Tijuana: a esquina da América Latina. Notas sobre a vida transfronteiriça e as deportações...

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ORGANIZADORES: EDWIGES CONCEI˙ˆO CARVALHO CORR˚A JOˆO PEDRO TAVARES DAMASCENO TELMA FERREIRA NASCIMENTO DURˆES TR`FICO INTERNACIONAL DE PESSOAS E OUTROS TR´NSITOS Goinia-GO Editora Espao AcadŒmico/ Editora Puc GoiÆs, 2014

Transcript of Tijuana: a esquina da América Latina. Notas sobre a vida transfronteiriça e as deportações...

ORGANIZADORES:

EDWIGES CONCEIÇÃO CARVALHO CORRÊA

JOÃO PEDRO TAVARES DAMASCENO

TELMA FERREIRA NASCIMENTO DURÃES

TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS E OUTROS

TRÂNSITOS

Goiânia-GOEditora Espaço Acadêmico/ Editora Puc Goiás, 2014

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Impresso no BrasilPrinted in Brazil

2014

CIP - Brasil - Catalogação na FonteBIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL PIO VARGAS

Índice para catálogo sistemático:CDU: 326.1

DUR Durães, Telma Ferreira Nascimento.tra Tráfico Internacional de Pessoas e outros trânsitos. -

(organizadores) Telma Ferreira Nascimento Durães, Edwiges Conceição Carvalho Corrêa, João Pedro Tavares Damasceno. - Goiânia: / Editora Espaço Acadêmico/ Editora Puc Goiás, 2014

272 p. il.

ISBN:978-85-8264-036-4

1. Trá+co Internacional de Pessoas. I. Corrêa, Edwiges Conceição Carvalho (org.). II. Damasceno, João Pedro Tavares (org.). III. Título.

CDU: 326.1

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DEPORTAÇÕES MASSIVAS

JÚLIO DA SILVEIRA MOREIRA

1. INTRODUÇÃO

Estive em Tijuana durante todo o mês de julho e o iní-cio de agosto de 2013, como parte do meu período Sanduí-che no Doutorado em Sociologia da Universidade Federal de Goiás. Meu interesse era entender a cidade como região de fronteira e o modo de vida transfronteiriço da popula-ção, bem como os aspectos da violência contra migrantes. Os resultados foram muito além do esperado. Fui recebido por vários atores da cidade que dialogaram e me guiaram por suas descobertas1. Fui acolhido na Casa de Migrantes de Tijuana, onde passei vários dias como voluntário, parti-cipando das tarefas da casa, como alimentação e limpeza, e da assistência aos migrantes, assumindo dia após dia ta-refas que me permitiram conviver e compreender a fundo os problemas, as histórias de vida e os sentimentos dessas pessoas: cuidando da portaria e fazendo o primeiro conta-to com os que acabavam de chegar; fazendo a entrevista preliminar que serviria para a assistente social registrar sua

1 Gostaria de agradecer especialmente ao Padre Pat Murphy e todos os voluntários e pessoal da Casa do Migrante de Tijuana, à Irmã Adélia e pessoal do Centro de Acolhida Madre Assunta, aos pesquisadores Rafael Alarcón, Amaranta Caballero (também poetisa) e Kolar Aparna, do Colégio da Fronteira Norte; à estudante dreamer Nancy Landa, que resolveu alçar sua voz após ter sido deportada aos 29 anos, em 2009, mesmo após ter concluído sua graduação em Administração na Universidade do Estado da Califórnia; ao Prof. Victor Clark Alfaro, do Centro Binacional de Direitos Humanos. E aos migrantes que com suas histórias deram a contribuição mais importante para este trabalho.

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passagem pela casa e especificar os dias de permanência; fazendo as ligações na linha telefônica internacional para as dezenas de migrantes que formavam fila todos os dias para ligar para familiares, possíveis empregadores, etc.; realizando a palestra sobre as regras da casa, dada todos os dias ao anoitecer depois do jantar. Além disso, visitei localidades importantes da cidade, a região central, as uni-versidades, centros de direitos humanos, museus, bares e galerias de arte, o CECUT (Centro Cultural Tijuana), uma feira aberta, o canal sobre o Rio Tijuana, chamado de -

do, os pontos de passagem na fronteira, as -

juana (onde inclusive acompanhei um protesto e atividade cultural contra a militarização da fronteira), o bairro Colo-

, formado tradicionalmente por retornados dos Estados Unidos.Também cruzei a fronteira, pela passagem de San Ysidro, e visitei as cidades de San Diego, Los Ange-les e San Francisco, buscando em cada local os elementos da imigração latino-americana.

Os resultados que aqui apresento são fruto de uma tentativa de encontrar em Tijuana os elementos que marcam o contexto sociocultural da cidade, como as particularidades culturais, o modo transfronteiriço de viver e pensar, a violência simbólica existente em uma das passagens fronteiriças mais conflituosas do mundo, marcada por antagonismos do mundo moderno (de-sigualdade econômica, militarização da fronteira, contradição entre o livre trânsito de mercadorias e otrânsito restrito e seleti-vo de pessoas). A contradição que marca uma boa parte dos que

que este artigo procura expressar e que começo com a sequên-cia de fotos abaixo.

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Esta foto dá uma ideia de como o muro fronteiriço se estende até a praia

Do lado mexicano (nas ), pessoas observam �o outro lado� que está ali mesmo, após as barras de ferro que impedem a passagem. As placas advertem aos que pensem na possibilidade de passar nadando: �PE-RIGO FERROS EMBAIXO D�AGUA�.

