguagensregimentadas usuais, não admitem nomes para todos os seus elemen-tos.2 É fato que, nas linguagens do tipo que Quine considera, podemosdar um nome para um número real qualquer isoladamente, mas não po-demos elaborar uma lista de nomes para todos eles, como demonstrouGeorg Cantor (1845-1918), o criador da teoria de conjuntos: o con-junto dos números reais não é enumerável. Fatos como este fizeramQuine optar pela predicação como básica para nos referirmos às coisasdo mundo. Outro motivo para essa alteração de ênfase no que é a basede uma ontologia, está no fato de que nomes e outros termos singularespodem ser dispensados, ou seja, não necessitam fazer parte da nota-ção canônica básica. Usando a teoria das descrições de Russell, Quineelimina nomes próprios e outros termos singulares. Vejamos de formabreve como isso acontece.

Exercícios

1. Explique a importância das variáveis no esquema quiniano.

2. O critério de comprometimento ontológico de Quine diz daquiloque existe? Ou seja, nos diz o que existe?

3. Qual a diferença entre substituir uma variável por um objeto(como um número) ou pelo nome do objeto (por um numeral)?

4. Se eu digo ‘Maria é bonita’, eu me comprometo com a existênciade Maria?

4.2 Eliminação de termos singularesSuponha que a sentença ‘Sócrates é filósofo’ seja verdadeira. Ela con-tém o nome próprio ‘Sócrates’. Quine encontra um modo de transfor-mar esse nome em um predicado, como ‘socratiza’, ou ‘é idêntico a

2No entanto, em linguagens mais fortes, poderíamos tomar os próprios númerosreais como seus nomes, mas isso extrapola as hipóteses de Quine.

68 Tópicos em Ontologia Analítica

Sócrates’, denotado pela letra ‘S ’, que corresponde ao verbo ‘socrati-zar’. Deste modo, S (x) significa que x socratiza, ou que x é Sócrates(na hipótese de haver um só indivíduo). Deste modo, onde aparece umnome ele consegue fazer surgir uma descrição definida. Então ‘Sócratesé filósofo’ fica parafraseada em ‘existe um objeto e um só que socratizae este objeto é filósofo’. Na linguagem da teoria de Russell, seria algocomo F( ιxS (x)), ou ∃x(S (x) ∧ ∀y(S (y) → y = x) ∧ F(x)). Assim,Quine procede segundo o dito de David Kaplan (citado por [Or.2002,p.30]: “quinizar o nome e russellizar a descrição”. Isso é, transformar onome em um predicado, recaindo em uma descrição definida, e depoiseliminar a descrição por definição contextual. Obviamente, se em vezde um nome já contarmos com uma descrição, o artifício de ‘quinizar’é dispensado, como em ‘O filho mais velho da Rainha da Inglaterra éadmirador de cavalos’.

Deste modo, na notação canônica básica, restam somente os conec-tivos lógicos, as variáveis individuais, os quantificadores, os predicadose o símbolo de identidade. Como comenta Orenstein, “[a] importânciapara a ontologia da eliminação dos nomes é que a referência, isto é,a função ontologicamente significante da linguagem, é desempenhadasem nomes. O comprometimento ontológico é assunto das variáveis edos objetos como seus valores, e não dos nomes dos objetos que elasnomeiam.” (ibid., p.30).

Em resumo, quando diz que ser é ser o valor de uma variável, Quinenão nos diz o que devemos aceitar em nossa ontologia, mas unica-mente como devemos nos comprometer com certa ontologia. Como elemesmo diz em ‘Sobre o que há’, “uma teoria está comprometida comaquelas e somente com aquelas entidades a que as variáveis ligadas dateoria devem ser capazes de se referir a fim de que as afirmações feitasna teoria sejam verdadeiras.” [Qu.1980, p.225])

Exercícios

1. Explique o dito de Kaplan: ‘quinizar o nome e russellizar a des-crição’ no que se refere à eliminação de nomes próprios.

2. Aplique este critério para eliminar o nome ‘Cesar’ em "Cesar foi

Ser é ser o valor de uma variável 69

assassinado nas escadas do Senado romano".

4.3 Verdade

A palavra ‘verdade’ surgiu várias vezes na discussão acima, mas aindanada dissemos sobre este conceito, que foi usado em tom informal. Cer-tamente podemos assumir que quando Quine se refere ao conceito deverdade, pretende mencionar a ‘definição semântica’ de Alfred Tarski.Tarski não ‘define’ propriamente verdade, mas a caracteriza como umatributo se sentenças de certas linguagens formalizadas. Resumida-mente, sua ‘definição’ (como se costuma dizer) foi elaborada para ser(1) adequada materialmente e (2) correta formalmente. Por adequaçãomaterial deve-se entender que ela deve captar a essência do conceitocorrespondencial intuitivo da verdade, já presente de forma tosca naMetafísica de Aristóteles (Γ, 1011b25), quando ele “define o que são averdade e a falsidade”, dizendo que “dizer do que é, que não é, e do quenão é, que é, é falso, e dizer do que é, que é, e do que não é, que não é,é verdadeiro”. Na Idade Média, esse dito foi interpretado no sentido deque ‘verdade é aquilo que é’, ou ‘aquilo que corresponde à realidade’.

Por correção formal, devemos entender que a definição não deve serdada pressupondo o conceito de verdade que está sendo definido, ouseja, deve ser explícita. A definição, segundo Tarski, deve realizar todasas instâncias daquilo que ficou conhecido como ‘esquema T’:

(T) ‘S’ é verdadeira se e somente se S,

onde S é uma sentença (de adequada linguagem formalizada) e ‘S’ é umnome de S. Por exemplo, uma instância do esquema T é:

‘A neve é branca’ é verdadeira se e somente se a neve é branca.

Ou seja, a sentença ‘A neve é branca’ (veja que, colocando a sen-tença entre aspas, estamos nos referindo a ela, e não a utilizando) éverdadeira se e somente se o que ela expressa for de fato o que é, se elacorresponder à realidade, ainda que os termos ‘corresponder’ e ‘reali-dade’ sejam vagos. Foi evitar essa vagueza que a definição de Tarski

70 Tópicos em Ontologia Analítica

pretendeu, dentre outras coisas. A correção formal diz respeito à neces-sidade de que a definição seja dada para certas linguagens, e que seja talque termos ambíguos como os mencionados acima não apareçam.

Figura 4.3: Alfred Tarski(1901-1983).

As sentenças das linguagens às quaisa definição de Tarski se aplica, como a docálculo de predicados de primeira ordemcom identidade, referem-se a certos do-mínios de aplicação, ou domínios do dis-curso, como se costuma dizer, e é aí queseu vínculo com a ontologia aparece. Es-ses domínios, de acordo com a semânticausual, são conjuntos, coleções de indiví-duos. Assim, uma sentença como ∃x(xé filósofo) ou, simbolicamente, ∃xF(x),é verdadeira relativamente a um particu-lar domínio que contenha seres huma-nos, por exemplo, se e somente se há umsubconjunto desse domínio que seja não vazio e constituído por filóso-fos. Desta forma, a sentença é verdadeira porque ‘fala a verdade’ rela-tivamente ao domínio. Repare que, se mudarmos o domínio para, porexemplo, um constituído por lagartos, então a sentença será falsa, umavez que (supostamente) não há lagartos filósofos. Ou seja, uma sentençaé verdadeira sempre relativamente a um determinado domínio; não háverdade tout court.

Deste modo, a utilização do conceito semântico de Tarski serve aospropósitos de evidenciar de que forma certas expressões de linguagensadequadas referem, da mesma forma que o fazem o uso de nomes ou apredicação. Para uma leitura mais aprofundada da noção tarskiana, ver[Hg.2006]; dois dos principais artigos de divulgação escritos por Tarskisobre a sua ‘definição’ encontram-se em [Ta.2007], e uma exposiçãointrodutória está em [He.1979].

Exercícios

1. Explique o ‘esquema T’ na definição tarskiana de verdade.

Ser é ser o valor de uma variável 71

2. Pesquise sobre outras ‘teorias da verdade’, como as teorias dacoerência e as teorias pragmáticas.

3. Suponha que R(a, b) é uma sentença de uma linguagem deprimeira ordem (R é um símbolo de predicados binário, e a e b sãoconstantes individuais). Dê uma interpretação para esses símbolos deforma que: (1) R(a, b) resulte verdadeira, e (2) outra na qual R(a, b)resulte falsa.

4. Dê exemplos de sentenças que são verdadeiras em qualquer inter-pretação e de sentenças que são falsas em qualquer interpretação.

4.4 A redução ontológica e o critério de iden-tidade

O critério quiniano de redução de uma ontologia a outra tem sido bas-tante discutido na literatura, havendo críticas a conceitos não muito cla-ros introduzidos por Quine, como o de ‘proxy function’, bem como so-bre a ideia de ‘universos’, dentre outros. No entanto, é tido como seguroafirmar que, no fundo, a ontologia quiniana se reduz a conjuntos. Nestaseção, veremos porque, ainda que sem fazermos uma análise detalhada,que pode ser vista, por exemplo, em [Iw.2000], [Ch.2003], [Or.2002],[De.2002] e nos próprios trabalhos de Quine apontados na Bibliografia.O que faremos será discutir o assunto da redução ontológica dentro dotema envolvido em outro dito célebre de Quine, aquele que diz que ‘nãohá entidade sem identidade’.

Consideremos o slogan de Quine, ‘não há entidade sem identidade’.Como se pode interpretar este dito, e como se pode relacionar a afirma-tiva com o assunto da ontologia? No livro já citado, Decock sustentaque o critério de identidade exigido por Quine tem um objetivo: susten-tar o que denomina, seguindo Quine, de extensionalismo.

Decock destina todo um capítulo a discutir essa noção, que resumi-remos (com todo o risco) em uma frase: só podem ‘existir’ (para umateoria) entidades para as quais um critério de identidade tenha sido pro-porcionado.

72 Tópicos em Ontologia Analítica

Em especial, deve valer sempre o chamado Princípio da Substi-tutividade, ou, como Quine o denomina, Princípio da Indiscernibili-dade dos Idênticos, que podemos formular do seguinte modo: objetosidênticos podem ser substituídos um pelo outro em qualquer contexto‘salva veritate’ (preservando-se a verdade).

Obviamente que há vários conceitos envolvidos; por exemplo, o quese deve entender por identidade? Trata-se de um ponto sutil. Em geral,o que dispomos é unicamente de um conceito informal de identidade,que aplicamos aos objetos que nos cercam, como quando falamos queo carro que está na minha garagem agora (o meu carro) é o mesmoque estava lá ontem, dado que eu não o troquei e que ele não foi rou-bado ou emprestado a alguém. A questão de como sabemos que umobjeto, ou uma pessoa, pode ser re-identificado é antiga e problemática.Usualmente associamos a um objeto uma individualidade como se issoindicasse a sua identidade, e o fazemos por meio do conceito gêmeode discernibilidade; objetos são indivíduos, têm identidade, quando po-demos discerni-los de outros, mesmo que similares. Mas, o que con-fere individualidade a um objeto? Pode haver dois objetos exatamenteiguais, diferindo apenas por um ser um e o outro ser o outro ou, como sediz, que difiram "solo numero"? Leibniz respondeu a essa questão comum sonoro ‘Não’. Para ele, se dois objetos são dois, deve haver umaqualidade, um atributo, ou propriedade, que os distinga. Essa passagemfoi encerrada em seu famoso Princípio da Identidade dos Indiscerníveis,que pode ser assim enunciado:

“Não é verdade que duas substâncias possam se asseme-lhar completamente e diferir somente em número [solo nu-mero].” [Lb.1991, p.9]

A validade deste princípio tem sido muito discutida, principalmentedepois do advento da mecânica quântica (ver [Fr&Kr.2006]), mas nãotocaremos neste assunto aqui por enquanto. O importante é que ele é,de um modo ou de outro, encerrado na lógica e na matemática clássi-cas; em qualquer teoria nelas baseada, não há entidades absolutamenteindiscerníveis (que e assemelhem completamente). Para tratarmos deentidades indiscerníveis no âmbito da lógica e da matemática usuais,

Ser é ser o valor de uma variável 73

necessitamos introduzir alguns truques, como condições de simetria.Mas isso é artificial, como discutiremos à frente. Chamaremos a teo-ria da identidade da lógica usual de teoria tradicional da identidade.Para os nossos propósitos, faremos uma digressão evolvendo tanto essateoria quanto o critério de redução ontológica de Quine, procurando en-tender em conjunto os pontos 2 e 3 destacados por Chateaubriand vistosno início do capítulo. Para tanto, comecemos com um breve comentáriosobre o artigo ‘Whither physical objects?’ [Qu.1976], no qual Quinefala da ‘evaporação’ do conceito de objeto físico.

Resumidamente, ele sugere que podemos substituir (reduzir) umaontologia de objetos físicos por uma de lugares no espaço-tempo cu-jos estados são descritos por quádruplas de números reais da forma(x, y, z, t), as três primeiras referindo-se à posição espacial e a últimasendo uma coordenada temporal. Ou seja, uma ontologia de objetos fí-sicos é reduzida a uma ‘ontologia de quádruplas de números reais’. Noseu livro Ontological Relativity and Other Essays [Qu.1969], disse queessa redução mostra a relatividade de uma ontologia, e mais tarde, emseu Pursuit of Truth [Qu.1990], referiu-se à indiferença de uma ontolo-gia. Na matemática usual, se adotarmos um ponto de vista conjuntista,uma quádrupla ordenada de números reais nada mais é do que um con-junto e, portanto, o que resta, no fundo, são conjuntos. Em suma, aontologia quiniana reduz-se a conjuntos.3 Podemos dizer então que, emcerto sentido, aquilo que há são conjuntos. Assim posto, uma ontologiafica sujeita ao que pode ser descrito por meio de conjuntos.4 (A própriacaracterização do conceito de espaço-tempo é problemática, se quiser-mos dar um passo atrás na ontologia quiniana; com efeito, há os con-ceitos de espaço e tempo absolutos, típicos da mecânica newtoniana—eda mecânica quântica não-relativista—, assim como há o conceito deespaço-tempo da relatividade restrita, etc. Decock menciona essa ques-

3Quine não se refere a uma teoria particular de conjuntos, mas é mister observarque há muitas delas, não equivalentes entre si, e o que vem a ser um conjunto dependeda teoria considerada; ver mais abaixo e o próximo capítulo.

4Saliente-se que parte da matemática usual pode ser erigida em uma lógica deordem superior ou via a teoria de categorias, independentemente da noção de conjunto.No entanto, nos parece que essas hipóteses não foram ventiladas por Quine.

74 Tópicos em Ontologia Analítica

tão no capítulo 3 de seu livro).O filósofo Mario Bunge tem ideias parecidas a Quine nesse sentido.

Em seu livro Treatise on Basic Philosophy, Bunge defende uma suposta‘neutralidade’ da teoria de conjuntos, que segundo ele é capaz de ex-pressar qualquer ontologia. Em outras palavras, para Bunge, a lógica ea matemática seriam ‘ontologicamente neutras’ [Bu.1977, p.15], e se-ria por esse motivo que permitiriam a construção de teorias ontológicasquaisquer.

Figura 4.4: Mario AugustoBunge (1919–), físico e filósofoargentino radicado no Canadá.

Não teríamos restrição à frase deBunge ou à redução ontológica de Quinese eles se referissem à linguagem dateoria de conjuntos, que é como queuma linguagem universal, na qual po-demos expressar praticamente qualquerconceito necessário às teorias físicas.5

No entanto, eles se referem à teoria deconjuntos, e aí a coisa é diferente. Comefeito, ‘conjuntos’ são entidades mate-máticas que são descritas nas teorias cor-respondentes.

O próprio Quine propôs duas teorias,hoje conhecidas como os sistemas NFde Quine-Rosser e ML de Quine-Wang.

A primeira apareceu em um artigo intitulado ‘New Foundations forMathematical Logic’, publicado por Quine em 1937 (‘NF’ vem de ‘NewFoundations’), posteriormente incrementado por Barkley Rosser. O se-gundo sistema apareceu sem seu livro Mathematical Logic, depois me-lhorado por Hao Wang. O que são conjuntos em NF e ML destoam emparte do que são conjuntos na teoria ZF (Zermelo-Fraenkel). Na ver-dade, ainda que tenhamos um conceito intuitivo de conjunto em mente,qual seja, o de uma coleção de objetos, rigorosamente o que é ou nãoum conjunto depende da particular teoria de conjuntos que se está con-

5Mesmo linguagens de ordem superior ou da teoria das categorias podem ser for-muladas no escopo de uma teoria como ZF (Zermelo-Fraenkel, da qual falaremos àfrente). Isso no entanto não significa que a teoria de categorias seja redutível a ZF.

Ser é ser o valor de uma variável 75

siderando.Porém, podemos aceitar que ‘conjunto’, para Quine, é o que postula

ZF, pois o que vamos dizer de ZF ocorre nos outros sistemas, apesardas diferenças entre eles. Para enfatizar o que pretendemos considerar,vamos acompanhar um dos matemáticos atuais que é especialista nosistema NF, Thomas Foster. Disse ele:

“A teoria de conjuntos é o estudo dos conjuntos, que sãoa mais simples de todas as entidades matemáticas. Vamosilustrar este fato contrastando conjuntos com grupos. Doisgrupos distintos podem ter os mesmos elementos e mesmoassim diferir pelo modo como esses elementos são relacio-nados. Conjuntos são distinguidos da restante fauna mate-mática pelo fato de que um conjunto é constituído somentepor seus elementos: dois conjuntos com os mesmos ele-mentos são o mesmo conjunto. Para usar um jargão de ou-tra era, conjuntos são propriedades em extensão. Como re-sultado, todas as teorias [extensionais] postulam o axiomada extensionalidade6 ∀x∀y(x = y → ∀z(x ∈ z ↔ y ∈ z)):elas diferem no modo pelo qual propriedades têm ou nãoextensões.” [Fo.1997]).

Observe que o axioma da extensionalidade faz uso essencial da no-ção de identidade: dois conjuntos são idênticos quando têm os mesmoselementos. A teoria tradicional da identidade, da qual já nos referimosantes, é parte da lógica subjacente às teorias usuais de conjuntos (comoZ, ZF e NF dentre outras),7 e é complementada pelo axioma da exten-sionalidade. Essencial para a ontologia quiniana, portanto, é o conceitode identidade. Outro fato importante é o poder redutor da teoria deconjuntos, que vai permitir a redução ontológica quiniana a conjuntos(porém, ver abaixo). Isso significa que praticamente toda a matemáticacontemporânea pode ser descrita em termos de conjuntos e operações

6Esta é a forma simbólica do axioma apresentado na página 108.7Z é a teoria originalmente proposta por Zermelo; ZF é, como já se disse, a teoria

Zermelo-Fraenkel, e NF uma das teorias de Quine. Para uma visão de todas essasteorias, ver [Kr.2002].

76 Tópicos em Ontologia Analítica

com conjuntos. O ‘praticamente toda’ refere-se a certas partes da mate-mática atual que não seriam redutíveis ao conceito de conjunto, como anoção de categoria. No entanto, em teorias de conjuntos fortes, suple-mentadas por certos tipos de entidades chamadas de universos, mesmoa teoria de categorias pode ser escrita em termos conjuntistas, o quecomprova o que dissemos acima sobre a capacidade expressiva da lin-guagem conjuntista. Isso significa, guardada a cautela, que todas asentidades descritas matematicamente são conjuntos, daí a ‘redução on-tológica’ de Quine a conjuntos ter um sentido preciso.

No entanto, tendo em vista a validade da teoria tradicional da iden-tidade nesses contextos, no sentido de que qualquer objeto descrito poruma teoria de conjuntos deve obedecer às regras da teoria da identi-dade clássica, resulta que todas as entidades são indivíduos, ou seja,têm identidade (mais sobre isso à frente). Daí o lema de Quine, ‘nãohá entidade sem identidade’, encontrar respaldo na matemática usual ecompletar de forma coerente (dentro da sua filosofia) o seu critério decomprometimento ontológico e a sua redução ontológica a conjuntos (eseu ‘extensionalismo’).

Ou seja, aquilo que pode ser o valor de uma variável (de uma ade-quada linguagem em notação canônica) é sempre um indivíduo, algo‘que tem identidade’. Cabe observar que a redução quiniana não se dásem problemas, pois se tudo se reduz a conjuntos, esses dependem dateoria considerada, assim não sabemos na realidade a que uma ontolo-gia se reduziria. Entre tais ‘conjuntos’, podemos considerar o conjuntouniversal, aceito em NF? Podemos aceitar o chamado ‘conjunto de Rus-sell’, aceito pelas teorias paraconsistentes de conjuntos? Podemos acei-tar categorias, uma vez ampliada adequadamente a base matemática viauniversos? Fortalecendo-se adequadamente ZF pela adição de ‘univer-sos’, pode-se encontrar um modo de inserir a usual teoria de categoriasnessa teoria fortalecida (ver [BC.1971]). O ‘conjunto de Russell’, queveremos mais à frente (seção 5.10), pode ser descrito como a coleçãode todos os conjuntos que não são membros (elementos) deles mesmos.Pode-se provar facilmente que se ZF for consistente, tal conjunto nãopode existir, pois a sua existência implica uma contradição. No entanto,ele pode existir em uma adequada teoria paraconsistente de conjuntos.

Ser é ser o valor de uma variável 77

Claro que para Quine essas questões aparentemente seriam respon-didas no negativo, dado o seu comprometimento com a teoria de con-juntos padrão (como ZF). Porém, achamos essa escolha por demais res-tritiva, sendo algo como se querer dizer que somente as retas da geome-tria euclidiana é que são retas ‘verdadeiras’, as das demais geometriassendo outras coisas. Assumir tal posição, na presente data, nos pareceuma atitude por demais conservadora.

No capítulo Ontologia e Física, falaremos mais sobre isso e sobre omodo pelo qual, mudando adequadamente a teoria de conjuntos, pode-mos nos comprometer ontologicamente com entidades que não obede-cem à teoria da identidade usual, que chamaremos de ‘não-indivíduos’.Assim, se entendermos ‘lógica’ como lógica clássica (ainda que essacaracterização do que seja a lógica clássica também seja meio vaga) epor ‘matemática’ como aquela parte da matemática que pode ser elabo-rada em ZF, então elas não são ‘neutras’, como queria Bunge, uma vezque estão comprometidas com a noção de indivíduo, ainda que a noçõescomo a de indivíduo não sejam absolutas, pois dependem da linguageme da lógica em que são formuladas. No entanto, lembremos mais umavez, estamos —segundo Quine— em um contexto ‘clássico’ . Para mai-ores discussões sobre o ponto de vista de Bunge, ver [Ge&.2005].

Da mesma forma, à luz da teoria quântica, aparentemente somosconduzidos a uma ontologia de não-indivíduos, que simplesmente nãoexistiriam na ontologia quiniana (ver [Fr&Kr.2006]).

4.5 O que é ‘ter identidade’?

Há no entanto uma questão adicional à qual necessitamos tocar, e queresulta de considerações acima (ver à página 76), a saber, a referênciaao fato de que as entidades devem ter (ou possuir) identidade. O queisso significa? No capítulo sobre física e ontologia falaremos sobre aindividuação de objetos, mas aqui faremos outras considerações.

Diremos que um objeto x tem identidade se é objeto de uma teoria Tque possua uma teoria da identidade e tal que x obedeça esta teoria. Istoé bastante vago, mas algumas explanações ajudarão a entender o ponto.

78 Tópicos em Ontologia Analítica

Uma tal definição deveria ser a de uma T -identidade, ou de "identidadeem T".

Suponha que T seja um teoria regimentada ao estilo de Quine, pos-suindo em sua linguagem apenas uma quantidade finita de predicados.Por exemplo, os predicados de T são dois predicados, um unário F eum binário P. Podemos então, à maneira de Quine, definir a identidadede nossa teoria pela exaustão dos predicados da seguinte forma:

Definition 4.5.1

a = b := (F(a)↔ F(b))∧∀x((P(a, x)↔ P(b, x))∧ (P(x, a)↔ P(x, b)).

Esta teoria diz que a e b são idênticos (iguais) quando satisfazemtodos os predicados da linguagem.

Ora, esta definição reputa como iguais objetos que temos como dis-tintos; suponha que interpretemos os objetos de T em um domínio con-tendo pessoas, e que F indique o predicado "ser paulista" e que P in-dique a propriedade "morar a 10Km do Viaduto do Chá". Certamentehaverá muitos paulistas que moram a essa distância do viaduto, semque no entanto sejam a mesma pessoa. Isso indica que os predicadosda linguagem não permitem discernir entre a e b, ainda que eles pos-sam ser distinguidos em uma ‘teoria de fundo’ no sentido quiniano, porexemplo em uma teoria cuja linguagem seja obtida acrescentando-se umpredicado S tal que S (a) mas ¬S (b), por exemplo, sendo S o predicado"morar ao norte do Viaduto do Chá".

O que importa considerar, no entanto, são aquelas T que se funda-mentam na teoria usual (ou "tradicional") da identidade, que (em umaformulação como teoria elementar), assume os axiomas da identidadevistos antes (reflexividade e substitutividade) e eventualmente o axiomada extensionalidade de ZF. Isso faz da teoria uma teoria de indivíduos,pois um objeto x será idêntido somente a ele mesmo, ou seja, a coleçãodos objetos idênticos a x terá cardinal 1.

Isso tudo mostra que ‘ter identidade’ é algo relativo, que depende dateoria que se considera, e o mesmo se pode dizer de conceitos como in-discernibilidade e indistinguibilidade, que serão considerados à frente,ou seja, como já dito, esses conceitos dependem da linguagem e da

Ser é ser o valor de uma variável 79

lógica que se adota. No entanto, se essas teorias forem fundamenta-das na lógica clássica, tal como formulada usualmente ([Md.1997]), T -identidade significa que todo objeto que a satisfaz é único em sentidointuitivo, podendo sempre (pelo menos em princípio), ser individuali-zado e ‘reconhecido’ como tal em qualquer situação — a tais objetoschamaremos de indivíduos.

Observação técnica A observação precedente, de que indivíduos po-dem ser ‘pelo menos em princípio identificados’, merece explicação,ainda que ela esteja fora do alcance inicial deste livro. É a seguinte.

Suponha que estamos operando na teoria de conjuntos ZFC (Zermelo--Fraenkel com o axioma da escolha; ver a seção 5.8). Nesta teoria,podemos provar que todo conjunto é bem ordenado (aliás, esta proposi-ção é equivalente ao axioma da escolha); um conjunto é bem-ordenadose admite uma ordem total (anti-simétrica, transitiva e conectada) relati-vamente à qual todo subconjunto não vazio possui menor elemento (umelemento do conjunto que é menor que todos os outros elementos rela-tivamente a tal ordem). Em particular, portanto, o conjunto R dos nú-meros reais admite uma boa-ordem (na verdade, uma infinidade delas).Assim, pela definição de boa-ordem, todo subconjunto não vazio de Rtem menor elemento. Suponha agora dois subconjuntos disjuntos X eY de R, dado que são subconjuntos de R, esses conjuntos têm menoreselementos relativamente a uma boa-ordem. E, o que é fundamental, es-ses elementos são distintos, pois pertencem a conjuntos disjuntos (semelementos em comum).8 Por que esse segundo exemplo é relevante?O motivo é que uma boa-ordem de R não pode ser exprimida por umafórmula da linguagem de ZF, ou seja, não podemos defini-la por umafórmula. Do mesmo modo, não podemos definir os menores elementosno sentido de que não há uma fórmula da linguagem que seja satisfeitaunicamente por ele, já que necessitaríamos indicar que este elemento éo menor elemento relativamente a uma boa-ordem e não temos comoexpressá-la.

8É um teorema de ZF que para todos a e b, tem-se que a = b ou a , b (uma dasformas do Princípio do Terceiro Excluído), ainda que muitas vezes não se possa saber"efetivamente" qual é o caso.

80 Tópicos em Ontologia Analítica

Esses resultados são conhecidos em teoria de conjuntos, e o exem-plo ilustra o fato de que, em certas circunstâncias, mesmo sem poderdescrever certos objetos, ainda assim podemos supor que são distintos.A teoria da identidade pode, no entanto, ser mais fraca e permitir queobjetos que se sabe (por outros meios) serem distintos não possam serdiscernidos na teoria. Este é o caso quando temos unicamente um nú-mero finito de predicados em nossa linguagem, como é o caso de Quineque vimos na seção precedente. Exemplo típico é o dos números com-plexos i e −i, que não podem ser discernidos no interior do corpo dosnúmeros complexos C = 〈C,+, ·, 0, 1〉,9 ainda que, de fora (ou seja, emZFC por exemplo), possamos ‘ver’ que i , −i (voltaremos a esse pontocom mais detalhes na seção 7.2).

Exercícios

1. Discuta o conceito de objeto físico na concepção de Quine.

2. Discuta a seguinte afirmativa: ‘Em última instância, a ontologiade Quine se reduz a conjuntos.’

3. Dê alguns exemplos da redução dos conceitos matemáticos usuaisà noção de conjunto (por exemplo, como um par ordenado 〈a, b〉 sereduz a um conjunto? Como uma relação binária entre os conjuntosA e B —tomados nesta ordem— se reduz a um conjunto? Como umafunção f : A 7→ B se reduz a um conjunto?)

4. Encontre outras formulações do Princípio da Identidade dos In-discerníveis além daquela dada à página 72.

5. Organize com seus colegas um seminário para discutirem o textode Quine ‘Whither physical objects?’.

9Dizemos que i e −i são invariantes pelos automorfismos da estrutura.

Capítulo 5

Lógica e Ontologia

Como se relacionam essas duas grandes áreas da filosofia, lógicae ontologia? Inicialmente é conveniente delinearmos o quese entende por uma e por outra. Já fizemos isso quanto àsegunda, quando partimos da tradicional asserção de que a

ontologia é o estudo daquilo que há (ou existe) ou, como se costumadizer de acordo com uma tradição que remonta a Aristóteles, o estudodo ser enquanto ser,1 e chegamos a analisar outras concepções de on-tologia, em especial aquela que se refere ao que se pode denominar deuma ontologia associada a uma determinada concepção ou teoria. Éhora de falarmos da lógica, pelo menos do que interessa para essas no-tas, para depois vermos de que forma ela se insere e importa à discussãoontológica.

5.1 Lógica e lógicasA palavra ‘lógica’ tem vários sentidos no uso corrente, aparecendo emdiferentes contextos significando coisas completamente distintas. Porexemplo, fala-se (algumas vezes) que ‘a lógica do professor é dife-rente da lógica do aluno’, onde ‘lógica’ parece indicar ‘ponto de vista’,ou ‘concepção’ acerca de alguma coisa (no caso, da aprendizagem).

1Conforme dito na Introdução, ver Metafísica, Γ 1003a21.

82 Tópicos em Ontologia Analítica

Fala-se também na ‘lógica do mercado’, com significação pertinente àeconomia, bem como é possível encontrar aparelhos (geladeiras, tele-visores) com a denominação fuzzy logic (lógica difusa). Deixando delado esses vários usos e considerando apenas o que está mais ligado àfilosofia, para sermos mais precisos talvez devessemos fazer uma dis-tinção entre a lógica como disciplina, por exemplo, fazendo referênciaa ela escrevendo ‘Lógica’ (com primeira letra maiúscula), e os váriossistemas lógicos que desejamos enfatizar, que podemos chamar de ‘ló-gica(s)’, com letras minúsculas. De qualquer modo, é interessante quese tenha uma ideia do que é presentemente a área de investigação quese denomina Lógica, para o que sugerimos uma olhada na seção 03 daclassificação das áreas da matemática presente, de responsabilidade daAmerican Mathematical Society [AMS.2000].2 Aqui, para simplificar aexposição e evitar discussões de detalhes, não faremos a distinção entrea Lógica como disciplina e o uso da palavra ‘lógica’ para designar esteou aquele sistema lógico, pois o contexto deixará claro qual é o caso.Assim, doravante, usaremos somente letras minúsculas em geral nessapalavra.

Aristóteles (384-322 a.C.) é considerado por muitos como o cri-ador, ou fundador, desse ramo da filosofia [Sm.2007]. No entanto,reconhece-se hoje que, antes de Aristóteles, houve pelo menos duasgrandes escolas que foram importantes para o surgimento da lógica. Aprimeira situa-se na escola de Eléia, tendo como figura principal (noque concerne à lógica) Zenão de Eléia (c. 490-430 a.C.), em cujosfamosos paradoxos fez uso de um tipo de argumentação que originouuma forma de inferência que ficou conhecida como redução ao absurdo(ver mais abaixo), que foi posteriormente incorporado como uma dasformas de inferência características daquela que ficou conhecida comológica clássica. A segunda fonte é ainda anterior, e remonta aos pi-tagóricos, por volta do século 5 antes de Cristo. A escola pitagórica,

2Não obstante a referência à Lógica como disciplina matemática, que se deve aoaspecto que adquiriu a partir de meados do século XIX, como veremos abaixo, essadisciplina é igualmente parte da filosofia e importa à ciência da computação, à tecno-logia e outras áreas do saber atual. Na verdade, podemos dizer que ela permeia todasas áreas do conhecimento humano.

Lógica e Ontologia 83

que tem em Pitágoras (c. 570-490 a.C.) o seu mestre, era na verdadeum misto de seita religiosa e de ensinamentos de filosofia, matemáticae comportamento social. Os pitagóricos fizeram grandes avanços paraa matemática da época, dando uma grande contribuição, por exemplo,para estabelecer o modo de questionamento grego da procura por provas(demonstrações) para os fatos matemáticos, como exemplifica o famosoTeorema de Pitágoras, cujo resultado já era conhecido pelos babilônios.

Figura 5.1: Aristóteles.

O importante, para os gregos, não erameramente o resultado em si, mas o es-tabelecimento de uma forma de procedi-mento em filosofia, que é bem ilustradapelo famoso teorema, e que depois seincorporou à lógica e ao raciocínio de-dutivo em geral, a busca por demonstra-ções. Resumidamente, o teorema afirmaque, no escopo do que chamamos hoje degeometria euclidiana plana, em qualquertriângulo retângulo, o quadrado (da me-dida) da hipotenusa é igual à soma dosquadrados (das medidas) dos catetos. Oteorema não fala de um triângulo particular, mas de um triângulo retân-gulo qualquer. A demonstração (estabelecimento rigoroso do fato, e queterá uma conceituação precisa na lógica atual com o desenvolvimentoda ‘teoria da prova’) vale em geral, e não se refere a triângulos particu-lares. Um alerta: é preciso cuidado com certas afirmações, como tudoem filosofia: falamos em "estabelecimento rigoroso" de um resultado.No entanto, o conceito de rigor muda com o tempo. Muito do que eraconsiderado rigoroso na época de Aristóteles e Euclides não seria aceitocomo rigoroso hoje em dia (ver [Co.1980, p.232] para uma discussão).