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Várias frases e intervenções artísticas são feitas nas barras. Frases comuns são: �... e se os ho-mens pudessem voar...�; �as palavras não construirão muros�; �a raça não passa... mas se os produtos passam...�; �todos os muros caem; os impérios também�; �é aqui que os sonhos são rebatidos�; �nesta esquina...�.

Desafiando a austeridade do muro, a praia do lado mexicano é extremamente movimentada e agitada, enquanto a única coisa que se vê no deserto do lado estadunidense são as cami-nhonetes da Patrulha Fronteiriça (próxima foto). Esse paradoxo é a questão mais intrigante que rodeia a cidade de Tijuana e expressa uma síntese do carácter contraditório da chamada Globalização. Kolar Aparna, uma pesquisadora visitante no Colegio de laFrontera Norte, me falou: �os mexicanos ressignificam a fronteira�.

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Do lado estadunidense do muro, a zona é totalmente militarizada. A única coisa que se vê é um segundo muro, uma caminhonete da Patrulha Fron-teiriça e algumas pessoas. A cidade de San Diego se vê ao longe, distante do muro, do conflito, da militarização. De Tijuana se vê San Diego, mas de San Diego não se vê Tijuana.

Como método de investigação, exerci principalmente e a observação participante, o convívio prolongado com informan-tes-chave, entrevistas com migrantes deportados, acadêmicos, religiosos e outros atores sociais da cidade, e registros fotográ-ficos.Para analisar as fotos, utilizo a sociologia da fotografia e da imagem(MARTINS, 2008) revelando e ressignificando as-pectos invisíveis da vida cotidiana.A análise desse conjunto de informações é feita com uma reflexão transdisciplinar sobre o conceito de fronteira e sobre as migrações internacionais. O texto que segue é um misto de diário de campo e artigo acadê-mico. A partir das constatações in loco, procuro desconstruir a ideia culturalista sobre Tijuana, que parece olhar apenas para os trânsitos de produções culturais híbridas, diminuindo o peso

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do maior problema social da região, que é a situação de miséria e vulnerabilidade dos migrantes deportados. Outra visão que procuro desconstruir é aquela formada pelas projeções do ideá-

marijuana�. Às visões elitistas e idealistas sobre a cidade, con-traponho uma análise �desde abajo�, ou seja, desde o ponto de vista dos oprimidos e explorados no contexto social.

(Manu Chao)

(Néstor García Cancliniem 1989)

-

cultivada.(NéstorGarcíaCancliniem 2009)

-

as one, Tijuana and San Diego form the most fascinating

(Richard Rodríguez)

(�É aqui que os sonhos são rebatidos� - Inscrição comum de ser vista nas barras fronteiriças à altura das Praias de Tijuana)

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Essas transcrições expressam as pesadas contradições que envolvem a cidade de Tijuana e seu significado paradigmático para a chamada globalização. Estudar essa cidade é estudar a sociedade de fronteira através de uma região de fronteira espe-cífica que evidencia o imperialismo, a desigualdade, a opressão e a resistência. Essas versões e paradoxos serão abordados a seguir.

Como definir Tijuana? Quem tem apenas uma noção dis-tante sobre essa cidade, acaba ficando com a visão do senso comum, formada de fora para dentro e a partir da indústria cul-tural dominada pelos Estados Unidos: uma cidade onde o he-donismo se encontra com o selvagem e desconhecido. O cantor Manu Chao popularizou a frase �Welcometo Tijuana, tequila,

�, numa canção irônica e contraditória.Um lu-gar onde se vai para buscar prazer e diversão, como nos filmes estadunidenses. Um lugar de forasteiros, desértico, pitoresco. Quando cheguei a Tijuana, isso não era evidente, e comecei a indagar porque existe essa construção simbólica sobre a cidade.

A história remete ao Tratado de Guadalupe Hidalgo, de 1848, que definiu parte da fronteira entre os dois países, dei-xando uma vila às margens do Rio Tijuana, com algumas cen-tenas de casas, como cidade fronteiriça. Já nessa época era conhecido como um povoado com mais bares que casas, uma �cidade do vício� (YÉPEZ, 2006). É a �Lenda Negra� atribuí-da à cidade.Na década de 1920, é fundado o Casino de Agua

Caliente, frequentado por famosos e ricos da cena californiana-que cruzavam a fronteira exatamente no período em que a Lei Seca ( ) estava em vigência nos EUA. E assim foi se firmando no imaginário estadunidense a figura de uma cidade

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onde se podia fazer o que era proibido ou censurado no seu país: tequila, sexo e marijuana.

Até meados da década de 1990, a cidade ainda tinha essa fama e era bastante frequentada por estrangeiros, sobretudo es-tadunidenses, que iam para turismo e festas (como as famosas e ousadas festas de , no período em que estudantes dos EUA aproveitam o recesso escolar para ir em grandes gru-pos ao México). Com a onda de violência e crime organizado, esse fluxo foi relativamente interrompido.

A �Lenda Negra� éuma construção imaginária sobre uma cidade real (FÉLIX BERUMEN, 2003). Aliás, essa pintura he-donista acaba servindo para ocultar grandes problemas, como a migração indocumentada e as deportações. A própria música de Manu Chao revela o paradoxo, pois o verso seguinte é: �Co-

�. O próprio ritmo da música mostra uma tensão própria de quem não viaja a turismo, contando in-clusive com sons de disparos de arma de fogo.

Em plena noite, pessoas retornam do trabalho para suas casas, depois de ter descido do (trem movido a energia elétrica), cruzando de volta a fronteira rumo ao México.

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Do lado mexicano, na saída da passagem fronteiriça, se vê ocasionalmente a famosa frase, que está mais no imaginário e na literatura sobre a cidade.

A frase �Bem-vindo a Tijuana� não está escrita de maneira ostensiva quando as pessoas, vindo dos Estados Unidos, pas-sam pela Porta México. Mas está certamente no imaginário e na literatura sobre a cidade. Pode ser uma saudação lúdica a turistas, mas também pode ser: (1) uma saudação às centenas de méxico-americanos que são ali despejados após serem de-portados e arrancados de suas famílias nos Estados Unidos; (2) uma saudação a quem retorna à cidade todas as noites, depois de ter passado o dia trabalhando �do outro lado�, e abraça os fa-miliares que lhe espera na saída; (3) uma saudação aos migran-tes que, no sentido contrário, passam pela cidade para entrar irregularmente nos Estados Unidos; (4) uma saudação a quem terá diante de si a crueldade do crime organizado e das próprias autoridades estatais.

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4. PRÁTICAS CULTURAIS E IDENTIDADES TRANSNACIONAIS

Cada uma das cidades de fronteira no norte do México pos-suem características que revelam identidades transnacionais, como formas particulares de práticas sociais e subjetividades. Vertovec (2006), referindo-se ao transnacionalismo migran-te (mais além das cidades de fronteira) analisa seus aspectos sociocultural, político e econômico. O primeiro aspecto é ex-presso como bifocalidade de perspectivas, dada pelas práticas transnacionais de trocas, comunicação e viagens, em que o per-tencimento dos sujeitos se confunde entre o �aqui� e o �lá�, uma visão de mundo além dos limites da �terra natal� e da identidade nacional. Essas barreiras fronteiriças são questiona-das também no âmbito político, reclamando novas concepções de identidades, fronteiras e ordens político-sociais; no âmbito econômico, estão as trocas comerciais e a conformação de redes de autossustentação entre migrantes e suas famílias, mantidas pelas remessas financeiras, assim como redes de apoio na socie-dade de destino como estratégias de sobrevivência.

Assim, a fronteira é mais do que uma linha divisória, a re-gião fronteiriça representa uma fronteira estendida, onde as trocas culturais criam identidades próprias que não são nem de um país nem de outro: tratam-se de região e identidades transfronteiriças. Aparecem as culturas híbridas, analisadas por Canclini (1989) e Hall (2003).

Com isso Canclini explica a pulverização de práticas cul-turais transfronteiriças e transnacionais em Tijuana, expressa na arte através de trabalhos de artistas, músicos, escritores, e expressões coletivas de revistas, grupos de artistas, centros de cultura, exposições, intervenções urbanas, etc., ao ponto de considerar a cidade como �um dos maiores laboratórios da pós-modernidade�:�

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� (GARCÍA CANCLINI, MOTEZEMOLO, 2009, p. 144).

Essa visão, porém, é contrastada pela dura realidade so-cial da cidade: pobreza e violência estrutural, alimentadas pela desigualdade entre os dois lados da fronteira e pela vio-lência institucional (deportações massivas, prisões arbitrárias, marginalização e discriminação), levando milhares de pessoas à vulnerabilidade, vivendo na rua, usando drogas, vivendo na prostituição, etc. Boa parte dessas pessoas são acolhidas pelos mais de 40 albergues e casas de apoio espalhadas pela cidade. A realidade social desconstrói tanto a visão hedonista feita para turistas quanto a visão de que a cidade seria um laboratório de expressões culturais formais.

Assim é que Canclini, em 2009, recoloca o que havia dito em 1989: Tijuana não é um laboratório da pós-modernidade, mas um laboratório da desintegração social e política do Mé-xico como consequência de uma ingovernabilidade cultivada.Uma visão compartilhada pelos cientistas sociais que atacam a subserviência política do país aos Estados Unidos e os resulta-dos da política de Guerra às Drogas, com aumento da violência e crescimento da atividade dos cartéis.

Tijuana é de fato um laboratório ou paradigma, pois reme-te a uma das fronteiras mais conflituosas da humanidade, um conflito marcado não apenas pela violência bélica e militariza-ção, como ocorre em outras partes do mundo, mas um conflito permanente com violência simbólica e estrutural, vivenciada no dia-a-dia, com aparência de normalidade. A expressão cul-tural da cidade, portanto, está carregada de transnacionalismo e bifocalidade, é certo, mas demonstrando não uma relação de troca horizontal, mas uma relação de desigualdade e opressão.Como o próprioCanclini( MONTEZEMOLO, 2009, p. 148) analisa:

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La transculturalidad, o la transciudad, o transfrontera fue sobrevalorada. Existe más como un circuito que como un espacio, más como posibilidad de un intercambio constan-te y fluido, a veces muy entorpecido, que como una cul-tura compartida.