Essa característica do pensamento grego foi de uma importância ca-pital em particular para o desenvolvimento da matemática e do pensa-mento dedutivo: enquanto os demais povos, como babilônios e egípcios,coligiam seus conhecimentos matemáticos (que, aliás, eram bastantesignificativos) como coleções de informações, quase como que um ca-tálogo de técnicas, os gregos preocuparam-se em estabelecer as origens

84 Tópicos em Ontologia Analítica

e as consequências daqueles conhecimentos, deduzindo-os de premis-sas inicialmente aceitas, e buscando quais seriam essas premissas. Emoutras palavras, criando uma teoria dedutiva. Aliás, para Aristóteles,ciência se identificava com disciplina dedutiva.

A terceira fonte originária da lógica é sem dúvida Aristóteles e seusseguidores. A tradição originada por ele prevaleceu sobre as demaisconcepções filosóficas acerca a lógica, tendo permanecido praticamenteinalterada por cerca de 2000 anos, a ponto do grande filósofo ImmanuelKant (1724-1804) chegar a afirmar, no prefácio da segunda edição dasua Crítica da Razão Pura, que a lógica não teve necessidade de ser re-vista desde Aristóteles, e que parecia ser um campo fechado e completodo conhecimento.

Além de ser considerado por muitos como o criador da lógica quehoje chamamos de lógica tradicional, e que deu origem à lógica denomi-nada hoje de clássica, Aristóteles pode ser em certa medida consideradotambém como precursor de ideias que levaram a outras lógicas, comoas lógicas polivalentes e as lógicas modais. Resumidamente, lógicaspolivalentes são aquelas lógicas nas quais as sentenças podem assumiroutros valores de verdade além do verdadeiro e do falso. As lógicasmodais, por outro lado, lidam com conceitos como os de necessidade epossibilidade, dentre outros. No entanto, foi somente no século XX queas chamadas lógicas não-clássicas (dentre elas, as polivalentes e as mo-dais) se edificaram satisfatoriamente. Hoje, há uma gama variada de ló-gicas não-clássicas bem estabelecidas como lógicas ‘legítimas’. Aindaque este assunto fuja aos objetivos destas notas, falaremos um poucosobre as variadas lógicas para afirmar suas relações com a ontologia.

Aquela que hoje chamamos de lógica clássica remonta a Aristóteles.Foi ele quem sistematizou (e certamente desenvolveu) muito do que seconhecia nessa área até então, sendo por muitos, como dissemos, con-siderado o criador da lógica (outros, como o matemático e filósofo daciência italiano Federigo Enriques (1871-1946) crêem que o verdadeirocriador da lógica teria sido Zenão de Eléia). Enriques sustenta que asgrandes ideias em lógica (princípios básicos) nasceram pela influênciada geometria grega (falaremos mais sobre isso abaixo). Exceto por in-cursões mais breves a temas como o dos futuros contingentes, que pode

Lógica e Ontologia 85

ser resumido pela aparente contradição que há em se assumir que umasentença como ‘Amanhã haverá uma batalha naval’ (De Interpretatione,cap.9; veja [Sm.2007]) deva ser verdadeira ou falsa, a lógica aristoté-lica se concentra em sua teoria do silogismo, uma forma particular deinferência.

A lógica que hoje denominamos de tradicional é essencialmenteaquela contida nos trabalhos de Aristóteles e seguidores, via de regralógicos medievais (mas há ainda lógicos contemporâneos que se inte-ressam pelo tema), a teoria do silogismo categórico. A teoria do silo-gismo importa para o que vamos discutir abaixo, principalmente pelaestrutura utilizada nas chamadas proposições categóricas, que como jávimos, são do tipo Sujeito-Predicado ou, resumidamente, S é P. As-sim, as quatro proposições categóricas básicas vistas na página 61, sãotodas da forma Sujeito-Predicado, ou seja, estabelecem (ou negam) al-guma propriedade, ou característica P a todos ou a alguns sujeitos S.Por exemplo, se dizemos ‘Todos os homens são mortais’, e isso é ver-dadeiro, estamos atribuindo o predicado ‘mortal’ ao sujeito ‘todos oshomens’. Essas proposições dependem, para sua veracidade, da exis-tência dos indivíduos denotados pelos termos S e P, o que não ocorre nalógica atual, como veremos.

5.2 A evolução da lógica tradicional

A lógica aristotélica, que como vimos Kant chegou a considerar aca-bada, sofreu uma transformação brutal no século XIX nas mãos de vá-rios lógicos importantes. George Boole (1815-1864) estabeleceu umvínculo entre a Lógica (entendida em seu sentito tradicional aristoté-lico) e a matemática, possibilidade esta que já havia sido antecipadapor Leibniz. Augustus De Morgan (1806-1971), Charles Sanders Peirce(1839-1914), Gottlob Frege (1845-1925), Giuseppe Peano (1858-1932),Bertrand Russell (1872-1970), e vários outros, já adentrando no séculoXX, foram outros que deram contribuições decisivas para o desenvolvi-

86 Tópicos em Ontologia Analítica

mento da lógica.3

Antes disso, Gottfried Leibniz (1646-1716) já havia antevisto que alógica aristotélica (teoria do silogismo), na forma como era conhecida,não era suficiente para dar conta das espécies de inferência que se fazem matemática. Aliás, a lógica de Aristóteles foi simplesmente igno-rada pela grande maioria (senão pela totalidade) dos matemáticos, nãosendo sequer mencionada, por exemplo, por Euclides (325-265 a.C.),o grande geômetra de Alexandria, autor de Os Elementos, obra magnade geometria da época e livro texto por mais de 2.000 anos. Nessaobra, Euclides apresenta a geometria dedutivamente (portanto, no sen-tido Aristotélico), fazendo uso essencial de argumentos lógicos. Pareceestranho, portanto, que o maior livro de matemática escrito na antigui-dade, e um dos mais importantes de toda a história do pensamento ma-temático, não tenha sequer uma menção à teoria do silogismo, ou a seuuso explícito.

O motivo, talvez, seja o de que (contrariando a opinião de Aris-tóteles) a silogística seja apenas um esquema geral, não descendo àsparticularidades de cada ciência, mas ela é deficiente mesmo assim paracaptar certos tipos de raciocínios simples que são fundamentais em ma-temática (e em outros domínios).Com efeito, a lógica aristotélica nãodá conta de raciocínios simples como, por exemplo, a afirmativa de quese uma vaca é um animal, então um chifre de vaca é um chifre de umanimal, que não se reduz à teoria do silogismo aristotélico. Se escreve-mos este raciocínio como ‘Toda vaca é um animal, logo, todo chifre devaca é chifre de um animal’, podemos simbolizá-lo assim:

Premissa: Todo A é B.Conclusão: Todo C é D.

onde A denota ‘vaca’, B denota ‘animal’, C denota ‘chifre de vaca’ eD denota ‘chifre de animal’. Quando usamos variáveis (como A, B, C

3Os historiadores da lógica disputam se teria sido Frege ou Boole o ‘verdadeiro’criador do modelo de lógica que hoje denominados de lógica matemática. Isso dedeveria ao fato de que, apesar das ideias estarem em Frege, seus trabalhos teriamtido pouca ou nenhuma influência nos lógicos posteriores (com a possível exceção deRussell).

Lógica e Ontologia 87

e D), explicitamos a forma do raciocínio, e ele deve permanecer válidosempre que substituirmos as variáveis por sujeitos e predicados especí-ficos, o que não ocorre neste caso. Para ver isso, basta substituirmosas variáveis respectivamente por ‘morcego’, ‘mamífero’, ‘brasileiro’ e‘jogador de futebol’, para obtermos o raciocínio inválido ‘Todo mor-cego é mamífero, logo, todo brasileiro é jogador de futebol’. Na lógicamoderna, simbolizamos validamente o raciocínio acima assim: V(x)significa que x é uma vaca, A(x) que x é um animal e C(x, y) que x é umchifre de y. Então, temos a derivação lícita:4

Premissa: ∀x(V(x)→ A(x))

Conclusão: ∀z((∃x(V(x) ∧C(z, x))→ ∃x(A(x) ∧C(z, x))).

Do ponto de vista matemático, a lógica tradicional não passa de umacoleção de trivialidades, carecendo da sofisticação matemática típica.Dentre outras coisas, falta-lhe uma teoria de relações (o predicado Cdo argumento acima); por exemplo, se tomarmos a desigualdade ‘x émenor ou igual a y’, qual é o sujeito e qual é o predicado? Talvezpudéssemos dizer que x é o sujeito e que ‘ser menor ou igual a y’ é opredicado, mas também poderíamos dizer que y satisfaz o ‘predicado’‘ser maior ou igual a x’, e tanto em um como em outro caso, perdemosa força expressiva da relação binária, uma vez que fixamos ora y, orax, não podendo ter as duas variáveis livres, como é desejável. A coisase complica ainda mais se tomamos relações com mais de dois objetos,como uma simples reflexão pode indicar; com efeito, se temos umarelação ternária R e temos que x, y e z estão relacionados por R, ou seja,R(x, y, z), qual é o sujeito e qual é o predicado?

Ainda na antiguidade, os filósofos de Mégara e da Estóia haviamdado passos decisivos no estudo de temas hoje considerados como per-tinentes ao campo da lógica, constituindo em significativo avanço emrelação ao que havia feito Aristóteles. A escola estóica em particularteve como fundador Zenão de Cítio (344-262 a.C. —não confundi-locom Zenão de Eléia), que pode ter sido o primeiro a usar a palavra ‘ló-gica’ (logiké téchne, literalmente, ‘de raciocinar arte’), mas que teve em

4Exemplo e discussão bastante similar a esta encontra-se em [Si.1976, §6].

88 Tópicos em Ontologia Analítica

Crisipo (c. –206 c.C) um dos seus membros mais prolíficos. Os es-tóicos chegaram a desenvolver estudos que se equiparam ao que hojedenominamos de cálculo proposicional clássico. Seus trabalhos, no en-tanto, permaneceram nas sombras até meados do século XX; a tradiçãoaristotélica imperou, como já dissemos.

É costume dizer que a revolução da lógica começa com Leibniz, quereformou a teoria do silogismo e pretendeu elaborar uma Arte Combi-natória para ‘decidir’ questões filosóficas mediante adequada traduçãoda argumentação empregada a uma linguagem suficientemente precisa,livre de ambiguidades. Porém, foi com George Boole, em meados doséculo XIX, que o grande avanço se iniciou. Pouco antes, De Morganchamou a atenção para uma teoria das relações. Mais tarde, inicia-secom Frege em 1879, outro período, que vai ainda mais além daqueleque podemos chamar de período booleano.

Figura 5.2: Gottlob Frege, o cri-ador da lógica matemática atual?

Com Frege inicia-se uma visão lin-guística da lógica, em distinção à visãoalgébrica do período booleano, que foiretomada somente no século XX princi-palmente com a intervenção de AlfredTarski (1902–1983). Importante salien-tar que, de forma independente, Peircee Frege introduziram os quantificadores,fato essencial para que a lógica se amal-gamasse à matemática.

Àquela época, no entanto, não haviaainda a distinção que se faz hoje (e que

surgiu explicitamente pela primeira vez em um livro de D. Hilbert e W.Ackermann de 1928, [Hi&Ac.1950]) entre lógica de primeira ordem elógicas de ordem superior; assim, lógica era, portanto, grande lógica(denomina-se de grande lógica tanto os sistemas de ordem superior eos de teoria de conjuntos). Há muitos livros bons sobre a história dalógica; um clássico é [Kne.1980].

Lógica e Ontologia 89

5.3 As lógicas não-clássicas

No século XX, como antecipamos, houve uma nova grande revoluçãono campo da lógica com a criação das lógicas não clássicas. Sem muitorigor, podemos dizer que lógicas não clássicas são aquelas lógicas queampliam a capacidade expressiva da linguagem (da lógica) clássica, oumodificam as leis básicas dessa lógica de alguma forma. Muitos siste-mas fazem ambas as coisas. Segundo uma classificação sugerida pelofilósofo brasileiro Newton da Costa (1929–) [Co.1982], podemos dizerque do primeiro grupo fazem parte as lógicas complementares da clás-sica, como as lógicas modais (que tratam dos conceitos de necessidade,possibilidade, impossibilidade, etc.), as deônticas (permitido, proibido,indiferente, etc.), as lógicas doxásticas (lógicas que lidam com o ope-rador de crença), as temporais (trabalham a noção de tempo), etc. Aosegundo grupo pertencem as lógicas heterodoxas, que costuma-se agru-par em três grandes áreas, em função dos três mais famosos (mas nãoúnicos!) princípios da lógica clássica: as que violam ou limitam o prin-cípio do terceiro excluído denominam-se paracompletas, e entre elasestão a lógica intuicionista e as polivalentes. Entre as que violam oulimitam o princípio da contradição estão as lógicas paraconsistentes,e entre as que violam ou limitam o princípio (ou a teoria clássica) daidentidade, estão as lógicas não-reflexivas. Como dissemos, há siste-mas ‘mistos‘; assim, há várias lógicas deônticas paraconsistentes porexemplo, que têm encontrado interessantes aplicações em filosofia dodireito (conflito entre normas, quando normas jurídicas são usadas deforma conflitante) e em ética (com no caso dos dilemas deônticos, abre-viadamente, situações em que dois fatos ou suposições contraditóriasparecem ser obrigatórias). Essa classificação não é exaustiva, e há vá-rios sistemas que não se enquadram muito bem nem em um e nem emoutra categoria, como a lógica difusa, as lógicas intensionais, etc.

A caracterização precisa do que seja a lógica clássica é vaga. Al-guns aceitam um resultado conhecido como Teorema de Lindström, oqual afirma não haver sistema lógico mais forte do que o cálculo clás-sico de predicados de primeira ordem (lógica elementar) que satisfaçao teorema da compacidade e o teorema de Löwenheim-Skolem descen-

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dente. Não importa o que sejam esses teoremas no momento, mas acha-mos esta caracterização por demais restritiva; para nós, esquemas da‘grande lógica’ como a teoria simples de tipos e a teoria de conjuntosZFC são esquemas clássicos, fiéis aos principais princípios clássicos,como o terceiro excluído, a não-contradição e a teoria da idendidade, enão haveria razão para nos limitarmos à lógica de primeira ordem. As-sim, em nossa opinião, Newton da Costa está na direção certa quandodiz que

"Falando por alto, podemos chamar uma lógica de clássicase ela é ou o usual cálculo de predicados de primeira ordem(com ou sem igualdade) ou alguma de suas extensões taiscomo o cálculo de predicados de ordem superior (teoria dostipos) ou mesmo algum sistema usual de teoria de conjun-tos (tais como Zermelo-Fraenkel, von Neumann-Bernays-Gödel, Tarski-Morse-Kelley ou o sistema ML de Quine),conjuntamente com suas variantes não essenciais com res-peito ao simbolismo ou à mudança da base axiomática."[Co.1982]

5.4 A lógica é a priori ou empírica?

Apesar desse desenvolvimento espantoso e das aplicações variadas queos sistemas (lógicas) não-clássicos têm alcançado, ainda permanece adiscussão filosófica sobre o real status desses sistemas. Há quem de-fenda um caráter apriorístico da lógica, supondo via de regra que a ló-gica deveria ser entendida como sinônimo de lógica clássica (ver maisabaixo). Ainda que o tema seja polêmico, podemos fazer uma tentativade aproximação dizendo que uma lógica é empírica se suas regras sãoestabelecidas sem que se faça apelo a qualquer tipo de experiência, eque também não possam ser contestadas pela experiência.

Claro que isso deveria ser discutido com profundidade, por exem-plo, precisando-se o significado de termos como ‘contestadas‘, ‘expe-riência‘, entre outros. No entanto, uma tal aproximação nos ajuda a

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perceber o significado do caráter apriorístico de uma lógica. Cabe en-tão a questão: se uma lógica (não necessariamente a clássica) é a priorise é totalmente desvinculada de qualquer apelo à experiência, como seestabelecem as leis lógicas? Haveria um racionalismo (em sentido tradi-cional) fortemente assentado na origem das leis lógicas? Por outro lado,se aceitamos o caráter apriorista da lógica, esse apriorismo acarreta ne-cessariamente as leis clássicas? Ou seriam as leis lógicas fruto de nossainteração com o contorno e de nosso modo de proceder racionalmentesobre ele, ou seja, seria ela empírica em algum sentido?

Figura 5.3: Newton C. A. daCosta, lógico e filósofo da ciênciabrasileiro.

Neste senão, seguimos novamenteNewton da Costa, que aqui meramenteresumiremos. Em seu livro Ensaio sobreos Fundamentos da Lógica [Co.1980],recomendado para qualquer discussãosobre a filosofia dessa disciplina, daCosta segue pensadores como FerdinandGonseth (1890-1975), Gaston Bachelard(1884-1962) e outros, como FederigoEnriques (1871-1946), defendendo queas origens da lógica tradicional estão ar-raigadas nas relações que teria com a ge-ometria euclidiana e (em menor escala)com a aritmética grega. Como diz, “[a]s noções de objeto, de propri-edade e de relação, da lógica aristotélica e da lógica matemática usual[que aqui estamos chamando de lógica clássica], derivam da visão está-tica e euclidiana da realidade.“ [Co.1980, p.120].

Com efeito, a crença de que os objetos geométricos permanecemidênticos a si mesmos é, segundo da Costa, uma das fontes psicológicase epistemológicas do princípio da identidade. Do mesmo modo, supõe-se que um objeto geométrico não possa ter e não ter uma mesma propri-edade, ou que possa ter propriedades contraditórias, ideia que aproximao princípio da contradição, e assim por diante.

Assim, tudo indica que a lógica clássica teve origem em certas ca-tegorias conceituais que elaboramos para dar conta do nosso contorno,em parte refletido nos objetos da geometria euclidiana (como acredita-

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vam os antigos), logo, com as noções de objeto físico, das propriedadese relações entre esses objetos. Além disso, como insiste da Costa, a ló-gica dever dar conta da matemática tradicional (e por consequência, dasciências que se alicerçam ou fazem uso dessa matemática). Deste modo,na gênese da formação dessas categorias ‘clássicas‘, aparentemente le-vamos em conta vários aspectos como, por exemplo, os seguintes:

(1) os objetos que nos cercam tendem a permanecer idênticos a simesmos (note a dificuldade em se discutir esse tópico, como aliastem atestado toda a nossa tradição filosófica sobre o problema daidentidade temporal),5

(2) um objeto não pode ter e não ter uma certa propriedade nas mes-mas circunstâncias (como estar e não estar em um determinado lugarem um determinado tempo), ou ter e não ter um certo formato oucomposição,

(3) se consideramos duas de suas características, como sua locali-zação e velocidade, elas possam ser medidas (mensuradas) com aacuidade que se deseje (em função das imitações tecnológicas),6

(4) um determinado objeto físico (ou geométrico) seja dotado de pro-priedades, que podemos via de regra descrever para qualificá-lo ouenquadrá-lo em uma determinada categoria de objetos, e ainda

(5) dada uma certa característica que lhe possa ser aplicada, ele atenha ou não.

Esta imagem intuitiva dos objetos que nos cercam e do modo comolhes associamos suas características mais imediatas (propriedades e re-lações com outros objetos), influenciou a formação de nossas primeirassistematizações racionais, em especial a geometria dos antigos gregos,

5Um exelente livro que discute muito a identidade trans-temporal é [Qi.1973].6Como teremos oportunidade de ver em outro capítulo, essa questão traz um pro-

blema com o advento da física quântica, pois o ‘ato de medir’ uma propriedade, comoa posição de um certo fóton, de acordo com a intepretação usual, causa a sua destrui-ção; assim, como podemos dizer que o objeto ‘tem’ a propriedade medida se ele jánão existe mais?

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a física, e a própria lógica. Muitos dos princípios básicos da lógicatradicional resultam de suposições como as acima. Através da depu-ração e sistematização de certos sistemas de categorias, chegamos emparticular aos sistemas lógicos. Levando em conta princípios como osmencionados, edificamos a lógica tradicional, bem como a lógica clás-sica. Assim, para nós, uma lógica é, como para da Costa, um sistemade cânones de inferências baseado em um sistema de categorias.

Ou seja, como diz o mencionado autor, “a lógica aristotélica e a ló-gica matemática não são mais que generalizações idealizadas de leis queregem os entes geométricos euclidianos; os corpos geométricos são es-táticos e imutáveis, dotados de propriedades e mantendo relações entresi, como as substâncias de Aristóteles. “[Co.1980, p.120]7

Essa concepção dos objetos geométricos euclidianos se estende emboa medida não somente à lógica, mas à matemática tradicional e à fí-sica clássica. O que se fala dos objetos geométricos nas linhas acimapode igualmente ser dito dos objetos físicos ‘clássicos’. Isso terá im-portância mais abaixo (ver o capítulo ‘Ontologia e Física‘). Ou seja, asleis lógicas dependem em muito do quadro conceitual que elaboramospara dar conta do nosso contorno, o que qualifica (grosso modo) o quese entende por proceder racionalmente. De fato, continuando a seguirda Costa,

“[q]uando exercemos nossa faculdade cognitiva, utilizamoscertas categorias, como as de objeto, propriedade e relação,que são evidentemente sugeridas pela experiência, mas cujaconfiguração final transcende a própria experiência. Assim,nossas interconexões com pessoas e determinados objetosmacroscópicos motivam o estabelecimento da categoria ge-ral de objeto. De fato, na lógica aristotélica, o objeto queela considera é o objeto macroscópico da vida comum, com

7Usualmente se aceita que Heráclito (c. 535-475 a.C.), por exemplo, teria umaconcepção distinta dessa que podemos chamar de ‘Aristotélica’ (ou talvez mais pro-priamente, ‘Parmenediana’), aceitando a possibilidade de certos tipos de contradição,ainda que, como se sabe, seja extremamamete difícil extrair qualquer conclusão nessesentido de autores de cujos textos nos restaram apenas poucos fragmentos; ver noentanto as análises de Nietzche e de Heidegger em [Hd&Ni.1973].

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suas características estáticas e substancialistas. No entanto,a constituição dessa categoria não foi espontânea e indepen-dente da experiência, como a análise da evolução da criançae do funcionamento da mente primitiva parecem compro-var.” [Co.1980, pp.121-2]

Este ponto de vista parece bem razoável: elaboramos nossas leisracionais a partir de categorias que formamos em função de nossa inte-ração com o mundo que nos cerca (mediante a razão e a experiência),e da capacidade para fazê-lo que temos ou que adquirimos dentro denossa cultura. Para Kant, essas categorias seriam inatas, a priori. Noentanto, hoje podemos flexibilizar essa ideia, uma vez que aceitemos,como parece razoável, que essas categorias mudam com o decurso dahistória (como sustenta da Costa) e se alteram em função de fatores cul-turais e (hoje mais do que nunca) com a evolução da ciência. Porém, aforça da lógica contemporânea reside em grande parte na possibilidadeque oferece de nos fazer depender menos de nossa intuição (que semprese apresenta de qualquer modo em uma etapa ou em outra). Há inúme-ros exemplos na história da matemática de como determinadas ‘evidên-cias’ intuitivas se mostraram equivocadas; não é nosso assunto aqui,mas somente mencionamos o célebre paradoxo de Russell, que surgeda hipótese (bastante intuitiva) de que toda propriedade determina umconjunto, o conjunto dos objetos que têm (ou ‘caem sob’) essa proprie-dade. A lógica moderna, e os sistemas dedutivos em geral, serve comouma espécie de piloto automático para que possamos ‘voar’ a grandesaltitudes, sendo guiados pela espécie de segurança que nos dão os siste-mas dedutivos.

Deste modo, tendo em vista a possibilidade de que os sistemas en-gendrados dependam de algum modo de fatores culturais, pragmáticose outros, não há porque defender a suposição de que lógica seja identi-ficada com lógica clássica, nem que seja a priori. Além disso, mesmose aceitássemos que a lógica é a priori, porque teria que ser a clássica(e se a tradição heracliteana tivesse prevalescido sobre a aristotélica?)Há estudos de natureza antropológica que sugerem que certos povosque tiveram pouco contato com a civilização ocidental raciocinariam deacordo com as regras de lógicas distintas da clássica (vários trabalhos

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com os Azande, um povo da região centro-norte da África, sugerem queeles, aparentemente, aceitam situações que para nós são nitidamentecontraditórias).8 Não entraremos nessa questão aqui, já que o tema édiscutível, mas isso serve para apontar que identificar lógica com ló-gica clássica ou tradicional não é algo imune a discussões. Ademais,tendo em vista que a lógica é, ao que tudo indica, elaborada a partirde sistemas de categorias, que formamos em função de nosso contatocom o contorno, dependendo de fatores culturais, dentre outros, comopoderia ser a priori? Certamente, se as nossas circunstâncias evolutivastivessem sido outras, digamos ao estilo dos Azande, quem sabe a lógicaque hoje chamamos de clássica seria distinta da atual, por exemplo umalógica paraconsistente (lembremos do exemplo dado de Heráclito).

Ferdinand Gonseth (1890-1975) dizia que a lógica está ao par coma ciência empírica, sendo “a física do objeto qualquer" [Gon.1974], ha-vendo aqueles que defendem de forma bastante objetiva uma caracte-rística empírica da lógica. Dentre eles, salientamos (para o leitor in-teressado) os franceses Jean-Louis Destouches (1909–1980) e PauletteFévrier, e a italiana Maria Luisa Dalla Chiara (1939–). Não falaremosdesses autores e de seus argumentos aqui, mas talvez sua menção mo-tive você, leitor, a uma procura por mais detalhes sobre esse tema. Emsuma, aceitamos não unicamente o caráter empírico da lógica, mas re-conhecemos a influência que ela recebe, ou pode receber, de outras ati-vidades culturais, em especial da ciência. Aliás, é nossa tese a de que odesenvolvimento ulterior da ciência, sendo a física quântica talvez o seumais expressivo exemplo, é impulsionador da revisão das leis da lógicaclássica. Mas, quais as suas relações com a ontologia?

5.5 Inter-relações entre lógica e ontologia

É um fato importante insistir que não há, em filosofia, uma concepçãoúnica sobre o status da lógica como disciplina. Em geral, para muitos fi-lósofos, mesmo de hoje em dia, em que pesem os variados sistemas não

8O leitor interessado pode consultar por exemplo [Je.1989], [Co&Fr&Bu.1998] eos trabalhos lá citados.

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clássicos e todas as suas aplicações, quando se fala da lógica (como dis-ciplina), subentende-se tudo o que se refere ao sistema que se denominade lógica clássica, ainda que haja certa dificuldade para caracterizá-lade modo preciso, como vimos acima.

Para alguns, como Nagel, Carnap e Ayer, a lógica (clássica) é me-ramente normativa, simplesmente prescrevendo certas regras e leis queusamos para caracterizar as formas válidas de inferência e o pensamentocorreto. Os sistemas não clássicos seriam, sob este ponto de vista, me-ramente possibilidades teóricas, criações matemáticas puras. Outros,como os filósofos dialeteístas, defendem que a ‘verdadeira‘ lógica éuma lógica não clássica, mais precisamente, uma lógica paraconsis-tente, que dá conta do fato (segundo sua crença) de que pelo menosalgumas contradições são verdadeiras.9 Para uns, que via de regra en-tendem a lógica como a doutrina da inferência válida, a lógica não teriaqualquer relação com a descrição do mundo ou com a maneira comoo concebemos (e, portanto, com a ontologia). Pode-se, no entanto, de-fender a tese oposta. Por exemplo, Newton da Costa é um que permiteque se veja a lógica não unicamente como a doutrina da inferência vá-lida (segundo ele, esse é unicamente um de seus múltiplos aspectos),mas como a parte mais geral da ciência, aquela que se ocupa (também)de seus aspectos mais básicos e fundamentais, como as noções de axi-omatização, verdade, etc. Sob este aspecto, a lógica não é um purojogo formal, jogado com certas regras definidas de modo não ambíguoe rigorosamente consideradas, mas tem um componente que a liga in-diretamente à ontologia, ainda que não diretamente. Para da Costa, sea lógica for concebida como o produto da atividade do lógico, é inde-pendente de qualquer ponto de vista filosófico ou ontológico; por isso,não tem aporte direto com a filosofia ou com a ontologia. Porém, comoparte fundamental da ciência, não é inteiramente a priori (como que-riam alguns como Quine) tendo uma relevância indireta para a filosofia(e para a ontologia).

Esta visão é interessante e útil para que apresentemos nosso ponto de

9Os dialeteístas acreditam que pelo menos alguma contradições são reais. O maiorexpoente desta concepção filosófica é o filósofo inglês Graham Priest (1948–); sobreo dialeteísmo, ver [Pri.06].

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vista, que é em parte consoante com o argumento de da Costa. Aceita-mos que a lógica tem relevância ontológica, mas de que tipo? A respostapode estar em que tipo de concepção se aceita para as origens das leislógicas. Pensamos, como argumentamos acima, que a lógica tradicio-nal tem origem em nossa concepção imediata de mundo, do mundo quenos cerca. Esse mundo é, cremos que para a maioria das pessoas quepartilham conosco o mesmo background cultural, composto de objetos.Nosso mundo é um mundo de coisas (os prágmata dos gregos, segundoJulian Marias [Ms.2004, p.26]) que exibem aos nossos sentidos “múlti-plos atributos ou propriedades"(ibid.). Trata-se de um mundo compostode objetos, observa o físico e filósofo italiano Giuliano Toraldo di Fran-cia (1916–2011). Talvez para um cão o mundo seja um mundo de odo-res e, para um morcego, um mundo de ondas mecânicas. No entanto,talvez pela função privilegiada que damos aos órgãos da visão e do tato,o nosso mundo é um mundo de coisas, de objetos físicos como automó-veis, pessoas ou edifícios. Porém, podemos tornar essa categoria maisabrangente, permitindo que nela caiam praticamente todas as ‘coisas’com as quais lidamos em nosso dia a dia, podendo inclusive incorporarobjetos abstratos, como números, triângulos ou pensamentos. Mesmoassim, o que resulta é que nossa linguagem é uma linguagem objetual;falamos de objetos (nesse sentido amplo), predicamos objetos, relacio-namos objetos. Ademais, podemos coligir esses objetos em coleções, eainda que tardiamente (somente no final do século XIX), aprendemos alidar com essas coleções por meio das teorias de conjuntos. Por maisque haja certa vagueza em muitos conceitos que atribuímos a esses ob-jetos, como entre odores, usualmente partimos do princípio de que essasvaguezas (como a definição do que seja uma pessoa alta ou inteligente)se devem à nossa linguagem, e não ao objeto em si. O homem em aná-lise é um ser bem determinado, que podemos identificar (pelo menosem princípio), falar sobre ele. O predicado ‘alto’ é que seria vago, bemcomo ‘inteligente’, ‘velho’ e muitos outros. Em outras palavras, taisobjetos são indivíduos, no sentido em que podem ser identificados, re-ceber nomes, serem contados, discernidos de outros, etc. Este é, aliás,um dos postulados mais básicos que assumimos para a eficácia de nossodiscurso. Essa noção de objeto como indivíduo subjaz às nossas teorias

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e concepções sobre o mundo ou às suposições que suportam essas con-cepções, que com a ajuda da matemática e da lógica procuram afastartanto quanto possível a vagueza dos conceitos. Com efeito, a noçãode objeto individualizável está presente na física clássica, na matemá-tica tradicional e na lógica clássica, bem como na maioria dos sistemasnão clássicos, como um dispositivo útil para nos auxiliar a formar umquadro da realidade, ou pelo menos de uma parte dela. Se aceitarmosessa hipótese de que a lógica pode nos auxiliar a formar um quadro donosso contorno, e se pensarmos na lógica clássica, o que encontramos?Isso tem implicações ontológicas importantes, como veremos. Cabe an-tes um alerta. Em geral, para formarmos um tal ‘quadro do contorno’(uma teoria científica por exemplo), necessitamos de algum sistema dagrande lógica, mas nossas considerações aqui dirão respeito unicamenteà lógica elementar—ou de primeira ordem, por simplicidade. Porém, ascolocações a seguir podem ser adaptadas para as lógicas de ordem su-perior e para as teorias de conjuntos mais usuais com relativa facilidade.

5.6 Existência e quantificação

Pensemos na palavra ‘existir’, de suma importância para a ontologia emseu sentido tradicional. Seria existir um predicado, da mesma forma queser vermelho ou morar em Paris? Ou seja, se digo que ‘Pedro existe’,estou atribuindo alguma característica (ou propriedade) a Pedro? Seusarmos a linguagem do cálculo de predicados de primeira ordem, comp denotando Pedro e E denotando o predicado ‘existe’,10 podemos es-crever ‘Pedro existe’ como E(p). Esta foi, ainda que não nesses termos,a posição adotada por Santo Anselmo em seu célebre argumento sobrea existência de Deus. Com efeito, St. Anselmo (1033-1109) apresentouem sua obra Proslogion (1078) um argumento célebre em sua prova on-tológica, como a chamou Kant, da existência de Deus (veja [Ms.2004,pp.156ss]). Em resumo, define Deus como “[a]quele que é tal que nada

10Recorde que na linguagem quantificacional usual, constantes individuais (que po-dem funcionar como nomes de objetos) são denotadas por letras latinas minúsculas, epredicados (propriedades e relações) por letras latinas maiúsculas.

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de maior [no sentido de mais perfeito] pode ser pensado". Para An-selmo, uma vez que tenhamos compreendido esta definição de Deus,somos levados necessariamente a aceitar a sua existência. O texto aseguir, que explica sua posição, foi extraído do verbete sobre ele naStanford Encyclopedia of Philosophy:

“qualquer coisa que seja compreendida existe no entendi-mento, assim como o plano de uma pintura já existe no en-tendimento do pintor. De modo que aquilo que nada maiorpode ser pensado existe no entendimento. Mas, se existe noentendimento, deve também existir na realidade. Por que émaior existir na realidade do que no entendimento. Conse-quentemente, se aquilo do que nada maior pode ser pensadoexiste unicamente no entendimento, seria possível pensarem algo maior do que isto (a saber, esse mesmo ser exis-tente também na realidade). Segue-se, então, que se aqueledo que em nada maior pode ser pensado existisse somenteno entendimento, ele não seria aquilo que nada maior podeser; e isto, obviamente, é uma contradição. De modo queaquilo que nada maior pode ser pensado deve existir na re-alidade, e não meramente no entendimento."

Ou seja, Anselmo raciocina de um modo que é bastante similar àredução ao absurdo. Para mostrar que Deus é a criatura mais perfeita,assume por hipótese que não existe tal criatura mais perfeita (que nãotenha em especial o predicado da existência). Então, ele mostra (se-gundo pensa ele) que nesse caso seria possível conceber uma criaturaainda mais perfeita que teria esse predicado e, por ser mais perfeita, te-ria mais qualidades, contrariando a hipótese de que Deus é a criatura àqual se pode atribuir mais qualidades. Assim, a negativa da existênciade Deus tem que ser falsa e, consequentemente, Deus existe.