As trocas socioculturais entre Tijuana e San Diego não igualam os dois lados da fronteira. Acrescento outra fala de Canclini( MONTEZEMOLO, 2009, p. 146), sobre as condições desiguais de produção artística nas duas cidades:

Mientras los artistas extranjeros usaban con mucha más libertad los espacios públicos de Tijuana, contrastaban su búsqueda formal con la cultura local y los conflictos fron-terizos, muchos artistas latinoamericanos, cuando iban a San Diego a hacer su obra, la escondían en un sótano: era como si el urbanismo de San Diego les hiciera más difícil intervenir, manejar ese tejido urbano. Algunos usaban los espacios abiertos, sobre todo los muralistas chicanos, pero hubo pocas experiencias de arte público dentro de la ciu-dad. La desestructuración urbana de Tijuana parecía más disponible para la utilización del espacio que el trazado de barrios aislados en San Diego, enlazados por autopistas.

A geografía urbana (assunto que será aprofundado no pró-ximo tópico), é parte de um todo que significa o imperialismo através de padrões de organização e jogos de permissões/proi-bições que aliados às particularidades da acumulação capitalis-ta em cada lugar, configuram o espaço social. Por isso Canclini fala em �desestruturação urbana� em Tijuana e �traçados de bairros isolados ligados por autopistas�, em San Diego. Abaixo, mostro outra sequência de fotos, que permitem visualizar essas associações entre estrutura urbana e expressões culturais.

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Mural tipicamente mexicano pintado na calçada de Playas de Tijuana.

No dia 28 de julho de 2013, participei de um ato político-cultural contra a militarização da fronteira. Houve apresentações de fotografias, poesia, música e testemunhos de pessoas deportadas. Na foto, um artista popular exibe sua coleção de obras.

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O comércio urbano informal é uma marca característica da paisagem me-xicana, que contrasta com a paisagem estadunidense, onde predomina um cenário de assepsia urbana e ordem aparente e estática.

Bauman (1999, p. 7) aponta a globalização como um pro-cesso contraditório que �tanto divide como une; divide en-

-movem a uniformidade do globo�. De acordo com Ianni (2010, p. 7), �simultaneamente à interdependência e à acomodação, desenvolvem-se tensões e antagonismos�, trazendo processos de desterritorialização e reterritorialização. E explica:

As mesmas condições propícias aos novos surtos de expan-são mundial do capitalismo, da reprodução ampliada do capital em escala global, essas mesmas condições trazem consigo a criação e a reprodução de desigualdades, carên-cias, inquietações, tensões, antagonismos (IANNI, 2010, p. 21)

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Tijuana é, sim, um paradigma dessa globalização, que não é expressa numa multiculturalidade amorfa, positiva, hori-zontal e de vantagens recíprocas; mas sim um processo de troca desigual, verticalizado e de submissão das pessoas a uma or-dem imperialista de dominação.

5. A GEOPOLÍTICA DA OPRESSÃO EM TIJUANA

A localização geográfica de Tijuana e as implicações geo-políticas dessa localização têm muito a dizer sobre as particula-ridades dessa cidade no estudo das fronteiras e da globalização, expressando aquilo que é mais significativo na geopolítica do

Intervenção artística nas barras fronteiriças em diz: �en esta esquina...�. O sentido geral da frase e as reticências indicam ao leitor que se trata de um adjunto adverbial lugar, cabendo ao imaginário do leitor completar a frase.

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México: ser um país da América Latina na América do Norte.Tijuana éo ponto mais a oeste e mais a norte da América La-tina. Olhando pelo mapa, é, de maneira simples, simbólica e esclarecedora, uma �esquina�. Porque, por mais que a terra, os atributos geofísicos, sejam contínuos, existe uma barreira geo-

existe ali é muito mais de que uma barreira física, é uma bar-reira geopolítica, além de ser também cultural e simbólica, que separa dois mundos, duas realidades integradas e seccionadas pelo processo contraditório e desigual chamado de globaliza-ção.

O muro se estende até o litoral, a um dos lugares mais fre-quentados e contraditórios da cidade, que se chama �Playas de Tijuana�. Ali se vê uma cena inconcebível, com a junção entre o lúdico e o torpe: uma praia com linda natureza, bares, artistas de rua, festivais de música e multidões que celebram a vida em suas areias e no comércio local. É porém, uma praia com �pare-de�, uma praia que termina, como no filme

, em que o personagem principal navega com sua canoa até topar uma parede e perceber que a imensidão do mar era uma pintura de cenário. As pessoas se acumulam até as barras de metal de 2,5m de altura que separam o México e os Estados Unidos. Do outro lado das barras, a praia é deserta. Apenas os veículos da patrulha fronteiriça estão ali, vigiando, evidenciando a crueldade dessa fronteira e desafiando a alegria insubordinada dos mexicanos.Nesse lugar, a porosidade da fronteira existe apenas nos vãos entre as barras. Mas é por esses vãos que se encontravam, nos fins de semana, famílias separadas pela deportação, como se vê nas fotos abaixo. Até 2009, a aproximação de quem vinha do lado de San Diego era permitida porque ali existia um Parque da Amizade. A partir de então, é construído um muro adicional e fechado o parque, impedindo totalmente a aproximação por

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esse lado da fronteira. As imagens abaixo contrastam a cruelda-de do muro associada à alegria do encontro familiar. O parado-xo é ainda maior quando se observa que as fotos lembram um cenário de prisão, porém, ao ar livre.

Fotos: Maria Teresa Fernández. Exposição Cerca de la Cerca. Universityof South California Annenberg

Os frequentadores das Praias de Tijuana �ressignificam� a fronteira. Dão a ela um outro significado onde cabem a fes-ta, o passeio, o encontro, a arte. Um tal ambiente nada tem a ver com áreas militares e de segurança nacional que ordenam à pessoas manter distância. A violência continua existindo: simbólica e estrutural, porém, existe também a resistência. As mesmas barras que alertam dizendo �Perigo: ferros embaixo d�água� estão pintadas com intervenções artísticas e inscrições de protesto, como �E se os homens pudessem voar...�; �Todos os muros caem, os impérios também�.

Outra frase muito comum de se ver é �aquí es donde re-botanlossueños� (é aqui que os sonhos são rebatidos), que ex-pressa todo o significado da fronteira para aqueles que têm seus sonhos frustrados. Essa frase ganha sentido quando se observa a relação entre o muro e o aglomerado urbano. Como num jogo de squash, o muro rebate tudo que chega até ele. Para se ir do

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Centro para as Praias de Tijuana, toma-se a Via Internacional. Como demonstra a figura abaixo, ela começa margeando o Rio Tijuana, no canal conhecido como . Quando se depara com a fronteira, o rio segue e a rodovia é rebatida: segue seu caminho margeada pelo muro, como se este fosse um obstáculo intransponível.

Fonte: .

O próprio desenvolvimento demográfico de Tijuana refor-ça essa simbologia. Seu aglomerado urbano se concentra fazen-do pressão sobre a fronteira. Daí a imagem paradoxal que mos-tra o aglomerado urbano, do lado mexicano, e o deserto, do lado de San Diego. É como se as construções, estruturas urbanas e a densidade populacional estivessem também sendo rebatidas pelo muro.

Rodríguez (1992) cria figuras que expressam bem a relação entre Tijuana e San Diego, em passagem que citei no início e aqui trago traduzida:

San Diego encara o oeste, olha resolutamente para o mar. Tijuana fita o norte, como para o futuro. San Diego é o fu-turo - secular, sem alma. San Diego é o passado, guardan-do sua qualidade de vida. Tijuana é o futuro ... Tomadas

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juntas como uma só, Tijuana e San Diego formam a mais fascinante nova cidade do mundo, uma cidade de ironia da classe mundial.

É certo que San Diego e Tijuana fazem parte de uma mes-ma unidade demográfica e sociocultural: uma participa do dia-a-dia da outra, mas é também uma unidade contraditória, um exemplo irrefutável das desigualdades e hierarquias sociais que a globalização gera. Isso está evidente no significado que os moradores de Tijuana dão a San Diego: para muitos, é um lugar de trabalho, para outros, um lugar de compras, para outros, é uma região inatingível. Este último grupo é bastante significa-tivo: como uma cidade que cresce espalhando-se pela fronteira não pode cruzá-la, como uma só cidade pode ter um muro que torna a outra parte inatingível? Como é possível viver em Ti-juana acreditando não se ter nenhuma relação com San Diego? São perguntas que circundam a contradição da fronteira.

A fronteira é um fetiche. Carlos YéffimFongRonquillo e IlianaMartell Gonzalez (2013) constroem o conceito de feti-chismo da fronteira, a partir do fetichismo da mercadoria, em Marx. Como no caso da mercadoria, a fronteira é dicotômica: possuindo um aspecto real e outro aparente. Ela é, ao mesmo tempo, um espaço de encontro e limite: regula quem passa e quem fica. Uma dupla função exercida por quem tem o contro-le e o poder sobre ela:

La frontera se revela así como una fuente de poder de la cual muchos sectores sacan provecho, controlando preci-samente el pase y el límite, lo legal y lo ilegal, en fin lo permitido y lo no permitido, tal como en el juego fetichis-ta (FONG RONQUILLO; MARTELL GONZALEZ, 2013, p. 2).

Na mesma página os autores completam: �un fetiche siem-

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pre está siendo algo y puede estar siendo otra cosa�. O sentido da fronteira é, ao mesmo tempo, um espaço de mistura e en-contro do diferente, e de separação e cisão do diferente. Aí está o carácter simbólico e estrutural da violência na fronteira, que se aplica perfeitamente a Tijuana.

Afronteira é também biopolítica: �las condiciones mínimas de un laboratorio, incluyendo un laboratorio social son el con-trol del espacio y de los cuerpos, son dos características presen-tes en el espacio fronterizo hoy potenciadas con los tiempos de guerra en el siglo XXI� (FONG RONQUILLO; MARTELL GONZALEZ, 2013, p. 1)

Fiamma Montezemolo (2009, p. 150) também nota o carác-ter biopolítico da violência em Tijuana:

Creo que la principal diferencia en la violencia de Tijuana es que ésta se halla atrapada entre dos violencias, como te decía: la que comparte con todo el país, y la frontera, esa violencia que es también biopolítica, relacionada con la hiper-identificación hasta en términos digitales, huellas, irides, dando poder al otro de buscar en mí, en mi cuerpo, la comprobación de mi ciudadanía y de mi intención de volver a ella después de mi visita al otro lado.