Podemos dizer que, nesta ‘prova’,11 Anselmo assume que a exis-tência é um predicado. Deus teria todas as propriedades (expressas por

11O argumento foi aqui muito simplificado. Ele tem sido muito discutido na históriada filosofia, e foi reformulado por vários filósofos célebres. Ver [Ms.2004, loc.cit.].

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predicados da linguagem em uso), e em particular a da existência. Natradição aristotélica, recordemos, a conotação da existência era dada emtermos da cópula é, muitas vezes tratada como identidade. A bem daverdade, essa visão da existência como um predicado começa a mudarjá com Kant, que diz, dentre outras coisas, que a afirmação de que exis-tem vacas brancas nada acrescenta ao nosso conhecimento sobre vacasbrancas. Kant, no entanto, não dá o passo essencial realizado pela ló-gica moderna, ou seja, não relaciona a existência aos quantificadores.O filósofo de Könisberg, como os antigos, aceitava que as sentençasda forma sujeito-predicado têm conotação existencial quando são ver-dadeiras; por exemplo, ‘Sócrates é homem’, sendo verdadeira, implicaque Sócrates existe. Como já sabemos, essa concepção traz problemasquando usamos sentenças como ‘Unicórnios são cavalos de um tipo es-pecial’.

No entanto, a existência ainda é considerada em termos da cópulaé. Assim, ‘A é um B’, se verdadeira, implica que A existe, mas a exis-tência, para Kant, não é um predicado, mas unicamente algo implicadopela cópula. Deste modo, ‘existe’, bem como ‘ser’ não são predicadosreais, no sentido de que não ‘determinam’ coisas; ‘existe’ não é como‘branca’, pois não adiciona nada ao sujeito. Na lógica atual, a existênciadeixa de ser um predicado para ser descrita em termos dos quantifica-dores. Isso já é assim com o filósofo austríaco Franz Brentano (1838-1917), segundo alguns o primeiro a constatar que afirmações existenci-ais têm relação com os quantificadores. Por exemplo, dizer que existeuma laranja equivale a dizer que alguma coisa é uma laranja, e não quea laranja tenha a propriedade ‘existir’.

Da mesma forma, dizer que algum homem é viciado equivale a afir-mar que existe alguma coisa que é um homem e esta coisa é um viciado.Frege muda essa concepção antiga no início da lógica moderna, que seacentua na teoria das descrições de Russell, na qual, como vimos, aexistência deixa de ser um predicado (bem como a não-existência), eisso é assim também na lógica clássica. Aliás, Russell criticou a provade Anselmo com base em sua teoria das descrições. Segundo Russell,a sua teoria mostra que a existência não é uma propriedade, aparecendounicamente como parte da estrutura quantificacional da lógica clássica.

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Quando dizemos ‘Políticos existem’, queremos na verdade dizer ‘Existeum x que é uma pessoa, exercendo cargo público, e que em geral nãotem boa reputação’ (ou algo parecido), ou seja, ∃x(P(x) ∧ ¬R(x)). Damesma forma, dizer que Deus existe é dizer que ‘Existe um x tal quex é benevolente, onisciente, misericordioso, etc.’. Assim, ‘Existe umx tal que . . .’ não denota uma propriedade, mas unicamente afirma quealguma coisa tem essas ou aquelas propriedades. Como se faz esse tipode afirmação na linguagem da lógica clássica?

Na lógica clássica de primeira ordem, os postulados que regem osquantificadores são os seguintes:

(Generalização Existencial-GE) A(t) → ∃xA(x); informalmente, sealgo A ‘vale’ para o objeto designado por t, sendo t um termo livrepara x em A(x), então existe pelo menos um objeto que satisfaz A.

(Instanciação Universal-IU) ∀xA(x) → A(t), sendo também t umtermo livre para x em A(x), e duas regras

(Regra 1) de A→ B(x), inferir A→ ∀xB(x), desde que A não conte-nha ocorrências livres de x, e

(Regra 2) de B(x) → A, inferir ∃xB(x) → A, com as mesmas restri-ções acima.

Para vermos como esses postulados agem, é conveniente que avan-cemos algumas considerações sobre a semântica da lógica clássica deprimeira ordem (como já dissemos, podemos adaptar esta discussãopara lógicas de ordem superior).

A semântica da lógica clássica de primeira ordem tem, dentre ou-tras, as características seguintes. Se temos uma sentença com um nome,como ‘Sócrates’ em ‘Sócrates é humano’, que em nossa linguagem deprimeira ordem podemos representar por H(s), sendo H um predicadounário e s uma constante individual, podemos substituir o nome (a cons-tante) por uma variável, digamos ‘x’, obtendo ‘x é humano’, ou seja,H(x) e então ligar a variável por meio do emprego de um quantificador,como em ∃x(x é humano), ou seja, obter ∃xH(x). Assim, em ∃x(x é

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humano), se a sentença é verdadeira, nos comprometemos com a exis-tência de pelo menos um humano. Isso se deve ao princípio de Gene-ralização Existencial (EG), que neste caso fica H(s) → ∃xH(x) . Empalavras, se Sócrates é humano, ou seja, se temos H(s) então, por Mo-dus Ponens,12 concluímos que existe um x tal que x é humano, ou seja,∃xH(x). Mais especificamente, temos a seguinte derivação:

1. H(s)→ ∃xH(x) premissa

2. H(s) premissa

3. ∃xH(x), de 1 e 2 por Modus Ponens.

Dos postulados acima seguem todas as demais propriedades ‘clás-sicas’ dos quantificadores, em especial, como vimos, que em um enun-ciado da forma ‘Existe um x que é um F’, o quantificador existencialafirma do predicado F que ele é verdadeiro para pelo menos um indi-víduo x (do domínio da interpretação). Resumindo, semanticamente,∃xF(x) é verdadeiro para dada interpretação se na extensão de F (que éum conjunto, sub-conjunto do domínio) existir ao menos um indivíduo.Da mesma forma, ∀xF(x) é verdadeiro (para uma dada interpretação) setodo indivíduo do domínio estiver na extensão de F (veja a figura 5.4).

A figura 5.4 ilustra a situação em que temos uma linguagem L, naqual formulamos ∃xF(x), sendo F um predicado unário e x uma va-riável individual. Então ∃xF(x) é verdadeira para uma dada interpre-tação A com domínio não vazio D se e somente se a extensão de F (osub-conjunto do domínio que a interpretação associa a F) contiver pelomenos um elemento.

Dessa forma, por tratarem de predicados e não de indivíduos, osquantificadores podem ser vistos como ‘predicados de segunda ordem’(essa era a visão de Frege). Com essa interpretação, o argumento onto-lógico não pode ser derivado, uma vez que a existência não se aplicariaaos indivíduos.

12Modus Ponens (ou ‘Modus Ponendo Ponens’) é uma regra de inferência aceitapela lógica clássica que diz que duas premissas, uma α e outra da forma α → β,podemos inferir β.

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Da mesma forma, se afirmamos que ‘Todos os dragões voam’, nãonos comprometemos com a existência de dragões, pois numa adequadalinguagem de primeira ordem, isso se traduz em algo como ∃x(D(x)→V(x)), que é verdadeira mesmo se não há dragões (o antecedente docondicional torna-se falso nesse caso). Lembremos mais uma vez quena lógica aristotélica (teoria do silogismo), isso não pode acontecer, poistodos os termos têm que denotar.

&%'$L

DA |= ∃xF(x) se e somente se

Ext(F) , ∅

interpretação A = 〈D, ρ〉

ρ

Figura 5.4: Esquema simplificado da semânticatarskiana.

Em outras palavras, noescopo da semântica usualda lógica clássica atual,dizer que existe um in-divíduo x que tem certapropriedade significa di-zer que existe um conjuntonão vazio de indivíduos aoqual o referido indivíduopertence. A relação semântica com a teoria de conjuntos salta à vista.Com efeito, o que chamamos de semântica clássica para a lógica deprimeira ordem é realizada (via de regra) em uma teoria de conjuntoscomo Zermelo-Fraenkel (ZFC).13

Uma interpretação para uma linguagem de primeira ordem L é umaestrutura A = 〈D, ρ〉, onde D é um conjunto não vazio, o universo dodiscurso (ou simplesmente domínio da interpretação), e ρ é uma fun-ção (a função denotação) que associa aos símbolos não lógicos de Lelementos relacionados a D (elementos de D às constantes individuais,sub-conjuntos de D aos predicados unários, sub-conjuntos de D × Daos predicados binários, etc., funções de D em D aos símbolos funcio-nais unários, funções de D × D em D aos símbolos funcionais binários,etc.). Assim, se ser é ser o valor de uma variável, podemos perguntarna sequência: o que pode ser valor de uma variável? Segundo Quine,como já sabemos, a resposta pode ser colocada em uma só palavra:

13ZFC origina-se de um aprimoramento da primeira formulação axiomática da te-oria de conjuntos, proposta por Ernst Zermelo em 1908. É a teoria da qual se fazmais referências em textos filosóficos. Mais abaixo, veremos um núcleo mínimo destateoria. Para mais detalhes, ver [Kr.2002].

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indivíduos, se entendermos por indivíduos aquelas entidades que satis-fazem a teoria usual da identidade da lógica e da matemática clássicas(ou seja, qualquer coisa que possa ‘ter identidade’). Este ponto, po-rém pode ser contestado. A lógica clássica tem também uma semânticaconstrutiva no sentido dado por exemplo por Paul Lorenzen.14 Assim,mesmo adotando a lógica clássica, não podemos nos assegurar a priorique os objetos do domínio de investigação obedecerão os ditames destalógica. A ontologia acha-se sub-determinada pela lógica, ou seja, umadada lógica não determina uma particular ontologia mas, a rigor, váriasdelas (potencialmente, uma infinidade). Voltaremos a isso depois.

Isso significa que aquilo que pode ser valor de uma variável não de-pende unicamente da lógica considerada, mas da metamatemática queusamos para exprimir, ou descrever, essas entidades (veremos isso maisabaixo). O mais surpreendente é que, sem mudar a lógica, mas uni-camente mudando a metamatemática, podemos nos comprometer onto-logicamente com entidades distintas dos indivíduos usuais, e isso temuma particular importância em física, como veremos.

Exercício Suponha que L seja uma linguagem de primeira ordem cu-jos símbolos não lógicos sejam uma constante individual a e dois predi-cados unários P e Q. Encontre uma estrutura para L na qual as seguintessentenças sejam verdadeiras: (a) P(a), (b) ∃x(P(x) ∧ Q(x)).

5.7 ExistênciasComo vimos, os sistemas de categorias baseados em suposições comoas mencionadas acima (a noção de objeto que se assemelha aos obje-tos do nosso dia a dia, as primeiras formulações informais das leis daidentidade, da contradição etc.) aparentemente nortearam a elaboraçãodas regras clássicas básicas, e estão na gênese da lógica tradicional. Po-rém, a partir do início do século XX, o surgimento das lógicas alternati-vas à clássica trouxe a possibilidade de modificaçpes dessas exigências,

14Agradeço a Newton da Costa por esta observação −pode-se ver o livro de Loren-zen, Constructive Analysis [Lor.1971].

Lógica e Ontologia 105

permitindo que fossem elaborados sistemas onde um ou vários dessesprincípios deixassem de vigorar. (Por motivos que tornaremos claro àfrente, não diremos que os mencionados princípios foram derrogados.)

Sempre houve especulações sobre como divergir da lógica clássicaem algum sentido. Por exemplo, por volta de 1910 e 1911, o filósofopolonês Jean Łukasiewicz e o lógico russo Nicolai Vasiliev, de formaindependente, sugeriram a possibilidade de se erigir uma lógica "não-aristotélica", na qual o princípio da contradição, considerado por Aris-tóteles como "o mais seguro de todos os princípios", pudesse ser vi-olado.15 Em 1936, o filósofo americano Oliver Reiser mencionou apossibilidade de uma lógica ‘não-aristotélica’ na qual o princípio daidentidade fosse violado [Rei.1936]. O assunto é interessante e merece-ria um texto à parte. No capítulo seguinte, mencionaremos unicamentealgumas das motivações provenientes do desenvolvimento da física, emespecial da mecânica quântica. Como desejamos nos referir a questõesontológicas associadas não só à lógica (seja ela qual for), mas a teoriascientíficas em geral, é conveniente que vejamos por ora de que forma alógica e ciência se interconectam, ao menos no que diz respeito à axi-omatização das teorias científicas. Supondo, com efeito, que isso sejapossível. Assim, deixaremos de lado aqueles domínios, se algum hou-ver, para os quais o procedimento axiomático deixe de fazer sentido.16

Como já tivemos oportunidade de mencionar, o método axiomáticooriginou-se na Grécia antiga, sendo Os Elementos de Euclides o livrohistórico mais célebre nessa tradição. De maneira bastante geral, po-demos dizer que uma teoria científica suficientemente amadurecida eque se deseja axiomatizar "desde o zero",17 pode ser disposta formal-

15Para detalhes e referências, indicamos [Co&Kr&Bu.2007].16Várias ‘teorias’ (se é que podem ser assim designadas) da física presente não

foram devidamente axiomatizadas, e em outros campos, como nas ciências humanas,o método axiomático é usado com restrições. No entanto, não precisamos associar apalavra ‘teoria’ com ‘teoria axiomatizada’, o que parece óbvio mas, nessas situações,qualquer discussão acerca de ontologia torna-se imprecisa e questionável. Se comteorias axiomatizadas, possuindo semântica sensata, a discussão ontológica já é difícil,o leitor pode imaginar o que se passa com campos que estão fora desse padrão.

17Há diversas maneiras de se fazer isso; podemos, como usualmente se faz, pres-supor a lógica e a teoria de conjuntos, dando atenção unicamente à parte específica,

106 Tópicos em Ontologia Analítica

mente (pelo menos em princípio isso sempre é possível—porém vejamais abaixo) segundo nos seguintes níveis de postulados:

(i) postulados lógicos(ii) postulados matemáticos(iii) postulados específicos

Via de regra, pressupomos alguma base matemática implicitamente,de sorte que os postulados dos níveis (i) e (ii) podem não figurar explici-tamente (como dito na nota de rodapé anterior). Com efeito, quando seapresenta por exemplo a teoria de grupos, geralmente trabalha-se ‘den-tro’ de uma teoria de conjuntos, como ZF, de forma que unicamente ospostulados específicos de grupo são apresentados, pois ZF já envolveos postulados (i) e (ii). Assim, um grupo, por exemplo, dito resumida-mente, é um conjunto não vazio G dotado de uma operação binária ?tal que:

(a) para todos x, y, z de G, tem-se que x ? (y ? z) = (x ? y) ? z (aoperação ? é associativa);

(b) existe um elemento e ∈ G tal que, para todo x ∈ G, tem-se quex ? e = e ? x (a operação ? admite elemento neutro);

(c) para todo x ∈ G, existe um elemento y ∈ G tal que x?y = y?x = e(cada elemento de G admite um inverso relativamente a ? que aindapertence a G).

O papel da teoria de conjuntos (e da lógica) subjacente se faz evi-dente quanto notamos que, para formular esses postulados, necessita-mos do conceito de conjunto, do de operação binária (que é uma funçãode G ×G em G), etc. Ademais, provamos fatos sobre grupos, o que nosfaz necessitar de uma lógica subjacente. Assim, mesmo que somenteos postulados de grupo sejam mencionados (postulados do grupo (iii)),estão implícitos os de uma teoria de conjuntos (grupo (ii)) e os de uma

ou podemos explicitar toda a parte que subjaz a teoria, que é o caso que estamosconsiderando. Para uma discussão dessas possibilidades, ver [KrArMo.2011].

Lógica e Ontologia 107

lógica (grupo (i)), ou de algo que faça esse papel. O que se passa comgrupos acontece, pelo menos em princípio, com qualquer teoria axio-matizada, seja da matemática, da física, da biologia, ou de outro campoqualquer do saber.

Não perderemos generalidade se supusermos que os postulados ló-gicos são os da lógica clássica de primeira ordem com identidade (igual-dade), e que os postulados matemáticos são os da teoria Zermelo-Fraen-kel com o axioma da escolha (ver abaixo). Claro que há variações;poderíamos substituir, para algumas teorias, os itens (i) e (ii) por umaadequada lógica de ordem superior, ou pela teoria de categorias, ou en-tão ZFC por uma outra teoria de conjuntos que fosse conveniente, comoa teoria de Morse, que em um certo sentido preciso, não tem nem lógicasubjacente. No entanto, o esquema acima é bastante geral e serve paraos nossos propósitos.

Há aqui um ponto sutil que o leitor mais especializado certamenteentenderá. Os modelos das teorias que usualmente consideramos, comoa teoria de grupos, via de regra são conjuntos em alguma teoria de con-juntos como ZF (um grupo é, antes de tudo, um conjunto). Se tambémos axiomas (i) e (ii) tiverem que ser verdadeiros em tal estrutura (nosentido de Tarski), terão que ser verdadeiros os axiomas de ZF, e issoimplicaria que o referido modelo teria que modelar ZF, o que contraria osegundo teorema de incompletude de Gödel (supondo ZF consistente).O leitor certamente já associou o que se disse com a discussão anteriorsobre universos em teoria de conjuntos.

5.8 Os postulados de ZFC

Uma lógica, vista como uma teoria, contém unicamente os postulados(i). Uma teoria de conjuntos, como Zermelo-Fraenkel (ZF), que aquiassumiremos sempre com o axioma da escolha, o que nos fará denotá-la por ZFC, tem os postulados dos níveis (i) como sendo os postuladosda lógica clássica de primeira ordem com igualdade, e os postulados (ii)são os seguintes (há variações na formulação desta teoria). Um núcleomínimo de postulados de ZFC é o seguinte.

108 Tópicos em Ontologia Analítica

Axioma da Extensionalidade dois conjuntos que tenham os mesmoselementos são iguais. A recíproca segue-se da lógica subjacente.

Axioma do Par dados dois conjuntos quaisquer, existe um conjuntoque tem esses conjuntos como elementos e somente eles. Se os doisobjetos forem idênticos, temos o conjunto unitário do elemento dado.

Axioma (esquema) da Separação se A(x) é uma fórmula na qual avariável x figura livre e se z é um conjunto qualquer, então existe umconjunto y (y é uma variável distinta de x) formado pelos elementos dez que verificam A(x). Escreve-se este conjunto assim: y = x ∈ z : A(x).

Figura 5.5: Ernst Friedrich Fer-dinand Zermelo apresentou em1908 a primeira teoria axiomáticade conjuntos.

Axioma da União dado um conjuntoqualquer, existe um conjunto tal que umcerto objeto a ele pertence se e somentese for elemento de algum conjunto quepertença ao conjunto dado.

Axioma do Conjunto Potência dadoum conjunto qualquer, existe um con-junto cujos elementos são os subconjun-tos do conjunto dado.

Axioma do Infinito existe um con-junto que contém o conjunto vazio comoelemento e contém a união de qualquerelemento com o conjunto unitário desse

elemento.

Axioma da Regularidade dado um conjunto qualquer, esse conjuntocontém um elemento que não tem elemento em comum com o conjuntodado. Este axioma impede, por exemplo, que um conjunto possa serelemento dele mesmo, e foi introduzido por John von Neumann.

Lógica e Ontologia 109

Axioma (esquema) da Substituição Alguns estudiosos chamam de‘teoria Z’ (de Zermelo) a teoria acima (muitas vezes sem o axioma daregularidade), deixando a notação ‘ZF’ denotar a teoria obtida quandose acrescenta a Z um esquema de axiomas, o Axioma da Substituição(AS). Neste caso, o esquema da separação pode ser dispensado, pois éconsequência de AS (e dos demais axiomas)—ver [Kr.2002, p.128].18

Um modo de enunciar informalmente o (esquema) axioma da subs-tituição é dizer que a imagem de um conjunto por uma função é aindaum conjunto. Mais tecnicamente, dada uma ‘condição funcional’ na va-riável x, ou seja, uma fórmula F(x, y) com duas variáveis livres tal quepara todo x de um conjunto A haja um único y. Então a coleção de todosesses y formam um conjunto. Este axioma desempenha papel relevantenas partes mais avançadas da teoria de conjuntos.

O axioma da escolha O mais controverso de todos os postulados deZFC é sem dúvida o axioma da escolha, do qual já falamos na seção3.7.1. Há uma enorme quantidade de proposições que lhe são equiva-lentes, mas nos concentraremos em uma delas apenas, a que diz que,dado um conjunto não vazio cujos elementos sejam também conjuntosnão vazios e dois a dois disjuntos (sem elementos em comum), entãoexiste um conjunto formado por um elemento de cada um desses sub-conjuntos. Intuitivamente, isso é bastante razoável: suponha que temosuma escola constituída de 30 salas em que haja alunos (nenhuma delasestá vazia). Podemos então facilmente formar um grupo constituído deum aluno de cada sala. No caso finito, ou seja, quando há um númerofinito de sub-conjuntos no conjunto dado, pode-se demonstrar, a partirdos demais axiomas de ZF (sem o axioma da escolha), que o enunciadoacima é um teorema de ZF. O problema está no caso em que há infi-ninitos sub-conjuntos. Neste caso, como foi demonstado por Gödel e

18Pode-se mostrar ainda que os axiomas da potência e da substituição implicam oaxioma do par, de modo que podemos ficar com ZFC contento os axiomas específicosda extensionalidade, união, potência, infinito, substituição, escolha e (se quisermos)regularidade. Bourbaki simplificou ainda mais a apresentação, condensando os axio-mas da união e (separação e) substituição por um esquema da seleção e da união, masBourbaki não assumia o axioma da escolha [Bo.1968, p.69].

110 Tópicos em Ontologia Analítica

Cohen, o enunciado acima não pode ser demonstrado ou refutado emZF, suposta ser uma teoria consistente. O axioma da escolha é indepen-dente dos demais axiomas de ZF (supostos consistentes).

O interessante é que por meio desse axioma, podemos provar a exis-tência de determinados conjuntos sem que possamos exibí-los explicita-mente. Um exemplo célebre é o do ‘paradoxo’ de Banach-Tarski, vindoa lume em 1924. Trata-se apenas de um resultado contra intuitivo, enão de um paradoxo estrito senso. Em linhas gerais, diz que podemosdecompor a superfície de uma esfera de forma a recombinar as partesobtidas (importante: sem deformá-las) e obter duas esferas do mesmotamanho da original. O truque está em que a demonstração se vale doaxioma da escolha, e não se pode exibir (de alguma forma construtiva)qual seria a tal decomposição; uma vez que aceitemos o axioma, tal de-composição ‘existe’, mas não sabemos o que ela é. Em outras palavras,o axioma nos garante que existem certas entidades que no entanto nossão inacessíveis.

O axioma da escolha, apesar de implicar resultados estranhos comoeste, é essencial na chamada ‘matemática clássica’. Há no entanto o queCohen chamou de ‘matemáticas não-cantorianas’, que postulam algumaforma de negação deste axioma, as quais têm propriedades distintas damatemática usual. Este assunto, no entanto, extrapola o interesse destelivro, mas deveria ser investigado pelo interessado em questões ontoló-gicas, pois pode levar a novas hipóteses e conceitos.

O universo conjuntista Os axiomas acima são modelados por umuniverso de conjuntos (veja a figura (5.8)). Percebe-se que os axiomas(não todos, como o da extensionalidade) falam da existência de certosconjuntos. São precisamente esses conjuntos, que são aqueles ‘garanti-dos’ pelos postulados, ou que deles resultam, que podemos aceitar comopertencentes à ontologia básica da teoria ZFC. Um exemplo de um con-junto não dado diretamente pelos postulados, mas deles resultante, é oconjunto unitário de um conjunto qualquer. Com efeito, resulta do axi-oma do par que, dados dois conjuntos x e y, existe um conjunto z quecontém x e y como elementos e nada mais (escreve-se z = x, y). Po-rém, se x = y, esse conjunto conterá unicamente um elemento, digamos

Lógica e Ontologia 111

x, e é dito ser o unitário de x (escreve-se z = x). Outro conjunto nãopostulado explicitamente, mas que se pode provar existir (e ser único),é o conjunto vazio, que não tem elementos (basta aplicar o axioma daseparação a um conjunto qualquer z, sendo A(x) a fórmula x , x).

AAAAAAAAAAAAA

V0 = ∅

OnVVα

Vn

Figura 5.6: O universo da teoria de conjuntos sem átomos. On é a classe dosordinais.

5.9 ZFC e o ‘conjunto’ universalIntuitivamente, um conjunto “é uma coleção de objetos distintos denossa intuição ou pensamento", dizia Georg Cantor (1845-1918),o criador da teoria de conjuntos, mas há coleções que não podem seraceitas como ‘legítimas’ pelos postulados de ZFC (supostos consis-tentes). Um exemplo é o do conjunto de todos os conjuntos, ou con-junto universal. Podemos definir na metalinguagem esse conjunto comosendo a coleção de todos os objetos que são diferentes deles mesmos(contrariando assim uma lei lógica, o Princíipio da Identidade), ou seja,U = x : x = x.19 Intuitivamente, como x = x é uma lei lógica (um te-orema da lógica de primeira ordem, independentemente do que seja x),

19Repare a diferença para com o modo como escrevemos o conjunto y quando vi-mos o esquema da separação; aqui, os objetos x não são tomados de nenhum z dadoantes pelos axiomas da teoria. Este é essencialmente a razão pela qual a existência deU conduz a contradições.

112 Tópicos em Ontologia Analítica

U contém como elementos todos os objetos (conjuntos). Vamos provar,baseados nos axiomas acima de ZFC, que não pode haver tal conjunto,desde que assumamos que ZFC é consistente (se ZFC for inconsistente,poderemos derivar em seu interior qualquer proposição—fórmula desua linguagem, em particular a de que existe um conjunto universal).

Seja então z um conjunto qualquer, e seja y um conjunto definidopela fórmula A(x) ↔ (x ∈ z → (x , x)) (que é uma fórmula da lin-guagem de primeira ordem que fundamenta a teoria ZFC), ou seja, nalinguagem usual, y = x ∈ z : x , x. Este conjunto ‘existe’ por forçado axioma da separação, pois é formado ‘separando-se’ dentre os ele-mentos de z aqueles que não pertencem a si mesmos (eventualmente,pode resultar no conjunto vazio). Pelo princípio do terceiro excluído,que faz parte da lógica subjacente a ZFC) temos que y ∈ y ou y , y.Mas pela definição de y, temos que y ∈ y ↔ y ∈ z ∧ y < y. Se y ∈ z,então y ∈ y ↔ y < y, de onde facilmente se deriva uma contradiçãoy ∈ y ∧ y < y. Portanto, y < z. Ou seja, dado um conjunto qualquerz, existe sempre um conjunto (como y acima) que não pertence a ele.Logo, supondo ZFC consistente, não há conjunto que contenha todosos conjuntos (um conjunto ‘universal’) —repare ademais que não ne-cessitamos do axioma da escolha para esta prova, logo o resultado valepara ZF.

Vê-se assim, por meio desses exemplos, como se dá a ‘existência’de conjuntos. Temos uma noção intuitiva de conjunto, como vimos coma ‘definição’ de Cantor vista acima, mas já sabemos que se deixarmosnossa intuição viajar demasiadamente, poderemos ter problemas, poispodemos ser levados a imaginar o conjunto universal. Com efeito, o queé ou deixa de ser um conjunto depende da teoria que se considera. EmZFC, há coleções que são conjuntos (de ZFC), e há outras coleções quenão são conjuntos de ZFC, o que não impede que sejam conjuntos deoutras teorias (por exemplo, na teoria NF de Quine, existe conjunto uni-versal). Este é o caso do célebre conjunto de Russell, do qual falaremosa seguir.

Lógica e Ontologia 113

5.10 O ‘conjunto’ de RussellEntre os princípios básicos da lógica clássica, já sabemos que figurao princípio da contradição, ou da não-contradição, como preferem al-guns. Como vimos, este princípio pode ser formulado de vários modosnão equivalentes. Em um deles, diz que dentre duas proposições con-traditórias, isto é, tais que uma delas seja a negação da outra, uma delasdeve ser falsa.

Por exemplo, dado um certo número natural n, então, dentre as duasproposições ‘O número n é par’ e ‘O número n não é par’, uma delasdeve ser falsa. Em outros termos, proposições contraditórias não po-dem ser verdadeiras simultaneamente; assim, uma contradição, ou seja,uma proposição que é a conjunção de duas proposições contraditórias,como por exemplo ‘o número n é par e o número n não é par’, não podenunca ser verdadeira. Há, no entanto, um outro motivo para se tentarevitar proposições contraditórias e contradições. Tecnicamente, em umsistema dedutivo baseado na lógica clássica, ou mesmo na maioria dossistemas lógicos conhecidos, como a lógica intuicionista, se há dois te-oremas contraditórios (ou se for derivada uma contradição), então todasas expressões bem formadas de sua linguagem (ditas ‘fórmulas’ da lin-guagem) podem ser demonstradas (este fato é conhecido como regra deScotus, ou regra da explosão, e pode ser escrita simbolicamente assim:A ∧ ¬A → B, para A e B fórmulas quaisquer) —na forma de regra, es-creveríamos A,¬A ` B. Em resumo, em um tal sistema, prova-se ‘tudo’(corretamente escrito na linguagem do sistema, de acordo com as suasregras gramaticais). Um sistema deste tipo é dito ser trivial. Dito demodo não muito rigoroso, uma lógica é paraconsistente se pode funda-mentar sistemas dedutivos inconsistentes (ou seja, que admitam tesescontraditórias, e em particular uma contradição) mas que não sejam tri-viais.

Com base em uma tal lógica (há uma infinidade de sistemas para-consistentes), pode-se edificar uma teoria de conjuntos contendo porexemplo o chamado conjunto de Russell,, o conjunto de todos os con-juntos que não pertencem a si mesmos, que pode ser escrito assim:

R = x : x , x.

114 Tópicos em Ontologia Analítica

Esse conjunto não ‘existe’ nas teorias clássicas de conjuntos comoZF (fundadas na lógica clássica), no sentido de que não pode derivadode seus postulados, se estes forem consistentes. No entanto, R podeexistir (ser o valor de uma variável) em muitas teorias paraconsistentesde conjuntos.

O que ocorre com as lógicas paraconsistentes pode ser generalizado.Dependendo da lógica (e da matemática) consideradas, podemos supora possibilidade de admitir uma vasta variedade de entidades que podemser os valores das variáveis de uma adequada teoria, como dizia Quine.Assim, o seu célebre dito “ser é ser o valor de uma variável", tendoem vista as lógicas não clássicas, com as quais Quine não simpatizava,ganha um reforço de da Costa, que acrescenta: “de uma dada linguageme com uma determinada lógica subjacente"[Co.2002].

No entanto, como chamaremos a atenção na próxima seção, isso nãonos parece ser suficiente, devendo ser considerada ainda a metateoria naqual as entidades que podem ser os valores das variáveis são mostradasexistir. Veremos isso no que se segue.

5.11 O que pode ser o valor de uma variável?A filósofa norte-americana Ruth Barcan Marcus (1921–2012) salientaque, “onde o assunto (subject matter) está bem definido, i.e., onde o do-mínio está bem definido e (o que é mais importante), onde nós estamossempre comprometidos ontologicamente em algum sentido, então tudobem: ser é ser o valor de uma variável"[Mr.1993, p.8]. Ressaltemos,na citação, a expressão ‘onde o domínio está bem definido’. O que issopode significar? Recordemos que o comprometimento ontológico deuma teoria, para Quine, se centra em duas grandes máximas: ser é sero valor de uma variável e não há entidade sem identidade. A ressalvamencionada acima pode nos auxiliar a entender como essas duas frasesse relacionam. Marcus continua:

“[s]e já acreditamos —em algum sentido de ‘existência’—na existência de objetos físicos ou de números, então, se emnossa interpretação os objetos físicos ou os números são os

Lógica e Ontologia 115

objetos sobre os quais as variáveis variam, isto se moldacom o status de que eles já tenham sido garantidos."(ibid.).

Ou seja, devemos saber a que nossas linguagens se referem, ou pre-tendam se referir, logo, parece nos reportar ao fato de que necessitamosrepresentar as entidades que podem ser valores das variáveis de algumaforma. Para tanto, cremos que é importante considerar aquilo que Quinechama de ‘teoria de fundo’ (background theory), mas que aqui, semquerer fazer exegese de suas ideias, vamos chamar de teoria-base. Ve-jamos de que se trata. Em seu artigo ‘Relatividade ontológica’, Quinediz que

“[u]ma ontologia é, em verdade, duplamente relativa. Es-pecificar o universo de uma teoria somente faz sentido comrelação a alguma teoria de fundo e somente com relação aalguma escolha de uma tradução de uma teoria na outra.(. . .) Não podemos saber o que é algo, sem saber como elese distingue se outras coisas. Assim, a identidade faz umasó peça com a ontologia. Consequentemente, ela está en-volvida em uma relatividade, como se pode prontamenteilustrar. Imaginemos um fragmento de uma teoria econô-mica. Suponhamos que seu universo compreende pessoas,mas que seus predicados são incapazes de distinguir en-tre pessoas cujas rendas são iguais. A relação interpessoalde igualdade de rendas goza, dentro da teoria, da proprie-dade da substitutividade da própria relação de identidade;as duas relações são indistinguíveis. É apenas com rela-ção a uma teoria de fundo, na qual mais coisas se podemdizer da identidade pessoal do que a igualdade de renda,que somos capazes inclusive de apreciar a descrição acimado fragmento da teoria econômica, dependendo, como de-pende, de um contraste entre pessoas e rendas". [Qu.1980,pp.148-9]

Deste modo, pessoas com a mesma renda, ainda que não possam serdiscernidas pelos predicados da linguagem considerada (que chamare-mos de linguagem objeto, ou seja, discernidas internamente à teoria),

116 Tópicos em Ontologia Analítica

podem sê-lo na teoria de fundo, mais rica (na linguagem da teoria-base).A concordância em todos os predicados da linguagem objeto fazem doisobjetos a e b serem ‘idênticos’ (preferimos dizer relativamente indiscer-níveis) do ponto de vista da teoria objeto, porém, a e b podem vir a serapontados como distintos pela teoria de fundo, por exemplo por meiode alguma propriedade que não pertença à linguagem da teoria objeto(mas à linguagem da teoria de fundo) e que um deles possua e o outronão.

Se lembrarmos ainda que para Quine ‘lógica’ é sinônimo de ‘lógicade primeira ordem clássica’ e que sua ontologia, em última instância, sereduz a conjuntos, e ademais que essas últimas entidades são considera-das como regidas por alguma teoria ‘clássica’, como Zermelo-Fraenkel,podemos certamente inferir que aquelas coisas que podem ser valoresdas variáveis são exatamente as representáveis em tais teorias, ou seja,são indivíduos, entidades que obedecem a teoria clássica da identidade.É, portanto, em uma teoria como ZFC que o domínio pode estar bemdefinido, como sugere Marcus, e nessa teoria de fundo estamos sem-pre comprometidos ontologicamente (com indivíduos, como vimos), eé por isso que a segunda célebre frase de Quine coroa o seu critério: oque pode ser valor de uma variável é um objeto dotado de identidade,um indivíduo.

Ainda que Quine tenha reconhecido que mudanças em certas áreaspudessem envolver a necessidade de considerar outras lógicas, comofoi o caso específico da mecânica quântica, ele nunca desenvolveu es-sas ideias. De qualquer modo, aparentemente, ele nunca questionou ateoria clássica da identidade, ainda que lhe tenha dado uma abordagemparticular (confundido identidade com indiscernibilidade relativa a umaquantidade finita de predicados). Assim, se interpretamos a teoria defundo quiniana como a metateoria na qual podemos elaborar os concei-tos semânticos da teoria objeto, podemos tentar alcançar um novo modode nos comprometer ontologicamente com entidades. Deste modo, ocomentário feito no final da última seção, a saber, de que tendo em vistaa possibilidade das lógicas não clássicas terem sugerido que ser é sero valor de uma variável de uma dada linguagem e módulo uma dadalógica, podemos acrescentar “. . . e relativamente a uma determinada te-

Lógica e Ontologia 117

oria de fundo". Com efeito, o que tomarmos como sendo a metateoriana qual expressamos a semântica da teoria objeto pode determinar deforma essencial aquilo que pode ser valor de uma variável (da lingua-gem objeto).

Em resumo, a questão colocada por último sustenta que se dizemos‘Sócrates existe’ em uma linguagem conveniente L, e isso é verdade,ou seja, se Sócrates pode ser o valor de uma variável, devemos poderdescrevê-lo, ou representá-lo, em uma adequada linguagem na qual sepossa fundamentar uma semântica para L (de modo que uma teoria quetenha L como base seja ao menos correta relativamente a essa semân-tica).20 Assim, não basta dizer que ser é ser o valor de uma variável[Qu.1980] de uma dada linguagem e com uma dada lógica subjacente[Co.2002]. É preciso acrescentar que isso se dá relativamente a umadada teoria de fundo (background theory, para empregar a terminologiade Quine), na qual uma semântica para a linguagem objeto possa serdevidamente estabelecida. Consequentemente, para nós, ser é ser o va-lor de uma variável de uma dada linguagem, relativamente a uma dadalógica, e módulo uma certa teoria de fundo.

Esta conclusão tem um profundo impacto nos estudos fundacionis-tas da física quântica, como veremos mais à frente, mas aqui resumimosa sua essência para que o contexto fique pertinente.

Na mecânica quântica (ressaltemos deste já que não há a mecânicaquântica, mas um grupo de teorias que conjuntamente são assim de-nominadas), há situações em que duas entidades (duas partículas porexemplo) não podem ser discernidas de forma alguma. Há restriçõesaté quanto à possibilidade de haver alguma variável oculta (ao forma-lismo) que permitiria a sua distinção, pois sabe-se que assumir tais va-riáveis acarreta outros problemas com a teoria. Um exemplo típico deuma tal situação é o dos estados emaranhados (entangled states), nosquais duas ou mais partículas estão de tal modo relacionadas que nãose pode distinguir os seus estados individualmente: elas formam umtodo indivisível e suas propriedades são dadas pelas dessa totalidade.

20O chamado ‘teorema da correção’ de uma teoria T diz informalmente que todosos teoremas de T são ‘verdadeiros’ nos modelos de T . Para detalhes, consultar umlivro de lógica, como [Md.1997].

118 Tópicos em Ontologia Analítica

Ou seja, somente o todo pode ser dito ter uma propriedade, e não aspartículas individualmente. Assim, se medirmos algo em uma delas, amesma propriedade achar-se-á determinada para a outra. Se aceitarmoseste fato, que hoje em dia é tido como um dos fatos mais corroboradosque há, não poderíamos poder distinguir entre duas partículas emara-nhadas.

Ora, suponha que elaboremos nossa mecânica quântica em uma teo-ria como ZFC, o que podemos supor acontece com as formulações usu-ais desta teoria. Podemos tratar certas entidades como indiscerníveis deuma variedade de modos distintos, mas e qualquer deles, ficará sem-pre a questão de que, em ZFC, qualquer entidade (nela representada)é um indivíduo, ou seja, tem uma identidade bem definida (pela teoriada identidade de ZFC), ainda que muitas vezes não possamos nem aomenos nomeá-las, como já vimos antes na página 79 com o caso dasboas-ordens sobre R. Mas isso não importa: dois desses indivíduos,com nomes ou não, são sempre distintos: se são dois (ou mais), ne-cessariamente são diferentes. Note que isso se deve à teoria de fundo(ZFC). A teoria física pode não discerní-los, mas a teoria de fundo fazisso. É como se a lógica nos desse um modo de discernir as entidades,o que a física não é capaz de fazer.

Ora, como contornar esta situação de modo a podemos admitir queas entidades não podem mesmo ser discernidas de forma alguma, ouseja, como sustentar uma ontologia de tais entidades? Só há um jeito:mudar a teoria de fundo. Por exemplo, usando a teoria de quase-conjuntos[Fr&Kr.2006], podemos elaborar uma versão da teoria quântica na qualas partículas (ou seja lá que entidades forem) podem ser vistas comoabsolutamente indiscerníveis, como parece requerer a própria teoria.Falaremos mais disso à frente.

Uma outra observação importante é a seguinte. Vimos que a lógicaclássica, bem como a matemática tradicional e a mecânica clássica, foielaborada tendo-se em vista a nossa concepção de mundo baseada nosobjetos que nos cercam (em nossa escala de tamanho). Agora, vamosfazer um exercício na direção inversa: suponha que temos uma teoria Tbaseada na lógica clássica. Qual o tipo de ‘mundo’ que observamos sobo ponto de vista de T? Aparentemente, somos levados a pensar que os

Lógica e Ontologia 119

domínios de aplicação de T teriam que ser regidos pela lógica clássica,mas já vimos que isso é falso. Lembre do que dissemos acerca da ló-gica clássica ter também uma semântica de índole intuicionista. Assim,mesmo que estejamos interessados não propriamente em entidades ma-temáticas, mas em objetos físicos, não podemos postular para eles osditames da lógica clássica tampouco. A possibilidade de eles ‘obede-cerem’ outra lógica acha-se aberta, ainda que, com a nossa T , vejamossomente alguns de seus aspectos.

120 Tópicos em Ontologia Analítica

Capítulo 6

Ontologia e Física

Afisica de hoje traz questões extremamente interessantes paraa discussão ontológica. Alguns dos temas presentes demaior interesse dos filósofos da física estão relacionados àontologia das teorias físicas, em especial das teorias quân-

ticas de campos, entrando ao chamado Modelo Padrão (da física de par-tículas) —que unifica três das quatro forças fundamentais da natureza(veja-se [Ca.1999]).1 O tema, relacionado à chamada gravitação quân-tica, área da física que procura unir o Modelo Padrão com a relativi-dade geral ainda é bastante recente, mas relevante (ver por exemplo[Ri&Fr&Sa.2006]). A dificuldade matemática dessas teorias, porém,nos obrigará a restringir nossa discussão a alguns tópicos apenas e aindainformalmente, mas isso já será suficiente para mostrar a você, leitor, ariqueza do assunto e a sua atualidade. Em grande parte do texto, pro-cederemos como faz o físico, simplesmente assumindo a existência decertas entidades, ainda que nosso objetivo seja, ao final, esquadrinharessas suposições de um ponto de vista formal.

1As quatro forças são a eletromagnética, a força fraca (responsável por exemplopelo decaimento radioativo), a força forte, responsável pelas coalisões nucleares, e a‘força’ gravitacional. As três primeiras, presume-se, estão contemplatas pelo chamadoModelo Padrão da física de partículas. Ainda se espera pela unificacão da quartaforça, um domínio que é denominado de Gravitação Quântica; veja [Ri&Fr&Sa.2006].Sobre questões ontológicas ligadas às teorias quânticas de campos, ver [Ca.1999],[Kum.et al.2002].

122 Tópicos em Ontologia Analítica

Em resumo, o que diremos ao final é que uma teoria científica podeser pensada como um dispositivo (matemático, nas disciplinas das ci-ências empíricas como a física) que nos permite dar conta de um certo‘modelo’ que fazemos de uma porção da realidade, num sentido queespecificaremos depois. Assim, o que é ou deixa de ser uma entidadecomo uma partícula ou uma onda, por exemplo, depende da particularteoria que estejamos considerando, e que devemos evitar em ciência es-peculações metafísicas sobre o que seriam essas entidades fora de umaparticular teoria, pois dificilmente conformar-se-ão à teoria. Desenvol-veremos isso ao final do capítulo.

Assim, em um primeiro momento não nos preocuparemos com o ri-gor acerca dos fundamentos da física quântica, como poderíamos fazerse iniciássemos questionando os sentidos dados a palavras como ‘onda’e ‘partícula’. Como veremos, o que há é um formalismo matemáticoe, por assim dizer, várias ‘teorias quânticas’ (teoria ondulatória, teoriacorpuscular, teoria de variáveis ocultas, etc.), todas baseando-se essen-cialmente no mesmo formalismo matemático. Porém, como dissemos,procederemos como faz o físico, discorrendo informalmente sobre es-ses conceitos, e ficaremos restritos à mecânica quântica não relativista,ainda que muitas vezes façamos aportes às teorias quânticas de campos.

A pergunta de Quine, nossa velha conhecida, ‘O que há?’ ganhauma característica peculiar na física presente, uma vez que fica restritaa unicamente um certo tipo de entidade física, ou objeto físico, comopreferimos dizer. Na medida em que a física se ocupa dos constituintesúltimos da matéria, a questão do objeto físico entra em cena de modoessencial. Ainda que segundo alguns autores (como o Prêmio NobelSteven Weinberg, conforme veremos com mais detalhes à página 157)a física não se ocupe de ontologia propriamente, ou seja, em discor-rer sobre ‘o que há’, mas consistiria unicamente em explicar a razãodo mundo ser como é. Porém, senão pelo físico, mas pelo filósofo,as questões ontológicas devem ser levadas em conta, e se este não de-seja ficar restrito à pura especulação, deve se acercar do que realmenteocorre com a ciência presente, e então não pode deixar de dar atençãoàs teorias vigentes, em especial das teorias quânticas.

Os fatos surpreendentes apresentados pela física quântica, no que

Ontologia e Física 123

concerne ao nosso estudo, dizem respeito à total discrepância que há en-tre o que se assume ser o comportamento do objeto quântico,que por vezes denominaremos de quantum (no plural, quanta) em re-lação aos objetos do nosso quotidiano (e da física clássica), pelo menossegundo algumas das interpretações, como veremos. Mais à frente, exi-biremos, ainda que sem detalhes, um ponto de vista sobre algumas des-sas características. Uma (talvez a mais importante) das característicasdos quanta, aqui descrita em linhas gerais, é que eles podem entrar emestados de superposição, como ‘passar por um caminho A’ e ‘passarpor um caminho B’, sendo A , B (veja nossa discussão do interferô-metro de Mach-Zehnder na seção 6.2), em que não se pode afirmar queo quantum tem posição ou velocidade (momento), passando a existir(no sentido que pode ser detectado) somente quanto realizamos a me-dida de alguma de suas propriedades. Isso levou alguns críticos (comoEinstein) a indagar se a Lua ainda estaria lá mesmo quando não esta-mos observando . . . Do nosso interesse, importa o sentido que se dáao termo ‘existir’ nesses contextos. Acreditamos que, independente-mente da interpretação que adotemos (mais sobre isso abaixo), deve-mos estender nossa ontologia de modo a que ela comporte um objetoque difere enormemente dos objetos ‘clássicos’ (de nossa percepçãoimediata). Heisenberg, um dos pais da mecânica quântica, falava queos quanta deveriam ser vistos como ‘potencialidades’, “no sentido filo-sofia aristotélica”, diz ele [Hs.1987, p.136], o que permitira que eles secomportassem, depois de uma medida, ora de uma forma (como ‘par-tículas’), ora de outra (como ‘ondas’), dependendo do modo como osexperimentos foram preparados. Se adotarmos esta posição, teremosque rever a noção de objeto físico, que não se conformará mais com anoção intuitiva de que dispomos, calcada na nossa experiência imediata.O objeto físico tornar-se-á uma entidade matemática, descrita por umateoria física, e adquirirá diferentes ‘significados’ dependendo da inter-pretação que considerarmos. Associar um tal formalismo matemáticoa uma ‘interpretação’, procurando dar um sentido físico a tais objetosquânticos constituirá um grande problema. Em particular, neste textoestaremos interessados em sua concepção como não-indivíduos, a qualtocaremos rapidamente mais à frente.

124 Tópicos em Ontologia Analítica

Figura 6.1: Traços em uma câmara de bolhas da primeira par-tícula omega-menos (indicada como Ω− na figura–parte inferior) (do sitehttp://www.bnl.gov/bnlweb/history/Omega-minus.asp)

6.1 Partículas e ondas

Nas teorias quânticas e relativista de campos, que alicerçam a físicapresente, são descritas as chamadas partículas elementares. A área éaté mesmo denominada de ‘física de partículas’, ainda que a palavra‘partícula’ nada tenha a ver com a ideia intuitiva de uma pequena coisa,ou mesmo de uma concepção atomista no sentido dos antigos atomis-tas gregos, como Demócrito e Leucipo. A física de partículas de hoje,ainda que empregue o termo ‘partícula’, trabalha com certo construc-tos matemáticos, que se supõem descrevem o comportamento de certasentidades básicas assumidas pela teoria, muitas vezes sem mesmo quese saiba se há a ‘partícula’ correspondente (achá-las tal como prevê ateoria, ou mostrar que não existem, constitui tema de relevo na físicaexperimental).

Há exemplos célebres disso que estamos afirmando. Um dos maisconhecidos é o da partícula omega-menos (Ω−), prevista teoricamente

Ontologia e Física 125

por Murrray Gell Mann em 1964, em um trabalho de classificação deum grupo de partículas denominadas de hádrons (classificação feita in-dependentemente também por Ne’eman), e descoberta experimental-mente anos depois (veja a figura 6.1). Gell-Mann usou a teoria mate-mática de grupos para classificar os hádrons, e por questões de simetria,foi levado a postular a existência da partícula omega-menos. Pareceincrível como por vezes a natureza parece estar mesmo, como dizia Ga-lileu, escrita em caracteres matemáticos.

Um outro exemplo é o do chamado bóson de Higgs, que segundoa teoria de partículas atual —o Modelo Padrão— é responsável pelamassa das partículas (e de tudo o mais, portanto), e que ao que pareceacaba de ter comprovação experimental.2 Como se vê, os físicos traba-lham com construtos matemáticos sofisticados, e certas entidades físi-cas são muitas vezes supostas como meras ficções úteis. Outras vezes,como parece ser mais comum, o físico realmente acredita na existên-cia de tais entidades, adotando uma posição filosófica que a literaturadenomina de ‘realismo de entidades’. Isso será discutido a seguir.

Uma das mais interessantes de tais ‘construções’ teóricas são as cor-das e super-cordas. Resumidamente, na chamada teoria das cordas (hávárias delas), admite-se que as entidades básicas (‘partículas’) são for-madas por vibração de certas entidades não pontuais, as ‘cordas’, si-milarmente como as notas musicais são obtidas da vibração de um ins-trumento musical como um violão. Uma corda desse tipo é algo dasdimensões da chamada escala de Planck, algo com cerca de 10−33cm,ainda inalcançável empiricamente. Ou seja, não há até o presente comorealizar experimentos nessa escala, e este é um dos motivos para certoceticismo com relação à teoria (um dos grandes físicos da atualidade, olaureado com o Nobel de 1979, Sheldon Lee Glashow, chegou a dizerque a física de hoje—referindo-se às cordas—está mais para teologiamedieval do que para ‘física’ no sentido usual).3

O formalismo matemático empregado na física de hoje é muito so-

2‘LHC’ é a abreviação de Large Hadron Collider, um gigantesco acelerador postopara funcionar em 2008; ver http://lhc.web.cern.ch/lhc/.

3Sobre a teoria das cordas, o leitor interessado pode consultar [Gr.1999] para umtexto de divulgação.

126 Tópicos em Ontologia Analítica

fisticado. Matematicamente, segundo a física de partículas (que é umateoria de campos), tudo o que há são campos; podemos dizer que a onto-logia da física de partículas de hoje é uma ontologia de campos. Comodisse um dos filósofos de destaque nessa área, Tian Cao,

“[d]e um ponto de vista realista, o esclarecimento do queseja a ontologia básica em uma dada teoria é um aspectoimportante na discussão sobre seus fundamentos. A onto-logia básica de uma teoria é assumida ser o elemento con-ceitual irredutível na construção lógica da realidade pelateoria.” [Ca.1999, p.4]

E ele continua, falando especificamente das teorias de campos:

“[a] ontologia básica [das teorias quânticas de campos] éum campo quântico. As partículas, ou os quanta, como ma-nifestações dos estados excitados dos campos, caracterizamos estados do campo. Elas podem ser empiricamente inves-tigadas e registradas, mas não exaurem o conteúdo princi-pal do campo.” (ibid., p.10)

Na física clássica (pré-física quântica), os sistems físicos eram en-tendidos a partir de dois conceitos básicos: partículas e campos (ou ‘on-das’).4 A noção de partícula, ou de ‘corpúsculo’ teria vindo de nossocontato com objetos, enquanto que as ondas vieram de interações com,por exemplo, vagas no mar (op.cit., p.37). Ainda que uma partículapossa ser tanto uma molécula de um gás quanto uma galáxia (depen-dendo de como apliquemos o modelo físico), partículas são concebidascomo entidades discretas, sujeitas a um princípio de impenetrabilidade,que as impede de estar em um mesmo local a um mesmo tempo.5 Um

4Seguimos aqui parcialmente [Le&Ba.1990, cap.2].5Aqui, uma ressalva; nem sempre, em física, partículas são entidades que não

teriam estrutura interna (a palavra ‘elementares’ pode nos induzir a pensar assim). Porexemplo, uma partícula α é constituída por dois protons e dois neutrons. Os físicosfalam na transformação de uma partícula em outra mesmo nos casos em que uma delasestá sendo ‘quebrada’ de forma a mostrar suas partes constituintes.

Ontologia e Física 127

campo, pelo contrário, é algo contínuo, obtido quando encontramos ummodo de atribuir uma quantidade física aos pontos do espaço-tempo;há campos escalares (quanto associamos escalares aos pontos, comotemperaturas), campos vetoriais, quando lhes associamos vetores (comovelocidades), dentre outros. Os campos podem se superpor, como duasondas quando se encontram (ver a figura 6.2). Por exemplo, se acei-tamos que a cada ponto do espaço está associado um potencial gravi-tacional, obtemos um campo gravitacional. Analogamente obtém-se ocampo eletromagnético. Ao estudo da evolução dinâmica dos camposdá-se o nome de ‘teoria de campos’. Esse estudo, levado ao campoeletromagnético, dá origem à QED, abreviação para a eletrodinâmicaquântica, uma das mais importantes áreas da física atual, e parte do mo-delo padrão. Há no entanto que se ter certo cuidado; ainda que nãofaçamos isso aqui, é preciso distinguir entre ‘campos’ no sentido clás-sico (da física clássica) e campos no sentido das teorias quânticas. Noentanto, deixaremos essa distinção implícita, bem como a sua definiçãoprecisa, já que ela não é essencial para nossos interesses neste livro.

(a)−→ ←−A B

(b)−→ ←−

A + B

(c)←− −→? ?

Figura 6.2: Imagem idealizada: duas ondas (ou excitações de campos) seaproximam, se superpõem e depois se separam novamente. Pode-se saber qualé qual?

É conveniente distinguir entre as diversas teorias que caem sob o

128 Tópicos em Ontologia Analítica

rótulo de ‘física quântica’. Primeiramente, há a mecânica quânticapropriamente dita, não relativista, ou seja, que não emprega conceitosda relatividade especial. Nesta teoria, os conceitos de espaço e temposão ‘clássicos’, absolutos, como na física newtoniana. Mesmo assim, hádiferentes versões desta teoria; Heisenberg formulou-a de um modo queficou conhecido como mecânica matricial, enquanto que Schrödinger aformulou como mecânica ondulatória. O formalismo matemático podetambém variar, o mais comum sendo aquele que utiliza os chamadosespaços de Hilbert, e é devido a von Neumann. Posteriormente, Diraciniciou a versão relativística da teoria, dando início às teorias quânticasde campos, havendo, como o nome indica, várias delas. Aqui, ficare-mos restritos à mecânica quântica não relativista, que chamaremos de‘mecânica quântica’ simplesmente, e não fareremos uma distinção por-menorizada, e o que dissermos se aplica tanto a uma versão quanto áoutra, ainda que o que sejam por exemplo ‘partículas’ varie em uma eem outra abordagem. Quando abaixo falarmos por vezes em ‘mecânicaquântica’, pode-se entender qualquer dessas formulações.

A mecânica quântica veio substituir os conceitos de onda e partí-cula por um só, descrevendo uma entidade que ora se comporta comosemelhante a uma partícula, ora se comporta como uma onda. Deve-setem em mente que isto é uma descrição superficial; é difícil falar algoà parte do formalismo matemático, mas prosseguiremos desta forma noentanto. O famoso experimento das duas fendas, primeiramente reali-zado com a luz, vindo a mostrar que ela se porta ora como compostade partículas, ora como um fenômeno ondulatório, foi depois realizadocom ‘ondas de matéria’, tendo sido verificado exatamente o mesmocomportamento.6 Como dito, o formalismo quântico (sua contrapartematemática) pode ser apresentado de diversas formas, a mais comumsendo a que utiliza o conceito de espaços de Hilbert ([Ps.2003]), todos

6O leitor interessado pode consultar qualquer livro de mecânica quântica, como[Ps.2003, Ps.2006] para uma visão geral dos conceitos quânticos básicos. Pode-setambém encontrar facilmente na web (por exemplo, no YouTube) vídeos ilustrando osprincipais experimentos. Uma leitura agradável é a do livro de Gilmore, Alice no Paísdo Quantum: A física quântica ao alcance de todos, [Gi.1998], que explica de modobem informal essas ‘quantices’.

Ontologia e Física 129

eles aparentemente dando essencialmente os mesmos resuldados empí-ricos. O que faz os cientistas divergirem uns dos outros é com respeitoao ‘significado’ desse formalismo, ou seja, sobre como interpretá-lo.Seguindo Pessoa Jr., discerniremos entre quatro interpretações, aindaque haja muitas outras mais:7 para Schrödinger (e muitos outros), osobjetos quânticos são ondas (campos), propagam-se como ondas, masquando se mede uma de suas propriedades eles se comportam como en-tidades mais ou menos bem localizadas, ‘pacotes de ondas’ que agemcomo se fossem partículas. Outros cientistas preferem uma interpreta-ção corpuscular; as entidades quânticas seriam partículas, similares àssuas gêmeas ‘clássicas’, não havendo onda associada. Outros ainda,como David Bohm, preferem associar ambos os conceitos; teríamosuma partícula ‘surfando’ em uma onda piloto, que a guiaria. Já nainterpretação que admite haver complementaridade, advogada inicial-mente por Niels Bohr, os dois fenômenos, o corpuscular e o ondulatóriosão complementares, sendo ambos necessários para a descrição físicados fenômenos, e ora as entidades se comportam de uma maneira, orade outra. (Leitor: cuidado com conclusões apressadas, por exemploachando que alguma delas é absurda. Supreendentemente, elas funcio-nam muito bem do ponto de vista físico, ainda que todas sejam sujeitasa limitações e a críticas).

A discrepância do objeto quântico para com o objeto usual de nossaexperiência (e da física clássica) é tamanha que, por exemplo,J. -M. Lévy-Leblond e F. Balibar sugerem que na verdade trata-se deuma nova entidade; dizem eles:

“[d]evemos, portanto, abandonar a ideia de que qualquerobjeto físico é ou uma onda ou uma partícula. Nem é pos-sível dizer, como algumas vezes é feito, que partículas ‘tor-nam-se’ ondas no domínio quântico e conversamente. Nemdeveria ser dito que os objetos quânticos têm uma naturezadual, a qual é simultaneamente ondulatória e corpuscular(algo que é logicamente absurdo, uma vez que os dois con-

7Textos mais abrangentes como [Ja.1974], [Gh.2005], [Ma.2003] são interessantespara o filósofo.

130 Tópicos em Ontologia Analítica

ceitos são mutuamente exclusivos).

É, portanto, necessário reconhecer que temos aqui uma es-pécie diferente de entidade, uma que é especificamente quân-tica. Por essa razão denominamo-las quantons, mesmoapesar dessa nomenclatura não ser adotada universalmente.8

Os quanton comportam-se de uma maneira específica e ésobre a elucidação desse comportamento que este livro édevotado."([Le&Ba.1990, p.69])

A interpretação que assume campos tem sido preferida tanto por fí-sicos quanto por filósofos, já que ela ‘responde melhor’ aos experimen-tos, como veremos abaixo. A física de partículas de hoje é uma teoriade campos nesse sentido, que procura uniformizar a relatividade espe-cial com a mecânica quântica (a unificação da relatividade geral com amecânica quântica é ainda um problema em aberto; a isso se denominade gravitação quântica, como já se disse acima; apesar de não ser aindauma ‘teoria’ em sentido usual do termo,9 as discussões filosóficas nessaárea acontecem, como apontam os textos mencionados anteriormente—veja [Ri&Fr&Sa.2006] para uma discussão filosófica envolvendo varia-dos aspectos da gravitação quântica). Campos, no entanto, são entida-des matemáticas, e devemos, como sugeriu Sunny Auyang, “distinguirentre o formalismo de uma teoria física de sua significância física efilosófica” [Au.1995, p.145]. Em especial, não devemos confundir adescrição matemática de algo com esse algo, da mesma forma comonão confundimos uma fotografia de uma pessoa com a própria pessoa.Assim, se os físicos aceleram hádrons no LHC, e se há uma classifica-ção das partículas conhecidas, é filosoficamente relevante procurarmosconhecer o que são essas entidades, ou seja, aprofundar a questão onto-lógica a respeito.

Considerações deste tipo podem nos levar, no que concerne às teo-rias de campos, a não considerar o “elemento conceitual irredutível naconstrução lógica da realidade pela teoria”, para empregar as palavras

8[Parece que essa terminologia se deve a Mario Bunge, mas desconheço a fonte.]9Pelo menos no sentido do ideal aristotélico de termos uma teoria com princípios

claros, um sistema de postulados e uma lógica subjacente bem definida.

Ontologia e Física 131

de Cao mais uma vez, mas algumas de suas ‘consequências’, os quanta.Isso faz sentido pelo menos segundo dois aspectos. Primeiramente,é fundamentalmente com os quanta que os físicos (principalmente osfísicos experimentais) estão preocupados (ver mais abaixo); segundo,mesmo a redução última da realidade a campos é algo em aberto, poiscomo vimos há alternativas, como as cordas. Assim, se nas teorias decampos a ontologia se reduz a campos, não se pode dizer o mesmo emgeral. Ademais, um dos físicos experimentais mais importantes da atua-lidade, Anton Zeilinger (da Universidade de Viena),10 quando indagadosobre o porque não utiliza as teorias quânticas de campos (que unema relatividade especial e a mecânica quântica), mas a mecânica quân-tica tradicional (fundamentada no conceito matemático de espaços deHilbert) em sua atividade, respondeu que para todos os efeitos ‘práti-cos’, os quanta são como as partículas descritas pela mecânica quânticanão-relativista.

Sheldon Lee Glashow, já mencionado acima, apesar de ter sido res-ponsável pela criação do Modelo Padrão da física de partículas, umateoria de campos, sustenta que “para governar a ‘Nave Espacial Terra’ echegar ao depósito de combustível do Sol”, tudo o que necessitamos sãoapenas quatro tipos de ‘partículas’, os quarks UP e DOWN, o elétron, eseu neutrino [Gl.2000, p.140, 275]. Ou seja, ainda que usemos teoriasde campos, são os campos ‘como partículas’ que interessam em váriassituações.

Importante salientar que essas entidades, via de regra, como os exem-plos acima evidenciam, não nos são dadas como por exemplo nos é dadoum objeto novo para que o conheçamos, digamos um novo modelo deveículo, ao qual somos apresentados sem nunca termos dele ouvido fa-lar, e que posteriormente descrevemos por suas características, comocor, modelo, ano de fabricação, potência, etc. As partículas elementaresde hoje podem ser virtuais, no sentido de que sua existência ocorre emintervalos de tempo tão pequenos que não podem ser observadas direta-

10Vários artigos de Zeilinger e de pessoas que trabalham com ele no laboratório deóptica quântica, nanofísica quântica e informação quântica, da Universidade de Vi-ena, podem ser encontrados em http://www.quantum.at/. Um livro de divulgaçãodeste autor, contendo várias questões como as que estamos tratando, é [Ze.2005].

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mente, e há algumas delas que, apesar de serem essenciais para que asteorias físicas funcionem a contento, nunca foram observadas, e talveznunca o sejam. Partículas são, hoje, dentro de um dos pontos de vista,quanta de campos, certas formas de excitação dos campos, descritasem espaços matemáticos de várias dimensões e a variáveis complexas(ou seja, dependem de forma essencial dos chamados números comple-xos), e é uma tarefa difícil associar a elas uma ‘realidade’.11 A físicade hoje é constituída de modelos matemáticos (teorias) que se aplicama determinadas situações, e não a outras, e via de regra são condizentescom variadas intepretações de suas entidades básicas. Assim, o que éou deixa de ser um quantum depende muito da teoria que estamos ado-tando. De um certo modo, como advogada Schrödinger, não se podealcançar a ‘realidade’, seja lá o que isso signifique.

Para enfatizar a ideia de como as ‘partículas’ surgem em um campo,convidamos o leitor a olhar a figura 6.3, uma escultura de Antony Gorm-ley, localizada em um píer sobre o Rio Tâmisa, em Londres. Uma fi-gura humana ‘surge’ da concentração de barras de aço, da mesma forma(pode-se supor) que uma partícula surge em um campo.12

Parece evidente que a noção de objeto físico necessita ser revisadaà luz da física presente, e como isso está na base de qualquer suposi-ção ontológica sobre a ciência atual, importa considerarmos o assunto.Um dos aspectos mais intrigantes diz respeito à sua individualidade,que agora consideraremos, pois essa discussão nos permitirá abordardiversos conceitos importantes para os estudos ontológicos atuais.

6.2 Estranhezas quânticas

Assumiremos aqui alguns conceitos de modo informal e algo impre-ciso. Por exemplo, um indivíduo é para nós uma entidade que pos-sui uma ‘identidade’, no sentido de que é uma espécie de unidade e

11Há no entanto tentativas de se fundamentar uma teoria de campos em termos departículas (mas, claro, em sentido distinto daquelas tratadas pela física clássica).

12Veja a descrição da construção da escultura emhttp://www.lusas.com/case/civil/gormley.html.

Ontologia e Física 133

Figura 6.3: A ‘nuvem quântica’ (ver o texto).

pode ser identificado como sendo aquele indivíduo seja em uma multi-dão, seja em instantes posteriores ou anteriores a uma observação feita.Um indivíduo pode, pelo menos potencialmente, ser seguido por suahistória. Minha caneta, mesmo se eu a perder, poderá (pelo menos eutendo a acreditar nisso) ser discernida por mim, mesmo junto a mui-tas outras que tenham sido encontradas e deixadas em uma seção deachados e perdidos. Indivíduos possuem individualidade; não há duascanetas absolutamente iguais, pois (supõe-se que) sempre haverá algumarranhão, alguma marca, que a distinga de todas as outras. Se fossepossível, eu poderia traçar sua ‘história’ desde a seção de achados eperdidos até a minha casa e minha mesa de trabalho para saber como

134 Tópicos em Ontologia Analítica

ela chegou lá. Claro que não posso fazer isso, mas admite-se que hátal história.13 O que confere individualidade a um indivíduo? Há duasrespostas básicas, como exploradas na literatura. Podemos dizer queminha caneta possui um quid, algo que é lhe peculiar e que subjaz atodas as suas características, alguma forma de substrato, uma thisness,apresenta heacceity, para empregar um termo que vem de Duns Scotus(mais sobre isso abaixo).14 Isso faria com que, mesmo adquirindo ouperdendo algumas de suas características conhecidas, como cor ou ou-tros arranhões, ela permanece sendo ela mesma; sua identidade é retida.Teorias que sustentam essa visão são muito propriamente denominadasde teorias de substrato. A outra alternativa afasta qualquer forma desubstrato, admitindo que seria uma propriedade ou uma coleção de pro-priedades que conferiria individualidade a um indivíduo. Tais teoriassão denominadas de teorias de pacotes (ou de feixes) de propriedades(em inglês, bundle theories).

A dificuldade com as teorias de substrato está em se especifiar emque esses consistem, já que por sua própria definição não podem serreduzidos a propriedades. As teorias de pacotes enfrentam dificuldadescomo a possibilidade de haver mais de um objeto com exatamente asmesmas características. Porque não poderia haver duas canetas exata-mente similares, inclusive quanto aos seus arranhões e marcas de idade?Claro que não podemos demonstrar este fato, tendo que assumi-lo ourejeitá-lo, e justificar nossa posição (trata-se de um pressuposto metafí-sico). Usualmente assumimos alguma forma do chamado Princípio daIdentidade dos Indiscerníveis, que remonta pelo menos a Leibniz. Se-gundo essa ideia, se duas entidades possuem todas as características emcomum (propriedades, relações, etc.), elas não são duas, mas uma sóentidade: os indiscerníveis são idênticos, são o mesmo objeto. Assu-mir este princípio é assumir uma posição metafísica, mas se queremosrejeitá-lo, devemos possuir bons argumentos.15 O que dizer do objeto

13A mesma discussão, somente que usando um guarda-chuvas ao invés de umacaneta, foi em muito antecipada por Heinz Post em 1963; veja [Fr&Kr.2006].

14Para uma discussão filosófica, ver [Ad.1979]. No contexto da física quântica, ver[Te.1998]. Para uma discussão geral, [Fr&Kr.2006].

15Uma discussão pormenorizada dessas questões pode ser vista em [Fr&Kr.2006].

Ontologia e Física 135

quântico? É preciso muito mais para qualquer esboço de respostas.

6.2.1 Superposição

Erwin Schrödinger, um dos pais da física quântica, chegou a dizer queo conceito fundamental dessa disciplina é o de emaranhamento (entan-glement). Vamos tentar entender esse conceito. Um sistema físico édescrito no formalismo quântico por uma função a variáveis complexasdenotada por |ψ〉 (que pode ser vista como um vetor em um espaço deHilbert, que é um tipo especial de espaço vetorial). A dinâmica do sis-tema é dada por uma equação diferencial de primeira ordem em relaçãoao tempo chamada de equação de Schrödinger, ES.