No período em que estive naquela fronteira, presenciei várias situações que demonstram a dicotomia e a violência, simbólica ou ostensiva, assim como a resistência. Milhares de pessoas formam filas enormes (a pé ou em carros e motos) nos postos fronteiriços (garitas) de San Ysidro e de Otay Mesa, to-dos os dias. Boa parte cruza a fronteira de manhã para ir traba-lhar em San Diego e cruzam de volta à noite para reencontrar seus familiares e dormir em Tijuana. Essas práticas dão con-teúdo à vida transfronteiriça, transnacional e bifocal próprias dessa região de fronteira. Para essas pessoas, porém, o cruzar é um ato involuntário e estressante, realizado sob a vigilância

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biopolítica dos agentes de migração e ameaça constante de ser impedido, e criminalizado. Para viajar entre o ponto de fron-teira e o centro de San Diego, toma-se um trólebusou , veículo sobre trilhos, cujos vagões vão lotados nos horários de início e fim da jornada. Ao descer dos vagões, ao fim do dia, as multidões caminham para a fronteira, sob a guarda dos agentes de migração. Na volta, já não há filas e conferências (o controle direto é feito apenas na entrada nos Estados Unidos e não na entrada no México). Do lado mexicano, muitas esposas, mari-dos e crianças aguardam pelo retorno. Em uma dessas ocasiões, presenciei um fato simbolicamente interessante. Um senhor branco de uns 55 anos, de cabelos e barba branca, desce do trólebus com sua bicicleta e vai lentamente pedalando com a multidão até se aproximar da passagem. Quando a multidão se afunilava e ele estava baixando de sua bicicleta, um dos agen-tes de imigração lhe adverte de algo (provavelmente que não poderia pedalar a bicicleta). Ele explica que já estava baixando e o agente continua lhe repreendendo. Ele fica frente a frente com o agente e lhe grita: � � em uma altura que se escutava por toda a multidão, que seguiu caminhando inerte para seu destino. Apenas alguns jovens comentavam entre si e paravam para ver. O senhor e o agente ficaram cerca de 2 minu-tos se encarando, parecia evidente que aquele seria preso. Mas então o agente se vira de lado e permite que o senhor siga seu caminho. Tudo segue em sua normalidade. O senhor por algu-ma razão não foi detido, mas milhares de pessoas que tentam cruzar aos Estados Unidos sem permissão são detidos sem que essa multidão de trabalhadores sequer se dê conta, e outros mi-lhares são diariamente caçados em suas casas, locais de trabalho ou mesmo no trânsito, em várias cidades dos Estados Unidos, e instantaneamente deportados. Aquele foi o � � mais significativo que eu já vi em minha vida.

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6. OS MIGRANTES INDOCUMENTADOS E AS DEPORTAÇÕES MASSIVAS

A relação de Tijuana com a migração indocumentada para os Estados Unidos caracteriza a cidade muito mais que os seus trânsitos multiculturais. Trata-se de uma cidade de migrantes, mexicanos ou estrangeiros, que ocupam as ruas, os comércios e as dezenas de casas de apoio que ali existem. Há vários tipos de sujeitos relacionados à migração indocumentada: os que, recentemente deportados, estão ali em busca de alguma opor-tunidade ou uma maneira de voltar para sua região de origem

Hóspedes da Casa do Migrante de Tijuana participando de missa. Nos dias em que estive lá, a casa registrava entre 90 e 130 migrantes a cada dia. To-dos saem pela manhã, após do café da manhã, e retornam no fim da tarde, quando começa a sequência de atividades que inclui palestras sobre temas gerais como educação sexual, palestras sobre as regras da casa e orientações jurídicas e de assistência social, e distribuição de tarefas para manutenção da casa.

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(se é que ainda possuem alguma raiz no México); os que, re-centemente deportados, aguardam o momento e as condições de cruzar novamente; os que foram deportados há longo tempo e se estabeleceram na cidade, como trabalhadores ou como mo-radores de rua, ou as duas coisas; os que estão vindo do sul na rota de migração e aguardam o momento e as condições para cruzar; os que vieram na rota de migração com a intenção de cruzar e acabaram desistindo da travessia, estabelecendo-se na cidade.

Um importante trabalho acadêmico sobre os migrantes em Tijuana foi feito por Rafael Alarcón e William Becerra (2012), a partir de dados das entrevistas de 3457 homens que passaram pela Casa do Migrante de Tijuana, em períodos selecionados de 2010. A Casa do Migrante de Tijuana é uma casa de apoio mantida pelos Missionários Scalabrinianos (uma ordem da Igre-ja Católica fundada pelo beatoitaliano João Batista Scalabrini, sob o princípio da hospitalidade e atenção aos migrantes).

Moreno Mena (2010) aponta uma mudança no perfil dos hóspedes da Casa de Migrantes: em 2000, 58% haviam che-gado a Tijuana com a intenção de cruzar aos EUA ou perma-necer na cidade, e 42% eram deportados. Em 2009, 90% eram deportados e 10% haviam chegado com a intenção de cruzar ou permanecer na cidade.Essa inversão reflete a mudança no papel de Tijuana em relação à migração indocumentada. Por um lado, houve um reforço da vigilância fronteiriça a partir de 1994, com a Operação (ou Guardião), que foi im-plantada conjugando estratégias de segurança e vigilância com a construção de muros e aumento das restrições à migração indocumentada), fazendo com que Tijuana deixasse de ser a principal opção para os que pretendiam cruzar. Por outro lado, a vigilância fronteiriça dos Estados Unidos deixou de apenas retornar os que eram imediatamente detidos ao tentar cruzar a fronteira, e passou a buscar migrantes indocumentados em

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qualquer parte do país para efetuar deportações, sob os efeitos do 11 de setembro de 2001, em que, através do Ato Patriótico, a migração passou a ser considerada matéria de segurança na-cional.

Dentro dessa perspectiva, em 2003, foi criado Departamen-to de Segurança Nacional, e dando ao Serviço de Imigração e Fiscalização Alfandegária (ImmigrationandCustomsEnforce-ment, ICE) a missão permanente de buscar, deter e deportar migrantes indocumentados. Além disso, o Departamento de Segurança Nacional cria um padrão operacional com as polícias locais, para treinar seus funcionários como agentes de migra-ção.

Uma prática comum efetuada pelos agentes de migração são as redadas (operações surpresa) nos locais de trabalho, para verificar o status migratório dos trabalhadores. Essas práticas, comuns na época de Bush, continuaram a ser feitas no governo de Obama, através de um meio mais sofisticado e de menor im-pacto sobre os demais cidadãos e trabalhadores documentados ( , 2012).

O fato é que a deportação a partir do status migratório nun-ca foi uma prática plenamente justificada nos Estados Unidos, sobretudo nos anos recentes, já que é incontestável que são os trabalhadores migrantes que movem a economia do país. A própria administração Obama, que foi reeleito em grande parte por conta do voto dos latino-americanos, tem seguidas vezes reconhecido os efeitos perversos e injustiças das deportações e separações das famílias. Por isso, afirmou seguidas vezes que não se deportariam trabalhadores, apenas criminosos. Acontece que essa, em vez de ser uma solução, é só o começo do proble-ma.

Alarcón e Becerra (2012) constataram que a maior parte dos deportados se envolveram apenas em infrações de menor po-tencial ofensivo, como crimes de trânsito e discussões em am-

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biente doméstico, não sendo, portanto criminosos de alta peri-culosidade. Por outro lado, a polícia de Tijuana reforça a ideia de que os deportados são criminosos, reforçando o estigma e fazendo com que parte significativa da sociedade se coloque hostil à chegada dos migrantes. Com o discurso de deportar apenas criminosos e não trabalhadores, a administração Oba-ma, em vez de acolher os trabalhadores indocumentados, lhes têm estigmatizado e criminalizado. Aqui a retórica de Obama de deportar �apenas criminosos� revela sua perversidade.

Parte das infrações são inclusive decorrentes da própria condição de indocumentado e das estratégias de sobrevivência. Conduzir sem licença é a principal infração de trânsito associa-da à deportação, porém, os indocumentados não podem solici-tar uma licença de condutor, enquanto a estrutura das cidades (não servidas de transporte público) e as condições de trabalho exigem que o trabalhador se desloque de carro. Na amostragem estudada por Alarcón e Becerra (2012), 36% haviam cometido infrações de trânsito, das quais 43,8% correspondia a conduzir sem licença ou seguro do automóvel, 29,3% por conduzir sob influência de álcool, 10,3% por ultrapassar semáforo ou condu-zir em alta velocidade, 6,5% por envolvimento em acidente de trânsito e 5,7% por conduzir com os faróis sem funcionamento. As outras razões para a deportação, diversas das infrações de trânsito, ou seja, por inspeção policial de rotina, ordem de de-tenção prévia ou prisões em flagrante também se referem em sua maioria a infrações de mínima ofensividade e associados a um juízo prévio de sua condição de indocumentados (p. ex. beber álcool em via pública, comportamento �suspeito� em via pública. brigas, porte de drogas, não pagar multas, não parti-cipar de programas Alcoólicos Anônimos, não se apresentar à corte, etc.). Mais além dos resultados apontados pelos pesqui-sadores, é possível observar que a deportação é uma etapa pos-terior de um processo de discriminação social e criminalização.

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Ao associar deportação e criminalidade, a administração Obama viola o conceito de deportação ante o Direito Interna-cional: o de ser uma medida administrativa de retirar do terri-tório quem nele entrou ou permaneceu de maneira irregular, não tendo carácter de punição. Não bastasse o fato de as regras de concessão de residência permanente (legalização) e natura-lização serem excessivamente rígidas, mantendo um número excessivo de pessoas em situação irregular, ainda se dá à depor-tação o carácter punitivo que não deve ter.

Além disso, a deportação traz outros aspectos perversos: o de retirar uma pessoa de um contexto socioeconômico ao qual ela já está integrada e separá-la de sua família. Na amostragem da pesquisa de Alarcón e Becerra (2012), 37% estavam radica-dos nos EUA há mais de 11 anos; 21% por um período de 7 a 10 anos, 36% de 1 a 6 anos, e apenas 6% havia ali residido por me-nos de 1 ano. Em sua quase totalidade, os deportados haviam constituído laços socioafetivos e econômicos permanentes nos Estados Unidos. Muitos deles ingressaram no país de manei-ra irregular quando ainda eram crianças, falam melhor o inglês que o espanhol, e nunca haviam regressado ao México desde sua saída. No período em que permaneci como voluntário na Casa de Migrantes, participei das entrevistasde triagem com os migrantes recém-chegados. Ao serem solicitados a informar uma pessoa de contato no México, muitos não possuíam ne-nhuma, ou informavam nomes de parentes distantes.