Uma equação diferencial é uma equação cuja incógnita é uma fun-ção e nela aparecem não só a função, como também suas derivadas emrelação a algum parâmetro, como o tempo. No caso da equação deSchrödinger, aparece apenas a derivada primeira da função em relaçãoao tempo, ou seja, é uma equação diferencial de primeira ordem. Issoimplica que se as funções |ψ1〉 e |ψ2〉 são soluções da ES, qualquer com-binação linear delas também é, como |ψ〉 = a|ψ1〉 + b|ψ2〉, para a e bnúmeros complexos. Uma tal expressão é dita ser uma superposição de|ψ1〉 e |ψ2〉. Segundo a física clássica, podemos pensar ‘separadamente’nas duas funções, mas via de regra isso não é possível na física quân-tica. O experimento ilustrado abaixo explica o que ocorre, mas antesfaçamos uma distinção importante.

O emaranhamento é um caso especial de uma superposição. Umasuperposição de estados é uma situação em que um determinado sistemafísico, como um gato fechado em uma sala sem janelas e que contém umfrasco de um poderoso veneno, encontra-se em superposição de estadosvivo − frasco inteiro e morto − frasco quebrado, pois não sabemos se ofrasco se quebrou, de forma que o veneno se espalhou e matou o gato.

Um emaranhamento é algo mais complicado; trata-se de uma situa-ção envolvendo dois sistemas físicos que interagiram no passado e queagora encontram-se separados, mas de tal forma que se olharmos (me-dirmos algo) o estado de um deles, ‘adivinhamos’ o estado do outro.Schrödinger disse que o emaranhamento é a situação por excelência da

136 Tópicos em Ontologia Analítica

mecânica quântica, e não tem paralelo na física clássica, constituindoexemplo de um fenômeno tipicamente quântico.

Nota técnica Para o leitor que conhece o formalismo usual via espa-ços de Hilbert, fazemos o seguinte comentário. Suponha que |i〉A éuma base ortonormal para o espaço de Hilbert HA, e que | j〉B é umabase ortonormal para o espaço de Hilbert HB. Um estado geral emHA ⊗HB pode ser escrito assim: |ψ〉AB =

∑i, j ci j.|i〉A ⊗ | j〉B.

O estado é separável se existem escalares cAi e cB

j trais que ci j =

cAi .c

Bj , conduzindo a |ψ〉A =

∑i cA

i |i〉A e |ψ〉B =∑

j cBj | j〉B, e é um estado

emaranhado se não existem tais cAi e cB

j , que permitiriam a separação do‘todo’ (o vetor |ψ〉AB em cada uma de suas ‘partes’, |ψ〉A e |ψ〉B − trata-sede uma forma de holismo, típica da mecânica quântica).

Vamos agora ao experimento, descrito na figura acima, representadona figura a seguir.

@@@@

@@@@ e

e

- -

? ?

---

@@

Fonte

S 1 S 2

S 3

S 4

A

B

superposição destrutiva(nada é detectado)

superposição construtiva(tudo é detectado)

D1

D2

Figura 6.4: Interferômetro de Mach-Zehnder.

Imagine que uma fonte emite um feixe monofotônico (que, quandodetectado, exibirá uma única partícula, digamos um único fóton) so-bre um espelho semi-refletor S 1 (chamado de beam splitter), conforme

Ontologia e Física 137

a figura acima (que esquematiza o chamado interferômetro de Mach-Zehnder). O feixe se decompõe em S 1 em dois feixes, um rumando paraA e o outro para B. Ambos são agora refletidos por espelhos refletores(que não deixam passar radiação) S 2 e S 3, e rumam para outro espelhosemi-refletor (beam splitter) S 4, que novamente divide os feixes. O quese passa (e os arranjos experimentais comprovam isso) é que, quandorefletido, um feixe de ondas sobre uma defasagem de 1/4 de seu com-primento de onda. Assim, o feixe que ruma por A e vai para o detectorD2 sofreu defasagem de 1/4 em S 2 apenas, enquanto que o que seguepor B sofreu defasagens de 1/4 em S 1, S 3 e S 4, somando 3/4. Ou seja,os dois feixes têm defasagem de 1/2, e portanto se anulam, resultandoque nada é detectado em D2. Vejamos agora o que acontece no detectorD1. O feixe por A sofre defasagem de 1/4 em S 2 e em S 4, enquantoque o que ruma por B sobre defasagens em S 1 e S 3, Assim, os dois fei-xes têm defasagem de 1/2 de seu comprimento de onda, resultando queentram em fase em D1, e portanto, são detectados.

A figura 6.5 abaixo ilustra a defasagem de meio comprimento deonda, havendo superposição destrutiva.

λ/2

Figura 6.5: Duas ondas defasadas de λ/2 se anulam.

Podemos raciocinar como na física clássica e supor que o objetoquântico (que pode ser um fóton) possui uma ‘história’ (como minhacaneta no exemplo acima) e que passou por A ou por B? É fácil ver quenão. Isso se deve ao seguinte fato, bem descrito em [Ps.2003, p.12]. Seretirarmos o espelho S 1, o feixe se dirige por A e é repartido em S 4,sendo detectado em D1 ou em D2 com 50% de probabilidade em cadacaso. Substituindo S 1 por um espelho que reflete totalmente, o feixe

138 Tópicos em Ontologia Analítica

dirige-se S 4 por B, e lá se divide, dando novamente 50% de probabili-dade de detecção em D1 e 50% em D2.

Portanto, se o feixe for deslocado tanto por A quanto por B, termos50% de probabilidade de ele ser detectado em D1 ou em D2, mas sa-bemos que, estando abertos os dois caminhos, temos 100% de chancesde detecção em D1 e 0% em D2. Logo, não podemos supor que o feixeveio por A ou por B. Como explicar este fato? A primeira constatação éa de que não há ‘meio fóton’, para que se possa imaginar que o fóton sedecompôs em dois, um rumando por A e outro por B. Pessoa Jr. salientaque a resposta a este tipo de questão, típica da física quântica, dependeda intepretação que se adote (ver [Ps.2003, p.13]).

O resultado do experimento de Mach-Zehnder é tipicamente ondu-latório, e qualquer interpretação corpuscular terá grande dificuldade emexplicá-lo. Em uma interpretação ondulatória, não haverá sentido emperguntar por qual caminho rumou o feixe, ou o fóton. Após o espelhoS 1, ele se encontra em uma superposição de estados, um que indica atrajetória A, outro que indica a trajetória B, que podemos escrever

|ψ〉 = |ψA〉 + |ψB〉. (6.1)

O fato relevante é que, como dissemos, não há sentido ‘separar’ asfunções de onda parciais, o que ocorre somente após a medida (quando afunção de onda ‘colapsa’ em um dos estados, de acordo com a interpre-tação usual).16 Se adotarmos uma interpretação ondulatória, como po-deremos dizer que estamos na presença de um indivíduo? Isso, quandomuito, poderia ser dito somente quando há a medida, quando aconteceo ‘click’ no receptor D1, mas não antes.

Ora, poderia você sugerir, basta prestarmos atenção nas trajetóriaspara ver por qual ele passou. Isso corresponde a colocar alguma formade ‘observador’ num dos caminhos, mas sabe-se dos experimentos quequalquer que seja o modo pelo qual realizemos isso, o fenômeno ondu-latório desaparecerá, mesmo que o processo já tenha sido iniciado (ouseja, se fossemos suficientemente rápidos —e os físicos experimentais

16Há interpretações que tentam afastar o colapso; ver [Gh.2005] para uma das maisimportantes, conhecida como GRW. Outra interpretação que afasta o colapso é a dosmuitos mundos, associada a Hugh Everett III.

Ontologia e Física 139

conseguem sê-lo— para, depois que o feixe passa por S 1 colocarmosum ‘observador’ em uma das trajetórias, mesmo assim o fenômeno on-dulatório desaparece —esses experimentos são denominados de experi-mentos da escolha demorada, e são realizados em laboratório). No ditovulgar, costuma-se dizer que o quantum ‘sabe’ de nossas intenções ese comporta dessa ou daquela maneira mesmo antes de tomarmos qual-quer atitude. Claro que isso é um abuso de expressão, e na verdade nadamais é que um ‘fato quântico’, para o qual, dentre muitos outros, nãotemos um correspondente ‘clássico’, motivo de nossa estranheza.

Há inúmeros outros ‘fatos quânticos’ que chocam nossa visão intui-tiva das coisas, e mesmo a física clássica. Um dos mais intrigantes é oefeito túnel. Na física clássica, temos certeza de que uma bolinha (vejaa figura 6.6) abandonada em A não passará a barreira à sua frente, quetem altura maior do que a altura da qual a bola parte (sujeita unicamenteà ação da gravidade).

@@@

@

@@@@

e@@R

A

e-Be

C

Figura 6.6: Um objeto físico ‘clássico’, representado por uma bolinha ‘clás-sica’ abandonada em A não tem energia suficiente para suplantar a barreiraà sua frente, chegando no máximo ao ponto C, e retornando, até alcançar oequilíbrio em B. Ver [Gh.2005, p.96].

Na física quântica, no entanto (figura 6.7), digamos que um quantumcom energia E tenha diante de si uma ‘barreira’ de energia 2E. Nestecaso, há uma probabilidade diferente de zero de que um quantum possaser encontrado depois da barreira. O estado de superposição a quantum

140 Tópicos em Ontologia Analítica

antes’ e ‘quantum depois’ (da barreira) pode ser escrito

|q〉 =1√

2(|qE〉 + |qD〉).17 (6.2)

Antes de qualquer medida, não podemos afirmar que o quantumpode ser detectado antes ou depois da barreira, podendo haver 50% dechances em cada caso (idem, ibid.).

@@@

@

@@@@

eEstado inicial.

eq à esquerda: |qE〉

eq à direita: |qD〉

Figura 6.7: Um quantum inicialmente no estado inicial, com um potencialpróximo ao da barreira, encontra-se depois em superposição de dois estados|qE〉 e |qD〉. A analogia do quantum com uma bolinha é inadequada, e deve serconsiderada com cautela.

6.2.2 IndiscernibilidadeUma outra caracterísitica tipicamente quântica é a indiscernibilidade(ou indistinguibilidade) absoluta dos quanta. Segundo alguns auto-res, isso oferece uma contestação ao princípio de Leibniz mencionadoacima, e tem sido muito debatido na literatura. Segundo uma tradiçãoque remonta a Aristóteles, podemos distinguir entre propriedades es-senciais e propriedades acidentais. Por exemplo, Sócrates ser filósofo éalgo acidental, posto que o mestre de Platão poderia ter sido outra coisae não um filósofo, digamos um pescador. Mas Sócrates era humano, eisso constituia algo que lhe era essencial. Sem essa característica, elenão seria Sócrates. Aceitar essa distinção consiste naquilo que os mo-dernos filósofos da linguagem denominam de essencialismo. Podemosser essencialistas em física quântica?

17 1√

2é apenas um fator de normalização, usado para que o vetor |q〉 seja unitário.

Ontologia e Física 141

Figura 6.8: Um átomo de helio, onde são re-presentados o núcleo, constando de dois pro-tons e dois neutrons (ao centro), e dois elé-trons (em volta do centro). Retirado do site daNASA.

O físico e filófoso ita-liano Giuliano Toraldo diFrancia diz que os obje-tos quânticos são nomo-lógicos, dados por leisfísicas [To.1981, p.222].Um elétron, por exem-plo, é uma entidade fí-sica que tem (aproximada-mente) massa m = 9.1 ×10−28g, carga elétrica e =

4.8 × 10−10e.s.u. e spin s = ±1/2 (em unidades de ~ = h2π , sendo h

a constante de Planck). Essas caracterísiticas seriam essenciais.18 Umobjeto quântico com a mesma carga elétrica e spin, mas com massaduzentas vezes maior não é um elétron ‘mais pesado’, mas um muon,uma outra entidade física. Elétrons, no entanto, podem ter propriedadesacidentais, como estar em uma certa posição a um certo tempo.

Porém, contrariamente ao que (aparentemente) acontece com os ob-jetos macroscópicos que nos cercam, todos os elétrons têm as mesmaspropriedades essenciais. Relativamente a elas, não há qualquer dife-rença entre eles (o mesmo se dá, obviamente, com qualquer partículaquântica relativamente às suas propriedades). E quanto às acidentais?Seriam dois elétrons discerníveis por propriedades acidentais? Elétronssão fermions, e como tais,19 obedecem ao chamado Princípio de Ex-clusão (proposto por Wolfgang Pauli em 1925), que diz que fermionsnão podem ter todos os mesmos números quânticos (ou seja, estarem nomesmo estado). Isso é essencial para toda a física, e está na base, porexemplo, da tabela periódica dos elementos. Porém, quando considera-

18O assunto no entanto é discutível. Com efeito, segundo a chamada "Interpretaçãode Copenhague", não há sentido preciso em se dizer que um objeto quântico temuma dada propriedade antes que ela seja medida; este assunto, no entanto, extrapola adiscussão presente.

19As chamadas partículas elementares ou são bósons ou são férmions; ainda queo formalismo usual seja compatível com a existência de outras formas de partículas,as chamadas para-partículas, por exemplo. No entanto, não se conhecem entidadesquânticas que não sejam bosons ou fermions.

142 Tópicos em Ontologia Analítica

mos dois fermions, digamos os dois elétrons de um átomo de helio emseu estado fundamental (de menor energia). Sabemos da teoria físicaque um deles tem spin +1/2 e o outro tem spin −1/2.

Se descrevemos o estado do sistema composto pelos dois elétrons,procedemos assim: chamamos o primeiro de A e o outro de B, em es-tados |ψA〉 e |ψB〉 respectivamente. Se quisermos dizer (em nosso for-malismo padrão) que o primeiro está em A e o segundo está em B,o que conferiria uma diferença entre eles, devemos usar um vetor daforma |ψA〉 ⊗ |ψB〉, onde ‘⊗’ denota o produto tensorial dos vetores (nãoé necessário considerar a definição desse produto para entender o argu-mento). No entanto, este vetor não representa nada que seja fisicamenterelevante (não denota um ‘estado físico’). Assim, não podemos tratar osdois elétrons separadamente. Pelo contrário, para descrever o sistemaconjunto devemos usar um vetor da forma

|ψ〉 =1√

2(|ψA〉 ⊗ ψB〉 − |ψB〉 ⊗ |ψA〉), (6.3)

que descreve o sistema conjunto. Este é um típico estado de emaranha-mento, não havendo como dizer qual elétron tem spin +1/2. Sabemossimplesmente que um deles tem spin positivo (dito ‘UP’), mas não qual.Isso é fundamental: os elétrons, ainda que não tenham os mesmos nú-meros quânticos, não podem ser individualizados, no sentido de poder-mos dizer qual é qual, o que traz interessantes questões relativamenteà lógica e à matemática utilizadas para tratar o assunto, como veremosmais abaixo.

Podemos assumir que os quanta não possuem individualidade, e issopode ser visto melhor com o caso de bosons.20 Com efeito, nas teoriasquânticas de campos, há determinados agrupamentos de quanta, os cha-mados condensados de Bose-Einstein (BECs) que consistem de aglo-merados de muitos bósons em um mesmo estado quântico; eles são ab-solutamente indiscerníveis, não havendo qualquer modo de identificá-

20Há interpretações, no entanto, como a de David Bohm, em que os quanta têmindividualidade. A ontologia da teoria de Bohm é similar à da mecânica clássica. Em[Fr&Kr.2006], discute-se pormenorizadamente essas diversas possibilidades metafísi-cas associadas com a mecânica quântica.

Ontologia e Física 143

los individualmente.21 Segundo o físico alemão Wolfgang Ketterle, hojeno MIT e Prêmio Nobel em 2001—ver abaixo, diz que “[o] fenômenoda condensação de Bose-Einstein (BEC) é a consequência mais dramá-tica da estatística quântica que surge da indistinguibilidade de partícu-las.” [Ke.2007] Vamos dar uma ideia do que se passa.

De acordo com a física clássica, se temos por exemplo as moléculasde um gás, podemos pensá-las como pequenas bolinhas que se moveme eventualmente colidem. Cada uma delas é caracterizada por suas po-sição e velocidade (acompanhe as figuras).

• -

• -•

?

Figura 6.9: Moléculas de um gás,como se fossem bolinhas.

Na física quântica, geral-mente assumimos a chamada hi-pótese de de Broglie, segundo aqual não somente a luz, mas aprópria matéria, pode ser pensadacomo composta de pacotes de on-das. Ou seja, os objetos quânti-

cos apresentam o fenômeno da dualidade, propagando-se como ondas esendo detectados como partículas. O comprimento de onda de de Bro-glie é inversamente proporcional à velocidade:

λ ≈h

m.v(6.4)

sendo h a constante de Planck, λ o comprimento de onde, m a massa ev a velocidade (veja a figura abaixo).

λ

Figura 6.10: O comprimento de uma onda.

21Na BEC Homepage, http://www.colorado.edu/physics/2000/bec, o lei-tor encontrará um software interativo que explica de forma bem clara o que são osBECs.

144 Tópicos em Ontologia Analítica

A relação entre a energia cinética da partícula e sua energia ‘termal’é dada por

m.v2 = k.T, (6.5)

sendo T a temperatura e k a constante de Boltzmann, o que mostra que(usando a equação 6.4),

λ ≈ (. . .)1√

T. (6.6)

Isso mostra que λ é inversamente proporcional a T .Deste modo, à medida que a temperatura cai, o comprimento de

onda aumenta. A tabela abaixo dá uma ideia do que acontece com T ecom λ:

T λ

ambiente 10−10m = 1Å1µK 10−6m = 1µm

1nK = 10−9K 30µm

Na medida em que a temperatura torna-se ‘crítica’ perto de algunspico-Kelvins (1 pK = 10−10K), as funções de onda tornam-se extrema-mente longas, a tal ponto que elas não podem mais ser seguidas indi-vidualmente, e se tornam algo como uma grande onda , uma ‘sopa dematéria’ :

ondas de matéria de comprimento crescente

uma ‘grande onda’: BEC

Figura 6.11: Um BEC. Seus componentes são absolutamente indiscerníveis.

A figura 6.12, apresenta a capa da revista Science de 22 de dezem-bro de 1995, festejando a ‘molécula do ano’ (um condensado Bose-Einstein). Naquele ano, os pesquisadores Eric Cornell e Carl Wieman,da Universidade do Colorado, em Boulder, conseguiram sintetizar um

Ontologia e Física 145

BEC, obtendo uma ‘grande molécula’, ou seja, uma situação em que vá-rios componentes (átomos por exemplo) passam a se comportar comouma só coisa, não havendo qualquer diferença entre os objetos que acompõem.

Os dois jovens físicos partilharam com Wolfgang Ketterle o Nobelde 2001. O desenho procura ilustrar como os elementos de um BECcomportam-se em uníssono, sem individualidade. Mas há aqui um pro-blema de natureza matemática: se, como dissemos acima, os quanta sãoexcitações de campos, e se campos são objetos matemáticos descritospor funções, usando-se a lógica e a matemática usuais, segue-se quemesmo se os quanta forem por exemplo os componentes de um BEC,eles serão distintos uns dos outros.

Figura 6.12: Um condensadode Bose-Einstein (a ‘grande molé-cula’) em uma ilustração.

Dito de outra forma, no escopo dalógica e da matemática clássicas, setemos duas entidades, elas são dis-tintas. Isso se deve à matemáticasubjacente, digamos ZF, e como setrata de um ponto pouco destacadona filosofia da física, e sobre o qualnecessitamos falar um pouco. Comefeito, poder-se-ia dizer que não hádistinção física entre as entidades,mas que poderia haver alguma outraforma dela serem discernidas umasdas outras. Para tanto, temos algu-mas opções: ou assumimos que cadaentidade possui alguma fora de subs-trato que lhe seria peculiar, de formaque, mesmo partilhando com outrastodas as caraterísticas, ainda assim

seria discernida por esse substrato, ou então haveria alguma proprie-dade oculta, não identificada pelo formalismo, que uma delas possuiriamas não as demais. Como veremos, as duas opções apresentam proble-mas e não podem ser consideraras pura e simplesmente sem que se façauma análise mais detalhada de cada caso.

146 Tópicos em Ontologia Analítica

6.2.3 Individualidade e quanta aprisionadosA revista Nature de 25 de março de 2010 (p.571), e depois dela muitosoutros veículos e artigos, apresenta uma reportagem na qual se explicacomo os cientistas conseguiram identificar "átomos individuais". Seráque isso é realmente possível? Tal identificação implica que tais áto-mos podem ser considerados como indivíduos, entidades que podemser inclusive nomeados, rotulados, identificados como tais e distintosde outras entidades inclusive das de mesma espécie.

Em outras palavras, entidades para as quais a teoria usual da iden-tidade de aplicaria. Para analisarmos esta possibilidade, vamos nos re-portar não à reportagem de Nature, mas ao trabalho de um outro PrêmioNobel (de 1989), Hans Dehmelt, que venceu o prêmio justamente porseus trabalhos de apriosionamento de objetos quânticos.

Em sua autobiografia,22 Dehmelt menciona a seguinte frase de umseu professor Richard Becker:

“Em uma de suas aulas de Eletricidade e Magnetismo, Bec-ker desenhou um ponto no quadro-negro e disse: ‘Aqui estáum elétron . . .’ ".

Dehmelt diz que sempre se preocupou com essa frase, e se per-guntava como realizar essa localização em laboratório. Uma das con-sequências de suas pesquisas, que nos interessa aqui, foi o “aprisiona-mento” de um pósitron (a anti-partícula do elétron) por três meses emuma “armadilha", o qual foi chamado de Priscilla. Como afirma Deh-melt,

“[d]eve haver quase nenhuma dúvida sobre a identidade dePriscilla durante esse período, uma vez que em vácuo ultra-forte ela nunca teve a oportunidade de cambiar lugares comuma antimatéria gêmea vizinha. A identidade bem definidadessa partícula elementar é algo fundamentalmente novo,que merece ser reconhecido por ela ter recebido um nome,da mesma forma como dar nomes de pessoas aos animaisde estimação"[Dh.1990]

22Veja em http://dehmelt.nobmer.com/1.htm.

Ontologia e Física 147

De acordo com o físico T. A. Heppenheimer, a escolha de um pósi-tron por Dehmelt se deveu a que essas partículas não ocorrem livres nanatureza, e assim não haveria possibilidade de Priscilla interagir comoutro pósitron [He.1994]. Assim, aparentemente, teríamos realmenteum objeto quântico individualizado, que poderia ser identificado em re-lação a todos os outros, nomeado e, consequentemente, teria uma identi-dade bem definida, uma vez que sempre poderíamos afirmar com segu-rança que ele é aquele pósitron aprisionado no laboratório de Dehmelte é diferente de qualquer outro de mesma espécie, pois nenhum outro éele. Será que isso realmente é assim?

Figura 6.13: Hans Dehmelt (1922–).

No que segue, vou argumen-tar que, não obstante essa apa-rente situação ser a que de fatoocorre, ela se deve a um mauentendimento dos conceitos bási-cos envolvidos, e que “Priscilla"não é o nome de um indivíduo,tal como entendemos este termoneste texto.

Tecnicamente, em laborató-rio, o aprisionamento de um ob-jeto quântico, como um pósitron,

um elétron, um íon, ou outro, se faz de várias formas, algumas delasdescritas nos artigos já citados. Uma das maneiras de se considerar teo-ricamente o que ocorre é imaginar um poço de potencial infinito (infini-tely deep potential well), ou seja, considerando uma dimensão somente,um intervalo a < x < b, no interior do qual o potencial é zero e, nasextemidades e fora delas, é infinito, de forma que o quanta aprisionadonão possa escapar e nem interagir com qualquer outro [Le&Ba.1990,cap.6].

-

6

a b

? -

Figura 6.14: Um poço potencial infi-nito. Dentro dele, a partícula pode se mo-ver, mas (teoricamente) não poderia sair.

A função de onda da partículapode então ser adequadamentenormalizada de modo que a pro-babilidade (dada por

∫ b

a|ψ|2dx)

seja igual à unidade (ibid., p.302),

148 Tópicos em Ontologia Analítica

de forma que podemos garantirque de fato há algo dentro dopoço, descrita pela adequada fun-ção de onda ψ.

Suponha então que, comodeve ter ocorrido, após várias tentativas, tenhamos Priscilla finalmenteem uma armadilha da qual não possa sair e nem interagir com outraspartículas (se fosse esse o caso, ele entraria em estado de superposiçãocom essas outras e a sua individualidade se perderia, como apregoa amecânica quântica tradicional). Será que temos realmente um indiví-duo aprisionado, algo que tenha critérios de identidade bem definidos?(isso pode ser entendido no sentido advogado por Quine em várias par-tes de sua obra — ver [Qu.1980]). Eu quero sustentar que não. Paratanto, vamos supor numa situação algo análoga (a razão desse “algo"ficará claro na sequência), imaginando os 100 Smiths do filme MatrixReloaded, nos quais o Agente Smith se multiplica para atacar o moci-nho Neo.

Figura 6.15: Há diferenças entre alguns átomos congelados e entre os 100 Smiths?

Todos os Smiths são absolutament indiscerníveis, cópias fiéis unsdos outros, da mesma forma que todos os elétrons, protons, neutrons,etc. são indiscerníveis, sem que os consideremos como sendo ‘o mesmo’

Ontologia e Física 149

indivíduo (pelo menos, isso certamente é o que acontece com os quanta).Em certo sentido, todos servem para representar Smith, o agente.

Se algum deles dá um soco no mocinho, quem feriu Neo? A respostade Neo aos seus companheiros certamente será: “o Agente Smith meferiu", e não que foi o Smith 47, pois qualquer numeração dos Smithsseria sem sentido. Se, por acaso, Neo aprisionou um dos clones, quemele prendeu? Bom, aqui a coisa é algo diferente: ele prendeu um dosSmiths. Qual a diferença entre este Smith e os outros 99 que estão àsolta? Tome por exemplo um caso concreto, o da combustão do me-tano, simbolizada por CH4 + 2O2 → CO2 + 2H2O, na qual uma molé-cula de metano reage com duas moléculas de oxigênio, dando dióxidode carbono e vapor d’água.

Como se vê, dos quatro átomos de oxigênio presentes nas duas mo-léculas do gás oxigênio, duas foram formar o dióxido, e duas forampara o vapor d’água. Mas, quais? É indiferente quais dos quatro átomosformam, por exemplo, o dióxido de carbono. Como neste exemplo, nãohá nenhuma diferença entre os Smiths, exceto pelo fato de que aqueleque está agora na prisão, se distingue dos demais 99 não estão presos.Isso faz do Smith aprisionado um indivíduo? Isso faz dele um objetoque tenha individualidade, uma identidade bem definida?

Suponhamos que o Smith aprisionado fuja, encontre-se com os seusclones e que, em uma outra batalha, Neo prenda de novo um dessesclones na mesma cela em que estava o anterior. É ele o Smith ante-riormente apriosionado? Obviamente, não há qualquer sentido em sesustentar essa tese, porque os Smiths não estão rotulados. Aparente-mente, seria mais ou menos o que deve ter feito Dehmelt em suas —várias, por certo— experiências, aprisionando vários pósitrons até quefixou um e o chamou de “Priscilla"; mas, qual a diferença entre os vá-rios pósitrons possivelmente aprisionados por Dehmelt e aquele em queele concentrou suas afirmativas? Contrariamente aos átomos de oxigê-nio ou aos objetos quânticos em geral, objetos macroscópicos poderiamestar rotulados. Suponha uma formiga que estejamos acompanhandovisualmente e que entra no seu formigueiro; como saber que dentre asformigas que dele saem, está a ‘nossa’ formiga? Ora, podemos marcara formiga com um pouco de tinta, o que absolutamente não podemos

150 Tópicos em Ontologia Analítica

fazer com elétrons ou outras partículas elementares.Quanto aos Smiths, se dessemos uma gravata numerada para cada

Smith, de 1 a 100, digamos no seu ato de criação, ou de batismo,aconteceria algo como se marcássemos a nossa formiga com tinta, edesse modo poderíamos saber se o segundo prisioneiro é ou não idên-tico ao primeiro (é o que podemos fazer com gêmeos idênticos, vi-sando identificá-los mais facilmente, por exemplo, vestindo-os dife-rentemente). No entanto, Priscilla não pode receber significativamentequalquer rótulo exceto o de que está naquela armadilha naquele instante.Schrödinger, há muito tempo atrás, quando ainda não se aprisionavampartículas elementares, apregoou que “[n]ão se pode marcar um elétron.Não se pode pintá-lo de vermelho"[Sc.1953]. Retornamos esta frase aofinal, e deixaremos de questionar, como poderia ser lícito, que concei-tos de espaço e de tempo estamos considerando, entendendo-os aqui deforma intuitiva.

Assim sendo, tendo em vista que Dehmelt provavelmente realizouvários experimentos com pósitrons, porque se fixou naquele particularpara chamá-lo de Priscilla? Ora, ele tinha que se fixar em algum deles.Haveria alguma diferença significativa se ele encerrasse suas experiên-cias alguns dias antes e tivesse ‘um outro’ pósitron aprisionado pararelatar ao mundo? Seria esse ‘outro’ pósitron de um experimento ante-rior, ainda que realizado sob as mesmas condições, exatamente Priscilla,ou será que o nome ‘Priscilla’ estava reservado para justamente aquelepósitron que ficou famoso, obtido naquele dia?

Obviamente, podemos contra-argumentar dizendo que Priscilla éaquele que ficou preso por vários meses, da mesma forma que pode-mos chamar o clone preso de Smith de Smithão, mas isso somente fazsentido enquanto ele está preso, e faz sentido para nós, que estamos forada cela e podemos ver que aquele Smith não é qualquer dos demais comos quais Neo luta no momento. Neo, por sua parte, em luta e sem podercontá-los, não pode saber se o Smith apriosionado continua preso, ou seescapou de novo e se juntou aos demais e está lutando com ele no mo-mento, exceto se ele puder contá-los, mas mesmo assim, se um Smithestiver faltando, ele não poderá saber se o Smith aprisionado por ele estána luta ou não: os Smiths são indiscerníveis, e não têm individualidade

Ontologia e Física 151

no sentido usual.Para saber se o Smith aprisionado continua preso, Neo tem que olhar

a prisão e ainda acreditar que não houve qualquer troca do Smith presopor outro Smith, por exemplo. Da mesma forma, para verificar se Pris-cilla continua preso, Dehmelt tem que se valer de todas as assimetriasde seu laboratório; na verdade, é devido às assimetrias do mundo queconstatamos as diferenças entre as coisas. Porém, ainda que o refe-rido Smith, por estar preso, possa ser distinguido de outros similaresjustamente por estar preso, ele não tem individualidade, não tem iden-tidade, e mesmo se aparentemente se pode dizer consistentemente dePriscilla ou de qualquer outro objeto quântico. Suposições como as damecânica bohmiana, que associam a cada objeto uma individualidade,deixam em aberto a questão ontológica. Sua ‘ignorância’ (a da indi-vidualidade das partículas, que é apenas suposta existir), como temosdito, é de natureza epistemológica apenas.

A crença de que o Smith aprisionado (ou o pósitron Priscilla) temidentidade se deve a uma confusão entre individualidade e distingui-bilidade, a qual deve ser evitada, como esclareceremos na sequência.Podemos então ressaltar o problema do seguinte modo: será que o fatode podermos atribuir um nome, um rótulo a algo confinado e sem in-teração com outros faz dele um indivíduo, faz com que ele tenha umaidentidade? Veremos como pensamos poder esclarecer essa questão,apontando para a ideia de que Priscilla não é um indivíduo.

Em suma, apesar de haver aprisionado um pósitron específico, nãohá qualquer fundamento em se dizer como Dehmelt que Priscilla tenhauma identidade, ou que seja um indivíduo, exceto se como um pressu-posto ontológico a priori. Qualquer pósitron serviria igualmente parasua argumentação, o que evidentemente não ocorre com o que usual-mente entendemos por indivíduo.

6.2.4 Não-indivíduos

Em [Fr&Kr.2006], é feita uma extensa apresentação histórica da cha-mada ‘Vista Recebida’ da não-individualidade das partículas elemen-tares, propugnada inicialmente por alguns dos fundadores da mecânica

152 Tópicos em Ontologia Analítica

quântica, como Heisenberg, Born, Schrödinger, e mesmo Weyl. Paraesses autores, como era comum nos primórdios da física quântica, aconstatação de que certas partículas não podiam ser individualizadasacarretava que sua individualidade havia sido perdida. Esta é, no en-tanto, apenas uma das possibilidades. Há formulações da mecânicaquântica não relativista, como a desenvolvida por David Bohm, queadmitem uma ontologia similar à da física clássica, na qual as partícu-las têm trajetórias bem definidas (posições no espaço a cada instante detempo), ainda que tais posições sejam ‘ocultas’ (a posição, na mecânicabohmiana, é uma ‘variável oculta’).

Assim, como argumentaremos com mais pormenores no capítulo fi-nal, a física quântica não nos impinge uma ontologia, mas é compatívelcom várias delas (isso, aliás, ocorre em princípio com qualquer teoriafísica). Nesta seção, vamos explorar um pouco mais aquela que aceitaserem as entidades quânticas não-indivíduos, termo que procuraremosesclarecer no que se segue. Observe o leitor que não estamos susten-tando que as entidades quânticas são não-indivíduos, mas apenas queesta é uma das ontologias possíveis. Claro que não podemos fazer aquimais do que esboçar um esquema dessa concepção, que adequa-se per-feitamente, por exemplo, à situação em que os objetos físicos podementrar em certos estados (superposição de estados) nos quais em hipó-tese alguma se pode dizer qual é qual, de forma que não haveria sentido(segundo uma determinada interpretação) dizer que eles são distintos(caso não sejam o mesmo objeto), pois não haveria nada que os diferen-cie (exceto talvez a própria concepção ontológica subjacente). Repareque se levarmos esta concepção ao extremo, assumimos não se trata dofato de que não conseguimos discerní-los (ignorância epistemológica),mas de que eles seriam (de novo, de acordo com uma certa interpreta-ção) em princípio indiscerníveis (ontologicamente falando).