A separação das famílias é um aspecto cruel, sobretudo a separação das mães. O que acontece é que os filhos dos imi-grantes, tendo nascido nos Estados Unidos, são cidadãos es-tadunidenses e não podem ser deportados. E não existe uma regra que suspenda a deportação de uma mãe ou pai no período em que eles deve cuidar de seu(s) filho(s). Isso faz com que existam situações absurdas como as de mães sendo deportadas e tendo de deixar um filho recém-nascido nas mãos de um vizi-

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nho. Essa mãe não pode voltar nem para visitar seu filho, e, de outro lado, o governo dos EUA não permite que a criança volte à guarda da mãe a não ser que esta demonstre solvência eco-

-zadas pela própria deportação (MARTÍNEZ, 2013; JUÁREZ USCANGA, 2013).Pude presenciar tais situações em visitas ao Centro de Acolhida Madre Assunta, mantido pelas Missioná-rias Scalabrinianas, e que se encarrega de receber as mulheres migrantes deportadas.

A separação das famílias também afeta os casais. Vários hóspedes da Casa de Migrantes me contaram dos dilemas gera-dos pela deportação na separação de suas esposas e namoradas. A problemática, no geral, é que, se de um lado, o homem já não pode regressar aos Estados Unidos, a mulher que fica, por outro lado, não vê condições materiais para ir viver no México, pois também já está, relativamente, social e economicamente estabelecida.

A política de Estado dos Estados Unidos é geradora de desajustes sociais dos dois lados da fronteira: de um lado, de-sestrutura famílias e redes socioeconômicas consolidadas, do outro, homens e mulheres que tinham uma vida relativamente estável e integrada são despejados no México, onde terão de reconstruir sua vida nas mais difíceis condições, expostos a si-tuações de vícios e mendicância. Essa política tem o poder de transformar trabalhadores com dignidade em indigentes.

Uma evidência disso é a população em situação de rua em Tijuana. O é o canal no centro da cidade por onde passa o Rio Tijuana até cruzar a fronteira. Ao seu lado está a passa-gem de San Ysidro. É comum que parte significativa dos recém deportados passe vários dias nas imediações do muro, enquanto não têm um destino claro, ou esperam por novas oportunidades de cruzar novamente. Ali conhecem outras pessoas e vão esta-belecendo moradia. Assim foi se formando uma enorme comu-

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nidade de moradores do , com população oscilante. Em agosto de 2013, uma operação policial fez a limpeza da área, sem dar um destino certo aos moradores, que foram realocados num acampamento provisório numa praça do centro da cidade, e depois foram de lá despejados, enquanto a chegada massiva de deportados a Tijuana continua crescendo. Em outubro de 2013, uma apresentação de estudos do Colégio da Fronteira Norte (COLEF, 2013) dava conta de uma população entre 700 e mil pessoas. 59,05% delas haviam vivido nos Estados Unidos por período entre 6 e 25 ano, e 19,29% por um período superior a 26 anos. Sobre suas ocupações, as pesquisas apontavam que 41% trabalhavam na limpeza de carros, 20% tinham uma ocu-pação no mercado, 44% trabalhavam na reciclagem, serviços, construção, e outros similares, e 10% pediam dinheiro. 94% afirmou já ter sido detido pela polícia alguma vez (34% por não ter identificação, 33% por perambular e 15% pelo seu aspecto),

que as detenções fazem perder os trabalhos que conseguem com muita dificuldade (COLEF, 2013). Alegam também sofrer agressões físicas e verbais dos agentes de segurança, além de roubos e destruição dos seus documentos (DEL ANGEL et al, 2013). A polícia, por sua vez, reforça o estigma de que os migrantes foram deportados por serem criminosos e por essa razão são uma ameaça para os turistas e os cidadãos da cidade (RUVALCABA, 2013).

Nos dias em que estive em Tijuana presenciei por mais de uma vez caminhonetes da polícia levando nas carrocerias três ou quatro migrantes algemados. Outros voluntários da Casa de Migrantes comentavam que essa é a prática comum da polícia e que era preciso fazer algo contra. Eram cenas chocantes, por-que aquelas pessoas estavam sendo expostas à população como animais (na normalidade cotidiana da violência estrutural), sem nenhuma segurança e nenhuma preocupação da polícia

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em proteger minimamente os seus direitos. O professor Vic-tor Clark Alfaro, do Centro Binacional de Direitos Humanos, comentou que essas e outras práticas de abusos policiais são constantemente denunciadas.

7. NOTAS CONCLUSIVAS

Tijuana é uma expressão da fronteira México-Estados Uni-dos e dos problemas que ela envolve. Não é certamente um laboratório da pós-modernidade nos termos a que Canclini se referia em 1989. Mas certamente é um laboratório para os es-tudiosos de globalização, fronteiras, migrações internacionais e direitos humanos, pois demonstra o quanto esses processos provocam assimetrias, desigualdades e opressões, explicados pela expressão fetichismo da fronteira (FONGRONQUIL-LO; MARTELL GONZALEZ, 2013), pela biopolítica e pelos conceitos de violência simbólica e violência estrutural. Tam-bém é correta a expressão de Canclini de que Tijuana hoje representa mais a desintegração social e política do México como consequência de uma ingovernabilidade cultivada (apud MONTEZEMOLO, 2009). Mais que isso, Tijuana só pode ser compreendida na sua relação com a fronteira, na sua relação de unidade e contradição como o que está �do outro lado�, pois o que acontece ali é condicionado pela vida dos trabalha-dores transfronteiriços e pela política dos Estados Unidos de militarização da fronteira e deportação massiva. Uma imagem inconcebível é a que melhor pode melhor definir Tijuana na atualidade: a do muro nas , onde o prazer e o lúdico coexistem com a dor e a revolta com a militarização da fronteira. Diante dessa inefável contradição, nos resta o teste-munho e a resistência.

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