Estaremos mesmo perante um novo tipo de objeto, como sugeremLevy-Leblond e Balibar [Le&Ba.1990]? Se quisermos simplesmentefazer física, dizer porque o mundo é como é (como propõe Weinberg,como vimos à página 122 e mais à frente, página 157), a suposição dosquanta como indivíduos é suficiente (a mecânica bohmiana é dita darexatamente os mesmos resultados empíricos que a mecânica quântica

Ontologia e Física 153

padrão).Porém, se relegarmos a possibilidade de distinção a uma questão de

cunho epistemológico, como sugere a física clássica, fica no ar a questãoontológica: se assumimos a possibilidade de não-indivíduos, do queestamos realmente falando, que linguagem devemos utilizar para falardessas entidades? Um fato historicamente relevante é apontar para aorigem do termo não-indivíduo, que remonta aos primeiros proponentesda teoria quântica, como dissemos acima. Isso no entanto não deve nosfazer pensar que estamos na presença de entidades etéreas (pelo menos,até o momento não foi provado nada nesse sentido).

Aparentemente, os objetos quânticos têm alguma forma de reali-dade, como se tem comprovado experimentalmente; os quanta pos-tulados por uma teoria com caracterísiticas matemáticas têm sido en-contrados posteriormente, como supostamente ocorreu com a partículaômega-menos e o bóson de Higgs, dentre outras. Recordemos que no fi-nal do século XIX físicos como Ernst Mach chegaram a sustentar sua to-tal descrença na existência de átomos, para depois converterem-se à suaexistência, devido a fatos experimentais (ver a discussão em [Bl.1972,cap.3]). Não-indivíduos podem ser pensados como entidades que têmas seguintes características:

(i) Podem ser agregados em certas quantidades (coleções) —da mesmaforma que indivíduos igualmente podem, e essas coleções têm umcardinal, que expressa a quantidade de objetos que contêm.

(ii) Podem ter propriedades ou entrar em relações com outras entida-des —idem aos indivíduos.

(iii) Podem ser separados em espécies, como os objetos quânticospodem ser elétrons, quarks, etc., tal como os indivíduos.

(iv) Contrariamente aos indivíduos, os não-indivíduos não têm iden-tidade numérica, que usualmente é expressa por meio de um nome oupor um designador rígido (na acepção de Kripke). Ou seja, ainda quemomentaneamente possamos nos referir a um não-indivíduo comoPedro ou Paulo, essa identificação é efêmera, pois uma vez que eles

154 Tópicos em Ontologia Analítica

se misturem (os quanta entrem em um estado emaranhado), não po-deremos mais saber qual é Pedro e qual é Paulo. Importante esta-belecer aqui uma distinção fundamental. Na física clássica, tambémpodemos encontrar situações em que as distinções não são possíveis,mas este tipo de impossibilidade é devida, de acordo com a onto-logia subjacente, de cunho epistemológico, contrariamente ao queocorre com os não-indivíduos, que apontam para uma impossibili-dade ontológica de distinção. Em se tratando de ontologia, é umasituação completamente nova. Os indivíduos retêm sua individuali-dade em um determinado contexto. Não-indivíduos podem tambémserem ‘individualizados’ em certas situações, como o exemplo atri-buído da Dehmelt mostrou, mas o problema é que eles não podemser re-identificados como tais, esta é a diferença, eles não mantêm−por não possuírem− a sua identidade.23

Essa característica de podermos ‘individualizar’ um não-indivíduoem certas situações foi chamada por Toraldo di Francia de mock in-dividuality (cf. [Fr&Kr.2006]). No entanto, não devemos fazer in-ferências precipitadas: o fato de termos um não-indivíduo ‘sozinho’em uma situação, isso não faz dele um indivíduo (na acepção ontoló-gica usual), pois se assim fosse, ele deveria manter a sua individua-lidade mesmo depois de se misturar com outros similares, pois a sua‘identidade’ está garantida em princípio pela perspectiva ontológicaassumida.

(v) Não-indivíduos não são extensionais no sentido de que se temosuma coleção de não-indivíduos de me uma espécie e sob certas con-dições, de forma que nos permitam afirmar que eles podem ser ab-solutamente indiscerníveis.24 Qualquer troca ou permutação de umnão-indivíduo da coleção por qualquer outro da mesma espécie deixa

23O que mostra a dificuldade com a terminologia, que tem raízes históricas; talvezdevêssemos denominá-los de ‘indivíduos sem identidade’ simplesmente.

24Mesmo sendo de mesma espécie, como elétrons, não-indivíduos podem ser mo-mentaneamente discernidos; no caso dos objetos quânticos, por exemplo por sua lo-calização espaço temporal. Mas essa individualidade, insistamos, é uma ‘mock’ indi-vidualidade.

Ontologia e Física 155

a coleção inalterada, indistinguível da original. Claro que esta ca-racterística faz com que as coleções de não-indivíduos não possamsatisfazer o Axioma da Extensionalidade das teorias usuais de con-juntos.

Este último ítem pode ser exemplificado pelos compostos químicos,como já sabemos, bem como por uma interpretação plausível dos obje-tos quânticos mais elementares. Como expressar essa não-individualidade?Formalmente, para pensarmos em coleções de objetos que não possuemindividualidade, podemos pensar em recorrer a uma teoria intensionalde conjuntos,25 que não envolva, dentre outras coisas, o Axioma da Ex-tensionalidade (o leitor interessado pode ver por exemplo [Dal.1987],voltada para a física quântica, ou [Go.1985], que apresenta a teoria ZFM—Zermelo-Fraenkel Modal). No entanto, as teorias intensionais de con-juntos (há várias delas), como a teoria ZFM, não suplantam o problemaque aqui estamos levantando. Vamos ser um pouco mais claros nessepormenor (o leitor que achar conveniente e não estiver habituado comcertos tecnicismos, pode saltar esta discussão). Suponha ZFM, que éformulada tendo por base o sistema modal quantificado S4 sem identi-dade, mas com um predicado binário primitivo η de sorte que a fórmulaxηy significa que x tem a propriedade y (em teorias intensionais, os ele-mentos do domínio são em geral pensados como sendo propriedades, enão conjuntos, como nas teorias extensionais). A relação de pertinência∈ é deixada para denotar a usual relação extensional, de forma que ZFpossa ser interpretada em ZFM. Dentre os axiomas da lógica subjacente,destaca-se o seguinte:

(Extensionalidade Modal) ∀z(zηx↔ zηy) ∧ xηu→ yηu

Tendo em vista este axioma, Goodman define uma relação de iden-tidade intensional, x ≡ y da seguinte forma:

x ≡ y := ∀z(zηx↔ zηy).

A partir dessa definição, prova que25Em teoria de conjuntos, costuma-se utilizar a palavra ‘intensional’, com ‘s’, em

distinção a ‘extensional’, que se usa quando vale o Axioma da Extensionalidade.

156 Tópicos em Ontologia Analítica

(1) x ≡ y→ (x ≡ y),

(2) x ≡ x

(3) x ≡ y ∧ φ(x)→ φ(y) (com as restrições usuais).

Os dois últimos teoremas são a reflexividade e a substitutividade dadefinida relação de identidade intensional. Isso faz com que objetos in-tensionalmente idênticos possuam todas as mesmas propriedades (comoresulta de (3)). Certamente, não é isso que se espera de entidades quân-ticas. Seria interessante desenvolver a teoria ZFM de modo a que seconformasse à física quântica, captando dessa forma a intuição de DallaChiara e Toraldo di Francia, segundo quem a microfísica é “um mundode intensões” [Da&To.1981]. Dalla Chiara, como citada acima, desen-volveu outra teoria intensional de conjuntos, mas pelo que sabemos seusaportes não foram posteriormente investigados. Fica a sugestão.

6.3 A linguagem e os objetivos do físicoRetomaremos aqui várias noções já mencionadas antes, porém sob umanova ótica. Vimos acima que a física de hoje lida com uma grande va-riedade de entidades que são denominadas de ‘partículas elementares’.Apesar do nome, elas nada têm de ‘partículas’, que nossa imagem in-tuitiva associa a uma pequena bolinha, ou a um corpo minúsculo (comopensavam os antigos atomistas gregos como Leucipo e Demócrito) e,em geral, nem de ‘elementares’, termo que originalmente visava desig-nar as entidades mais básicas da matéria, que não podiam ser decom-postas em outras ainda ‘mais elementares’.

Hoje, prótons, por exemplo, são ‘partículas elementares’ no sentidode serem tratadas pela física de partículas, apesar de serem formadospor quarks (que não se sabe ainda se são ou não compostos). O físicotrata dessas entidades na chamada física de partículas, elabora experi-mentos em que essas ‘partículas’ colidem a grandes velocidades. Asteorias descrevem-nas por meio de propriedades, lidam com elas comose existissem de fato, apesar de que muitas vezes não há qualquer evi-dência experimental de sua real existência. Algumas entidades básicas

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que as teorias físicas supõem não podem ser acessadas diretamente, po-rém apenas por meios indiretos. Por uma série de motivos que têm tidocada vez mais comprovações experimentais, os ‘objetos quânticos’ nãopodem ser concebidos mais como entidades que existam em perfeitoisolamento. A natureza ontológica dessas entidades é um dos temascandentes na presente filosofia da física.

O que o físico então quer dizer quando assevera coisas como ‘Existeuma partícula elementar com esta ou aquela propriedade’? Será queele está formulando uma questão de natureza ontológica, cuja respostadepende do seu conhecimento sobre a natureza da entidade elementarda qual indaga? Ou seja, será que o físico necessita conhecer os objetosfísicos como entes enquanto entes para ‘fazer física’?

Claro que isso é o que nossa concepção informal da ciência pareceindicar. A rigor, no entanto, tendo em vista a física de hoje, podemossustentar que definitivamente este não é o caso. A física de hoje não seocupa propriamente de ontologia, e não depende de que se conheça (nosentido tradicional) a verdadeira natureza das entidades com as quaislida. Esta ‘natureza’ é descrita pela teoria adotada, como veremos aseguir.

Aliás, a preocupação com a natureza última da realidade parece quefoi deixada de lado pela ciência já a partir dos séculos XVI e XVII. Nãoque o físico não se ocupe em desvendar a natureza do mundo. O queocorre é que isso vem como consequência de suas suposições teóricas,e não é o seu assunto fundamental. Como sustentou o laureado com oNobel em física (em 1979) Steven Weinberg, contrariando a preocupa-ção ontológica clássica, o físico de hoje está mais ocupado em explicarporque o mundo funciona do modo como funciona, e não propriamenteem desvendar a natureza das coisas [We.1993, p.175].26

Com efeito, uma grande revolução em ciência ocorreu quando oscientistas deixaram de se preocupar com a natureza das entidades, pas-sando a se importar com o seu comportamento. Na antiguidade, e atéépoca bem avançada na Idade Média, a ocupação do cientista (ou filó-

26A frase de Weinberg é a seguinte: “Once again I repeat: the aim of physics at itsmost fundamental level is not just to describe the world but to explain why it is theway it is.” (loc.cit.).

158 Tópicos em Ontologia Analítica

sofo) era sobre as coisas propriamente. Veja-se por exemplo o título docélebre trabalho de Lucrécio (99-55 a.C.), De Rerum Natura (‘Sobre aNatureza das Coisas’) — uma excelente exposição do assunto e de suasimplicações na ciência atual é o livro de Toraldo di Francia [To.1986].Vejamos alguns exemplos mais recentes. Na época do grande mate-mático Joseph Fourier (1768-1830), havia uma preocupação enorme, jápresente na antiguidade, com a natureza do calor: o que causava o calor,que em especial sustenta a vida humana?

Recordemos que Hipócrates, em cerca de 460 a.C., conjeturou que“o calor, que serve para animar [os seres vivos], deriva de um fogo in-terno localizado no ventrículo esquerdo”. Explicações como essa nãoeram incomuns. A importância de mencionar Fourier não é um acaso.Teorias como a do flogisto, segundo a qual os corpos continham umasubstância (o flogisto) que era liberada quando queimavam, foram aban-donadas e Fourier simplesmente desconsiderou a natureza do calor emprol de uma análise de seu comportamento. Ou seja, ele não se ocu-pou de explicar a natureza do calor mas, partindo da suposição de queo calor existe, tratou de considerar como ele se propaga. A teoria re-sultante constituiu uma das mais notáveis conquistas da matemática,dando origem ao que hoje se chama de Análise de Fourier, que além deuma grande beleza intrínseca (para quem gosta de matemática), é parteessencial da matemática aplicada.

Da mesma forma, Isaac Newton não se preocupou com o que faziaos corpos se movimentarem, ou seja, com a natureza do movimento.Simplesmente assumiu que os corpos se movimentam (sob a ação deforças) e ocupou-se com as taxas de variação da velocidade dos corpos,a sua aceleração. Como se sabe, uma das leis básicas da física de New-ton é a equação F = ma, onde F é a força aplicada a um corpo de massam, e a a sua aceleração (o negrito indica que ambas são grandezas veto-riais). Albert Einstein, na mesma linha, não questionou sobre porque aluz é de tal natureza que tem velocidade constante em todos os referen-ciais inerciais: simplesmente assumiu este fato como um dos princípiosbásicos da teoria da relatividade restrita. Em outras palavras, a naturezadas entidades passou a ser algo para ser questionado em segundo plano,se é que há um plano que lhes caiba. Se acreditarmos em Weinberg, su-

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postamente não há. Isto certamente não contenta os filósofos ocupadoscom ontologia, e achamos que eles têm razão.

Salientemos então que a física de hoje supõe a existência de en-tidades que não têm comprovação experimental, como cordas, super-cordas, membranas e p-branas (membranas em espaços e dimensão p).Em geral, essa suposição vem de necessidades matemáticas da aparentecoerência das teorias consideradas, e surpreendentemente a experiên-cia tem comprovado (a posteriori) as consequências dessas suposições(ainda que não possamos garantir que isso continuará assim no futuro).De fato, como vimos, algumas das partículas elementares foram des-cobertas experimentalmente somente bem depois de haverem tido suascaracterísticas previstas teoricamente.

De acordo com o que aprendemos anteriormente sobre Quine e ou-tros, as partículas elementares como os quarks existem se e somente se omundo físico, que certamente existe, é formado também por quarks, ouseja, se a teoria que envolve quarks for verdadeira. O conceito de ‘ver-dade’, aqui, no entanto, pode não significar exatamente concordância,ou correspondência (direta) com as observações, como quando dizemosque ‘A sentença “O carro que transporta o Presidente da República sedesloca a 60 Km/h” é verdadeira’, pois neste caso podemos simples-mente conferir a sua velocidade. Muitas vezes, a veracidade de umasuposição ou teoria advém de suas consequências, que podem ser dealguma forma conferidas experimentalmente, ainda que a própria supo-sição ou teoria não possa. É assim com grande parte das teorias físicasde hoje. Parece que o procedimento em ciência se conforma à céle-bre frase de Charles Sanders Peirce, segundo quem a concepção de umobjeto depende dos efeitos práticos que dele advêm.27

A teoria das cordas, como comentado acima, admite que a ontologiabásica do mundo é composta de ‘cordas’ (strings) que podem ser abertasou fechadas, e que têm um comprimento na chamada escala de Planck

27O verbete ‘Pragmatic theory of truth’ da Wikipedia fornece uma indicação dasideias de Peirce a este respeito e mais referências. A célebre frase de Peirce é seguinte:"[c]onsider what effects that might conceivably have practical bearings you conceivethe objects of your conception to have. Then, your conception of those effects is thewhole of your conception of the object.’ ([Pei.1878]).

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(cerca de 10−33cm). Vimos também que não há ainda como verificar sehá de fato entidades desse tamanho, ou se as cordas existem realmente,pois não alcançamos ainda condições experimentais para pesquisar en-tidades nessa escala. Isso não importa ao físico. Como disse Weinberg,o que é relevante é que, com essa suposição, chega-se uma teoria (naverdade, a várias delas) que responde satisfatoriamente às indagaçõesdo físico (ainda que apresente vários problemas em geral de caráter ma-temático e lógico). Ergo, essas entidades existem para as finalidades dateoria considerada ou, pelo menos, tudo se passa como se elas existis-sem de fato.

Na verdade, as teorias físicas (e do mesmo modo as de outras áreas),são elaboradas como idealizações. Fazemos com as teorias o mesmoque fazemos quando lemos um livro, concentrando-nos em certos deseus aspectos e propositadamente (ou inconscientemente) fazemos vistagrossa a muitos outros, como (no caso do livro) que ele é composto porcélulas orgânicas mortas, com intrincadas estruturas vegetais, que es-sas células são formadas por moléculas, que são compostas por átomos,etc. etc. Da mesma forma, em nossas teorias, fazemos uma simplifi-cação enorme de nosso contorno muitas vezes introduzindo elementosidealizados que não têm (pelo que se sabe) correspondente na realidade(como por exemplo, conjuntos infinitos, objetos matemáticos em gerale objetos isolados — já que não há objeto físico perfeitamente isolado).

Quine diz que uma teoria se compromete unicamente com aquelasentidades às quais as variáveis da teoria se referem a fim de que as sen-tenças quantificadas da teoria sejam verdadeiras. No entanto, como aargumentação acima procura mostrar, muitas vezes não nos referimos,por meio de nossas teorias, àquilo que existe no mundo físico, mas àscoisas que devemos admitir a fim de que as teorias sejam verdadeiras.Assim, pode não ser que sejam propriamente as sentenças que formula-mos ou as entidades que supomos que devam existir, mas o que resultadessas suposições (recorde a referência a Peirce feita acima).

Deste modo, quando o físico diz que uma partícula elementar resultade um particular modo de vibração de uma corda (como ocorre comas teorias de cordas), podemos tomar essa afirmação como acertada,mesmo que essas cordas não existam de fato. A sua existência fica

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delimitada ao âmbito da teoria, e tudo se passa como se elas de fatoexistissem.

Em outras palavras, o comprometimento ontológico deixa de ser ab-soluto (da realidade como ela é, ou deve ser) para se tornar relativo (auma teoria). No entanto, para que possamos continuar a usar a concep-ção de Quine, quando ele diz que “os valores pretendidos das variáveisde uma teoria são apenas aqueles que a teoria admite, e não aquilo querealmente há, a não ser que a teoria por acaso seja verdadeira”, temosque flexibilizar o conceito de verdade, que já não pode mais ser cor-respondencial, pois isso implicaria que as cordas, por exemplo, teriamque existir de fato. O conceito de verdade que melhor parece se adap-tar às teorias físicas, porém, não será tratado neste texto, e é denomi-nado de quase-verdade (o leitor interessado pode ver [Co.1999, Cap.3];[Co&Fr.2003]).

Com efeito, em física, quando se faz asserções existenciais, difi-cilmente utilizam-se termos singulares (como nomes ou descrições de-finidas, em contraste com os termos gerais). Dalla Chiara e Toraldodi Francia [Da&To.1981, p.118] sugerem que, quando o físico diz que‘existe um elétron assim e assim’, ele não está ocupado em especificarum particular elétron, mas sim um objeto de um certo tipo, pertencentea uma classe de entidades similares (indiscerníveis), no caso, elétrons.

Na verdade, em termos de elétrons (e o mesmo se dá com as demaisentidades básicas da física), é certo que em certas situações tanto fazse é este ou aquele elétron que desempenha um certo papel, posto quequalquer elétron, de certo modo, serve para todos os propósitos físicos,o que não ocorre com os objetos usuais (como usualmente se supõe —se o craque de um time de futebol se machuca, não é ‘qualquer ou-tro’ jogador que pode substituí-lo, como acontece com elétrons). Issono entanto acontece mesmo na física clássica, pois resultados de me-dida podem se manter inalterados quando, por exemplo, uma partículaé substituída por outra de mesma massa e carga elétrica. No entanto,enfatizando, essas partículas mantêm na mecânica clássica uma ‘iden-tidade intrínseca’ e a capacidade de distinções das situações deve sertomada em sentido epistemológico apenas.

Isso parece sugerir que na física de hoje não haveria lugar para ter-

162 Tópicos em Ontologia Analítica

mos singulares, em particular para nomes próprios (esses autores su-gerem que a micro-física é ‘um mundo do anonimato’ — ibid.). Paraeles, “os físicos, salvo em casos excepcionais, (. . .) fazem naturalmentea operação de eliminação dos termos singulares proposta por Quine”(ibid.). No entanto, essa afirmativa deve ser olhada com cuidado. Su-ponha que um físico quântico está trabalhando com um átomo neutro,digamos de lítio (1s22s22p63s1), que tem um elétron em sua camadade valência (a camada mais externa), e deseja ionizá-lo, para obter umion positivo. O físico sabe perfeitamente bem até a quantidade de ener-gia que deve utilizar para desprender aquele elétron que está na camadamais externa. Ele se refere, ainda que metalinguisticamente, àquele elé-tron, e não a outro qualquer.

Aparentemente, ele faz uso de uma descrição definida ‘o elétronque está na camada mais externa’. Portanto, há o discurso sobre umelétron particular (ou sobre uma partícula qualquer em certa situação, segeneralizarmos). No entanto, os autores italianos parecem ter razão emsustentarem que não há algo como nomes próprios que façam sentidonesse domínio.

O que há então? Pode haver descrições definidas nesses contextos?Suponha, para usarmos os conhecimentos adquiridos nos capítulos pre-cedentes, que formemos a descrição ‘o elétron da camada mais externa’(referindo-nos ao átomo de lítio), e representemos isso por ∃xE(x),como já estamos acostumados a fazer. De acordo com a teoria das des-crições de Russell, essa expressão significa na realidade

∃x(E(x) ∧ ∀y(E(y)→ y = x)),

ou seja, faz-se uso essencial da identidade, onde E(x) significa que xestá na camada mais externa. Mas, se elétrons fazem parte de um mundodo anonimato, isto é, se não podemos (assuma isso por um momento)identificá-los mesmo em princípio, o conceito de identidade deveria nãofazer sentido neste mundo. Com efeito, é uma das consequências da teo-ria tradicional da identidade (que estamos supondo implicitamente) quea obediência a essa teoria leva à individuação (mesmo em princípio).Como então coadunar esse problema com o discurso do físico?

Creio que podemos solucionar o problema introduzindo um novo

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conceito, que denominarei de ‘descrição quântica’, e que funcionariaassim (para os detalhes técnicos, será necessário introduzir a teoria dequase-conjuntos, o que não faremos aqui).28 Sem rigor, escreveremosκxE(x) para designar ‘o quanta assim e assim’, sendo κ o descritorquântico. No entanto, para parafrasearmos isso em uma ‘linguagemregimentada’, digamos de primeira ordem, não deveríamos fazer uso daidentidade, já que supostamente não podemos identificá-lo. O que te-mos que fazer é dar um jeito de ‘pescar’ o quanta formalmente; comonão podemos (em princípio) individualizá-lo, devemos nos contentarcom a troca do objeto pelas suas propriedades, algo como em Quine,quando ele muda de uma ontologia para uma ideologia. Uma alter-nativa poderia ser utilizarmos a teoria ZFM vista acima, dizendo queκxE(x) abrevia

∃x(E(x) ∧ ∀y(E(y)→ y ≡ x)),

onde ≡ é a identidade intensional definida anteriormente (página 155).Intuitivamente, isso significaria que existe um objeto satisfazendo o pre-dicado E (digamos, ser o elétron mais externo do átomo de lítio menci-onado), e qualquer ‘outro’ elétron intensionalmente idêntico a ele pode-ria ser considerado igualmente. Não acreditamos que esta seja a melhorsolução pelo que já se falou acima sobre a teoria ZFM; voltarmos a esteponto no capítulo seguinte.

6.4 Teorias de substrato e teorias de pacotes

Quando falamos informalmente que um certo objeto tem individuali-dade (ou ‘identidade’), como por exemplo a minha caneta preferida, oque queremos dizer com isso? Ou seja, o que confere individualidadeà minha caneta? Em geral, tendemos a dizer que ela pode ser discer-nida de qualquer outro objeto, e que (em princípio) eu a reconheceria

28A teoria de quase-conjuntos é uma teoria elaborada para tratar de coleções deobjetos que podem ser indiscerníveis sem que resultem ser o mesmo objeto, comoresulta da teoria da identidade usual. Nessa teoria, há uma relação mais fraca deindiscernibilidade apenas. Ver [Fr&Kr.2006], [Fr&Kr.2010].

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em qualquer lugar como sendo a minha caneta pelas suas peculiaridadesque me são bem conhecidas.

No entanto, como tem sido discutido à exaustão em filosofia, discer-nibilidade não deve ser confundida com individualidade, pois podemosimaginar um mundo possível composto por um só indivíduo, que ape-sar de não poder ser discernido de nada (já que não há outros objetos),tem individualidade (em sentido intuitivo). Isso pode parecer estranho,mas o argumento é filosoficamente sensato. Uma das soluções para aindividualidade é postular que todos os objetos têm um quid, algo quelhes é inerente, que não é uma propriedade, e que lhe conferiria indivi-dualidade. Algo ‘para além das suas propriedades’, que lhe confeririao que Heinz Post denominou de ‘individualidade transcendental’ (ver[Fr&Kr.2006] para detalhes).

Desta forma, uma pessoa, apesar de mudar suas características aolongo da vida, permaneceria ‘sendo ela mesma’ devido ao seu quid, algoonde as propriedades são ‘ancoradas’. Como é sustentado por diversosautores, como N. C. A . da Costa [Co.1980], crenças como esta estãona origem das leis lógicas (pelo menos da lógica clássica).

Porém, já que esse substrato não se reduz a propriedades, ficamosem uma posição muito desconfortável se nos pedirem para explicar doque se trata esse quid. Poderíamos talvez dizer que, assumindo isso,estaremos levando nossa metafísica longe demais (mas isso é com efeitodiscutível).

A outra alternativa é assumir que a individualidade de um objeto,de um indivíduo, é dada por uma propriedade ou por uma coleção depropriedades. Esta parece ser a visão preferida por filósofos e físicos.Para a física, um elétron (o mesmo se dá com as demais partículas) éa conjunção de determinadas propriedades, como ter uma certa massa,certa carga elétrica, poder assumir certos valores apenas quanto ao seuspin, etc. Porém, sob esta ótica, todos os elétrons têm as mesmas carac-terísticas, e se essas são todas as suas propriedades e se estiver valendoa teoria da identidade usual, isso redunda em que deveriam ser o mesmoobjeto, como resulta da validade do Princípio da Identidade dos Indis-cerníveis (PII), nosso velho conhecido.

Além do mais, parece que temos que assumir que os quanta, como

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os elétrons, já tenham que possuir suas propriedades de antemão, e issoé discutível; como vimos acima, há interpretações da mecânica quân-tica que aceitam que determinadas ‘propriedades’ existam unicamenteapós terem sido realizadas algumas medidas. Na verdade, o que estáem jogo é o próprio conceito de propriedade, mas esta discussão ex-trapola os objetivos deste livro. Mas adiantamos algo a mais. É umpressuposto da ontologia apropriada à mecânica clássica que, dada umacoleção de propriedades de um certo objeto, elas têm valores determina-dos a qualquer tempo, ainda que, por limitações nossas, não possamoseventualmente saber que valores são esses. No caso quântico, há certosresultados, como o célebre teorema de Kochen e Specker que impedemque, em certas situações, qualquer conjunto de propriedades possua va-lores simultâneos. Assim, há uma diferença fundamental entre essasduas concepções físicas.

Assim, se queremos ter pluralidade de objetos não-individuais comas mesmas características, parece que devemos rejeitar o PII. Será issomesmo? O debate da validade do princípio é ainda atual como eraem 1952, quando Max Black publicou um artigo que se tornou célebre[Bla.1952], no qual apresenta um argumento que contestaria a validadedo princípio de Leibniz.

Em especial na física quântica, o debate tem sido constantementeretomado, em virtude de que, como vimos, os quanta (nesta interpreta-ção) aparentemente violariam o referido princípio (veja [Fr&Kr.2006]para a história e a filosofia relacionadas, inclusive sobre o resultado deBlack). A questão ainda é debatida e não há consenso.

Em suma, o problema da ontologia, ou das ontologias associadasà física quântica está longe de poder receber um tratamento uniformeou mesmo inteligível. Muito ainda há que se falar a respeito, mas umacoisa é certa: o assunto despertará o interesse dos filósofos da físicaainda por muito tempo.

166 Tópicos em Ontologia Analítica

6.5 Observações sobre o espaço e o tempoLogo no início, dissemos que os objetos físicos estão imersos no espaço-tempo, e como tal devem ser considerados em questões de ontologia.

No entanto, no que concerne aos objetos quânticos, como no níveldo núcleo dos átomos, a questão suscita dúvidas e tem havido muitadiscussão na literatura, notadamente devido ao fato de que, nas dimen-sões da escala de Planck, conceitos quânticos e relativistas devem sermesclados, e as noções de espaço e de tempo, conjectura-se, não seriamexatamente aquelas que se utilizam em outros contextos, se é que elasfazem algum sentido nesse domínio. Assim "separação" espacial pode-ria não se aplicar como uma alternativa para fornecer às entidades umaindividualidade.

Nesta seção, vamos procurar esclarecer ao menos superficialmente aquestão, mais apontando para as dificuldades que há do que oferecendosoluções. Ressaltamos que a literatura presente é generosa com estadiscussão; alguns textos que dão um tratamento moderno ao tema são[Penr.2005, cap.17], [Nor.2011], [Butt.2012], [Run.2009], [Lau.1994],[Rov.2006].

É bem conhecida e citada a frase de St. Agostinho, que disse "Oque, então, é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se euquiser explicar a quem me pergunta, eu não sei".29 Aparentemente, eletem razão, pois há uma grande dificuldade em se explicar muitos dosconceitos que intuitivamente compreendemos muito bem (pelo menosassim tendemos a pensar).

Roger Penrose, no livro citado anteriormente, menciona a concep-ção de espaço e de tempo presentes na Física de Aristóteles; diz ele queo espaço seria como uma tela de cinema, com seus pontos fixos e man-tendo sua identidade, independentemente do que seja projetado sobreela, ou seja, independente do passar do tempo e dos eventos.

Esta ideia de que o espaço é como um palco no qual a peça do de-senrolar dos eventos no tempo é encenada, não tendo nada a ver coma peça (assim como o tempo, que seria simplesmente algo que flui),sedimentou-se em nossa cultura ocidental, talvez pela própria influência

29Veja em http://www.harpers.org/archive/2009/03/hbc-90004443.

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aristotélica e pelo fato da igreja católica haver assumido suas concep-ções.

Espaço e tempo concebidos desta maneira, ou seja, como indepen-dententes dos eventos físicos, foi assumida por Isaac Newton, e é ditaser a conceção de espaço e tempo absolutos, e se molda à ideia intuitivaque fazemos desses conceitos. Com efeito, se estamos no aeroporto es-perando alguém que viaja da Europa para cá em um jato a cerca de 900Km/h, podemos cronometrar nosso relógio com o do viajante, quandodo início da viajem, de modo que eles coincidam quando nos encon-trarmos, e nosso viajante se desloca de lá para cá como se suas origeme destinos estivessem fixamente localizadas como os pontos da tela decinema de Penrose.

Ninguém parece duvidar disso, com a possível exceção de físicos efilósofos (e obviamente de pessoas algo instruídas em ciência).30

Historicamente, houve uma célebre discussão entre Newton, que de-fendia o espaço e o tempo absolutos, com Leibniz. Newton era repre-sentado nessa polêmica por intermédio de seu discípulo Samuel Clarke.Leibniz sustentava uma posição diferente, apregoando que espaço etempo são relativos (porém em um sentido distinto da forma defendidapela relatividade restrita), constituindo “certa ordem das coisas", uma“ordem da existência das coisas notada na simultaneidade delas", e nãoexistem independentemente das coisas ou, como diz, “fora do universomaterial".

Espaço e tempo, para Leibniz, dependem (são relativos) das coisas;o espaço é feito das relações entre objetos, e não pode existir na ausênciadestes.

Da mesma forma, isso acontece com o tempo, e não pode havertempo anterior ao primeiro evento, à primeira coisa (a discussãoentre Leibniz e Clarke, ou Newton, encontra-se em [Lb.1979]; para maisdetalhes, ver [Run.2009, cap.1]).

A mecânica quântica não-relativista (que não envolve conceitos da

30Cabe observar que a relatividade restrita afirma que o relógio do nosso viajantedeveria atrasar relativamente ao nosso, ou seja, o tempo passaria mais devagar para ele—por pouco que seja, como comprovado experimentalmente em 1971; esses efeitosseriam mais evidentes para velocidades próximas à da luz.

168 Tópicos em Ontologia Analítica

relatividade restrita —ninguém sabe ao certo como mesclar a mecâ-nica quântica com a relatividade geral, como já dito) incorpora espaçoe tempo no sentido newtoniano, absolutos. Assim, assemelha-se à fí-sica clássica. No entanto, quanto passamos para a mecânica quânticarelativista (teorias quânticas de campos), espaço e tempo não são maisabsolutos, mas entra em cena um conceito novo, o de espaço-tempo; asduas coisas são fundidas em um só conceito, não havendo mais sepa-ração entre eles, sendo tratados em uma geometria a quatro dimensões(grosso modo, no espaço euclidiano a quatro dimensões). Se formosconsiderar a relatividade geral, os conceitos são ainda tratados de outraforma (bem mais complicada); isso mostra que o que vêm a ser espaço etempo (ou espaço-tempo) depende da teoria que estamos considerando,e portanto, tendo em vista a nossa concepção de ontologia como relati-vizada a uma teoria, isso tem fundamental importância em ontologia.

Essas considerações têm que ser levadas em conta com respeito aosobjetos físicos que nos cercam; se em ontologia perguntamos "o quehá?", como fez Quine, ou se queremos falar das várias espécies de ser,como na antiga concepção aristotélica, devemos certamente levar nossaindagação mais a fundo e questionar a estrutura espaço temporal em queesses seres estão inseridos.

Com efeito, como mencionamos no início sobre o efeito Unruh (pá-gina 4), "aquilo que há" pode depender do estado do observador. Oproblema mais grave (como se isso já não trouxesse dificuldades sufici-entes) ocorre quando consideramos questões quânticas, por exemplo nonível do núcleo atômico. Nessa escala, há quem sugira que as própriasnoções de espaço e tempo, como entendidas acima, não fariam sentido,ou simplesmente não existiriam (ver [Rov.2006]), e em particular te-ríamos que estudar o que isso significaria para as questões ontológicas.Como vimos acima, na física quântica, dois fenômenos são essenciaise de certa forma a caracterizam: a superposição e o emaranhamento(entanglement).31

O primeiro pode ser assim explicado (com todo o risco que umaexplanação breve de um conceito como este corre): certos sistemas fí-

31O leitor interessado em mais detalhes sobre emaranhamento pode consultar o belolivro expositivo de Aczel, [Acz.2001].

Ontologia e Física 169

sicos podem estar em ‘superposição de estados’, como exemplifica ocaso do interferômetro de Mach-Zehnder. Previamente à chegada dofeixe (ou do que quer que seja) no aparato, a partícula, como um fó-ton, encontra-se em uma superposição de estados que indicam os doiscaminhos possíveis (ver a seção 6.2), ou então o gato de Schrödinger(ibidem), que antes da abertura da caixa onde está, encontra-se em su-perposição de dois estados, "gato vivo" e "gato morto". O emaranha-mento se refere a algo diferente; são agora dois sistemas que uma veztendo interagido,32 encaminham-se para regiões diferentes (podendoestar muito afastados, inclusive anos-luz de distância), encontram-seainda correlacionados de modo que as propriedades de um deles de-terminam as do outro —medindo-se uma propriedade de um deles, porexemplo o a direção de uma polarização, sabe-se de imediato, por uma‘ação fantasmagórica à distância’, como dizia Einstein, a propriedadecorrespondente do outro, mesmo sem medi-la.

Este estranho fato, que os físicos chamam de não-localidade, é com-provada experimentalmente, e faz parte essencial dos experimentos de-senvolvidos neste século. As teorias quânticas de campos, no entanto,que por assim dizer mesclam a mecânica quântica com a relatividaderestrita, são locais no sentido de que seus observáveis são associados auma certa região do espaço-tempo (descrito matematicamente por umadeterminada entidade adequada que os matemáticos denominam de va-riedade differencial métrica), de forma que as operações podem serconsideradas como sendo realizadas dentro de uma região do espaço-tempo.

Assim, podemos medir uma propriedade de um objeto físico semalterar a do outro "instantâneamente", pois qualquer efeito somente po-derá ser sentido pelo segundo objeto após um determinado tempo, onecessário para que uma certa informação sobre o que foi feito possachegar até ele, e a velocidade máxima, como dito pela teoria, não podeultrapassar a velocidade da luz no vácuo. A não-localidade se opõe aesta restrição, dizendo que o efeito pode ser percebido imediatamente.Levando em conta esses fatos, um dos maiores experimentalistas da atu-

32Há relatos na literatura especializada de situações em que os físicos dizem queconseguem estados emaranhados mesmo de sistemas que não interagiram no passado.

170 Tópicos em Ontologia Analítica

alidade, o físico suísso Nicolas Gisin, diz que

“Na física moderna, o emaranhamento é fundamental: alémdisso, o espaço é irrelevante —pelo menos na ciência dainformação quântica, o espaço não desempenha um papelcentral e o tempo é um mero parâmetro discreto.Na relatividade, o espaço-tempo é fundamental e não hálugar para correlações não-locais [as teorias quânticas decampos são locais]. Para colocar a tensão em outras pa-lavras: nada na história do espaço tempo pode nos dizercomo correlações não-locais acontecem, portanto correla-ções quânticas parecem emergir, de algum modo, fora doespaço-tempo." [Gis.2009]

Gisin prossegue afirmando com todas as letras que "[t]odas as ex-periências de hoje levam a uma conclusão: a Natureza é não-local"(op.cit.) —um outro físico importante que discute estes pontos, sendolevado a conclusões parecidas é Carlo Rovelli, em seu artigo "‘Loca-tion’ on quantum field theory", [Ca.1999, pp.207-32]; ver também oseu já aludido [Rov.2006].

Em suma, ainda que respeitemos a opinião de que devemos con-siderar os objetos físicos em relação a algum conceito de espaço e detempo, esta questão não está decidida no tocante nem de que espaço etempo (ou espaço-tempo) estamos falando, nem —dependendo do do-mínio sendo investigado— se esses conceitos fazem sentido. A portaestá aberta. Finalizamos com uma citação de Max Jammer, referindo-se a um resultado de outros dois físicos, que indicaria que os conceitostradicionais de espaço e tempo só seriam aplicáveis aos sistemas ma-croscópicos:

"[o] resultado obtido por Salecker e Wigner33 com respeitoàs limitações que cercam as medidas de intervalos espaço-temporais na mecânica quântica, [. . . ] priva as noções tra-dicionais de espaço-tempo de qualquer significação opera-cional na microfísica."

33[Ele se refere ao trabalho de H. Salecker e E. P. Wigner, ‘Quantum limitations ofthe measurement of space-time distances’, Physical Review 109, 1958, 571-577.]

Ontologia e Física 171

Este tópico, como indicado acima, é ainda muito controvertido. Oque se sobressai é o fato de que não sabemos ao certo o que sejam oespaço e o tempo, ou seja, não temos deles nada além de uma noçãointuitiva e várias descrições não compatíveis entre elas de acordo como tipo de teoria física considerada. Porém, é evidente que o tema érelevante ao interessado em questões ontológicas.

Exercícios Faça um estudo mais detalhado de cada uma das seguintesquestões, escrevendo um pequeno ensaio sobre cada uma delas:

1. Explore o experimento das duas fendas, que atesta o comporta-mento dual dos objetos quânticos (onda e partícula). Na internet,você encontrará vários vídeos simulando este experimento, o que lhedará uma ideia bastante precisa do que ocorre. No entanto, presteatenção ao fato de que quaisquer ilustrações não passam de artifíciosheurísticos.

2. Explique com mais detalhes o experimento do gato de Schrödin-ger e fale da noção de superposição.

3. O que você entendeu por ‘emaranhamento’? Distinga emaranha-mento de simples superposição.

4. O que é mesmo o efeito túnel?

5. Você concorda com a conclusão indicada no texto de que Priscilla,o pósitron aprisionado, não é um indivíduo?

6. Qual a distinção entre as teorias de substrato e as teorias de paco-tes? Como elas explicam a questão da individuação?

7. Revise as principais ideias sobre não-indivíduos.

172 Tópicos em Ontologia Analítica

Capítulo 7

Ontologia de Não-Indivíduos

Neste capitulo vamos delinear um tratamento mais precisopara o conceito de não-indivíduo, e mencionaremos (ape-nas isso, sem entrar em detalhes) uma teoria matemáticaque permite falar de coleções de entidades para as quais

o conceito de identidade carece de sentido (em uma acepção que vere-mos). Com base nessa teoria, chamada de teoria de quase conjuntos,dentre outras coisas, poderemos sustentar, contrariamente a Quine, quepode haver entidades sem identidade. Antes, porém, mais alguma dis-cussão filosófica.1

Cabe no entanto ressaltar que não estamos afirmando que os quantasão não-indivíduos. Como sustentado amplamente em [Fr&Kr.2006], eaqui assumido, esta é apenas uma das metafísicas (ou ontologias) pos-síveis de serem associadas a este tipo de entidade. No entanto, comocabe aos lógicos e filósofos, importa explorar essa possibilidade.

7.1 Níveis de empenho ontológico do físico

Podemos nos comprometer ontologicamente com não-indivíduos, ouseja, com entidades que não tenham um critério de identidade bem defi-

1O leitor interessado em detalhes sobre a teoria de quase-conjuntos pode consultar[Fr&Kr.2006], [Fr&Kr.2010].

174 Tópicos em Ontologia Analítica

nido, que não possam ser nomeados sem ambiguidade, que difiram solonúmero de outros de mesma espécie, como parecem indicar — pelo me-nos segundo uma interpretação plausível — os ditames da física quân-tica? De um ponto de vista especulativo, a resposta é afirmativa, porqueem princípio podemos colocar em nossa ontologia o que bem entender-mos, sejam duendes, deuses, substratos ou não-indivíduos, ainda quepara as finalidades científicas seja difícil justificar certas escolhas. Aquestão se transforma e se torna mais objetiva se procurarmos um cri-tério de comprometimento ontológico com não-indivíduos que siga ospadrões quinianos de possíveis valores de variáveis. No entanto, comojá tivemos oportunidade de ver nos capítulos precedentes, o seu critério“ser é ser o valor de uma variável” está incondicionalmente ligado à no-ção de identidade, que fundamenta o seu extensionalismo (possibilidadede substitutividade salva veritate). Ou seja, o que pode ser valor de umavariável é um indivíduo, já que Quine reduz sua ontologia a objetos deuma teoria pura (usual, como ZFC) de conjuntos (ou seja, a conjuntos).Como pode haver comprometimento com entidades sem identidade?

Dalla Chiara e Toraldo di Francia [Da&To.1981] falam do empenhoontológico do físico como se dando em dois níveis. O primeiro, paraeles, é relativo a uma teoria T, independentemente de T ser verdadeiraou falsa com respeito à experiência. A teoria não se refere necessaria-mente àquilo que existe no mundo físico, mas às coisas que deveriamexistir a fim de que as sentenças de T sejam verdadeiras (como aliásindica Quine, como vimos). O segundo nível é relativo a uma teoriaque seja empiricamente verdadeira. É bom assinalar que a discussãoque os autores italianos levam a cabo é bastante sofisticada e os ter-mos acima, aqui tomados de modo informal, são tratados por eles comadequada precisão. O exemplo que dão é o seguinte: quando dizemos“Um táquion não pode ser desacelerado a uma velocidade menor doque a da luz”, estamos nos comprometendo com um nível ontológicodo primeiro tipo, posto que até o momento ninguém sabe se os táquionsexistem de fato. (Um táquion é uma partícula hipotética que viaja a umavelocidade superior à da luz, e a teoria da relatividade apregoa que nadapode ser acelerado a essa velocidade ou acima, mas não impede quehaja entidades com velocidade acima da da luz; assim, de certo modo,

Ontologia de Não-Indivíduos 175

os táquions ‘já teriam nascido’ viajando a uma tal velocidade.)Temos então um comprometimento ontológico do primeiro tipo por-

que o físico pode asseverar que a sentença anterior é correta, ainda queos táquions possam não existir (não se tem, até o momento, comprova-ção experimental de sua existência). Por outro lado, continuam eles, sedizemos ‘elétrons têm spin’ (o spin é, como dito antes, uma propriedadedas partículas elementares, e para os elétrons, quando medidos em umacerta direção, assume sempre um dentre dois valores possíveis, que porsimplicidade serão denominados de ‘UP’ e ‘DOWN’), estamos diantede um nível de empenho ontológico do segundo tipo, pois admite-senão somente que os elétrons existam com respeito à teoria (comprome-timento de primeiro nível), mas também que a teoria seja verdadeiracom respeito à experiência, como é o caso com elétrons, pois tudo levaa crer que eles existam de fato (é difícil crer que certas entidades, comoelétrons, prótons e outras entidades físicas possam ser unicamente ob-jetos fictícios).

O empenho ontológico de segundo nível, no entanto, aliado ao quesupomos nos dizer a física quântica (de acordo com nossa interpreta-ção), pode nos levar a uma ontologia de não-indivíduos. Bósons emum condensado de Bose-Einstein são absolutamente indiscerníveis portodos os mecanismos proporcionados pela física quântica, isto é, nadana teoria permite discerni-los, e talvez não seja posível discerni-los demodo algum. Há outros argumentos que permitem inferir a possibi-lidade de que as entidades quânticas possam ser interpretadas destemodo. Por exemplo, sistemas emaranhados, partilhando estados quenão podem ser ‘separados’ em estados para cada componente, como vi-mos antes. Os objetos quânticos chamados de bósons podem partilharum mesmo estado quântico, situação na qual (segundo a interpretaçãodominante) não podem ser discernidos de modo algum. Assim, pareceque podemos partir do pressuposto de que a teoria é perfeitamente co-erente com a existência de entidades que violam a teoria tradicional daidentidade, logo violam a lógica e a matemática tradicionais. Se isso éde fato uma possibilidade, como podemos articular ‘quinianamente’ ocritério de comprometimento ontológico com tais entidades? Isso é oque veremos mais à frente.

176 Tópicos em Ontologia Analítica

7.2 Entidades sem identidade

A ideia é encontrar um modo de assumir que mesmo entidades semidentidade (em um sentido preciso a ser descrito abaixo) podem ser va-lores de variáveis de uma adequada linguagem que expressem tal on-tologia, uma vez que se considere uma interpretação conveniente parao que Quine chama de ‘teoria de fundo’ (background theory) que, se-gundo entendemos, dá suporte ao seu dito. Assumindo uma posiçãoconsoante com a moderna visão ‘model-theoretical’ da lógica, qual seja,de que a lógica (em princípio, supostamente a clássica) não constituiuma linguagem universal, mas que se pode tratar de seus conceitos se-mânticos em uma adequada metalinguagem, interpretamos a teoria defundo quiniana como uma conveniente metalinguagem na qual pode-mos formular conceitos semânticos acerca da linguagem (objeto) con-siderada.

Quine reporta (ainda que implicitamente) ao fato de que, mesmoque dois objetos possam concordar em todos os aspectos definidos pelateoria objeto, eles podem ser discernidos na linguagem de fundo. Oque sugerimos é que, dada a possibilidade de se admitir (ao que tudoindica contrariamente ao próprio Quine) uma pluralidade de ‘possibi-lidades lógicas’, essa linguagem é então assumida ser a da teoria dequase-conjuntos [Fr&Kr.2006, cap.7], [Fr&Kr.2010], na qual se podeassumir a existência de entidades para as quais o conceito de usual iden-tidade dado pela teoria ZFC não se aplica. Desse modo, uma linguagemconveniente (no sentido quiniano) pode admitir entidades descritas pelateoria de quase-conjuntos como valores de suas variáveis, sem que, noentanto, elas sejam vistas como indivíduos na teoria de fundo, comoparece sustentar Quine.

Deste modo, mostramos ser possível sustentar exatamente a negaçãoda célebre frase de Quine mencionada acima, ou seja, que ‘há entidadessem identidade’, entendendo-se isso como sustentando que há entidadespara as quais a teoria usual da identidade não se aplica, mas que podemser valores das variáveis de uma adequada teoria. Não caberia recor-dar aqui os detalhes do critério de Quine acerca do comprometimentoontológico de uma teoria, que já foi abordado anteriormente. Faremos,

Ontologia de Não-Indivíduos 177

no entanto, algumas menções pontuais que auxiliarão a entender a nossaproposta. Por exemplo, falando sobre o tema, Quine diz que

“A ontologia é, em verdade, duplamente relativa. Especifi-car o universo de uma teoria somente faz sentido com re-lação a alguma teoria de fundo e somente com relação aalguma escolha de uma tradução de uma teoria em outra.[. . .] Não podemos saber o que é algo, sem saber como elese distingue de outras coisas. Assim, a identidade faz umasó peça com a ontologia. Consequentemente, ela está en-volvida em uma relatividade, como se pode prontamenteilustrar. Imaginemos um fragmento de uma teoria econô-mica.

Suponhamos que seu universo compreende pessoas, masque seus predicados são incapazes de distinguir entre pes-soas cujas rendas são iguais. A relação interpessoal deigualdade de rendas goza, dentro da teoria, da propriedadeda substitutividade da própria relação de identidade; as duasrelações são indistinguíveis. É apenas com relação a umateoria de fundo, na qual mais coisas se podem dizer da iden-tidade pessoal do que a igualdade de renda, que somos ca-pazes inclusive de apreciar a descrição acima do fragmentoda teoria econômica, dependendo, como depende, de umcontraste entre pessoas e rendas.” [Qu.1980, pp.148-9]

Assim, pessoas com a mesma renda, ainda que não possam ser dis-cernidas pelos predicados da linguagem considerada, podem sê-lo nateoria de fundo, mais rica. A concordância em todos os predicados dalinguagem objeto fazem dois objetos a e b serem ‘idênticos’ (preferimosdizer relativamente indiscerníveis) do ponto de vista da teoria, porém,a e b podem vir a ser apontados como distintos na teoria de fundo pormeio de algum predicado que não pertença à linguagem da teoria objeto,mas pertencente à linguagem da teoria de fundo. Podemos então inter-pretar a teoria de fundo quiniana como a meta-teoria na qual podemoselaborar os conceitos semânticos da teoria objeto. Não encontramos

178 Tópicos em Ontologia Analítica

qualquer referência nos escritos de Quine que negue essa suposição,porém também não a vimos explicitada em sua obra. Cremos que éuma interpretação possível que permite uma explicação relativamentesimples dos fundamentos de seus slogans, em especial daquele que dizque “[n]ão há entidade sem identidade”. Vamos precisar um pouco maiseste ponto. Doravante, admitiremos que estamos trabalhando em umateoria de conjuntos como ZFC.

Suponha que tenhamos uma estrutura matemática A = 〈D, (Ri)i∈I〉,composta por um domínio D (um conjunto não vazio) e por uma fa-mília de relações (Ri)i∈I , sendo I um conjunto de índices. Elementosdistinguidos e operações sobre os elementos de D podem ser reduzidosa relações de modo usual. Da mesma forma, se há vários domínios,podemos reduzi-los a um só mediante técnicas conhecidas, bem comoestruturas de ordem superior podem ser consideradas adequadamentedentro desse esquema [KrArMo.2011]. Deste modo, a estrutura acima ésuficientemente geral para nossas considerações. Estruturas desse tipo,ou melhor, dessa ‘espécie’, ou uma espécie de estruturas, para empre-gar a terminologia de Bourbaki ([Bo.1968, cap.4]), fazem o papel dacontraparte matemática de nossas teorias [Su.2002]. Importante enfati-zar que uma espécie de estruturas como essa pode ser assumida como‘construída’ em uma teoria de conjuntos como ZFC, de primeira ordem,aqui com o axioma do fundamento.

Isto é,A acima é uma estrutura no universo conjuntistaV = 〈V, ∈〉,que por sua vez pode também ser visto como uma ‘estrutura’ (mas quenão é um conjunto de ZFC, suposta consistente). O fato é que o conceitode indiscernibilidade emA é o seguinte:

Definition 7.2.1 (Indiscernibilidade em uma estrutura) Dois objetos ae b em D são indiscerníveis emA, ouA-indiscerníveis, se há um auto-morfismo h deA tal que h(a) = b.

Informalmente falando, um automorfismo de uma estrutura é umafunção bijetiva definida em seu domínio que ‘preserva’ todas as re-lações da estrutura, ou seja, se temos R(a1, . . . , an), então vale aindaR(h(a1), . . . , h(an)) para toda relação n-ária R (ou seja, é um isomor-fismo da estrutura nela mesma). A coleção dos automorfismos de A,

Ontologia de Não-Indivíduos 179

munido da operação usual de composição de funções, é um grupo, ditogrupo de Galois da estrutura.

Se o grupo de Galois da estrutura tiver um único elemento, que entãoserá necessariamente a função identidade sobre o domínio D, a estruturaé rígida. Por exemplo, a estrutura R = 〈R,+,×, 0, 1〉 que correspondeao corpo ordenado completo dos números reais, é rígida, ao passo quea estrutura C = 〈C,+,×, 0, 1〉 correspondente ao corpo dos complexosnão é (por exemplo, a função que associa a um número complexo o seuconjugado é um automorfismo de C que não é a função identidade).

Da mesma forma, a estrutura E = 〈V,K,+, ·〉 dos espaços vetoriaissobre um corpo K de dimensão finita não é rígida, pois qualquer opera-dor linear bijetivo é um automorfismo de E. Visto como uma estrutura(em uma teoria mais forte que ZFC),2 V = 〈V, ∈〉 é rígida.

Do ponto de vista de A, ou seja, internamente à estrutura, dois ob-jetos que sejam levados um no outro por um automorfismo não podemser discernidos: eles são a ‘idênticos’ (melhor seria dizer que são A-idênticos). Parece ser a isso que Quine se refere, por exemplo em‘Identidade, Ostensão, Hipóstase’, como identificação dos indiscerní-veis [Qu.1980, p.253]. Dentro da estrutura, os indiscerníveis “devemser construídos como idênticos” (ibid.). No entanto, vistos de fora (daestrutura), eles podem ser discernidos (evidentemente, caso não sejam‘o mesmo’ objeto). O que se pode demonstrar em ZFC é que toda es-trutura pode ser estendida a uma estrutura rígida mediante o acréscimode uma quantidade finita de novas relações.

Em outras palavras, mesmo que dois objetos a e b sejam indiscerní-veis relativamente a uma estrutura A, essa estrutura pode ser estendidaa uma outra, B, na qual ‘se pode ver’ (pelo menos em princípio) queeles são elementos distintos. Moral da história: em ZFC (vê-se isso pormeio da ‘estrutura’ mais geralV, o universo conjuntista), todo objeto éum indivíduo, no sentido de que pode sempre ser discernido de qualquer

2Supondo que ZFC é consistente, um modelo de ZFC não pode ser construído emZFC devido ao segundo teorema de incompletude de Gödel. No entanto, se traba-lharmos em uma teoria mais forte, por exemplo contendo universos, que são certostipos de ‘conjuntos’ enormes (e cuja existência equivale à hipótese de haver cardinaisfortemente inacessíveis), podemos construir nela modelos de ZFC.

180 Tópicos em Ontologia Analítica

outro distinto dele; por exemplo, tome a relação unária Ia(x) := x = a,cuja extensão é o conjunto unitário de a, e que corresponde à proprie-dade ‘ser idêntico a a’ —auto-identidade. Claro que em ZFC nenhumb distinto de a possui essa propriedade, ou pertence a a. Como é ha-bitual, associa-se a inspiração de Quine para o seu “[n]ão há entidadesem identidade” a Frege, no sentido de que Quine aceitava que postularentidades de um certo tipo requer que haja um critério de identidadepara elas [Ch.2003]. Assim, reportando-nos a uma ‘teoria de fundo’como ZFC, chegamos a uma vertente alternativa para sustentar a crençade que não há entidade sem identidade, pois se pode provar, na meta-matemática, que todo objeto concebido ontologicamente por uma teoriadevidamente regimentada (ou seja, que possa ser valor das variáveis li-gadas das fórmulas da linguagem dessa teoria) é um indivíduo.

Em virtude do que podemos dizer que um certo objeto é um indiví-duo? G. Toraldo di Francia diz que o ato de dividir o mundo em objetosé algo que nos é inato [To.1986, p.23]. Fazemos isso instintivamente,sugere ele, em nossa caminhada para conhecer o mundo. Toraldo sebaseia muito em Piaget, e algumas das ideias desse último podem serúteis para nossos propósitos. Em seu A Construção do Real na Criança[Pi.2003], Piaget argumenta que em seus primeiros dias ou semanas devida (durante as duas primeiras das seis fases de elaboração do conceitode objeto, que duram aproximadamente um ano e meio), a criança nãotem a noção de objeto articulada –que prefiro substituir pela de indiví-duo. Apesar de brincar como objetos (indivíduos), como por exemplocom um pequeno boneco (digamos de um gatinho de pelúcia), ela nãofez dele (ainda) um indivíduo, algo que tenha uma identidade bem de-finida. Entender este ponto é importante para a distinção que vimosfazendo entre individualizar, no sentido de separar dos demais, mesmode mesma espécie, e fazer do objeto um indivíduo.

Certamente, o primeiro não implica o segundo, apesar de isso seraparentemente contrário à crença comum, e parece que essa opiniãotem apoio em Piaget. Com efeito, brincar com um gatinho de pelú-cia exige individuação, pois é com aquele gatinho que a criança estábrincando. No entanto, nas primeiras semanas, se o gatinho sai do raiode atenção da criança, ou se é substituído por outro similar ou mesmo

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por outro brinquedo, digamos um cãozinho de pelúcia, a criança não no-tará qualquer diferença, e continuará brincando com o novo brinquedosem se dar conta que ele foi trocado. Tudo o que procurará é restabe-lecer uma situação agradável, e isso pode ser feito com um brinquedosemelhante ou mesmo com outro. O gatinho inicial “cai no esqueci-mento” [Pi.2003, p.32]. É somente bem mais tarde que o brinquedovai adquirir identidade, ser um indivíduo que pode ser identificado emoutras ocasiões como sendo aquele brinquedo e não outro, e que se forsubstituído, a criança perceberá e poderá pedir de volta aquele brin-quedo. É nesse estágio é que a criança elabora a noção de indivíduo,vinculada à noção de identidade no espaço-tempo (intuitivo).

Não é, portanto, a simples individuação (por exemplo, a separaçãoespaço-temporal) que faz de um objeto um indivíduo, mas o estabele-cimento de uma possibilidade de reconhecimento posterior, que Piagetchama de permanência (no espaço-tempo). Ou seja (ainda que não te-nhamos visto Piaget dizer isso), a identidade é algo que elaboramos emnossa mente, que sustentamos (como dizia Hume) pelo hábito. Claroque a noção de espaço, bem como a de tempo, é problemática aqui,pois a rigor não sabemos de que tipo de espaço e tempo se está tratando(seriam conceitos absolutos, newtonianos, ou seriam relativos, einsteni-anos?).

No entanto, acreditamos que podemos prosseguir assumindo as con-figurações intuitivas desses conceitos, que me parece serem as adotadas,afinal. Alguns filósofos usam uma terminologia advinda da filosofia dalinguagem e das lógicas modais e falam de mundos possíveis. Assim,um objeto é um indivíduo quando pode ser identificado como tal em di-ferentes mundos possíveis, mas na semântica usual, um mundo possívelé um conjunto (digamos, de ZFC), e caímos novamente nas considera-ções conjuntistas de uma teoria de fundo, já mencionadas antes.

Preferimos outra opção, que me parece mais afeita a Quine: diremosque uma entidade (no sentido geral de algo que pode ser concebida) éum indivíduo quando obedece à teoria da identidade da lógica e da ma-temática tradicionais, que denotarei aqui por TTI (para teoria tradicio-nal da identidade). Revisando, nas teorias usuais de conjuntos, a TTI seresume aos axiomas da identidade para a lógica elementar clássica (re-

182 Tópicos em Ontologia Analítica

flexividade e substitutividade) e o axioma da extensionalidade da teoriade conjuntos. Em uma linguagem de ordem superior, a identidade podeser definida por meio da Lei de Leibniz, que veremos abaixo. Vejamosdo que se trata.

7.3 Consequências da teoria tradicional daidentidade

Com mais detalhes, lembremos que a TTI pode ser resumida do seguintemodo. Se ficarmos restritos a uma linguagem de primeira ordem comum símbolo primitivo = (um predicado binário), então os postulados emgeral são assumidos serem os seguintes:

(i) [Reflexividade] ∀x(x = x)

(ii) [Substitutividade] ∀x∀y(x = y → (α(x) → α(y)), onde α(x)é uma fórmula na qual x figura livre e α(y) é obtida de α(x) pelasubstituição de y em algumas ocorrências livres de x, sendo y umavariável livre para x em α(x) [Md.1997, p.95].

Alternativamente, como vimos, podemos encontrar uma fórmulaα(x, y) da linguagem por meio da qual a identidade possa ser definidae que permita provar como teoremas as fórmulas correspondentes aosaxiomas anteriores. Este é, aliás, o expediente que utiliza Quine, queconcentra-se em linguagens com um número finito de predicados. Aidentidade, neste caso, é simulada pela concordância em todos os pre-dicados assumidos, logo, por extensão, em todas as expressões da lin-guagem (veja-se, por exemplo, [Qu.1986]). Por exemplo, suponha quenossa linguagem tem somente os seguintes (símbolos) de predicadosprimitivos: um unário P e um binário Q. Podemos então definir a "iden-tidade" x = y da seguinte forma:

x = y := (P(x)↔ P(y))∧∀z(Q(x, z)↔ Q(y, z))∧∀z(Q(z, x)↔ Q(z, y)).

Observe-se que, como já se disse anteriormente, em nossa opiniãoessa definição fornece apenas a indiscernibilidadade de x e de y relati-vamente aos predicados primitivos da linguagem, e nada impede haver

Ontologia de Não-Indivíduos 183

um terceiro predicado S que não pertença à linguagem, tal que S (x) mas¬S (y).

Na semântica usual, objetiva-se que o predicado de identidade sejainterpretado na diagonal do domínio D da interpretação, ou seja, noconjunto ∆D = 〈x, x〉 : x ∈ D, mas sabe-se que os axiomas (ou a de-finição) acima não individualizam a diagonal a menos de uma relaçãode equivalência. Com efeito, suponha que ∼ é uma relação de equi-valência sobre D, e tomemos D′ = D/∼ como domínio de uma outrainterpretação para a mesma linguagem elementar, sendo D/∼ o conjuntoquociente de D pela relação de equivalência ∼.3 Interpretemos agoraa relação de identidade em ∼ nessa segunda estrutura, e definamos afunção f : D 7→ D′ da seguinte forma:

(i) Para cada x ∈ D, f (x) = [x]∼ ∈ D′.

(ii) f (x) ∼ f (y) se e somente se x = y

(iii) Para todo predicado n-ário P da linguagem, se PD ⊆ D interpretaP na primeira estrutura (que tem D por domínio) e se PD′ ⊆ D′

interpreta P na segunda, então PD′( f (x1), . . . , f (xn)) se e somente sePD(x1, . . . , xn).

(iv) Para cada símbolo funcional n-ário h da linguagem, se hD inter-preta tal símbolo na primeira estrutura e hD′ o interpreta na segunda,então hD′( f (x1), . . . , f (xn)) ∼ f (hD(x1, . . . , xn)).

(v) Para cada constante individual c da linguagem, se cD é o objetode D que a interpreta e se cD′ é o correspondente objeto em D′, entãocD′ ∼ f (cD).

Isto posto, podemos provar que as estruturas que têm D e D′ comodomínios são elementarmente equivalentes, ou seja, as fórmulas ele-mentares que são verdadeiras em uma estrutura são verdadeiras na ou-tra. Essas estruturas, ou interpretações, portanto, não se distinguem doponto de vista da linguagem (elementar) que estamos considerando.

3Ou seja, D/∼ é o conjunto de todas as classes de equivalência dos elementos deD, isto é, [a]∼ = y ∈ D : y ∼ a para cada a ∈ D.

184 Tópicos em Ontologia Analítica

Deste modo, tendo-se essa linguagem, não poderemos nunca saberse estamos tratando de elementos de D (os nossos indivíduos) ou decoleções de elementos de D (as classes de equivalência em D′ —verpor exemplo [Md.1997, p.100]. A linguagem não permite, portanto,que haja distinção entre a diagonal ∆D e a diagonal ∆D′ .

Para caracterizar a identidade (a diagonal), podemos pensar em usarlógicas mais fortes, como as lógicas de ordem superior ou uma teoria deconjuntos. No primeiro caso (vamos nos restringir a uma linguagem desegunda ordem), a identidade pode ser definida, ao estilo dos PrincipiaMathematica, por meio da chamada Lei de Leibniz (LL)

x = y := ∀F(Fx↔ Fy), (7.1)

onde x e y são variáveis individuais e F é uma variável para predica-dos de indivíduos. Se entre os valores da variável F estiver a ‘auto-identidade’ dos objetos do domínio, ou seja, os predicados Ia(x) := x =

a para cada a, então basta a implicação material na definição acima([BoBuJe.2007, p.200]; veja [Fr&Kr.2006, p.255]). A definição nãoé isenta de dificuldades. Somente poderemos afirmar a identidade dedois elementos se considerarmos a extensão de todas as possíveis F’s(ou seja, todos os subconjuntos do domínio). Neste caso, dois objetosa, b ∈ D serão tais que a = b se e somente se pertencerem aos mesmossubconjuntos (todos eles incluídos, inclusive os unitários), e assim issovale se e somente se a e b forem de fato iguais. Porém, uma semân-tica que admita todos os subconjuntos do domínio (uma interpretaçãoprincipal) tem o problema de tornar a lógica incompleta.

Para contornar essa dificuldade, utilizam-se semânticas alternativas(ditas ‘de Henkin’, ou generalizadas), as quais tomam somente algunssubconjuntos de D. Mas então pode acontecer o seguinte. Assuma queo domínio seja o conjunto D = 1, 2, 3, 4, e que as variáveis para predi-cados unários (os únicos existentes, por hipótese) são interpretados nossub-conjuntos 1, 2, 1, 2, 3, 1, 2, 4 (semântica generalizada de Hen-kin). Neste caso, se temos duas constantes individuais a e b que sãointerpretadas respectivamente em 1 e 2, então podemos ver que a = b,pois 1 e 2 pertencem a todos os sub-conjuntos selecionados. No en-tanto, ainda que nossa interpretação não deixe transparecer, sabemos

Ontologia de Não-Indivíduos 185

que 1 , 2, mas isso só pode ser comprovado com recursos mais fortes,fazendo uso da metateoria.

No caso das teorias de conjuntos (vamos novamente supor ZFC deprimeira ordem, sempre consistente), adiciona-se aos axiomas da Re-flexividade e da Substitutividade acima o Axioma da Extensionalidade,que já conhecemos. Desta forma, resulta que dois conjuntos são idên-ticos se e somente se têm os mesmos elementos, e se houver átomos,eles serão iguais se e somente se pertencerem a exatamente os mesmosconjuntos. A TTI portanto é leibiniziana, no sentido de não permitir quepossam haver indivíduos ou conjuntos, conforme o caso, absolutamenteindiscerníveis. Tudo o que podemos fazer no tocante à indiscernibi-lidade é nos restringirmos ao âmbito de uma determinada estrutura, eentão, como diz Quine, construir os objetos como ‘idênticos’ do pontode vista interno da estrutura (indiscerníveis pelos recursos da sua lin-guagem) [Qu.1980, p.253].

Como se pode perceber pelo parágrafo anterior, a identidade temmuito a ver com a indiscernibilidade. Primeiramente, vamos observarque não discutiremos se a identidade é ou não uma relação, como de-fendem alguns e contestam outros. Assumiremos isso como uma hi-pótese, ao estilo Frege e Russell. Qual então é a importância da suarelação com a indiscernibilidade dos objetos quânticos? No uso que fa-zemos da expressão ‘não-indivíduo’ segue uma tradição que vem desdeo trabalho seminal de Max Planck sobre a derivação da lei da radiaçãodo corpo negro em 1900 (Planck [1901]; para detalhes históricos, ver[Fr&Kr.2006]). Na derivação da referida lei, Planck assumiu (dito deforma simplificada) que P elementos de energia podem ser distribuídosem N modos possíveis de acordo com a fórmula

(N + P − 1)!(N − 1)!P!

. (7.2)

Mais tarde, Ehrenfest percebeu que a divisão por P! leva à indiscer-nibilidade dos objetos quânticos. Com efeito, suponha que P = N = 2(duas ‘partículas’ para serem dispostas em dois a ‘estados’ possíveis).‘Classicamente’, ou seja, se supusermos que os objetos consideradossão indivíduos, teremos quatro possibilidades, se chamarmos as confi-gurações resultantes de A e B, e os quanta de a e b: (1) a e b estão em A;

186 Tópicos em Ontologia Analítica

(2) ambos estão em B: (3) a está em A e b está em B e (4) a está em Be b está em A. Este modo de contar, ou ‘estatística’, á conhecido comoestatística de Maxwell-Boltzmann, e é característica dos objetos da fí-sica clássica, como já vimos antes. A distinção feita entre as situações(3) e (4) diz que, apesar de eles poderem ter as mesmas propriedades,são indivíduos distintos, uma vez que a sua permutação acarreta em a‘estados’ diferenciados, e sua individualidade pode ser dada por algumaforma de substrato, como já vimos. No caso da física quântica, no en-tanto, a situação é outra. Primeiro, todos os objetos quânticos que seconhece caem sob uma dentre duas categorias: ou são bósons ou sãoférmions. Bósons obedecem à ‘estatística’ de Bose-Einstein, na qual assituações (3) e (4) acima são identificadas. Isso faz com que a rotula-ção das entidades como a e b, ou seja, a atribuição de nomes, perca osentido. As situações admitidas são: (1’) ambas em A, (2’) ambas emB e (3’) uma está em A e outra em B (sem que haja diferenciação entreelas). Quanto aos férmions, devido ao fato de que devem obedecer aoPrincípio de Exclusão de Pauli, que informalmente diz que não pode-mos ter mais de um férmion em um dado estado, sobra unicamente asituaçã (3’). Se tomarmos N = P = 2 e fizermos o cálculo com bósonsusando a fórmula de Planck acima, o resultado é exatamente o esperado,três situações possíveis Para férmions, teremos uma única possibilidade,exatamente o caso (3’).

Hoje, dizemos que permutações de objetos indiscerníveis não con-duzem a estados observacionalmente distintos. Insistamos que essaconstrução se assemelha ao exemplo já visto de como uma criançaforma (ou constrói) a noção de objeto (de indivíduo). A troca de umgatinho de pelúcia por um parecido em nada muda sua concepção demundo (no caso da criança em suas primeiras semanas, a situação éainda mais radical, pois a substituição do gatinho por outro brinquedoparece não mudar nada para ela). A diferença para com o caso quân-tico é que a criança, prosseguindo em sua evolução natural, vai formara noção do gatinho de pelúcia como um indivíduo, podendo chegar aidentificá-lo como sendo seu em outras situações de sua vida (comosupostamente eu faço com minha caneta), ao passo que muito provavel-mente (se acreditarmos na física quântica) isso não possa ser feito com

Ontologia de Não-Indivíduos 187

objetos quânticos. Se eles saem de nosso campo de percepção –paraempregar uma terminologia piagetiana, não podem mais ser identifi-cados como tais. Os objetos quânticos não têm genidentity, ou identi-dade trans-temporal, para empregar a expressão usada por Reichenbach.Ou seja, eles não têm individualidade no sentido elaborado acima e, se-gundo a maior parte das interpretações, não podem vir a ter: são não-indivíduos.

Se desejamos fundamentar formalmente uma ontologia de não-indi-víduos, necessitamos dos correspondentes mecanismos formais. Nossaproposta em grande parte alicerça-se no dito de Schrödinger de que oconceito de identidade não faz sentido para partículas elementares (veja[Fr&Kr.2006] para uma discusssão ampla). Com efeito, um modo dese conceber não-indivíduos, em oposição à caracterização acima de queindivíduos são entidades que obedecem a TTI, é postular justamente ocontrário: não indivíduos não obedecem TTI. Isso pode ser feito, teori-camente, de dois modos: conceber uma entidade que não seja idêntica aela mesma, que não é nosso caso, ou simplesmente usar uma linguagemem que expressões da forma x = y (bem como sua negação, x , y) nãosejam fórmulas (expressões bem formadas da linguagem). Com isso,‘propriedades’ a auto-identidade de um objeto a, ou seja, o predicado Ia

definido por Ia(x) := x = a não seriam propriedades ‘legítimas’ de a.O problema é que se tudo for feito tendo a matemática usual (leia-se,

ZFC) como pano de fundo, voltaremos a ter o mesmo problema apon-tado anteriormente, qual seja, o da possibilidade da extensão de uma tallinguagem (que pode ser vista como a linguagem de uma certa estrutura)a uma linguagem correspondente a uma estrutura rígida. A identidade‘abandonada’ entra novamente pela porta deixada aberta pela lógica epela matemática subjacentes. O modo de conciliar este problema é,de certo modo, partir do zero: elaborar uma matemática que incorporea noção de não-individualidade desde o início, assumindo-a como umconceito primitivo.

No que tange à física quântica, uma tal teoria viria ao encontro dodesejo de Heinz Post de que as entidades quânticas deveriam ser con-sideradas como indiscerníveis ‘desde o princípio’ (right at the start), enão seriam não-indivíduos ‘mascarados’ como objetos pertencentes ao

188 Tópicos em Ontologia Analítica

domínio de uma estrutura não-rígida. Uma teoria de não-indivíduospoderia igualmente atender os reclamos de Yuri Manin por uma te-oria de ‘conjuntos’ (as aspas são dele) que permitisse tratar de cole-ções de objetos, como os quânticos, que não obedeceriam os axiomasdas teorias usuais de conjuntos como ZFC (ver [Fr&Kr.2006, Cap.6]);ponto semelhante foi sustentado por Dalla Chiara e Toraldo di Francia[Da&To.1981].

Com a teoria de quase-conjuntos como pano de fundo, podemos re-tornar ao critério de comprometimento ontológico de Quine, como jáantecipamos no final do capítulo anterior. Pensemos em uma lingua-gem L ao estilo Quine, porém elaborada tendo a linguagem da teoriade quase-conjuntos como metalinguagem, ou seja, elaborada ‘dentro’da teoria de quase-conjuntos, que será a nossa teoria de fundo. Pode-mos nos referir (e quantificar formalmente) em L sobre não-indivíduos,ou seja, não-indivíduos podem ser valores das variáveis das sentençasquantificadas de L. Deste modo, não-indivíduos ‘existem’ de acordocom os padrões quinianos, e portando há entidades sem identidade.Além do mais, há estruturas emQ que não podem ser estendidas a estru-turas rígidas e, dessa forma, ‘mesmo de fora’ os objetos indiscerníveisnão podem ser identificados isoladamente.

Qual a lição que podemos tirar disso? Primeiramente, o comprome-timento ontológico de uma teoria não depende unicamente da sua lin-guagem, mas está condicionado também à sua metateoria. Com efeito,conforme mostra nossa argumentação, uma adequada mudança na me-talinguagem pode fazer com que a ‘decisão sobre uma ontologia’, paraempregar a expressão de Orenstein [Or.2002, Cap.3], possa variar. Issode certo modo nos incita a refletir sobre o critério quiniano de que se-riam unicamente as variáveis da linguagem que determinam uma onto-logia, uma vez que, segundo a semântica usual, o que venham a ser essesvalores depende fundamentalmente da metateoria utilizada. Como umcomentário adicional, em nossa opinião resulta também que a sugestãode M. Bunge de que a lógica e a matemática seriam ‘ontologicamenteneutras’ [Bu.1977, p.15], e que seria por esse motivo que permitiriama construção de teorias ontológicas as mais diversas, não se sustenta,pois qualquer ontologia construída, digamos em ZFC, é no fundo uma

Ontologia de Não-Indivíduos 189

ontologia de indivíduos.

7.4 Uma visão das teorias científicas e de seuprogresso

Como ‘funcionam’ as teorias científicas? Veremos a seguir uma ideiageral do que chamamos de progresso das teorias em ciência. Trata-se deuma descrição inicial apenas, mas motiva o estudante a entender muitodo que vimos dizendo. O esquema a ser apresentado a seguir não podeser dito se aplicar a qualquer teoria científica, mas certamente se adequaà maioria das conhecidas. Considere a figura a seguir.

"!#

(R)

Realidade ‘velada’

"!#

(RE)

Realidade empírica (RE)

@

@R

H

"!# (MM)

Modelo matemático teórico (MM)

"!#

(T)

A teoria do modelo (T)Modelos ‘heurísticos’ (H)

Modelos abstratos (A)

-

@@R

-(1)

-(2)

-(3)

O cientista O fundacionista

Figura 7.1: Visão geral simplificada das teorias científicas—ver o texto.

Suponha que objetivamos dominar uma certa porção de uma supostarealidade (R). Um biólogo pode estar interessado em uma determinadapopulação de peixes; um físico nos buracos negros de uma certa galá-xia, um economista em uma determinada parcela da população consu-midora, e assim por diante. Se formos realistas (e há realistas de diver-sas tendências), aceitaremos que existe uma ‘realidade’ independentede nossas vontades ou mentes. O mundo estaria aí (talvez um poucodiferente) mesmo se não existíssemos. Para os chamados realistas cien-tíficos, nossas teorias (pelo menos as melhores) nos contam a verdadeacerca desse mundo, ao menos parcialmente.

190 Tópicos em Ontologia Analítica

Porém, se formos anti-realistas (e também há anti-realistas para to-dos os gostos), não falaremos propriamente na verdade das teorias cien-tíficas, mas que elas devem ser úteis, ou empiricamente adequadas, ouainda algo similar. Sem discutir em detalhes esta questão, vamos assu-mir simplesmente que para a investigação científica faz sentidoassumir que há algo além de nós mesmos e que desejamos investigar(veja a Figura 7.1).

Para isso, vamos de início seguir o físico e filósofo francês BernardD’Espagnat e chamar esse algo de Realidade (R) e, como ele, assumir(algo kantianamente) que (R) permanece, para nós, ‘velada’, ou inaces-sível [d’E.2006], [d’E.sd].4 Tudo o que dispomos (supostamente) a res-peito de (R) são dados fenomênicos, informações coligidas de nossa in-teração fenomênica com o domínio (via observação, experimentos comaparelhos, o que quer que seja), que ele denomina de Realidade Empí-rica (RE). Deve ficar claro que nossa investigação de (R) não é feita desimples observações (em sentido amplo). Se não estivermos prepara-dos, podemos ficar horas observando os traços em uma câmara de bo-lhas sem nada concluir, ou observar por horas uma população de peixessem concluir nada do que um biólogo treinado pode concluir. Dito di-retamente, nossas observações, nossas análise dos dados fenomênicos,nossos modelos de dados, para empregar um termo devido a PatrickSuppes, dependem de teorias que carregamos em nossa bagagem.

Esta observação foi feita por Einstein ao jovem Heisenberg, e lem-brada por este em várias passagens, pela importância que lhe reputou.Segundo Heisenberg, Einstein teria ensinado a ele que “É a teoria quediz o que pode ser observado”, ou seja, qualquer ‘observação’ que fa-çamos já está impregnada de ‘teoria’.5 Não precisamos discutir o termo‘observação’ aqui. O que desejo enfatizar é que nossa análise de (R),via (RE), já utiliza conhecimentos via de regra científicos. No entanto,desejamos teorizar a respeito de (R), e o fazemos com os dados que

4Nosso esquema coincide com o de d’Espagnat unicamente quanto às etapas (R) e(RE), porém, quanto a (RE), introduzimos outras analogias.

5Esta passagem encontra-se, por exemplo, em [Hs.1983, pp.10-1], e também natradução brasileira da autobiografia intelectual de Heisenberg, que recomendo a todos,[Hs.1996, pp.77ss].

Ontologia de Não-Indivíduos 191

dispomos em (RE).Com base em nosso conhecimento prévio (teorizações prévias), e le-

vando em conta (RE) e muitas vezes fazendo uso de dispositivos heurís-ticos (H) como modelos de aeroplanos, de uma molécula de DNA, umamaquete de uma hidroelétrica ou uma mesa de bolas de bilhar para si-mular (ou ‘modelar’) as moléculas de um gas, construímos o que vamosdenominar de Modelo Matemático (MM), ou Teoria Informal (no sen-tido de que não está via de regra axiomatizada) visando dar conta de(RE). É claro que há várias possibilidades para se elaborar (MM); cadacientista tem sua visão do contexto, conhecimentos prévios, modos deentender uma situação. Vamos nos fixar em um (MM). Um (MM) é tipi-camente o que o matemático aplicado ou o engenheiro realizam quando‘modelam’ uma parcela da realidade.

O modo de se construir ou elaborar uma tal teoria tem sido muitodiscutido na literatura, e não nos interessa aqui. Basta que reconheça-mos que a atividade científica é uma a atividade conceitual. O biólogomencionado acima utiliza noções (conceitos) como as de espécie, am-biente, PH da água, etc.; o físico que estuda buracos negros vale-se dosconceitos da relatividade geral (como espaço-tempo, aceleração), en-quanto que o economista utiliza noções como as de mercado e demanda,dentre outros. Estes conceitos podem ser imaginados (pelo menos ide-almente) coligidos, ou agrupados, em uma estrutura, uma estrutura ma-temática no caso das teorias físicas em geral, mas que pode adquiriroutras formas nas demais disciplinas, como a economia ou a psicaná-lise (que faz uso de conceitos como inconsciente, ego, rejeição, dentreoutros). Como estamos nos fixando na física, vamos nos restringir afalar desta disciplina.

Assim, podemos pensar em um (MM) como caracterizado por umaestrutura conjuntista, já que para as teorias físicas usuais toda a para-fernália matemática que precisamos pode ser obtida em uma teoria deconjuntos como ZFC. Aqui aparece um dado importante: elaboramosnosso (MM) fazendo uso de uma matemática (e portanto de uma ló-gica), apesar de estarmos utilizando outras teorias que nos auxiliam a‘modelar’ nossa (RE).

Muitas vezes, para produzir um (MM), o cientista não dispõe dos

192 Tópicos em Ontologia Analítica

conceitos adequados, necessitando criá-los, o que faz quase semprevalendo-se de analogias de teorias ou de conhecimentos anteriores. As-sim, a noção de partícula muda de teoria física para teoria física, maso termo continua a ser utilizado, apesar de adquirir significados distin-tos (ver, por exemplo, [Fa.2007, Cap.6] onde o conceito de partícula éexibido nas diversas teorias físicas). Da mesma forma, muitas vezes ocientista não dispõe de uma matemática adequada, necessitando criá-la.Newton, por exemplo, elaborou o Cálculo Diferencial e Integral paradar conta de seus anseios em física. Isso é um fato histórico.

O que importa é que há uma matemática disponível com a qual o ci-entista opera para elaborar seu (MM). Este modelo, ou teoria informal,está carregado de significado, ou seja, seus termos e conceitos acham-seinterpretados nos moldes da (RE), e indiretamente, da visão que tem ocientista de (R). Assim, quando o biólogo fala da reprodução de seuspeixes, está mesmo falando da reprodução dos animais que constituemsua parcela da realidade sob investigação (não estranhe estas palavras,leitor; avante, veremos que chamar a atenção para este fato aparente-mente óbvio faz sentido).

Assim, os modelos matemáticos (MM), que usualmente chamamosde ‘teorias’, são via de regra estabelecidas informalmente, isto é, semo recurso do método axiomático, como ilustram a teoria da evoluçãodarwiniana, ou a física de Galileu. Em certas situações, esses modelosmatemáticos, como preferimos denominá-los, são postos já axiomati-camente, ou em uma forma que se pode dizer que pode dar origem auma axiomatização no sentido atual do termo, como a física newtoni-ana ou a teoria eletromagnética de Maxwell. É essencialmente nessenível informal, ou pseudo-formal, que trabalha o cientista.

As duas teorias da relatividade foram apresentadas deste modo, bemcomo as primeiras formulações da mecânica quântica (pré von Neu-mann), feitas por Heisenberg (a ‘mecânica de matrizes’) e Schrödin-ger (mecânica ondulatória). Muitas vezes, para motivar a elaboraçãodos modelos matemáticos, ou seja, para criar uma teoria, os cientistasse valem de dispositivos heurísticos os mais variados. O ‘modelo’ dadupla hélice do DNA, de Watson e Crick é um os mais interessantesexemplos, e encontra-se na web facilmente muita informação sobre o

Ontologia de Não-Indivíduos 193

assunto. Da mesma forma, podemos citar ainda os planos inclinados deGalileu, dentre vários outros exemplos.

Porém, se para o cientista a elaboração de um modelo matemático(ou teoria informal) pode bastar, isso em geral não contenta o fun-dacionista (o filósofo ou o cientista interessado nos fundamentos daciência), que deseja mais, em especial, conhecer a estrutura das teoriaselaboradas. Entra então em cena uma terceira etapa, a da elaboraçãode uma teoria estrito senso, no sentido em que tencionamos empregareste termo, ou seja, uma versão axiomatizada ou mesmo formalizada dateoria informal.6 Claro que, assim como uma mesma coleção de dadosfenomênicos pode dar origem a diferentes teorias informais, ou modelosmatemáticos, como os denominamos, uma mesma teoria informal podedar origem a diferentes axiomatizações ou formalizações. Exatamentepor ser uma teoria informal, seus contornos não são bem delimitados,de forma que as versões axiomáticas ou formais podem inclusive serincompatíveis entre si. Como este ponto nos interessa sobremaneira,deixaremos para falar dele mais abaixo.

Uma teoria axiomatizada ou formal, contrariamente à teoria infor-mal, é abstrata no sentido de não pressupor uma interpretação de seusconceitos primitivos. Isso faz com que ela possa ter vários ‘modelos’no sentido de estruturas matemáticas que satisfaçam seus postulados,dependendo da interpretação particular que se adote.7 Assim, uma de-terminada teoria (T) pode ter vários modelos abstrados (A) inclusivenão isomorfos, como é o caso da aritmética elementar, da teoria dosgrupos ou da dos espaços vetoriais reais.

6Discernimos entre uma teoria axiomatizada, que não explicita a sua lógica subja-cente, em geral pressupondo a lógica clássica e uma teoria de conjuntos como ZFC.Já uma teoria formalizada deixa clara a sua linguagem básica e a lógica subjacente(que pode envolver uma teoria como ZFC); da Costa denomina-as de axiomatizaçãosecundária e primária respectivamente [Co.1980, passim].

7Note que há vários sentidos da palavra ‘modelo’ em uso, que não devem serconfundidos pelo leitor.

194 Tópicos em Ontologia Analítica

Qual a importância desse trabalho fundacionista? Podemos destacarvárias questões que são postas em relevo pela análise dos fundamentosde uma teoria (informal) científica, tais como:

(1) delineamento preciso de sua contraparte matemática, incluindosua lógica subjacente,

(2) explicitação de seus conceitos básicos (dependendo da particularaxiomática adotada),

(3) possibilidade de generalização, no sentido de se perceber ‘outrosuniversos’ (ou domínios) aos quais a teoria possa ser aplicada, ouseja, de modelos não isomorfos ao inicialmente pretendido, e o

(4) estudo metateórico da teoria, por exemplo buscando-se saber sevalem alguns metateoremas importantes, como categoricidade ou,quando não houver categoricidade, a existência de um teorema derepresentação para a teoria, dentre outras coisas.

Um teorema de representação tem a seguinte finalidade; dado queuma teoria axiomática pode ter uma infinidade de modelos, haveriauma sub-classe da classe de seus modelos tal que qualquer modeloda teoria tenha nessa classe um que lhe seja isomorfo? Uma respostapositiva permitiria caracterizar os modelos da teoria por meio dessaclasse especial. Por exemplo, para grupos, há o célebre teorema derepresentação de Cayley, que afirma que todo grupo é isomorfo a umgrupo de transformações (não vem ao caso detalhá-lo aqui). PatrickSuppes destaca a busca de tais teoremas como uma das mais impor-tantes questões relacionada à fundamentação axiomática das teoriascientíficas; ver [Su.1959, cap.12], onde alguns exemplos são dados.

O que se constata é que uma teoria, assim concebida, pode ser com-patível com várias ontologias (ou metafísicas, como prefere dizer S.French ([Fr.1998], [Fr.1998]; ver [Fr&Kr.2006]). Em outras palavras, oformalismo matemático usual da mecância quântica não relativista nospermite associar pelo menos duas metafísicas (ou ontologias) distintas e

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de certa forma incompatíveis.8 A primeira considera as entidades quân-ticas como indivíduos, ao par com seus correspondentes (átomos, elé-trons, etc.) descritos pela física clássica, porém sujeitos a restrições nosestados que podem assumir ou nos tipos de observáveis que podem serconsiderados.9 A segunda posição vê os objetos quânticos como desti-tuídos de individualidade, como não-indivíduos, e está mais de acordo,segundo pensamos, com o tipo de estória acerca do mundo que nosconta essa teoria, por exemplo quando leva em conta (necessariamente,segundo a maior parte dos cientistas) noções como emaranhamento.

A discussão se as terias quânticas de campos podem admitir uma on-tologia de partículas é ainda algo em discussão, não havendo consensoentre os especialistas.10 Há muitos filósofos e físicos que sustentam quea ontologia básica, como já falamos, é constituída por campos, e quepartículas se originam de certos estados desses campos. Outros defen-dem a possibilidade de uma ontologia de partículas mesmo nas teoriasquânticas de campos. Seja lá o que os defensores da visão de partículaspensem que sejam essas entidades, de forma a fazer sentido nas teoriasde campos, certamente o conceito se afasta em muito daquilo que usual-mente chamamos de ‘partícula’ na física clássica e mesmo na mecânicaquântica não relativista.

Estender essa discussão nos obrigaria a adentrar em detalhes quenão cabem aqui. O que fica, assim pelo menos espero, é a suspeita(para mim uma certeza) de que a física, ou qualquer teoria científica,não é capaz de fixar ou de determinar a sua metafísica e nem a sua on-tologia, as quais têm sempre um viés algo hipotético. O máximo quepode fazer é fornecer algumas limitações para o que se pretende des-crever, desempenhando assim um papel negativo. Por exemplo, comovimos acima, se desejamos sustentar uma metafísica de não-indivíduos,fazer isso dentro de uma teoria matemática que encerre a lógica usualda indentidade nos traz complicações filosóficas, ainda que seja maisfácil sob certo ponto de vista, com isso não se necessitando alterar a

8Os detalhes encontram-se em [Fr&Kr.2006].9A mecânica bohmiana tem essa característica de tratar os objetos quânticos como

indivíduos, mas não trataremos dela aqui.10Veja-se por exemplo [Ha&Cli.2002].

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lógica subjacente. Claro que isso é lícito, mas parece que ao filósofocabe justamente explorar novas possibilidades.

Exercícios

1. Faça um ensaio defendendo uma ontologia de não-indivíduos.

2. Agora repita o exercício elaborando uma crítica a essa posição.

3. Explique como a noção de indivíduo apresentada no texto estárelacionada à teoria da identidade da lógica e da matemática usuais.

4. A propósito, que teoria é essa? (Veja o exercício 7 abaixo)

5. Leia o artigo de Patrick Suppes ‘O que é uma teoria científica?’no livro organizado por S. Morgenbasser, Filosofia da Ciência, S.Paulo, Cultrix. Organize com seus colegas um debate a respeito.

6. Vá além do que foi exposto neste livro, consultando algumas dasfontes indicadas na Bibliografia a seguir, e aprofunde seus conheci-mentos em ontologia analítica.

7. O que significa dizer que a identidade não pode ser definida?Dica: Primeiro, determine de ‘que identidade’ se está falando; trata-se da chamada ‘identidade numérica’ (descreva-a informalmente).Depois, apresente os postulados para a identidade em uma lingua-gem de primeira ordem (reflexividade e substitutividade) e sua se-mântica usual (a diagonal do domínio). Finalmente, mostre que hámodelos elementarmente equivalentes a este no qual a ‘identidade’não é a diagonal, mas uma outra relação de congruência. Em relaçãoàs linguagens de ordem superior, a identidade é geralmente dada pelaLei de Leibniz. No entanto, pode-se apresentar modelos de Heinkinnos quais objetos que obedecem esta lei não são os mesmos obje-tos no domínio. Isto está bem exposto no livro de Elliot Mendelsonmencionado na Bibliografia.

8. Ao longo da história, a palavra ‘ontologia’ recebeu vários signifi-cados. Cite alguns e comente o assunto.

Ontologia de Não-Indivíduos 197

9. Você acha que ainda hoje, dada a situação das teorias físicas,é possível sustentar que a ontologia é o estudo das estruturas maisgerais daquilo que é?

10. Tomemos a ontologia em sentido relativo. Você concorda com asafirmações seguintes? Em cada caso, tente justificá-las ou refutá-las.

(a) Uma mesma teoria pode ser compatível com ontologias diver-sas, mesmo incompatíveis entre si.

(b) Uma teoria não determina de modo unívoco a sua ontologia.

(c) Uma ontologia tem ligação essencial com a lógica subjacenteà teoria que lhe corresponde, assim, a existência de várias lógicasimplica a possibilidade de várias ontologias.

198 Tópicos em Ontologia Analítica

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Índice 213

Índice

ιxF(x)significado de, 37

Łukasiewicz, J., 105Sein, 28Sosein, 28

contrária, 28contraditória, 28

haecceity, 134thisness, 134coisa-em-si, 3

Ackermann, W., 88Agostinho

e o tempo, 166analítica

filosofia ver filosofia analítica,4

Andrônico de Rodes, 1aprisionamento de partículas, 146Aristóteles, 1, 60, 81, 85, 86, 93,

105ciência para, 84como o ‘pai’ da lógica, 82e a verdade, 69proposições categóricas, 61

atomismo lógico, 9Austin, J.L., 5automorfismo, 178

Auyang, S., 130axioma da escolha, 57, 79Ayer, A.J., 7, 96Azande, 95

bóson de Higgs, 125, 153Bachelard, G., 91Balibar, F., 129Barcan Marcus, R., 114boa-ordem, 79Bohm, D., 129, 142Boole, G., 85, 86, 88Bosanquet, B., 5Bourbaki, N., 57, 65Bradley, F.H., 5Brentano, F., 100Bunge, M., 74, 77, 130, 188

Círculo de Viena, 7, 9Cantor, G., 67, 111Cao, T.Y., 126Carnap, R., 7, 8, 96

contra Heidegger, 7questões internas e externas, 7

Carnap.R., 5Chateaubriand, O., 59, 60, 73Cohen, P.J.

matemáticas não cantorianas, 110

214 Índice

comprometimento ontológico, 4, 59condensado de Bose-Einstein, 142,

144conjunto universal, 111

existe em NF, 112não existe em ZFC, 112

conjuntosteoria paraconsistente de, 76

Crisipo, 88

D’Espagnat, B., 190da Costa, N.C.A., 23, 58, 89–92,

96, 114, 164Dalla Chiara, M.L, 161Dalla Chiara, M.L., 95, 156, 188definição contextual, 37definições contextuais, 43Dehmelt, H., 146, 147descrições, 36descrições definidas

o que são, 36descrições indefinidas

o que são, 36descritor, 37Destouches, J.-L., 95dialeteísmo, 96Dirac, P.A.M., 128discernibilidade

vs. individualidade, 164Doria, F.A., 58Dummett, M., 5Duns Scotus, 134

efeito túnel, 139efeito Unruh, 4, 168Einstein, A., 158, 169

teoria e observação, 190emaranhamento, 135Enriques, F., 84, 91entidades sem identidade, 188espa co-tempo

ver espaço e tempo, 166espaço e tempo, 10, 166

absolutos, 167relativos, 167

espaço-tempo, 170Euclides, 86

e a lógica aristotélica, 86existem infinitos números pri-

mos, 19Everett, H., 138existência, 21, 48

de Deus, 98como um predicado, 98de conjuntos, 112discussão geral, 104e quantificação, 98em Kant, 100

existência e subsistência, 26, 28,32

extensionalidade modal, 155

Février, P., 95física de partículas, 121física quântica, 2Feigl, H., 7ficções, 46filosofia analítica, 4, 9

caracterização, 5Foster, T., 75Fourier, J., 158

Índice 215

Frege, G., 37, 62, 85, 86, 88, 100,185

e a visão linguística da lógica,88

French, S., 194futuros contingentes, 84

Gödel, K.teoremas de incompletude, 179

Gell Mann, M., 125Gisin, N., 170Glashow, S.L., 125, 131Gonseth, F., 91, 95Goodman, N., 155Gormley, A.

a nuvem quântica, 132gravitação quântica, 121

Hahn, H., 7Hebeche, L., 15Heidegger, M., vi, 93Heisenberg, H., 190Heisenberg, W., 128Heráclito, 93Hilbert, D., 58, 88

e o símbolo ε, 56existência para, 21

Husserl, E., vi

idealismo, 6monismo, 10

identidadeaxiomas da, 39critério de, 59, 71entidades sem, 176implicando individualidade, 76

lei da substitutividade, 39lei reflexiva da, 39no esquema de Quine, 75o que é?, 72teoria da, 73, 77, 90, 182transtemporal, 187ver ‘princípio da identidade’,

105indiscernibilidade, 140

em uma estrutura, 178indivíduo

caracterização, 132indivíduos, 79individuação

teorias de pacotes de proprie-dades, 134

teorias de substrato, 134individualidade, 72

transcendental, 164interferômetro de Mach-Zehnder, 137intuicionismo, 21

Jammer, M., 170

Kant, I., 3, 84, 94, 98, 100e a existência, 100

Kaplan, D., 68quinizar o nome e russellizar a

descrição, 68Ketterle, W., 145Kochen-Specker

teorema de, 29Kripke, S., 9, 49Kuhlmann, M.

e a ontologia, 3

216 Índice

Lévy-Leblond, J.-M., 129lógica

a ‘grande lógica’, 90a disciplina, 82a priori, 91a priori ou empírica?, 90aristotélica, 51, 93, 103com o descritor, 54com o símbolo de Hilbert, 56como ‘física do objeto qualquer’,

95de Jaskowski, 25de primeira ordem

semântica para, 101difusa, 82, 89dos Azande, 95e ontologia, 96intensional, 89intuicionista, 19, 25, 89meinonguiana, 58modal, 49, 84moderna

avanços da, 62não-adjuntiva, 25não-clássica, 89o que é uma, 93origem das leis da, 91paraclássica, 25paracompleta, 89paraconsistente, 22, 58, 89, 95,

96, 113polivalente, 84, 89princípios clássicos, 22tradicional

evolução da, 85

lógivanão-aristotélica, 105

Laboratório Ousia, 15lei da dupla negação, 25Lei de Leibniz, 39lei de Scotus, 21Leibinz, W.G., 85Leibniz, G.W., 49, 86

a evolução da lógica, 88Lei de Leibniz, 39

Lewis, D., 9, 47, 48realismo modal, 48

LHC, 125, 130Lorenzen, P., 104Lorhard, J.

Ogdoas Scholastica, 2Lucrécio, 158

método axiomáticoorigem do, 105

Marias, J., 97matemática grega, 83mecânica quântica, 3, 9, 105

espaço e tempo em, 128interpretação dos muitos mun-

dos, 49ontologia da, 2superposição de estados, 49

Meinong, A., 14, 26, 27, 30respostas a Russell, 32teoria de objetos, 25

metafísicao sentido da palavra, 1

Metafísicade Aristóteles, 1

Índice 217

metafísica, 2metaphysica generalis, 2metaphysica specialis, 2Micraelius, J., 2Modelo Padrão, 121Modus Ponens, 102Moore, G., 5

não-indivíduos, 77, 151ontologia de, 173

Nagel, E., 96Neurath, O., 7Newton, I., 158Nietsche, F., 93não-indivíduos, 152

objeto quântico, 123ontologia

analítica, 10da mecânica quântica, 2e a ciência presente, 4e física, 121e lógica, 4em sentido tradicional, 1mudança de, 3naturalizada, 3, 4origem da palavra, 2relativa a uma teoria, 2, 4sentido corrente to termo, 4

operador de descriçãover ‘descrição, 37

operador de descrição, 37oposições

quadrado das, 28

Papavero, N., 58

paraconsistenteobjeto, 28

paradoxo de Banach-Tarski, 110Parmênides

o poema de, 14partícula Ω−, 124partículas e ondas, 3partículas virtuais, 16Pauli, W., 141Peano, G., 85Peirce, C.S., 62, 85, 88

concepção de verdade, 159Penrose, R., 166Pessoa, O., 129Piaget, J., 180Pitágoras, 83Planck, M

escala de, 166Planck, M., 185

escala de, 125, 159fórmula de, 185

Platão, 8, 15Post, H., 134, 164, 187postulados

de uma teoria, 106postulados de ZF

esquema da Separação, 108esquema da Substituição, 109extensionalidade, 108infinito, 108par, 108potência, 108regularidade/fundamento, 108união, 108

postulados de ZFC

218 Índice

escolha, 109predicados vagos, 97Priest, G., 25, 96princípio

da contradição, 31, 89, 90, 113várias formulações do, 24

da cotradição, 22da extensionalidade, 25da identidade, 22, 105

várias formulações do, 23da identidade dos indiscerníveis,

72, 134da impenetrabilidade, 126da indiscernibilidade dos idên-

ticos, 72de Frege, 25do terceio excluído, 90do terceiro excluído, 23, 89, 112

várias formulações do, 24princípio da contradição, 32problema ontológico, 13

as duas faces do, 14e Meinong, 30

proposições categóricas, 85

quantificadores, 62, 88axiomas para, 101como predicados ‘de segunda

ordem’, 102definição dos, 56e existência, 98generalização existencial, 62,

101instanciação universal, 101interpretação objectual, 65

interpretação substitucional, 66interpretações dos, 65

quase-conjuntos, 173, 188como background theory, 188

quase-verdade, 161Quine, W.V., 13, 59, 66, 176

proxy function, 71e a identidade, 71comprometimento ontológico,

16, 19, 60, 76e o idioma quantificacional, 63e o problema ontológico, 13e o uso de variáveis, 64e sua definição de identidade,

78expressões sincategoremáticas,

63extensionalismo, 71, 76redução ontológica, 71, 73, 74temas ontológicos, 59

redução ao absurdo, 20na prova de Anselmo, 99

redução ontológica, 59Reiser, O., 105relatividade geral

teoria da, 4Rescher, N., 6Rosser, B., 74Routley, R., 30Russell

conjunto de, 76Russell, B., 7–9, 26, 45, 85, 94,

162, 185conjunto de, 48, 76, 113

Índice 219

críticas a Meinong, 31e a filosofia analítica, 5e a prova de Anselmo, 100teoria as descrições, 35teoria das descrições, 31

Ryle, G., 5, 26

Schrödinger, E., 128, 132contra a identidade de partícu-

las, 150emaranhamento, 135equação de, 135

sentido e referência, 42Simpson, T.M., 14, 52sistema trivial, 22St. Anselmo, 99

existência de Deus, 98Strawson, P.F., 9, 53

críticas a Russell, 51Stroll, A., 10, 41subdeterminação da metafísica, 195Suppes, P., 190

Tarski, A., 65, 88e a concepção semântica da ver-

dade, 69esquema de sua semântica, 103o esquema T, 69

teologia, 2teorema

da compacidade, 89da correção, 117de incompletude, 179de Löwenheim-Skolem, 89de Lindström, 89

teorema de Kochen-Specker, 165

Teorema de Pitágoras, 83Teorema Fundamenta da Aritmé-

tica, 20teoria de conjuntos

as teorias de Quine, 74existência de várias, 73neutralidade da, 74

teoria quântica de camposontologia da, 2

termos singulareseliminação dos, 67

Toraldo di Francia, G., 97, 141, 156,161, 188

mundo de objetos, 180

universo conjuntista, 110

vácuo, 4Vasiliev, Nicolai, 105verdade, 69

adequação material, 69correção formal, 70

Wang, H., 74Weinberg, S., 122, 157Whitehead, A.N., 35Wittgenstein, L., 5, 6, 9, 26

e o Tractatus, 6

Zeilinger, A., 131Zenão de Cítio

e a escola megárica, 87Zenão de Eléia, 20, 84, 87

e a redução ao absurdo, 82Zermelo, E., 8, 103Zucchi, H., 1